sumário - Ideia Editora
Transcrição
sumário - Ideia Editora
Leituras Diversas: Crônicas, Ensaios e Contos SUMÁRIO |1 2 |Magno Nicolau (Org.) SUMÁRIO Leituras Diversas: Crônicas, Ensaios e Contos Leituras Diversas Crônicas, Ensaios e Contos Série Leituras Diversas Vol. 2 Magno Nicolau (Org.) Ideia João Pessoa 2014 SUMÁRIO |3 4 |Magno Nicolau (Org.) Todos os direitos reservados ao organizador. A responsabilidade sobre cada texto é dos respectivos autores. Edição sem fins lucrativas. Editoração/Capa: Magno Nicolau Revisão: Hildeberto Barbosa Filho L533 Leituras diversas: crônicas, ensaios e contos / Magno Nicolau (Org.). Vol. 2 - João Pessoa: Ideia, 2014. 294p. ISBN 978-85-7539-946-0 1. Literatura brasileira – crônicas – contos - ensaios CDU: 869.0(81) EDITORA www.ideiaeditora.com.br Impresso no Brasil - Feito o Depósito Legal SUMÁRIO Leituras Diversas: Crônicas, Ensaios e Contos |5 SUMÁRIO 1989 .................................................................................................... 9 Magno Nicolau CRÔNICAS A VIAGEM QUE TODOS PODEM FAZER ...................................................... 11 Alberto Matos & Lucileide Matos UM JOGO DE FUTEBOL INESQUECÍVEL....................................................... 15 Carlos Alberto Jales DONA CHIQUINHA, WALT DISNEY E JESUS CRISTO DESCENDO NA AVENIDA DOM VITAL ............................................................................. 17 Cláudio José Lopes Rodrigues ARIANO SUASSUNA X NIEMEYER .............................................................. 22 Evaldo Gonçalves AFONSO PEREIRA, UM EXEMPLO DE VIDA .................................................. 24 Felix de Carvalho COISAS INUSITADAS DA VIDA .................................................................. 26 Josineide da Silva Bezerra UM AGRADÁVEL PASSEIO CULTURAL ........................................................ 28 Natércia Suassuna Dutra SOB O SOL ........................................................................................... 31 Onaldo Queiroga NESTA RUA TINHA UM BOSQUE ............................................................... 33 Piedade Farias CASUALIDADE OU ENGAJAMENTO EM VANDRÉ? ......................................... 36 Ricardo Anísio DESEJOS DE SÍLFIDE ............................................................................... 38 Rubens Elias da Silva A CIDADE JARDIM ................................................................................. 41 Ruy Florentino MEMÓRIAS DA COPA DO MUNDO ............................................................ 49 Sônia van Dijck DOCES INVERNOS ................................................................................. 52 Yó Limeira SUMÁRIO 6 |Magno Nicolau (Org.) ENSAIOS EDUCAÇÃO EM DIREITOS HUMANOS PELA TRANSDISCIPLINARIDADE: EM BUSCA DA SOCIEDADE SENSÍVEL ........................................................................ 56 Anaína Clara de Melo ESCOLA CONTEMPORÂNEA: UMA UTOPIA POSSÍVEL .................................... 62 Almiro de Sá Ferreira A POESIA QUE SE SABE ........................................................................... 70 Amador Ribeiro Neto O BOQUEIRÃO: UMA NOVELA ESQUECIDA? ................................................ 75 Ângela Bezerra de Castro FELIPE TIAGO GOMES: PALADINO DA EDUCAÇÃO COMUNITÁRIA BRASILEIRA .... 81 Astenio Cesar Fernandes A FORMAÇÃO BACHARELESCA DOS NORTE-RIO-GRANDENSES NA FACULDADE DIREITO DE OLINDA ............................................................................... 85 Bruno Balbino Aires da Costa MAL QUE FAZ O CIGARRO ....................................................................... 94 Carolina Corrêa Lins O ESPELHO NOS CONTOS DE MACHADO DE ASSIS E GUIMARÃES ROSA: A CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE NOS PERSONAGENS MASCULINOS ................... 95 Cyelle Carmem ESTOU PERDENDO O MEU FILHO .............................................................. 99 Dimas Lucena A ARTE COMO POLÍTICA E A POLÍTICA COMO ARTE: CONVERSA SOBRE A ORQUESTRA DO REICH ......................................................................... 101 Eduardo R. Rabenhorst OCEANO POÉTICO DE FÁTIMA BARROS .................................................... 107 Elisalva Madruga Dantas ...................................................................................... 107 “CADA PROFESSOR QUER UMA COISA DIFERENTE...” .................................. 112 Elizabeth Maria da Silva CULTURA E POLÍTICA: UM DIÁLOGO POSSÍVEL .......................................... 116 Elizabeth Christina de Andrade Lima PADRE IBIAPINA.................................................................................. 122 Ernando Luiz Teixeira de Carvalho A ESCRITA NO REFERENCIAL CURRICULAR NACIONAL PARA A EDUCAÇÃO INFANTIL ........................................................................................... 129 Evangelina Maria Brito de Faria CINE LUX DE POMBAL – O ÚLTIMO EPISÓDIO ............................................ 135 Francisco Vieira SUMÁRIO Leituras Diversas: Crônicas, Ensaios e Contos |7 ALEXEI BUENO E AUGUSTO DOS ANJOS ................................................... 139 Hildeberto Barbosa Filho A IMPORTÂNCIA DA AULA DE CAMPO NOS PROCESSOS DE ENSINO E APRENDIZAGEM ................................................................................. 145 José Januário Corrêa FIlho UMA HISTÓRIA BEM PINTADA ............................................................... 153 José Nunes UMA TRAJETÓRIA DE 150 ANOS: O CASO DA FACULDADE DE DIREITO DE CAMPINA GRANDE ......................................................................... 157 José Octavio de Arruda Mello IMAGINÁRIO POÉTICO EM O PADRE, A MOÇA, DE CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE ................................................................... 162 José Pires EDUCAÇÃO...ESSE DILEMA .................................................................... 168 Maria do Socorro Cardoso Xavier A LINGUAGEM REGIONAL POPULAR DE JOSÉ LINS DO REGO ........................ 172 Maria do Socorro Silva de Aragão RELENDO “INSÔNIA” DE GRACILIANO RAMOS (1892-1953) .......................... 184 Marinalva Freire da Silva CAPITU: A MONA LISA BRASILEIRA.......................................................... 193 Mercedes Cavalcanti A VITÓRIA DO FRACASSO ...................................................................... 198 Mona Lisa Bezerra Teixeira POÉTICA DOS RIOS .............................................................................. 203 Neide Medeiros Santos EVOLUÇÃO DOS DIREITOS DA MULHER.................................................... 207 Onélia Setúbal Rocha de Queiroga VIVÊNCIAS E ALZHEIMER NA FLORESTA AMAZÔNICA .................................. 215 Reginâmio Bonifácio de Lima “TERCEIRO SEXO”: A INCERTEZA NA CONSTRUÇÃO DO MASCULINO*............. 232 Valdeci Gonçalves da Silva COMO RESGATAR PARAIBANOS DA MISÉRIA? ........................................... 242 Valério Bronzeado ................................................................................................ 242 C O N T O S ........................................................................................ 245 Teoria do Matutismo ........................................................................... 245 Adilson Silva Ferraz SUMÁRIO 8 |Magno Nicolau (Org.) VÊ SE ME TELEFONA, BERENICE .............................................................. 252 Arland de Souza Lopes ENTRE PONTOS................................................................................... 254 Arturo Gouveia NOTURNO DE AMSTERDAM .................................................................. 258 Astier Basílio A QUEDA DO PROSTÍBULO .................................................................... 262 Carlos Henrique Leite ÁLBUM DE FAMÍLIA ............................................................................. 264 Cláudio Limeira RONCÓ ............................................................................................. 267 Dalmo Oliveira da Silva SUICÍDIO ........................................................................................... 273 Edson Tavares METÁFORAS BOVINAS .......................................................................... 275 Francisco Dantas ROMANCE VIRTUAL ............................................................................. 276 Leilah Luahnda Gomes de Almeida A PROMESSA...................................................................................... 279 Magno Nicolau PENDENGA DE MATUTO ....................................................................... 282 Marcos Feliciano Pereira Barbosa AVIS RARA ......................................................................................... 287 Madalena Zaccara DETURPARAM O MEU “COLÓQUIO”, QUE HORROR! ................................... 290 Maria das Graças Ataíde Dias TUDO POR AMOR................................................................................ 293 Octavio Caúmo Serrano NECROBALLET .................................................................................... 297 Oziel Rodrigues TRECHO DO ROMANCE “HAMLET”, PARTE DA “HISTÓRIA UNIVERSAL DA ANGÚSTIA” ........................................................................................ 301 W. J. Solha A APARIÇÃO DO EXPRESSO DA MEIA NOITE .............................................. 308 Ythoganny Nicacio Silva de Araujo SUMÁRIO Leituras Diversas: Crônicas, Ensaios e Contos |9 1989 Magno Nicolau “Cai o muro de Berlim, na Alemanha. Um marco histórico para a humanidade. Um golpe no comunismo. A Alemanha unificada, favorece o capitalismo. O Brasil tenta se modernizar, política e monetariamente. Entra em circulação a unidade monetária brasileira, o cruzado novo (NCz$), que equivale a mil cruzados. Na cultura, em São Paulo, é inaugurado o Memorial da América Latina, um projeto arquitetônico de Oscar Niemeyer com o conceito e o projeto cultural desenvolvido pelo antropólogo Darcy Ribeiro. Palmas, capital do estado de Tocantins, é fundada. São realizadas as primeiras eleições gerais diretas desde 1960. Fernando Collor de Mello é eleito o 32° presidente do Brasil, derrotando Luiz Inácio Lula da Silva na eleição presidencial.” Ainda sem redes sociais, a internet é o mais novo caminho para comunicações acessíveis e baratas, mas ainda de pouco uso. A informação não chega tão rápida. Mesmo com a televisão mostrando avanços tecnológicos, levamos tempo para assimilar todas as notícias acima descritas. A Paraíba possuía poucos jornais e algumas dezenas de gráficas, mas um número insignificante de editoras, talvez as públicas em maior número. Este foi o ponto de partida para a criação da Ideia Editora. Como editores, contávamos mais com a experiência de Marcos Nicolau, com atividades nos principais jornais e na assessoria de comunicação da TELPA, ingressando, posteriormente, na Universidade Federal da Paraíba. Era preciso uma maior atenção aos escritores com ânsia de publicação com boa qualidade. Em agosto de 2014 a Ideia Editora completou 25 anos, contribuindo com a cultura paraibana. Foram cerca de 2.500 títulos até SUMÁRIO 10 | M a g n o N i c o l a u ( O r g . ) aqui, média de 100 por ano. Evidentemente que não foi assim no início. As dificuldades de execução nos levavam a publicar 1 a 2 livros mensais. Os equipamentos eram direcionados às gráficas e chegamos a ter 15 funcionários. Com o avanço tecnológico, hoje, publicamos cerca de 8 livros ao mês, com apenas 3 funcionários. É claro que contamos com a experiência deste pessoal com especialização em livros e revistas. Os melhores escritores nos procuram pela qualidade e atendimento. Nos últimos 10 anos, já participamos de conferências, como a de Brasília, sobre o Plano Nacional do Livro e Leitura, a convite do próprio MEC; de feiras, como o I Salão Internacional do Livro da Paraíba, através da Subsecretaria de Cultura do Estado da Paraíba, subsecretário David Fernandes; a Bienal de Fortaleza; feiras internacionais, como as de Londres e Frankfurt, entre outros. Temos títulos com mais de 60.000 exemplares vendidos em todo o país, publicações em francês, espanhol, alemão, italiano e inglês. Escritores em vários estados do país, como Rio Grande do Norte e Pernambuco, bem como no Acre. A lucratividade é pequena, mas aprendi que a maior vitória é a continuidade, ou melhor, a insistência. Como sempre gostei de ler, trabalhar na produção literária foi um prêmio. Neste período, grandes companheiros partiram e deixaram saudades: Maurílio de Almeida, Ascendino Leite, Joacil de Britto Pereira, Magno Meira, Caixa D’água, Milton Nóbrega, Deodato Borges, Barreto (Editora Manufatura), Lúcio Lins (a quem agradecemos pela construção das boas ideias), entre outros, que muito contribuíram com nossa formação. Este é o 2º volume (o primeiro foi em 2009, comemorativo aos 20 anos). Por isso, agradecemos a todos os escritores e leitores pelo carinho e atenção, fornecendo “subsídios energéticos” para mais 25 anos. SUMÁRIO Leituras Diversas: Crônicas, Ensaios e Contos | 11 CRÔNICAS A VIAGEM QUE TODOS PODEM FAZER Alberto Matos & Lucileide Matos Tem coisa melhor do que falar sobre a viagem? A viagem certa, aquela que você nunca será capaz de esquecer, porque fincou um marco de grande alegria e realização na sua vida e vai ficar para sempre em sua lembrança. Talvez alguém questione esta viagem com relação aos custos, ao lugar ideal, à melhor companhia e tudo o mais. É natural que também se analise sobre a possibilidade de alguém fazer ou não uma viagem deste tipo. Será que você, que está lendo agora, pode realizar esta “viagem”? Dentre as muitas categorias de viagens que existem no mundo, serão abordadas aqui apenas três delas. Primeiramente, existem as inovadoras e fantásticas viagens no mundo do turismo, desenvolvidas com muita criatividade para realizar os sonhos das pessoas que apreciam o entretenimento, uma programação de alta qualidade e o descortinar de novos países e culturas diferentes ao redor do mundo. A cada ano que passa aumenta o número de pessoas que estão aderindo a este tipo de viagem e o turismo caminha para ser o mais rentável mercado na indústria financeira em 2020. A viagem turística sempre encanta e aguça a experiência daqueles que viajam. Viajar é alargar as fronteiras, quer seja as geográficas, culturais ou as do conhecimento pessoal. É dar a oportunidade a si mesmo, não somente de conhecer outras regiões, outras paisagens, outras imagens. É sentir e experimentar novas dimensões existenciais, sensoriais e descobrir o novo, proposta desafiante e ame- SUMÁRIO 12 | M a g n o N i c o l a u ( O r g . ) drontadora, muitas vezes para quem não quer sair de uma zona de conforto. É poder sentir novos cheiros, novas cores, novas configurações culturais que jamais imaginávamos que pudessem existir. É reaprender a comparar outras tendências com as nossas e, constatar, o que pode enriquecer a nossa vida. É poder ouvir o outro que pertence à uma cultura totalmente diferente da nossa, cultura que para nós não passava de uma subcultura, mas que agora revela o quanto a nossa, na verdade, é que é uma subcultura. É ser impactado com o desafio de reavaliar os nossos paradigmas e realinhar as nossas rotas de vida. É constatar o quanto míseros somos quando deixamos falsas pretensões embriagarem a nossa alma e fazer com que pensemos que somos detentores de algo a mais do que os outros; de que todos os demais são pessoas inferiores a nós! As janelas da humildade e da simplicidade do outro derrubam inocentemente, sem pretensão alguma, os nossos castelos de areia e revela-nos o quanto somos pobres de alma! Com a sua grande importância, existe a viagem histórica. Durante os séculos XV e XVI, os europeus, principalmente portugueses e espanhóis, lançaram-se nos oceanos Pacífico, Índico e Atlântico com dois objetivos principais: descobrir uma nova rota marítima para as Índias e encontrar novas terras. Foi com este objetivo de descobrir “o novo” que Pedro Álvares Cabral chegou até ao Brasil e ficou fazendo parte da história. Alguns dizem que ele apenas chegou ao Brasil, outros que ele descobriu o Brasil. De qualquer forma ele entrou para a história do Brasil por causa desta viagem. O Homem pretendeu conquistar o espaço, mas até agora a marcha é lenta e os achados são poucos. Apesar de toda a tecnologia existente nos dias atuais, os navegadores de ontem conseguiram feitos maiores e mais representativos para toda a humanidade. Por que não retomar as viagens históricas, no intuito não de colonizar, se apossar das riquezas alheias e dominar outros povos, mas no sentido de aprender uns com os outros, levar soluções aos problemas dos outros povos e poder servir para um ideal coletivo? Será que estamos tão confusos que não conseguimos distinguir entre a nossa insanidade e a sanidade? Por que isolarmo-nos em nossa cultura se podemos interagir com outras? Por que pensar SUMÁRIO Leituras Diversas: Crônicas, Ensaios e Contos | 13 que já vemos tudo “quando na verdade, o Homem é uma só parte e como uma só parte, ele vê apenas uma parte” (Dra. Ruth Fulton Benedict, Antropóloga)? Somos apenas uma parte e precisamos uns dos outros! Precisamos aprender a ver com os olhos dos outros e somarmos as visões para enxergarmos mais e melhor! Como dizem os africanos, “se alguém tem pressa, vá sozinho; mas se alguém quer chegar longe, vá acompanhado”. Esta é a nossa necessidade, chegar longe e para tanto, precisamos ir acompanhados. Finalmente, existe a viagem mental ou psicológica descrita por Augusto Jorge Cury, psiquiatra, psicoterapeuta, escritor e cientista brasileiro. Ele escreve no livro “O Futuro da Humanidade” que a maior aventura de um ser humano é viajar, e a maior viagem que alguém pode empreender é para dentro de si mesmo. E o modo mais emocionante de realizá-la é ler um livro, pois um livro revela que a vida é o maior de todos os livros, mas é pouco útil para quem não souber ler nas entrelinhas e descobrir o que as palavras não disseram... O que é viajar para dentro de si? Viajar para dentro de si é buscar o autoconhecimento. É se conhecer! É saber quem é e não ter dúvidas de sua própria identidade. É conhecer suas debilidades, suas fortalezas! É saber os seus limites e até onde se pode ir ou não! Este caminho não é fácil! É desafiador! É duro! É impactante! Mas, precisamos buscar o autoconhecimento para podermos transitar com precisão nos diversos caminhos que a vida nos oferece e termos o discernimento de qual deles é o que mais se adequa à nossa realidade! O silêncio é uma das trilhas para o autoconhecimento. É muito bom poder seguir no espaço que o silêncio proporciona aqueles que o seguem. É no silêncio que escutamos a nossa alma, percebemos as nossas emoções, prescrutamos a nossa mente e analisamos a nossa força volitiva. É no fantástico mergulho ao mundo interior que conhecemos as nossas cavernas, nossas regiões escuras, nossos medos e receios, o que nos afronta e nos coage, para que possamos alcançar a libertação de nossas amarras internas. É entender o quanto nos respeitamos! Se zelamos por nossa vida ou não! É descobrir o que precisamos fazer para respeitar a si mesmo. É aprender a amar a si mesmo, pois só assim conseguire- SUMÁRIO 14 | M a g n o N i c o l a u ( O r g . ) mos amar ao outro. Mas, o que é amar a si mesmo? É ser egocêntrico? É pensar apenas em si mesmo? Não! Quando amamos a nós mesmos, aprendemos também a amar o outro, até porque nós somos o outro do nosso próximo! Nesta correlação, aprendemos que amar a si mesmo limita-se com o amar ao outro e vice-versa. Amar a si mesmo é ver-se no outro e amar ao outro, é também ver-se a si mesmo! Desta maneira, o eu mesmo limita-se com o próximo e ele conosco! Autoconhecimento ajuda-nos a relacionarmo-nos melhor com o outro! Por onde você deseja viajar? Que tipo de “viagem” você gostaria de fazer? Uma boa opção é viajar prazerosamente através do mundo encantador do turismo! Mundo que envolve diversão, descobertas, alegria e muita realização pessoal. No entanto, se gostaria de descobrir uma nova rota na vida e fazer a viagem histórica e de descobertas, é também uma boa opção e você pode adentrar nos mares e descobrir coisas inusitadas através das águas. Entretanto, se pensou no autoconhecimento vale a pena fazer a viagem para dentro de você mesmo. Esta é a maior viagem que alguém pode fazer na vida, pois não adianta alguém conhecer o mundo inteiro e não conhecer a si mesmo! Esta, sem dúvida, é uma viagem fantástica para se realizar. Viaje bem e melhor. Viaje pela Ideia Editora nos diversos livros que ela já publicou! Com esta editora você fará a viagem certa que deixará marcos de profundas descobertas e grandes alegrias que ficarão em sua memória para sempre. SUMÁRIO Leituras Diversas: Crônicas, Ensaios e Contos | 15 UM JOGO DE FUTEBOL INESQUECÍVEL Carlos Alberto Jales Aquele 16 de julho amanheceu chovendo. Mas eu nem queria saber como estava o tempo. Era domingo e o Brasil jogava à tarde a partida final da Copa de 1950 contra o Uruguai. A festa estava no ar. As rádios da minha cidade, Natal, tocavam músicas já festejando a Taça. Era domingo e à saída da Igreja, ficamos conversando como seria a comemoração da vitória. Para completar, meu pai aniversariava nesse dia, e os amigos viriam para o almoço, enquanto esperávamos a hora do jogo. O locutor (chamava-se assim naquele tempo), da Rádio Nacional, a mais potente do Brasil, repetia discursos de políticos, de candidatos à Presidência, chamando a seleção de campeã do mundo, dizendo que o universo se curvaria à indiscutível qualidade do futebol brasileiro. Não me lembro se o locutor era Jorge Cury ou Antonio Cordeiro, mas sei que não se cansava de repetir o time do Brasil: Barbosa, Augusto e Juvenal, Bauer, Danilo e Bigode. Friaça, Zizinho, Ademir, Jair e Chico. Nada de esquemas, nada de 4-2-4, nada de líbero. Era apenas o Brasil, a seleção campeã do mundo por antecipação. O retrospecto era impressionante: 4 x 0 no México, 2 x 0 na Iugoslávia, 6 x 0 na Espanha, 7 x 0 na Suécia. Que importava o 2 x 2 contra o “ferrolho” da Suíça, no Pacaembu? Aquilo fora um acidente de percurso. A copa já era nossa e mostraria ao mundo o maior Estádio do planeta, o Maracanã, construído em tempo recorde. Naquele time, Ademir era meu ídolo. Na escola, quando minha classe jogava, eu dizia que jogava como o Ademir. No meu time de futebol de botão, Ademir, o número 9, recebia um tratamento particular, pois eu o encerava com parafina. Na minha imaginação de menino, Ademir tudo podia, tudo resolvia e tinha certeza de aquele deus no campo de futebol arrasaria o Uruguai. SUMÁRIO 16 | M a g n o N i c o l a u ( O r g . ) O jogo começa e nada de gol. Em torno do rádio, a minha família, os amigos do meu pai, esperavam um gol do Brasil a cada instante. Um amigo de escola havia me dito que num bolão de apostas, colocara Brasil 9, Uruguai 0. Terminou o primeiro tempo e a vitória já estava assegurada. Era só esperar. No início da etapa final, Friaça faz 1x0 para o Brasil. Minha casa vira uma festa. Seu Carmelo, amigo da família, faz um discurso emocionado. E pergunta: “Já imaginaram como o mundo vai admirar o Brasil?” Aos 27 minutos, Schiaffino, um uruguaio com nome de italiano empata o jogo. Nada a temer. Com o empate, a Taça também é nossa. Ninguém perde a alegria, mas se pressente que a goleada não viria. Alguns minutos mais tarde, Giggia emudece o Brasil. O locutor da Rádio Nacional tem a voz embargada. Diz que o Maracanã todo chora, mas que ninguém deixa o Estádio. O sofrimento compartilhado é menos sofrimento. O jogo termina, o narrador anuncia que jogadores uruguaios consolam jogadores brasileiros, num gesto civilizado. Penso em Ademir. O que pensaria meu ídolo? Por que não se transformou no vento e empurrou a bola para o centro da trave de Máspoli, goleiro do Uruguai? Por que meu deus infalível virou um ser humano? Lá fora, a chuva que havia amenizado durante o jogo, voltou a cair com força. A festa de meu pai acabou em choro. Ninguém quis jantar, o mundo parecia menor. Na minha cama, tentando dormir, eu só pensava naquele jogo. Por que Deus pregava uma peça daquela nos humanos? Por que Ele, tão bom, também criava Giggia? Não consegui dormir. Aquela chuva, aquela festa, aquele gol do Uruguai se misturavam na minha dor. Muitos anos depois, li um livro de Paul Nissan, escritor francês, que começava assim: “Eu tinha vinte e um anos. Não me venham dizer que essa é a mais bela idade do homem!” E lembrando daquele 16 de julho de 1950 eu pude parafrasear Nissan e dizer: “eu tinha nove anos. Não me venham dizer que essa é a mais bela idade do homem. Nessa idade houve um jogo entre o Brasil e o Uruguai na minha vida”. SUMÁRIO Leituras Diversas: Crônicas, Ensaios e Contos | 17 DONA CHIQUINHA, WALT DISNEY E JESUS CRISTO DESCENDO NA AVENIDA DOM VITAL Cláudio José Lopes Rodrigues Alguém pode detestar os Estados Unidos, chegar ao ódio bíblico de um colega meu nos já remotos tempos dos cursos secundário e superior, quando ele era um vibrante líder estudantil e vaticinava – qual um furibundo aiatolá ou um tragicômico, populista, surrealista, bolivariano, presidente da Venezuela, Hugo Chavez – a queda iminente do Capitalismo, sistema que, no rancor dos seus contestadores, configurava-se como uma besta-fera nutrida pelos norte-americanos, estes um bando de sacanas, pulhas, cafajestes, filhos da pátria e da puta... Compreendo e perdoo os incandescentes vaticínios dos profetas cujos prognósticos o Tempo não abonou (ou, ao menos, ainda não...). Mas, não remeto quem, por ideologia ou qualquer outra razão, repudia a música norte-americana apenas por ser norteamericana. Detestar canções por conta da sua origem geográfica (ou ideológica) é uma generalização insana e injusta, uma autêntica porra-louquice. A demonstração de insensibilidade e inconsequência se avultava, naquela época, nomeadamente em relação a clássicos populares que nos chegaram na voz de Frank Sinatra, Bing Crosby, Pat Boone, Nat King Cole, Tony Bennett, Doris Day, Ella Fitzgerald, Sarah Vaughan e outras e outras feras advindas pelas ondas das Rádio Tabajara (PRI-4) e Arapuan (a emissora do bom gosto...). Ou nos chegavam também pela incipiente televisão, pelos modernos LPs, pelas telas do Plaza e do Rex... SUMÁRIO 18 | M a g n o N i c o l a u ( O r g . ) MISTURAR IDEOLOGIA COM MÚSICA É UMA REQUINTADA (E REQUENTADA) TOLICE. A MÚSICA VALE POR SI MESMA, INDEPENDENTEMENTE DAS BARBAS DE FIDEL CASTRO, DA CARECA DE NIKITA KRUSCHEV, DA BARBICHA DE VLADIMIR ILITCH LENIN OU DO BIGODE DE JOSEF VISSARIONOVITCH STALIN. BEM COMO DA ELEGÂNCIA E SINUOSIDADE DE JOHN F. KENNEDY QUE, ENTRE OUTRAS PROEZAS (DIFÍCEIS?), LEVOU A EXUBERANTE MARYLIN MONROE PARA A CAMA (LEMBREMO-NOS DA LOIRÍSSIMA – MELOSA, SENSUAL, ESCORRENDO PROGESTERONA PELA VOZ – CANTANDO, QUASE GEMENDO, EM 19 DE MAIO DE 1962: HAPPY BIRTHDAY TO YOU/ HAPPY BIRTHDAY TO YOU/ HAPPY BIRTHDAY MR. PRESIDENT...). Essas ideias revolveram o meu (in)consciente no Magic Kingdom, um famoso parque de Orlando. Ao ouvir velhas composições internacionais, elas eclodiram no bestunto. Sob o intenso mormaço do verão da Flórida, a Main Street Philharmonic, afinadíssima banda do parque exibiu-se em admiráveis apresentações na Liberty Square. A performance da banda ensejaram-me aprazíveis lembranças infanto-juvenis. Emocionou-me, sobremaneira, uma conhecidíssima peça de jazz, de natureza gospel, que se refere aos anjos (e santos) entrando no céu (When the Saints go marchin' in), uma peça que, em cadência lenta, acompanha funerais (nomeadamente de negros). A banda disneyana executou alguns hinos em ritmo marcial. Dois me tocaram de forma particular. Um de louvor patriótico, God bless America (Deus salve a América) – composto por Irving Berlin em 1918 – considerado o hino não-oficial dos Estados Unidos. O outro hino, este de louvor religioso, foi o Battle Hymn (número 112 do hinário Cantor Cristão). Composto por John William Steffe com letra de Julia Ward Howe, constitui-se um lídimo representante da tradição espiritual judaico-cristã. Na versão de Ricardo Pitrowsky, a mensagem do Novo Testamento – o amor ao próximo menor apenas do que o amor a Deus – transparece luminosa na primeira estrofe: SUMÁRIO Leituras Diversas: Crônicas, Ensaios e Contos | 19 Já refulge a glória eterna de Jesus, o Rei dos reis; Breve os reinos deste mundo seguirão as suas leis! Os sinais da sua vinda mais se mostram cada vez. Vencendo vem Jesus! E no refrão: Glória, glória! Aleluia! Glória, glória! Aleluia! Gloria, glória! Aleluia! Vencendo vem Jesus! A partir da segunda estrofe, porém, a pancada do bombo muda, voltando-se para o furor do Antigo Testamento, os salmos imprecatórios de David e as rabugices do impiedoso profeta Samuel: O clarim que chama os crentes à batalha, já soou; Cristo, à frente do seu povo, multidões já conquistou. O inimigo, em retirada, Seu furor patenteou. Vencendo vem Jesus! O maniqueísmo entre o bem e o mal, os salvos e os condenados... A figura pacífica de Jesus – que veio ao mundo para salvar e perdoar a todos, para dar-lhes vida plena, em abundância – surge no Battle Hymn na impiedosa versão Deus dos Exércitos, do fogo eterno... Jesus, de infinito amor, absoluto poder e onisciência, perdendo criaturas Suas, excluídas do Seu povo, para o bando do catingoso rei das trevas... Não foram, porém, essas ideias transcendentais e exegéticas que me acorreram por conta da Main Street Philharmonic no calorento julho de 2011, no Magic Kingdom. O Battle Hymn ali executado trouxe-me lembranças dos cultos batistas na casa da minha avó paterna, na Av. Dom Vital, no Roger. Ainda menino – em 1957, aos 14 anos ainda se era considerado menino – deixamos de ser vizinho de Vosinha e do meu avô Inácio (Painaço, como os netos o chamavam). E, por isso (ou por falta de fé), fiquei afastado dos eventuais cultos protestantes. Mas, SUMÁRIO 20 | M a g n o N i c o l a u ( O r g . ) algo ficou em mim por conta deles. Eu não me comovia tanto (ou, na verdade, quase nada) pela luta dos crentes contra as tentações do maligno. Não memorizei nenhuma imprecaução deles contra o tinhoso, atitude recorrente na fala de alguns pastores meio histéricos (ou histéricos e meio) que pulam, gritam, urram, suam, despenteiam-se furibundos e iracundos contra o pobre diabo do demônio (santa ingenuidade ou calculada matreirice dos pastores? – alguns acusados de hábeis espertalhões desviadores do dinheiro dos donativos). O outro lado da moeda: também não me ficaram citações literais da adoração a Jesus Cristo, sempre louvado com muita circunspecção. Não duvido que a austeridade seja respeitosa. Mas, o respeito estaria apenas na sisudez? Ela não traduziria, primordialmente, medo de vingança (castigo...) divina? Quem sabe esta pergunta já seria, em si mesma, mais uma insídia do fute... Por que os santos católicos e o próprio Senhor são sempre representados como figuras tristes, sérias ou, no máximo, contemplativas? Não haverá sorriso, riso, risada ou gargalhada no céu? Afinal, nem todo riso é deboche, mofa... (segundo Mark Twain, o céu não seria sítio para o riso, para o humor, pois (o riso, o humor) derivam, direta ou indiretamente, da dor, da angústia, do patético ser humano...). Convicta que a seriedade era pré-requisito ao louvor a Deus, dona Chiquinha cuidava para que a sisudez prevalecesse durante o culto na modesta sala de visitas do número 108, da Av. Dom Vital, no bairro pessoense do Roger. O culto reunia grande parte da sua família, incluindo-se alguns dos seus netos. Mais de cinquenta anos depois daqueles cultos, Marquinho (filho de Clodomiro, meu tio Miro), recordou uma prova desse cuidado da nossa avó. Ela munia-se de um pesado chinelo que escondia discretamente por trás da saia. Por uma ou outra razão – o estrabismo de um crente, o tique nervoso de uma irmã, a voz esganiçada de outra... sei lá o que – algum neto não resistia ao futucado do capeta e começava (ou ao menos insinuava através de um olhar irreverente) um desrespeitoso quiquiqui... Dona Chiquinha – morena, gordinha, baixinha, feições bugres herdadas do seu pai índio – em passos furtivos aproximava-se do atrevido... SUMÁRIO Leituras Diversas: Crônicas, Ensaios e Contos | 21 Glória, glória! Aleluia! Glória, glória! Aleluia! ...vapt! – discreta e pesadamente seu chinelo/porrete incidia sobre as canelas do insolente neto (Marquinho ou nosso primo Felix, irmão de Tonho...). Gloria, glória! Aleluia! Vencendo vem Jesus! Assim, com a ajuda do intolerante e prosélito chinelo de Francisca Lopes da Silva (ou Lopes de Sousa, pois ela dispunha de dois sobrenomes), a fé cristã era abonada e vencendo chegava Jesus ao humilde bairro do Roger. A melodia do Battle Hymn preservou-se na minha memória. Lembrei-me daquelas cenas da Av. Dom Vital ao ouvir o hino, agora alegremente executado pela Main Street Philharmonic com muito mais afinação e recursos do que os irmãos e irmãs (liderados pelo pastor Firmino Silva) lá na casa de dona Chiquinha e seu marido, nosso avô, o ex-kardecista seu Inácio. Os acordes da Main Street Philharmonic neutralizaram os desconfortos do abrasador verão da Flórida. Comuns aos parques visitados, uma intensa insolação, temperatura de 40º centígrados (agravados pela sensação térmica), a sede permanente mitigada pelo constante consumo d’água. O calor do asfalto irradiava-se pela sola dos sapatos. O cansaço afetando muita gente, da volumosa senhora sentada no meio-fio e encostada numa lixeira próxima ao cinema – onde se exibia o Shrek 4-D da Universal Studios – aos grupos de adolescentes brasileiros deitados na calçada à sombra de árvores e no chão de restaurantes no Magic Kingdom. No forno a céu aberto, entretanto, lembrando o conto O flautista de Hamelin, dos Irmãos Grimm, a Main Street Philharmonic conseguiu afugentar os incômodos. Contribuiu para demonstrar o saldo positivo da incursão, apesar da aridez do clima e do cansaço advindo das longas caminhadas. SUMÁRIO 22 | M a g n o N i c o l a u ( O r g . ) ARIANO SUASSUNA X NIEMEYER Evaldo Gonçalves Ariano Suassuna, eminente conterrâneo, cujo reconhecimento intelectual ganhou dimensão internacional, - daí seu nome lembrado para o Prêmio Nobel de Literatura – transformou suas conferências em verdadeiros espetáculos de risos e bom-humor, graças à singeleza e à informalidade que empresta às suas narrativas nessas ocasiões de auditório pleno. Se em suas produções literárias, Ariano Suassuna se comporta com extrema maturidade literária e invejável fidelidade aos tipos que descreve, sua presença nos grandes auditórios alcança transcendências tais que unem corpo e alma numa transfiguração que o torna cada vez mais autêntico, sem prejuízo do fulgor da genialidade. Nesta última estada na Paraíba, a convite da Academia Paraibana de Letras e da Procuradoria Geral do Estado, Ariano Suassuna ultrapassou, em termos de plateia, toda a imensurável dimensão e capacidade do Auditório da Estação Ciência, e seus entornos, a tal ponto que, mesmo já tendo falecido, Oscar Niemeyer espera a primeira oportunidade para defender seu projeto e rever seus cálculos, se for o caso, duvidando da multidão que acorreu à última Conferência-Espetáculo protagonizada pelo Cavaleiro Condecorado. O imortal de Taperoá, sem querer polemizar com o célebre Arquiteto, com muitas obras na Paraíba, ao saber da intenção de Niemeyer, teria respondido: você me superou em tudo. Todavia, na arte de fazer rir, estou cumprindo a missão sublime de levar muita alegria e bom humor ao povo deste país. Essa constatação não é só de quantos têm prestigiado seus espetáculos culturais. É Ariano Suassuna, hoje, unanimidade nacional, e, segundo ele, de todos os seus desempenhos, o de que ele mais gosta é de se comportar, no palco, como palhaço, num gesto SUMÁRIO Leituras Diversas: Crônicas, Ensaios e Contos | 23 de humildade, homenageando os queridos artistas dos circos populares, que frequentaram a nossa imaginação, e ainda o fazem, concorrendo em igualdade de condição e tecnologia com os grandes e atuais veículos de lazer e comunicação. Bem. Nisso estamos de pleno acordo. Todavia, quanto à discussão entre Ariano Suassuna e Oscar Niemeyer, é querela de gênios, e dela estou fora, dando por terminada esta minha despretensiosa participação em tão elevado debate. SUMÁRIO 24 | M a g n o N i c o l a u ( O r g . ) AFONSO PEREIRA, UM EXEMPLO DE VIDA Felix de Carvalho Afonso Pereira, que faleceu no dia 09 de junho de 2008, era conhecido e reverenciado como um homem de vasta cultura e profundo conhecimento, sobretudo nos campos da educação, da filosofia e do direito. Esta é uma dimensão de sua vida sobre a qual não se pode colocar dúvida. Mas essa qualidade, por si só, não era suficiente para projetá-lo no cenário paraibano. O que marcou, verdadeiramente, a vida de Afonso Pereira foi o fato de ter colocado sua cultura e seus conhecimentos a serviço da sociedade. Com forte disposição e grande desprendimento, nos anos de 1950, enfrentando dificuldades várias, adentrou o sertão da Paraíba e, à frente da Fundação Padre Ibiapina, criou várias escolas em comunidades carentes. No início dos anos de 1960, foi um dos baluartes na criação da Universidade Federal da Paraíba e, na década seguinte, foi um dos fundadores dos Institutos Paraibanos de Educação, hoje o consolidado e respeitado Centro Universitário de João Pessoa – UNIPÊ. Poucos sabem que o lema contido no brasão da Universidade Federal da Paraíba Sapientia aedificat (a sabedoria constrói) é de autoria de Afonso Pereira. O conteúdo da frase muito se confunde com a trajetória do seu autor. Afinal, como educador, Afonso Pereira transmitiu aos seus milhares de alunos a sabedoria, no sentido filosófico do termo, como conjunto de ensinamentos. Nesse aspecto, foi educador no sentido mais profundo da palavra: aquele que conduz, que retira da ignorância para o conhecimento. Portanto, no campo da cultura e da educação, o legado que Afonso Pereira nos deixa é imensurável. Há, porém, uma dimensão na vida de Afonso Pereira conhecida apenas por seus amigos e familiares: o desapego aos bens materiais e a consequente aproximação dos valores espirituais. E, com isso, aproximou-se, em grande medida, do ideário expresso SUMÁRIO Leituras Diversas: Crônicas, Ensaios e Contos | 25 na conhecida oração de São Francisco. Foi instrumento de paz e concórdia. Com seu elevado espírito de compreensão, recebia a todos que o procuravam com um sorriso de satisfação e acolhimento. Suas palavras transmitiam paz e harmonia. Mesmo nos momentos mais difíceis, tinha uma palavra de estímulo. Levava esperança onde havia dúvida e luz onde havia sombra. Jamais se afastou de valores como a verdade e a justiça. Afonso Pereira foi solidário com o próximo. A quem o procurava fornecia algum tipo de auxílio, fosse uma ajuda material, fosse uma orientação, fosse uma palavra de conforto e compreensão. Tinha o prazer de viver e estava sempre bem humorado. Nunca se queixou dos problemas físicos e fisiológicos naturais em um homem com mais de noventa anos de idade. Pelo contrário, dizia sempre que estava bem, que tal problema estava solucionado. Com esse espírito, entrou no hospital, no dia 06 de junho do citado ano, brincando com médicos e enfermeiras. Sua capacidade de doação, seu amor ao próximo, sua simplicidade, sua alegria e bom humor levados até os últimos momentos da vida são lições que Afonso Pereira deixa para todos. Por tudo isso, nós, seus amigos, imbuídos de grande fé, sabemos que ele está na plenitude da vida espiritual. Sua morte nos deixou tristes. Mas, consola-nos repetir com São Francisco: “É morrendo que se vive para a vida eterna”. SUMÁRIO 26 | M a g n o N i c o l a u ( O r g . ) COISAS INUSITADAS DA VIDA Josineide da Silva Bezerra Hoje pela manhã, como de hábito, atualizava os e-mails e organizava os trabalhos do dia. Como também é habitual, fui àquele cafezinho sempre bem-vindo, em especial quando a gente tem por dever de ofício ser professora – de fato, o café é um grande companheiro. Na ida à cozinha, deparei-me com uma pia à espera de ordem. Entretanto, mais que uma remissão aos afazeres da vida doméstica, a pia me sugeriu, inusitadamente, outra imagem: lembrei-me da minha mãe, nascida nos idos do memorável ano de 1929 e falecida há pouco mais de uma década. A cozinha sempre fez parte da nossa casa. Como se uma fosse extensão da outra. Daí que um desejo muito presente em minha mãe me veio à lembrança: uma pia em granito. Tinha que ser em granito. E ela conseguiu. Era verde ubatuba e de tamanho generoso, ideal para quem gosta do preparo da comida. Afinal, pia tem mesmo que ser grande – bancada, como dizemos hoje em dia. Neste curso, lembrei-me de que não participei dessa escolha. Logo eu, que estive presente nas reformas que foram feitas na casa de dona Maria da Paz e de seu Zé Pretinho, sob a batuta dos filhos, depois de crescidos: a ampliação dos ambientes; a substituição do piso cerâmico; a climatização do quarto do casal. Mas eu não estive lá, naquele espaço sagrado para a minha mãe, que era a sua cozinha – com bancada em granito e cuba de inox. Nela, cotidianamente, preparava as refeições da família, e, mais ainda, exercia o prazer em servir, oferecendo as suas comidinhas, mais salgadas do que doces. Comidinhas, por licença poética: o picado de bode e a galinha à cabidela, com os auspícios da boa pimenta de cheiro, eram as suas preferidas. A grande questão, entretanto, não era esta. Vieram outras. Perguntas do tipo: de quantos dos seus sonhos e desejos eu participei, de alguma forma? Que relação de proximidade eu construí SUMÁRIO Leituras Diversas: Crônicas, Ensaios e Contos | 27 com a minha mãe? O que eu partilhei com ela, como amiga? Esses questionamentos, de pronto, me tocaram ainda mais porque não tenho filhos. Assim, não será possível fazer o caminho de volta. Melancolicamente, emergiu a lembrança de que eu não cheguei a cozinhar para a minha mãe. Sei que a dona da cozinha era ela, mas sei que não rolou aquele empenho tão característico, digamos, dos gourmetidos, tal como me imagino. E Maria da Paz era boa de boca. Topava tudo, principalmente o que não podia! Consolei-me pelo fato de que, na minha casa, a feitura da comida reproduz aquele prazer em servir, mesmo sem as habilidades da matriarca. Infelizmente, porém, quando a minha casa chegou, já era tarde. A minha mãe não a frequentou. Foram poucas e breves as suas visitas. Em Miramar, na varanda do 10º andar, me recordo do seu encanto com as luzes da cidade, vistas do alto, à noite. Acostumada com as margens do Jaguaribe, ao fitar o entorno do rio, manifestou a sua surpresa com o tempo que passara. Aquele foi um grande momento. Hoje, o tenho como um presente para a minha memória. Ao voltar àquela imagem inusitada, permito-me sentenciar o que é certo: não dá para passar pela vida sem ter cozinhado para a mãe. Isso é pecado. Registre-se. SUMÁRIO 28 | M a g n o N i c o l a u ( O r g . ) UM AGRADÁVEL PASSEIO CULTURAL Natércia Suassuna Dutra No dia 05 de dezembro de 2008, saímos da capital da Paraíba em direção à cidade de Campina Grande-PB: eu (Natércia), Marco di Aurélio (cordelista, autor, ator e membro da ALANE-PB), com sua mulher Roseli; Clotilde Tavares (escritora), Fernando Pintassilgo (músico) e Piedade Farias (Arquiteta - restauradora de bens culturais). A viagem foi feita na Kombi de Marco di Aurélio. No dia seguinte, em Campina Grande, fomos a um Sarau Poético no Café & Poesia, de propriedade de Luiz e Raquel, que há mais de seis anos vem funcionando regularmente, nos primeiros sábados de cada mês, na Rua Treze de Maio, 41, Centro da cidade. É um local pequeno, mas muito agradável. É aberto ao público e tem uma boa freqüência de poetas, escritores, artistas, da nossa Paraíba e dos Estados de outras regiões do Brasil, principalmente daqui do Nordeste. Muitos escritores têm feito lançamento dos seus livros neste aplausível local. Finalmente, o Café & Poesia é aberto a todas as pessoas que gostam e que querem preservar a cultura, principalmente a do nosso querido Nordeste. Essa noite foi muito movimentada. Foram apresentados pelos Mestres de Cerimônia, poetas Pedro Paulo e Rochelle, entre outros, os poetas: Chicão de Bodoncongó (também músico); Chico de Assis, Rui Vieira, Joelson Miranda, Rochelle Melo, Martinho Pereira; e a cantora e compositora Ana Célia (de Iguatu-CE). Esse agradabilíssimo sarau foi finalizado com a apresentação do cordelista Marco di Aurélio recitando os seus versos, com fundo musical ao som do Marimbau, executado pelo excelente músico Fernando Pintassilgo. Para quem não conhece o Marimbau: é uma mistura de marimba e berimbau, réplica estilizada do berimbau de lata. Este instrumento foi idealizado e batizado com este nome pelo escritor SUMÁRIO Leituras Diversas: Crônicas, Ensaios e Contos | 29 paraibano Ariano Suassuna. Faz parte da Orquestra Armorial de Pernambuco. De Campina Grande seguimos para São João do Cariri, cidade cujos habitantes gostam de usar o nome primitivo: Vila Real de São João do Cariri. Era um dia ensolarado, um céu azul com nuvens brancas parecendo plumas de algodão. Como diz a escritora Clotilde Tavares: parece que o céu está cheio de ‘carneirinhos’. Estas nuvens só têm esse formato no Cariri. Discordo da amiga Clotilde. O céu do meu Sertão é tão bonito e, as vezes, também se enche de ‘carneirinhos’, com a mesma beleza do céu do Cariri. Alíás, toda Região Nordeste é muito bonita. Lá, na Vila Real de São João do Cariri participamos das festividades do 3º aniversário do Instituto Histórico e Geográfico do Cariri Paraibano, que teve como principal homenageado o animador cultural Balduino Lélis. O Presidente do IHGC, Daniel Duarte Pereira, comandou uma extensa programação que se estendeu das 9 horas da manhã às 14 horas. Começando com uma visita ao prédio do Instituto que funciona em sede própria, no Casarão dos Árabes, no centro da cidade, onde já se encontravam diversas comitivas. Foi servido um lauto café da manhã com frutas e comidas típicas da região. Desde cedo a banda de música da cidade, composta de homens e mulheres, já brindava os visitantes com belos dobrados. Saímos do Instituto para o Museu. Ficamos surpresos com a quantidade de objetos antigos doados pelo povo do Cariri: louças, oratórios, poltronas, sofás, camas, máquinas de costura (manuais), peças de montaria, fotografias antigas com molduras originais; e muitas outras coisas. Uma riqueza. Durante o evento, apresentaram-se: a Philarmônica Nossa Senhora dos Milagres, Grupo Infantil de Flautas “Meu Cariri”; Coral “É Sabiá”, da cidade de São João do Cariri; e o “Grupo de Teatro Popular” de Poço de Pedras, representando peças com textos improvisados, tendo fundo musical com músicas nordestinas executadas por um conjunto composto de sanfona, zabumba e triângulo. Todo muito bom e interessante. O melhor de tudo isso foi o percurso entre o Instituto e o local do evento. A Banda de Música tocando a música “A Praça”, de Chico Buarque de Holanda, o povo, a pé, acompanhando, e das SUMÁRIO 30 | M a g n o N i c o l a u ( O r g . ) janelas das casas as pessoas “olhando a Banda passar”. Somente quem viveu estes momentos autênticos das cidades do interior pode avaliar a emoção que senti naquele momento. Veio-me a lembrança da minha infância na minha querida terra natal, Catolé do Rocha-PB, acompanhada do meu pai, Natércio Dutra de Medeiros, de saudosa memória, assistindo aquele maravilhoso espetáculo, tanto nas festas cívicas como nas religiosas. Nas festividades religiosas, a Banda de Música tocava todas as noites em um coreto ao lado da igreja (infelizmente esse coreto foi demolido). Senti saudade também do que não cheguei a ver, mas que ouvi contar e que também tomei conhecimento através de relatórios que li. Ouvindo aqueles dobrados fiquei a pensar no meu bisavô, Antônio Gomes de Arruda Barreto, professor dos Sertões da Paraíba e do Rio Grande do Norte, que usava esse mesmo método quando inaugurava um colégio ou quando festejava os seus aniversários (do colégio). O colégio do Professor era o “Sete de Setembro”, o primeiro, inaugurado no dia 7 de setembro de 1897, em Brejo do Cruz, na Paraíba; transferido, em 1900, com o mesmo nome para Mossoró, no Rio Grande do Norte. Aí se vê o patriotismo do professor Antônio Gomes. Nesse dia, quando se festeja a Independência do Brasil, o povo era acordado ao som de dobrados executados pela Banda de Música que percorria as ruas da cidade. Os habitantes saíam das suas casas para acompanhar a Banda. O percurso terminava em frente ao Colégio Sete de Setembro, onde a Bandeira Nacional era hasteada enquanto o Hino Nacional era executado. Todos esses momentos vieram à minha imaginação provocando uma emoção incontida, chegando até às lágrimas. Foram para mim, momentos inesquecíveis. Além de viver esses instantes maravilhosos, ainda tive a alegria de ser agraciada com o título de Sócio Honorário do Instituto Histórico e Geográfico do Cariri Paraibano, o que muito me honrou. Voltei para casa feliz, cheia de lembranças boas da minha infância, já tão distante. Agradeço esses momentos, parabenizando a Villa Real de São João do Cariri e abraçando o seu povo. SUMÁRIO Leituras Diversas: Crônicas, Ensaios e Contos | 31 SOB O SOL Onaldo Queiroga O Sol lentamente se despedia, dando a entender que não desejava partir. Presciente, caminhava cabisbaixo e morosamente. Parecia relutante. Era como se temesse que a escuridão invadisse de vez a Terra. Seu olhar, como se derradeiro, fitou então desoladamente a insanidade dos poderosos. Presenciou o fogo queimando sem dó, bosques e florestas inteiras. Viu árvores imensas quedarem-se ao ruído demolidor das serras-elétricas. Olhou para os rios onde peixes boiavam mortos em meio a pneus velhos, garrafas plásticas vazias, pedaços de bonecas, restos de material hospitalar e uma sinistra espuma branca, que cadenciava o ritmo da degradante poluição criada pelo homem. Mas, nesse dia, o Sol, ainda visível no poente, insistia em não querer ir embora. Resolveu, então, ampliar seu olhar sobre a Terra. Viu a maré avançar, engolindo as praias, seus coqueirais, barracas, ranchinhos de palhas. Viu as águas levarem redes, lendas e ilusões dos pescadores. Viu também tsunamis avassaladores destruindo ilhas paradisíacas, transformando-as em verdadeiros cenários de horror. Percebeu que um urso polar rugia intensamente, pedindo socorro. E só aí enxergou que as geleiras não eram mais as mesmas. O pobre animal, em pesadelo, pressentia ansiosamente o seu fim. O astro-rei, com um semblante triste, resolveu partir. Foi então que ouviu gritos intensos, choros dramáticos e intermináveis. Mais uma vez, voltou o olhar para o velho e cansado dia. E aí viu homens bombas explodindo, levando consigo inocentes criaturas, irmãos que, em segundos, formavam poeiras recheadas de carne humana. Viu milhões de dólares desfilando nas águas dos oceanos. Eram submarinos nucleares, porta-aviões e, neles, milhares de soldados fardados e bem alimentados, prontos para, em nome da paz, sem piedade, promoverem a exterminação de povos. Era co- SUMÁRIO 32 | M a g n o N i c o l a u ( O r g . ) mo se fizessem parte integrante de um jogo de guerra. Sim, virtualmente brincavam de fazer guerra. Mas Sua Majestade, o Sol, presenciava ainda o nefasto crime organizado se posicionar, como se aguardando, contando os minutos, a chegada da escuridão da noite, sempre pronto para fazer valer suas pedras de crack, a maconha, o ecstasy, o GHB, a cocaína e a impiedosa merla. Nesse momento percebeu crianças, jovens e adultos perdidos num caminho que, na grande maioria das vezes, apresenta-se como sem volta. Viu também a corrupção, que esperava sua partida para, na escuridão, esconder sua face de depravação, perversão, suborno, peita. Nesse instante, o Sol, desvanecido, quis se entregar. Foi então que viu a branca Lua, que surgia cheia de luz, esplendorosa. Teve, então, a certeza de que aquela noite não seria tão escura. O Sol levantou sua luz e seguiu o rotineiro destino, consigo levando o pensamento de que as dores sentidas durante o dia, quem sabe, poderiam fazer com que o homem, no seu descanso noturno, compreendesse que “não basta sofrer; é preciso aproveitar o concurso da dor, convertendo-a em roteiro de luz” (Emmanuel). Se cada um de nós fizer sua parte para recompor a natureza e estender a mão à solidariedade, o Mundo poderá ser bem melhor. É como nos ensinava Chico Xavier: “O exemplo é uma força que repercute, de maneira imediata, longe ou perto de nós [...] Não podemos nos responsabilizar pelo que os outros fazem de suas vidas; cada qual é livre para fazer o que quer de si mesmo; mas não podemos negar que nossas atitudes inspiram atitudes, seja para o bem, quanto para o mal.” Assim, façamos o bem. SUMÁRIO Leituras Diversas: Crônicas, Ensaios e Contos | 33 NESTA RUA TINHA UM BOSQUE Piedade Farias Imenso e verde. Mais que de imenso, mais que de verde, tinha de mistério o bosque onde morava o anjo. Chamava-se Solidão? Não sei. Hoje sei que o bosque era a última chácara, a que sobrara entre tantas que habitaram o centro desta cidade. Dentro do bosque o anjo: o antigo casarão da chácara. Na minha lembrança do início da década de 1970, o casarão estava ali, firme; embora já mostrasse sinais de que o tempo estava passando. Sabia-se de outra época e mesmo assim ia vivendo, qual discreta senhora em seu silêncio. Muito me atraía o seu silêncio e os seus ares de tempo passado. De joia rara, pedra preciosa do Bairro de Tambiá. Incrustado na esquina da Rua Monsenhor Walfredo Leal com a Rua Princesa Isabel, em meio a tanta árvore... Tanta árvore havia e de tanto se afastar, tomava completamente o maior quarteirão da Rua Princesa Isabel. Por muitas vezes o casarão me pareceu pequeno, metido naquela vastidão de árvores com copas estendidas sobre o muro alto. Inúmeras eram as mangueiras, jaqueiras, pitombeiras, goiabeiras, pés de caju e de jenipapo, até fruta-pão havia além de uma imensa castanhola, de tronco tão largo que assustava; cuja raiz, com uma força incomum, transpassava o muro, levantando-o, para ir deitar-se na calçada. O velho muro da Chácara chegava até perto da esquina, aliando-se, daí por diante, ao gradil com recortes arqueados trabalhados em ferro, que lhe dava continuidade, seguindo seu trajeto pela Rua Monsenhor Walfredo Leal, guarnecendo o casarão que, com os casarões vizinhos, compunha o imponente cenário que, desde tenra idade, ficou definitivamente fazendo parte de minha vida. Eu o olhava demoradamente. Sentia o cheiro doce de frutas. Nenhuma cantiga seria mais bela que aquela vinda dos bem-te-vis SUMÁRIO 34 | M a g n o N i c o l a u ( O r g . ) da Chácara quando amanhecia! Como era boa aquela paz de sítio em contradição com o movimento intenso do trânsito na rua! Quanta dignidade havia no apelo impassível do casarão! Dignidade sofrida. Quanta dor em seu grito silencioso de resistência. Dava para se ver que havia sido pintado de amarelo um dia, embora pouco reboco lhe restasse, deixando a mostra os grossos tijolos maciços e vermelhos. A aparência de abandono emprestavalhe aquele ar sombrio, de um mistério profundo, ensimesmado. A única janela do sótão consolidava essa impressão. Era uma janela em madeira densa e fechada, onde muitas vezes debrucei a imaginação. Deixava o olhar adentrar o gradil, subir pelos batentes até a varanda e caminhar ao seu redor, acompanhando o coro desolador das cigarras que se alinhava à algazarra dos meninos na saída da escola. O casarão viveria alheio à movimentação da rua, não fosse a presença de Seu Severino, o caseiro magro e vermelho que vivia ali com sua família, tirando o seu sustento desse trabalho e de um pequeno fiteiro postado junto ao gradil, em posição estratégica para a venda de bombons aos alunos do Colégio Estadual de Tambiá. Da vida de Seu Severino, só lembro o dia em que, demitido de seu posto, saiu cabisbaixo puxando o fiteiro, a mulher, o cachorro e os filhos que iam agarrados uns aos outros, sem saber onde iam ter paradeiro. Quando não havia mais Seu Severino, o casarão permaneceu por mais de dez anos abandonado, afundando-se no mato que crescia em volta, invadido às vezes por meninos que disputavam seus frutos. Assistiu ao crime do menino sob suas árvores, viu quando o outro puxou a faca. Contam que foi por causa de uma manga aquela briga no meio da tarde. Veio a polícia e o casarão apinhou-se de gente, em seguida vieram os técnicos do Instituto Médico Legal. Demoraram lá dentro e quando saíram levaram o pequeno corpo com o caldo de manga escorrendo da boca, misturando-se ao sangue. Indiferente ao abandono, o casarão não perdia a altivez. O sótão continuava guardando seus mistérios, lagartixas fazendo festas, saguis pulando nos galhos, e a cantoria dos bem-te-vis e cigarras, que eram muitas. SUMÁRIO Leituras Diversas: Crônicas, Ensaios e Contos | 35 Um dia bosque e anjo foram abatidos. Nunca mais mistérios; nunca mais bem-te-vis. Sótão e chácara. Nunca mais. Em meio aos destroços daquela demolição indevida, um armador enferrujado e preso a um fragmento de reboco lembrava que ali fora um lar, com uma rede armada no conforto de um cantinho que permitisse o descanso ao frescor da brisa e do canto harmonioso dos pássaros. Com a derrubada da casa e das árvores ficou o terreno quase vazio, restando, aqui e acolá, uma mangueira. Hoje, quem passa por essa rua - antiga Rua do Tambiá – vê erguido em seu lugar, a sede da TV Cabo Branco e do Jornal da Paraíba, onde uma ou outra mangueira reproduz a sua imagem na vidraça espelhada da fachada moderna. Era uma vez. SUMÁRIO 36 | M a g n o N i c o l a u ( O r g . ) CASUALIDADE OU ENGAJAMENTO EM VANDRÉ?? Ricardo Anísio Não se assustem! Não se decepcionem! Geraldo Vandré não admite que tenha sido um compositor de músicas de protesto e nem aceita que sua obra seja catalogada como tal. “Eu compus música brasileira, sem nada que tivesse sido direcionada para criticar o sistema político vigente em minha pátria na década de 1960”, afirma categoricamente o controverso artista paraibano. Crer ou não crer em Vandré, eis a questão. Durante a minha convivência com o co-autor de “Porta Estandarte”, sinceramente, fiquei sem a devida convicção tanto do sim como do não. E por que eu me deparei com essas tantas interrogações? Entre um prato de maxixe e outro, Geraldo se apresentara como um gentleman, um cidadão normal embora nada comum. E uma coisa que me levou definitivamente a pensar que ele oscilava entre momentos lúcidos e outros completamente dignos do Poeta do Absurdo criado pelo grandioso Orlando Tejo. Na verdade, cada vez que mais me embrenho na(s) histórias “vandrenianas” mais me inquieto e me incomodo. A excentricidade tem limites. Agredir fisicamente Gal Costa fazem-me um mal horrendo porque eu queria curar Geraldo de todas essas contradições e lendas. Claro que quase nada é lenda, e isso o torna ainda mais enigmático. A leitura de um livro sobre a vida ou a arte de Geraldo com certeza vai requerer do leitor menos avisado um exercício homérico para ver acirrado o duelo do homem contra o mito. Mesmo que caótica e claustrofóbica a tarefa nos leva para extremos. Vandré tanto nos encanta quanto aporrinha (não encontrei expressão mais próxima); e esse dualismo é perfeitamente compa- SUMÁRIO Leituras Diversas: Crônicas, Ensaios e Contos | 37 tível com a forma que utiliza em suas falas e nos seus olhares perdidos. Porque ele, Vandré, não faz a menor questão de que o cataloguem como louco, como gênio, ou como um homem engajado que adotou marinha e aeronáutica para seus espaços de confinamento. Um artista que se imortalizou pela marcha bélico-sonora de um artista que fala dos “soldados armados, amados ou não” não teria direito a se “suicidar” artística e ideologicamente? Eu acho que ele pode tudo, desde que exprima sua obsessão mela militarização de seu comportamento militaresco ainda que fora dos quartéis. Á Geraldo Pedrosa tudo é concebido e decifrado. Mas, e ao Geraldo Vandré? Será que essas licenças poéticas podem caminhar enquanto ele silencia. O caos aflora como se à ele, Geraldo, o mundo não fizesse mais sentido; muito menos a música popular. Isso o levou a compor umas peças para piano e imaginar que sua formação musical lhe desse cabedal suficiente para elevarmo-lho ao panteão dos gênios aos quais tudo é perdoado. Mas, admiração à parte, ele não encontrará “exílio cultural” pelo teor (e nem pelo valor) dos quatro discos que gravou. Mesmo sendo eles discos muito fortes, não têm a “nitroglicerina” que milhões de pessoas sonharam um dia escutar; fosse através marcha de guerrilha, fosse no lirismo ferino (sic) que respingou do alto dos holofotes dos festivais. Honremos a provocação estética e filosófica do cidadão Geraldo tanto quanto do artista Geraldo. O diferencial na obra de Vandré é que sua discografia transpôs e “evangelização” da música pura e ácida para adubar os objetivos do Vandré. De certa forma eles não são uma mesma única pessoa. Eles são realmente dois em um. Cada um com suas pesquisas estéticas. E que o juízo me perdoe, amém! SUMÁRIO 38 | M a g n o N i c o l a u ( O r g . ) DESEJOS DE SÍLFIDE Rubens Elias da Silva A Ana Carolina Abiahy, pela franca amizade. Plic! Plic! Plic! A torneira foi aberta enquanto eu cantarolava um verso desajeitado de Lupicínio Rodrigues, imaginando coisas pegajosas, viscerais, gelatinosas; absurdas e incongruentes. Fechei a densa e metálica torneira, dei uma risada e pus-me a cantarolar novamente enquanto a banheira do apartamento era preenchida pelo líquido aquático. Dobrei a toalha felpuda, duas vezes, três, aliás, tentando encontrar a perfeição em cada têxtil vinco. Entrei na banheira ovalada, irritantemente limpa, água plácida no interior esperando, ansiando minha sede epitelial. Olhei ao redor. Inimitável redor. Os azulejos todos bem afilados, formando cruzes, encontros e poucos, muitos poucos desvios. Contei azulejo por azulejo com a paciência de um monge budista. Uma gota despencou – sem avisar! – desesperada da torneira e mergulhou na banheira: plic! Assustei-me: de repente, uma pequena marulha circular se formou, independentemente de minha vontade e medo; outras sucessivamente se formaram, ondas ondas e ondas foram se propagando pelo infinito de minha limitada banheira. Como a poeira que esbate na implacável montanha, as ondas foram sendo vencidas pela borda elipsoidal da banheira, impedidas de alcançarem o mar, seu irrevogável pai que eternamente as espera. Daí, elas voltaram em sentido contrário, com menos força e mais, muito mais ira por conta do desejo materialmente frustrado pelo objeto-banheira. Eu podia imaginar botes invisíveis e invencíveis ultrapassando essas terríveis ondículas; eles, os botes, como náufragos desesperançados, anseiam encontrar terra firme – ilusoriamente – na minha doméstica banheira. Creia-se, pois, que na minha banheira, qualquer tentativa de satisfação ou pertencimento são sumariamente aniquilados; nem mesmo a água que compõe a SUMÁRIO Leituras Diversas: Crônicas, Ensaios e Contos | 39 essência da banheira tem privilégios: o ralo será impiedosamente seu destino. Começo meu gestual particular: tiro a bermuda de algodão roto, a cueca sem marcas e modas, desalojo o calor e o cansaço. Lavo os pés, calejados, observo as minhas unhas, removo as cutículas e vagarosamente vou adentrando no continente água. Devagar, meu corpo vai se tornando parte una da essência H²0, respiro lentamente para que a imensidão da água perpasse meus pensamentos e entro em vertigem. Fico totalmente submerso qual água viva: ser marítimo tornado sou. Sinto o aroma líquido, meus olhos poucamente conseguem enxergar, os cabelos rapidamente representam uma dança ritmicamente animada; algas capilares tornaram-se, então. O vai e vem da água, a dança dos cabelos e, de leve, sinto escamas rasgarem a minha epiderme em sua necessidade ictiológica; guelras valentes e pontudas apossam-se do meu pescoço, num processo de aniquilamento e inquilinato cujo estranho e estranhamento passam a ser eu. Maritimamente eu. Passo a ser delgadamente íntimo da água: ela entra pelos poros, olhos, ouvidos, cabelos, nariz, escamas, guelras e outros orifícios. Então, ela vai surrupiante entrando nos meus ouvidos, recitando versos que agora são piscosamente inteligíveis: “vem, não te deixas dominar, Vem, não te permitas recuar, És onda, és vaga, és imensidão, Não há por que ter medo, O medo só habita onde não há imaginação” Senti a banheira trepidar, mansa e intolerantemente; chego a tombar. Aos poucos sinto-a despedaçar numa miríade de cacos, num momento de destruição e formação do mundo: fúria oceânica. Porém, nada foi destruído. Águas calmas, águas escuras, águas de amplidão: tornei-me um peixe escamoso que nada impávido num e pelo oceano de solidão e plena liquidez. Subo, desço, aumento a velocidade, reduzo-a, brinco exaustivamente com as possibilidades náuticas que as nadadeiras me dão. Perscruto grutas, lagos, sonhos, mortos náufragos, desenho sílfides, desbravo embarcações fantasmas eivadas de dor e morte salgada. Tento fugir, corro por SUMÁRIO 40 | M a g n o N i c o l a u ( O r g . ) dentro de corredeiras e ondas famintas, quero e tento voltar para o continente terrestre. Saudade sinto da terra segura, mas torno-me vítima de meu delírio equestre aquático. Encontro-me com deusas aladas marítimas, com vestes longas e sem fim, cabelos desenhados como algas, olhos doces, porém salobres. Rogo a elas para me devolverem a minha pacata banheira; desespero me bateu como alerta de nunca mais voltar. Por um instante, sou reconduzido para outra dimensão, não sei ao certo, e milhares e milhares de cacos se reúnem e tenho devolvida a minha diminuta banheira, parte do oceano, entretanto. As escamas começam a se movimentar para cima e para baixo e sinto lentamente elas voltarem ao seu espaço original; as guelras, viçosas e avermelhadas, agitam-se com tanta paixão oceânica, que mancham delicadamente a água de sangue! Depois de longas horas submerso, volto à tona da água represada pela banheira: vejo o teto, esbranquiçado, sabonetes de marcas tipos e cheiros, xampus coloridos, escovas novas e velhas (de antigos amores), pastas de dentes, toalha e uma luz acesa pendurada, insuficientemente acesa, dá para o corredor. A água permanece límpida e não produz uma onda ou vibração sequer. Toco precavidamente meu cabelo e noto que deixaram de ser algas. Nesse momento não sei mais separar sanidade de loucura netúnica. Saio da banheira, piso no tapete, enxugo o corpo parte por parte, ainda em êxtase pela viagem haliêutica que cumpri. Olho rapidamente para todos os lados e me visto. Ao sair do banheiro, esqueço de apagar a luz. Dirijo-me ao interruptor e, apavorado, percebo que há ao lado da banheira uma concha do mar, ainda molhada, daquelas bem grandes... SUMÁRIO Leituras Diversas: Crônicas, Ensaios e Contos | 41 A CIDADE JARDIM Ruy Florentino Uma cidade linda na opinião de todos que visitam: João Pessoa. Eu que o diga. Vivi nesta cidade antiga nos longínquos anos de 30 e 40, brincando pelas calçadas e ruas da velha cidade. Carros não existiam e somente os bondes elétricos alegravam, soltando aqui e ali seus raios de luz violeta que se soltavam no raspar da lança nos fios elétricos. O “motorneiro” aliviava a marcha para algum passageiro habilidoso que conseguia “amorcegar” o veículo ainda em movimento. A rapaziada conduzida nos estribos laterais disputava um palmo de tábua para apoiar um pé, com uma mão agarrada na haste de metal amarela, que servia de corrimão vertical, e o “condutor” que cobrava as passagens fazendo mil malabarismos no exercício da penosa profissão. Os passageiros mais malandros pulavam de um lado para outro do bonde, procurando escapar do pagamento. As notas amassadas e dobradas ao comprido entre os dedos do cobrador e um alforje cheio de moedas a tiracolo pendia do ombro do cobrador. Eram recebidos os famosos “passes de bonde” que de tão acreditados eram também aceitos nos pagamentos dos ingressos do cinema. O fiscal, de pé na retaguarda, registrava o acesso e desembarque de passageiros acionando com uma correia de couro o maquinismo da máquina que existia nos fundos do veículo. O motorneiro batia com o pé na campa chamando a atenção dos que viajavam nos estribos do lado de fora: “Cuidado”. Desacelerava a velocidade do bonde acionando uma alavanca no sentido contrário aos ponteiros do relógio e girava uma roda comandando o freio de mão. Um automóvel estava estacionado junto à calçada! De quem seria esse carro? No meu tempo de criança só havia dois carros em João Pessoa. Estarei exagerando? Isso eu não sei, porém lembro somente do carro do Dr. João Soares e o de Dr. João Medeiros que SUMÁRIO 42 | M a g n o N i c o l a u ( O r g . ) eram os dois pediatras da cidade. E o “tim-tam” das campas do bonde alegravam as ruas. A Rua Maciel Pinheiro era tão estreita que não permitia o estacionamento do carro do Dr. João Medeiros, pois impediria a passagem do bonde. Outra rua estreitíssima era a Visconde de Pelotas. Ambas foram alargadas muitos anos depois. O bonde que saísse do Ponto de Cem Réis em direção ao Tambiá teria que estacionar um pouco, para dar passagem ao outro carril que viesse em sentido contrário, pois a rua, no trecho, só comportava uma linha de trilhos, portanto um bonde de cada vez. O comércio mais “chic” ficava na Maciel Pinheiro, e os jornais anunciavam que a loja tal “avisa aos seus estimados fregueses que acaba de receber grande sortimento de artigos para a Festa das Neves...” E aí incluía-se até casacos de pele para as senhoras e senhoritas enfrentarem o frio nas noites da festa nas calçadas da Rua General Osório, chamada de Rua Nova. O seu José Lauria, o italiano da Casa Vesúvio, quando procurei preveni-lo de que o comércio começara a “subir” e que seria conveniente procurar acompanhar a novidade, ele dizia que em Londres havia lojas com mais de 400 anos no mesmo endereço... Tal não aconteceu por aqui. Se a praia do Cabo Branco é a maravilha que é hoje, coitada da cidade velha. Casarões em ruínas nas ladeiras da cidade baixa, na Duque de Caxias, Tambiá ou Trincheiras. Tudo em ruínas. João Pessoa mudou de endereço. Na década de 40 eu brincava na praça Dom Adauto, olhava os macacos da Bica todos os domingos e ia aos cinemas. Em matéria de cinema houve muitos nessa época: o Rex, o Plaza, o Municipal, o Santa Rosa, o Brasil, o Felipeia, o Astória, o S. Pedro, o Jaguaribe, o Santo Antonio, o São José, o Globo, o Metrópole, o Glória de Cruz das Armas. Muitos anos depois apareceu o Tambaú, no prédio do famoso hotel. Ir ao cinema era como hoje se vê a TV. Havia até mesmo a sessão das moças no Rex, com dois filmes pelo preço de um. Aos domingos era infalível assistir ao seriado. Meu pai e seus amigos só iam ao cinema assistir aos jornais ou ver as comédias de O Gordo e o Magro, Carlitos, Boca Larga e, mais tarde, às deliciosas chanchadas da Atlântida. No auge do filme de faroeste, no maior perigo para o mocinho, aparecia a legenda: “Voltem na pró- SUMÁRIO Leituras Diversas: Crônicas, Ensaios e Contos | 43 xima semana para assistirem à continuação deste empolgante seriado”. Que diferença dos cinemas de hoje em dia onde os meninos entram com um pacote enorme de pipocas e um garrafão de CocaCola e refestelam-se em confortáveis poltronas. No meu tempo, a rapaziada ia mesmo era jogar volley na Bica. A rede de um, a bola de outro, passava-se toda a tarde na brincadeira sem nenhuma vontade de vencer a partida. O ideal era ver a bola no ar o mais tempo possível sem tocar no chão. Quando escurecia dentro da mata, íamos lavar os pés na famosa bica do parque. Ninguém usava transporte para se locomover. Bondes só para onde o trilho os levassem. Carros de aluguel, ou “carros de praça”, como eram chamados, eram muito caros para o povo. Ia-se a pé. E ninguém faria a tolice de reclamar. Era o costume. No centro do Ponto de Cem Réis ficavam os autos estacionados cercando o famoso relógio, o mesmo que hoje está no alto do prédio do antigo Paraíba Hotel. Os postes da iluminação pública eram tubos de ferro de diversos calibres. E na praça de carros de aluguel havia caixas de ferro fixadas aos postes contendo o telefone de um afortunado dono de carro de aluguel, com o número de três dígitos pintado na tampa. Por falar em telefone, é de admirar o uso intensivo dos chamados celulares de hoje em dia, porque naqueles tempos só os ricos ou os estabelecimentos mais importantes possuíam telefone. Fixados na parede do prédio, na melhor dependência da casa, ficava o vistoso telefone, feito em móvel de madeira, um pequeno tablado para se permitir escrever, bocal fixo para se falar e receptor móvel para se levar ao ouvido com a mão esquerda. Com a mão direita acionava-se um veio, fazendo soar a campainha. O som da campainha despertava a telefonista na empresa telefônica, a qual completaria a ligação para o terminal desejado. Constava do inventário da pessoa falecida o arrolamento desse patrimônio. E muitas pessoas compravam uma linha só para especulação. E estou me lembrando do telefone do Elite Bar, o restaurante tradicional de Tambaú, que servia a famosa sopa de cabeça de peixe. A distância para a praia era tanta que havia uma pracinha com coreto, depois da pracinha um prédio da cooperativa de pescadores e depois ainda um ringue de patinação antes de se SUMÁRIO 44 | M a g n o N i c o l a u ( O r g . ) chegar ao mar. Ir a Tambaú era uma viagem para se fazer uma vez por ano. Uma ocasião comentei com o Dr. Ávila Lins, que era médico do Banco do Brasil, como o povo era tolo em não aproveitar o passeio a Tambaú todos os dias, ao que ele me indagou: - “E como você acha que se podia ir? ”...Foi quando eu fiquei sabendo que era impossível se cruzar o Rio Jaguaribe, que ficava alagado em grande faixa. E não havia ponte. A viagem era feita partindo-se da Praça João Pessoa, seguindo-se mais ou menos o rumo da D. Pedro II, Jaguaribe, mata do Buraquinho, até a Penha, sempre atravessando matas fechadas e só daí se poderia chegar a Tambaú. João Pessoa possuía fábricas. No final da Rua da Areia, encontrando a Rua Gama e Melo, ficava a famosa Fábrica de Cigarros Ferreira Amorim & Cia., grande prédio com inúmeras portas para a calçada. Em cada porta estava pintada uma carteira de cigarros das marcas ali fabricadas. E havia os mais baratos, que eram acondicionados em maços. Lembro do João Pessoa, Populares, Deliciosos, Dois Irmãos. Por trás encontrávamos a grande fábrica de bebidas de Tito Silva & Cia. Os franceses não aceitavam mas chamavam de “vinho” o conhecido licor de caju Lágrimas Celeste. No rótulo estampavam orgulhosamente as medalhas que o tal vinho conquistou em uma exposição internacional. De fato o vinho Celeste, Como chamávamos, era digno de registro. Todo visitante que chegasse a João Pessoa invariavelmente tomaria um cálice do vinho Celeste, branco, muito fino, cheiro e sabor inigualáveis. No rótulo lia-se: “O beijo que tu me deste tem o sabor diferente que uma taça de Celeste deixa nos lábios da gente”. E outros vinhos eram fabricados, de jenipapo, jurubeba e caju. Infelizmente, com o desenvolvimento urbano das praias para o lado de Cabedelo, desapareceram os cajueiros dos tabuleiros e não havia mais onde adquirir cajus frescos. O químico Dr. Trevas conduzia a análise dos produtos da indústria, com muita competência e já há muito prognosticava esse final. Na Rua da Areia funcionava o laboratório da famosa Água Rabelo e a famosa fábrica de gasosas de Sydney Clement Dore. Havia ainda a grande fábrica de cimento Portland, que mudou de proprietário várias vezes, a começar da Portela, Matarazzo, etc. e a indústria de óleo de algodão da marca Sol Levante, que SUMÁRIO Leituras Diversas: Crônicas, Ensaios e Contos | 45 ficava na parte baixa final da Rua da República. Em frente era a fábrica do Vinagre Sanhauá, de Lindolfo de Carvalho, o que deixava aquele trecho de rua impregnado dos cheiros de óleo de algodão e vinagre. Funcionou também na Ilha Batatão, próximo ao Porto do Capim, a fábrica de sabão Protector e a Perfumaria Paraibana, pertencente a João Minervino, na época o homem mais rico da cidade. O homem era tão rico que acendia o charuto com uma cédula cor de jerimum e verde de um conto de réis. E havia mais o curtume de Antonio Franciscano do Amaral e a fábrica de artefatos de papelaria e material escolar dos irmãos Miranda Freire e acho que só. Nós, meninos e meninas, frequentávamos as escolas públicas, chamadas Grupos Escolares. Havia o Grupo Escolar Dr. Thomaz Mindello- GE I – na Praça Aristides Lobo, o Antonio Pessoa, na Rua Beaurepaire Rohan, ou Rua do Melão, como era conhecida, o Izabel Maria das Neves, na João Machado, o Epitácio Pessoa, na Praça Antonio Pessoa, cada um marcado por uma sigla GE. No dia 26 de julho íamos pelas calçadas, dois a dois, conduzindo flores para o monumento ao Presidente João Pessoa, onde entoávamos a canção: “João Pessoa, João Pessoa, bravo filho do sertão, toda a pátria espera um dia a sua ressurreição ...” E a base do monumento ficava coberta de flores em profusão. O diretor do Thomaz Mindello, Prof. Joaquim Santiago, fazia todas as semanas uma preleção cívica e o Dr. Seixas Maia, gordo médico da saúde pública examinava as pálpebras dos raquíticos alunos, após sua palestra. O canto orfeônico era ministrado pelas alunas do Prof. Gazzi de Sá, entre elas Blezila e Natividade Guedes, e a linda professorinha Orlandina. E na Educação Física tínhamos as aulas de Hebe Escorel Borges, professora muito competente e atleta esforçada. Com a chegada das Lojas Brasileiras, ou as 4400, o comércio começou a invadir a Beaurepaire Rohan, que chamávamos a Rua do Melão e que era ainda residencial. Foi na 4400 que sofri o primeiro grande golpe na minha vida. Estava na vitrine uma bola, que era feita de um látex mal acabado, e que se tornou motivo de minha cobiça. Juntei todos os tostões que ganhei até o porquinho ficar pesado. Corri para a loja e entrei triunfante, já pegando avidamente a minha bola tão almejada. Que decepção. A bola custava SUMÁRIO 46 | M a g n o N i c o l a u ( O r g . ) 8800! Nunca me conformei. Como é que a placa na calçada dizia que tudo era até 4400 e me cobravam o dobro?! Eu imaginava uma atitude dos governantes para que o absurdo fosse imediatamente corrigido. Propaganda enganosa! A avenida se enchia de lojas sem formar quarteirão. A lojas seguiam de cabeça a fora. A mesma coisa aconteceu quando, ao final dos anos 40, as lojas já começaram a subir a Guedes Pereira, que chamávamos Rua do Fogo. As últimas casas residenciais foram desaparecendo. Nunca formou um quarteirão sequer e chegou assim ao Ponto de Cem Réis. E João Pessoa continuou com essa particularidade no comércio. Não há quarteirões de lojas. A Duque de Caxias ficou lotada e sem formar quarteirão. E veio a Almirante Barroso, na Lagoa, e o comércio chegou assim à Epitácio Pessoa, por 6 km sem nenhuma esquina comercial. E o mesmo costume continuou ao longo da Edson Ramalho, João Câncio, Esperança, e alcançou o tal retão do Manaíra sem que haja um só quarteirão comercial. A praia do Cabo Branco, finalmente, quando raiaram os anos 50, se embelezou. O coqueiral plantado na areia, já na década de 70, na administração de Dorgival Terceiro Neto, emprestou à enseada uma beleza bem nordestina. Diga-se de passagem que eu fui o autor do projeto e executor em companhia do Dr. Durval Gomes Falcão. E em 50 anos tudo se transformou, e nasceram os edifícios para hotéis e restaurantes e a praia ficou cada dia ainda mais bela. Porém o que seria mais importante foi relegado a plano secundário: o cabo. Pergunte ao grande artista Hermano José o que era outrora o Cabo Branco. Todos os dias lá se vai um pedaço do barro. Com a construção do farol, uma obra concebida pelo arquiteto Pedro Abrahão Dieb, e que representa um pé de agave estilizado, desmataram a área. Grande erro. Com a devastação da reserva florestal desenraizou-se o solo, houve a penetração direta das águas da chuva, o vento causticou o promontório que vem abaixo todos os dias um pouquinho.... E os turistas começaram a afluir ao local em ônibus, carros e caminhões destruindo o nosso ponto mais oriental das Américas. Apesar disso o Cabo Branco continua lindo. Um marco indelével para a beleza e o prestígio de Tambaú e de toda a nossa orla. SUMÁRIO Leituras Diversas: Crônicas, Ensaios e Contos | 47 Mas é um acidente geológico que tem os dias contados. Não é para logo sua destruição. A Natureza não dá saltos. Uma geração nem sequer nota os centímetros ou milímetros destruídos aqui e ali. Os governos e empresários olham para a beleza do lugar como se tudo fosse eterno. Urge a defesa do nosso ponto oriental. Em sobrevoo de helicóptero dá para se ver que há um atol de rochas justamente à frente em defesa do cabo, pois é o que restou dele. Um país que gasta bilhões com construções de estádios de futebol para se usar somente algumas vezes por ano não pode alegar que falta dinheiro para defender um acidente geográfico dos mais importantes do Brasil. O Cabo Branco é referência nacional. O paraibano deveria lutar pela sua preservação. Não é impossível se construir um dique de pedras graníticas sobre o atol, em forma de meia lua, e a partir desse roqueamento se começar a reerguer a falésia. A compactação do material seria executada desde a base, levantando-se o paredão como pirâmide em direção ao topo. O revestimento externo do paredão poderia ser feito de pedras calcárias, o que não prejudicaria em nada o seu majestoso nome de Cabo Branco. Realmente, um sonho. Mas todas as grandes obras nascem de sonhos. Imagino que o CREA poderia encampar essa ideia. Ainda há tempo. Quem sabe alguém se emocione e inicie uma campanha de salvamento do Cabo Branco. Ao lado das obras de centros turísticos e hotéis, primeiramente vamos salvar nosso ponto mais oriental das Américas. Naqueles bairros do altiplano nasceram condomínios que mais parecem cidades do primeiro mundo. Difícil imaginar-se que estamos na mesma cidade de João Pessoa. João Pessoa é elogiada por todos os visitantes como uma cidade linda, limpa e pacata Os ipês amarelos da Lagoa e Getúlio Vargas, as mangueiras seculares da Maximiano Figueiredo e João Machado, as Cássias nas calçadas em profusão em quase todos os cantos, os jambeiros da Coremas e Tabajaras, que deixam as ruas atapetadas de flores vermelhas que caem pelo chão, as acácias amarelas nas praças já merecem um olhar mais dedicado das autoridades. E por que só temos três ou quatro avenidas de passagens para as praias? Isso é simplesmente um absurdo porque a BR não é obstáculo intransponível e muitos viadutos podem ser construídos SUMÁRIO 48 | M a g n o N i c o l a u ( O r g . ) ligando todas as vias que foram interceptadas. Nós temos o defeito de querer fazer obras faraônicas para ficar na história. Porém não há verbas para conservação do que é construído e fica aí abandonada a Praça da Independência vastíssima e esquecida. Dizem os jornais que a “revitalização” da Lagoa é a primeira em um século! Ledo engano. Nos anos 40 a lagoa foi completamente esvaziada e limpa. Nos anos 70, Dorgival Terceiro Neto realizou completa obra de ajardinamento, com irrigação mecânica. Está na hora de a população cobrar verbas dos governos para manutenção da cidade, conservação das praças, policiamento efetivo dia e noite. Do contrário, como as saúvas, os vândalos acabarão com a cidade. João Pessoa é uma cidade encantadora e merece o amor de todos nós. SUMÁRIO Leituras Diversas: Crônicas, Ensaios e Contos | 49 MEMÓRIAS DA COPA DO MUNDO Sônia van Dijck Não quero provocar falsas interpretações e nem quero que me julguem apressadamente. Não sou torcedora de futebol. Na verdade, não sou dada a atividades esportivas; para quebrar a monotonia do corpo, prefiro fazer dança de salão. Mas, estamos em tempo de Copa do Mundo. Depois de muitos anos, o certame volta ao Brasil, como a Copa das Copas. Na verdade, a Copa mais cara de todas as Copas. Uma Copa com traços tipicamente brasileiros: morte de trabalhadores na construção das arenas padrão FIFA, com os construtores declarando à imprensa a garantia de assistência às famílias, que, no minuto seguinte ao apagar das luzes da equipe de reportagem, foram devidamente esquecidas; gastos astronômicos pagos com dinheiro público; promessas vazias de legado da Copa traduzido em melhorias da mobilidade urbana, em reformas de aeroportos e outros benefícios urbanos do século XXI, que nunca foram levados a sério; esperança de melhorias e de avanço das políticas governamentais de segurança pública, que foram realizadas em medidas cosméticas de instalação de Unidades de Polícia Pacificadora no Rio de Janeiro – sede da final da Copa 2014 -, frequentemente atacadas por criminosos que, nos últimos anos, atuaram sem maiores preocupações com o possível rigor de uma política de segurança pública, enquanto nas demais cidades de jogos da Copa 2014 nem UPPs existem e os criminosos continuam sem sustos, tocando seu trabalho. Neste tempo da Copa das Copas de altos gastos e de incalculáveis maracutaias, os hospitais públicos continuam tão miseráveis conforme o previsto na evolução de sua decadência nos últimos 11 anos, enquanto o sistema público de educação conseguiu superar sua precariedade histórica e se tornar monumentalmente deficitário. SUMÁRIO 50 | M a g n o N i c o l a u ( O r g . ) Mas, Copa do Mundo é festa, e, felizmente, não haverá tão cedo outra Copa no Brasil – os cofres públicos não suportariam outra sangria de superfaturamento. Laos Deo. Melhor, então, falar de uma boa lembrança de Copa do Mundo – claro que não vou falar dos melhores zagueiros e dos goleiros mágicos, pois não entendo de futebol, como já disse. Já nem sei se foi na Copa de 1974 ou se na de 1978. Estava na Holanda nas duas ocasiões. Mas, pouco importa em qual das Copas vivi minha experiência de Copa do Mundo. Meu marido, torcedor de carteirinha da seleção brasileira, acompanhava apreensivo as vitórias da Orange - como os holandeses chamam sua seleção de futebol, tendo em vista que laranja é a cor simbólica da Casa de Orange-Nassau, sendo o atual monarca Guilherme Alexandre I. Na noite de um dos jogos das quartas de finais, estávamos em Amsterdam. Fomos jantar em um gostoso restaurante localizado em uma das estreitas ruas que se ligam à Leidseplein. A cidade estava vestida de laranja. O pequeno restaurante que escolhemos acompanhava o clima laranja e tinha uma TV ligada. A Orange ganhou. E fomos de volta para a Leidseplein. A praça estava atapetada de copos, pratos e talheres descartáveis – em dias de jogos da Orange, os bares usam apenas descartáveis – e ninguém reclama. Os torcedores haviam esquecido os bons hábitos e as lixeiras disponíveis não comportaram acondicionar tamanha quantidade de lixo e ficaram bradando inutilmente “Papier hier” – ou coisa parecida. O fato é que o tapete de descartáveis na Leidseplein informava o quanto os torcedores da Orange tinham bebido cerveja... Mas, um som de muitos corais desencontrados chamou-me a atenção. Turmas de torcedores – homens e mulheres – de diversas idades (alguns muito jovens) – cantarolavam o quarto movimento da Nona Sinfonia (Beethoven). Todos conheciam a Ode à Alegria, ainda que muitos a proclamassem desentoadamente por força da cerveja ou mesmo por falta de talento para o canto. Alguns apenas gesticulavam no compasso da festa, outros marchavam em grupos nos quais uns se seguravam aos outros para vencer tanto a cerveja como a euforia e tentavam cantar em coro – e Schiller, pelo gênio de Beethoven, subia as centenárias fachadas e serpenteava pela SUMÁRIO Leituras Diversas: Crônicas, Ensaios e Contos | 51 Leidsestraat a caminho do canal, para encontrar outros celebrantes da Alegria. Sob a inspiração de Schiller, com a regência de Beethoven, acreditei na raça humana como irmandade, exaltada pelos torcedores holandeses nos versos memoráveis. E eu e Thom fomos para o hotel. Creio que, no fundo, ele estava contente com a vitória da Orange. SUMÁRIO 52 | M a g n o N i c o l a u ( O r g . ) DOCES INVERNOS Yó Limeira Nos tempos da minha meninice esta cidade guardava ainda muito da sua alma de criança. Era um lugar pacato de pouquíssimos carros, de bondes serenos que cortavam a capital no seu balanço cadenciado, sem pressa e manso saindo do Ponto de Cem Réis aos bairros então distantes de Mandacaru, Cruz das Armas, Tambaú... Só algumas ruas do centro eram calçadas com paralelepípedos e muitas ainda permaneciam em estado natural com seus leitos de terra que, ao cair das primeiras chuvas exalavam um cheiro gostoso de chão molhado. Não se via o pretume dos asfaltos e muito menos se sentia o calorão que dele emana. Podia-se afirmar que esta era de fato uma cidade verde exalando cheiro de pomar. As ruas descalças eram ladeadas ou divididas por jambeiros, mangueiras, ipês e as casas, que eram casas de verdade porque horizontais e com seus enormes quintais onde plantavam-se árvores frutíferas e cultivavam-se hortaliças. E flores nos jardins. Quando começava o inverno surgiam goteiras que só podiam ser retiradas na primeira estiada; daí colocavam-se baldes e bacias em vários pontos da casa para aparar os pingos da chuva, o que resultava numa variedade de sons que escutávamos como música de ninar... E é exatamente esta sinfonia que a memória me devolve agora nesta noite chuvosa ... Tantos e tantos anos depois, é como se ainda a escutasse misturada ao som alegre do coaxar dos sapos que cantarolavam contentes nas poças d´água do quintal da nossa casa. E um galo, que a chuva fez perder a hora, desperta o amanhecer, e logo outro e outro e outro anunciando dos seus poleiros que o astro rei nasceu mesmo assim em meio às nuvens ... E é toda esta musicalidade que traz para mim, como num caleidoscópio, as imagens e as cores desses invernos antigos. SUMÁRIO Leituras Diversas: Crônicas, Ensaios e Contos | 53 Revejo então o lar das minhas bonecas na beirada do guardaroupa de meus pais... Abrindo a porta do meio do tal móvel, afastava um pouco as caixas que Mamãe colocava abaixo das roupas penduradas e dali surgia um compartimento que servia muito bem às divisórias da residência de inverno das minhas bonecas. Passava ali horas inteiras organizando aqueles compartimentos de sala, quarto e cozinha; umas bonecas visitando outras, e as fantasias todas se tornando realidade naqueles dias chuvosos quando o quintal ficava proibido com suas correrias e pegas, escondeesconde e academia, bola e bilas. Onde um imaginário pó de pirlimpimpim nos fazia reviver Zorro, Tarzan e sua Jane, Chita, Roy Rogers, Capitão Atlas, Peter-Pan e Sininho, Alice e todo um universo quimérico naquela pequena selva de abacateiros, mamoeiros, goiabeiras, sapotizeiros... Relembro ainda os barquinhos de papel... Ah! Os barquinhos de papel... Como eu gostava de viajar neles. O divertimento começava com a confecção que variava de tamanho, dependendo do papel que tínhamos disponível e que geralmente eram folhas de velhas revistas que já não interessavam aos adultos. Depois eles eram soltos ao sabor das águas que desciam pela ladeira ao lado do terraço e que se jogavam como uma cachoeira lá embaixo... Quando dava uma estiadinha a gente corria com nossos barquinhos a jogá-los nas corredeiras do meio-fio da rua e apreciá-los céleres no caudaloso rio que desaparecia na primeira curva da primeira esquina ali, onde, muito depois, foi construído o saudoso Cine Municipal, da nossa juventude. Como esquecer ainda aquele prazer de ficar admirando, olhos grudados nos pingos, ora bem grossos ora mais finos, a beleza transparente de toda aquela água vinda de tão alto... Já não param aqui estas reminiscências. Viajo então para o período mais alegre do nosso inverno: as festas juninas. O alvoroço começava cedo na véspera de São João lá em casa e na casa da minha tia, quintal com quintal se comunicando como num pequeno sítio, para nós imenso onde nós, crianças, éramos por usocapião os verdadeiros proprietários. Nas primeiras horas da manhã, a mesa do café já posta à sua espera, retornava Papai do Mercado Central com aquela ruma de espiga de milho...Quando ele voltava a sair, agora para o trabalho, SUMÁRIO 54 | M a g n o N i c o l a u ( O r g . ) começava a funcionar uma verdadeira fábrica de comida de milho, principalmente de pamonha. Retiravam-se as palhas, isolavam-se as que iam ser utilizadas como caixas, retiravam-se os cabelos das espigas, com uma faca separavam-se os caroços que eram triturados no moinho. Era então chegada a hora de passar aquela massa na peneira, adicionar o leite de coco, sal, açúcar, manteiga derretida e provar para ver se estava a gosto. Quando minha avó era viva costurava na máquina as caixas. Depois que ela morreu, Mamãe passou apenas a enrolá-las e amarrá-las. Neste primeiro momento também participávamos, ajudando a retirar os cabelos do milho, dando uma mãozinha no moinho ou simplesmente aperuando. Mas o melhor estava ainda por vir. Era Papai que chegava com os pacotes de fogos: o maior, ele mesmo escolhera e comprara; o outro era seu colega do IAA, amigo da família Seu Genival, que mandava de presente para meu irmão e para mim. Era uma folia só abrir aqueles embrulhos com chuveiros, caraduras, mijões, cobrinhas, estrelinhas, e traques de chumbo que, naquele tempo, tinha de fato um chumbinho dentro, o que proporcionava um divertimento na manhã do dia seguinte: sair “catando” pelo quintal, pela calçada pra ver quem encontrava uma maior quantidade daquelas bolinhas cinzentas. E sempre havia uma ou duas surpresas de fogos diferentes, como os vulcões que faziam grandes festas no céu, festas de luz e cores. E, com a orientação de meu pai, fazíamos a divisão do que ia ser usado na noite de São João e o que guardaríamos para a véspera de São Pedro. Na parte da tarde nossa movimentação maior era na casa de Titia. É que a canjica era feita lá num grande tacho de cobre, em cima de um fogareiro no quintal, e, quando saia do fogo após distribuída em pratos e travessas, o tacho nos era entregue. E meus dois primos, meu irmão e eu, cada um com uma colher na mão, cuidávamos de raspar a panela numa boa algazarra. Durante todo o dia o velho Phillips de enormes válvulas, ainda o escuto nos recônditos das minhas lembranças, na voz inconfundível e na sanfona de Lula Gonzaga: Ai São João,São João do carneirinho você que é tão bomzinho diga lá pra São José SUMÁRIO Leituras Diversas: Crônicas, Ensaios e Contos | 55 diga pra ele me ajudar diga pro meu milho dá vinte espigas em cada pé .............................................. Olha pro céu meu amor veja como ele está lindo olha praquele balão multicor como no céu vai sumindo ............................................. A fogueira está queimando em homenagem a São João o forró já começou vamos todos raspa pé nesse salão ....................................................... No finalzinho da tarde iam pamonhas para a casa de minha tia e de lá vinham travessas de canjica. O milho cozinhado, a pamonha assada, o bolo de milho, cada casa fazia o seu. E, quando a noite chegava, após o jantar, reuniam-se tios e primos lá em casa para a queima de fogos ... Fazia-se ainda pequena fogueira no quintal para assar milho. Na nossa rua onde do lado esquerdo passava o bonde e do direito era baixa a fiação elétrica, não havia o costume de se queimar fogueiras. Só no amplo espaço onde funcionou o mercado descendo a Barão de Abyhai, entre a Visconde de Pelotas e a Treze de Maio, podia-se ver à noite o braseiro queimando em honra ao santo festejado. Com a família reunida dava-se início a queima dos fogos e era uma lindeza ... Se chovia, esperávamos uma estiada para voltarmos às brincadeiras. De repente uma alegria maior nos chegava do céu: aqui, acolá, um, outro e mais outro balão multicolorido, com sua luzinha bruxuleante, alçava voo. Uns bamboleavam sem rumo certo, cai, não cai, vai cair, pegou fogo... Não! Olha aquele lá!!! Num prumo certeiro alguns seguiam reluzentes na direção do infinito, misturando-se às estrelas. (Memórias – fragmento) SUMÁRIO 56 | M a g n o N i c o l a u ( O r g . ) ENSAIOS EDUCAÇÃO EM DIREITOS HUMANOS PELA TRANSDISCIPLINARIDADE: EM BUSCA DA SOCIEDADE SENSÍVEL Anaína Clara de Melo 1 A SOCIEDADE DE PLÁSTICO Os valores humanos estão desgastados e fragilizados em nossa sociedade. Hoje em dia convivemos com pessoas cada vez mais individualistas, o que gera um povo mesquinho, materialista e alienado – termo emprestado de Karl Marx. As pessoas valem pelo que podem oferecer em termos materiais; os sentimentos entre os seres são alimentados pelo usufruto de objetos dos outros; as relações amorosas são mantidas pelo quanto se pode ganhar estando ao lado do outro; o grau de sentimento criado entre os seres depende do que se pode ganhar do outro e por quanto tempo – acabando-se aquilo que se pode usufruir, também se acabam os sentimentos. Não há durabilidade nas relações humanas, porque os valores humanos dependem da validade dos bens do outro: acabando-se o prazo de validade dos produtos sugados do outro, também se acaba a validade dos sentimentos pelo outro. Não é sem razão que hodiernamente existem tantos divórcios na sociedade brasileira, por exemplo. Não estamos sabendo conviver coletivamente, em grupo; unidos de forma verdadeira, de forma homogênea, sólida, indissociável. Não sabemos mais iniciar relacionamentos: precisamos da ajuda de sites virtuais para conhecermos outras pessoas. Buscamos a facilidade e agilidade do mun- SUMÁRIO Leituras Diversas: Crônicas, Ensaios e Contos | 57 do virtual. Isso tem feito com que não tenhamos mais paciência suficiente para aguardar, cautelar, ponderar, pensar... Tudo tem que ser muito rápido, e as relações humanas, também. Por isso precisamos de sites de relacionamento, pois tudo se dá de forma mais rápida: o encontro é mais rápido, e, paradoxalmente, as dissoluções também, porque não se tem tempo de se formar uma relação sólida. Estamos falando da sociedade da efemeridade, da rapidez, da instantaneidade. O plástico é o grande símbolo disso tudo: é facilmente descartável, não possui resistência suficiente, é temporário. A sociedade atual criou uma nova forma de coletividade: a coletividade virtual. Não é esta a coletividade a que almejamos, mas uma mais sólida, mais resistente, durável, verdadeira, transparente e totalizadora. 1.1 A COLETIVIDADE VIRTUAL O aspecto virtual nas relações humanas é preocupante. As pessoas se comunicam mais por aparelhos eletrônicos do que por contato humano, olhares, gestos. O mundo virtual tem gerado uma exigência pela rapidez, pelo mais fácil, pelo mais eficaz. Isso faz com que, ao mesmo tempo, formemos uma sociedade impaciente, que não sabe aguardar, apreciar. Exagerando, poderíamos dizer que estamos formando seres que não sabem viver a vida; ou então, que estamos formando uma sociedade com valores diferentes dos de nossos antepassados. Trata-se da coletividade virtual: uma coletividade imaginária, facilmente dissolvível, efêmera, transitória, sem consistência, sem durabilidade e com prazo de validade curto. A nova sociedade gosta de tudo rápido: relacionamentos, afazeres e vida. Caso haja a necessidade de se esperar por algo, a nova sociedade fica facilmente irritadiça. Essa coletividade não é a que buscamos, pois se trata de uma coletividade falsa, imaginária. O real não é coletivo, mas o irreal: o irreal é coletivo porque o virtual é capaz de juntar um número grandioso de pessoas – mas essa junção é apenas numérica e não possui força de sustentabilidade no tempo. Os grupos se formam facilmente, mas se desfazem facilmente por motivos banais. O tempo é o grande inimigo dessa coletividade: ele é capaz SUMÁRIO 58 | M a g n o N i c o l a u ( O r g . ) de destruir rapidamente essa sociedade coletiva virtual, pois se trata de um grupo impaciente. Mas qual é a coletividade que buscamos? 1.2 A COLETIVIDADE REAL A coletividade real a que nos referimos diz respeito a um grupo único, que vive em favor de si e do outro: o outro e ele mesmo são um só, e isso faz com que a dedicação ao todo, ao mundo, às relações sociais seja a maior e melhor possível. Trabalhando para o outro é estar construindo um mundo melhor para si mesmo: um mundo sem luxúrias, da simplicidade, da verdade, da felicidade, do amor, da igualdade e da justiça. O coletivo é a imbricação de todos juntos e unidos em prol de ideais semelhantes. O contato, o gesto, o olhar, o diálogo são fatores imprescindíveis para a formação de uma consciência voltada para o bem da coletividade. Poderíamos chamar essa coletividade real de sentimento expresso quando os direitos humanos são efetivados. 2 VALORES HUMANOS Valores humanos como a solidariedade, o compromisso, a fraternidade, a responsabilidade, 3 EDUCAÇÃO EM DIREITOS HUMANOS E A TRANSDISCIPLINARIDADE Para que a coletividade seja de forma real, acredito que a formação de um povo voltado para a prática dos Direitos Humanos – DHs – é indispensável para um convívio coletivo de fato em sociedade. Deve haver, então, uma Educação em Direitos Humanos – EDHs – realizada de forma séria, eficiente e com compromisso da comunidade escolar. Discordo do ensino dos Direitos Humanos – DHs - sob a forma de tema transversal e sob a forma de disciplina, e defendo a ideia de ensino dos DHs sob a forma transdisciplinar entre todos os componentes curriculares. Ademais, acredito em um ensino que parta de eixos temáticos relacionados aos DHs e que possibilitem o SUMÁRIO Leituras Diversas: Crônicas, Ensaios e Contos | 59 trabalho com os conteúdos curriculares; tudo de forma transdisciplinar. Justifico a ideia com o argumento inicial de, se os DHs forem ensinados como disciplina, correrá o risco de ser apenas mais uma matéria expositiva para o aluno, como tem sido feito com os componentes curriculares atuais; se for apresentada sob a forma de tema transversal, incorrerá em ser apenas mais um tema transversal esquecido ou desconhecido dentro dos Parâmetros Curriculares Nacionais – PCNs - pelos professores. Muitos de nossos professores não conhecem os PCNs de suas disciplinas, quanto mais os temas transversais. Os DHs como tema transversal ocorreria algo semelhante com o que se verifica com o tema Ética, por exemplo, hodiernamente: os professores não sabem como associar os temas transversais a suas disciplinas – pelo menos essa é a realidade das escolas públicas do estado da Paraíba em sua maioria. Penso bastante sobre a realidade de nossas escolas no âmbito estadual e fico muito preocupada com a qualidade do ensino no estado da Paraíba. A LDB não é conhecida, os PCNs, também não, os PPP das escolas representam um descaso com a educação... Imaginem os demais planos que estão hoje aí à disposição para a efetivação dos Direitos Humanos! Mas não quero ser pessimista; acredito que isso pode mudar com as nossas práticas pedagógicas e ações em sala de aula, e que a simples discussão dessas questões atualmente ajudarão o ensino no futuro. Como forma transdisciplinar, os DHs estariam de fato imbricados a todo o currículo, sendo apresentado sem limites fronteiriços entre as disciplinas. Tenho convicção de que é esta a forma de efetivação de uma Educação em Direitos Humanos para a formação do cidadão. Isso significa dizer que inserir os DHs no ensino implica, antes de tudo, em uma reestruturação metodológica do ensino. Deve, ainda, haver a prática de metodologias participativas em detrimento das metodologias de conteúdo, geradoras de nossas aulas expositivas, a que muitos docentes estão acostumados. Por exemplo, na escola onde leciono a disciplina de Língua Portuguesa, costumo dividir o ano letivo, composto por 4 bimestres, em 4 eixos temáticos básicos: Sáude, Meio Ambiente, Ética e Direitos Humanos. Esses eixos conduzem, na verdade, os temas dos textos que serão trabalhados em sala de aula para que, tam- SUMÁRIO 60 | M a g n o N i c o l a u ( O r g . ) bém, discutamos os conteúdos curriculares de Língua Portuguesa. Isso significa dizer que o principal é a leitura e escrita, compreensão, interpretação e crítica de assuntos indispensáveis à emancipação do homem e, consequentemente, relacionados aos DHs. Os conteúdos curriculares de Língua Portuguesa são tratados em um patamar secundário nas aulas, não se constituem como o motivo da aula. Para sermos mais específicos, um assunto como variação linguística pode ser abordado ao longo do ano dentro dos eixos temáticos como forma de se reconhecer as variações linguísticas do povo, enfatizando-se o respeito a essas variações, o reconhecimento do outro como falante distinto de outros por motivos sociais, econômicos, políticos, culturais, avaliando-se a importância de cada cultura linguística, verificando-se as influências de culturas linguísticas indígenas e africanas na formação da cultura linguística do povo brasileiro etc. A partir dessas discussões, nos textos, podem-se enfatizar o uso dos porquês, a ortografia do mas e do mais, ou seja, questões gramaticais relevantes para o entendimento das discussões temáticas. Neste sentido, urgem capacitações que apresentem os documentos educacionais prioritários para a educação e que mostrem como eles devem ser aplicados: legislação e planos educacionais, somados a exemplos de práticas em sala de aula devem ser a base das capacitações dos professores; tudo com o uso de metodologias participativas. Não temos como fazer DHs se sequer conhecemos os documentos indispensáveis à educação. 4 CONSIDERAÇÕES FINAIS Somente com a Educação em Direitos Humanos sendo praticada em nossas escolas de forma transdisciplinar é que poderemos mudar a sociedade e formar seres humanos de fato compromissados com o todo, com a coletividade, com os homens, com a bondade, respeito, felicidade, fraternidade, amor, paz, liberdade e igualdade. Para isso, preciso de mais políticas de capacitação de profissionais da educação que enfatizem a prática dos DHs. A metodologia de ensino a ser aplicada deve ser a que se baseia nas metodologias participativas, que enfatizam o diálogo, a formação de grupos, a união e o todo. SUMÁRIO Leituras Diversas: Crônicas, Ensaios e Contos SUMÁRIO | 61 62 | M a g n o N i c o l a u ( O r g . ) ESCOLA CONTEMPORÂNEA: UMA UTOPIA POSSÍVEL Almiro de Sá Ferreira O descompasso entre a escola e a realidade De um modo geral, associa-se o conceito de educação ao de escola. Ao se lidar com o senso comum e a sedimentada ideia tradicional de educação, geralmente o campo de entendimento das pessoas se volta para o espaço temporal e arquitetural, sobretudo, em direção à sala de aula, uma imagem firmada desde o período infanto-juvenil e, mais adiante, durante os estudos e o transcurso da carreira acadêmica, nas instituições universitárias. Na perspectiva mais estrita, a Educação, na verdadeira acepção do termo, compreende um amplo processo em que o ser humano vai elaborando progressivamente a sua história de vida, incluindo conhecimentos, práticas e um conjunto enorme de experiências que caracterizam e edificam a figura do eterno aprendiz, tanto de maneira sistematizada como na informalidade. Nesse sentido ela pode acontecer e se desenvolver na família, nas instituições educacionais, no trabalho e nas organizações humanas, em geral.1 Porém, não se deve deixar de reconhecer que a escola é o espaço mais presente e visível do processo educacional, sendo do ponto de vista da formalização de estudos quase que impossível se viver sem o seu papel institucional validado socialmente. Apesar de todas as críticas, ela veio para ficar enquanto lócus privilegiado e bem recortado, de tal maneira que não é mais possível descurar de pelo menos uma de suas funções que é possibilitar o convívio sociocultural e o relacionamento humano direto entre milhões de aprendizes, suas famílias e pessoas no mundo inteiro. O mesmo pode-se dizer da figura do professor. Para os que profetizam o seu desparecimento com o advento da revolução informática e do elearning2, temos a lembrar de que o seu perfil será, inexoravelmen- SUMÁRIO Leituras Diversas: Crônicas, Ensaios e Contos | 63 te, redesenhado e reconstruído, mas que dificilmente o mesmo desparecerá do cenário educacional. A ponta do iceberg dos múltiplos e complexos problemas enfrentados pela maioria das escolas, aqui e alhures, aflora e têm nexo com o estado permanente de violência que vem se espraiando em todo o tecido societário contemporâneo e se faz presente nas escolas com uma virulência desproporcional, quando, pelo contrário, é exatamente nelas onde reside um gigantesco potencial humano capaz de minimizar a violência. Nesse espaço delituoso e conturbado que se vivencia nas escolas, noticiado todos os dias pela mídia, o sentimento que impera é quase sempre o de imobilismo frente à dificuldade de se entender o que fazer e como fazer para transformá-la e adequá-la aos novos tempos, levando os educadores a uma encruzilhada que sempre termina numa sentença muito cômoda: “Ruim com ela, pior sem ela”. Inúmeras são as questões que sempre ficam no ar sem respostas satisfatórias, entre elas, uma fundamental: a escola atual realmente forma o perfil de pessoa humana e de profissional que o século XXI está a exigir? Neste brevíssimo ensaio, sob os virtuosos influxos das merecidas comemorações alusivas aos 25 anos da Editora Ideia, tentaremos traçar a problemática, historiar as principais razões da inadequação da escola desde o alvorecer dos tempos pós-modernos e, por fim, apontar algumas variáveis indispensáveis para reflexão e continuidade de uma discussão tão efervescente e crucial para a nossa sociedade contemporânea. A herança do controle social A escola, como hoje a conhecemos, é um construto do século XVIII, moldada sob as influências do iluminismo e do paradigma cartesiano-newtoniano, para atender, principalmente, os nascentes processos econômicos e sociais da Revolução Industrial; fenômenos entrecruzados que ajudaram a consolidar a sua base conceitual e paradigmática, de forma a se manter cristalizada e ao mesmo tempo ser institucionalmente indispensável até os dias atuais. A perspicaz análise sociológica, feita pelo brilhante filósofo francês Michael Foucault, traz luzes e encaminhamentos epistemo- SUMÁRIO 64 | M a g n o N i c o l a u ( O r g . ) lógicos para a compreensão cristalina deste importante fenômeno histórico. Afirma ele, com singular entendimento, que no novo contexto do processo evolutivo das sociedades, tomando-se como referência os séculos XVII e XVIII, assistem-se o despontar das chamadas instituições disciplinares, onde a escola começa a fazer parte de um conjunto de novas estratégias, alicerçadas numa anatomia política diferente do antigo sistema de punição e suplício público. Sua tese chama a atenção para uma questão que, desde o século passado, nos parece bastante óbvia, quando assinala categoricamente: “Devemos ainda nos admirar que a prisão se pareça com as fábricas, com as escolas, com os quartéis, com os hospitais, e todos se pareçam com as prisões?”.3 Assim como Foucault, Althusser também analisa a função da escola, embora numa outra vertente analítica, para chegar a conclusões semelhantes. Com a preponderância do enfoque repressivo da escola, o referido sociólogo vale-se de sua visão de ruptura para caracterizar a escola como um dos “aparelhos ideológicos do estado”,4 que prima pela manutenção do status quo e a reprodução das relações de poder. No escopo da superada visão clássica e tradicional da Educação há, portanto, toda uma filosofia da aprendizagem, onde a ideia central é simplesmente moldar os alunos para o mercado de trabalho, para o velho mundo industrial, na perspectiva de uma surrada pedagogia tecnicista-burocrática, numa visão de controle social e dentro de um processo restrito de “linha de montagem”; situação em que os currículos e os cenários de aprendizagem se desenvolvem num clima disciplinar inócuo e totalmente desprovido da realidade sócio-econômica-cultural e antropológica dos novos tempos. Por isso, nessa atuação incongruente, a escola vem minando e destruindo o coração, a mente e a sensibilidade dos jovens, emparedando-os em clausuras físicas e mentais, principalmente, quando se trata daqueles que são, ao mesmo tempo e paradoxalmente, os indivíduos mais importantes para a sucessão saudável das gerações humanas e para a construção de uma sociedade futura mais justa, solidária e pacífica. No caso do Brasil, uma evidência que salta aos olhos, até dos observadores mais obliterados, é a de que a escola, quando muito, promove a mobilidade social de forma excludente, discriminatória SUMÁRIO Leituras Diversas: Crônicas, Ensaios e Contos | 65 e tímida, frente a sua inoperância missionária de educar para formar pessoas criativas, socialmente atuantes, economicamente produtivas, conscientes e autorrealizadas num contexto mais pleno de humanismo, trabalho colaborativo, empreendedorismo e cidadania. Assim, permanecer, simplesmente, alimentando desnecessárias discussões recorrentes, voltadas para temas como “indisciplina”, “indicadores de eficiência”, “problemas socioeconômicos dos entornos escolares”, “drogas”, “violência”, “bullying”, entre outras, como variáveis isoladas que poderiam solucionar os conflitos e a atual desqualificação da instituição escolar, configura-se numa abordagem e postura infrutíferas, caso não se resolva promover uma definitiva mudança global de modelo, uma transformação, no seu sentido realmente paradigmático. É preciso, portanto, uma reviravolta de 360 graus, reconstruindo-se o atual modelo e tomando como plataforma de mudança as intrincadas relações de causa-efeito que permitem aflorar constatações científicas sobre os gravíssimos problemas que afetam a disfunção social da escola e podem apontar para soluções que sejam transformacionais e sustentáveis, ao invés de pontuais e casuísticas. Essa ideia radical de mudança transformadora, de construção de um novo design escolar aqui defendida, encontra paralelo na análise feita por Sibilia, que faz a seguinte observação: “Será necessário transformar radicalmente as escolas [...] redefini-las como espaços de encontro e diálogo, de produção de pensamento e decantação de experiências capazes de insuflar consistência nas vidas que as habitam”.5 Mudanças cosméticas ou transformação? Em sentido diametralmente oposto as suas origens, a Escola Contemporânea, “pós-moderna” - também denominada por alguns de Escola do Futuro - precisa desenvolver flexibilidade organizacional e conceitual para imprimir velocidade no mesmo compasso em que ocorrem as profundas transformações sociais, políticas e econômicas da sociedade atual. Por outro ângulo, não parece razoável dissociar o mundo do trabalho, e seus processos organizativos SUMÁRIO 66 | M a g n o N i c o l a u ( O r g . ) de produção, do modelo de educação e tipo de escola que se pretende analisar ou reconfigurar. Contrapondo-se, ao tempo onde se dependia exclusivamente da produção de bens e serviços convencionais, os estrondosos avanços da Era do Conhecimento foram gradativamente exigindo do mundo corporativo e da nova economia da informação uma maior dependência em relação à criatividade e à participação ativa dos seus colaboradores. Ken Robinson reforça essa necessidade transformacional, quando salienta que “essas maneiras de abordar a educação também estão sufocando uma das mais importantes capacidades de que os jovens de hoje necessitam para abrir caminho no mundo cada vez mais exigente do século XXI: o pensamento criativo”.6 Nesse ambiente pós-moderno de constante renovação de tecnologias, de novos métodos de trabalho, de variadas forma de aprendizagem, onde predomina o sentimento onde tudo que é sólido desmancha no ar, 7 a escola precisa incorporar novas tecnologias educacionais e buscar a sua sintonia perdida com a nova geração do entretenimento e da Internet adotando uma postura de cunho proativo, lúdico e futurista, abrindo, assim, as suas portas para o novo mundo, incluindo a participação efetiva da família, da comunidade, da sociedade e das empresas, numa perspectiva sistêmica. Dentro de um cenário tal, a inovação tecnológica, com sua velocidade exponencial e peso inexorável, tem se mostrado a variável mais saliente e que mais assombra e influência de forma marcante a vida do ser humano no século XXI. Nesse contexto a escola é um elemento-chave que não pode ficar fora das prioridades do Estado e da sociedade em prover escolas de qualidade e de futuro para todos. Buscando-se, por outro lado, uma conceituação mais profunda do que significa Escola do Futuro - expressão hoje muito suscitada -, não basta se recorrer à tecnologia e à virtualidade, ao paradigma da “escola digital”, à tecnologia do hardware e do software; é preciso construir, isto sim, uma visão que seja a mais sistêmica e ampliada possível, envolvendo outras categorias analíticas para que se possa dispor de uma compreensão epistêmica mais real sobre tão crucial necessidade de levar sentido concreto ao real papel da escola no século XXI. SUMÁRIO Leituras Diversas: Crônicas, Ensaios e Contos | 67 No “Relatório Jacques Delors”, encontram-se os pressupostos transformacionais para a visão sistêmica a ser construída na educação do novo milênio, de maneira que possa emergir um modelo escolar diferenciado, enquanto lugar de prazer e felicidade no ato sagrado de aprender, ou, conforme afirma o referido autor e organizador dos Quatro pilares essenciais da educação do século XXI: 1) aprender a conhecer; 2) aprender a fazer; 3) aprender a viver juntos e a conviver com os outros, e (4) aprender a ser. 8 Nessa visão sistêmica, as salas de aula não podem mais guardar qualquer semelhança com as celas dos presídios. Elas não podem mais ser um espaço de aprisionamento, de confinamento, mas, sobretudo, um ponto de encontro, sempre dinâmico e que seja responsável pela construção de um novo perfil profissional e de cidadania plena, em consonância e facilmente adaptável à nova Era Conceitual9 que, por sua vez, chega num ritmo acelerado de transformação para suceder a atual Sociedade do Conhecimento. Considerações Dentro desse cenário, fica claro que os novos educadores precisam incorporar uma visão pedagógica renovada, para que possam instar os seus educandos, a partir de uma didática mais contemporânea e, por meio de metodologias e técnicas inovadoras, procurar oferecer aquilo que realmente é relevante, no seu contexto social e econômico, sempre aliando competências cognitivas com as chamadas competências socioemocionais.10 De qualquer modo, o que a escola deve primar, dentro de uma arquitetura pedagógica moderna e de uma proposta educacional inovadora, é pelo desenvolvimento das potencialidades e competências dos seus alunos, que precisam aprender a resolver problemas desafiantes, inesperados e ocasionais, como de fato ocorrem na vida, e, principalmente, dominar processos cognitivos, sociais e emocionais de forma colaborativa e convergente. Sem descurar da preocupação primeira, que diz respeito à definição do tipo de aluno que queremos formar, do perfil de educador que precisamos e de um planejamento educacional consistente, é razoável concluir afirmando ser factível a busca de um modelo diferenciado, inovador e pronto para promover transformações realmente paradigmáticas, mediante cinco variáveis11 in- SUMÁRIO 68 | M a g n o N i c o l a u ( O r g . ) terligadas: (1) Gestão alicerçada numa visão sistêmica e de liderança; (2) Modelo pedagógico realmente centrado na aprendizagem e formação dos alunos; (3) Metodologia ativa, de par com uma nova abordagem didática, rica e variada em métodos e técnicas lúdicas e inovadoras, e (4) Modelo arquitetônico e infraestrutural focado no bem-estar, na qualidade de vida e na satisfação estética e espiritual dos alunos, professores e demais partes interessadas no processo ensino-aprendizagem. Pensamos, portanto, que aqui se encontram pontuadas algumas pistas iniciais que, aliadas ao desenvolvimento humano e a valorização dos docentes e demais profissionais da educação, poderão contribuir para viabilizar a utopia de uma nova escola, a ser refeita com uma ressignificação adequada à inexorável realidade do século XXI, que não é apenas um novo século, mas, sim, uma nova era, o começo de um novo milênio, prenuncio de inimagináveis transformações científicas, tecnológicas e educacionais que estão chegando. Notas 1. BRASIL. LDBE – Lei nº 9.394 de 20 de dezembro de 1996, Artigo. 1º. 2. Disponível em: http://pt.wikipedia.org/wiki/E-learning 3. FOUCAULT, Michael. Vigiar e Punir: nascimento da prisão. Traduzido por Lígia M. Pondé Vassalo. Petrópolis: Vozes, 4. ed. 1986, p.199. 4. ALTHUSSER, L.P. Aparelhos Ideológicos de Estado. 7. ed. Rio de Janeiro: Graal, 1998 5. SIBILIA, Paula. Redes ou paredes: a escola em tempo de dispersão. Tradução de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Contraponto, 2012, p. 210-211. 6. ROBINSON, Ken. O Elemento-chave: Descubra onde a paixão se encontra com seu talento e maximize seu potencial. Tradução: Evelyn Massaro. Rio de Janeiro: Ediouro, 2010, p. 27. 7. BERMAN, Marshall. Tudo que é sólido desmancha no ar: a ventura da modernidade. Tradução de Carlos Felipe & Ana Maria L. Ioriatti. São Paulo: Companhia das Letras, 1986. 8. DELORS, Jacques et. al. Educação – Um tesouro a descobrir. Relatório a UNESCO da Comissão Internacional sobre Educação para o século XXI. São Paulo: Cortez: Brasília: MEC: UNESCO, 1998. SUMÁRIO Leituras Diversas: Crônicas, Ensaios e Contos | 69 9. PINK, Daniel H. A revolução do lado direito do cérebro – as seis aptidões indispensáveis para a realização profissional e pessoal. São Paulo: Campus, 2005. 10. Disponível em: http://educacaosec21.org.br/iniciativas/competenciassocioemocionais/ 11. FERREIRA, Almiro de Sá. Educação profissional e tecnológica (metrologia e qualidade). João Pessoa: Ideia, 2011, p. 21. SUMÁRIO 70 | M a g n o N i c o l a u ( O r g . ) A POESIA QUE SE SABE Amador Ribeiro Neto Charles Perrone é um poeta que só aos poucos vai revelando-se poeta. Não sei se por timidez ou excesso de rigor, o fato é que sua poesia chega-nos em valises parcimoniosas. Mas quando nos chega, revela-se de um modo tão singular, que abala o modo do leitor na fruição do texto poético. Sua poesia sabe que sabe. Tal como o fingidor pessoano. Sabe que faz, mesmo fingindo que não. Assim, ela sabe fazer o leitor sentir-se, também, como aquele que sabe. Sentir-se inspirado, diria Valéry. Esta é uma das virtudes dos grandes poetas: dominar a linguagem poética e ainda encantar o leitor com as descobertas, as epifanias e os insights que provoca nele. Somente quem domina o ofício de fazer poesia (poiésis, no grego) é capaz de encaminhar o leitor por labirintos de revelações sempre inesperadas. Desautomatizadas, como queria Chklóvski. Re-veladoras de um momento singular, como apregoava Heidegger. Assim, aquilo que num momento fora prosaico, transmutase, no momento seguinte, em poético. Charles A. Perrone é um brasilianista que leciona literatura e cultura luso-brasileiras na Universidade da Florida. Além de poeta é crítico literário, ensaísta e renomado estudioso da música popular brasileira contemporânea. A todas estas atividades, some-se a de poeta (quase) bissexto. Com o lançamento bilíngue de Deliranjo (Florianópolis, Ed. Katarina Kartonera, 2013), Perrone reúne um grande time de tradutores: Régis Bonvicino, Odile Cisneros, Adriano Espíndola, Paulo Henriques Britto – além de si próprio. Este detalhe é da maior importância, já que todos os tradutores têm um estreito convívio com a poesia, quer como tradutores e ensaístas, quer como poetas. O livro abre-se numa homenagem “inter-americana ao mestre Décio Pignatari, falecido em 2012”. O poema “Liberdade”, de SUMÁRIO Leituras Diversas: Crônicas, Ensaios e Contos | 71 Décio, ganha uma releitura poética em “Imaginação”, na qual os jogos paronomásticos, os anagramas e os palíndromos, em uma diagramação isomórfica, montam um lance de palavras ideológicopoético. O verso “abre as asas sobre nós” condensa o que afirmo. Em tempo: este é o único caso em que o poema-fonte e o poemaderivado não são traduções, nem traduzidos. “Aplauso absoluto” usa como epígrafe o neologismo “perhappiness”, que nomeia um poema de Leminski para, de imediato, indagar: “a perhapiness da performance?”. Quem conhece a obra ensaística de Perrone sabe que ele aplica o conceito de performance à voz da poesia e da canção em seu livro Letras e letras da MPB. Ou seja: é preciso ler a intertextualidade explícita com o poeta curitibano, mas é preciso também ler a intratextualidade implícita com o próprio autor. No compasso do poeta citado ele, poeta em ação, lança, ora aqui, ora ali, o brilho de dois neologismos: vigilanciem e ser-meadas. Assim, aplaude-se a poesia, o poeta e se autoaplaude num poema que é homenagem de homenagens, “dança e canto” caetânicos, jogo de lances mallarmaicos. O verso final, bem ao estilo do grande homen-ageado curitibano: “o tempo curto em casa”. (A diagramação é mesmo assim, guardando fartos espaços entre as palavras de um mesmo verso). Coisas de Leminski. Coisas de Perrone. Herança da poesia concreta, por exemplo. Já o poema “presente de fim de ano” vale-se da linguagem prosaica, de tal modo que poderia ser escrito sob a forma de um bilhete. Todavia o poeta opta pela estrofe de sete versos (também conhecida como sétima ou septilha) e, assim, leva o leitor, sutilmente, aos encantos e sonhos de uma linguagem poética de forte tradição popular, para tratar do mundo corriqueiro das festas de fim-de-ano: presentes, promessas, vidências. Por fim, conclui inesperada, heideggeriano-lacanianamente: “nós queremos a mesma coisa que é”. A Coisa. A busca da Essência. Existirmos, a quantas perguntas se destina? Poesia, teu nome é prédica e predestinação. A velha logopeia revisitada: poetaprofeta. O tempo, que já aparecera nos dois poemas citados anteriormente, volta a ser um dos nós górdios em “Itinerário atualizado” – já desde o título um update, um upgrade temporal. Se em “presente de fim-de-ano”, o primeiro verso ao pontuar: “então ela também SUMÁRIO 72 | M a g n o N i c o l a u ( O r g . ) resolveu vir me pedir”, introduz uma narrativa in progress, deixando o leitor, de fato, a ver navios – ou a imaginar e criar situações possíveis/plausíveis – o mesmo recurso, de lançar o leitor em meio a um mundo em torvelinho, ressurge no verso que abre “Itinerário atualizado”: “e agora ser baixado para”. Sem dúvida, a linguagem dos dois poemas não somente acolhe o leitor, como projeta-o como coautor de ambos os poemas. Os jogos sonoros dos versos iniciais de “paz interior” apontam para uma expansão do mundo a-lógico: “arreliando e / arrasando a razão”. Ri-se aqui o “ride, ridentes! / Derride derridentes”!, de Khlebikóv, na memorável intradução de “Encantação pelo riso”, feita por Haroldo de Campos. Ou como o próprio Leminski destaca em seu livro sobre a biografia que escreveu sobre Cruz e Sousa pra Coleção Encanto Radical, ao citar o soneto “Acrobata da dor”, destacando o verbo rir genialmente incrustrado no vocábulo tristíssimo, em verso que encerra o poema: “Ri coração, tristíssimo palhaço” Os versos seguintes de “paz interior” remetem ao mundo barrocodélico de Leminski ao mesmo tempo que somam-se ao universo haroldo-joyceano de compor neologismos: “/ seja cartesiano / discartesiano”. Um pôr e retirar, ao gosto barroco; um construir e desconstruir à la Derrida; um conter e expandir à la Deleuze. Enfim, um propor e descompor, sempre lúdicos. A palavra enquanto brincadeira, enquanto “promessa”, para “além da borda / a natural orla / sem limite preciso”, levando o leitor à zona do fronteiriço, da borda, da orla, do território sem limite. A paz interior é um caso de afrouxamento, riso, desrazão, música e prazer. A poesia se presenta como coisa que é – e que se autofaz. “Um pedestre dantesco” e “Confissão de um pedestre senciente” retratam duas cenas de dor e morte. O pedestre do primeiro poema jaz “imóvel debruçado / no pavimento jamais andar / nem subir alturas itálicas / só pra cair tenebroso / inferno algum / eterno distante”. O poeta mergulha uma palavra na outra, tecendo a cena como um todo inconsútil: jaz insere-se em jamais; o não andar (andar enquanto verbo e substantivo) mescla-se ao não subir; não subir desenvolve-se em alturas itálicas, referindo-se às cenas de morte do Edifício Itália, marco arquitetônico de São Paulo, que fica na região central da cidade, SUMÁRIO Leituras Diversas: Crônicas, Ensaios e Contos | 73 verdadeiro “inferno”. Inferno reverbera imagem e som em eterno. E Dante imiscui-se em distante. Elo a elo, o poeta monta a cena numa descrição em movimento sobre um corpo inerte. O dentro e o fora do pedestre no redemoinho da cidade grande. Tudo aponta para o pedestre morto: moto-contínuo. Por isto mesmo a disposição dos versos do poema desenha uma grande seta de trânsito, indicando a direção a ser tomada. O segundo pedestre, do segundo poema, conta sua própria história de cegueira, sensações e morte, no vaivém do trânsito das esquinas. Um acidente, vislumbrado em meio a um clarão, espalha a escuridão e põe o pedestre em dúvida: “Um tremendo clarão até avassalador? / Dizem que aquilo é sinal de morte. Devo estar, pois, morto”. Cego, aguçam-lhe os outros sentidos, e “ainda posso me ouvir perguntando em voz alta o que se passa”. Sente o cheiro do asfalto, do “ar que flui”, “o gosto da carne nos ossos dos dedos”. Numa paródia cartesiana, conclui entre irônico e sarcástico: “E se sinto, ainda que não de todo, sou. / E sou todo a favor de ser”. O poeta, uma vez mais, brinca com a intertextualidade poética: os dois versos finais do poema resposta-homenagem de Augusto de Campos a João Cabral dizem: “nunca houve um leitor / contra mais a favor”. E este poema, ao promover a voz do morto, traz também a voz do poema em si, o canto do cisne, que Augusto já antecipava em “Diálogo a um”: “– Eu sou o Canto. Cada vez que morres / Eu nasço. Tu vives. Eu vivo sobre”. E conclui num verso oracular e metapoético: “ – Sou o Poeta digo o que não morre”. A poesia de Charles Perrone espraia-se em versos abundantes ou se guarda na contenção. Em ambos os casos, a contensão com a palavra que sabe, e que se sabe obrigada a uma cumplicidade com o rigor poético e com o leitor de poesia. Eis o que determina o tom e o tônus de Deliranjo. Lira de um delírio: o de saber e o de saber-se poesia num mundo de acidentes e de asas que se abrem. Céu e inferno de Wall Street. Anjo. Anjo marginal. Charles da canção de Jorge Ben – replicante e replicável de um brasilianista que se sabe estrangeiro. (Em sua própria terra, também?). Por isto mesmo ele canta o canto da palavra, matéria concreta e viva da poesia que vai. Que segue. Que se entrega para lampejos, quereres e pulsões do leitor. Uma SUMÁRIO 74 | M a g n o N i c o l a u ( O r g . ) poesia do tempo, do homem, da cidade. E, antes de tudo, do saber. Dos saberes. SUMÁRIO Leituras Diversas: Crônicas, Ensaios e Contos | 75 O BOQUEIRÃO: UMA NOVELA ESQUECIDA? Ângela Bezerra de Castro “Amo os pobres, e amo muito mais os oprimidos. Tenho menos piedade das dores físicas do que das dores morais. Sem os bens materiais, o homem não deixa de ser homem. Mas a perda da liberdade é a perda do corpo e da alma.” (José Américo de Almeida) Tão logo retomei O boqueirão para uma nova leitura, em reverência à memória de José Américo, na passagem do seu trigésimo aniversário de falecimento, veio à minha lembrança uma afirmação feita por Rachel de Queiroz, em conferência na UFPB. “Livro é como gente. Uns tem sorte. Outros, não.” Lançado em 1935 pela histórica José Olympio, O boqueirão teve a segunda edição através da Leitura/MEC, em 1971, e a terceira pela Civilização Brasileira, em 1979. Esta uma edição especial, com prefácio do escritor Leandro Tocantins, reunindo Reflexões de uma cabra, O boqueirão e Coiteiros. Cada uma das novelas precedida de um estudo crítico. Respectivamente: O humor poético na obra de José Américo, do professor José Ferreira Ramos; A sinfonia pastoral do Nordeste, do professor Juarez da Gama Batista e Introdução crítica, do professor francês Jean Orecchioni, especialista sobre o tema do cangaço. A Fundação Casa de José Américo é responsável pelas duas publicações mais recentes dessas novelas. Uma, em 1994, antecipando a comemoração dos sessenta anos de O boqueirão e Coiteiros. Outra, em 2008, para marcar a passagem dos cento e vinte anos de nascimento do escritor. Aqui é preciso fazer uma retificação. Nas publicações da FCJA, O boqueirão atinge a quarta e quinta edições. E não a segunda e terceira, como está impresso nos volumes que reúnem as três novelas. SUMÁRIO 76 | M a g n o N i c o l a u ( O r g . ) Se estabelecermos uma comparação com A bagaceira, que já alcançou a quadragésima segunda edição, podemos concordar com a grande escritora cearense no tocante à sorte. Ou então buscar razões concretas para tal descompasso entre a divulgação das duas obras. Nos pressupostos gerais estabelecidos para a ficção, José Américo permanece o mesmo do Antes que me falem, texto denominado pelo professor Milton Marques Júnior de “prefácio interessantíssimo” do regionalismo moderno, numa feliz equiparação ao papel desempenhado pelo de Mário de Andrade em relação ao Modernismo. Este enaltecido pela crítica do eixo Rio-São Paulo. O de José Américo recusado pela visão preconceituosa. O boqueirão é também uma tentativa de persuadir, dizendo a verdade, com aparência de mentira. É a tragédia da própria realidade. Nele é preciso ler as reticências e intenções para ver o que os outros não veem. Outra vez José Américo trabalha com os contrastes e confrontos, deles obtendo o choque, recurso retórico para despertar consciências adormecidas. Mas, no processo narrativo, verificam-se mudanças em relação ao romance A bagaceira. Visível contenção do narrador e ênfase no diálogo dos personagens, o que imprime à narrativa maior agilidade no ritmo, em correspondência com as inquietações e mudanças que são motivos recorrentes da novela. Outro aspecto que merece destaque neste paralelo é a economia nas descrições da paisagem. A grande ênfase é para as estradas com a poeira levantada pela barata vermelha, presença insólita na região perdida no tempo, estagnada numa idade distante da era da máquina e da velocidade. A passagem da “liteira azul que andava um século para chegar” é o símbolo mais ostensivo dessa realidade anacrônica. As ações de O boqueirão têm como espaço o sertão, durante a construção de um açude, no qual se depositavam grandes esperanças. Dois jovens engenheiros, um brasileiro e o outro americano, formados em Ohio, se incorporam à construção da obra. Remo, inconformado com o atraso da região de onde é natural, que ele chama de “terra da seca”, sente-se inadaptado às origens, passando a contestar costumes e valores antigos. Frank White, vivendo despreocupadamente a novidade da diferença cultural, torna-se SUMÁRIO Leituras Diversas: Crônicas, Ensaios e Contos | 77 crítico de Remo. E o diálogo entre os dois se faz um debate permanente. O tema dominante não será técnico ou econômico, como se poderia supor. A grande preocupação de Remo se volta para a relação homem-mulher, contra “o amor sertanejo que escraviza”. O seu ideal é que as moças “aprendam a viver na intimidade dos homens sem amá-los”. Os conceitos de Remo antecipam práticas dos relacionamentos contemporâneos: “O amor é um brinquedo; a gente ama para distrair-se.” É o que ele afirma ao amigo e às personagens femininas da novela: Elsa Louro, Irma e Gracinha. De forte conteúdo simbólico, as três moças que interagem com os dois engenheiros. Elsa, de cabelos muito curtos, “cabeça de garoto”, como caracteriza o narrador, vive uma liberdade exibida, parecendo mais importante a exibição que o exercício de ser livre. Irma é a moça romântica, presa aos valores do passado, esperando um amor que não existe mais. E Gracinha, a mais jovem das três, segue sem saber por que nem para onde. É admirável a abordagem temática de José Américo, focalizada na perspectiva de mudança do padrão de comportamento feminino em relação ao homem. Em 1935, concretiza uma antecipação dos grandes conflitos que as mulheres iriam vivenciar, acentuadamente, a partir da segunda metade do século XX. Remo é o arauto dessas mudanças. E em cada diálogo emite um novo conceito, confrontando o estabelecido. A dona Flora, mãe de Gracinha, responde sem meias palavras: “De moça eu gosto. Não gosto é de namoro. E de amor muito menos.” E com Gracinha ele ainda vai mais longe: “Dá-se um beijo como se dá aperto de mão. É sinal de amizade. Amor é que é tolice...” Quanto às figuras femininas, ouso afirmar que, fracionadas em três, elas representam uma única personagem: o ser feminino que irá projetar-se na grande revolução do século XX, deixando de “Morar na janela! (......) prisão terrível, porque dá para a imensidão livre”, e conquistando o “direito à porta; sai quando quer e volta quando quer.” São metáforas da novela para exprimir o espaço a ser conquistado pela mulher, além dos limites domésticos em que vivia confinada. Lembro aqui a pergunta que me fez o mestre Juarez há mais de quarenta anos, testando minha compreensão desta novela: “Vo- SUMÁRIO 78 | M a g n o N i c o l a u ( O r g . ) cê é Irma, Gracinha ou Elsa?” Eu não tive dúvida em responder que era as três. Porque na luta para ultrapassar imposições de comportamento que lhe anulavam a identidade, para vencer a privação de liberdade que lhe “roubava o corpo e a alma”, a mulher não poderia abrir mão da grande realização no amor, que afinal era o sonho de Irma. Por vezes, foi preciso assumir o radicalismo de Elsa, até como forma de defesa ou de convencer a si mesma que era preciso mudar. E muitos passos foram incertos como os de Gracinha, sem a convicção de onde queria ou poderia chegar. Apesar do título, não é o processo de construção do açude que domina a narrativa. Mas as mudanças de costume operadas no sertão pela grande afluência de trabalhadores de diversas origens, pela presença estonteante das máquinas descomunais e pela quantidade de recursos que passam a circular, em razão dos salários e das compras que a obra propicia. É nesse contexto que se movimenta o grupo de jovens protagonistas da novela, organizando encontros, passeios, festas, onde Remo vai reiterando o discurso de que ama “pswwara desmoralizar o amor (.....) fruto que vai colhendo no caminho da vida; não se guarda para não apodrecer.” Até que, de repente, um telegrama anuncia a paralisação dos trabalhos. E é patética a reação de Remo, “convocando os sertanejos à reação coletiva.” No entanto, o que resta é “o boqueirão escancarado, a boca de fome dos sertões, o símbolo de séculos de penúria irreparável”. O boqueirão tem um desfecho trágico. A obra paralisada, com o desperdício de todos os recursos empregados, expõe uma ferida crônica da administração pública. Ferida braba que, há séculos, corrói e consome os destinos humanos. O escritor faz convergir para Irma o impacto de todas as consequências: “Ela despencou, sozinha, formando, com o corpo despedaçado, a barragem simbólica, amassada em sangue, fechando o boqueirão, num protesto vingativo de esperanças ludibriadas.” Hesitei em escrever essa leitura porque defendo a compreensão de que a atividade crítica deve consubstanciar a descoberta. Deve acrescentar. E eu não admitia que fosse possível dizer mais sobre O boqueirão do que está escrito pelo professor Juarez da SUMÁRIO Leituras Diversas: Crônicas, Ensaios e Contos | 79 Gama Batista, em A sinfonia pastoral do Nordeste. Ensaio de tamanha grandeza, na competência hermenêutica e na erudição, que redime a novela do esquecimento e já não se pode falar em falta de sorte. Fazendo a saudação ao ensaísta, em sua posse na Academia Paraibana de Letras, José Américo detalha os méritos dessa leitura transcendente: “O boqueirão é esquivo. E ele procurou sua percepção até possuí-la. A sinfonia pastoral do Nordeste reconheceu tudo o que se transformou em mito. Descobriu segredos; indicou como foram simbolizados certos movimentos e decifrou reticências. Identificou o que foi recriado do efêmero e por isso parecia inverossímil.” No entanto, a Fundação Casa de José Américo, quando reeditou O boqueirão, eliminou A sinfonia pastoral do Nordeste das duas publicações. Diante de gesto tão aberrante, talvez seja preferível nem imaginar as razões ou desrazões que o motivaram... O romancista, patrono desta casa, sabia o valor da leitura crítica. Recebeu o grande ensaio como um presente. E, encantado com o processo comparativo que professor Juarez desenvolve, fez o elogio à erudição, dizendo que o texto “como que foi escrito num canto iluminado dentro de uma biblioteca, lendo todos os livros ou dentro de um museu, olhando para todos os quadros”. O cuidado com a fortuna crítica tem sido a regra geral entre os escritores. No caso de José Américo, existem duas evidências dessa preocupação: a resposta que ele deu a Agripino Grieco, em defesa de A bagaceira e a iniciativa de reunir os textos que compõem o volume José Américo: o escritor e o homem público, organizado por Gonzaga Rodrigues e publicado pelo jornal A União, em 1977. Embora conte com alguns importantes destaques de publicação, ao longo de sua história, a Fundação Casa de José Américo tem sido um tanto negligente, no tocante à preservação da obra do patrono. Falta um programa consistente e continuado de divulgação. A ausência de José Américo como um dos autores estudados no vestibular da UFPB é inaceitável. Um grande empenho da Fundação, neste sentido, levaria o escritor a todos os professores e alunos do 2º grau. Também não me vem à lembrança nenhum seminário sobre algum dos seus livros ou debates sobre os temas de SUMÁRIO 80 | M a g n o N i c o l a u ( O r g . ) sua preocupação. E ações dessa natureza são prioritárias, pois este é o objetivo maior da Fundação. No entanto, temos visto, com tristeza, a proliferação de medalhes e diplomas, cujo valor simbólico vai se esvaziando pela prodigalidade. É hora de refletir sobre as prioridades e estabelecer linhas de ação que resultem cada vez mais no conhecimento da obra política e literária de José Américo. Com meu estudo de hoje, espero haver contribuído para uma primeira leitura de O boqueirão, facilitando o acesso ao elevado ensaio do professor Juarez, onde o reconhecimento dos mitos é mais que a descoberta do romance. É uma recriação. (Pronunciado na FCJA em 9 de março de 2010) SUMÁRIO Leituras Diversas: Crônicas, Ensaios e Contos | 81 FELIPE TIAGO GOMES: PALADINO DA EDUCAÇÃO COMUNITÁRIA BRASILEIRA Astenio Cesar Fernandes “Eu sou Felipe Tiago Gomes, nascido em Picuí, pequena cidade do Estado da Paraíba. Criança campesina descobrindo os encantos da natureza, eu contemplei o alvorecer em arrebol sangrento de sol. No meu imaginário infantil, guardo a lembrança do preá preso no fojo armado nas veredas, necessário à alimentação da gente de minha terra, desprovida de sustento. Recordo o tanger de muares em busca de água escassa e lembro-me ainda de caminhar quilômetros rumo à escola, tangendo sonhos. Mas um dia precisei partir da minha terra - a mais bela do mundo, porque é a minha terra. Parti tangido pelos meus sonhos. Ternos sonhos de esperança”. Inspirado em poetas da antiguidade, Horácio ou Ovídio, Felipe poderia ter escrito essa epístola destinada à posteridade. Mas preferiu não escrevê-la. Mesmo assim, hoje, sua energia sublime permanece nos campos de Picuí, voejando encantada sobre as serras. O fenômeno social da educação, processo de ensino e aprendizagem, comportando também as relações familiares, é desenvolvido na escola através de seus educadores, de forma intencional. Desse modo, a cultura apresentada por um determinado grupo social é preservada a partir do convívio dos indivíduos gerando socialização e endoculturação. Já o saber se inclui como meta da educação escolar, sendo elemento fundamental para o desenvolvimento humano, independentemente de ideologias. Assim, os filósofos ou pensadores da educação, aqueles que se ocupam intencionalmente da educação como objeto de reflexão ou de estudo, expressam teorias e definem procedimentos educativos. SUMÁRIO 82 | M a g n o N i c o l a u ( O r g . ) O direito à educação de um povo é papel essencial do Estado. Contudo, lamentavelmente, no princípio do século XX, o Brasil apresentava carência de escolas públicas e, consequentemente, não contemplava a demanda por escolaridade. Havia as escolas privadas, mas eram reservadas aos ricos. À época, poucos podiam ter acesso ao ensino público e gratuito. Assim, a escola pública, gratuita e de qualidade não passava de um sonho do ilusório liberalismo clássico. Nesse contexto, surgiu, em 1943, um movimento de estudantes secundaristas, liderado por Felipe Tiago Gomes, que culminou com a criação de um curso ginasial aberto às pessoas carentes. Aqueles estudantes não imaginavam que um dia essa célula de ensino não estatal, mas destinada ao povo, chegaria a ter milhares de alunos, em mais de mil escolas espargidas pelo Brasil. O movimento - embrião da futura Campanha Nacional de Escolas da Comunidade - assumiria proporções gigantescas e configurações passíveis até de crítica ideológica, com questionamentos à sua ação comunitária. Nesse sentido, o professor José Rafael de Menezes explica: “Um filósofo italiano, Frederico Sciacca, prefere o termo comunionismo a comunitarismo. Ao contrário do comunismo, o comunitarismo evolui como um processo social libertador dos seres humanos; não estatiza e não totalitariza”. Embora de natureza doutrinária, aquele movimento de idealistas ficou sempre alheio a quaisquer ideologias e conceitos de comunitarismo. No entendimento de Marco Túlio Cícero, “a história é a luz dos tempos, a contemporânea do gênero humano, a depositária dos acontecimentos, a testemunha da verdade, a alma das recordações”. Assim, no longínquo e inóspito Nordeste do Brasil, Felipe Tiago Gomes e seus companheiros inscreveram-se no cenário da educação nacional. Felipe seria, contudo, o eterno timoneiro da nobre causa. Por sua origem nordestina, Felipe enfrentou uma trajetória de vida pobre e difícil. Alfabetizado pela irmã Francisca, estudou depois em escola pública na sua cidade. No ano de 1936 ingressou no Colégio Pio XI, em Campina Grande, cidade polo da mesorregião paraibana. Fundou e presidiu em Picuí, em 1938, o grêmio lítero-cultural Humberto de Campos. No ano de 1941, após concluir o curso ginasial, transferiu-se para a cidade do Recife, no Estado SUMÁRIO Leituras Diversas: Crônicas, Ensaios e Contos | 83 de Pernambuco. Morando na casa do estudante, estudou no Ginásio Pernambucano. Em Recife, junto com outros alunos secundaristas, a partir da leitura de “O Drama da América Latina”, de John Gunther, inspirado nos ensinamentos de Víctor Raúl Haya de la Torre, criou a primeira escola. Haya de la Torre, político peruano de tendência nacionalista, participava de movimentos populares. Era vinculado às universidades populares Gonzalez Prada, instituições que, através de jovens universitários, educavam as camadas pobres da população, incluindo os índios. Aquele notável idealista valorizava o homem original. Assim, em diálogo descrito por John Gunther, designava a região com a expressão Indoamérica e não América Latina, numa distinção ao povo primitivo. Em “O Drama da América Latina, John Gunther fez a análise geopolítica dos países da América Latina. Ao abordar o Brasil, faz referências a personalidades políticas entre as quais inclui os paraibanos Epitácio Pessoa e Assis Chateaubriand. Foi, portanto, aquela iniciativa peruana que motivou o surgimento de um novo modelo de educação social no Brasil. Ao evoluir, esse molde careceu de recursos e se fortaleceu mesclando o ensino público, patrocinado pelo Estado, ao ensino privado, apoiado na comunidade. Dessa forma, voltado às camadas carentes da sociedade. Palco das ações de Felipe durante toda a sua existência, esse significativo modelo sustentou uma realidade infensa a tratado de ideias ou ideologia, embora comportando doutrina comunitária. Em meados do século XX, uma pesquisa social erudita, realizada pelo sociólogo estado-unidense Donald Pierson, introduzia o tema em nosso meio. De outra parte, o padre dominicano LouisJoseph Lebret, criador de um grande número de associações e autor da obra “Princípios para a ação”, visitava o Brasil, precisamente, no ano de 1954. Nesse mesmo período, afastando-se das teses eruditas desses educadores, Felipe e seus companheiros, com êxito, instituíam um pluralismo empírico, centrado na união de pequenos grupos nascidos na comunidade e que a ela se voltavam de maneira natural. Foram formados grupos de líderes que se reuniam, democraticamente, em conselhos assemelhados aos conselhos comunitários dos povos incas e maias, a exemplo do que também aconteceu na Grécia e em Roma, nas famosas audiências públicas. SUMÁRIO 84 | M a g n o N i c o l a u ( O r g . ) Nesse sistema, as pessoas da comunidade eram incluídas na escola, segundo assinala Ivanildo Coelho de Holanda: “O núcleo comunitário, ou setor local, tem como principal responsabilidade a criação e a manutenção da escola através de recursos da comunidade”. A partir desses setores locais, reunindo colaboradores abnegados, Felipe fomentou o ideário místico do cenecismo: entusiasmo, alegria de servir, emoção e fraternidade. Transmitia assim a mesma essência doutrinária exaltada pelo filósofo Henri Bergson: “A técnica precisa de um suplemento de alma ou então tudo se materializará no contraditório”. Pode-se avaliar o caráter visionário de Felipe e seus seguidores, observando, por exemplo, o que escreveu recentemente o educador Ulisses Ferreira de Araújo: “Nos projetos de educação comunitária que temos desenvolvido, os esforços da instituição e de seu corpo docente orientam-se através de duplo sentido: de fora para dentro da escola e de dentro para fora da escola. Trazer o que está fora da escola para seu interior significa sensibilizar o olhar de seus agentes - alunas e alunos, professores e professoras, funcionários - para o seu entorno”. Felipe não foi um teórico erudito da educação brasileira que buscava reformular o ensino ou implantar pedagogias para educandários, a exemplo de Anísio Teixeira ou Paulo Freire. Também não foi um ideólogo. Ao contrário, foi o dínamo a impulsionar um movimento atuante, destinado a implantar escolas no Brasil. Criou escolas poupando teorias (monografias ou teses) e outros suportes intelectuais que, às vezes, só servem para desperdiçar talentos e recursos. Nas escolas por ele idealizadas, os menos afortunados encontraram o caminho da cidadania por intermédio do ensino possível: professor, livro, lápis e caderno. Pouco nos importam teorias como liberalismo, neoliberalismo, socialismo e outros ismos. As discussões ideológicas de John Locke ou de Antonio Gramsci, igualmente, têm aqui pouca relevância. Importa-nos preservar a memória de Felipe Tiago Gomes, idealizador e guia de uma causa partilhada até o seu último momento de lucidez. Importa-nos, enfim, resgatar a saga do “pequeno marquês paraibano”. Pois, sua história, com exemplaridade, produziu valores e norteou destinos; edificou cidadania e merece honras. SUMÁRIO Leituras Diversas: Crônicas, Ensaios e Contos | 85 A FORMAÇÃO BACHARELESCA DOS NORTE-RIO-GRANDENSES NA FACULDADE DIREITO DE OLINDA1 Bruno Balbino Aires da Costa Até 1850 a grande maioria dos membros da elite brasileira foi educada em Coimbra,2 o que ocorreu de maneira diferente nos países da América que foram colonizados pela Espanha, em que o processo de formação intelectual se dava nas próprias colônias por meio da instalação de diversas Universidades locais. Segundo Sérgio Buarque de Holanda, dezenas de milhares dos filhos das elites coloniais da América Espanhola puderam completar seus estudos sem precisar transpor o Oceano.3 Portugal adotou uma postura diferente em relação à educação superior no Brasil. Em todo o período colonial, não houve a emergência de um sistema universitário a nível local, tendo em vista que os filhos das elites da colônia lusitana eram formados fora dos trópicos, tendo como destino a Metrópole, mais especificamente, a formação jurídica em Coimbra. Com o Brasil independente e a organização do Estado nacional, muitos filhos das elites imperiais ainda eram enviados a Coimbra, o que garantiu, ao longo da primeira metade do século XIX, “uma homogeneidade ideológica e de treinamento necessária para as tarefas de construção do poder nas circunstâncias históricas em que o Brasil se encontrava.”4 A formação jurídica em Coimbra deu a elite política brasileira as condições necessárias Esse texto faz parte do primeiro capítulo da minha tese que está sendo desenvolvida no Programa de Pós-graduação em História da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (PPGHIST/UFRGS). 2 CARVALHO, José Murilo de. A construção da Ordem: a elite política imperial. Rio de Janeiro: Editora UFRJ; Relume-Dumará, 1996. p.55 3 HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. 12 ed. Rio de Janeiro: José Olympio. p.65 4 CARVALHO, José Murilo de. Op.Cit. p.74 1 SUMÁRIO 86 | M a g n o N i c o l a u ( O r g . ) para o processo de construção e organização do Estado nacional a partir do sistema monárquico. Além disso, permitiu que a grande maioria dessa elite pudesse ocupar os cargos ligados ao funcionalismo público, sobretudo da magistratura e do Exército, o que possibilitou, segundo José Murilo de Carvalho, a homogeneidade ideológica, tão importante para a consolidação do Estado monárquico e o seu corolário: a preservação da unidade territorial.5 Todavia, no Brasil, durante a primeira metade do século XIX, houve uma inflexão no que concerne ao processo que hoje chamamos de educação superior. Com a construção do projeto constitucional de 1823, José Feliciano Fernandes Pinheiro, posteriormente, chamado de Visconde de São Leopoldo, propôs a fundação de uma Universidade em São Paulo. Como resultado dessa proposição, Antônio Rodrigues Veloso de Oliveira, Augusto Gonçalves Gomide e Manoel Jacintho Nogueira da Câmara assinaram o parecer que concluía um projeto de lei, mandando fundar duas universidades: uma, em São Paulo, e outra, em Olinda. 6 A necessidade de criar os cursos jurídicos nessas localidades atendeu aos interesses políticos surgidos com a emergência do Estado Nacional, suscitando “o delicado problema de autonomização cultural da sociedade brasileira, além da necessidade de formar quadros para o aparelho estatal.”7 O objetivo era, ao mesmo tempo, romper os laços de formação intelectual com Portugal, mais especificamente, Coimbra, e criar quadros para o aparelho governamental, exercendo o controle sobre o processo de formação ideológica dos intelectuais, futuros bacharéis, a serem recrutados pela burocracia estatal.8 A ideia do governo Imperial era fazer de São Paulo e Olinda centros regionais de formação jurídica, o que levou a irrupção de uma querela com o governo do Rio de Janeiro, interessado na cenIdem, p.33 LYRA, Augusto Tavares de. Cursos jurídicos de São Paulo e Olinda. In: Faculdade de Direito da Universidade do Rio de Janeiro. Livro do Centenário dos Cursos jurídicos (1827-1927). Tomo I. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1928. p.431 7 ADORNO, Sérgio. Os aprendizes do poder: o bacharelismo liberal na política brasileira. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988, p.81 8 ADORNO, Sérgio. Os aprendizes do poder: o bacharelismo liberal na política brasileira. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988, p.88 5 6 SUMÁRIO Leituras Diversas: Crônicas, Ensaios e Contos | 87 tralização do curso jurídico na própria Corte. 9 Não atendendo as pressões exercidas pelos representantes políticos do Rio de Janeiro, o Estado Imperial decidiu regionalizar a formação jurídica.10 Nesse sentido, as escolas de Direito foram estrategicamente criadas como centros regionais de formação, o que levou as províncias de São Paulo e de Pernambuco a se consolidarem como polos referenciais de educação jurídica para as províncias adjacentes. Tanto São Paulo como Pernambuco, durante o período colonial e no Império, já exerciam influências políticas e econômicas em nível regional, o que possibilitou também a eleição dessas províncias como centros de formação intelectual. Contudo, a instalação de cursos jurídicos nessas localidades não redundou necessariamente numa concentração exclusiva de formandos originários dessas províncias. Segundo o relatório do Ministro do Império de 1855, cerca de 70% dos estudantes das duas escolas de Direito de São Paulo e do Recife provinham de fora das províncias em que se localizavam as escolas, o que demonstra uma concentração regional e não provincial. 11 Tabela 1 Alunos formados pela Faculdade de Direito em Olinda entre 1832 a 1853 ORIGEM GEOGRÁFICA PORCENTAGEM Províncias do Norte 91,9% Províncias do Sul 6,9% De outros países 1,2% A tabela acima12 nos permite fazer algumas considerações importantes. Como amostra, fizemos um levantamento do número LYRA, Augusto Tavares de. Cursos jurídicos de São Paulo e Olinda. In: Faculdade de Direito da Universidade do Rio de Janeiro. Livro do Centenário dos Cursos jurídicos (1827-1927). Tomo I. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1928. p.431 10 CARVALHO, José Murilo de. A construção da Ordem: a elite política imperial. Rio de Janeiro: Editora UFRJ; Relume-Dumará, 1996. p.72 11 Idem. 12 Os números que levantamos na tabela acima foram retirados da lista que o jurista Clóvis Beviláqua apresentou em seu livro História da Faculdade de Direi9 SUMÁRIO 88 | M a g n o N i c o l a u ( O r g . ) de alunos formados entre 1832, da formatura da primeira turma da Faculdade de Direito de Olinda (FDO), a 1853, última turma formada pela FDO. A primeira consideração que apresentamos endossa a tese, que já mencionamos acima, de que a formação de bacharéis em Pernambuco não se concentrou exclusivamente nessa província, ressaltando o seu caráter mais regional do que provincial. Dos 41, da primeira turma formada em 1832, mais de 50% se concentrava fora de Pernambuco. Só a província da Bahia, a segunda em termos de alunos formados e que já contava com a faculdade de Medicina, desde 1808, teve quase a mesma quantidade de bacharéis formados de Pernambuco. A segunda consideração que evidenciamos é a presença de alunos fora do eixo da região Norte. As províncias de Minas Gerais, Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul faziam parte do ciclo de influência da Faculdade de Direito de São Paulo, mas dos quarenta e um alunos da primeira turma formada em Pernambuco, quatro vieram dessas províncias da região Sul. A priori, não sabemos quais as razões que motivaram Afonso Cordeiro de Negreiros Lobato, Firmino Pereira Monteiro, Sérgio Teixeira de Macedo e Antônio Manuel Fernandes Júnior - alunos advindos das províncias de Minas Gerais, Rio de Janeiro e do Rio Grande do Sul, respectivamente -, a elegerem a formação em Olinda em vez de São Paulo. Porém, vale ressaltar que a presença desses alunos “sulistas” demonstra que as fronteiras de formação bacharelesca não eram tão impermeáveis assim, ou exclusivamente regionalistas, muito embora os alunos vindos da região Sul para o Norte fossem exceções.13 A presença de alunos vindos das províncias do Sul para a faculdade de Direito em Pernambuco foi contínua, inclusive com a formação de discentes paulistas, como, por exemplo, Antônio Manuel de Campos Melo Júnior, graduado em 1854, José Pedro de to de Recife. BEVILÁQUA, Clóvis. História da Faculdade de Direito de Recife. Recife: Ed. Universitária da UFPE, 2012. (Coleção Nordestina ) pp.49-51. 13 Ressaltamos que o nosso objetivo não é compreender os fatores que motivaram esse fluxo da região Sul, da área de influência da Faculdade de Direito em São Paulo, para a região Norte e vice-versa. Não sabemos os números concernente a ida de alunos da região de Norte para o Sul, pois nosso objetivo nessa tese não é adentrar por essas discussões. SUMÁRIO Leituras Diversas: Crônicas, Ensaios e Contos | 89 Paiva Barracha, em 1868, e Emílio Ferreira de Abreu e Costa formado em 1886,14 o que respalda a nossa tese de que havia uma fluidez geográfica de alunos no que diz respeito à formação bacharelesca. Por motivos geográficos e econômicos, era mais provável que um jovem da Corte, por exemplo, tentasse ingressar na Faculdade de Direito de São Paulo, mas, por outros fatores que não tivemos a oportunidade de investigar, muitos escolheram Olinda e, depois, Recife. A terceira e última consideração que elucidamos diz respeito a formação jurídica dos norte-rio-grandenses que ao longo do século XIX, se ingressaram nas fileiras da faculdade de Direito em Olinda e em Recife. Instalada primeiramente em Olinda, em 15 de maio de 1828, no mosteiro de São Bento, a faculdade de Direito foi criada pela lei de 11 de agosto de 1827, que instituiu também o curso jurídico em São Paulo. 15 A primeira fase da Faculdade em Olinda, que vai de 1828 até 1854, quando a sede se transferiu para Recife, é marcada, do ponto de vista intelectual, pela pouca produção inovadora e pelas reproduções de obras jurídicas do estrangeiro, caracterizando o enraizamento do jus-naturalismo católico, devido às influências dos mestres religiosos.16 Segundo Odilon Nestor, não havia na Faculdade de Olinda nenhuma afirmação de ordem literária ou filosófica, tendo em vista que a forma do próprio ensino ministrado no curso jurídico caracterizou-se exclusivamente pelo aprendizado prático, não permitindo “nascer o gosto pelos problemas transcendentes e especulativos ou ainda pelos temas de puro interesse literário, que apaixonaram mais tarde a mocidade do Recife.”17 Do ponto de vista político, a Faculdade de Direito em Olinda foi alvo do controle exercido pelo governo imperial, que, por meio do Parlamento, aprovava os programas e os manuais dos cursos jurídicos, bem como nomeava os diretores e os professores, BEVILÁQUA, Clóvis. História da Faculdade de Direito de Recife. Recife: Ed. Universitária da UFPE, 2012. ( Coleção Nordestina ). P.123-279. 15 Idem, p.35 16 SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espetáculo das raças: cientistas, instituições e questão racial no Brasil – 1870-1930. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.p.146 17 NESTOR, Odilon. O papel cultural da Academia do Recife. In: Revista Acadêmica da Faculdade de Direito de Recife. Ano XXXV, Recife, 1927. p.139 14 SUMÁRIO 90 | M a g n o N i c o l a u ( O r g . ) responsabilidade esta conferida ao ministro do Império, resultando na centralização por meio da interferência direta do poder monárquico.18 Não obstante houvesse uma distância geográfica em relação à Corte, a administração curricular e burocrática dos cursos de Direito no Brasil era um reflexo da política centralizadora que a monarquia adotou ao longo do Império. Dessa forma, o governo Imperial regionalizou a instalação das faculdades de Direito, sem abrir mão da centralidade. Em se tratando do corpo discente da Faculdade de Direito em Olinda, este advinha majoritariamente das famílias tradicionais da região, tanto de Pernambuco como de outras províncias, vinculadas sobretudo, aos setores agrários, transformando rapidamente as faculdades de Direito em sedes das elites rurais dominantes 19 No Rio Grande do Norte, por exemplo, boa parte dos alunos que estudou na Faculdade no período compreendido entre 1832 até 1854, pertencia as famílias ligadas principalmente as áreas produtoras de açúcar, de algodão e da criação de gado.20 Dos aproximadamente mil alunos formados pelo referido recorte temporal, 2% vinham do Rio Grande do Norte. Dessa porcentagem, a maior parte advinha de Natal e de áreas vizinhas, como Goianinha, zonas de produção açucareira, e a outra parte do Seridó e da região Oeste da província, marcada pela economia pecuarista e algodoeira. Mas o que justificaria o investimento educacional que as famílias tradicionais da província do Rio Grande do Norte, como os Brito Guerra, Raposo da Câmara, Castelo Branco e Albuquerque Maranhão, e de outras regiões do Brasil, faziam para conferir aos CARVALHO, José Murilo de. A construção da Ordem: a elite política imperial. Rio de Janeiro: Editora UFRJ; Relume-Dumará, 1996. p. 72 19 SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espetáculo das raças: cientistas, instituições e questão racial no Brasil – 1870-1930. São Paulo: Companhia das Letras, 1993. p.14 20 Os dados levantados foram retirados do livro “Bacharéis de Olinda e Recife” de Raimundo Nonato. Segundo o autor, sua pesquisa durou mais de cinco anos. Raimundo Nonato registra ainda que pesquisou em bibliotecas, coleções de jornais revistas, cartórios, sacristias, arquivos, alfarrábios empoeirados, “além de consultas repetidas a trabalhos de quantos se têm dedicado ao estudo dos problemas históricos do Rio Grande do Norte.” NONATO, Raimundo. Bacharéis de Olinda e Recife (Norte-riograndenses formados de 1832 a 1932). Rio de Janeiro: Irmãos Pongetti. 1960. p.14 18 SUMÁRIO Leituras Diversas: Crônicas, Ensaios e Contos | 91 seus filhos uma formação jurídica? Por que não dá-los apenas a herança latifundiária, garantindo a perpetuidade dos negócios da família? Como resposta a essas questões é importante levar em consideração que nem todos os filhos da aristocracia eram enviados para completar seus estudos em Pernambuco. Geralmente, esse destino não cabia ao filho mais velho, que socialmente era “treinado” para dar continuidade aos empreendimentos da família, enquanto que aos demais restavam à formação religiosa ou o estudo, nesse caso, para se tornarem médicos, advogados ou se ingressarem no funcionalismo público, o que lhes possibilitava, geralmente, o ingresso nos negócios e nos quadros da política em municípios, províncias e até mesmo na Corte. Isso explica o motivo pelo qual as elites consideravam estimadas a profissão e a figura do bacharel. O prestígio não vinha necessariamente do curso jurídico em si ou da advocacia, mas “da carga simbólica e das possibilidades políticas que se apresentavam ao profissional de direito.”21 Entre 1832 e 1853, os bacharéis norte-rio-grandenses formados pela Faculdade de Direito, ainda instalada em Olinda, ocupavam os principais cargos públicos do Rio Grande do Norte. Dos vinte primeiros formados pela Faculdade, sete foram Deputados Provinciais, legislatura política que mais recebeu bacharéis no Rio Grande do Norte, outros se tornaram Juízes de Direito, Juízes Municipais, Presidentes de Província, Chefes de Polícia, Jornalistas, Ministros, Desembargadores e Promotores. Alguns bacharéis potiguares assumiram não só cargos políticos na província do Rio Grande do Norte, mas também fora dela como, por exemplo, José Joaquim Geminiano de Morais Navarro que foi Presidente de Província de Sergipe, Basílio Quaresma Torreão Júnior, desembargador da Província do Maranhão, e Luís Gonzaga de Brito Guerra, ministro do Supremo Tribunal de Justiça. 22 A atuação desses bacharéis em cargos públicos fora do eixo de sua província natal põe em relevo a configuração política do Brasil Império, caracterizado pela intervenção, pelo centralismo e SCHWARCZ, Lilia Moritz. Op. Cit. p.142 NONATO, Raimundo. Bacharéis de Olinda e Recife (Norte-riograndenses formados de 1832 a 1932). Rio de Janeiro: Irmãos Pongetti. 1960 21 22 SUMÁRIO 92 | M a g n o N i c o l a u ( O r g . ) pela concentração do poder.23 Entre outras prerrogativas, o Imperador poderia, através do Poder Moderador, nomear e demitir seus ministros e os presidentes de província, permitindo-lhe a centralização política e administrativa da Nação, desde a capital até as remotas unidades provinciais. A mobilidade territorial em que os presidentes de província estavam inseridos garantiria ao governo central o controle do poder a nível local, articulando os interesses do Império com os interesses dos poderes privados locais, demonstrando as ligações políticas entre as elites regionais com o poder central.24 Desse modo, a formação bacharelesca era importante não só para as pretensões políticas das elites provinciais, mas também para a concretização dos interesses políticos centralizadores da Corte.25 Ao bacharel havia uma dupla possibilidade de ingresso na esfera pública, pois poderia atuar a nível provincial/municipal ou obter uma abrangência maior, assumindo cargos públicos na Corte ou em outras províncias. O bacharel passou a ocupar os espaços da burocracia estatal em todos os níveis da administração pública. Embora alguns bacharéis norte-rio-grandenses tenham enveredado pela vida pública em outras províncias e na capital do Império, a grande maioria foi recrutada para assumir cargos públicos locais, muitas vezes ingressando simultaneamente em vários, garantindo a concentração de poder e a hegemonia política das elites provinciais, as quais os recém-bacharéis representavam no âmbito da administração e da gestão pública do Rio Grande do Norte. Dessa forma, a figura do bacharel constituiu-se como elemento mediador entre interesses privados e interesses públicos, entre o estamento patrimonial e os grupos sociais locais, criando uma ver- CARVALHO, José Murilo de. Federalismo e centralização no Império brasileiro: história e argumento. In: Pontos e Bordados: escritos de história e política. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 1998. p.169 24 RESENDE, Maria Efigênia Lage de. O processo político na Primeira República e o liberalismo oligárquico. In: FERREIRA, Jorge; DELGADO, Lucilia de Almeida Neves (orgs). O Brasil Republicano: o tempo do liberalismo excludente – da Proclamação da República à Revolução de 1930. 4ºed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010. p.94 25 ADORNO, Sérgio. Os aprendizes do poder: o bacharelismo liberal na política brasileira. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988. p.159-160 23 SUMÁRIO Leituras Diversas: Crônicas, Ensaios e Contos | 93 dadeira intelligentzia profissional liberal.26 Essa realidade não se modificou quando a Faculdade de Direito se transferiu para Recife, em 1854. 26Idem, p.78 SUMÁRIO 94 | M a g n o N i c o l a u ( O r g . ) MAL QUE FAZ O CIGARRO Carolina Corrêa Lins O cigarro é um aliado maléfico à saúde. É uma droga que, infelizmente, pode ser encontrada livremente no mercado. É inadmissível, nos dias atuais, o indivíduo não ser “sabedor” das consequências desastrosas que esse vício traz: com suas dependências psicológicas, as quais deixam o indivíduo submisso a uma dependência difícil de curar. Há também a questão do gasto financeiro que, em alguns casos, priva o usuário do cigarro de uma melhor alimentação, priva-o também de um passeio cultural, como ir ao teatro, comprar um bom livro, fazer uma excursão. Mas, certamente, o dinheiro para o fumo não falta. Outrossim, as sequelas na saúde são muitas, dentre elas os óbitos. As informações estão aí, através das campanhas educativas, nas redes de comunicações, como redes sociais, TV, revistas, jornais e outros. Nos séculos XVII, muitos jovens fizeram uso do cigarro como forma de chamar atenção, de sentirem-se modernos, mas eram despreparados quanto ao saber do perigo do fumar. Não se admite, hoje, alguém dizer que fumar é uma forma de relaxar. É lamentável ainda no século XXI um ser humano está preso a essa armadilha. É hora de refletir e lutar para extinguir esse ato de fumar, que não só faz sofrer a pessoa, como também a família e os amigos que convivem com o fumante. Esses conviveres, consequentemente, tornam-se um fumante passivo, sujeitos a pagar pelo ato sinistro, por estar ao lado daquele que é envolvido com essa droga lícita. Fumar não vale a pena: é um mal para si e para quem o ama, pois destrói a saúde. É triste existir o fumo. Viva com plenitude! É magnífico, é saudável, é louvável viver sem a droga do vício. SUMÁRIO Leituras Diversas: Crônicas, Ensaios e Contos | 95 O ESPELHO NOS CONTOS DE MACHADO DE ASSIS E GUIMARÃES ROSA: A CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE NOS PERSONAGENS MASCULINOS Cyelle Carmem O espelho, por vezes, é objeto de adoração; outras, necessidade básica e ainda de manifestação da verdade e do obscuro. Ele também é sinônimo de autoestima, de amor próprio e vaidade. Representa a verdade, a autocontemplação e reflexão do universo. No entanto, pode mostrar o puro, as coisas como elas são; por outro lado, pode deturpar a verdade, enganar. Diante de um espelho, o que você vê? Essa é a resposta que incessantemente desejamos obter. No conto O Espelho, de Machado de Assis, publicado no livro Papéis Avulsos, de 1982, Jacobina, o narrador, afirma haver duas almas: uma que olha de fora para dentro e outra, de dentro para fora. Acredita que uma completa a outra, e a “perda da alma exterior implica a de uma existência inteira”. O narrador conta que virou alferes e passou a ser paparicado pela tia Marcolina. O orgulho sentido pelo sobrinho era tanto que ela colocou um grande espelho no quarto em que Jacobina estava hospedado para que este se olhasse e se envaidecesse como alferes, alimentando seu amor próprio, mesmo vindo de uma posição social e não pessoal. Dessa forma, com a presença do espelho, o alferes eliminou o homem. Após três semanas, era exclusivamente alferes. Ao ficar sozinho, ainda não havia se olhado ao espelho. Após oito dias, decidiu vestir-se com a roupa de alferes e a imagem pareceu-lhe real, integral. Como sentia-se bem ao ver-se uniformizado, vestia-se todos os dias, a certa hora, e assim permanecia por duas ou três horas. O espelho no conto de Machado de Assis faz um duplo papel: ao mesmo tempo que dá vida ao alferes, rouba a identidade do SUMÁRIO 96 | M a g n o N i c o l a u ( O r g . ) homem Jacobina. A tia, orgulhosa de o sobrinho alcançar a patente nas forças armadas, previu o ponto de vista que o espelho teria, de exagerar, valorizar as qualidades e as características de exaltação de sua personalidade masculina. Ao se ausentar da fazenda e dos olhos do sobrinho, o espelho passa a fazer o papel da carinhosa parente, de paparicá-lo, de agradar seu ego. A partir daí, o espelho faz nascer o alferes, orgulhoso de si mesmo, digno de se vestir adequadamente com a farda tão ilustre. A psicologia explica que só vemos aquilo que nos interessa ver. Como os elogios, o tratamento especial e a adulação da tia contaminaram o inconsciente do jovem alferes, este só via a imagem eminente, antes tão valorizada. Diante disso, pode-se comprovar que Jacobina esquece-se de observar seu eu pessoal e foca apenas na personalidade masculina formada pelo uniforme. Neste momento, o espelho sequestra a persona e devolve o homem criado pela aparência social. Já no conto de mesmo título, de Guimarães Rosa, parte integrante do livro Primeiras Estórias (2005), assim como no conto supracitado, os fatos são experiências do narrador. Neste, o narrador afirma que há os espelhos bons e maus, os que favorecem e os que traem, como, por exemplo, as fotografias. Um dia viu-se no espelho e não se viu, nem como homem, nem como reflexo dele. “Eu era-o transparente contemplador?” “Voltei a querer encarar-me. Nada... eu não via os meus olhos. Seria eu um... des-almado?” Guimarães Rosa utiliza o espelho para fazer uma reflexão a respeito da busca de identidade da personalidade, modelo contrário ao existente no conto de Machado de Assis, que retrata um personagem que perdeu sua identidade em função de outra criada pela sociedade. Os dois contos abordam o tema “espelho” de pontos de vista diferentes, embora a meta seja a análise do próprio eu, a busca da identidade masculina e o reconhecimento de sua perda, seja através de substituições por personagens artificiais, seja por perda total de si mesmo, afetada por influências externas, como as crenças místicas. Assim, o espelho é um instrumento de diálogo consigo mesmo, incessantemente à procura de respostas para questionamentos imanentes do ser humano, da alma inquieta e sem acolhi- SUMÁRIO Leituras Diversas: Crônicas, Ensaios e Contos | 97 mento. Para satisfazer o ego masculino, os conceitos formados de si mesmo, quer sejam verdadeiros ou falsos, o homem busca encontrar uma maneira de ver-se como vê o outro, como se a distância permitisse a análise formal de uma imagem fora de si. Jacobina e o narrador de Guimarães Rosa são dois exemplos de uma dependência do olhar externo para si próprio. Não basta a consciência de identidade, de ser uma pessoa independente de qualquer coisa. Para se afirmar como existente, como algo valoroso, os personagens buscam a admiração externa a si, dependem de uma aprovação para continuar vivendo ou fazendo aquilo que vinham fazendo. O interesse dessas histórias é que a literatura se utiliza de um campo da psicologia para compor tramas complexas e intrigantes. Precisam se vir com outros olhos, além dos seus, precisam ser aceitos para o mundo alheio, como se não bastasse apenas aceitar a si próprio. A civilização ensinou o homem a conviver em sociedade e, para isso, é necessário haver uma aceitação mútua entre os seres. Quando essa aceitação não ocorre, sente-se vulnerável, receoso de ser expulso como membro de uma sociedade que se autoconsome, em diversos âmbitos, seja social, cultural e economicamente. Os homens já nascem com a condição de fazer parte de um grupo com suas regras de sobrevivência já definidas, preestabelecidas e imutáveis, na maioria das vezes. Quando alguém tenta destruir ou desvirtuar essas regras, o grupo pune, acorrenta e tiralhe a liberdade de ir e vir, como se seguir as regras impostas já não fosse uma forma de aprisionamento. Acostuma-se à ideia de que o ser humano é incompleto, imperfeito e, para que essa condição não se mantenha, a cultura de cada povo criou a dependência mútua de aceitação e aprovação uns dos outros. Jacobina sentia falta da admiração e paparicos da sua tia e de todos os seus empregados, e o narrador em Guimarães Rosa receia o julgamento alheio simbolizado pelo reflexo; o espelho representa a verdade, a autocontemplação e reflexão do universo. No entanto, pode mostrar o puro, as coisas como elas são; por outro lado, pode deturpar a verdade, enganar.no espelho e pelo medo do ocultismo. REFERÊNCIA SUMÁRIO 98 | M a g n o N i c o l a u ( O r g . ) ASSIS, Machado de. O Espelho (Esboço de uma teoria da alma humana). In: Obra Completa. Vol. II. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994. SUMÁRIO Leituras Diversas: Crônicas, Ensaios e Contos | 99 ESTOU PERDENDO O MEU FILHO Dimas Lucena “Estou perdendo o meu filho. O que eu faço para não perder o meu filho?” Me vi diante desse questionamento vindo de um pai visivelmente emocionado. Fui fazer uma palestra sobre o tema “Relação Pais e Filhos”. Fiz um enfoque teórico baseado em Piaget, falei sobre a questão dos limites e para sensibilizar abordei poeticamente a dimensão da afetividade. Logo após a minha fala a palavra foi facultada a plateia, foi quando um senhor disse que não conseguia mais ter um bom relacionamento com o filho. “Nós não conversamos mais, só brigamos, ele bate a porta, passa dias fora de casa, não sei o que fazer, eu sinto que estou perdendo o meu filho”. Foi quando apelou com a questão acima (“O que eu faço para não perder o meu filho?”). Infelizmente, respondi, não há uma resposta pronta. Não existe um manual: abra tal página que conterá determinada “instrução”. Mas, a resposta está dentro de cada um de nós. É uma construção existencial. Essa resposta pode ser encontrada nos princípios pedagógicos, por exemplo: o amor “exigente”, o ouvir, o diálogo, a empatia, a congruência. O amor pode ser ilimitado, mas precisa exigir limites de comportamentos, normas de convivência e respeito mútuo. Aliás, Paulo Freire colocou essa dimensão dentro da ciência pedagógica. “Quem não é capaz de amar os seres inacabados não é capaz de educar”. E o que são “seres inacabados”? Somos todos nós por toda a vida. Drummond ensinou como amar: “amar se aprende amando”, é “a beleza de ser um eterno aprendiz”, completou Gonzaguinha. Educar é um ato de amor e de permanente aprendizado. Ninguém erra porque ama, erra porque está aprendendo a amar. Ouvir é tão importante que “cura” as pessoas, é à base de qualquer Psicoterapia. Ao ser ouvida a pessoa sente-se respeitada, SUMÁRIO 100 | M a g n o N i c o l a u ( O r g . ) valorizada. Diálogo é uma prática raríssima no nosso cotidiano, pois vivemos em um mundo de monólogos, de relações de Poder, pessoas apenas falam, impõem ao outro a sua fala. Diálogo, literalmente, é o encontro de dois conhecimentos. Empatia é enxergar que existe outra Razão além da nossa, é preciso ver “o outro lado”, ou seja, está em sintonia plena com a outra pessoa. Não podemos ver o mundo apenas pelo nosso olhar. A “congruência” é a relação entre a Linguagem, o Pensamento e a Ação. Esses três elementos têm de ter coerência. De nada adiante pensar uma coisa, dizer ou fazer outra (como ocorre na política). Nós educamos não apenas pelo que dizemos ou queremos, mas principalmente pelo que praticamos. A palavra pode até ter força, mas é o exemplo que conduz. Finalizei fazendo uma questão para o pai. Pense comigo, se aqui ao invés de está reunido com os pais e mães, eu estivesse com os filhos e as filhas, talvez o seu filho estivesse me questionando: – Professor eu estou perdendo o meu pai. O que eu faço para não perder o meu pai? SUMÁRIO Leituras Diversas: Crônicas, Ensaios e Contos | 101 A ARTE COMO POLÍTICA E A POLÍTICA COMO ARTE: CONVERSA SOBRE A ORQUESTRA DO REICH Eduardo R. Rabenhorst1 No entender de George Simmel, embora do ponto de vista externo, conversar e discutir pareçam ser uma única e mesma coisa, a conversa se distingue da discussão na medida em que a primeira persegue um objeto que lhe dá sentido, enquanto a segunda é puro exercício de sociabilidade. A conversa, observa Simmel, vale por ela mesma, seu único propósito é manter a vivacidade da relação. A conversa, nesse sentido, é autorreferencial, não buscando nada que esteja fora dela. Numa discussão, uma verdade ou ao menos o acordo é o objetivo a ser alcançado. Numa conversa, ao contrário, o acordo não é o resultado, mas é algo que existe de antemão. O acordo é a própria condição da conversa. É na medida em que nos reconhecemos como iguais e que estamos dispostos a dar e a receber na mesma proporção, que nos colocamos a conversar. Isso talvez explique porque podemos “jogar conversa fora”, mas não uma discussão, ou mesmo porque podemos “conversar sobre futebol, política ou religião, mas não “discutir” sobre eles... Pois bem, o texto aqui se segue foi resultado da acolhida, incauta talvez, que fiz ao gentil chamado feito pelo professor Ibaney Chasin para “conversar”, na forma de uma pequena resenha, sobre o lançamento da tradução brasileira do livro do historiador canadense de cultura, Misha Aster, A orquestra do Reich (São Paulo: Perspectiva, 2012), do qual ele é um dos tradutores, além de ser autor de um instigante posfácio. Devo confessar que meus conhecimentos sobre o assunto do livro são praticamente insignificantes Filósofo e ensaísta, Eduardo Rabenhorst é professor de filosofia do direito da Universidade Federal da Paraíba e pesquisador do CNpq. Exerce atualmente o cargo de Vice-reitor desta mesma instituição de ensino superior. 1 SUMÁRIO 102 | M a g n o N i c o l a u ( O r g . ) e que não tenho outro propósito senão o de me lançar, com leveza, numa aventura sem contornos definidos. Aliás, é bem possível que minha leitura do livro em tela soe superficial aos ouvidos de muitos, mas pretendo ao menos que ela seja honesta. Como a maior parte das pessoas, gosto de arte, particularmente de música. Até cheguei a suspender minha área de atuação acadêmica que é a filosofia do direito para escrever uma dissertação de mestrado sobre o tema da morte da arte na Estética de Hegel, mas o assunto do livro que está sendo aqui lançado, para ser efetivamente objeto de uma discussão, mereceria um convidado mais capacitado. Porém, gosto de trocar ideias e vim até aqui movido com muita alegria para compartilhar minhas impressões sobre esse livro que fez-me refletir sobre muitos e diferentes assuntos aos quais passo imediatamente. O primeiro que eu gostaria de destacar é o fato de que a edição do livro resulta de uma parceria entre a UFPB e a editora Perspectiva, casa de edição ousada, fundada na década de 1960, por Jacó Guinsburg, com uma proposta editorial muito arriscada, primeiro de difundir a cultura judaica, em seguida, de abrir espaço para a divulgação da produção ensaística nas mais diversas esferas: artes, filosofia, literatura, linguística e ciências humanas, entre outras. Nesse sentido, como sublinha um dos tradutores da Orquestra do Reich, em sua nota prefacial, Rainer Patriota, é da maior importância o fato de que esta obra chega hoje às mãos do público brasileiro a partir de uma associação entre uma universidade pública, nordestina, situada em um dos estados mais pobres da Federação, com uma editora privada, de reconhecido prestígio, situada no Sudeste do país. É de se lamentar, no entanto, que essa parceria tenha sido negligenciada quase que por completo pela imprensa de outros estados, quando da produção das diversas resenhas sobre a aparição do livro, apesar dos veementes protestos do professor Ibaney Chasin e da reitoria da UFPB. Ainda sobre aspectos externos à obra, destacaria, em seguida, além do meticuloso trabalho de tradução, que cotejou o texto original de Misha Aster, escrito em inglês, com o texto da edição alemã, a importância de dois “peritextos” editoriais, para usar a expressão de Gérard Genette: a nota prefacial há pouco aludida, de Rainer Patriota, e o posfácio escrito por Ibaney Chasin. Funcionando como espaços intermediários entre o livro e seus leitores, SUMÁRIO Leituras Diversas: Crônicas, Ensaios e Contos | 103 esses dois comentários são importantes porque constroem uma “zona de transição” entre o texto original e o texto traduzido. Nessa intermediação, se encontram as questões, sugeridas pelo autor, mas por ele não diretamente enfrentadas, que concernem às afinidades entre arte e política (de modo mais abrangente); entre a música e a política (de modo mais particular); e, de maneira ainda mais pormenorizada, por fim, ao episódio específico da colaboração ideológica prestada ao nacional-socialismo alemão pelo maestro Wilheim Furtwängler e a orquestra por ele dirigida. Poderíamos assim resumir o enredo da obra de Misha Aster. O governo de um país que aspirava ser um grande reino compreendeu que tinha uma orquestra de enorme qualidade a seu dispor. Existia um funcionário sensível, com grande senso de responsabilidade cívica, que aceitou tornar-se líder dessa orquestra, tudo em nome da música. Seria talvez uma bela história, como muitos notaram, não fossem os fatos de que o reino em tela era O III Reich; que esse governo nazista implantou uma política autoritária e uma perseguição racial sem precedentes que culminou na morte de milhões de pessoas; e, por fim, que esse funcionário diligente, o maestro Furtwängler, emprestou seu talento e prestígio ao regime em troca de privilégios diversos para si e para os membros de sua orquestra. A grande contribuição da obra de Misha Aster, jovem historiador e musicólogo canadense, que também é dramaturgo, diretor cultural, produtor cultural, entre as muitas atividades que exerce, foi ter vasculhado de forma minuciosa os arquivos públicos e consultado uma grande quantidade de documentos privados referentes à Orquestra Filarmônica de Berlim, no período de 1933-1945. Nos seis capítulos que compõem A Orquestra do Reich, ele se debruçou sobre as relações de cumplicidade existentes entre a Orquestra e o Ministério da propaganda nazista, sobretudo no que concernia ao financiamento, definição da programação musical e das tournées, a escolha de maestros e solistas, entre outras coisas. Relações de cumplicidade, de fato, porque não se tratava de uma imposição, isto é, apenas de aceitar ingerências do Reich, mas de uma verdadeira adesão, movida a princípio por razões pragmáticas (uma orquestra à beira da falência que precisava sobreviver), mas que acabou por se tornar uma adesão ideológica, quando a Orquestra, para obter benefícios diversos, tais como prestígio, se- SUMÁRIO 104 | M a g n o N i c o l a u ( O r g . ) gurança financeira, aquisição de instrumentos e a dispensa do serviço militar, abraçou indiretamente os princípios e ideias propagados pelo nazismo, apresentando-se em cidades conquistadas pelo Reich, participando de eventos como o aniversário de Hitler e banindo de seu repertório compositores judeus. A principal crítica que se pode fazer ao livro é o tom por vezes justificador do autor em relação a essa cumplicidade. No epílogo do livro, Aster louva o espírito comunitário da orquestra e sua sagacidade política, fatores que teriam possibilitado tanto a passagem pelos doze anos de regime nazista como seu renascimento e continuidade após a derrocada do III Reich. A própria escolha pelos membros da orquestra, em 1954, de Herbert Von Karajan, duas vezes filiado ao partido nacional-socialista, como regente, é interpretada pelo autor como legítima e necessária. Focado exclusivamente nos aspectos administrativos, o livro de Misha Aster se abstém de analisar a política musical nazista, donde a observação de muitos críticos de que o autor, concentrando-se nos aspectos institucionais, em detrimento de uma discussão sobre a ética da responsabilidade artística, teria sido complacente com a Filarmônica de Berlim, que, por sinal, financiou parte de sua pesquisa. O autor se defendeu previamente anunciando, logo no início de seu livro, que diante da insuficiência de dados, ele não sucumbiria a especulações, deixando aberto os caminhos para uma posterior revisão bibliográfica. E são exatamente essas questões, não abordadas por Misha Aster, que se encontram na nota prefacial e no posfácio da edição brasileira. Nas duas extremidades do livro, portanto, Rainer Patriota e Ibaney Chasin exploram; o primeiro, de modo mais superficial; o segundo, de maneira mais perfunctória, as complexas relações que podem existir entre o nazismo e a música. Antes de iniciar a discussão sobre o conteúdo dessa duas peças, eu lembraria que a dimensão estética do nazismo hoje é bastante conhecida do público em geral. Sabe-se que um dos grandes efeitos no âmbito da política cultural alemã provocado pela chegada de Hitler ao poder foi a criação do Ministério da Propaganda comandado por Goebbels, homem de confiança do Führer. Filmes como Arquitetura da destruição, de Peter Cohen, exploraram bem as conexões estreitas existentes entre a arte e o nacional-socialismo, especialmente no que concernia à condenação da arte moderna SUMÁRIO Leituras Diversas: Crônicas, Ensaios e Contos | 105 como “arte degenerada”, e ao uso do cinema como propaganda da ideologia do nacional socialismo. Porém, só muito recentemente começamos a identificar as conexões do nazismo com outras formas de arte, como a dança, por exemplo. (Vide Laure Guilbert – Dançar com o III Reich). O caso específico do envolvimento da Orquestra Filarmônica de Berlim com o regime nazista também foi indiretamente objeto de um filme, Taking sides (Tomando partido – o caso Furtwängler, em português), de István Szabó, que anteriormente já havia tratado do tema da responsabilidade moral dos artistas durante o III Reich, em outra película, Mephisto, baseada num romance de Klaus Mann. A trama de Taking sides se desenvolve a partir do julgamento do maestro Furtwängler, acusado após a guerra de ter reforçado o regime nazista, em um dos muitos “tribunais de desnazificação” criados na Alemanha a partir de 1946 (foram instituídos 545 tribunais e julgados 900 mil casos). Ao término do julgamento, contando com muitos depoimentos em seu favor, Furtwängler foi absolvido, mas seu caso permaneceu emblemático no âmbito das discussões sobre o papel que os artistas podem ou devem exercer em um estado de exceção. O dramaturgo Ronald Harwood, cuja peça serviu de base para o filme Taking sides, ele próprio um sul-africano que deixou seu país natal em 1960, e se sentiu culpado por não ter tomado partido nas lutas contra o Apartheid, também é autor do roteiro do filme O Pianista, de Roman Polanski. Em outra peça de sua autoria, intitulada A Colaboração, ele analisa a relação entre a música e a política, e rememora a parceria existente entre Richard Strauss, compositor de Salomé e Rosenkavalier, com Stefan Zweig, o célebre escritor austríaco judeu que se suicidou no Brasil. Ora, estamos bem mais acostumados a pensar a política como arte do que a arte como política. Claro que sabemos que a arte é política. A arte é um fenômeno do social, participa de um espaço comum e interage com tudo que lá se encontra. A arte influencia o social e por este é influenciada. Contudo, não sabemos muito sobre que tipo de objeto político é a arte. E mais dificuldade temos ainda em conceber a música como objeto político, apesar da evidência de que a música tem o poder de agir fisicamente sobre nossos corpos. É que estamos mais habituados a pensar no poder das imagens, em decorrência do traço referencial destas, e menos no poder da SUMÁRIO 106 | M a g n o N i c o l a u ( O r g . ) música, que nos parece ser a mais espiritual e abstrata das artes. No entanto, a música sempre ocupou um lugar estratégico naquilo que podemos chamar de política simbólica, isto é, o uso organizado do simbólico na sociedade. A política simbólica é uma das maneiras empregadas pelo poder para manifestar sua presença e executar seu propósito. Nesse sentido, a música desempenha um papel importantíssimo na “liturgia política”, sendo constantemente mobilizada pelas instituições e movimentos sociais. Que se pense, aqui, no papel dos hinos nacionais, no caso do poder estatal, e em canções populares de protesto empregadas pelos movimentos sociais. A liturgia política busca construir a coesão de um grupo a partir de uma dimensão emocional. Obviamente, a capacidade da música, por exemplo, de construir essa comunidade ligada por laços emocionais não é uma propriedade intrínseca da música, mas é uma construção de sentido que se dá paulatinamente (aprendizado, repetição etc.). Pois bem, é exatamente sobre essa reflexão que incidem a nota prefacial e o posfácio de A Orquestra do Reich. Não se pode entender a relação entre a música e o nazismo apenas a partir da condenação da música degenerada. É bem verdade que o critério empregado pelos nazistas para banir determinados compositores era a origem semita. Contudo, sob a direção de Alfred Rosemberg, uma política musical nazista foi elaborada levando em consideração a herança folclórica alemã, a música verdadeiramente popular e o suposto gênio musical germânico que teria dado lugar a tantos talentos. Estou convencido, à guisa de conclusão, de que a Orquestra do Reich é leitura indispensável para aqueles que se interessam em pensar a arte como política e a política como arte. SUMÁRIO Leituras Diversas: Crônicas, Ensaios e Contos | 107 OCEANO POÉTICO DE FÁTIMA BARROS Elisalva Madruga Dantas Nesse texto, decidi falar, ainda que brevemente, sobre o fazer poético de Maria de Fátima Barros1, cuja sensibilidade e maestria me fascinam desde que li suas primeiras produções literárias. Ler a sua poesia, sobretudo as que se encontram reunidas, no livro, intitulado Certa poesia, a ser lançado brevemente em Portugal, é mergulhar em um oceano de palavras e maravilhar-se com a riqueza do significado, dos sentidos nele contidos. Palavras prenhes de suavidade, ternura, sonho, tristeza, esperança, remetendo-nos, portanto, para os mais variados sentimentos que inundam a alma humana, motivando por essa razão uma profunda empatia entre poeta e leitor. No entanto, ainda não repousa aí a riqueza da poesia de Fátima. Mais do que tudo, o que a engrandece é a forma como esses sentimentos são expressos; a maneira atenta, cuidadosa com que ela vai colhendo, nessa sua caminhada pelas águas da literatura, as palavras e imagens com as quais deseja por elas navegar com a segurança de um exímio “capitão do mar”, que “com seu (teu) pulso controla(s) o curso das redes ao mar” (Cf. Poema capitão do mar), sem perder, no entanto, o encantamento, o delírio, o sonho. Em outras palavras menos poéticas e mais pragmáticas, podemos dizer que Certa poesia é uma obra norteada ao mesmo tempo pela racionalidade e pela criatividade; pela razão e pelo sentimento, o que a torna por demais especial. Desde seu primeiro livro, Discurso das Águas, Fátima nos surpreende e encanta com a maestria de sua escrita, com a sua habilidade de manusear a palavra nos seus mais diversos níveis, criando com elas e a partir delas um mundo mágico de ideias pelo qual sai vagando, divagando e como uma sereia seduzindo-nos 1 Maria de Fátima Barros é pernambucana. SUMÁRIO 108 | M a g n o N i c o l a u ( O r g . ) com o seu canto para a profundeza de suas águas, onde vamos encontrar, à semelhança da profundeza oceânica, uma vasta riqueza. Imagens líquidas, fluidas, suaves, advindas das referências aos mares, oceanos, lagos, rios, ventos, sonhos contrapõem-se às imagens sólidas, duras, ásperas para as quais nos remetem as pedras, as rochas, o aço, os estilhaços, a fome, a seca, o silêncio dos cactos, corroborando, dessa maneira, o vai e vem do mar da vida, com suas ondas ora calmas, mansas, serenas, ora agitadas, turbulentas, inquietantes. Uma serenidade e uma inquietude que perpassam a poiesis de Fátima, conforme podemos depreender dos seus poemas metapoéticos, onde a exemplo de João Cabral de Melo Neto, de Carlos Drummond de Andrade, poetas entre tantos outros com quem dialoga, percebe-se a sua luta com o branco da página; sua angústia diante do limite ou da fluidez da palavra, muitas vezes pouco suficiente para traduzir o que se quer expressar, daí também a sua fé no poder do silêncio, tão recorrente em seus textos; o capinar das ideias ante o emaranhado das lembranças existenciais, e a busca do “equilíbrio geômetra” do qual nos fala Oswald de Andrade em seu Manifesto da Poesia Pau Brasil, sem o que a poesia perde sua especificidade. Citemos, como exemplo dessa harmonia entre forma de expressão e forma de conteúdo, o poema escritura, abaixo transcrito: habita as margens da escrita um silêncio alvo de poços e caligrafia. esboços de imagens e telas manuscritas o tempo calvo copia. SUMÁRIO Leituras Diversas: Crônicas, Ensaios e Contos | 109 Ainda na linha de diálogo, merece registro o entrelaçamento que estabelece entre poesia, música e pintura, seja através da própria sonoridade advinda das aliterações e assonâncias significativa e marcadamente presentes em seu texto, seja através dos próprios títulos dos poemas, ora relacionados com música (adágio, canção melancólica, cantilena, composição ao piano, interlúdio, intermezzo, prelúdio), ora com pintura (aquarela, branco-tela, desenho em koumac, gravura a lápis, paisagem campestre, pintura, quadro com pássaro), seja através das construções imagéticas, da fusão que operacionaliza entre imagens relacionadas com a poesia e com a pintura, diluindo, assim, qualquer possível fronteira entre as diversas manifestações artísticas, conforme podemos ver em inúmeros dos seus poemas, dentre o quais o que se segue: poesia sobre tela sossego de barcos no silêncio da página. o calor dos traços, a imagem vaga. calmaria de lago em frases esparsas. sob linhas e laços, o limite das águas. entre sonho e hiato, a paisagem rasa. em tom azul-claro, o poema deságua. Reforçam também esse entrelaçamento poético as variadas epígrafes que figuram na obra, confirmando a identificação poética de Fátima não apenas com os autores já mencionados, mas com vários outros, como Cecília Meireles, Ledo Ivo, Gaston Bachelard e Íris Murdoch. Isso tanto em termos ideológicos como em termos estéticos. Ideologicamente, podemos ressaltar o viés onírico da sua poesia, em sintonia com o que nos dizem as epígrafes extraídas, SUMÁRIO 110 | M a g n o N i c o l a u ( O r g . ) por exemplo, de Ledo Ivo (“No dia inumerável / os sonhos voam como pássaros.” Cf. Poema o pássaro ) ou Íris Murdoch (“Deixe que os sonhos venham / e nos visitem, como pássaros.” Cf. Poema redemoinho); a preferência pela introspecção e junto com ela a valorização do silêncio, conforme encontramos nas citações de Bachelard (“O interior sonhado é cálido, jamais ardente.”) e Minês Castanheira (“não vês que dizes mais com as tuas pausas / do que com as tuas palavras?”) que encabeçam, respectivamente, os poemas canção matinal e imagem; a preocupação com a fluidez e a fugacidade do tempo, traços que emergem da leitura dos seus versos, ecoando e reverberando as palavras de Drummond, constantes da epígrafe que introduz o poema olhar sobre a tela, em que lemos: “... o tempo que não enxergamos, o tempo irreversível, o tempo estático, / espaço vazio entre ramos.” Esteticamente, para além da preocupação formal, a partir da qual falamos de sua aproximação com João Cabral, com Drummond, podemos ainda assinalar a preferência, a exemplo também de Ledo Ivo, de Bachelard e dos poetas surrealistas pelas imagens relacionadas com peixe, água e tantas outras vinculadas ao universo marítimo, as quais, por sua vez, a nosso ver, corroboram ainda mais o ethos onírico, fluido, fugaz que emana da atmosfera poética dos seus textos, conforme poderá ver o leitor ao ler qualquer poema de Certa Poesia. Para ilustrar, porém, nossa observação, selecionamos como exemplo não apenas da presença dessas imagens na obra de Fátima, mas, praticamente, de quase todos os traços que falamos sobre sua poesia, sobretudo no que diz respeito à maestria do seu fazer poético, o poema que se segue e com ele finalizamos nosso comentário, não sem antes, ousarmos dizer, apropriando-nos das palavras de Bachelard, contidas na epígrafe que introduz o poema o pescador, que a presença marcante do elemento água e das imagens com ela correlacionadas dão ao universo poético de Fátima uma solenidade platônica. Eis o poema: cais nos livros, mares ancorados: o vento SUMÁRIO Leituras Diversas: Crônicas, Ensaios e Contos | 111 em redes e grades... nas marés, os barcos: dos náufragos, sons e sinais... tempo de peixes ilhados: à margem das velas, frases... vão batéis e parágrafos: no cais, lua e linguagem... Para mim, pois. ler a poesia de Fátima é navegar prazerosamente pelas águas ora calmas, ora agitadas do seu oceano poético. SUMÁRIO 112 | M a g n o N i c o l a u ( O r g . ) “CADA PROFESSOR QUER UMA COISA DIFERENTE...” Elizabeth Maria da Silva1 O processo de transição do ensino médio para o ensino superior é marcado, na maioria das vezes, por sentimentos de medo, dúvida, ansiedade e incertezas. É tudo muito novo para os recémingressos. Pensemos um pouco a respeito da escrita desses estudantes. No ensino médio, eles estudaram e/ou escreveram, possivelmente, gêneros textuais diversos, que circulam em diferentes esferas sociais, a exemplo de cartas, depoimentos, resenhas jornalísticas, crônicas, artigo de opinião, editorial, entre outros. Todavia, quando chegarem ao ensino superior, eles se depararão com gêneros específicos desse ensino: artigos acadêmicos, projetos de pesquisa, ensaios, monografia etc. Tendo em vista que estes últimos circulam e são produzidos na esfera acadêmica, é esperado que os estudantes não tenham familiaridade com os mesmos e, consequentemente, não saibam como produzi-los (MARINHO, 2010; FISCHER, 2010; FIAD, 2011, 2013). Surge, assim, uma tensão: os professores exigem produções textuais acadêmicas sem explicitar, em geral, os critérios que considerarão no momento da correção, partindo do pressuposto de que os alunos já saibam o que é esperado para escrever. Como eles (os alunos) não sabem, são mal avaliados pelos docentes. Instaurase, desse modo, um conflito entre as expectativas do professor e as interpretações do estudante em relação ao que está envolvido na produção escrita. Lillis (1999) ratifica a existência desse conflito, argumentando que as convenções da escrita não são transparentes para quem Professora da Universidade Federal de Campina Grande (UFCG) e doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). 1 SUMÁRIO Leituras Diversas: Crônicas, Ensaios e Contos | 113 faz parte da comunidade acadêmica, nem para quem pretende nela inserir-se, configurando-se, assim, no fenômeno que ela denomina de “prática institucional do mistério”. Nessa “prática do mistério”, teríamos o que Street (2010) denominou de “dimensões escondidas”, quando analisou as dimensões ocultas que subjazem à escrita de artigos acadêmicos. O autor (op. cit.) destaca que os critérios utilizados por orientadores, avaliadores de trabalhos submetidos a congressos e por revisores de periódicos nem sempre são explicitados para aquele que escreve, estando, portanto, “ocultos”. Nessa perspectiva, é como se os estudantes participassem, na academia, de um “jogo de adivinhação”, pois têm que descobrir quais são as expectativas do professor, ao solicitar determinada produção textual. Um dos estudantes que participaram como sujeito da pesquisa desenvolvida por Lea, Street (1998, p. 6), quando indagado sobre as suas atividades de escrita acadêmica, afirmou que era consciente de que a escrita para um professor particular era específica, diferenciando-se da escrita para outro docente. Sentia, desse modo, a sensação de que cada professor parecia querer algo diferente, embora solicitasse o mesmo gênero. A pesquisa dos autores evidenciou, assim, que a escrita dos estudantes variava não apenas conforme o curso e a disciplina, mas também de acordo com o professor, de modo que, às vezes, no interior de um mesmo curso, professores individuais tinham opiniões diferentes sobre a escrita. Essa variação na compreensão da escrita acadêmica aponta para a sua natureza complexa, bem como evidencia a necessidade que os estudantes têm de incorporar uma identidade discursiva, diferente da sua identidade biográfica (IVANIC, 1998 apud ZAVALA, 2009), com vistas a atender às exigências do âmbito acadêmico e, assim, poder ser reconhecido como um membro da academia por parte daqueles que têm o poder de fazê-lo, os agentes de letramento. Assumir uma identidade discursiva que não é a deles, que não reflete a imagem que eles têm de si, é um desafio para os estudantes: “Eu quero dizer muitas coisas neste ensaio, mas eles não querem ouvir”, desabafa um dos sujeitos da pesquisa desenvolvida por Lillis (2003, p. 203). Paula está satisfeita por ter aprendido formas acadêmicas, mas não se sente ela mesma, quando escreve. SUMÁRIO 114 | M a g n o N i c o l a u ( O r g . ) Ela escreve o texto com o conteúdo que é esperado institucionalmente, mas desabafa que vive um conflito: “Quero falar, me comportar e ser a mesma que antes e pensar da maneira que eles pensam” [familiares] – constatações de Zavala (2009, p.355), quando analisou uma série de entrevistas feitas com a estudante universitária Paula sobre a sua escrita acadêmica. Portanto, para que os estudantes universitários sejam reconhecidos e aceitos por aqueles que estão na posição de conceder o acesso à voz acadêmica, precisam assumir a identidade discursiva exigida, ainda que não comunguem com as especificidades constitutivas dessa identidade. No entanto, se, por um lado, os estudantes devem assumir a identidade discursiva acadêmica, por outro, os professores deveriam explicitar o que esperam das produções textuais acadêmicas dos seus alunos. É preciso também que fiquem “claros os motivos pelos quais algumas práticas são privilegiadas no domínio acadêmico em detrimento de outras, qual significado determinada prática de letramento tem nesse domínio, o que significa justificar e argumentar de acordo com as convenções escriturais da academia” (FIAD, 2011, p.363). Além disso, faz-se necessário, como sugere Lillis (2003), considerar o potencial dos talkbacks – um espaço para os estudantes refletirem sobre seu texto, dizerem o que gostam e o que não gostam da sua escrita. A utilização desse recurso pode contribuir para a aprendizagem dos estudantes, haja vista o processo de negociação que se estabelecerá entre professores e alunos no tocante aos elementos que estão envolvidos na produção textual. Por fim, entendemos que o professor que ensina a escrita acadêmica deveria cultivar o equilíbrio entre despertar a consciência crítica dos estudantes quanto às questões ideológicas e de poder que perpassam a produção dos gêneros e contribuir para que eles (os estudantes) dominem o componente linguístico-textual desse gênero, a partir da apresentação de atividades de leitura e escrita, bem como do exercício da reescrita dos textos. SUMÁRIO Leituras Diversas: Crônicas, Ensaios e Contos | 115 Referências FIAD, R. S. A escrita na universidade. Revista da ABRALIN, v. Eletrônico, n. Especial, p. 357-369. 2ª parte 2011. _________. Reescrita, dialogismo e etnografia. Linguagem em (Dis)curso, Tubarão, SC, v. 13, n. 3, p. 463-480, set./dez. 2013. FISCHER, A. Sentidos situados em eventos de letramento na esfera acadêmica. Educação, Santa Maria, v. 35, n. 1, p. 215-228, maio/ago. 2010. Disponível em: http://www.ufsm.br/revistaeducacao. Acesso em 28 de maio de 2014. _______. Práticas de letramento acadêmico em um curso de Engenharia Têxtil: o caso dos relatórios e suas dimensões escondidas. Scripta, v. 16, p. 54-67, out. 2011. LEA, M. R; STREET, B. V. Student writing in higher education: an academic literacies approach. Studies in Higher Education, Jun 98, Vol. 23. Issue 2, p.157, 16p. LILLIS, T. Whose ‘Common Sense’? Essayist literacy and the institutional practice of mystery. In: JONES, C.; TURNER, J.; STREET, B. (orgs.). Students writing in the university: cultural and epistemological issues. Amsterdam. John Benjamins, 1999. p. 127-140. ______. Student writing as ‘Academic Literacies’: drawing on Bakhtin to move from critique to design. Language and Education 17, 3: 192-207, 2003. MARINHO, M. A escrita nas práticas de letramento acadêmico. Revista Brasileira de Linguística Aplicada, Belo Horizonte, v. 10, n. 2, p. 363-386, 2010. STREET, B. Dimensões “Escondidas” na escrita de artigos acadêmicos. Perspectiva, Florianópolis, v. 28, n. 2, 541-567, jul./dez.2010. ZAVALA, Virgínia. “Quién está dicendo eso?” Literacidad acadêmica, identidade y poder em la educacion superior. In. KALMAN; STREET (Coord.). Lectura, escritura e Matemáticas. México: Siglo XXI. p. 348-363, 2009. SUMÁRIO 116 | M a g n o N i c o l a u ( O r g . ) CULTURA E POLÍTICA: UM DIÁLOGO POSSÍVEL Elizabeth Christina de Andrade Lima Iniciando a conversa Em 20 de fevereiro de 2001, quando realizamos a defesa de nosso doutorado, junto ao Programa de Pós-Graduação em Sociologia, da Universidade Federal do Ceará, cuja tese teve por objeto de estudo a invenção da Festa Junina do “Maior São João do Mundo” na cidade de Campina Grande, na Paraíba, e, posteriormente, tal tese foi publicada pela Editora Ideia, no ano de 2002, com o título: “A Fábrica dos Sonhos: a invenção da festa junina no espaço urbano”, um aspecto da festa, em particular, nos chamou atenção: o uso político desta manifestação cultural pelos políticos locais e seus prepostos. O que vimos nos discursos dos jornais, nas falas pronunciadas pelos agentes culturais locais, prefeitos e secretários de governos, foi toda uma exaltação da festa como uma iniciativa de seus gestores. Neste sentido percebemos como a festa pode ter um promissor uso político. Maquiavel, em sua obra, “O Príncipe”, já nos alertava para as benesses do “pão e circo” para controlar “a massa de súditos”. Pois bem, a partir desta constatação, surgiu-nos uma indagação que tem doravante estado presente em nossos estudos: tentar analisar e construir reflexões da prática política a partir do “olhar” da cultura, ou seja, pensar a política para além de sua visão institucional, para concebê-la como construída cotidianamente. O que queremos dizer com isto? Que a política, enquanto práxis cotidiana, nos oferece um imenso lastro de pesquisas temáticas, análises e reflexões que dizem muito a quem e como somos enquanto cultura brasileira. Vamos contar um pouquinho esta história. SUMÁRIO Leituras Diversas: Crônicas, Ensaios e Contos | 117 Por uma Antropologia da Política Na década de 1990, encerrado o regime militar e restaurada a democracia, os antropólogos brasileiros dirigiram o seu interesse para a área da política. Diversos trabalhos interessantes foram produzidos no período, tendo como foco principal análises etnográficas a respeito das práticas políticas, seja em pequenas localidades rurais, seja nas grandes metrópoles e centros urbanos. Estes trabalhos autodenominados de “antropologia da política” tiveram, inicialmente, a sua institucionalização mais importante no Núcleo de Antropologia da Política (NuAP), sediado no Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), mas envolvendo grupos em outras Universidades Federais, como as de Brasília, Ceará e Rio Grande do Sul. Atualmente, pesquisas que tentam aliar a cultura à política já existem em várias universidades brasileiras. No Nordeste merecem destaque as pesquisas realizadas na UFC, UFRN e UFBA. Na UFCG – Universidade Federal de Campina Grande, Desenvolvemos estudos no Grupo de Pesquisa do CNPq denominado: “Antropologia da Política, Cultura Midiática e Práticas Políticas”. Nesta agenda de pesquisa, privilegiamos os métodos de observação participante e as análises comparativas, buscando elaborar visões antropológicas sobre o lugar da política na sociedade e cultura brasileiras. Ou seja, partimos da premissa de que a política se constrói enquanto práticas e discursos no cotidiano da cultura, nas relações de vizinhança, nas mais variadas redes de sociabilidades, nos mass media, nas redes de trocas e de reciprocidades, na adesão estabelecida entre o político e o eleitor, na percepção dos variados significados que possui o voto e toda a teatralização em torno das campanhas eleitorais etc. Em análises, por exemplo, centradas nos momentos eleitorais em pequenas cidades no interior do Brasil, Moacir Palmeira e Beatriz Heredia têm desenvolvido o conceito de “tempo da política”, para designar os períodos em que a população percebe a política e os políticos como parte de sua vida social. Dessa forma, os autores chamam a atenção para a política tal como ela é experimentada dentro de um universo cultural e histórico específico. Os eleitores deixam, assim, de serem os seres abstratos que aparecem com frequência em análises formalistas da democracia. A investi- SUMÁRIO 118 | M a g n o N i c o l a u ( O r g . ) gação antropológica da política passa a concentrar-se não no isolamento de temas e fenômenos, mas justamente no seu entrelaçamento. Podemos escapar de julgamentos etnocêntricos sobre como votar certo ou errado, sobre se uma campanha é eticamente correta ou não, percebendo, em seu lugar, que existem diferentes percepções e práticas da política, cabendo ao pesquisador encará-las como concepções que nos ajudam a entender os agentes em jogo e suas ações. Sob essa perspectiva, temos realizado pesquisas sobre as representações do voto, tomando, como caso para análise, as motivações do voto em campanhas eleitorais. Para tanto, desenvolvemos a pesquisa intitulada: “Campanhas, Candidatos e Eleitores: as representações sociais sobre o voto nas eleições municipais de 2008 em Campina Grande – PB”, dentro de projeto PIBIC/CNPq/UFCG. Outros antropólogos, como Marcos Otávio Bezerra e Carla Teixeira, têm investigado a política dentro e fora do período eleitoral. Com os estudos do meio político, os autores mostram a vitalidade, por exemplo, da noção de honra e a importância atribuída às relações de caráter pessoal, mais do que opções ideológicas abstratas ou cálculos racionais individuais. Karina Kuschnir, por sua vez, pesquisa uma região suburbana do Rio de Janeiro onde a política é entendida principalmente como um meio de acesso aos recursos públicos, no qual o político atua como mediador entre comunidades locais e diversos níveis de poder. Esse fluxo de trocas é regulado pelas obrigações de dar, receber e retribuir, a que o antropólogo Marcel Mauss chamou de “lógica da dádiva”, e cujo princípio fundamental está no comprometimento social, para além das coisas trocadas, daqueles que trocam. Outro objeto de investigação de Karina Kuschnir são os chamados “rituais de comensalidade” em campanhas políticas. Estes são definidos como celebrações que encenam simbolicamente a eleição do político. São eventos marcados pelo consumo de bebidas e comidas por parte dos eleitores e candidatos. Os atos de comer e beber podem significar muitas coisas, inclusive uma declaração de voto. SUMÁRIO Leituras Diversas: Crônicas, Ensaios e Contos | 119 Comícios, shows, festas e leilões são outras formas lúdicas de fazer ofertas aos eleitores. A competição pela compra de frangos em leilões do Nordeste brasileiro, narrada por Marcos Lanna, mostra a disputa por prestígio entre os políticos e chefes locais. Ganha quem compra a maior quantidade de frangos, humilhando os adversários. O dinheiro arrecadado reverte para a paróquia e simboliza a “generosidade” do político. Já o estudo sobre as festas dos ranchões em Buritis (MG), investigada por Christine Chaves, trata dos eventos promovidos pelos partidos para festejar e promover seus candidatos. Diz o saber local que “ganha o partido que tiver a festa mais animada e o candidato que mais dançar”. Nos ranchões, elogia-se o político que “é capaz de comer do mesmo prato, beber do mesmo copo”; que “entra na casa, vai até a cozinha beber o café”; que “bate nas costas e paga bebida”. Ou seja, o político que se institui como um “igual ao povo”, que é uma “pessoa como qualquer um deles” e que, sobretudo, sabe “fazer festa” para o povo. Já Irlys Barreira observou que a visita do político à casa do eleitor muitas vezes é vista como homenagem e reconhecimento prestado pelo candidato ao dono da residência, visto como fonte de votos em potencial. Ser convidado ou “recebido” pelo eleitor é muito diferente de entrar na sua casa “atrás de voto”, como critica uma moradora de Fortaleza, entrevistada pela mencionada autora. Em nossas pesquisas temos tentado analisar alguns aspectos da prática política em nossa cidade. Para tanto, realizamos pesquisa intitulada: “Os Bastidores da Campanha Eleitoral e o uso do Marketing Político nas Eleições Municipais de 2008 na cidade de Campina Grande – PB” (PIBIC/CNPq/UFCG), cujo objetivo foi o de investigar as práticas políticas e a construção de campanhas eleitorais sob a perspectiva do marketing político, para discutir, do ponto de vista da cultura, os limites entre o lícito e o ilícito, entre o legal e o ilegal, durante uma eleição. Desenvolvemos ainda pesquisas a partir da relação entre gênero e política, através da análise dos discursos das candidatas a Presidência do Brasil, Dilma Rousseff e Marina Silva, no que diz respeito à atualização e construção do feminino em suas campanhas. O projeto teve como título: “A singularidade do feminino nas Eleições 2010: As Campanhas Eleitorais de Dilma Rousseff e Marina Silva” (PIBIC/CNPq/UFCG). SUMÁRIO 120 | M a g n o N i c o l a u ( O r g . ) Desenvolvemos ainda pesquisa sobre a construção de outras candidaturas femininas, em um outro projeto intitulado: “A construção da imagem pública das candidatas Tatiana Medeiros e Daniella Ribeiro, na campanha eleitoral de 2012, em Campina Grande-PB” (PIBIC/CNPq/UFCG). Outras análises por nós realizadas merecem destaque: estudo sobre as letras de jingles de campanha, nas Eleições 2008, em Campina Grande; o significado simbólico das charges de conteúdo político e da Literatura de cordel na construção de certos personagens políticos, como do ex-presidente Lula. Atualmente desenvolvemos pesquisa sobre “A construção da imagem pública das prefeitas eleitas da Paraíba, nas Eleições 2012” (PIBIC/CNPq/UFCG). Tal pesquisa partiu da averiguação de que pela primeira vez na história política do Estado, 49 mulheres foram eleitas para administrar municípios paraibanos e tal fato nos chamou a atenção, pois sabemos da condição de subrepresentação das mulheres em espaços de poder, principalmente na política. Como resultado das pesquisas citadas, publicamos o livro “Ensaios de Antropologia da Política”, no ano de 2011. Com base no exposto, e tomando de empréstimo o conceito de Karina Kuschnir, defendemos então que a “antropologia da política tem por objetivo entender como os atores sociais compreendem e experimentam a política, isto é, como interagem e atribuem significado aos objetos e às práticas relacionadas ao universo da política”. Pensamos a política e a sociedade em geral como “fruto da ação coletiva, isto é, de uma rede de pessoas que interagem e se influenciam reciprocamente por meio de relações complexas e dinâmicas”. Interessa-nos, enfim, ao propor o diálogo entre a cultura e a política, destacar “a dimensão simbólica, ou seja, a interpretação que os atores sociais fazem das instituições, relações e objetos com os quais lidam no seu cotidiano. Essa interpretação se exprime e se constrói tanto nas conversas, falas e discursos quanto nas decisões e ações empreendidas.” (KUSCHNIR, 2007, p.09) Assim nos descobrimos enveredando por estudos e pesquisas que tentam promover o diálogo entre a cultura e a política por acreditarmos que a política se gesta no cotidiano da cultura e se marca por valores, costumes e práticas rituais que atravessam os variados sentidos da práxis social que nos levam a ter visões muito particulares da política por elas estarem amplamente ancoradas no SUMÁRIO Leituras Diversas: Crônicas, Ensaios e Contos | 121 substrato da cultura. A toda essa relação de práticas e de significados, chamamos de Antropologia da Política. E esta nada mais seria do que um “olhar”, uma certa maneira de ver a política sob o prisma, as lentes da cultura, que inventa e reinventa, todo o tempo, sob a perspectiva simbólica, a figura do político e da política, mediada por uma ampla rede de sociabilidades e interesses gestados no dia a dia da cultura de seus atores. REFERÊNCIAS BARREIRA, Irlys. Chuva de Papéis: ritos e símbolos de campanhas eleitorais no Brasil. Rio de Janeiro, Relume Dumará, 1998. BEZERRA, Marcos Otávio. Em nome das bases: política, favor e dependência pessoal. Rio de Janeiro, Relume Dumará, 1999. CHAVES, Christine de Alencar Chaves. Festas da Política: uma etnografia da modernidade no sertão (Buritis-MG). Rio de Janeiro, Relume Dumará, 2003. HEREDIA, Beatriz; TEIXEIRA, Carla & BARREIRA, Irlys (org.) Como se fazem eleições no Brasil. Rio de Janeiro, Relume Dumará, 2002. KUSCHNIR, Karina. O cotidiano da política.Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 2000. __________. Antropologia da Política. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 2007. LANNA, Marcos P. D. A Dívida Divina: troca e patronagem no Nordeste brasileiro. Campinas-SP, UNICAMP, 1995. LIMA, Elizabeth Christina de Andrade Lima. Ensaios de Antropologia da Política. Campina Grande, EDUEPB, 2011. MAQUIAVEL. O Príncipe. São Paulo, Editora Martin Claret, Coleção a obraprima de cada autor, 2005. MAUSS, Marcel. Sociologia e Antropologia. São Paulo, EPU, 1974. PALMEIRA, Moacir & HEREDIA, Beatriz M. de. Política ambígua. Rio de Janeiro, Relume Dumará, 2010. PALMEIRA, Moacir & GOLDMAN, Marcio. Antropologia, voto e representação política. Rio de Janeiro, Contra Capa Livraria, 1996. TEIXEIRA, Cristina. A honra da política: decoro parlamentar e cassação no Congresso Nacional. Rio de Janeiro, Relume Dumará, 1998. SUMÁRIO 122 | M a g n o N i c o l a u ( O r g . ) PADRE IBIAPINA Ernando Luiz Teixeira de Carvalho Quem foi mesmo Padre Ibiapina? O que pode representar para nós a sua vida, sua ação e sua mensagem? Comecemos pelo começo! José Antônio Pereira Ibiapina foi o terceiro dos filhos de Francisco Miguel Pereira e Thereza Maria de Jesus. Nasceu aos 5 de agosto de 1806, no município de Sobral, na então Província do Ceará. Por algum tempo a família residiu na povoação de Ibiapina, na serra da Ibiapaba, cujo nome Francisco Miguel acrescentou depois ao seu e ao dos filhos. Por motivo de trabalho do pai, a família mudou-se para Icó, mais tarde para a cidade do Crato, vila de Jardim, novamente o Crato e, em seguida, Fortaleza. Aperfeiçoando seus estudos na capital, José Antônio seguiu em 1823 para o Seminário de Olinda. Ficou apenas 35 dias no Seminário, tendo sido chamado pelo pai, por causa da morte da mãe. Ibiapina estava nos seus 17 anos e cinco meses. O jovem permanece em Fortaleza com os irmãos, enquanto o pai se envolve cada vez mais no movimento político de 1824: a Confederação do Equador. Francisco Miguel Pereira Ibiapina foi um dos 8 deputados eleitos para a República do Equador. Com o fracasso do movimento revolucionário, o pai foi condenado e executado em praça pública, em Fortaleza, aos 7 de maio de 1825. Seu irmão mais velho, Alexandre Raimundo Pereira Ibiapina, mandado para prisão perpétua em Fernando de Noronha, morreu pouco tempo depois. Em 15 de outubro desse mesmo ano, seu primo e cunhado, Otaviano Néri Pereira, foi assassinado e sua irmã mais velha, Francisca Maria da Penha, ficou viúva com apenas dois meses de casada. Os bens paternos foram confiscados pelo governo imperial e todos ficaram na mais reduzida pobreza. Assim, aos 19 anos de idade, mesmo com apoio e solidariedade de familiares e amigos, Ibiapina teve que assumir os destinos da família. Sem perder o juízo nem a fé, o jovem segue firme na reorganização da SUMÁRIO Leituras Diversas: Crônicas, Ensaios e Contos | 123 própria vida e dos irmãos menores. Tudo encaminhado volta para Pernambuco e entra pela segunda vez no Seminário, com matrícula no dia 3 de fevereiro de 1828. Nesse ano de 1828 estabeleceu-se o curso jurídico de Olinda, tendo iniciado as aulas no dia 2 de junho. Ibiapina inscreveu-se, foi aprovado nos exames preparatórios e tentou conciliar os dois cursos. Sobrecarregado, em 5 de agosto deixou o Seminário para seguir apenas o Direito. Está, então, com 22 anos completos. Encontrando sérias dificuldades em razão de sua falta de recursos, esteve a ponto de abandonar os estudos. Animado e auxiliado pelos companheiros, porém, prosseguiu em sua meta e, no ano de 1832, obteve o título de Bacharel em Ciências Sociais e Jurídicas. José Antônio Pereira Ibiapina fez parte, assim, da primeira turma de advogados do curso de Olinda e estava com 26 anos de idade. No mesmo ano foi nomeado professor substituto e interino para lecionar Direito Natural no curso que acabara de concluir. No ano seguinte, 1833, foi eleito 1º. Deputado à Assembleia Geral pela Província do Ceará e logo nomeado Juiz de Direito e Chefe de Polícia da comarca de Quixeramobim-CE. Diz o cronista do tempo que “um título pomposo, um emprego prestigioso e uma comissão importante punham o jovem Dr. Ibiapina em contato com as grandes e principais notabilidades do Império. Os seus conhecimentos das letras humanas e seu talento portentoso, a sua fácil dialética, a sua dicção florida e poética, eram acessórios que lhe abriam um vasto horizonte na representação nacional... e o futuro lhe sorriu cheio de sedutoras esperanças; ele creu e tomou assento na Câmara dos Deputados no ano de 1834. A sua missão, porém, era mais nobre”1. O jovem deputado estava nos seus 28 anos, intensamente vividos. O nosso Dr. Ibiapina não se dava por satisfeito e, como escreveu o mesmo cronista da época, observava: “Desde o Chefe da Nação até o último dos magistrados não vejo senão fingimentos, mentiras e traições”. E o cronista continua: “Todas as paixões se tinham feito aceitáveis em política, o vício era igual à virtude, o patriotismo ao egoísmo, a probidade à hipocrisia; e só se distinguiam os indivíduos pela força de suas bajulações e maior servilismo”2. No cargo de Juiz também logo Carvalho, Ernando Luiz Teixeira de. A Missão Ibiapina. Passo Fundo: Berthier, 2008, pp. 28-29. 2 Idem, pp. 29-30. 1 SUMÁRIO 124 | M a g n o N i c o l a u ( O r g . ) percebeu, não obstante suas tentativas de instruir os jurados, organizar o judiciário e impor a Lei, que prevalecia sobre a força bruta e as ameaças dos poderosos. Desse modo, tendo sido nomeado em dezembro de 1833, renunciou ao cargo em dezembro de 1835. Percebendo e sentindo a vida pública dessa maneira, como poderia Ibiapina continuar como juiz ou permanecer na política?! Terminou seus 4 anos de mandato, em 1837, e não quis mais concorrer nas eleições seguintes. Aos 31 anos de idade, portanto, deixou a Corte, desgostoso e decepcionado. Concluídos os trabalhos legislativos, voltou a Pernambuco para seguir com a profissão de advogado. Logo em 1838 foi chamado a atuar na cidade de Areia-PB, onde permaneceu por uns dois anos. Pela sua atuação no lugar, rapidamente, começou a ganhar fama e crédito. Concluídos os trabalhos na Paraíba, voltou à cidade do Recife, em 1840, onde continuou exercendo a advocacia. Independente, estava com 34 anos de idade. No tempo, o Dr. José Ibiapina foi considerado por todos como excelente profissional do Direito. Este conceito admirável é expresso, sinteticamente, nas palavras do Dr. Paulino Nogueira, desembargador da Justiça, seu contemporâneo e primeiro biógrafo: “Se como civilista podia encontrar honrosa competência, como criminalista era sem possível rivalidade. Suas orações eloqüentes na tribuna judiciária serviam de modelo à mocidade e garantiam-lhe sempre esplêndido triunfo”3. Mas ele mesmo ainda não estava satisfeito e, depois de perder uma causa que considerava vitoriosa, “retirou-se do mundo”, no ano de 1850, procurando a solidão. O tempo corria e o Dr. Ibiapina já estava nos seus 44 anos. Tendo abandonado a advocacia, desfezse de quase todos os seus pertences e foi morar no sítio que possuía em Caxangá, nos arredores do Recife. Em princípios de 1853 vendeu a pequena propriedade e mudou-se para o centro da cidade, com duas de suas irmãs. Nessa época, começou a frequentar o convento da Penha, dos frades capuchinhos, onde participava das missas e de outros atos religiosos. Esta aproximação franciscana, por meio dos frades, parece ter sido decisiva para sua ordenação sacerdotal e rigorosa vida missionária que assumiu depois. 3 Nogueira, Paulino. Padre Ibiapina. RIC, n. 2, 1888, p.196. SUMÁRIO Leituras Diversas: Crônicas, Ensaios e Contos | 125 Ibiapina estava com 47 anos incompletos quando foi ordenado padre, aos 3 de julho de 1853. Diz o cronista que “estudando e aprofundando-se nas virtudes, passou três anos na solidão, até que, purificada a sua alma e repartidos os seus bens, recebeu, aos 3 de julho de 1853 ... o sacro Presbiterato”4. Algum tempo depois, entendendo sua feliz mudança de vida como proteção da Santíssima Virgem, trocou seu sobrenome Pereira por de Maria, passando a assinar-se Pe. José Antonio de Maria Ibiapina. Em obediência ao bispo, aceitou os cargos de Vigário geral da diocese e de professor de eloquência sagrada do Seminário de Olinda, durante dois anos. Ele poderia, então, ter se contentado com o status clerical alcançado, com uma promissora carreira eclesiástica, com uma tranquila vida de padrefuncionário da máquina administrativa da Igreja e do Estado. Seu desejo maior e vocação, porém, era a vida missionária. Sua realização começou no ano de 1856, quando a epidemia do cólera alastrava-se em Pernambuco e províncias vizinhas. Nesse tempo, Ibiapina dirigiu-se do Recife para o interior da província e, na região da serra de Taquaritinga, começou suas atividades na pequena povoação de Gravatá do Jaburu, hoje Gravatá do Ibiapina. Ali deu início a um pequeno hospital para atendimento dos coléricos, a uma capela dedicada a Nossa Senhora da Conceição e a um açude. Com as notícias do cólera assolando o brejo paraibano, Ibiapina seguiu na direção de Campina Grande, na Paraíba, e daí em diante nunca mais parou. Em 1856 o nosso padre está com exatos 50 anos de vida. Já com essa idade, em intensa peregrinação missionária, Ibiapina irá percorrer a pé ou a cavalo cinco províncias nordestinas: Pernambuco, Paraíba, Rio Grande do Norte, Ceará, indo até Picos no Piauí. Ele procurou, no seu tempo, associar suas pregações às necessidades materiais e sociais do povo mais sofrido. Em menos de 20 anos de missão itinerante construiu ou deu início, com o povo em mutirão, a açudes, igrejas e capelas, cemitérios, cruzeiros, escolas, casas para tratamento de doentes ou hospitais e 22 Casas de Caridade5. Cf. A Missão Ibiapina, p. 33. No Ceará foram 6 Casas: Milagres, Barbalha, Missão Velha, Crato, Sobral e Santana do Acaraú. Em Pernambuco, 3 Casas: Gravatá do Jaburu (do Ibiapina), Bezerros e Triunfo. No Rio Grande do Norte, 3 Casas: Mossoró, Açu, Acari (transferida para Extremoz). Na Paraíba foram 10 Casas: Areia, 4 5 SUMÁRIO 126 | M a g n o N i c o l a u ( O r g . ) De todas as suas realizações, as Casas de Caridade foram consideradas como as de maior vulto e alcance social. Sua palavra e exemplo de vida tinham força para convencer, unir, converter e transformar as pessoas que participavam das missões. Assim, com entusiasmo e dedicação de muitos, surgiam as obras e as pessoas vocacionadas para garantir seu funcionamento. Com as forças vivas do lugar, era criada uma diretoria, muitas vezes com a participação do vigário local, para administrar a Casa e garantir os recursos necessários à sua sobrevivência. Para a organização interna foram surgindo moças e mulheres que atendiam aos apelos de Deus através do seu chamado direto e que, com o tempo, deram origem a uma irmandade com a missão de cuidar e educar órfãs, de acolher doentes e necessitados. Surgiram, assim, aquelas que ficaram conhecidas pelo nome de “Beatas do Padre Ibiapina”. Também surgiram os “Beatos”: homens que se consagravam à missão para ajudar as Casas, sobretudo nos trabalhos mais pesados, cuidando dos roçados, dos animais e destemidos nas andanças para o peditório das esmolas6. Tudo isso acontecia porque, como diz o cronista, “Ele tinha um tesouro escondido, mas não para si, porque era livre de interesse próprio, mas que, reverberando em chamas de amor divino, repartia-se prodigamente a todos que fosse preciso, sem excetuar sexo, estado, condição ou idade”7. As Casas de Caridade tiveram um estatuto próprio para regular o estudo das letras, a iniciação ao trabalho, o ensino das chamadas prendas domésticas e os rudimentos de agricultura, além da educação cristã para que tudo convergisse na formação de uma boa esposa e mãe de família, uma mulher empreendedora e com princípios morais. E envolvendo centenas de pessoas, sem sua presença constante, porque a missão era peregrina, as Casas de Caridade seguiam em sua marcha. Então, vale ressaltar mais uma vez o que escreveu o cronista: “Quem poderá descrever todas as particularidades dos dons do coração do nosso Santo Apóstolo Ibiapina? Um coração angélico, puro, simples, casto, humilde, desinteressado, benfazejo Alagoa Nova, Pocinhos, Campina Grande, Cabaceiras, Parari (Pombas), Santa Luzia, Souza, Cajazeiras e Arara (Santa Fé). 6 Cf. Carvalho, Ernando Luiz Teixeira de. “Ibiapina e seus Beatos”, in Revista Eclesiástica Brasileira - REB, fasc. 280, outubro, 2010, p. 886-909. 7 A Missão Ibiapina, p.42. SUMÁRIO Leituras Diversas: Crônicas, Ensaios e Contos | 127 e tão dedicado ao amor de Deus e do próximo, que era abrigo seguro da orfandade, remediador dos infelizes, consolador dos aflitos, enternecido das misérias humanas...”8. Vivemos outros tempos e outras são as iniciativas e realizações para os desafios de hoje. Nada, porém, diminui a importância, o valor, o significado da vida e da ação do nosso Padre Mestre. O reconhecimento da grandeza de sua ação missionária, pedagógica e civilizadora, de qualquer forma, não faltou ao longo do tempo, mesmo com o declínio e extinção das Casas de Caridade. Ele continua sendo um referencial, um ponto de luz, enquanto a terra clamar pelo flagelo das crianças abandonadas e do aborto, pela exploração do trabalho infantil e da prostituição, pela violência contra a mulher, pelo tráfico de pessoas... Os atuais movimentos em prol da criança, do adolescente e da mulher não dão conta de erradicar tantos problemas. Ibiapina pode ser considerado precursor de uma infinidade de movimentos e organizações que, atualmente, tentam minimizar os males que atingem nossas populações marginalizadas, exploradas e empobrecidas. Falecido no dia 19 de fevereiro de 1883, aos 77 anos de idade, na Casa de Caridade de Santa Fé, hoje Santuário, entre as cidades de Arara e Solânea, ele continua inspirando missionários e missionárias do nosso tempo. Padre Ibiapina está em processo de canonização e já foi declarado por Roma como Servo de Deus, podendo ser cultuado por suas altas virtudes. Seu espírito inquieto e realizador nos convida a prosseguir na Missão, para que aconteça o milagre da solidariedade, da partilha, da justiça, do perdão, da fraternidade, da caridade como o grande sinal do amor de Deus no meio do mundo. O tempo de Ibiapina ainda não terminou! Referências ARAÚJO, F. Sadoc de. Padre Ibiapina: peregrino da Caridade. São Paulo: Paulinas, 1996. BARROS, Luitgarde Oliveira Cavalcante. “A ação modernizadora do Padre Ibiapina”, in Boletim do Instituto Cultural do Cariri, Juazeiro do Norte, n. 12, 1985. 8 Idem, p.42. SUMÁRIO 128 | M a g n o N i c o l a u ( O r g . ) CARVALHO, Ernando Luiz Teixeira de. A Missão Ibiapina – A crônica do século XIX escrita por colaboradores e amigos do Padre Mestre, atualizada com notas e comentários. Passo Fundo-RS: Gráfica Berthier, 2008. CARVALHO, Ernando Luiz Teixeira de. “Ibiapina e seus Beatos”, in Revista Eclesiástica Brasileira - REB, outubro, 2010, p. 886-909 e Revista do Instituto Histórico e Geográfico Paraibano - RIHGP, Ano C, n.41, dezembro, 2010, p. 63-83. CARVALHO, Gilberto Vilar de. “O Padre Ibiapina, um homem que viveu e morreu pelo seu povo”, in Revista Eclesiástica Brasileira - REB, março de 1983. COMBLIN, José. Instruções espirituais do Padre Ibiapina. São Paulo: Paulinas, 1984. DESROCHES, Georgette e HOORNAERT, Eduardo (org.). Padre Ibiapina e a Igreja dos pobres. São Paulo: Paulinas, 1984. JÚNIOR, Luis Araújo Pinto. “O padre Ibiapina, precursor da opção pelos pobres na Igreja do Brasil”, in Perspectiva Teológica, Belo Horizonte, 2002, n.34, p.197-222. MARIZ, Celso. Ibiapina – Um Apóstolo do Nordeste. João Pessoa: Editora Universitária/UFPB, 2a. ed., 1980 (primeira edição 1942). NOGUEIRA, Paulino, “O Padre Ibiapina”, in Revista do Instituto do Ceará RIC, n. 2, 1888, pp. 157 – 220. SUMÁRIO Leituras Diversas: Crônicas, Ensaios e Contos | 129 A ESCRITA NO REFERENCIAL CURRICULAR NACIONAL PARA A EDUCAÇÃO INFANTIL Evangelina Maria Brito de Faria Este ensaio é dirigido especialmente a professoras e formadores de professoras da Educação Infantil. Em particular, queremos discutir a proposta do Referencial para o trabalho com a escrita nessas séries iniciais. Há muitos questionamentos em torno dessa questão nesse nível de ensino: deve-se já introduzir a escrita na Educação infantil? Deve-se alfabetizar na Educação Infantil? Queremos discutir esses pontos colocados iniciando nossa conversa sobre Letramento, pois esse tema abre novas perspectivas sobre o trabalho com a escrita. Passemos ao conceito de Magda Soares: Letramento é estado ou condição de quem não só saber ler e escrever, mas exerce as práticas sociais de leitura e de escrita que circulam na sociedade em que vive, conjugando-as com as práticas sociais de integração oral (SOARES, 1999, p. 23). Como se percebe, é um conceito complexo por envolver leitura e escrita ao mesmo tempo e, como sabemos, esses processos envolvem capacidades múltiplas, variadas, que se configuram cada vez mais como ações críticas, apoiadas em traços intertextuais, inferenciais e contextuais. Por ações críticas entendemos atos de ler e de escrever com posicionamentos, respostas, perguntas em relação à leitura e à escrita. Essas ações pressupõem relações com outros textos (intertextuais), às quais levam o sujeito leitor ou escritor a fazer correlações entre o que está no texto e suas leituras anteriores (inferências) e, naturalmente, a levar em consideração o contexto de produção que é constituído pelas representações sobre o local e o momento da escrita, sobre o emissor e o receptor considerados do ponto de vista físico e do papel social. SUMÁRIO 130 | M a g n o N i c o l a u ( O r g . ) Por práticas sociais de leitura e de escrita entendemos todas as ações que envolvem na sociedade o uso da leitura e da escrita, o que demanda uma amplidão imensa. O conceito de letramento é complexo e amplo, porém o processo em si é muito próximo de todos nós. Pensemos um pouco: folhear uma revista, recortar nomes, colocar o nome do bebê na porta do quarto, passar por uma propaganda ao cruzar uma rua, ver rótulos em supermercado etc. Poderíamos enumerar inúmeras outras ações que envolvem letramento. O importante, porém, é perceber que desde cedo nossas crianças vivem imersas nessas práticas. Estão vendo como o conceito de letramento muda nossa relação com a escrita? Por esse ângulo, muitas crianças nascem imersas no letramento, pois escutam estórias, tomam banho folheando as páginas de livros plastificados, recortam jornais, encontram a escrita nos rótulos dos refrigerantes, nos chocolates, nas placas, não é verdade? Elas veem a mãe fazer uma lista de compras, anotar um recado telefônico, seguir uma receita culinária, buscar informações em um catálogo. De acordo com essa visão, surge a compreensão de que, nas sociedades urbanas modernas, não existe grau zero de letramento, pois não encontramos sujeitos que não vivenciem, de alguma forma, algumas dessas práticas. Letramento se apresenta como um exercício efetivo e competente da escrita e implica habilidades, como a de ler e escrever para obter informação, para interagir, ampliar conhecimento, interpretar e produzir diferentes tipos de texto, de inserir-se completamente no mundo da escrita. Para Soares (1998), essa forma de letramento contribui para a formação da auto-estima, a construção de identidades e estruturação de agentes sociais em suas culturas. Agora que vimos o letramento, passemos à escrita. O que há em comum entre o letramento e o ensino da escrita na Educação Infantil? Busquemos a ligação no que nos diz o Referencial: a aprendizagem da linguagem escrita é concebida como: • a compreensão de um sistema de representação e não somente como a aquisição de um código de transcrição da fala; • um aprendizado que coloca diversas questões de ordem conceitual, e não somente perceptivo-motoras, para a criança; SUMÁRIO Leituras Diversas: Crônicas, Ensaios e Contos | 131 • um processo de construção de conhecimento pelas crianças por meio de práticas que têm como ponto de partida e de chegada o uso da linguagem e a participação nas diversas práticas sociais de escrita (Volume 3, 1988, p. 122). Compreender a língua escrita como um sistema de representação, simbolismo e não somente como código de transcrição da fala traz fortes implicações para o processo de ensino. Em seu artigo “A pré-história da escrita”, Vygotsky (1998) explicita que não se ensina a escrita, quando se desenham letras ou se constroem palavras de forma mecânica. Isso reflete apenas um treinamento artificial de fora para dentro. O autor chama a esse processo de fala morta, pois a linguagem viva fica em segundo plano. Partindo da concepção da linguagem escrita como [...] um sistema particular de símbolos e signos cuja dominação prenuncia um ponto crítico em todo o desenvolvimento cultural da criança, Vygotsky afirma que essa aquisição começa com o aparecimento do gesto como signo visual para a criança. Para o autor (1998), o gesto é o signo visual inicial que contém a futura escrita da criança da criança. Gestos são escritas no ar. Dando continuidade à sua explanação, mostra que os gestos estão ligados ao signo escrito por dois caminhos: primeiro, através dos rabiscos, a partir dos quais se imagina uma bola, um carro, uma boneca, etc; segundo, dos jogos, que são gestos representativos, como por exemplo, usar o cabo da vassoura como um cavalo. Por essa visão, o desenho é um simbolismo de 1ª ordem, que ganha uma nova significação, não são mais traços, círculos, mas amigos que brincam, com uma nova função, já num simbolismo de 2ª ordem. E acrescenta: “a representação simbólica no brinquedo é, essencialmente, uma forma particular de linguagem num estágio precoce, atividade essa que leva, diretamente, à linguagem escrita” (VYGOTSKY, 1998). O que nos chama atenção é a questão da construção do simbolismo. Por isso, a importância do desenho e do rabisco para a aquisição da escrita. Desenhar e brincar devem ser estágios preparatórios para o desenvolvimento da linguagem escrita das crianças. Há outras formas de introduzir a criança na escrita sem passagens bruscas como, por exemplo, ler para a criança. A leitura já a SUMÁRIO 132 | M a g n o N i c o l a u ( O r g . ) transporta para a escrita. Outra é ter como base a oralidade para ensinar a linguagem que se usa para escrever. Ditar um texto para o professor, para outra criança ou para ser gravado em fita cassete é uma forma de viabilizar a produção de textos antes de as crianças saberem grafá-los. Como exemplo, transcrevemos um texto narrado para a professora por alunos de 4 a 5 anos de uma escola pública do município de João Pessoa. A professora, após ler uma história, solicitou a narração coletiva e registrou em papel madeira, no centro da sala, enquanto os alunos narravam. Após várias negociações, o texto ficou assim: O cachorro pequeno Carlos encontrou um cachorrinho na praça em frente ao prédio dele. Ficou feliz, levou pra casa deu comida e arranjou um caixa para ele dormir. Quando o irmão chegou, foi mostrar o cachorrinho e pediu para ele escolher um nome. Estavam brincando com ele, quando aparece uma senhora dizendo que o cachorro é da filha dela. Carlos não queria entregar, mas a mãe disse que ia conseguir um para ele. Carlos entregou o cachorrinho muito triste e está esperando um para ele. Ainda que não saibam identificar o som correspondente à grafia da letra, as crianças realizaram um trabalho de produção textual. Primeiramente, podemos ressaltar a propriedade do título que garante a adequação do texto como um todo. Naturalmente foi negociado com a turma de 26 alunos, mas foram eles que escolheram dentre outros sugeridos. Do ponto de vista do gênero, há um personagem, num determinado espaço (em frente ao prédio, casa), que realiza uma ação: encontrar um cachorrinho e levar pra casa. E no final, o desfecho das ações com a explicitação dos sentimentos que acompanham essa ação. Sem sombra de dúvida, essas crianças já empregam estratégias proficientes de um produtor de textos. Elas começam a participar de um processo de produção de texto escrito em atividades como essa, construindo conhecimento sobre essa modalidade, antes mesmo que saibam escrever autonomamente. Hoje, uma das situações didáticas previstas pelos principais programas oficiais de alfabetização inicial é solicitar que os alunos produzam textos oralmente para se verem capazes de escrever muito antes de estarem alfabetizados. Nas atividades de SUMÁRIO Leituras Diversas: Crônicas, Ensaios e Contos | 133 escrita, acredita-se que as crianças se apropriam dos conteúdos, transformando-os em conhecimento próprio em situações de uso. A língua escrita é apresentada como um processo de conhecimento que se dá na participação de práticas sociais de escrita. O que isso quer dizer? Que quanto mais a criança estiver em contato com práticas de escrita, melhor será a sua compreensão desse processo. Dizendo de outro modo, aprender a ler e a escrever fazem parte de um longo processo ligado à participação em práticas sociais de leitura e escrita. É no contato diversificado em seu ambiente social que as crianças descobrem o aspecto funcional da comunicação escrita, desenvolvendo interesse e curiosidade por essa linguagem. Inseridas no ambiente de letramento em que vivem, as crianças fazem, a partir de dois ou três anos de idade, perguntas, como “O que está escrito aqui?”, ou “O que isto quer dizer?”,ou simplesmente desenham e fingem ler o que está escrito, mostrando a sua compreensão sobre a escrita. Vejamos mais uma vez o Referencial: As crianças que não sabem escrever de forma convencional, ao receberem um convite para fazê-lo, estão diante de uma verdadeira situação-problema, na qual se pode observar o desenvolvimento do seu processo de aprendizagem. Tal prática deve favorecer a construção de escritas de acordo com as idéias construídas pelas crianças e promover a busca de informações específicas de que necessitem, tanto nos textos disponíveis como recorrendo a informantes (outras crianças e o professor). O fato de as escritas não-convencionais serem aceitas não significa ausência de intervenção pedagógica (Referencial Curricular Nacional para a Educação Infantil - Volume 3 / Conhecimento do Mundo. Brasília: MEC/ SEF, 1998, p. 145 a 150). Como se vê nos textos oficiais, ganham relevo propostas de aprendizagem do alfabeto e do uso da escrita simultaneamente. Já é consenso que a elaboração de um texto vai muito além do registro gráfico. Durante o ditado para o professor, os alunos conduzem a produção do texto tanto no que diz respeito ao conteúdo como na forma, por meio de pausas, ritmos, etc. Essa prática deve fazer parte da rotina da alfabetização inicial, contemplando diferentes gêneros. SUMÁRIO 134 | M a g n o N i c o l a u ( O r g . ) Como se vê, é um trabalho de convivência com os diferentes usos da escrita em nossa sociedade. Para isso, é necessário reconhecer a capacidade ativa das crianças, introduzir atividades em que as crianças percebam para que e para quem estão escrevendo, isto é, inserindo-as no contexto social da escrita. Para concluir, queremos retornar à nossa pergunta inicial: deve-se já introduzir a escrita na Educação infantil? Deve-se alfabetizar na Educação Infantil? Pela proposta do Referencial, desde a mais tenra idade deve-se colocar a criança em contato com a leitura e com a escrita. A alfabetização inserida no letramento auxilia desde cedo os alunos a se engajarem na multiplicidade de textos que circulam na sociedade. Texto ficcional ou poético, em prosa ou em verso, de todos os tipos e gêneros. Simples e complexos, porém sempre ao lado da criança, possibilitando uma multiplicação de sentidos. Ler e escrever sem ainda saber, mas experienciando o sabor de brincar com as letras. Inserir a criança nesse novo contexto é repensar a alfabetização que sugere uma aliança entre alfabetizar e letrar, como sinaliza Magda Soares. REFERÊNCIAS BRASIL. Ministério da Educação e do Desporto. Referencial Curricular Nacional para a Educação Infantil - Volume 3 / Conhecimento do Mundo. Brasília: MEC/ SEF, 1998. FARIA, Evangelina. A argumentação oral infantil. Campina Grande: Bagagem, 2002 ROJO, R. Letramentos múltiplos, escola e inclusão social. São Paulo: Editora Parábola, 2009 SOARES, M. Letramento: um tema em três gêneros. Belo Horizonte: Autêntica, 1998. VYGOTSKY, Lev S. A pré-história da linguagem escrita. In VYGOTSKY, Lev S. A Formação social da mente. São Paulo: Martins Fontes, 1998. SUMÁRIO Leituras Diversas: Crônicas, Ensaios e Contos | 135 CINE LUX DE POMBAL – O ÚLTIMO EPISÓDIO Francisco Vieira Depois de tantas aventuras, inúmeras comédias e diversos shows, infelizmente, seu último episódio, o que não foi nada agradável. Ano de 1989. Numa fatídica noite de um dia e mês esquecidos pelo tempo deu-se sua última exibição. Noite sinistra: o Cine Lux apagava as luzes de sua tela panorâmica e fechava suas portas encerrando um período marcante de trinta e cinco anos de intensa atividade. A fita chegava ao fim. Triste fim. Simultaneamente se iniciava um novo capítulo de uma história interminável e que seria doravante exibida na memória dos filhos de Pombal. Hoje, vinte e dois anos depois, o Cine Lux ainda permanece vivo em nossas lembranças, tal qual uma chama que crepita trazendo doces recordações de um passado que gostamos de reviver. É um misto de ventura e tristeza, emoções, humor e felicidade. Enfim, um conjunto de sentimentos que as palavras não definem. Tudo se resume em saudade, esse sentimento nostálgico decorrente de algo marcante. O Cine Lux já nasceu com ares de grandeza. Construído por Chiquinho Formiga em 1954, foi inaugurado com um show de Sua Majestade Luis Gonzaga – O Rei do Baião. Em meio a toda essa imponência, é curioso saber que não havia ainda assentos, tendo as pessoas os levado de suas residências sem nenhum constrangimento. Após dois anos, em 1956, “Seu Chiquinho”, para dedicar-se a construção civil, decidiu vender aquela casa de espetáculos ao seu cunhado Afonso Coelho Mouta. “Seu Afonso”, homem íntegro, de conduta ilibada, se caracterizou como um exemplo de dignidade. Faleceu cedo e de forma trágica, contudo, deixou como legado para a família os princípios da honra e da moralidade. SUMÁRIO 136 | M a g n o N i c o l a u ( O r g . ) Afonso Mouta mostrou-se um empreendedor nato e detentor de uma visão futurista, graças ao que desenvolveu a arte cinematográfica na cidade. Sob seu comando iniciou com o filme mexicano “A mulher que eu perdi”, inaugurando cerca de 380 luxuosas poltronas da CIMO – conceituada indústria de móveis paranaense. Seu dinamismo deixou marcas inesquecíveis como a exibição do filme em cinemascope, avanço tecnológico em filmagem e projeção, que estreou em dezembro de 1958, mediante convites especiais, com a fita “Cavaleiros da Távola Redonda”, protagonizado por Robert Taylor e Ava Gardner. O Cine Lux foi durante décadas a maior atração noturna da cidade, o lugar a que convergia a população todas as noites. Era uma agradável rotina. Os filmes exibidos agradavam a todos: crianças, jovens e adultos. Gregos e troianos se satisfaziam com os variados gêneros que iam desde os épicos como: “Rei dos Reis”, “El Cid”, “Ben Hur”, até os bang-bang e as chanchadas brasileiras, ricas em humor. Eram produções de estilo cômico mescladas com toques de romantismo e participação dos grandes cantores da época, capazes de descontrair os mais sisudos. De fato, era impossível resistir à dupla Ankito e Grande Otelo, Zé Trindade, Oscarito, Mazzaropi. Foi também palco de shows de renomados artistas. Por lá se apresentaram Luis Gonzaga, Marinês, Cel. Ludugero, Bievenido Granda (cubano), José Augusto – O Sergipano - José Ribeiro, Roberto Muller, Os Cantores de Ébano, Miguel Ângelo, Noca do Acordeon e Ronaldo José – ex. aluno do Ginásio Diocesano. E, como se não bastasse, ainda cedeu seu espaço para grandes eventos sociais, entre os quais, a colação de grau da primeira turma concluinte do extinto Ginásio Diocesano de Pombal, no ano de 1958, que teve o Deputado Federal Janduy Carneiro como paraninfo. Serviu ainda para realização de Festival de Calouros, Grêmio Literário, teatro, palestras e até convenções partidárias. O Cine Lux era mais que um passatempo ou diversão, era o principal ponto de encontro entre amigos e namorados. Dele tenho grandes recordações. Na fertilidade da imaginação me vejo ainda moleque atropelando as filas das matinês para assistir ao filme, de preferência os de Tarzan, Zorro, Jim das Selvas, faroeste ou chanchada. Melhor ainda se tivesse antes um seriado de Flash Gordon. Valia a pena sofrer com “o perigo da série” e aguardar, ansioso, até a próxima SUMÁRIO Leituras Diversas: Crônicas, Ensaios e Contos | 137 matinê para ver o mocinho salvar sua amada. A espera era recompensada com a certeza de um final feliz. E, como eu rezava com fé para a energia voltar. Pedia em silêncio até com promessas que nunca foram cumpridas. Vejo-me também adolescente com uma namorada no “escurinho do cinema”, temendo, pela ousadia, em ser repreendido por Galdino. É que na penumbra tudo é possível. A respeito, disse alguém: “Se peito de moça fosse buzina, ninguém assistia o filme de tanto barulho”. Com a mesma importância ainda soam nos ouvidos aguçados as músicas inesquecíveis de sua rica discoteca e que, hoje recordando, me fazem sonhar e até chorar. À noite, ao som de Ray Conniff, Poly, Saraiva e outros, enquanto no período diurno se ouviam os sucessos nas vozes de Nelson Gonçalves, Cauby Peixoto, Anísio e Orlando Silva, Ângela Maria e tantos mais. Impossível citá-los. A lista era infindável, todos detentores de vozes privilegiadas que tocavam profundamente os corações dos que amam o bom e o belo. Um deleite emocional. Da mesma forma sinto a presença de Zé Lopes, porteiro cuidadoso que fazia de tudo para não morrer pisado; Poxota, caprichoso na limpeza, e Facundo, responsável pela colocação do cartaz no Mercado Público, ponto mais central da cidade. Seria injusto não lembrar “Pedro Onça”, transportando, em seu carro de mão, as fitas que chegavam e saiam pelo trem da REFESA. Aí, sem pagar frete, rompendo os limites da velocidade, descíamos a Rua dos Roques ladeira abaixo. Tamanha era a disparada que mal se ouvia “Seu Pedro” gritar: “Cuidado com o filme”. Injustiça capital seria omitir Zé Cleonso e Galdino; o primeiro, operador, e, o segundo, polivalente. Fazia de tudo. Além de sócio proprietário era bilheteiro, porteiro, fiscal e até “lanterninha”. Aos irmãos minha reverência, pois com a morte do pai, em 1964, assumiram a tutela da família e – enquanto possível – fizeram o show acontecer. Mas a vida é um mar de contingências, todas submissas ao progresso como fim. A sua marcha tem dupla ação: se de um lado melhora a qualidade de vida da humanidade, por outro, produz efeitos danosos. A propósito, a sétima arte, no Brasil, sofreu graves consequências com o advento da televisão e, via de regra, em Pombal não foi diferente. O Cine Lux assistiu, agonizante, os efeitos negativos do progresso cerrando suas portas. A indústria ci- SUMÁRIO 138 | M a g n o N i c o l a u ( O r g . ) nematográfica como arte não foi suficientemente artista para superar a crise e evitar o fechamento de centenas de cinemas. Coisas do “progresso”. Por circunstâncias alheias à vontade da família, o cinema encerrou seu ciclo de atividades. O prédio foi partilhado e transformado em residências. Dele, além da saudade, resta apenas o frontispício que, mesmo com a estrutura modificada, permanece ainda de pé – não sei até quando - graças à sensibilidade de alguns. Firme em sua base, orgulhoso do seu passado, assiste o vai e vem dos transeuntes que passam lamentando seu fim melancólico. Com certeza não se incomodariam com o badalar do sino da UCB e suas correntes giratórias, nem o rugir voraz do Leão da Metro; antes, refrescariam a mente na luminosa fonte da Atlântida. Talvez o silêncio dominante seja de constrangimento por não pertencer ao patrimônio histórico do município. É lamentável, mas o reconhecimento veio após sua demolição. A preservação memorial de um povo implica na conservação de sua história, no elo inquebrantável estabelecido entre o homem e o meio. Assim, em que pese essa exclusão, pelo seu passado glorioso e significativo valor, o Cine Lux, será perpetuado na memória da população. É o verdadeiro patrimônio. Falar do Cine Lux é reverenciar um passado intrinsecamente ligado à vida dos filhos de Pombal. Ouso dizer que é raro – se é que existe - um pombalense sequer que não tenha vivido algo ligado ao cinema de Pombal. Por isso, somos parte integrante dessa história que deve ser contada pelos antigos para conhecimento dos mais novos. Em síntese, este é o meu contributo à história do Cinema em Pombal, brilhantemente decantada nas crônicas de Inácio Tavares e Jerdivan Nóbrega. Espero não ofuscar o seu brilho e, sim, tornálo mais reluzente. Ao Cine Lux a exultação do seu nome e de sua história, reprisada com o fechamento de suas cortinas douradas e a exibição do seu ÚLTIMO EPISÓDIO. SUMÁRIO Leituras Diversas: Crônicas, Ensaios e Contos | 139 ALEXEI BUENO E AUGUSTO DOS ANJOS Hildeberto Barbosa Filho É no capítulo, “O sopro do símbolo”, que o poeta Alexei Bueno insere Augusto dos Anjos, em Uma história da poesia brasileira (2007), através de um texto histórico e ensaístico a que não escapa a preocupação analítica e exegética e, por isto mesmo, certamente um dos mais equilibrados em âmbito crítico e historiográfico. Após pequeno introito biográfico, concluído pela ideia possivelmente discutível de que a “grandeza” da poesia anjelina “parece não se coadunar bem com a normalidade chã de sua biografia”, o poeta-historiador passa, de imediato, a enfrentar as questões de mérito. Inicialmente, as questões de conteúdo; depois, as de forma e estilo, ao mesmo tempo em que, e a todo instante, da formulação de seu discurso crítico, convoca a materialidade do texto poético a título probatório e alarga o campo das investigações comparativas. Ainda bem que Alexei Bueno usa o verbo parecer, quando alude ao delicado assunto vida e poesia, precavendo-se, portanto, de incidir no lugar comum da crítica biográfica, à Saint-Beuve, no sentido de que uma pode explicar a outra e vice-versa. Em outros termos: a grandeza de uma vida não determina a grandeza de uma poesia; a “normalidade chã” de uma vida não leva necessariamente a uma poesia mediana. Fosse assim, não teríamos, no caso da poesia brasileira, por exemplo, nomes como Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade, Jorge de Lima e João Cabral de Melo Neto, nenhum deles, me parece, com vida extraordinária. A bem da verdade, o fenômeno estético exige explicações mais complexas e mais profundas. E é isto que Alexei Bueno procura demonstrar. Em primeiro lugar, o poeta-historiador fala da forte impressão que lhe causa a poesia de Augusto dos Anjos, atribuindo-a à “especificidade do indivíduo que a compôs”, assim como “pelo caráter de independência extrema, quase de geração espontânea, com que ela rompeu no panorama da literatura brasileira”. A par SUMÁRIO 140 | M a g n o N i c o l a u ( O r g . ) do reconhecimento acerca dos fatores inconscientes que motivam a criação poética, enfatiza, contudo, a natureza pensante e a autoconsciência que caracterizam o método poético do autor de “Vandalismo”. Para corroborar a ideia de que o poeta paraibano não desconhecia sua singularidade em meio ao convencionalismo de um ambiente literário fútil e artificial, singularidade que se traduz pelo insólito e bizarro do tema e da linguagem, refere dois “significativos poemas”: “O poeta do hediondo” e “Noli me tangere”. Segundo Alexei, “cruéis e exacerbados autorretratos, menos de como ele deveria se sentir do que como ele sabia que o sentiriam, e quase uma justificativa prévia de quem se sabia responsável por ultrapassar as fronteiras temáticas do recomendável e do aceito”. Não obstante, essa presença isolada, vívida, concreta, quase única, ao modo de ver do crítico, não está dissociada, como não poderia estar, do meio e do momento, com suas ideias dominantes, seus modismos filosóficos, seus parâmetros artísticos, suas correntes científicas, enfim, seu complexo cultural a servir de referência indispensável ao processo de elaboração poética. Portanto, em muitos aspectos, como bem elucida Alexei Bueno, o autor de “Os doentes” é um “homem de sua época e do seu meio”, encontrando-se, entre outros poetas, seus contemporâneos, características afins. Um ponto central dessa discussão é o tão propalado cientificismo de sua poesia. Mais que nenhum outro historiador, e aqui compartilhando as lúcidas interpretações de ensaístas, como Ferreira Gullar, José Paulo Paes e Mário Chamie, entre outros, Alexei Bueno chama a atenção para o fato de que, entre as múltiplas “generalizações filosóficas” do tempo, Augusto dos Anjos procurou adotar, como crença pessoal, “os sistemas que mais dariam ensejo a uma visão predominantemente mística e totalizadora do universo”, isto é, o evolucionismo, de Darwin, segundo Alexei, “filtrado por Spencer”, e o monismo, de Ernest Haeckel, conforme o historiador, “racionalização materialista carregada de grandes possibilidades de expansão religiosa, e construída, aliás, sobre diversas premissas biológicas falsas ou erroneamente interpretadas”. Ainda neste ponto, defende a “sinceridade primordial” do poeta no que concerne a sua “adesão intelectual e mesmo emocional” aos paradigmas dessa visão de mundo. Mas a ela acrescenta a sua sensibilidade especial para com o tecido não somente conceitual, porém, sonoro dos vocábulos, o que define a particularidade SUMÁRIO Leituras Diversas: Crônicas, Ensaios e Contos | 141 de seu estranho e incomum “arcabouço fonético”. A musicalidade heterodoxa que advém do uso desses termos científicos, na mais das vezes incompreensíveis ao leitor comum, e que nomeiam “seres ínfimos”, como que está, afirma Alexei, “perfeitamente no plano do poeta, porta-voz da essência de todos os seres, e não apenas do homem. A propósito, este me parece um dos melhores momentos da leitura do poeta-historiador. A originalidade desta concepção poética e ao mesmo tempo filosófica” é marcada”, assinala acertadamente Alexei, “pela originalidade sonora do nome das espécies”. Referindo-se ao poema “Budismo moderno”, traz a imagem das “diatomáceas da lagoa”, cuja cápsula criptógama, sendo desfeita/destruída pelo contato de uma mão humana, remete para sua própria fragilidade, “ao mesmo tempo que se identifica, na solidariedade de condenados à morte, a essas vidas íntimas que também o são”. O mesmo, adita o intérprete, ocorre no poema “Alucinação à beira-mar”, no qual “malacopterígios subraquianos / que um castigo de espécie emudeceu” lhes pareciam também “corpos de vítimas / condenadas à Morte, assim como eu”. Com estes exemplos, Alexei Bueno demove o batido argumento em torno do “exibicionismo gratuito” e do “bestialógico”, entrevistos por muitos estudiosos na composição do discurso lírico de Augusto, ressaltando, com sua argúcia de crítico-poeta, a funcionalidade estilística desse glossário científico, vendo nele “um uso radicalíssimo das infindáveis possibilidades do léxico, de resto estatisticamente muito pequeno em relação ao total de seu vocabulário para justificar a fama imerecida de delírio vocabular que muitas vezes lhe imputaram”. O monismo evolucionista, no entendimento de Alexei Bueno, passa, em Augusto dos Anjos, por um processo de transformação, funcionando como “uma espécie de sistema místico totalizador” que vai legitimar suas opções estéticas, assim como certos sistemas religiosos alicerçaram a poesia mística de todas as épocas. Daí decorre uma das características fundamentais da lírica anjelina, isto é, “A sensibilidade exacerbada para a percepção da energia potencial oculta em toda a matéria”, ilustrada em poemas como “O lamento das coisas”, “As montanhas”, “Numa forja”, “O pântano”, “A floresta”, entre outros. Também desta base parece advir, em frontal contradição com as inclinações otimistas do racionalismo científico que tende a acentuar o “caráter evolutivo do universo”, SUMÁRIO 142 | M a g n o N i c o l a u ( O r g . ) nutrientes de uma energia negativa a fecundar o sofrimento e a morte em detrimento da vida, numa espécie de “budismo de origem claramente schopenhauriana”. Não escapa a Alexei Bueno, em sua análise exegética, o paradoxo nuclear que subjaz a toda poesia do autor de “O último número”, entrevisto, sobretudo, no descompasso entre o “pretenso poder da ciência” e os enigmas do mundo. O eu poético, em Augusto dos Anjos, como que desconfia da eficácia e da eficiência das explicações racionais com as quais o discurso científico pretende devassar a realidade, e, em certo sentido, parece apostar na intuição e na sensibilidade para penetrar no mistério das coisas e na infinitude cósmica. Desenvolvendo este raciocínio, o ensaísta detecta a descontinuidade entre a “adesão a um postulado filosófico” e a descrença em seu valor elucidativo, principalmente diante da morte, um dos temas mais recorrentes na obra poética de Augusto. E, mais adiante, numa chamada para a sua modernidade, marcada não só pelo pessimismo, porém, sobremaneira, pelo ceticismo, afirma de modo pertinente: “(...) Augusto dos Anjos é o poeta do fracasso do enfrentamento do mistério, da impotência perante o incognoscível, (...) e a morte comparece, antes de tudo, para esse grande radical, como o último de todos os fracassos, como a mais absoluta e definitiva forma de impotência”. A prova está em tantos poemas, mas Alexei destaca, em especial, “O mar, a escada e o homem”, bem como “Solilóquio de um visionário”. Em termos de conteúdo, portanto, o que preside a leitura de Alexei Bueno é o reconhecimento da “contradição trágica” que envolve o materialista, a princípio “acreditando racionalmente em um evolucionismo panteísta onde só a generalidade das formas universais progredia e sobrevivia”, e a consciência do eu poético a sinalizar para sua efemeridade, para sua pequenez, na média em que se descobre como “ínfimo acidente genético na grande cadeia das espécies, condenado sem apelação à desaparição total enquanto especificidade individual”. Enfim, o embate agônico que atravessa o corpo de diversos poemas, vivido entre cientificismo e subjetividade, sensibilidade e raciocínio. Dito de outra forma, e transcrevendo as palavras do próprio Alexei Bueno, em parágrafo conclusivo de sua abordagem temática e ideológica: “A união entre essa liberdade de tratar de maneira mais crua o espetáculo da miséria humana com a adesão a um sistema científico totalizador e ateu, sem haver no realizador de tal conjunção qualquer possibili- SUMÁRIO Leituras Diversas: Crônicas, Ensaios e Contos | 143 dade de apaziguamento subjetivo dentro dele, eis, em nossa opinião, a origem primordial da poética do Eu”. Do ponto de vista formal e estilístico, evoca-se, em primeiro plano, a “expressividade sonora” do verso, “sonoridade rígida e tensa”, em que se privilegiam, ora o recorte aliterativo e a musicalidade, embora dissonante, dos simbolistas, ora a ortodoxia da métrica parnasiana, rica nas sinéreses e infensa aos hiatos. Defendendo o virtuosismo de Augusto dos Anjos na feitura do verso, Alexei Bueno não deixa de referir certa limitação no terreno das variedades métricas e rítmicas, mormente em função da presença maciça do decassílabo, onde, conforme afirma em registro perfeito, “as metáforas mais espantosas e exatas se amontoam quase claustrofobicamente”, de que resulta “uma impressão de força agrilhoada, de um infinito preso dentro de uma camisa-de-força, na iminência esperada de explodir”. A tal sonoridade deve-se juntar a “adequação vocabular” caracterizada pela exatidão dos termos, pela singularidade do léxico e, sobremaneira, pelo aproveitamento de um glossário de uso comum, concreto, coloquial, cotidiano, banal, reles, antipoético, de resto já acentuado por Ferreira Gullar, mas retomado e enfatizado por Alexei como se fora propósito do poeta criar uma “língua original, com uma percepção virgem do sentido das palavras, do mesmo modo que com um olhar virgem do espetáculo do mundo”. Para comprovar suas ideias, o historiador da poesia brasileira comenta alguns aspectos acústicos e semânticos do soneto ao filho morto e rápidas passagens de “O lamento das coisas”, numa demonstração, quase didática, de que a história literária não pode prescindir, em alguns momentos, da análise do texto, sob pena de cair na generalização e no vazio cognitivos. Deixa Alexei Bueno, para o final, o tópico das influências, ou melhor, das confluências e das” afinidades eletivas” que permeiam o discurso lírico do poeta paraibano. Antero de Quental, João de Deus, Cesário Verde, sobremodo Cesário Verde, entre os portugueses, e Cruz e Souza, no Brasil, perfazem, no cotejo das semelhanças e das diferenças, o mapa dialógico no qual se situa, com alguma razoabilidade estética, a dicção poética de Augusto dos Anjos. Sem sucumbir ao comodismo das filiações lineares, Alexei Bueno, chamando a atenção do leitor para a personalidade literária de Augusto dos Anjos, no contexto sincrônico da palavra poética, contextualiza-o, à maneira eliotiana, entre seus pares, cujas vozes SUMÁRIO 144 | M a g n o N i c o l a u ( O r g . ) ecoam e refletem na tessitura incomum de sua linguagem, ganhando, no entanto, uma luminosidade sombria que é só dele e que a faz única na história da literatura brasileira. SUMÁRIO Leituras Diversas: Crônicas, Ensaios e Contos | 145 A IMPORTÂNCIA DA AULA DE CAMPO NOS PROCESSOS DE ENSINO E APRENDIZAGEM José Januário Corrêa FIlho A importância da Aula de Campo nos processos de ensino e aprendizagem O ensino no Brasil e no mundo vem passando por um processo de mudanças significativas devido às constantes transformações ocorridas no planeta. Nesse sentido, se vêm buscando novas maneiras de se adaptar a essa nova realidade. Uma das inquietações tem sido conscientizar os discentes sobre a importância da compreensão do mundo em que estão inseridos, buscando-se trabalhar, como objetivo principal, o de inserir os alunos nesse processo de compreensão do espaço por meio de conceitos claros e concisos, que os levem a uma reflexão crítica de suas ações sobre o meio ambiente. Nesse sentido, a aula de campo é apontada por muitos autores e pelo próprio Ministério da Educação e Cultura (MEC) como sendo um eficaz instrumento metodológico de compreensão do espaço. No documento intitulado Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN), guia de orientação para os professores, notadamente no ensino da Geografia, no qual está descrito que “é relevante lembrar que grande parte da compreensão da Geografia passa pelo olhar”. O documento recomenda que Saídas com os alunos em excursões ou passeios didáticos são fundamentais para ensiná-los a observar a paisagem. A observação permite explicações sem necessidade de longos discursos. Além disso, estar diante do objeto de estudo é muito mais ca- SUMÁRIO 146 | M a g n o N i c o l a u ( O r g . ) tivante e prazeroso no processo de aprendizagem. (BRASIL, 1998: p.34). A partir da publicação dos PCN pelo Ministério da Educação e Cultura (Brasil, 1998a, p. 34), no final da última década do século XX, houve um aumento significativo dessa prática de ensino no Brasil, principalmente nos ensinos fundamental e médio, na medida em que as diretrizes dos PCN foram sendo vivenciadas, emergiram novas propostas que reconheciam que o aluno aprendia mais pela vivência e participação em saídas a campo Todavia, ressalta-se que ao observar uma paisagem, encontramos objetos de estudo das diversas áreas do conhecimento, o que proporciona um excelente ambiente para o desenvolvimento de um trabalho interdisciplinar. Nesse contexto, Antunes descreve com muita clareza que Muitos professores acreditam que uma aula de campo ou mesmo uma explanação feita além dos limites das paredes da sala de aula, seja viável apenas para Ciência ou Geografia. Essas disciplinas, é evidente, apresentam temas bem mais plausíveis de serem examinados através de uma excursão, mas se outros professores de outras disciplinas planejarem eventuais saídas com os alunos e as promoverem como produto de um projeto, com objetivos claramente definidos, com a clara eleição de o que procurar e como se registrar o que se descobriu, ficarão surpresos de como é possível perceber conteúdos de suas áreas de trabalho nas ruas, na natureza ou nas múltiplas relações interpessoais proporcionadas por essas aulas de campo ou excursões. O importante nessas oportunidades é que o aluno aprenda a ver e descubra o contexto dos fatos percebidos em sala de aula, refletido no cotidiano das coisas e da natureza. (ANTUNES, 2002, p. 157). Para Antunes (2002, p. 159), muitas vezes o educador, pela essência do trabalho, assume, inconscientemente, uma maneira “diferente de olhar”. O olhar dos professores de Geografia para uma paisagem qualquer, mesmo fora de seu trabalho, é, geralmente, diferenciado do exercido por outros professores. No entanto, Antunes (2002, p. 159) afirma que alguns “professores não se empenham em ajudar seus alunos a ver, relatando SUMÁRIO Leituras Diversas: Crônicas, Ensaios e Contos | 147 a maneira como percebem o ambiente”. O autor ressalta que estimular os alunos a perceber o mundo que os rodeia representa importante ajuda para a inteligência naturalista, decorrendo daí, “que a primeira aula do ano de qualquer disciplina deveria ser um convite, com o objetivo de mostrar ao aluno como uma mesma cena é observada por olhos educados e por outros que jamais se educaram” (p.159). Percebe-se, assim, que a observação do mundo, associando a teoria com a prática, pode conduzir os alunos a uma reflexão crítica dos conteúdos apresentados em sala de aula e, dessa maneira, facilitando-lhe agir corretamente no mundo onde estão inseridos, o que seria fundamental para o processo de ensino-aprendizagem nas diversas áreas do conhecimento, em prol da construção do exercício da cidadania. Por outro lado, para que uma aula de campo transcorra bem e que se desenvolva com sucesso, principalmente para o processo de ensino-aprendizagem, é de fundamental importância que o professor elabore um bom planejamento. A falta de organização e de domínio de objetivos nas atividades propostas poderá comprometer o trabalho docente e, até mesmo, a segurança de alunos e professores durante sua realização. Em uma investigação para nossa dissertação de mestrado, realizada com 50 (cinquenta) professores que lecionavam Geografia em escolas públicas do estado de Pernambuco, constatamos, através das respostas dadas pelos mesmos, que eles nunca participaram de qualquer formação voltada para o desenvolvimento e planejamento de aulas de campo, quer durante a formação universitária, quer na formação continuada das escolas públicas nas quais exercem a função de professor. A primeira afirmação dos professores foi constatada quando consultamos a grade curricular de algumas unidades de ensino superior de formação de professores, que não contemplam a disciplina de metodologia da Prática de Campo. Talvez, uma das causas da insegurança dos professores recém-formados, ao realizar aula de campo, seja a falta de orientação e formação adequada para trabalhar com esse método de ensino. Esse problema certamente seria amenizado se a proposta de formação continuada, contida na Lei de Diretrizes e Bases da Educação, fosse aplicada de maneira sistemática nas unidades de ensi- SUMÁRIO 148 | M a g n o N i c o l a u ( O r g . ) no, tornando-se mais fácil a realização de forma correta, contemplando aspectos fundamentais do planejamento, de modo que essas atividades pudessem transcorrer com eficiência e segurança, favorecendo-lhes o sucesso. Dentre os aspectos a serem ressaltados na formação continuada deverão constar a escolha do conteúdo adequado ao nível de ensino, a escolha do local apropriado, os objetivos bem definidos, o quantitativo de alunos, o transporte adequado etc. A escolha e a forma deverão ser opção do professor (es), obedecendo às leis, de acordo com o caráter pedagógico. Ratificamos que é imprescindível que o organizador da aula de campo procure buscar o envolvimento de professores de outras disciplinas, a fim de trabalhar os temas de modo interdisciplinar. Nesse sentido, a Universidade Estadual de Ponta Grossa traz como um dos objetivos na cadeira de Prática de Campo em Geografia III, o seguinte: “A prática de campo como meio de articulação entre as várias ciências em projeto interdisciplinar. Excursões, aulas e práticas de campo integradas entre as disciplinas.” (UEPG, 2009, p. 3). A inserção da disciplina de Prática de Aulas de Campo na grade curricular da referida universidade é condição sine qua non, para uma melhor formação dos docentes, tendo em vista que algumas universidades não a contemplam em suas grades curriculares. A ausência dessa disciplina na formação do professor em algumas universidades é preocupante, dada à importância do preparo do mesmo para elaboração do planejamento na realização do trabalho de campo, do qual dependerá o sucesso ou insucesso dessas atividades. É preocupante, também, porque o planejamento exige preparo técnico do professor, desde a definição dos objetivos e a escolha do local até o estabelecimento das normas de segurança a serem adotadas por todos os participantes durante a atividade de campo. E, justamente por considerarmos a possibilidade de melhorias na condução das aulas de campo, é que sugerimos o treinamento dos docentes para que possam trabalhar com esse método de ensino de maneira sistemática, uma vez que essa metodologia é de suma importância no processo de ensino-aprendizagem. Outro argumento para a capacitação dos professores é o de que, geralmente, as grades curriculares dos cursos de formação de SUMÁRIO Leituras Diversas: Crônicas, Ensaios e Contos | 149 professores não contemplam um quadro de disciplinas de administração da prática de campo na formação básica geral, visando à preparação de professores para o trabalho sistemático com esse método de ensino. Desse modo, ratificamos o exposto nos Parâmetros Curriculares Nacionais de Geografia do Ministério da Educação e Cultura ao afirmar que É imprescindível que o professor tenha uma boa formação para que, ao trabalhar seus temas e conteúdos, garanta ao aluno perceber a identidade da Geografia como área. Portanto, a formação dos professores deve ser condição necessária para que possa estar desenvolvendo adequadamente o seu trabalho. Nesse sentido, tanto a formação básica como a formação continuada são fundamentais para que os objetivos aqui propostos sejam atingidos. (BRASIL, 1998, p. 40) Consideramos, ainda, que as concepções de formação continuada deveriam valorizar a aquisição de conhecimentos de competências pedagógicas, aquelas referentes ao saber operacionalizar, saber fazer, sendo, portanto, imprescindível a capacitação dos professores para a práxis das aulas de campo, principalmente, dos professores iniciantes na profissão, ainda cheios de dúvidas sobre o que terão de enfrentar. . As novas propostas foram surgindo tanto no ensino universitário, influenciando a formação de professores com um novo olhar sobre o processo ensino-aprendizagem, quanto nos ensinos fundamental e médio, por iniciativa de docentes que buscam aprimorar sua prática, buscando soluções no sentido de melhorar o processo ensino-aprendizagem nas diversas áreas do conhecimento. Cumpre discorrer sobre os aspectos mais relevantes das modificações que se sucederam no emprego das aulas de campo. Os cursos de formação de professores no Brasil, nos últimos anos, vêm buscando mudanças no sentido de desenvolver novos métodos de ensino, no intuito da melhoria dos processos de ensino-aprendizagem. Um dos exemplos que merece destaque é o da Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG), localizada no estado do Paraná, que contempla, na sua grade curricular, quatro disciplinas de prá- SUMÁRIO 150 | M a g n o N i c o l a u ( O r g . ) tica de campo na formação básica geral na área de conhecimento de Educação e Geografia, cujos conteúdos destacamos: 104123 - PRÁTICA DE CAMPO EM GEOGRAFIA I - 68 h “Concepções teóricas e metodológicas da prática de campo na Ciência Geográfica. O campo como instrumento de ensino e pesquisa em Geografia. O enfoque multidisciplinar sobre o campo - os múltiplos olhares sobre os diferentes aspectos: físico, político, econômico, social, cultural e educacional. O diário de campo como registro a ser utilizado no relatório final. Excursões, aulas e práticas de campo integradas entre as disciplinas da 1ª série do curso.” (Universidade Estadual de Ponta Grossa [UEPG], 2009, p. 2) 104127 - PRÁTICA DE CAMPO EM GEOGRAFIA II - 68 h “Seleção e estruturação de roteiros para atividade de campo. Elaboração de projeto - definindo os objetivos da prática de campo. A exploração do local e a coleta de dados e/ou materiais. O registro e a tabulação das informações obtidas no campo. Tipos de relatório. Excursões, aulas e práticas de campo integradas entre as disciplinas da 2ª série do curso.” (UEPG, 2009, p. 3) 104128 - PRÁTICA DE CAMPO EM GEOGRAFIA III - 68 h “O trabalho de campo como suporte para a construção do conhecimento no ensino de Geografia. A prática de campo como meio de articulação entre as várias ciências em projeto interdisciplinar. Excursões, aulas e práticas de campo integradas entre as disciplinas da 3ª série do curso.” (UEPG, 2009, p. 3) 104129 - PRÁTICA DE CAMPO EM GEOGRAFIA IV - 34 h “A postura científica e ética sobre o campo. Uma análise sobre a dimensão dos saberes geográficos obtidos através da experiência de campo. A aula-passeio, o estudo do meio, e a prática de campo - semelhantes dinâmicas com diferentes enfoques. Excursões, aulas e práticas de campo integradas entre as disciplinas da 4ª série do curso.” (UEPG, 2009, p. 3) Embora, as aulas de campo se justifiquem pela necessidade de aproximação dos conteúdos trabalhados em sala de aula com a realidade, por meio de atividades de pesquisa e ensino desenvol- SUMÁRIO Leituras Diversas: Crônicas, Ensaios e Contos | 151 vidas in loco e sejam imprescindíveis para a formação dos graduandos, ainda se verifica heterogeneidade entre Universidades quanto ao grau de priorização de formação específica do professor no manejo desse método de ensino. Desse modo, a atividade de campo, na forma de aula de campo, aula passeio ou excursão pedagógica, se constitui em instrumento importante no processo ensino-aprendizagem de Geografia, por permitir aos alunos aliarem a teoria à prática, por meio da análise de paisagens urbanas ou rurais. Possibilita-lhes uma aprendizagem prazerosa, construtiva e crítica pela possibilidade de associar os conteúdos trabalhados em sala de aula à constatação do real. Para que esses benefícios possam ser alcançados em sua plenitude, as atividades de campo exigem do professor a elaboração de planejamento detalhado, no qual estejam contemplados objetivos claros, apresentação dos assuntos a serem observados pelos alunos, fixação de normas de segurança e análise dos resultados, a serem discutidos em sala de aula, facilitando a socialização dos alunos. Assim sendo, é imprescindível que o planejamento do trabalho de campo esteja composto por três fases básicas, mas importantes: a preparação, a realização e a análise dos resultados (avaliação). No entanto, seguir as três fases não é garantia ou sinônimo de sucesso na realização dessas atividades, já que o êxito residirá no zelo com que essas fases forem planejadas. Nesse sentido, sugerimos como leitura, para nortear a organização das aulas de campo, o livro de autoria de Corrêa Filho, publicado pela editora ideia, no ano de 2014, intitulado, Aula de Campo: como planejar, conduzir e avaliar?, citado nas referências deste artigo. A obra traz sugestões metodológicas para a elaboração das aulas de campo de modo sistemático, inclusive, com orientações dos cuidados preventivos com a segurança de alunos e professores durante os trabalhos realizados no âmbito externo das unidades de ensino, inclusive, com propostas factíveis, adequadas à realidade das escolas, visando o aprimoramento desse método de ensino, sobretudo nas escolas de ensino básico que o utilizam. Assim sendo, esperamos, de acordo com o já mencionado e considerando que todas as etapas são um todo orgânico, que as sugestões apresentadas possam nortear aqueles que trabalham SUMÁRIO 152 | M a g n o N i c o l a u ( O r g . ) com esse método de ensino a uma reflexão sobre as práticas atualmente adotadas nas aulas de campo Referências Antunes, C. (1998). As inteligências múltiplas e seus estímulos. Campinas: São Paulo: Papirus. Antunes, C. (2002). Novas maneiras de ensinar novas maneiras de aprender. Porto Alegre: Artmed. Brasil. (1996). Presidência da República. Lei n. 9394, de 20 de dezembro de 1996. Estabelece as diretrizes e bases da educação nacional. Brasil. (1998a). Ministério da Educação e Cultura. Secretaria do Ensino Fundamental. Parâmetros Curriculares Nacionais: geografia. Brasília: MEC/SEF. Corrêa Filho, J.J. (2012). Aula de Campo: sua importância nos processos ensino-aprendizagem na visão dos professores de Geografia. Dissertação apresentada à Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias – Instituto de Educação para obtenção do grau de mestre, orientado por Márcia Karina da Silva, Lisboa. Corrêa Filho, J.J. (2014). Aula de Campo: como planejar, conduzir e avaliar? João Pessoa: Ideia. Universidade Estadual de Ponta Grossa [UEPG]. (2009). Prática de campo em geografia. Acedido em 15 de novembro de 2010 em http:// www.uepg.br. SUMÁRIO Leituras Diversas: Crônicas, Ensaios e Contos | 153 UMA HISTÓRIA BEM PINTADA José Nunes A arte está inserida na história da humanidade. Desde os tempos da pré-história, a pintura é umas das artes mais importantes. A pintura é patrimônio de grande valor para a humanidade. A pintura transmite emoção e conhecimentos. O coração iluminado pela arte vê a beleza ao seu redor. A arte é a linguagem fundamental de todas as religiões. Deve ser a arte a palavra (imagem) universal dos homens. A arte é o esplendor do homem para se tornar conhecido. A arte é um elemento que serve ao belo, é um meio de comunicação, é uma janela para o mistério. Uma obra de arte é fruto da aptidão fecunda do ser humano, que se interroga ante à realidade visível, que busca descobrir o seu sentido intenso e comunicá-lo por meio da linguagem das figuras, das cores, dos sons. Realmente, a arte expressa e torna tangível o desejo do homem em avançar na busca de sua identidade. A arte é uma das portas dos olhos do coração e da mente. A criação é o êxtase do autor. Na visão dos gregos, o ato de criar é divino. Não é o autor quem cria a obra de arte, mas tudo acontece pela ação da Suprema Divindade para marcar períodos da humanidade. Flávio Tavares é minucioso nos detalhes quando elabora seus quadros. Suas telas contêm o furor de inspiração, com visões fosforescentes. Sua criação tem inspiração, seu olhar capta a realidade que poucos percebem. Ele produz quadros, principalmente os de grandes dimensões, com esforço imaginativo para captar a realidade, pois são bem detalhados. Trabalhador fanático pelo que faz, cuidadosamente passa o pincel na tela em branco e imagens borbulham na mente. Trabalha sem retoques. Cadencia as linhas imaginárias com perfeição. SUMÁRIO 154 | M a g n o N i c o l a u ( O r g . ) As telas dele narram algo para nós. Os homens e os animais dos seus quadros falam conosco. Sua arte expressa e torna visível o desejo do homem em avançar na busca da identidade perdida, vai atrás do que existe no infinito. Ele vive o êxtase da criação quando manuseia o pincel. Na sua criação há inspiração, seu olhar capta a realidade que poucos percebem. Ele produz quadros, principalmente os de grandes dimensões, com força imaginativa para captar a realidade, a partir de suas observações, até formar o imenso mosaico da arte. São observações do mundo onde habita ou de outras épocas. Os murais sempre estiveram presentes na obra de Flávio, desde aquele instalado na Clínica São Camilo, quando foi inaugurada nos anos setenta do século passado. Depois, a produção que se encontra no hall de entrada do Tribunal Regional do Trabalho, na cidade de João Pessoa. São quatro painéis que abordam a vida do trabalhador na agricultura, no comércio, na construção civil e na indústria. Na Assembleia Legislativa da Paraíba tem um dos seus mais significativos quadros. Para a Associação dos Plantadores de Cana do Estado da Paraíba produziu o quadro denominado O patriarcado rural. As alegorias do imaginário popular estão presentes na sua obra, com destaque para a A Pedra do Reino, baseada na literatura de Ariano Suassuna, que teve a participação de Sérgio Lucena, e Augusto dos Anjos, onde aborda o estranho mundo poético do poeta paraibano. Outra alegoria que se destaca é Avohai, sobre a música de Zé Ramalho, onde tenta reproduzir a poesia imaginada pelo poeta. A sua obra No Reinado da Lua, sem dúvida uma das mais expressivas, é uma fantasia que nos conduz ao paraíso destinado a todos, o paraíso tropical. Seu trabalho tem o olhar de poeta. Poeta que se embriaga com as imagens visíveis e as coloca na tela, que estão embebidas de sutil olhar ao seu redor, a vida do nosso povo, de sua própria história. A vida germina na tela com a força que vem da cultura que o alimenta desde a tenra idade. Depois de pintar painéis que se destacam pelo valor representativo da riqueza econômica e social da Paraíba, o artista se debruçou num trabalho gigantesco, que foi transpor para a tela as SUMÁRIO Leituras Diversas: Crônicas, Ensaios e Contos | 155 paisagens captadas pelo olhar de José Américo de Almeida, no romance A Bagaceira. O painel é um quadro antológico sobre a Paraíba. Feito para integrar o Centro de Artes da Universidade Federal da Paraíba (UFPB), retrata dois mundos descritos por José Américo: o Sertão esturricado e o Brejo verdejante. São justamente estes dos mundos que o artista retrata no painel. Durante dois anos ele aproveitou para aprofundar as pesquisas, estudar a obra do romancista paraibano, recolheu material de outras fontes, checagem de dados e informações na tentativa de chegar o mais perto possível da realidade descrita pelo romancista. Medindo 8x2,6 metros, o painel é divido em duas partes: a que retrata a vida do Sertão, e a outra, o Brejo, com seu apogeu da cana de açúcar e a força dos coronéis. Homenageia o filme Aruanda, colocando uma cena inspirada numa fotografia de Ruck Vieira, mostra o Engenho Olho D’água, Areia, onde nasceu José Américo, utilizando uma imagem de outro quadro onde retrata a família do autor de A Bagaceira, traz a figura de uma mulher desiludida residindo na cidade, além de uma árvore constante de um quadro por ele pintado em 2006, que simboliza a transição da zona árida para a verdejante. Flávio Tavares usa o pincel e a tinta para contar a história econômica, cultural e social da Paraíba, dando expressão de confiabilidade nas informações postas na tela. Cada quadro é um livro aberto. As cenas que retratam nossa História são colocadas nos painéis com força imaginativa. Num olhar aos milenares rabiscos em muralhas de pedras espalhados por diferentes lugares, alguns também existentes em nosso país, nos ajuda a conhecer o passado da história da humanidade e dão a dimensão da importância que aqueles desconhecidos seres deram ao escrever mensagens usando a ferramenta disponível naquele momento. Os primeiros registros do pensamento humano estão nas marcas deixadas nos paredões de pedras, há milhões de anos envoltos em mistérios. Com a evolução dos tempos, o homem aperfeiçoou sua forma de expressão, mas continua a usar mãos para deixar indicadores da sua história e do seu saber. Modificando-se a cada época e renovando-se nos intervalos da vida em cada geração. SUMÁRIO 156 | M a g n o N i c o l a u ( O r g . ) O tempo, que é infinito, modelou os artistas e renovou a linguagem. Criou a escrita e o pincel passou a ser instrumento para produzir obras de artes que retratam a vida comunitária. Por isso, o artista plástico é o escritor que usa forma diferente de descrever a paisagem e o ambiente em que vive; igualmente o escultor. Quem produz fotografia, quem pinta quadro, quem esculpe estátua, desenha ou produz grafite, também narra uma história. Outros registram fatos, escrevem belas narrativas, grandiosos romances utilizando a forma com que mais se identificam. Entre nós, temos artistas que, usando o pincel, produzem seu espólio, falam ao coração numa linguagem silenciosa. Os traços se transformam em palavras que reproduzem o que se observa ou imagina. Um deles é Flávio Tavares, autor de primorosas obras de painéis que retratam a História da Paraíba. Quadros como Tropeiros da Borborema, Reinado do Sol, O Mundo de Ariano Suassuna e outros, relatos que fazem de Flávio um artista que escreve a História política, econômica e social da Paraíba de uma forma incomparável. O painel Reinado do Sol, por exemplo, vale por muitos livros de História. Se utilizado nas escolas poderia se transformar numa proveitosa aula. Há quase cinco décadas Flávio escreve com pincel e tinta aquilo para que seriam necessários vários livros. Sua pintura é poesia. Fala do Nordeste. É Paraíba: genuína e verdadeira. O seu pincel transforma as imagens numa poesia simétrica, harmoniosa, equilibrada que proporciona enorme prazer aos olhos. Ele passeia pelo universo das artes, expressando sua arte com maestria em diversas técnicas (pintura, desenho, aquarela, escultura em pedra e em madeira, gravura em metal, xilo e litogravura) e, não bastasse tudo isso, já pintou cenários para peças teatrais, produziu mais de dez painéis e murais na Paraíba e em outros estados do Nordeste. Sendo neto e filho de artistas - seu avô paterno Pedro Damião foi considerável fotógrafo e seu pai Arnaldo, além de médico reverenciado e admirado, dedicava-se ao desenho - a bico-de-pena - e à poesia. Flávio Tavares também tem ilustrado diversos livros. Um historiador que usa o pincel e a tela para contar, maravilhosamente, nossa História. SUMÁRIO Leituras Diversas: Crônicas, Ensaios e Contos | 157 UMA TRAJETÓRIA DE 150 ANOS: O CASO DA FACULDADE DE DIREITO DE CAMPINA GRANDE1 José Octavio de Arruda Mello Originária da congênere pessoense da UFPB – de onde proveio sua estrutura organizacional, grade curricular e boa parte dos professores, alguns dos quais ainda hoje remanescentes de João Pessoa – a Faculdade de Direito da UEPB dela, porém, diferiu, substancialmente. 1.1 Duas Faculdades de Direito e uma comparação – Em primeiro lugar porque, enquanto a Faculdade de Direito da capital, alentada pelo Governo José Américo, de quando datou seu funcionamento, em 1951, depois da nominal criação pela OAB, em 1949, teve origem pública, a de Campina Grande derivou de inspiração rigorosamente privada. Com efeito, calçando antigo sonho do pastor e advogado Raul de Sousa Costa, a Faculdade de Direito campinense concretizou-se a 13 de março de 1967, por iniciativa do Reitor da então Universidade Regional do Nordeste (URN), Edvaldo do Ó. De espírito empresarial e schumpeteriano, Edvaldo trouxe da empresa privada motivação que o converteu no principal responsável pelos serviços da sociedade campinense, na segunda metade do século passado. No caso, ele executava o que Lopes de Andrade planejava, tudo em prol da Rainha da Borborema. Um outro ponto distinguiria as duas instituições. Enquanto a de João Pessoa alavancou o ensino universitário, visto como, até 1 Estudo preliminarmente elaborado no segundo semestre de 2008 e ajustado ao atual sesquicentenário de Campina grande. SUMÁRIO 158 | M a g n o N i c o l a u ( O r g . ) então, na capital, somente funcionava a de Ciências Econômicas, a de Campina Grande a consolidou, pela condição de última entidade do complexo universitário campinense. Com isso, sobreveio significativa diferença. Ao tempo em que a de João Pessoa, algo elitista, porque, inclusive, forrada do antigo classicismo latinista de vestibular, contemplava as classes média-média e média-alta, não faltando a inflexão do velho patriarcalismo, a de Campina revelou outro viés. Nela, foram, basicamente, os extratos médio descendentes e médio baixo que encontraram abrigo, sendo ambos procedentes não apenas da área urbana e satélite de Campina Grande, mas dos agreste e brejo da Paraíba, litoral, cariri e sertão desta, e Estados vizinhos do Rio Grande do Norte, Ceará e Pernambuco. O atendimento a esta demanda revelou-se tão efetivo que nem a criação do curso de Direito de Guarabira estancou o fluxo de alunos procedentes dos brejo e agreste paraibano. 1.2 O caso das elites político-culturais – Em sintonia com essa realidade, a FD da UEPB não constituí entidade estamental, destinada a prover os quadros superiores da administração pública, magistratura e Ministério Público, mas instituição de tendência popular fomentadora de quadros intermediários daqueles segmentos e ainda educação, saúde, segurança e tecnologia, campinenses. Na área propriamente judiciária, é fora de dúvidas que a FD de Campina Grande viabilizou organismos e serviços urbanos como CAOP, CELBE, hoje substituída pela Energisa, Associação dos Advogados de Campina Grande e seção local da OAB, Justiça Federal, Procuradorias Federais, Estaduais e Municipais, Forum Afonso Campos, Curadorias, Delegacias de Polícia e Penitenciária, afóra os escritórios de advocacia e segmentos da Prefeitura Municipal Serrana. Em todas essas entidades é maciça a participação da FD da UEPB, quer seja através bacharéis por elas formados ou de estagiários e funcionários, em estágio probatório. Outra distinção entre as unidades do ensino jurídico de João Pessoa e Campina reside na formação por aquela das principais lideranças políticas do Estado, outrora diplomadas no Recife. Embora personalidades como o ex-governador da Paraíba Cassio Cunha Lima, hajam saído de suas fileiras, o comum na FD campinense consistiu na consolidações de vocação públicas que, graças aos SUMÁRIO Leituras Diversas: Crônicas, Ensaios e Contos | 159 conhecimentos adquiridos, puderam ir mais longe. Isso sem se desvincular dos municípios de origem. Em resumo, a FD campinense, não forjou elite política ou cultural. De feição mais funcional, coube-lhe distender-se democraticamente, sobre o conjunto da sociedade. 1.3 Espaço da mulher, estudantes e primazia da direção – Verdadeiro espaço da mulher graças à predominância desta em suas matrículas, o atual Centro de Ciências Jurídicas da UEPB temse aberto a usuários de primeira graduação. Tal se verifica em razão da acolhida das reivindicações do DCE, ativo na realização de Seminários e Congressos, máxime nas áreas de Direito Civil e Constitucional. Os discentes do curso de Direito da UEPB têm-se engajado em programas de extensão como PBIC e PROINCI, afóra Projetos de Cidadania e Direitos Humanos, além da Ciranda de Serviços do Governo Estadual. Com seu professorado recrutado mediante concursos e provas de títulos, a FD da UEPB de Campina Grande sempre adotou o sistema seriado de ensino. Tal evitou as desfigurações do sistema de crédito da reforma cêntrica da Lei de ensino 5.692, a certa altura adotada pela UEPB. Nesse sentido, a conversão da unidade de ensino campinense em Centro de Ciências Jurídicas pouco afetou a estrutura da instituição. Apesar da existência de dois Departamentos – um de Direito Público e outro de Direito Privado – o controle administrativo permanece(u) nas mãos da direção e vice-diretoria. São elas que direcionam os Cursos de Especialização e implementam convênios com a Faculdade de Direito da Universidade do Ceará, para execução do mestrado em Direito Constitucional. Presentemente, o alto comando do CCJ da UEPB articula-se com a UERJ para efetivação de (?) Doutorado Internacional. 1.4 Ligeiro histórico – Quando da criação, em 1967, a Faculdade de Direito de Campina Grande abrigava cem alunos dos quais metade aprovada no vestibular e a outra metade de graduados de outros cursos. O curso funcionava, inicialmente, nas dependências da Igreja Congregacional que mantinha o colégio dirigido pelo prof. Raul Costa, na rua Floriano Peixoto. As aulas eram ministradas nos turnos de manhã e noite, sendo o curso pago e não reconhecido. O SUMÁRIO 160 | M a g n o N i c o l a u ( O r g . ) reconhecimento somente sobreveio a 28 de agosto de 1972, após formada a primeira turma. A Faculdade de Direito de Campina Grande dispôs de endereços como o Seminário Diocesano e o segundo andar da Faculdade de Administração onde se graduou a primeira turma. Finalmente, ela se deslocou para o antigo Colégio Anita Cabral no qual se encontra até hoje. Antes da conversão em edifício próprio, esse prédio foi objeto de comodato entre a FD e o poder público. A primeira turma de bacharéis da FD graduou-se a 18 de dezembro de 1971, sendo constituída por 37 formandos dos primitivos 100. O Reitor da então Universidade Autônoma era o professor Antônio Lucena, sendo a FD dirigida pelo bacharel Wilson Aquino, formado em João Pessoa. Mediante a estadualização da Universidade Regional (URN), então convertida em Universidade Estadual da Paraíba, pelo Governador Tarcísio Burity, em 1988, durante o Reitorado de Sebastião Vieira, o curso de Direito tornou-se gratuito. Tal condição residiu na base da expansão de matrículas que saltaram para o contingente de 913 alunos, distribuídos por onze períodos que funcionavam nos turnos da manhã e noite, existindo algumas turmas extra, à tarde. 1.5 Ementa do curso – Aprovada pelo colegiado do curso sobre proposta formulada pela disciplina de História do Direito, a ementa do curso de Direito do CCJ da UEPB é de seguinte teor: “O curso de Direito da Universidade Estadual da Paraíba (UEPB) tem por finalidade formar o novo bacharel que, dotado de visão humanística, seja capaz de, mediante entendimento crítico do processo social, compreender o fenômeno jurídico de formação e aplicação da lei e da justiça, em seus aspectos teóricos e práticos. Nesse sentido, o curso, debruçado sobre a comunidade, como parcela da realidade regional nordestina, apoia-se em visão pluralista e democrática que orientará as atividades de ensino, pesquisa e extensão, integradamente desenvolvidas. Tudo isso visando à formação do cidadão consciente e capaz de amplificar, reorientando-os, os valores da comunidade”. Fácil é verificar que, apontando numa direção, o documento apresenta como palavras chaves as expressões “novo bacharel”, “visão humanística”, “entendimento crítico do processo social”, “fenômeno jurídico da formação da aplicação da lei e da Justiça”, SUMÁRIO Leituras Diversas: Crônicas, Ensaios e Contos | 161 “curso debruçado sobre a comunidade”, “parcela da realidade regional nordestina”, “visão pluralística e desenvolvida”, “cidadão consciente” e “valores da comunidade”. Movendo-se por entre esses conceitos, é assim que se desenvolve o curso de Direito do CCJ da UEPB, como expressão cultural de cidade que ora completa cento e cinquenta anos. SUMÁRIO 162 | M a g n o N i c o l a u ( O r g . ) IMAGINÁRIO POÉTICO EM O PADRE, A MOÇA, DE CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE José Pires Seria ilusório pensar que o imaginário é circunscrito à psicoterapia, à psicanálise, à pintura, à literatura e, por isso mesmo, à fábula, ao romance, à poesia. Sua presença em todos os saberes comprova a universalidade do imaginário. Platão tinha do imaginário uma visão matemática, e esta ciência dos números, modernamente, estuda fórmulas como a+bi, sendo a e b números reais, e i uma unidade imaginária de tal sorte que 12 =-1(i= ), ou aquilo que em matemática é chamado de número imaginário, integrado de elementos do real e elementos do imaginário. Mas numa coletânea de crônicas, ensaios e contos, que lugar e significado pode ter a análise do imaginário poético? Para responder a essa questão, gostaria de começar afirmando que a poética é, talvez, a mais significativa expressão do imaginário, pelo fato dela representar, em estado puro, o ato criador do imaginário poético. Minha experiência de educador me levou, algumas vezes, a explorar esse ato criador junto a crianças, nas quais o imaginário está presente em tudo aquilo que elas cogitam, dizem e fazem. Na atividade lúdica, na construção narrativa, na poética infantil. Desafiada a criatividade da criança através da imaginação, uma determinada história-estímulo, lida para elas, dá origem a tantas outras histórias diferentes quantas forem as crianças presentes na classe. Descobri, também, que a poesia é a primeira linguagem da criança. E nessa linguagem, o imaginário não tem fronteiras. O jogo prazeroso da linguagem infantil e do corpo tem uma função poética e, como função poética, são do domínio do imaginário. No processo do desenvolvimento infantil, um número significativo de elementos do psiquismo infantil se manifestam, constituindo um terreno propício para certos tipos de fecundação poética. SUMÁRIO Leituras Diversas: Crônicas, Ensaios e Contos | 163 E da infância à adolescência, da adolescência à idade adulta, o universo de cada indivíduo é povoado por uma intensa presença do imaginário, inspirando a maioria de suas criações, ações e interações com os outros e com o meio. Uma comprovação disso, por exemplo, são as narrativas com que o prezado leitor se depara ao longo desta obra. Malebranche afirmou, um dia, que a imaginação é a louca da casa. Mas isso foi no Século XVII. Através do tempo a imaginação reabilitou-se, transformou-se em gêmea da razão e inspiradora das descobertas e do progresso. Mas já que me propus explorar nestas páginas o imaginário poético de O padre, a moça, de Carlos Drummond de Andrade, apraz-me tratar aqui, com especificidade, a poética do imaginário, e como é possível transpor essa poética para os leitores, através de uma análise poética. Bachelard recomenda que quando nos referimos ao imaginário poético convém deixar de lado ciência e pesquisa, o passado cultural e até as prospecções das descobertas futuras, para estarmos com a nossa razão, nossos sentimentos e nossa sensibilidade presos à imagem, no momento exato em que a imagem poética toma conta de nós, seja através da construção poética, seja através da leitura das imagens poéticas de um determinado autor, pois, para Bachelard, se existe uma filosofia da poesia, ela deve nascer ou renascer no instante maravilhoso de um verso, na adesão integral a uma imagem, no êxtase da novidade de que é portadora a imagem poética. Quando abro Drummond e leio O Padre, a moça, nesse agrupamento de imagens múltiplas e complexas, nesses versos em movimento, as imagens se escoam na linha dos versos, arrastando consigo a imaginação. E à medida que a essência poética de Drummond se conecta com a minha sensibilidade, o ato poético assume, em mim, uma vivência presente. É uma explosão de sentimentos vivenciados no momento exato em que a poesia penetra em nossa alma: O padre furtou a moça, fugiu,. Pedras caem no padre, deslizam. A moça grudou no padre, vira sombra, Aragem matinal soprando no padre. SUMÁRIO 164 | M a g n o N i c o l a u ( O r g . ) Ninguém prende aqueles dois, Aquele Um negro amor de rendas brancas... A verdadeira medida do ser de uma imagem poética está na repercussão dessa imagem em nosso interior. Eu lendo o poema, o poeta não me transmite o seu passado: sua imagem poética, ao tocar minha sensibilidade de leitor, se transforma em presente. E esse presente é animado pelo ato poético, pela imagem repentina, pela chama do ser na imaginação, primeiro, na imaginação do poeta, em seguida, na minha imaginação de leitor: Lá vai o padre... Na capela ficou a ausência do padre... Longe, o padre vai celebrando vai cantando Todo amor é o amor e ninguém sabe Onde Deus acaba e recomeça... Só se poderia explicar, filosoficamente, o problema da imagem poética, através daquilo que Bachelard chama de fenomenologia da imaginação, que seria o estudo do fenômeno da imagem poética, quando essa imagem emerge na consciência como um produto direto da alma, ou do ser humano tomado em sua atualidade. E o que pode significar isso para o leitor de poemas? O que pode significar isso para o analista de poemas? Qualquer análise tem que associar o ato da consciência criadora - a produção poética - a esse produto fugaz da consciência -, ou que chega à nossa consciência, através da leitura: a imagem poética. Toda fidelidade da análise está na fidelidade dessa associação. Pela união, através da imagem poética, de uma subjetividade pura - que aponta para o ato criador - com uma realidade tão fugaz, como essa comunhão com o sentimento do poeta, o leitoranalista beneficia-se da partilha desse sentimento, que é dádiva e reflexo das imagens criadoras. Na arqueologia dinâmica das imagens poéticas de Drummond, o ato criador não se prende às coisas, mas à lição das coisas. É esse o título do livro de que é extraído o poema objeto da presente análise. Foi isso o que o poeta valorizou. SUMÁRIO Leituras Diversas: Crônicas, Ensaios e Contos | 165 Para sentir e amar - e tentar fazer sentir e amar aos outros a obra de Drummond, precisamos ir ao âmago em que tudo se origina: a alma. A alma poética, que conhece expressão no mundo das imagens. E em seu poema - O padre, a moça, revelam-se forças que ultrapassam o circuito do saber, ou que expressam um saber diferente, cujos polos são a alma e o espírito, e só ambos, conjugados, tecem a essência da imagem poética em suas diferentes nuances: Perdoai-nos, padre, porque vos perseguimos. E o padre não perdoa: lá vai Levando o Cristo e o crime no alforje E deixa marcas de sola na poeira. Chagas se fecham, tocando-as, Filhos resultam de ventre estéril, Mudos e árvores falam Tudo é testemunho. Só um anjo de asas secas, voando sobre Crateús Senta-se à beira-estrada e chora Porque Deus tomou o partido do padre... A evolução das imagens poéticas, em Drummond, segue as leis de um ciclone, de um furacão, de uma avalanche impossível de controlar. É um devaneio que frui do autor para invadir o sentimento dos leitores, e lhes permitir participar do ato criador. As ressonâncias emanadas do poema - mas cuja fonte é o poeta - nos permitem comungar da obra de arte. Pela ressonância, nós lemos o poema. Pela repercussão em nós da obra poética, nós o falamos, nós o vivemos, nós o sentimos, numa partilha de sentimentos. Infelizmente nenhuma análise pode igualar a riqueza da essência. Só a obra emite a luz, sem anteparos, do ato criador. Uma análise é sempre seu reflexo, uma aproximação da realidade, mas nunca a realidade pura. A riqueza absoluta é sempre o poema; a análise é sempre um eco dessa riqueza. Mas eco e reflexo que têm a intenção de fazer com que o ser do poeta se torne o nosso ser: a exuberância e a fecundidade do poema nos invadem como fenômenos de ressonância e repercussão. Com sua exuberância, é como se o poema renascesse, também, em nosso ser, num verdadeiro despertar da criação poética em nossa alma. SUMÁRIO 166 | M a g n o N i c o l a u ( O r g . ) Na voz de seu criador, a imagem poética põe em ação, na concomitância do imaginar e do dizer, uma extraordinária atividade linguística: é preciso retirar do pobre instrumento que é a palavra, toda a magia e beleza de sentimentos e emoções que traduzem a imagem poética, da mesma forma que do húmus da terra a natureza gera esta maravilha que é uma rosa. Ao relento, no sílex da noite, Os corpos entrançados transfundidos Sorvem o mesmo sono de raízes E é como se de repente se soubessem Uma unidade errante a convocar-se E a diluir-se mudamente Espaço sombra espaço infância espaço E difusa nos dois a prima virgindade Oclusa graça... E a linguagem poética como que também se torna nossa linguagem, pois através dela é que nasce, em nós, o sentimento. Mas aqui é que se estabelece a grande diferença entre o poeta e o analista: o poeta, através da linguagem poética veiculadora de sua imagem poética, vive o sentimento - até porque a língua é ato de palavra, como diz Searle, e o analista, embora partilhe desse sentimento, sua tarefa, como analista, é descrevê-lo ou interpretá-lo para os outros. O analista, então, descreve sentimentos, penetra na narrativa, como o faria o psicanalista, para desembaraçar o emaranhado de suas interpretações. Por uma espécie de fatalismo, o analista se torna escravo do método. Se, por exemplo, analisarmos o poema no modelo de uma semiologia da narrativa preconizada por Claude Brémond, que é um modelo estruturalista, acaba-se por intelectualizar a imagem poética. Intelectualizá-la é o mesmo que compreendê-la. A compreensão de uma imagem poética se realiza à luz de um contexto. Interpretar a imagem é traduzi-la em outra linguagem. Isso quer dizer que toda análise poética reclama o logos analítico, que é diferente do logos poético. Para o analista, então, se aplica o adágio: traduttore, traditore: todo tradutor é traidor. Do verbo, da riqueza da imagem, da beleza do sentimento. Mas, por outro lado, o analista é um leitor atento e privilegiado. O leitor se transforma em poeta ao nível da imagem lida. Di- SUMÁRIO Leituras Diversas: Crônicas, Ensaios e Contos | 167 ferentemente do poeta, em quem reside a essência do ato criador. Mas é um nível, o da imagem lida, de que o leitor-analista se pode orgulhar. E essa pontinha de orgulho, que o diferencia do crítico, que é um leitor severo, um leitor que só sabe julgar, nos leva a nos comprazer no lúdico da leitura: lemos e relemos aquilo que nos agrada, pois pela leitura poética revivemos nossas tentações de ser poeta. E se a leitura agrada e nos causa admiração, a alegria de ler passa a ser o reflexo da alegria de escrever. A expressão poética que nos causa prazer se tornas, para nós, uma tonificação de vida, uma razão de bem-viver, e isso é extremamente saudável para a nossa saúde mental. Mas em Drummond há sempre algo novo que nos surpreende. Melhor do que ninguém em Drummond se realiza a definição que Fernando Pessoa dá do poeta: O poeta é o que sempre excede o que pode fazer. Em Drummond a poesia surge como um fenômeno de liberdade e de libertação. Sua imagem poética é tão livre, tão espontânea, tão sublime e tão libertadora; e, concomitantemente, a tudo isso, tão criadora de beleza e imortalidade, que nele se concretiza plenamente outra afirmação de Pessoa: Nenhum poeta tem o direito de fazer versos porque sinta a necessidade de os fazer. Há só a fazer aqueles cuja inspiração é perfumada de imortalidade. É o que Drummond fez, e o que em nossa visão, nós tentamos passar aos leitores. SUMÁRIO 168 | M a g n o N i c o l a u ( O r g . ) EDUCAÇÃO...ESSE DILEMA Maria do Socorro Cardoso Xavier Hoje se fala em educação a distância. É o “dernier cri” da educação. Sucesso em vários países: Inglaterra, Espanha, África do Sul, Canadá. Tudo isso possível com o uso e telecomunicações, computador e internet, além do uso já vulgarizado do rádio e televisão. No Brasil, quase toda casa de baixa renda a duras penas possui um rádio e um aparelho de TV, contribuindo para que as crianças aprendam mais da televisão do que da escola. Já não acontece o mesmo com relação ao computador e vídeo cassete, estes adquiridos por pessoas de classe média, incluindo profissionais liberais, bem como outros produtos eletrônicos. A questão é bem mais complexa. No Brasil, a questão da boa aprendizagem passa pelo viés de iniciativas públicas, verbas destinadas à educação, professores melhores qualificados e condições materiais de ensino, emprego para os pais dos alunos, saúde, enfim, toda uma estrutura que venha contribuir com uma boa aprendizagem escolar. A educação a distância não funciona, portanto onde não há utensílios dos meios de comunicação. Nem as Escolas, em sua maioria, principalmente pública, estão equipadas com tais aparelhos eletrônicos. Quando muito há um televisor para toda escola. Na nossa realidade socioeconômica atual, a educação à distância é algo ainda bem remoto e complicado. Fez sucesso nos países de primeiro mundo, onde a renda per capita é alta; requer ainda muita maturidade por parte de quem a utiliza. A avaliação, capítulo muito difícil da aprendizagem, como ficaria? Se com a presença e acompanhamento do professor é uma tarefa complexa, avalie com a ausência do elemento controlador. O ser humano, o educando, necessita de clima de liberdade, mas também de certos limites, no mínimo de disciplina. Ligando e des- SUMÁRIO Leituras Diversas: Crônicas, Ensaios e Contos | 169 ligando dígitos onde ficaria a relação ensino-aprendizagem, a poesia deste encontro... O estudante necessita do indispensável contato humano, das trocas, para seu crescimento espiritual e psíquico. Isto é possível com a empatia da presença constante e dedicação do educador, do orientador, do professor. O calor humano, o contato face a face, olho no olho, posturas e sorriso, que mantém o elo afetivo entre eles. A educação é sobretudo a arte de capacitar o homem para a vida social, a formar-se uma personalidade harmoniosa e fecunda; cada indivíduo é uma síntese de elementos afetivos, intelectuais e ativos. Há diferenças individuais, são benéficas e devem ser respeitadas e estimuladas, na formação de várias aptidões, sem dúvida, úteis ao desenvolvimento das complexas funções dentro da sociedade. A educação será tanto melhor quando não nivele mentalmente os educandos; deve-se, sim, estimulá-los a seguir suas potencialidades latentes. A escola deve ser a ponte entre o lar e a sociedade: que se proponha formar o cidadão para a vida. Para tal, a criança necessita de atmosfera de solidariedade, confiança; sentir que aquelas atividades sejam agradáveis e de proveito para sua vida. As primeiras noções de conduta devem ser transmitidas à criança num ambiente de carinho e amor. Um conselho, um exemplo ensinam mais que um manual. Uma ação vale mais que mil palavras, diz a sabedoria popular. Fica difícil conceber que uma educação a distância seja catalisadora de princípios éticos e humanos. Longe de estar defendendo a tese de que os meios de comunicação avançados e velozes sejam nocivos ao avanço da sociedade e da educação. Só que devem funcionar como complemento, meio; nunca, por si só, bastando. Geraria pequenos monstrinhos isolados, carentes de presença humanas. Muitos deles, frágeis, não suportariam o solipsismo desanimador. A educação torna-se eficaz quando respeita a vocação dos educandos, considerando seus temperamentos suas inclinações. Nada mais detestável que um estudo forçado, distorcido ou a privação daquilo que se deseja aprender. Nunca se deveria reduzir todos a um denominador comum, como acontece nas produções em série, nas sociedades de consumo. Mesmo por que a sociedade irá cobrar aptidões heterogêneas ante as infinitas funções que exige o mundo moderno, prestes a constituir numa grande aldeia global. SUMÁRIO 170 | M a g n o N i c o l a u ( O r g . ) O mal das nossas escolas, entre outros, é não preparar o aluno para a ação cívica. O trabalho e a leitura deveriam se desenvolver simultaneamente desde os primórdios em qualquer tipo de ensino-aprendizagem. É abominável sobrecarregar a memória do aluno com palavras e fatos obsoletos, sem desenvolver outras aptidões e incentivar os sentimentos de solidariedade social. Deixar livre a manifestação das emoções, despida de preconceitos. Sempre aliar teoria à prática, dosando o racional com o manual; o abstrato, com o concreto, e por aí transformar uma aprendizagem estática em funcional e mutável, adaptando-se às necessidades individuais e do meio. A oportunidade de aprender deve ser permanente e infinita. A vida cívica escolar deveria formar o cidadão, opinando e deliberando em assembleias, propor iniciativas, adquirindo o hábito de ser livre e verdadeiro. Só assim iria aperfeiçoando o caráter, sendo um homem e não apenas agente passivo da história. Uma educação que se preza deve ir além dos limites estreitos da aula. Salutares excursões educativas à natureza, às instituições diversas. Inclusive, as Universidades deveriam colocar a serviço de todos os resultados de suas pesquisas científicas, sem desprezar a inteligência emocional, contribuir para a formação da consciência social do cidadão. O verdadeiro educador não se move para o magistério apenas por fins lucrativos, e estes nem existe, mas por vocação a pedagogia. De sementes germinadas, brotariam flores, em forma subjetiva, os sentimentos dos educandos. O verdadeiro educador não é um autômato, repetidor de programa, mas um despertador de vocações variadas, que se encontram em latência na criança e no adolescente. Até mesmo no nosso universitário imaturo e carente. O lema deveria ser: ensinar a fazer, fazendo; a pensar, pensando; a discutir, discutindo; a amar, amando. Dever-se-ia excluir da direção educativa as influências políticas, burocráticas e dogmáticas. Elas corrompem, rebaixam o nível do aprendizado, esclerosas e conspiram contra a liberdade de pensar. Na antiguidade, muitos dos professores eram escravos, mais tarde foram os servos, hoje são assalariados; muito mal pagos, ante uma responsabilidade social tão grande. Ao professor deveria ser assegurado o seu bem-estar material como compensação por tão SUMÁRIO Leituras Diversas: Crônicas, Ensaios e Contos | 171 honrosa tarefa: formar cidadãos, homens, sujeitos ativos da História. O professor é sobrecarregado com tantas horas de trabalho, exige-se mais quantidade do que qualidade do seu árduo trabalho educativo. Crasso erro...Com menos horas o educador poderia ensinar o aluno a pensar do que ser um mero repetidor de compêndios alheios, cujos ensinamentos formais podem não ser verdadeiros. Não resta dúvida de que as novas gerações necessitam adaptar-se às condições de impacto geradas pelo mundo da informática; só não devem é ser tragadas por ela. Educar é desenvolver a capacidade de trabalhar, trabalho este que dignifica o homem, mas sem excluir o convívio humano, a troca, o intercâmbio, as nuances espirituais. Ensinar e aprender e aprender para ensinar é uma relação dialética indispensável para a continuidade do conhecimento. Da cultura e da educação. Que os meios de comunicação venham auxiliar o homem na busca incessante de dados e conhecimento universal, em menor espaço de tempo possível, nunca um fim em si mesmo, a transformar o cidadão num autômato, isolado das relações humanas e sociais. SUMÁRIO 172 | M a g n o N i c o l a u ( O r g . ) A LINGUAGEM REGIONAL POPULAR DE JOSÉ LINS DO REGO Maria do Socorro Silva de Aragão1 "A obra de José Lins do Rego, é ele mesmo. É profundamente triste. É uma epopeia da tristeza, da tristeza da sua terra e da sua gente, da tristeza do Brasil". Otto Maria Carpeaux (Fogo Morto) INTRODUÇÃO O Estado da Paraíba, um dos menores da Federação, é conhecido não só por sua capacidade de luta e resistência, mas, principalmente, por seus filhos ilustres, que se destacaram e ainda se destacam nacionalmente na política, nas artes ou na literatura. Nomes como João Pessoa, Epitácio Pessoa, José Américo de Almeida, José Lins do Rego, Pedro Américo e Augusto dos Anjos ilustram a afirmação acima. Porém, a própria Paraíba muitas vezes não se dá conta, não reconhece e conseqüentemente não reverencia seus filhos ilustres, com as exceções de praxe. José Lins do Rego, um dos mais importantes escritores paraibanos e nacionais, com uma obra multifacetada que abrange do romance às memórias, passando pelos relatos de viagens, crônicas e literatura infantil, é aqui lembrado, numa homenagem, embora tardia, pela passagem dos seus cem anos de nascimento. 1 A LINGUAGEM DE JOSÉ LINS Professora da UFPB e da UFC. Membro da Academia de Letras e Artes do Nordeste, da Academia Feminina de Letras e Artes da Paraíba e da União Brasileira de Escritores – UBE-PB 1 SUMÁRIO Leituras Diversas: Crônicas, Ensaios e Contos | 173 José Lins do Rego como escritor da chamada geração de 30, cujas narrativas enfatizavam mais a natureza em detrimento do homem, conseguiu ultrapassar esse estereótipo mudando o eixo de gravidade da natureza para o homem, em sua ficção. Segundo alguns estudiosos, foi em Fogo Morto que José Lins do Rego sintetizou sua ficção que, segundo Abdala Júnior, é muito mais inovadora em termos de arte, que as demais do chamado ciclo da cana-de-açúcar, publicadas anteriormente: Menino de Engenho, Doidinho, Bangüê, O Moleque Ricardo e Usina. José Lins em suas obras de ficção usou a palavra de forma precisa e artística, nos seus níveis e registros e nas suas variações regionais, a partir do perfeito domínio da norma culta padrão, a fim de descrever a decadência dos engenhos de açúcar do Nordeste, com a conseqüente deteriorização da estrutura econômico-social daqueles que neles viviam. Estudar e analisar lingüisticamente a obra de José Lins do Rego é um exercício fascinante, que oferece surpresas a cada nova abordagem que dela se faça. A obra de José Lins é riquíssima para análises do ponto de vista da Sociolingüística, ciência que estuda as relações entre a língua e a sociedade, suas inter-relações e o papel que cada uma exerce sobre a outra, determinando os níveis ou registros de fala, que vão desde o nível mais informal da modalidade falada ao mais formal da modalidade escrita, que é o literário, correlacionando-os com o nível sócio-cultural de seus usuários. São as variações sócioculturais, também chamadas diastráticas, que determinam as diferenças entre a linguagem erudita e a popular, entre outras. Já para as análises sob a visão da Dialetologia, que estuda os diversos tipos de variação que a língua apresenta, correlacionando-a não com o nível sócio-cultural do falante, mas com a região a que ele pertence, temos exemplos significativos em José Lins do Rego. As variantes regionais ou diatópicas, caracterizam os aspectos regionais da sua linguagem. A integração das duas ciências, a Sociolingüística e a Dialetologia é que nos permite analisar a linguagem do autor vendo-lhe os aspectos erudito, popular e regional. Assim, José Lins do Rego, autor da linha regionalista da literatura brasileira é fonte da maior significação para o estudo das SUMÁRIO 174 | M a g n o N i c o l a u ( O r g . ) variações lingüísticas, diatópicas e diastráticas, ou seja: variações regionais e sócio-culturais. Outro tipo de variação que também pode ser estudada em José Lins é a diafásica ou estilística. A temática, a estrutura literária e a linguagem de suas obras caracterizam, com rara precisão, o nosso povo, seu falar, costumes, crenças e tradições, e seu modo de ser, viver, pensar e agir, dentro do seu universo sócio-lingüístico-cultural. Sua linguagem popular se manifesta, basicamente, no léxico, com um vocabulário de palavras e expressões regionais/ populares. 2 A ESTRUTURA DO ROMANCE FOGO MORTO Fogo Morto é um romance de estruturação tridimensional que desenvolve como tema central a decadência econômica, social e individual dos engenhos de cana-de-açúcar no Nordeste e de seus habitantes. A obra possui três personagens principais: o mestre José Amaro, artesão, seleiro, pobre, doente, porém orgulhoso e revoltado com a própria situação, de adversidades, perseguições e humilhações, levando-o ao final a se ligar ao cangaceiro Antônio Silvino. Ao falar do mestre José Amaro diz Mário de Andrade: [...] na análise magistral do mestre José Amaro, Lins do Rego nos dá um personagem popular e analfabeto, sem o primarismo falso, este sim, primarismo analfabeto, com que os nossos romancistas ‘sociais’ concebem e expõem o homem do povo como um ser de psicologia fácil, precária e lógica. Precários são eles!2 O segundo personagem é o Coronel Lula de Holanda, símbolo do senhor rural decadente, arruinado, dono de engenho de "fogo morto" e que com a família vive, ilusoriamente, do fausto de outrora. ANDRADE, Mário. Fogo morto. In : REGO, J.L. do. Fogo morto. Rio de Janeiro : José Olympio, 1980, p. 263. 2 SUMÁRIO Leituras Diversas: Crônicas, Ensaios e Contos | 175 Casado com a herdeira de um engenho (o Santa Fé), o coronel Lula é o próprio retrato da decadência. Sem futuro, seja em termos familiares ou econômicos, o coronel apega-se rigidamente ao passado e mantém, apesar de tudo, seu ar aristocrático em meio à desagregação total de seu mundo[..].3 O terceiro personagem central da obra é o Capitão Vitorino Carneiro da Cunha, apelidado "Papa- Rabo", idealista, sonhador e solidário com os fracos e oprimidos, sendo, segundo alguns autores, a maior criação literária de José Lins do Rego. O PROF. ANTÔNIO CÂNDIDO DIZ QUE EM VITORINO : [...]a força do ideal se sobrepõe a realidade da decadência e do ridículo. Redimido pela paranóia heróica, o velho Vitorino se eleva no conceito do público. Os pequenos começam a respeitálo. O cego Torquato acha que ele é mandado por Deus. É o único que enfrenta os mandões, castiga os prepotentes, defende os oprimidos. A sua candura e sua coragem fazem dele um campeão. O único homem da várzea com sentimento e consciência das necessidades sociais e dos problemas políticos, porque não se aproximou deles com a bruteza dos chefes nem com a malícia habilidosa dos políticos, mas com a direta ingenuidade dos puros4 Comentado os personagens de Fogo Morto, diz-nos ainda Mário de Andrade: [...] Fogo Morto chega a ter exatamente a forma e o espírito da sonata [...] tratado em três temas, três melodias, três partes. E estas três partes correspondem ainda ao movimento rítmico da sonata: um alegro inicial que é a zanga destabocada de mestre José Amaro, um andante central que é o mais repousado Lula de Holanda na sua pasmaceira cheia de interioridade não dita, REGO, José Lins do. Fogo morto. Guias de Leitura. Porto Alegre : Mercado Aberto, s/d, p. 25/26. 4 CÂNDIDO, Antonio. Brigada ligeira. São Paulo: Martins, 1945. 3 SUMÁRIO 176 | M a g n o N i c o l a u ( O r g . ) e finalmente o presto brilhante e genial do Capitão Vitorino Carneiro da Cunha.5 Como bem recorda Eduardo Coutinho, a propósito de Fogo Morto: A problemática básica do romance - a decadência de toda uma estrutura sócio-econômica baseada no engenho de açúcar - se expressa através da atuação concreta (quer sob a forma de fala quer de ação mesmo), dos personagens que integram o universo diegético, aqui centrado em torno de dois grandes núcleos: O engenho de S. Lula e a casa do Mestre José Amaro e continua: Fogo Morto[...] é a radiografia da realidade nordestina em um momento de crise: o da dramática transição entre os engenhos decrépitos e a usina nascente6. 3 A LINGUAGEM DE FOGO MORTO José Lins utiliza como recurso estilístico em Fogo Morto, uma série de estratégias lingüísticas que dão ao seu texto um sabor especial de nordestinidade, de campo, de interior, de pessoas simples que aplicam à vida todos os conhecimentos adquiridos por herança cultural do povo nordestino. O autor utiliza-se de um léxico regional/popular nordestino, usa arcaísmos, faz comparações, concretiza abstratos, generaliza termos específicos, usa aumentativos com efeitos expressivos, reduplica a negação, usa cantigas populares, provérbios e frases feitas, além de usar, com maestria, a linguagem formal erudita em personagens populares. Tudo isto marca a expressividade da linguagem de José Lins em Fogo Morto. Vejamos alguns exemplos: 3.1 Aspectos Léxicos 3.1.1. Falar Regional-Popular ANDRADE, Mário. Fogo morto. In : REGO, J.L. do. Fogo morto. Rio de Janeiro : José Olympio, 1980, p. 262/263. 6 COUTINHO, Eduardo. A relação arte/realidade em Fogo Morto. In : Ensaios sobre José Lins do Rego. João Pessoa : FUNESC, 1987. 5 SUMÁRIO Leituras Diversas: Crônicas, Ensaios e Contos | 177 É no léxico onde o caráter regional-popular da obra de José Lins do Rego aparece mais fortemente e "Fogo Morto" não é uma exceção a esta regra. Os termos e expressões regionais/populares marcam, de forma inequívoca, o escritor nordestino que usa a linguagem de seu povo e de sua terra de forma magistral também nesta obra. Vejamos alguns exemplos ilustrativos a) Vasqueiro - raro, escasso, difícil. Muito trabalho, mestre Zé? Está vasqueiro. (p. 15) b) Camumbembe - Indivíduo pobre, vadio, vagabundo, mendigo. Estava trabalhando para camumbembes. Era o que mais lhe doía ( p.20) c) Tangerino - Aquele que tange os animais, na viagem. Almocreve. Um tangerino passou por aqui e me encomendou esta sela e uns arreios.( p. 15) d) Fazer-se na faca - Empunhar, agredir com arma, brigar com faca. Alípio se fez na faca, espalhou a feira.(p. 19) e) Meter-se a besta - Tornar-se atrevido, fazer-se de importante, provocar, insultar. O cabo ficou para um canto de bofe de fora, e um soldado, que se metera a besta não ficou para contar a história. (p. 19) f) Ser duro de roer - Redução da expressão "osso duro de roer": Situação ou coisa de difícil solução; pessoa de difícil trato: Está aí, o seu Álvaro do Amora custa a pagar. É duro de roer, mas gosto daquele homem. (p.5) g) Botar canga - Dominar, submeter, escravizar. É verdade que senhor de engenho nunca me botou canga. Vivo nesta casa como se fosse dono. (p. 7) 3.1.2 Arcaísmos Outro aspecto importante do léxico de Fogo Morto é o uso de palavras e expressões arcaicas que, de modo geral, demonstram SUMÁRIO 178 | M a g n o N i c o l a u ( O r g . ) o isolamento em que vivem os personagens em seu ambiente tanto de vida como de trabalho, no interior do nordeste. a) Calibre - tamanho ou grandeza consideráveis; valor reconhecido; merecimento. Não se casa porque não quer. É de calibre, como a mãe. (p. 7) b) Latomia - Cântico monótono de ladainha; litania. Não quero ouvir latomia de igreja na minha casa. (p. 8) c) Peitica - Pessoa que perturba, que incomoda Vai ser esse choro, esta peitica até anoitecer. (p. 8) d) Camumbembe - Indivíduo de baixa condição social Estava trabalhando para camumbembes. (p. 10) e) Cabriolé - Carruagem pequena, lele e rápida, de duas rodas, capota móvel, e movida por apenas um cavalo. Era o cabriolé do Coronel Lula enchendo de grandeza a pobre estrada....(p. 12) 3.2 Aspectos Morfossintáticos As estruturas morfossintáticas utilizadas por José Lins têm, basicamente, a marca da linguagem erudita, porém pode-se nelas encontrar alguns aspectos típicos da linguagem regional popular. 3.2.1 Concretização de Abstratos a) Bem, mestre Zé, muito obrigado, mas o sol está caindo. (p. 9) b) ...mais uma vez o silêncio da terra se perturbava com o seu martelo enraivecido. (p. 10) c) Havia uma mágoa profunda nele. (p. 18) d) Pela estrada gemia um carro de boi, carregado de lã. (p. 20) e) A tarde macia, com céu azul, e o sol morno cobrindo a verdura da várzea. (p. 238) 3.2.2 Generalização de termos específicos a) É, mestre José Amaro sabe trabalhar, não rouba a ninguém, não faz coisa de carregação. (p. 16) b) Tenho visto passar muito troço. (p. 26) SUMÁRIO Leituras Diversas: Crônicas, Ensaios e Contos | 179 c) Por que seu Augusto não manda consertar esta bicha na cidade? ( p. 16) d) Ele já botara para dentro da sala os seus petrechos de trabalho. (p.13) e) Então, mestre Zé, está enchendo a barriga desde gringo? (p. 45) 3.2.3 Uso de aumentativos expressivos de intensidade a) E deu pela sela um preção. (p. 16) b) Ouvi outro dia na feira do Pilar, um figurão de Itabaiana gabando o seu trabalho. (p. 16) c) Estão dizendo, comadre, que aquele amarelão dele é que faz o mestre correr de noite como bicho danado. (p. 41) d) Os bichões da Ribeira dão banquete a ele como governador...(p. 45) e) Moção meu compadre. Moção para casar. (p.49) 3.2.4 Repetição da negativa a) b) c) d) e) Mestre Zé, não tenho culpa de nada não ... (p. 24) quero falar não, mas digo aqui ao senhor... (p. 25) Não é não, mestre Zé. (p. 24) Não quero falar não, mas digo aqui ao senhor... (p. 15) A velha não vai indo bem, não. (p. 21) 3.2.5 Uso de comparações a) ...cabra muito do sem-vergonha, atrás dos grandes, como cachorro sem dono. (p. 24) b) ...que aquele amarelão dele é que faz o mestre correr de noite como bicho danado. (p. 41) c) ...tropeçou nas raízes da pitombeira e foi ao chão como um jenipapo maduro. (p.22) d) Estava branco como algodão, de corpo mole. (p. 22) e) Era duro demais, era como um cordeiro cheio de espinhos. (p. 24) SUMÁRIO 180 | M a g n o N i c o l a u ( O r g . ) 3.2.6 Uso de elementos da cultura popular 3.2.6.1 Cantigas Populares O personagem Zé Passarinho, que tinha este nome por viver cantando, cantava toadas e romances da literatura popular oral e do romanceiro tradicional, como por exemplo: Quem matou meu passarinho É judeu, não é cristão Meu passarinho tão manso Que comia em minha mão Quando eu vim da minha terra Muita gente me chorou E a danada de uma velha Muita praga me rogou /-/-/“Ô lá lá vira a moenda Ô lê lê moenda virou Quem não tem uma camisa, Pra que quer um palitô? O caixeiro bebe na venda, O patrão no varadô, Eu estava em Itabaiana Quando a boiada passou, ô lê lê vira a moenda O lê lê moenda virou” -/-/-/b) Filho que faz isto ao pai Bem merece ser queimado Por sete carros de lenha E por mim bem atiçados. Filho que faz isto ao pai Bem merece ser degolado, Por sete folhas de navalhas SUMÁRIO Leituras Diversas: Crônicas, Ensaios e Contos | 181 E por mim bem afiadas. Tende não, minha justiça Minha justiça real; Esta princesa que vedes Meus palácios vai gozar". 3.2.6.2 Provérbios e Frases Feitas Outra das formas utilizadas por José Lins, em Fogo Morto, são os provérbios e frases feitas que são do conhecimento popular e passam de pais para filhos em todo o nordeste. a) Osso duro de roer - É duro de roer, mas gosto daquele homem. (p. 5) b) Cavalo velho, capim novo - Quero lá saber de cuidado de mulher velha! Cavalo velho, capim novo, comadre Sinhá. (p.21) c) Estar em petição de miséria - Os arreios do cabriolé estavam em petição de miséria, tudo podre, levado do diabo. (p. 27) d) Valer pelo que é e não pelo que tem - Seu Laurentino - foi ele dizendo - ,um homem vale pelo que é e não pelo que tem. (p. 18) e) Quer chova quer faça sol - Não tem jeito não! É aquilo mesmo, quer chova quer faça sol. (p. 32) CONSIDERAÇÕES FINAIS O estudo e análise das obras de ficção de José Lins do Rego oferecem possibilidades as mais variadas, fato comprovado pelas centenas de trabalhos publicados sobre sua obra, em vários níveis, abordando novos e diferentes aspectos, desde artigos e ensaios até teses de doutorado. Porém, queremos concordar com Otto Maria Carpeaux quando diz: SUMÁRIO 182 | M a g n o N i c o l a u ( O r g . ) Os fatos, contam-se, os problemas, interpretam-se, José Lins do Rego, porém, é um conteur nato. Contar histórias é a sua profissão ... e mais adiante: José Lins do Rego é o último dos contadores profissionais de histórias, com ele, a espécie extinguir-se-á. É como um narrador de contos de fadas.7 REFERÊNCIAS ABDALA JÚNIOR, R. Os ritmos do tempo em torno do engenho. In: REGO, José Lins do. Fogo morto. São Paulo: Círculo do Livro, 1984. ARAGÃO, Maria do Socorro Silva de. A linguagem regional/popular na obra de José Lins. João Pessoa: FUNESC, 1990. ARAGÃO, M. do Socorro Silva de et al. Cartilha literária José Lins do Rego. João Pessoa: FUNESC, 1990. BATISTA, M. de Fátima B. de M. A propósito da citação popular em Fogo Morto de José Lins do Rego. João Pessoa: 2003. (mimeo.) CÂNDIDO, Antonio. Brigada ligeira. São Paulo: Martins, 1945. CARPEAUX, Otto Maria. O brasileiríssimo José Lins do Rego. In. REGO, José Lins do. Fogo morto. São Paulo: Circulo do Livro, 1984. COUTINHO, Eduardo F. A relação arte/realidade em Fogo Morto. In: Ensaios sobre José Lins do Rego. João Pessoa: FUNESC, 1987. PONTES, M. das Neves A. de. A influência da língua falada em Menino de Engenho, de José Lins do Rego. João Pessoa: Academia Paraibana de Letras, 1992. _____. Linguagem regional/popular: uma visão léxico-semântica de Menino de engenho, de José Lins do Rego. João Pessoa: CEFET/PB, 2002. REGO, José Lins do. Fogo morto. São Paulo: Círculo do Livro, 1984. _____. Fogo morto. Guias de leitura. Porto Alegre: Mercado Aberto, [s.d.]. CARPEAUX, Oto. O brasileiríssimo José Lins do Rego. In : REGO, J.Lins do. Fogo morto. São Paulo : Círculo do Livro, 11984. 7 SUMÁRIO Leituras Diversas: Crônicas, Ensaios e Contos SUMÁRIO | 183 184 | M a g n o N i c o l a u ( O r g . ) RELENDO “INSÔNIA” DE GRACILIANO RAMOS (1892-1953) Marinalva Freire da Silva 1- Algumas considerações sobre a obra Graciliano Ramos, memorialista por impulso e ficcionista pelo domínio da técnica, parece haver erigido Insônia com as sobras emocionais de suas obras maiores, aproveitando o bagaço da cana que restou da moenda, conforme dizem os críticos. Trata-se de um volume de contos feito, portanto, dos retalhos memorialísticos. É uma coletânea de treze contos: Insônia, Um ladrão, O relógio do hospital, Paulo, Luciana, Minsk, a Prisão de J. Carmo Gomes, A testemunha, Ciúmes, Um pobre-diabo, Uma visita e Silveira Pereira. Estes contos, reunidos no volume Insônia e escritos na primeira e terceira pessoa (predominando a última), são de qualidade desigual, se bem que estejam permeados da visão psicológica do autor: Insônia, Um ladrão e Minsk dão ideia de haverem sido escritos fora do planeta Terra. É oportuno registrar que o conto, para Graciliano ramos, foi um dos primeiros exercícios literários em prosa, o que justifica ser Insônia considerada pela crítica a obra mais fraca do autor. Em linhas gerais, toda obra de Graciliano Ramos, cujos recursos artesanais são solicitados para corporificar vivências e projetos de seu universo interior, encerra problemas de construção típicos que lhe realizam a ficção, ampliada continuamente. Para tanto, apoia-se numa realidade - o Nordeste agrário da zona alagoana, sua passagem para a sociedade industrial e urbana, a pressão esmagadora das máquinas sobre seres frágeis e despreparados, a seca, a miséria, o lavrador. O homem e o mundo de Graciliano Ramos expressam uma visão trágica do ser, refletida na contenção e arquitetura romanesca consciente em suas dimensões. Todas as suas personagens são angustiadas, revoltadas. A realidade nas suas obras é, portanto, diferente, posto que as personagens vivam em um mundo intros- SUMÁRIO Leituras Diversas: Crônicas, Ensaios e Contos | 185 pectivo. Seus problemas são de ontem, hoje e sempre, ligados à sobrevivência do homem em sociedade e ao constante desejo de esmagar o outro. Sente-se em Graciliano Ramos a situação antitética do homem, animal social, qual seja, a vida em sociedade convidando à comunhão ao mesmo tempo em que trava luta – luta pelo poder, pelo domínio, pela riqueza do amor; luta em que o fraco é abatido. A estrutura social em Graciliano Ramos subsiste em função do acontecimento humano – em todos, a exploração dos crimes interiores, as personagens dependendo das circunstâncias (guerra, revolução, seca, miséria) a fim de evidenciarem os dramas. A representação social é resultante do núcleo humano, as personagens em parte são relacionadas com a condição humana, e só depois surgem na dependência do regionalismo. É surpreendente como o gregarismo social e político em Graciliano Ramos sempre foi uma ausência, mas ele não era um ser sociável, era esquivo, enigmático, de poucas palavras. Colocando-se na linha do moderno romance regional, o autor fixou a paisagem e o homem do Nordeste, sentindo-lhe as dificuldades, a luta, a reação, deu um cunho de universalidade à sua obra, ampliando o individual que se destaca na grandeza do completamente criado, do que permanece. Os críticos (1975; 1977) são uníssonos em afirmar que o trato excessivo da linguagem distancia-o dos outros regionalistas nordestinos dos anos 30 do século passado, na maioria, pouco afeitos ao aprimoramento estilístico, sendo considerado, por conseguinte, um clássico de nossa língua, juntando-se a Machado de Assis, embora se perceba uma prosa áspera, dura às vezes, à feição da fala rude dos sertanejos nordestinos. Através dessa linguagem desnudada de toda ornamentação inútil, Graciliano Ramos projeta uma paisagem humana desolada, formada de subhumanos, seres semelhantes a bichos acuados, condicionados por um sentimento fatalista ao qual Antonio Candido (1975; s/d) faz alusão. Assim é a visão do nordeste deste escritor alagoano. O pitoresco da paisagem física e dos costumes não existe. Sua preocupação é antes o homem como produto do meio, o que comprova a tendência psicológica, embora este aspecto não invalide o regional. SUMÁRIO 186 | M a g n o N i c o l a u ( O r g . ) 2 - Breve reflexão sobre Insônia As situações que, nos romances, são subsidiárias da estruturação psicológica das personagens, vão constituir o tema central de dois contos de Graciliano ramos: Insônia e O relógio do hospital, ambos narrados na primeira pessoa. Seus protagonistas parecem recolher e sintetizar as experiências desagradáveis das personagens de São Bernardo e Angústia. Narra o do primeiro conto sua alucinação diante de um dilema irracional. Despertou bruscamente, como se agarrado por uma mão poderosa que lhe puxava os cabelos, enquanto uma voz lhe sugeria: “sim” ou “não”? A cadência uniforme da interrogação tola passa a se confundir com o ritmo de um relógio perdido na perplexidade de opiniões vagas que a razão não consegue ordenar. Esgotado pela agitação provocada pela insônia, com a mente confusa por alucinações exaustivas e inexplicáveis, o narrador deixa entrever dois traços marcantes de sua psique: a aversão pelos sons característicos do pêndulo e a identificação do tempo exterior com os limites convencionais da vida real. “Um, dois, um, dois. Certamente são as pancadas de um pêndulo inexistente. Um, dois, um, dois. Ouvindo isto, acabarei dormindo sentado” (RAMOS, 1965, p. 17). “Sim, não, sim, não. Um relógio tenta chamar-me à realidade. Que tempo dormi? Esperarei até que o relógio bata de novo e me diga que vivi meia hora, dentro deste horrível jato de luz” (RAMOS, 1965, p. 19). No decorrer da leitura do conto, nota-se que a angústia dessa personagem está no desespero de se manter ciente do tempo, acompanhar a curva dos ponteiros para poder assumir totalmente a responsabilidade de sua missão no tragicômico da vida. O relógio, então, passa a ser um instrumento de tortura, mas também de necessidade vital para a sobrevivência. “Terá parado o maldito relógio?” (RAMOS, 1965, p. 24). A personagem principal do segundo conto, “O relógio do hospital” é mais uma vítima das pancadas monótonas de um relógio inoportuno. O enfraquecimento físico, obrigando-o a permanecer num leito de hospital, o faz presa fácil dessa tortura dissolvente. O tique-taque lento e as badaladas fanhosas saturam o espírito debilitado do paciente e, do seu inconsciente surge a ideia de que tudo na vida é controlado pelo tempo. Em virtude do estado de debili- SUMÁRIO Leituras Diversas: Crônicas, Ensaios e Contos | 187 dade, emerge a seguinte ideia do inconsciente da personagem: “Silêncio. Por que será que esta gente não fala e o relógio se aquietou? Uma idéia acabrunha-se. Se o relógio parou, com certeza o homem dos esparadrapos morreu. Isto é insuportável. Por que fui abrir os olhos diante da amaldiçoada porta?” (RAMOS, 1965, p. 55). Em Um ladrão, peça inspirada pelo que lhe contou um presidiário, conforme confissão de Graciliano Ramos em Memórias do cárcere, o delírio começa quando o ventanista inexperiente resolve saltar o portão de uma casa rica. “O que desgraçou por toda a vida foi a felicidade que o acompanhou durante um mês ou dois” (RAMOS, 1965, p. 28). O desastre é inevitável, e a angústia predomina. Em Um ladrão há uma personagem secundária que narra na primeira pessoa fatos diversos que ocorreram com a personagem principal. Seu papel é de um observador atento mas recatado, que passa despercebido ao leitor na maior parte da narrativa, só se evidenciando no final, quando se separa dos acontecimentos para formular um juízo moral pessimista sobre cena presenciada. Essa situação de narrador personagem secundária não voltará a se repetir em toda a obra escrita na primeira pessoa, pois a narração estará sempre a cargo da personagem principal, mesmo nos contos de Insônia, que por serem descrições de ambientes, pessoas, estados de alma, podiam continuar o processo de um ladrão. Os contos Insônia, O relógio do hospital, Paulo e Silveira Pereira cujo protagonista principal é o narrador, estão escritos na primeira pessoa. A maioria dos contos de Insônia estão escritos na terceira pessoa são menos perfeitos que os escritos na primeira (pessoa), o que não se deve ao foco narrativo em si, mas a quatro fatores, visto que sob qualquer foco narrativo pode um conto ser estruturado com igual êxito. Tendo em vista que o conto é uma narrativa muito marcada pela concentração unitária de ação, tempo e espaço, e servida pelo diálogo que a mantém na linha do objetivo, plástico, horizontal, rejeita naturalmente divagações e monólogos, chegando a naufragar se a análise psicológica tornar-se dominadora. Nos contos da primeira pessoa, em Insônia, é necessariamente isso que ocorre, pois não chegam a se organizar de modo firme dentro do gênero: a obsessão da análise e a ausência total de diálogo levam ao fracasso o substituto do diálogo que o autor empregou e SUMÁRIO 188 | M a g n o N i c o l a u ( O r g . ) quer insistiu no uso de frases exclamativas em discurso direto, não foi suficiente para criar a ilusão coloquial. Isso não ocorre com os contos na terceira pessoa, uma vez que mais importante que o foco narrativo foi a existência de ações ou conflitos a criar consistência dramática, amparada por alguns diálogos e maior quantidade de frases exclamativas, em discurso direto. Nos contos objeto deste estudo, escritos na terceira pessoa, a amplitude do ponto de vista desta pessoa é reduzida às dimensões da primeira pelo monólogo interior indireto. O caso que chama atenção dessa interferência de ponto de vista é o conto Um ladrão, porque ele decorre como se a expectativa empregada fosse a da terceira pessoa. Porém, subitamente, o narrador, que permanecia discretamente invisível a descrever ações e pensamentos dos protagonistas, entra em cena, sem se identificar, comentando: “o indivíduo a que me refiro ainda não tinha alcançado essa andadura indispensável e prejudicial na rua, porque denuncia de longe o transeunte” (RAMOS, 1965, p. 30). Como se pode observar, o narrador não volta a usar a primeira pessoa logo, a perspectiva adotada não deixa de ser a da terceira (pessoa). Nesse processo, o leitor tomou consciência de que existia entre ele e os fatos narrados um intermediário que, antes, lhe passou despercebido, e a impressão experimentada pelo emprego ocasional da primeira pessoa em um neoprotagonista veio juntar-se à dos monólogos a fim de aproximar mais os dois pontos de vista. Luciana e Minsk, os contos subsequentes, partem da recriação de Infância, de Graciliano Ramos: o tio Severino aparece em ambos, autor de uma dádiva e de uma frase, seria uma reminiscência a figura descrita em MEU AVÔ – a mesma que persegue Luís da Silva sob o nome de Trajano. Na concepção de Gonçalves (1979), Minsk e Luciana iriam gerar, se Graciliano Ramos tivesse tido tempo, um romance que permanece inédito. Luciana, personagem central do conto, é uma garota esperta, que começa a descobrir o mundo, a desvendar seus mistérios. Trata-se de um conto narrado na terceira pessoa, embora o narrador se confunda com a personagem na maneira carinhosa de se referir aos pais: “Papai e mamãe, no sofá embebiam-se na palavra lenta e fanhosa de tio Severino” (RAMOS, 1965, p. 77). SUMÁRIO Leituras Diversas: Crônicas, Ensaios e Contos | 189 A partir do momento em que Luciana faz a imagem do diabo quando alguém diz que ela sabe onde o diabo mora, o narrador vai se preocupar em revelar o que está acontecendo na sala de sua casa. Para tanto, irá empregar com mais frequência o discurso indireto livre. Ao mesmo tempo em que Luciana contesta a imagem do diabo que lhe impõem, admira-se dos chifres e do rabo. Em seguida, a menina encontra justificativa para essas insinuações. “Na esquina do quarteirão principiava o mistério: barulho de carros, gritos, cores, movimentos, prédios altos demais. Talvez o diabo dormisse num deles. Em qual? Desanimada, confessou, interiormente a sua ignorância” (RAMOS, 1965, p. 81). No decorrer da leitura do conto, nota-se que Luciana faz questionamentos sobre o diabo, dentro de uma visão mágica que ela tem do mundo, visão própria da infância. Os adultos incutiram na mente de Luciana a imagem do diabo, preto, com chifres e rabo. Daí, a cor do diabo trazer, por associação, a imagem de seu Adão carroceiro, também preto. Verifica-se, então, a perfeita aderência do narrador à personagem, reproduzindo-lhe os pensamentos: o mundo além da esquina, o diabo, seu Adão (GONÇALVES, 1979). No conto Minsk, Luciana ainda aparece e como personagem central, conto narrado também na terceira pessoa. Desta feita, não é o diabo que modifica o comportamento, é um periquito que recebera de presente do tio Severino. Quão grande foi o espanto da garota ao receber o presente: “Luciana, recebeu-o, abriu muito os olhos espantados, estranhou que aquela maravilha viesse dos dedos curtos e nodosos de tio Severino, deu um grito selvagem, mistura de admiração e triunfo” (RAMOS, 1965, p. 87). Luciana possuía amigas invisíveis com as quais monologava: “[...] e as amigas invisíveis de D. Henriqueta da Boa-Vista deixaram de visitá-la. D. Henriqueta da Boa-Vista era a personagem que Luciana adotara quando se erguia nas pontas dos pés, a boca pintada, as unhas pintadas, bancando moça” (RAMOS, 1965, p. 91). É normal nas obras de Graciliano Ramos a criação de personagens invisíveis. As personagens Luísa, Madalena, Marina, como as demais presentes nos contos de Insônia, estão cercadas por muros invisíveis. Recordem o Ladrão magistralmente captado por Gracialiano Ramos. SUMÁRIO 190 | M a g n o N i c o l a u ( O r g . ) O conto A prisão de J.Carmo Gomes desenrola-se em duas fases distintas. A primeira abrange as sete páginas iniciais, centralizando-se em uma ação interiorizada da personagem Aurora. Trata-se de um de um relato de vida pública, de prisão de um jovem. Dona Aurora denuncia o irmão e recorda entre outros fatos, a pergunta da professora: “Quem foi o primeiro governador-geral?” Nessa frase predomina um discurso mais descritivo que narrativo, carregado de vestígios e com o qual o narrador transita livremente do exterior para o interior do protagonista e vice-versa. A linguagem densa articula-se com o ritmo da ação e esta se situa, temporalmente, no amanhecer de um dia histórico muito conhecido: o imediatamente posterior ao insucesso do movimento integralista em 1938. Seu espaço: os aposentos de uma “pequena casa do Meyer, na Rua Castro Alves, no Rio de Janeiro” (RAMOS, 1965, p. 99). A segunda ocupa as páginas restantes, abrangendo outras personagens. O assunto dessa fase diz respeito às recordações de Dona Aurora, recordações constituídas de acontecimentos da vida familiar, de seu envolvimento na rebelião integralista, de seus temores e de seus conflitos solucionados ilusoriamente após denunciar o irmão à polícia. O enredo narrado no conto em análise envolve três personagens: O Major Carmo Gomes, José Carmo Gomes e Dona Aurora, ou seja, o pai e os dois filhos. O narrador retendo as lembranças de Dona Aurora, evidencia o genitor desta, caracterizando-o tipicamente: Pôs-se a fazer um longo exame de consciência, mergulhou no passado, lembrou-se do Major Carmo Gomes, gorducho, baixinho, terrivelmente conservador, desgostoso do filho, que não arranjava profissão decente e lia brochuras subversivas. Para consertar o filho degenerado, o Major esgotara todas as razões conhecidas, e, incapaz de levá-lo ao bom caminho, recorrerá às ameaças: “ Tu acabas na cadeia, José” O rapaz ouvia sem discutir e continuava agarrado aos folhetos. Não encontrando resistência, o velho excitava-se, monologava, soprava, afinal, explodia: “Tu acabas na cadeia, José”. SUMÁRIO Leituras Diversas: Crônicas, Ensaios e Contos | 191 Tanto repetira a frase que Dona Aurora se convencera de que o fim do irmão seria realmente a cadeia. (RAMOS, 1965, p. 107108). Essa passagem do conto leva o leitor a deduzir que, em toda narrativa, Graciliano Ramos caracteriza a visão do mundo de Dona Aurora como sendo aquela medida conforme as dimensões de sua casa. Em todos os contos, o autor traz à tona a imagem da angústia, uma doença do século XX que segue nos dias atuais. “A gravata enrolada como corda” (RAMOS, 1965, p. 134) do conto Dois dedos é uma miragem que vem de Angústia, da mesma maneira que o embaraço provocado pela “datilógrafa bonita” (RAMOS, 1965, p. 61) em O relógio do hospital, recorda a cena ocorrida com o alemãozinho de Angústia e volta a aparecer em A testemunha. “Lembrou-se da inglesa do sobrado, dos lindos olhos da inglesa, do vaso de flores da inglesa” (RAMOS, 1965, p. 148). Tudo lembra angústia e por isso mesmo, as personagens dos contos Insônia assemelham-se às do romance Angústia. 3 – Conclusão Se for feito um estudo comparativo limitado apenas com uma parte das obras de Graciliano Ramos, nota-se como ela está imbuída pelo memorialismo. Como ponto de partida, tem-se Insônia, conjunto de treze contos. Trata-se de uma biografia de Graciliano Ramos; um título de significação menor, e nele, o conteúdo autobiográfico deveria, portanto, aparecer diluído. Porém, a tônica pessoal mantém sua incidência, conserva todo conteúdo específico, o que marca a essência do escritor alagoano, sabendo-se que Insônia foi, a rigor, seu único livro de contos, deixando de lado os capítulos do romance Vidas secas, sua obra-prima, que funcionam separadamente como contos; as peças folclóricas de Alexandre e outros heróis e algumas composições de Infância. É oportuno destacar que os quatro primeiros contos de Insônia são cristalizações dispersas de um tema – o homem social é psicologicamente perseguido. Conforme já se fez referência, Graciliano Ramos, memorialista por impulso, ficcionista pelo domínio da SUMÁRIO 192 | M a g n o N i c o l a u ( O r g . ) técnica, parece ter construído Insônia com as sobras emocionais de suas obras maiores. Por conseguinte, Insônia é um livro composto de sobras, aproveitando retalhos memorialísticos. . Referências BRAYNER, Sônia. Graciliano Ramos. Seleção de textos. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1977. CANDIDO, Antonio. Graciliano Ramos. Trechos escolhidos. 3 ed. Rio de Janeiro: Agir, 1975. Cristóvão, Fernando Alves. Graciliano Ramos: estrutura e valores de um modo de narrar. 2 ed. Rio de Janeiro: Brasília: INL-MEC, 1975. GONÇALVES, Maria Silva. Contos: Graciliano Ramos. São Paulo: Companhia Nacional, 1979 (série literária; 4). OLIVEIRA, Cândido. Súmula de literatura brasileira. 3 ed. São Paulo: Biblos, s.d. PÓLVORA, Hélio. Graciliano & outros. Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves,1975. RAMOS, Graciliano. Insônia. 7 ed. São Paulo: Livraria Martins, 1965. REVISTA Literatura Comentada. Gonçalves Dias. São Paulo, Abril Cultural, 1979. SUMÁRIO Leituras Diversas: Crônicas, Ensaios e Contos | 193 CAPITU: A MONA LISA BRASILEIRA Mercedes Cavalcanti É fato: reduziu-se consideravelmente o vocabulário do brasileiro. Ocorre uma espécie de desconstrução da linguagem, literalmente dilapidada através de diversos tipos de cortes, recortes, elipses, modificações e adaptações. Eis que a juventude cibernética, ancorada nas premências da celeridade, recorre, na digitação das mensagens, às adequações que julga imprescindíveis. Para tal, utiliza um espectro vocabular pobre, de reduzidos verbetes. E promove a ablação de partes constitutivas das palavras, como desinências, sufixos e por aí vai. Tudo em nome do pragmatismo imposto pela pressa congênita dos dias atuais. Visa-se, voluntariamente, a redução discursiva. Procede-se a um encolhimento, à amputação de palavras ou partes de um vocábulo. Corrompe-se, assim, a inteireza do próprio texto, transformado em verdadeiras mensagens cifradas e telegráficas. Na verdade, surge um novo código linguístico. Uma espécie de dialeto. Uma injunção dos tempos atuais, atrelados ao império da urgência a contaminar tudo e todos. Consequência da celeridade ditada pela tecnologia de ponta e pela comunicação virtual proporcionada desde as primícias da internet. Eis que, de tanto escrever “nois” em vez de “nós”, no intuito de evitar a “perda de tempo” de colocação do acento agudo, muitos jovens das gerações recentes acabam adotando o primeiro. Povoam de formas não dicionarizadas as redações escolares e omitem expressões de ligação. Determinam uma ciranda de erros ortográficos, aliados à supressão de elementos de coesão e conexão entre as ideias. Doutra parte, é de se notar que alguns terminam naufragando na ilusão do assim considerado fácil ou rápido. Não raro, ao invés de facilitar, os tais mecanismos de facilitação e celeridade SUMÁRIO 194 | M a g n o N i c o l a u ( O r g . ) acabam tornando ambígua a comunicação. Senão, vejamos: “Tb” significaria “também”, ou “tudo bem”? E por aí vai… Todavia, nem toda a magia do vernáculo tradicional se afoga nas marés dos novos tempos. Afortunadamente, na contramão desse circuito de verdadeiras intervenções cirúrgicas do idioma, textos escritos em português castiço sobrevivem. Em meio ao que alguns chegam até a apontar como um caos linguístico, sobrevivem escritores que se consagraram, exatamente, no manuseio do português apurado. Sua dimensão literária se situa na direção oposta a todos os conceitos impostos pela geração dos tablets, laptops, micros, smartphones e outras joias da tecnologias de ponta. Assombra a escritura portuguesa e de todos os idiomas uma engenhoca denominada Google Glass. O seu uso prescinde do alfabeto ou dos conceitos de pictografia, ideograma etc. Trata-se de uma revalorização do discurso meramente verbal. Estarrecedor ou magnífico? Conquista ou retrocesso? Marcarão os novos horizontes uma abolição da palavra escrita? Regressaremos aos tempos anteriores à invenção da escrita? Enfim, desaprenderemos a ler e a escrever? Entre os perfeccionistas do vernáculo que mantêm o seu cetro e a sua coroa, encontra-se, obviamente, Machado de Assis. Até hoje, nada arranhou a inteireza e a elegância da sua linguagem. Inquestionável é o carisma desse bastião da estética literária e correção textual, mesmo numa época em que o discurso escrito se torna tão coloquial e reducionista. Com efeito, esse autor transcende os tempos. Romancista, contista, poeta, dramaturgo, cronista, jornalista e crítico literário, a sua obra é tão universal que, embora proveniente do século XIX, consegue a proeza de conservar um ethos de novidade e contemporaneidade. Quase um milagre, por assim dizer. Inquestionável é o seu mérito criativo e estilístico. Nenhum escritor brasileiro do passado ou do presente possui, como ele, uma unanimidade tão evidente. E olhe que a linguagem machadiana, essencialmente castiça e burilada, de técnica narrativa irretocável, não é nada fácil ao cotejamento do leitor. Sobretudo, quando SUMÁRIO Leituras Diversas: Crônicas, Ensaios e Contos | 195 se trata do receptor de hoje, ele próprio acostumado – não raro, inconscientemente – a torturar a língua vernácula. Seja na dimensão da linguagem, da semântica ou do imaginário, Machado de Assis é um mestre. A aura profunda e densa a revestir a sua escritura se mantém intacta. Pois o escritor é exímio em toda a dimensão do fazer literário, desde a escolha ao manejo das palavras, como também no labor de proceder à sua interrelação gramatical e estilística. Assim, os alicerces bem sedimentados de sua tessitura vertical não sofrem com as tentativas de arranhões perpetradas pela objetividade de chips e pendrives. Absoluto permanece, na criação de temas e elaboração entrechos sofisticados. Suas reflexões psicologizantes refletem a complexidade da alma humana. Símbolo de elegância literária, sobrevive, incólume, em meio à panaceia tecnológica e tecnicista que não cessa de produzir novas peças e de ensejar renovados assaltos à língua brasileira. Machado de Assis resiste e reina. Celebrado em todas as faixas etárias, lembrado em rodas literárias ou não literárias, citado sob quaisquer pretextos, até mesmo (ou principalmente) em mesas de bar. Nesse contexto, nasce e renasce, invariavelmente, Capitu. Eis uma personagem que, a exemplo da Mona Lisa, de Leonardo da Vinci (século XVI), segue eternamente viva, na esteira do enigma e na aura do mistério. Se a Gioconda se perpetua pelo sorriso, Capitu se eterniza pelo olhar. Delas emana um quê de secreto, subjaz um élan de mistério. Ambas paridas no talento artístico e na compreensão arguta da ambiguidade do ser. Reflexão é fundamental. Sensibilidade é preciso. Não obstante a mudança dos usos, costumes, tradições, modismos estéticos e visões de mundo, ninguém ousa desentronizar esses dois monstros sagrados. Eis que a passagem dos séculos não desvaneceu a beleza e integridade de sua obra. Continua a alçar píncaros elevados, seja no conceito dos mais abalizados críticos, seja na interpretação ingênua da recepção mais desarmada. Pese as demais criações extraordinárias da produção de ambos, o certo é que voam, sobretudo, nas asas dessas duas indeléveis protagonistas. Duas personagens gloriosas, frutos do sortilégio da criação. Musas a vencer os tempos. SUMÁRIO 196 | M a g n o N i c o l a u ( O r g . ) A Mona Lisa, erigida na genialidade da magia pictórica, desenhada e pincelada na perfeição dos traços, tintas e cores magistralmente fundidas e plasmadas pela alma de um artista. A Capitu, construída no sortilégio da palavra exata, pinçada no éden do imaginário, pensada, lapidada, distribuída, elaborada e confabulada pelo sensibilidade de um Escritor. Descritas ou desenhadas, ambas transmitem uma doçura cativante, mas, igualmente, uma força tão acachapante, que beira a violência. Aparentemente frágeis pela sua condição feminina, emanam uma energia intensa, avassaladora. Seja no olhar, seja no sorriso, seduzem e agridem. Pecadoras e sublimes, capturam, agarram o receptor pelos sentidos, mas também pela sensibilidade. Assim, a catarse vem tão estética como emocional. A tal ponto se amalgamam as personagens a seus autores, que não se os concebe sem elas, ou essas sem os seus criadores. Vejamos: seria factível imaginar um Da Vinci sem a Gioconda, tesouro do Museu do Louvre? E, do mesmo modo, teria Machado de Assis a mesma repercussão em nossos dias, sem a emblemática, amada e odiada Capitu? Isso nos devolve ao status quo da contemporaneidade. Massificação alucinada a cuspir novíssimas invenções a cada dia. Tempos profícuos a transmitir a falsa sensação de que tudo já existe à priori. Época que anseia se reidentificar. Que tem horror ao déjà vu. Que sai em busca desesperada de uma originalidade atávica e utópica. Tempos que, em última instância, apelam para a banalização da arte. Obras ditas artísticas são criadas, recriadas, substituídas, reinventadas e multiplicadas no ritmo alucinante de convulsões estroboscópicas. E então, seria verossímil que brotassem os mais absurdos vieses da distorção. A expressão “Bosta”, em um passe de mágica, viraria um poema magistral, originalíssimo, a fazer jus à aclamação da crítica universal. E a mesma “bosta”, in loco, palpável, em decomposição e coberta de moscas, auferiria ao brilhante artista plástico que a expusesse no museu, um respeito unânime pelos mais seletos curadores. Diante dessa gloriosa alquimia de valores, quem restará no porvir? SUMÁRIO Leituras Diversas: Crônicas, Ensaios e Contos | 197 Desconfio que o aroma das flores sempre cativará mais que o estrume. Portanto, a exemplo da Gioconda, a Capitu não tem que temer o esquecimento. Passarão as eras, e Machado de Assis ainda estará lá, ostentando, por todo o sempre, os olhos de ressaca de sua heroína-mor. SUMÁRIO 198 | M a g n o N i c o l a u ( O r g . ) A VITÓRIA DO FRACASSO Mona Lisa Bezerra Teixeira "– Então vai, meu filho. Ordeno-te que sofras a esperança" A maçã no escuro Os personagens criados por Clarice Lispector não possuem o mínimo desejo de obter destaque no meio social, de fazer algo grandioso para serem diferenciados dos demais, comportamento comum na sociedade moderna: a do homem empreendedor, que vence os obstáculos para mais à frente se orgulhar da trajetória. Eles raramente sonham, e quando isso acontece, provocam o riso, como Macabéa em A hora da estrela1. No entanto, é a angústia que vai predominar nos seus protagonistas. Em Um sopro de vida2, o "Autor" comenta sobre a sua criação: "Ângela é muito parecida com o meu contrário. Ter dentro de mim o contrário do que sou é em essência imprescindível: não abro mão de minha luta e de minha indecisão e o fracasso – pois sou um grande fracassado – o fracasso me serve de base para eu existir. Se eu fosse um vencedor? morreria de tédio. 'Conseguir' não é o meu forte. Alimento-me do que sobra de mim e é pouco. Sobra porém um certo secreto silêncio." Michel Butor3, quando analisa o uso dos pronomes pessoais no romance, fala sobre essa possibilidade que o "Autor" de Ângela definiu: "...Todos sabem que o romancista constrói suas personagens, queira ele ou não, saiba ou não, a partir de elementos da sua própria vida, que seus heróis são máscaras através das quais ele se conta e se sonha, que o leitor não é puramente passivo mas que ele reconstitui, a partir dos signos reunidos na página, uma visão ou uma aventura, usando também ele o material que está à sua dispoLISPECTOR, Clarice. A hora da estrela. Rio de Janeiro: Rocco, 1999. LISPECTOR, Clarice. Um sopro de vida. Rio de Janeiro: Rocco, 1999. 3 BUTOR, Michel. Repertório. São Paulo: Perspectiva, 1974. p.48 1 2 SUMÁRIO Leituras Diversas: Crônicas, Ensaios e Contos | 199 sição, isto é, sua própria memória, e que o sonho, ao qual ele assim chega, ilumina aquilo que lhe falta". Portanto, o contrário do "Autor", que ele afirma ser a própria Ângela, na verdade é ele mesmo, com suas vivências e frustrações refletidas na personagem, e que cria um processo de dialética com o leitor, construindo uma atmosfera de identificação ou repulsa diante da obra. Joana em Perto do coração selvagem, como é possível perceber pelas observações feitas até agora, busca uma verdade, uma vida sem mentiras: "Nunca terei pois uma diretriz, pensava meses depois de casada. Resvalo de uma verdade a outra, sempre esquecida da primeira, sempre insatisfeita. Sua vida era formada de pequenas vidas completas, de círculos inteiros, fechados que se isolavam uns dos outros. Só que no fim de cada um deles, em vez de Joana morrer e principiar a vida noutro plano, inorgânico ou orgânico inferior, recomeçava a vida no mesmo plano humano". (p.101) Martim, de A maçã no escuro4, só se revela diante de uma platéia de pedras: " – Imaginem – recomeçou então inesperadamente quando estava certo de que nada mais tinha a lhes dizer – imaginem uma pessoa que tenha precisado de um ato de cólera, disse para uma pedra pequena que o olhava com um rosto calmo de criança. Essa pessoa foi vivendo, vivendo; e os outros também imitavam com aplicação. Até que a coisa foi ficando muito confusa, sem a independência com que cada pedra está no seu lugar. E não havia sequer como fugir de si porque os outros concretizavam, com impassível insistência, a própria imagem dessa pessoa: cada cara que essa pessoa olhava repetia em pesadelo tranqüilo o mesmo desvio. Como explicar a vocês – que têm a calma de não ter futuro – que cada cara tenha falhado […]".(p.38) A tendência humana para a imitação, como fala Martim nesse trecho, é um aspecto sempre presente na escrita de Clarice Lispector. O homem, na sua incapacidade de admitir o que realmente é, como um ser próprio, único diante do mundo, prefere se acomodar na segurança de um padrão qualquer. Em O lustre5, Virgínia busca involuntariamente sua identidade no meio da metrópole e nas relações mal resolvidas, e só vai encontrá-la na morte: "E de súbito arrebatada pelo próprio espírito. 4 5 LISPECTOR, Clarice. A maçã no escuro. Rio de Janeiro: Rocco, 1998. LISPECTOR, Clarice. O lustre. Rio de Janeiro: Rocco. 1999. SUMÁRIO 200 | M a g n o N i c o l a u ( O r g . ) Era um momento extremamente íntimo e estranho – ela reconhecia tudo isto, quantas vezes, quantas vezes o ensaiara sem saber [...] O primeiro acontecimento real, o único fato que serviria de começo à sua vida, livre como jogar um cálice de cristal pela janela."(p.259260) Para Benedito Nunes, em O drama da linguagem, no ensaio "A narrativa monocêntrica", O lustre caracteriza-se por apresentar uma errância exterior, no espaço. É possível dizer que a narrativa acontece mediante um espaço, que mesmo não aparecendo em todo o percurso da protagonista é sua referência de vida: a Granja Quieta. As suas aventuras de infância com o irmão Daniel, a natureza, e o próprio espaço físico da casa, com a presença imponente do lustre são a base da sua existência. Gilda de Mello e Souza6, em seu artigo "O lustre" para o jornal O Estado de São Paulo em 14 de julho de 1946, comenta a decadência de Granja Quieta. Um lugar que já foi imponente e guarda os resquícios disso na figura do lustre e do tapete na sala. Para a pesquisadora esses objetos também representam valores do passado que Virgínia quer superar, mas não aponta que valores seriam estes. Mas também enfatiza a dificuldade da personagem em se adaptar às exigências do mundo e a angústia para a sua vida que resulta disso. Os heróis dos seus livros são figuras angustiadas, que se interrogam o tempo todo, não exercem liderança, não assumem o controle de nenhuma situação. Martim passa por uma verdadeira odisséia espiritual até ir ao encontro de sua essência, que resultará em uma enorme frustração. É interessante observar a construção da narrativa: o personagem principal foge de um fato, de um crime que ele sustenta para si mesmo que cometeu, durante todo tempo. No final, irá descobrir que não matou a mulher, e sua perplexidade surge não por essa revelação, mas pelo comportamento acanalhado dos policiais, cheios de autoritarismo e deboche. Como analisa Benedito Nunes, o fracasso triunfa em A maçã no escuro:"Como a existência pessoal de Martim, que fracassa, também fracassa o dizer da narrativa. Todos os temas gerais, de ordem filosófica e religiosa – liberdade e ação, bem e mal, conhecimento e vida, intuição e pensamento, o cotidiano e as coisas [...] podem ser reduzidos a um só problema, latente ao itinerário do herói e à trajetória da 6 In: REMATE DE MALES (9). Campinas: IEL-Unicamp, 1989. p. 171-175. SUMÁRIO Leituras Diversas: Crônicas, Ensaios e Contos | 201 própria narrativa, e que dá a esse romance uma latitude metafísico religiosa; o problema do ser e do dizer." (p.57) A primeira parte de A maçã no escuro7 se chama “Como se faz um homem", sendo completamente diferente da expressão “o homem que se faz por si mesmo” – característica dos tempos da modernidade burguesa. Martim não busca ascensão, não possui o desejo de subir na vida por conquistas de qualquer espécie. Desse modo, a autora o aproxima, juntamente com outros personagens, da nossa realidade, do mundo palpável cheio de frustrações e fracassos em que a maioria dos homens vive. Ângela Pralini questiona sua trajetória de tal modo envolvida no processo de criação do "autor" que ela parece ter vida própria. “Por que quero fazer de mim um herói? Eu na verdade sou anti-heróica. O que me atormenta é que tudo é 'por enquanto', nada é para sempre. A vida – a partir do momento em que se nasce – é guiada, idealizada pelo sonho. Eu nada planejo, eu dou um salto no escuro e mastigo trevas, às vezes, vejo o faiscar luminoso e puro de três brilhantes que não são comíveis.”(p.89). Ou seja, Clarice Lispector, em um universo de ficção, cria um “autor” que, por sua vez, cria uma personagem para expor seus sentimentos, e mesmo nesse plano não há idealizações. Em "Linguagem e silêncio"8, ao analisar A maçã no escuro e A paixão segundo G.H., Benedito Nunes comenta que o fracasso existencial correspondente aos personagens dos referidos romances, equivale ao fracasso da tentativa do domínio da linguagem, e dialogam todo o tempo no mundo imaginário da autora. Mas na visão do filósofo os personagens Martim e G.H não são "fracassados da vida". Eles não atingem como todo ser humano a plenitude a que aspiram, seja através da sabedoria, da ação ou do coração. O fracasso existencial que teria a conotação das concepções existenciais ficaria mais evidente em Martim, quando ele chega ao final da sua trajetória e percebe a impossibilidade de alcançar a glória na existência, aderindo desse modo ao Absurdo. Com relação ao fracasso da linguagem, para o filósofo, na obra de Clarice Lispector existe uma experimentação com a palavra que é trabalhada até o último estágio, no confronto decisivo 7 8 LISPECTOR, Clarice. A maçã no escuro. Rio de Janeiro: Rocco. 1998. NUNES, Benedito. O dorso do tigre. São Paulo: Perspectiva, 1969. SUMÁRIO 202 | M a g n o N i c o l a u ( O r g . ) entre a realidade e as possibilidades de expressão. O que acontece com G.H é uma maneira de dirigir a linguagem para os limites dela mesma: o inexpressivo, o abismo do ser nos seus primórdios, em oposição à famosa fórmula de Wittgenstein: "devemos silenciar a respeito daquilo sobre o qual nada se pode dizer". Clarice Lispector, na concepção do pesquisador, fala a respeito daquilo que nos obriga ao silêncio, e reverte essa condição ao triunfo, pois consegue através de um domínio da palavra exprimir, por mais que em inúmeras crônicas fale da dificuldade de escrever, o que é inacessível a uma grande maioria. Dessa maneira, o fracasso aqui analisado aproxima-se do que o crítico particulariza em suas observações, ainda que o tomemos de um outro ponto de vista: o de observar diretamente a condição social desses personagens enquanto indivíduos que integram um sistema individualista e de disputa nas mais diversas esferas de relacionamento. SUMÁRIO Leituras Diversas: Crônicas, Ensaios e Contos | 203 POÉTICA DOS RIOS Neide Medeiros Santos O rio da minha aldeia não faz pensar em nada. Quem está ao pé dele está só ao pé dele. (Alberto Caeiro. Poema XX). Um rio, sempre um rio, marca presença em um país, uma região, uma cidade. Quando falamos em Paris, lembramo-nos do Sena, se pensamos em Lisboa, surge a imagem do Tejo e a memória das naus conduzindo aqueles que partiram para conquistar novas terras. São Paulo se associa ao rio Tietê. João Pessoa, ao Jaguaribe. Recife, a cidade das águas e das pontes, é banhada por dois rios – Capibaribe e Beberibe. João Cabral de Melo Neto louvou os rios da sua cidade com o belo poema “Cão sem plumas”. Um rio, sempre um rio, acompanha a vida dos habitantes de grandes e de pequenas cidades. Por mais insignificantes que sejam os rios têm suas histórias, seus encantos, sua poesia. A poética das águas está presente na lírica de poetas de nações diferentes e em épocas distintas. Para comprovar como se concretiza esse “devaneio” do rio, selecionamos textos representativos de Portugal, França e do Brasil. O primeiro exemplo é um poema bem conhecido de um dos heterônimos de Fernando Pessoa – o poema X, de Alberto Caeiro. . O rio do poeta é um rio que pertence a pouca gente, banha pequenas cidades, por ele não navegam grandes navios, ninguém sabe “para onde ele vai/E donde ele vem”. O seu percurso difere do Tejo, não nasce em terras altas de Espanha e “porque pertence a menos gente” goza de mais liberdade e se torna maior do que o Tejo. Dois excertos desse poema revelam o “sentimento” do eu lírico com relação ao rio de sua aldeia: O TEJO é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia, Mas o Tejo não é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia SUMÁRIO 204 | M a g n o N i c o l a u ( O r g . ) Porque o Tejo não é o rio que corre pela minha aldeia. O Tejo tem grandes navios E navega nela ainda, Para aqueles que veem em tudo o que lá não está, A memória das naus. O Tejo desce de Espanha E o Tejo entra no mar em Portugal. Toda gente sabe isso, Mas poucos sabem qual é o rio da minha aldeia E para onde ele vai E donde ele vem. É por isso, porque pertence a menos gente, É mais livre e maior o rio da minha aldeia. [...] O rio da minha aldeia não faz pensar em nada. Quem está ao pé dele está só ao pé dele. Gaston Bachelard, no livro “A Água e os Sonhos” descreve a beleza dos riachos e rios de sua região. Nascido num canto da Champagne, povoado de várzeas, o filósofo /poeta revela, em texto memorialista, o prazer que sentia quando caminhava ao longo das margens dos rios – sonhava perto deles, ouvia a música das águas. O sentar perto de um riacho levava-o a um devaneio profundo. Reproduzimos trechos de “A Água e os Sonhos”: Nasci numa região de riachos e rios, num canto da Champagne povoado de várzeas, no Vallage, assim chamado por causa do grande número de seus vales. A mais bela das moradas estaria para mim na concavidade de um pequeno vale, às margens da água corrente, à sombra curta dos salgueiros e dos vimeiros. (1989:08) [...] Fresca e clara é também a canção do rio. Realmente, o rumor das águas assume com toda naturalidade as metáforas do frescor e da claridade. As águas risonhas, os riachos irônicos, as cascatas ruidosamente alegres encontram-se nas mais variadas paisagens literárias. Esses rios, esses chilreios são, ao que parece, a linguagem pueril da Natureza. No riacho quem fala é a Natureza criança. (1989:34-35). SUMÁRIO Leituras Diversas: Crônicas, Ensaios e Contos | 205 Moacy Cirne, no artístico livro “Poética das águas”, trabalho que reúne prosa poética e fotografias de Candinha Bezerra, intertextualizou textos de Gaston Bachelard e ressaltou a beleza das águas do Rio Grande do Norte, compreendendo paisagens do mar, sertão do Seridó (águas de açudes, barreiros) e águas de rios e lagoas. Um fragmento de um dos seus textos é suficiente para demonstrar os elos intertextuais que o ligam à poética das águas bachelardianas: A água de igual modo reflete todos os segredos, todos os mistérios. Para nós, que trazemos as marcas da nordestinidade, a água também se realiza através de todas as esperanças. Procuremos nestas fotos os segredos e as lembranças das águas mais profundas, mais femininas, mais cristalinas. E mais anônimas. (2003). Ziraldo, em livro dedicado a crianças e jovens, “Menino do rio doce”, enaltece os encantos de um rio totalmente brasileiro (São Francisco), um rio que tem muitas histórias para contar, um rio que nasce nas terras altas de Minas Gerais, um rio cheio de mistérios, como a da Cobra Grande que, na noite escura, desce o rio e devora homens, mulheres, meninos e histórias mais reais como a do companheiro de folganças que mergulhou nas águas fundas do rio e não mais voltou. O menino do rio “sabe que não há/ rio mais belo/ que o rio de sua aldeia” e que por ele “vai-se para o mundo”. Aqui vamos encontrar elementos intertextuais que ligam este texto de Ziraldo ao poema XX, de Alberto Caeiro. O bonito livro de Ziraldo foi ilustrado e bordado pela família Dumont com desenhos de Demóstenes. Vejamos excertos do texto ziraldiano: O remo guiando a canoa pra baixo e pra cima podia ser o entendimento da vida e de seu sentido pois só o rio sabe de onde ele vem, pra onde ele vai e o que faz aqui. (1996) SUMÁRIO 206 | M a g n o N i c o l a u ( O r g . ) [...] O rio ensinou, porém, que, um dia, o menino ia dividir-se em dois e, do seu jeito, partir (pois que pelo rio vai-se para o mundo): os braços feitos braçada, os pés botados na estrada, a sua estrada é o rio. ( 1996) Nos textos poéticos que selecionamos, já que consideramos os de Bachelard e de Cirne também poéticos, é visível a participação do eu do poeta, a presença de relações intertextuais e o acumpliciamento poeta/leitor. A leitura dos poemas leva ao sonho, ao devaneio e a navegar por águas de rios nunca “dantes navegadas”. Caeiro apresenta o rio de sua aldeia portuguesa como o seu rio; Bachelard é todo sensorial ao descrever as “águas risonhas, os riachos irônicos e as cascatas ruidosamente alegres” da região francesa; Moacy intertextualiza com Bachelard quando fala nas águas profundas, femininas, anônimas. Ziraldo é o menino/poeta que acompanha o rio brasileiro na sua trajetória terrestre/ temporal. Na leitura que fizemos destes textos não houve a pretensão de dissertar sobre teorias poéticas, antes procuramos sentir e ouvir as vozes dos textos, caminhar ao sabor da poética dos rios. REFERÊNCIAS BACHELARD, Gaston. A Água e os Sonhos: ensaios sobre a imaginação da matéria. Tradução Antonio de Pádua Danesi. São Paulo: Martins Fontes, 1989, 202p. BEZERRA, Candinha e CIRNE, Moacy. Poética das águas. Natal: Fundação Hélio Galvão, 2003. PESSOA, Fernando Antônio Nogueira. Seleção Poética. Pref. de Maria Eliete Galhoz. Rio de Janeiro: Instituto Nacional do Livro, 1971, 288p. ZIRALDO. Menino do rio doce. Ilustrações sobre desenhos de Demóstenes. São Paulo: Companhia das Letrinhas, 1996. SUMÁRIO Leituras Diversas: Crônicas, Ensaios e Contos | 207 EVOLUÇÃO DOS DIREITOS DA MULHER Onélia Setúbal Rocha de Queiroga 1. Introdução A abordagem em torno do vocábulo “mulher” leva-nos a percorrer um caminho de retrospecção acerca de sua posição na sociedade. O predomínio da mulher, no grupo social, ocorreu na chamada sociedade matriarcal. Embora tenha exercido o controle econômico e familiar nesses primeiros tempos, não despertou nela, pelo menos, a tentativa de sobrepujar-se ao homem. A ideia de dar maior sistematização à estrutura familiar fez surgir, então, a monogamia, como forma de consolidar a convivência, tornando-a mais segura. A mulher foi liberada das suas atividades laborais vinculadas à economia de consumo que passaram ao controle do homem, dando início, nesse exato momento, à sociedade patriarcal. A ascensão do homem à direção da produção mudou radicalmente a situação da mulher que foi relegada a segundo plano, o que levou Engels1 a afirmar que o desmoronamento do primitivo direito materno foi “a grande derrota histórica do sexo feminino em todo mundo”. E acrescenta que a partir daí “a mulher passou a ser escrava da luxúria do homem e mero instrumento de reprodução”. Will Durant2 informa-nos acerca da situação da mulher na família patriarcal, assim: “Esta entrada do patriarcalismo foi fatal à mulher que era levada ao casamento exatamente como um escravo à feira. Figurava como parte da herança quando o marido morria; e em alguns Engels, Friedrich, A origem da família, da propriedade privada e do Estado, Editora Civilização Brasileira, 1982 2 Durant, Will, Nova Herança Oriental, Edit. Nacional, 1942. 1 SUMÁRIO 208 | M a g n o N i c o l a u ( O r g . ) lugares (Nova Guiné, Nova Hébridas, Ilhas Salomão, Fiji, Índia etc.) estrangulavam-na e enterravam-na com o marido morto, ou tinha de suicidar-se a fim de servi-lo no outro mundo. O homem reservava para si o privilégio de exercitar o sexo fora de casa, as mulheres tinham de ater-se à mais perfeita castidade antes do casamento e à mais completa fidelidade depois”. 2. Evolução dos direitos da mulher O patriarcado, ao longo dos tempos, vem cedendo lugar a um sistema híbrido de domínio do homem e da mulher no desempenho das atividades profissionais e familiares. Apesar de todos os avanços buscados pelas mulheres, principalmente após a consagração do princípio da igualdade entre todos, o patriarcado ainda subsiste em muitas nações, mesmo nas chamadas civilizadas, através de manifestações primitivas de revide e inaceitação de comportamentos permitidos por lei, e surgidos em decorrência das batalhas encetadas pelas feministas. O século XX é marcado na história como o período em que as mulheres começaram realmente a se organizar, discutindo temas como desigualdades, costumes, sistemas legais que a marginalizaram. Daí por diante não mais pararam de lutar. Surgiram, então, o primeiro Manifesto Feminista lançado em Sêneca Fall, nos Estados Unidos, e a criação da Federação Internacional das Mulheres de Carreira Jurídica, em 1928, em Paris, com filiadas em muitos países, entre eles o Brasil, cuja Associação das Mulheres de Carreira Jurídica, nasceu em 1985. As transformações ocorridas na vida da mulher, permitindolhe ocupar espaços que até recentemente eram exclusivos dos homens, provocaram uma reação machista do sexo oposto, inerente ao inconformismo próprio de quem não aceita compartilhar o poder e o domínio. 2.1. Incapacidade da mulher A mulher, durante muitos séculos, foi considerada incapaz ou relativamente incapaz. Em Roma, à mulher não era admitida a capacidade plena, condição que subsistiu até o século IV a. C. Uma luz no túnel, à essa época, apareceu: a “Lei das Doze Tábuas”, ao SUMÁRIO Leituras Diversas: Crônicas, Ensaios e Contos | 209 estabelecer o dogma da perda do poder marital, caso a mulher interrompesse a coabitação a cada ano, durante três noites seguidas, já instituía, naquele tempo, o que iríamos conhecer como separação judicial ou desquite. Na Idade Média, o quadro restritivo de direito da mulher persistiu, sendo-lhe reservadas, apenas, duas funções: a) a do lar; b) a de natureza reprodutora. Não escolhia com quem se casar; a decisão do seu futuro cabia ao pai. A questão da capacidade da mulher foi tema dos mais debatidos e constituiu-se em objeto de luta a partir dos movimentos desencadeados pelas mulheres do mundo inteiro, no grande esforço histórico para a conquista da cidadania. A mulher moderna, vitoriosa na conquista da capacidade plena, ainda encontra, na prática, reações da própria sociedade e do sexo oposto, à sua efetiva aplicação. 2. 2. A situação da mulher brasileira A mulher brasileira, no período colonial, era excluída da educação, sob o absurdo pretexto de que devia obediência exclusiva ao marido e à religião. Outro fundamento proibitivo da educação às mulheres baseava-se no temor de que em adquirindo conhecimento pudesse lutar por seus direitos e tentar, desta forma, igualarem-se ao homem. A vinda da Corte Portuguesa para o Brasil deu à mulher a chance de estudar, embora ligada aos dois elos referidos. A situação da mulher negra era bem mais complicada, pois, além de escrava era usada como objeto de prazer do seu “senhor” e de outros, caso fosse alugada para tal fim. A origem, entre nós, dos desatinos cometidos pelos homens contra as mulheres está nas Ordenações do Reino, mais precisamente, no Livro V das Ordenações Filipinas. Exemplo claro dessa situação é o Título XXXVIII, dessa coletânea de Leis – Do que matou sua mulher por achá-la em adultério – cujo conteúdo é o seguinte: “Achando o homem casado sua mulher em adultério, licitamente poderá matá-la como assim o adúltero, salvo se o marido for peão, e o adúltero Fidalgo, ou nosso Desembargador, ou pessoas de maior qualidade. Porém, quando matasse alguma das sobre- SUMÁRIO 210 | M a g n o N i c o l a u ( O r g . ) ditas pessoas, achando-a com sua mulher em adultério, não morrerá por isso, mas será degredado para África com pregão na audiência pelo tempo, que aos julgadores bem parecer, segundo a pessoa que matar, não passando de três anos”. Na fase imperial, com o advento da Constituição de 1824, foram criadas escolas destinadas à educação das mulheres, mantendo-se, porém, a proibição de freqüentarem escolas masculinas. No período republicano, a igreja foi separada do Estado (Decreto 119 – A, de 07 de janeiro de 1890) e, conseqüentemente, surge o casamento civil, através do Decreto nº 181, de 04 de janeiro de 1890. A representação da família e da administração dos bens competiam ao marido. Quanto àquela, o art. 56, § 3º, do referido Decreto, expressamente, estabelecia: Art. 56 – São efeitos do casamento: § 3º - Investir o marido de fixar o domicílio da família, de autorizar a profissão da mulher e dirigir a educação dos filhos. Este Decreto, contudo, não trouxe inovações, pois preservou as Ordenações quase que na íntegra, mantendo as discriminações contra as mulheres, revogando, apenas, o direito de o marido castigar a mulher e os filhos. O Código Civil de 1916, apesar das decantadas e consagradas idéias liberais, preferiu abraçar idéias conservadoras em relação à mulher. Essa tendência é manifesta em vários dispositivos, tais como: art. 6º, II, art. 9º, § 1º, I e arts. 240, 274 e 380, onde encontramos discriminações explícitas contra a mulher, quer limitando a sua capacidade no tocante à prática de determinados atos, quer tornando-a submissa ao homem, chefe da sociedade conjugal, senhor de sua vida e de suas decisões, autorizando e escolhendo sua profissão, administrando seus bens particulares, fixando e mudando o domicílio da família, ficando a mulher, assim, em qualquer hipótese, sempre em plano inferior. A mulher, com a Revolução de 30, conquistou os seus direitos políticos. O Código Eleitoral de 1932 (Decreto nº 21.076) garantiu-lhe o direito de voto em seu art. 2º. A idade exigida para todos era de 21 anos, reduzida pela Constituição Federal/1934 para 18 anos, mantida pela Constituição Federal de 1988, com um acrésci- SUMÁRIO Leituras Diversas: Crônicas, Ensaios e Contos | 211 mo do art. 14, § 1º, inciso II, alínea c, permitindo o voto facultativo para os maiores de dezesseis e menores de dezoito anos. Em 27 de agosto de 1962, foi aprovada pelo Congresso Nacional e promulgada pelo Presidente João Goulart a Lei 4.121 – Estatuto da Mulher Casada que introduziu alterações substanciais no Código Civil de 1916, ampliando essa Lei os direitos da mulher casada. Quinze anos depois, as mulheres ganham uma batalha encetada na década de quarenta pelo jurista Nelson Carneiro. A luta foi muita dura, sendo o seu primeiro projeto acoimado pelos conservadores de “destruidor da família”; e, nos muros lia-se escrito a piche ou carvão “o 122 é imoral”. Imoral, porque assegurava, no seu texto, o direito a pensão e alimento à companheira do homem solteiro, desquitado ou viúvo. Foi dele, também, o projeto que elasteceu as possibilidades de reconhecimento dos filhos adulterinos (Lei 883/49). Para ilustrar essa fase de luta pelo Divórcio, destacamos a opinião do Senador Moniz Sodré, arauto das causas da liberdade: “O divórcio hoje quase não tem impugnadores senão entre os que se deixam influenciar por motivos puramente religiosos, ou velhos preconceitos sociais. Ele é o único remédio para as desgraças definitivas do lar. Há casos até em que ele se impõe como medida imprescindível de moralidade, de justiça, de higiene social. O problema da felicidade no casamento prende-se intimamente à questão da emancipação da mulher. Quando ela tiver na sociedade uma situação de independência econômica; quando o casamento não for para ela um meio de vida, condição e conforto material; quando ela precisar de um marido como um marido digno precisa da mulher, isto é, como uma caricatura indispensável às exigências fisiopsicológicas de nosso afeto, um amparo moral na nossa existência, uma força criadora, inspiradora, propulsora em todas as manifestações da nossa atividade mental; quando, enfim, a mulher, por uma educação perfeita, puder ser a companheira e a colaboradora nas lutas da vida, a felicidade conjugal estará plenamente assegurada. Porque esta só se obtém e conserva pelos laços morais, pelas prisões afetivas, que zombam de todos os códigos, sempre precários no artifício das suas regras sobre assuntos do coração”. SUMÁRIO 212 | M a g n o N i c o l a u ( O r g . ) O Divórcio foi introduzido no Brasil pela Emenda Constitucional nº 9, de 28 de junho de 1977. Com a EC n. 66/2010, o divórcio tornou-se um direito potestativo das partes, podendo ser concedido de plano, deixando para o curso do processo a discussão sobre bens, guarda, alimentos e dano moral. O Código Civil de 2002, em consonância com os ditames constitucionais (art. 1º, inciso III, art. 5º, inciso I e art. 226, parágrafo 5º), privilegia a dignidade da pessoa humana, no Livro do Direito de Família, consubstanciado na consagração da igualdade entre os cônjuges, tendo o marido e a mulher os mesmos direitos e deveres (NCC, art. 1.511). Ambos são tratados igualmente, sem que haja prevalência de um ou de outro no comando das relações pessoais e patrimoniais. Atuam conjuntamente frente à administração do patrimônio comum e na chefia da sociedade conjugal. O princípio da igualdade entre os sexos trouxe, como não poderia deixar de ser, de um lado, a quebra do predomínio da mulher, na guarda dos filhos (NCC, art. 1.584), e, de outro, a sua obrigação de “concorrer nas despesas necessárias à criação e educação dos filhos”, sendo que as quotas dessa participação serão fixadas pelo juiz e depositadas em agência bancária, em conta especial” (art. 1.703 CC/2002), conforme abordagem interessante feita pelo Des. Queiroga no seu livro – Curso de Direito Civil – Direito de Família. Finalmente surge a Lei nº 11.340/2006, conhecida como Lei Maria da Penha que alterou o Código Penal e permitiu que os agressores passassem a ser presos em flagrante ou que tivessem a prisão preventiva decretada. A lei também acabou com as penas pecuniárias, aquelas em que o réu é condenado a pagar apenas sextas básicas ou multa. 3. Conclusão A violência contra a mulher no Brasil, infelizmente, é ainda uma realidade. A violência contra as mulheres ocorre no âmbito da família ou unidade doméstica ou em qualquer relação interpessoal que o agressor compartilhe, sendo as mais comuns o assassinato dos cônjuges, a agressão doméstica, o abuso e o estupro. SUMÁRIO Leituras Diversas: Crônicas, Ensaios e Contos | 213 As mulheres, vítimas desses atos criminosos, ou perdem a vida, o bem maior e mais valioso que têm, ou ficam intensamente vitimadas, como no estupro, um dos fatos delituosos mais traumatizantes, com conseqüências de estresse, seqüelas psicológicas, reações emocionais severas, de medo, raiva, com mudança da vida normal da vítima. A mulher, para garantir a liberdade e igualdade entre todos conquistadas, precisa cultuar o seu passado de luta, mas não pode acomodar-se, tem que olhar para o futuro, buscando as mudanças do momento presente que persiste em ficar. Os dissabores certamente virão, mas a glória do avançar para o novo somente será sentida muito tempo depois de se transpor os limites do hoje para o amanhã, então, é que será reconhecido que os esforços não foram em vão. A inesgotável perseguição de novos ideais é que levará a mulher a fazer o que tem de ser feito. É por isso que destaco todas as mulheres e o homens valorosos que nos ajudaram e ajudam: a Tobias Barreto e Nelson Carneiro e, no meu caso, o meu marido que, pacientemente, suporta todas as minhas arrancadas idealistas; e, especialmente, à grande imortal Rachel de Queiroz, mulher além do seu tempo, a única jovem a participar, em Fortaleza, das reuniões do grupo dos literatos, no Café Globo, causando, por isso, escândalo. Foi ela, ainda, que corajosa e decidida soube fazer valer, em circunstâncias de risco pessoal, as suas idéias e a trama do romance “João Miguel”, cuja mudança era exigida pelo Partido, por considerá-la uma afronta à classe operária. Num galpão deserto, no cais do porto, do Rio, após receber, do Comitê Julgador, a única cópia do livro, gritou: “Eu não conheço nos companheiros condições literárias para opinar sobre a minha obra. Não vou fazer correção nenhuma. E passar bem!” Da audácia à expulsão, foi um átimo. Toda a nossa luta será perfeita, se vencermos a maior de todas as batalhas: a de chegar à família reintegrada, pois esta célula mínima da estrutura da urbe é a grande esperança para a recomposição deste mundo selvagem e conturbado, onde a áurea mercadoria vale mais que a leveza da alma. E essa é a grande arrancada de todos nós, homens e mulheres, neste milênio. Doravante, é pensar, sentir e fazer, porque, quando o pensamento, o sentimento e a ação marcham juntos na SUMÁRIO 214 | M a g n o N i c o l a u ( O r g . ) mesma direção, o ser se integra e o ideal deixa de ser quimera, para ser realidade, sonho concretizado. SUMÁRIO Leituras Diversas: Crônicas, Ensaios e Contos | 215 VIVÊNCIAS E ALZHEIMER NA FLORESTA AMAZÔNICA Reginâmio Bonifácio de Lima Meu nome é Maria, tenho 82 anos. Eu moro aqui no Palheiral há 38 anos... eu sou de Sena Madureira, nasci lá em cima no Rio Iaco, 10 dia e dias de viagem, subindo de rio acima. Nasci num lugar chamado Jaguari, lá era donde morava mamãe e meu pai, né? Aí eu nasci lá, nasceu eu e outra... Minha mãe separou do meu pai... E meu pai, a outra, ele quis pra ele... e levou... só deixou eu... Aí eu nasci em 25, em 1925, isso aí eu não perco... 25... 9 de outubro de 1925. Aí quando eu nasci, um ano e pouco nasceu a outra, a outra tava com três mês de nascida, o meu pai morreu. Aí meu pai morreu e minha mãe foi sofrer com nós duas, porque por lá não tinha nada... O pessoal lá em cima era pobre... Aí minha mãe foi vendendo as coisas... A última coisa que minha mãe vendeu do meu pai foi um rifle e uma caixa de bala. Dizia ela que vendeu pra poder dá comida pra nós. Aí ela ficou na casa da minha avó. Era três viúva, minha bisavó, minha avó e a mamãe. Aí foi indo... foi indo... quando acabou-se tudo. Aí a mamãe disse: “Agora, sim, o que é que eu vou dar pra essas filhas comer?!” Aí minha mãe foi e disse: “Se aparecesse um negro...” – ela queria”. De repente, apareceu um negro lá. Ela quis. Quis e foi sofrer. Foi sofrer ela e eu... Aí ela casou-se, fomos embora pro centro. Lá, a outra minha irmã, morreu à míngua. Lá, as pessoas não sabia o que era doença. Aí pegou uma gripe... que gripe foi essa que ela morreu?! Só pode ter sido de pneumonia. Aí morreu... Fiquei eu pra sofrer na mão desse padrasto. Vai querer saber da minha vida, né?! Foi pra sofrer desse padrasto. Quando minha irmã morreu eu tinha quatro anos e ela tinha três, mas ainda hoje eu me lembro da minha irmã como se fosse hoje. Aí eu fiquei... e fiquei... Aí, mamãe foi dando filho desse outro. Desse outro, mamãe teve seis filhos. Mas, ele era muito ruim SUMÁRIO 216 | M a g n o N i c o l a u ( O r g . ) pra mamãe e muito ruim pra mim... Ele batia na mamãe, ele me açoitava. Com sete anos eu comecei a cortar sete seringueira, parece mentira, eu fazia tudo... Carregava água numa latinha assim... numa vertente longe. Aí eu pegava, corria... corria... aí corria... aí cortava essas sete seringueira na mata. A tigela era umas latas. Aí na mata... era só dentro da mata... Aí, no meio do verão, eu enchi uma lata desse tamanho com leite. Aí eu enchi, mamãe não sabia que eu cortava, e nem sabia dessa lata de leite que eu tava enchendo. Aí quando eu enchi, porque ela botava era eu pra varrer debaixo da casa... Aí quando eu enchi, o bolão com um pau enfiado assim. Aquilo eu fiz pra brincar mais o outro. Aí botei lá de novo, a lata com outro pau... Aí ela viu eu com aquilo. “Pra que isso aí, Nena?! “Mamãe, isso aqui eu é pra eu brincar mais o Raimundo”. “Me dê isso, Nena!” “Não, mamãe. Não fique, não, me dê...” Aí quando meu padrastro chegava, deixava o leite lá. Ia ficando lá no defumador pra aquecer o leite, acender a fornalha, aí ela ia roubando o leite, passando naquilo e botando lá outros do defumador. Foi indo... foi indo... Com um pouco, ela tava com um bichona assim... E eu cortando, e enchendo a outra. “Cadê, Nena?!” “Tô não.” “Não?!” Aí ela foi e vendeu. Meu padrasto não me dava uma caixa de fósforo, um palito... Aí ela foi comprar, um metro e não sei quanto de uma fazenda. Eu ainda me lembro o nome dessa fazenda... fazenda ainda vermelha, com umas pintinha branca. Deu pra fazer uma calça pra mim e um vestido. Daí foi, e no final do ano, eu aparecia com a outra. Aí ela disse: “Me dê!” E tornou a fazer do mesmo jeito, ela vendeu, aí me comprou a minha sandália. Aí eu vinha embora. Você pensa que eu comia? Era difícil... A semana que comia duas três vez, se eu ia comer... Ela alegava a comida que eu comia. Aí eu deixava lá, e ia-me embora. O que eu comia... eu chupava uma cana na mata, eu pegava uma fruta, pegava outra... E a minha vida era essa. Com treze anos eu comecei a ir pras festas. Aí quando ia, quando eu chegava minha mãe tinha apanhado. Eu dizia: “Mamãe, eu vou acabar com esse moleque sem-vergonha! Eu vou matar ele, nem que seja com pedaço de pau”. Aí eu fiquei... Mamãe não me contava nada quando ele batia, ela sabia que eu ia e matava, né?! SUMÁRIO Leituras Diversas: Crônicas, Ensaios e Contos | 217 Aí casei perto dos 19 anos, só me casei porque eu não tinha pai, mas não que eu quisesse me casar. Eu não gostava do noivo, nem nada, aí me casei. Aí eu disse pra minha mãe: “Mamãe, agora o meu sofrimento vai dobrar”. Ela disse: “Vai não”. “Porque aí eu vou ter filho, vou ficar amarrada dentro de casa, porque eu... se eu só, sozinha, eu ando pra todo o canto... E, casada, pior...” Foi dito e feito. Me casei, e todo ano era um filho, tive doze filhos e três aborto, que saiu lá pelo seringal. Aí ele era como bem-te-vi, dias aqui, dois anos acolá, ó meu Deus. Eu disse: “Um dia eu saio disso”. Foi indo... Aí eu vi... eu fui tomar o fogo desse cara, tomei o fogo dele. Também você deixe de ser como bem-te-vi, aí passava três anos num canto, corria pro outro, correndo o Iaco quase todo. Aí fomo pro centro de Santa Alegria... Lá, passamos quatro ano, eu vendo um instante deixar um filho enterrado lá com tanta malária. E saímos de lá... Aí eu disse: “Graças a Deus” – ele veio aqui pra Rio Branco. Botou um roçado nessa colônia que nós vivemos, aí foi buscar nós e o Adolfo. E ia me virando com meeira, e eu me virando fazendo farinha pra dar comida pra melhorar, ralando no ralo... Aí ele chegou lá dizendo: “Vamos morrer de fome em Rio Branco”. Eu falei: “Nós não vamos morrer de fome, porque Deus é grande”. Aí foi quando nós passamos aqui pra Rio Branco, pras colônia. Na colônia, dobrou o serviço, porque aí eu cuidava de roçado, eu chegava tomava banho. Aí vamos cuidar de tabaco, vamos cuidar de debulhar feijão, até às onze horas da noite. Me levantava duas horas da madrugada. Olha, o fogo tava queimando as minhas palheiras... eu metia dos pés e ia apagar. Não era mais pra mim tá viva hoje. Aí quando morreu um filho meu, meu caçula... E com sete anos, dentro os oito, aí eu fiquei lá, jogada... Com quatro dia, o Adolfo foi lá e eu tava dentro de uma rede com a mesma roupa. Sem comer. O Adolfo: “Papai, eu vou levar mamãe pra rua”. “Pode levar.”. “Mamãe, vamos se arrumar”. Aí, me levou lá pro açude que tinha assim... “Mamãe, toma banho”. Aí tomei banho, me troquei. Aí arrumei uma roupinha e viemos embora. Saí bem devagarzinho, até chegar na rodagem pra pegar um carro, aí vim embora. Passei três anos sem dar notícia, se era dia ou se era noite. Aí, com três nos eu melhorei. Nas mãos dos médicos... primeiro eu fui pra mãe do Mosarino, do Mosarino eu passei pro... “Eu vou ver SUMÁRIO 218 | M a g n o N i c o l a u ( O r g . ) se eu dou jeito na tua mãe”. Aí sofri... e sofri... Aí nunca mais eu voltei pra colônia, ia só a passeio. Aí fiquemos... Adolfo tinha um quartinho alugado, e lá com uma tia, Adolfo ele deu um quartinho pra nós morar. Aí vimos pra essa casa, travessa Rio Branco, lá nós passemos quatro anos. O Adolfo lutou pra comprar essa casa da Graziele filha da Filó, ela não vendeu. Aí o Adolfo veio e comprou essa daqui. Aí viemos pra essa daqui, viemos chegamos meianoite. Eu disse: “Não sei aonde nós vamos”. Aí ficamos, aqui as casinhas de palha, praqui e praculá... A velha Nenê não morava aqui ainda, morava a Guilhermina ali. Aí ficamos, aí foi levantada a igreja... Aí foi indo... foi indo... Aí fiquemos aqui. Aqui a casa era bem pequenininha, os pequenos chamavam era de batelão porque quando chovia ficava tudo alagado debaixo de casa. E a casa era dessa largura aqui, não dava pra atar uma rede. Antes de vir pra cá, ante de eu vir pra cá, eu tava na Cadeia Velha, eu morava na colônia. Da colônia, eu adoeci. Aí esse filho trouxe eu pra rua... Aí eu morava na Cadeia Velha, na travessa Rio Branco. Aí, de lá, eles pelejaram, até que compraram esse canto aqui. Ele... uma travessinha pequena, aí eles venderam o cavalo, venderam um garrote, aí compraram isso aqui, né?! Aí eu vim morar aqui. Aqui... viche... era uma coisa horrível... Era umas casinhas que tinha praculá... Tinha umas quatro casinha praculá, os tocos de tiarana... Aí eram uns toquinhos assim... Aí botava umas palhinhas, fazia as paredes, era de papelão ...e assim era... Eu, Deus me perdoe, mas eu não podia nem colocar a cabeça na janela que tinha, com tanta briga... Era briga, era o pessoal com uns terçados, com pau... Viche... Aí eu tinha duas meninas, uma de criação e outra minha. Quando eu cheguei aqui, logo o pai dela, foi atrás de um trabalho pra ela lá no centro. Aí arrumou pra Maria Raimunda, que é filha mais velha, lá no salão da [dona...] Aí arrumou pra outra... Minha casa, que era pra empregada doméstica. Aí ela saiu bem cedinho, já levava material de aula tudo, aí trabalhava por lá. Aí, de meio dia pra tarde, ia estudar, quando dava seis horas, elas chegavam aqui. E a vida cansada era essa. Aí saía, era uma lama... uma lama... uma lama... Cada um buraco de lama horrível... Eu cansei de ir mais a Marina, era oito mulher, nós saia dali, aquela igreja, até aculá, o centro social, desfilando, pedindo ajuda o pessoal pra virem ajeitar essa rua. Aí a Marina comprou não sei quan- SUMÁRIO Leituras Diversas: Crônicas, Ensaios e Contos | 219 tas peças de pano, nós fumos pintar lá em cima, ela marcava e nós pintava, aí lá, nós vimos botando as faixas, até ali no fim, né?! Quando deu a boca da noite, não tinha mais nenhuma, o pessoal tinha tirado tudinho aí eu sei que a Marina batalhou mais nós... batalhou mais nós... Até que foi indo... foi indo... Era tudo enlameado, tudo cheio de lama, tinha pouca gente. As casas, eram tudo com esteios de grama, fechada com palha, era assim... Pra trazer as coisas tinha um caminho bem estreitinho. Estava fazendo verão, aí a gente passou por cima de raiz, pau velho e o caminhão chegou até aqui. A casa era bem pequenininha, feita de madeira, bem apertadinha. Nas rua já tinha os postes de energia, mas só tinha luz aqui e ali na frente, não tinha mais em lugar nenhum. Quando nós chegamos aqui com pouco tempo chegou o inverno, nós viemos pra cá no final do verão. Veio a melhorar, sabe quando? Quando entrou o Flaviano como prefeito, aí nos fomos em cima dele: “Olha nós, queremos uma rua ali”. E pra mim ir pra igreja, eu ia bem pela beirinha, e quando eu chegava aculá, eu escorregava num poço de lama. Eu voltava, dava duas três viajens pra poder chegar lá. Aí o Flaviano disse: “Tá bom, eu vou fazer”. E foi a primeira rua que fez foi essa daqui, que ele fez... Que coisa boa, né? Quando eu cheguei aqui, as casinhas eram feitas e palhas, com palhas, com papelão, as paredes, era assim... Aí, depois, foram fazendo as casa... A nossa era de madeira, portinha, a nossa, e outra, passando essa, na outra. Aqui era do Raimundo... Televisão, não existia, tinha a nossa que nós já trouxemos de lá... Quando dava uma hora dessa, de tardezinha, tava pra derrubar minha casa... Era gente... era gente... Nem eu assistia televisão. Aí eu disse: “Adolfo, eu não agüento, tira a televisão aí de fora, que vão derrubar essa casa”. Aí o Adolfo tirou a televisão. O Adolfo comprou a televisão porque quando o Batista chegava da aula, corria pra casa do vizinho pra assistir televisão. Daí, a casa era só uma salinha... Isso aqui, e isso aqui... Aí o quarto era só, o quarto lá fora, era outra salinha, né? E a cozinha... uma cozinha pequenininha que eles fizeram... Era dormir tudo apertadinho. Aí foi indo... foi indo... A gente que tem os filho... aí os filhos vão, né? Era Adolfo, era José, era Raimundo, a Maria Raimunda, Maria Auxiliadora, e João Batista e eu. Isso aqui foi invasão, então quando nós compramos isso aqui, foi tão caro... Aqui foi SUMÁRIO 220 | M a g n o N i c o l a u ( O r g . ) tão caro... Ora, tinha era mais ou menos até aqui, né, aqui na frente tinha casa. Mas, aqui pra trás só era mato, tudo só era mato. Esse João Eduardo, esse meio de mundo, tudo era mato. Nossa casinha era de cinco por quatro. Quando eu cheguei já tinha luz. O Adolfo puxou um rabicho não sei de onde. Nesse tempo todo mundo puxava rabicho de fio de arame, era fio de todo canto. Não quero sair daqui. Quando eu saí da Cadeia Velha, eu disse pro Adolfo: “Meu filho, eu vou pra lá, mas, de lá, só pro São João Batista”. Eu gosto, já me acostumei, fiquei viúva, meus filhos já casaram tudo... e eu fui ficando... fui ficando... Aí eu nunca quis sair daqui. Quando o pai dos meus filhos faleceu, eu ainda tinha José. Aí morreu a Ivoneide, o Antônio, o meu marido. Pois era... Eu sei que aí foi... foi... foi... morreu um outro filho meu, o José... parece que com vinte e seis anos... Ele se formou no colégio tinha um ano, quando se formou já tava exercendo a profissão... quando morreu. Daí, eu fui ficando só... fui ficando só... e foi indo... e foi indo... E depois que ele faleceu, aí eu criava um neto, quando ele faleceu, foi preciso eu entregar esse neto pra mãe dele, porque ele já tava com outro primo praticando coisa ruim. Aí eu disse: “Quero que leve, eu não tenho mais força...” Aí ela levou... e eu fiquei... aí, eu parti pra ficar sozinha mesmo... Aí o Raimundo disse: “Mãe, vamos vender essa casa?” “Não é porque o meu filho faleceu, que eu vou vender essa casa. Eu fico”. Depois, lá morreu a outra filha... A outra que morava lá no bairro João Eduardo. Ela morreu, eu não sei de que ela morreu... Tá com cinco anos. Aí eu disse pro Raimundo: Não, eu não vou sair. Eu fico aqui”. Aí eu fiquei aqui. Antes de vir para cá eu morava em casa alugada, lá na Cadeia Velha, e lá os meninos vieram e compraram essa casinha. Era uma casinha de nada... Era umas 12 pessoas... Já de noite a gente atava as redes uma por cima das outras... Eu sempre, toda vida, tive a minha cama. Toda vez quando me levantava tinha dois comigo, era os dois meninos pequenos... eu brigava, colocava eles pra rede deles, não é? Aí, daqui, os menino: “Mamãe, vamos fazer uma casa maior pra mamãe, essa casa não dá”. Aí o Batista... seu Batista e o Raimundo foram formar essa casa e a Igreja... Quando eu cheguei aqui não tinha Igreja, o pessoal se reunia pra ir pro SUMÁRIO Leituras Diversas: Crônicas, Ensaios e Contos | 221 bairro da... aquele bairro que vai pro rumo daculá... Eu sou tão esquecida. Antes nós se reunia lá na Comunidade São Peregrino, não era?! Aí de lá passou pra cá: “Vamos se reunir aqui”. Aí formaram quatro esteira, cobriram com as folhinha que tinha, fizeram quatro banco. Era ali que nós se reunia. Daí ela disse: “Agora, a gente vai fazer uma igrejinha”. Aí fomos trabalhar. Fizeram uma igreja pequena, e já desse lado de cá foi feita uma latada pra todos os sábados e todos os domingo... a gente tinha venda ali, uma venda pra aumentar o tamanho da igreja. A gente tinha aquela venda... eu era dona da macaxeira, do nescau e do café, os outros tomavam conta do resto. Nós juntava aquele pouco dinheiro das vendas, quando terminava tudo, eu revirava meus bolsos: “Tá aí, eu não tenho nada. O que eu tenho tá aí nessa sacola”. A Rosa ia e depositava no banco, aí já tinha um bocado. Aí a Rosa dizia: “Vamos começar a igreja” – mas nunca a gente deixava de ir trabalhar de sábado pra domingo e de domingo pra segunda, né? Aí foi indo, aí até que fizemos uma igreja. Não dava pra nada, era só aumentando... ficava gente fora, gente em pé... Muita gente dizia: “Vamos aumentar a igreja!” Aí aumentamos, mas o Zé... tu conhece o Zé? O Zé foi o feitor dessa igreja. Aí a Rosa: “Vou chamar o Zé... Vamos embora, Zé, você é o feitor dessa igreja”. Ele só trabalhava sábado e domingo na igreja, depois da semana ele ia trabalhar pra ele. E ele, aqui, aculá, dava uma ajuda também... Aí formou-se a igreja maior, mas não dava pra nada também. A Rosa disse: “Nós vamos aumentar essa igreja”. Zé: “Como você queira, aí aumentou... a igreja ficou grande... Aí... “maior do que isso não pode ser”. Ficou gente do lado de fora, ficou gente em pé, aí... “Eu aumento a igreja”. Daí nos fiquemos na igreja, mas todos os sábados a gente tinha aquele café, né? Aquele café que era pra colocar o dinheiro no banco pra quando precisasse, né? Aí tinha os grupos das mães, o grupo dos pais e o grupo dos jovens. As mães se reuniam dia de sábado, das duas horas até às cinco. Era dois... era dois... Aí os pais entrava até oito da noite. Aí os domingos era dos jovens. A gente ainda juntamos setenta e... sessenta e três mãe e os jovens ainda juntava quase oitenta. Aí os pais era tudo fraquinho... Aí o Zé, olha também a gente reuniu os grupo de pai com os grupos de mãe... “Não, Zé... não... Vocês fi- SUMÁRIO 222 | M a g n o N i c o l a u ( O r g . ) cam com os grupos de vocês, deixa o nosso”. Ficamos, aí já tinha não sei quanto no banco e o Zé quase não dava... Aí, por lá, o Zé... tudo... Até que consegui dobrar a Dora. A Dora que era a mulher dele. Tu conhece a Dora, não conhece? Ela mora bem ali. Aí ele disse: “Dora, vê se tu dobra essas mulher, Dora!” Até que a Dôra dobrou, né? Eu nunca me convenci... Eu digo: “Olha, o Zé quer dar um golpe em nós”. “Não, Nena, não diga isso! O Zé, ele não é capaz disso!” “Eu vou concordar com vocês porque todo mundo concorda, menos eu, e uma andorinha só não faz verão”. Aí misturou o dinheiro deles do banco com o nosso, quando contou não tinha mais nem um centavo. “Eu não te disse, Dora?” “Mas, Raimundo, o que, que tu fizeste?” “Eu fiz isso, isso e isso na igreja. Não dava pra isso tudo, agora pronto...” Mas eu lutei naquela igreja, até quando foi parado tudo, aí quando foi parado, tudo pronto... ficou só o grupo de jovens e os grupo de pais com as mães. Era pouco, que eu ia pro grupo. “Mas, Nena, tu falta”. A Dôra: “É porque eu estou ocupada”. Não me lembro mais porque eu não queria ir. Eu não sei mais em que ano nós começamos... Eu não me lembro mais que ano eu cheguei aqui... Eu não me lembro mais de nada, meu filho. Eu fiquei assim tão esquecida... João Carlos foi o primeiro padre daqui. Aí ele era solteiro. Aí ele era bonito. Aí as menina começaram e começaram... O Dom Moacir disse: “Vamos tirar ele, vamos colocar outro”. Dom Moacir foi e tirou ele mandando pra fora... pra longe... Aí ele ficou por lá. Aí veio o Asfuri. O Asfuri era solteiro também, mas era... como ele era bonitão... mas não dava confiança. Aí o Asfuri foi praquela igreja lá da Floresta, lá da... como é o nome? São Peregrino. Passou pra lá, e aqui ficou pros padres vim só dia de missa, de quinze em quinze dias. Aqui tinha Comunidade [Eclesial de Base]. A reunião aqui da comunidade era na igreja mesmo. Aí, eu não sei mais... Se reunia só pra conversar, pra rezar e leitura da Bíblia também. Aí, tinha sexta-feira... tinha o grupo dos pais... sábado, o grupo das mães... domingo, o grupo dos jovens. E era assim... Eu nasci em... Não me lembro o nome da colocação, sei que nasci em Tabatinga, no Seringal Novo Tabatinga, que eu nasci... Eu não me lembro mais... Olha, depois que passou pela minha cabeça, aí pronto... Aí em Tabatinga eu me criei, me casei, construí família, SUMÁRIO Leituras Diversas: Crônicas, Ensaios e Contos | 223 tudo em Tabatinga, na colocação Praculá... Aí quando eu vim de Tabatinga, aí nós viemos aqui para o Acre, né? Passamos vinte e dois dias viajando em um batelão grande e uma canoa. Vinte dois dias, nós passamos... Aí chegamos aqui, aí nós viemos pra cá. Meu marido já trabalhava aqui, já tinha passado um ano aqui. Não, nós estamos é no Acre, né?! Foi em Tabatinga... nós passamos muito tempo em Tabatinga... Lá eu tive meu último filho, praqui praculá... Aí viemos pro Acre, aí se tacamos de lá pra cá. Quando nós chegamos aqui tinha umas casinhas de madeira, feito quatro portinhas assim aí coberta. Colocava umas folhas em cima e aí as mulheres iam carregado papelão e fazendo as paredes de papelão. E desse tempo tem a mãe da Graciane... Deixa eu ver quem é que tem mais... Tem a Guilhermina... Tem uma porção de gente ainda aí. Os outros foram tudo embora, aí foram chegando outras pessoas. Essa rua daqui, pra sair ali no Bola Preta, era tanto do buraco e lama que fazia horror. Os moradores resolveram tapar os buracos colocando barro e tijolo. Antes, quando eu ia daqui para a igreja, eu dava três ou quatro viagens... que eu ia várias vezes e quando chegava bem pertinho caía dentro da água. Isso era de noite... Eu voltava, vinha me lavar, mudar de roupa. Mas era um sacrifício... Até que a juntamos quatro mulheres, a Francisca da bueira, Ametista... Como era o nome da outra, meu Deus? Eu... Era quatro mulheres. Aí nós colocávamos faixas por aqui. Faixa aí por todo canto... Colocávamos faixa e deixávamos o pessoal olhando, se não o pessoal ia e tirava. Quando chegava a noite, nós tirávamos tudo. Ainda roubaram foi muita faixa... O pessoal vieram e colocaram só pedra... Foi o tempo que... como é que era o nome do homem, lá, meu Deus? Foi o primeiro prefeito daqui. Foi o Flaviano... “Vamos fazer nossa rua. Nós só vota quando fizer nossa rua”. Ele falou: “Vamos atijolar”. “Não, tijolo não...” Aí fizeram tudo de tijolo praculá, tudo atijolado. Sério, foi assim que foi feito, mas nós sofremos. Essas faixas tinham escrito que o Prefeito não queria nada e nós... e nós não íamos votar nele. A gente ia votar para Governador. O pessoal daqui, ninguém queria votar. Aí ele viu que só com o pessoal de fora ele não ganhava as eleições, aí ele mandou atijolar. Aí ele ganhou. Aqui era só a buraqueira, reformavam e colocaram essa coisa que se coloca em rua. Aí quando foi passar pra Governo ninguém SUMÁRIO 224 | M a g n o N i c o l a u ( O r g . ) vota nele, ninguém... Quem é que vai votar nele?... Aí ele viu que ia perder, aí mandou atijolar tudo. Foram muitas rua atijoladas. Nesse tempo era boa, nós formava de dez mulheres e ia bater na Prefeitura, aonde ele está. Quando chegava lá, ele estava. “Vamos vê”. “Ou você ajeita aquela rua ou então nós não vamos votar em você”. Ele disse: “Vou ajeitar, vou ajeitar tudinho”. Eu tive doze filhos de tempo e três sem ser de tempo... Tive quinze... Aí foi morrendo, morrendo... Tem Adolfo, Pedro, Messias, Raimundo, Batista, Maria Raimunda. Seis filhos com a menina... morreram duas já depois de casadas, aí ficou só uma. Só Maria Raimunda, essa mora dentro da água, comprou um barco e foi pra Porto Velho. Comprou um barco e mora dentro do barco. Ela é muito alegre, Maria Raimunda... Só eu, depois que fiquei desse jeito... e pronto eu enxergo pouco e ouço pouco... e pronto. Eu vim morar em uma casinha pequena. Quando dava a noite, armava uma rede por cima da minha cama, por todo canto, por cima das outras. Aí eu morei até o meio do ano. No meio do ano, o Batista entrou de férias, aí eu vim pra cá. “Fizemos uma casa pra mamãe, uma casa em cima da minha”. Um dia o meu fogão estava aqui, outro dia o meu fogão estava aculá. Foi indo... até que derrubaram o canto da minha cama, eu disse vocês tem que derrubar mesmo, pode derrubar, aí ficamos dentro do vão. Só fizeram apregar as paredes assim, não tinham essas paredes não... não tinha divisão, não tinha nada... Ali ficava duas tábua quase soltas, aí entrou dois sem-vergonha, eu já estava tão pernoitada que eu dormi. O José viu, mas estava com medo e nem se mexeu. O Zeca também viu e disse: “Pelo amor de Deus, aqui tem um homem”. Aí ele pulou e se escondeu detrás de um monte de madeira que tinha por aqui. Foi uma coisa medonha, ele tinha tirado um monte de roupa deles de dentro da gaveta. Ele sabia que o Messias tinha recebido e ele andava atrás da bolsa, o Zé e o Batista cada qual pegou um pedaço de pau, um pedaço de tabua grande e foram atrás do ladrão. O ladrão disse: “Pelo amor de Deus, não me mate não”. O ladrão pensava que eles tinham pulado por ali, mas seguraram ele. “O que, que tu roubou, caba sem-vergonha?” “Uma trouxa de roupa”. “Vá já buscar”. Aí ele foi buscar a trouxa de roupa e deixou aqui. “Você agora vá embora”. E saíram batendo nele, aí essa... Dava quase um metro aqui em baixo pra rua. Aí, rebolaram ele lá no meio da rua e ele foi-se embora. SUMÁRIO Leituras Diversas: Crônicas, Ensaios e Contos | 225 Apesar de tudo, eu não penso em sair, não. Os meninos tem pelejado. “Mãe, vamos vender essa casa. Nós podemos fazer uma casa em qualquer canto do nosso quintal. Vamos fazer uma casa pra senhora”. E eu digo que não quero, daqui só pro São João Batista, quando eu morrer. Façam o que vocês quiserem, mas eu não quero. Pra que, né? É porque aqui tem muito ladrão. Aqui, o Raimundo comprou uma máquina de chiringar para matar formiga e outras coisas. E comprou outra, e sentou ali... Até que alguém roubou daqui... Ele, em vez de ter colocado em cima de casa, não... Colocou lá em cima das coisas dele. Ele andou... e procurou... Tinha sido o filho da dona Guilhermina, o Neto. “Ô caba semvergonha, eu quero minha máquina, vamos ver aí”. O Raimundo disse: “Olha, eu não vou fazer nada contigo. Eu vou até a delegacia, vou mandar te dar três pisa, com três pisa, tu não me entregar minha máquina, então, eu te entrego de corpo e alma pra eles”. Eu não sabia que ele tinha mandado dar três pisa nele, de cinco em cinco dia dava uma. Um dia eu disse: “Raimundo, o menino veio deixar tua máquina”. O Raimundo disse: “Deixa esse filho de uma égua, mãe”. Aí, até que ele sumiu... foi embora, se escondeu não sei por onde. Ainda hoje o Raimundo tá pra comprar outra máquina. Depois ele sentou uma bomba ali, bem sentado. Os cachorros faziam uma zoada a noite todinha. Ele foi e disse: “Olha, eu vou arrancar essa bomba, mamãe”. “Meu filho, e quando a gente quiser água?” “Eu sento ela de novo, puxo ela e tiro”. Aí ele tirou daqui de dentro de casa. As meninas hoje não tem água pra... vão aqui pegar água, mas aqui dentro do quintal mesmo... Era trazendo água de lá de dentro da caixa. A água é limpinha também, ele tirou pra cá, deixou direitinho como que a bomba tivesse... Quando foi à noite, foi um siribolo. Eu estava doente, não podia me levantar. Ela foi quem abriu a janela dali do quarto e lá está o homem, me amostra a senhora. “Vai e sai por ali”. Ele foi-se, aí ele já tinha se remexido e não tinha achado nada... Os cachorros latindo... Ficava dois sem-vergonha aqui nesse portão, colocando comidinha pros cachorro, brigando com os cachorros e ele ia pra lá. E o Raimundo foi e tirou a bomba, tirou deixou aqui do mesmo jeito. É um caso sério... As planta do quintal foi eu que plantei, agora é os outros que tomam de conta. Porque eu não posso ir aguar mais, meu fi- SUMÁRIO 226 | M a g n o N i c o l a u ( O r g . ) lho... Eu não poso... eu ando bem devagarzinho. E aí pra fora eu não ando. Eu tinha planta e não era brincadeira, mas aí foi se acabando... pra cá tudo era planta. Tem muita planta, tem de tudo aqui, graviola, cupuaçu, bastante cebola, mangueira, coité, goiabeira. Era eu que cuidava... também tinha muitas flores... Meu marido trabalhava na colônia, aqui quando ele adoeceu veio pra cá aí era daqui pro hospital do hospital pra cá aí ele morreu. Aí, eu não quis mais casar. Não tive vontade, né? As mulheres diziam, eu não te aconselhei pra você arrumar um homem pra cuidar de você, que cuidando de mim que nada, me deixa, e assim eu fiquei. Meu filho mora aqui atrás, na outra rua. Todo dia, bem cedo, ele vem deixar um café aqui pra mim. Às vezes ainda vem de tarde e às vezes não vem mais. Ele trabalhava no aeroporto, às vezes ele saía de manhã e só chegava de madrugada. Ele ia pro aeroporto e buscava gente, deixava gente e esperava gente. Era o tempo todo. Agora tem o Raimundo, esse ele mora aqui também. Mora lá pra Floresta, não sei pra onde. Todo dia ele vem aqui. O Pedro, eu estou com uma semana que espero ele vir de Boca do Acre, e nada... Aí tinha um carro empancado dele. O Adolfo já tirou, está lá no quintal dele... e o Pedro, nada... Ele tá trabalhando, ele é do Daime. Ele faz esse negócio de Daime pra vender e tem que apurar doze mil reais, que é pra pagar o negócio do carro. Eu sei que tem o Messias pra colônia, faz muito tempo que ele não pisa aqui. Tá com mais de mês que ele não vem aqui. Nós tivemos dificuldade de comida, de tanta coisa... Eu tinha tantos filhos pra estudar... Mas, graças a Deus, os que quiseram estudar, estudaram. O Adolfo, pelo menos, batalhou... batalhou... Até que fez o segundo grau. O Batista foi um dos que mais batalhou. Ele terminou os estudos dele, quando foi com um ano e pouco, Deus levou. Eu nunca estudei, porque eu morava no seringal. Eu cortava seringa. Eu cortei seringa muitos anos. Comecei a cortar seringa com sete anos de idade, aí fui cortando até quando não agüentei mais... Aí vim me embora pra cá, aí eu parei... Lá tinha festa de Santo Antônio, São João, de São Pedro... E tinha aniversário... Tinha as pessoas que aniversariava, aí era uma festa... Aí todo mundo dançava e tinha muita comida... Eu ajudava a preparar... era SUMÁRIO Leituras Diversas: Crônicas, Ensaios e Contos | 227 carne, era peixe, tinha de tudo... Comiam a noite todinha, dançavam a noite toda. O meu filho Adolfo trabalhou como monitor de jovens vários anos e em 1978 ficou sendo o coordenador da comunidade. Era ele quem programava as reuniões e fazia as celebrações, só não fazia a parte da comunhão. Mas uma parte daquele jornalzinho [Nós Irmãos] ele lia com o pessoal, fazia encontro do evangelho, colocava o pessoal em uma roda e fazia a leitura do evangelho do dia, começava a discussão e aí cada um falava o que entendeu. Pra ser monitor precisava ter treinamento. Nesse tempo quem dava o curso de treinamento era o Airton Rocha com o Nilson Mourão. Eles passava e entrava na sexta-feira de tarde lá na sala paroquial da Imaculada Conceição. E ficava a noite, passava o sábado e o domingo e saía de tarde, estudando o evangelho mesmo, não é? Depois fazia curso de liderança. O monitor era como se fosse um juiz pra fazer as paz, cuidar das famílias, das crianças, tudo, tudo era ele... era como se fosse um delegado nesse tempo. Tinha que arrumar o casamento de fulano que tinha brigado com o marido, que tinha batido na mulher, e tinha que ir fazer as pazes. Tudo eles fazia... buscava melhorias pra rua, pro bairro, esses negócios tudo. Eu visitava o bairro todo, se tinha uma pessoa doente, a Rosa daí da igreja mandava me chamar fosse a hora que fosse, eu ia bater lá. E eu me mandava, ia visitar e perguntava pra pessoa: “Estão precisando de alguma coisa?” “Estamos precisando de tudo”. Eu voltava pra trás. “Rosa, eles tão precisando de tudo, vamos dar um sacolão”. Nós começávamos a pedir, pedia a um e a outro, em um instante arrumava pra ir deixar lá. Eu saía muito, hoje eu não saio mais, pra mim andar daqui pra li é bem devagarzinho arrastando os pés. Quando eu saía, eu ia pra todo canto, todo canto eu andava. Era aqui nessa igreja, onde mas eu andava era na igreja. Eu não tenho mais sonho, eu penso, mas eu sei que melhor pra mim é não existir mais. Queria ficar boa, cuidar da minha casa, o que eu fiz de bom, foi além de criar os meus filhos, que isso é maravilhoso. Trabalhei muito e aí eu não sei mais. Se eu fosse boa ainda, eu estaria na minha casa, cuidando da minha casa, do meu quintal, cuidando das minhas plantas e hoje nada eu faço, os filhos é que agora é quem cuidam de mim. SUMÁRIO 228 | M a g n o N i c o l a u ( O r g . ) Eu não sei se eu sou mais feliz não. Porque eu vivo todo tempo dependendo das pessoas, de tudo... aí pronto... Se não dependesse mais dos outros eu era muito feliz, olha... Eu era feliz antes de ter essa doença. Eu tenho tanta saudade que eu trabalhava tanto e hoje vivo parada. Às vezes, pra me levantar daqui, é preciso o pessoal me segurar, me levantar. Eu faço de tudo pra mim não pensar na vida. Quando eu vou pra minha cama eu vou pesada de sono... Eu me deito... e fico deitada até me agarrar no sono, pra eu não pensar... porque se eu pensar, nessa noite eu não durmo... e passo a noite sem dormir, bolando em cima da cama... Eu penso na minha vida, eu penso na vida dos meus irmãos, como se acabou a minha mãe... e vou pensando nas coisas... Já passei muita dificuldade... A minha casa pegou fogo com tudo dentro. E eu fiquei sem nada. Deixa eu ver onde é que era essa casa... Era em uma colônia. Aí, de lá, ficamos até levantar toda a casa. Aí eu fiquei... Aí, de lá nos viemos pra rua. O Adolfo e o José vieram primeiro pra rua, aí me trouxeram. Trocaram a colônia por outra e foi com o tempo chegamos aqui. Até que eu fiquei aqui e os filhos foram saindo... e eu fui ficando... e fiquei sozinha... só com Deus. Eu agora não durmo mais, só acho ruim porque agora eu estou doente. Mas, quando eu estava com saúde eu não saía por aí devagar... eu ia pro açougue... Depois, eu não podia mais ir, porque eu fiquei doente. Eu esperava uma pessoa pra ir comprar uma carne pra mim, pra comprar seja o que for... mas essa pessoa dizia assim: que ia, mas só ia chegar de noite. Então, eu tinha problema. Depois que o Raimundo chegou aqui em Rio Branco, ele veio pra voltar, mas ele disse: “Mamãe, eu não vou mais voltar. A senhora está do jeito que tá, eu não vou mais voltar. Eu vou ficar por aqui mesmo Aí o Raimundo ficou por aqui trabalhando... trabalhando aqui e por aculá... E toda de manhã e toda tarde o Raimundo estava aqui... toda de manhã e toda tarde... Hoje ainda continua, hoje foi praculá. Minha vista está curta, eu pedindo a Deus que alguém fosse me levar no oculista pra eu ser consultada, mas só tem o Adolfo que tem carro, mas é pior de que o correio, hoje ele já tem cinco viagem no hospital e está pra lá de novo. Tenho orgulho porque eu lutei tanto pra conseguir fazer essa igreja, e pedindo a Deus e Nossa Senhora que me desse coragem pra mim só adoecer quando terminasse a igreja. E foi feito comigo. SUMÁRIO Leituras Diversas: Crônicas, Ensaios e Contos | 229 Era... eu já era doente, mas eu andava pra todo canto. Está com bem dois anos que eu não saio de casa. Eu andei saindo e quando foi pra receber, eu ia só até o carro... O Adolfo me deixava no carro e ia lá, e vinham alguns homens onde eu estava, aí eu escrevia meu nome e eu vinha embora. Eu ainda quero ficar boa, pra mim andar mais, pra mim fazer meus serviços. É só o que eu penso, e com fé em Deus eu ainda vou ficar boa. Eu não conheci meu pai, só minha mãe e padrasto. Meu pai quando morreu eu tava com quase dois anos. A minha mãe cortava seringa, minha mãe fazia tudo, trabalhava no roçado. No seringal é puxado, se eu tivesse no seringal talvez já tivesse morrido. Os jovens estão começando a vida agora, mas quando chegar na minha idade eu não sei.. Eu estou cansada de dizer pros meus netos: “Meninos, vocês tomem cuidado, meus filhos. Vocês pensam na vida de vocês”. Eles ficam é achando graça. “Vocês pensam que eu não já fui nova como vocês? Já fui nova e hoje estou nessas condições”. E ficam achando graça... Ainda hoje andou um aqui e eu aconselhei ele. E ele saiu achando graça. Eu queria que eles pensassem na vida deles e dissesse: “Olhe, o que a minha vó está dizendo é verdade”. É preciso que nós pensemos na nossa vida, porque essa vida não é boa, é ruim. Mas eles nem se lembram disso, né? Pra eles, tudo é uma coisa só. Olha, aqui nessa frente, esses dias eu faltava ficar doida. Fechava a porta, os cachorros corria, um pra cá... E esse pessoal aí: “pei, pei, pei”. Aí eu falei: “Minha gente, vocês pensam que não vão ficar velho também? Vocês vão ficar velho, por isso, não façam isso não”. É do mesmo jeito, tanto faz eu pedir como não pedir. Pra mim nunca teve nada de bom. Nada... A não ser essa igreja... Essa igreja, quando eu cheguei aqui, não tinha. Aí tinha a Rosa, uma que morava na Estação, que ela vinha fazer reunião na rua “A”. Aí, de lá, ela resolveu vir pra cá. Aí ela foi, o dono deu esse terreno... E, aí, ela foi e construiu, era quatro toco e os banquinhos assim... Parecia, banco de casinha de menino, cobertinha de alumínio. E aí, depois, trabalhar pra construir essa igreja... Aí nós fomos trabalhar pra construir a igreja e fazer arraial o mês todinho... Todo mundo trabalhava, era churrasco, era café, era nescau, era macacheira, esses quatro era meu, era assim... Aí eu tava me tratando e o médico disse: “A senhora vai precisar ir pra outro canto”. Aí me jogou pra cá, pra outro hospital que tinha praculá. Aí cheguei lá, eu saía bem cedinho pra chegar lá . Nove horas, cheguei lá. O médico olhou: “Não é causo daqui, SUMÁRIO 230 | M a g n o N i c o l a u ( O r g . ) você vai pra Santa Casa”. Olha, aí doutor não passou remédio pra mim não. Aí, nesse tempo, Maria Raimunda já tinha vindo pra cá. Aí vai ser operada aí marcou lá o dia tudo, né? E eu fui... Era o doutor... nós dois... doutor bem novinho, não tinha um sinal de barba. Tava ele e outro lá da Santa Casa. Quando eu cheguei lá, tava os dois. Eu disse: “Vocês vão me matar?” “Não, senhora. Ninguém vai matar, não”. “Vocês não têm nem sinal ou barba, rapaz!” Toda a vida eu fui assim... Aí, vamos para a sala de cirurgia...Eu nunca tive medo de operação... aí, fui operada. O Adolfo pagou uma parte e o meu marido dava a outra parte, aí lá eu fui operada, fiquei boa. Esse meu filho com raiva disse que ia embora pra Porto Velho. Eu disse pra ele: “Vá”. E ele foi. Com dois mês começou a telefonar pra vir embora. E Maria telefonava, todo mundo telefonava. O Adolfo mandava passagem dele, naquele tempo o Adolfo trabalhava na... Mal cheguei e o marido me procurou... Aí lá se vem ele, aí me arrebentou toda, eu pegava a casa alta aqui, eu pego ele, descer ele pra lá pro fundo do quintal, atar a rede dele lá nas mangueira. Eu sofri... sofri... até quando ele morreu. Aí ele morreu... morreu na Santa Casa. Com seis meses ele morreu. Aí eu fique mais os meninos. Deus me perdoe, mas aí eu melhorei minha vida. Aí deixei de sofrer. Melhorei minha vida. Eu ia pra passeio com as mulheres. Os meninos iam pra todo canto. Eu ia pro grupo de jovens a passeio. Era eu e a Chica da Bueira. Aí nós ia fazer o papel de mãe do grupo de jovens, nessa rodagem por aculá. Aí fomos... e até hoje, eu fiquei só. Eu achei melhor ficar só. O meu filho, o Adolfo dizia bem que senhora, bem que devia ter arrumado um homem, eu digo Adolfo arrumar eu arrumei muito, mas eu não quis. Eu escapei de um e não quero outro. Aí fiquei, fiquei. Eu dizia pra meu filho que eu tinha 15 anos quando um homem viu minha mão e contou a minha vida toda: “No final da sua vida você vai ficar sozinha e Deus”. E eu dizia pra minha mamãe. “Eu não vou te deixar só”. Aí foi indo... passei todos esses anos. Eu não estou só. Mas aí, eu fui ficando... fui ficando... e fui ficando só... fiquei só. E hoje eu vivo só. Hoje a pessoa que eu vi aqui, foi você, agora. Vou lhe dizer uma coisa... Eu tenho uma vasilha aqui, botei em cima da mesa às dez horas, pra tirar água do vaso e encher a vasilha pra botar dentro da geladeira. Ainda ta lá. Quando eu lhe vi eu pensei: “Só ele vai tirar dali”. O Raimundo passa aqui bem cedo e ele diz: “Se eu SUMÁRIO Leituras Diversas: Crônicas, Ensaios e Contos | 231 morrer primeiro que a Senhora, o que será da senhora?” E eu digo: “Morre não. Deus me livre. Deus vai lhe dar muitos anos de vida”. Porque ninguém faz o que ele faz aqui. Ele chega bem cedinho, ele luta aqui, até às oito horas e vai embora. Aí só cinco e meia pra seis horas é que ele chega de novo. Meu filho, eu passei cinco dias bebendo água da Sanacre... Eu, com dois vasilhame... Que bom que você veio... [Atualmente dona Nena mora em sua cama. Já não anda pelo quintal arborizado, pouco a pouco vê as forças se indo. Quase não ouve. Sofre de demências. Já não reconhece a própria família. As dores e doenças fazem-na pedir a morte. Chora e lamenta a sensação de solidão. Parece ter perdido a alegria de viver. Dói o peito vê-la naquele estado.]. SUMÁRIO 232 | M a g n o N i c o l a u ( O r g . ) “TERCEIRO SEXO”: A INCERTEZA NA CONSTRUÇÃO DO MASCULINO* Valdeci Gonçalves da Silva “Quando o homossexual diz que é homossexual, o heterossexual é obrigado a se pensar como heterossexual, [...] sobre a sua identidade e sobre a ordem social pela qual ela está instituída” (Didier Eribon). Na Grécia Antiga a pulsão se voltava para o belo (kalos), independente do gênero, assim, o homem livre da pólis tinha intercurso sexual com pessoas de ambos os sexos. O jovem (erômenos amado) era iniciado por um homem idoso (erastes - amante), cuja função consistia em ensiná-lo a respeito das responsabilidades de cidadão, verdade e sexo se ligavam no repasse do saber (Foucault, 1985, 1993; Catonné, 2001). A relação sexual não caracterizava homossexualidade, esse termo só foi criado, em 1869, pelo médico húngaro, Karoly Maria Benkert1, para se referir-se à pederastia masculina, e a partir disso a primazia da heterossexualidade se constituiu como a sexualidade-referência (Louro, 2009). Em 1870, o psiquiatra alemão Karl Westphal adota a expressão “sensibilidade sexual contrária”, que deu origem à denominação “inversão sexual”, para se referir à alma ou à sensibilidade feminina dos homens invertidos, que Pinel (1809) chamava de “vício contra a natureza”, praticado por pessoas do mesmo sexo, igualmente “depravadas”. A cultural, associada à difusão das teorias da degenerescência e do instinto, nos meios médicos, fez desse “vício”, uma perversão se* Este texto é fragmento de um capítulo da minha tese sobre Preconceito Sexual (homofobia) em Portugal e no Brasil, que teve o financiamento parcial da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes). 1 Há controvérsias sobre a profissão, sobrenome e nacionalidade de Benkert, para Green (2000) ele era um escritor vienense, e para Mott (2003) era o jornalista e advogado Kertbeny, que usava o pseudônimo de Dr. Benkert. SUMÁRIO Leituras Diversas: Crônicas, Ensaios e Contos | 233 xual e dos “depravados”, um tipo singular de humano: “o perverso”. Segundo Costa (1995), o denominado homossexual nasceu no século XIX, por meio de um esforço conjunto da ficção médica e da literária. Mestres da literatura, a exemplo de Marcel Proust e tantos outros, diziam-se homossexuais e criaram o mito a partir das suas realizações e decepções afetivo-sexuais, acreditando, assim, descrever “a natureza homossexual”. A teoria da referência de Donald Davidson serviu de base para Costa (1992) afirmar que é incoerente a idéia de uma homossexualidade natural e transhistórica fundamentada no suposto imperativo biológico da diferença de sexos. Somente nos séculos XVIII e XIX tornou-se possível imaginar que os seres humanos eram “natural e originalmente divididos em dois sexos” (concepção da sexualidade one-sex-model, e depois two-sex-model), o que deu sentido aos termos homossexual e heterossexual. Mesmo que exista essa diferença na natureza, Costa (1992) questiona sobre o que leva a crer que a diferença entre homens e mulheres é igual à “diferença sexual”? E por que essa diferença deve tornar todas as pessoas necessariamente homossexuais e heterossexuais? Na realidade, a diferença entre homem e mulher, levando-se em conta o sexo, é a mesma que obriga a que todos sejam heterossexuais e homossexuais. Isto ocorre por meio de especulações que concebem a homossexualidade como um problema moral que merece investigações genéticas, psiquiátricas, psicanalíticas, antropológicas, históricas, sociológicas e outras. A ideia de uma “personalidade homossexual”, com traços característicos, não é sintoma psíquico de uma realidade biológica, nem a determinação genética, por si só diz apenas que as pessoas são heterossexuais e homossexuais. A homossexualidade é uma “realidade linguística”, que existe enquanto descrição e pode ser alterada por uma redescrição (Costa, 1992). No Império Romano e na Grécia as pessoas não eram classificadas como heterossexuais ou homossexuais, o homem podia ter relações sexuais com mulheres, escravos, jovens ou prostitutas sem ser criticado. Crucial era a manutenção do papel, no caso “ativo”2, e características definidas Para Schafer (cit. por Granã, 1996), a depender do ângulo de percepção, comportamento passivo ou ativo é semelhante a decidir se um copo com água 2 SUMÁRIO 234 | M a g n o N i c o l a u ( O r g . ) como masculinas (Richards, 1993; Rodrigues, 2004). Para Foucault (1994) essa singularidade histórica não consiste em que os gregos tinham prazeres com rapazes, nem que tenham aceitado como legítimo, e que deu lugar a uma elaboração cultural. O que é preciso apreender não é o porquê desse gosto dos gregos pelos rapazes, mas, por que tinham uma “pederastia”, e em torno desse gosto, elaboraram uma prática de corte, uma reflexão moral e um ascetismo filosófico? A ética erótica dos gregos se distingue da moral do desejo por três razões: 1) não pretendia aplicar-se indiscriminadamente a todos os indivíduos, era restrita aos homens livres que, por sua vez, excluía as mulheres, as crianças, os estrangeiros e os escravos. O eros, na ética pederástica, não se sujeitava à codificação ou leis às quais todos devessem obedecer. A erótica era uma prática de aperfeiçoamento de vida que tinha como pressuposto a liberdade e não a obediência à ordem legal. A excelência ética tinha como objetivo dominar os excessos para melhor governar a si, aos outros e a cidade; 2) o domínio de si não buscava controlar o “desejo interior”, mas os atos praticados na interação erótica; 3) na ascese antiga dos prazeres residia um embrião teórico do que poderia ser uma ética sexual desenvolvida no quadro da amizade (Costa, 1998). Nessa perspectiva, Costa (1992) conclui que heterossexuais, homossexuais, bissexuais, perversos etc., não são fatos naturais que antecedem e se distinguem da nominação que dá sentido a todos esses termos. São figuras de discurso que têm uma mesma força performática na definição das subjetividades humanas. Por um lado, tendo-se o sujeito e a sua sexualidade como realidades linguísticas, pode-se observar as variações históricas das suas significações sem recorrer a algo que seja fixo, imutável e indelével na subjetividade ou na sexualidade. Por outro, homossexual, bissexual e heterossexual não são realidades linguísticas ilusórias, são, de fato, identidades sócio-culturais condicionadas às maneiras de interagir com o mundo. Esse autor procura compreender o que torna “homossexual” todos os homossexuais ou o que faz acreditar que existe “uma homossexualidade” comum aos homossexuais, e também o que faz com um sujeito se identifique ou que seja identiaté a metade está meio cheio ou meio vazio. Por esse motivo é preferível o uso desses termos aspados. SUMÁRIO Leituras Diversas: Crônicas, Ensaios e Contos | 235 ficado como “homossexual” venha a ser visto como uma espécie de homem à parte. As realidades servem a determinados propósitos, e a “realidade não-linguística” criada pelo senso comum, também visa acordos linguísticos ou objetivos pragmáticos. Assim, o sujeito passa a existir quando se produz sua pretensa natureza: homossexual ou bissexual no momento em que é assim rotulado (Costa, 1995; Becker, 2008). Costa (1995) se pergunta: por que o homem homossexual é percebido, julgado e avaliado a partir de sua inclinação erótica? O que na figura do sujeito homossexual inquieta tanto o nosso imaginário? Quem é esse ator social homoerótico? Sandor Ferenczi usou o termo homoerotismo para discutir o tema da homossexualidade corrente no século XIX. Para Costa (1992) esse termo é preferível a homossexualismo3, por várias razões: o fato de Ferenczi ser um médico húngaro ressalta a lembrança de ter sido outro médico, Benkert quem inventou o termo homossexual, na tentativa de combater a legislação alemã contra a homossexualidade, e Ferenczi, de modo análogo, mostrou que o rótulo de homossexualidade era insuficiente para descrever a diversidade das experiências dos sujeitos homoeroticamente inclinados; tem a vantagem de evocar a oposição similar, proposta por Parker (1991), entre erotismo (constructo teórico) e sexualidade (a experiência da atração sexual e a descrição dos atos e afetos engajados nessas práticas). A questão da identidade homossexual remete, de acordo com Costa (1995), a duas teses que fundamentam a teoria sobre sua natureza: a) a da imensurabilidade entre paradigmas ou esquemas cognitivos distintos; b) a da indeterminação da tradução e da inescrutabilidade da referência dos termos empregados. O tipoideal construtivista alia-se as duas; o realismo essencialista negaas. O construtivista afirma que não existe identidade transhistórica da homossexualidade porque não se pode navegar entre universos de sentido incomensuráveis, guardando o mesmo sentiA partir da retirada do homossexualismo da lista de transtornos sexuais, em 1980, pela Associação Psiquiátrica Americana (APA), o sufixo ismo (de homossexualismo), que significa “doença”, foi então substituído por ade (de homossexualidade), que indica atividade, comportamento. Assim sendo, neste trabalho, sempre que possível será usado o termo homossexualidade. 3 SUMÁRIO 236 | M a g n o N i c o l a u ( O r g . ) do para denominar fatos distintos ou afirmar que fatos denominados de maneiras diferentes são idênticos. O fundamental no debate entre construtivistas e anticonstrutivistas é a questão da referência. Os paradigmas só podem ser traduzíveis quando apresentam a mesma referência. Quando não existem mudanças no valor semântico das expressões entre paradigmas diferentes, compreende-se o que é dito. Para que isto ocorra, é necessário que se tenha a mesma referência. É possível comparar pederastia grega e homossexualidade porque os termos possuem a mesma referência, ou, no mínimo, correferências parciais (Putnam, 1981). Mas definir a identidade homossexual constitui uma problemática. Como reconhecer o homossexual? Através da “visibilidade do estigma” (expressão de Goffman, 1988)? E o que não apresenta “visibilidade”? E quando o indivíduo, apesar da sua prática homossexual não se reconhece como tal? Os sinais que apontam para esse intento são filigranas de uma multiplicidade de condutas que se esvaem ao tentar colocá-las numa categoria única denominada homossexualidade. A própria ideia de homossexualidade é historicamente datada, e em todas as sociedades humanas até hoje conhecidas existem não somente fatos, mas também registros de comunidades e subculturas homossexuais (Costa, 1995; Sullivan, 1996). Todavia, os sujeitos que não correspondem ao ideal masculino são tratados de forma depreciativa na cultura brasileira, em oposição à imagem do machão e do pai, considerados “verdadeiros homens” (Parker, 1991). Assim, diante das exigências da heterossexualidade, o que resta para o indivíduo que tem desejo pelo mesmo sexo é se identificar com o que sobra, “uma figura do homem manqué”4, ou seja, menos viril (Costa, 1992). No Brasil atribuise ao homossexual “passivo” o estatuto de meio-homem, conhecido como “bicha” (literalmente “verme”) ou “viado” (o “e” de veado animal substituído por “i”), diferente do “ativo” que tem sua identidade masculina preservar (Parker, 1991). Porém, Wright (2006) ressalta que algumas pessoas nascem com uma combinação de condições genéticas e ambientais que as impele fortemente a um estilo de vida homossexual, e que não há nenhum conflito da Grifo nosso. Do francês, o que saiu errado ou não conforme o esperado, incompleto. 4 SUMÁRIO Leituras Diversas: Crônicas, Ensaios e Contos | 237 homossexualidade entre adultos que consintam e o bem-estar de outras pessoas. Em termos morais, isso deveria encerrar a questão. Enfim, as práticas homoeróticas são muito mais amplas e diversificadas do que o termo homossexualidade oitocentista sugere, varia desde um forte apelo por relações físicas até um desejo de companheirismo erotizado tido como amizade. As abordagens sociológicas e antropológicas partem do princípio de que não faz sentido pensar em uma essência homossexual comum a algumas pessoas que, assim rotuladas, passam a ser diferenciadas daquelas consideradas heterossexuais. A representação do “homossexual típico” é uma realidade tão palpável quanto à do “judeu típico” e outros. De fato, o que une homossexual num mesmo conjunto perceptivo-interpretativo são as regras de identificação sexual criadas pelo imaginário social. A terminologia homossexual tem sua origem na ideologia médica, com a qual está comprometida, não designa uma coisa que sempre foi e será idêntica a si mesma, mas uma representação gerada pela cultura, produto de um vocabulário moral da modernidade que insere e divide os indivíduos entre homossexuais, heterossexuais e bissexuais (MacRae, 1990; Costa, 1995). Pelo exposto, é possível afirmar que a categoria homoerótica oferece um leque de possibilidades de práticas sexuais, sem que isto interfira na identidade sócio-sexual masculina, de modo que, com exceção dos transexuais, os travestis também podem sentir-se homens. Para Corneau (1995, p.48), “nem todos os homens são homossexuais, mas em razão da ausência do pai todos trazem consigo um desejo homoerótico”. Contudo, o “verdadeiro homossexual” é aquele indivíduo que, com ou sem estímulo moral da cultura, sente-se atraído por homens, encarna o ideal do erotismo por pessoas do mesmo sexo. A simples atração sensual por homens, que é uma modalidade do desejo homoerótico, não é suficiente para caracterizar de homossexual aquele que a experimenta. Mais decisiva é a presença da atração terna, que significa algo além do puro “tesão” (Costa, 1992). Entretanto, o papel “ativo” e a ausência da “atração terna” ou estética pelos clientes são os argumentos usados pelo profissional do sexo, para justificar a sua não identificação homossexual, mesmo quando confessa sentir-se sexualmente atraído por aquele que “contrata seu serviço”. No universo homossexual, a virilidade SUMÁRIO 238 | M a g n o N i c o l a u ( O r g . ) é o “produto” mais valorizado, em especial, quando se trata dessa sexualidade negociada (Silva, 1999). Assim, quando desprovido de tal característica o michê procura simulá-la. No entanto, essa simulação pode se desmanchar quando o michê encontra um cliente com características “mais viris” do que as suas (Ramalho, 1979). Segundo Freud (1989), na concepção do hermafroditismo psíquico o objeto sexual dos invertidos é o oposto do normal, como uma mulher sucumbe aos atributos masculinos do corpo e da alma. Grande parte dos invertidos preserva o caráter psíquico da virilidade, e apresenta poucas características secundarias do sexo oposto, e buscam em seu objeto sexual traços psíquicos femininos. Freud (1989) destaca que na Grécia Antiga, os invertidos estavam entre os homens mais viris, e o que provocava seu desejo não era o caráter masculino do efebo, mas a sua semelhança com a mulher, atributos femininos como a timidez, recato etc. Assim se conclui que o objeto sexual do invertido não é o mesmo sexo, mas um conjunto de sinais de ambos os sexos. Mas há suspeita de mudança desse gosto, durante o século IV a.C. e até a metade do século V a.C., com marcante aprovação da figura masculina de ombros largos, grandes músculos peitorais, cintura estreita, barriga contraída, nádegas protuberantes (Dover, 1994). Atualmente, os homossexuais se dedicam a uma espécie de culto ao corpo másculo, a “saída do armário” para visibilidade, não estão apenas os homossexuais afeminados, mas outras imagens identitárias, fazendo um contraponto com o tradicional travesti e uma reformulação identitária do gay, inserido num movimento de hipervirilização, a exemplo das figuras: do Boy - jovem das camadas populares que pratica a musculação para vender seu corpo, seja em espetáculo dos go-go boys, nas boates, ou se prostituindo nas ruas; e da Barbie - em alusão à boneca americana criada em 1958, com o corpo feminino “perfeito”, para se referir aos homens que transam com homens, e que se dedicam a manutenção do corpo musculoso e viril, seguindo a moda norte-americana clubber (Gontijo, 2009). Para Fenichel (1981), há um interesse original no homossexual por mulheres, talvez isso explique o fato de ser tão difícil para o homossexual, em especial, para o “ativo” reconhecer essa sua condição, devido à reminiscência desse interesse que pode confundi-lo como sendo uma tendência heterossexual, uma vez que sofre pressão da “heterossexualidade compulsória” (expressão de SUMÁRIO Leituras Diversas: Crônicas, Ensaios e Contos | 239 Rich, 1980), e do preconceito sexual fortemente presente na maioria das sociedades. Entre a homofobia e a heterossexualidade compulsória, o medo coletivo das manifestações da diversidade sexual é suscitado pelas brechas e ambiguidades internas da norma heterossexual, que revela seu caráter de convenção cultural e desloca seu lugar social nesse processo (Natividade & Oliveira, 2013). Finalmente, o que sustenta o julgamento de uma sexualidade normal é a união de dois órgãos sexuais diferentes para a preservação da espécie, cujo desvio, a depravação, é definido como a “contra a natureza”. Concepção essa, herdada dos gregos, em particular de Aristóteles, que se apoia na teológica de uma Natureza, na qual existiriam inclinações naturais nas coisas. Logo, todo ato sexual que desvia dessa finalidade primeira da sexualidade, a exemplo da heterossexualidade separada da procriação, homossexualidade e outros, é considerada perversão (Ceccarelli, 1998). Para Freud (1976, p.211), “além de sua heterossexualidade manifesta, uma medida muito considerável de homossexualismo latente ou inconsciente pode ser detectada em todas as pessoas normais”, portanto, “o interesse sexual exclusivo que os homens sentem pelas mulheres é também um problema que exige esclarecimento [...]”(Freud, 1989, p. 137). Assim, independente de qual seja a origem da homossexualidade, parece pertinente o que Deleuze (2004, p.21) afirma: “contra os que pensam ´eu sou isto, eu sou aquilo`, e pensam assim de uma maneira psicanalítica (referência à sua infância ou destino), é preciso pensar em termos incertos, improváveis: eu não sei o que sou, tantas buscas ou tentativas necessárias, nãonarcísicas, não-edipianas - nenhuma bicha jamais poderá dizer com certeza ´eu sou bicha`”. Referências Becker, H. S. (2008). Outsiders: estudos de sociologia do desvio (1ª ed.). Rio de Janeiro: Zahar. Catonné, J-Ph. (2001). A sexualidade ontem e hoje (2ª ed.). São Paulo: Cortez. (Coleção Questões da Nossa Época, v. 40). Ceccarelli, P. R. (1998). Neo-sexualidade e sobrevivência psíquica. Psychê Revista de Psicanálise. Ano 2 (2), Universidade de São Marcos - SP. Corneau, G. (1995). Paternidade e masculinidade. In Nolasco, S. (Ed.). A desconstrução do masculino. Rio de Janeiro: Rocco. SUMÁRIO 240 | M a g n o N i c o l a u ( O r g . ) Costa, J. F. (1992). A inocência e o vício: estudos sobre o homoerotismo. Rio de Janeiro: Relume & Dumará. Costa, J. F. (1995). A face e o verso: estudos sobre o homoerotismo II. São Paulo: Escuta. Costa, J. F. (1998). Sem fraude nem favor: estudos sobre o amor romântico. Rio de Janeiro: Rocco. Deleuze, G. (2004). Conversações (4ª reimpressão). Rio de Janeiro: Ed. 34. Dover, K. J. (1994). A homossexualidade na Grécia Antiga. São Paulo: Nova Alexandria. Fenichel, O. (1981). Teoria psicanalítica das neuroses. Rio de Janeiro - São Paulo: Atheneu. Foucault, M. (1985). História da sexualidade 1: a vontade de saber (11ª ed.). Rio de Janeiro: Graal. Foucault, M. (1993). Vigiar e punir: histórias da violência nas prisões (2ª ed.). Petrópolis: Vozes. Foucault, M. (1994). História da sexualidade 2: o uso dos prazeres (7ª ed.). Rio de Janeiro: Graal. Freud, S. (1976). A psicogênese de um caso de homossexualismo numa mulher. Rio de Janeiro: Imago. (Obra original publicada 1920). Freud, S. (1989). Três ensaios sobre a teoria da sexualidade. Rio de Janeiro: Imago. (Obra original publicada 1905). Granã, R. B. (1996). Além do desvio sexual: teoria, clínica, cultura. Porto Alegre: Artes Médicas. Green, J. N. (2000). Além do carnaval: a homossexualidade no Brasil do século XX. São Paulo: Editora UNESP. Goffman, E. (1988). Estigma: notas sobre a manipulação da identidade deteriorada (4ª ed.). Rio de Janeiro: Editora Guanabara Koogan. Gontijo, F. (2009). O rei momo e o arco-íris: carnaval e homossexualidade no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Garamond. (Sexualidade, gênero e sociedade). Louro, G. L. (2009). Heteronormatividade e homofobia. In Junqueira, R. D (Ed.) Diversidade sexual na educação: problematizações sobre a homofobia nas escolas. Brasília: Ministério da Educação, Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade, UNESCO. MacRae, E. (1990). A construção da igualdade: identidade sexual e política no Brasil da “abertura”. Campinas: UNICAMP. Mott, L. (2003). Crônicas de um gay assumido. Rio de Janeiro: Record. Natividade, M., & Oliveira, L. (2013). As novas guerras sexuais: diferença, poder religioso e identidades LGBT no Brasil (1ª ed.). Rio de Janeiro: Garamond. Parker, R. G. (1991). Corpos, Prazeres e paixões: a cultura sexual no Brasil contemporâneo (2ª ed.). São Paulo: Best Seller. Pinel, Ph. (1809). Traité médico-philosophique sur l’aliénation mentale. Paris: Chez J. Ant. Brosson. Putnam, H. (1981). Raison, vérité et histoire. Paris: Minuit. Ramalho, J. (1979). Mundo do crime. Rio de Janeiro: Graal. Richards, J. (1993). Sexo e danação: as minorias na Idade Média. Rio de Janeiro: Zahar. SUMÁRIO Leituras Diversas: Crônicas, Ensaios e Contos | 241 Rich, A. (1980). Compulsory heterossexuality and lesbian existence. Signs: Journal of Women in Culture and Society, (5), pp.631-660. Rodrigues, H. (2004). O amor entre iguais. São Paulo: Editora Mythos. Silva, V. G. (1999). Faca de dois gumes: percepções da bissexualidade masculina em João Pessoa. Dissertação de mestrado não-publicada, Universidade Federal da Paraíba, João Pessoa, Brasil. Sullivan, A. (1996). Praticamente normal: uma discussão sobre o homossexualismo. São Paulo: Companhia da Letras. Wright, R. (2006). O animal moral: por que somos como somos: a nova ciência da psicologia evolucionista. Rio de Janeiro: Elsevier. SUMÁRIO 242 | M a g n o N i c o l a u ( O r g . ) COMO RESGATAR PARAIBANOS DA MISÉRIA? Valério Bronzeado Como resgatar os 600 mil paraibanos que vivem abaixo da linha da pobreza, contados no último censo pelo IBGE? Esses concidadãos vivem com rendimento familiar de até 1/4 de salário mínimo. Por conseguinte, encontram-se em situação de pobreza extrema, absoluta. Um grande problema que exige uma grande solução. Até aqui nosso sistema social foi incapaz de proporcionar uma existência digna e satisfatória para milhares de concidadãos. Nem tão pouco materializar a doutrina da “oportunidade igual para todos”, requisito fundamental, ao lado da liberdade, da democracia verdadeira. Dar a cada um condições de igualdade significa tornar cada cidadão uma pessoa válida, bem informada e com capacidade de reflexão própria, apta à realização pessoal, ao exercício da cidadania e com meios para tomar iniciativas válidas frente às exigências e às necessidades da vida. O ensino fundamental obrigatório representa esse nivelamento e a melhor ferramenta de que dispõe o cidadão na luta pela vida digna. Há séculos que o ensino fundamental em nosso país, sobretudo na região Nordeste, vem sendo tratado como a última das prioridades. Em 1995 o Brasil foi considerado no relatório do UNICEF intitulado "The Progress of Nations" (O Progresso das Nações), como o campeão do analfabetismo. Nosso país ocupava o último lugar (129) no que tange ao nível do ensino fundamental comparado à sua potencialidade econômica. De acordo com o potencial econômico brasileiro, pelo menos 88 por cento das crianças matriculadas no primeiro grau deveriam concluir pelo menos a 5a. série. Com base em dados fornecidos pelo Ministério da Educação, o relatório da ONU informa que apenas 39 por cento alcança este estágio. SUMÁRIO Leituras Diversas: Crônicas, Ensaios e Contos | 243 A Paraíba, por sua vez, é o terceiro estado do Brasil com maior percentual de pobreza. Tal situação é reflexo direto de um sistema educacional precário, de baixa qualidade, não universalizado. Capitalismo X Socialismo Leon Tostoi dizia que “enquanto os homens não se considerarem todos irmãos e não pensarem na vida humana como a mais sagrada de todas as coisas, haverá sempre de arruinar a vida uns dos outros por motivos de interesse pessoal”. Ao revés, Adam Smith considerou fundamental que os homens busquem seus interesses. Dizia o pai do liberalismo: “Não é da benevolência do padeiro, do açougueiro ou do cervejeiro que eu espero que saia o meu jantar, mas sim do empenho deles em promover seus ‘autos interesses’”. Essas vantagens agem como uma “mão invisível” a guiar a satisfação geral. O pensador inglês dizia que ao cuidar do próprio interesse, sem sentir, cada um está cuidando do bem-estar social. Uma frase de Adam Smith ficou famosa: "Assim, o mercador ou comerciante, movido apenas pelo seu próprio interesse egoísta (self-interest), é levado por uma mão invisível a promover algo que nunca fez parte do interesse dele: o bem-estar da sociedade." De fato, como seria difícil a distribuição de leite, pão, verduras e outros gêneros pelo Estado a cada lar em cidades populosas, com milhões de habitantes. No entanto, uma mão invisível organiza a distribuição, e não há escassez desses produtos. A experiência mostrou que os regimes comunistas, ao revés, caracterizam-se pela falta, pela carência e pela privação de bens de consumo. O capitalismo, todavia, gera um subproduto, nocivo, tóxico às relações sociais: o individualismo. Na busca dos seus interesses os indivíduos trancam-se em si e se negam, inclusive, a participar das discussões de cidadania, de união política com seus semelhantes pelo bem comum. Vizinhos sequer se cumprimentam. O papa Bento XVI condenou as desigualdades entre ricos e pobres, fruto do capitalismo financeiro não regulado e a predominância da mentalidade egoísta/individualista que promove a "idolatria ao dinheiro" e a não garantia de "trabalho, atendimento à saúde e educação dignos" a todos. SUMÁRIO 244 | M a g n o N i c o l a u ( O r g . ) O capitalismo, todavia, tem uma qualidade insuperável. Ele permite, através do cooperativismo, a prática do socialismo. O cooperativismo é uma espécie de “comunismo” compartimentado dentro do capitalismo. O cooperativismo preconiza a colaboração e a associação de pessoas ou grupos com os mesmos interesses a fim de obter vantagens comuns em suas atividades econômicas. Governos que se dizem socialistas deveriam participar diretamente, planejando, organizando, fomentando, dessa poderosa ferramenta de desenvolvimento humano e social chamada de cooperativismo. KIBUTZINS PODEM SER A SOLUÇÃO Programas de transferência de renda para sobrevivência mínima são necessários, mas insuficientes. Dar o peixe sem ensinar a pescar diminui a fome e salva vidas. Todavia, a esmola mantém a miséria e vicia o cidadão. O programas de concessão de crédito aos pequenos empreendedores e produtores rurais não foca diretamente a pobreza absoluta. Um sistema de fazendas coletivas organizadas pelo Estado em forma de cooperativas seria, talvez, um caminho para o resgate de milhares da miséria. Os kibutzim israelenses são a doutrina socialista posta em prática de forma compartimentada para dar ocupação, trabalho, renda, riqueza a quem precisa. Em Israel milhares de pessoas participam dos lucros arando, plantando, criando, comercializando em cooperativas rurais e de pesca. Há mais de 100 kibutzim urbanos nas cidades israelenses. Temos na Paraíba áreas no entorno de açudes que se prestariam para a implantação desses centros coletivos onde os meios de produção (terra, equipamento, sementes, etc.) seriam bancados pelo governo para o resgate exclusivo dos que estão abaixo da linha da pobreza. Embora a ideia do kibutizim seja criticada face a uma suposta inaptidão para o trabalho comunitário/cooperativo dos que vivem com baixíssima renda, nunca foi tentado por aqui, nem sequer como uma experiência piloto. Por fim, não custa nada perguntar: Você saberia como resgatar 600 mil paraibanos da miséria de forma sustentável? SUMÁRIO Leituras Diversas: Crônicas, Ensaios e Contos | 245 CONTOS TEORIA DO MATUTISMO Adilson Silva Ferraz O trem solta um forte jato de vapor, que sobe rapidamente. De repente, uma sirene toca, e todas as portas são abertas. Podia-se ver uma fina neblina pairando no ar. Uma multidão apressada de passageiros desce com suas malas buscando a saída da Estación Desamparados. Aparentemente, muitos deles eram descendentes de indígenas andinos, com sua cor de pele e estatura características, seus colares e roupas coloridas. Já os forasteiros eram fáceis de identificar por preferirem tonalidades mais sóbrias. As pessoas pareciam correr mais do que o normal, não apenas por estarem cuidando de seus afazeres na Ciudad de los Reyes, mas também para fugir do frio. Mas nem mesmo a baixa temperatura espantava os vendedores de artesanato, que, em meio a um burburinho constante vindo dos bancos de pimentas e temperos dos mais variados, sentavam-se ao lado de suas criações. O cheiro dos temperos competia somente com o de ceviche e o picante de curry; inundava as narinas, convidando os que chegavam a uma boa refeição no local. Ao mesmo tempo, se podia escutar não muito longe uma música tradicional, recheada de flautas e de acordes vivos vindos de algum instrumento de cordas. Sem dúvida, a cena era bastante pitoresca. Zé abre um sorriso. Está vestido com uma camisa branca de botão, mostrando os pelos do peito, uma calça bege e alpercatas, cuja sola do lado esquerdo estava se descolando. Destacava-se o encaixe perfeito do chapéu de couro em sua cabeça. Zé conseguia ser notado até mesmo naquela confusão de pessoas que se chocavam a todo momento. Alguns olhavam para ele com curiosidade; SUMÁRIO 246 | M a g n o N i c o l a u ( O r g . ) outros, com desdém. De fato, aquele homem era diferente de qualquer pessoa que tivesse passado até então por aquela estação. Ninguém se daria conta que esta é a melhor estratégia quando alguém quer justamente passar despercebido. Mas isso não lhe importava, assim como não era um problema que lhe faltasse um dos dentes de cima e que sua barba estivesse mal feita. Contanto que ele pudesse assar um milho e dançar um forró no mês de junho, Zé estaria feliz. Levava consigo apenas uma bolsa de tecido com alça, dessas de pendurar no ombro, costurada com muito zelo por sua mulher, além de um pequeno cantil com água. Dentro do saco (como ele chamava a bolsa), havia algumas roupas, uma banda já velha de bolo de fubá, um resto de pão e as cascas das laranjascravo cujo cheiro havia incensado o vagão do trem por quase toda a viagem. Na mão, um papel com algumas instruções em ordem numérica. A primeira delas dizia: “Um coche negro o espera do lado de fora da estação. Entre no coche”. Ele cumpre à risca a indicação. Após alguns minutos chacoalhando naquela carroça de luxo, Zé descruza os braços e, ao som do trote dos cavalos, olha pela janela. Sem saber que aquela era a catedral, faz com devoção o sinal da cruz. A imponência daquela construção não ofuscou a lembrança imediata da pequena capela de sua terra natal, pintada com tinta amarela e branca, já descascada pelo tempo, onde ia rezar para Nossa Senhora. Já sentia falta de Maria, do cachorro, que chamavam Totó, e de seus três filhos. Num impulso, colocou a mão no bolso e tocou as contas desgastadas do velho terço que havia herdado de sua finada mãe. Sentiu naquele momento que nada poderia atrapalhar sua missão. Descendo do coche, uma palavra foi suficiente para definir o que estava vendo: “Arretado!”. Para quem havia saído do interior de Pernambuco, cresceu indo buscar balde d’água no açude e comendo palma durante a seca. A visão do rio Rímac e do tímido encontro gastronômico que depois se chamaria “Mistura” eram uma dádiva para os olhos.A vida começou difícil para Zé. Primogênito de oito filhos homens, dos quais alguns morreram pouco tempo após o parto, acabou por dividir com os pais a tarefa de cuidar dos irmãos mais novos. Aos dez anos, aprendeu a ler e escrever praticamente sozinho, ensaiando o desenho das letras e a pronúncia com a ajuda de uma tia que lhe corrigia. Não havia escola a menos de 20 km de distância de Sapucarana, sua cidade natal, e tardaria muito tempo até que fosse inaugurada a primeira por um conhecido deputado. Ainda crian- SUMÁRIO Leituras Diversas: Crônicas, Ensaios e Contos | 247 ça, Zé aprendeu com o pai o ofício de “sobrevivente”. Plantavam milho e feijão, e, às vezes, iam até a feira de Caruaru para vender o que lhes sobrava ou trocar por outras mercadorias. De vez em quando, iam para o mato atrás de lambus e rolinhas, mas estava cada vez mais difícil encontrar o que abater. As coisas não mudavam nunca em Sapucarana; mesmo depois que ele se juntou com Maria, a vida não passava de uma luta eterna contra a natureza. Quase todos os anos a seca castigava o roçado e os animais, e, muitas vezes, no prato só havia feijão polvilhado com um punhado de farinha. Certo dia, um carro para em frente à casa de Zé. Dele, descem dois homens muito bem vestidos, usando ternos, desses que só eram vendidos longe, em Recife. Batem à porta. A maioria dos que viviam ali nunca tinha visto um carro, o que fez com que muitos saíssem de suas casas e exclamassem: “Imagina só, um automóvel! Em Sapucarana!”. Na verdade, a maioria não teve tempo de se orgulhar ao admirar esse avanço civilizatório; preferiam especular sobre o porquê de um carro estar parado exatamente em frente à casa de Zé: “Só pode ser polícia! Bem que eu ouvi dizer que esse Zé é metido a cangaceiro!”. Já dentro da casa, os agentes ficaram impressionados com a esperteza do matuto. Concluíram que ele possuía uma enorme engenhosidade para solucionar problemas: não foi preciso muito tempo para que transbordasse aquela sabedoria simples que é indispensável naquelas terras. Após meia hora de conversa, em presença de Maria e Totó, os agentes fizeram a proposta. A única coisa em que Zé pensou ao fazerem aquele convite inusual foi: “Eu nunca servi o exército. Nunca votei em político. Nunca nem saí de Sapucarana, nem ninguém veio aqui perguntar como eu tô... Por que eu?”.Naqueles tempos, o Serviço de Inteligência brasileiro estava precisando de um agente especial. Alguém que, como todo agente secreto, fosse capaz de entrar e sair de qualquer lugar sem ser percebido e que lograsse se infiltrar nos grupos mais fechados. Segundo o relatório do próprio Serviço, o agente deveria ser alguém não só acima de qualquer suspeita, mas sobretudo “alguém que seja ninguém”. A explicação é simples. Haviam chegado à conclusão de que a tão aceita teoria da lealdade é falha. Selecionar dentre milhares de candidatos alguns poucos que não trairiam seu país não parecia mais ser uma boa estratégia. Na escolha dos agentes, além dos testes intelectuais e físicos, era realizada uma intensa bateria de provas psicológicas, para verificar a capacidade do candidato de manter a coerência de SUMÁRIO 248 | M a g n o N i c o l a u ( O r g . ) seus ideais. Se um candidato demonstrasse possuir ideais considerados contrários aos interesses da pátria, era sumariamente excluído. Claro que a coerência, os ideais e os interesses eram definidos pelo governo que estava no poder, e é por isso que os aprovados eram sempre aqueles que aceitassem fazer qualquer coisa pelo seu país sem questionar as causas e a moralidade de suas ações. Entretanto, após algumas experiências que resultaram desastrosas para o Serviço, percebeu-se o óbvio: a ideologia dos agentes pode mudar durante o jogo, em função de novos interesses. Como consequência, mudam também suas ações. É o que faz com que a espionagem seja uma atividade de altíssimo risco para qualquer país. Assim, para evitar a ineficácia do sistema tradicional, foi criada uma divisão no Serviço, responsável por recrutar pessoas diferentes, que não tivessem sido, em certo sentido, contaminadas pela ganância e desejo de consumo. O principal critério de seleção não seria mais a quantidade de conhecimentos, nem a capacidade física, tampouco a lealdade a qualquer custo, mas, sim, o altruísmo inabalável dos que de pouco necessitam. E foi assim que Zé tornou-se o primeiro agente secreto matuto (Agente-M) da história do Brasil. A entrada do Agente-M causou polêmica no Serviço. Seus colegas duvidavam de sua capacidade para integrar aquele grupo tão seleto. Acreditavam que ele seria incompetente para realizar uma missão, por mais simples que fosse. E assim, quando se referiam ao novo agente, era comum que o chamassem de “Zé ninguém”. E, de fato, Zé não existia para a maioria dos seus colegas. A mudança se deu quando Zé foi designado para atuar em Lima, pois frequentemente um agente acabava se tornando visível por força da inveja de outros agentes.E por que ele foi a Lima? Desde 1945, havia rumores de que a guerra seria ganha com ajuda de uma poderosa tecnologia, desenvolvida por “algumas das melhores cabeças pensantes do mundo”, que, naquela época, estavam, obviamente, na Alemanha... Após o fracasso do Dia D, era sabido que os engenheiros das forças armadas alemãs haviam logrado concentrar todo seu potencial destrutivo em uma única arma mortal. Segundo um relatório do Serviço, o seu nome era autoexplicativo. Chamaram-na “MONOS”. Segundo foi informado a Zé, ainda em Recife, o plano era roubar essa arma, dando ao mesmo tempo uma lição aos nazistas e peruanos. O Diretório Central do Serviço (DCS) tinha indícios sólidos de que o Peru entraria brevemente na guerra apoiando os alemães, o que representava uma grande ame- SUMÁRIO Leituras Diversas: Crônicas, Ensaios e Contos | 249 aça ao Brasil. Dominariam primeiramente o Chile, com um grande ataque a Santiago, emendando com ofensivas a Buenos Aires e ao Rio de Janeiro. Se isso fosse verdade, a Hitler faltaria conquistar apenas alguns países menores da América do Sul. Havia rumores de que os últimos focos de resistência nos Estados Unidos já não existiam mais. A situação era realmente preocupante.Frente à iminência dessa catástrofe, se tornou extrema a preocupação com o que acontecia nos bastidores do Serviço. A corrupção havia, há um bom tempo, corroído todos os seus estratos, atingindo desde o mais simples agente até os poucos chefes do alto escalão que tinham o privilégio de conversar diretamente com o presidente da república, o que pode ser explicado parcialmente pelo momento político vivido no país. O governo brasileiro lutava para manter-se no poder, utilizando-se de propaganda ideológica massiva, perseguições aos opositores e outras práticas que eram próprias aos regimes fascistas, como o de Mussolini. Sem contar que os gastos com novos direitos sociais acabaram por minar as finanças públicas. E ainda havia a guerra, que obrigou o país a assumir uma posição no tabuleiro. Daí a importância extrema da operação Ciudad de los Reyes. Mas nada disso importava para Zé. Se não faltasse chuva naquele ano, se o milho fosse suficiente para dar de comer às galinhas, se ele pudesse se deitar na rede novamente com Maria, tudo estaria bem. Ele queria mesmo era voltar para Sapucarana. Antes de sair do Recife, o Serviço informou a Zé que um carregamento iria chegar naquela noite no porto El Callao. No papel, ele leu a segunda indicação: “No navio Caraboujan há uma caixa com o nome ‘MONOS’. É a temível arma. ”Após algumas horas, chegando ao local indicado, Zé avista um cargueiro gigantesco e muito antigo, cheio de caixas. A noite estava fria e o ar frio da manhã havia se espessado na forma de uma neblina densa. Zé estava desconfiado, não acreditava muito nessa história de arma, apesar de ter feito uma longa viagem até aquele lugar. Também achou estranho que não houvesse ninguém a bordo. O navio estava deserto. No topo da maior caixa que havia, estava escrito o nome indicado pelo Serviço. Seguindo a terceira instrução, Zé abriu a caixa sem muito esforço e não acreditou no que viu! Bastaram alguns segundos para entender a situação, em meio a gritos e saltos dos animais. Os alemães riam da Inteligência brasileira e festejavam o sucesso de sua operação Traduttore, Traditore: MONO quer dizer “macaco” em espanhol. Comprovaram que às vezes a melhor for- SUMÁRIO 250 | M a g n o N i c o l a u ( O r g . ) ma de enganar alguém é não ocultar nada, e deixar que se emaranhe em suas próprias teorias e especulações. Nesse exato momento, o Peru começava seu ataque a Santiago; não houve qualquer chance de defesa. Dois dias depois, Buenos Aires seria completamente destruída. Nessa mesma noite, Zé encaminha um comunicado confidencial ao chefe do DCS, solicitando que depois seja imediatamente repassado ao presidente da república. Dizem que foi a última carta recebida por Getúlio Vargas: “Vossa Senhoria, Seu Doutor, Escrevo pra lhe dizer, preste atenção por favor, se a tal arma é pra roubar, há muito que se fazer. Pra num arriscá se aperriar, espere os gringo atacar, pegue um jumento com balaio, bicho bom pra se defender, mas tem que ser do que aguenta tudo, feira pesada, sopapo e mosquito safado. Pra dar cumprimento, bote em cima dele um cabra valente, dos que mata cobra só de mostrar os dente, e mande espalhar, sem pena nem pirangagem, banana pra dar e vender. E se isso não resolver, diga ao Senhor Presidente, Excelência de última patente!, que num se avexe não... A tal arma é peba demais. Num carece de fazer fuleragem, mandar soldado ou espião; O tal de MONOS num assusta moça nem rapaz. Pra resolver a situação, peça milagre a Frei Damião. E se nada resolver, bote uma roupa de gente! Aperte o passo, com uma mão atrás e outra na frente, que, contra macaco, o remédio mesmo é correr. Agente-M. P.S.: Contra deslealdade, corrupção e burrice, nem matuto salva!” (Dedicado a Paul Baudry e em agradecimento a Isabel e Massi pelos dias em Laggio di Cadore) Paris, França, 24/07/2013. SUMÁRIO Leituras Diversas: Crônicas, Ensaios e Contos SUMÁRIO | 251 252 | M a g n o N i c o l a u ( O r g . ) VÊ SE ME TELEFONA, BERENICE Arland de Souza Lopes Ficar deitado na cama, com o olhar perdido no forro branco do quarto, não me leva a nada. Assim eu só penso em sacanagens mil e aventuras impossíveis. A leitura, essa, me é fatigante depois de vencer alguns capítulos do livro, embora, no final deles, eu me sinta intelectualmente realizado, com aquela sensação de ter contribuído com a dose diária de cultura que a minha sensibilidade exige. Estou seco que Berenice me telefone, neste sábado de muitas expectativas e nada de real até agora. Ela é dessa mulheres misteriosas, que surgem na vida da gente de forma inesperada e se vão sem deixar vestígios – o que restou entre nós foi apenas a lembrança de uma trepada em estado de semiconsciência etílica e o impacto de meia dúzia de ideias pessimistas ditas para impressioná-la. Aliás, eu estou convencido que não há nada como o cara se fazer de sofrido e desgraçado para despertar o interesse de uma mulher. Ela, sempre maternal, logo nos põe nos braços (numa atitude de amparo incestuoso) e imagina que está realizando a maior caridade de sua vida para depois ficar perdidamente apaixonada. Berenice não foi diferente das outras, ao me revelar, após minhas lamentações: - “Como você é estranho!”. Retruquei que eu não tenho nada de estranho, além de uma atávica fixação suicida e o irresistível impulso de rir nos velórios a que sou obrigado a comparecer. -“Mas você é completamente louco!”, insistiu ela. – “Minha nega, você é que ainda não nasceu!”, concluí o papo, entre beijos e afagos. O que leva uma pessoa a questionar tudo, achar que a vida é efêmera demais para ser vivida dentro dos padrões estabelecidos? Assim sou eu. Fico tentando ver além dos meus horizontes, imagino (sem entender direito) por que se morre por tão pouco – algo como um cara que caminha pelo asfalto achando que é eterno e, de repente, pum!, um carro deixa-o em pedacinhos na via pública; ou SUMÁRIO Leituras Diversas: Crônicas, Ensaios e Contos | 253 mesmo um inocente que toma uma bala perdida nos peitos sem saber a razão daquela surpresa. Me dá um frenesi dos diabos imaginar que corro estes riscos, embora às vezes a velha atração pela morte embote momentaneamente esse meu pavor ancestral. O certo é que a vida não é uma simples via de passagem – como querem entender os crédulos – mas uma via de permanência, que pode não ter tido anterioridade nem terá tampouco posteridade. Amo Berenice? Ou vejo nela apenas uma fêmea bonita, gostosa, que me acolheu em seu regaço numa noite que tinha tudo para ser vazia e fodida? Se ao menos ela me telefonasse, essa dúvida seria passada a limpo. A verdade é que o amor não tem nada a ver com a saudade do corpo no qual a gente pastou um dia antes; é mais do que isso e não é essa merda toda, porque passa, fenece, cria lodo e cheiro de podre. Digo isso pensando no Judas, de Thomas Hardy, para quem “não está na natureza humana amar o mesmo ser toda a vida”. Ora, que se fodam as filosofias sobre o amor, o que sei é que Berenice me cativou desde que a vi e a perdi de vista e me faria feliz se ressurgisse, mesmo por telefone. Se deitar não me convém, muito menos vale a pena andar desvairado pelos cômodos da casa. Radiola, tapete, chuveiro, mesa, pia, tv, quadro, quadro, quadro... A casa é refúgio e prisão e nela me sinto prestes a ser um novo Gregor Samsa, só que ao invés de numa barata eu me transformaria num enorme e abominável roedor, que bufa e extermina cream crackers e chitos do armário da cozinha. No meu sonho de bicho ninguém me mata, pois morto eu apodreço rápido e não sofro muito; querem-me vivo, porque a vida representa uma putrefação mais lenta e complicada. Sair de casa e ganhar as ruas da cidade, talvez seja a única solução para o fim do meu drama. As ruas palpitam de agitação e mobilidade, exibindo rostos suados, peitos, bundas, vozes e uma miríade de probabilidades. Divido-me entre sair ou ficar, sem forças para tomar uma decisão. Mas como sair, se a qualquer momento Berenice pode me telefonar? SUMÁRIO 254 | M a g n o N i c o l a u ( O r g . ) ENTRE PONTOS (Crônica de autoajuda) Arturo Gouveia A menor distância entre dois pontos é uma curva. Não sou o primeiro a dizer isso, nem serei o último. Esse delito da lógica provém da física. Mas vejam bem o que me aconteceu entre o avião e a favela: Eu vinha de Barcelona, de um leilão internacional. Tudo tinha sido de exaustivo conforto, até o auge das extravagâncias: no sanduíche servido pela aeromoça, a azeitona estava sem caroço! Era uma azeitona completa, gorduchinha, não em fatias. Isso me chamou mais atenção do que todos os objetos dos Beatles - um botão de uma calça de Lennon, a primeira chupeta de Paul, o primeiro preservativo de Ringo, o segundo modes da primeira namorada do segundo filho da terceira babá do outro -, tudo arrebatado por fortunas vivas. Mas a azeitona sem caroço foi um desprezo à minha arcada, uma das melhores do mundo, segundo meu dentista, a quem pago dois mil dólares por mês. A última cirurgia a laser, sem anestesia, foi um pouco mais cara: seis mil dólares (o que devorou 100 % de meu orçamento de Brasília). Passei a mão na boca, para ver se ela ainda estava no lugar: estava. Então chamei a aeromoça e perguntei que desrespeito era aquele com meus dentes. Será que eu estava ficando velho sem notar, tal era o meu duro em três, quatro voos por semana? - É só para o senhor não ter muito trabalho. A companhia sabe que os executivos são muito ocupados e não têm tempo a perder com caroço. Assim, facilitamos a sua vida, em tudo o que nos for possível. Eu ia entrar na justiça com um pedido de indenização por danos morais. Mas a aeromoça era tão simpática, estava sempre rindo, e aí engavetei o processo. Mastiguei a azeitona, que se derreteu na minha língua, antes mesmo de tocar nos dentes. O avião fez uma curva, que para mim foi uma reta, pois não senti a menor SUMÁRIO Leituras Diversas: Crônicas, Ensaios e Contos | 255 alteração nas almofadas. Talvez fosse o efeito do vinho, muito forte, fabricado, segundo o rótulo, em Avignon, ainda na Idade Média, por ordem de João XXII, que tomou o primeiro gole. Ou talvez eu estivesse entorpecido pelo sabor da carne: bifes de trinta centímetros quadrados de peito de canguru, contrabandeado da Austrália por uma entidade ecológica. Era também provável que fosse o sono do uísque, cujos barris eu nem lembro mais de que século eram. Dizer que eram os lençóis, de seda artesanal indiana, é uma mentira. Ou que eram os lenços, perfumados com substâncias das últimas orquídeas roxas da Amazônia, é uma calúnia. O que sei é que não senti as curvas, mesmo com o piloto anunciando toda hora. Quando vi a azeitona aberta, esfaqueada por dentro, estuprada pela gentileza dos cozinheiros, para que comêssemos a pequena vítima sem esforço... Quando vi aquela menor abandonada em meu prato, prostituída pelas facas, desvirginada à força, desvaginada pela arte culinária... aquela bebê sondada, com o carocinho de poucos dias abortado... aquela inocente sem trompas, sem útero, com o feto jogado no lixo, o ventre agora lambido por minha língua... Não, não tinha curva que me desviasse do remorso ou, quiçá, da ereção. Este ponto ficou na minha cabeça até o aeroporto. Por causa das chuvas, tive que dispensar o jatinho e enfrentar São Paulo de táxi. E logo no 16 de junho, dia do meu aniversário! Eu tinha que estar nos Jardins em uma hora, para uma reunião inadiável. Mas o trânsito começou a engrossar. Já na periferia, paramos na boca da Favela do Perdão, com uma ambulância pedindo passagem aos milhares de concorrentes. A polícia estava caçando um marginal, espalhando fotos dele em cartazes mortais. Embaixo, alguns traços dele, para alguém que o visse: não tinha um dente, só metade de uma orelha, pedaço do nariz rachado a bala, um esfaqueamento no olho direito, a pálpebra esquerda arrancada, os lábios assados em brasa, o véu palatal incendiado, a língua atravessada por pregos, o pescoço com duas tentativas de decapitação, os ouvidos semiestourados, a mandíbula deslocada, o occipital raspado, a testa cortada a canivete, as sobrancelhas lichadas e pichadas, as bochechas remendadas com maçarico, a nuca com marcas de martelo e pé-decabra, as clavículas esfoladas, o tronco pontilhado, a mão esquerda decepada, a direita só com o indicador, a bacia torcida, as pernas em falso, os calcanhares partidos e a alma em petição de óbito. SUMÁRIO 256 | M a g n o N i c o l a u ( O r g . ) Com todos esses méritos, devidos às brigas de gangs e passagens pela polícia, que sempre quis reintegrá-lo à sociedade, Gagau ainda foi capaz de um mérito maior: para punir a mulher, que não queria mais o seu amor, estuprou as duas filhinhas, uma de três anos e outra de dois. Como era famoso pelo pênis degolado (assim premiado em uma das sessões de reintegração social), a polícia suspeitava do indicador, o que, sem dúvida, tinha causado menos sofrimento às meninas. Levadas para exame de hímen-delito, ficou comprovado que o pai tinha encaixado no dedo uma garrafinha com o fundo quebrado, o que ainda era uma opção abençoável. O exame foi feito com microscópio e mostrava o quanto o pênis dele, imundo e decapitado, poderia ter sido menos humano. Há meses que Gagau estava sendo procurado e a polícia vinha vigiando a mansão dele já há uns dias. Carente, tinha voltado para a mulher, com a proposta de reatar os laços afetivos. E o resultado era esse aí: a ambulância gemendo no trânsito doente, em plena Marginal, a mãe louca e o pai escondido em algum ponto de São Paulo. Este ponto agora ninguém é obrigado a ler. É um intervalo de desperdício, só para registrar uma pichação que vi num dos muros da favela, durante a vistoria de meu táxi. Diziam que era o protesto de um poeta apaixonado pela prostituta Maria Sublime, nascida em 1904, morta há um ano por policiais com supositórios de pólvora. Outros diziam que era mensagem de grupos de desempregados que estavam formando pequenas polícias secretas de traficantes para insultar a polícia verdadeira, a patriótica, e convidá-la, dentro da lei, para emboscadas. Fosse o que fosse, era uma linguagem absolutamente cifrada e sem vínculo com o real: .INTERPONTO .2+2 = 3,999999999... = curva = espaços impreenchidos = os des-vãos = a angústia da incompletude = a celebração demoníaca da imperfeição = agônicos quases = o inabsoluto - o mal = infernos sublimes = a impotência do bem = inequações exatas = entre polí-cia e marginá-lia não há hiato = silêncios nocivos = bocas parafusadas = zeros plurais = 0,999...+2+3 = nada º = o quadrado do nada = ruínas infantis = palácios de barro = berços atrofiados = e os sujeitos dos crimes? = insujeitos = anônimos de farda = em detrimento = Xs e Ys estourados = detritos de Maria = n culpados = e a Branca cega = missais de crimes = execuções exemplares = irrupções de criaturas = teologia do mal = perdões vingados = proliferar o medo = curvar por dentro = síndromes SUMÁRIO Leituras Diversas: Crônicas, Ensaios e Contos | 257 de grosserias = inoção de limite = favelas descabaçadas = bucetas escolásticas = s esquartejados = pobres ninguéns = os nadas totalizados = - 0,999... = 0,0s = pontos incontínuos = o risco dos ínterins = a miséria até no átomo = o agora jamais = futuros sem ângulo = 16 de junho de 1904 = entre seios sifílicos = mulheres dissecadas = trono de micróbios = um é dois = a cabeça de Batista = não serve nem para o mal = covas de cicatrizes = + pus = 9,999999999 feridas = milênios de danos = ponto final. O capitão Batista afirmou que tinha filósofos trabalhando para os traficantes. E que o perigo de Gagau ia se irradiar, se o povo colaborasse com ele. Gagau, por sua vez, andou espalhando a resposta: desde o ventre nada tinha a perder, tendo se multiplicado agora. Não temia a polícia, sua mãe e mestra, com quem aprendera tudo. Lembrou que muitas mães foram mortas por filhos pródigos e a polícia não seria exceção. Batistinha que se cuidasse, porque sua linda cabecinha ia ser cortada, limpada de todos os excrementos por dentro e transformada numa cuia para o povo pedir esmola com dignidade. Quando as pistas se esvaziaram, já perto da meia-noite, eu já podia me considerar um miserável: tinha perdido a reunião milionária e meus concorrentes é que iam esfaquear os cofres públicos. Isso me fez perder a fé em Deus e na justiça, que naquela noite deram as costas pra mim. Quem deu a frente pra mim, já no fim do último desvio, foi um mendigo idêntico ao bandido do cartaz. Ele se aproximou, botou a única mão dentro do táxi e disse: - Doutor, eu não comi nada hoje. Vim lá da Paraíba há vinte anos e ainda não arrumei nada. Me dê um trocadinho aí. Hoje é meu aniversário e eu tenho que comer alguma coisa. Nem que seja um caroço de azeitona. SUMÁRIO 258 | M a g n o N i c o l a u ( O r g . ) NOTURNO DE AMSTERDAM Astier Basílio Antes que eu cumpra o prometido, tenho de reconhecer que você tinha razão. Não deveria ter ido ao teatro ver a adaptação de Operação Massacre. Sim, o Walsh dos K, sequestrado pela oficialidade, é uma caricatura do grande escritor que ele foi. Mesmo discordando da essência que te motiva a dizer isso, o resultado do espetáculo, tenho que reconhecer, não é bom. Ainda que não compactue com as críticas que você faz a Cristina é, de um modo geral, esquisito a inversão de signos proposta pela Companhia Estatal de Protesto. Mas veja: embora eu concorde, em gênero, número e grau, com o que houve com o Clarín (ok, não vamos discutir isso de novo), do ponto de vista estético, acredito que inverter o signo, nesta montagem, não funcionou. Seria melhor ter mantido a estrutura kafkiana de processo de execução sumária, que está no livro, e optar por uma montagem histórica mesmo. Em suma: mostrar, no palco, os militares como agentes da repressão e do arbítrio, como faz Walsh. E sugerir, na dimensão metafórica, a atualização destes agentes, destas novas relações de poder e opressão – quem sabe de modo mais sugestivo. Ao vestir a roupa de vilões burocráticos nos jornalistas e nos donos do Clarín, algo ficou faltando na construção simbólica do espetáculo. Não que do ponto de vista conceitual seja inaceitável (não é isso), mas na plataforma de execução artística algo falhou. O taxista quase me fez perder meu horário; cheguei em cima da hora, a van com os jornalistas já tinha se deslocado, o jeito foi seguir direto para o cinema. Engraçado que, por alguma razão que não sei ainda qual, nem perguntei ao motorista, tive de repetir umas três vezes o meu destino: “Festival de Cinema holandês”. Será que ele achou meio inverossímil que tal houvesse por estas bandas ou precisarei de mais aulas de espanhol? Não, não me esqueci do seu pedido. SUMÁRIO Leituras Diversas: Crônicas, Ensaios e Contos | 259 Antes, deixa-me te perguntar. Que te parece o título? Noturno de Amsterdam. Eu aprecio muitíssimo. Que tarefa difícil, contar o filme, sem dizê-lo todo. Você chegou a mencionar algum receio de que pelo fato de ser uma produção franco-holandesa, o Cortázar que surgisse fosse um personagem comprometido com uma paisagem que não era a sua propriamente. É noite, quando a primeira cena acontece. A rua é de um tipo de material antigo, suponho que pedra ou paralelepípedo. Pouco importa. Faz barulho. Ouvimos o matraquear dos sapatos que desviam de poças de lama. Passo a passo. Antes que notemos o personagem que caminha pela penumbra, acontece outro barulho. Mais intenso. A ação trascorre em outro ambiente. Desta vez, em um quarto. Ouvimos batidas numa máquina de escrever. Quem datilografa está fumando. A fumaça impede o rosto. Na imagem simultânea, o marchar de alguém que continua na escuridão. Lá fora está chovendo. A tela se divide em duas. É quase um bolero. A folha é puxada. Antes que se leia qualquer coisa, voltamos à imagem do solitário que caminha. Chove. Ele está sob um guarda-chuva preto. Fuma. E se direciona para um local iluminado. Há outras pessoas. Formam uma fila. O homem se acomoda. Estamos no cine Pathé, de Amsterdam, onde um letreiro risca a escuridão vaporosa e em que se lê Blow up. Fechando o guarda-chuva, Cortázar pede um ingresso. Agradece. E entra. Como se fosse qualquer um de nós. No quarto, a janela é aberta. O rosto barbudo se ilumina. O escritor joga o cigarro. Puxa a folha da máquina. Estamos nos ombros de Cortázar. París, 4 de septiembre de 1965 Querido Paco Noticia personal y todavimuy privada. Recebí uma carta increíblede Antonioni. Leyó lós cuentos em La edición Einaudi, se subió por las paredes (supongo que com La ayuda de Mónica Vitti, el muy desgraciado, mirá que tener eso en casa...), y me dijo que “Las babas del diablo” era exactamente ló que estaba buscando hace años para hacer um film. Agora, mais uma vez, devo concordar contigo. SUMÁRIO 260 | M a g n o N i c o l a u ( O r g . ) Meu receio era infundado. Você tem razão. Mais do que a semelhança física, havia algo de Cortázar em Vincent Cassel, sim. Mas não era perceptível a todos. Você riu de meu “patriotismo”, quando disse que ao saber da escalação dele para o papel achei-a inoportuna e preferia alguém da tarimba de Ricardo Darin (engraçado que não gostes dele). Me assombrou como o francês dominou o espanhol e soube, milagroso percurso ao inverso, dosar a ferrugem francesa do sotaque de Cortázar que até eu, que não sou muito bom em distinguir nuanças do espanhol, percebia. Mais do que isso, Vincent Cassel como que adquiriu o jeito que classifico de ‘arrogante irresistível’. Eu sei. É uma tipificação que recusas. Até te imagino olhando o longe, arqueando a sobrancelha esquerda e me dizendo:“Isso é coisa de vocês, desse povo que se desmancha em cordialidades, em meandros como evoluções de samba”. Enquanto te escrevo, confiro no La Nación uma informação que circulou entre os jornalistas quando voltávamos da sessão de Noturno: Vicent Cassel foi convidado para protagonizar uma grande montagem teatral de A Casa Tomada. Na matéria, não há qualquer confirmação do ator ou representantes. Há uma longa entrevista com o diretor Víctor José Fernández, que levará este projeto adiante. Farão uma inversão de signos também. Espero que desta vez se consiga um resultado à altura. Te explico. Na montagem, Fernández quer ler a narrativa de Cortázar sob o signo de uma pergunta bem pertinente: Quem é o invasor e quem é o proprietário? Confesso que após o café da manhã irei a um dos sebos aqui perto e comprarei uma edição de bolso de Armas secretas e vou reler o livro. Deu-me um certo curto-circuito (perturbadoramente genial!) só de pensar o conto sob esta perspectiva. E, para você rir um pouco de mim com estes teus olhos que estão a me matar por sua ausência, Fernández disse que o encadeamento de governos democráticos, progressistas, o que eu denominei de ciclo bolivariano, é uma ótima chave para se estruturar o seu espetáculo. O raciocínio dele é o seguinte: Fernández diz que não tem medo de enfrentar os lugares cristalizados. Daí a ousadia de ver o SUMÁRIO Leituras Diversas: Crônicas, Ensaios e Contos | 261 despertar progressista, do Brasil, da Venezuela, da Argentina, do Uruguai, a presença silenciosa que restaura a casa – aqueles secretos movimentos que expulsam os supostos donos daquela mansão. O encenador até cita que Cortázar meio que deixou a entender isso em pequenos detalhes como a linha de crochê, dos inquilinos expulsos, a denotar certo traço burguês, individualista, pois, remete diretamente à Penélope e seu drama de esfera pessoal, posto na Odisseia; concordo com Fernández quando ele diz que o seu Homero preferido é o da Ilíada. Garanto-lhe uma coisa. Cassel, estando ou não, teremos um grandioso espetáculo. Embora você vá discordar de mim. Sempre teremos Buenos Aires. Queria muito te encontrar. SUMÁRIO 262 | M a g n o N i c o l a u ( O r g . ) A QUEDA DO PROSTÍBULO Carlos Henrique Leite Toda cidade conhecia de sobra a coragem do vigário. Homem jovem, de seus vinte e poucos anos, franzino e sem papas na língua, já dera provas do seu destemor. Conhecedor profundo de ciências humanas, a todos encantava com seu verbo fácil e grande poder de convencimento. Diziam até que havia estudado em Roma, como depois foi comprovado. As solteironas ficavam embevecidas com a prosa do padre Chico Ferreira. As más-línguas diziam que tinha um xodó com a beata Dasdores, coisas de cidade pequena e gente desocupada. Mas a verdade é que era por todos amado e respeitado; menos pelos poderosos e mandantes que temiam o envolvimento em torno de sua figura carismática. A comunidade se recorda de um episódio que marcou a sua passagem em Conceição. Cidade pequena de povo atrasado, vivia momentos de aflição e revolta. Ninguém entendia como uma cidade de gente tão devota e trabalhadora se tornasse, de um momento para outro, um verdadeiro caos; só sendo coisa do demônio, que gente daqui não podia ser. Só mesmo um castigo. Toda essa revolta se justificava pela recente instalação de um cabaré, pelo comerciante João Cego, na saída da rua principal, verdadeira afronta às recatadas famílias que viam naquilo a perdição e a depravação por completo da pequena comuna. Era demais. Não. Não podiam tolerar mesmo. Teria que haver um jeito. As mulheres mais afoitas se reuniam e discutiam em voz alta; as mais acanhadas ficavam quietas, brechando todo aquele alvoroço pelas frestas das janelas. As moças, essas coitadas, permaneciam trancadas a sete chaves, que moça solteira não podia sequer ouvir falar naquela perdição. Quanto aos homens, se faziam revoltados apenas para manter as aparências e evitar as brigas em casa; mas, na verdade, estavam eram gostando. SUMÁRIO Leituras Diversas: Crônicas, Ensaios e Contos | 263 De repente, do meio da multidão, surge uma solução: iriam todos falar com o delegado de polícia. Mas esse alegou que só podia intervir com um mandado judicial. Como na cidade não havia juiz, a coisa ficou como estava. Surgiu outra ideia; iriam falar com o prefeito João Mangueira e exigiriam providências. Mas essa também não surtiu efeito. O homem era jovem e mulherengo, não tinha o menor interesse em se livrar das ¨negas¨; alegou uma coisa e outra e ficou por isso mesmo. A multidão voltou acabrunhada e frustrada sem atinar para quem apelar. Muitos já acreditavam que a causa era perdida, quando alguém apareceu com a ideia salvadora. Iriam falar e expor o problema para o padre Chico Ferreira; somente ele é que podia dar um jeito. Dito e feito. O vigário tomou as dores para si, e expôs a solução no sermão da tarde. Iriam todos, ele, na frente, e exporiam o problema para João Cego; se o mesmo se negasse em fechar o prostíbulo e mandar as mulheres de volta para Serra Talhada-PE, só via uma saída: quebrar tudo no pau. E foi o que aconteceu. A multidão enfurecida, ante a negativa do proprietário, e com o vigário à frente, arrasou tudo. Não restou nada que pudesse ser aproveitado. João Cego, de mãos na cabeça, ganhou as capoeiras seguido por suas ¨negas¨ a fim de livrarem-se do linchamento. Desde esse fatídico dia, ninguém teve a afoiteza de instalar outro cabaré em Conceição do Piancó. SUMÁRIO 264 | M a g n o N i c o l a u ( O r g . ) ÁLBUM DE FAMÍLIA Cláudio Limeira Conta-se que lá pelos idos de quarenta, o coronel Vitoriano de Assunção Pereira do Nascimento era um dos homens mais ricos do Vale da Ribeira. Casava e batizava, mas era visto como um homem bom pelas autoridades e, principalmente, pela Igreja, na figura servil do padre Antonino. Casado com dona Ambrosina, cujo pai também fora dono de muitas terras, tiveram dezenove filhos, três morreram de doença de menino, sarampo, caxumba, lombriga. Era a lei da natureza, e todos aceitavam essa implacável e impiedosa sentença: mais um anjinho que Deus, na sua infinita bondade, chamava-o para si, como costumava dizer o padre Antonino, na sua sábia ponderação na hora do aperreio. Eram muito bem casados. Os filhos, na maioria, se formaram e foram para longe. Só uns quatro ficaram na labuta com os velhos, não quiseram estudar. Os pais ficavam divididos na felicidade dos que voaram para longe e dos que ficaram no aconchego do ninho. Mas eles nunca deixavam de dar notícias e fazer visitas constantes. Era um aqui, outro acolá, em datas diferentes. Parecia até, na ótica do velho coronel, que os filhos não se entendiam. Mas a velha dona Ambrosiana ralhava com o marido: “Parece que tu só entende mesmo é de terra e de negócio, vixe!...” O velho Vitoriano, embora semi-analfabeto, era um homem de visão. Ganhava muito dinheiro com algodão, mas ficava cismado com os gringos oferecendo dinheiro aos pequenos proprietários. E o preço do algodão a subir feito foguetão em festa junina. Desconfiado, nunca quis expandir o plantio, conservando o cultivo do feijão e do milho. Quando os gringos insistiam, ele respondia prontamente: “Olhe, seu moço, nem minha família, meu povo, meus bichos, não comem algodão não, viu?” A essas alturas vaticinava a desgraça, o caos que estava por vir. Quando tinham seus campos cheios de algodão e endividados, o preço do produto foi SUMÁRIO Leituras Diversas: Crônicas, Ensaios e Contos | 265 ao chão. Muito desespero. A matutada não entendia nada de mercado internacional, e houve até suicídio. Mas aí é outra história! Aproximavam-se as bodas de ouro do coronel e de dona Ambrosina. Os filhos, morando distante, espalhados, se comunicavam e eram unidos. Não havia fim de ano sem que grande parte da família estivesse reunida. Nunca todos. Com um ano de antecedência começaram a organizar a festa. Que encaixassem as férias de todos, pro natal ou fim de ano, sem apelo! Deveriam estar presentes com filhos e netos e até bisnetos, para realizar o sonho dos velhos, e, principalmente, tirar um retrato com toda a família. Estavam muito espalhados: o mais velho, promotor, morava em Minas. Tinha um em São Paulo, outro, em Belém. Aí vinha Ceará, Maranhão etc. e, pra complicar, um que era médico, em Portugal. Mas pra felicidade de todos, um deles era jornalista, morava no Rio e, muito prático, organizou o encontro. O velho Vitoriano não sabia como controlar o riso, coisa que sempre achou difícil para manutenção da autoridade. Dona Ambrosina estava no céu, cercada de netos e bisnetos. Os filhos estavam reunidos. O médico de Portugal foi o último a chegar com a mulher e quatro meninos pequenos. Na frente da casa um bonito e grande pátio gramado, um jardim cheio de flores pra lá de bem cuidado pela mão caprichosa de D. Ambrosina. Era seu orgulho! Festas e festas entre o natal e ano novo e nada da foto, que era o que mais o velho queria. Paulo, o filho jornalista, trouxera uma máquina sofisticada. De fabricação alemã, era na época o que tinha de mais moderno, com fotômetro, telêmetro, disparador automático etc. Poucos por aqui sabiam disso, mas o velho queria um retratista daqueles que se curvavam por trás de um caixão misterioso, com a bunda para cima, coberto com um pano preto e, aí, phuft!!!, clarão, catinga de pólvora. E depois de umas duas “sumanas” vinha o “fotografista” com a “chapa”. Isso sim! Chegou o dia. Havia um descampado depois do jardim da casa grande. Os empregados da fazenda, os serviçais a espalharem cadeiras por cima do gramado. O filho jornalista já traçara tudo. Depois de muitas recomendações tipo ‘os mais altos atrás’, os meninos de cócoras, ele passou a chamar os familiares. Ocupa daqui, ocupa dali. Experiente como fotógrafo, já “posicionara” a câmara a SUMÁRIO 266 | M a g n o N i c o l a u ( O r g . ) uma distância que pudesse enquadrar todos numa panorâmica. Mas era difícil. Os adultos arrumados a conversar, os meninos a correr, criança de colo a chorar. “Será possível que a criação que vocês deram a esses meninos não dá nem pra tirar um retrato?” Silêncio! Seu lugar estava assegurado perto dos pais. Ia para a máquina, voltava. Avançavam no seu lugar e ele a dizer, este canto tem que ficar vago.Voltava para a câmara. Eram pra mais de oitenta figurantes, entre velhos, adultos e crianças, algumas até de colo, e Paulo a gritar: ‘junta mais, fulano’, ‘se abaixa, sicrano’, ‘fulana, manda este menino tirar o dedo da boca’, ‘ria agora, papai’ ... Ligou o disparador automático e correu para ocupar seu lugar. E aí, os que estavam sentados, também, pernas pra que te quero! Coisa incrível! Até hoje ninguém sabe no que foi que pensaram. Se num boi brabo solto, se numa bomba-relógio, ou numa venenosa cascavel. No silêncio, a máquina começou a chiar, soltando um som esquisito: shishiiiiiiiiiiii!!!... Paulo correu pra tomar seu lugar. Aí espirrou gente pra tudo quanto era lado... Era velho, menino pisado chorando, cadeira virada, gente gemendo... E a foto tão esperada das bodas de ouro foi pro brejo também. SUMÁRIO Leituras Diversas: Crônicas, Ensaios e Contos | 267 RONCÓ Dalmo Oliveira da Silva O ejó ainda estava quente. Ele podia sentir seu cheiro insosso que exalava da cabeça e do tórax. O calor úmido do roncó acelerou sua transpiração e rapidamente sangue e suor se misturaram produzindo outra essência sob sua pele com fragrância ainda mais inédita. - Tente relaxar agora! Disse-lhe o ogan que o auxiliaria nos próximos seis dias de recolhimento espiritual. Mais cedo um pouco, junto a uma jovem árvore de Irôco, no quintal do ilê, Vicente passava bolos feitos de inhame, farinha de mandioca e farinha de milho no corpo do iniciante, no primeiro ritual de limpeza. Abraçado ao tronco da planta Paulino mentaliza alguns pedidos ao divino. "Sabes do que mais preciso! Peço-te saúde, paz e prosperidade. Dê-me equilíbrio, coragem e resistência para que eu possa vencer bem essa etapa. Conduza-me no caminho do discernimento, da verdade e da justiça. Me dê forças para enfrentar os inimigos ocultos. Proteja minha família e que meus antepassados possam me ajudar nessa jornada". - Dê três passos para frente e saia do quintal sem olhar para traz. Ordenou o orientador que conduzia o ebó inicial. Paulino caminhou descalço sentindo a terra sob os pés e atravessou o portão dos fundos do ilê. Ao lado da casa principal Vicente preparou um incenso acondicionado numa lata com brasas vivas. Defumou o rapaz fazendo com que a fumaça atingisse seus membros, tórax e cabeça. Paulino fixou seu olhar no crepúsculo do horizonte longínquo na direção oriental. O céu se distribuía em luzes alaranjadas, quase vermelhas, realçadas com os tons azulados e cinzas impostos pelas nuvens do final da tarde. Quando entrou no roncó e deitou sob as esteiras, Paulino sabia exatamente em que posição se encontrava seu corpo em relação ao movimento que o sol faria nas próximas horas quando a noite finalmente se instalasse naquela parte do planeta. O giro solar se daria na altura SUMÁRIO 268 | M a g n o N i c o l a u ( O r g . ) de sua cintura, descendo por sua mão esquerda passando por baixo de suas costas e retornaria em algumas horas despontando a oeste do seu lado direito. A primeira noite no roncó seria longa, quente e insone. - Você é meu primeiro filho-pequeno. Disse Vicente, sem esconder a emoção ancestral daquele instante. - Parabéns! Respondeu o filho de Xangô, com um sorriso confiante entre os lábios. Ainda estava escuro quando Vicente adentrou o roncó para acordar Paulino, que praticamente não dormira na primeira noite por causa do calor abafante, das muriçocas, do incômodo espalhado pela pele e pelo pedaço de pano envolto sobre seu ori. As penas das aves grudadas na cabeça e no tórax eram um outro componente desconcertante para o iniciado. -- Está na hora do banho, podes levantar, ordenou. Paulino despiu-se rapidamente e caminhou para uma área do roncó onde não havia teto. Sentou num banco de madeira de costas para Vicente, que começou a banhar o ogan pela cabeça. Paulino se contraiu quando a primeira porção de água fria atingiu suas costas. - Ahhhhh! Reagiu jogando o corpo para frente. - Tá fria?? Quis saber o cuidador. - Demais! Confirmou Paulino. Vicente o ajudou a lavar a cabeça e as costas utilizando sabão africano e uma bucha vegetal. Paulino concluiu a limpeza se lavando em pé. Em seguida vestiu uma roupa limpa branca. Depois lhe foi servido um mingau quente de milho branco. - Antes e depois de comer você deverá bater palmas dessa forma. Orientou Vicente, mostrando o ritmo em que as palmadas deveriam soar. - Chamamos isso de paó, detalhou o guia. - Você também deve usar para nos chamar, caso precise de ajuda ou de alguma outra coisa. Certo? - Entendi. Obrigado! Respondeu Paulino. Aos poucos a luz externa do dia foi invadindo o local, passando pelos combongós da área de banho. Deitado na esteira de palhas Paulino passou a acompanhar a trajetória da réstia da luz solar se espalhando no chão de barro do roncó, se deslocando de leste a oeste. Aquilo se tornaria nos próximos dias uma maneira de SUMÁRIO Leituras Diversas: Crônicas, Ensaios e Contos | 269 Paulino marcar o tempo. A partir das 16 horas a mancha de luz refletia no meio da parede ao lado da única porta do recinto. Os raios do sol, filtrados pelas folhas de uma samambaia dependurada na área do banho, formavam círculos e semicírculos luminosos projetados na parede. Algumas composições pareceram para Paulino como se fora olhos intensos numa face indefinidamente vazia. Dali a pouco o dia se esgotaria mais uma vez. Antes de escurecer totalmente Vicente veio acender a lamparina de querosene que abrandaria o ébano do roncó durante as noites do recolhimento. - Daqui há pouquinho Iasmim, sua mãe-pequena trará seu ajeun. Informou Vicente, perguntando se estava tudo bem. - Tudo OK. Só estou sentindo um pouco de dores nas juntas das pernas e do ombro. Acho que foi por causa do banho frio que tomei hoje cedo. Será que amanhã você poderia trazer água morna. É que tenho uma espécie de reumatismo chamado de anemia falciforme e o banho frio me causa dor nos ossos e nas articulações. - Você deveria ter me avisado antes. Vamos ver o que podemos fazer. Disse Vicente, já saindo apressadamente. Compressas quentes e analgésicos fizeram com que Paulino conseguisse cumprir todo o recolhimento. Ele também se valeu de pomadas à base sementes, untadas sobre as regiões dolorosas. Iasmim voltou depois trazendo consigo a comida da noite numa vasilha de madeira. - Boa noite meu pai! Como o senhor está? Foi dizendo enquanto se inclinava para depositar o prato entre as pernas de Paulino que a aguardava sentado sobre a cama de esteiras. - Tudo em paz, graças a Deus! Disse o ogan. Ela começou ensinar a Paulino uma reza/canto em iorubá que deveria ser feita todas as noites antes das refeições, na hora de acender a luz do candeeiro, quando seriam invocados os orixás. Em iorubá, a reza diz: Ogun tanan sile , o tanan so nan, ina ire Ogun ta, Ogun tanan silê o tanan so nan ina irê ogun ta ô Oluaiê tanan silê ô tanan son nan ina ilê awo ota, Oluaiê tanan silê o tanan so nan ina ilê awo ta ô Odé tanan silê, ô tanan so nan ina ilê ode ta, Odé tana silê ô tana so nan ina ilê Odé ta ô SUMÁRIO 270 | M a g n o N i c o l a u ( O r g . ) Obá tanan silê ô tanan sonan ina ilê Obá ta, Obá tanan silê o tanan sonan ina ilê Obá ta ô Eunji tanan silê o tanan sonan, ina ilê Eunji ta, Eunji tanan silê o tanan so nan ina ilê Eunji ta ô Oyá tana silê ô tanan sonan ina ilê Oyá ta, Oyá tanan silê ô tanan so nan , ina ilê Oyá ta ô Iyá tanan silê ô tanan so nan, ina ilê Yyá ta, Yyá tanan sonan ô tanan so nan , ina ilê Iya ta ô Babá tanan silê o ta nan so nan, ina ilê Babá ta, Babá tanan silê ô tanan so nan ina ilê Babá ta ô A ialorixá visitou Paulino logo depois do ajeum. Quis saber como foi a noite e se ele havia sonhado. - Sonhei com meu pai já falecido. Estávamos num bar e quando decidimos ir embora ele não nos acompanhou. Estava eu e meu segundo irmão. “Devíamos ter trazido ele de todo jeito”, disse meu irmão como quem iria começar a chorar. Nas noites seguintes sonhos estranhos ocuparam o sono perturbado de Paulino. Ele acordava no meio da noite. O enredo dos sonhos durante o recolhimento do ogan são parte da mística da iniciação. A ialorixá escuta a memória dos sonhos da noite anterior e faz as interpretações. A clausura e o ambiente inusitado do roncó interferiam diretamente na produção de sonhos do iniciado. Por diversas vezes Paulino acordou no meio da noite por conta do calor. A fumaça do candeeiro incensava o ambiente com o cheio típico do querosene queimado. “Pelo menos serve para espantar as muriçocas”, pensou Paulino, limpando a testa molhada de suor e espantando os insetos com as mãos. Inhame cozido amassado, mingau de milho branco, arroz, peixe e galinha compuseram o cardápio durante a reclusão. Um pote com água estava posto perto da parede defronte à esteira. Uma pequena jarra de barro também estava ao seu dispor que precisava ser abastecida frequentemente. Abastecer a quartinha acabou se transformando numa atividade prazerosa para quebrar a monotonia da reclusão imposta pela obrigação. Durante o dia os sons ao redor invadiam o quarto de roncó. SUMÁRIO Leituras Diversas: Crônicas, Ensaios e Contos | 271 - Seja bem-vindo à nossa religião, disse o ogan Martinez, que viera de outra cidade para conduzir a ritualística de consagração de Paulino ao orixá Oxum. Tinha o semblante sério, sem risos. Ao apertar sua mão, Paulino percebera trata-se de um homem acostumado com as lides mais rudes. Mãos de trabalhador braçal, acostumadas com os trabalhos mais pesados. Martinez falou pouco e se retirou rapidamente do ronco, acompanhado de Vicente. Durante o ritual, Matinez conduziu a matança com uma destreza impressionante. Depois que os animais foram tratados, foi ele quem mostrou a Vicente como dispor a carne e as vísceras do cabrito para o orixá. No dia da festa de apresentação do novo ogan o terreiro estava mais barulhento do que nunca. Paulino podia sentir a correria e a ansiedade dos iaôs, dos abiãs, da ekedi e das outras pessoas envolvidas nos preparativos. Gritos de crianças e passos correndo foram se avolumando com o aproximar da hora da cerimônia. No quarto que ficava ao lado do roncó os filhos e filhas da casa reviravam seus baús procurando as roupas que usariam naquela noite. Parecia que iria ocorrer ali um desfile de moda africana. Saias rodadas, turbantes de cores variadas, colares de contas, panos diversos. A fila para banho se formava nos diversos banheiros do ilê. Na final da tarde, Paulino tomou o último banho do recolhimento. Sentia-se incrivelmente disposto, mesmo tendo sentido dores reumáticas nas pernas e no quadril durante a semana. Vicente o ajudou a vestir a roupa de ração. Paulino sentou numa cadeira de balanço e esperou ainda muitos minutos até que Vicente voltasse ao roncó e começasse a ajudá-lo a vestir a roupa feita especialmente para o evento. Paulino comprara a roupa numa loja especializada em produtos africanos, importada da Nigéria. A cor vermelha predominava, com detalhes brancos e um bordado escuro. Ela cintilava por causa da linha especial usada na costura e nos bordados. Paulino tinha a sensação de se tratar de um tecido sintético. Mesmo bastante larga e confortável, a bata não causava a mesma sensação dos tecidos de algodão, preferidos de Paulino. O salão estava repleto. Além dos frequentadores do ilê, muitos convidados ocupavam as cadeiras e sofás dispostos no lugar, que estava muito enfeitado com arranjos vegetais e outros adere- SUMÁRIO 272 | M a g n o N i c o l a u ( O r g . ) ços quase sempre amarelos. Na entrada principal, algumas pessoas acompanhavam em pé a festa. Fogos de artifício explodiam no céu provocando um barulho potente sobre o telhado do terreiro. E o som dos tambores dava uma ambiência musical ancestral à toda a movimentação naquela momento. O candomblé já havia começado há quase uma hora. Paulino ouvia os tambores, os cantos e ia identificando os orixás reverenciados. Vicente veio buscá-lo para, enfim, ser apresentado publicamente. Eles usaram o acesso que passava pela cozinha e saia no grande salão do ilê, que era chamado de barracão. Quando Paulino cruzou a cortina dourada Oxum já estava presente e ele foi conduzido até a divindade. Ele tomou o braço da ialorixá que o conduziu pelo salão com uma espécie de passeio circular. Oxum se dirigiu para perto dos tambores. Martinez perguntou a Oxum que nome terá o novo ogan e ela respondeu “Obá L’owó”. SUMÁRIO Leituras Diversas: Crônicas, Ensaios e Contos | 273 SUICÍDIO Edson Tavares O vento forte zunindo nos ouvidos emaranhava os cabelos compridos, espalhando-os, desordenadamente, sobre a cara do infeliz, que olhava para aquela imensidão de espaço que o separava do solo. O mesmo vento balançavam as árvores que se interpunham no caminho e que talvez inviabilizassem o intento, quebrando a força da velocidade do corpo. A cidade espraiava-se ao redor – estranhas as casas vistas do alto, a respirar, em seu interior, tantas e tantas histórias de amor, desamor, ódio e esperança. Pouco ou nada lhe importava tudo isso; a verdade agora era uma só, e se escancarava, atraente e vertiginosa, nas pedras irregulares – que daqui (como tudo de longe) pareciam perfeitas, sem ranhuras nem desníveis. A gravidade era o melhor agente, responsável pela velocidade crescente que o fará esfacelar-se em meio ao pó branco, de consistência suave, quase aveludado, que se espalha sobre o plástico desdobrado que lhe servia de invólucro. A estricnina fará um serviço mais rápido e competente: bastam dois ou três miligramas por quilo (ele estava magro, abatido de tristeza, não gastaria muito pó) e, em menos de uma hora, começarão as convulsões, os espasmos musculares e, finalmente, a asfixia. Não há antídoto, portanto, sem perigo de arrependimento. Dá até para escolher a posição do corpo que achar mais digna e a frieza da lâmina, penetrando sem qualquer ruído a pele e a carne, vai se fazendo mais quente à medida que vai entrando. É certo que o sangue espirrará e lavará o chão – ideal para os dramáticos; talvez, num primeiro momento, o pânico fará subir do seu mais recôndito interior o arrependimento, e haverá um sofrimento extra, se conseguir se salvar: a chateação da recuperação se somará à frustração da covardia. Não há de ser nada, porém, e a navalha firma-se com mais intensidade sobre a base da mão – verdade que não é possível ser os dois pulsos ao mesmo tempo, será uma morte à prestação, e provavelmente o segundo corte já não terá a vitalidade do primeiro, mas aquele fino SUMÁRIO 274 | M a g n o N i c o l a u ( O r g . ) barbante de nylon será suficiente para antecipar a asfixia, e, por ser delgado, ajudará cortando o pescoço em que está envolvido, à proporção que o corpo se balançará, convulsamente, os pés, involuntariamente, buscando com ansiedade histérica o apoio há pouco perdido. Mas a cadeira jaz ao chão, cúmplice silenciosa e passiva daquela situação fria redonda como o cano que experimenta variadas partes do corpo; é preciso reunir a rapidez na conclusão, a certeza da consumação e o mínimo possível de dor. A arma passeia, trêmula, passando do lado esquerdo do tronco à parte inferior do queixo, ao interior da boca, cujos lábios se fecham sobre o frio metal e a língua sente-lhe o gosto distante de pólvora, ao ouvido, onde o cano provoca-lhe cócegas – nada tão indigno quanta essa fricção irritante; decide-se pela têmpora, menor distância até o cérebro. Eficiência praticamente garantida, sem chance de retorno, embora o ruído do tiro vá despertar a atenção, como o chiado dos freios, que, pressionado pelo aterrorizado motorista que prevê o acidente, não consegue impedir o caminhão, grande e pesado, de esmigalhar os ossos e arrancar a vida de dentro daquele corpo, que quase se liquefaz, sobre o asfalto quente, fervente, como a pedra sobre a qual os pés dançam um ritmo estranho, substituindo-se alternadamente no escaldante da rocha. E não há por que pensar em ardência agora, se lhe espera o frescor da água, lá embaixo, que se arrebenta, fremente, sobre os rochedos pontiagudos. Jeito nobre de se ir, abrindo os braços, como ícaras asas sobre o mar, e, num impulso forte, arremessar o corpo sobre o ar, que, ao perder a força desse ímpeto de voar, se direcionará, imperturbável, às furiosas ondas; estas o tragarão em segundos, e a água sanitária que penetrar-lhe liquidará aquela fatura atrasada com a vida. Claro que sempre existe a possibilidade de falha – aqui ainda maior – e ter que ouvir de alguém, ainda sentindo o enjoo da lavagem estomacal: “você agora está bem e ainda mais limpo por dentro”. Olha, entre furioso e frustrado – mas, no fundo, agradecido – para o médico, que lhe sorri e lhe diz uma ou duas palavras de ânimo, em meio à explicação sobre a forma de tomar o remédio que acabara de receitar. Para revitalizar a flora frágil do estômago. SUMÁRIO Leituras Diversas: Crônicas, Ensaios e Contos | 275 METÁFORAS BOVINAS Francisco Dantas Certo dia era um Boi que, na virtude do cio, tructructiava atrás dos folgados traseiros de uma Vaca triste. De por que a Vaca era triste nem o Boi desconfiava, que, na virtude do cio, Boi é gente. O negócio é que interessa. Fazer primeiro. Pensar depois. Se for o caso. Essa é a filosofia do Boi, que sempre faz e nunca pensa, porque pensar é coisa de gente, e gente que pensa, que pensa, que pensa, nada de animais faz. A carne, a flor. A flor da Vaca aberta para o boi. Passiva. Sem não-tristeza. Sei não! Não compreendo o mistério que envolve a tristeza humana da Vaca na virtude do cio que consume o Boi, e que parece estranho à Vaca? Boi taludo em Vaca triste tanto fura até que bate uma gozada. Penetraçãofundura-estremecimento-espuma-suor-bate-que-bate, até que, batido, se ouve um estrondoso mugido ressoando pela Fazenda inteira. O Boi está satisfeito, está troteando na virtude do cio pelas campinas azuis-verdejantes atrás de outras Vacas tristes. Até fechar-se o ciclo e suspender-se a virtude do cio, cio, cio... Silêncio, que o Boi vai dormir. Barulho, que o Boi acordou. Não Boi qualquer, mas qualquer Boi a pastar pelas campinas azuis-verdejantes, agora amarelas, atrás de Vacas-Vacas-Vacas e mais Vacas. Vacas tristes na virtude do cio que nunca se esgota, porque quem se esgota é gente, e gente não é boi. Mas Boi é gente, fixado, focado, pensando na flor da Vaca aberta para o mundo das campinas verdejantes-azuis, não mais amarelas. Barulho, que o Boi acordou disparado, dando carreiras de felicidades pelas bem-aventuradas virtudes do cio. A Vaca. Vaca esguia. Vaca esquiva. Difícil penetração. BoiVaca, conluio misterioso, inocente. Não é tempo do cio. Tudo é ternura de pasto, fofura de Boi, tolete de Vaca que cai com muito barulho no fofo da terra estrumada, estreme, estremecida, amada. Pátria amada. O pasto. Boi-imitação. Atrás da Vaca, da Vaca de SUMÁRIO 276 | M a g n o N i c o l a u ( O r g . ) trás. Contemplando o traseiro. Desinteressado, indiferente. Não é tempo de cio. Silêncio. Boi e Vaca dormem. O Brasil dorme. ROMANCE VIRTUAL Leilah Luahnda Gomes de Almeida Dona Elvira é uma senhora daquelas enxutas, no bom sentido, brasileira e nordestina do brejo paraibano. Viúva, beirando os setenta, adorava navegar na internet, em chats (salas virtuais), visitadas por pessoas com a mesma faixa etária e mesmos interesses, fazer amizades. Certo dia, Dona Elvira conheceu Seu Manoel, um setentão, treinador de educação física aposentado, divorciado, tendo conservada a boa aparência, português e residente em Lisboa. Foi então que os dois passaram a conversar virtualmente todas as noites até que acabaram se tornando bastante íntimos, nutrindo mutuamente um sentimento real de verdadeiros companheiros. Todos os familiares e amigos do casal virtual já tinham notícia de que eles viviam uma grande paixão e cobravam que se conhecessem pessoalmente. Seis meses depois, Seu Manoel resolveu sugerir um encontro real com Dona Elvira, iria visita-la muito em breve no Brasil. Dona Elvira, ao ouvir o anúncio, ficou atônita, sua respiração quase parou e mil coisas passaram por sua cabeça naqueles milésimos de instante. Chegava a perguntar a si mesma, seria Seu Manoel um maníaco, um aproveitador desses que sempre se ouve falar ou um Don Juan querendo armar alguma? Ela passou dois dias sem ligar seu notebook, quando, no terceiro dia, sufocada por tantos questionamentos gritando em seu coração quente de paixão, abriu sua caixa de entrada do e.mail e lá estava uma linda declaração de Manoel, que dizia: “Minha querida Elvira, você surgiu na minha vida como um sol que reluz todas as manhãs me trazendo a vida de volta, me trazendo alegria com suas conversas, me fazendo companhia, mesmo do outro lado do Atlântico, não posso imaginar minha vida sem você! Por favor, respon- SUMÁRIO Leituras Diversas: Crônicas, Ensaios e Contos | 277 da minhas chamadas virtuais e se for por medo de me conhecer pessoalmente que você tenha desaparecido, sou capaz de cancelar minha ida ao Brasil só para ter a oportunidade de falar mais uma vez com você.” Dona Elvira mudou seu status para on line imediatamente e respondeu a Seu Manoel que esteve pensando melhor sobre o assunto e havia decidido deixar tudo como estava e lhe disse que não fosse ao seu encontro, sugerindo-lhe conhecer-lhe um pouco mais. Com todos aqueles receios, ela tinha medo de que Seu Manoel não tivesse todo o encanto imaginado e perder isso seria o mesmo que volver àquelas velhas noites de solidão vividas antes de conhecê-lo. Ela pensou muito, durante semanas conversou com as amigas sobre seu romance virtual, com os olhos brilhantes, toda ouriçada aos quase setenta, tudo isso lhe parecia bastante auspicioso, exceto se não fosse o medo. Ele voltou a mencionar sobre o desejo de conhecê-la pessoalmente, comprou passagem para o Brasil, enviou os dados de seu vôo por email e desapareceu por dois dias, foi então que Dona Elvira pensou, não havia mais saída, em breve Seu Manoel chegaria! E ela pensava, e agora? Onde ele ficará? Será que virá direto para minha casa? O que os vizinhos podem pensar? O que minhas amigas e minha família pensarão a meu respeito? Não! Um homem que mal conhecia ... quer dizer, ela o conhecia muito, mas não o suficiente para hospedá-lo em sua casa, para acolhê-lo em sua cama, não naquela idade, não naquela situação. Seu Manoel voltou a ligar para Dona Elvira, dizendo-lhe que se tratava de uma brincadeira, só para ver a reação dela, não havia viajado, mas que tinha curiosidade em vê-la pessoalmente, bastava ela dar-lhe sinal verde. Ao ouvir que não o veria, seu coração voltou a bater aliviado, parecia não ser dessa vez que eles iriam se encontrar pessoalmente, sobretudo porque ela não havia ido ao cabeleireiro, nem a manicure para preparar-se para um encontro romântico e especial, sim, ele já era especial em sua vida, mas, por enquanto, reverenciando as emoções imaginárias, reverenciando o fogo da paixão virtual. Passou-se um ano e Seu Manoel disse-lhe não conseguir mais viver longe de sua amada e a pediu em casamento. SUMÁRIO 278 | M a g n o N i c o l a u ( O r g . ) Dona Elvira surtou e retrucou sem pensar: “Eu? Casar? Nunca!” Seu Manoel ficou profundamente lastimoso e desativou seu status on line, por longas semanas, desapontado. Ela descobriu que tinha mais fogo do que coragem de viver novas paixões. Era tudo fogo de palha, suas amigas diziam que ela ainda era do tempo de antigamente, nunca mais quis saber dessa coisa de internet e desativou todos os bate-papos pra não sofrer mais desses males do coração. Pobre Manoel, seu amor era real... SUMÁRIO Leituras Diversas: Crônicas, Ensaios e Contos | 279 A PROMESSA Magno Nicolau -“Maria, chama as crianças. Vem comer.” João era dedicado. Cuidava de tudo, inclusive da casa. Desde adolescente ajudava a mãe. Sempre dizia que cozinhar era somente arte, como muitos falavam. É preciso ter gosto pelo que faz, em tudo, para ficar bom. Calma, de boa índole, a família o admirava pela paciência e sabedoria. Maria, apesar de família tradicional, pouco se interessava pelos afazeres da casa. Gostava mesmo era de namorar. Encontrou em João tudo o que precisava para um casamento feliz. Não suportava pressão. Perdê-lo era um suicídio. 20 anos casados, tinham três filhos mais parecidos com o João. Pacientes, gostavam de ouvir as histórias do pai, suas poesias e repentes que ele ouviu ao longo do tempo. Poucas, mas algumas trovas ele sempre arriscava construir. Não pode ir às letras. Mas, com tanta sabedoria, as letras vieram a ele. Os filhos, esses sim, fazia questão que se formassem. Para isso, acordava às quatro horas da madrugada e só chegava do roçado ao escurecer. Era quando preparava a janta e o almoço do dia seguinte. Maria só esquentava. Os filhos corriam, após o jantar, para o jardim, principalmente em noites de lua cheia, chamando o pai para que contasse suas histórias, principalmente as religiosas. Eram mais empolgantes. Mas João aproveitava para fazer mais, e sempre colocava algum ensinamento para a vida futura dos filhos. Certa vez, o mais velho disse que a professora, senhora evangélica, falava sempre da volta do Messias. E seria esse o novo ensinamento dele, hoje. Falou que “as pessoas aguardavam o novo Messias, mas que muitos já vieram e ninguém percebeu. Após Jesus, Aquele que deixou os ensinamentos principais da vida, vieram Gandhi, um homem que libertou seu povo, e suas frases são sopradas pelos ventos sempre que necessitamos; Madre Tereza de Calcutá, mostrando que não SUMÁRIO 280 | M a g n o N i c o l a u ( O r g . ) existem doenças quando existe amor; Chico Xavier, com palavras psicografadas de conforto e paz. E todos esperam Jesus, quando na verdade, ele já nos enviou vários para nos alertar”. Maria apenas se debruçava na janela, mas aquilo tudo não lhe atraía. Achava bobagem. Preferia ir para casa das amigas quando João saía para o roçado. Um dia, numa dessas visitas, veio um primo distante. E após algum tempo em sua casa, após ter tentado Maria várias vezes, ofereceu um bom dinheiro e ela acabou aceitando. Maria se entregou prazerosamente, imaginando o que faria com aqueles trocados. Comprou roupas para os meninos, para ela e, evidentemente, uma camisa para João. Questionado por ele sobre a origem do mesmo, desconversou e disse que foi da venda de alguns bordados que porventura fazia. Logo, logo, Maria fez praça, na cidade foi ficando conhecida. Era jeitosa e muitos queriam tirar uma “casquinha”. João, matreiro, um dia resolveu investigar. Fez que ia para o roçado e ficou à espreita. Maria após sair da casa de seu Joaquim, enfiou o dinheiro entre os seios. Ele já estava esperando-a na cozinha. Maria levou um susto ao vê-lo tão cedo em casa. Pacientemente pediu que lhe entregasse o dinheiro. Ela implorou que não a colocasse para fora de casa. Ele sorriu e insistiu pelo dinheiro. Ela tentou explicar, mas João não queria saber. Aliás, já sabia demais. Pegou as notas e as enfiou num pequeno vidro vazio no armário da cozinha. Daquele dia em diante não se deitaria mais ela, mas também não a colocaria para fora. Precisava mostrar-lhe que o que ela tinha feito era errado e os filhos não mereciam. A lição veio no jantar. Todos à mesa, João, como sempre, fez um jantar delicioso. Na oração, ao terminar, olhou para os filhos e disse: - “De hoje em diante vamos fazer uma oração à parte para não precisarmos desse dinheiro”, colocando o pote sobre a mesa. Maria sabia que o início de um longo caminho. Ao meio-dia, sempre que João voltava do roçado, Maria sentia um frio na barriga. Aquela oração fazia com que ela entrasse em desespero. Tinha esperança de que um dia, Ele esqueceria aquela história. Mais um dia, e mais Maria definhava. Era insuportável aquele ruído, aquela voz dele, aquele olhar dos filhos. SUMÁRIO Leituras Diversas: Crônicas, Ensaios e Contos | 281 Certo dia, Maria mandou os garotos para casa da mãe. Aproveitou a ausência de todos e cometeu o maior dos martírios. Retirar a própria vida não justifica. Mas era a única maneira de João ser tocado no coração. Ele, ao chegar do roçado, ao ver a cena, a mulher a quem dedicara toda sua vida, ali, caída, debruçada sobre um bilhete que dizia: - “Perdoe, meu companheiro. Não fui mulher digna do seu amor. Peça perdão aos nossos filhos”. João, em seu último gesto de carinho pela esposa, levou-a até seu roçado e enterrou-a. Não queria que os filhos presenciassem aquela situação. Quando eles chegaram, avisou-os que Maria resolveu fazer uma longa viagem e que, um dia, todos iriam se encontrar. Ele era religioso, acreditava que Maria encontrara a luz e um caminho de perdão. De certo modo, sentia que ela o estaria esperando. Desta vez, ela a perdoará. SUMÁRIO 282 | M a g n o N i c o l a u ( O r g . ) PENDENGA DE MATUTO Marcos Feliciano Pereira Barbosa Sempre passei minhas férias de meio de ano no interior. Tenho sangue de sertanejo do seridó correndo nas veias e, talvez por essa razão, sempre me senti atraído pelas coisas simples do campo. Gosto dos costumes do mato e da sua gente. Aprendi com meu pai, desde cedo, a admirar a beleza das serras e dos baixios, a obstinação do homem pela terra, o seu destemor diante do perigo, da sua bondade, da sua sinceridade, da sua religiosidade, da sua solidariedade, do seu modo de ser, quase pueril. Coletei durante as minhas estadas nas fazendas de parentes e amigos estórias que merecem ser partilhadas por suas próprias peculiaridades. E por assim entender, temendo a traição do esquecimento que já se anuncia, vez em quando, resolvi juntá-las, para deleite daqueles que, como eu, apreciam as coisas e os episódios protagonizados pelas pessoas humildes que habitam os nossos implacáveis sertões. Narrou-me, certa feita, um amigo, um episódio que se passara lá pras bandas de Jucurutú, envolvendo um jovem Magistrado recém-concursado e, portanto, sem a menor experiência ou vivência com as coisas do interior. Não conhecia seus costumes, nem tão pouco sua gente. Aliás, da vida não conhecia quase nada. Era um desses alienados que ingressam na faculdade de direito com objetivo único e exclusivo de passar num concurso público. Escolhem o curso pelos certames que são oferecidos, não se importando se têm aptidão para a carreira que vão abraçar. O que de fato interessa é a vantagem pecuniária que podem auferir e a segurança que ainda são propiciadas no serviço público. E o resultado não poderia ser outro: juízes, promotores, procuradores e servidores desinteressados ou completamente frustrados, que tocam suas carreiras sem nenhum “açoite”, pensando única e exclusivamente nos polpudos proventos. Por isso mesmo, não é raro encontrarem-se engenheiros, economistas e administradores que, em razão de uma melhor situação financeira, ingressaram na magistratura, sem pos- SUMÁRIO Leituras Diversas: Crônicas, Ensaios e Contos | 283 suir a menor aptidão para o cargo. É claro que existem as exceções, mas são poucas. Já fazem parte do folclore alguns despachos e decisões desbaratadas da lavra dessas figuras carimbadas dos nossos foros e comarcas por aí afora. Tive conhecimento de um despacho saneador lançado em um processo de inventário, onde o noviço magistrado, atabalhoado com as repetidas alusões postas pelo causídico na peça de ingresso, determinou, incontinenti, a intimação do de cujus para prestar o compromisso de inventariante. O escrivão, surpreso diante de tamanho absurdo, indagou-lhe em qual sessão espírita deveria agendar o ato processual, posto que o de cujus era simplesmente o falecido. Não quero com isso tecer críticas generalizadas àqueles que ingressaram ainda jovens na magistratura. Estou a criticar, tão somente, aqueles obstinados oportunistas que procuram em determinados cargos a satisfação exclusivamente pecuniária, sem a menor vocação ou pendor. Costumo dizer sempre que concurso público não mede conhecimento de ninguém. Pode até ajudar na escolha, mas o Estado não pode ficar a mercê de uma singela aprovação em certame público. Tem que ir mais fundo na escolha dos seus agentes. Investigar, se possível, até os seus antepassados, pois, como diz o adágio popular, “filho de peixe, peixinho é”. Pois bem, o Dr. Paulo Henrique era um daqueles meninos que, ainda esquentando os bancos da faculdade, já se preparava para ingressar na Magistratura. Sair pelo mundo afora fazendo tolices e brincando de autoridade. Esse tipo de juiz se conhece de longe. Carregam dentro de si uma doença conhecida no meio jurídico como “juizite”. E, a arrogância e a prepotência são os sintomas marcantes desse mal terrível. Tratam as pessoas simples com desdém, e detestam receber em seus gabinetes as partes ou seus advogados. Pois bem, João de Lindolfo, vizinho de propriedade de Antônio Ferreira, eram amigos fraternais, e já tinham selado essa amizade com o compadrio. Levavam uma vida simples e viviam do pouco que plantavam e de algumas criações que volta e meia negociavam nos dias de feira livre. João de Lindolfo tinha um “lote” de jumentos que usava para transportar alguns produtos de seu roçado, além de cambitar cana-de-açucar e capim de corte. Tinha um curral por trás da pe- SUMÁRIO 284 | M a g n o N i c o l a u ( O r g . ) quena sede, onde criava quatro vaquinhas mestiças. Não era muita coisa, mas dava pra abastecer a meninada. Antônio Ferreira, apesar de plantar de tudo um pouco, não ligava muito pra lavoura. Preferia lidar com criação. Mantinha alguns animais no pasto, dentre eles algumas éguas meio sangue que muito o envaideciam, além de algumas poucas vacas na cocheira. As éguas de Toinho realmente eram muito formosas. Um belo dia, um dos jumentos de João de Lindolfo, inebriado pelo cheiro do cio de uma das éguas de Toinho, após forçar a passagem através da combalida cerca divisória, conseguiu cruzar com uma das melhores do rebanho. Realmente era um belo animal, e o jumento parece que tinha “escolhido a dedo”. O fato, apesar de ter sido levado ao conhecimento de Toinho, não causou maiores especulações. Foi considerado de somenos importância, não causando nenhuma mácula na amizade dos vizinhos, há muito já consolidada. Passados alguns meses e concluído o ciclo da gestação, a égua pariu um formoso burro mulo de cor acinzentada. E, à proporção que o animal ia crescendo, aumentavam também os comentários dos desocupados da cidade, principalmente no tocante à beleza daquele animalzinho que o dono fazia questão de exibir nos dias de feira. Conduzia-o puxando por cabresto bem acabado, tecido em corda de algodão. Por onde passava, arrebatava elogios: Eta bicho bonito danado! Um bicho desse vale uma fortuna. Matuto é bicho que gosta de botar fogo em briga alheia. Num desses dias, quando desfilava orgulhoso pelo pátio da feira de gado puxando o formoso burrinho, encontrava-se, no meio dos desocupados, João de Lindolfo, proprietário do jumento invasor. O pessoal, ante a falta de assunto, passou a instigá-lo com relação à propriedade do burrinho. Afinal de contas, não é concebível que João de Lindolfo, sendo o proprietário do pai do burro mulo, “ficasse a ver navios”, enquanto Toinho deleitava-se sozinho com o fruto daquela relação, um tanto quanto proibida. De jeito nenhum. E, como não falta em cidade pequena gente para colocar fogo na fervura, instigar quem tá quieto, não demorou para aparecerem os conselhos e provocações: - Ô João...se o jumento que cobriu a égua de Toinho é teu, logicamente que tu tem um pedaço desse animalzinho que a égua SUMÁRIO Leituras Diversas: Crônicas, Ensaios e Contos | 285 pariu, ou será que num tem? - Tem sim, respondiam todos, atiçando cada vez mais o dono do jumento. João parou um pouco pra pensar e respondeu: - É... eu acho que tenho direito mermo a um pedaço desse burrinho! As provocações e as instigações foram criando corpo, até que um belo dia o negócio engrossou de vez e João de Lindolfo procurou Toinho pra tirar satisfações quanto à divisão do já anunciado e perfeitamente previsível lucro que o semovente iria garantir. Pelo menos essa era a expectativa de todos na região. Não é a toa que um burro mulo bom de passada vale mais do que certos cavalos de raça. Ameaças e Insultos foram trocados, tornando as discussões bastantes acaloradas. Já não havia mais a cordialidade de outrora entre aqueles vizinhos, e a amizade que sempre existiu entre os dois estava escoando ralo abaixo. Até o afilhado de Toinho se negava a pedir a benção ao padrinho. O clima ficou tenso entre os dois vizinhos. Para evitar um mal maior, foram aconselhados a procurar a Justiça a fim de colocarem as coisas nos seus devidos lugares. E assim foi feito. O juiz da comarca, a exemplo de tantos outros que assumem tão importante cargo sem nenhuma experiência, não tinha a menor vivência com as coisas da vida e muito menos com as coisas do interior. Não era capaz de distinguir uma galinha de capoeira de um guiné. Saíra da faculdade de direito para ingressar na magistratura. Faltava-lhe, portanto, algumas qualidades que devem ser inerentes a um magistrado, tais como: experiência, maturidade, equilíbrio, sensatez e, sobretudo, conhecimento das coisas simples do campo. Não bastam só os vastos conhecimentos teóricos. Esses só servem para os certames. O entendimento daquele magistrado era só teórico, aliás, tudo o que sabia, todo o seu conhecimento, fora extraído apenas dos livros e compêndios de direito. Dessa maneira, como resolver o imbróglio que fora criado por aqueles matutos; como seria possível desatar esse nó que amarrava a questão que lhe fora apresentada pelos dois litigantes. Realmente, era uma situação bastante vexatória, apesar da aparente singeleza que o caso apresentava, caso fosse examinado por um juiz experiente, que tivesse um pouco de vivência com as coisas simples do interior, dos seus costumes e, principalmente, de sua SUMÁRIO 286 | M a g n o N i c o l a u ( O r g . ) gente. Como poderia entender o caso de uma cobertura realizada por um jumento numa égua para tirar um burro mulo? Esse tipo de coisa não se ensina na faculdade, só se aprende vivendo e convivendo no mato. Toinho quanto mais explicava, mais atônito ficava o jovem magistrado. Não estava entendendo absolutamente nada daquela estória envolvendo o cruzamento de dois animais completamente diferentes. E o que é pior. Como conceber que dessa relação pudesse advir um terceiro animal, um burro mulo, bicho completamente diferente da mãe e do pai. Não, não dava para entender tamanha asneira. Depois de várias tentativas fracassadas para explicar o cruzamento dos bichos, Toinho resolveu apelar para uma demonstração mais real, utilizando-se, para tanto, das suas qualidades cênicas, tomando a pessoa do jovem juiz como coadjuvante. Ficou de pé, e gesticulando com exagero, procurou narrar o ocorrido da melhor forma que encontrou. Dentro de um realismo bem peculiar: - Olhe doutor, deixe eu explicar ao senhor bem direitinho o que aconteceu: - Eu sendo um jumento como de fato sou, e Vossa Excelência sendo uma égua como de fato é. Eu pulo a cerca e pego o senhor... depois de nove meses o senhor pari um burrinho. Agora me responda. De quem é o burrinho? – Só após a desrespeitosa, mas inocente indagação, foi que o jovem magistrado se deu conta do emaranhado da teia em que estava metido. Irritadíssimo e quase colérico respondeu a Toinho: - É da puta que o pariu... – Toinho sem entender o que estava se passando, saltou da cadeira eufórico e proclamou: Pronto, é de mãe e está resolvida a questão... Parece brincadeira ou pilhéria fabricada, mas foi absolutamente verdadeiro o caso narrado. SUMÁRIO Leituras Diversas: Crônicas, Ensaios e Contos | 287 AVIS RARA Madalena Zaccara Tua dor pode ser subproduto do meu prazer. Como um reflexo no espelho. Gosto de pensar em ti assim, debatendo-se como eu, a cada noite, contra cada momento da realidade que odeias que odiamos- contra cada minuto regido por Kronus que abominas, contra cada grade da gaiola em que habitas. Gaiola que você mesmo construiu ao seu redor. Gaiola construída de memórias de terror e medo. Uma fortaleza feita de palitos. Uma prisão da qual tu não percebes as portas escancaradas. Mas, o que sabemos nós, seres diurnos – gosto de me pensar assim - sobre pássaros da noite de distantes olhos verdes que por vezes se metamorfoseiam em gente de chapéu e óculos escuros, chegam sem serem anunciados e sentam a tomar vinho, até cair, na nossa mesa? Foi assim que fizemos contato. Era um fim de tarde de pôr do sol vermelhão e de violinos com ecos ciganos. Tocava uma czarda, acho. Eu estava mais uma vez só, fingia estudar as doutrinas Schmittiana e Benjaminiana a respeito da violência. Mais um tributo a minha obsessão por arte e política. Livro sempre funciona como exorcismo. Mantem indesejáveis respeitosamente afastados. Atrevido ou inconsequente aterrissaste na cadeira ao meu lado, afastando o escudo feito de bolsa, celular e livros cuidadosamente empilhados como uma muralha. A surpresa sempre me paralisa. Começamos um pseudo diálogo onde os monólogos, por vezes, se cruzavam em proximidades perigosas. Estudiosos de arte e o grupo esotérico o classificariam de surreal. Se nada se falou de muito objetivo, nada também teve qualquer conotação sexual. Afinal, séculos de ditadura da Igreja católica nos condicionaram ao mito de que anjos não têm sexo. E o que são criaturas aladas, de insondáveis olhos verdes, que, sem serem curiosamente divinos, carregam uma carga de tédio, de onipotência presunçosa e, por vezes, de vago desprezo por nossa fragilida- SUMÁRIO 288 | M a g n o N i c o l a u ( O r g . ) de humana que não anjos? Caídos, talvez, quem sabe corrompidos, fedendo um pouco a humanidade... Mas, enfim, anjos. E foi assim que tudo começou. Ou seja, objetivamente nada. Quinta-feira era quase noite quando me telefonastes. Anjos pós-modernos têm telefone e endereços eletrônicos. Estou tão só, disseste. Os anjos são grandes filhos da puta sedutores- devíamos ter aprendido isso nas antigas lições de catecismo quando engolíamos rodelas de bananas como se fossem hóstias em treinamento para não morder Jesus Cristo. E minha solidão acreditou na tua. Chegaste de taxi, estás sempre com medo de voar. Existirá porventura terapeuta para anjos com fobia de espaços livres e de alturas? Concordei em te encontrar de puro desespero. Estava só e tão desencantada com a noite que se aproximava veloz, como sempre, nessa época do ano nos trópicos, que tinha vontade de ganir como o cachorro vizinho que padece amarrado, com fome, frio e coleira, por obra e graça do cidadão humano exemplar que se diz seu dono. Destravei cautelosamente a corrente da porta após olhar repetidas vezes pelo tal do olho mágico que, como única magia, nos faz espionar as pessoas que nos batem à porta. Estou aqui, disseste, sem apertar sequer a campainha. Como se tivesses certeza de que eu estava logo ali a te espreitar atrás da porta. Não te dei boa noite, apenas perguntei como tiveste coragem de sair da gaiola. É o meu lado suicida, respondeste, rindo, enquanto depositavas sobre a mesa umas duas garrafas de vinho tinto e outras tantas de vodca polonesa. Gostei de te ver na penumbra deserta da sala. E ainda mais quando apenas sorriste para a colossal imagem de uma gaiola que toma toda uma parede do apartamento. Sem palavras desnecessárias. Comprei e fotografei essa gaiola. Dessas de feira de passarinho que até pouco tempo atrás eram ilegais, mas que nunca deixaram de existir. E preenchi com ela o meu habitat. Gosto de te imaginar aqui, dentro desta gaiola vazia. Pensar no teu constante se debater contra as grades que facilmente poderias quebrar com o bico. Uma espécie de prolongamento, uma prótese de mim. Sabes? Sequer podemos prender periquitos em gaiolas assim. Feitas de material vegetal. Para eles as gaiolas têm que ser de SUMÁRIO Leituras Diversas: Crônicas, Ensaios e Contos | 289 arame. Escapam das outras, como a tua, à bicadas. E a tua, ouso dizer a nossa, meu anjo, só existe na tua cabeça, na nossa, e na fotografia na parede. Mas está lá. Onipresente. Indestrutível. Bebida demais, afirmei um pouco sem convicção, conhecendo muito bem a mim mesma e tendo certeza de ti. Após não sei quantas garrafas e de toda uma teoria exposta sobre o ceticismo pós-moderno em relação ao desejo, transcendências e imanências y otras cositas mas, depois de horas a discutirmos sobre grades e gaiolas, fugas e permanências, anjos e humanos, quando as primeiras nuvens vermelhas no horizonte, que junta céu e mar para espetáculo da minha varanda devidamente gradeada, anunciaram o dia esquecestes meus olhos e os teus. Desenrolaste timidamente as tuas imensas asas de um cinza pálido, entorpecidas pelo pouco uso e me beijastes a boca. SUMÁRIO 290 | M a g n o N i c o l a u ( O r g . ) DETURPARAM O MEU “COLÓQUIO”, QUE HORROR! Maria das Graças Ataíde Dias Existem três jeitos de fazer as coisas: o jeito certo, o jeito errado e o meu jeito, que é igual ao jeito errado, só que rápido. Homer Simpson Eram oito moças desejosas para arranjar um marido. Moravam na minha rua, quase em frente à minha casa. Todas as noites, duas delas, Dolores e Maria de Lourdes frequentavam as cadeiras que mamãe colocava na calçada da sua bodega, onde negociava, para tomar fresca e conversar. Certa noite, nas suas conversas com mamãe, Dolores reportou-se a um rapaz que sempre via na bodega e que a olhava com insistência, mas ela se sentia tímida para se aproximar e estabelecer uma conversação. Logo eu identifiquei quem era o rapaz. Era o representante de uma firma que vendia doces em grosso, e na qual mamãe comprava para revender no varejo. Todas as vezes em que ele ia oferecer sua mercadoria a mamãe, cantarolava: “Balas, bombons, caramelos, pirulitos kibom, vai querer, dona Carmelita?” Ocorreu-me então uma ideia. Decidi fazer uma brincadeira para estimulá-la a falar com o rapaz, mas não imaginei as consequências que poderiam advir decorrentes do meu ato, tentando arranjar marido para a referida moça. Na bodega de mamãe havia, nos idos de 1960, alguns modelos do formulário que se usava para passar telegrama, também conhecidos como fórmula. Tomei um desses modelos, pedi a uma amiga para preenchê-lo a fim de que ninguém identificasse a minha letra. Dei os dados da destinatária e mandei colocar o seguinte texto: “Dolores vg convido-a para um colóquio hoje vg às 20h00 vg no Parque Teófilo Dantas pt. Emerson”. Dobrei o falso telegrama na maneira usual e esperei uma oportunidade para fazer a entrega. SUMÁRIO Leituras Diversas: Crônicas, Ensaios e Contos | 291 Posteriormente, quando uma das moças apareceu à janela de sua casa, eu atravessei a rua com o dito cujo na mão e fiz a entrega, dizendo: o estafeta esteve aqui na sua casa, chamou, mas ninguém atendeu. Ele pediu-me para deixar aqui este telegrama. Corri para casa na expectativa do reboliço que provavelmente aconteceria. Esperei, esperei, mas nada; o silêncio era total. Não me contive de tanta curiosidade e fui até lá, a pretexto de levar a revista O Cruzeiro para as moças lerem, a fim de sondar o ambiente. Assim que entrei, Dolores, a moça a quem o telegrama havia sido dirigido, me perguntou: “Maria, como era o estafeta que trouxe o telegrama? Ele usava a farda do correio?” Enquanto dialogava com a vítima, escutei um burburinho vindo de um dos quartos, e uma voz feminina que dizia mais ou menos assim: “Como foi que esse rapaz teve coragem de chamar uma moça de família, para um colóquio, à noite, numa praça? Ele está mal intencionado. Colóquio não é coisa boa. Vamos chamar nosso irmão que mora no interior, em Salgado, para resolver a situação.” Eu me retirei às pressas, apavorada, porque o conteúdo do telegrama estava tomando um rumo diferente ao da minha intenção. Pensei, pensei muito e não entendia porque haviam dado uma conotação tão diferente à palavra colóquio. Eu havia aprendido nas aulas de português “no antigo ginásio”, com o Cônego Ovídio, nosso professor, que colóquio era uma conversação entre duas pessoas. Na ocasião, ele orientou para usarmos palavras bonitas quando falássemos, e colóquio era uma delas. Eu achei a palavra tão bonita! Por isso eu a usei para mostrar que sabia falar difícil. Procurando entender o rumo que a minha brilhante ideia estava tomando, me questionei: e se o irmão dela viesse do interior e fosse tomar justificativas com o rapaz que não sabia de nada! E se descobrissem que tinha sido eu a causadora do fato? Estava perdida, era caso de polícia. O que seria de mim? Dessa vez, com certeza, mamãe tiraria o meu coro para curtir. Fiquei apavorada, no aguardo dos acontecimentos. À noite, como era de costume, a destinatária do telegrama foi conversar com mamãe e mostrou o dito cujo. Os olhos estavam inchados de tanto chorar, gaguejava, as mãos tremiam e só se referia à maldade do rapaz. Eu só fazia observar, mas o coração batia a SUMÁRIO 292 | M a g n o N i c o l a u ( O r g . ) mil de aflição. Mamãe mandou que eu fosse pegar um copo com água e açúcar para ela tomar. Depois de acalmá-la, pegou o telegrama para ver o seu conteúdo, analisou, analisou e concluiu: “Minha filha, tire tudo de ruim que tem na cabeça, você é que está sendo maliciosa, colóquio é apenas uma conversa entre duas pessoas. Ademais, isso aqui não me parece ter vindo através do correio oficial, ele foi escrito em uma dessas fórmulas que eu tenho aqui na bodega, servem de borrão para redigir telegramas e depois levar ao correio. Veja, não tem carimbo nem foi lacrado, apenas dobrado.” Num abrir e fechar d’olhos, mamãe descobriu a autora da tão urdida trama. Eu já era conhecida de muitas outras. Só não sofri uma boa sova no lombo, porque fui inocentada. A culpa não tinha sido minha, mas do colóquio. Afinal, minha ideia saiu vitoriosa, foi o caminho para Dolores se encorajar e iniciar um colóquio com o rapaz. Depois que fizemos as pazes, brindando com ela, eu cantarolei tal qual o rapaz: balas, bombons, caramelos pirulitos kibom. Vai querer, Dolores? Ela me respondeu: “Vou sim, mas quero é casar”. Valeu minha trela, valeu minha intenção. Eles casaram, tiveram um filho e foram felizes. Esteja ciente o leitor disso: Aqui tudo é verdade Nada é mentira Não quero fazer média Nem provocar ira. Nesta minha narrativa Converso na voz ativa: Não faço como Pinóquio Digo somente a verdade Pois não tenho mais idade Prá deturpar um colóquio. SUMÁRIO Leituras Diversas: Crônicas, Ensaios e Contos | 293 TUDO POR AMOR Octavio Caúmo Serrano dade? Um recado para os que defendem o aborto. Ficção ou reali- Ela, dezessete anos. Bonita, cheia de sonhos a povoar-lhe a mente. O príncipe encantado a atendia nos mais minuciosos anseios. Filha única, família importante, vivia em conceituada cidade do interior de Minas Gerais. Sua mãe, respeitável senhora, e o pai, um político influente. Eram figuras obrigatórias nas sociedades e nos eventos locais. Apenas estudava, pois queria ter uma formação cultural para nivelar-se ao noivo, cobiçado jovem da cidade, que acabara de formar-se em medicina. Era competente obstetra que, além de trabalhar no hospital da cidade, tinha bem montado consultório presenteado pelos pais. Programavam casar-se em seis meses. A casa já estava decorada, e a lua de mel, depois de uma festa como a cidade jamais vira, seria em Veneza. Com direito a passeio pelos canais, ouvindo os gondoleiros com suas cançonetas. Acabara de voltar da faculdade e passeava pelo florido parque da cidade. Um local aprazível e pacato. Era dia de semana e havia pouca gente em passeio. Mas ali não havia violência, assalto. No entanto, como se fora trama do destino que às vezes tenta entravar-nos a felicidade e altera o que era impossível de dar errado, ágil como um gato, um louco salta à sua frente, tapa-lhe a boca e a conduz a um lugar ermo. Asfixiada, desmaia e o maníaco se aproveita para destruir o tesouro que guardava para o seu eleito: sua honra de donzela, que ali desaparecia sem que ninguém explicasse o porquê. A família preocupada, porque a noite chegara, sai a sua procura. Tiveram de recorrer à polícia, que rapidamente a encontrou. SUMÁRIO 294 | M a g n o N i c o l a u ( O r g . ) De roupas sujas, com dores e desconforto, imaginava que tivera um mal-estar e desmaiara. Mais calma, consegue recordar-se da cena. Fora atacada. De nada mais se lembrava. Levada aos médicos, realmente havia sido estuprada e restava saber se do ato viria um filho e também alguma doença. Passado o tempo necessário aos exames e, felizmente, nenhuma contaminação, mas a gravidez fora confirmada. A revolta dos pais é a convencional. - Por que na nossa casa? - Por que com nossa filha? Diante disso, aconselham o aborto para limpar-se da sujeira que seu ventre carregava, resultante de um ato agressivo e sórdido. Consultada, a jovem é incisiva: – Não admito, sequer, discutir o assunto. Meu filho vai nascer. A jovem sentia uma alegria interior que a unia intensamente àquele ser que começava a ter vida em suas entranhas. Uma luz se acendera dentro dela, fazendo esquecer o momento de dor que parecia trazer-lhe desgraça e infelicidade. Nessa hora, suas convicções espíritas, que jamais havia revelado aos pais, davam-lhe a certeza de que não herdamos dos ancestrais a moral e o sentimento. Eles só fornecem um novo corpo para que a alma que já existe possa viver novamente. Repetiu, enfaticamente: - Meu filho viverá. O noivo não podia aceitar a decisão. Concordaria em desposá-la, apesar de tudo, mas não criaria o filho de um maníaco que, certamente, teria os mesmos instintos perversos do pai. Ela, serenamente, esperou o filho nascer. O doutor, totalmente desinteressado pelo destino da jovem, nem lhe ofereceu seus préstimos profissionais. O destino os separou totalmente. A moça, sem abalar-se, com total convicção do que fazia e queria, chega ao hospital onde em pouco tempo vem ao mundo um bonito e saudável menino. Perfeito, fisicamente. Ela, com muito leite, o amamenta com prazer. Ele, ao sugarlhe o peito, extrai o alimento com lhaneza. Parece que não quer feri-la nunca. Se o neném é pequeno, o espírito que o anima já se demonstra um gigante de sentimentos e já o mostra no simples ato de mamar. SUMÁRIO Leituras Diversas: Crônicas, Ensaios e Contos | 295 Passam-se os anos e o menino se desenvolve. É motivo de alegria para a mãe, que o amou desde o primeiro segundo que o sentiu em seu ventre. Inseparáveis, completam-se. Na escola, goza da simpatia de todos e, apesar de não ter pai, o que se realça numa cidade de interior, ninguém o discrimina. É bom colega, as meninas já o paqueram e os professores o respeitam pelo interesse e responsabilidade como se dedica aos estudos. A mãe já o havia deixado a par do acontecimento, e o fato de ter nascido de um estupro não o incomodava. Amava ainda mais a mãe por ter lutado pelo seu nascimento. Estuda línguas, pratica natação. Tem corpo de atleta. Os avós aprenderam a amá-lo e esqueceram os traumas que envolveram o seu nascimento. Acreditam, mesmo, que a determinação da filha valeu a pena. Chegam férias e os dois saem em merecida viagem de recreio. Mãe e filho, felizes, botam o pé na estrada… Oito horas de uma manhã ensolarada. De repente, um carro que ia à frente deles despenca do alto da ponte para dentro do rio. O moço não pensa duas vezes. Estanca o veículo e, ágil, jogase nas águas, mergulha fundo e retira um homem que tivera um mal súbito. Levam-no ao hospital, enquanto a mãe, emocionada, admira a coragem do seu “menino”. Bem atendido, o homem fica fora de perigo. Informado do acontecimento, demonstra desejos de conhecer e compensar o jovem pelo seu gesto corajoso. Pede que o convidem a vir visitá-lo, pois seus dados foram anotados na portaria. Amável e simpático, como de hábito, atende ao chamado e volta ao hospital para conversar com aquele estranho. Vai na companhia da mãe que se mantivera em silêncio durante todo o episódio. Quando o paciente viu a mulher, levou um susto e perguntou-lhe: - Que faz você aqui? - Vim acompanhar o meu filho, que atendeu ao seu convite. - Seu filho?! - Sim, meu filho. Aquele menino que você não quis aceitar e a quem, agora, deve a sua vida. SUMÁRIO 296 | M a g n o N i c o l a u ( O r g . ) Num longo e emocionado silêncio, todos se abraçaram, sem que o jovem compreendesse o que estava acontecendo, porque esta parte da vida de sua mãe lhe era ainda desconhecida... SUMÁRIO Leituras Diversas: Crônicas, Ensaios e Contos | 297 NECROBALLET Oziel Rodrigues Despachei o grito surdo da coruja, vomitando luz no canal. É certo que era noite... em relances...? Lancei a vista para os telhados das casas próximas. Vi também o pico dos prédios – queria desviar o olhar. O maldito parecia roncar no meu pé do ouvido. Deitei as pálpebras, chamei o Senhor dos Exércitos a fim de que me enviasse o anjo arqueiro... nem o trompete escutei. Fiz da garganta, escorrego pro álcool, e dentro de mim não escutava respiração ou a taquicardia. Imagens se mexiam enquanto eu tentava fixar o olhar em alguma merda que escorresse pela boca do bueiro. Não veio dejetos, impurezas. Danei a cabeça naquela água escura. Deu uma vontade danada de beber. Ai, como girava tudo! Meus dedos doíam em cotos sangrentos. Nada me veio. Eu nem sabia se estava em pé ou sentado, deitado... o universo uniforme... apenas uma camada. Outra mão, decepada. Tempo rápido: picadas que me cutucavam o corpo pareciam contar os segundos. Um feixe de luz iluminava meu rosto, outro piscava mostrando os cadáveres úmidos. Um roedor se aproximou, tentei espantá-lo antes que mordesse a orelha da criancinha. ... meu filho!... horrendo. O sangue sujava o esgoto, e o fluído negro arrastava naturalmente os corpos, a mim também. Relancei o olhar ao céu, as folhas diurnamente verdes, não me permitiram ver a imensidão: Eu, mendigo de estrelas. Concordei com a natureza e me vi na sina que a vida me preparou. E meu filho lamenta chorando sangue pelas feridas recém-abertas... o balé dos cadáveres... Olha lá minha mulher rodando feito um peão na água rasa, turva... Tentei me arrastar para seu corpo. Acho que estava acordada. Percebi um movimento dolorido. O esputo escarlate descia do meu queixo para o peito. Me vi sentado, dando tapinhas na superfície da água suja. Sabia que aquilo poderia ser grandes átomos do SUMÁRIO 298 | M a g n o N i c o l a u ( O r g . ) Açude Velho de Campina. Que noite gélida! Era pra chover. Assim morreríamos afogados. A coruja tornou a gritar sobre nós. Uma galinha morta jogada ali. Parecia também querer entrar na dança, a água nos regia. Merecia um banho, a danada. Os donos só dão banho nas bichas ao torcerem seus pescoços. Apodrecem no nosso estômago. Acabam virando merda depois de muita luta digestiva. Vejam: no final tudo é bosta, excremento de Deus. Estrume é bom pra planta. Mire as margens do canal da cidade: é onde as flores mais bonitas brotam, apesar da intempérie. Eta, galinha feia! Tem penas pretas nas patas em riste. Apontam pra mim. Olá! Uns cocozinhos peixeformes me rodearam, sai, sai, sai do corpo, quintessência, fingi não entender. Era obrigado a retrucar em linguagem de bosta? Me entrou com tanta força nos tímpanos que estremeci. Visível quase-morto, quase-tal a galinha meio depenada, tremulei as pálpebras. Hum? Em duas vertigens comecei a vomitar sangue. E as merdas repetiam a sentença. Soube pouco antes que aqui era um matadouro clandestino. Vi a cabeça da Mula sem cabeça. Supetão: “quem não nasce pra servir, não serve pra viver”, ouvi muito dessas da boca do comandante na época em que eu enfiava no cano dos fuzis no cu dos outros. Me lembro até que já peguei um M16 semiautomático; veio dos americanos. Era tão bonito o bicho que tive que enfiar no meu próprio rabo. Eu nem aí: sabia que o comandante tinha o costume de cheira os canos das armas antes de levá-las a combate. E a galinha entrava em convulsão. O bico, um formigueiro, acusava alto vida pequena, morte eterna! E a coruja gritava nunca mais! Fundo, no bueiro, emergia um menino, fardamento militar, voz, senhor assim, senhor assado, céu não é paraíso, nem quente nem frio, soldado? Me fitava encolhendo os ombros. Sei não, senhor, foi o que proferi no estado de bio falência. Ele foi à galinha e mordeu o pescoço. O animal era oco, só formigas seu pescoço torcido derramou pelo esgoto. Soldado, sentido! Quis fazer a reverência, quis sim, mas eu não sentia meus braços. Mirei o olhar para o horizonte. ATENÇÃAAO! SENTIDO! Vi seu jeito irascível e competente se dirigindo a mim, colocando meus cotos em posição de vênia. É o quê? porque meus membros sempre desciam indiferentes à ordens. Tá SUMÁRIO Leituras Diversas: Crônicas, Ensaios e Contos | 299 vendo que ninguém vai assistir ao miserável enterro da tua última quimera? E a coruja NUNCA! O menilitar arregaçou as calças, mangas, tirou as botas; começou a saltar. Aterrissava desjeitoso, chapinhando água em mim. Danço nada não. E a coruja NÃO! Uma sereia do esgoto bateu calda até, Precisa de alguém, o menino Não!, puxou um bacamarte, estourou a linda peixa. A galinha encurvou o pescoço, quê tá..., Menilitante apontou a arma pra ela, quer o quê?, nada o animal desviveu. Pôs um ovo. Nasceu o pinto. A criança jogou o bacamarte por ali e o bebê penas entrou pelo bocal. Não reparou. O cachorro do mato uivou o abismo do caos. Me senti calmo. Não vi coisa aqui contemplativa; prestei a observar o balé. Dança ridícula, posso nem descrever, tal-quase, quase-tal passos se queimando na praia. Me vi entretido. Estalaria os dedos se ainda os tivesse. Cantaria se minha voz não fugisse. Que tal? perguntou. Entortei os lábios num sorriso, Nada? Como possível...? Nem eu, nem eles. Passou a arrastar minha mulher pelos fios da cabeça. Deitoua no meu peito nu. Essa? Sim-não, eu pedi? Ia deslizar a criança também, ela começou a berrar. Pronto, pronto, acalmou? E continuava a carpir. Tava um menininho feio, o meu filho. Adiposo, sangrento, fungando. Cambaleou me reparando o olhar furtivo. Me fiz de morto. Vivo quase, me desmentiu o pequeno militar. Meu herdeiro das feridas Quase? Apesar do pesar que pesava em coração alheio, Morto quase também, ratificou o comandantezinho. A mãozinha puxou e trouxe o meu para si. Corpos se chocaram. Retifico: se dançaram. O swing satânico não podia mais entreter a mim-nós. A lua agigantou enquanto os escudos da alma se debatiam. A mulher mexeu, senti. Vi o osso exposto dela do joelho e braço, não podia movimentar muito sem que a dor subtraísse a vontade. Existe dor, ainda bem; se não tivesse é certo a gente perder esses membros tão funcionais sem perceber, né? A mulher esbugalhou o olhar em minha direção Morto, me fingi idem. Contive respiraços. Ela desencostou de mim, tentou se arrastar. Alavantú Anarriê balancê. E conseguiu alcançar o bacamarte, erguer, apontar... a dança... se interessou. Os meninos tudo quase-tão bonitos. Escolheu atirar, escolheu em quem. Mirou, dedilhou o gatinho. SUMÁRIO 300 | M a g n o N i c o l a u ( O r g . ) Saiu voando, com pena e tudo e pico e tudo e canto. Saiu galo. Cantou chamando o sol. Não veio sol. A lua fria e a coruja gritando NUNCA MAIS! SUMÁRIO Leituras Diversas: Crônicas, Ensaios e Contos | 301 TRECHO DO ROMANCE “HAMLET”, PARTE DA “HISTÓRIA UNIVERSAL DA ANGÚSTIA” W. J. Solha O céu era uma vasta abstração sobre Copenhague, na tarde em que o desfile fúnebre saiu de Christiansborg - o concretíssimo castelo que, naquela época, era a residência real - o som do tambor angustiado e fundo seguindo o carro em que arcanjos tocavam clarins mudos em torno do enorme esquife. Emocionaram-me o cavalo trotando sem cavaleiro, vindo atrás, a rainha velada, o Príncipe no magnífico luto. Depois do cortejo de nobres, a cavalaria conduzindo centenas de estandartes com todos os esmaltes e insígnias da heráldica danesa. E lá íamos nós, os seres humanos, abatidos, mais uma vez livrar-nos dos despojos (com o processo de decomposição iniciado) de um dos nossos. Veja-me ali, no meio da multidão que segue a família enlutada a pouca distância, eu ao lado do Conselheiro do Rei - Polonius - e de seus filhos Laertes e Ofélia (o rapaz, famoso pela condição de duelista imbatível, a moça... apaixonada, como tantas outras do Reino, pelo Príncipe). Eisme ali, um dandy à italiana - meiões justos valorizando as coxas, luxuoso dólmã negro caído de um ombro, gola sanfonada (da qual minha cabeça parece aflorar feito a de João Batista na bandeja de Salomé), o bigodinho - fininho fininho -, os cabelos negros encaracolados - ridículo! - mas quem está livre da óptica de seu tempo? Nem os geniais Voltaire e Bach, de enormes perucas empoadas, nem o grande Velázquez - que não se livrou de pintar um Marte com bigodão portuga -, ou James Joyce - o enciclopédico gênio da literatura do século XX - que posou tão vaidoso para a posteridade com seu chapéu palheta abestalhado, o tolo pince-nez a lhe ampliar os olhos precários, a inútil bengala ( espécie de guarda-chuva nu ) , os apalhaçados sapatos de duas cores - tudo considerado indispensável no civilizadíssimo meio em que viveu. Hamlet, no entanto... ah, meu deus... Hamlet seria elegantíssimo, em seu traje negro, SUMÁRIO 302 | M a g n o N i c o l a u ( O r g . ) em qualquer espaço e ocasião, o veludo e a seda sombrios realçando-lhe os olhos e os cintilantes cabelos louros! Algo, no entanto, tirou-o de profundis para mágoas mais rasas: seu tio Claudius lá adiante, na rua, vindo entre as duas alas do povão, a cabeça de másculo modelado, ele alto e com a largura realçada pelas mangas bufantes e pelo manto, o ar de senhor da situação confirmado pelo belo colar de ombro a ombro, além da chave e das esporas de ouro presas ao cinturão. Reconheci-o pelo retrato eqüestre realizado por Rubens, de grande porte, que eu vira ainda naquela manhã no castelo, em que ele exibia os atributos de capitão-general: a faixa vermelha cruzando-lhe o peitoral da cintilante armadura negra, o bastão de comando, a manobra que realizava no cavalo - chamada levade - utilizando só uma das mãos para dominar o animal, a facilidade para o controle e rigidez da postura convertendo montaria e ginete em demonstração de capacidade para o mando. Percebi que não seria nada agradável cobrar dele o débito que tinha com meu pai. Vi quando deixou passar o carro com o corpo do irmão - no que fez o sinal da cruz (ele também convertido, como a Rainha!) - e, em solene elegância, caminhou no sentido contrário ao de todos, aproximando-se do sobrinho, cujas faces osculou, depois alcançando a viúva e se pondo ao lado dela, fazendo-me de imediato entender ...porque o Príncipe não era rei. Hamlet, sem alterar o passo em que ia isolado, voltou-se olhou-me... sinistro... como se tivesse ouvido meus pensamentos fez um aceno para que me aproximasse. A quebra do protocolo me constrangeu. Destaquei-me da corte, procurando não perder a compostura no que me apressava, emparelhei com ele, cabeça baixa, mãos juntas à altura da virilha, e o vi indicar o tio: - Ricardo III... Como não compreendi a que se referia, murmurou-me: - A cena me lembra aquela em que o monstro, ainda Duque de Gloster, interrompe a passagem do féretro do rei que ele assassinou, e mantém aquele diálogo cínico mais a viúva, que o desgraçado acaba cantando... e comendo... para chegar ao trono... Chocado, olhei para o casal que centralizava o séqüito, depois desviei os olhos para o tambor marcando a marcha fúnebre repicada pelos pacatás dos cavalos - os do carro, os do sem cavaleiro, os da cavalaria atrás de nós - e, como vi Hamlet voltando à ati- SUMÁRIO Leituras Diversas: Crônicas, Ensaios e Contos | 303 tude anterior, de filho enlutado, deixei-o avançar sozinho, esperei que a corte me alcançasse e retomei os passos, com os outros, ouvindo mais forte o estalar de todas aquelas bandeiras ao vento, controlando minha agitação interior. Já vi muita gente fazendo de tudo para parecer natural em público e tenho pena de mim diante do que reassisto agora, de memória. Felizmente a imagem do rei sendo picado por uma serpente enquanto dormia no jardim me distraiu, de repente figurando-se definitivamente... fábula, igual à do Gênesis, evocada pela lembrança de uma outra queda, a de Abel assassinado por Caim, que se revoltara com a especial atenção dada pelo Criador ao irmão. O que se insinuava na mente de Hamlet, concluí tenso, é que seu tio lhe matara o pai, requestava a rainha e - pelo visto - não se deteria diante de nada (como a eliminação do príncipe herdeiro) para chegar ao Poder! Como é natural nos enterros, veio-me à memória o dia em que tivera de viajar (eu estava em Olinda) para comparecer a um outro funeral - o de minha mãe - na Capitania de Para’iwa. Houvera, sim, um primeiro momento de emoção - como os que eu via agora em Copenhague - com meu abraço nas irmãs que tinham vindo me receber aos prantos, depois o instante em que tocara nas mãos do cadáver cruzadas sobre o peito, e - pela derradeira vez acariciara-lhe as feições. Mas logo a reunião inusitada na família, com tios e primos que há muito não se viam, tornara-se... festiva... o que, aliás, não destoava do espírito de mamãe. “Não me olhe todo solene, no meu velório, como se eu estivesse com Deus ou coisa que o valha, porque aquela região de refrigério, de luz e de paz com que o cristianismo nos acena, parece-me de uma monotonia terrível! O paraíso cristão seria paradisíaco para mim por - no máximo - uma semana. Aí começaria uma enorme vontade de voltar para a ativa, pra estiva...” Quando se trata da morte de homens públicos, entretanto, viúva, herdeiros, amigos, servidores do morto, todos se tornam alvo da compunção, curiosidade, vigilância coletiva. O povo reage mais poderosamente ainda quando se trata de um rei, para muitos o próprio Deus na Terra. Paradoxalmente, os que mais choravam contidos pela força mercenária da polícia (recrutada, como todas, entre os miseráveis, para de seus iguais proteger os poderosos) eram os mais mal acabados, mal ajambrados, os saídos de entulhos e monturos, dentre ratos, percevejos e baratas... como que para usufruir... da presença divina, por algumas horas a seu alcance. SUMÁRIO 304 | M a g n o N i c o l a u ( O r g . ) Percebi que Hamlet, muito refinado, bonito, triste, claro, limpo, de negro, acrescentava ainda mais ternura àquela já enorme comoção popular, principalmente junto às moças, no fundo no fundo candidatas a cinderelas, todas, loucas por consolar seu príncipe desencantado. Mas houve um murmúrio de deslumbramento e escândalo da população - na maioria luterana - quando, pela primeira vez, entrou na catedral. O vertiginoso espaço, os trios de velas, quartetos de círios, quintetos de archotes, sextetos de brandões, a estonteante música do órgão e o coro vigoroso, o Cristo em ouro com esplendor em prata e cruz cravejada de brilhantes, o urco vulto do barqueiro do Aqueronte, o grupo escultórico da Anunciação - Maria com seu clássico susto de cinema mudo ante o Arcanjo (ele de cabelos penteados na madeira, suor de verniz ), o Nazareno terrivelmente morto - costelas e clavículas expostas - tudo era magnífico e assombroso. Mas nada se comparava ao céu como que transbordando do teto na Apoteose de Hamlet Rei em sua famosa batalha no lago gelado contra os poloneses, com milhares de guerreiros a cavalo e de trenós, o superespetáculo enriquecido de bandeiras, plumas, brilhos de armas, a gritaria ritmada pelos estrondos surdos de canhões - e que homens, que corcéis, que crepúsculo... que massacre! Onde a religião do “amai vossos inimigos” que Hamlet somente agora aferia? - Os cristãos foram sempre de uma duplicidade absurda - eu lhe dissera na Capela Sistina - É sintomático que mantenham Cristo e seu séquito de mártires enclausurados em todas estes templos e claustros, enquanto soltam os deuses pagãos, cheios de sensualidade e alegria, pelas praças e jardins de toda a Europa. Vocês são como crianças! O que é isto, o que é uma igreja, senão arapuca pra capturar Deus e seus santos, a isca no altar? E o que são as orações, hinos e incenso, senão bajulação ao Rei dos Reis, o mundo atribuindo ao Todo-Poderoso a vaidade, ambição e venalidade de tiranos como seu pai? Olha lá, que aberração o “Juízo Final”, com todos aqueles seres humanos apavorados ante a desproporção entre seus breves crimes e a insuportável idéia sádica de um castigo eterno! Cadê o ‘Perdoa-lhes porque não sabem o que fazem?’ Você mesmo já me disse, mais de uma vez, que somos máquinas. Como se pode SUMÁRIO Leituras Diversas: Crônicas, Ensaios e Contos | 305 puni-las, em lugar de consertá-las ou aperfeiçoá-las? Isso não seria impossível para alguém considerado Onipotente”. Mas o grande momento das exéquias (todo um ritual pomposo para livrar Hamlet Rei do Inferno) ainda estava por vir. Foi o da revelação do túmulo monumental para onde seu ataúde foi levado. Começava na escadaria, com a estátua de bronze do finado em tamanho natural ( e uma particularidade: como a de Carlos V, hoje no museu do Prado, em Madri, seu corpo fora fundido separado da armadura, que poderia ser removida em ocasiões especiais, tornando-se o rei, nu, a representação de um herói da antigüidade com o Furor derrotado a seus pés ). Mais adiante, quatro cariátides - representando Virtudes sustentavam a laje sobre a qual todos viram as imagens orantes do Soberano e da Rainha em ouro, a multidão se comovendo com a efígie do monarca, serena e arrogante como ele fora, eu extasiado com o realismo de sua blindagem - da qual só as mãos postas sobre o genuflexório e o rosto forte emergiam nus - ombros e costas cobertos pelo manto brocado de esmeraldas, Gertrude, ajoelhada logo atrás dele, belíssima em seu luxo máximo. Eu encontrara magnificência semelhante apenas no monumento funerário do mesmo Carlos V na igreja-panteão d’El Escorial, na Espanha, embora também fosse soberbo o túmulo de D. Inês de Castro, no Mosteiro de Alcobaça, em Portugal, embora também fosse esplêndido o sepulcro do Senescal Philippe Pot (hoje no Louvre). Partidário de Lutero desde a Reforma, o povo dinamarquês se viu forçado a uma missa de réquiem pelo rei convertido ao catolicismo pela esposa. O Príncipe me dera a intimidade de confirmar: o que a mãe tanto prezava na religião desprezada em todo o norte da Europa era o fausto de onde agora surgia o sacerdote opulentamente paramentado, que subiu alguns degraus do mausoléu e com voz piedosa e afeminada - começou, na estupenda acústica do recinto: - Caríssimos irmãos em Nosso Senhor Jesus Cristo! Meu amado Rei! (emocionou-se, os olhos marejados voltando-se para o ataúde, a cabeça oscilando como se não lhe aceitasse a morte ) Alteza! (disse para a Rainha, a cabeça, ainda insegura, negando ). Querido Príncipe... (e o velho afagou Hamlet com seu olhar, o que me fez procurar alguma ressonância do afeto no órfão, mas vi-o apenas cruzar os braços e levar a mão direita ao rosto baixo, medi- SUMÁRIO 306 | M a g n o N i c o l a u ( O r g . ) tativo). O amado esposo e pai, que hoje baixa à sepultura a fim de que - como Cristo - dela irrompa aos céus em glória, queria que sua estátua jacente - que lhe cobrirá o sepulcro - bem como a de sua querida Rainha, que um dia seguirá seu mesmo caminho aludissem à natureza transitória da carne, mostrando vermes a entrar e sair das cavidades de seus corpos nus, para que todos vós, irmãos, tivésseis ciência presente, sempre, da vanidade de nossos apegos ao mundo e da necessidade de estarmos instantemente preparados para a chegada da Morte. Cristianíssima alma, a de Sua Majestade! Mas a Rainha - mãe querida, imagem de nossa querida pátria - tocada pela angústia dos mais sensíveis ante tal espetáculo, à revelia de Hamlet Rei, que morreu sem ver acabado o excelente trabalho do escultor Germain Pilon, que vós todos havereis de admirar agora, decidiu que tal arte fosse retrospectiva, não prospectiva, e o que todos vereis aqui, a partir de hoje, será o régio casal despojadamente nu, sim, reproduzido sobre o tampo do sarcófago, mas como se... tivesse falecido logo após a Graça de conceber nosso querido príncipe, aqui presente!.. . A mão pensativa de Hamlet parou no ar. Seus olhos passaram a querer... e temer... essas esculturas. A reação de seu tio não foi menos inquieta. E a da corte. A Rainha, cabeça baixa, coberta pelo fino véu negro, permaneceu imóvel - mas sabe deus como se sentia ante a iminência de ter o próprio corpo exibido - eros via tanatos - dentro de alguns instantes. E a ralé? Você já viu aquela azáfama da multidão de técnicos montando um quadrirreator num gigantesco hangar e atinou em como ela lembra um formigueiro igualmente afanoso em desmembrar um gafanhoto morto? Confesso que eu mesmo, só depois de ver a réplica da Rainha, me detive na do finado Rei, que me pareceu algo como um Cristo morto sem suplícios nem carisma, num sono de pedra, sexo coberto pelos grandes dedos superpostos. E ela? Gertrude - para estupefação do filho, principalmente, posara como a Vênus clássica que tenta cobrir os seios e a virilha com as mãos. A boca entreaberta, olhos revirados como que num sonho de gozo, a bela cabeça e os ombros nus pressionando o travesseiro aparentemente macio embora de mármore, lembravam demais o êxtase suspeito da Santa Teresa de Bernini, na capela Cornaro da Igreja de Santa Maria della Vittoria, em Roma, que mais goza do que sofre a iminência de ser varada pela lança do belo anjo que misteriosamente lhe sorri. SUMÁRIO Leituras Diversas: Crônicas, Ensaios e Contos | 307 Hamlet, arrasado e abalado pela morte do pai, pelo golpe branco no Estado, e - agora - pela exposição daquela nudez, saiu sem falar com ninguém, nem comigo, atropelando a multidão, indo enclausurar-se - incomunicável - no Kronborg Slot - o castelo Kronborg - em Elsinor, a quase dez léguas de Copenhague. SUMÁRIO 308 | M a g n o N i c o l a u ( O r g . ) A APARIÇÃO DO EXPRESSO DA MEIA NOITE Ythoganny Nicacio Silva de Araujo Aparição. De acordo com o dicionário, 1. Aparecimento. 2. Manifestação súbita de um ente, de um objeto. 3. Visão, fantasma. O relógio está a cumprir a sua árdua tarefa, batendo mais uma vez, à sólida meia-noite, fazendo surgir no horizonte o expresso vindo de tão longe que seu assovio frenético nos faz tremer de medo, e mais uma vez dentro de sua carcaça metálica traz aquele anjo que está sempre no mesmo assento. Ela, que não falava, não mexia sequer uma única pena de suas asas, ao menos não no início, não que fosse um anjo, mas gostava de pensar que fosse sempre com um olhar fixo no nada que se projetava de sua mente primaveril. É assim todas as noites: eu a observá-la em sua inércia, atento a seus mínimos detalhes. Chamam-me de louco, louco por acreditar que ali, naquele expresso da meia-noite, exista algo que só eu possa ver. Chamamme de louco, louco por sentar e esperar o nascer da lua, e mais louco ainda por ficar deslumbrado com seu balé magnífico que me leva ao nascer do sol. Se é assim que me chamam, então que assim eu seja: sou louco, e se minha insanidade projetou algo tão belo como esta aparição que vejo todas as noites, então sinto que estou perto de vislumbrar o paraíso. Não sei de onde ela vem e nem para onde vai. Uma coisa é certa: sempre que o expresso passa nos limites da terra do nunca, sua silhueta esvai-se em meio às brumas desta terra tão santa quanto obscena. Terá ela um elo que a prende nesta densa bruma de fobias e desejos projetados por meros mortais? SUMÁRIO Leituras Diversas: Crônicas, Ensaios e Contos | 309 Não quero amá-la, não quero odiá-la, não peço gestos e nem olhares, apenas quero a doce loucura de sua presença. Tenho medo do que ela tenha a me dizer, tenho medo de que seu olhar escarlate traga à tona meus segredos que, guardados há tanto tempo, não afetam mais a minha sanidade. – O que faço para que possa contigo discursar? Falei quando não mais suportava o passar dos anos sem ao menos escutar sua voz. Por que logo para mim ela foi aparecer? Por que só eu vejo e mais ninguém? Que segredos teria para me revelar? Valeria realmente à pena trocar a sua doce história por minha vã sanidade? – Por que então eu falaria com você, se por tantas vezes te encontrei neste expresso, que tão melancolicamente transporta almas cansadas para suas moradas? Suas falas em nada se comparavam com as vozes que ouvia frequentemente. – Não sei, gosto de te olhar, mas não sei de onde vens e nem o que sois. – Sou uma projeção de tua mente que treme diante das dores de tua sede. Ela estava a falar comigo, e a tantas luas que eu esperava por este momento, mas nada tinha a fazer, não diante do que ela falava tão gentilmente. O que tem ela dizer? Será ela uma história contada por um alguém sem voz, uma história que o vento carrega sem saber o porquê, a mesma história que ninguém quis ouvir? – Tantas coisas que queria te perguntar, todos esses anos e imaginei tantas conversas, que ficava ensaiando enquanto esperava por você. – Olhe meus olhos e neles irás ver a pergunta da qual queres a resposta. Seus olhos eram cristalinos, um torpor tomava-me o corpo me deixando à mercê de seus desejos, naquele momento tudo fazia sentido, e só uma verdade importava. Será que deveria eu entregar-me a meus desejos, assim como todos acabam se entregando? – Como está ela? – Ainda pensa em você, você sabe que foi triste, mas ela teve de partir. SUMÁRIO 310 | M a g n o N i c o l a u ( O r g . ) – Mas não precisava, eu a amava tanto, não queria que ela tivesse ido, queria que ficasse comigo, que me abraçasse mais uma vez. Uma história, uma vida, um filme passaram em minha frente, e mais uma vez a verdade estava mais evidente. – Ela chora há muitos anos. Você deve deixá-la partir. – E como posso fazer isso? Quero tanto encontrá-la, dizer mais uma vez o quanto a amo. – Apenas sinta o que ela lhe transmite, toque em mim. Um sentimento com um misto de amor e ódio me tomou por completo, um amor por tudo o que vivemos, um ódio por ter que me deixar. – Diga-lhe que ela deve seguir em frente, que eu ainda a amo e sei que ela tinha que partir, diga-lhe com os olhos, com os lábios, diga-lhe com todo o amor que carregas consigo. – Ela sabe disso, mas você deve partir, pois o peso de tua presença ainda atormenta seu espirito. – Desta vez sou eu quem desce, eu não mais ficarei neste expresso, o peso de um sofrimento é insuportável para minha eternidade, mas ainda preciso que leve mais um recado para mim. – Claro que sim, o que você desejar. De seus olhos vertiam lagrimas, um choro de despedida. Diga-lhe que ela foi o filme perfeito de um sonho inacabado, um sonho incompleto e cheio de labirintos. Como outrora, meus devaneios falaram mais alto, e por pouco tempo esqueci de mim e não dela, diga-lhe que ficarei a esperar. – Sim meu amor, ela já sabe, pois sois uma doce aparição quase a enlouquecer-me lentamente agora parte para longe, e logo te encontrarei na eternidade. SUMÁRIO Leituras Diversas: Crônicas, Ensaios e Contos SUMÁRIO | 311 312 | M a g n o N i c o l a u ( O r g . ) SUMÁRIO