sumário - Ideia Editora

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Leituras Diversas: Crônicas, Ensaios e Contos
SUMÁRIO
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2 |Magno Nicolau (Org.)
SUMÁRIO
Leituras Diversas: Crônicas, Ensaios e Contos
Leituras Diversas
Crônicas, Ensaios e Contos
Série Leituras Diversas
Vol. 2
Magno Nicolau (Org.)
Ideia
João Pessoa
2014
SUMÁRIO
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4 |Magno Nicolau (Org.)
Todos os direitos reservados ao organizador.
A responsabilidade sobre cada texto é dos respectivos autores.
Edição sem fins lucrativas.
Editoração/Capa: Magno Nicolau
Revisão: Hildeberto Barbosa Filho
L533
Leituras diversas: crônicas, ensaios e contos /
Magno Nicolau (Org.). Vol. 2 - João Pessoa:
Ideia, 2014.
294p.
ISBN 978-85-7539-946-0
1. Literatura brasileira – crônicas – contos
- ensaios
CDU: 869.0(81)
EDITORA
www.ideiaeditora.com.br
Impresso no Brasil - Feito o Depósito Legal
SUMÁRIO
Leituras Diversas: Crônicas, Ensaios e Contos
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SUMÁRIO
1989 .................................................................................................... 9
Magno Nicolau
CRÔNICAS
A VIAGEM QUE TODOS PODEM FAZER ...................................................... 11
Alberto Matos & Lucileide Matos
UM JOGO DE FUTEBOL INESQUECÍVEL....................................................... 15
Carlos Alberto Jales
DONA CHIQUINHA, WALT DISNEY E JESUS CRISTO DESCENDO NA
AVENIDA DOM VITAL ............................................................................. 17
Cláudio José Lopes Rodrigues
ARIANO SUASSUNA X NIEMEYER .............................................................. 22
Evaldo Gonçalves
AFONSO PEREIRA, UM EXEMPLO DE VIDA .................................................. 24
Felix de Carvalho
COISAS INUSITADAS DA VIDA .................................................................. 26
Josineide da Silva Bezerra
UM AGRADÁVEL PASSEIO CULTURAL ........................................................ 28
Natércia Suassuna Dutra
SOB O SOL ........................................................................................... 31
Onaldo Queiroga
NESTA RUA TINHA UM BOSQUE ............................................................... 33
Piedade Farias
CASUALIDADE OU ENGAJAMENTO EM VANDRÉ? ......................................... 36
Ricardo Anísio
DESEJOS DE SÍLFIDE ............................................................................... 38
Rubens Elias da Silva
A CIDADE JARDIM ................................................................................. 41
Ruy Florentino
MEMÓRIAS DA COPA DO MUNDO ............................................................ 49
Sônia van Dijck
DOCES INVERNOS ................................................................................. 52
Yó Limeira
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6 |Magno Nicolau (Org.)
ENSAIOS
EDUCAÇÃO EM DIREITOS HUMANOS PELA TRANSDISCIPLINARIDADE: EM BUSCA
DA SOCIEDADE SENSÍVEL ........................................................................ 56
Anaína Clara de Melo
ESCOLA CONTEMPORÂNEA: UMA UTOPIA POSSÍVEL .................................... 62
Almiro de Sá Ferreira
A POESIA QUE SE SABE ........................................................................... 70
Amador Ribeiro Neto
O BOQUEIRÃO: UMA NOVELA ESQUECIDA? ................................................ 75
Ângela Bezerra de Castro
FELIPE TIAGO GOMES: PALADINO DA EDUCAÇÃO COMUNITÁRIA BRASILEIRA .... 81
Astenio Cesar Fernandes
A FORMAÇÃO BACHARELESCA DOS NORTE-RIO-GRANDENSES NA FACULDADE
DIREITO DE OLINDA ............................................................................... 85
Bruno Balbino Aires da Costa
MAL QUE FAZ O CIGARRO ....................................................................... 94
Carolina Corrêa Lins
O ESPELHO NOS CONTOS DE MACHADO DE ASSIS E GUIMARÃES ROSA: A
CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE NOS PERSONAGENS MASCULINOS ................... 95
Cyelle Carmem
ESTOU PERDENDO O MEU FILHO .............................................................. 99
Dimas Lucena
A ARTE COMO POLÍTICA E A POLÍTICA COMO ARTE: CONVERSA SOBRE A
ORQUESTRA DO REICH ......................................................................... 101
Eduardo R. Rabenhorst
OCEANO POÉTICO DE FÁTIMA BARROS .................................................... 107
Elisalva Madruga Dantas ...................................................................................... 107
“CADA PROFESSOR QUER UMA COISA DIFERENTE...” .................................. 112
Elizabeth Maria da Silva
CULTURA E POLÍTICA: UM DIÁLOGO POSSÍVEL .......................................... 116
Elizabeth Christina de Andrade Lima
PADRE IBIAPINA.................................................................................. 122
Ernando Luiz Teixeira de Carvalho
A ESCRITA NO REFERENCIAL CURRICULAR NACIONAL PARA A EDUCAÇÃO
INFANTIL ........................................................................................... 129
Evangelina Maria Brito de Faria
CINE LUX DE POMBAL – O ÚLTIMO EPISÓDIO ............................................ 135
Francisco Vieira
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Leituras Diversas: Crônicas, Ensaios e Contos
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ALEXEI BUENO E AUGUSTO DOS ANJOS ................................................... 139
Hildeberto Barbosa Filho
A IMPORTÂNCIA DA AULA DE CAMPO NOS PROCESSOS DE ENSINO E
APRENDIZAGEM ................................................................................. 145
José Januário Corrêa FIlho
UMA HISTÓRIA BEM PINTADA ............................................................... 153
José Nunes
UMA TRAJETÓRIA DE 150 ANOS: O CASO DA FACULDADE DE DIREITO
DE CAMPINA GRANDE ......................................................................... 157
José Octavio de Arruda Mello
IMAGINÁRIO POÉTICO EM O PADRE, A MOÇA, DE CARLOS
DRUMMOND DE ANDRADE ................................................................... 162
José Pires
EDUCAÇÃO...ESSE DILEMA .................................................................... 168
Maria do Socorro Cardoso Xavier
A LINGUAGEM REGIONAL POPULAR DE JOSÉ LINS DO REGO ........................ 172
Maria do Socorro Silva de Aragão
RELENDO “INSÔNIA” DE GRACILIANO RAMOS (1892-1953) .......................... 184
Marinalva Freire da Silva
CAPITU: A MONA LISA BRASILEIRA.......................................................... 193
Mercedes Cavalcanti
A VITÓRIA DO FRACASSO ...................................................................... 198
Mona Lisa Bezerra Teixeira
POÉTICA DOS RIOS .............................................................................. 203
Neide Medeiros Santos
EVOLUÇÃO DOS DIREITOS DA MULHER.................................................... 207
Onélia Setúbal Rocha de Queiroga
VIVÊNCIAS E ALZHEIMER NA FLORESTA AMAZÔNICA .................................. 215
Reginâmio Bonifácio de Lima
“TERCEIRO SEXO”: A INCERTEZA NA CONSTRUÇÃO DO MASCULINO*............. 232
Valdeci Gonçalves da Silva
COMO RESGATAR PARAIBANOS DA MISÉRIA? ........................................... 242
Valério Bronzeado ................................................................................................ 242
C O N T O S ........................................................................................ 245
Teoria do Matutismo ........................................................................... 245
Adilson Silva Ferraz
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8 |Magno Nicolau (Org.)
VÊ SE ME TELEFONA, BERENICE .............................................................. 252
Arland de Souza Lopes
ENTRE PONTOS................................................................................... 254
Arturo Gouveia
NOTURNO DE AMSTERDAM .................................................................. 258
Astier Basílio
A QUEDA DO PROSTÍBULO .................................................................... 262
Carlos Henrique Leite
ÁLBUM DE FAMÍLIA ............................................................................. 264
Cláudio Limeira
RONCÓ ............................................................................................. 267
Dalmo Oliveira da Silva
SUICÍDIO ........................................................................................... 273
Edson Tavares
METÁFORAS BOVINAS .......................................................................... 275
Francisco Dantas
ROMANCE VIRTUAL ............................................................................. 276
Leilah Luahnda Gomes de Almeida
A PROMESSA...................................................................................... 279
Magno Nicolau
PENDENGA DE MATUTO ....................................................................... 282
Marcos Feliciano Pereira Barbosa
AVIS RARA ......................................................................................... 287
Madalena Zaccara
DETURPARAM O MEU “COLÓQUIO”, QUE HORROR! ................................... 290
Maria das Graças Ataíde Dias
TUDO POR AMOR................................................................................ 293
Octavio Caúmo Serrano
NECROBALLET .................................................................................... 297
Oziel Rodrigues
TRECHO DO ROMANCE “HAMLET”, PARTE DA “HISTÓRIA UNIVERSAL DA
ANGÚSTIA” ........................................................................................ 301
W. J. Solha
A APARIÇÃO DO EXPRESSO DA MEIA NOITE .............................................. 308
Ythoganny Nicacio Silva de Araujo
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Leituras Diversas: Crônicas, Ensaios e Contos
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1989
Magno Nicolau
“Cai o muro de Berlim, na Alemanha. Um marco histórico para
a humanidade. Um golpe no comunismo. A Alemanha unificada, favorece o capitalismo.
O Brasil tenta se modernizar, política e monetariamente. Entra
em circulação a unidade monetária brasileira, o cruzado novo
(NCz$), que equivale a mil cruzados.
Na cultura, em São Paulo, é inaugurado o Memorial da América Latina, um projeto arquitetônico de Oscar Niemeyer com o
conceito e o projeto cultural desenvolvido pelo antropólogo
Darcy Ribeiro.
Palmas, capital do estado de Tocantins, é fundada.
São realizadas as primeiras eleições gerais diretas desde 1960.
Fernando Collor de Mello é eleito o 32° presidente do Brasil,
derrotando Luiz Inácio Lula da Silva na eleição presidencial.”
Ainda sem redes sociais, a internet é o mais novo caminho
para comunicações acessíveis e baratas, mas ainda de pouco uso. A
informação não chega tão rápida. Mesmo com a televisão mostrando avanços tecnológicos, levamos tempo para assimilar todas
as notícias acima descritas.
A Paraíba possuía poucos jornais e algumas dezenas de gráficas, mas um número insignificante de editoras, talvez as públicas
em maior número. Este foi o ponto de partida para a criação da
Ideia Editora. Como editores, contávamos mais com a experiência
de Marcos Nicolau, com atividades nos principais jornais e na assessoria de comunicação da TELPA, ingressando, posteriormente,
na Universidade Federal da Paraíba. Era preciso uma maior atenção aos escritores com ânsia de publicação com boa qualidade.
Em agosto de 2014 a Ideia Editora completou 25 anos, contribuindo com a cultura paraibana. Foram cerca de 2.500 títulos até
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aqui, média de 100 por ano. Evidentemente que não foi assim no
início. As dificuldades de execução nos levavam a publicar 1 a 2
livros mensais. Os equipamentos eram direcionados às gráficas e
chegamos a ter 15 funcionários. Com o avanço tecnológico, hoje,
publicamos cerca de 8 livros ao mês, com apenas 3 funcionários. É
claro que contamos com a experiência deste pessoal com especialização em livros e revistas. Os melhores escritores nos procuram
pela qualidade e atendimento.
Nos últimos 10 anos, já participamos de conferências, como
a de Brasília, sobre o Plano Nacional do Livro e Leitura, a convite
do próprio MEC; de feiras, como o I Salão Internacional do Livro
da Paraíba, através da Subsecretaria de Cultura do Estado da Paraíba, subsecretário David Fernandes; a Bienal de Fortaleza; feiras
internacionais, como as de Londres e Frankfurt, entre outros. Temos títulos com mais de 60.000 exemplares vendidos em todo o
país, publicações em francês, espanhol, alemão, italiano e inglês.
Escritores em vários estados do país, como Rio Grande do Norte e
Pernambuco, bem como no Acre. A lucratividade é pequena, mas
aprendi que a maior vitória é a continuidade, ou melhor, a insistência. Como sempre gostei de ler, trabalhar na produção literária
foi um prêmio.
Neste período, grandes companheiros partiram e deixaram
saudades: Maurílio de Almeida, Ascendino Leite, Joacil de Britto
Pereira, Magno Meira, Caixa D’água, Milton Nóbrega, Deodato
Borges, Barreto (Editora Manufatura), Lúcio Lins (a quem agradecemos pela construção das boas ideias), entre outros, que muito
contribuíram com nossa formação.
Este é o 2º volume (o primeiro foi em 2009, comemorativo
aos 20 anos). Por isso, agradecemos a todos os escritores e leitores
pelo carinho e atenção, fornecendo “subsídios energéticos” para
mais 25 anos.
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CRÔNICAS
A VIAGEM QUE TODOS PODEM FAZER
Alberto Matos & Lucileide Matos
Tem coisa melhor do que falar sobre a viagem? A viagem
certa, aquela que você nunca será capaz de esquecer, porque fincou um marco de grande alegria e realização na sua vida e vai ficar
para sempre em sua lembrança. Talvez alguém questione esta viagem com relação aos custos, ao lugar ideal, à melhor companhia e
tudo o mais. É natural que também se analise sobre a possibilidade
de alguém fazer ou não uma viagem deste tipo. Será que você, que
está lendo agora, pode realizar esta “viagem”? Dentre as muitas
categorias de viagens que existem no mundo, serão abordadas
aqui apenas três delas.
Primeiramente, existem as inovadoras e fantásticas viagens
no mundo do turismo, desenvolvidas com muita criatividade para
realizar os sonhos das pessoas que apreciam o entretenimento,
uma programação de alta qualidade e o descortinar de novos países e culturas diferentes ao redor do mundo. A cada ano que passa
aumenta o número de pessoas que estão aderindo a este tipo de
viagem e o turismo caminha para ser o mais rentável mercado na
indústria financeira em 2020. A viagem turística sempre encanta e
aguça a experiência daqueles que viajam.
Viajar é alargar as fronteiras, quer seja as geográficas, culturais ou as do conhecimento pessoal. É dar a oportunidade a si
mesmo, não somente de conhecer outras regiões, outras paisagens,
outras imagens. É sentir e experimentar novas dimensões existenciais, sensoriais e descobrir o novo, proposta desafiante e ame-
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drontadora, muitas vezes para quem não quer sair de uma zona de
conforto. É poder sentir novos cheiros, novas cores, novas configurações culturais que jamais imaginávamos que pudessem existir. É
reaprender a comparar outras tendências com as nossas e, constatar, o que pode enriquecer a nossa vida.
É poder ouvir o outro que pertence à uma cultura totalmente
diferente da nossa, cultura que para nós não passava de uma subcultura, mas que agora revela o quanto a nossa, na verdade, é que
é uma subcultura. É ser impactado com o desafio de reavaliar os
nossos paradigmas e realinhar as nossas rotas de vida. É constatar
o quanto míseros somos quando deixamos falsas pretensões embriagarem a nossa alma e fazer com que pensemos que somos detentores de algo a mais do que os outros; de que todos os demais
são pessoas inferiores a nós! As janelas da humildade e da simplicidade do outro derrubam inocentemente, sem pretensão alguma,
os nossos castelos de areia e revela-nos o quanto somos pobres de
alma!
Com a sua grande importância, existe a viagem histórica.
Durante os séculos XV e XVI, os europeus, principalmente portugueses e espanhóis, lançaram-se nos oceanos Pacífico, Índico e
Atlântico com dois objetivos principais: descobrir uma nova rota
marítima para as Índias e encontrar novas terras. Foi com este objetivo de descobrir “o novo” que Pedro Álvares Cabral chegou até
ao Brasil e ficou fazendo parte da história. Alguns dizem que ele
apenas chegou ao Brasil, outros que ele descobriu o Brasil. De
qualquer forma ele entrou para a história do Brasil por causa desta
viagem.
O Homem pretendeu conquistar o espaço, mas até agora a
marcha é lenta e os achados são poucos. Apesar de toda a tecnologia existente nos dias atuais, os navegadores de ontem conseguiram feitos maiores e mais representativos para toda a humanidade. Por que não retomar as viagens históricas, no intuito não de
colonizar, se apossar das riquezas alheias e dominar outros povos,
mas no sentido de aprender uns com os outros, levar soluções aos
problemas dos outros povos e poder servir para um ideal coletivo?
Será que estamos tão confusos que não conseguimos distinguir
entre a nossa insanidade e a sanidade? Por que isolarmo-nos em
nossa cultura se podemos interagir com outras? Por que pensar
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que já vemos tudo “quando na verdade, o Homem é uma só parte
e como uma só parte, ele vê apenas uma parte” (Dra.
Ruth Fulton Benedict, Antropóloga)? Somos apenas uma parte e
precisamos uns dos outros! Precisamos aprender a ver com os
olhos dos outros e somarmos as visões para enxergarmos mais e
melhor! Como dizem os africanos, “se alguém tem pressa, vá sozinho; mas se alguém quer chegar longe, vá acompanhado”. Esta é a
nossa necessidade, chegar longe e para tanto, precisamos ir acompanhados.
Finalmente, existe a viagem mental ou psicológica descrita
por Augusto Jorge Cury, psiquiatra, psicoterapeuta, escritor e cientista brasileiro. Ele escreve no livro “O Futuro da Humanidade”
que a maior aventura de um ser humano é viajar, e a maior viagem
que alguém pode empreender é para dentro de si mesmo. E o modo mais emocionante de realizá-la é ler um livro, pois um livro
revela que a vida é o maior de todos os livros, mas é pouco útil
para quem não souber ler nas entrelinhas e descobrir o que as palavras não disseram...
O que é viajar para dentro de si? Viajar para dentro de si é
buscar o autoconhecimento. É se conhecer! É saber quem é e não
ter dúvidas de sua própria identidade. É conhecer suas debilidades, suas fortalezas! É saber os seus limites e até onde se pode ir ou
não! Este caminho não é fácil! É desafiador! É duro! É impactante!
Mas, precisamos buscar o autoconhecimento para podermos transitar com precisão nos diversos caminhos que a vida nos oferece e
termos o discernimento de qual deles é o que mais se adequa à
nossa realidade!
O silêncio é uma das trilhas para o autoconhecimento. É
muito bom poder seguir no espaço que o silêncio proporciona
aqueles que o seguem. É no silêncio que escutamos a nossa alma,
percebemos as nossas emoções, prescrutamos a nossa mente e analisamos a nossa força volitiva. É no fantástico mergulho ao mundo
interior que conhecemos as nossas cavernas, nossas regiões escuras, nossos medos e receios, o que nos afronta e nos coage, para
que possamos alcançar a libertação de nossas amarras internas.
É entender o quanto nos respeitamos! Se zelamos por nossa
vida ou não! É descobrir o que precisamos fazer para respeitar a si
mesmo. É aprender a amar a si mesmo, pois só assim conseguire-
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mos amar ao outro. Mas, o que é amar a si mesmo? É ser egocêntrico? É pensar apenas em si mesmo? Não! Quando amamos a nós
mesmos, aprendemos também a amar o outro, até porque nós somos o outro do nosso próximo! Nesta correlação, aprendemos que
amar a si mesmo limita-se com o amar ao outro e vice-versa. Amar
a si mesmo é ver-se no outro e amar ao outro, é também ver-se a si
mesmo! Desta maneira, o eu mesmo limita-se com o próximo e ele
conosco! Autoconhecimento ajuda-nos a relacionarmo-nos melhor
com o outro!
Por onde você deseja viajar? Que tipo de “viagem” você gostaria de fazer? Uma boa opção é viajar prazerosamente através do
mundo encantador do turismo! Mundo que envolve diversão, descobertas, alegria e muita realização pessoal. No entanto, se gostaria
de descobrir uma nova rota na vida e fazer a viagem histórica e de
descobertas, é também uma boa opção e você pode adentrar nos
mares e descobrir coisas inusitadas através das águas. Entretanto,
se pensou no autoconhecimento vale a pena fazer a viagem para
dentro de você mesmo. Esta é a maior viagem que alguém pode
fazer na vida, pois não adianta alguém conhecer o mundo inteiro e
não conhecer a si mesmo! Esta, sem dúvida, é uma viagem fantástica para se realizar. Viaje bem e melhor. Viaje pela Ideia Editora
nos diversos livros que ela já publicou! Com esta editora você fará
a viagem certa que deixará marcos de profundas descobertas e
grandes alegrias que ficarão em sua memória para sempre.
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UM JOGO DE FUTEBOL INESQUECÍVEL
Carlos Alberto Jales
Aquele 16 de julho amanheceu chovendo. Mas eu nem queria saber como estava o tempo. Era domingo e o Brasil jogava à
tarde a partida final da Copa de 1950 contra o Uruguai. A festa
estava no ar. As rádios da minha cidade, Natal, tocavam músicas já
festejando a Taça. Era domingo e à saída da Igreja, ficamos conversando como seria a comemoração da vitória. Para completar, meu
pai aniversariava nesse dia, e os amigos viriam para o almoço,
enquanto esperávamos a hora do jogo. O locutor (chamava-se assim naquele tempo), da Rádio Nacional, a mais potente do Brasil,
repetia discursos de políticos, de candidatos à Presidência, chamando a seleção de campeã do mundo, dizendo que o universo se
curvaria à indiscutível qualidade do futebol brasileiro. Não me
lembro se o locutor era Jorge Cury ou Antonio Cordeiro, mas sei
que não se cansava de repetir o time do Brasil: Barbosa, Augusto e
Juvenal, Bauer, Danilo e Bigode. Friaça, Zizinho, Ademir, Jair e
Chico. Nada de esquemas, nada de 4-2-4, nada de líbero. Era apenas o Brasil, a seleção campeã do mundo por antecipação.
O retrospecto era impressionante: 4 x 0 no México, 2 x 0 na
Iugoslávia, 6 x 0 na Espanha, 7 x 0 na Suécia. Que importava o 2 x
2 contra o “ferrolho” da Suíça, no Pacaembu? Aquilo fora um acidente de percurso. A copa já era nossa e mostraria ao mundo o
maior Estádio do planeta, o Maracanã, construído em tempo recorde.
Naquele time, Ademir era meu ídolo. Na escola, quando minha classe jogava, eu dizia que jogava como o Ademir. No meu
time de futebol de botão, Ademir, o número 9, recebia um tratamento particular, pois eu o encerava com parafina. Na minha imaginação de menino, Ademir tudo podia, tudo resolvia e tinha certeza de aquele deus no campo de futebol arrasaria o Uruguai.
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16 | M a g n o N i c o l a u ( O r g . )
O jogo começa e nada de gol. Em torno do rádio, a minha
família, os amigos do meu pai, esperavam um gol do Brasil a cada
instante. Um amigo de escola havia me dito que num bolão de
apostas, colocara Brasil 9, Uruguai 0. Terminou o primeiro tempo e
a vitória já estava assegurada. Era só esperar. No início da etapa
final, Friaça faz 1x0 para o Brasil. Minha casa vira uma festa. Seu
Carmelo, amigo da família, faz um discurso emocionado. E pergunta: “Já imaginaram como o mundo vai admirar o Brasil?”
Aos 27 minutos, Schiaffino, um uruguaio com nome de italiano empata o jogo. Nada a temer. Com o empate, a Taça também é
nossa. Ninguém perde a alegria, mas se pressente que a goleada
não viria. Alguns minutos mais tarde, Giggia emudece o Brasil. O
locutor da Rádio Nacional tem a voz embargada. Diz que o Maracanã todo chora, mas que ninguém deixa o Estádio. O sofrimento
compartilhado é menos sofrimento. O jogo termina, o narrador
anuncia que jogadores uruguaios consolam jogadores brasileiros,
num gesto civilizado. Penso em Ademir. O que pensaria meu ídolo? Por que não se transformou no vento e empurrou a bola para o
centro da trave de Máspoli, goleiro do Uruguai? Por que meu deus
infalível virou um ser humano?
Lá fora, a chuva que havia amenizado durante o jogo, voltou
a cair com força. A festa de meu pai acabou em choro. Ninguém
quis jantar, o mundo parecia menor. Na minha cama, tentando
dormir, eu só pensava naquele jogo. Por que Deus pregava uma
peça daquela nos humanos? Por que Ele, tão bom, também criava
Giggia? Não consegui dormir. Aquela chuva, aquela festa, aquele
gol do Uruguai se misturavam na minha dor. Muitos anos depois,
li um livro de Paul Nissan, escritor francês, que começava assim:
“Eu tinha vinte e um anos. Não me venham dizer que essa é a mais
bela idade do homem!” E lembrando daquele 16 de julho de 1950
eu pude parafrasear Nissan e dizer: “eu tinha nove anos. Não me
venham dizer que essa é a mais bela idade do homem. Nessa idade
houve um jogo entre o Brasil e o Uruguai na minha vida”.
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Leituras Diversas: Crônicas, Ensaios e Contos
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DONA CHIQUINHA, WALT DISNEY
E JESUS CRISTO DESCENDO NA
AVENIDA DOM VITAL
Cláudio José Lopes Rodrigues
Alguém pode detestar os Estados Unidos, chegar ao ódio bíblico de um colega meu nos já remotos tempos dos cursos secundário e superior, quando ele era um vibrante líder estudantil e
vaticinava – qual um furibundo aiatolá ou um tragicômico, populista, surrealista, bolivariano, presidente da Venezuela, Hugo Chavez – a queda iminente do Capitalismo, sistema que, no rancor dos
seus contestadores, configurava-se como uma besta-fera nutrida
pelos norte-americanos, estes um bando de sacanas, pulhas, cafajestes, filhos da pátria e da puta...
Compreendo e perdoo os incandescentes vaticínios dos profetas cujos prognósticos o Tempo não abonou (ou, ao menos, ainda
não...). Mas, não remeto quem, por ideologia ou qualquer outra
razão, repudia a música norte-americana apenas por ser norteamericana. Detestar canções por conta da sua origem geográfica
(ou ideológica) é uma generalização insana e injusta, uma autêntica
porra-louquice.
A demonstração de insensibilidade e inconsequência se
avultava, naquela época, nomeadamente em relação a clássicos
populares que nos chegaram na voz de Frank Sinatra, Bing Crosby,
Pat Boone, Nat King Cole, Tony Bennett, Doris Day, Ella Fitzgerald, Sarah Vaughan e outras e outras feras advindas pelas ondas
das Rádio Tabajara (PRI-4) e Arapuan (a emissora do bom gosto...).
Ou nos chegavam também pela incipiente televisão, pelos modernos
LPs, pelas telas do Plaza e do Rex...
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18 | M a g n o N i c o l a u ( O r g . )
MISTURAR IDEOLOGIA COM MÚSICA É UMA
REQUINTADA (E REQUENTADA) TOLICE. A MÚSICA VALE
POR SI MESMA, INDEPENDENTEMENTE DAS BARBAS DE
FIDEL CASTRO, DA CARECA DE NIKITA KRUSCHEV, DA
BARBICHA DE VLADIMIR ILITCH LENIN OU DO BIGODE
DE JOSEF VISSARIONOVITCH STALIN. BEM COMO DA
ELEGÂNCIA E SINUOSIDADE DE JOHN F. KENNEDY QUE,
ENTRE OUTRAS PROEZAS (DIFÍCEIS?), LEVOU A
EXUBERANTE MARYLIN MONROE PARA A CAMA
(LEMBREMO-NOS DA LOIRÍSSIMA – MELOSA, SENSUAL,
ESCORRENDO PROGESTERONA PELA VOZ – CANTANDO,
QUASE GEMENDO, EM 19 DE MAIO DE 1962: HAPPY
BIRTHDAY TO YOU/ HAPPY BIRTHDAY TO YOU/ HAPPY
BIRTHDAY MR. PRESIDENT...).
Essas ideias revolveram o meu (in)consciente no Magic
Kingdom, um famoso parque de Orlando. Ao ouvir velhas composições internacionais, elas eclodiram no bestunto.
Sob o intenso mormaço do verão da Flórida, a Main Street
Philharmonic, afinadíssima banda do parque exibiu-se em admiráveis apresentações na Liberty Square. A performance da banda ensejaram-me aprazíveis lembranças infanto-juvenis. Emocionou-me,
sobremaneira, uma conhecidíssima peça de jazz, de natureza gospel, que se refere aos anjos (e santos) entrando no céu (When the
Saints go marchin' in), uma peça que, em cadência lenta, acompanha funerais (nomeadamente de negros).
A banda disneyana executou alguns hinos em ritmo marcial.
Dois me tocaram de forma particular. Um de louvor patriótico,
God bless America (Deus salve a América) – composto por Irving
Berlin em 1918 – considerado o hino não-oficial dos Estados Unidos. O outro hino, este de louvor religioso, foi o Battle Hymn
(número 112 do hinário Cantor Cristão). Composto por John William Steffe com letra de Julia Ward Howe, constitui-se um lídimo
representante da tradição espiritual judaico-cristã. Na versão de
Ricardo Pitrowsky, a mensagem do Novo Testamento – o amor ao
próximo menor apenas do que o amor a Deus – transparece luminosa na primeira estrofe:
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Leituras Diversas: Crônicas, Ensaios e Contos
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Já refulge a glória eterna de Jesus, o Rei dos reis;
Breve os reinos deste mundo seguirão as suas leis!
Os sinais da sua vinda mais se mostram cada vez.
Vencendo vem Jesus!
E no refrão:
Glória, glória! Aleluia!
Glória, glória! Aleluia!
Gloria, glória! Aleluia!
Vencendo vem Jesus!
A partir da segunda estrofe, porém, a pancada do bombo
muda, voltando-se para o furor do Antigo Testamento, os salmos
imprecatórios de David e as rabugices do impiedoso profeta Samuel:
O clarim que chama os crentes à batalha, já soou;
Cristo, à frente do seu povo, multidões já conquistou.
O inimigo, em retirada, Seu furor patenteou.
Vencendo vem Jesus!
O maniqueísmo entre o bem e o mal, os salvos e os condenados... A figura pacífica de Jesus – que veio ao mundo para salvar
e perdoar a todos, para dar-lhes vida plena, em abundância – surge no Battle Hymn na impiedosa versão Deus dos Exércitos, do fogo
eterno... Jesus, de infinito amor, absoluto poder e onisciência, perdendo criaturas Suas, excluídas do Seu povo, para o bando do catingoso rei das trevas...
Não foram, porém, essas ideias transcendentais e exegéticas
que me acorreram por conta da Main Street Philharmonic no calorento julho de 2011, no Magic Kingdom.
O Battle Hymn ali executado trouxe-me lembranças dos cultos batistas na casa da minha avó paterna, na Av. Dom Vital, no
Roger. Ainda menino – em 1957, aos 14 anos ainda se era considerado menino – deixamos de ser vizinho de Vosinha e do meu avô
Inácio (Painaço, como os netos o chamavam). E, por isso (ou por
falta de fé), fiquei afastado dos eventuais cultos protestantes. Mas,
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algo ficou em mim por conta deles. Eu não me comovia tanto (ou,
na verdade, quase nada) pela luta dos crentes contra as tentações
do maligno. Não memorizei nenhuma imprecaução deles contra o
tinhoso, atitude recorrente na fala de alguns pastores meio histéricos (ou histéricos e meio) que pulam, gritam, urram, suam, despenteiam-se furibundos e iracundos contra o pobre diabo do demônio (santa ingenuidade ou calculada matreirice dos pastores? –
alguns acusados de hábeis espertalhões desviadores do dinheiro
dos donativos).
O outro lado da moeda: também não me ficaram citações literais da adoração a Jesus Cristo, sempre louvado com muita circunspecção.
Não duvido que a austeridade seja respeitosa. Mas, o respeito estaria apenas na sisudez? Ela não traduziria, primordialmente,
medo de vingança (castigo...) divina? Quem sabe esta pergunta já
seria, em si mesma, mais uma insídia do fute... Por que os santos
católicos e o próprio Senhor são sempre representados como figuras tristes, sérias ou, no máximo, contemplativas? Não haverá sorriso, riso, risada ou gargalhada no céu? Afinal, nem todo riso é
deboche, mofa... (segundo Mark Twain, o céu não seria sítio para o
riso, para o humor, pois (o riso, o humor) derivam, direta ou indiretamente, da dor, da angústia, do patético ser humano...).
Convicta que a seriedade era pré-requisito ao louvor a Deus,
dona Chiquinha cuidava para que a sisudez prevalecesse durante
o culto na modesta sala de visitas do número 108, da Av. Dom
Vital, no bairro pessoense do Roger. O culto reunia grande parte
da sua família, incluindo-se alguns dos seus netos.
Mais de cinquenta anos depois daqueles cultos, Marquinho
(filho de Clodomiro, meu tio Miro), recordou uma prova desse
cuidado da nossa avó. Ela munia-se de um pesado chinelo que
escondia discretamente por trás da saia. Por uma ou outra razão –
o estrabismo de um crente, o tique nervoso de uma irmã, a voz
esganiçada de outra... sei lá o que – algum neto não resistia ao futucado do capeta e começava (ou ao menos insinuava através de
um olhar irreverente) um desrespeitoso quiquiqui... Dona Chiquinha – morena, gordinha, baixinha, feições bugres herdadas do seu
pai índio – em passos furtivos aproximava-se do atrevido...
SUMÁRIO
Leituras Diversas: Crônicas, Ensaios e Contos
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Glória, glória! Aleluia!
Glória, glória! Aleluia!
...vapt! – discreta e pesadamente seu chinelo/porrete incidia
sobre as canelas do insolente neto (Marquinho ou nosso primo
Felix, irmão de Tonho...).
Gloria, glória! Aleluia!
Vencendo vem Jesus!
Assim, com a ajuda do intolerante e prosélito chinelo de
Francisca Lopes da Silva (ou Lopes de Sousa, pois ela dispunha de
dois sobrenomes), a fé cristã era abonada e vencendo chegava Jesus ao humilde bairro do Roger.
A melodia do Battle Hymn preservou-se na minha memória.
Lembrei-me daquelas cenas da Av. Dom Vital ao ouvir o hino,
agora alegremente executado pela Main Street Philharmonic com
muito mais afinação e recursos do que os irmãos e irmãs (liderados
pelo pastor Firmino Silva) lá na casa de dona Chiquinha e seu marido, nosso avô, o ex-kardecista seu Inácio.
Os acordes da Main Street Philharmonic neutralizaram os desconfortos do abrasador verão da Flórida. Comuns aos parques
visitados, uma intensa insolação, temperatura de 40º centígrados
(agravados pela sensação térmica), a sede permanente mitigada
pelo constante consumo d’água. O calor do asfalto irradiava-se
pela sola dos sapatos. O cansaço afetando muita gente, da volumosa senhora sentada no meio-fio e encostada numa lixeira próxima
ao cinema – onde se exibia o Shrek 4-D da Universal Studios – aos
grupos de adolescentes brasileiros deitados na calçada à sombra de
árvores e no chão de restaurantes no Magic Kingdom.
No forno a céu aberto, entretanto, lembrando o conto O flautista de Hamelin, dos Irmãos Grimm, a Main Street Philharmonic conseguiu afugentar os incômodos. Contribuiu para demonstrar o
saldo positivo da incursão, apesar da aridez do clima e do cansaço
advindo das longas caminhadas.
SUMÁRIO
22 | M a g n o N i c o l a u ( O r g . )
ARIANO SUASSUNA X NIEMEYER
Evaldo Gonçalves
Ariano Suassuna, eminente conterrâneo, cujo reconhecimento intelectual ganhou dimensão internacional, - daí seu nome lembrado para o Prêmio Nobel de Literatura – transformou suas conferências em verdadeiros espetáculos de risos e bom-humor, graças à singeleza e à informalidade que empresta às suas narrativas
nessas ocasiões de auditório pleno.
Se em suas produções literárias, Ariano Suassuna se comporta com extrema maturidade literária e invejável fidelidade aos
tipos que descreve, sua presença nos grandes auditórios alcança
transcendências tais que unem corpo e alma numa transfiguração
que o torna cada vez mais autêntico, sem prejuízo do fulgor da
genialidade.
Nesta última estada na Paraíba, a convite da Academia Paraibana de Letras e da Procuradoria Geral do Estado, Ariano Suassuna ultrapassou, em termos de plateia, toda a imensurável dimensão e capacidade do Auditório da Estação Ciência, e seus entornos, a tal ponto que, mesmo já tendo falecido, Oscar Niemeyer
espera a primeira oportunidade para defender seu projeto e rever
seus cálculos, se for o caso, duvidando da multidão que acorreu à
última Conferência-Espetáculo protagonizada pelo Cavaleiro
Condecorado.
O imortal de Taperoá, sem querer polemizar com o célebre
Arquiteto, com muitas obras na Paraíba, ao saber da intenção de
Niemeyer, teria respondido: você me superou em tudo. Todavia,
na arte de fazer rir, estou cumprindo a missão sublime de levar
muita alegria e bom humor ao povo deste país.
Essa constatação não é só de quantos têm prestigiado seus
espetáculos culturais. É Ariano Suassuna, hoje, unanimidade nacional, e, segundo ele, de todos os seus desempenhos, o de que ele
mais gosta é de se comportar, no palco, como palhaço, num gesto
SUMÁRIO
Leituras Diversas: Crônicas, Ensaios e Contos
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de humildade, homenageando os queridos artistas dos circos populares, que frequentaram a nossa imaginação, e ainda o fazem,
concorrendo em igualdade de condição e tecnologia com os grandes e atuais veículos de lazer e comunicação.
Bem. Nisso estamos de pleno acordo. Todavia, quanto à discussão entre Ariano Suassuna e Oscar Niemeyer, é querela de gênios, e dela estou fora, dando por terminada esta minha despretensiosa participação em tão elevado debate.
SUMÁRIO
24 | M a g n o N i c o l a u ( O r g . )
AFONSO PEREIRA, UM EXEMPLO DE VIDA
Felix de Carvalho
Afonso Pereira, que faleceu no dia 09 de junho de 2008, era
conhecido e reverenciado como um homem de vasta cultura e profundo conhecimento, sobretudo nos campos da educação, da filosofia e do direito. Esta é uma dimensão de sua vida sobre a qual
não se pode colocar dúvida. Mas essa qualidade, por si só, não era
suficiente para projetá-lo no cenário paraibano. O que marcou,
verdadeiramente, a vida de Afonso Pereira foi o fato de ter colocado sua cultura e seus conhecimentos a serviço da sociedade. Com
forte disposição e grande desprendimento, nos anos de 1950, enfrentando dificuldades várias, adentrou o sertão da Paraíba e, à
frente da Fundação Padre Ibiapina, criou várias escolas em comunidades carentes. No início dos anos de 1960, foi um dos baluartes
na criação da Universidade Federal da Paraíba e, na década seguinte, foi um dos fundadores dos Institutos Paraibanos de Educação, hoje o consolidado e respeitado Centro Universitário de João
Pessoa – UNIPÊ.
Poucos sabem que o lema contido no brasão da Universidade Federal da Paraíba Sapientia aedificat (a sabedoria constrói) é
de autoria de Afonso Pereira. O conteúdo da frase muito se confunde com a trajetória do seu autor. Afinal, como educador, Afonso Pereira transmitiu aos seus milhares de alunos a sabedoria, no
sentido filosófico do termo, como conjunto de ensinamentos. Nesse
aspecto, foi educador no sentido mais profundo da palavra: aquele
que conduz, que retira da ignorância para o conhecimento. Portanto, no campo da cultura e da educação, o legado que Afonso Pereira nos deixa é imensurável.
Há, porém, uma dimensão na vida de Afonso Pereira conhecida apenas por seus amigos e familiares: o desapego aos bens
materiais e a consequente aproximação dos valores espirituais. E,
com isso, aproximou-se, em grande medida, do ideário expresso
SUMÁRIO
Leituras Diversas: Crônicas, Ensaios e Contos
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na conhecida oração de São Francisco. Foi instrumento de paz e
concórdia. Com seu elevado espírito de compreensão, recebia a
todos que o procuravam com um sorriso de satisfação e acolhimento. Suas palavras transmitiam paz e harmonia. Mesmo nos
momentos mais difíceis, tinha uma palavra de estímulo. Levava
esperança onde havia dúvida e luz onde havia sombra. Jamais se
afastou de valores como a verdade e a justiça.
Afonso Pereira foi solidário com o próximo. A quem o procurava fornecia algum tipo de auxílio, fosse uma ajuda material,
fosse uma orientação, fosse uma palavra de conforto e compreensão. Tinha o prazer de viver e estava sempre bem humorado. Nunca se queixou dos problemas físicos e fisiológicos naturais em um
homem com mais de noventa anos de idade. Pelo contrário, dizia
sempre que estava bem, que tal problema estava solucionado. Com
esse espírito, entrou no hospital, no dia 06 de junho do citado ano,
brincando com médicos e enfermeiras.
Sua capacidade de doação, seu amor ao próximo, sua simplicidade, sua alegria e bom humor levados até os últimos momentos da vida são lições que Afonso Pereira deixa para todos. Por
tudo isso, nós, seus amigos, imbuídos de grande fé, sabemos que
ele está na plenitude da vida espiritual. Sua morte nos deixou tristes. Mas, consola-nos repetir com São Francisco: “É morrendo que
se vive para a vida eterna”.
SUMÁRIO
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COISAS INUSITADAS DA VIDA
Josineide da Silva Bezerra
Hoje pela manhã, como de hábito, atualizava os e-mails e
organizava os trabalhos do dia. Como também é habitual, fui
àquele cafezinho sempre bem-vindo, em especial quando a gente
tem por dever de ofício ser professora – de fato, o café é um grande
companheiro. Na ida à cozinha, deparei-me com uma pia à espera
de ordem. Entretanto, mais que uma remissão aos afazeres da vida
doméstica, a pia me sugeriu, inusitadamente, outra imagem: lembrei-me da minha mãe, nascida nos idos do memorável ano de
1929 e falecida há pouco mais de uma década.
A cozinha sempre fez parte da nossa casa. Como se uma fosse extensão da outra. Daí que um desejo muito presente em minha
mãe me veio à lembrança: uma pia em granito. Tinha que ser em
granito. E ela conseguiu. Era verde ubatuba e de tamanho generoso, ideal para quem gosta do preparo da comida. Afinal, pia tem
mesmo que ser grande – bancada, como dizemos hoje em dia.
Neste curso, lembrei-me de que não participei dessa escolha.
Logo eu, que estive presente nas reformas que foram feitas na casa
de dona Maria da Paz e de seu Zé Pretinho, sob a batuta dos filhos,
depois de crescidos: a ampliação dos ambientes; a substituição do
piso cerâmico; a climatização do quarto do casal. Mas eu não estive
lá, naquele espaço sagrado para a minha mãe, que era a sua cozinha – com bancada em granito e cuba de inox. Nela, cotidianamente, preparava as refeições da família, e, mais ainda, exercia o prazer
em servir, oferecendo as suas comidinhas, mais salgadas do que
doces. Comidinhas, por licença poética: o picado de bode e a galinha à cabidela, com os auspícios da boa pimenta de cheiro, eram as
suas preferidas.
A grande questão, entretanto, não era esta. Vieram outras.
Perguntas do tipo: de quantos dos seus sonhos e desejos eu participei, de alguma forma? Que relação de proximidade eu construí
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Leituras Diversas: Crônicas, Ensaios e Contos
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com a minha mãe? O que eu partilhei com ela, como amiga? Esses
questionamentos, de pronto, me tocaram ainda mais porque não
tenho filhos. Assim, não será possível fazer o caminho de volta.
Melancolicamente, emergiu a lembrança de que eu não cheguei a cozinhar para a minha mãe. Sei que a dona da cozinha era
ela, mas sei que não rolou aquele empenho tão característico, digamos, dos gourmetidos, tal como me imagino. E Maria da Paz era
boa de boca. Topava tudo, principalmente o que não podia! Consolei-me pelo fato de que, na minha casa, a feitura da comida reproduz aquele prazer em servir, mesmo sem as habilidades da matriarca.
Infelizmente, porém, quando a minha casa chegou, já era
tarde. A minha mãe não a frequentou. Foram poucas e breves as
suas visitas. Em Miramar, na varanda do 10º andar, me recordo do
seu encanto com as luzes da cidade, vistas do alto, à noite. Acostumada com as margens do Jaguaribe, ao fitar o entorno do rio,
manifestou a sua surpresa com o tempo que passara. Aquele foi
um grande momento. Hoje, o tenho como um presente para a minha memória.
Ao voltar àquela imagem inusitada, permito-me sentenciar o
que é certo: não dá para passar pela vida sem ter cozinhado para a
mãe. Isso é pecado. Registre-se.
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UM AGRADÁVEL PASSEIO CULTURAL
Natércia Suassuna Dutra
No dia 05 de dezembro de 2008, saímos da capital da Paraíba
em direção à cidade de Campina Grande-PB: eu (Natércia), Marco
di Aurélio (cordelista, autor, ator e membro da ALANE-PB), com
sua mulher Roseli; Clotilde Tavares (escritora), Fernando Pintassilgo (músico) e Piedade Farias (Arquiteta - restauradora de bens
culturais). A viagem foi feita na Kombi de Marco di Aurélio.
No dia seguinte, em Campina Grande, fomos a um Sarau
Poético no Café & Poesia, de propriedade de Luiz e Raquel, que há
mais de seis anos vem funcionando regularmente, nos primeiros
sábados de cada mês, na Rua Treze de Maio, 41, Centro da cidade.
É um local pequeno, mas muito agradável. É aberto ao público e
tem uma boa freqüência de poetas, escritores, artistas, da nossa
Paraíba e dos Estados de outras regiões do Brasil, principalmente
daqui do Nordeste. Muitos escritores têm feito lançamento dos
seus livros neste aplausível local. Finalmente, o Café & Poesia é
aberto a todas as pessoas que gostam e que querem preservar a
cultura, principalmente a do nosso querido Nordeste.
Essa noite foi muito movimentada. Foram apresentados pelos Mestres de Cerimônia, poetas Pedro Paulo e Rochelle, entre
outros, os poetas: Chicão de Bodoncongó (também músico); Chico
de Assis, Rui Vieira, Joelson Miranda, Rochelle Melo, Martinho
Pereira; e a cantora e compositora Ana Célia (de Iguatu-CE). Esse
agradabilíssimo sarau foi finalizado com a apresentação do cordelista Marco di Aurélio recitando os seus versos, com fundo musical
ao som do Marimbau, executado pelo excelente músico Fernando
Pintassilgo.
Para quem não conhece o Marimbau: é uma mistura de marimba e berimbau, réplica estilizada do berimbau de lata. Este instrumento foi idealizado e batizado com este nome pelo escritor
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Leituras Diversas: Crônicas, Ensaios e Contos
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paraibano Ariano Suassuna. Faz parte da Orquestra Armorial de
Pernambuco.
De Campina Grande seguimos para São João do Cariri, cidade cujos habitantes gostam de usar o nome primitivo: Vila Real
de São João do Cariri. Era um dia ensolarado, um céu azul com nuvens brancas parecendo plumas de algodão. Como diz a escritora
Clotilde Tavares: parece que o céu está cheio de ‘carneirinhos’. Estas
nuvens só têm esse formato no Cariri. Discordo da amiga Clotilde. O
céu do meu Sertão é tão bonito e, as vezes, também se enche de
‘carneirinhos’, com a mesma beleza do céu do Cariri. Alíás, toda
Região Nordeste é muito bonita.
Lá, na Vila Real de São João do Cariri participamos das festividades do 3º aniversário do Instituto Histórico e Geográfico do Cariri Paraibano, que teve como principal homenageado o animador
cultural Balduino Lélis. O Presidente do IHGC, Daniel Duarte Pereira, comandou uma extensa programação que se estendeu das 9
horas da manhã às 14 horas. Começando com uma visita ao prédio
do Instituto que funciona em sede própria, no Casarão dos Árabes,
no centro da cidade, onde já se encontravam diversas comitivas.
Foi servido um lauto café da manhã com frutas e comidas típicas
da região.
Desde cedo a banda de música da cidade, composta de homens e mulheres, já brindava os visitantes com belos dobrados.
Saímos do Instituto para o Museu. Ficamos surpresos com a
quantidade de objetos antigos doados pelo povo do Cariri: louças,
oratórios, poltronas, sofás, camas, máquinas de costura (manuais),
peças de montaria, fotografias antigas com molduras originais; e
muitas outras coisas. Uma riqueza.
Durante o evento, apresentaram-se: a Philarmônica Nossa
Senhora dos Milagres, Grupo Infantil de Flautas “Meu Cariri”;
Coral “É Sabiá”, da cidade de São João do Cariri; e o “Grupo de
Teatro Popular” de Poço de Pedras, representando peças com textos improvisados, tendo fundo musical com músicas nordestinas
executadas por um conjunto composto de sanfona, zabumba e
triângulo. Todo muito bom e interessante.
O melhor de tudo isso foi o percurso entre o Instituto e o local do evento. A Banda de Música tocando a música “A Praça”, de
Chico Buarque de Holanda, o povo, a pé, acompanhando, e das
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30 | M a g n o N i c o l a u ( O r g . )
janelas das casas as pessoas “olhando a Banda passar”. Somente
quem viveu estes momentos autênticos das cidades do interior
pode avaliar a emoção que senti naquele momento.
Veio-me a lembrança da minha infância na minha querida
terra natal, Catolé do Rocha-PB, acompanhada do meu pai, Natércio Dutra de Medeiros, de saudosa memória, assistindo aquele
maravilhoso espetáculo, tanto nas festas cívicas como nas religiosas. Nas festividades religiosas, a Banda de Música tocava todas as
noites em um coreto ao lado da igreja (infelizmente esse coreto foi
demolido).
Senti saudade também do que não cheguei a ver, mas que
ouvi contar e que também tomei conhecimento através de relatórios que li. Ouvindo aqueles dobrados fiquei a pensar no meu bisavô, Antônio Gomes de Arruda Barreto, professor dos Sertões da
Paraíba e do Rio Grande do Norte, que usava esse mesmo método
quando inaugurava um colégio ou quando festejava os seus aniversários (do colégio). O colégio do Professor era o “Sete de Setembro”, o primeiro, inaugurado no dia 7 de setembro de 1897, em
Brejo do Cruz, na Paraíba; transferido, em 1900, com o mesmo
nome para Mossoró, no Rio Grande do Norte. Aí se vê o patriotismo do professor Antônio Gomes. Nesse dia, quando se festeja a
Independência do Brasil, o povo era acordado ao som de dobrados
executados pela Banda de Música que percorria as ruas da cidade.
Os habitantes saíam das suas casas para acompanhar a Banda. O
percurso terminava em frente ao Colégio Sete de Setembro, onde a
Bandeira Nacional era hasteada enquanto o Hino Nacional era
executado.
Todos esses momentos vieram à minha imaginação provocando uma emoção incontida, chegando até às lágrimas. Foram
para mim, momentos inesquecíveis.
Além de viver esses instantes maravilhosos, ainda tive a alegria de ser agraciada com o título de Sócio Honorário do Instituto
Histórico e Geográfico do Cariri Paraibano, o que muito me honrou.
Voltei para casa feliz, cheia de lembranças boas da minha infância, já tão distante.
Agradeço esses momentos, parabenizando a Villa Real de
São João do Cariri e abraçando o seu povo.
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Leituras Diversas: Crônicas, Ensaios e Contos
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SOB O SOL
Onaldo Queiroga
O Sol lentamente se despedia, dando a entender que não desejava partir. Presciente, caminhava cabisbaixo e morosamente.
Parecia relutante. Era como se temesse que a escuridão invadisse
de vez a Terra. Seu olhar, como se derradeiro, fitou então desoladamente a insanidade dos poderosos. Presenciou o fogo queimando sem dó, bosques e florestas inteiras. Viu árvores imensas quedarem-se ao ruído demolidor das serras-elétricas. Olhou para os
rios onde peixes boiavam mortos em meio a pneus velhos, garrafas
plásticas vazias, pedaços de bonecas, restos de material hospitalar
e uma sinistra espuma branca, que cadenciava o ritmo da degradante poluição criada pelo homem.
Mas, nesse dia, o Sol, ainda visível no poente, insistia em não
querer ir embora. Resolveu, então, ampliar seu olhar sobre a Terra.
Viu a maré avançar, engolindo as praias, seus coqueirais, barracas,
ranchinhos de palhas. Viu as águas levarem redes, lendas e ilusões
dos pescadores. Viu também tsunamis avassaladores destruindo
ilhas paradisíacas, transformando-as em verdadeiros cenários de
horror. Percebeu que um urso polar rugia intensamente, pedindo
socorro. E só aí enxergou que as geleiras não eram mais as mesmas. O pobre animal, em pesadelo, pressentia ansiosamente o seu
fim.
O astro-rei, com um semblante triste, resolveu partir. Foi então que ouviu gritos intensos, choros dramáticos e intermináveis.
Mais uma vez, voltou o olhar para o velho e cansado dia. E aí viu
homens bombas explodindo, levando consigo inocentes criaturas,
irmãos que, em segundos, formavam poeiras recheadas de carne
humana. Viu milhões de dólares desfilando nas águas dos oceanos. Eram submarinos nucleares, porta-aviões e, neles, milhares de
soldados fardados e bem alimentados, prontos para, em nome da
paz, sem piedade, promoverem a exterminação de povos. Era co-
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32 | M a g n o N i c o l a u ( O r g . )
mo se fizessem parte integrante de um jogo de guerra. Sim, virtualmente brincavam de fazer guerra.
Mas Sua Majestade, o Sol, presenciava ainda o nefasto crime
organizado se posicionar, como se aguardando, contando os minutos, a chegada da escuridão da noite, sempre pronto para fazer
valer suas pedras de crack, a maconha, o ecstasy, o GHB, a cocaína
e a impiedosa merla. Nesse momento percebeu crianças, jovens e
adultos perdidos num caminho que, na grande maioria das vezes,
apresenta-se como sem volta. Viu também a corrupção, que esperava sua partida para, na escuridão, esconder sua face de depravação, perversão, suborno, peita.
Nesse instante, o Sol, desvanecido, quis se entregar. Foi então que viu a branca Lua, que surgia cheia de luz, esplendorosa.
Teve, então, a certeza de que aquela noite não seria tão escura. O
Sol levantou sua luz e seguiu o rotineiro destino, consigo levando
o pensamento de que as dores sentidas durante o dia, quem sabe,
poderiam fazer com que o homem, no seu descanso noturno, compreendesse que “não basta sofrer; é preciso aproveitar o concurso
da dor, convertendo-a em roteiro de luz” (Emmanuel).
Se cada um de nós fizer sua parte para recompor a natureza
e estender a mão à solidariedade, o Mundo poderá ser bem melhor. É como nos ensinava Chico Xavier: “O exemplo é uma força
que repercute, de maneira imediata, longe ou perto de nós [...] Não
podemos nos responsabilizar pelo que os outros fazem de suas
vidas; cada qual é livre para fazer o que quer de si mesmo; mas
não podemos negar que nossas atitudes inspiram atitudes, seja
para o bem, quanto para o mal.” Assim, façamos o bem.
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Leituras Diversas: Crônicas, Ensaios e Contos
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NESTA RUA TINHA UM BOSQUE
Piedade Farias
Imenso e verde. Mais que de imenso, mais que de verde, tinha de mistério o bosque onde morava o anjo. Chamava-se Solidão? Não sei. Hoje sei que o bosque era a última chácara, a que
sobrara entre tantas que habitaram o centro desta cidade. Dentro
do bosque o anjo: o antigo casarão da chácara.
Na minha lembrança do início da década de 1970, o casarão
estava ali, firme; embora já mostrasse sinais de que o tempo estava
passando. Sabia-se de outra época e mesmo assim ia vivendo, qual
discreta senhora em seu silêncio. Muito me atraía o seu silêncio e
os seus ares de tempo passado. De joia rara, pedra preciosa do
Bairro de Tambiá. Incrustado na esquina da Rua Monsenhor Walfredo Leal com a Rua Princesa Isabel, em meio a tanta árvore...
Tanta árvore havia e de tanto se afastar, tomava completamente o
maior quarteirão da Rua Princesa Isabel.
Por muitas vezes o casarão me pareceu pequeno, metido
naquela vastidão de árvores com copas estendidas sobre o muro
alto. Inúmeras eram as mangueiras, jaqueiras, pitombeiras, goiabeiras, pés de caju e de jenipapo, até fruta-pão havia além de uma
imensa castanhola, de tronco tão largo que assustava; cuja raiz,
com uma força incomum, transpassava o muro, levantando-o, para
ir deitar-se na calçada.
O velho muro da Chácara chegava até perto da esquina, aliando-se, daí por diante, ao gradil com recortes arqueados trabalhados em ferro, que lhe dava continuidade, seguindo seu trajeto
pela Rua Monsenhor Walfredo Leal, guarnecendo o casarão que,
com os casarões vizinhos, compunha o imponente cenário que,
desde tenra idade, ficou definitivamente fazendo parte de minha
vida.
Eu o olhava demoradamente. Sentia o cheiro doce de frutas.
Nenhuma cantiga seria mais bela que aquela vinda dos bem-te-vis
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da Chácara quando amanhecia! Como era boa aquela paz de sítio
em contradição com o movimento intenso do trânsito na rua!
Quanta dignidade havia no apelo impassível do casarão! Dignidade sofrida. Quanta dor em seu grito silencioso de resistência.
Dava para se ver que havia sido pintado de amarelo um dia,
embora pouco reboco lhe restasse, deixando a mostra os grossos
tijolos maciços e vermelhos. A aparência de abandono emprestavalhe aquele ar sombrio, de um mistério profundo, ensimesmado. A
única janela do sótão consolidava essa impressão. Era uma janela
em madeira densa e fechada, onde muitas vezes debrucei a imaginação.
Deixava o olhar adentrar o gradil, subir pelos batentes até a
varanda e caminhar ao seu redor, acompanhando o coro desolador
das cigarras que se alinhava à algazarra dos meninos na saída da
escola.
O casarão viveria alheio à movimentação da rua, não fosse a
presença de Seu Severino, o caseiro magro e vermelho que vivia ali
com sua família, tirando o seu sustento desse trabalho e de um
pequeno fiteiro postado junto ao gradil, em posição estratégica
para a venda de bombons aos alunos do Colégio Estadual de Tambiá. Da vida de Seu Severino, só lembro o dia em que, demitido de
seu posto, saiu cabisbaixo puxando o fiteiro, a mulher, o cachorro e
os filhos que iam agarrados uns aos outros, sem saber onde iam ter
paradeiro.
Quando não havia mais Seu Severino, o casarão permaneceu por mais de dez anos abandonado, afundando-se no mato que
crescia em volta, invadido às vezes por meninos que disputavam
seus frutos. Assistiu ao crime do menino sob suas árvores, viu
quando o outro puxou a faca. Contam que foi por causa de uma
manga aquela briga no meio da tarde. Veio a polícia e o casarão
apinhou-se de gente, em seguida vieram os técnicos do Instituto
Médico Legal. Demoraram lá dentro e quando saíram levaram o
pequeno corpo com o caldo de manga escorrendo da boca, misturando-se ao sangue.
Indiferente ao abandono, o casarão não perdia a altivez. O
sótão continuava guardando seus mistérios, lagartixas fazendo
festas, saguis pulando nos galhos, e a cantoria dos bem-te-vis e
cigarras, que eram muitas.
SUMÁRIO
Leituras Diversas: Crônicas, Ensaios e Contos
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Um dia bosque e anjo foram abatidos. Nunca mais mistérios; nunca mais bem-te-vis. Sótão e chácara. Nunca mais. Em meio
aos destroços daquela demolição indevida, um armador enferrujado e preso a um fragmento de reboco lembrava que ali fora um lar,
com uma rede armada no conforto de um cantinho que permitisse
o descanso ao frescor da brisa e do canto harmonioso dos pássaros.
Com a derrubada da casa e das árvores ficou o terreno quase vazio, restando, aqui e acolá, uma mangueira.
Hoje, quem passa por essa rua - antiga Rua do Tambiá – vê
erguido em seu lugar, a sede da TV Cabo Branco e do Jornal da
Paraíba, onde uma ou outra mangueira reproduz a sua imagem na
vidraça espelhada da fachada moderna.
Era uma vez.
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CASUALIDADE OU
ENGAJAMENTO EM VANDRÉ??
Ricardo Anísio
Não se assustem! Não se decepcionem! Geraldo Vandré não
admite que tenha sido um compositor de músicas de protesto e
nem aceita que sua obra seja catalogada como tal. “Eu compus
música brasileira, sem nada que tivesse sido direcionada para criticar o sistema político vigente em minha pátria na década de 1960”,
afirma categoricamente o controverso artista paraibano.
Crer ou não crer em Vandré, eis a questão. Durante a minha convivência com o co-autor de “Porta Estandarte”, sinceramente, fiquei sem a devida convicção tanto do sim como do não. E
por que eu me deparei com essas tantas interrogações?
Entre um prato de maxixe e outro, Geraldo se apresentara
como um gentleman, um cidadão normal embora nada comum. E
uma coisa que me levou definitivamente a pensar que ele oscilava
entre momentos lúcidos e outros completamente dignos do Poeta
do
Absurdo criado pelo grandioso Orlando Tejo.
Na verdade, cada vez que mais me embrenho na(s) histórias
“vandrenianas” mais me inquieto e me incomodo. A excentricidade tem limites. Agredir fisicamente Gal Costa fazem-me um mal
horrendo porque eu queria curar Geraldo de todas essas contradições e lendas. Claro que quase nada é lenda, e isso o torna ainda
mais enigmático.
A leitura de um livro sobre a vida ou a arte de Geraldo
com certeza vai requerer do leitor menos avisado um exercício
homérico para ver acirrado o duelo do homem contra o mito.
Mesmo que caótica e claustrofóbica a tarefa nos leva para extremos. Vandré tanto nos encanta quanto aporrinha (não encontrei
expressão mais próxima); e esse dualismo é perfeitamente compa-
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Leituras Diversas: Crônicas, Ensaios e Contos
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tível com a forma que utiliza em suas falas e nos seus olhares perdidos. Porque ele, Vandré, não faz a menor questão de que o cataloguem como louco, como gênio, ou como um homem engajado
que adotou marinha e aeronáutica para seus espaços de confinamento.
Um artista que se imortalizou pela marcha bélico-sonora de
um artista que fala dos “soldados armados, amados ou não” não
teria direito a se “suicidar” artística e ideologicamente? Eu acho
que ele pode tudo, desde que exprima sua obsessão mela militarização de seu comportamento militaresco ainda que fora dos quartéis.
Á Geraldo Pedrosa tudo é concebido e decifrado. Mas, e ao
Geraldo Vandré? Será que essas licenças poéticas podem caminhar
enquanto ele silencia. O caos aflora como se à ele, Geraldo, o mundo não fizesse mais sentido; muito menos a música popular. Isso o
levou a compor umas peças para piano e imaginar que sua formação musical lhe desse cabedal suficiente para elevarmo-lho ao panteão dos gênios aos quais tudo é perdoado.
Mas, admiração à parte, ele não encontrará “exílio cultural”
pelo teor (e nem pelo valor) dos quatro discos que gravou. Mesmo
sendo eles discos muito fortes, não têm a “nitroglicerina” que milhões de pessoas sonharam um dia escutar; fosse através marcha
de guerrilha, fosse no lirismo ferino (sic) que respingou do alto dos
holofotes dos festivais.
Honremos a provocação estética e filosófica do cidadão Geraldo tanto quanto do artista Geraldo. O diferencial na obra de
Vandré é que sua discografia transpôs e “evangelização” da música pura e ácida para adubar os objetivos do Vandré. De certa forma eles não são uma mesma única pessoa. Eles são realmente dois
em um. Cada um com suas pesquisas estéticas. E que o juízo me
perdoe, amém!
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DESEJOS DE SÍLFIDE
Rubens Elias da Silva
A Ana Carolina Abiahy, pela franca amizade.
Plic! Plic! Plic! A torneira foi aberta enquanto eu cantarolava
um verso desajeitado de Lupicínio Rodrigues, imaginando coisas
pegajosas, viscerais, gelatinosas; absurdas e incongruentes. Fechei
a densa e metálica torneira, dei uma risada e pus-me a cantarolar
novamente enquanto a banheira do apartamento era preenchida
pelo líquido aquático. Dobrei a toalha felpuda, duas vezes, três,
aliás, tentando encontrar a perfeição em cada têxtil vinco. Entrei na
banheira ovalada, irritantemente limpa, água plácida no interior
esperando, ansiando minha sede epitelial. Olhei ao redor. Inimitável redor. Os azulejos todos bem afilados, formando cruzes,
encontros e poucos, muitos poucos desvios. Contei azulejo por
azulejo com a paciência de um monge budista. Uma gota despencou – sem avisar! – desesperada da torneira e mergulhou na
banheira: plic! Assustei-me: de repente, uma pequena marulha
circular se formou, independentemente de minha vontade e medo;
outras sucessivamente se formaram, ondas ondas e ondas foram se
propagando pelo infinito de minha limitada banheira.
Como a poeira que esbate na implacável montanha, as ondas
foram sendo vencidas pela borda elipsoidal da banheira, impedidas de alcançarem o mar, seu irrevogável pai que eternamente as
espera. Daí, elas voltaram em sentido contrário, com menos força e
mais, muito mais ira por conta do desejo materialmente frustrado
pelo objeto-banheira. Eu podia imaginar botes invisíveis e invencíveis ultrapassando essas terríveis ondículas; eles, os botes, como
náufragos desesperançados, anseiam encontrar terra firme – ilusoriamente – na minha doméstica banheira. Creia-se, pois, que na
minha banheira, qualquer tentativa de satisfação ou pertencimento
são sumariamente aniquilados; nem mesmo a água que compõe a
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Leituras Diversas: Crônicas, Ensaios e Contos
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essência da banheira tem privilégios: o ralo será impiedosamente
seu destino.
Começo meu gestual particular: tiro a bermuda de algodão
roto, a cueca sem marcas e modas, desalojo o calor e o cansaço.
Lavo os pés, calejados, observo as minhas unhas, removo as
cutículas e vagarosamente vou adentrando no continente água.
Devagar, meu corpo vai se tornando parte una da essência H²0,
respiro lentamente para que a imensidão da água perpasse meus
pensamentos e entro em vertigem. Fico totalmente submerso qual
água viva: ser marítimo tornado sou. Sinto o aroma líquido, meus
olhos poucamente conseguem enxergar, os cabelos rapidamente
representam uma dança ritmicamente animada; algas capilares
tornaram-se, então. O vai e vem da água, a dança dos cabelos e, de
leve, sinto escamas rasgarem a minha epiderme em sua necessidade ictiológica; guelras valentes e pontudas apossam-se do meu
pescoço, num processo de aniquilamento e inquilinato cujo
estranho e estranhamento passam a ser eu. Maritimamente eu.
Passo a ser delgadamente íntimo da água: ela entra pelos poros,
olhos, ouvidos, cabelos, nariz, escamas, guelras e outros orifícios.
Então, ela vai surrupiante entrando nos meus ouvidos, recitando
versos que agora são piscosamente inteligíveis:
“vem, não te deixas dominar,
Vem, não te permitas recuar,
És onda, és vaga, és imensidão,
Não há por que ter medo,
O medo só habita onde não há imaginação”
Senti a banheira trepidar, mansa e intolerantemente; chego a
tombar. Aos poucos sinto-a despedaçar numa miríade de cacos,
num momento de destruição e formação do mundo: fúria oceânica.
Porém, nada foi destruído. Águas calmas, águas escuras, águas de
amplidão: tornei-me um peixe escamoso que nada impávido num
e pelo oceano de solidão e plena liquidez. Subo, desço, aumento a
velocidade, reduzo-a, brinco exaustivamente com as possibilidades
náuticas que as nadadeiras me dão. Perscruto grutas, lagos,
sonhos, mortos náufragos, desenho sílfides, desbravo embarcações
fantasmas eivadas de dor e morte salgada. Tento fugir, corro por
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dentro de corredeiras e ondas famintas, quero e tento voltar para o
continente terrestre. Saudade sinto da terra segura, mas torno-me
vítima de meu delírio equestre aquático. Encontro-me com deusas
aladas marítimas, com vestes longas e sem fim, cabelos desenhados como algas, olhos doces, porém salobres. Rogo a elas para me
devolverem a minha pacata banheira; desespero me bateu como
alerta de nunca mais voltar.
Por um instante, sou reconduzido para outra dimensão, não
sei ao certo, e milhares e milhares de cacos se reúnem e tenho
devolvida a minha diminuta banheira, parte do oceano, entretanto.
As escamas começam a se movimentar para cima e para baixo e
sinto lentamente elas voltarem ao seu espaço original; as guelras,
viçosas e avermelhadas, agitam-se com tanta paixão oceânica, que
mancham delicadamente a água de sangue! Depois de longas
horas submerso, volto à tona da água represada pela banheira:
vejo o teto, esbranquiçado, sabonetes de marcas tipos e cheiros,
xampus coloridos, escovas novas e velhas (de antigos amores),
pastas de dentes, toalha e uma luz acesa pendurada, insuficientemente acesa, dá para o corredor. A água permanece límpida e
não produz uma onda ou vibração sequer. Toco precavidamente
meu cabelo e noto que deixaram de ser algas. Nesse momento não
sei mais separar sanidade de loucura netúnica. Saio da banheira,
piso no tapete, enxugo o corpo parte por parte, ainda em êxtase
pela viagem haliêutica que cumpri. Olho rapidamente para todos
os lados e me visto. Ao sair do banheiro, esqueço de apagar a luz.
Dirijo-me ao interruptor e, apavorado, percebo que há ao lado da
banheira uma concha do mar, ainda molhada, daquelas bem
grandes...
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Leituras Diversas: Crônicas, Ensaios e Contos
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A CIDADE JARDIM
Ruy Florentino
Uma cidade linda na opinião de todos que visitam: João Pessoa. Eu que o diga. Vivi nesta cidade antiga nos longínquos anos
de 30 e 40, brincando pelas calçadas e ruas da velha cidade. Carros
não existiam e somente os bondes elétricos alegravam, soltando
aqui e ali seus raios de luz violeta que se soltavam no raspar da
lança nos fios elétricos. O “motorneiro” aliviava a marcha para
algum passageiro habilidoso que conseguia “amorcegar” o veículo
ainda em movimento.
A rapaziada conduzida nos estribos laterais disputava um
palmo de tábua para apoiar um pé, com uma mão agarrada na
haste de metal amarela, que servia de corrimão vertical, e o “condutor” que cobrava as passagens fazendo mil malabarismos no
exercício da penosa profissão. Os passageiros mais malandros pulavam de um lado para outro do bonde, procurando escapar do
pagamento. As notas amassadas e dobradas ao comprido entre os
dedos do cobrador e um alforje cheio de moedas a tiracolo pendia
do ombro do cobrador. Eram recebidos os famosos “passes de
bonde” que de tão acreditados eram também aceitos nos pagamentos dos ingressos do cinema.
O fiscal, de pé na retaguarda, registrava o acesso e desembarque de passageiros acionando com uma correia de couro o maquinismo da máquina que existia nos fundos do veículo. O motorneiro batia com o pé na campa chamando a atenção dos que viajavam nos estribos do lado de fora: “Cuidado”. Desacelerava a velocidade do bonde acionando uma alavanca no sentido contrário aos
ponteiros do relógio e girava uma roda comandando o freio de
mão. Um automóvel estava estacionado junto à calçada! De quem
seria esse carro? No meu tempo de criança só havia dois carros em
João Pessoa. Estarei exagerando? Isso eu não sei, porém lembro
somente do carro do Dr. João Soares e o de Dr. João Medeiros que
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eram os dois pediatras da cidade. E o “tim-tam” das campas do
bonde alegravam as ruas.
A Rua Maciel Pinheiro era tão estreita que não permitia o estacionamento do carro do Dr. João Medeiros, pois impediria a passagem do bonde. Outra rua estreitíssima era a Visconde de Pelotas.
Ambas foram alargadas muitos anos depois. O bonde que saísse
do Ponto de Cem Réis em direção ao Tambiá teria que estacionar
um pouco, para dar passagem ao outro carril que viesse em sentido contrário, pois a rua, no trecho, só comportava uma linha de
trilhos, portanto um bonde de cada vez.
O comércio mais “chic” ficava na Maciel Pinheiro, e os jornais anunciavam que a loja tal “avisa aos seus estimados fregueses
que acaba de receber grande sortimento de artigos para a Festa das
Neves...” E aí incluía-se até casacos de pele para as senhoras e senhoritas enfrentarem o frio nas noites da festa nas calçadas da Rua
General Osório, chamada de Rua Nova. O seu José Lauria, o italiano da Casa Vesúvio, quando procurei preveni-lo de que o comércio começara a “subir” e que seria conveniente procurar acompanhar a novidade, ele dizia que em Londres havia lojas com mais de
400 anos no mesmo endereço...
Tal não aconteceu por aqui. Se a praia do Cabo Branco é a
maravilha que é hoje, coitada da cidade velha. Casarões em ruínas
nas ladeiras da cidade baixa, na Duque de Caxias, Tambiá ou Trincheiras. Tudo em ruínas. João Pessoa mudou de endereço. Na década de 40 eu brincava na praça Dom Adauto, olhava os macacos
da Bica todos os domingos e ia aos cinemas. Em matéria de cinema
houve muitos nessa época: o Rex, o Plaza, o Municipal, o Santa
Rosa, o Brasil, o Felipeia, o Astória, o S. Pedro, o Jaguaribe, o Santo
Antonio, o São José, o Globo, o Metrópole, o Glória de Cruz das
Armas. Muitos anos depois apareceu o Tambaú, no prédio do famoso hotel. Ir ao cinema era como hoje se vê a TV. Havia até mesmo a sessão das moças no Rex, com dois filmes pelo preço de um.
Aos domingos era infalível assistir ao seriado. Meu pai e seus
amigos só iam ao cinema assistir aos jornais ou ver as comédias de
O Gordo e o Magro, Carlitos, Boca Larga e, mais tarde, às deliciosas chanchadas da Atlântida. No auge do filme de faroeste, no
maior perigo para o mocinho, aparecia a legenda: “Voltem na pró-
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xima semana para assistirem à continuação deste empolgante seriado”.
Que diferença dos cinemas de hoje em dia onde os meninos
entram com um pacote enorme de pipocas e um garrafão de CocaCola e refestelam-se em confortáveis poltronas. No meu tempo, a
rapaziada ia mesmo era jogar volley na Bica. A rede de um, a bola
de outro, passava-se toda a tarde na brincadeira sem nenhuma
vontade de vencer a partida. O ideal era ver a bola no ar o mais
tempo possível sem tocar no chão. Quando escurecia dentro da
mata, íamos lavar os pés na famosa bica do parque.
Ninguém usava transporte para se locomover. Bondes só para onde o trilho os levassem. Carros de aluguel, ou “carros de praça”, como eram chamados, eram muito caros para o povo. Ia-se a
pé. E ninguém faria a tolice de reclamar. Era o costume. No centro
do Ponto de Cem Réis ficavam os autos estacionados cercando o
famoso relógio, o mesmo que hoje está no alto do prédio do antigo
Paraíba Hotel. Os postes da iluminação pública eram tubos de
ferro de diversos calibres. E na praça de carros de aluguel havia
caixas de ferro fixadas aos postes contendo o telefone de um afortunado dono de carro de aluguel, com o número de três dígitos
pintado na tampa.
Por falar em telefone, é de admirar o uso intensivo dos chamados celulares de hoje em dia, porque naqueles tempos só os
ricos ou os estabelecimentos mais importantes possuíam telefone.
Fixados na parede do prédio, na melhor dependência da casa, ficava o vistoso telefone, feito em móvel de madeira, um pequeno
tablado para se permitir escrever, bocal fixo para se falar e receptor
móvel para se levar ao ouvido com a mão esquerda. Com a mão
direita acionava-se um veio, fazendo soar a campainha. O som da
campainha despertava a telefonista na empresa telefônica, a qual
completaria a ligação para o terminal desejado.
Constava do inventário da pessoa falecida o arrolamento
desse patrimônio. E muitas pessoas compravam uma linha só para
especulação. E estou me lembrando do telefone do Elite Bar, o restaurante tradicional de Tambaú, que servia a famosa sopa de cabeça de peixe. A distância para a praia era tanta que havia uma pracinha com coreto, depois da pracinha um prédio da cooperativa de
pescadores e depois ainda um ringue de patinação antes de se
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chegar ao mar. Ir a Tambaú era uma viagem para se fazer uma vez
por ano. Uma ocasião comentei com o Dr. Ávila Lins, que era médico do Banco do Brasil, como o povo era tolo em não aproveitar o
passeio a Tambaú todos os dias, ao que ele me indagou: - “E como
você acha que se podia ir? ”...Foi quando eu fiquei sabendo que era
impossível se cruzar o Rio Jaguaribe, que ficava alagado em grande faixa. E não havia ponte. A viagem era feita partindo-se da Praça João Pessoa, seguindo-se mais ou menos o rumo da D. Pedro II,
Jaguaribe, mata do Buraquinho, até a Penha, sempre atravessando
matas fechadas e só daí se poderia chegar a Tambaú.
João Pessoa possuía fábricas. No final da Rua da Areia, encontrando a Rua Gama e Melo, ficava a famosa Fábrica de Cigarros
Ferreira Amorim & Cia., grande prédio com inúmeras portas para
a calçada. Em cada porta estava pintada uma carteira de cigarros
das marcas ali fabricadas. E havia os mais baratos, que eram acondicionados em maços. Lembro do João Pessoa, Populares, Deliciosos, Dois Irmãos. Por trás encontrávamos a grande fábrica de bebidas de Tito Silva & Cia. Os franceses não aceitavam mas chamavam de “vinho” o conhecido licor de caju Lágrimas Celeste. No
rótulo estampavam orgulhosamente as medalhas que o tal vinho
conquistou em uma exposição internacional. De fato o vinho Celeste,
Como chamávamos, era digno de registro. Todo visitante
que chegasse a João Pessoa invariavelmente tomaria um cálice do
vinho Celeste, branco, muito fino, cheiro e sabor inigualáveis. No
rótulo lia-se: “O beijo que tu me deste tem o sabor diferente que
uma taça de Celeste deixa nos lábios da gente”. E outros vinhos
eram fabricados, de jenipapo, jurubeba e caju. Infelizmente, com o
desenvolvimento urbano das praias para o lado de Cabedelo, desapareceram os cajueiros dos tabuleiros e não havia mais onde
adquirir cajus frescos. O químico Dr. Trevas conduzia a análise dos
produtos da indústria, com muita competência e já há muito prognosticava esse final. Na Rua da Areia funcionava o laboratório da
famosa Água Rabelo e a famosa fábrica de gasosas de Sydney
Clement Dore.
Havia ainda a grande fábrica de cimento Portland, que mudou de proprietário várias vezes, a começar da Portela, Matarazzo,
etc. e a indústria de óleo de algodão da marca Sol Levante, que
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Leituras Diversas: Crônicas, Ensaios e Contos
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ficava na parte baixa final da Rua da República. Em frente era a
fábrica do Vinagre Sanhauá, de Lindolfo de Carvalho, o que deixava aquele trecho de rua impregnado dos cheiros de óleo de algodão e vinagre. Funcionou também na Ilha Batatão, próximo ao
Porto do Capim, a fábrica de sabão Protector e a Perfumaria Paraibana, pertencente a João Minervino, na época o homem mais rico
da cidade. O homem era tão rico que acendia o charuto com uma
cédula cor de jerimum e verde de um conto de réis. E havia mais o
curtume de Antonio Franciscano do Amaral e a fábrica de artefatos
de papelaria e material escolar dos irmãos Miranda Freire e acho
que só.
Nós, meninos e meninas, frequentávamos as escolas públicas, chamadas Grupos Escolares. Havia o Grupo Escolar Dr. Thomaz Mindello- GE I – na Praça Aristides Lobo, o Antonio Pessoa,
na Rua Beaurepaire Rohan, ou Rua do Melão, como era conhecida,
o Izabel Maria das Neves, na João Machado, o Epitácio Pessoa, na
Praça Antonio Pessoa, cada um marcado por uma sigla GE. No dia
26 de julho íamos pelas calçadas, dois a dois, conduzindo flores
para o monumento ao Presidente João Pessoa, onde entoávamos a
canção: “João Pessoa, João Pessoa, bravo filho do sertão, toda a
pátria espera um dia a sua ressurreição ...” E a base do monumento
ficava coberta de flores em profusão.
O diretor do Thomaz Mindello, Prof. Joaquim Santiago, fazia
todas as semanas uma preleção cívica e o Dr. Seixas Maia, gordo
médico da saúde pública examinava as pálpebras dos raquíticos
alunos, após sua palestra. O canto orfeônico era ministrado pelas
alunas do Prof. Gazzi de Sá, entre elas Blezila e Natividade Guedes, e a linda professorinha Orlandina. E na Educação Física tínhamos as aulas de Hebe Escorel Borges, professora muito competente e atleta esforçada.
Com a chegada das Lojas Brasileiras, ou as 4400, o comércio
começou a invadir a Beaurepaire Rohan, que chamávamos a Rua
do Melão e que era ainda residencial. Foi na 4400 que sofri o primeiro grande golpe na minha vida. Estava na vitrine uma bola,
que era feita de um látex mal acabado, e que se tornou motivo de
minha cobiça. Juntei todos os tostões que ganhei até o porquinho
ficar pesado. Corri para a loja e entrei triunfante, já pegando avidamente a minha bola tão almejada. Que decepção. A bola custava
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46 | M a g n o N i c o l a u ( O r g . )
8800! Nunca me conformei. Como é que a placa na calçada dizia
que tudo era até 4400 e me cobravam o dobro?! Eu imaginava uma
atitude dos governantes para que o absurdo fosse imediatamente
corrigido. Propaganda enganosa!
A avenida se enchia de lojas sem formar quarteirão. A lojas
seguiam de cabeça a fora. A mesma coisa aconteceu quando, ao
final dos anos 40, as lojas já começaram a subir a Guedes Pereira,
que chamávamos Rua do Fogo. As últimas casas residenciais foram desaparecendo. Nunca formou um quarteirão sequer e chegou
assim ao Ponto de Cem Réis. E João Pessoa continuou com essa
particularidade no comércio. Não há quarteirões de lojas. A Duque
de Caxias ficou lotada e sem formar quarteirão. E veio a Almirante
Barroso, na Lagoa, e o comércio chegou assim à Epitácio Pessoa,
por 6 km sem nenhuma esquina comercial. E o mesmo costume
continuou ao longo da Edson Ramalho, João Câncio, Esperança, e
alcançou o tal retão do Manaíra sem que haja um só quarteirão
comercial.
A praia do Cabo Branco, finalmente, quando raiaram os anos
50, se embelezou. O coqueiral plantado na areia, já na década de
70, na administração de Dorgival Terceiro Neto, emprestou à enseada uma beleza bem nordestina. Diga-se de passagem que eu fui o
autor do projeto e executor em companhia do Dr. Durval Gomes
Falcão.
E em 50 anos tudo se transformou, e nasceram os edifícios
para hotéis e restaurantes e a praia ficou cada dia ainda mais bela.
Porém o que seria mais importante foi relegado a plano secundário: o cabo. Pergunte ao grande artista Hermano José o que era
outrora o Cabo Branco. Todos os dias lá se vai um pedaço do barro. Com a construção do farol, uma obra concebida pelo arquiteto
Pedro Abrahão Dieb, e que representa um pé de agave estilizado,
desmataram a área. Grande erro. Com a devastação da reserva
florestal desenraizou-se o solo, houve a penetração direta das
águas da chuva, o vento causticou o promontório que vem abaixo
todos os dias um pouquinho.... E os turistas começaram a afluir ao
local em ônibus, carros e caminhões destruindo o nosso ponto
mais oriental das Américas.
Apesar disso o Cabo Branco continua lindo. Um marco indelével para a beleza e o prestígio de Tambaú e de toda a nossa orla.
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Leituras Diversas: Crônicas, Ensaios e Contos
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Mas é um acidente geológico que tem os dias contados. Não é para
logo sua destruição. A Natureza não dá saltos. Uma geração nem
sequer nota os centímetros ou milímetros destruídos aqui e ali. Os
governos e empresários olham para a beleza do lugar como se tudo fosse eterno. Urge a defesa do nosso ponto oriental.
Em sobrevoo de helicóptero dá para se ver que há um atol
de rochas justamente à frente em defesa do cabo, pois é o que restou dele. Um país que gasta bilhões com construções de estádios
de futebol para se usar somente algumas vezes por ano não pode
alegar que falta dinheiro para defender um acidente geográfico
dos mais importantes do Brasil. O Cabo Branco é referência nacional. O paraibano deveria lutar pela sua preservação. Não é impossível se construir um dique de pedras graníticas sobre o atol, em
forma de meia lua, e a partir desse roqueamento se começar a reerguer a falésia. A compactação do material seria executada desde
a base, levantando-se o paredão como pirâmide em direção ao
topo. O revestimento externo do paredão poderia ser feito de pedras calcárias, o que não prejudicaria em nada o seu majestoso
nome de Cabo Branco. Realmente, um sonho. Mas todas as grandes obras nascem de sonhos.
Imagino que o CREA poderia encampar essa ideia. Ainda há
tempo. Quem sabe alguém se emocione e inicie uma campanha de
salvamento do Cabo Branco. Ao lado das obras de centros turísticos e hotéis, primeiramente vamos salvar nosso ponto mais oriental das Américas. Naqueles bairros do altiplano nasceram condomínios que mais parecem cidades do primeiro mundo. Difícil imaginar-se que estamos na mesma cidade de João Pessoa.
João Pessoa é elogiada por todos os visitantes como uma cidade linda, limpa e pacata Os ipês amarelos da Lagoa e Getúlio
Vargas, as mangueiras seculares da Maximiano Figueiredo e João
Machado, as Cássias nas calçadas em profusão em quase todos os
cantos, os jambeiros da Coremas e Tabajaras, que deixam as ruas
atapetadas de flores vermelhas que caem pelo chão, as acácias
amarelas nas praças já merecem um olhar mais dedicado das autoridades.
E por que só temos três ou quatro avenidas de passagens para as praias? Isso é simplesmente um absurdo porque a BR não é
obstáculo intransponível e muitos viadutos podem ser construídos
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ligando todas as vias que foram interceptadas. Nós temos o defeito
de querer fazer obras faraônicas para ficar na história. Porém não
há verbas para conservação do que é construído e fica aí abandonada a Praça da Independência vastíssima e esquecida. Dizem os
jornais que a “revitalização” da Lagoa é a primeira em um século!
Ledo engano. Nos anos 40 a lagoa foi completamente esvaziada e
limpa. Nos anos 70, Dorgival Terceiro Neto realizou completa obra
de ajardinamento, com irrigação mecânica.
Está na hora de a população cobrar verbas dos governos para manutenção da cidade, conservação das praças, policiamento
efetivo dia e noite. Do contrário, como as saúvas, os vândalos acabarão com a cidade. João Pessoa é uma cidade encantadora e merece o amor de todos nós.
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MEMÓRIAS DA COPA DO MUNDO
Sônia van Dijck
Não quero provocar falsas interpretações e nem quero que
me julguem apressadamente. Não sou torcedora de futebol. Na
verdade, não sou dada a atividades esportivas; para quebrar a
monotonia do corpo, prefiro fazer dança de salão.
Mas, estamos em tempo de Copa do Mundo. Depois de muitos anos, o certame volta ao Brasil, como a Copa das Copas. Na
verdade, a Copa mais cara de todas as Copas. Uma Copa com traços tipicamente brasileiros: morte de trabalhadores na construção
das arenas padrão FIFA, com os construtores declarando à imprensa a garantia de assistência às famílias, que, no minuto seguinte ao apagar das luzes da equipe de reportagem, foram devidamente esquecidas; gastos astronômicos pagos com dinheiro público; promessas vazias de legado da Copa traduzido em melhorias
da mobilidade urbana, em reformas de aeroportos e outros benefícios urbanos do século XXI, que nunca foram levados a sério; esperança de melhorias e de avanço das políticas governamentais de
segurança pública, que foram realizadas em medidas cosméticas
de instalação de Unidades de Polícia Pacificadora no Rio de Janeiro – sede da final da Copa 2014 -, frequentemente atacadas por
criminosos que, nos últimos anos, atuaram sem maiores preocupações com o possível rigor de uma política de segurança pública,
enquanto nas demais cidades de jogos da Copa 2014 nem UPPs
existem e os criminosos continuam sem sustos, tocando seu trabalho. Neste tempo da Copa das Copas de altos gastos e de incalculáveis maracutaias, os hospitais públicos continuam tão miseráveis
conforme o previsto na evolução de sua decadência nos últimos 11
anos, enquanto o sistema público de educação conseguiu superar
sua precariedade histórica e se tornar monumentalmente deficitário.
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Mas, Copa do Mundo é festa, e, felizmente, não haverá tão
cedo outra Copa no Brasil – os cofres públicos não suportariam
outra sangria de superfaturamento. Laos Deo. Melhor, então, falar
de uma boa lembrança de Copa do Mundo – claro que não vou
falar dos melhores zagueiros e dos goleiros mágicos, pois não entendo de futebol, como já disse.
Já nem sei se foi na Copa de 1974 ou se na de 1978. Estava na
Holanda nas duas ocasiões. Mas, pouco importa em qual das Copas vivi minha experiência de Copa do Mundo.
Meu marido, torcedor de carteirinha da seleção brasileira,
acompanhava apreensivo as vitórias da Orange - como os holandeses chamam sua seleção de futebol, tendo em vista que laranja é
a cor simbólica da Casa de Orange-Nassau, sendo o atual monarca
Guilherme Alexandre I.
Na noite de um dos jogos das quartas de finais, estávamos
em Amsterdam. Fomos jantar em um gostoso restaurante localizado em uma das estreitas ruas que se ligam à Leidseplein. A cidade
estava vestida de laranja. O pequeno restaurante que escolhemos
acompanhava o clima laranja e tinha uma TV ligada. A Orange
ganhou.
E fomos de volta para a Leidseplein. A praça estava atapetada de copos, pratos e talheres descartáveis – em dias de jogos da
Orange, os bares usam apenas descartáveis – e ninguém reclama.
Os torcedores haviam esquecido os bons hábitos e as lixeiras disponíveis não comportaram acondicionar tamanha quantidade de
lixo e ficaram bradando inutilmente “Papier hier” – ou coisa parecida. O fato é que o tapete de descartáveis na Leidseplein informava o quanto os torcedores da Orange tinham bebido cerveja...
Mas, um som de muitos corais desencontrados chamou-me a
atenção. Turmas de torcedores – homens e mulheres – de diversas
idades (alguns muito jovens) – cantarolavam o quarto movimento
da Nona Sinfonia (Beethoven). Todos conheciam a Ode à Alegria,
ainda que muitos a proclamassem desentoadamente por força da
cerveja ou mesmo por falta de talento para o canto. Alguns apenas
gesticulavam no compasso da festa, outros marchavam em grupos
nos quais uns se seguravam aos outros para vencer tanto a cerveja
como a euforia e tentavam cantar em coro – e Schiller, pelo gênio
de Beethoven, subia as centenárias fachadas e serpenteava pela
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Leidsestraat a caminho do canal, para encontrar outros celebrantes
da Alegria.
Sob a inspiração de Schiller, com a regência de Beethoven,
acreditei na raça humana como irmandade, exaltada pelos torcedores holandeses nos versos memoráveis.
E eu e Thom fomos para o hotel. Creio que, no fundo, ele estava contente com a vitória da Orange.
SUMÁRIO
52 | M a g n o N i c o l a u ( O r g . )
DOCES INVERNOS
Yó Limeira
Nos tempos da minha meninice esta cidade guardava ainda
muito da sua alma de criança. Era um lugar pacato de pouquíssimos carros, de bondes serenos que cortavam a capital no seu balanço cadenciado, sem pressa e manso saindo do Ponto de Cem Réis
aos bairros então distantes de Mandacaru, Cruz das Armas, Tambaú...
Só algumas ruas do centro eram calçadas com paralelepípedos e
muitas ainda permaneciam em estado natural com seus leitos de
terra que, ao cair das primeiras chuvas exalavam um cheiro gostoso de chão molhado. Não se via o pretume dos asfaltos e muito
menos se sentia o calorão que dele emana. Podia-se afirmar que
esta era de fato uma cidade verde exalando cheiro de pomar. As
ruas descalças eram ladeadas ou divididas por jambeiros, mangueiras, ipês e as casas, que eram casas de verdade porque horizontais e com seus enormes quintais onde plantavam-se árvores
frutíferas e cultivavam-se hortaliças. E flores nos jardins.
Quando começava o inverno surgiam goteiras que só podiam ser retiradas na primeira estiada; daí colocavam-se baldes e
bacias em vários pontos da casa para aparar os pingos da chuva, o
que resultava numa variedade de sons que escutávamos como
música de ninar...
E é exatamente esta sinfonia que a memória me devolve agora nesta noite chuvosa ... Tantos e tantos anos depois, é como se
ainda a escutasse misturada ao som alegre do coaxar dos sapos
que cantarolavam contentes nas poças d´água do quintal da nossa
casa. E um galo, que a chuva fez perder a hora, desperta o amanhecer, e logo outro e outro e outro anunciando dos seus poleiros
que o astro rei nasceu mesmo assim em meio às nuvens ... E é toda
esta musicalidade que traz para mim, como num caleidoscópio, as
imagens e as cores desses invernos antigos.
SUMÁRIO
Leituras Diversas: Crônicas, Ensaios e Contos
| 53
Revejo então o lar das minhas bonecas na beirada do guardaroupa de meus pais... Abrindo a porta do meio do tal móvel, afastava um pouco as caixas que Mamãe colocava abaixo das roupas
penduradas e dali surgia um compartimento que servia muito bem
às divisórias da residência de inverno das minhas bonecas. Passava
ali horas inteiras organizando aqueles compartimentos de sala,
quarto e cozinha; umas bonecas visitando outras, e as fantasias
todas se tornando realidade naqueles dias chuvosos quando o
quintal ficava proibido com suas correrias e pegas, escondeesconde e academia, bola e bilas. Onde um imaginário pó de pirlimpimpim nos fazia reviver Zorro, Tarzan e sua Jane, Chita, Roy Rogers, Capitão Atlas, Peter-Pan e Sininho, Alice e todo um universo
quimérico naquela pequena selva de abacateiros, mamoeiros, goiabeiras, sapotizeiros...
Relembro ainda os barquinhos de papel... Ah! Os barquinhos
de papel... Como eu gostava de viajar neles. O divertimento começava com a confecção que variava de tamanho, dependendo do
papel que tínhamos disponível e que geralmente eram folhas de
velhas revistas que já não interessavam aos adultos. Depois eles
eram soltos ao sabor das águas que desciam pela ladeira ao lado
do terraço e que se jogavam como uma cachoeira lá embaixo...
Quando dava uma estiadinha a gente corria com nossos barquinhos a jogá-los nas corredeiras do meio-fio da rua e apreciá-los
céleres no caudaloso rio que desaparecia na primeira curva da
primeira esquina ali, onde, muito depois, foi construído o saudoso
Cine Municipal, da nossa juventude. Como esquecer ainda aquele
prazer de ficar admirando, olhos grudados nos pingos, ora bem
grossos ora mais finos, a beleza transparente de toda aquela água
vinda de tão alto...
Já não param aqui estas reminiscências. Viajo então para o
período mais alegre do nosso inverno: as festas juninas. O alvoroço
começava cedo na véspera de São João lá em casa e na casa da minha tia, quintal com quintal se comunicando como num pequeno
sítio, para nós imenso onde nós, crianças, éramos por usocapião os
verdadeiros proprietários.
Nas primeiras horas da manhã, a mesa do café já posta à sua
espera, retornava Papai do Mercado Central com aquela ruma de
espiga de milho...Quando ele voltava a sair, agora para o trabalho,
SUMÁRIO
54 | M a g n o N i c o l a u ( O r g . )
começava a funcionar uma verdadeira fábrica de comida de milho,
principalmente de pamonha. Retiravam-se as palhas, isolavam-se
as que iam ser utilizadas como caixas, retiravam-se os cabelos das
espigas, com uma faca separavam-se os caroços que eram triturados no moinho. Era então chegada a hora de passar aquela massa
na peneira, adicionar o leite de coco, sal, açúcar, manteiga derretida e provar para ver se estava a gosto. Quando minha avó era viva
costurava na máquina as caixas. Depois que ela morreu, Mamãe
passou apenas a enrolá-las e amarrá-las. Neste primeiro momento
também participávamos, ajudando a retirar os cabelos do milho,
dando uma mãozinha no moinho ou simplesmente aperuando.
Mas o melhor estava ainda por vir. Era Papai que chegava
com os pacotes de fogos: o maior, ele mesmo escolhera e comprara;
o outro era seu colega do IAA, amigo da família Seu Genival, que
mandava de presente para meu irmão e para mim. Era uma folia
só abrir aqueles embrulhos com chuveiros, caraduras, mijões, cobrinhas, estrelinhas, e traques de chumbo que, naquele tempo, tinha de
fato um chumbinho dentro, o que proporcionava um divertimento
na manhã do dia seguinte: sair “catando” pelo quintal, pela calçada pra ver quem encontrava uma maior quantidade daquelas bolinhas cinzentas. E sempre havia uma ou duas surpresas de fogos
diferentes, como os vulcões que faziam grandes festas no céu, festas
de luz e cores. E, com a orientação de meu pai, fazíamos a divisão
do que ia ser usado na noite de São João e o que guardaríamos
para a véspera de São Pedro.
Na parte da tarde nossa movimentação maior era na casa de
Titia. É que a canjica era feita lá num grande tacho de cobre, em
cima de um fogareiro no quintal, e, quando saia do fogo após distribuída em pratos e travessas, o tacho nos era entregue. E meus
dois primos, meu irmão e eu, cada um com uma colher na mão,
cuidávamos de raspar a panela numa boa algazarra. Durante todo o
dia o velho Phillips de enormes válvulas, ainda o escuto nos recônditos das minhas lembranças, na voz inconfundível e na sanfona de Lula Gonzaga:
Ai São João,São João do carneirinho
você que é tão bomzinho
diga lá pra São José
SUMÁRIO
Leituras Diversas: Crônicas, Ensaios e Contos
| 55
diga pra ele me ajudar
diga pro meu milho dá
vinte espigas em cada pé
..............................................
Olha pro céu meu amor
veja como ele está lindo
olha praquele balão multicor
como no céu vai sumindo
.............................................
A fogueira está queimando
em homenagem a São João
o forró já começou
vamos todos
raspa pé nesse salão
.......................................................
No finalzinho da tarde iam pamonhas para a casa de minha
tia e de lá vinham travessas de canjica. O milho cozinhado, a pamonha assada, o bolo de milho, cada casa fazia o seu. E, quando a
noite chegava, após o jantar, reuniam-se tios e primos lá em casa
para a queima de fogos ... Fazia-se ainda pequena fogueira no
quintal para assar milho. Na nossa rua onde do lado esquerdo
passava o bonde e do direito era baixa a fiação elétrica, não havia o
costume de se queimar fogueiras. Só no amplo espaço onde funcionou o mercado descendo a Barão de Abyhai, entre a Visconde de
Pelotas e a Treze de Maio, podia-se ver à noite o braseiro queimando
em honra ao santo festejado.
Com a família reunida dava-se início a queima dos fogos e
era uma lindeza ... Se chovia, esperávamos uma estiada para voltarmos às brincadeiras. De repente uma alegria maior nos chegava
do céu: aqui, acolá, um, outro e mais outro balão multicolorido,
com sua luzinha bruxuleante, alçava voo. Uns bamboleavam sem
rumo certo, cai, não cai, vai cair, pegou fogo... Não! Olha aquele lá!!!
Num prumo certeiro alguns seguiam reluzentes na direção do
infinito, misturando-se às estrelas.
(Memórias – fragmento)
SUMÁRIO
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ENSAIOS
EDUCAÇÃO EM DIREITOS HUMANOS
PELA TRANSDISCIPLINARIDADE:
EM BUSCA DA SOCIEDADE SENSÍVEL
Anaína Clara de Melo
1
A SOCIEDADE DE PLÁSTICO
Os valores humanos estão desgastados e fragilizados em
nossa sociedade. Hoje em dia convivemos com pessoas cada vez
mais individualistas, o que gera um povo mesquinho, materialista
e alienado – termo emprestado de Karl Marx. As pessoas valem
pelo que podem oferecer em termos materiais; os sentimentos entre os seres são alimentados pelo usufruto de objetos dos outros; as
relações amorosas são mantidas pelo quanto se pode ganhar estando ao lado do outro; o grau de sentimento criado entre os seres
depende do que se pode ganhar do outro e por quanto tempo –
acabando-se aquilo que se pode usufruir, também se acabam os
sentimentos. Não há durabilidade nas relações humanas, porque
os valores humanos dependem da validade dos bens do outro:
acabando-se o prazo de validade dos produtos sugados do outro,
também se acaba a validade dos sentimentos pelo outro.
Não é sem razão que hodiernamente existem tantos divórcios na sociedade brasileira, por exemplo. Não estamos sabendo
conviver coletivamente, em grupo; unidos de forma verdadeira, de
forma homogênea, sólida, indissociável. Não sabemos mais iniciar
relacionamentos: precisamos da ajuda de sites virtuais para conhecermos outras pessoas. Buscamos a facilidade e agilidade do mun-
SUMÁRIO
Leituras Diversas: Crônicas, Ensaios e Contos
| 57
do virtual. Isso tem feito com que não tenhamos mais paciência
suficiente para aguardar, cautelar, ponderar, pensar... Tudo tem
que ser muito rápido, e as relações humanas, também. Por isso
precisamos de sites de relacionamento, pois tudo se dá de forma
mais rápida: o encontro é mais rápido, e, paradoxalmente, as dissoluções também, porque não se tem tempo de se formar uma relação sólida. Estamos falando da sociedade da efemeridade, da
rapidez, da instantaneidade. O plástico é o grande símbolo disso
tudo: é facilmente descartável, não possui resistência suficiente, é
temporário.
A sociedade atual criou uma nova forma de coletividade: a
coletividade virtual. Não é esta a coletividade a que almejamos,
mas uma mais sólida, mais resistente, durável, verdadeira, transparente e totalizadora.
1.1 A COLETIVIDADE VIRTUAL
O aspecto virtual nas relações humanas é preocupante. As
pessoas se comunicam mais por aparelhos eletrônicos do que por
contato humano, olhares, gestos. O mundo virtual tem gerado uma
exigência pela rapidez, pelo mais fácil, pelo mais eficaz. Isso faz
com que, ao mesmo tempo, formemos uma sociedade impaciente,
que não sabe aguardar, apreciar. Exagerando, poderíamos dizer
que estamos formando seres que não sabem viver a vida; ou então,
que estamos formando uma sociedade com valores diferentes dos
de nossos antepassados.
Trata-se da coletividade virtual: uma coletividade imaginária, facilmente dissolvível, efêmera, transitória, sem consistência,
sem durabilidade e com prazo de validade curto. A nova sociedade gosta de tudo rápido: relacionamentos, afazeres e vida. Caso
haja a necessidade de se esperar por algo, a nova sociedade fica
facilmente irritadiça.
Essa coletividade não é a que buscamos, pois se trata de
uma coletividade falsa, imaginária. O real não é coletivo, mas o
irreal: o irreal é coletivo porque o virtual é capaz de juntar um
número grandioso de pessoas – mas essa junção é apenas numérica e não possui força de sustentabilidade no tempo. Os grupos se
formam facilmente, mas se desfazem facilmente por motivos banais. O tempo é o grande inimigo dessa coletividade: ele é capaz
SUMÁRIO
58 | M a g n o N i c o l a u ( O r g . )
de destruir rapidamente essa sociedade coletiva virtual, pois se
trata de um grupo impaciente.
Mas qual é a coletividade que buscamos?
1.2 A COLETIVIDADE REAL
A coletividade real a que nos referimos diz respeito a um
grupo único, que vive em favor de si e do outro: o outro e ele
mesmo são um só, e isso faz com que a dedicação ao todo, ao
mundo, às relações sociais seja a maior e melhor possível. Trabalhando para o outro é estar construindo um mundo melhor para si
mesmo: um mundo sem luxúrias, da simplicidade, da verdade, da
felicidade, do amor, da igualdade e da justiça.
O coletivo é a imbricação de todos juntos e unidos em prol
de ideais semelhantes. O contato, o gesto, o olhar, o diálogo são
fatores imprescindíveis para a formação de uma consciência voltada para o bem da coletividade. Poderíamos chamar essa coletividade real de sentimento expresso quando os direitos humanos são
efetivados.
2 VALORES HUMANOS
Valores humanos como a solidariedade, o compromisso, a
fraternidade, a responsabilidade,
3 EDUCAÇÃO EM DIREITOS HUMANOS E A TRANSDISCIPLINARIDADE
Para que a coletividade seja de forma real, acredito que a
formação de um povo voltado para a prática dos Direitos Humanos – DHs – é indispensável para um convívio coletivo de fato em
sociedade. Deve haver, então, uma Educação em Direitos Humanos – EDHs – realizada de forma séria, eficiente e com compromisso da comunidade escolar.
Discordo do ensino dos Direitos Humanos – DHs - sob a
forma de tema transversal e sob a forma de disciplina, e defendo a
ideia de ensino dos DHs sob a forma transdisciplinar entre todos
os componentes curriculares. Ademais, acredito em um ensino que
parta de eixos temáticos relacionados aos DHs e que possibilitem o
SUMÁRIO
Leituras Diversas: Crônicas, Ensaios e Contos
| 59
trabalho com os conteúdos curriculares; tudo de forma transdisciplinar.
Justifico a ideia com o argumento inicial de, se os DHs forem
ensinados como disciplina, correrá o risco de ser apenas mais uma
matéria expositiva para o aluno, como tem sido feito com os
componentes curriculares atuais; se for apresentada sob a forma de
tema transversal, incorrerá em ser apenas mais um tema transversal esquecido ou desconhecido dentro dos Parâmetros Curriculares Nacionais – PCNs - pelos professores. Muitos de nossos professores não conhecem os PCNs de suas disciplinas, quanto mais
os temas transversais. Os DHs como tema transversal ocorreria
algo semelhante com o que se verifica com o tema Ética, por exemplo, hodiernamente: os professores não sabem como associar os
temas transversais a suas disciplinas – pelo menos essa é a realidade das escolas públicas do estado da Paraíba em sua maioria.
Penso bastante sobre a realidade de nossas escolas no âmbito
estadual e fico muito preocupada com a qualidade do ensino no
estado da Paraíba. A LDB não é conhecida, os PCNs, também não,
os PPP das escolas representam um descaso com a educação...
Imaginem os demais planos que estão hoje aí à disposição para a
efetivação dos Direitos Humanos! Mas não quero ser pessimista;
acredito que isso pode mudar com as nossas práticas pedagógicas
e ações em sala de aula, e que a simples discussão dessas questões
atualmente ajudarão o ensino no futuro.
Como forma transdisciplinar, os DHs estariam de fato
imbricados a todo o currículo, sendo apresentado sem limites
fronteiriços entre as disciplinas. Tenho convicção de que é esta a
forma de efetivação de uma Educação em Direitos Humanos para
a formação do cidadão.
Isso significa dizer que inserir os DHs no ensino implica,
antes de tudo, em uma reestruturação metodológica do ensino.
Deve, ainda, haver a prática de metodologias participativas em
detrimento das metodologias de conteúdo, geradoras de nossas
aulas expositivas, a que muitos docentes estão acostumados.
Por exemplo, na escola onde leciono a disciplina de Língua
Portuguesa, costumo dividir o ano letivo, composto por 4 bimestres, em 4 eixos temáticos básicos: Sáude, Meio Ambiente, Ética e
Direitos Humanos. Esses eixos conduzem, na verdade, os temas
dos textos que serão trabalhados em sala de aula para que, tam-
SUMÁRIO
60 | M a g n o N i c o l a u ( O r g . )
bém, discutamos os conteúdos curriculares de Língua Portuguesa.
Isso significa dizer que o principal é a leitura e escrita, compreensão, interpretação e crítica de assuntos indispensáveis à emancipação do homem e, consequentemente, relacionados aos DHs. Os
conteúdos curriculares de Língua Portuguesa são tratados em um
patamar secundário nas aulas, não se constituem como o motivo
da aula.
Para sermos mais específicos, um assunto como variação
linguística pode ser abordado ao longo do ano dentro dos eixos
temáticos como forma de se reconhecer as variações linguísticas do
povo, enfatizando-se o respeito a essas variações, o reconhecimento do outro como falante distinto de outros por motivos sociais, econômicos, políticos, culturais, avaliando-se a importância
de cada cultura linguística, verificando-se as influências de culturas linguísticas indígenas e africanas na formação da cultura
linguística do povo brasileiro etc. A partir dessas discussões, nos
textos, podem-se enfatizar o uso dos porquês, a ortografia do mas
e do mais, ou seja, questões gramaticais relevantes para o entendimento das discussões temáticas.
Neste sentido, urgem capacitações que apresentem os documentos educacionais prioritários para a educação e que mostrem
como eles devem ser aplicados: legislação e planos educacionais,
somados a exemplos de práticas em sala de aula devem ser a base
das capacitações dos professores; tudo com o uso de metodologias
participativas. Não temos como fazer DHs se sequer conhecemos
os documentos indispensáveis à educação.
4
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Somente com a Educação em Direitos Humanos sendo praticada em nossas escolas de forma transdisciplinar é que poderemos mudar a sociedade e formar seres humanos de fato compromissados com o todo, com a coletividade, com os homens, com a
bondade, respeito, felicidade, fraternidade, amor, paz, liberdade e
igualdade. Para isso, preciso de mais políticas de capacitação de
profissionais da educação que enfatizem a prática dos DHs. A
metodologia de ensino a ser aplicada deve ser a que se baseia nas
metodologias participativas, que enfatizam o diálogo, a formação
de grupos, a união e o todo.
SUMÁRIO
Leituras Diversas: Crônicas, Ensaios e Contos
SUMÁRIO
| 61
62 | M a g n o N i c o l a u ( O r g . )
ESCOLA CONTEMPORÂNEA:
UMA UTOPIA POSSÍVEL
Almiro de Sá Ferreira
O descompasso entre a escola e a realidade
De um modo geral, associa-se o conceito de educação ao de
escola. Ao se lidar com o senso comum e a sedimentada ideia tradicional de educação, geralmente o campo de entendimento das
pessoas se volta para o espaço temporal e arquitetural, sobretudo,
em direção à sala de aula, uma imagem firmada desde o período
infanto-juvenil e, mais adiante, durante os estudos e o transcurso
da carreira acadêmica, nas instituições universitárias.
Na perspectiva mais estrita, a Educação, na verdadeira acepção do termo, compreende um amplo processo em que o ser humano vai elaborando progressivamente a sua história de vida,
incluindo conhecimentos, práticas e um conjunto enorme de experiências que caracterizam e edificam a figura do eterno aprendiz,
tanto de maneira sistematizada como na informalidade. Nesse
sentido ela pode acontecer e se desenvolver na família, nas instituições educacionais, no trabalho e nas organizações humanas, em
geral.1
Porém, não se deve deixar de reconhecer que a escola é o espaço mais presente e visível do processo educacional, sendo do
ponto de vista da formalização de estudos quase que impossível se
viver sem o seu papel institucional validado socialmente. Apesar
de todas as críticas, ela veio para ficar enquanto lócus privilegiado
e bem recortado, de tal maneira que não é mais possível descurar
de pelo menos uma de suas funções que é possibilitar o convívio
sociocultural e o relacionamento humano direto entre milhões de
aprendizes, suas famílias e pessoas no mundo inteiro. O mesmo
pode-se dizer da figura do professor. Para os que profetizam o seu
desparecimento com o advento da revolução informática e do elearning2, temos a lembrar de que o seu perfil será, inexoravelmen-
SUMÁRIO
Leituras Diversas: Crônicas, Ensaios e Contos
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te, redesenhado e reconstruído, mas que dificilmente o mesmo
desparecerá do cenário educacional.
A ponta do iceberg dos múltiplos e complexos problemas enfrentados pela maioria das escolas, aqui e alhures, aflora e têm
nexo com o estado permanente de violência que vem se espraiando em todo o tecido societário contemporâneo e se faz presente nas
escolas com uma virulência desproporcional, quando, pelo contrário, é exatamente nelas onde reside um gigantesco potencial humano capaz de minimizar a violência.
Nesse espaço delituoso e conturbado que se vivencia nas escolas, noticiado todos os dias pela mídia, o sentimento que impera
é quase sempre o de imobilismo frente à dificuldade de se entender o que fazer e como fazer para transformá-la e adequá-la aos
novos tempos, levando os educadores a uma encruzilhada que
sempre termina numa sentença muito cômoda: “Ruim com ela, pior
sem ela”.
Inúmeras são as questões que sempre ficam no ar sem respostas satisfatórias, entre elas, uma fundamental: a escola atual
realmente forma o perfil de pessoa humana e de profissional que o
século XXI está a exigir?
Neste brevíssimo ensaio, sob os virtuosos influxos das merecidas comemorações alusivas aos 25 anos da Editora Ideia, tentaremos traçar a problemática, historiar as principais razões da inadequação da escola desde o alvorecer dos tempos pós-modernos e,
por fim, apontar algumas variáveis indispensáveis para reflexão e
continuidade de uma discussão tão efervescente e crucial para a
nossa sociedade contemporânea.
A herança do controle social
A escola, como hoje a conhecemos, é um construto do século
XVIII, moldada sob as influências do iluminismo e do paradigma
cartesiano-newtoniano, para atender, principalmente, os nascentes
processos econômicos e sociais da Revolução Industrial; fenômenos entrecruzados que ajudaram a consolidar a sua base conceitual
e paradigmática, de forma a se manter cristalizada e ao mesmo
tempo ser institucionalmente indispensável até os dias atuais.
A perspicaz análise sociológica, feita pelo brilhante filósofo
francês Michael Foucault, traz luzes e encaminhamentos epistemo-
SUMÁRIO
64 | M a g n o N i c o l a u ( O r g . )
lógicos para a compreensão cristalina deste importante fenômeno
histórico. Afirma ele, com singular entendimento, que no novo
contexto do processo evolutivo das sociedades, tomando-se como
referência os séculos XVII e XVIII, assistem-se o despontar das
chamadas instituições disciplinares, onde a escola começa a fazer
parte de um conjunto de novas estratégias, alicerçadas numa anatomia política diferente do antigo sistema de punição e suplício
público. Sua tese chama a atenção para uma questão que, desde o
século passado, nos parece bastante óbvia, quando assinala categoricamente: “Devemos ainda nos admirar que a prisão se pareça
com as fábricas, com as escolas, com os quartéis, com os hospitais,
e todos se pareçam com as prisões?”.3
Assim como Foucault, Althusser também analisa a função
da escola, embora numa outra vertente analítica, para chegar a
conclusões semelhantes. Com a preponderância do enfoque repressivo da escola, o referido sociólogo vale-se de sua visão de
ruptura para caracterizar a escola como um dos “aparelhos ideológicos do estado”,4 que prima pela manutenção do status quo e a
reprodução das relações de poder.
No escopo da superada visão clássica e tradicional da Educação há, portanto, toda uma filosofia da aprendizagem, onde a
ideia central é simplesmente moldar os alunos para o mercado de
trabalho, para o velho mundo industrial, na perspectiva de uma
surrada pedagogia tecnicista-burocrática, numa visão de controle
social e dentro de um processo restrito de “linha de montagem”;
situação em que os currículos e os cenários de aprendizagem se
desenvolvem num clima disciplinar inócuo e totalmente desprovido da realidade sócio-econômica-cultural e antropológica dos novos tempos.
Por isso, nessa atuação incongruente, a escola vem minando
e destruindo o coração, a mente e a sensibilidade dos jovens, emparedando-os em clausuras físicas e mentais, principalmente,
quando se trata daqueles que são, ao mesmo tempo e paradoxalmente, os indivíduos mais importantes para a sucessão saudável
das gerações humanas e para a construção de uma sociedade futura mais justa, solidária e pacífica.
No caso do Brasil, uma evidência que salta aos olhos, até dos
observadores mais obliterados, é a de que a escola, quando muito,
promove a mobilidade social de forma excludente, discriminatória
SUMÁRIO
Leituras Diversas: Crônicas, Ensaios e Contos
| 65
e tímida, frente a sua inoperância missionária de educar para formar pessoas criativas, socialmente atuantes, economicamente produtivas, conscientes e autorrealizadas num contexto mais pleno de
humanismo, trabalho colaborativo, empreendedorismo e cidadania.
Assim, permanecer, simplesmente, alimentando desnecessárias discussões recorrentes, voltadas para temas como “indisciplina”, “indicadores de eficiência”, “problemas socioeconômicos dos
entornos escolares”, “drogas”, “violência”, “bullying”, entre outras,
como variáveis isoladas que poderiam solucionar os conflitos e a
atual desqualificação da instituição escolar, configura-se numa
abordagem e postura infrutíferas, caso não se resolva promover
uma definitiva mudança global de modelo, uma transformação, no
seu sentido realmente paradigmático.
É preciso, portanto, uma reviravolta de 360 graus, reconstruindo-se o atual modelo e tomando como plataforma de mudança
as intrincadas relações de causa-efeito que permitem aflorar constatações científicas sobre os gravíssimos problemas que afetam a
disfunção social da escola e podem apontar para soluções que sejam transformacionais e sustentáveis, ao invés de pontuais e casuísticas.
Essa ideia radical de mudança transformadora, de construção de um novo design escolar aqui defendida, encontra paralelo
na análise feita por Sibilia, que faz a seguinte observação: “Será
necessário transformar radicalmente as escolas [...] redefini-las
como espaços de encontro e diálogo, de produção de pensamento
e decantação de experiências capazes de insuflar consistência nas
vidas que as habitam”.5
Mudanças cosméticas ou transformação?
Em sentido diametralmente oposto as suas origens, a Escola
Contemporânea, “pós-moderna” - também denominada por alguns de Escola do Futuro - precisa desenvolver flexibilidade organizacional e conceitual para imprimir velocidade no mesmo compasso em que ocorrem as profundas transformações sociais, políticas e
econômicas da sociedade atual. Por outro ângulo, não parece razoável dissociar o mundo do trabalho, e seus processos organizativos
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de produção, do modelo de educação e tipo de escola que se pretende analisar ou reconfigurar.
Contrapondo-se, ao tempo onde se dependia exclusivamente da produção de bens e serviços convencionais, os estrondosos
avanços da Era do Conhecimento foram gradativamente exigindo
do mundo corporativo e da nova economia da informação uma
maior dependência em relação à criatividade e à participação ativa
dos seus colaboradores.
Ken Robinson reforça essa necessidade transformacional,
quando salienta que “essas maneiras de abordar a educação
também estão sufocando uma das mais importantes capacidades
de que os jovens de hoje necessitam para abrir caminho no mundo
cada vez mais exigente do século XXI: o pensamento criativo”.6
Nesse ambiente pós-moderno de constante renovação de
tecnologias, de novos métodos de trabalho, de variadas forma de
aprendizagem, onde predomina o sentimento onde tudo que é sólido
desmancha no ar, 7 a escola precisa incorporar novas tecnologias
educacionais e buscar a sua sintonia perdida com a nova geração
do entretenimento e da Internet adotando uma postura de cunho
proativo, lúdico e futurista, abrindo, assim, as suas portas para o
novo mundo, incluindo a participação efetiva da família, da comunidade, da sociedade e das empresas, numa perspectiva sistêmica.
Dentro de um cenário tal, a inovação tecnológica, com sua
velocidade exponencial e peso inexorável, tem se mostrado a variável mais saliente e que mais assombra e influência de forma marcante a vida do ser humano no século XXI. Nesse contexto a escola
é um elemento-chave que não pode ficar fora das prioridades do
Estado e da sociedade em prover escolas de qualidade e de futuro
para todos.
Buscando-se, por outro lado, uma conceituação mais profunda do que significa Escola do Futuro - expressão hoje muito suscitada -, não basta se recorrer à tecnologia e à virtualidade, ao paradigma da “escola digital”, à tecnologia do hardware e do software; é preciso construir, isto sim, uma visão que seja a mais sistêmica e ampliada possível, envolvendo outras categorias analíticas
para que se possa dispor de uma compreensão epistêmica mais
real sobre tão crucial necessidade de levar sentido concreto ao real
papel da escola no século XXI.
SUMÁRIO
Leituras Diversas: Crônicas, Ensaios e Contos
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No “Relatório Jacques Delors”, encontram-se os pressupostos
transformacionais para a visão sistêmica a ser construída na educação do novo milênio, de maneira que possa emergir um modelo
escolar diferenciado, enquanto lugar de prazer e felicidade no ato
sagrado de aprender, ou, conforme afirma o referido autor e organizador dos Quatro pilares essenciais da educação do século XXI:
1) aprender a conhecer; 2) aprender a fazer; 3) aprender a viver juntos e a
conviver com os outros, e (4) aprender a ser. 8
Nessa visão sistêmica, as salas de aula não podem mais
guardar qualquer semelhança com as celas dos presídios. Elas não
podem mais ser um espaço de aprisionamento, de confinamento,
mas, sobretudo, um ponto de encontro, sempre dinâmico e que
seja responsável pela construção de um novo perfil profissional e
de cidadania plena, em consonância e facilmente adaptável à nova
Era Conceitual9 que, por sua vez, chega num ritmo acelerado de
transformação para suceder a atual Sociedade do Conhecimento.
Considerações
Dentro desse cenário, fica claro que os novos educadores
precisam incorporar uma visão pedagógica renovada, para que
possam instar os seus educandos, a partir de uma didática mais
contemporânea e, por meio de metodologias e técnicas inovadoras,
procurar oferecer aquilo que realmente é relevante, no seu contexto social e econômico, sempre aliando competências cognitivas
com as chamadas competências socioemocionais.10
De qualquer modo, o que a escola deve primar, dentro de
uma arquitetura pedagógica moderna e de uma proposta educacional inovadora, é pelo desenvolvimento das potencialidades e
competências dos seus alunos, que precisam aprender a resolver
problemas desafiantes, inesperados e ocasionais, como de fato
ocorrem na vida, e, principalmente, dominar processos cognitivos,
sociais e emocionais de forma colaborativa e convergente.
Sem descurar da preocupação primeira, que diz respeito à
definição do tipo de aluno que queremos formar, do perfil de educador que precisamos e de um planejamento educacional consistente, é razoável concluir afirmando ser factível a busca de um
modelo diferenciado, inovador e pronto para promover transformações realmente paradigmáticas, mediante cinco variáveis11 in-
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terligadas: (1) Gestão alicerçada numa visão sistêmica e de liderança; (2) Modelo pedagógico realmente centrado na aprendizagem e
formação dos alunos; (3) Metodologia ativa, de par com uma nova
abordagem didática, rica e variada em métodos e técnicas lúdicas e
inovadoras, e (4) Modelo arquitetônico e infraestrutural focado no
bem-estar, na qualidade de vida e na satisfação estética e espiritual
dos alunos, professores e demais partes interessadas no processo
ensino-aprendizagem.
Pensamos, portanto, que aqui se encontram pontuadas algumas pistas iniciais que, aliadas ao desenvolvimento humano e a
valorização dos docentes e demais profissionais da educação, poderão contribuir para viabilizar a utopia de uma nova escola, a ser
refeita com uma ressignificação adequada à inexorável realidade
do século XXI, que não é apenas um novo século, mas, sim, uma
nova era, o começo de um novo milênio, prenuncio de inimagináveis transformações científicas, tecnológicas e educacionais que
estão chegando.
Notas
1. BRASIL. LDBE – Lei nº 9.394 de 20 de dezembro de 1996, Artigo. 1º.
2. Disponível em: http://pt.wikipedia.org/wiki/E-learning
3. FOUCAULT, Michael. Vigiar e Punir: nascimento da prisão. Traduzido
por Lígia M. Pondé Vassalo. Petrópolis: Vozes, 4. ed. 1986, p.199.
4. ALTHUSSER, L.P. Aparelhos Ideológicos de Estado. 7. ed. Rio de Janeiro:
Graal, 1998
5. SIBILIA, Paula. Redes ou paredes: a escola em tempo de dispersão. Tradução de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Contraponto, 2012, p. 210-211.
6. ROBINSON, Ken. O Elemento-chave: Descubra onde a paixão se encontra
com seu talento e maximize seu potencial. Tradução: Evelyn Massaro. Rio
de Janeiro: Ediouro, 2010, p. 27.
7. BERMAN, Marshall. Tudo que é sólido desmancha no ar: a ventura da
modernidade. Tradução de Carlos Felipe & Ana Maria L. Ioriatti. São Paulo: Companhia das Letras, 1986.
8. DELORS, Jacques et. al. Educação – Um tesouro a descobrir. Relatório a
UNESCO da Comissão Internacional sobre Educação para o século XXI.
São Paulo: Cortez: Brasília: MEC: UNESCO, 1998.
SUMÁRIO
Leituras Diversas: Crônicas, Ensaios e Contos
| 69
9. PINK, Daniel H. A revolução do lado direito do cérebro – as seis aptidões
indispensáveis para a realização profissional e pessoal. São Paulo: Campus, 2005.
10. Disponível em: http://educacaosec21.org.br/iniciativas/competenciassocioemocionais/
11. FERREIRA, Almiro de Sá. Educação profissional e tecnológica (metrologia e qualidade). João Pessoa: Ideia, 2011, p. 21.
SUMÁRIO
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A POESIA QUE SE SABE
Amador Ribeiro Neto
Charles Perrone é um poeta que só aos poucos vai revelando-se poeta. Não sei se por timidez ou excesso de rigor, o fato é
que sua poesia chega-nos em valises parcimoniosas. Mas quando
nos chega, revela-se de um modo tão singular, que abala o modo
do leitor na fruição do texto poético.
Sua poesia sabe que sabe. Tal como o fingidor pessoano. Sabe que faz, mesmo fingindo que não. Assim, ela sabe fazer o leitor
sentir-se, também, como aquele que sabe. Sentir-se inspirado, diria
Valéry.
Esta é uma das virtudes dos grandes poetas: dominar a linguagem poética e ainda encantar o leitor com as descobertas, as
epifanias e os insights que provoca nele.
Somente quem domina o ofício de fazer poesia (poiésis, no
grego) é capaz de encaminhar o leitor por labirintos de revelações
sempre inesperadas. Desautomatizadas, como queria Chklóvski.
Re-veladoras de um momento singular, como apregoava Heidegger. Assim, aquilo que num momento fora prosaico, transmutase, no momento seguinte, em poético.
Charles A. Perrone é um brasilianista que leciona literatura e
cultura luso-brasileiras na Universidade da Florida. Além de poeta
é crítico literário, ensaísta e renomado estudioso da música popular brasileira contemporânea. A todas estas atividades, some-se a
de poeta (quase) bissexto.
Com o lançamento bilíngue de Deliranjo (Florianópolis, Ed.
Katarina Kartonera, 2013), Perrone reúne um grande time de tradutores: Régis Bonvicino, Odile Cisneros, Adriano Espíndola, Paulo Henriques Britto – além de si próprio. Este detalhe é da maior
importância, já que todos os tradutores têm um estreito convívio
com a poesia, quer como tradutores e ensaístas, quer como poetas.
O livro abre-se numa homenagem “inter-americana ao mestre Décio Pignatari, falecido em 2012”. O poema “Liberdade”, de
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Leituras Diversas: Crônicas, Ensaios e Contos
| 71
Décio, ganha uma releitura poética em “Imaginação”, na qual os
jogos paronomásticos, os anagramas e os palíndromos, em uma
diagramação isomórfica, montam um lance de palavras ideológicopoético. O verso “abre as asas sobre nós” condensa o que afirmo.
Em tempo: este é o único caso em que o poema-fonte e o poemaderivado não são traduções, nem traduzidos.
“Aplauso absoluto” usa como epígrafe o neologismo “perhappiness”, que nomeia um poema de Leminski para, de imediato, indagar: “a perhapiness da performance?”. Quem conhece a
obra ensaística de Perrone sabe que ele aplica o conceito de performance à voz da poesia e da canção em seu livro Letras e letras da
MPB. Ou seja: é preciso ler a intertextualidade explícita com o poeta curitibano, mas é preciso também ler a intratextualidade implícita com o próprio autor.
No compasso do poeta citado ele, poeta em ação, lança, ora
aqui, ora ali, o brilho de dois neologismos: vigilanciem e ser-meadas.
Assim, aplaude-se a poesia, o poeta e se autoaplaude num poema
que é homenagem de homenagens, “dança e canto” caetânicos,
jogo de lances mallarmaicos. O verso final, bem ao estilo do grande
homen-ageado curitibano: “o tempo curto em casa”. (A diagramação
é mesmo assim, guardando fartos espaços entre as palavras de um
mesmo verso). Coisas de Leminski. Coisas de Perrone. Herança da
poesia concreta, por exemplo.
Já o poema “presente de fim de ano” vale-se da linguagem
prosaica, de tal modo que poderia ser escrito sob a forma de um
bilhete. Todavia o poeta opta pela estrofe de sete versos (também
conhecida como sétima ou septilha) e, assim, leva o leitor, sutilmente, aos encantos e sonhos de uma linguagem poética de forte
tradição popular, para tratar do mundo corriqueiro das festas de
fim-de-ano: presentes, promessas, vidências.
Por fim, conclui inesperada, heideggeriano-lacanianamente:
“nós queremos a mesma coisa que é”. A Coisa. A busca da Essência. Existirmos, a quantas perguntas se destina? Poesia, teu nome é
prédica e predestinação. A velha logopeia revisitada: poetaprofeta.
O tempo, que já aparecera nos dois poemas citados anteriormente, volta a ser um dos nós górdios em “Itinerário atualizado”
– já desde o título um update, um upgrade temporal. Se em “presente de fim-de-ano”, o primeiro verso ao pontuar: “então ela também
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resolveu vir me pedir”, introduz uma narrativa in progress, deixando o leitor, de fato, a ver navios – ou a imaginar e criar situações possíveis/plausíveis – o mesmo recurso, de lançar o leitor em
meio a um mundo em torvelinho, ressurge no verso que abre “Itinerário atualizado”: “e agora ser baixado para”. Sem dúvida, a
linguagem dos dois poemas não somente acolhe o leitor, como
projeta-o como coautor de ambos os poemas.
Os jogos sonoros dos versos iniciais de “paz interior” apontam para uma expansão do mundo a-lógico: “arreliando e / arrasando a razão”. Ri-se aqui o “ride, ridentes! / Derride derridentes”!, de Khlebikóv, na memorável intradução de “Encantação pelo
riso”, feita por Haroldo de Campos. Ou como o próprio Leminski
destaca em seu livro sobre a biografia que escreveu sobre Cruz e
Sousa pra Coleção Encanto Radical, ao citar o soneto “Acrobata da
dor”, destacando o verbo rir genialmente incrustrado no vocábulo
tristíssimo, em verso que encerra o poema: “Ri coração, tristíssimo
palhaço”
Os versos seguintes de “paz interior” remetem ao mundo
barrocodélico de Leminski ao mesmo tempo que somam-se ao
universo haroldo-joyceano de compor neologismos: “/ seja cartesiano / discartesiano”. Um pôr e retirar, ao gosto barroco; um
construir e desconstruir à la Derrida; um conter e expandir à la
Deleuze. Enfim, um propor e descompor, sempre lúdicos. A palavra enquanto brincadeira, enquanto “promessa”, para “além da
borda / a natural orla / sem limite preciso”, levando o leitor à
zona do fronteiriço, da borda, da orla, do território sem limite.
A paz interior é um caso de afrouxamento, riso, desrazão,
música e prazer. A poesia se presenta como coisa que é – e que se
autofaz.
“Um pedestre dantesco” e “Confissão de um pedestre senciente” retratam duas cenas de dor e morte.
O pedestre do primeiro poema jaz “imóvel debruçado / no
pavimento jamais andar / nem subir alturas itálicas / só pra cair
tenebroso / inferno algum / eterno distante”. O poeta mergulha
uma palavra na outra, tecendo a cena como um todo inconsútil: jaz
insere-se em jamais; o não andar (andar enquanto verbo e substantivo) mescla-se ao não subir; não subir desenvolve-se em alturas
itálicas, referindo-se às cenas de morte do Edifício Itália, marco
arquitetônico de São Paulo, que fica na região central da cidade,
SUMÁRIO
Leituras Diversas: Crônicas, Ensaios e Contos
| 73
verdadeiro “inferno”. Inferno reverbera imagem e som em eterno.
E Dante imiscui-se em distante. Elo a elo, o poeta monta a cena
numa descrição em movimento sobre um corpo inerte. O dentro e
o fora do pedestre no redemoinho da cidade grande. Tudo aponta
para o pedestre morto: moto-contínuo. Por isto mesmo a disposição dos versos do poema desenha uma grande seta de trânsito,
indicando a direção a ser tomada.
O segundo pedestre, do segundo poema, conta sua própria
história de cegueira, sensações e morte, no vaivém do trânsito das
esquinas. Um acidente, vislumbrado em meio a um clarão, espalha
a escuridão e põe o pedestre em dúvida: “Um tremendo clarão até
avassalador? / Dizem que aquilo é sinal de morte. Devo estar,
pois, morto”. Cego, aguçam-lhe os outros sentidos, e “ainda posso
me ouvir perguntando em voz alta o que se passa”. Sente o cheiro
do asfalto, do “ar que flui”, “o gosto da carne nos ossos dos dedos”. Numa paródia cartesiana, conclui entre irônico e sarcástico:
“E se sinto, ainda que não de todo, sou. / E sou todo a favor de
ser”.
O poeta, uma vez mais, brinca com a intertextualidade poética: os dois versos finais do poema resposta-homenagem de Augusto de Campos a João Cabral dizem: “nunca houve um leitor /
contra mais a favor”. E este poema, ao promover a voz do morto,
traz também a voz do poema em si, o canto do cisne, que Augusto
já antecipava em “Diálogo a um”: “– Eu sou o Canto. Cada vez que
morres / Eu nasço. Tu vives. Eu vivo sobre”. E conclui num verso
oracular e metapoético: “ – Sou o Poeta digo o que não morre”.
A poesia de Charles Perrone espraia-se em versos abundantes ou se guarda na contenção. Em ambos os casos, a contensão
com a palavra que sabe, e que se sabe obrigada a uma cumplicidade com o rigor poético e com o leitor de poesia. Eis o que determina o tom e o tônus de Deliranjo.
Lira de um delírio: o de saber e o de saber-se poesia num
mundo de acidentes e de asas que se abrem. Céu e inferno de Wall
Street. Anjo. Anjo marginal. Charles da canção de Jorge Ben – replicante e replicável de um brasilianista que se sabe estrangeiro.
(Em sua própria terra, também?). Por isto mesmo ele canta o canto
da palavra, matéria concreta e viva da poesia que vai. Que segue.
Que se entrega para lampejos, quereres e pulsões do leitor. Uma
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poesia do tempo, do homem, da cidade. E, antes de tudo, do saber.
Dos saberes.
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Leituras Diversas: Crônicas, Ensaios e Contos
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O BOQUEIRÃO:
UMA NOVELA ESQUECIDA?
Ângela Bezerra de Castro
“Amo os pobres, e amo muito mais os oprimidos. Tenho menos piedade das dores físicas do que das dores morais. Sem
os bens materiais, o homem não deixa de ser homem. Mas a
perda da liberdade é a perda do corpo e da alma.”
(José Américo de Almeida)
Tão logo retomei O boqueirão para uma nova leitura, em
reverência à memória de José Américo, na passagem do seu trigésimo aniversário de falecimento, veio à minha lembrança uma
afirmação feita por Rachel de Queiroz, em conferência na UFPB.
“Livro é como gente. Uns tem sorte. Outros, não.”
Lançado em 1935 pela histórica José Olympio, O boqueirão
teve a segunda edição através da Leitura/MEC, em 1971, e a terceira pela Civilização Brasileira, em 1979. Esta uma edição especial,
com prefácio do escritor Leandro Tocantins, reunindo Reflexões
de uma cabra, O boqueirão e Coiteiros.
Cada uma das novelas precedida de um estudo crítico. Respectivamente: O humor poético na obra de José Américo, do professor José Ferreira Ramos; A sinfonia pastoral do Nordeste, do
professor Juarez da Gama Batista e Introdução crítica, do professor francês Jean Orecchioni, especialista sobre o tema do cangaço.
A Fundação Casa de José Américo é responsável pelas duas
publicações mais recentes dessas novelas. Uma, em 1994, antecipando a comemoração dos sessenta anos de O boqueirão e Coiteiros. Outra, em 2008, para marcar a passagem dos cento e vinte
anos de nascimento do escritor.
Aqui é preciso fazer uma retificação. Nas publicações da
FCJA, O boqueirão atinge a quarta e quinta edições. E não a segunda e terceira, como está impresso nos volumes que reúnem as
três novelas.
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76 | M a g n o N i c o l a u ( O r g . )
Se estabelecermos uma comparação com A bagaceira, que já
alcançou a quadragésima segunda edição, podemos concordar
com a grande escritora cearense no tocante à sorte. Ou então buscar razões concretas para tal descompasso entre a divulgação das
duas obras.
Nos pressupostos gerais estabelecidos para a ficção, José
Américo permanece o mesmo do Antes que me falem, texto denominado pelo professor Milton Marques Júnior de “prefácio interessantíssimo” do regionalismo moderno, numa feliz equiparação
ao papel desempenhado pelo de Mário de Andrade em relação ao
Modernismo. Este enaltecido pela crítica do eixo Rio-São Paulo. O
de José Américo recusado pela visão preconceituosa.
O boqueirão é também uma tentativa de persuadir, dizendo
a verdade, com aparência de mentira. É a tragédia da própria realidade. Nele é preciso ler as reticências e intenções para ver o que
os outros não veem. Outra vez José Américo trabalha com os contrastes e confrontos, deles obtendo o choque, recurso retórico para
despertar consciências adormecidas.
Mas, no processo narrativo, verificam-se mudanças em relação ao romance A bagaceira. Visível contenção do narrador e ênfase no diálogo dos personagens, o que imprime à narrativa maior
agilidade no ritmo, em correspondência com as inquietações e
mudanças que são motivos recorrentes da novela. Outro aspecto
que merece destaque neste paralelo é a economia nas descrições da
paisagem. A grande ênfase é para as estradas com a poeira levantada pela barata vermelha, presença insólita na região perdida no
tempo, estagnada numa idade distante da era da máquina e da
velocidade. A passagem da “liteira azul que andava um século
para chegar” é o símbolo mais ostensivo dessa realidade anacrônica.
As ações de O boqueirão têm como espaço o sertão, durante
a construção de um açude, no qual se depositavam grandes esperanças.
Dois jovens engenheiros, um brasileiro e o outro americano,
formados em Ohio, se incorporam à construção da obra. Remo,
inconformado com o atraso da região de onde é natural, que ele
chama de “terra da seca”, sente-se inadaptado às origens, passando a contestar costumes e valores antigos. Frank White, vivendo
despreocupadamente a novidade da diferença cultural, torna-se
SUMÁRIO
Leituras Diversas: Crônicas, Ensaios e Contos
| 77
crítico de Remo. E o diálogo entre os dois se faz um debate permanente.
O tema dominante não será técnico ou econômico, como se
poderia supor. A grande preocupação de Remo se volta para a
relação homem-mulher, contra “o amor sertanejo que escraviza”.
O seu ideal é que as moças “aprendam a viver na intimidade dos
homens sem amá-los”.
Os conceitos de Remo antecipam práticas dos relacionamentos contemporâneos: “O amor é um brinquedo; a gente ama para
distrair-se.” É o que ele afirma ao amigo e às personagens femininas da novela: Elsa Louro, Irma e Gracinha.
De forte conteúdo simbólico, as três moças que interagem
com os dois engenheiros. Elsa, de cabelos muito curtos, “cabeça de
garoto”, como caracteriza o narrador, vive uma liberdade exibida,
parecendo mais importante a exibição que o exercício de ser livre.
Irma é a moça romântica, presa aos valores do passado, esperando
um amor que não existe mais. E Gracinha, a mais jovem das três,
segue sem saber por que nem para onde.
É admirável a abordagem temática de José Américo, focalizada na perspectiva de mudança do padrão de comportamento
feminino em relação ao homem. Em 1935, concretiza uma antecipação dos grandes conflitos que as mulheres iriam vivenciar, acentuadamente, a partir da segunda metade do século XX.
Remo é o arauto dessas mudanças. E em cada diálogo emite
um novo conceito, confrontando o estabelecido. A dona Flora, mãe
de Gracinha, responde sem meias palavras: “De moça eu gosto.
Não gosto é de namoro. E de amor muito menos.” E com Gracinha
ele ainda vai mais longe: “Dá-se um beijo como se dá aperto de
mão. É sinal de amizade. Amor é que é tolice...”
Quanto às figuras femininas, ouso afirmar que, fracionadas
em três, elas representam uma única personagem: o ser feminino
que irá projetar-se na grande revolução do século XX, deixando de
“Morar na janela! (......) prisão terrível, porque dá para a imensidão
livre”, e conquistando o “direito à porta; sai quando quer e volta
quando quer.” São metáforas da novela para exprimir o espaço a
ser conquistado pela mulher, além dos limites domésticos em que
vivia confinada.
Lembro aqui a pergunta que me fez o mestre Juarez há mais
de quarenta anos, testando minha compreensão desta novela: “Vo-
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78 | M a g n o N i c o l a u ( O r g . )
cê é Irma, Gracinha ou Elsa?” Eu não tive dúvida em responder
que era as três.
Porque na luta para ultrapassar imposições de comportamento que lhe anulavam a identidade, para vencer a privação de
liberdade que lhe “roubava o corpo e a alma”, a mulher não poderia abrir mão da grande realização no amor, que afinal era o sonho
de Irma. Por vezes, foi preciso assumir o radicalismo de Elsa, até
como forma de defesa ou de convencer a si mesma que era preciso
mudar. E muitos passos foram incertos como os de Gracinha, sem
a convicção de onde queria ou poderia chegar.
Apesar do título, não é o processo de construção do açude
que domina a narrativa. Mas as mudanças de costume operadas no
sertão pela grande afluência de trabalhadores de diversas origens,
pela presença estonteante das máquinas descomunais e pela quantidade de recursos que passam a circular, em razão dos salários e
das compras que a obra propicia.
É nesse contexto que se movimenta o grupo de jovens protagonistas da novela, organizando encontros, passeios, festas, onde
Remo vai reiterando o discurso de que ama “pswwara desmoralizar o amor (.....) fruto que vai colhendo no caminho da vida; não se
guarda para não apodrecer.”
Até que, de repente, um telegrama anuncia a paralisação dos
trabalhos. E é patética a reação de Remo, “convocando os sertanejos à reação coletiva.” No entanto, o que resta é “o boqueirão escancarado, a boca de fome dos sertões, o símbolo de séculos de
penúria irreparável”.
O boqueirão tem um desfecho trágico. A obra paralisada,
com o desperdício de todos os recursos empregados, expõe uma
ferida crônica da administração pública. Ferida braba que, há séculos, corrói e consome os destinos humanos.
O escritor faz convergir para Irma o impacto de todas as
consequências: “Ela despencou, sozinha, formando, com o corpo
despedaçado, a barragem simbólica, amassada em sangue, fechando o boqueirão, num protesto vingativo de esperanças ludibriadas.”
Hesitei em escrever essa leitura porque defendo a compreensão de que a atividade crítica deve consubstanciar a descoberta.
Deve acrescentar. E eu não admitia que fosse possível dizer mais
sobre O boqueirão do que está escrito pelo professor Juarez da
SUMÁRIO
Leituras Diversas: Crônicas, Ensaios e Contos
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Gama Batista, em A sinfonia pastoral do Nordeste. Ensaio de tamanha grandeza, na competência hermenêutica e na erudição, que
redime a novela do esquecimento e já não se pode falar em falta de
sorte.
Fazendo a saudação ao ensaísta, em sua posse na Academia
Paraibana de Letras, José Américo detalha os méritos dessa leitura
transcendente: “O boqueirão é esquivo. E ele procurou sua percepção até possuí-la. A sinfonia pastoral do Nordeste reconheceu
tudo o que se transformou em mito. Descobriu segredos; indicou
como foram simbolizados certos movimentos e decifrou reticências. Identificou o que foi recriado do efêmero e por isso parecia
inverossímil.”
No entanto, a Fundação Casa de José Américo, quando reeditou O boqueirão, eliminou A sinfonia pastoral do Nordeste das
duas publicações. Diante de gesto tão aberrante, talvez seja preferível nem imaginar as razões ou desrazões que o motivaram...
O romancista, patrono desta casa, sabia o valor da leitura crítica. Recebeu o grande ensaio como um presente. E, encantado
com o processo comparativo que professor Juarez desenvolve, fez
o elogio à erudição, dizendo que o texto “como que foi escrito num
canto iluminado dentro de uma biblioteca, lendo todos os livros ou
dentro de um museu, olhando para todos os quadros”.
O cuidado com a fortuna crítica tem sido a regra geral entre
os escritores. No caso de José Américo, existem duas evidências
dessa preocupação: a resposta que ele deu a Agripino Grieco, em
defesa de A bagaceira e a iniciativa de reunir os textos que compõem o volume José Américo: o escritor e o homem público, organizado por Gonzaga Rodrigues e publicado pelo jornal A União,
em 1977.
Embora conte com alguns importantes destaques de publicação, ao longo de sua história, a Fundação Casa de José Américo
tem sido um tanto negligente, no tocante à preservação da obra do
patrono. Falta um programa consistente e continuado de divulgação.
A ausência de José Américo como um dos autores estudados
no vestibular da UFPB é inaceitável. Um grande empenho da Fundação, neste sentido, levaria o escritor a todos os professores e
alunos do 2º grau. Também não me vem à lembrança nenhum seminário sobre algum dos seus livros ou debates sobre os temas de
SUMÁRIO
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sua preocupação. E ações dessa natureza são prioritárias, pois este
é o objetivo maior da Fundação.
No entanto, temos visto, com tristeza, a proliferação de medalhes e diplomas, cujo valor simbólico vai se esvaziando pela
prodigalidade.
É hora de refletir sobre as prioridades e estabelecer linhas de
ação que resultem cada vez mais no conhecimento da obra política
e literária de José Américo.
Com meu estudo de hoje, espero haver contribuído para
uma primeira leitura de O boqueirão, facilitando o acesso ao elevado ensaio do professor Juarez, onde o reconhecimento dos mitos
é mais que a descoberta do romance. É uma recriação.
(Pronunciado na FCJA em 9 de março de 2010)
SUMÁRIO
Leituras Diversas: Crônicas, Ensaios e Contos
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FELIPE TIAGO GOMES:
PALADINO DA EDUCAÇÃO
COMUNITÁRIA BRASILEIRA
Astenio Cesar Fernandes
“Eu sou Felipe Tiago Gomes, nascido em Picuí, pequena cidade do Estado da Paraíba. Criança campesina descobrindo os
encantos da natureza, eu contemplei o alvorecer em arrebol sangrento de sol. No meu imaginário infantil, guardo a lembrança do
preá preso no fojo armado nas veredas, necessário à alimentação
da gente de minha terra, desprovida de sustento. Recordo o tanger
de muares em busca de água escassa e lembro-me ainda de caminhar quilômetros rumo à escola, tangendo sonhos. Mas um dia
precisei partir da minha terra - a mais bela do mundo, porque é a
minha terra. Parti tangido pelos meus sonhos. Ternos sonhos de
esperança”.
Inspirado em poetas da antiguidade, Horácio ou Ovídio, Felipe poderia ter escrito essa epístola destinada à posteridade. Mas
preferiu não escrevê-la. Mesmo assim, hoje, sua energia sublime
permanece nos campos de Picuí, voejando encantada sobre as serras.
O fenômeno social da educação, processo de ensino e aprendizagem, comportando também as relações familiares, é desenvolvido na escola através de seus educadores, de forma intencional.
Desse modo, a cultura apresentada por um determinado grupo
social é preservada a partir do convívio dos indivíduos gerando
socialização e endoculturação. Já o saber se inclui como meta da
educação escolar, sendo elemento fundamental para o desenvolvimento humano, independentemente de ideologias. Assim, os
filósofos ou pensadores da educação, aqueles que se ocupam intencionalmente da educação como objeto de reflexão ou de estudo,
expressam teorias e definem procedimentos educativos.
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O direito à educação de um povo é papel essencial do Estado. Contudo, lamentavelmente, no princípio do século XX, o Brasil
apresentava carência de escolas públicas e, consequentemente, não
contemplava a demanda por escolaridade. Havia as escolas privadas, mas eram reservadas aos ricos. À época, poucos podiam ter
acesso ao ensino público e gratuito. Assim, a escola pública, gratuita e de qualidade não passava de um sonho do ilusório liberalismo
clássico.
Nesse contexto, surgiu, em 1943, um movimento de estudantes secundaristas, liderado por Felipe Tiago Gomes, que culminou
com a criação de um curso ginasial aberto às pessoas carentes.
Aqueles estudantes não imaginavam que um dia essa célula de
ensino não estatal, mas destinada ao povo, chegaria a ter milhares
de alunos, em mais de mil escolas espargidas pelo Brasil.
O movimento - embrião da futura Campanha Nacional de
Escolas da Comunidade - assumiria proporções gigantescas e configurações passíveis até de crítica ideológica, com questionamentos
à sua ação comunitária. Nesse sentido, o professor José Rafael de
Menezes explica: “Um filósofo italiano, Frederico Sciacca, prefere o
termo comunionismo a comunitarismo. Ao contrário do comunismo, o comunitarismo evolui como um processo social libertador
dos seres humanos; não estatiza e não totalitariza”. Embora de
natureza doutrinária, aquele movimento de idealistas ficou sempre
alheio a quaisquer ideologias e conceitos de comunitarismo.
No entendimento de Marco Túlio Cícero, “a história é a luz
dos tempos, a contemporânea do gênero humano, a depositária
dos acontecimentos, a testemunha da verdade, a alma das recordações”. Assim, no longínquo e inóspito Nordeste do Brasil, Felipe
Tiago Gomes e seus companheiros inscreveram-se no cenário da
educação nacional. Felipe seria, contudo, o eterno timoneiro da
nobre causa.
Por sua origem nordestina, Felipe enfrentou uma trajetória
de vida pobre e difícil. Alfabetizado pela irmã Francisca, estudou
depois em escola pública na sua cidade. No ano de 1936 ingressou
no Colégio Pio XI, em Campina Grande, cidade polo da mesorregião paraibana. Fundou e presidiu em Picuí, em 1938, o grêmio
lítero-cultural Humberto de Campos. No ano de 1941, após concluir o curso ginasial, transferiu-se para a cidade do Recife, no Estado
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Leituras Diversas: Crônicas, Ensaios e Contos
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de Pernambuco. Morando na casa do estudante, estudou no Ginásio Pernambucano.
Em Recife, junto com outros alunos secundaristas, a partir
da leitura de “O Drama da América Latina”, de John Gunther,
inspirado nos ensinamentos de Víctor Raúl Haya de la Torre, criou
a primeira escola. Haya de la Torre, político peruano de tendência
nacionalista, participava de movimentos populares. Era vinculado
às universidades populares Gonzalez Prada, instituições que, através de jovens universitários, educavam as camadas pobres da população, incluindo os índios. Aquele notável idealista valorizava o
homem original. Assim, em diálogo descrito por John Gunther,
designava a região com a expressão Indoamérica e não América
Latina, numa distinção ao povo primitivo. Em “O Drama da América Latina, John Gunther fez a análise geopolítica dos países da
América Latina. Ao abordar o Brasil, faz referências a personalidades políticas entre as quais inclui os paraibanos Epitácio Pessoa e
Assis Chateaubriand.
Foi, portanto, aquela iniciativa peruana que motivou o surgimento de um novo modelo de educação social no Brasil. Ao evoluir, esse molde careceu de recursos e se fortaleceu mesclando o
ensino público, patrocinado pelo Estado, ao ensino privado, apoiado na comunidade. Dessa forma, voltado às camadas carentes da
sociedade. Palco das ações de Felipe durante toda a sua existência,
esse significativo modelo sustentou uma realidade infensa a tratado de ideias ou ideologia, embora comportando doutrina comunitária.
Em meados do século XX, uma pesquisa social erudita, realizada pelo sociólogo estado-unidense Donald Pierson, introduzia o
tema em nosso meio. De outra parte, o padre dominicano LouisJoseph Lebret, criador de um grande número de associações e autor da obra “Princípios para a ação”, visitava o Brasil, precisamente,
no ano de 1954. Nesse mesmo período, afastando-se das teses eruditas desses educadores, Felipe e seus companheiros, com êxito,
instituíam um pluralismo empírico, centrado na união de pequenos grupos nascidos na comunidade e que a ela se voltavam de
maneira natural. Foram formados grupos de líderes que se reuniam, democraticamente, em conselhos assemelhados aos conselhos
comunitários dos povos incas e maias, a exemplo do que também
aconteceu na Grécia e em Roma, nas famosas audiências públicas.
SUMÁRIO
84 | M a g n o N i c o l a u ( O r g . )
Nesse sistema, as pessoas da comunidade eram incluídas na
escola, segundo assinala Ivanildo Coelho de Holanda: “O núcleo
comunitário, ou setor local, tem como principal responsabilidade a
criação e a manutenção da escola através de recursos da comunidade”. A partir desses setores locais, reunindo colaboradores abnegados, Felipe fomentou o ideário místico do cenecismo: entusiasmo, alegria de servir, emoção e fraternidade. Transmitia assim a
mesma essência doutrinária exaltada pelo filósofo Henri Bergson:
“A técnica precisa de um suplemento de alma ou então tudo se
materializará no contraditório”.
Pode-se avaliar o caráter visionário de Felipe e seus seguidores, observando, por exemplo, o que escreveu recentemente o educador Ulisses Ferreira de Araújo: “Nos projetos de educação comunitária que temos desenvolvido, os esforços da instituição e de
seu corpo docente orientam-se através de duplo sentido: de fora
para dentro da escola e de dentro para fora da escola. Trazer o que
está fora da escola para seu interior significa sensibilizar o olhar de
seus agentes - alunas e alunos, professores e professoras, funcionários - para o seu entorno”.
Felipe não foi um teórico erudito da educação brasileira que
buscava reformular o ensino ou implantar pedagogias para educandários, a exemplo de Anísio Teixeira ou Paulo Freire. Também
não foi um ideólogo. Ao contrário, foi o dínamo a impulsionar um
movimento atuante, destinado a implantar escolas no Brasil. Criou
escolas poupando teorias (monografias ou teses) e outros suportes
intelectuais que, às vezes, só servem para desperdiçar talentos e
recursos. Nas escolas por ele idealizadas, os menos afortunados
encontraram o caminho da cidadania por intermédio do ensino
possível: professor, livro, lápis e caderno.
Pouco nos importam teorias como liberalismo, neoliberalismo, socialismo e outros ismos. As discussões ideológicas de John
Locke ou de Antonio Gramsci, igualmente, têm aqui pouca relevância. Importa-nos preservar a memória de Felipe Tiago Gomes,
idealizador e guia de uma causa partilhada até o seu último momento de lucidez. Importa-nos, enfim, resgatar a saga do “pequeno marquês paraibano”. Pois, sua história, com exemplaridade,
produziu valores e norteou destinos; edificou cidadania e merece
honras.
SUMÁRIO
Leituras Diversas: Crônicas, Ensaios e Contos
| 85
A FORMAÇÃO BACHARELESCA DOS
NORTE-RIO-GRANDENSES NA
FACULDADE DIREITO DE OLINDA1
Bruno Balbino Aires da Costa
Até 1850 a grande maioria dos membros da elite brasileira
foi educada em Coimbra,2 o que ocorreu de maneira diferente nos
países da América que foram colonizados pela Espanha, em que o
processo de formação intelectual se dava nas próprias colônias por
meio da instalação de diversas Universidades locais. Segundo Sérgio Buarque de Holanda, dezenas de milhares dos filhos das elites
coloniais da América Espanhola puderam completar seus estudos
sem precisar transpor o Oceano.3 Portugal adotou uma postura
diferente em relação à educação superior no Brasil. Em todo o período colonial, não houve a emergência de um sistema universitário a nível local, tendo em vista que os filhos das elites da colônia
lusitana eram formados fora dos trópicos, tendo como destino a
Metrópole, mais especificamente, a formação jurídica em Coimbra.
Com o Brasil independente e a organização do Estado nacional, muitos filhos das elites imperiais ainda eram enviados a
Coimbra, o que garantiu, ao longo da primeira metade do século
XIX, “uma homogeneidade ideológica e de treinamento necessária
para as tarefas de construção do poder nas circunstâncias históricas em que o Brasil se encontrava.”4 A formação jurídica em
Coimbra deu a elite política brasileira as condições necessárias
Esse texto faz parte do primeiro capítulo da minha tese que está sendo
desenvolvida no Programa de Pós-graduação em História da Universidade
Federal do Rio Grande do Sul (PPGHIST/UFRGS).
2 CARVALHO, José Murilo de. A construção da Ordem: a elite política imperial. Rio de Janeiro: Editora UFRJ; Relume-Dumará, 1996. p.55
3 HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. 12 ed. Rio de Janeiro: José
Olympio. p.65
4 CARVALHO, José Murilo de. Op.Cit. p.74
1
SUMÁRIO
86 | M a g n o N i c o l a u ( O r g . )
para o processo de construção e organização do Estado nacional a
partir do sistema monárquico. Além disso, permitiu que a grande
maioria dessa elite pudesse ocupar os cargos ligados ao funcionalismo público, sobretudo da magistratura e do Exército, o que possibilitou, segundo José Murilo de Carvalho, a homogeneidade ideológica, tão importante para a consolidação do Estado monárquico
e o seu corolário: a preservação da unidade territorial.5
Todavia, no Brasil, durante a primeira metade do século XIX,
houve uma inflexão no que concerne ao processo que hoje chamamos de educação superior. Com a construção do projeto constitucional de 1823, José Feliciano Fernandes Pinheiro, posteriormente, chamado de Visconde de São Leopoldo, propôs a fundação de
uma Universidade em São Paulo. Como resultado dessa proposição, Antônio Rodrigues Veloso de Oliveira, Augusto Gonçalves
Gomide e Manoel Jacintho Nogueira da Câmara assinaram o parecer que concluía um projeto de lei, mandando fundar duas universidades: uma, em São Paulo, e outra, em Olinda. 6 A necessidade
de criar os cursos jurídicos nessas localidades atendeu aos interesses políticos surgidos com a emergência do Estado Nacional, suscitando “o delicado problema de autonomização cultural da sociedade brasileira, além da necessidade de formar quadros para o
aparelho estatal.”7 O objetivo era, ao mesmo tempo, romper os
laços de formação intelectual com Portugal, mais especificamente,
Coimbra, e criar quadros para o aparelho governamental, exercendo o controle sobre o processo de formação ideológica dos intelectuais, futuros bacharéis, a serem recrutados pela burocracia estatal.8
A ideia do governo Imperial era fazer de São Paulo e Olinda
centros regionais de formação jurídica, o que levou a irrupção de
uma querela com o governo do Rio de Janeiro, interessado na cenIdem, p.33
LYRA, Augusto Tavares de. Cursos jurídicos de São Paulo e Olinda. In:
Faculdade de Direito da Universidade do Rio de Janeiro. Livro do Centenário
dos Cursos jurídicos (1827-1927). Tomo I. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional,
1928. p.431
7 ADORNO, Sérgio. Os aprendizes do poder: o bacharelismo liberal na
política brasileira. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988, p.81
8 ADORNO, Sérgio. Os aprendizes do poder: o bacharelismo liberal na
política brasileira. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988, p.88
5
6
SUMÁRIO
Leituras Diversas: Crônicas, Ensaios e Contos
| 87
tralização do curso jurídico na própria Corte. 9 Não atendendo as
pressões exercidas pelos representantes políticos do Rio de Janeiro,
o Estado Imperial decidiu regionalizar a formação jurídica.10
Nesse sentido, as escolas de Direito foram estrategicamente
criadas como centros regionais de formação, o que levou as províncias de São Paulo e de Pernambuco a se consolidarem como
polos referenciais de educação jurídica para as províncias adjacentes. Tanto São Paulo como Pernambuco, durante o período colonial
e no Império, já exerciam influências políticas e econômicas em
nível regional, o que possibilitou também a eleição dessas províncias como centros de formação intelectual. Contudo, a instalação
de cursos jurídicos nessas localidades não redundou necessariamente numa concentração exclusiva de formandos originários
dessas províncias. Segundo o relatório do Ministro do Império de
1855, cerca de 70% dos estudantes das duas escolas de Direito de
São Paulo e do Recife provinham de fora das províncias em que se
localizavam as escolas, o que demonstra uma concentração regional e não provincial. 11
Tabela 1 Alunos formados pela Faculdade de Direito em Olinda
entre 1832 a 1853
ORIGEM GEOGRÁFICA
PORCENTAGEM
Províncias do Norte
91,9%
Províncias do Sul
6,9%
De outros países
1,2%
A tabela acima12 nos permite fazer algumas considerações
importantes. Como amostra, fizemos um levantamento do número
LYRA, Augusto Tavares de. Cursos jurídicos de São Paulo e Olinda. In:
Faculdade de Direito da Universidade do Rio de Janeiro. Livro do Centenário
dos Cursos jurídicos (1827-1927). Tomo I. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional,
1928. p.431
10 CARVALHO, José Murilo de. A construção da Ordem: a elite política
imperial. Rio de Janeiro: Editora UFRJ; Relume-Dumará, 1996. p.72
11 Idem.
12 Os números que levantamos na tabela acima foram retirados da lista que o
jurista Clóvis Beviláqua apresentou em seu livro História da Faculdade de Direi9
SUMÁRIO
88 | M a g n o N i c o l a u ( O r g . )
de alunos formados entre 1832, da formatura da primeira turma da
Faculdade de Direito de Olinda (FDO), a 1853, última turma formada pela FDO.
A primeira consideração que apresentamos endossa a tese,
que já mencionamos acima, de que a formação de bacharéis em
Pernambuco não se concentrou exclusivamente nessa província,
ressaltando o seu caráter mais regional do que provincial. Dos 41,
da primeira turma formada em 1832, mais de 50% se concentrava
fora de Pernambuco. Só a província da Bahia, a segunda em termos de alunos formados e que já contava com a faculdade de Medicina, desde 1808, teve quase a mesma quantidade de bacharéis
formados de Pernambuco.
A segunda consideração que evidenciamos é a presença de
alunos fora do eixo da região Norte. As províncias de Minas Gerais, Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul faziam parte do ciclo de
influência da Faculdade de Direito de São Paulo, mas dos quarenta
e um alunos da primeira turma formada em Pernambuco, quatro
vieram dessas províncias da região Sul. A priori, não sabemos
quais as razões que motivaram Afonso Cordeiro de Negreiros Lobato, Firmino Pereira Monteiro, Sérgio Teixeira de Macedo e Antônio Manuel Fernandes Júnior - alunos advindos das províncias
de Minas Gerais, Rio de Janeiro e do Rio Grande do Sul, respectivamente -, a elegerem a formação em Olinda em vez de São Paulo.
Porém, vale ressaltar que a presença desses alunos “sulistas” demonstra que as fronteiras de formação bacharelesca não eram tão
impermeáveis assim, ou exclusivamente regionalistas, muito embora os alunos vindos da região Sul para o Norte fossem exceções.13
A presença de alunos vindos das províncias do Sul para a
faculdade de Direito em Pernambuco foi contínua, inclusive com a
formação de discentes paulistas, como, por exemplo, Antônio Manuel de Campos Melo Júnior, graduado em 1854, José Pedro de
to de Recife. BEVILÁQUA, Clóvis. História da Faculdade de Direito de Recife.
Recife: Ed. Universitária da UFPE, 2012. (Coleção Nordestina ) pp.49-51.
13 Ressaltamos que o nosso objetivo não é compreender os fatores que
motivaram esse fluxo da região Sul, da área de influência da Faculdade de
Direito em São Paulo, para a região Norte e vice-versa. Não sabemos os
números concernente a ida de alunos da região de Norte para o Sul, pois
nosso objetivo nessa tese não é adentrar por essas discussões.
SUMÁRIO
Leituras Diversas: Crônicas, Ensaios e Contos
| 89
Paiva Barracha, em 1868, e Emílio Ferreira de Abreu e Costa formado em 1886,14 o que respalda a nossa tese de que havia uma
fluidez geográfica de alunos no que diz respeito à formação bacharelesca. Por motivos geográficos e econômicos, era mais provável
que um jovem da Corte, por exemplo, tentasse ingressar na Faculdade de Direito de São Paulo, mas, por outros fatores que não tivemos a oportunidade de investigar, muitos escolheram Olinda e,
depois, Recife.
A terceira e última consideração que elucidamos diz respeito
a formação jurídica dos norte-rio-grandenses que ao longo do século XIX, se ingressaram nas fileiras da faculdade de Direito em
Olinda e em Recife. Instalada primeiramente em Olinda, em 15 de
maio de 1828, no mosteiro de São Bento, a faculdade de Direito foi
criada pela lei de 11 de agosto de 1827, que instituiu também o
curso jurídico em São Paulo. 15 A primeira fase da Faculdade em
Olinda, que vai de 1828 até 1854, quando a sede se transferiu para
Recife, é marcada, do ponto de vista intelectual, pela pouca produção inovadora e pelas reproduções de obras jurídicas do estrangeiro, caracterizando o enraizamento do jus-naturalismo católico,
devido às influências dos mestres religiosos.16 Segundo Odilon
Nestor, não havia na Faculdade de Olinda nenhuma afirmação de
ordem literária ou filosófica, tendo em vista que a forma do próprio ensino ministrado no curso jurídico caracterizou-se exclusivamente pelo aprendizado prático, não permitindo “nascer o gosto
pelos problemas transcendentes e especulativos ou ainda pelos
temas de puro interesse literário, que apaixonaram mais tarde a
mocidade do Recife.”17
Do ponto de vista político, a Faculdade de Direito em Olinda foi alvo do controle exercido pelo governo imperial, que, por
meio do Parlamento, aprovava os programas e os manuais dos
cursos jurídicos, bem como nomeava os diretores e os professores,
BEVILÁQUA, Clóvis. História da Faculdade de Direito de Recife. Recife:
Ed. Universitária da UFPE, 2012. ( Coleção Nordestina ). P.123-279.
15 Idem, p.35
16 SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espetáculo das raças: cientistas, instituições e
questão racial no Brasil – 1870-1930. São Paulo: Companhia das Letras,
1993.p.146
17 NESTOR, Odilon. O papel cultural da Academia do Recife. In: Revista
Acadêmica da Faculdade de Direito de Recife. Ano XXXV, Recife, 1927. p.139
14
SUMÁRIO
90 | M a g n o N i c o l a u ( O r g . )
responsabilidade esta conferida ao ministro do Império, resultando na centralização por meio da interferência direta do poder monárquico.18 Não obstante houvesse uma distância geográfica em
relação à Corte, a administração curricular e burocrática dos cursos
de Direito no Brasil era um reflexo da política centralizadora que a
monarquia adotou ao longo do Império. Dessa forma, o governo
Imperial regionalizou a instalação das faculdades de Direito, sem
abrir mão da centralidade.
Em se tratando do corpo discente da Faculdade de Direito
em Olinda, este advinha majoritariamente das famílias tradicionais
da região, tanto de Pernambuco como de outras províncias, vinculadas sobretudo, aos setores agrários, transformando rapidamente
as faculdades de Direito em sedes das elites rurais dominantes 19
No Rio Grande do Norte, por exemplo, boa parte dos alunos
que estudou na Faculdade no período compreendido entre 1832
até 1854, pertencia as famílias ligadas principalmente as áreas produtoras de açúcar, de algodão e da criação de gado.20 Dos aproximadamente mil alunos formados pelo referido recorte temporal,
2% vinham do Rio Grande do Norte. Dessa porcentagem, a maior
parte advinha de Natal e de áreas vizinhas, como Goianinha, zonas
de produção açucareira, e a outra parte do Seridó e da região Oeste
da província, marcada pela economia pecuarista e algodoeira.
Mas o que justificaria o investimento educacional que as famílias tradicionais da província do Rio Grande do Norte, como os
Brito Guerra, Raposo da Câmara, Castelo Branco e Albuquerque
Maranhão, e de outras regiões do Brasil, faziam para conferir aos
CARVALHO, José Murilo de. A construção da Ordem: a elite política
imperial. Rio de Janeiro: Editora UFRJ; Relume-Dumará, 1996. p. 72
19 SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espetáculo das raças: cientistas, instituições e
questão racial no Brasil – 1870-1930. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.
p.14
20 Os dados levantados foram retirados do livro “Bacharéis de Olinda e Recife” de Raimundo Nonato. Segundo o autor, sua pesquisa durou mais de cinco
anos. Raimundo Nonato registra ainda que pesquisou em bibliotecas, coleções
de jornais revistas, cartórios, sacristias, arquivos, alfarrábios empoeirados,
“além de consultas repetidas a trabalhos de quantos se têm dedicado ao estudo dos problemas históricos do Rio Grande do Norte.” NONATO, Raimundo.
Bacharéis de Olinda e Recife (Norte-riograndenses formados de 1832 a 1932).
Rio de Janeiro: Irmãos Pongetti. 1960. p.14
18
SUMÁRIO
Leituras Diversas: Crônicas, Ensaios e Contos
| 91
seus filhos uma formação jurídica? Por que não dá-los apenas a
herança latifundiária, garantindo a perpetuidade dos negócios da
família?
Como resposta a essas questões é importante levar em consideração que nem todos os filhos da aristocracia eram enviados
para completar seus estudos em Pernambuco. Geralmente, esse
destino não cabia ao filho mais velho, que socialmente era “treinado” para dar continuidade aos empreendimentos da família, enquanto que aos demais restavam à formação religiosa ou o estudo,
nesse caso, para se tornarem médicos, advogados ou se ingressarem no funcionalismo público, o que lhes possibilitava, geralmente, o ingresso nos negócios e nos quadros da política em municípios, províncias e até mesmo na Corte. Isso explica o motivo pelo
qual as elites consideravam estimadas a profissão e a figura do
bacharel. O prestígio não vinha necessariamente do curso jurídico
em si ou da advocacia, mas “da carga simbólica e das possibilidades políticas que se apresentavam ao profissional de direito.”21
Entre 1832 e 1853, os bacharéis norte-rio-grandenses formados pela Faculdade de Direito, ainda instalada em Olinda, ocupavam os principais cargos públicos do Rio Grande do Norte. Dos
vinte primeiros formados pela Faculdade, sete foram Deputados
Provinciais, legislatura política que mais recebeu bacharéis no Rio
Grande do Norte, outros se tornaram Juízes de Direito, Juízes Municipais, Presidentes de Província, Chefes de Polícia, Jornalistas,
Ministros, Desembargadores e Promotores.
Alguns bacharéis potiguares assumiram não só cargos políticos na província do Rio Grande do Norte, mas também fora dela
como, por exemplo, José Joaquim Geminiano de Morais Navarro
que foi Presidente de Província de Sergipe, Basílio Quaresma Torreão Júnior, desembargador da Província do Maranhão, e Luís
Gonzaga de Brito Guerra, ministro do Supremo Tribunal de Justiça. 22 A atuação desses bacharéis em cargos públicos fora do eixo
de sua província natal põe em relevo a configuração política do
Brasil Império, caracterizado pela intervenção, pelo centralismo e
SCHWARCZ, Lilia Moritz. Op. Cit. p.142
NONATO, Raimundo. Bacharéis de Olinda e Recife (Norte-riograndenses
formados de 1832 a 1932). Rio de Janeiro: Irmãos Pongetti. 1960
21
22
SUMÁRIO
92 | M a g n o N i c o l a u ( O r g . )
pela concentração do poder.23 Entre outras prerrogativas, o Imperador poderia, através do Poder Moderador, nomear e demitir
seus ministros e os presidentes de província, permitindo-lhe a centralização política e administrativa da Nação, desde a capital até as
remotas unidades provinciais.
A mobilidade territorial em que os presidentes de província
estavam inseridos garantiria ao governo central o controle do poder a nível local, articulando os interesses do Império com os interesses dos poderes privados locais, demonstrando as ligações políticas entre as elites regionais com o poder central.24 Desse modo, a
formação bacharelesca era importante não só para as pretensões
políticas das elites provinciais, mas também para a concretização
dos interesses políticos centralizadores da Corte.25
Ao bacharel havia uma dupla possibilidade de ingresso na
esfera pública, pois poderia atuar a nível provincial/municipal ou
obter uma abrangência maior, assumindo cargos públicos na Corte
ou em outras províncias. O bacharel passou a ocupar os espaços da
burocracia estatal em todos os níveis da administração pública.
Embora alguns bacharéis norte-rio-grandenses tenham enveredado pela vida pública em outras províncias e na capital do Império, a grande maioria foi recrutada para assumir cargos públicos
locais, muitas vezes ingressando simultaneamente em vários, garantindo a concentração de poder e a hegemonia política das elites
provinciais, as quais os recém-bacharéis representavam no âmbito
da administração e da gestão pública do Rio Grande do Norte.
Dessa forma, a figura do bacharel constituiu-se como elemento
mediador entre interesses privados e interesses públicos, entre o
estamento patrimonial e os grupos sociais locais, criando uma ver-
CARVALHO, José Murilo de. Federalismo e centralização no Império
brasileiro: história e argumento. In: Pontos e Bordados: escritos de história e
política. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 1998. p.169
24 RESENDE, Maria Efigênia Lage de. O processo político na Primeira
República e o liberalismo oligárquico. In: FERREIRA, Jorge; DELGADO,
Lucilia de Almeida Neves (orgs). O Brasil Republicano: o tempo do
liberalismo excludente – da Proclamação da República à Revolução de 1930.
4ºed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010. p.94
25 ADORNO, Sérgio. Os aprendizes do poder: o bacharelismo liberal na
política brasileira. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988. p.159-160
23
SUMÁRIO
Leituras Diversas: Crônicas, Ensaios e Contos
| 93
dadeira intelligentzia profissional liberal.26 Essa realidade não se
modificou quando a Faculdade de Direito se transferiu para Recife,
em 1854.
26Idem,
p.78
SUMÁRIO
94 | M a g n o N i c o l a u ( O r g . )
MAL QUE FAZ O CIGARRO
Carolina Corrêa Lins
O cigarro é um aliado maléfico à saúde. É uma droga que,
infelizmente, pode ser encontrada livremente no mercado. É
inadmissível, nos dias atuais, o indivíduo não ser “sabedor” das
consequências desastrosas que esse vício traz: com suas dependências psicológicas, as quais deixam o indivíduo submisso a uma
dependência difícil de curar. Há também a questão do gasto financeiro que, em alguns casos, priva o usuário do cigarro de uma melhor alimentação, priva-o também de um passeio cultural, como ir
ao teatro, comprar um bom livro, fazer uma excursão. Mas, certamente, o dinheiro para o fumo não falta. Outrossim, as sequelas na
saúde são muitas, dentre elas os óbitos. As informações estão aí,
através das campanhas educativas, nas redes de comunicações,
como redes sociais, TV, revistas, jornais e outros. Nos séculos XVII,
muitos jovens fizeram uso do cigarro como forma de chamar atenção, de sentirem-se modernos, mas eram despreparados quanto ao
saber do perigo do fumar. Não se admite, hoje, alguém dizer que
fumar é uma forma de relaxar. É lamentável ainda no século XXI
um ser humano está preso a essa armadilha.
É hora de refletir e lutar para extinguir esse ato de fumar,
que não só faz sofrer a pessoa, como também a família e os amigos
que convivem com o fumante. Esses conviveres, consequentemente, tornam-se um fumante passivo, sujeitos a pagar pelo ato sinistro, por estar ao lado daquele que é envolvido com essa droga lícita.
Fumar não vale a pena: é um mal para si e para quem o ama,
pois destrói a saúde. É triste existir o fumo. Viva com plenitude! É
magnífico, é saudável, é louvável viver sem a droga do vício.
SUMÁRIO
Leituras Diversas: Crônicas, Ensaios e Contos
| 95
O ESPELHO NOS CONTOS DE MACHADO
DE ASSIS E GUIMARÃES ROSA: A
CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE NOS
PERSONAGENS MASCULINOS
Cyelle Carmem
O espelho, por vezes, é objeto de adoração; outras, necessidade básica e ainda de manifestação da verdade e do obscuro. Ele
também é sinônimo de autoestima, de amor próprio e vaidade.
Representa a verdade, a autocontemplação e reflexão do universo.
No entanto, pode mostrar o puro, as coisas como elas são; por outro lado, pode deturpar a verdade, enganar. Diante de um espelho,
o que você vê? Essa é a resposta que incessantemente desejamos
obter.
No conto O Espelho, de Machado de Assis, publicado no livro Papéis Avulsos, de 1982, Jacobina, o narrador, afirma haver duas almas: uma que olha de fora para dentro e outra, de dentro para
fora. Acredita que uma completa a outra, e a “perda da alma exterior implica a de uma existência inteira”. O narrador conta que
virou alferes e passou a ser paparicado pela tia Marcolina. O orgulho sentido pelo sobrinho era tanto que ela colocou um grande
espelho no quarto em que Jacobina estava hospedado para que
este se olhasse e se envaidecesse como alferes, alimentando seu
amor próprio, mesmo vindo de uma posição social e não pessoal.
Dessa forma, com a presença do espelho, o alferes eliminou o homem. Após três semanas, era exclusivamente alferes.
Ao ficar sozinho, ainda não havia se olhado ao espelho.
Após oito dias, decidiu vestir-se com a roupa de alferes e a imagem pareceu-lhe real, integral. Como sentia-se bem ao ver-se uniformizado, vestia-se todos os dias, a certa hora, e assim permanecia por duas ou três horas.
O espelho no conto de Machado de Assis faz um duplo papel: ao mesmo tempo que dá vida ao alferes, rouba a identidade do
SUMÁRIO
96 | M a g n o N i c o l a u ( O r g . )
homem Jacobina. A tia, orgulhosa de o sobrinho alcançar a patente
nas forças armadas, previu o ponto de vista que o espelho teria, de
exagerar, valorizar as qualidades e as características de exaltação
de sua personalidade masculina. Ao se ausentar da fazenda e dos
olhos do sobrinho, o espelho passa a fazer o papel da carinhosa
parente, de paparicá-lo, de agradar seu ego. A partir daí, o espelho
faz nascer o alferes, orgulhoso de si mesmo, digno de se vestir
adequadamente com a farda tão ilustre.
A psicologia explica que só vemos aquilo que nos interessa
ver. Como os elogios, o tratamento especial e a adulação da tia
contaminaram o inconsciente do jovem alferes, este só via a imagem eminente, antes tão valorizada. Diante disso, pode-se comprovar que Jacobina esquece-se de observar seu eu pessoal e foca
apenas na personalidade masculina formada pelo uniforme. Neste
momento, o espelho sequestra a persona e devolve o homem criado
pela aparência social.
Já no conto de mesmo título, de Guimarães Rosa, parte integrante do livro Primeiras Estórias (2005), assim como no conto supracitado, os fatos são experiências do narrador. Neste, o narrador
afirma que há os espelhos bons e maus, os que favorecem e os que
traem, como, por exemplo, as fotografias.
Um dia viu-se no espelho e não se viu, nem como homem,
nem como reflexo dele. “Eu era-o transparente contemplador?”
“Voltei a querer encarar-me. Nada... eu não via os meus olhos.
Seria eu um... des-almado?”
Guimarães Rosa utiliza o espelho para fazer uma reflexão a
respeito da busca de identidade da personalidade, modelo contrário ao existente no conto de Machado de Assis, que retrata um
personagem que perdeu sua identidade em função de outra criada
pela sociedade.
Os dois contos abordam o tema “espelho” de pontos de vista
diferentes, embora a meta seja a análise do próprio eu, a busca da
identidade masculina e o reconhecimento de sua perda, seja através de substituições por personagens artificiais, seja por perda
total de si mesmo, afetada por influências externas, como as crenças místicas.
Assim, o espelho é um instrumento de diálogo consigo
mesmo, incessantemente à procura de respostas para questionamentos imanentes do ser humano, da alma inquieta e sem acolhi-
SUMÁRIO
Leituras Diversas: Crônicas, Ensaios e Contos
| 97
mento. Para satisfazer o ego masculino, os conceitos formados de
si mesmo, quer sejam verdadeiros ou falsos, o homem busca encontrar uma maneira de ver-se como vê o outro, como se a distância permitisse a análise formal de uma imagem fora de si.
Jacobina e o narrador de Guimarães Rosa são dois exemplos
de uma dependência do olhar externo para si próprio. Não basta a
consciência de identidade, de ser uma pessoa independente de
qualquer coisa. Para se afirmar como existente, como algo valoroso, os personagens buscam a admiração externa a si, dependem de
uma aprovação para continuar vivendo ou fazendo aquilo que
vinham fazendo.
O interesse dessas histórias é que a literatura se utiliza de
um campo da psicologia para compor tramas complexas e intrigantes. Precisam se vir com outros olhos, além dos seus, precisam
ser aceitos para o mundo alheio, como se não bastasse apenas aceitar a si próprio. A civilização ensinou o homem a conviver em sociedade e, para isso, é necessário haver uma aceitação mútua entre
os seres. Quando essa aceitação não ocorre, sente-se vulnerável,
receoso de ser expulso como membro de uma sociedade que se
autoconsome, em diversos âmbitos, seja social, cultural e economicamente.
Os homens já nascem com a condição de fazer parte de um
grupo com suas regras de sobrevivência já definidas, preestabelecidas e imutáveis, na maioria das vezes. Quando alguém tenta
destruir ou desvirtuar essas regras, o grupo pune, acorrenta e tiralhe a liberdade de ir e vir, como se seguir as regras impostas já não
fosse uma forma de aprisionamento. Acostuma-se à ideia de que o
ser humano é incompleto, imperfeito e, para que essa condição não
se mantenha, a cultura de cada povo criou a dependência mútua
de aceitação e aprovação uns dos outros. Jacobina sentia falta da
admiração e paparicos da sua tia e de todos os seus empregados, e
o narrador em Guimarães Rosa receia o julgamento alheio simbolizado pelo reflexo; o espelho representa a verdade, a autocontemplação e reflexão do universo. No entanto, pode mostrar o puro, as
coisas como elas são; por outro lado, pode deturpar a verdade,
enganar.no espelho e pelo medo do ocultismo.
REFERÊNCIA
SUMÁRIO
98 | M a g n o N i c o l a u ( O r g . )
ASSIS, Machado de. O Espelho (Esboço de uma teoria da alma humana). In:
Obra Completa. Vol. II. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994.
SUMÁRIO
Leituras Diversas: Crônicas, Ensaios e Contos
| 99
ESTOU PERDENDO
O MEU FILHO
Dimas Lucena
“Estou perdendo o meu filho. O que eu faço para não perder
o meu filho?” Me vi diante desse questionamento vindo de um pai
visivelmente emocionado. Fui fazer uma palestra sobre o tema
“Relação Pais e Filhos”. Fiz um enfoque teórico baseado em Piaget,
falei sobre a questão dos limites e para sensibilizar abordei poeticamente a dimensão da afetividade.
Logo após a minha fala a palavra foi facultada a plateia, foi
quando um senhor disse que não conseguia mais ter um bom relacionamento com o filho. “Nós não conversamos mais, só brigamos,
ele bate a porta, passa dias fora de casa, não sei o que fazer, eu
sinto que estou perdendo o meu filho”. Foi quando apelou com a
questão acima (“O que eu faço para não perder o meu filho?”).
Infelizmente, respondi, não há uma resposta pronta. Não existe
um manual: abra tal página que conterá determinada “instrução”.
Mas, a resposta está dentro de cada um de nós. É uma construção
existencial.
Essa resposta pode ser encontrada nos princípios pedagógicos, por exemplo: o amor “exigente”, o ouvir, o diálogo, a empatia,
a congruência. O amor pode ser ilimitado, mas precisa exigir limites de comportamentos, normas de convivência e respeito mútuo.
Aliás, Paulo Freire colocou essa dimensão dentro da ciência pedagógica. “Quem não é capaz de amar os seres inacabados não é capaz de educar”. E o que são “seres inacabados”? Somos todos nós
por toda a vida. Drummond ensinou como amar: “amar se aprende amando”, é “a beleza de ser um eterno aprendiz”, completou
Gonzaguinha. Educar é um ato de amor e de permanente aprendizado. Ninguém erra porque ama, erra porque está aprendendo a
amar.
Ouvir é tão importante que “cura” as pessoas, é à base de
qualquer Psicoterapia. Ao ser ouvida a pessoa sente-se respeitada,
SUMÁRIO
100 | M a g n o N i c o l a u ( O r g . )
valorizada. Diálogo é uma prática raríssima no nosso cotidiano,
pois vivemos em um mundo de monólogos, de relações de Poder,
pessoas apenas falam, impõem ao outro a sua fala. Diálogo, literalmente, é o encontro de dois conhecimentos. Empatia é enxergar
que existe outra Razão além da nossa, é preciso ver “o outro lado”,
ou seja, está em sintonia plena com a outra pessoa. Não podemos
ver o mundo apenas pelo nosso olhar.
A “congruência” é a relação entre a Linguagem, o Pensamento e a Ação. Esses três elementos têm de ter coerência. De nada
adiante pensar uma coisa, dizer ou fazer outra (como ocorre na
política). Nós educamos não apenas pelo que dizemos ou queremos, mas principalmente pelo que praticamos. A palavra pode até
ter força, mas é o exemplo que conduz.
Finalizei fazendo uma questão para o pai. Pense comigo, se
aqui ao invés de está reunido com os pais e mães, eu estivesse com
os filhos e as filhas, talvez o seu filho estivesse me questionando:
– Professor eu estou perdendo o meu pai. O que eu faço para
não perder o meu pai?
SUMÁRIO
Leituras Diversas: Crônicas, Ensaios e Contos
| 101
A ARTE COMO POLÍTICA E A POLÍTICA
COMO ARTE: CONVERSA SOBRE A
ORQUESTRA DO REICH
Eduardo R. Rabenhorst1
No entender de George Simmel, embora do ponto de vista
externo, conversar e discutir pareçam ser uma única e mesma coisa, a conversa se distingue da discussão na medida em que a primeira persegue um objeto que lhe dá sentido, enquanto a segunda
é puro exercício de sociabilidade. A conversa, observa Simmel,
vale por ela mesma, seu único propósito é manter a vivacidade da
relação. A conversa, nesse sentido, é autorreferencial, não buscando nada que esteja fora dela. Numa discussão, uma verdade ou ao
menos o acordo é o objetivo a ser alcançado. Numa conversa, ao
contrário, o acordo não é o resultado, mas é algo que existe de antemão. O acordo é a própria condição da conversa. É na medida
em que nos reconhecemos como iguais e que estamos dispostos a
dar e a receber na mesma proporção, que nos colocamos a conversar. Isso talvez explique porque podemos “jogar conversa fora”,
mas não uma discussão, ou mesmo porque podemos “conversar
sobre futebol, política ou religião, mas não “discutir” sobre eles...
Pois bem, o texto aqui se segue foi resultado da acolhida, incauta talvez, que fiz ao gentil chamado feito pelo professor Ibaney
Chasin para “conversar”, na forma de uma pequena resenha, sobre
o lançamento da tradução brasileira do livro do historiador canadense de cultura, Misha Aster, A orquestra do Reich (São Paulo:
Perspectiva, 2012), do qual ele é um dos tradutores, além de ser
autor de um instigante posfácio. Devo confessar que meus conhecimentos sobre o assunto do livro são praticamente insignificantes
Filósofo e ensaísta, Eduardo Rabenhorst é professor de filosofia do direito da
Universidade Federal da Paraíba e pesquisador do CNpq. Exerce atualmente
o cargo de Vice-reitor desta mesma instituição de ensino superior.
1
SUMÁRIO
102 | M a g n o N i c o l a u ( O r g . )
e que não tenho outro propósito senão o de me lançar, com leveza,
numa aventura sem contornos definidos. Aliás, é bem possível que
minha leitura do livro em tela soe superficial aos ouvidos de muitos, mas pretendo ao menos que ela seja honesta.
Como a maior parte das pessoas, gosto de arte, particularmente de música. Até cheguei a suspender minha área de atuação
acadêmica que é a filosofia do direito para escrever uma dissertação de mestrado sobre o tema da morte da arte na Estética de Hegel, mas o assunto do livro que está sendo aqui lançado, para ser
efetivamente objeto de uma discussão, mereceria um convidado
mais capacitado. Porém, gosto de trocar ideias e vim até aqui movido com muita alegria para compartilhar minhas impressões sobre esse livro que fez-me refletir sobre muitos e diferentes assuntos
aos quais passo imediatamente.
O primeiro que eu gostaria de destacar é o fato de que a edição do livro resulta de uma parceria entre a UFPB e a editora Perspectiva, casa de edição ousada, fundada na década de 1960, por
Jacó Guinsburg, com uma proposta editorial muito arriscada,
primeiro de difundir a cultura judaica, em seguida, de abrir espaço
para a divulgação da produção ensaística nas mais diversas esferas: artes, filosofia, literatura, linguística e ciências humanas, entre
outras. Nesse sentido, como sublinha um dos tradutores da Orquestra do Reich, em sua nota prefacial, Rainer Patriota, é da maior importância o fato de que esta obra chega hoje às mãos do público brasileiro a partir de uma associação entre uma universidade
pública, nordestina, situada em um dos estados mais pobres da
Federação, com uma editora privada, de reconhecido prestígio,
situada no Sudeste do país. É de se lamentar, no entanto, que essa
parceria tenha sido negligenciada quase que por completo pela
imprensa de outros estados, quando da produção das diversas
resenhas sobre a aparição do livro, apesar dos veementes protestos
do professor Ibaney Chasin e da reitoria da UFPB.
Ainda sobre aspectos externos à obra, destacaria, em seguida, além do meticuloso trabalho de tradução, que cotejou o texto
original de Misha Aster, escrito em inglês, com o texto da edição
alemã, a importância de dois “peritextos” editoriais, para usar a
expressão de Gérard Genette: a nota prefacial há pouco aludida, de
Rainer Patriota, e o posfácio escrito por Ibaney Chasin. Funcionando como espaços intermediários entre o livro e seus leitores,
SUMÁRIO
Leituras Diversas: Crônicas, Ensaios e Contos
| 103
esses dois comentários são importantes porque constroem uma
“zona de transição” entre o texto original e o texto traduzido. Nessa intermediação, se encontram as questões, sugeridas pelo autor,
mas por ele não diretamente enfrentadas, que concernem às afinidades entre arte e política (de modo mais abrangente); entre a música e a política (de modo mais particular); e, de maneira ainda
mais pormenorizada, por fim, ao episódio específico da colaboração ideológica prestada ao nacional-socialismo alemão pelo maestro Wilheim Furtwängler e a orquestra por ele dirigida.
Poderíamos assim resumir o enredo da obra de Misha Aster.
O governo de um país que aspirava ser um grande reino compreendeu que tinha uma orquestra de enorme qualidade a seu dispor.
Existia um funcionário sensível, com grande senso de responsabilidade cívica, que aceitou tornar-se líder dessa orquestra, tudo em
nome da música. Seria talvez uma bela história, como muitos notaram, não fossem os fatos de que o reino em tela era O III Reich; que
esse governo nazista implantou uma política autoritária e uma
perseguição racial sem precedentes que culminou na morte de
milhões de pessoas; e, por fim, que esse funcionário diligente, o
maestro Furtwängler, emprestou seu talento e prestígio ao regime
em troca de privilégios diversos para si e para os membros de sua
orquestra.
A grande contribuição da obra de Misha Aster, jovem historiador e musicólogo canadense, que também é dramaturgo, diretor
cultural, produtor cultural, entre as muitas atividades que exerce,
foi ter vasculhado de forma minuciosa os arquivos públicos e consultado uma grande quantidade de documentos privados referentes à Orquestra Filarmônica de Berlim, no período de 1933-1945.
Nos seis capítulos que compõem A Orquestra do Reich, ele se
debruçou sobre as relações de cumplicidade existentes entre a Orquestra e o Ministério da propaganda nazista, sobretudo no que
concernia ao financiamento, definição da programação musical e
das tournées, a escolha de maestros e solistas, entre outras coisas.
Relações de cumplicidade, de fato, porque não se tratava de
uma imposição, isto é, apenas de aceitar ingerências do Reich, mas
de uma verdadeira adesão, movida a princípio por razões pragmáticas (uma orquestra à beira da falência que precisava sobreviver),
mas que acabou por se tornar uma adesão ideológica, quando a
Orquestra, para obter benefícios diversos, tais como prestígio, se-
SUMÁRIO
104 | M a g n o N i c o l a u ( O r g . )
gurança financeira, aquisição de instrumentos e a dispensa do serviço militar, abraçou indiretamente os princípios e ideias propagados pelo nazismo, apresentando-se em cidades conquistadas pelo
Reich, participando de eventos como o aniversário de Hitler e banindo de seu repertório compositores judeus.
A principal crítica que se pode fazer ao livro é o tom por vezes justificador do autor em relação a essa cumplicidade. No epílogo do livro, Aster louva o espírito comunitário da orquestra e
sua sagacidade política, fatores que teriam possibilitado tanto a
passagem pelos doze anos de regime nazista como seu renascimento e continuidade após a derrocada do III Reich. A própria
escolha pelos membros da orquestra, em 1954, de Herbert Von
Karajan, duas vezes filiado ao partido nacional-socialista, como
regente, é interpretada pelo autor como legítima e necessária.
Focado exclusivamente nos aspectos administrativos, o livro
de Misha Aster se abstém de analisar a política musical nazista,
donde a observação de muitos críticos de que o autor, concentrando-se nos aspectos institucionais, em detrimento de uma discussão
sobre a ética da responsabilidade artística, teria sido complacente
com a Filarmônica de Berlim, que, por sinal, financiou parte de sua
pesquisa. O autor se defendeu previamente anunciando, logo no
início de seu livro, que diante da insuficiência de dados, ele não
sucumbiria a especulações, deixando aberto os caminhos para uma
posterior revisão bibliográfica.
E são exatamente essas questões, não abordadas por Misha
Aster, que se encontram na nota prefacial e no posfácio da edição
brasileira. Nas duas extremidades do livro, portanto, Rainer Patriota e Ibaney Chasin exploram; o primeiro, de modo mais superficial; o segundo, de maneira mais perfunctória, as complexas relações que podem existir entre o nazismo e a música.
Antes de iniciar a discussão sobre o conteúdo dessa duas peças, eu lembraria que a dimensão estética do nazismo hoje é bastante conhecida do público em geral. Sabe-se que um dos grandes
efeitos no âmbito da política cultural alemã provocado pela chegada de Hitler ao poder foi a criação do Ministério da Propaganda
comandado por Goebbels, homem de confiança do Führer. Filmes
como Arquitetura da destruição, de Peter Cohen, exploraram bem
as conexões estreitas existentes entre a arte e o nacional-socialismo,
especialmente no que concernia à condenação da arte moderna
SUMÁRIO
Leituras Diversas: Crônicas, Ensaios e Contos
| 105
como “arte degenerada”, e ao uso do cinema como propaganda da
ideologia do nacional socialismo. Porém, só muito recentemente
começamos a identificar as conexões do nazismo com outras formas de arte, como a dança, por exemplo. (Vide Laure Guilbert –
Dançar com o III Reich).
O caso específico do envolvimento da Orquestra Filarmônica
de Berlim com o regime nazista também foi indiretamente objeto
de um filme, Taking sides (Tomando partido – o caso Furtwängler, em português), de István Szabó, que anteriormente já havia
tratado do tema da responsabilidade moral dos artistas durante o
III Reich, em outra película, Mephisto, baseada num romance de
Klaus Mann. A trama de Taking sides se desenvolve a partir do
julgamento do maestro Furtwängler, acusado após a guerra de ter
reforçado o regime nazista, em um dos muitos “tribunais de desnazificação” criados na Alemanha a partir de 1946 (foram instituídos 545 tribunais e julgados 900 mil casos). Ao término do julgamento, contando com muitos depoimentos em seu favor,
Furtwängler foi absolvido, mas seu caso permaneceu emblemático
no âmbito das discussões sobre o papel que os artistas podem ou
devem exercer em um estado de exceção. O dramaturgo Ronald
Harwood, cuja peça serviu de base para o filme Taking sides, ele
próprio um sul-africano que deixou seu país natal em 1960, e se
sentiu culpado por não ter tomado partido nas lutas contra o
Apartheid, também é autor do roteiro do filme O Pianista, de Roman Polanski. Em outra peça de sua autoria, intitulada A Colaboração, ele analisa a relação entre a música e a política, e rememora
a parceria existente entre Richard Strauss, compositor de Salomé e
Rosenkavalier, com Stefan Zweig, o célebre escritor austríaco judeu que se suicidou no Brasil.
Ora, estamos bem mais acostumados a pensar a política como arte do que a arte como política. Claro que sabemos que a arte
é política. A arte é um fenômeno do social, participa de um espaço
comum e interage com tudo que lá se encontra. A arte influencia o
social e por este é influenciada. Contudo, não sabemos muito sobre
que tipo de objeto político é a arte. E mais dificuldade temos ainda
em conceber a música como objeto político, apesar da evidência de
que a música tem o poder de agir fisicamente sobre nossos corpos.
É que estamos mais habituados a pensar no poder das imagens,
em decorrência do traço referencial destas, e menos no poder da
SUMÁRIO
106 | M a g n o N i c o l a u ( O r g . )
música, que nos parece ser a mais espiritual e abstrata das artes.
No entanto, a música sempre ocupou um lugar estratégico naquilo
que podemos chamar de política simbólica, isto é, o uso organizado do simbólico na sociedade. A política simbólica é uma das maneiras empregadas pelo poder para manifestar sua presença e executar seu propósito. Nesse sentido, a música desempenha um papel importantíssimo na “liturgia política”, sendo constantemente
mobilizada pelas instituições e movimentos sociais. Que se pense,
aqui, no papel dos hinos nacionais, no caso do poder estatal, e em
canções populares de protesto empregadas pelos movimentos sociais.
A liturgia política busca construir a coesão de um grupo a
partir de uma dimensão emocional. Obviamente, a capacidade da
música, por exemplo, de construir essa comunidade ligada por
laços emocionais não é uma propriedade intrínseca da música, mas
é uma construção de sentido que se dá paulatinamente (aprendizado, repetição etc.). Pois bem, é exatamente sobre essa reflexão
que incidem a nota prefacial e o posfácio de A Orquestra do
Reich. Não se pode entender a relação entre a música e o nazismo
apenas a partir da condenação da música degenerada. É bem verdade que o critério empregado pelos nazistas para banir determinados compositores era a origem semita. Contudo, sob a direção
de Alfred Rosemberg, uma política musical nazista foi elaborada
levando em consideração a herança folclórica alemã, a música verdadeiramente popular e o suposto gênio musical germânico que
teria dado lugar a tantos talentos. Estou convencido, à guisa de
conclusão, de que a Orquestra do Reich é leitura indispensável
para aqueles que se interessam em pensar a arte como política e a
política como arte.
SUMÁRIO
Leituras Diversas: Crônicas, Ensaios e Contos
| 107
OCEANO POÉTICO
DE FÁTIMA BARROS
Elisalva Madruga Dantas
Nesse texto, decidi falar, ainda que brevemente, sobre o fazer poético de Maria de Fátima Barros1, cuja sensibilidade e maestria me fascinam desde que li suas primeiras produções literárias.
Ler a sua poesia, sobretudo as que se encontram reunidas,
no livro, intitulado Certa poesia, a ser lançado brevemente em
Portugal, é mergulhar em um oceano de palavras e maravilhar-se
com a riqueza do significado, dos sentidos nele contidos. Palavras
prenhes de suavidade, ternura, sonho, tristeza, esperança, remetendo-nos, portanto, para os mais variados sentimentos que inundam a alma humana, motivando por essa razão uma profunda
empatia entre poeta e leitor.
No entanto, ainda não repousa aí a riqueza da poesia de Fátima. Mais do que tudo, o que a engrandece é a forma como esses
sentimentos são expressos; a maneira atenta, cuidadosa com que
ela vai colhendo, nessa sua caminhada pelas águas da literatura, as
palavras e imagens com as quais deseja por elas navegar com a
segurança de um exímio “capitão do mar”, que “com seu (teu)
pulso controla(s) o curso das redes ao mar” (Cf. Poema capitão do
mar), sem perder, no entanto, o encantamento, o delírio, o sonho.
Em outras palavras menos poéticas e mais pragmáticas, podemos dizer que Certa poesia é uma obra norteada ao mesmo
tempo pela racionalidade e pela criatividade; pela razão e pelo
sentimento, o que a torna por demais especial.
Desde seu primeiro livro, Discurso das Águas, Fátima nos
surpreende e encanta com a maestria de sua escrita, com a sua
habilidade de manusear a palavra nos seus mais diversos níveis,
criando com elas e a partir delas um mundo mágico de ideias pelo
qual sai vagando, divagando e como uma sereia seduzindo-nos
1
Maria de Fátima Barros é pernambucana.
SUMÁRIO
108 | M a g n o N i c o l a u ( O r g . )
com o seu canto para a profundeza de suas águas, onde vamos
encontrar, à semelhança da profundeza oceânica, uma vasta riqueza.
Imagens líquidas, fluidas, suaves, advindas das referências
aos mares, oceanos, lagos, rios, ventos, sonhos contrapõem-se às
imagens sólidas, duras, ásperas para as quais nos remetem as pedras, as rochas, o aço, os estilhaços, a fome, a seca, o silêncio dos
cactos, corroborando, dessa maneira, o vai e vem do mar da vida,
com suas ondas ora calmas, mansas, serenas, ora agitadas, turbulentas, inquietantes.
Uma serenidade e uma inquietude que perpassam a poiesis
de Fátima, conforme podemos depreender dos seus poemas metapoéticos, onde a exemplo de João Cabral de Melo Neto, de Carlos
Drummond de Andrade, poetas entre tantos outros com quem
dialoga, percebe-se a sua luta com o branco da página; sua angústia diante do limite ou da fluidez da palavra, muitas vezes pouco
suficiente para traduzir o que se quer expressar, daí também a sua
fé no poder do silêncio, tão recorrente em seus textos; o capinar
das ideias ante o emaranhado das lembranças existenciais, e a busca do “equilíbrio geômetra” do qual nos fala Oswald de Andrade
em seu Manifesto da Poesia Pau Brasil, sem o que a poesia perde sua
especificidade. Citemos, como exemplo dessa harmonia entre forma de expressão e forma de conteúdo, o poema escritura, abaixo
transcrito:
habita
as margens
da escrita
um silêncio alvo
de poços
e caligrafia.
esboços
de imagens
e telas
manuscritas
o tempo calvo
copia.
SUMÁRIO
Leituras Diversas: Crônicas, Ensaios e Contos
| 109
Ainda na linha de diálogo, merece registro o entrelaçamento
que estabelece entre poesia, música e pintura, seja através da própria sonoridade advinda das aliterações e assonâncias significativa
e marcadamente presentes em seu texto, seja através dos próprios
títulos dos poemas, ora relacionados com música (adágio, canção
melancólica, cantilena, composição ao piano, interlúdio, intermezzo, prelúdio), ora com pintura (aquarela, branco-tela, desenho em koumac,
gravura a lápis, paisagem campestre, pintura, quadro com pássaro), seja
através das construções imagéticas, da fusão que operacionaliza
entre imagens relacionadas com a poesia e com a pintura, diluindo, assim, qualquer possível fronteira entre as diversas manifestações artísticas, conforme podemos ver em inúmeros dos seus poemas, dentre o quais o que se segue:
poesia sobre tela
sossego de barcos
no silêncio da página.
o calor dos traços,
a imagem vaga.
calmaria de lago
em frases esparsas.
sob linhas e laços,
o limite das águas.
entre sonho e hiato,
a paisagem rasa.
em tom azul-claro,
o poema deságua.
Reforçam também esse entrelaçamento poético as variadas
epígrafes que figuram na obra, confirmando a identificação poética
de Fátima não apenas com os autores já mencionados, mas com
vários outros, como Cecília Meireles, Ledo Ivo, Gaston Bachelard e
Íris Murdoch. Isso tanto em termos ideológicos como em termos
estéticos.
Ideologicamente, podemos ressaltar o viés onírico da sua
poesia, em sintonia com o que nos dizem as epígrafes extraídas,
SUMÁRIO
110 | M a g n o N i c o l a u ( O r g . )
por exemplo, de Ledo Ivo (“No dia inumerável / os sonhos voam
como pássaros.” Cf. Poema o pássaro ) ou Íris Murdoch (“Deixe que
os sonhos venham / e nos visitem, como pássaros.” Cf. Poema
redemoinho); a preferência pela introspecção e junto com ela a
valorização do silêncio, conforme encontramos nas citações de
Bachelard (“O interior sonhado é cálido, jamais ardente.”) e Minês
Castanheira (“não vês que dizes mais com as tuas pausas / do que
com as tuas palavras?”) que encabeçam, respectivamente, os
poemas canção matinal e imagem; a preocupação com a fluidez e a
fugacidade do tempo, traços que emergem da leitura dos seus
versos, ecoando e reverberando as palavras de Drummond,
constantes da epígrafe que introduz o poema olhar sobre a tela, em
que lemos: “... o tempo que não enxergamos, o tempo irreversível,
o tempo estático, / espaço vazio entre ramos.”
Esteticamente, para além da preocupação formal, a partir da
qual falamos de sua aproximação com João Cabral, com
Drummond, podemos ainda assinalar a preferência, a exemplo
também de Ledo Ivo, de Bachelard e dos poetas surrealistas pelas
imagens relacionadas com peixe, água e tantas outras vinculadas
ao universo marítimo, as quais, por sua vez, a nosso ver, corroboram ainda mais o ethos onírico, fluido, fugaz que emana da
atmosfera poética dos seus textos, conforme poderá ver o leitor ao
ler qualquer poema de Certa Poesia.
Para ilustrar, porém, nossa observação, selecionamos como
exemplo não apenas da presença dessas imagens na obra de
Fátima, mas, praticamente, de quase todos os traços que falamos
sobre sua poesia, sobretudo no que diz respeito à maestria do seu
fazer poético, o poema que se segue e com ele finalizamos nosso
comentário, não sem antes, ousarmos dizer, apropriando-nos das
palavras de Bachelard, contidas na epígrafe que introduz o poema
o pescador, que a presença marcante do elemento água e das
imagens com ela correlacionadas dão ao universo poético de
Fátima uma solenidade platônica. Eis o poema:
cais
nos livros,
mares ancorados:
o vento
SUMÁRIO
Leituras Diversas: Crônicas, Ensaios e Contos
| 111
em redes e grades...
nas marés,
os barcos:
dos náufragos,
sons e sinais...
tempo
de peixes ilhados:
à margem
das velas, frases...
vão batéis
e parágrafos:
no cais,
lua e linguagem...
Para mim, pois. ler a poesia de Fátima é navegar prazerosamente pelas águas ora calmas, ora agitadas do seu oceano poético.
SUMÁRIO
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“CADA PROFESSOR QUER
UMA COISA DIFERENTE...”
Elizabeth Maria da Silva1
O processo de transição do ensino médio para o ensino superior é marcado, na maioria das vezes, por sentimentos de medo,
dúvida, ansiedade e incertezas. É tudo muito novo para os recémingressos. Pensemos um pouco a respeito da escrita desses estudantes.
No ensino médio, eles estudaram e/ou escreveram, possivelmente, gêneros textuais diversos, que circulam em diferentes
esferas sociais, a exemplo de cartas, depoimentos, resenhas jornalísticas, crônicas, artigo de opinião, editorial, entre outros. Todavia,
quando chegarem ao ensino superior, eles se depararão com gêneros específicos desse ensino: artigos acadêmicos, projetos de pesquisa, ensaios, monografia etc. Tendo em vista que estes últimos
circulam e são produzidos na esfera acadêmica, é esperado que os
estudantes não tenham familiaridade com os mesmos e, consequentemente, não saibam como produzi-los (MARINHO, 2010;
FISCHER, 2010; FIAD, 2011, 2013).
Surge, assim, uma tensão: os professores exigem produções
textuais acadêmicas sem explicitar, em geral, os critérios que considerarão no momento da correção, partindo do pressuposto de
que os alunos já saibam o que é esperado para escrever. Como eles
(os alunos) não sabem, são mal avaliados pelos docentes. Instaurase, desse modo, um conflito entre as expectativas do professor e as
interpretações do estudante em relação ao que está envolvido na
produção escrita.
Lillis (1999) ratifica a existência desse conflito, argumentando que as convenções da escrita não são transparentes para quem
Professora da Universidade Federal de Campina Grande (UFCG) e
doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade
Federal de Minas Gerais (UFMG).
1
SUMÁRIO
Leituras Diversas: Crônicas, Ensaios e Contos
| 113
faz parte da comunidade acadêmica, nem para quem pretende
nela inserir-se, configurando-se, assim, no fenômeno que ela denomina de “prática institucional do mistério”. Nessa “prática do
mistério”, teríamos o que Street (2010) denominou de “dimensões
escondidas”, quando analisou as dimensões ocultas que subjazem
à escrita de artigos acadêmicos. O autor (op. cit.) destaca que os
critérios utilizados por orientadores, avaliadores de trabalhos
submetidos a congressos e por revisores de periódicos nem sempre
são explicitados para aquele que escreve, estando, portanto, “ocultos”.
Nessa perspectiva, é como se os estudantes participassem,
na academia, de um “jogo de adivinhação”, pois têm que descobrir
quais são as expectativas do professor, ao solicitar determinada
produção textual. Um dos estudantes que participaram como sujeito da pesquisa desenvolvida por Lea, Street (1998, p. 6), quando
indagado sobre as suas atividades de escrita acadêmica, afirmou
que era consciente de que a escrita para um professor particular
era específica, diferenciando-se da escrita para outro docente. Sentia, desse modo, a sensação de que cada professor parecia querer
algo diferente, embora solicitasse o mesmo gênero. A pesquisa dos
autores evidenciou, assim, que a escrita dos estudantes variava
não apenas conforme o curso e a disciplina, mas também de acordo com o professor, de modo que, às vezes, no interior de um
mesmo curso, professores individuais tinham opiniões diferentes
sobre a escrita.
Essa variação na compreensão da escrita acadêmica aponta
para a sua natureza complexa, bem como evidencia a necessidade
que os estudantes têm de incorporar uma identidade discursiva,
diferente da sua identidade biográfica (IVANIC, 1998 apud ZAVALA, 2009), com vistas a atender às exigências do âmbito acadêmico
e, assim, poder ser reconhecido como um membro da academia
por parte daqueles que têm o poder de fazê-lo, os agentes de letramento.
Assumir uma identidade discursiva que não é a deles, que
não reflete a imagem que eles têm de si, é um desafio para os estudantes: “Eu quero dizer muitas coisas neste ensaio, mas eles não
querem ouvir”, desabafa um dos sujeitos da pesquisa desenvolvida por Lillis (2003, p. 203). Paula está satisfeita por ter aprendido
formas acadêmicas, mas não se sente ela mesma, quando escreve.
SUMÁRIO
114 | M a g n o N i c o l a u ( O r g . )
Ela escreve o texto com o conteúdo que é esperado institucionalmente, mas desabafa que vive um conflito: “Quero falar, me comportar e ser a mesma que antes e pensar da maneira que eles pensam” [familiares] – constatações de Zavala (2009, p.355), quando
analisou uma série de entrevistas feitas com a estudante universitária Paula sobre a sua escrita acadêmica.
Portanto, para que os estudantes universitários sejam reconhecidos e aceitos por aqueles que estão na posição de conceder o
acesso à voz acadêmica, precisam assumir a identidade discursiva
exigida, ainda que não comunguem com as especificidades constitutivas dessa identidade.
No entanto, se, por um lado, os estudantes devem assumir a
identidade discursiva acadêmica, por outro, os professores deveriam explicitar o que esperam das produções textuais acadêmicas
dos seus alunos. É preciso também que fiquem “claros os motivos
pelos quais algumas práticas são privilegiadas no domínio acadêmico em detrimento de outras, qual significado determinada prática de letramento tem nesse domínio, o que significa justificar e
argumentar de acordo com as convenções escriturais da academia”
(FIAD, 2011, p.363).
Além disso, faz-se necessário, como sugere Lillis (2003), considerar o potencial dos talkbacks – um espaço para os estudantes
refletirem sobre seu texto, dizerem o que gostam e o que não gostam da sua escrita. A utilização desse recurso pode contribuir para
a aprendizagem dos estudantes, haja vista o processo de negociação que se estabelecerá entre professores e alunos no tocante aos
elementos que estão envolvidos na produção textual.
Por fim, entendemos que o professor que ensina a escrita
acadêmica deveria cultivar o equilíbrio entre despertar a consciência crítica dos estudantes quanto às questões ideológicas e de poder que perpassam a produção dos gêneros e contribuir para que
eles (os estudantes) dominem o componente linguístico-textual
desse gênero, a partir da apresentação de atividades de leitura e
escrita, bem como do exercício da reescrita dos textos.
SUMÁRIO
Leituras Diversas: Crônicas, Ensaios e Contos
| 115
Referências
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Especial, p. 357-369. 2ª parte 2011.
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o caso dos relatórios e suas dimensões escondidas. Scripta, v. 16, p. 54-67, out.
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ZAVALA, Virgínia. “Quién está dicendo eso?” Literacidad acadêmica, identidade y poder em la educacion superior. In. KALMAN; STREET (Coord.).
Lectura, escritura e Matemáticas. México: Siglo XXI. p. 348-363, 2009.
SUMÁRIO
116 | M a g n o N i c o l a u ( O r g . )
CULTURA E POLÍTICA:
UM DIÁLOGO POSSÍVEL
Elizabeth Christina de Andrade Lima
Iniciando a conversa
Em 20 de fevereiro de 2001, quando realizamos a defesa de
nosso doutorado, junto ao Programa de Pós-Graduação em Sociologia, da Universidade Federal do Ceará, cuja tese teve por objeto
de estudo a invenção da Festa Junina do “Maior São João do Mundo” na cidade de Campina Grande, na Paraíba, e, posteriormente,
tal tese foi publicada pela Editora Ideia, no ano de 2002, com o
título: “A Fábrica dos Sonhos: a invenção da festa junina no espaço
urbano”, um aspecto da festa, em particular, nos chamou atenção:
o uso político desta manifestação cultural pelos políticos locais e
seus prepostos.
O que vimos nos discursos dos jornais, nas falas pronunciadas pelos agentes culturais locais, prefeitos e secretários de governos, foi toda uma exaltação da festa como uma iniciativa de seus
gestores. Neste sentido percebemos como a festa pode ter um
promissor uso político. Maquiavel, em sua obra, “O Príncipe”, já
nos alertava para as benesses do “pão e circo” para controlar “a
massa de súditos”. Pois bem, a partir desta constatação, surgiu-nos
uma indagação que tem doravante estado presente em nossos estudos: tentar analisar e construir reflexões da prática política a
partir do “olhar” da cultura, ou seja, pensar a política para além de
sua visão institucional, para concebê-la como construída cotidianamente.
O que queremos dizer com isto? Que a política, enquanto
práxis cotidiana, nos oferece um imenso lastro de pesquisas temáticas, análises e reflexões que dizem muito a quem e como somos
enquanto cultura brasileira. Vamos contar um pouquinho esta
história.
SUMÁRIO
Leituras Diversas: Crônicas, Ensaios e Contos
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Por uma Antropologia da Política
Na década de 1990, encerrado o regime militar e restaurada
a democracia, os antropólogos brasileiros dirigiram o seu interesse
para a área da política. Diversos trabalhos interessantes foram
produzidos no período, tendo como foco principal análises etnográficas a respeito das práticas políticas, seja em pequenas localidades rurais, seja nas grandes metrópoles e centros urbanos.
Estes trabalhos autodenominados de “antropologia da política” tiveram, inicialmente, a sua institucionalização mais importante no Núcleo de Antropologia da Política (NuAP), sediado no
Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro
(UFRJ), mas envolvendo grupos em outras Universidades Federais, como as de Brasília, Ceará e Rio Grande do Sul. Atualmente,
pesquisas que tentam aliar a cultura à política já existem em várias
universidades brasileiras. No Nordeste merecem destaque as pesquisas realizadas na UFC, UFRN e UFBA. Na UFCG – Universidade Federal de Campina Grande, Desenvolvemos estudos no Grupo
de Pesquisa do CNPq denominado: “Antropologia da Política,
Cultura Midiática e Práticas Políticas”.
Nesta agenda de pesquisa, privilegiamos os métodos de observação participante e as análises comparativas, buscando elaborar visões antropológicas sobre o lugar da política na sociedade e
cultura brasileiras. Ou seja, partimos da premissa de que a política
se constrói enquanto práticas e discursos no cotidiano da cultura,
nas relações de vizinhança, nas mais variadas redes de sociabilidades, nos mass media, nas redes de trocas e de reciprocidades, na
adesão estabelecida entre o político e o eleitor, na percepção dos
variados significados que possui o voto e toda a teatralização em
torno das campanhas eleitorais etc.
Em análises, por exemplo, centradas nos momentos eleitorais em pequenas cidades no interior do Brasil, Moacir Palmeira e
Beatriz Heredia têm desenvolvido o conceito de “tempo da política”, para designar os períodos em que a população percebe a política e os políticos como parte de sua vida social. Dessa forma, os
autores chamam a atenção para a política tal como ela é experimentada dentro de um universo cultural e histórico específico. Os
eleitores deixam, assim, de serem os seres abstratos que aparecem
com frequência em análises formalistas da democracia. A investi-
SUMÁRIO
118 | M a g n o N i c o l a u ( O r g . )
gação antropológica da política passa a concentrar-se não no isolamento de temas e fenômenos, mas justamente no seu entrelaçamento.
Podemos escapar de julgamentos etnocêntricos sobre como
votar certo ou errado, sobre se uma campanha é eticamente correta
ou não, percebendo, em seu lugar, que existem diferentes percepções e práticas da política, cabendo ao pesquisador encará-las como concepções que nos ajudam a entender os agentes em jogo e
suas ações.
Sob essa perspectiva, temos realizado pesquisas sobre as representações do voto, tomando, como caso para análise, as motivações do voto em campanhas eleitorais. Para tanto, desenvolvemos
a pesquisa intitulada: “Campanhas, Candidatos e Eleitores: as representações sociais sobre o voto nas eleições municipais de 2008
em Campina Grande – PB”, dentro de projeto PIBIC/CNPq/UFCG.
Outros antropólogos, como Marcos Otávio Bezerra e Carla
Teixeira, têm investigado a política dentro e fora do período eleitoral. Com os estudos do meio político, os autores mostram a vitalidade, por exemplo, da noção de honra e a importância atribuída às
relações de caráter pessoal, mais do que opções ideológicas abstratas ou cálculos racionais individuais.
Karina Kuschnir, por sua vez, pesquisa uma região suburbana do Rio de Janeiro onde a política é entendida principalmente
como um meio de acesso aos recursos públicos, no qual o político
atua como mediador entre comunidades locais e diversos níveis de
poder. Esse fluxo de trocas é regulado pelas obrigações de dar,
receber e retribuir, a que o antropólogo Marcel Mauss chamou de
“lógica da dádiva”, e cujo princípio fundamental está no comprometimento social, para além das coisas trocadas, daqueles que
trocam.
Outro objeto de investigação de Karina Kuschnir são os
chamados “rituais de comensalidade” em campanhas políticas.
Estes são definidos como celebrações que encenam simbolicamente
a eleição do político. São eventos marcados pelo consumo de bebidas e comidas por parte dos eleitores e candidatos. Os atos de comer e beber podem significar muitas coisas, inclusive uma declaração de voto.
SUMÁRIO
Leituras Diversas: Crônicas, Ensaios e Contos
| 119
Comícios, shows, festas e leilões são outras formas lúdicas
de fazer ofertas aos eleitores. A competição pela compra de frangos em leilões do Nordeste brasileiro, narrada por Marcos Lanna,
mostra a disputa por prestígio entre os políticos e chefes locais.
Ganha quem compra a maior quantidade de frangos, humilhando
os adversários. O dinheiro arrecadado reverte para a paróquia e
simboliza a “generosidade” do político.
Já o estudo sobre as festas dos ranchões em Buritis (MG), investigada por Christine Chaves, trata dos eventos promovidos
pelos partidos para festejar e promover seus candidatos. Diz o
saber local que “ganha o partido que tiver a festa mais animada e o
candidato que mais dançar”. Nos ranchões, elogia-se o político que
“é capaz de comer do mesmo prato, beber do mesmo copo”; que
“entra na casa, vai até a cozinha beber o café”; que “bate nas costas
e paga bebida”. Ou seja, o político que se institui como um “igual
ao povo”, que é uma “pessoa como qualquer um deles” e que,
sobretudo, sabe “fazer festa” para o povo.
Já Irlys Barreira observou que a visita do político à casa do
eleitor muitas vezes é vista como homenagem e reconhecimento
prestado pelo candidato ao dono da residência, visto como fonte
de votos em potencial. Ser convidado ou “recebido” pelo eleitor é
muito diferente de entrar na sua casa “atrás de voto”, como critica
uma moradora de Fortaleza, entrevistada pela mencionada autora.
Em nossas pesquisas temos tentado analisar alguns aspectos
da prática política em nossa cidade. Para tanto, realizamos pesquisa intitulada: “Os Bastidores da Campanha Eleitoral e o uso do
Marketing Político nas Eleições Municipais de 2008 na cidade de
Campina Grande – PB” (PIBIC/CNPq/UFCG), cujo objetivo foi o
de investigar as práticas políticas e a construção de campanhas
eleitorais sob a perspectiva do marketing político, para discutir, do
ponto de vista da cultura, os limites entre o lícito e o ilícito, entre o
legal e o ilegal, durante uma eleição.
Desenvolvemos ainda pesquisas a partir da relação entre gênero e política, através da análise dos discursos das candidatas a
Presidência do Brasil, Dilma Rousseff e Marina Silva, no que diz
respeito à atualização e construção do feminino em suas campanhas. O projeto teve como título: “A singularidade do feminino
nas Eleições 2010: As Campanhas Eleitorais de Dilma Rousseff e
Marina Silva” (PIBIC/CNPq/UFCG).
SUMÁRIO
120 | M a g n o N i c o l a u ( O r g . )
Desenvolvemos ainda pesquisa sobre a construção de outras
candidaturas femininas, em um outro projeto intitulado: “A construção da imagem pública das candidatas Tatiana Medeiros e Daniella Ribeiro, na campanha eleitoral de 2012, em Campina Grande-PB” (PIBIC/CNPq/UFCG).
Outras análises por nós realizadas merecem destaque: estudo sobre as letras de jingles de campanha, nas Eleições 2008, em
Campina Grande; o significado simbólico das charges de conteúdo
político e da Literatura de cordel na construção de certos personagens políticos, como do ex-presidente Lula.
Atualmente desenvolvemos pesquisa sobre “A construção
da imagem pública das prefeitas eleitas da Paraíba, nas Eleições
2012” (PIBIC/CNPq/UFCG). Tal pesquisa partiu da averiguação
de que pela primeira vez na história política do Estado, 49 mulheres foram eleitas para administrar municípios paraibanos e tal fato
nos chamou a atenção, pois sabemos da condição de subrepresentação das mulheres em espaços de poder, principalmente
na política. Como resultado das pesquisas citadas, publicamos o
livro “Ensaios de Antropologia da Política”, no ano de 2011.
Com base no exposto, e tomando de empréstimo o conceito
de Karina Kuschnir, defendemos então que a “antropologia da
política tem por objetivo entender como os atores sociais compreendem e experimentam a política, isto é, como interagem e atribuem significado aos objetos e às práticas relacionadas ao universo
da política”. Pensamos a política e a sociedade em geral como “fruto da ação coletiva, isto é, de uma rede de pessoas que interagem e
se influenciam reciprocamente por meio de relações complexas e
dinâmicas”. Interessa-nos, enfim, ao propor o diálogo entre a cultura e a política, destacar “a dimensão simbólica, ou seja, a interpretação que os atores sociais fazem das instituições, relações e
objetos com os quais lidam no seu cotidiano. Essa interpretação se
exprime e se constrói tanto nas conversas, falas e discursos quanto
nas decisões e ações empreendidas.” (KUSCHNIR, 2007, p.09)
Assim nos descobrimos enveredando por estudos e pesquisas que tentam promover o diálogo entre a cultura e a política por
acreditarmos que a política se gesta no cotidiano da cultura e se
marca por valores, costumes e práticas rituais que atravessam os
variados sentidos da práxis social que nos levam a ter visões muito
particulares da política por elas estarem amplamente ancoradas no
SUMÁRIO
Leituras Diversas: Crônicas, Ensaios e Contos
| 121
substrato da cultura. A toda essa relação de práticas e de significados, chamamos de Antropologia da Política. E esta nada mais seria
do que um “olhar”, uma certa maneira de ver a política sob o
prisma, as lentes da cultura, que inventa e reinventa, todo o tempo,
sob a perspectiva simbólica, a figura do político e da política, mediada por uma ampla rede de sociabilidades e interesses gestados
no dia a dia da cultura de seus atores.
REFERÊNCIAS
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TEIXEIRA, Cristina. A honra da política: decoro parlamentar e cassação no
Congresso Nacional. Rio de Janeiro, Relume Dumará, 1998.
SUMÁRIO
122 | M a g n o N i c o l a u ( O r g . )
PADRE IBIAPINA
Ernando Luiz Teixeira de Carvalho
Quem foi mesmo Padre Ibiapina? O que pode representar
para nós a sua vida, sua ação e sua mensagem? Comecemos pelo
começo!
José Antônio Pereira Ibiapina foi o terceiro dos filhos de
Francisco Miguel Pereira e Thereza Maria de Jesus. Nasceu aos 5
de agosto de 1806, no município de Sobral, na então Província do
Ceará. Por algum tempo a família residiu na povoação de Ibiapina,
na serra da Ibiapaba, cujo nome Francisco Miguel acrescentou depois ao seu e ao dos filhos. Por motivo de trabalho do pai, a família
mudou-se para Icó, mais tarde para a cidade do Crato, vila de Jardim, novamente o Crato e, em seguida, Fortaleza. Aperfeiçoando
seus estudos na capital, José Antônio seguiu em 1823 para o Seminário de Olinda. Ficou apenas 35 dias no Seminário, tendo sido
chamado pelo pai, por causa da morte da mãe. Ibiapina estava nos
seus 17 anos e cinco meses.
O jovem permanece em Fortaleza com os irmãos, enquanto o
pai se envolve cada vez mais no movimento político de 1824: a
Confederação do Equador. Francisco Miguel Pereira Ibiapina foi
um dos 8 deputados eleitos para a República do Equador. Com o
fracasso do movimento revolucionário, o pai foi condenado e executado em praça pública, em Fortaleza, aos 7 de maio de 1825. Seu
irmão mais velho, Alexandre Raimundo Pereira Ibiapina, mandado para prisão perpétua em Fernando de Noronha, morreu pouco
tempo depois. Em 15 de outubro desse mesmo ano, seu primo e
cunhado, Otaviano Néri Pereira, foi assassinado e sua irmã mais
velha, Francisca Maria da Penha, ficou viúva com apenas dois meses de casada. Os bens paternos foram confiscados pelo governo
imperial e todos ficaram na mais reduzida pobreza. Assim, aos 19
anos de idade, mesmo com apoio e solidariedade de familiares e
amigos, Ibiapina teve que assumir os destinos da família. Sem perder o juízo nem a fé, o jovem segue firme na reorganização da
SUMÁRIO
Leituras Diversas: Crônicas, Ensaios e Contos
| 123
própria vida e dos irmãos menores. Tudo encaminhado volta para
Pernambuco e entra pela segunda vez no Seminário, com matrícula no dia 3 de fevereiro de 1828. Nesse ano de 1828 estabeleceu-se o
curso jurídico de Olinda, tendo iniciado as aulas no dia 2 de junho.
Ibiapina inscreveu-se, foi aprovado nos exames preparatórios e
tentou conciliar os dois cursos. Sobrecarregado, em 5 de agosto
deixou o Seminário para seguir apenas o Direito. Está, então, com
22 anos completos.
Encontrando sérias dificuldades em razão de sua falta de recursos, esteve a ponto de abandonar os estudos. Animado e auxiliado pelos companheiros, porém, prosseguiu em sua meta e, no ano
de 1832, obteve o título de Bacharel em Ciências Sociais e Jurídicas.
José Antônio Pereira Ibiapina fez parte, assim, da primeira turma
de advogados do curso de Olinda e estava com 26 anos de idade.
No mesmo ano foi nomeado professor substituto e interino para
lecionar Direito Natural no curso que acabara de concluir. No ano
seguinte, 1833, foi eleito 1º. Deputado à Assembleia Geral pela
Província do Ceará e logo nomeado Juiz de Direito e Chefe de Polícia da comarca de Quixeramobim-CE. Diz o cronista do tempo
que “um título pomposo, um emprego prestigioso e uma comissão importante punham o jovem Dr. Ibiapina em contato com as grandes e principais notabilidades do Império. Os seus conhecimentos das letras humanas
e seu talento portentoso, a sua fácil dialética, a sua dicção florida e poética, eram acessórios que lhe abriam um vasto horizonte na representação
nacional... e o futuro lhe sorriu cheio de sedutoras esperanças; ele creu e
tomou assento na Câmara dos Deputados no ano de 1834. A sua missão,
porém, era mais nobre”1. O jovem deputado estava nos seus 28 anos,
intensamente vividos.
O nosso Dr. Ibiapina não se dava por satisfeito e, como escreveu o mesmo cronista da época, observava: “Desde o Chefe da
Nação até o último dos magistrados não vejo senão fingimentos, mentiras
e traições”. E o cronista continua: “Todas as paixões se tinham feito
aceitáveis em política, o vício era igual à virtude, o patriotismo ao egoísmo, a probidade à hipocrisia; e só se distinguiam os indivíduos pela força
de suas bajulações e maior servilismo”2. No cargo de Juiz também logo
Carvalho, Ernando Luiz Teixeira de. A Missão Ibiapina. Passo Fundo:
Berthier, 2008, pp. 28-29.
2 Idem, pp. 29-30.
1
SUMÁRIO
124 | M a g n o N i c o l a u ( O r g . )
percebeu, não obstante suas tentativas de instruir os jurados, organizar o judiciário e impor a Lei, que prevalecia sobre a força bruta
e as ameaças dos poderosos. Desse modo, tendo sido nomeado em
dezembro de 1833, renunciou ao cargo em dezembro de 1835. Percebendo e sentindo a vida pública dessa maneira, como poderia
Ibiapina continuar como juiz ou permanecer na política?! Terminou seus 4 anos de mandato, em 1837, e não quis mais concorrer
nas eleições seguintes. Aos 31 anos de idade, portanto, deixou a
Corte, desgostoso e decepcionado. Concluídos os trabalhos legislativos, voltou a Pernambuco para seguir com a profissão de advogado. Logo em 1838 foi chamado a atuar na cidade de Areia-PB,
onde permaneceu por uns dois anos. Pela sua atuação no lugar,
rapidamente, começou a ganhar fama e crédito. Concluídos os trabalhos na Paraíba, voltou à cidade do Recife, em 1840, onde continuou exercendo a advocacia. Independente, estava com 34 anos de
idade.
No tempo, o Dr. José Ibiapina foi considerado por todos como excelente profissional do Direito. Este conceito admirável é
expresso, sinteticamente, nas palavras do Dr. Paulino Nogueira,
desembargador da Justiça, seu contemporâneo e primeiro biógrafo: “Se como civilista podia encontrar honrosa competência, como criminalista era sem possível rivalidade. Suas orações eloqüentes na tribuna
judiciária serviam de modelo à mocidade e garantiam-lhe sempre esplêndido triunfo”3.
Mas ele mesmo ainda não estava satisfeito e, depois de perder uma causa que considerava vitoriosa, “retirou-se do mundo”, no
ano de 1850, procurando a solidão. O tempo corria e o Dr. Ibiapina
já estava nos seus 44 anos. Tendo abandonado a advocacia, desfezse de quase todos os seus pertences e foi morar no sítio que possuía em Caxangá, nos arredores do Recife. Em princípios de 1853
vendeu a pequena propriedade e mudou-se para o centro da cidade, com duas de suas irmãs. Nessa época, começou a frequentar o
convento da Penha, dos frades capuchinhos, onde participava das
missas e de outros atos religiosos. Esta aproximação franciscana,
por meio dos frades, parece ter sido decisiva para sua ordenação
sacerdotal e rigorosa vida missionária que assumiu depois.
3
Nogueira, Paulino. Padre Ibiapina. RIC, n. 2, 1888, p.196.
SUMÁRIO
Leituras Diversas: Crônicas, Ensaios e Contos
| 125
Ibiapina estava com 47 anos incompletos quando foi ordenado padre, aos 3 de julho de 1853. Diz o cronista que “estudando e
aprofundando-se nas virtudes, passou três anos na solidão, até que, purificada a sua alma e repartidos os seus bens, recebeu, aos 3 de julho de
1853 ... o sacro Presbiterato”4. Algum tempo depois, entendendo sua
feliz mudança de vida como proteção da Santíssima Virgem, trocou seu sobrenome Pereira por de Maria, passando a assinar-se Pe.
José Antonio de Maria Ibiapina. Em obediência ao bispo, aceitou
os cargos de Vigário geral da diocese e de professor de eloquência
sagrada do Seminário de Olinda, durante dois anos. Ele poderia,
então, ter se contentado com o status clerical alcançado, com uma
promissora carreira eclesiástica, com uma tranquila vida de padrefuncionário da máquina administrativa da Igreja e do Estado. Seu
desejo maior e vocação, porém, era a vida missionária.
Sua realização começou no ano de 1856, quando a epidemia
do cólera alastrava-se em Pernambuco e províncias vizinhas. Nesse tempo, Ibiapina dirigiu-se do Recife para o interior da província
e, na região da serra de Taquaritinga, começou suas atividades na
pequena povoação de Gravatá do Jaburu, hoje Gravatá do Ibiapina. Ali deu início a um pequeno hospital para atendimento dos
coléricos, a uma capela dedicada a Nossa Senhora da Conceição e a
um açude. Com as notícias do cólera assolando o brejo paraibano,
Ibiapina seguiu na direção de Campina Grande, na Paraíba, e daí
em diante nunca mais parou. Em 1856 o nosso padre está com exatos 50 anos de vida. Já com essa idade, em intensa peregrinação
missionária, Ibiapina irá percorrer a pé ou a cavalo cinco províncias nordestinas: Pernambuco, Paraíba, Rio Grande do Norte, Ceará, indo até Picos no Piauí. Ele procurou, no seu tempo, associar
suas pregações às necessidades materiais e sociais do povo mais
sofrido. Em menos de 20 anos de missão itinerante construiu ou
deu início, com o povo em mutirão, a açudes, igrejas e capelas,
cemitérios, cruzeiros, escolas, casas para tratamento de doentes ou
hospitais e 22 Casas de Caridade5.
Cf. A Missão Ibiapina, p. 33.
No Ceará foram 6 Casas: Milagres, Barbalha, Missão Velha, Crato, Sobral e
Santana do Acaraú. Em Pernambuco, 3 Casas: Gravatá do Jaburu (do
Ibiapina), Bezerros e Triunfo. No Rio Grande do Norte, 3 Casas: Mossoró,
Açu, Acari (transferida para Extremoz). Na Paraíba foram 10 Casas: Areia,
4
5
SUMÁRIO
126 | M a g n o N i c o l a u ( O r g . )
De todas as suas realizações, as Casas de Caridade foram
consideradas como as de maior vulto e alcance social. Sua palavra
e exemplo de vida tinham força para convencer, unir, converter e
transformar as pessoas que participavam das missões. Assim, com
entusiasmo e dedicação de muitos, surgiam as obras e as pessoas
vocacionadas para garantir seu funcionamento. Com as forças vivas do lugar, era criada uma diretoria, muitas vezes com a participação do vigário local, para administrar a Casa e garantir os recursos necessários à sua sobrevivência. Para a organização interna
foram surgindo moças e mulheres que atendiam aos apelos de
Deus através do seu chamado direto e que, com o tempo, deram
origem a uma irmandade com a missão de cuidar e educar órfãs,
de acolher doentes e necessitados. Surgiram, assim, aquelas que
ficaram conhecidas pelo nome de “Beatas do Padre Ibiapina”.
Também surgiram os “Beatos”: homens que se consagravam à
missão para ajudar as Casas, sobretudo nos trabalhos mais pesados, cuidando dos roçados, dos animais e destemidos nas andanças para o peditório das esmolas6. Tudo isso acontecia porque,
como diz o cronista, “Ele tinha um tesouro escondido, mas não para si,
porque era livre de interesse próprio, mas que, reverberando em chamas de
amor divino, repartia-se prodigamente a todos que fosse preciso, sem excetuar sexo, estado, condição ou idade”7.
As Casas de Caridade tiveram um estatuto próprio para regular o estudo das letras, a iniciação ao trabalho, o ensino das
chamadas prendas domésticas e os rudimentos de agricultura,
além da educação cristã para que tudo convergisse na formação de
uma boa esposa e mãe de família, uma mulher empreendedora e
com princípios morais. E envolvendo centenas de pessoas, sem sua
presença constante, porque a missão era peregrina, as Casas de
Caridade seguiam em sua marcha. Então, vale ressaltar mais uma
vez o que escreveu o cronista: “Quem poderá descrever todas as particularidades dos dons do coração do nosso Santo Apóstolo Ibiapina? Um
coração angélico, puro, simples, casto, humilde, desinteressado, benfazejo
Alagoa Nova, Pocinhos, Campina Grande, Cabaceiras, Parari (Pombas), Santa
Luzia, Souza, Cajazeiras e Arara (Santa Fé).
6 Cf. Carvalho, Ernando Luiz Teixeira de. “Ibiapina e seus Beatos”, in Revista
Eclesiástica Brasileira - REB, fasc. 280, outubro, 2010, p. 886-909.
7 A Missão Ibiapina, p.42.
SUMÁRIO
Leituras Diversas: Crônicas, Ensaios e Contos
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e tão dedicado ao amor de Deus e do próximo, que era abrigo seguro da
orfandade, remediador dos infelizes, consolador dos aflitos, enternecido
das misérias humanas...”8.
Vivemos outros tempos e outras são as iniciativas e realizações para os desafios de hoje. Nada, porém, diminui a importância,
o valor, o significado da vida e da ação do nosso Padre Mestre. O
reconhecimento da grandeza de sua ação missionária, pedagógica
e civilizadora, de qualquer forma, não faltou ao longo do tempo,
mesmo com o declínio e extinção das Casas de Caridade. Ele continua sendo um referencial, um ponto de luz, enquanto a terra
clamar pelo flagelo das crianças abandonadas e do aborto, pela
exploração do trabalho infantil e da prostituição, pela violência
contra a mulher, pelo tráfico de pessoas... Os atuais movimentos
em prol da criança, do adolescente e da mulher não dão conta de
erradicar tantos problemas. Ibiapina pode ser considerado precursor de uma infinidade de movimentos e organizações que, atualmente, tentam minimizar os males que atingem nossas populações
marginalizadas, exploradas e empobrecidas.
Falecido no dia 19 de fevereiro de 1883, aos 77 anos de idade,
na Casa de Caridade de Santa Fé, hoje Santuário, entre as cidades
de Arara e Solânea, ele continua inspirando missionários e missionárias do nosso tempo. Padre Ibiapina está em processo de canonização e já foi declarado por Roma como Servo de Deus, podendo ser
cultuado por suas altas virtudes. Seu espírito inquieto e realizador
nos convida a prosseguir na Missão, para que aconteça o milagre
da solidariedade, da partilha, da justiça, do perdão, da fraternidade, da caridade como o grande sinal do amor de Deus no meio do
mundo. O tempo de Ibiapina ainda não terminou!
Referências
ARAÚJO, F. Sadoc de. Padre Ibiapina: peregrino da Caridade. São Paulo:
Paulinas, 1996.
BARROS, Luitgarde Oliveira Cavalcante. “A ação modernizadora do Padre
Ibiapina”, in Boletim do Instituto Cultural do Cariri, Juazeiro do Norte, n. 12,
1985.
8
Idem, p.42.
SUMÁRIO
128 | M a g n o N i c o l a u ( O r g . )
CARVALHO, Ernando Luiz Teixeira de. A Missão Ibiapina – A crônica do século
XIX escrita por colaboradores e amigos do Padre Mestre, atualizada com notas e
comentários. Passo Fundo-RS: Gráfica Berthier, 2008.
CARVALHO, Ernando Luiz Teixeira de. “Ibiapina e seus Beatos”, in Revista
Eclesiástica Brasileira - REB, outubro, 2010, p. 886-909 e Revista do Instituto
Histórico e Geográfico Paraibano - RIHGP, Ano C, n.41, dezembro, 2010, p.
63-83.
CARVALHO, Gilberto Vilar de. “O Padre Ibiapina, um homem que viveu e
morreu pelo seu povo”, in Revista Eclesiástica Brasileira - REB, março de 1983.
COMBLIN, José. Instruções espirituais do Padre Ibiapina. São Paulo: Paulinas,
1984.
DESROCHES, Georgette e HOORNAERT, Eduardo (org.). Padre Ibiapina e a
Igreja dos pobres. São Paulo: Paulinas, 1984.
JÚNIOR, Luis Araújo Pinto. “O padre Ibiapina, precursor da opção pelos
pobres na Igreja do Brasil”, in Perspectiva Teológica, Belo Horizonte, 2002, n.34,
p.197-222.
MARIZ, Celso. Ibiapina – Um Apóstolo do Nordeste. João Pessoa: Editora
Universitária/UFPB, 2a. ed., 1980 (primeira edição 1942).
NOGUEIRA, Paulino, “O Padre Ibiapina”, in Revista do Instituto do Ceará RIC, n. 2, 1888, pp. 157 – 220.
SUMÁRIO
Leituras Diversas: Crônicas, Ensaios e Contos
| 129
A ESCRITA NO REFERENCIAL
CURRICULAR NACIONAL
PARA A EDUCAÇÃO INFANTIL
Evangelina Maria Brito de Faria
Este ensaio é dirigido especialmente a professoras e formadores de professoras da Educação Infantil. Em particular, queremos discutir a proposta do Referencial para o trabalho com a escrita nessas séries iniciais. Há muitos questionamentos em torno dessa questão nesse nível de ensino: deve-se já introduzir a escrita na
Educação infantil? Deve-se alfabetizar na Educação Infantil? Queremos discutir esses pontos colocados iniciando nossa conversa
sobre Letramento, pois esse tema abre novas perspectivas sobre o
trabalho com a escrita. Passemos ao conceito de Magda Soares:
Letramento é estado ou condição de quem não só saber ler e escrever, mas exerce as práticas sociais de leitura e de escrita que
circulam na sociedade em que vive, conjugando-as com as práticas sociais de integração oral (SOARES, 1999, p. 23).
Como se percebe, é um conceito complexo por envolver leitura e escrita ao mesmo tempo e, como sabemos, esses processos
envolvem capacidades múltiplas, variadas, que se configuram
cada vez mais como ações críticas, apoiadas em traços intertextuais, inferenciais e contextuais. Por ações críticas entendemos atos
de ler e de escrever com posicionamentos, respostas, perguntas em
relação à leitura e à escrita. Essas ações pressupõem relações com
outros textos (intertextuais), às quais levam o sujeito leitor ou escritor a fazer correlações entre o que está no texto e suas leituras
anteriores (inferências) e, naturalmente, a levar em consideração o
contexto de produção que é constituído pelas representações sobre
o local e o momento da escrita, sobre o emissor e o receptor considerados do ponto de vista físico e do papel social.
SUMÁRIO
130 | M a g n o N i c o l a u ( O r g . )
Por práticas sociais de leitura e de escrita entendemos todas
as ações que envolvem na sociedade o uso da leitura e da escrita, o
que demanda uma amplidão imensa. O conceito de letramento é
complexo e amplo, porém o processo em si é muito próximo de
todos nós. Pensemos um pouco: folhear uma revista, recortar nomes, colocar o nome do bebê na porta do quarto, passar por uma
propaganda ao cruzar uma rua, ver rótulos em supermercado etc.
Poderíamos enumerar inúmeras outras ações que envolvem letramento. O importante, porém, é perceber que desde cedo nossas
crianças vivem imersas nessas práticas.
Estão vendo como o conceito de letramento muda nossa relação com a escrita? Por esse ângulo, muitas crianças nascem imersas no letramento, pois escutam estórias, tomam banho folheando
as páginas de livros plastificados, recortam jornais, encontram a
escrita nos rótulos dos refrigerantes, nos chocolates, nas placas,
não é verdade? Elas veem a mãe fazer uma lista de compras, anotar um recado telefônico, seguir uma receita culinária, buscar informações em um catálogo. De acordo com essa visão, surge a
compreensão de que, nas sociedades urbanas modernas, não existe
grau zero de letramento, pois não encontramos sujeitos que não
vivenciem, de alguma forma, algumas dessas práticas.
Letramento se apresenta como um exercício efetivo e competente da escrita e implica habilidades, como a de ler e escrever para
obter informação, para interagir, ampliar conhecimento, interpretar e produzir diferentes tipos de texto, de inserir-se completamente no mundo da escrita. Para Soares (1998), essa forma de letramento contribui para a formação da auto-estima, a construção de
identidades e estruturação de agentes sociais em suas culturas.
Agora que vimos o letramento, passemos à escrita. O que há
em comum entre o letramento e o ensino da escrita na Educação
Infantil? Busquemos a ligação no que nos diz o Referencial:
a aprendizagem da linguagem escrita é concebida como:
• a compreensão de um sistema de representação e não
somente como a aquisição de um código de transcrição da fala;
• um aprendizado que coloca diversas questões de ordem conceitual, e não somente perceptivo-motoras,
para a criança;
SUMÁRIO
Leituras Diversas: Crônicas, Ensaios e Contos
| 131
• um processo de construção de conhecimento pelas crianças por meio de práticas que têm como ponto de
partida e de chegada o uso da linguagem e a participação nas diversas práticas sociais de escrita (Volume
3, 1988, p. 122).
Compreender a língua escrita como um sistema de representação, simbolismo e não somente como código de transcrição da
fala traz fortes implicações para o processo de ensino. Em seu artigo “A pré-história da escrita”, Vygotsky (1998) explicita que não se
ensina a escrita, quando se desenham letras ou se constroem palavras de forma mecânica. Isso reflete apenas um treinamento artificial de fora para dentro. O autor chama a esse processo de fala
morta, pois a linguagem viva fica em segundo plano. Partindo da
concepção da linguagem escrita como [...] um sistema particular de
símbolos e signos cuja dominação prenuncia um ponto crítico em
todo o desenvolvimento cultural da criança, Vygotsky afirma que
essa aquisição começa com o aparecimento do gesto como signo
visual para a criança.
Para o autor (1998), o gesto é o signo visual inicial que contém a futura escrita da criança da criança. Gestos são escritas no ar.
Dando continuidade à sua explanação, mostra que os gestos estão
ligados ao signo escrito por dois caminhos: primeiro, através dos
rabiscos, a partir dos quais se imagina uma bola, um carro, uma
boneca, etc; segundo, dos jogos, que são gestos representativos,
como por exemplo, usar o cabo da vassoura como um cavalo.
Por essa visão, o desenho é um simbolismo de 1ª ordem, que
ganha uma nova significação, não são mais traços, círculos, mas
amigos que brincam, com uma nova função, já num simbolismo de
2ª ordem. E acrescenta: “a representação simbólica no brinquedo é,
essencialmente, uma forma particular de linguagem num estágio
precoce, atividade essa que leva, diretamente, à linguagem escrita”
(VYGOTSKY, 1998).
O que nos chama atenção é a questão da construção do simbolismo. Por isso, a importância do desenho e do rabisco para a
aquisição da escrita. Desenhar e brincar devem ser estágios preparatórios para o desenvolvimento da linguagem escrita das crianças.
Há outras formas de introduzir a criança na escrita sem passagens bruscas como, por exemplo, ler para a criança. A leitura já a
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132 | M a g n o N i c o l a u ( O r g . )
transporta para a escrita. Outra é ter como base a oralidade para
ensinar a linguagem que se usa para escrever. Ditar um texto para
o professor, para outra criança ou para ser gravado em fita cassete
é uma forma de viabilizar a produção de textos antes de as crianças saberem grafá-los. Como exemplo, transcrevemos um texto
narrado para a professora por alunos de 4 a 5 anos de uma escola
pública do município de João Pessoa. A professora, após ler uma
história, solicitou a narração coletiva e registrou em papel madeira,
no centro da sala, enquanto os alunos narravam. Após várias negociações, o texto ficou assim:
O cachorro pequeno
Carlos encontrou um cachorrinho na praça em frente ao
prédio dele. Ficou feliz, levou pra casa deu comida e arranjou um
caixa para ele dormir. Quando o irmão chegou, foi mostrar o cachorrinho e pediu para ele escolher um nome.
Estavam brincando com ele, quando aparece uma senhora
dizendo que o cachorro é da filha dela. Carlos não queria entregar,
mas a mãe disse que ia conseguir um para ele. Carlos entregou o
cachorrinho muito triste e está esperando um para ele.
Ainda que não saibam identificar o som correspondente à
grafia da letra, as crianças realizaram um trabalho de produção
textual. Primeiramente, podemos ressaltar a propriedade do título
que garante a adequação do texto como um todo. Naturalmente foi
negociado com a turma de 26 alunos, mas foram eles que escolheram dentre outros sugeridos. Do ponto de vista do gênero, há um
personagem, num determinado espaço (em frente ao prédio, casa),
que realiza uma ação: encontrar um cachorrinho e levar pra casa. E
no final, o desfecho das ações com a explicitação dos sentimentos
que acompanham essa ação. Sem sombra de dúvida, essas crianças
já empregam estratégias proficientes de um produtor de textos.
Elas começam a participar de um processo de produção de
texto escrito em atividades como essa, construindo conhecimento
sobre essa modalidade, antes mesmo que saibam escrever autonomamente. Hoje, uma das situações didáticas previstas pelos
principais programas oficiais de alfabetização inicial é solicitar que
os alunos produzam textos oralmente para se verem capazes de
escrever muito antes de estarem alfabetizados. Nas atividades de
SUMÁRIO
Leituras Diversas: Crônicas, Ensaios e Contos
| 133
escrita, acredita-se que as crianças se apropriam dos conteúdos,
transformando-os em conhecimento próprio em situações de uso.
A língua escrita é apresentada como um processo de conhecimento que se dá na participação de práticas sociais de escrita. O
que isso quer dizer? Que quanto mais a criança estiver em contato
com práticas de escrita, melhor será a sua compreensão desse processo. Dizendo de outro modo, aprender a ler e a escrever fazem
parte de um longo processo ligado à participação em práticas sociais de leitura e escrita. É no contato diversificado em seu ambiente
social que as crianças descobrem o aspecto funcional da comunicação escrita, desenvolvendo interesse e curiosidade por essa linguagem. Inseridas no ambiente de letramento em que vivem, as crianças fazem, a partir de dois ou três anos de idade, perguntas, como
“O que está escrito aqui?”, ou “O que isto quer dizer?”,ou simplesmente desenham e fingem ler o que está escrito, mostrando a
sua compreensão sobre a escrita. Vejamos mais uma vez o Referencial:
As crianças que não sabem escrever de forma convencional, ao
receberem um convite para fazê-lo, estão diante de uma verdadeira situação-problema, na qual se pode observar o desenvolvimento do seu processo de aprendizagem. Tal prática deve favorecer a construção de escritas de acordo com as idéias construídas pelas crianças e promover a busca de informações específicas de que necessitem, tanto nos textos disponíveis como recorrendo a informantes (outras crianças e o professor). O fato
de as escritas não-convencionais serem aceitas não significa ausência de intervenção pedagógica (Referencial Curricular Nacional para a Educação Infantil - Volume 3 / Conhecimento do
Mundo. Brasília: MEC/ SEF, 1998, p. 145 a 150).
Como se vê nos textos oficiais, ganham relevo propostas de
aprendizagem do alfabeto e do uso da escrita simultaneamente. Já
é consenso que a elaboração de um texto vai muito além do registro gráfico. Durante o ditado para o professor, os alunos conduzem
a produção do texto tanto no que diz respeito ao conteúdo como
na forma, por meio de pausas, ritmos, etc. Essa prática deve fazer
parte da rotina da alfabetização inicial, contemplando diferentes
gêneros.
SUMÁRIO
134 | M a g n o N i c o l a u ( O r g . )
Como se vê, é um trabalho de convivência com os diferentes
usos da escrita em nossa sociedade. Para isso, é necessário reconhecer a capacidade ativa das crianças, introduzir atividades em
que as crianças percebam para que e para quem estão escrevendo,
isto é, inserindo-as no contexto social da escrita.
Para concluir, queremos retornar à nossa pergunta inicial:
deve-se já introduzir a escrita na Educação infantil? Deve-se alfabetizar na Educação Infantil? Pela proposta do Referencial, desde a
mais tenra idade deve-se colocar a criança em contato com a leitura e com a escrita. A alfabetização inserida no letramento auxilia
desde cedo os alunos a se engajarem na multiplicidade de textos
que circulam na sociedade. Texto ficcional ou poético, em prosa ou
em verso, de todos os tipos e gêneros. Simples e complexos, porém
sempre ao lado da criança, possibilitando uma multiplicação de
sentidos.
Ler e escrever sem ainda saber, mas experienciando o sabor
de brincar com as letras. Inserir a criança nesse novo contexto é
repensar a alfabetização que sugere uma aliança entre alfabetizar e
letrar, como sinaliza Magda Soares.
REFERÊNCIAS
BRASIL. Ministério da Educação e do Desporto. Referencial Curricular Nacional para a Educação Infantil - Volume 3 / Conhecimento do Mundo. Brasília:
MEC/ SEF, 1998.
FARIA, Evangelina. A argumentação oral infantil. Campina Grande: Bagagem, 2002
ROJO, R. Letramentos múltiplos, escola e inclusão social. São Paulo: Editora
Parábola, 2009
SOARES, M. Letramento: um tema em três gêneros. Belo Horizonte: Autêntica, 1998.
VYGOTSKY, Lev S. A pré-história da linguagem escrita. In VYGOTSKY, Lev S. A
Formação social da mente. São Paulo: Martins Fontes, 1998.
SUMÁRIO
Leituras Diversas: Crônicas, Ensaios e Contos
| 135
CINE LUX DE POMBAL –
O ÚLTIMO EPISÓDIO
Francisco Vieira
Depois de tantas aventuras, inúmeras comédias e diversos
shows, infelizmente, seu último episódio, o que não foi nada agradável.
Ano de 1989. Numa fatídica noite de um dia e mês esquecidos pelo tempo deu-se sua última exibição. Noite sinistra: o Cine
Lux apagava as luzes de sua tela panorâmica e fechava suas portas
encerrando um período marcante de trinta e cinco anos de intensa
atividade. A fita chegava ao fim. Triste fim. Simultaneamente se
iniciava um novo capítulo de uma história interminável e que seria
doravante exibida na memória dos filhos de Pombal.
Hoje, vinte e dois anos depois, o Cine Lux ainda permanece
vivo em nossas lembranças, tal qual uma chama que crepita trazendo doces recordações de um passado que gostamos de reviver.
É um misto de ventura e tristeza, emoções, humor e felicidade.
Enfim, um conjunto de sentimentos que as palavras não definem.
Tudo se resume em saudade, esse sentimento nostálgico decorrente de algo marcante.
O Cine Lux já nasceu com ares de grandeza. Construído por
Chiquinho Formiga em 1954, foi inaugurado com um show de Sua
Majestade Luis Gonzaga – O Rei do Baião. Em meio a toda essa
imponência, é curioso saber que não havia ainda assentos, tendo as
pessoas os levado de suas residências sem nenhum constrangimento.
Após dois anos, em 1956, “Seu Chiquinho”, para dedicar-se
a construção civil, decidiu vender aquela casa de espetáculos ao
seu cunhado Afonso Coelho Mouta. “Seu Afonso”, homem íntegro, de conduta ilibada, se caracterizou como um exemplo de dignidade. Faleceu cedo e de forma trágica, contudo, deixou como
legado para a família os princípios da honra e da moralidade.
SUMÁRIO
136 | M a g n o N i c o l a u ( O r g . )
Afonso Mouta mostrou-se um empreendedor nato e detentor de uma visão futurista, graças ao que desenvolveu a arte cinematográfica na cidade. Sob seu comando iniciou com o filme mexicano “A mulher que eu perdi”, inaugurando cerca de 380 luxuosas
poltronas da CIMO – conceituada indústria de móveis paranaense.
Seu dinamismo deixou marcas inesquecíveis como a exibição do
filme em cinemascope, avanço tecnológico em filmagem e projeção, que estreou em dezembro de 1958, mediante convites especiais, com a fita “Cavaleiros da Távola Redonda”, protagonizado por
Robert Taylor e Ava Gardner.
O Cine Lux foi durante décadas a maior atração noturna da
cidade, o lugar a que convergia a população todas as noites. Era
uma agradável rotina. Os filmes exibidos agradavam a todos: crianças, jovens e adultos. Gregos e troianos se satisfaziam com os
variados gêneros que iam desde os épicos como: “Rei dos Reis”,
“El Cid”, “Ben Hur”, até os bang-bang e as chanchadas brasileiras,
ricas em humor. Eram produções de estilo cômico mescladas com
toques de romantismo e participação dos grandes cantores da época, capazes de descontrair os mais sisudos. De fato, era impossível
resistir à dupla Ankito e Grande Otelo, Zé Trindade, Oscarito,
Mazzaropi. Foi também palco de shows de renomados artistas. Por
lá se apresentaram Luis Gonzaga, Marinês, Cel. Ludugero, Bievenido Granda (cubano), José Augusto – O Sergipano - José Ribeiro,
Roberto Muller, Os Cantores de Ébano, Miguel Ângelo, Noca do
Acordeon e Ronaldo José – ex. aluno do Ginásio Diocesano. E, como se não bastasse, ainda cedeu seu espaço para grandes eventos
sociais, entre os quais, a colação de grau da primeira turma concluinte do extinto Ginásio Diocesano de Pombal, no ano de 1958, que
teve o Deputado Federal Janduy Carneiro como paraninfo. Serviu
ainda para realização de Festival de Calouros, Grêmio Literário,
teatro, palestras e até convenções partidárias.
O Cine Lux era mais que um passatempo ou diversão, era o
principal ponto de encontro entre amigos e namorados. Dele tenho
grandes recordações.
Na fertilidade da imaginação me vejo ainda moleque atropelando as filas das matinês para assistir ao filme, de preferência os
de Tarzan, Zorro, Jim das Selvas, faroeste ou chanchada. Melhor
ainda se tivesse antes um seriado de Flash Gordon. Valia a pena
sofrer com “o perigo da série” e aguardar, ansioso, até a próxima
SUMÁRIO
Leituras Diversas: Crônicas, Ensaios e Contos
| 137
matinê para ver o mocinho salvar sua amada. A espera era recompensada com a certeza de um final feliz. E, como eu rezava com fé
para a energia voltar. Pedia em silêncio até com promessas que
nunca foram cumpridas. Vejo-me também adolescente com uma
namorada no “escurinho do cinema”, temendo, pela ousadia, em
ser repreendido por Galdino. É que na penumbra tudo é possível.
A respeito, disse alguém: “Se peito de moça fosse buzina, ninguém
assistia o filme de tanto barulho”.
Com a mesma importância ainda soam nos ouvidos aguçados as músicas inesquecíveis de sua rica discoteca e que, hoje recordando, me fazem sonhar e até chorar. À noite, ao som de Ray
Conniff, Poly, Saraiva e outros, enquanto no período diurno se
ouviam os sucessos nas vozes de Nelson Gonçalves, Cauby Peixoto, Anísio e Orlando Silva, Ângela Maria e tantos mais. Impossível
citá-los. A lista era infindável, todos detentores de vozes privilegiadas que tocavam profundamente os corações dos que amam o
bom e o belo. Um deleite emocional.
Da mesma forma sinto a presença de Zé Lopes, porteiro cuidadoso que fazia de tudo para não morrer pisado; Poxota, caprichoso na limpeza, e Facundo, responsável pela colocação do cartaz
no Mercado Público, ponto mais central da cidade. Seria injusto
não lembrar “Pedro Onça”, transportando, em seu carro de mão,
as fitas que chegavam e saiam pelo trem da REFESA. Aí, sem pagar frete, rompendo os limites da velocidade, descíamos a Rua dos
Roques ladeira abaixo. Tamanha era a disparada que mal se ouvia
“Seu Pedro” gritar: “Cuidado com o filme”.
Injustiça capital seria omitir Zé Cleonso e Galdino; o primeiro, operador, e, o segundo, polivalente. Fazia de tudo. Além de
sócio proprietário era bilheteiro, porteiro, fiscal e até “lanterninha”. Aos irmãos minha reverência, pois com a morte do pai, em
1964, assumiram a tutela da família e – enquanto possível – fizeram o show acontecer.
Mas a vida é um mar de contingências, todas submissas ao
progresso como fim. A sua marcha tem dupla ação: se de um lado
melhora a qualidade de vida da humanidade, por outro, produz
efeitos danosos. A propósito, a sétima arte, no Brasil, sofreu graves
consequências com o advento da televisão e, via de regra, em
Pombal não foi diferente. O Cine Lux assistiu, agonizante, os efeitos negativos do progresso cerrando suas portas. A indústria ci-
SUMÁRIO
138 | M a g n o N i c o l a u ( O r g . )
nematográfica como arte não foi suficientemente artista para superar a crise e evitar o fechamento de centenas de cinemas. Coisas do
“progresso”.
Por circunstâncias alheias à vontade da família, o cinema encerrou seu ciclo de atividades. O prédio foi partilhado e transformado em residências. Dele, além da saudade, resta apenas o frontispício que, mesmo com a estrutura modificada, permanece ainda
de pé – não sei até quando - graças à sensibilidade de alguns. Firme em sua base, orgulhoso do seu passado, assiste o vai e vem dos
transeuntes que passam lamentando seu fim melancólico. Com
certeza não se incomodariam com o badalar do sino da UCB e suas
correntes giratórias, nem o rugir voraz do Leão da Metro; antes,
refrescariam a mente na luminosa fonte da Atlântida. Talvez o
silêncio dominante seja de constrangimento por não pertencer ao
patrimônio histórico do município. É lamentável, mas o reconhecimento veio após sua demolição.
A preservação memorial de um povo implica na conservação de sua história, no elo inquebrantável estabelecido entre o homem e o meio. Assim, em que pese essa exclusão, pelo seu passado
glorioso e significativo valor, o Cine Lux, será perpetuado na memória da população. É o verdadeiro patrimônio.
Falar do Cine Lux é reverenciar um passado intrinsecamente
ligado à vida dos filhos de Pombal. Ouso dizer que é raro – se é
que existe - um pombalense sequer que não tenha vivido algo ligado ao cinema de Pombal. Por isso, somos parte integrante dessa
história que deve ser contada pelos antigos para conhecimento dos
mais novos.
Em síntese, este é o meu contributo à história do Cinema em
Pombal, brilhantemente decantada nas crônicas de Inácio Tavares
e Jerdivan Nóbrega. Espero não ofuscar o seu brilho e, sim, tornálo mais reluzente.
Ao Cine Lux a exultação do seu nome e de sua história, reprisada com o fechamento de suas cortinas douradas e a exibição
do seu ÚLTIMO EPISÓDIO.
SUMÁRIO
Leituras Diversas: Crônicas, Ensaios e Contos
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ALEXEI BUENO E AUGUSTO DOS ANJOS
Hildeberto Barbosa Filho
É no capítulo, “O sopro do símbolo”, que o poeta Alexei Bueno insere Augusto dos Anjos, em Uma história da poesia brasileira
(2007), através de um texto histórico e ensaístico a que não escapa
a preocupação analítica e exegética e, por isto mesmo, certamente
um dos mais equilibrados em âmbito crítico e historiográfico.
Após pequeno introito biográfico, concluído pela ideia possivelmente discutível de que a “grandeza” da poesia anjelina “parece não se coadunar bem com a normalidade chã de sua biografia”, o poeta-historiador passa, de imediato, a enfrentar as questões
de mérito. Inicialmente, as questões de conteúdo; depois, as de
forma e estilo, ao mesmo tempo em que, e a todo instante, da formulação de seu discurso crítico, convoca a materialidade do texto
poético a título probatório e alarga o campo das investigações
comparativas.
Ainda bem que Alexei Bueno usa o verbo parecer, quando
alude ao delicado assunto vida e poesia, precavendo-se, portanto,
de incidir no lugar comum da crítica biográfica, à Saint-Beuve, no
sentido de que uma pode explicar a outra e vice-versa. Em outros
termos: a grandeza de uma vida não determina a grandeza de uma
poesia; a “normalidade chã” de uma vida não leva necessariamente a uma poesia mediana. Fosse assim, não teríamos, no caso da
poesia brasileira, por exemplo, nomes como Manuel Bandeira,
Carlos Drummond de Andrade, Jorge de Lima e João Cabral de
Melo Neto, nenhum deles, me parece, com vida extraordinária. A
bem da verdade, o fenômeno estético exige explicações mais complexas e mais profundas. E é isto que Alexei Bueno procura demonstrar.
Em primeiro lugar, o poeta-historiador fala da forte impressão que lhe causa a poesia de Augusto dos Anjos, atribuindo-a à
“especificidade do indivíduo que a compôs”, assim como “pelo
caráter de independência extrema, quase de geração espontânea,
com que ela rompeu no panorama da literatura brasileira”. A par
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do reconhecimento acerca dos fatores inconscientes que motivam a
criação poética, enfatiza, contudo, a natureza pensante e a autoconsciência que caracterizam o método poético do autor de “Vandalismo”. Para corroborar a ideia de que o poeta paraibano não
desconhecia sua singularidade em meio ao convencionalismo de
um ambiente literário fútil e artificial, singularidade que se traduz
pelo insólito e bizarro do tema e da linguagem, refere dois “significativos poemas”: “O poeta do hediondo” e “Noli me tangere”. Segundo Alexei, “cruéis e exacerbados autorretratos, menos de como
ele deveria se sentir do que como ele sabia que o sentiriam, e quase
uma justificativa prévia de quem se sabia responsável por ultrapassar as fronteiras temáticas do recomendável e do aceito”.
Não obstante, essa presença isolada, vívida, concreta, quase
única, ao modo de ver do crítico, não está dissociada, como não
poderia estar, do meio e do momento, com suas ideias dominantes,
seus modismos filosóficos, seus parâmetros artísticos, suas correntes científicas, enfim, seu complexo cultural a servir de referência
indispensável ao processo de elaboração poética. Portanto, em
muitos aspectos, como bem elucida Alexei Bueno, o autor de “Os
doentes” é um “homem de sua época e do seu meio”, encontrando-se, entre outros poetas, seus contemporâneos, características
afins.
Um ponto central dessa discussão é o tão propalado cientificismo de sua poesia. Mais que nenhum outro historiador, e aqui
compartilhando as lúcidas interpretações de ensaístas, como Ferreira Gullar, José Paulo Paes e Mário Chamie, entre outros, Alexei
Bueno chama a atenção para o fato de que, entre as múltiplas “generalizações filosóficas” do tempo, Augusto dos Anjos procurou
adotar, como crença pessoal, “os sistemas que mais dariam ensejo
a uma visão predominantemente mística e totalizadora do universo”, isto é, o evolucionismo, de Darwin, segundo Alexei, “filtrado
por Spencer”, e o monismo, de Ernest Haeckel, conforme o historiador, “racionalização materialista carregada de grandes possibilidades de expansão religiosa, e construída, aliás, sobre diversas
premissas biológicas falsas ou erroneamente interpretadas”.
Ainda neste ponto, defende a “sinceridade primordial” do
poeta no que concerne a sua “adesão intelectual e mesmo emocional” aos paradigmas dessa visão de mundo. Mas a ela acrescenta a
sua sensibilidade especial para com o tecido não somente conceitual, porém, sonoro dos vocábulos, o que define a particularidade
SUMÁRIO
Leituras Diversas: Crônicas, Ensaios e Contos
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de seu estranho e incomum “arcabouço fonético”. A musicalidade
heterodoxa que advém do uso desses termos científicos, na mais
das vezes incompreensíveis ao leitor comum, e que nomeiam “seres ínfimos”, como que está, afirma Alexei, “perfeitamente no plano do poeta, porta-voz da essência de todos os seres, e não apenas
do homem.
A propósito, este me parece um dos melhores momentos da
leitura do poeta-historiador. A originalidade desta concepção poética e ao mesmo tempo filosófica” é marcada”, assinala acertadamente Alexei, “pela originalidade sonora do nome das espécies”.
Referindo-se ao poema “Budismo moderno”, traz a imagem das
“diatomáceas da lagoa”, cuja cápsula criptógama, sendo desfeita/destruída pelo contato de uma mão humana, remete para sua
própria fragilidade, “ao mesmo tempo que se identifica, na solidariedade de condenados à morte, a essas vidas íntimas que também
o são”. O mesmo, adita o intérprete, ocorre no poema “Alucinação
à beira-mar”, no qual “malacopterígios subraquianos / que um
castigo de espécie emudeceu” lhes pareciam também “corpos de
vítimas / condenadas à Morte, assim como eu”.
Com estes exemplos, Alexei Bueno demove o batido argumento em torno do “exibicionismo gratuito” e do “bestialógico”,
entrevistos por muitos estudiosos na composição do discurso lírico
de Augusto, ressaltando, com sua argúcia de crítico-poeta, a funcionalidade estilística desse glossário científico, vendo nele “um uso
radicalíssimo das infindáveis possibilidades do léxico, de resto
estatisticamente muito pequeno em relação ao total de seu vocabulário para justificar a fama imerecida de delírio vocabular que muitas vezes lhe imputaram”.
O monismo evolucionista, no entendimento de Alexei Bueno, passa, em Augusto dos Anjos, por um processo de transformação, funcionando como “uma espécie de sistema místico totalizador” que vai legitimar suas opções estéticas, assim como certos
sistemas religiosos alicerçaram a poesia mística de todas as épocas.
Daí decorre uma das características fundamentais da lírica anjelina, isto é, “A sensibilidade exacerbada para a percepção da energia
potencial oculta em toda a matéria”, ilustrada em poemas como “O
lamento das coisas”, “As montanhas”, “Numa forja”, “O pântano”,
“A floresta”, entre outros. Também desta base parece advir, em
frontal contradição com as inclinações otimistas do racionalismo
científico que tende a acentuar o “caráter evolutivo do universo”,
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142 | M a g n o N i c o l a u ( O r g . )
nutrientes de uma energia negativa a fecundar o sofrimento e a
morte em detrimento da vida, numa espécie de “budismo de origem claramente schopenhauriana”.
Não escapa a Alexei Bueno, em sua análise exegética, o paradoxo nuclear que subjaz a toda poesia do autor de “O último
número”, entrevisto, sobretudo, no descompasso entre o “pretenso
poder da ciência” e os enigmas do mundo. O eu poético, em Augusto dos Anjos, como que desconfia da eficácia e da eficiência das
explicações racionais com as quais o discurso científico pretende
devassar a realidade, e, em certo sentido, parece apostar na intuição e na sensibilidade para penetrar no mistério das coisas e na
infinitude cósmica. Desenvolvendo este raciocínio, o ensaísta detecta a descontinuidade entre a “adesão a um postulado filosófico”
e a descrença em seu valor elucidativo, principalmente diante da
morte, um dos temas mais recorrentes na obra poética de Augusto.
E, mais adiante, numa chamada para a sua modernidade, marcada
não só pelo pessimismo, porém, sobremaneira, pelo ceticismo,
afirma de modo pertinente: “(...) Augusto dos Anjos é o poeta do
fracasso do enfrentamento do mistério, da impotência perante o
incognoscível, (...) e a morte comparece, antes de tudo, para esse
grande radical, como o último de todos os fracassos, como a mais
absoluta e definitiva forma de impotência”. A prova está em tantos
poemas, mas Alexei destaca, em especial, “O mar, a escada e o
homem”, bem como “Solilóquio de um visionário”.
Em termos de conteúdo, portanto, o que preside a leitura de
Alexei Bueno é o reconhecimento da “contradição trágica” que
envolve o materialista, a princípio “acreditando racionalmente em
um evolucionismo panteísta onde só a generalidade das formas
universais progredia e sobrevivia”, e a consciência do eu poético a
sinalizar para sua efemeridade, para sua pequenez, na média em
que se descobre como “ínfimo acidente genético na grande cadeia
das espécies, condenado sem apelação à desaparição total enquanto especificidade individual”. Enfim, o embate agônico que atravessa o corpo de diversos poemas, vivido entre cientificismo e
subjetividade, sensibilidade e raciocínio. Dito de outra forma, e
transcrevendo as palavras do próprio Alexei Bueno, em parágrafo
conclusivo de sua abordagem temática e ideológica: “A união entre essa liberdade de tratar de maneira mais crua o espetáculo da
miséria humana com a adesão a um sistema científico totalizador e
ateu, sem haver no realizador de tal conjunção qualquer possibili-
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Leituras Diversas: Crônicas, Ensaios e Contos
| 143
dade de apaziguamento subjetivo dentro dele, eis, em nossa opinião, a origem primordial da poética do Eu”.
Do ponto de vista formal e estilístico, evoca-se, em primeiro
plano, a “expressividade sonora” do verso, “sonoridade rígida e
tensa”, em que se privilegiam, ora o recorte aliterativo e a musicalidade, embora dissonante, dos simbolistas, ora a ortodoxia da
métrica parnasiana, rica nas sinéreses e infensa aos hiatos. Defendendo o virtuosismo de Augusto dos Anjos na feitura do verso,
Alexei Bueno não deixa de referir certa limitação no terreno das
variedades métricas e rítmicas, mormente em função da presença
maciça do decassílabo, onde, conforme afirma em registro perfeito,
“as metáforas mais espantosas e exatas se amontoam quase claustrofobicamente”, de que resulta “uma impressão de força agrilhoada, de um infinito preso dentro de uma camisa-de-força, na iminência esperada de explodir”. A tal sonoridade deve-se juntar a
“adequação vocabular” caracterizada pela exatidão dos termos,
pela singularidade do léxico e, sobremaneira, pelo aproveitamento
de um glossário de uso comum, concreto, coloquial, cotidiano,
banal, reles, antipoético, de resto já acentuado por Ferreira Gullar,
mas retomado e enfatizado por Alexei como se fora propósito do
poeta criar uma “língua original, com uma percepção virgem do
sentido das palavras, do mesmo modo que com um olhar virgem
do espetáculo do mundo”. Para comprovar suas ideias, o historiador da poesia brasileira comenta alguns aspectos acústicos e semânticos do soneto ao filho morto e rápidas passagens de “O lamento das coisas”, numa demonstração, quase didática, de que a
história literária não pode prescindir, em alguns momentos, da
análise do texto, sob pena de cair na generalização e no vazio cognitivos.
Deixa Alexei Bueno, para o final, o tópico das influências, ou
melhor, das confluências e das” afinidades eletivas” que permeiam
o discurso lírico do poeta paraibano. Antero de Quental, João de
Deus, Cesário Verde, sobremodo Cesário Verde, entre os portugueses, e Cruz e Souza, no Brasil, perfazem, no cotejo das semelhanças e das diferenças, o mapa dialógico no qual se situa, com
alguma razoabilidade estética, a dicção poética de Augusto dos
Anjos. Sem sucumbir ao comodismo das filiações lineares, Alexei
Bueno, chamando a atenção do leitor para a personalidade literária
de Augusto dos Anjos, no contexto sincrônico da palavra poética,
contextualiza-o, à maneira eliotiana, entre seus pares, cujas vozes
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144 | M a g n o N i c o l a u ( O r g . )
ecoam e refletem na tessitura incomum de sua linguagem, ganhando, no entanto, uma luminosidade sombria que é só dele e
que a faz única na história da literatura brasileira.
SUMÁRIO
Leituras Diversas: Crônicas, Ensaios e Contos
| 145
A IMPORTÂNCIA DA AULA DE
CAMPO NOS PROCESSOS DE
ENSINO E APRENDIZAGEM
José Januário Corrêa FIlho
A importância da Aula de Campo nos processos de ensino
e aprendizagem
O ensino no Brasil e no mundo vem passando por um processo de mudanças significativas devido às constantes transformações ocorridas no planeta. Nesse sentido, se vêm buscando novas
maneiras de se adaptar a essa nova realidade. Uma das inquietações tem sido conscientizar os discentes sobre a importância da
compreensão do mundo em que estão inseridos, buscando-se trabalhar, como objetivo principal, o de inserir os alunos nesse processo de compreensão do espaço por meio de conceitos claros e
concisos, que os levem a uma reflexão crítica de suas ações sobre o
meio ambiente.
Nesse sentido, a aula de campo é apontada por muitos autores e pelo próprio Ministério da Educação e Cultura (MEC) como
sendo um eficaz instrumento metodológico de compreensão do
espaço. No documento intitulado Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN), guia de orientação para os professores, notadamente
no ensino da Geografia, no qual está descrito que “é relevante
lembrar que grande parte da compreensão da Geografia passa pelo
olhar”. O documento recomenda que
Saídas com os alunos em excursões ou passeios didáticos são
fundamentais para ensiná-los a observar a paisagem. A observação permite explicações sem necessidade de longos discursos.
Além disso, estar diante do objeto de estudo é muito mais ca-
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146 | M a g n o N i c o l a u ( O r g . )
tivante e prazeroso no processo de aprendizagem. (BRASIL,
1998: p.34).
A partir da publicação dos PCN pelo Ministério da Educação e Cultura (Brasil, 1998a, p. 34), no final da última década do
século XX, houve um aumento significativo dessa prática de ensino no Brasil, principalmente nos ensinos fundamental e médio, na
medida em que as diretrizes dos PCN foram sendo vivenciadas,
emergiram novas propostas que reconheciam que o aluno aprendia mais pela vivência e participação em saídas a campo
Todavia, ressalta-se que ao observar uma paisagem, encontramos objetos de estudo das diversas áreas do conhecimento, o
que proporciona um excelente ambiente para o desenvolvimento
de um trabalho interdisciplinar.
Nesse contexto, Antunes descreve com muita clareza que
Muitos professores acreditam que uma aula de campo ou mesmo uma explanação feita além dos limites das paredes da sala
de aula, seja viável apenas para Ciência ou Geografia. Essas
disciplinas, é evidente, apresentam temas bem mais plausíveis
de serem examinados através de uma excursão, mas se outros
professores de outras disciplinas planejarem eventuais saídas
com os alunos e as promoverem como produto de um projeto,
com objetivos claramente definidos, com a clara eleição de o
que procurar e como se registrar o que se descobriu, ficarão
surpresos de como é possível perceber conteúdos de suas áreas
de trabalho nas ruas, na natureza ou nas múltiplas relações interpessoais proporcionadas por essas aulas de campo ou excursões. O importante nessas oportunidades é que o aluno aprenda
a ver e descubra o contexto dos fatos percebidos em sala de aula, refletido no cotidiano das coisas e da natureza. (ANTUNES,
2002, p. 157).
Para Antunes (2002, p. 159), muitas vezes o educador, pela
essência do trabalho, assume, inconscientemente, uma maneira
“diferente de olhar”. O olhar dos professores de Geografia para
uma paisagem qualquer, mesmo fora de seu trabalho, é, geralmente, diferenciado do exercido por outros professores.
No entanto, Antunes (2002, p. 159) afirma que alguns “professores não se empenham em ajudar seus alunos a ver, relatando
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Leituras Diversas: Crônicas, Ensaios e Contos
| 147
a maneira como percebem o ambiente”. O autor ressalta que estimular os alunos a perceber o mundo que os rodeia representa importante ajuda para a inteligência naturalista, decorrendo daí, “que
a primeira aula do ano de qualquer disciplina deveria ser um convite, com o objetivo de mostrar ao aluno como uma mesma cena é
observada por olhos educados e por outros que jamais se educaram” (p.159).
Percebe-se, assim, que a observação do mundo, associando a
teoria com a prática, pode conduzir os alunos a uma reflexão crítica dos conteúdos apresentados em sala de aula e, dessa maneira,
facilitando-lhe agir corretamente no mundo onde estão inseridos, o
que seria fundamental para o processo de ensino-aprendizagem
nas diversas áreas do conhecimento, em prol da construção do
exercício da cidadania.
Por outro lado, para que uma aula de campo transcorra bem
e que se desenvolva com sucesso, principalmente para o processo
de ensino-aprendizagem, é de fundamental importância que o
professor elabore um bom planejamento. A falta de organização e
de domínio de objetivos nas atividades propostas poderá comprometer o trabalho docente e, até mesmo, a segurança de alunos e
professores durante sua realização.
Em uma investigação para nossa dissertação de mestrado,
realizada com 50 (cinquenta) professores que lecionavam Geografia em escolas públicas do estado de Pernambuco, constatamos,
através das respostas dadas pelos mesmos, que eles nunca participaram de qualquer formação voltada para o desenvolvimento e
planejamento de aulas de campo, quer durante a formação universitária, quer na formação continuada das escolas públicas nas
quais exercem a função de professor. A primeira afirmação dos
professores foi constatada quando consultamos a grade curricular
de algumas unidades de ensino superior de formação de professores, que não contemplam a disciplina de metodologia da Prática de
Campo.
Talvez, uma das causas da insegurança dos professores recém-formados, ao realizar aula de campo, seja a falta de orientação
e formação adequada para trabalhar com esse método de ensino.
Esse problema certamente seria amenizado se a proposta de
formação continuada, contida na Lei de Diretrizes e Bases da Educação, fosse aplicada de maneira sistemática nas unidades de ensi-
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148 | M a g n o N i c o l a u ( O r g . )
no, tornando-se mais fácil a realização de forma correta, contemplando aspectos fundamentais do planejamento, de modo que
essas atividades pudessem transcorrer com eficiência e segurança,
favorecendo-lhes o sucesso. Dentre os aspectos a serem ressaltados
na formação continuada deverão constar a escolha do conteúdo
adequado ao nível de ensino, a escolha do local apropriado, os
objetivos bem definidos, o quantitativo de alunos, o transporte
adequado etc. A escolha e a forma deverão ser opção do professor
(es), obedecendo às leis, de acordo com o caráter pedagógico.
Ratificamos que é imprescindível que o organizador da aula
de campo procure buscar o envolvimento de professores de outras
disciplinas, a fim de trabalhar os temas de modo interdisciplinar.
Nesse sentido, a Universidade Estadual de Ponta Grossa traz
como um dos objetivos na cadeira de Prática de Campo em Geografia III, o seguinte: “A prática de campo como meio de articulação entre as várias ciências em projeto interdisciplinar. Excursões,
aulas e práticas de campo integradas entre as disciplinas.” (UEPG,
2009, p. 3).
A inserção da disciplina de Prática de Aulas de Campo na
grade curricular da referida universidade é condição sine qua non,
para uma melhor formação dos docentes, tendo em vista que algumas universidades não a contemplam em suas grades curriculares.
A ausência dessa disciplina na formação do professor em algumas universidades é preocupante, dada à importância do preparo do mesmo para elaboração do planejamento na realização do
trabalho de campo, do qual dependerá o sucesso ou insucesso dessas atividades. É preocupante, também, porque o planejamento
exige preparo técnico do professor, desde a definição dos objetivos
e a escolha do local até o estabelecimento das normas de segurança
a serem adotadas por todos os participantes durante a atividade de
campo.
E, justamente por considerarmos a possibilidade de melhorias na condução das aulas de campo, é que sugerimos o treinamento dos docentes para que possam trabalhar com esse método de
ensino de maneira sistemática, uma vez que essa metodologia é de
suma importância no processo de ensino-aprendizagem.
Outro argumento para a capacitação dos professores é o de
que, geralmente, as grades curriculares dos cursos de formação de
SUMÁRIO
Leituras Diversas: Crônicas, Ensaios e Contos
| 149
professores não contemplam um quadro de disciplinas de administração da prática de campo na formação básica geral, visando à
preparação de professores para o trabalho sistemático com esse
método de ensino.
Desse modo, ratificamos o exposto nos Parâmetros Curriculares Nacionais de Geografia do Ministério da Educação e Cultura
ao afirmar que
É imprescindível que o professor tenha uma boa formação para
que, ao trabalhar seus temas e conteúdos, garanta ao aluno perceber a identidade da Geografia como área. Portanto, a formação dos professores deve ser condição necessária para que possa estar desenvolvendo adequadamente o seu trabalho. Nesse
sentido, tanto a formação básica como a formação continuada
são fundamentais para que os objetivos aqui propostos sejam
atingidos. (BRASIL, 1998, p. 40)
Consideramos, ainda, que as concepções de formação continuada deveriam valorizar a aquisição de conhecimentos de competências pedagógicas, aquelas referentes ao saber operacionalizar,
saber fazer, sendo, portanto, imprescindível a capacitação dos professores para a práxis das aulas de campo, principalmente, dos
professores iniciantes na profissão, ainda cheios de dúvidas sobre
o que terão de enfrentar. .
As novas propostas foram surgindo tanto no ensino universitário, influenciando a formação de professores com um novo
olhar sobre o processo ensino-aprendizagem, quanto nos ensinos
fundamental e médio, por iniciativa de docentes que buscam
aprimorar sua prática, buscando soluções no sentido de melhorar
o processo ensino-aprendizagem nas diversas áreas do conhecimento. Cumpre discorrer sobre os aspectos mais relevantes das
modificações que se sucederam no emprego das aulas de campo.
Os cursos de formação de professores no Brasil, nos últimos
anos, vêm buscando mudanças no sentido de desenvolver novos
métodos de ensino, no intuito da melhoria dos processos de ensino-aprendizagem.
Um dos exemplos que merece destaque é o da Universidade
Estadual de Ponta Grossa (UEPG), localizada no estado do Paraná,
que contempla, na sua grade curricular, quatro disciplinas de prá-
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150 | M a g n o N i c o l a u ( O r g . )
tica de campo na formação básica geral na área de conhecimento
de Educação e Geografia, cujos conteúdos destacamos:
104123 - PRÁTICA DE CAMPO EM GEOGRAFIA I - 68 h
“Concepções teóricas e metodológicas da prática de campo na
Ciência Geográfica. O campo como instrumento de ensino e
pesquisa em Geografia. O enfoque multidisciplinar sobre o
campo - os múltiplos olhares sobre os diferentes aspectos: físico,
político, econômico, social, cultural e educacional. O diário de
campo como registro a ser utilizado no relatório final. Excursões, aulas e práticas de campo integradas entre as disciplinas
da 1ª série do curso.” (Universidade Estadual de Ponta Grossa
[UEPG], 2009, p. 2)
104127 - PRÁTICA DE CAMPO EM GEOGRAFIA II - 68 h
“Seleção e estruturação de roteiros para atividade de campo.
Elaboração de projeto - definindo os objetivos da prática de
campo. A exploração do local e a coleta de dados e/ou materiais. O registro e a tabulação das informações obtidas no campo.
Tipos de relatório. Excursões, aulas e práticas de campo integradas entre as disciplinas da 2ª série do curso.” (UEPG, 2009,
p. 3) 104128 - PRÁTICA DE CAMPO EM GEOGRAFIA III - 68 h
“O trabalho de campo como suporte para a construção do conhecimento no ensino de Geografia. A prática de campo como
meio de articulação entre as várias ciências em projeto interdisciplinar. Excursões, aulas e práticas de campo integradas entre
as disciplinas da 3ª série do curso.” (UEPG, 2009, p. 3)
104129 - PRÁTICA DE CAMPO EM GEOGRAFIA IV - 34 h
“A postura científica e ética sobre o campo. Uma análise sobre a
dimensão dos saberes geográficos obtidos através da experiência de campo. A aula-passeio, o estudo do meio, e a prática de
campo - semelhantes dinâmicas com diferentes enfoques. Excursões, aulas e práticas de campo integradas entre as disciplinas da 4ª série do curso.” (UEPG, 2009, p. 3)
Embora, as aulas de campo se justifiquem pela necessidade
de aproximação dos conteúdos trabalhados em sala de aula com a
realidade, por meio de atividades de pesquisa e ensino desenvol-
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Leituras Diversas: Crônicas, Ensaios e Contos
| 151
vidas in loco e sejam imprescindíveis para a formação dos graduandos, ainda se verifica heterogeneidade entre Universidades
quanto ao grau de priorização de formação específica do professor
no manejo desse método de ensino.
Desse modo, a atividade de campo, na forma de aula de
campo, aula passeio ou excursão pedagógica, se constitui em instrumento importante no processo ensino-aprendizagem de Geografia, por permitir aos alunos aliarem a teoria à prática, por meio
da análise de paisagens urbanas ou rurais. Possibilita-lhes uma
aprendizagem prazerosa, construtiva e crítica pela possibilidade
de associar os conteúdos trabalhados em sala de aula à constatação
do real.
Para que esses benefícios possam ser alcançados em sua plenitude, as atividades de campo exigem do professor a elaboração
de planejamento detalhado, no qual estejam contemplados objetivos claros, apresentação dos assuntos a serem observados pelos
alunos, fixação de normas de segurança e análise dos resultados, a
serem discutidos em sala de aula, facilitando a socialização dos
alunos.
Assim sendo, é imprescindível que o planejamento do trabalho de campo esteja composto por três fases básicas, mas importantes: a preparação, a realização e a análise dos resultados (avaliação). No entanto, seguir as três fases não é garantia ou sinônimo de
sucesso na realização dessas atividades, já que o êxito residirá no
zelo com que essas fases forem planejadas.
Nesse sentido, sugerimos como leitura, para nortear a organização das aulas de campo, o livro de autoria de Corrêa Filho,
publicado pela editora ideia, no ano de 2014, intitulado, Aula de
Campo: como planejar, conduzir e avaliar?, citado nas referências deste artigo. A obra traz sugestões metodológicas para a elaboração
das aulas de campo de modo sistemático, inclusive, com orientações dos cuidados preventivos com a segurança de alunos e professores durante os trabalhos realizados no âmbito externo das
unidades de ensino, inclusive, com propostas factíveis, adequadas
à realidade das escolas, visando o aprimoramento desse método de
ensino, sobretudo nas escolas de ensino básico que o utilizam.
Assim sendo, esperamos, de acordo com o já mencionado e
considerando que todas as etapas são um todo orgânico, que as
sugestões apresentadas possam nortear aqueles que trabalham
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152 | M a g n o N i c o l a u ( O r g . )
com esse método de ensino a uma reflexão sobre as práticas atualmente adotadas nas aulas de campo
Referências
Antunes, C. (1998). As inteligências múltiplas e seus estímulos. Campinas: São
Paulo: Papirus.
Antunes, C. (2002). Novas maneiras de ensinar novas maneiras de aprender. Porto
Alegre: Artmed.
Brasil. (1996). Presidência da República. Lei n. 9394, de 20 de dezembro de 1996.
Estabelece as diretrizes e bases da educação nacional.
Brasil. (1998a). Ministério da Educação e Cultura. Secretaria do Ensino Fundamental. Parâmetros Curriculares Nacionais: geografia. Brasília: MEC/SEF.
Corrêa Filho, J.J. (2012). Aula de Campo: sua importância nos processos ensino-aprendizagem na visão dos professores de Geografia. Dissertação apresentada à Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias – Instituto de
Educação para obtenção do grau de mestre, orientado por Márcia Karina da
Silva, Lisboa.
Corrêa Filho, J.J. (2014). Aula de Campo: como planejar, conduzir e avaliar?
João Pessoa: Ideia.
Universidade Estadual de Ponta Grossa [UEPG]. (2009). Prática de campo em
geografia. Acedido em 15 de novembro de 2010 em http:// www.uepg.br.
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Leituras Diversas: Crônicas, Ensaios e Contos
| 153
UMA HISTÓRIA BEM PINTADA
José Nunes
A arte está inserida na história da humanidade. Desde os
tempos da pré-história, a pintura é umas das artes mais importantes. A pintura é patrimônio de grande valor para a humanidade. A
pintura transmite emoção e conhecimentos. O coração iluminado
pela arte vê a beleza ao seu redor. A arte é a linguagem fundamental de todas as religiões. Deve ser a arte a palavra (imagem)
universal dos homens. A arte é o esplendor do homem para se
tornar conhecido.
A arte é um elemento que serve ao belo, é um meio de comunicação, é uma janela para o mistério.
Uma obra de arte é fruto da aptidão fecunda do ser humano,
que se interroga ante à realidade visível, que busca descobrir o seu
sentido intenso e comunicá-lo por meio da linguagem das figuras,
das cores, dos sons.
Realmente, a arte expressa e torna tangível o desejo do homem em avançar na busca de sua identidade. A arte é uma das
portas dos olhos do coração e da mente. A criação é o êxtase do
autor. Na visão dos gregos, o ato de criar é divino. Não é o autor
quem cria a obra de arte, mas tudo acontece pela ação da Suprema
Divindade para marcar períodos da humanidade.
Flávio Tavares é minucioso nos detalhes quando elabora
seus quadros. Suas telas contêm o furor de inspiração, com visões
fosforescentes.
Sua criação tem inspiração, seu olhar capta a realidade que
poucos percebem.
Ele produz quadros, principalmente os de grandes dimensões, com esforço imaginativo para captar a realidade, pois são
bem detalhados. Trabalhador fanático pelo que faz, cuidadosamente passa o pincel na tela em branco e imagens borbulham na
mente. Trabalha sem retoques. Cadencia as linhas imaginárias com
perfeição.
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154 | M a g n o N i c o l a u ( O r g . )
As telas dele narram algo para nós. Os homens e os animais
dos seus quadros falam conosco.
Sua arte expressa e torna visível o desejo do homem em
avançar na busca da identidade perdida, vai atrás do que existe no
infinito. Ele vive o êxtase da criação quando manuseia o pincel.
Na sua criação há inspiração, seu olhar capta a realidade que
poucos percebem.
Ele produz quadros, principalmente os de grandes dimensões, com força imaginativa para captar a realidade, a partir de
suas observações, até formar o imenso mosaico da arte. São observações do mundo onde habita ou de outras épocas.
Os murais sempre estiveram presentes na obra de Flávio,
desde aquele instalado na Clínica São Camilo, quando foi inaugurada nos anos setenta do século passado.
Depois, a produção que se encontra no hall de entrada do
Tribunal Regional do Trabalho, na cidade de João Pessoa. São quatro painéis que abordam a vida do trabalhador na agricultura, no
comércio, na construção civil e na indústria. Na Assembleia Legislativa da Paraíba tem um dos seus mais significativos quadros.
Para a Associação dos Plantadores de Cana do Estado da Paraíba
produziu o quadro denominado O patriarcado rural.
As alegorias do imaginário popular estão presentes na sua
obra, com destaque para a A Pedra do Reino, baseada na literatura
de Ariano Suassuna, que teve a participação de Sérgio Lucena, e
Augusto dos Anjos, onde aborda o estranho mundo poético do poeta paraibano. Outra alegoria que se destaca é Avohai, sobre a música de Zé Ramalho, onde tenta reproduzir a poesia imaginada pelo
poeta.
A sua obra No Reinado da Lua, sem dúvida uma das mais expressivas, é uma fantasia que nos conduz ao paraíso destinado a
todos, o paraíso tropical.
Seu trabalho tem o olhar de poeta. Poeta que se embriaga
com as imagens visíveis e as coloca na tela, que estão embebidas
de sutil olhar ao seu redor, a vida do nosso povo, de sua própria
história. A vida germina na tela com a força que vem da cultura
que o alimenta desde a tenra idade.
Depois de pintar painéis que se destacam pelo valor representativo da riqueza econômica e social da Paraíba, o artista se
debruçou num trabalho gigantesco, que foi transpor para a tela as
SUMÁRIO
Leituras Diversas: Crônicas, Ensaios e Contos
| 155
paisagens captadas pelo olhar de José Américo de Almeida, no
romance A Bagaceira. O painel é um quadro antológico sobre a
Paraíba.
Feito para integrar o Centro de Artes da Universidade Federal da Paraíba (UFPB), retrata dois mundos descritos por José
Américo: o Sertão esturricado e o Brejo verdejante. São justamente
estes dos mundos que o artista retrata no painel.
Durante dois anos ele aproveitou para aprofundar as pesquisas, estudar a obra do romancista paraibano, recolheu material
de outras fontes, checagem de dados e informações na tentativa de
chegar o mais perto possível da realidade descrita pelo romancista.
Medindo 8x2,6 metros, o painel é divido em duas partes: a
que retrata a vida do Sertão, e a outra, o Brejo, com seu apogeu da
cana de açúcar e a força dos coronéis. Homenageia o filme Aruanda, colocando uma cena inspirada numa fotografia de Ruck Vieira,
mostra o Engenho Olho D’água, Areia, onde nasceu José Américo,
utilizando uma imagem de outro quadro onde retrata a família do
autor de A Bagaceira, traz a figura de uma mulher desiludida residindo na cidade, além de uma árvore constante de um quadro por
ele pintado em 2006, que simboliza a transição da zona árida para
a verdejante.
Flávio Tavares usa o pincel e a tinta para contar a história
econômica, cultural e social da Paraíba, dando expressão de confiabilidade nas informações postas na tela. Cada quadro é um livro
aberto. As cenas que retratam nossa História são colocadas nos
painéis com força imaginativa.
Num olhar aos milenares rabiscos em muralhas de pedras
espalhados por diferentes lugares, alguns também existentes em
nosso país, nos ajuda a conhecer o passado da história da humanidade e dão a dimensão da importância que aqueles desconhecidos
seres deram ao escrever mensagens usando a ferramenta disponível naquele momento.
Os primeiros registros do pensamento humano estão nas
marcas deixadas nos paredões de pedras, há milhões de anos envoltos em mistérios.
Com a evolução dos tempos, o homem aperfeiçoou sua forma de expressão, mas continua a usar mãos para deixar indicadores da sua história e do seu saber. Modificando-se a cada época e
renovando-se nos intervalos da vida em cada geração.
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156 | M a g n o N i c o l a u ( O r g . )
O tempo, que é infinito, modelou os artistas e renovou a linguagem. Criou a escrita e o pincel passou a ser instrumento para
produzir obras de artes que retratam a vida comunitária. Por isso,
o artista plástico é o escritor que usa forma diferente de descrever
a paisagem e o ambiente em que vive; igualmente o escultor.
Quem produz fotografia, quem pinta quadro, quem esculpe estátua, desenha ou produz grafite, também narra uma história.
Outros registram fatos, escrevem belas narrativas, grandiosos romances utilizando a forma com que mais se identificam.
Entre nós, temos artistas que, usando o pincel, produzem
seu espólio, falam ao coração numa linguagem silenciosa. Os traços se transformam em palavras que reproduzem o que se observa
ou imagina. Um deles é Flávio Tavares, autor de primorosas obras
de painéis que retratam a História da Paraíba.
Quadros como Tropeiros da Borborema, Reinado do Sol, O Mundo de Ariano Suassuna e outros, relatos que fazem de Flávio um
artista que escreve a História política, econômica e social da Paraíba de uma forma incomparável. O painel Reinado do Sol, por exemplo, vale por muitos livros de História. Se utilizado nas escolas
poderia se transformar numa proveitosa aula.
Há quase cinco décadas Flávio escreve com pincel e tinta
aquilo para que seriam necessários vários livros. Sua pintura é
poesia. Fala do Nordeste. É Paraíba: genuína e verdadeira.
O seu pincel transforma as imagens numa poesia simétrica,
harmoniosa, equilibrada que proporciona enorme prazer aos
olhos.
Ele passeia pelo universo das artes, expressando sua arte
com maestria em diversas técnicas (pintura, desenho, aquarela,
escultura em pedra e em madeira, gravura em metal, xilo e litogravura) e, não bastasse tudo isso, já pintou cenários para peças
teatrais, produziu mais de dez painéis e murais na Paraíba e em
outros estados do Nordeste.
Sendo neto e filho de artistas - seu avô paterno Pedro Damião foi considerável fotógrafo e seu pai Arnaldo, além de médico
reverenciado e admirado, dedicava-se ao desenho - a bico-de-pena
- e à poesia. Flávio Tavares também tem ilustrado diversos livros.
Um historiador que usa o pincel e a tela para contar, maravilhosamente, nossa História.
SUMÁRIO
Leituras Diversas: Crônicas, Ensaios e Contos
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UMA TRAJETÓRIA DE 150 ANOS:
O CASO DA FACULDADE DE DIREITO
DE CAMPINA GRANDE1
José Octavio de Arruda Mello
Originária da congênere pessoense da UFPB – de onde proveio sua estrutura organizacional, grade curricular e boa parte dos
professores, alguns dos quais ainda hoje remanescentes de João
Pessoa – a Faculdade de Direito da UEPB dela, porém, diferiu,
substancialmente.
1.1 Duas Faculdades de Direito e uma comparação – Em
primeiro lugar porque, enquanto a Faculdade de Direito da capital,
alentada pelo Governo José Américo, de quando datou seu funcionamento, em 1951, depois da nominal criação pela OAB, em 1949,
teve origem pública, a de Campina Grande derivou de inspiração
rigorosamente privada.
Com efeito, calçando antigo sonho do pastor e advogado
Raul de Sousa Costa, a Faculdade de Direito campinense concretizou-se a 13 de março de 1967, por iniciativa do Reitor da então
Universidade Regional do Nordeste (URN), Edvaldo do Ó. De
espírito empresarial e schumpeteriano, Edvaldo trouxe da empresa
privada motivação que o converteu no principal responsável pelos
serviços da sociedade campinense, na segunda metade do século
passado. No caso, ele executava o que Lopes de Andrade planejava, tudo em prol da Rainha da Borborema.
Um outro ponto distinguiria as duas instituições. Enquanto a
de João Pessoa alavancou o ensino universitário, visto como, até
1
Estudo preliminarmente elaborado no segundo semestre de 2008 e ajustado
ao atual sesquicentenário de Campina grande.
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158 | M a g n o N i c o l a u ( O r g . )
então, na capital, somente funcionava a de Ciências Econômicas, a
de Campina Grande a consolidou, pela condição de última entidade do complexo universitário campinense.
Com isso, sobreveio significativa diferença. Ao tempo em
que a de João Pessoa, algo elitista, porque, inclusive, forrada do
antigo classicismo latinista de vestibular, contemplava as classes
média-média e média-alta, não faltando a inflexão do velho patriarcalismo, a de Campina revelou outro viés.
Nela, foram, basicamente, os extratos médio descendentes e
médio baixo que encontraram abrigo, sendo ambos procedentes
não apenas da área urbana e satélite de Campina Grande, mas dos
agreste e brejo da Paraíba, litoral, cariri e sertão desta, e Estados
vizinhos do Rio Grande do Norte, Ceará e Pernambuco. O atendimento a esta demanda revelou-se tão efetivo que nem a criação do
curso de Direito de Guarabira estancou o fluxo de alunos procedentes dos brejo e agreste paraibano.
1.2 O caso das elites político-culturais – Em sintonia com essa realidade, a FD da UEPB não constituí entidade estamental,
destinada a prover os quadros superiores da administração pública, magistratura e Ministério Público, mas instituição de tendência
popular fomentadora de quadros intermediários daqueles segmentos e ainda educação, saúde, segurança e tecnologia, campinenses.
Na área propriamente judiciária, é fora de dúvidas que a FD
de Campina Grande viabilizou organismos e serviços urbanos
como CAOP, CELBE, hoje substituída pela Energisa, Associação
dos Advogados de Campina Grande e seção local da OAB, Justiça
Federal, Procuradorias Federais, Estaduais e Municipais, Forum
Afonso Campos, Curadorias, Delegacias de Polícia e Penitenciária,
afóra os escritórios de advocacia e segmentos da Prefeitura Municipal Serrana. Em todas essas entidades é maciça a participação da
FD da UEPB, quer seja através bacharéis por elas formados ou de
estagiários e funcionários, em estágio probatório.
Outra distinção entre as unidades do ensino jurídico de João
Pessoa e Campina reside na formação por aquela das principais
lideranças políticas do Estado, outrora diplomadas no Recife. Embora personalidades como o ex-governador da Paraíba Cassio Cunha Lima, hajam saído de suas fileiras, o comum na FD campinense consistiu na consolidações de vocação públicas que, graças aos
SUMÁRIO
Leituras Diversas: Crônicas, Ensaios e Contos
| 159
conhecimentos adquiridos, puderam ir mais longe. Isso sem se
desvincular dos municípios de origem.
Em resumo, a FD campinense, não forjou elite política ou
cultural. De feição mais funcional, coube-lhe distender-se democraticamente, sobre o conjunto da sociedade.
1.3 Espaço da mulher, estudantes e primazia da direção –
Verdadeiro espaço da mulher graças à predominância desta em
suas matrículas, o atual Centro de Ciências Jurídicas da UEPB temse aberto a usuários de primeira graduação.
Tal se verifica em razão da acolhida das reivindicações do
DCE, ativo na realização de Seminários e Congressos, máxime nas
áreas de Direito Civil e Constitucional. Os discentes do curso de
Direito da UEPB têm-se engajado em programas de extensão como
PBIC e PROINCI, afóra Projetos de Cidadania e Direitos Humanos,
além da Ciranda de Serviços do Governo Estadual.
Com seu professorado recrutado mediante concursos e provas de títulos, a FD da UEPB de Campina Grande sempre adotou o
sistema seriado de ensino. Tal evitou as desfigurações do sistema
de crédito da reforma cêntrica da Lei de ensino 5.692, a certa altura
adotada pela UEPB.
Nesse sentido, a conversão da unidade de ensino campinense em Centro de Ciências Jurídicas pouco afetou a estrutura da
instituição. Apesar da existência de dois Departamentos – um de
Direito Público e outro de Direito Privado – o controle administrativo permanece(u) nas mãos da direção e vice-diretoria.
São elas que direcionam os Cursos de Especialização e implementam convênios com a Faculdade de Direito da Universidade do Ceará, para execução do mestrado em Direito Constitucional. Presentemente, o alto comando do CCJ da UEPB articula-se
com a UERJ para efetivação de (?) Doutorado Internacional.
1.4 Ligeiro histórico – Quando da criação, em 1967, a Faculdade de Direito de Campina Grande abrigava cem alunos dos
quais metade aprovada no vestibular e a outra metade de graduados de outros cursos.
O curso funcionava, inicialmente, nas dependências da Igreja Congregacional que mantinha o colégio dirigido pelo prof. Raul
Costa, na rua Floriano Peixoto. As aulas eram ministradas nos turnos de manhã e noite, sendo o curso pago e não reconhecido. O
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160 | M a g n o N i c o l a u ( O r g . )
reconhecimento somente sobreveio a 28 de agosto de 1972, após
formada a primeira turma.
A Faculdade de Direito de Campina Grande dispôs de endereços como o Seminário Diocesano e o segundo andar da Faculdade de Administração onde se graduou a primeira turma. Finalmente, ela se deslocou para o antigo Colégio Anita Cabral no qual
se encontra até hoje. Antes da conversão em edifício próprio, esse
prédio foi objeto de comodato entre a FD e o poder público.
A primeira turma de bacharéis da FD graduou-se a 18 de
dezembro de 1971, sendo constituída por 37 formandos dos primitivos 100. O Reitor da então Universidade Autônoma era o professor Antônio Lucena, sendo a FD dirigida pelo bacharel Wilson
Aquino, formado em João Pessoa.
Mediante a estadualização da Universidade Regional (URN),
então convertida em Universidade Estadual da Paraíba, pelo Governador Tarcísio Burity, em 1988, durante o Reitorado de Sebastião Vieira, o curso de Direito tornou-se gratuito. Tal condição residiu na base da expansão de matrículas que saltaram para o contingente de 913 alunos, distribuídos por onze períodos que funcionavam nos turnos da manhã e noite, existindo algumas turmas extra,
à tarde.
1.5 Ementa do curso – Aprovada pelo colegiado do curso sobre proposta formulada pela disciplina de História do Direito, a
ementa do curso de Direito do CCJ da UEPB é de seguinte teor:
“O curso de Direito da Universidade Estadual da Paraíba
(UEPB) tem por finalidade formar o novo bacharel que, dotado de
visão humanística, seja capaz de, mediante entendimento crítico
do processo social, compreender o fenômeno jurídico de formação
e aplicação da lei e da justiça, em seus aspectos teóricos e práticos.
Nesse sentido, o curso, debruçado sobre a comunidade, como parcela da realidade regional nordestina, apoia-se em visão
pluralista e democrática que orientará as atividades de ensino,
pesquisa e extensão, integradamente desenvolvidas. Tudo isso
visando à formação do cidadão consciente e capaz de amplificar,
reorientando-os, os valores da comunidade”.
Fácil é verificar que, apontando numa direção, o documento
apresenta como palavras chaves as expressões “novo bacharel”,
“visão humanística”, “entendimento crítico do processo social”,
“fenômeno jurídico da formação da aplicação da lei e da Justiça”,
SUMÁRIO
Leituras Diversas: Crônicas, Ensaios e Contos
| 161
“curso debruçado sobre a comunidade”, “parcela da realidade
regional nordestina”, “visão pluralística e desenvolvida”, “cidadão
consciente” e “valores da comunidade”.
Movendo-se por entre esses conceitos, é assim que se desenvolve o curso de Direito do CCJ da UEPB, como expressão cultural
de cidade que ora completa cento e cinquenta anos.
SUMÁRIO
162 | M a g n o N i c o l a u ( O r g . )
IMAGINÁRIO POÉTICO EM O PADRE,
A MOÇA, DE CARLOS
DRUMMOND DE ANDRADE
José Pires
Seria ilusório pensar que o imaginário é circunscrito à psicoterapia, à psicanálise, à pintura, à literatura e, por isso mesmo, à
fábula, ao romance, à poesia. Sua presença em todos os saberes
comprova a universalidade do imaginário. Platão tinha do imaginário uma visão matemática, e esta ciência dos números, modernamente, estuda fórmulas como a+bi, sendo a e b números reais, e
i uma unidade imaginária de tal sorte que 12 =-1(i=
), ou aquilo que em matemática é chamado de número imaginário, integrado de elementos do real e elementos do imaginário.
Mas numa coletânea de crônicas, ensaios e contos, que lugar
e significado pode ter a análise do imaginário poético?
Para responder a essa questão, gostaria de começar afirmando que a poética é, talvez, a mais significativa expressão do imaginário, pelo fato dela representar, em estado puro, o ato criador do
imaginário poético. Minha experiência de educador me levou, algumas vezes, a explorar esse ato criador junto a crianças, nas quais
o imaginário está presente em tudo aquilo que elas cogitam, dizem
e fazem. Na atividade lúdica, na construção narrativa, na poética
infantil. Desafiada a criatividade da criança através da imaginação,
uma determinada história-estímulo, lida para elas, dá origem a
tantas outras histórias diferentes quantas forem as crianças presentes na classe.
Descobri, também, que a poesia é a primeira linguagem da
criança. E nessa linguagem, o imaginário não tem fronteiras. O
jogo prazeroso da linguagem infantil e do corpo tem uma função
poética e, como função poética, são do domínio do imaginário. No
processo do desenvolvimento infantil, um número significativo de
elementos do psiquismo infantil se manifestam, constituindo um
terreno propício para certos tipos de fecundação poética.
SUMÁRIO
Leituras Diversas: Crônicas, Ensaios e Contos
| 163
E da infância à adolescência, da adolescência à idade adulta,
o universo de cada indivíduo é povoado por uma intensa presença
do imaginário, inspirando a maioria de suas criações, ações e interações com os outros e com o meio. Uma comprovação disso, por
exemplo, são as narrativas com que o prezado leitor se depara ao
longo desta obra.
Malebranche afirmou, um dia, que a imaginação é a louca da
casa. Mas isso foi no Século XVII. Através do tempo a imaginação
reabilitou-se, transformou-se em gêmea da razão e inspiradora das
descobertas e do progresso.
Mas já que me propus explorar nestas páginas o imaginário
poético de O padre, a moça, de Carlos Drummond de Andrade,
apraz-me tratar aqui, com especificidade, a poética do imaginário,
e como é possível transpor essa poética para os leitores, através de
uma análise poética.
Bachelard recomenda que quando nos referimos ao imaginário poético convém deixar de lado ciência e pesquisa, o passado
cultural e até as prospecções das descobertas futuras, para estarmos com a nossa razão, nossos sentimentos e nossa sensibilidade
presos à imagem, no momento exato em que a imagem poética
toma conta de nós, seja através da construção poética, seja através
da leitura das imagens poéticas de um determinado autor, pois,
para Bachelard, se existe uma filosofia da poesia, ela deve nascer
ou renascer no instante maravilhoso de um verso, na adesão integral a uma imagem, no êxtase da novidade de que é portadora a
imagem poética.
Quando abro Drummond e leio O Padre, a moça, nesse
agrupamento de imagens múltiplas e complexas, nesses versos em
movimento, as imagens se escoam na linha dos versos, arrastando
consigo a imaginação. E à medida que a essência poética de
Drummond se conecta com a minha sensibilidade, o ato poético
assume, em mim, uma vivência presente. É uma explosão de sentimentos vivenciados no momento exato em que a poesia penetra
em nossa alma:
O padre furtou a moça, fugiu,.
Pedras caem no padre, deslizam.
A moça grudou no padre, vira sombra,
Aragem matinal soprando no padre.
SUMÁRIO
164 | M a g n o N i c o l a u ( O r g . )
Ninguém prende aqueles dois,
Aquele
Um negro amor de rendas brancas...
A verdadeira medida do ser de uma imagem poética está na
repercussão dessa imagem em nosso interior. Eu lendo o poema, o
poeta não me transmite o seu passado: sua imagem poética, ao
tocar minha sensibilidade de leitor, se transforma em presente.
E esse presente é animado pelo ato poético, pela imagem repentina, pela chama do ser na imaginação, primeiro, na imaginação do poeta, em seguida, na minha imaginação de leitor:
Lá vai o padre...
Na capela ficou a ausência do padre...
Longe, o padre vai celebrando vai cantando
Todo amor é o amor e ninguém sabe
Onde Deus acaba e recomeça...
Só se poderia explicar, filosoficamente, o problema da imagem poética, através daquilo que Bachelard chama de fenomenologia da imaginação, que seria o estudo do fenômeno da imagem
poética, quando essa imagem emerge na consciência como um
produto direto da alma, ou do ser humano tomado em sua atualidade.
E o que pode significar isso para o leitor de poemas? O que
pode significar isso para o analista de poemas?
Qualquer análise tem que associar o ato da consciência criadora - a produção poética - a esse produto fugaz da consciência -,
ou que chega à nossa consciência, através da leitura: a imagem
poética. Toda fidelidade da análise está na fidelidade dessa associação. Pela união, através da imagem poética, de uma subjetividade
pura - que aponta para o ato criador - com uma realidade tão fugaz, como essa comunhão com o sentimento do poeta, o leitoranalista beneficia-se da partilha desse sentimento, que é dádiva e
reflexo das imagens criadoras.
Na arqueologia dinâmica das imagens poéticas de Drummond, o ato criador não se prende às coisas, mas à lição das coisas. É
esse o título do livro de que é extraído o poema objeto da presente
análise. Foi isso o que o poeta valorizou.
SUMÁRIO
Leituras Diversas: Crônicas, Ensaios e Contos
| 165
Para sentir e amar - e tentar fazer sentir e amar aos outros a
obra de Drummond, precisamos ir ao âmago em que tudo se origina: a alma. A alma poética, que conhece expressão no mundo das
imagens. E em seu poema - O padre, a moça, revelam-se forças que
ultrapassam o circuito do saber, ou que expressam um saber diferente, cujos polos são a alma e o espírito, e só ambos, conjugados,
tecem a essência da imagem poética em suas diferentes nuances:
Perdoai-nos, padre, porque vos perseguimos.
E o padre não perdoa: lá vai
Levando o Cristo e o crime no alforje
E deixa marcas de sola na poeira.
Chagas se fecham, tocando-as,
Filhos resultam de ventre estéril,
Mudos e árvores falam
Tudo é testemunho.
Só um anjo de asas secas, voando sobre Crateús
Senta-se à beira-estrada e chora
Porque Deus tomou o partido do padre...
A evolução das imagens poéticas, em Drummond, segue as
leis de um ciclone, de um furacão, de uma avalanche impossível de
controlar. É um devaneio que frui do autor para invadir o sentimento dos leitores, e lhes permitir participar do ato criador. As
ressonâncias emanadas do poema - mas cuja fonte é o poeta - nos
permitem comungar da obra de arte. Pela ressonância, nós lemos o
poema. Pela repercussão em nós da obra poética, nós o falamos,
nós o vivemos, nós o sentimos, numa partilha de sentimentos.
Infelizmente nenhuma análise pode igualar a riqueza da essência. Só a obra emite a luz, sem anteparos, do ato criador. Uma
análise é sempre seu reflexo, uma aproximação da realidade, mas
nunca a realidade pura. A riqueza absoluta é sempre o poema; a
análise é sempre um eco dessa riqueza. Mas eco e reflexo que têm
a intenção de fazer com que o ser do poeta se torne o nosso ser: a
exuberância e a fecundidade do poema nos invadem como fenômenos de ressonância e repercussão. Com sua exuberância, é como
se o poema renascesse, também, em nosso ser, num verdadeiro
despertar da criação poética em nossa alma.
SUMÁRIO
166 | M a g n o N i c o l a u ( O r g . )
Na voz de seu criador, a imagem poética põe em ação, na
concomitância do imaginar e do dizer, uma extraordinária atividade linguística: é preciso retirar do pobre instrumento que é a
palavra, toda a magia e beleza de sentimentos e emoções que traduzem a imagem poética, da mesma forma que do húmus da terra
a natureza gera esta maravilha que é uma rosa.
Ao relento, no sílex da noite,
Os corpos entrançados transfundidos
Sorvem o mesmo sono de raízes
E é como se de repente se soubessem
Uma unidade errante a convocar-se
E a diluir-se mudamente
Espaço sombra espaço infância espaço
E difusa nos dois a prima virgindade
Oclusa graça...
E a linguagem poética como que também se torna nossa linguagem, pois através dela é que nasce, em nós, o sentimento. Mas
aqui é que se estabelece a grande diferença entre o poeta e o analista: o poeta, através da linguagem poética veiculadora de sua imagem poética, vive o sentimento - até porque a língua é ato de palavra, como diz Searle, e o analista, embora partilhe desse sentimento, sua tarefa, como analista, é descrevê-lo ou interpretá-lo para os
outros. O analista, então, descreve sentimentos, penetra na narrativa, como o faria o psicanalista, para desembaraçar o emaranhado
de suas interpretações. Por uma espécie de fatalismo, o analista se
torna escravo do método. Se, por exemplo, analisarmos o poema
no modelo de uma semiologia da narrativa preconizada por Claude Brémond, que é um modelo estruturalista, acaba-se por intelectualizar a imagem poética. Intelectualizá-la é o mesmo que compreendê-la. A compreensão de uma imagem poética se realiza à
luz de um contexto. Interpretar a imagem é traduzi-la em outra
linguagem. Isso quer dizer que toda análise poética reclama o logos analítico, que é diferente do logos poético. Para o analista, então, se aplica o adágio: traduttore, traditore: todo tradutor é traidor.
Do verbo, da riqueza da imagem, da beleza do sentimento.
Mas, por outro lado, o analista é um leitor atento e privilegiado. O leitor se transforma em poeta ao nível da imagem lida. Di-
SUMÁRIO
Leituras Diversas: Crônicas, Ensaios e Contos
| 167
ferentemente do poeta, em quem reside a essência do ato criador.
Mas é um nível, o da imagem lida, de que o leitor-analista se pode
orgulhar. E essa pontinha de orgulho, que o diferencia do crítico,
que é um leitor severo, um leitor que só sabe julgar, nos leva a nos
comprazer no lúdico da leitura: lemos e relemos aquilo que nos
agrada, pois pela leitura poética revivemos nossas tentações de ser
poeta. E se a leitura agrada e nos causa admiração, a alegria de ler
passa a ser o reflexo da alegria de escrever. A expressão poética
que nos causa prazer se tornas, para nós, uma tonificação de vida,
uma razão de bem-viver, e isso é extremamente saudável para a
nossa saúde mental.
Mas em Drummond há sempre algo novo que nos surpreende. Melhor do que ninguém em Drummond se realiza a definição
que Fernando Pessoa dá do poeta: O poeta é o que sempre excede o
que pode fazer. Em Drummond a poesia surge como um fenômeno
de liberdade e de libertação. Sua imagem poética é tão livre, tão
espontânea, tão sublime e tão libertadora; e, concomitantemente, a
tudo isso, tão criadora de beleza e imortalidade, que nele se concretiza plenamente outra afirmação de Pessoa: Nenhum poeta tem o
direito de fazer versos porque sinta a necessidade de os fazer. Há só a fazer
aqueles cuja inspiração é perfumada de imortalidade.
É o que Drummond fez, e o que em nossa visão, nós tentamos passar aos leitores.
SUMÁRIO
168 | M a g n o N i c o l a u ( O r g . )
EDUCAÇÃO...ESSE DILEMA
Maria do Socorro Cardoso Xavier
Hoje se fala em educação a distância. É o “dernier cri” da
educação. Sucesso em vários países: Inglaterra, Espanha, África do
Sul, Canadá. Tudo isso possível com o uso e telecomunicações,
computador e internet, além do uso já vulgarizado do rádio e televisão.
No Brasil, quase toda casa de baixa renda a duras penas possui um rádio e um aparelho de TV, contribuindo para que as crianças aprendam mais da televisão do que da escola. Já não acontece o
mesmo com relação ao computador e vídeo cassete, estes adquiridos por pessoas de classe média, incluindo profissionais liberais,
bem como outros produtos eletrônicos.
A questão é bem mais complexa. No Brasil, a questão da boa
aprendizagem passa pelo viés de iniciativas públicas, verbas destinadas à educação, professores melhores qualificados e condições
materiais de ensino, emprego para os pais dos alunos, saúde, enfim, toda uma estrutura que venha contribuir com uma boa aprendizagem escolar.
A educação a distância não funciona, portanto onde não há
utensílios dos meios de comunicação. Nem as Escolas, em sua
maioria, principalmente pública, estão equipadas com tais aparelhos eletrônicos. Quando muito há um televisor para toda escola.
Na nossa realidade socioeconômica atual, a educação à distância é
algo ainda bem remoto e complicado. Fez sucesso nos países de
primeiro mundo, onde a renda per capita é alta; requer ainda muita maturidade por parte de quem a utiliza.
A avaliação, capítulo muito difícil da aprendizagem, como
ficaria?
Se com a presença e acompanhamento do professor é uma
tarefa complexa, avalie com a ausência do elemento controlador. O
ser humano, o educando, necessita de clima de liberdade, mas
também de certos limites, no mínimo de disciplina. Ligando e des-
SUMÁRIO
Leituras Diversas: Crônicas, Ensaios e Contos
| 169
ligando dígitos onde ficaria a relação ensino-aprendizagem, a poesia deste encontro... O estudante necessita do indispensável contato humano, das trocas, para seu crescimento espiritual e psíquico.
Isto é possível com a empatia da presença constante e dedicação
do educador, do orientador, do professor. O calor humano, o contato face a face, olho no olho, posturas e sorriso, que mantém o elo
afetivo entre eles. A educação é sobretudo a arte de capacitar o
homem para a vida social, a formar-se uma personalidade harmoniosa e fecunda; cada indivíduo é uma síntese de elementos afetivos, intelectuais e ativos. Há diferenças individuais, são benéficas e
devem ser respeitadas e estimuladas, na formação de várias aptidões, sem dúvida, úteis ao desenvolvimento das complexas funções dentro da sociedade.
A educação será tanto melhor quando não nivele mentalmente os educandos; deve-se, sim, estimulá-los a seguir suas potencialidades latentes. A escola deve ser a ponte entre o lar e a sociedade: que se proponha formar o cidadão para a vida. Para tal, a
criança necessita de atmosfera de solidariedade, confiança; sentir
que aquelas atividades sejam agradáveis e de proveito para sua
vida. As primeiras noções de conduta devem ser transmitidas à
criança num ambiente de carinho e amor. Um conselho, um exemplo ensinam mais que um manual. Uma ação vale mais que mil
palavras, diz a sabedoria popular. Fica difícil conceber que uma
educação a distância seja catalisadora de princípios éticos e humanos.
Longe de estar defendendo a tese de que os meios de comunicação avançados e velozes sejam nocivos ao avanço da sociedade
e da educação. Só que devem funcionar como complemento, meio;
nunca, por si só, bastando. Geraria pequenos monstrinhos isolados, carentes de presença humanas. Muitos deles, frágeis, não suportariam o solipsismo desanimador.
A educação torna-se eficaz quando respeita a vocação dos
educandos, considerando seus temperamentos suas inclinações.
Nada mais detestável que um estudo forçado, distorcido ou a privação daquilo que se deseja aprender. Nunca se deveria reduzir
todos a um denominador comum, como acontece nas produções
em série, nas sociedades de consumo. Mesmo por que a sociedade
irá cobrar aptidões heterogêneas ante as infinitas funções que exige
o mundo moderno, prestes a constituir numa grande aldeia global.
SUMÁRIO
170 | M a g n o N i c o l a u ( O r g . )
O mal das nossas escolas, entre outros, é não preparar o aluno para a ação cívica. O trabalho e a leitura deveriam se desenvolver simultaneamente desde os primórdios em qualquer tipo de
ensino-aprendizagem. É abominável sobrecarregar a memória do
aluno com palavras e fatos obsoletos, sem desenvolver outras aptidões e incentivar os sentimentos de solidariedade social.
Deixar livre a manifestação das emoções, despida de preconceitos. Sempre aliar teoria à prática, dosando o racional com o manual; o abstrato, com o concreto, e por aí transformar uma aprendizagem estática em funcional e mutável, adaptando-se às necessidades individuais e do meio.
A oportunidade de aprender deve ser permanente e infinita.
A vida cívica escolar deveria formar o cidadão, opinando e deliberando em assembleias, propor iniciativas, adquirindo o hábito de
ser livre e verdadeiro. Só assim iria aperfeiçoando o caráter, sendo
um homem e não apenas agente passivo da história.
Uma educação que se preza deve ir além dos limites estreitos da aula. Salutares excursões educativas à natureza, às instituições diversas. Inclusive, as Universidades deveriam colocar a serviço de todos os resultados de suas pesquisas científicas, sem desprezar a inteligência emocional, contribuir para a formação da
consciência social do cidadão.
O verdadeiro educador não se move para o magistério apenas por fins lucrativos, e estes nem existe, mas por vocação a pedagogia. De sementes germinadas, brotariam flores, em forma
subjetiva, os sentimentos dos educandos. O verdadeiro educador
não é um autômato, repetidor de programa, mas um despertador
de vocações variadas, que se encontram em latência na criança e
no adolescente. Até mesmo no nosso universitário imaturo e carente.
O lema deveria ser: ensinar a fazer, fazendo; a pensar, pensando; a discutir, discutindo; a amar, amando. Dever-se-ia excluir
da direção educativa as influências políticas, burocráticas e dogmáticas. Elas corrompem, rebaixam o nível do aprendizado, esclerosas e conspiram contra a liberdade de pensar.
Na antiguidade, muitos dos professores eram escravos, mais
tarde foram os servos, hoje são assalariados; muito mal pagos, ante
uma responsabilidade social tão grande. Ao professor deveria ser
assegurado o seu bem-estar material como compensação por tão
SUMÁRIO
Leituras Diversas: Crônicas, Ensaios e Contos
| 171
honrosa tarefa: formar cidadãos, homens, sujeitos ativos da História.
O professor é sobrecarregado com tantas horas de trabalho,
exige-se mais quantidade do que qualidade do seu árduo trabalho
educativo. Crasso erro...Com menos horas o educador poderia
ensinar o aluno a pensar do que ser um mero repetidor de compêndios alheios, cujos ensinamentos formais podem não ser verdadeiros.
Não resta dúvida de que as novas gerações necessitam adaptar-se às condições de impacto geradas pelo mundo da informática; só não devem é ser tragadas por ela. Educar é desenvolver a
capacidade de trabalhar, trabalho este que dignifica o homem, mas
sem excluir o convívio humano, a troca, o intercâmbio, as nuances
espirituais. Ensinar e aprender e aprender para ensinar é uma relação dialética indispensável para a continuidade do conhecimento.
Da cultura e da educação.
Que os meios de comunicação venham auxiliar o homem na
busca incessante de dados e conhecimento universal, em menor
espaço de tempo possível, nunca um fim em si mesmo, a transformar o cidadão num autômato, isolado das relações humanas e
sociais.
SUMÁRIO
172 | M a g n o N i c o l a u ( O r g . )
A LINGUAGEM REGIONAL POPULAR
DE JOSÉ LINS DO REGO
Maria do Socorro Silva de Aragão1
"A obra de José Lins do Rego, é ele mesmo.
É profundamente triste. É uma epopeia da tristeza,
da tristeza da sua terra e da sua gente, da tristeza do Brasil".
Otto Maria Carpeaux (Fogo Morto)
INTRODUÇÃO
O Estado da Paraíba, um dos menores da Federação, é
conhecido não só por sua capacidade de luta e resistência, mas,
principalmente, por seus filhos ilustres, que se destacaram e ainda
se destacam nacionalmente na política, nas artes ou na literatura.
Nomes como João Pessoa, Epitácio Pessoa, José Américo de
Almeida, José Lins do Rego, Pedro Américo e Augusto dos Anjos
ilustram a afirmação acima.
Porém, a própria Paraíba muitas vezes não se dá conta, não
reconhece e conseqüentemente não reverencia seus filhos ilustres,
com as exceções de praxe.
José Lins do Rego, um dos mais importantes escritores
paraibanos e nacionais, com uma obra multifacetada que abrange
do romance às memórias, passando pelos relatos de viagens,
crônicas e literatura infantil, é aqui lembrado, numa homenagem,
embora tardia, pela passagem dos seus cem anos de nascimento.
1 A LINGUAGEM DE JOSÉ LINS
Professora da UFPB e da UFC. Membro da Academia de Letras e Artes do
Nordeste, da Academia Feminina de Letras e Artes da Paraíba e da União
Brasileira de Escritores – UBE-PB
1
SUMÁRIO
Leituras Diversas: Crônicas, Ensaios e Contos
| 173
José Lins do Rego como escritor da chamada geração de 30,
cujas narrativas enfatizavam mais a natureza em detrimento do
homem, conseguiu ultrapassar esse estereótipo mudando o eixo de
gravidade da natureza para o homem, em sua ficção.
Segundo alguns estudiosos, foi em Fogo Morto que José Lins
do Rego sintetizou sua ficção que, segundo Abdala Júnior, é muito
mais inovadora em termos de arte, que as demais do chamado ciclo da
cana-de-açúcar, publicadas anteriormente: Menino de Engenho, Doidinho, Bangüê, O Moleque Ricardo e Usina. José Lins em suas obras
de ficção usou a palavra de forma precisa e artística, nos seus níveis e registros e nas suas variações regionais, a partir do perfeito
domínio da norma culta padrão, a fim de descrever a decadência
dos engenhos de açúcar do Nordeste, com a conseqüente deteriorização da estrutura econômico-social daqueles que neles viviam.
Estudar e analisar lingüisticamente a obra de José Lins do
Rego é um exercício fascinante, que oferece surpresas a cada nova
abordagem que dela se faça.
A obra de José Lins é riquíssima para análises do ponto de
vista da Sociolingüística, ciência que estuda as relações entre a
língua e a sociedade, suas inter-relações e o papel que cada uma
exerce sobre a outra, determinando os níveis ou registros de fala,
que vão desde o nível mais informal da modalidade falada ao mais
formal da modalidade escrita, que é o literário, correlacionando-os
com o nível sócio-cultural de seus usuários. São as variações sócioculturais, também chamadas diastráticas, que determinam as
diferenças entre a linguagem erudita e a popular, entre outras.
Já para as análises sob a visão da Dialetologia, que estuda os
diversos tipos de variação que a língua apresenta, correlacionando-a não com o nível sócio-cultural do falante, mas com a
região a que ele pertence, temos exemplos significativos em José
Lins do Rego. As variantes regionais ou diatópicas, caracterizam
os aspectos regionais da sua linguagem.
A integração das duas ciências, a Sociolingüística e a
Dialetologia é que nos permite analisar a linguagem do autor
vendo-lhe os aspectos erudito, popular e regional.
Assim, José Lins do Rego, autor da linha regionalista da
literatura brasileira é fonte da maior significação para o estudo das
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174 | M a g n o N i c o l a u ( O r g . )
variações lingüísticas, diatópicas e diastráticas, ou seja: variações
regionais e sócio-culturais. Outro tipo de variação que também
pode ser estudada em José Lins é a diafásica ou estilística.
A temática, a estrutura literária e a linguagem de suas obras
caracterizam, com rara precisão, o nosso povo, seu falar, costumes,
crenças e tradições, e seu modo de ser, viver, pensar e agir, dentro
do seu universo sócio-lingüístico-cultural.
Sua linguagem popular se manifesta, basicamente, no léxico,
com um vocabulário de palavras e expressões regionais/
populares.
2 A ESTRUTURA DO ROMANCE FOGO MORTO
Fogo Morto é um romance de estruturação tridimensional
que desenvolve como tema central a decadência econômica, social
e individual dos engenhos de cana-de-açúcar no Nordeste e de
seus habitantes.
A obra possui três personagens principais: o mestre José
Amaro, artesão, seleiro, pobre, doente, porém orgulhoso e
revoltado com a própria situação, de adversidades, perseguições e
humilhações, levando-o ao final a se ligar ao cangaceiro Antônio
Silvino. Ao falar do mestre José Amaro diz Mário de Andrade:
[...] na análise magistral do mestre José Amaro, Lins do Rego
nos dá um personagem popular e analfabeto, sem o primarismo
falso, este sim, primarismo analfabeto, com que os nossos
romancistas ‘sociais’ concebem e expõem o homem do povo
como um ser de psicologia fácil, precária e lógica. Precários são
eles!2
O segundo personagem é o Coronel Lula de Holanda,
símbolo do senhor rural decadente, arruinado, dono de engenho
de "fogo morto" e que com a família vive, ilusoriamente, do fausto
de outrora.
ANDRADE, Mário. Fogo morto. In : REGO, J.L. do. Fogo morto. Rio de
Janeiro : José Olympio, 1980, p. 263.
2
SUMÁRIO
Leituras Diversas: Crônicas, Ensaios e Contos
| 175
Casado com a herdeira de um engenho (o Santa Fé), o coronel
Lula é o próprio retrato da decadência. Sem futuro, seja em
termos familiares ou econômicos, o coronel apega-se rigidamente ao passado e mantém, apesar de tudo, seu ar aristocrático em meio à desagregação total de seu mundo[..].3
O terceiro personagem central da obra é o Capitão Vitorino
Carneiro da Cunha, apelidado "Papa- Rabo", idealista, sonhador e
solidário com os fracos e oprimidos, sendo, segundo alguns
autores, a maior criação literária de José Lins do Rego.
O PROF. ANTÔNIO CÂNDIDO DIZ QUE EM VITORINO
:
[...]a força do ideal se sobrepõe a realidade da decadência e do
ridículo. Redimido pela paranóia heróica, o velho Vitorino se
eleva no conceito do público. Os pequenos começam a respeitálo. O cego Torquato acha que ele é mandado por Deus. É o
único que enfrenta os mandões, castiga os prepotentes, defende
os oprimidos. A sua candura e sua coragem fazem dele um
campeão. O único homem da várzea com sentimento e
consciência das necessidades sociais e dos problemas políticos,
porque não se aproximou deles com a bruteza dos chefes nem
com a malícia habilidosa dos políticos, mas com a direta
ingenuidade dos puros4
Comentado os personagens de Fogo Morto, diz-nos ainda
Mário de Andrade:
[...] Fogo Morto chega a ter exatamente a forma e o espírito da
sonata [...] tratado em três temas, três melodias, três partes. E
estas três partes correspondem ainda ao movimento rítmico da
sonata: um alegro inicial que é a zanga destabocada de mestre
José Amaro, um andante central que é o mais repousado Lula
de Holanda na sua pasmaceira cheia de interioridade não dita,
REGO, José Lins do. Fogo morto. Guias de Leitura. Porto Alegre : Mercado
Aberto, s/d, p. 25/26.
4 CÂNDIDO, Antonio. Brigada ligeira. São Paulo: Martins, 1945.
3
SUMÁRIO
176 | M a g n o N i c o l a u ( O r g . )
e finalmente o presto brilhante e genial do Capitão Vitorino
Carneiro da Cunha.5
Como bem recorda Eduardo Coutinho, a propósito de Fogo
Morto:
A problemática básica do romance - a decadência de toda uma
estrutura sócio-econômica baseada no engenho de açúcar - se
expressa através da atuação concreta (quer sob a forma de fala
quer de ação mesmo), dos personagens que integram o
universo diegético, aqui centrado em torno de dois grandes
núcleos: O engenho de S. Lula e a casa do Mestre José Amaro e
continua: Fogo Morto[...] é a radiografia da realidade
nordestina em um momento de crise: o da dramática transição
entre os engenhos decrépitos e a usina nascente6.
3 A LINGUAGEM DE FOGO MORTO
José Lins utiliza como recurso estilístico em Fogo Morto,
uma série de estratégias lingüísticas que dão ao seu texto um sabor
especial de nordestinidade, de campo, de interior, de pessoas
simples que aplicam à vida todos os conhecimentos adquiridos por
herança cultural do povo nordestino. O autor utiliza-se de um
léxico regional/popular nordestino, usa arcaísmos, faz comparações, concretiza abstratos, generaliza termos específicos, usa aumentativos com efeitos expressivos, reduplica a negação, usa cantigas populares, provérbios e frases feitas, além de usar, com maestria, a linguagem formal erudita em personagens populares. Tudo
isto marca a expressividade da linguagem de José Lins em Fogo
Morto. Vejamos alguns exemplos:
3.1 Aspectos Léxicos
3.1.1.
Falar Regional-Popular
ANDRADE, Mário. Fogo morto. In : REGO, J.L. do. Fogo morto. Rio de
Janeiro : José Olympio, 1980, p. 262/263.
6 COUTINHO, Eduardo. A relação arte/realidade em Fogo Morto. In : Ensaios
sobre José Lins do Rego. João Pessoa : FUNESC, 1987.
5
SUMÁRIO
Leituras Diversas: Crônicas, Ensaios e Contos
| 177
É no léxico onde o caráter regional-popular da obra de José
Lins do Rego aparece mais fortemente e "Fogo Morto" não é uma
exceção a esta regra. Os termos e expressões regionais/populares
marcam, de forma inequívoca, o escritor nordestino que usa a
linguagem de seu povo e de sua terra de forma magistral também
nesta obra. Vejamos alguns exemplos ilustrativos
a) Vasqueiro - raro, escasso, difícil.
Muito trabalho, mestre Zé? Está vasqueiro. (p. 15)
b) Camumbembe - Indivíduo pobre, vadio, vagabundo,
mendigo.
Estava trabalhando para camumbembes. Era o que mais lhe
doía ( p.20)
c) Tangerino - Aquele que tange os animais, na viagem. Almocreve.
Um tangerino passou por aqui e me encomendou esta sela e
uns arreios.( p. 15)
d) Fazer-se na faca - Empunhar, agredir com arma, brigar
com faca.
Alípio se fez na faca, espalhou a feira.(p. 19)
e) Meter-se a besta - Tornar-se atrevido, fazer-se de importante, provocar, insultar.
O cabo ficou para um canto de bofe de fora, e um soldado, que se
metera a besta não ficou para contar a história. (p. 19)
f) Ser duro de roer - Redução da expressão "osso duro de roer": Situação ou coisa de difícil solução; pessoa de difícil
trato:
Está aí, o seu Álvaro do Amora custa a pagar. É duro de roer,
mas gosto daquele homem. (p.5)
g) Botar canga - Dominar, submeter, escravizar.
É verdade que senhor de engenho nunca me botou canga. Vivo
nesta casa como se fosse dono. (p. 7)
3.1.2 Arcaísmos
Outro aspecto importante do léxico de Fogo Morto é o uso
de palavras e expressões arcaicas que, de modo geral, demonstram
SUMÁRIO
178 | M a g n o N i c o l a u ( O r g . )
o isolamento em que vivem os personagens em seu ambiente tanto
de vida como de trabalho, no interior do nordeste.
a) Calibre - tamanho ou grandeza consideráveis; valor
reconhecido; merecimento.
Não se casa porque não quer. É de calibre, como a mãe. (p. 7)
b) Latomia - Cântico monótono de ladainha; litania.
Não quero ouvir latomia de igreja na minha casa. (p. 8)
c) Peitica - Pessoa que perturba, que incomoda
Vai ser esse choro, esta peitica até anoitecer. (p. 8)
d) Camumbembe - Indivíduo de baixa condição social
Estava trabalhando para camumbembes. (p. 10)
e) Cabriolé - Carruagem pequena, lele e rápida, de duas rodas, capota móvel, e movida por apenas um cavalo.
Era o cabriolé do Coronel Lula enchendo de grandeza a pobre
estrada....(p. 12)
3.2 Aspectos Morfossintáticos
As estruturas morfossintáticas utilizadas por José Lins têm,
basicamente, a marca da linguagem erudita, porém pode-se nelas
encontrar alguns aspectos típicos da linguagem regional popular.
3.2.1 Concretização de Abstratos
a) Bem, mestre Zé, muito obrigado, mas o sol está caindo. (p. 9)
b) ...mais uma vez o silêncio da terra se perturbava com o seu
martelo enraivecido. (p. 10)
c) Havia uma mágoa profunda nele. (p. 18)
d) Pela estrada gemia um carro de boi, carregado de lã. (p. 20)
e) A tarde macia, com céu azul, e o sol morno cobrindo a verdura
da várzea. (p. 238)
3.2.2 Generalização de termos específicos
a) É, mestre José Amaro sabe trabalhar, não rouba a ninguém, não
faz coisa de carregação. (p. 16)
b) Tenho visto passar muito troço. (p. 26)
SUMÁRIO
Leituras Diversas: Crônicas, Ensaios e Contos
| 179
c) Por que seu Augusto não manda consertar esta bicha na cidade? ( p. 16)
d) Ele já botara para dentro da sala os seus petrechos de trabalho.
(p.13)
e) Então, mestre Zé, está enchendo a barriga desde gringo? (p.
45)
3.2.3 Uso de aumentativos expressivos de intensidade
a) E deu pela sela um preção. (p. 16)
b) Ouvi outro dia na feira do Pilar, um figurão de Itabaiana gabando o seu trabalho. (p. 16)
c) Estão dizendo, comadre, que aquele amarelão dele é que faz o
mestre correr de noite como bicho danado. (p. 41)
d) Os bichões da Ribeira dão banquete a ele como governador...(p.
45)
e) Moção meu compadre. Moção para casar. (p.49)
3.2.4 Repetição da negativa
a)
b)
c)
d)
e)
Mestre Zé, não tenho culpa de nada não ... (p. 24)
quero falar não, mas digo aqui ao senhor... (p. 25)
Não é não, mestre Zé. (p. 24)
Não quero falar não, mas digo aqui ao senhor... (p. 15)
A velha não vai indo bem, não. (p. 21)
3.2.5 Uso de comparações
a) ...cabra muito do sem-vergonha, atrás dos grandes, como cachorro sem dono. (p. 24)
b) ...que aquele amarelão dele é que faz o mestre correr de noite
como bicho danado. (p. 41)
c) ...tropeçou nas raízes da pitombeira e foi ao chão como um jenipapo maduro. (p.22)
d) Estava branco como algodão, de corpo mole. (p. 22)
e) Era duro demais, era como um cordeiro cheio de espinhos. (p.
24)
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3.2.6 Uso de elementos da cultura popular
3.2.6.1 Cantigas Populares
O personagem Zé Passarinho, que tinha este nome por viver
cantando, cantava toadas e romances da literatura popular oral e
do romanceiro tradicional, como por exemplo:
Quem matou meu passarinho
É judeu, não é cristão
Meu passarinho tão manso
Que comia em minha mão
Quando eu vim da minha terra
Muita gente me chorou
E a danada de uma velha
Muita praga me rogou
/-/-/“Ô lá lá vira a moenda
Ô lê lê moenda virou
Quem não tem uma camisa,
Pra que quer um palitô?
O caixeiro bebe na venda,
O patrão no varadô,
Eu estava em Itabaiana
Quando a boiada passou,
ô lê lê vira a moenda
O lê lê moenda virou”
-/-/-/b) Filho que faz isto ao pai
Bem merece ser queimado
Por sete carros de lenha
E por mim bem atiçados.
Filho que faz isto ao pai
Bem merece ser degolado,
Por sete folhas de navalhas
SUMÁRIO
Leituras Diversas: Crônicas, Ensaios e Contos
| 181
E por mim bem afiadas.
Tende não, minha justiça
Minha justiça real;
Esta princesa que vedes
Meus palácios vai gozar".
3.2.6.2 Provérbios e Frases Feitas
Outra das formas utilizadas por José Lins, em Fogo Morto,
são os provérbios e frases feitas que são do conhecimento popular
e passam de pais para filhos em todo o nordeste.
a) Osso duro de roer - É duro de roer, mas gosto daquele homem. (p. 5)
b) Cavalo velho, capim novo - Quero lá saber de cuidado de mulher
velha! Cavalo velho, capim novo, comadre Sinhá. (p.21)
c) Estar em petição de miséria - Os arreios do cabriolé estavam em
petição de miséria, tudo podre, levado do diabo. (p. 27)
d) Valer pelo que é e não pelo que tem - Seu Laurentino - foi ele
dizendo - ,um homem vale pelo que é e não pelo que tem. (p. 18)
e) Quer chova quer faça sol - Não tem jeito não! É aquilo mesmo, quer
chova quer faça sol. (p. 32)
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O estudo e análise das obras de ficção de José Lins do Rego
oferecem possibilidades as mais variadas, fato comprovado pelas
centenas de trabalhos publicados sobre sua obra, em vários níveis,
abordando novos e diferentes aspectos, desde artigos e ensaios até
teses de doutorado.
Porém, queremos concordar com Otto Maria Carpeaux
quando diz:
SUMÁRIO
182 | M a g n o N i c o l a u ( O r g . )
Os fatos, contam-se, os problemas, interpretam-se, José Lins do
Rego, porém, é um conteur nato. Contar histórias é a sua
profissão ... e mais adiante: José Lins do Rego é o último dos
contadores profissionais de histórias, com ele, a espécie
extinguir-se-á. É como um narrador de contos de fadas.7
REFERÊNCIAS
ABDALA JÚNIOR, R. Os ritmos do tempo em torno do engenho. In: REGO,
José Lins do. Fogo morto. São Paulo: Círculo do Livro, 1984.
ARAGÃO, Maria do Socorro Silva de. A linguagem regional/popular na obra
de José Lins. João Pessoa: FUNESC, 1990.
ARAGÃO, M. do Socorro Silva de et al. Cartilha literária José Lins do Rego.
João Pessoa: FUNESC, 1990.
BATISTA, M. de Fátima B. de M. A propósito da citação popular em Fogo
Morto de José Lins do Rego. João Pessoa: 2003. (mimeo.)
CÂNDIDO, Antonio. Brigada ligeira. São Paulo: Martins, 1945.
CARPEAUX, Otto Maria. O brasileiríssimo José Lins do Rego. In. REGO, José
Lins do. Fogo morto. São Paulo: Circulo do Livro, 1984.
COUTINHO, Eduardo F. A relação arte/realidade em Fogo Morto. In:
Ensaios sobre José Lins do Rego. João Pessoa: FUNESC, 1987.
PONTES, M. das Neves A. de. A influência da língua falada em Menino de
Engenho, de José Lins do Rego. João Pessoa: Academia Paraibana de Letras,
1992.
_____. Linguagem regional/popular: uma visão léxico-semântica de Menino
de engenho, de José Lins do Rego. João Pessoa: CEFET/PB, 2002.
REGO, José Lins do. Fogo morto. São Paulo: Círculo do Livro, 1984.
_____. Fogo morto. Guias de leitura. Porto Alegre: Mercado Aberto, [s.d.].
CARPEAUX, Oto. O brasileiríssimo José Lins do Rego. In : REGO, J.Lins do.
Fogo morto. São Paulo : Círculo do Livro, 11984.
7
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Leituras Diversas: Crônicas, Ensaios e Contos
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RELENDO “INSÔNIA” DE
GRACILIANO RAMOS (1892-1953)
Marinalva Freire da Silva
1- Algumas considerações sobre a obra
Graciliano Ramos, memorialista por impulso e ficcionista pelo domínio da técnica, parece haver erigido Insônia com as sobras
emocionais de suas obras maiores, aproveitando o bagaço da cana que
restou da moenda, conforme dizem os críticos. Trata-se de um volume de contos feito, portanto, dos retalhos memorialísticos. É uma
coletânea de treze contos: Insônia, Um ladrão, O relógio do hospital,
Paulo, Luciana, Minsk, a Prisão de J. Carmo Gomes, A testemunha, Ciúmes, Um pobre-diabo, Uma visita e Silveira Pereira. Estes contos, reunidos no volume Insônia e escritos na primeira e terceira pessoa
(predominando a última), são de qualidade desigual, se bem que
estejam permeados da visão psicológica do autor: Insônia, Um ladrão e Minsk dão ideia de haverem sido escritos fora do planeta
Terra. É oportuno registrar que o conto, para Graciliano ramos, foi
um dos primeiros exercícios literários em prosa, o que justifica ser
Insônia considerada pela crítica a obra mais fraca do autor.
Em linhas gerais, toda obra de Graciliano Ramos, cujos recursos artesanais são solicitados para corporificar vivências e projetos de seu universo interior, encerra problemas de construção
típicos que lhe realizam a ficção, ampliada continuamente. Para
tanto, apoia-se numa realidade - o Nordeste agrário da zona alagoana, sua passagem para a sociedade industrial e urbana, a pressão esmagadora das máquinas sobre seres frágeis e despreparados,
a seca, a miséria, o lavrador.
O homem e o mundo de Graciliano Ramos expressam uma
visão trágica do ser, refletida na contenção e arquitetura romanesca consciente em suas dimensões. Todas as suas personagens são
angustiadas, revoltadas. A realidade nas suas obras é, portanto,
diferente, posto que as personagens vivam em um mundo intros-
SUMÁRIO
Leituras Diversas: Crônicas, Ensaios e Contos
| 185
pectivo. Seus problemas são de ontem, hoje e sempre, ligados à
sobrevivência do homem em sociedade e ao constante desejo de
esmagar o outro.
Sente-se em Graciliano Ramos a situação antitética do
homem, animal social, qual seja, a vida em sociedade convidando
à comunhão ao mesmo tempo em que trava luta – luta pelo poder,
pelo domínio, pela riqueza do amor; luta em que o fraco é abatido.
A estrutura social em Graciliano Ramos subsiste em função
do acontecimento humano – em todos, a exploração dos crimes
interiores, as personagens dependendo das circunstâncias (guerra,
revolução, seca, miséria) a fim de evidenciarem os dramas.
A representação social é resultante do núcleo humano, as
personagens em parte são relacionadas com a condição humana, e
só depois surgem na dependência do regionalismo.
É surpreendente como o gregarismo social e político em
Graciliano Ramos sempre foi uma ausência, mas ele não era um
ser sociável, era esquivo, enigmático, de poucas palavras.
Colocando-se na linha do moderno romance regional, o autor fixou a paisagem e o homem do Nordeste, sentindo-lhe as dificuldades, a luta, a reação, deu um cunho de universalidade à sua
obra, ampliando o individual que se destaca na grandeza do completamente criado, do que permanece.
Os críticos (1975; 1977) são uníssonos em afirmar que o trato excessivo da linguagem distancia-o dos outros regionalistas
nordestinos dos anos 30 do século passado, na maioria, pouco afeitos ao aprimoramento estilístico, sendo considerado, por conseguinte, um clássico de nossa língua, juntando-se a Machado de
Assis, embora se perceba uma prosa áspera, dura às vezes, à feição
da fala rude dos sertanejos nordestinos.
Através dessa linguagem desnudada de toda ornamentação inútil, Graciliano Ramos projeta uma paisagem humana desolada, formada de subhumanos, seres semelhantes a bichos acuados, condicionados por um sentimento fatalista ao qual Antonio
Candido (1975; s/d) faz alusão. Assim é a visão do nordeste deste
escritor alagoano. O pitoresco da paisagem física e dos costumes
não existe. Sua preocupação é antes o homem como produto do
meio, o que comprova a tendência psicológica, embora este aspecto não invalide o regional.
SUMÁRIO
186 | M a g n o N i c o l a u ( O r g . )
2 - Breve reflexão sobre Insônia
As situações que, nos romances, são subsidiárias da estruturação psicológica das personagens, vão constituir o tema central de
dois contos de Graciliano ramos: Insônia e O relógio do hospital, ambos narrados na primeira pessoa. Seus protagonistas parecem recolher e sintetizar as experiências desagradáveis das personagens de
São Bernardo e Angústia. Narra o do primeiro conto sua alucinação
diante de um dilema irracional. Despertou bruscamente, como se
agarrado por uma mão poderosa que lhe puxava os cabelos, enquanto uma voz lhe sugeria: “sim” ou “não”? A cadência uniforme
da interrogação tola passa a se confundir com o ritmo de um relógio perdido na perplexidade de opiniões vagas que a razão não
consegue ordenar.
Esgotado pela agitação provocada pela insônia, com a mente
confusa por alucinações exaustivas e inexplicáveis, o narrador deixa entrever dois traços marcantes de sua psique: a aversão pelos
sons característicos do pêndulo e a identificação do tempo exterior
com os limites convencionais da vida real. “Um, dois, um, dois. Certamente são as pancadas de um pêndulo inexistente. Um, dois, um, dois.
Ouvindo isto, acabarei dormindo sentado” (RAMOS, 1965, p. 17).
“Sim, não, sim, não. Um relógio tenta chamar-me à realidade. Que
tempo dormi? Esperarei até que o relógio bata de novo e me diga que vivi
meia hora, dentro deste horrível jato de luz” (RAMOS, 1965, p. 19).
No decorrer da leitura do conto, nota-se que a angústia dessa personagem está no desespero de se manter ciente do tempo,
acompanhar a curva dos ponteiros para poder assumir totalmente
a responsabilidade de sua missão no tragicômico da vida.
O relógio, então, passa a ser um instrumento de tortura, mas
também de necessidade vital para a sobrevivência. “Terá parado o
maldito relógio?” (RAMOS, 1965, p. 24).
A personagem principal do segundo conto, “O relógio do hospital” é mais uma vítima das pancadas monótonas de um relógio
inoportuno. O enfraquecimento físico, obrigando-o a permanecer
num leito de hospital, o faz presa fácil dessa tortura dissolvente. O
tique-taque lento e as badaladas fanhosas saturam o espírito debilitado do paciente e, do seu inconsciente surge a ideia de que tudo
na vida é controlado pelo tempo. Em virtude do estado de debili-
SUMÁRIO
Leituras Diversas: Crônicas, Ensaios e Contos
| 187
dade, emerge a seguinte ideia do inconsciente da personagem:
“Silêncio. Por que será que esta gente não fala e o relógio se aquietou?
Uma idéia acabrunha-se. Se o relógio parou, com certeza o homem dos
esparadrapos morreu. Isto é insuportável. Por que fui abrir os olhos diante
da amaldiçoada porta?” (RAMOS, 1965, p. 55).
Em Um ladrão, peça inspirada pelo que lhe contou um presidiário, conforme confissão de Graciliano Ramos em Memórias do
cárcere, o delírio começa quando o ventanista inexperiente resolve
saltar o portão de uma casa rica.
“O que desgraçou por toda a vida foi a felicidade que o acompanhou durante um mês ou dois” (RAMOS, 1965, p. 28). O desastre é
inevitável, e a angústia predomina.
Em Um ladrão há uma personagem secundária que narra na
primeira pessoa fatos diversos que ocorreram com a personagem
principal. Seu papel é de um observador atento mas recatado, que
passa despercebido ao leitor na maior parte da narrativa, só se
evidenciando no final, quando se separa dos acontecimentos para
formular um juízo moral pessimista sobre cena presenciada.
Essa situação de narrador personagem secundária não voltará a se repetir em toda a obra escrita na primeira pessoa, pois a
narração estará sempre a cargo da personagem principal, mesmo
nos contos de Insônia, que por serem descrições de ambientes, pessoas, estados de alma, podiam continuar o processo de um ladrão.
Os contos Insônia, O relógio do hospital, Paulo e Silveira Pereira
cujo protagonista principal é o narrador, estão escritos na primeira
pessoa. A maioria dos contos de Insônia estão escritos na terceira
pessoa são menos perfeitos que os escritos na primeira (pessoa), o
que não se deve ao foco narrativo em si, mas a quatro fatores, visto
que sob qualquer foco narrativo pode um conto ser estruturado
com igual êxito.
Tendo em vista que o conto é uma narrativa muito marcada
pela concentração unitária de ação, tempo e espaço, e servida pelo
diálogo que a mantém na linha do objetivo, plástico, horizontal,
rejeita naturalmente divagações e monólogos, chegando a naufragar se a análise psicológica tornar-se dominadora.
Nos contos da primeira pessoa, em Insônia, é necessariamente
isso que ocorre, pois não chegam a se organizar de modo firme dentro do gênero: a obsessão da análise e a ausência total de diálogo
levam ao fracasso o substituto do diálogo que o autor empregou e
SUMÁRIO
188 | M a g n o N i c o l a u ( O r g . )
quer insistiu no uso de frases exclamativas em discurso direto, não
foi suficiente para criar a ilusão coloquial.
Isso não ocorre com os contos na terceira pessoa, uma vez
que mais importante que o foco narrativo foi a existência de ações
ou conflitos a criar consistência dramática, amparada por alguns
diálogos e maior quantidade de frases exclamativas, em discurso
direto.
Nos contos objeto deste estudo, escritos na terceira pessoa, a
amplitude do ponto de vista desta pessoa é reduzida às dimensões
da primeira pelo monólogo interior indireto. O caso que chama
atenção dessa interferência de ponto de vista é o conto Um ladrão,
porque ele decorre como se a expectativa empregada fosse a da
terceira pessoa. Porém, subitamente, o narrador, que permanecia
discretamente invisível a descrever ações e pensamentos dos protagonistas, entra em cena, sem se identificar, comentando: “o indivíduo a que me refiro ainda não tinha alcançado essa andadura indispensável e prejudicial na rua, porque denuncia de longe o transeunte” (RAMOS, 1965, p. 30).
Como se pode observar, o narrador não volta a usar a primeira pessoa logo, a perspectiva adotada não deixa de ser a da
terceira (pessoa). Nesse processo, o leitor tomou consciência de
que existia entre ele e os fatos narrados um intermediário que,
antes, lhe passou despercebido, e a impressão experimentada pelo
emprego ocasional da primeira pessoa em um neoprotagonista
veio juntar-se à dos monólogos a fim de aproximar mais os dois
pontos de vista.
Luciana e Minsk, os contos subsequentes, partem da recriação
de Infância, de Graciliano Ramos: o tio Severino aparece em ambos,
autor de uma dádiva e de uma frase, seria uma reminiscência a
figura descrita em MEU AVÔ – a mesma que persegue Luís da
Silva sob o nome de Trajano.
Na concepção de Gonçalves (1979), Minsk e Luciana iriam gerar, se Graciliano Ramos tivesse tido tempo, um romance que
permanece inédito. Luciana, personagem central do conto, é uma
garota esperta, que começa a descobrir o mundo, a desvendar seus
mistérios. Trata-se de um conto narrado na terceira pessoa, embora
o narrador se confunda com a personagem na maneira carinhosa
de se referir aos pais: “Papai e mamãe, no sofá embebiam-se na palavra
lenta e fanhosa de tio Severino” (RAMOS, 1965, p. 77).
SUMÁRIO
Leituras Diversas: Crônicas, Ensaios e Contos
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A partir do momento em que Luciana faz a imagem do diabo quando alguém diz que ela sabe onde o diabo mora, o narrador
vai se preocupar em revelar o que está acontecendo na sala de sua
casa. Para tanto, irá empregar com mais frequência o discurso indireto livre.
Ao mesmo tempo em que Luciana contesta a imagem do diabo que lhe impõem, admira-se dos chifres e do rabo. Em seguida,
a menina encontra justificativa para essas insinuações. “Na esquina
do quarteirão principiava o mistério: barulho de carros, gritos, cores, movimentos, prédios altos demais. Talvez o diabo dormisse num deles. Em
qual? Desanimada, confessou, interiormente a sua ignorância” (RAMOS, 1965, p. 81).
No decorrer da leitura do conto, nota-se que Luciana faz
questionamentos sobre o diabo, dentro de uma visão mágica que
ela tem do mundo, visão própria da infância.
Os adultos incutiram na mente de Luciana a imagem do diabo, preto, com chifres e rabo. Daí, a cor do diabo trazer, por associação, a imagem de seu Adão carroceiro, também preto. Verifica-se,
então, a perfeita aderência do narrador à personagem, reproduzindo-lhe os pensamentos: o mundo além da esquina, o diabo, seu
Adão (GONÇALVES, 1979).
No conto Minsk, Luciana ainda aparece e como personagem
central, conto narrado também na terceira pessoa. Desta feita, não
é o diabo que modifica o comportamento, é um periquito que recebera de presente do tio Severino. Quão grande foi o espanto da
garota ao receber o presente: “Luciana, recebeu-o, abriu muito os olhos
espantados, estranhou que aquela maravilha viesse dos dedos curtos e
nodosos de tio Severino, deu um grito selvagem, mistura de admiração e
triunfo” (RAMOS, 1965, p. 87).
Luciana possuía amigas invisíveis com as quais monologava: “[...] e as amigas invisíveis de D. Henriqueta da Boa-Vista deixaram
de visitá-la. D. Henriqueta da Boa-Vista era a personagem que Luciana
adotara quando se erguia nas pontas dos pés, a boca pintada, as unhas
pintadas, bancando moça” (RAMOS, 1965, p. 91).
É normal nas obras de Graciliano Ramos a criação de personagens invisíveis. As personagens Luísa, Madalena, Marina,
como as demais presentes nos contos de Insônia, estão cercadas por
muros invisíveis. Recordem o Ladrão magistralmente captado por
Gracialiano Ramos.
SUMÁRIO
190 | M a g n o N i c o l a u ( O r g . )
O conto A prisão de J.Carmo Gomes desenrola-se em duas fases distintas. A primeira abrange as sete páginas iniciais, centralizando-se em uma ação interiorizada da personagem Aurora. Trata-se de um de um relato de vida pública, de prisão de um jovem.
Dona Aurora denuncia o irmão e recorda entre outros fatos, a pergunta da professora: “Quem foi o primeiro governador-geral?” Nessa
frase predomina um discurso mais descritivo que narrativo, carregado de vestígios e com o qual o narrador transita livremente do
exterior para o interior do protagonista e vice-versa.
A linguagem densa articula-se com o ritmo da ação e esta
se situa, temporalmente, no amanhecer de um dia histórico muito
conhecido: o imediatamente posterior ao insucesso do movimento
integralista em 1938. Seu espaço: os aposentos de uma “pequena
casa do Meyer, na Rua Castro Alves, no Rio de Janeiro” (RAMOS, 1965,
p. 99).
A segunda ocupa as páginas restantes, abrangendo outras
personagens. O assunto dessa fase diz respeito às recordações de
Dona Aurora, recordações constituídas de acontecimentos da vida
familiar, de seu envolvimento na rebelião integralista, de seus temores e de seus conflitos solucionados ilusoriamente após denunciar o irmão à polícia.
O enredo narrado no conto em análise envolve três personagens: O Major Carmo Gomes, José Carmo Gomes e Dona Aurora,
ou seja, o pai e os dois filhos. O narrador retendo as lembranças de
Dona Aurora, evidencia o genitor desta, caracterizando-o tipicamente:
Pôs-se a fazer um longo exame de consciência, mergulhou no
passado, lembrou-se do Major Carmo Gomes, gorducho, baixinho, terrivelmente conservador, desgostoso do filho, que não
arranjava profissão decente e lia brochuras subversivas. Para
consertar o filho degenerado, o Major esgotara todas as razões
conhecidas, e, incapaz de levá-lo ao bom caminho, recorrerá às
ameaças: “ Tu acabas na cadeia, José”
O rapaz ouvia sem discutir e continuava agarrado aos folhetos.
Não encontrando resistência, o velho excitava-se, monologava,
soprava, afinal, explodia: “Tu acabas na cadeia, José”.
SUMÁRIO
Leituras Diversas: Crônicas, Ensaios e Contos
| 191
Tanto repetira a frase que Dona Aurora se convencera de que o
fim do irmão seria realmente a cadeia. (RAMOS, 1965, p. 107108).
Essa passagem do conto leva o leitor a deduzir que, em toda narrativa, Graciliano Ramos caracteriza a visão do mundo de
Dona Aurora como sendo aquela medida conforme as dimensões
de sua casa.
Em todos os contos, o autor traz à tona a imagem da angústia, uma doença do século XX que segue nos dias atuais. “A
gravata enrolada como corda” (RAMOS, 1965, p. 134) do conto Dois
dedos é uma miragem que vem de Angústia, da mesma maneira que
o embaraço provocado pela “datilógrafa bonita” (RAMOS, 1965, p.
61) em O relógio do hospital, recorda a cena ocorrida com o alemãozinho de Angústia e volta a aparecer em A testemunha. “Lembrou-se
da inglesa do sobrado, dos lindos olhos da inglesa, do vaso de flores da
inglesa” (RAMOS, 1965, p. 148).
Tudo lembra angústia e por isso mesmo, as personagens
dos contos Insônia assemelham-se às do romance Angústia.
3 – Conclusão
Se for feito um estudo comparativo limitado apenas com
uma parte das obras de Graciliano Ramos, nota-se como ela está
imbuída pelo memorialismo. Como ponto de partida, tem-se Insônia, conjunto de treze contos. Trata-se de uma biografia de Graciliano Ramos; um título de significação menor, e nele, o conteúdo
autobiográfico deveria, portanto, aparecer diluído. Porém, a tônica
pessoal mantém sua incidência, conserva todo conteúdo específico,
o que marca a essência do escritor alagoano, sabendo-se que Insônia foi, a rigor, seu único livro de contos, deixando de lado os capítulos do romance Vidas secas, sua obra-prima, que funcionam separadamente como contos; as peças folclóricas de Alexandre e outros
heróis e algumas composições de Infância.
É oportuno destacar que os quatro primeiros contos de Insônia são cristalizações dispersas de um tema – o homem social é psicologicamente perseguido. Conforme já se fez referência, Graciliano
Ramos, memorialista por impulso, ficcionista pelo domínio da
SUMÁRIO
192 | M a g n o N i c o l a u ( O r g . )
técnica, parece ter construído Insônia com as sobras emocionais de
suas obras maiores.
Por conseguinte, Insônia é um livro composto de sobras,
aproveitando retalhos memorialísticos.
.
Referências
BRAYNER, Sônia. Graciliano Ramos. Seleção de textos. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1977.
CANDIDO, Antonio. Graciliano Ramos. Trechos escolhidos. 3 ed. Rio de
Janeiro: Agir, 1975.
Cristóvão, Fernando Alves. Graciliano Ramos: estrutura e valores de um
modo de narrar. 2 ed. Rio de Janeiro: Brasília: INL-MEC, 1975.
GONÇALVES, Maria Silva. Contos: Graciliano Ramos. São Paulo: Companhia
Nacional, 1979 (série literária; 4).
OLIVEIRA, Cândido. Súmula de literatura brasileira. 3 ed. São Paulo: Biblos,
s.d.
PÓLVORA, Hélio. Graciliano & outros. Rio de Janeiro: Livraria Francisco
Alves,1975.
RAMOS, Graciliano. Insônia. 7 ed. São Paulo: Livraria Martins, 1965.
REVISTA Literatura Comentada. Gonçalves Dias. São Paulo, Abril Cultural,
1979.
SUMÁRIO
Leituras Diversas: Crônicas, Ensaios e Contos
| 193
CAPITU:
A MONA LISA BRASILEIRA
Mercedes Cavalcanti
É fato: reduziu-se consideravelmente o vocabulário do brasileiro. Ocorre uma espécie de desconstrução da linguagem, literalmente dilapidada através de diversos tipos de cortes, recortes,
elipses, modificações e adaptações.
Eis que a juventude cibernética, ancorada nas premências da
celeridade, recorre, na digitação das mensagens, às adequações
que julga imprescindíveis. Para tal, utiliza um espectro vocabular
pobre, de reduzidos verbetes. E promove a ablação de partes constitutivas das palavras, como desinências, sufixos e por aí vai. Tudo
em nome do pragmatismo imposto pela pressa congênita dos dias
atuais.
Visa-se, voluntariamente, a redução discursiva. Procede-se a
um encolhimento, à amputação de palavras ou partes de um vocábulo. Corrompe-se, assim, a inteireza do próprio texto, transformado em verdadeiras mensagens cifradas e telegráficas.
Na verdade, surge um novo código linguístico. Uma espécie
de dialeto. Uma injunção dos tempos atuais, atrelados ao império
da urgência a contaminar tudo e todos. Consequência da celeridade ditada pela tecnologia de ponta e pela comunicação virtual
proporcionada desde as primícias da internet.
Eis que, de tanto escrever “nois” em vez de “nós”, no intuito
de evitar a “perda de tempo” de colocação do acento agudo, muitos jovens das gerações recentes acabam adotando o primeiro. Povoam de formas não dicionarizadas as redações escolares e omitem expressões de ligação. Determinam uma ciranda de erros ortográficos, aliados à supressão de elementos de coesão e conexão
entre as ideias.
Doutra parte, é de se notar que alguns terminam naufragando na ilusão do assim considerado fácil ou rápido. Não raro, ao
invés de facilitar, os tais mecanismos de facilitação e celeridade
SUMÁRIO
194 | M a g n o N i c o l a u ( O r g . )
acabam tornando ambígua a comunicação. Senão, vejamos: “Tb”
significaria “também”, ou “tudo bem”? E por aí vai…
Todavia, nem toda a magia do vernáculo tradicional se afoga
nas marés dos novos tempos. Afortunadamente, na contramão
desse circuito de verdadeiras intervenções cirúrgicas do idioma,
textos escritos em português castiço sobrevivem.
Em meio ao que alguns chegam até a apontar como um caos
linguístico, sobrevivem escritores que se consagraram, exatamente,
no manuseio do português apurado. Sua dimensão literária se
situa na direção oposta a todos os conceitos impostos pela geração
dos tablets, laptops, micros, smartphones e outras joias da tecnologias de ponta.
Assombra a escritura portuguesa e de todos os idiomas uma
engenhoca denominada Google Glass. O seu uso prescinde do
alfabeto ou dos conceitos de pictografia, ideograma etc. Trata-se de
uma revalorização do discurso meramente verbal.
Estarrecedor ou magnífico?
Conquista ou retrocesso?
Marcarão os novos horizontes uma abolição da palavra escrita?
Regressaremos aos tempos anteriores à invenção da escrita?
Enfim, desaprenderemos a ler e a escrever?
Entre os perfeccionistas do vernáculo que mantêm o seu cetro e a sua coroa, encontra-se, obviamente, Machado de Assis. Até
hoje, nada arranhou a inteireza e a elegância da sua linguagem.
Inquestionável é o carisma desse bastião da estética literária e correção textual, mesmo numa época em que o discurso escrito se
torna tão coloquial e reducionista.
Com efeito, esse autor transcende os tempos. Romancista,
contista, poeta, dramaturgo, cronista, jornalista e crítico literário, a
sua obra é tão universal que, embora proveniente do século XIX,
consegue a proeza de conservar um ethos de novidade e contemporaneidade. Quase um milagre, por assim dizer.
Inquestionável é o seu mérito criativo e estilístico. Nenhum
escritor brasileiro do passado ou do presente possui, como ele,
uma unanimidade tão evidente. E olhe que a linguagem machadiana, essencialmente castiça e burilada, de técnica narrativa irretocável, não é nada fácil ao cotejamento do leitor. Sobretudo, quando
SUMÁRIO
Leituras Diversas: Crônicas, Ensaios e Contos
| 195
se trata do receptor de hoje, ele próprio acostumado – não raro,
inconscientemente – a torturar a língua vernácula.
Seja na dimensão da linguagem, da semântica ou do imaginário, Machado de Assis é um mestre. A aura profunda e densa a
revestir a sua escritura se mantém intacta. Pois o escritor é exímio
em toda a dimensão do fazer literário, desde a escolha ao manejo
das palavras, como também no labor de proceder à sua interrelação gramatical e estilística. Assim, os alicerces bem sedimentados
de sua tessitura vertical não sofrem com as tentativas de arranhões
perpetradas pela objetividade de chips e pendrives.
Absoluto permanece, na criação de temas e elaboração entrechos sofisticados. Suas reflexões psicologizantes refletem a
complexidade da alma humana. Símbolo de elegância literária,
sobrevive, incólume, em meio à panaceia tecnológica e tecnicista
que não cessa de produzir novas peças e de ensejar renovados
assaltos à língua brasileira.
Machado de Assis resiste e reina. Celebrado em todas as faixas etárias, lembrado em rodas literárias ou não literárias, citado
sob quaisquer pretextos, até mesmo (ou principalmente) em mesas
de bar.
Nesse contexto, nasce e renasce, invariavelmente, Capitu. Eis
uma personagem que, a exemplo da Mona Lisa, de Leonardo da
Vinci (século XVI), segue eternamente viva, na esteira do enigma e
na aura do mistério.
Se a Gioconda se perpetua pelo sorriso, Capitu se eterniza
pelo olhar. Delas emana um quê de secreto, subjaz um élan de
mistério. Ambas paridas no talento artístico e na compreensão
arguta da ambiguidade do ser. Reflexão é fundamental. Sensibilidade é preciso.
Não obstante a mudança dos usos, costumes, tradições, modismos estéticos e visões de mundo, ninguém ousa desentronizar
esses dois monstros sagrados. Eis que a passagem dos séculos não
desvaneceu a beleza e integridade de sua obra. Continua a alçar
píncaros elevados, seja no conceito dos mais abalizados críticos,
seja na interpretação ingênua da recepção mais desarmada.
Pese as demais criações extraordinárias da produção de ambos, o certo é que voam, sobretudo, nas asas dessas duas indeléveis protagonistas. Duas personagens gloriosas, frutos do sortilégio da criação. Musas a vencer os tempos.
SUMÁRIO
196 | M a g n o N i c o l a u ( O r g . )
A Mona Lisa, erigida na genialidade da magia pictórica, desenhada e pincelada na perfeição dos traços, tintas e cores magistralmente fundidas e plasmadas pela alma de um artista. A Capitu,
construída no sortilégio da palavra exata, pinçada no éden do
imaginário, pensada, lapidada, distribuída, elaborada e confabulada pelo sensibilidade de um Escritor.
Descritas ou desenhadas, ambas transmitem uma doçura cativante, mas, igualmente, uma força tão acachapante, que beira a
violência. Aparentemente frágeis pela sua condição feminina,
emanam uma energia intensa, avassaladora. Seja no olhar, seja no
sorriso, seduzem e agridem. Pecadoras e sublimes, capturam,
agarram o receptor pelos sentidos, mas também pela sensibilidade.
Assim, a catarse vem tão estética como emocional.
A tal ponto se amalgamam as personagens a seus autores,
que não se os concebe sem elas, ou essas sem os seus criadores.
Vejamos: seria factível imaginar um Da Vinci sem a Gioconda,
tesouro do Museu do Louvre? E, do mesmo modo, teria Machado
de Assis a mesma repercussão em nossos dias, sem a emblemática,
amada e odiada Capitu?
Isso nos devolve ao status quo da contemporaneidade. Massificação alucinada a cuspir novíssimas invenções a cada dia. Tempos profícuos a transmitir a falsa sensação de que tudo já existe à
priori. Época que anseia se reidentificar. Que tem horror ao déjà vu.
Que sai em busca desesperada de uma originalidade atávica e utópica.
Tempos que, em última instância, apelam para a banalização
da arte. Obras ditas artísticas são criadas, recriadas, substituídas,
reinventadas e multiplicadas no ritmo alucinante de convulsões
estroboscópicas.
E então, seria verossímil que brotassem os mais absurdos vieses da distorção. A expressão “Bosta”, em um passe de mágica,
viraria um poema magistral, originalíssimo, a fazer jus à aclamação da crítica universal. E a mesma “bosta”, in loco, palpável, em
decomposição e coberta de moscas, auferiria ao brilhante artista
plástico que a expusesse no museu, um respeito unânime pelos
mais seletos curadores.
Diante dessa gloriosa alquimia de valores, quem restará no
porvir?
SUMÁRIO
Leituras Diversas: Crônicas, Ensaios e Contos
| 197
Desconfio que o aroma das flores sempre cativará mais que
o estrume. Portanto, a exemplo da Gioconda, a Capitu não tem que
temer o esquecimento. Passarão as eras, e Machado de Assis ainda
estará lá, ostentando, por todo o sempre, os olhos de ressaca de sua
heroína-mor.
SUMÁRIO
198 | M a g n o N i c o l a u ( O r g . )
A VITÓRIA DO FRACASSO
Mona Lisa Bezerra Teixeira
"– Então vai, meu filho. Ordeno-te que sofras a esperança"
A maçã no escuro
Os personagens criados por Clarice Lispector não possuem o
mínimo desejo de obter destaque no meio social, de fazer algo
grandioso para serem diferenciados dos demais, comportamento
comum na sociedade moderna: a do homem empreendedor, que
vence os obstáculos para mais à frente se orgulhar da trajetória.
Eles raramente sonham, e quando isso acontece, provocam o riso,
como Macabéa em A hora da estrela1. No entanto, é a angústia que
vai predominar nos seus protagonistas. Em Um sopro de vida2, o
"Autor" comenta sobre a sua criação: "Ângela é muito parecida
com o meu contrário. Ter dentro de mim o contrário do que sou é
em essência imprescindível: não abro mão de minha luta e de minha indecisão e o fracasso – pois sou um grande fracassado – o
fracasso me serve de base para eu existir. Se eu fosse um vencedor?
morreria de tédio. 'Conseguir' não é o meu forte. Alimento-me do
que sobra de mim e é pouco. Sobra porém um certo secreto silêncio."
Michel Butor3, quando analisa o uso dos pronomes pessoais
no romance, fala sobre essa possibilidade que o "Autor" de Ângela
definiu: "...Todos sabem que o romancista constrói suas personagens, queira ele ou não, saiba ou não, a partir de elementos da sua
própria vida, que seus heróis são máscaras através das quais ele se
conta e se sonha, que o leitor não é puramente passivo mas que ele
reconstitui, a partir dos signos reunidos na página, uma visão ou
uma aventura, usando também ele o material que está à sua dispoLISPECTOR, Clarice. A hora da estrela. Rio de Janeiro: Rocco, 1999.
LISPECTOR, Clarice. Um sopro de vida. Rio de Janeiro: Rocco, 1999.
3 BUTOR, Michel. Repertório. São Paulo: Perspectiva, 1974. p.48
1
2
SUMÁRIO
Leituras Diversas: Crônicas, Ensaios e Contos
| 199
sição, isto é, sua própria memória, e que o sonho, ao qual ele assim
chega, ilumina aquilo que lhe falta". Portanto, o contrário do "Autor", que ele afirma ser a própria Ângela, na verdade é ele mesmo,
com suas vivências e frustrações refletidas na personagem, e que
cria um processo de dialética com o leitor, construindo uma atmosfera de identificação ou repulsa diante da obra. Joana em Perto do
coração selvagem, como é possível perceber pelas observações feitas
até agora, busca uma verdade, uma vida sem mentiras: "Nunca
terei pois uma diretriz, pensava meses depois de casada. Resvalo
de uma verdade a outra, sempre esquecida da primeira, sempre
insatisfeita. Sua vida era formada de pequenas vidas completas, de
círculos inteiros, fechados que se isolavam uns dos outros. Só que
no fim de cada um deles, em vez de Joana morrer e principiar a
vida noutro plano, inorgânico ou orgânico inferior, recomeçava a
vida no mesmo plano humano". (p.101)
Martim, de A maçã no escuro4, só se revela diante de uma
platéia de pedras: " – Imaginem – recomeçou então inesperadamente quando estava certo de que nada mais tinha a lhes dizer –
imaginem uma pessoa que tenha precisado de um ato de cólera,
disse para uma pedra pequena que o olhava com um rosto calmo
de criança. Essa pessoa foi vivendo, vivendo; e os outros também
imitavam com aplicação. Até que a coisa foi ficando muito confusa, sem a independência com que cada pedra está no seu lugar. E
não havia sequer como fugir de si porque os outros concretizavam,
com impassível insistência, a própria imagem dessa pessoa: cada
cara que essa pessoa olhava repetia em pesadelo tranqüilo o mesmo desvio. Como explicar a vocês – que têm a calma de não ter
futuro – que cada cara tenha falhado […]".(p.38) A tendência humana para a imitação, como fala Martim nesse trecho, é um aspecto sempre presente na escrita de Clarice Lispector. O homem, na
sua incapacidade de admitir o que realmente é, como um ser próprio, único diante do mundo, prefere se acomodar na segurança de
um padrão qualquer.
Em O lustre5, Virgínia busca involuntariamente sua identidade no meio da metrópole e nas relações mal resolvidas, e só vai
encontrá-la na morte: "E de súbito arrebatada pelo próprio espírito.
4
5
LISPECTOR, Clarice. A maçã no escuro. Rio de Janeiro: Rocco, 1998.
LISPECTOR, Clarice. O lustre. Rio de Janeiro: Rocco. 1999.
SUMÁRIO
200 | M a g n o N i c o l a u ( O r g . )
Era um momento extremamente íntimo e estranho – ela reconhecia
tudo isto, quantas vezes, quantas vezes o ensaiara sem saber [...] O
primeiro acontecimento real, o único fato que serviria de começo à
sua vida, livre como jogar um cálice de cristal pela janela."(p.259260) Para Benedito Nunes, em O drama da linguagem, no ensaio "A
narrativa monocêntrica", O lustre caracteriza-se por apresentar
uma errância exterior, no espaço. É possível dizer que a narrativa
acontece mediante um espaço, que mesmo não aparecendo em
todo o percurso da protagonista é sua referência de vida: a Granja
Quieta. As suas aventuras de infância com o irmão Daniel, a natureza, e o próprio espaço físico da casa, com a presença imponente
do lustre são a base da sua existência. Gilda de Mello e Souza6, em
seu artigo "O lustre" para o jornal O Estado de São Paulo em 14 de
julho de 1946, comenta a decadência de Granja Quieta. Um lugar
que já foi imponente e guarda os resquícios disso na figura do lustre e do tapete na sala. Para a pesquisadora esses objetos também
representam valores do passado que Virgínia quer superar, mas
não aponta que valores seriam estes. Mas também enfatiza a dificuldade da personagem em se adaptar às exigências do mundo e a
angústia para a sua vida que resulta disso.
Os heróis dos seus livros são figuras angustiadas, que se interrogam o tempo todo, não exercem liderança, não assumem o
controle de nenhuma situação. Martim passa por uma verdadeira
odisséia espiritual até ir ao encontro de sua essência, que resultará
em uma enorme frustração. É interessante observar a construção
da narrativa: o personagem principal foge de um fato, de um crime
que ele sustenta para si mesmo que cometeu, durante todo tempo.
No final, irá descobrir que não matou a mulher, e sua perplexidade
surge não por essa revelação, mas pelo comportamento acanalhado dos policiais, cheios de autoritarismo e deboche. Como analisa
Benedito Nunes, o fracasso triunfa em A maçã no escuro:"Como a
existência pessoal de Martim, que fracassa, também fracassa o dizer da narrativa. Todos os temas gerais, de ordem filosófica e religiosa – liberdade e ação, bem e mal, conhecimento e vida, intuição
e pensamento, o cotidiano e as coisas [...] podem ser reduzidos a
um só problema, latente ao itinerário do herói e à trajetória da
6
In: REMATE DE MALES (9). Campinas: IEL-Unicamp, 1989. p. 171-175.
SUMÁRIO
Leituras Diversas: Crônicas, Ensaios e Contos
| 201
própria narrativa, e que dá a esse romance uma latitude metafísico
religiosa; o problema do ser e do dizer." (p.57)
A primeira parte de A maçã no escuro7 se chama “Como se faz
um homem", sendo completamente diferente da expressão “o homem que se faz por si mesmo” – característica dos tempos da modernidade burguesa. Martim não busca ascensão, não possui o
desejo de subir na vida por conquistas de qualquer espécie. Desse
modo, a autora o aproxima, juntamente com outros personagens,
da nossa realidade, do mundo palpável cheio de frustrações e fracassos em que a maioria dos homens vive.
Ângela Pralini questiona sua trajetória de tal modo envolvida no processo de criação do "autor" que ela parece ter vida própria. “Por que quero fazer de mim um herói? Eu na verdade sou
anti-heróica. O que me atormenta é que tudo é 'por enquanto', nada é para sempre. A vida – a partir do momento em que se nasce –
é guiada, idealizada pelo sonho. Eu nada planejo, eu dou um salto
no escuro e mastigo trevas, às vezes, vejo o faiscar luminoso e puro
de três brilhantes que não são comíveis.”(p.89). Ou seja, Clarice
Lispector, em um universo de ficção, cria um “autor” que, por sua
vez, cria uma personagem para expor seus sentimentos, e mesmo
nesse plano não há idealizações.
Em "Linguagem e silêncio"8, ao analisar A maçã no escuro e A
paixão segundo G.H., Benedito Nunes comenta que o fracasso existencial correspondente aos personagens dos referidos romances,
equivale ao fracasso da tentativa do domínio da linguagem, e dialogam todo o tempo no mundo imaginário da autora. Mas na visão
do filósofo os personagens Martim e G.H não são "fracassados da
vida". Eles não atingem como todo ser humano a plenitude a que
aspiram, seja através da sabedoria, da ação ou do coração. O fracasso existencial que teria a conotação das concepções existenciais
ficaria mais evidente em Martim, quando ele chega ao final da sua
trajetória e percebe a impossibilidade de alcançar a glória na existência, aderindo desse modo ao Absurdo.
Com relação ao fracasso da linguagem, para o filósofo, na
obra de Clarice Lispector existe uma experimentação com a palavra que é trabalhada até o último estágio, no confronto decisivo
7
8
LISPECTOR, Clarice. A maçã no escuro. Rio de Janeiro: Rocco. 1998.
NUNES, Benedito. O dorso do tigre. São Paulo: Perspectiva, 1969.
SUMÁRIO
202 | M a g n o N i c o l a u ( O r g . )
entre a realidade e as possibilidades de expressão. O que acontece
com G.H é uma maneira de dirigir a linguagem para os limites
dela mesma: o inexpressivo, o abismo do ser nos seus primórdios,
em oposição à famosa fórmula de Wittgenstein: "devemos silenciar
a respeito daquilo sobre o qual nada se pode dizer". Clarice Lispector, na concepção do pesquisador, fala a respeito daquilo que nos
obriga ao silêncio, e reverte essa condição ao triunfo, pois consegue através de um domínio da palavra exprimir, por mais que em
inúmeras crônicas fale da dificuldade de escrever, o que é inacessível a uma grande maioria. Dessa maneira, o fracasso aqui analisado aproxima-se do que o crítico particulariza em suas observações, ainda que o tomemos de um outro ponto de vista: o de observar diretamente a condição social desses personagens enquanto
indivíduos que integram um sistema individualista e de disputa
nas mais diversas esferas de relacionamento.
SUMÁRIO
Leituras Diversas: Crônicas, Ensaios e Contos
| 203
POÉTICA DOS RIOS
Neide Medeiros Santos
O rio da minha aldeia não faz pensar em nada.
Quem está ao pé dele está só ao pé dele.
(Alberto Caeiro. Poema XX).
Um rio, sempre um rio, marca presença em um país, uma
região, uma cidade. Quando falamos em Paris, lembramo-nos do
Sena, se pensamos em Lisboa, surge a imagem do Tejo e a memória das naus conduzindo aqueles que partiram para conquistar
novas terras. São Paulo se associa ao rio Tietê. João Pessoa, ao Jaguaribe. Recife, a cidade das águas e das pontes, é banhada por
dois rios – Capibaribe e Beberibe. João Cabral de Melo Neto louvou os rios da sua cidade com o belo poema “Cão sem plumas”.
Um rio, sempre um rio, acompanha a vida dos habitantes de
grandes e de pequenas cidades. Por mais insignificantes que sejam
os rios têm suas histórias, seus encantos, sua poesia. A poética das
águas está presente na lírica de poetas de nações diferentes e em
épocas distintas. Para comprovar como se concretiza esse “devaneio” do rio, selecionamos textos representativos de Portugal,
França e do Brasil.
O primeiro exemplo é um poema bem conhecido de um dos
heterônimos de Fernando Pessoa – o poema X, de Alberto Caeiro. .
O rio do poeta é um rio que pertence a pouca gente, banha pequenas cidades, por ele não navegam grandes navios, ninguém sabe
“para onde ele vai/E donde ele vem”. O seu percurso difere do
Tejo, não nasce em terras altas de Espanha e “porque pertence a
menos gente” goza de mais liberdade e se torna maior do que o
Tejo. Dois excertos desse poema revelam o “sentimento” do eu
lírico com relação ao rio de sua aldeia:
O TEJO é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia,
Mas o Tejo não é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia
SUMÁRIO
204 | M a g n o N i c o l a u ( O r g . )
Porque o Tejo não é o rio que corre pela minha aldeia.
O Tejo tem grandes navios
E navega nela ainda,
Para aqueles que veem em tudo o que lá não está,
A memória das naus.
O Tejo desce de Espanha
E o Tejo entra no mar em Portugal.
Toda gente sabe isso,
Mas poucos sabem qual é o rio da minha aldeia
E para onde ele vai
E donde ele vem.
É por isso, porque pertence a menos gente,
É mais livre e maior o rio da minha aldeia.
[...]
O rio da minha aldeia não faz pensar em nada.
Quem está ao pé dele está só ao pé dele.
Gaston Bachelard, no livro “A Água e os Sonhos” descreve a
beleza dos riachos e rios de sua região. Nascido num canto da
Champagne, povoado de várzeas, o filósofo /poeta revela, em
texto memorialista, o prazer que sentia quando caminhava ao longo das margens dos rios – sonhava perto deles, ouvia a música das
águas. O sentar perto de um riacho levava-o a um devaneio profundo. Reproduzimos trechos de “A Água e os Sonhos”:
Nasci numa região de riachos e rios, num canto da Champagne povoado de várzeas, no Vallage, assim chamado por causa do grande número
de seus vales. A mais bela das moradas estaria para mim na concavidade de um pequeno vale, às margens da água corrente, à sombra curta dos salgueiros e dos vimeiros. (1989:08)
[...]
Fresca e clara é também a canção do rio. Realmente, o rumor das águas
assume com toda naturalidade as metáforas do frescor e da claridade.
As águas risonhas, os riachos irônicos, as cascatas ruidosamente alegres encontram-se nas mais variadas paisagens literárias. Esses rios,
esses chilreios são, ao que parece, a linguagem pueril da Natureza. No
riacho quem fala é a Natureza criança. (1989:34-35).
SUMÁRIO
Leituras Diversas: Crônicas, Ensaios e Contos
| 205
Moacy Cirne, no artístico livro “Poética das águas”, trabalho
que reúne prosa poética e fotografias de Candinha Bezerra, intertextualizou textos de Gaston Bachelard e ressaltou a beleza das
águas do Rio Grande do Norte, compreendendo paisagens do mar,
sertão do Seridó (águas de açudes, barreiros) e águas de rios e lagoas. Um fragmento de um dos seus textos é suficiente para demonstrar os elos intertextuais que o ligam à poética das águas bachelardianas:
A água de igual modo reflete todos os segredos, todos os mistérios. Para nós, que trazemos as marcas da nordestinidade, a água também se
realiza através de todas as esperanças. Procuremos nestas fotos os segredos e as lembranças das águas mais profundas, mais femininas,
mais cristalinas. E mais anônimas. (2003).
Ziraldo, em livro dedicado a crianças e jovens, “Menino do
rio doce”, enaltece os encantos de um rio totalmente brasileiro (São
Francisco), um rio que tem muitas histórias para contar, um rio
que nasce nas terras altas de Minas Gerais, um rio cheio de mistérios, como a da Cobra Grande que, na noite escura, desce o rio e
devora homens, mulheres, meninos e histórias mais reais como a
do companheiro de folganças que mergulhou nas águas fundas do
rio e não mais voltou.
O menino do rio “sabe que não há/ rio mais belo/ que o rio
de sua aldeia” e que por ele “vai-se para o mundo”. Aqui vamos
encontrar elementos intertextuais que ligam este texto de Ziraldo
ao poema XX, de Alberto Caeiro. O bonito livro de Ziraldo foi ilustrado e bordado pela família Dumont com desenhos de Demóstenes. Vejamos excertos do texto ziraldiano:
O remo guiando a canoa
pra baixo e pra cima
podia ser o entendimento
da vida
e de seu sentido
pois só o rio sabe
de onde ele vem,
pra onde ele vai
e o que faz aqui. (1996)
SUMÁRIO
206 | M a g n o N i c o l a u ( O r g . )
[...]
O rio ensinou, porém,
que, um dia, o menino
ia dividir-se em dois
e, do seu jeito, partir
(pois que pelo rio
vai-se para o mundo):
os braços feitos braçada,
os pés botados na estrada,
a sua estrada é o rio. ( 1996)
Nos textos poéticos que selecionamos, já que consideramos
os de Bachelard e de Cirne também poéticos, é visível a participação do eu do poeta, a presença de relações intertextuais e o acumpliciamento poeta/leitor. A leitura dos poemas leva ao sonho, ao
devaneio e a navegar por águas de rios nunca “dantes navegadas”.
Caeiro apresenta o rio de sua aldeia portuguesa como o seu
rio; Bachelard é todo sensorial ao descrever as “águas risonhas, os
riachos irônicos e as cascatas ruidosamente alegres” da região
francesa; Moacy intertextualiza com Bachelard quando fala nas
águas profundas, femininas, anônimas. Ziraldo é o menino/poeta
que acompanha o rio brasileiro na sua trajetória terrestre/ temporal.
Na leitura que fizemos destes textos não houve a pretensão
de dissertar sobre teorias poéticas, antes procuramos sentir e ouvir
as vozes dos textos, caminhar ao sabor da poética dos rios.
REFERÊNCIAS
BACHELARD, Gaston. A Água e os Sonhos: ensaios sobre a imaginação da
matéria. Tradução Antonio de Pádua Danesi. São Paulo: Martins Fontes, 1989,
202p.
BEZERRA, Candinha e CIRNE, Moacy. Poética das águas. Natal: Fundação
Hélio Galvão, 2003.
PESSOA, Fernando Antônio Nogueira. Seleção Poética. Pref. de Maria Eliete
Galhoz. Rio de Janeiro: Instituto Nacional do Livro, 1971, 288p.
ZIRALDO. Menino do rio doce. Ilustrações sobre desenhos de Demóstenes.
São Paulo: Companhia das Letrinhas, 1996.
SUMÁRIO
Leituras Diversas: Crônicas, Ensaios e Contos
| 207
EVOLUÇÃO DOS DIREITOS DA MULHER
Onélia Setúbal Rocha de Queiroga
1. Introdução
A abordagem em torno do vocábulo “mulher” leva-nos a
percorrer um caminho de retrospecção acerca de sua posição na
sociedade. O predomínio da mulher, no grupo social, ocorreu na
chamada sociedade matriarcal. Embora tenha exercido o controle
econômico e familiar nesses primeiros tempos, não despertou nela,
pelo menos, a tentativa de sobrepujar-se ao homem.
A ideia de dar maior sistematização à estrutura familiar fez
surgir, então, a monogamia, como forma de consolidar a
convivência, tornando-a mais segura. A mulher foi liberada das
suas atividades laborais vinculadas à economia de consumo que
passaram ao controle do homem, dando início, nesse exato
momento, à sociedade patriarcal.
A ascensão do homem à direção da produção mudou
radicalmente a situação da mulher que foi relegada a segundo
plano, o que levou Engels1 a afirmar que o desmoronamento do
primitivo direito materno foi “a grande derrota histórica do sexo
feminino em todo mundo”. E acrescenta que a partir daí “a mulher
passou a ser escrava da luxúria do homem e mero instrumento de
reprodução”.
Will Durant2 informa-nos acerca da situação da mulher na
família patriarcal, assim:
“Esta entrada do patriarcalismo foi fatal à mulher que era levada ao casamento exatamente como um escravo à feira. Figurava
como parte da herança quando o marido morria; e em alguns
Engels, Friedrich, A origem da família, da propriedade privada e do Estado,
Editora Civilização Brasileira, 1982
2 Durant, Will, Nova Herança Oriental, Edit. Nacional, 1942.
1
SUMÁRIO
208 | M a g n o N i c o l a u ( O r g . )
lugares (Nova Guiné, Nova Hébridas, Ilhas Salomão, Fiji, Índia
etc.) estrangulavam-na e enterravam-na com o marido morto,
ou tinha de suicidar-se a fim de servi-lo no outro mundo. O
homem reservava para si o privilégio de exercitar o sexo fora de
casa, as mulheres tinham de ater-se à mais perfeita castidade
antes do casamento e à mais completa fidelidade depois”.
2. Evolução dos direitos da mulher
O patriarcado, ao longo dos tempos, vem cedendo lugar a
um sistema híbrido de domínio do homem e da mulher no desempenho das atividades profissionais e familiares. Apesar de todos os
avanços buscados pelas mulheres, principalmente após a consagração do princípio da igualdade entre todos, o patriarcado ainda
subsiste em muitas nações, mesmo nas chamadas civilizadas, através de manifestações primitivas de revide e inaceitação de comportamentos permitidos por lei, e surgidos em decorrência das
batalhas encetadas pelas feministas.
O século XX é marcado na história como o período em que
as mulheres começaram realmente a se organizar, discutindo temas como desigualdades, costumes, sistemas legais que a marginalizaram. Daí por diante não mais pararam de lutar. Surgiram,
então, o primeiro Manifesto Feminista lançado em Sêneca Fall, nos
Estados Unidos, e a criação da Federação Internacional das Mulheres de Carreira Jurídica, em 1928, em Paris, com filiadas em muitos
países, entre eles o Brasil, cuja Associação das Mulheres de Carreira Jurídica, nasceu em 1985.
As transformações ocorridas na vida da mulher, permitindolhe ocupar espaços que até recentemente eram exclusivos dos homens, provocaram uma reação machista do sexo oposto, inerente
ao inconformismo próprio de quem não aceita compartilhar o poder e o domínio.
2.1. Incapacidade da mulher
A mulher, durante muitos séculos, foi considerada incapaz
ou relativamente incapaz. Em Roma, à mulher não era admitida a
capacidade plena, condição que subsistiu até o século IV a. C. Uma
luz no túnel, à essa época, apareceu: a “Lei das Doze Tábuas”, ao
SUMÁRIO
Leituras Diversas: Crônicas, Ensaios e Contos
| 209
estabelecer o dogma da perda do poder marital, caso a mulher
interrompesse a coabitação a cada ano, durante três noites seguidas, já instituía, naquele tempo, o que iríamos conhecer como separação judicial ou desquite.
Na Idade Média, o quadro restritivo de direito da mulher
persistiu, sendo-lhe reservadas, apenas, duas funções: a) a do lar;
b) a de natureza reprodutora. Não escolhia com quem se casar; a
decisão do seu futuro cabia ao pai.
A questão da capacidade da mulher foi tema dos mais debatidos e constituiu-se em objeto de luta a partir dos movimentos
desencadeados pelas mulheres do mundo inteiro, no grande esforço histórico para a conquista da cidadania. A mulher moderna,
vitoriosa na conquista da capacidade plena, ainda encontra, na
prática, reações da própria sociedade e do sexo oposto, à sua efetiva aplicação.
2. 2. A situação da mulher brasileira
A mulher brasileira, no período colonial, era excluída da
educação, sob o absurdo pretexto de que devia obediência exclusiva ao marido e à religião. Outro fundamento proibitivo da educação às mulheres baseava-se no temor de que em adquirindo conhecimento pudesse lutar por seus direitos e tentar, desta forma,
igualarem-se ao homem.
A vinda da Corte Portuguesa para o Brasil deu à mulher a
chance de estudar, embora ligada aos dois elos referidos. A situação da mulher negra era bem mais complicada, pois, além de escrava era usada como objeto de prazer do seu “senhor” e de outros, caso fosse alugada para tal fim.
A origem, entre nós, dos desatinos cometidos pelos homens
contra as mulheres está nas Ordenações do Reino, mais precisamente, no Livro V das Ordenações Filipinas. Exemplo claro dessa
situação é o Título XXXVIII, dessa coletânea de Leis – Do que matou sua mulher por achá-la em adultério – cujo conteúdo é o seguinte:
“Achando o homem casado sua mulher em adultério, licitamente poderá matá-la como assim o adúltero, salvo se o marido
for peão, e o adúltero Fidalgo, ou nosso Desembargador, ou pessoas de maior qualidade. Porém, quando matasse alguma das sobre-
SUMÁRIO
210 | M a g n o N i c o l a u ( O r g . )
ditas pessoas, achando-a com sua mulher em adultério, não morrerá por isso, mas será degredado para África com pregão na audiência pelo tempo, que aos julgadores bem parecer, segundo a pessoa que matar, não passando de três anos”.
Na fase imperial, com o advento da Constituição de 1824, foram criadas escolas destinadas à educação das mulheres, mantendo-se, porém, a proibição de freqüentarem escolas masculinas.
No período republicano, a igreja foi separada do Estado (Decreto 119 – A, de 07 de janeiro de 1890) e, conseqüentemente, surge
o casamento civil, através do Decreto nº 181, de 04 de janeiro de
1890.
A representação da família e da administração dos bens
competiam ao marido. Quanto àquela, o art. 56, § 3º, do referido
Decreto, expressamente, estabelecia:
Art. 56 – São efeitos do casamento:
§ 3º - Investir o marido de fixar o domicílio da família, de
autorizar a profissão da mulher e dirigir a educação dos filhos.
Este Decreto, contudo, não trouxe inovações, pois preservou
as Ordenações quase que na íntegra, mantendo as discriminações
contra as mulheres, revogando, apenas, o direito de o marido castigar a mulher e os filhos.
O Código Civil de 1916, apesar das decantadas e consagradas idéias liberais, preferiu abraçar idéias conservadoras em relação à mulher. Essa tendência é manifesta em vários dispositivos,
tais como: art. 6º, II, art. 9º, § 1º, I e arts. 240, 274 e 380, onde encontramos discriminações explícitas contra a mulher, quer limitando a
sua capacidade no tocante à prática de determinados atos, quer
tornando-a submissa ao homem, chefe da sociedade conjugal, senhor de sua vida e de suas decisões, autorizando e escolhendo sua
profissão, administrando seus bens particulares, fixando e mudando o domicílio da família, ficando a mulher, assim, em qualquer hipótese, sempre em plano inferior.
A mulher, com a Revolução de 30, conquistou os seus direitos políticos. O Código Eleitoral de 1932 (Decreto nº 21.076) garantiu-lhe o direito de voto em seu art. 2º. A idade exigida para todos
era de 21 anos, reduzida pela Constituição Federal/1934 para 18
anos, mantida pela Constituição Federal de 1988, com um acrésci-
SUMÁRIO
Leituras Diversas: Crônicas, Ensaios e Contos
| 211
mo do art. 14, § 1º, inciso II, alínea c, permitindo o voto facultativo
para os maiores de dezesseis e menores de dezoito anos.
Em 27 de agosto de 1962, foi aprovada pelo Congresso Nacional e promulgada pelo Presidente João Goulart a Lei 4.121 – Estatuto da Mulher Casada que introduziu alterações substanciais no
Código Civil de 1916, ampliando essa Lei os direitos da mulher
casada.
Quinze anos depois, as mulheres ganham uma batalha encetada na década de quarenta pelo jurista Nelson Carneiro. A luta foi
muita dura, sendo o seu primeiro projeto acoimado pelos conservadores de “destruidor da família”; e, nos muros lia-se escrito a
piche ou carvão “o 122 é imoral”. Imoral, porque assegurava, no
seu texto, o direito a pensão e alimento à companheira do homem
solteiro, desquitado ou viúvo. Foi dele, também, o projeto que elasteceu as possibilidades de reconhecimento dos filhos adulterinos
(Lei 883/49).
Para ilustrar essa fase de luta pelo Divórcio, destacamos a
opinião do Senador Moniz Sodré, arauto das causas da liberdade:
“O divórcio hoje quase não tem impugnadores senão entre os
que se deixam influenciar por motivos puramente religiosos, ou
velhos preconceitos sociais. Ele é o único remédio para as desgraças definitivas do lar. Há casos até em que ele se impõe como medida imprescindível de moralidade, de justiça, de higiene social. O problema da felicidade no casamento prende-se intimamente à questão da emancipação da mulher. Quando ela
tiver na sociedade uma situação de independência econômica;
quando o casamento não for para ela um meio de vida, condição e conforto material; quando ela precisar de um marido como um marido digno precisa da mulher, isto é, como uma caricatura indispensável às exigências fisiopsicológicas de nosso
afeto, um amparo moral na nossa existência, uma força criadora, inspiradora, propulsora em todas as manifestações da nossa
atividade mental; quando, enfim, a mulher, por uma educação
perfeita, puder ser a companheira e a colaboradora nas lutas da
vida, a felicidade conjugal estará plenamente assegurada. Porque esta só se obtém e conserva pelos laços morais, pelas prisões afetivas, que zombam de todos os códigos, sempre precários no artifício das suas regras sobre assuntos do coração”.
SUMÁRIO
212 | M a g n o N i c o l a u ( O r g . )
O Divórcio foi introduzido no Brasil pela Emenda Constitucional nº 9, de 28 de junho de 1977. Com a EC n. 66/2010, o divórcio tornou-se um direito potestativo das partes, podendo ser concedido de plano, deixando para o curso do processo a discussão
sobre bens, guarda, alimentos e dano moral.
O Código Civil de 2002, em consonância com os ditames
constitucionais (art. 1º, inciso III, art. 5º, inciso I e art. 226, parágrafo 5º), privilegia a dignidade da pessoa humana, no Livro do Direito de Família, consubstanciado na consagração da igualdade entre
os cônjuges, tendo o marido e a mulher os mesmos direitos e deveres (NCC, art. 1.511). Ambos são tratados igualmente, sem que
haja prevalência de um ou de outro no comando das relações pessoais e patrimoniais. Atuam conjuntamente frente à administração
do patrimônio comum e na chefia da sociedade conjugal.
O princípio da igualdade entre os sexos trouxe, como não
poderia deixar de ser, de um lado, a quebra do predomínio da
mulher, na guarda dos filhos (NCC, art. 1.584), e, de outro, a sua
obrigação de “concorrer nas despesas necessárias à criação e educação dos filhos”, sendo que as quotas dessa participação serão
fixadas pelo juiz e depositadas em agência bancária, em conta especial” (art. 1.703 CC/2002), conforme abordagem interessante
feita pelo Des. Queiroga no seu livro – Curso de Direito Civil –
Direito de Família.
Finalmente surge a Lei nº 11.340/2006, conhecida como Lei
Maria da Penha que alterou o Código Penal e permitiu que os
agressores passassem a ser presos em flagrante ou que tivessem a
prisão preventiva decretada. A lei também acabou com as penas
pecuniárias, aquelas em que o réu é condenado a pagar apenas
sextas básicas ou multa.
3. Conclusão
A violência contra a mulher no Brasil, infelizmente, é ainda
uma realidade. A violência contra as mulheres ocorre no âmbito da
família ou unidade doméstica ou em qualquer relação interpessoal
que o agressor compartilhe, sendo as mais comuns o assassinato
dos cônjuges, a agressão doméstica, o abuso e o estupro.
SUMÁRIO
Leituras Diversas: Crônicas, Ensaios e Contos
| 213
As mulheres, vítimas desses atos criminosos, ou perdem a
vida, o bem maior e mais valioso que têm, ou ficam intensamente
vitimadas, como no estupro, um dos fatos delituosos mais traumatizantes, com conseqüências de estresse, seqüelas psicológicas,
reações emocionais severas, de medo, raiva, com mudança da vida
normal da vítima.
A mulher, para garantir a liberdade e igualdade entre todos
conquistadas, precisa cultuar o seu passado de luta, mas não pode
acomodar-se, tem que olhar para o futuro, buscando as mudanças
do momento presente que persiste em ficar. Os dissabores certamente virão, mas a glória do avançar para o novo somente será
sentida muito tempo depois de se transpor os limites do hoje para
o amanhã, então, é que será reconhecido que os esforços não foram
em vão.
A inesgotável perseguição de novos ideais é que levará a
mulher a fazer o que tem de ser feito. É por isso que destaco todas
as mulheres e o homens valorosos que nos ajudaram e ajudam: a
Tobias Barreto e Nelson Carneiro e, no meu caso, o meu marido
que, pacientemente, suporta todas as minhas arrancadas idealistas;
e, especialmente, à grande imortal Rachel de Queiroz, mulher além
do seu tempo, a única jovem a participar, em Fortaleza, das reuniões do grupo dos literatos, no Café Globo, causando, por isso, escândalo. Foi ela, ainda, que corajosa e decidida soube fazer valer,
em circunstâncias de risco pessoal, as suas idéias e a trama do romance “João Miguel”, cuja mudança era exigida pelo Partido, por
considerá-la uma afronta à classe operária. Num galpão deserto,
no cais do porto, do Rio, após receber, do Comitê Julgador, a única
cópia do livro, gritou: “Eu não conheço nos companheiros condições literárias para opinar sobre a minha obra. Não vou fazer correção nenhuma. E passar bem!” Da audácia à expulsão, foi um
átimo.
Toda a nossa luta será perfeita, se vencermos a maior de todas as batalhas: a de chegar à família reintegrada, pois esta célula
mínima da estrutura da urbe é a grande esperança para a recomposição deste mundo selvagem e conturbado, onde a áurea mercadoria vale mais que a leveza da alma.
E essa é a grande arrancada de todos nós, homens e mulheres, neste milênio. Doravante, é pensar, sentir e fazer, porque,
quando o pensamento, o sentimento e a ação marcham juntos na
SUMÁRIO
214 | M a g n o N i c o l a u ( O r g . )
mesma direção, o ser se integra e o ideal deixa de ser quimera,
para ser realidade, sonho concretizado.
SUMÁRIO
Leituras Diversas: Crônicas, Ensaios e Contos
| 215
VIVÊNCIAS E ALZHEIMER
NA FLORESTA AMAZÔNICA
Reginâmio Bonifácio de Lima
Meu nome é Maria, tenho 82 anos. Eu moro aqui no Palheiral há 38 anos... eu sou de Sena Madureira, nasci lá em cima no Rio
Iaco, 10 dia e dias de viagem, subindo de rio acima. Nasci num
lugar chamado Jaguari, lá era donde morava mamãe e meu pai,
né? Aí eu nasci lá, nasceu eu e outra... Minha mãe separou do meu
pai... E meu pai, a outra, ele quis pra ele... e levou... só deixou eu...
Aí eu nasci em 25, em 1925, isso aí eu não perco... 25... 9 de outubro
de 1925.
Aí quando eu nasci, um ano e pouco nasceu a outra, a outra
tava com três mês de nascida, o meu pai morreu. Aí meu pai morreu e minha mãe foi sofrer com nós duas, porque por lá não tinha
nada... O pessoal lá em cima era pobre... Aí minha mãe foi vendendo as coisas... A última coisa que minha mãe vendeu do meu
pai foi um rifle e uma caixa de bala. Dizia ela que vendeu pra poder dá comida pra nós. Aí ela ficou na casa da minha avó. Era três
viúva, minha bisavó, minha avó e a mamãe. Aí foi indo... foi indo...
quando acabou-se tudo. Aí a mamãe disse: “Agora, sim, o que é
que eu vou dar pra essas filhas comer?!” Aí minha mãe foi e disse:
“Se aparecesse um negro...” – ela queria”. De repente, apareceu
um negro lá. Ela quis. Quis e foi sofrer. Foi sofrer ela e eu... Aí ela
casou-se, fomos embora pro centro. Lá, a outra minha irmã, morreu à míngua. Lá, as pessoas não sabia o que era doença. Aí pegou
uma gripe... que gripe foi essa que ela morreu?! Só pode ter sido de
pneumonia. Aí morreu... Fiquei eu pra sofrer na mão desse padrasto.
Vai querer saber da minha vida, né?! Foi pra sofrer desse
padrasto. Quando minha irmã morreu eu tinha quatro anos e ela
tinha três, mas ainda hoje eu me lembro da minha irmã como se
fosse hoje. Aí eu fiquei... e fiquei... Aí, mamãe foi dando filho desse
outro. Desse outro, mamãe teve seis filhos. Mas, ele era muito ruim
SUMÁRIO
216 | M a g n o N i c o l a u ( O r g . )
pra mamãe e muito ruim pra mim... Ele batia na mamãe, ele me
açoitava.
Com sete anos eu comecei a cortar sete seringueira, parece
mentira, eu fazia tudo... Carregava água numa latinha assim...
numa vertente longe. Aí eu pegava, corria... corria... aí corria... aí
cortava essas sete seringueira na mata. A tigela era umas latas. Aí
na mata... era só dentro da mata... Aí, no meio do verão, eu enchi
uma lata desse tamanho com leite. Aí eu enchi, mamãe não sabia
que eu cortava, e nem sabia dessa lata de leite que eu tava enchendo. Aí quando eu enchi, porque ela botava era eu pra varrer debaixo da casa... Aí quando eu enchi, o bolão com um pau enfiado assim. Aquilo eu fiz pra brincar mais o outro. Aí botei lá de novo, a
lata com outro pau... Aí ela viu eu com aquilo. “Pra que isso aí,
Nena?! “Mamãe, isso aqui eu é pra eu brincar mais o Raimundo”.
“Me dê isso, Nena!” “Não, mamãe. Não fique, não, me dê...” Aí
quando meu padrastro chegava, deixava o leite lá. Ia ficando lá no
defumador pra aquecer o leite, acender a fornalha, aí ela ia roubando o leite, passando naquilo e botando lá outros do defumador.
Foi indo... foi indo... Com um pouco, ela tava com um bichona
assim... E eu cortando, e enchendo a outra. “Cadê, Nena?!” “Tô
não.” “Não?!” Aí ela foi e vendeu. Meu padrasto não me dava uma
caixa de fósforo, um palito... Aí ela foi comprar, um metro e não
sei quanto de uma fazenda. Eu ainda me lembro o nome dessa
fazenda... fazenda ainda vermelha, com umas pintinha branca.
Deu pra fazer uma calça pra mim e um vestido. Daí foi, e no final
do ano, eu aparecia com a outra. Aí ela disse: “Me dê!” E tornou a
fazer do mesmo jeito, ela vendeu, aí me comprou a minha sandália.
Aí eu vinha embora. Você pensa que eu comia? Era difícil...
A semana que comia duas três vez, se eu ia comer... Ela alegava a
comida que eu comia. Aí eu deixava lá, e ia-me embora. O que eu
comia... eu chupava uma cana na mata, eu pegava uma fruta, pegava outra... E a minha vida era essa. Com treze anos eu comecei a
ir pras festas. Aí quando ia, quando eu chegava minha mãe tinha
apanhado. Eu dizia: “Mamãe, eu vou acabar com esse moleque
sem-vergonha! Eu vou matar ele, nem que seja com pedaço de
pau”. Aí eu fiquei... Mamãe não me contava nada quando ele batia,
ela sabia que eu ia e matava, né?!
SUMÁRIO
Leituras Diversas: Crônicas, Ensaios e Contos
| 217
Aí casei perto dos 19 anos, só me casei porque eu não tinha
pai, mas não que eu quisesse me casar. Eu não gostava do noivo,
nem nada, aí me casei. Aí eu disse pra minha mãe: “Mamãe, agora
o meu sofrimento vai dobrar”. Ela disse: “Vai não”. “Porque aí eu
vou ter filho, vou ficar amarrada dentro de casa, porque eu... se eu
só, sozinha, eu ando pra todo o canto... E, casada, pior...” Foi dito e
feito. Me casei, e todo ano era um filho, tive doze filhos e três aborto, que saiu lá pelo seringal. Aí ele era como bem-te-vi, dias aqui,
dois anos acolá, ó meu Deus. Eu disse: “Um dia eu saio disso”. Foi
indo... Aí eu vi... eu fui tomar o fogo desse cara, tomei o fogo dele.
Também você deixe de ser como bem-te-vi, aí passava três anos
num canto, corria pro outro, correndo o Iaco quase todo. Aí fomo
pro centro de Santa Alegria... Lá, passamos quatro ano, eu vendo
um instante deixar um filho enterrado lá com tanta malária. E saímos de lá... Aí eu disse: “Graças a Deus” – ele veio aqui pra Rio
Branco. Botou um roçado nessa colônia que nós vivemos, aí foi
buscar nós e o Adolfo. E ia me virando com meeira, e eu me virando fazendo farinha pra dar comida pra melhorar, ralando no ralo...
Aí ele chegou lá dizendo: “Vamos morrer de fome em Rio Branco”.
Eu falei: “Nós não vamos morrer de fome, porque Deus é grande”.
Aí foi quando nós passamos aqui pra Rio Branco, pras colônia. Na
colônia, dobrou o serviço, porque aí eu cuidava de roçado, eu chegava tomava banho. Aí vamos cuidar de tabaco, vamos cuidar de
debulhar feijão, até às onze horas da noite. Me levantava duas horas da madrugada. Olha, o fogo tava queimando as minhas palheiras... eu metia dos pés e ia apagar. Não era mais pra mim tá viva
hoje.
Aí quando morreu um filho meu, meu caçula... E com sete
anos, dentro os oito, aí eu fiquei lá, jogada... Com quatro dia, o
Adolfo foi lá e eu tava dentro de uma rede com a mesma roupa.
Sem comer. O Adolfo: “Papai, eu vou levar mamãe pra rua”. “Pode levar.”. “Mamãe, vamos se arrumar”. Aí, me levou lá pro açude
que tinha assim... “Mamãe, toma banho”. Aí tomei banho, me troquei. Aí arrumei uma roupinha e viemos embora. Saí bem devagarzinho, até chegar na rodagem pra pegar um carro, aí vim embora.
Passei três anos sem dar notícia, se era dia ou se era noite.
Aí, com três nos eu melhorei. Nas mãos dos médicos... primeiro eu
fui pra mãe do Mosarino, do Mosarino eu passei pro... “Eu vou ver
SUMÁRIO
218 | M a g n o N i c o l a u ( O r g . )
se eu dou jeito na tua mãe”. Aí sofri... e sofri... Aí nunca mais eu
voltei pra colônia, ia só a passeio. Aí fiquemos... Adolfo tinha um
quartinho alugado, e lá com uma tia, Adolfo ele deu um quartinho
pra nós morar. Aí vimos pra essa casa, travessa Rio Branco, lá nós
passemos quatro anos. O Adolfo lutou pra comprar essa casa da
Graziele filha da Filó, ela não vendeu. Aí o Adolfo veio e comprou
essa daqui. Aí viemos pra essa daqui, viemos chegamos meianoite. Eu disse: “Não sei aonde nós vamos”. Aí ficamos, aqui as
casinhas de palha, praqui e praculá... A velha Nenê não morava
aqui ainda, morava a Guilhermina ali. Aí ficamos, aí foi levantada
a igreja... Aí foi indo... foi indo... Aí fiquemos aqui. Aqui a casa era
bem pequenininha, os pequenos chamavam era de batelão porque
quando chovia ficava tudo alagado debaixo de casa. E a casa era
dessa largura aqui, não dava pra atar uma rede.
Antes de vir pra cá, ante de eu vir pra cá, eu tava na Cadeia
Velha, eu morava na colônia. Da colônia, eu adoeci. Aí esse filho
trouxe eu pra rua... Aí eu morava na Cadeia Velha, na travessa Rio
Branco. Aí, de lá, eles pelejaram, até que compraram esse canto
aqui. Ele... uma travessinha pequena, aí eles venderam o cavalo,
venderam um garrote, aí compraram isso aqui, né?! Aí eu vim morar aqui.
Aqui... viche... era uma coisa horrível... Era umas casinhas
que tinha praculá... Tinha umas quatro casinha praculá, os tocos de
tiarana... Aí eram uns toquinhos assim... Aí botava umas palhinhas, fazia as paredes, era de papelão ...e assim era... Eu, Deus me
perdoe, mas eu não podia nem colocar a cabeça na janela que tinha, com tanta briga... Era briga, era o pessoal com uns terçados,
com pau... Viche... Aí eu tinha duas meninas, uma de criação e
outra minha. Quando eu cheguei aqui, logo o pai dela, foi atrás de
um trabalho pra ela lá no centro. Aí arrumou pra Maria Raimunda,
que é filha mais velha, lá no salão da [dona...] Aí arrumou pra outra... Minha casa, que era pra empregada doméstica. Aí ela saiu
bem cedinho, já levava material de aula tudo, aí trabalhava por lá.
Aí, de meio dia pra tarde, ia estudar, quando dava seis horas, elas
chegavam aqui. E a vida cansada era essa. Aí saía, era uma lama...
uma lama... uma lama... Cada um buraco de lama horrível... Eu
cansei de ir mais a Marina, era oito mulher, nós saia dali, aquela
igreja, até aculá, o centro social, desfilando, pedindo ajuda o pessoal pra virem ajeitar essa rua. Aí a Marina comprou não sei quan-
SUMÁRIO
Leituras Diversas: Crônicas, Ensaios e Contos
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tas peças de pano, nós fumos pintar lá em cima, ela marcava e nós
pintava, aí lá, nós vimos botando as faixas, até ali no fim, né?!
Quando deu a boca da noite, não tinha mais nenhuma, o pessoal
tinha tirado tudinho aí eu sei que a Marina batalhou mais nós...
batalhou mais nós... Até que foi indo... foi indo...
Era tudo enlameado, tudo cheio de lama, tinha pouca gente.
As casas, eram tudo com esteios de grama, fechada com palha, era
assim... Pra trazer as coisas tinha um caminho bem estreitinho.
Estava fazendo verão, aí a gente passou por cima de raiz, pau velho e o caminhão chegou até aqui. A casa era bem pequenininha,
feita de madeira, bem apertadinha. Nas rua já tinha os postes de
energia, mas só tinha luz aqui e ali na frente, não tinha mais em
lugar nenhum. Quando nós chegamos aqui com pouco tempo chegou o inverno, nós viemos pra cá no final do verão.
Veio a melhorar, sabe quando? Quando entrou o Flaviano
como prefeito, aí nos fomos em cima dele: “Olha nós, queremos
uma rua ali”. E pra mim ir pra igreja, eu ia bem pela beirinha, e
quando eu chegava aculá, eu escorregava num poço de lama. Eu
voltava, dava duas três viajens pra poder chegar lá. Aí o Flaviano
disse: “Tá bom, eu vou fazer”. E foi a primeira rua que fez foi essa
daqui, que ele fez... Que coisa boa, né?
Quando eu cheguei aqui, as casinhas eram feitas e palhas,
com palhas, com papelão, as paredes, era assim... Aí, depois, foram
fazendo as casa... A nossa era de madeira, portinha, a nossa, e outra, passando essa, na outra. Aqui era do Raimundo... Televisão,
não existia, tinha a nossa que nós já trouxemos de lá... Quando
dava uma hora dessa, de tardezinha, tava pra derrubar minha casa... Era gente... era gente... Nem eu assistia televisão. Aí eu disse:
“Adolfo, eu não agüento, tira a televisão aí de fora, que vão derrubar essa casa”. Aí o Adolfo tirou a televisão. O Adolfo comprou a
televisão porque quando o Batista chegava da aula, corria pra casa
do vizinho pra assistir televisão.
Daí, a casa era só uma salinha... Isso aqui, e isso aqui... Aí o
quarto era só, o quarto lá fora, era outra salinha, né? E a cozinha...
uma cozinha pequenininha que eles fizeram... Era dormir tudo
apertadinho. Aí foi indo... foi indo... A gente que tem os filho... aí
os filhos vão, né? Era Adolfo, era José, era Raimundo, a Maria Raimunda, Maria Auxiliadora, e João Batista e eu. Isso aqui foi invasão, então quando nós compramos isso aqui, foi tão caro... Aqui foi
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220 | M a g n o N i c o l a u ( O r g . )
tão caro... Ora, tinha era mais ou menos até aqui, né, aqui na frente
tinha casa. Mas, aqui pra trás só era mato, tudo só era mato. Esse
João Eduardo, esse meio de mundo, tudo era mato. Nossa casinha
era de cinco por quatro.
Quando eu cheguei já tinha luz. O Adolfo puxou um rabicho não sei de onde. Nesse tempo todo mundo puxava rabicho de
fio de arame, era fio de todo canto.
Não quero sair daqui. Quando eu saí da Cadeia Velha, eu
disse pro Adolfo: “Meu filho, eu vou pra lá, mas, de lá, só pro São
João Batista”. Eu gosto, já me acostumei, fiquei viúva, meus filhos
já casaram tudo... e eu fui ficando... fui ficando... Aí eu nunca quis
sair daqui. Quando o pai dos meus filhos faleceu, eu ainda tinha
José.
Aí morreu a Ivoneide, o Antônio, o meu marido. Pois era...
Eu sei que aí foi... foi... foi... morreu um outro filho meu, o José...
parece que com vinte e seis anos... Ele se formou no colégio tinha
um ano, quando se formou já tava exercendo a profissão... quando
morreu. Daí, eu fui ficando só... fui ficando só... e foi indo... e foi
indo... E depois que ele faleceu, aí eu criava um neto, quando ele
faleceu, foi preciso eu entregar esse neto pra mãe dele, porque ele
já tava com outro primo praticando coisa ruim. Aí eu disse: “Quero que leve, eu não tenho mais força...” Aí ela levou... e eu fiquei...
aí, eu parti pra ficar sozinha mesmo... Aí o Raimundo disse: “Mãe,
vamos vender essa casa?” “Não é porque o meu filho faleceu, que
eu vou vender essa casa. Eu fico”. Depois, lá morreu a outra filha...
A outra que morava lá no bairro João Eduardo. Ela morreu, eu não
sei de que ela morreu... Tá com cinco anos. Aí eu disse pro Raimundo: Não, eu não vou sair. Eu fico aqui”. Aí eu fiquei aqui.
Antes de vir para cá eu morava em casa alugada, lá na Cadeia Velha, e lá os meninos vieram e compraram essa casinha. Era
uma casinha de nada... Era umas 12 pessoas... Já de noite a gente
atava as redes uma por cima das outras... Eu sempre, toda vida,
tive a minha cama. Toda vez quando me levantava tinha dois comigo, era os dois meninos pequenos... eu brigava, colocava eles
pra rede deles, não é? Aí, daqui, os menino: “Mamãe, vamos fazer
uma casa maior pra mamãe, essa casa não dá”. Aí o Batista... seu
Batista e o Raimundo foram formar essa casa e a Igreja... Quando
eu cheguei aqui não tinha Igreja, o pessoal se reunia pra ir pro
SUMÁRIO
Leituras Diversas: Crônicas, Ensaios e Contos
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bairro da... aquele bairro que vai pro rumo daculá... Eu sou tão
esquecida.
Antes nós se reunia lá na Comunidade São Peregrino, não
era?! Aí de lá passou pra cá: “Vamos se reunir aqui”. Aí formaram
quatro esteira, cobriram com as folhinha que tinha, fizeram quatro
banco. Era ali que nós se reunia. Daí ela disse: “Agora, a gente vai
fazer uma igrejinha”. Aí fomos trabalhar. Fizeram uma igreja pequena, e já desse lado de cá foi feita uma latada pra todos os sábados e todos os domingo... a gente tinha venda ali, uma venda pra
aumentar o tamanho da igreja. A gente tinha aquela venda... eu era
dona da macaxeira, do nescau e do café, os outros tomavam conta
do resto. Nós juntava aquele pouco dinheiro das vendas, quando
terminava tudo, eu revirava meus bolsos: “Tá aí, eu não tenho
nada. O que eu tenho tá aí nessa sacola”. A Rosa ia e depositava no
banco, aí já tinha um bocado. Aí a Rosa dizia: “Vamos começar a
igreja” – mas nunca a gente deixava de ir trabalhar de sábado pra
domingo e de domingo pra segunda, né? Aí foi indo, aí até que
fizemos uma igreja. Não dava pra nada, era só aumentando... ficava gente fora, gente em pé... Muita gente dizia: “Vamos aumentar
a igreja!” Aí aumentamos, mas o Zé... tu conhece o Zé? O Zé foi o
feitor dessa igreja.
Aí a Rosa: “Vou chamar o Zé... Vamos embora, Zé, você é o
feitor dessa igreja”. Ele só trabalhava sábado e domingo na igreja,
depois da semana ele ia trabalhar pra ele. E ele, aqui, aculá, dava
uma ajuda também... Aí formou-se a igreja maior, mas não dava
pra nada também. A Rosa disse: “Nós vamos aumentar essa igreja”. Zé: “Como você queira, aí aumentou... a igreja ficou grande...
Aí... “maior do que isso não pode ser”. Ficou gente do lado de fora,
ficou gente em pé, aí... “Eu aumento a igreja”. Daí nos fiquemos na
igreja, mas todos os sábados a gente tinha aquele café, né? Aquele
café que era pra colocar o dinheiro no banco pra quando precisasse, né?
Aí tinha os grupos das mães, o grupo dos pais e o grupo dos
jovens. As mães se reuniam dia de sábado, das duas horas até às
cinco. Era dois... era dois... Aí os pais entrava até oito da noite. Aí
os domingos era dos jovens. A gente ainda juntamos setenta e...
sessenta e três mãe e os jovens ainda juntava quase oitenta. Aí os
pais era tudo fraquinho... Aí o Zé, olha também a gente reuniu os
grupo de pai com os grupos de mãe... “Não, Zé... não... Vocês fi-
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222 | M a g n o N i c o l a u ( O r g . )
cam com os grupos de vocês, deixa o nosso”. Ficamos, aí já tinha
não sei quanto no banco e o Zé quase não dava... Aí, por lá, o Zé...
tudo... Até que consegui dobrar a Dora. A Dora que era a mulher
dele. Tu conhece a Dora, não conhece? Ela mora bem ali. Aí ele
disse: “Dora, vê se tu dobra essas mulher, Dora!” Até que a Dôra
dobrou, né? Eu nunca me convenci... Eu digo: “Olha, o Zé quer dar
um golpe em nós”. “Não, Nena, não diga isso! O Zé, ele não é capaz disso!” “Eu vou concordar com vocês porque todo mundo
concorda, menos eu, e uma andorinha só não faz verão”. Aí misturou o dinheiro deles do banco com o nosso, quando contou não
tinha mais nem um centavo. “Eu não te disse, Dora?” “Mas, Raimundo, o que, que tu fizeste?” “Eu fiz isso, isso e isso na igreja.
Não dava pra isso tudo, agora pronto...” Mas eu lutei naquela igreja, até quando foi parado tudo, aí quando foi parado, tudo pronto...
ficou só o grupo de jovens e os grupo de pais com as mães. Era
pouco, que eu ia pro grupo. “Mas, Nena, tu falta”. A Dôra: “É porque eu estou ocupada”. Não me lembro mais porque eu não queria
ir.
Eu não sei mais em que ano nós começamos... Eu não me
lembro mais que ano eu cheguei aqui... Eu não me lembro mais de
nada, meu filho. Eu fiquei assim tão esquecida...
João Carlos foi o primeiro padre daqui. Aí ele era solteiro. Aí
ele era bonito. Aí as menina começaram e começaram... O Dom
Moacir disse: “Vamos tirar ele, vamos colocar outro”. Dom Moacir
foi e tirou ele mandando pra fora... pra longe... Aí ele ficou por lá.
Aí veio o Asfuri. O Asfuri era solteiro também, mas era... como ele
era bonitão... mas não dava confiança. Aí o Asfuri foi praquela
igreja lá da Floresta, lá da... como é o nome? São Peregrino. Passou
pra lá, e aqui ficou pros padres vim só dia de missa, de quinze em
quinze dias.
Aqui tinha Comunidade [Eclesial de Base]. A reunião aqui
da comunidade era na igreja mesmo. Aí, eu não sei mais... Se reunia só pra conversar, pra rezar e leitura da Bíblia também. Aí, tinha
sexta-feira... tinha o grupo dos pais... sábado, o grupo das mães...
domingo, o grupo dos jovens. E era assim...
Eu nasci em... Não me lembro o nome da colocação, sei que
nasci em Tabatinga, no Seringal Novo Tabatinga, que eu nasci... Eu
não me lembro mais... Olha, depois que passou pela minha cabeça,
aí pronto... Aí em Tabatinga eu me criei, me casei, construí família,
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Leituras Diversas: Crônicas, Ensaios e Contos
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tudo em Tabatinga, na colocação Praculá... Aí quando eu vim de
Tabatinga, aí nós viemos aqui para o Acre, né? Passamos vinte e
dois dias viajando em um batelão grande e uma canoa. Vinte dois
dias, nós passamos... Aí chegamos aqui, aí nós viemos pra cá. Meu
marido já trabalhava aqui, já tinha passado um ano aqui. Não, nós
estamos é no Acre, né?! Foi em Tabatinga... nós passamos muito
tempo em Tabatinga... Lá eu tive meu último filho, praqui praculá... Aí viemos pro Acre, aí se tacamos de lá pra cá.
Quando nós chegamos aqui tinha umas casinhas de madeira,
feito quatro portinhas assim aí coberta. Colocava umas folhas em
cima e aí as mulheres iam carregado papelão e fazendo as paredes
de papelão. E desse tempo tem a mãe da Graciane... Deixa eu ver
quem é que tem mais... Tem a Guilhermina... Tem uma porção de
gente ainda aí. Os outros foram tudo embora, aí foram chegando
outras pessoas. Essa rua daqui, pra sair ali no Bola Preta, era tanto
do buraco e lama que fazia horror. Os moradores resolveram tapar
os buracos colocando barro e tijolo.
Antes, quando eu ia daqui para a igreja, eu dava três ou quatro viagens... que eu ia várias vezes e quando chegava bem pertinho caía dentro da água. Isso era de noite... Eu voltava, vinha me
lavar, mudar de roupa. Mas era um sacrifício... Até que a juntamos
quatro mulheres, a Francisca da bueira, Ametista... Como era o
nome da outra, meu Deus? Eu... Era quatro mulheres. Aí nós colocávamos faixas por aqui. Faixa aí por todo canto... Colocávamos
faixa e deixávamos o pessoal olhando, se não o pessoal ia e tirava.
Quando chegava a noite, nós tirávamos tudo. Ainda roubaram foi
muita faixa... O pessoal vieram e colocaram só pedra... Foi o tempo
que... como é que era o nome do homem, lá, meu Deus? Foi o primeiro prefeito daqui. Foi o Flaviano... “Vamos fazer nossa rua. Nós
só vota quando fizer nossa rua”. Ele falou: “Vamos atijolar”. “Não,
tijolo não...” Aí fizeram tudo de tijolo praculá, tudo atijolado. Sério, foi assim que foi feito, mas nós sofremos.
Essas faixas tinham escrito que o Prefeito não queria nada e
nós... e nós não íamos votar nele. A gente ia votar para Governador. O pessoal daqui, ninguém queria votar. Aí ele viu que só com
o pessoal de fora ele não ganhava as eleições, aí ele mandou atijolar. Aí ele ganhou.
Aqui era só a buraqueira, reformavam e colocaram essa coisa
que se coloca em rua. Aí quando foi passar pra Governo ninguém
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224 | M a g n o N i c o l a u ( O r g . )
vota nele, ninguém... Quem é que vai votar nele?... Aí ele viu que
ia perder, aí mandou atijolar tudo. Foram muitas rua atijoladas.
Nesse tempo era boa, nós formava de dez mulheres e ia bater na
Prefeitura, aonde ele está. Quando chegava lá, ele estava. “Vamos
vê”. “Ou você ajeita aquela rua ou então nós não vamos votar em
você”. Ele disse: “Vou ajeitar, vou ajeitar tudinho”.
Eu tive doze filhos de tempo e três sem ser de tempo... Tive
quinze... Aí foi morrendo, morrendo... Tem Adolfo, Pedro, Messias, Raimundo, Batista, Maria Raimunda. Seis filhos com a menina... morreram duas já depois de casadas, aí ficou só uma. Só Maria Raimunda, essa mora dentro da água, comprou um barco e foi
pra Porto Velho. Comprou um barco e mora dentro do barco. Ela é
muito alegre, Maria Raimunda... Só eu, depois que fiquei desse
jeito... e pronto eu enxergo pouco e ouço pouco... e pronto.
Eu vim morar em uma casinha pequena. Quando dava a noite, armava uma rede por cima da minha cama, por todo canto, por
cima das outras. Aí eu morei até o meio do ano. No meio do ano, o
Batista entrou de férias, aí eu vim pra cá. “Fizemos uma casa pra
mamãe, uma casa em cima da minha”. Um dia o meu fogão estava
aqui, outro dia o meu fogão estava aculá. Foi indo... até que derrubaram o canto da minha cama, eu disse vocês tem que derrubar
mesmo, pode derrubar, aí ficamos dentro do vão. Só fizeram apregar as paredes assim, não tinham essas paredes não... não tinha
divisão, não tinha nada... Ali ficava duas tábua quase soltas, aí
entrou dois sem-vergonha, eu já estava tão pernoitada que eu
dormi. O José viu, mas estava com medo e nem se mexeu. O Zeca
também viu e disse: “Pelo amor de Deus, aqui tem um homem”.
Aí ele pulou e se escondeu detrás de um monte de madeira que
tinha por aqui. Foi uma coisa medonha, ele tinha tirado um monte
de roupa deles de dentro da gaveta. Ele sabia que o Messias tinha
recebido e ele andava atrás da bolsa, o Zé e o Batista cada qual
pegou um pedaço de pau, um pedaço de tabua grande e foram
atrás do ladrão. O ladrão disse: “Pelo amor de Deus, não me mate
não”. O ladrão pensava que eles tinham pulado por ali, mas seguraram ele. “O que, que tu roubou, caba sem-vergonha?” “Uma
trouxa de roupa”. “Vá já buscar”. Aí ele foi buscar a trouxa de
roupa e deixou aqui. “Você agora vá embora”. E saíram batendo
nele, aí essa... Dava quase um metro aqui em baixo pra rua. Aí,
rebolaram ele lá no meio da rua e ele foi-se embora.
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Leituras Diversas: Crônicas, Ensaios e Contos
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Apesar de tudo, eu não penso em sair, não. Os meninos tem
pelejado. “Mãe, vamos vender essa casa. Nós podemos fazer uma
casa em qualquer canto do nosso quintal. Vamos fazer uma casa
pra senhora”. E eu digo que não quero, daqui só pro São João Batista, quando eu morrer. Façam o que vocês quiserem, mas eu não
quero. Pra que, né? É porque aqui tem muito ladrão. Aqui, o Raimundo comprou uma máquina de chiringar para matar formiga e
outras coisas. E comprou outra, e sentou ali... Até que alguém roubou daqui... Ele, em vez de ter colocado em cima de casa, não...
Colocou lá em cima das coisas dele. Ele andou... e procurou... Tinha sido o filho da dona Guilhermina, o Neto. “Ô caba semvergonha, eu quero minha máquina, vamos ver aí”. O Raimundo
disse: “Olha, eu não vou fazer nada contigo. Eu vou até a delegacia, vou mandar te dar três pisa, com três pisa, tu não me entregar
minha máquina, então, eu te entrego de corpo e alma pra eles”. Eu
não sabia que ele tinha mandado dar três pisa nele, de cinco em
cinco dia dava uma. Um dia eu disse: “Raimundo, o menino veio
deixar tua máquina”. O Raimundo disse: “Deixa esse filho de uma
égua, mãe”. Aí, até que ele sumiu... foi embora, se escondeu não
sei por onde. Ainda hoje o Raimundo tá pra comprar outra máquina.
Depois ele sentou uma bomba ali, bem sentado. Os cachorros faziam uma zoada a noite todinha. Ele foi e disse: “Olha, eu
vou arrancar essa bomba, mamãe”. “Meu filho, e quando a gente
quiser água?” “Eu sento ela de novo, puxo ela e tiro”. Aí ele tirou
daqui de dentro de casa. As meninas hoje não tem água pra... vão
aqui pegar água, mas aqui dentro do quintal mesmo... Era trazendo água de lá de dentro da caixa. A água é limpinha também, ele
tirou pra cá, deixou direitinho como que a bomba tivesse... Quando foi à noite, foi um siribolo. Eu estava doente, não podia me levantar. Ela foi quem abriu a janela dali do quarto e lá está o homem, me amostra a senhora. “Vai e sai por ali”. Ele foi-se, aí ele já
tinha se remexido e não tinha achado nada... Os cachorros latindo... Ficava dois sem-vergonha aqui nesse portão, colocando comidinha pros cachorro, brigando com os cachorros e ele ia pra lá. E
o Raimundo foi e tirou a bomba, tirou deixou aqui do mesmo jeito.
É um caso sério...
As planta do quintal foi eu que plantei, agora é os outros
que tomam de conta. Porque eu não posso ir aguar mais, meu fi-
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lho... Eu não poso... eu ando bem devagarzinho. E aí pra fora eu
não ando. Eu tinha planta e não era brincadeira, mas aí foi se acabando... pra cá tudo era planta. Tem muita planta, tem de tudo
aqui, graviola, cupuaçu, bastante cebola, mangueira, coité, goiabeira. Era eu que cuidava... também tinha muitas flores...
Meu marido trabalhava na colônia, aqui quando ele adoeceu veio pra cá aí era daqui pro hospital do hospital pra cá aí ele
morreu. Aí, eu não quis mais casar. Não tive vontade, né? As mulheres diziam, eu não te aconselhei pra você arrumar um homem
pra cuidar de você, que cuidando de mim que nada, me deixa, e
assim eu fiquei.
Meu filho mora aqui atrás, na outra rua. Todo dia, bem cedo,
ele vem deixar um café aqui pra mim. Às vezes ainda vem de tarde
e às vezes não vem mais. Ele trabalhava no aeroporto, às vezes ele
saía de manhã e só chegava de madrugada. Ele ia pro aeroporto e
buscava gente, deixava gente e esperava gente. Era o tempo todo.
Agora tem o Raimundo, esse ele mora aqui também. Mora lá pra
Floresta, não sei pra onde. Todo dia ele vem aqui. O Pedro, eu estou com uma semana que espero ele vir de Boca do Acre, e nada...
Aí tinha um carro empancado dele. O Adolfo já tirou, está lá no
quintal dele... e o Pedro, nada... Ele tá trabalhando, ele é do Daime.
Ele faz esse negócio de Daime pra vender e tem que apurar doze
mil reais, que é pra pagar o negócio do carro. Eu sei que tem o
Messias pra colônia, faz muito tempo que ele não pisa aqui. Tá
com mais de mês que ele não vem aqui.
Nós tivemos dificuldade de comida, de tanta coisa... Eu tinha tantos filhos pra estudar... Mas, graças a Deus, os que quiseram estudar, estudaram. O Adolfo, pelo menos, batalhou... batalhou... Até que fez o segundo grau. O Batista foi um dos que mais
batalhou. Ele terminou os estudos dele, quando foi com um ano e
pouco, Deus levou.
Eu nunca estudei, porque eu morava no seringal. Eu cortava
seringa. Eu cortei seringa muitos anos. Comecei a cortar seringa
com sete anos de idade, aí fui cortando até quando não agüentei
mais... Aí vim me embora pra cá, aí eu parei... Lá tinha festa de
Santo Antônio, São João, de São Pedro... E tinha aniversário... Tinha as pessoas que aniversariava, aí era uma festa... Aí todo mundo dançava e tinha muita comida... Eu ajudava a preparar... era
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Leituras Diversas: Crônicas, Ensaios e Contos
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carne, era peixe, tinha de tudo... Comiam a noite todinha, dançavam a noite toda.
O meu filho Adolfo trabalhou como monitor de jovens vários anos e em 1978 ficou sendo o coordenador da comunidade.
Era ele quem programava as reuniões e fazia as celebrações, só não
fazia a parte da comunhão. Mas uma parte daquele jornalzinho
[Nós Irmãos] ele lia com o pessoal, fazia encontro do evangelho,
colocava o pessoal em uma roda e fazia a leitura do evangelho do
dia, começava a discussão e aí cada um falava o que entendeu.
Pra ser monitor precisava ter treinamento. Nesse tempo
quem dava o curso de treinamento era o Airton Rocha com o Nilson Mourão. Eles passava e entrava na sexta-feira de tarde lá na
sala paroquial da Imaculada Conceição. E ficava a noite, passava o
sábado e o domingo e saía de tarde, estudando o evangelho mesmo, não é? Depois fazia curso de liderança.
O monitor era como se fosse um juiz pra fazer as paz, cuidar
das famílias, das crianças, tudo, tudo era ele... era como se fosse
um delegado nesse tempo. Tinha que arrumar o casamento de
fulano que tinha brigado com o marido, que tinha batido na mulher, e tinha que ir fazer as pazes. Tudo eles fazia... buscava melhorias pra rua, pro bairro, esses negócios tudo.
Eu visitava o bairro todo, se tinha uma pessoa doente, a Rosa
daí da igreja mandava me chamar fosse a hora que fosse, eu ia
bater lá. E eu me mandava, ia visitar e perguntava pra pessoa: “Estão precisando de alguma coisa?” “Estamos precisando de tudo”.
Eu voltava pra trás. “Rosa, eles tão precisando de tudo, vamos dar
um sacolão”. Nós começávamos a pedir, pedia a um e a outro, em
um instante arrumava pra ir deixar lá.
Eu saía muito, hoje eu não saio mais, pra mim andar daqui
pra li é bem devagarzinho arrastando os pés. Quando eu saía, eu ia
pra todo canto, todo canto eu andava. Era aqui nessa igreja, onde
mas eu andava era na igreja.
Eu não tenho mais sonho, eu penso, mas eu sei que melhor
pra mim é não existir mais. Queria ficar boa, cuidar da minha casa,
o que eu fiz de bom, foi além de criar os meus filhos, que isso é
maravilhoso. Trabalhei muito e aí eu não sei mais. Se eu fosse boa
ainda, eu estaria na minha casa, cuidando da minha casa, do meu
quintal, cuidando das minhas plantas e hoje nada eu faço, os filhos
é que agora é quem cuidam de mim.
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Eu não sei se eu sou mais feliz não. Porque eu vivo todo
tempo dependendo das pessoas, de tudo... aí pronto... Se não dependesse mais dos outros eu era muito feliz, olha... Eu era feliz
antes de ter essa doença. Eu tenho tanta saudade que eu trabalhava tanto e hoje vivo parada. Às vezes, pra me levantar daqui, é
preciso o pessoal me segurar, me levantar.
Eu faço de tudo pra mim não pensar na vida. Quando eu
vou pra minha cama eu vou pesada de sono... Eu me deito... e fico
deitada até me agarrar no sono, pra eu não pensar... porque se eu
pensar, nessa noite eu não durmo... e passo a noite sem dormir,
bolando em cima da cama... Eu penso na minha vida, eu penso na
vida dos meus irmãos, como se acabou a minha mãe... e vou pensando nas coisas...
Já passei muita dificuldade... A minha casa pegou fogo com
tudo dentro. E eu fiquei sem nada. Deixa eu ver onde é que era
essa casa... Era em uma colônia. Aí, de lá, ficamos até levantar toda
a casa. Aí eu fiquei... Aí, de lá nos viemos pra rua. O Adolfo e o
José vieram primeiro pra rua, aí me trouxeram. Trocaram a colônia
por outra e foi com o tempo chegamos aqui. Até que eu fiquei aqui
e os filhos foram saindo... e eu fui ficando... e fiquei sozinha... só
com Deus. Eu agora não durmo mais, só acho ruim porque agora
eu estou doente. Mas, quando eu estava com saúde eu não saía por
aí devagar... eu ia pro açougue... Depois, eu não podia mais ir,
porque eu fiquei doente. Eu esperava uma pessoa pra ir comprar
uma carne pra mim, pra comprar seja o que for... mas essa pessoa
dizia assim: que ia, mas só ia chegar de noite. Então, eu tinha problema. Depois que o Raimundo chegou aqui em Rio Branco, ele
veio pra voltar, mas ele disse: “Mamãe, eu não vou mais voltar. A
senhora está do jeito que tá, eu não vou mais voltar. Eu vou ficar
por aqui mesmo Aí o Raimundo ficou por aqui trabalhando... trabalhando aqui e por aculá... E toda de manhã e toda tarde o Raimundo estava aqui... toda de manhã e toda tarde... Hoje ainda
continua, hoje foi praculá.
Minha vista está curta, eu pedindo a Deus que alguém fosse
me levar no oculista pra eu ser consultada, mas só tem o Adolfo
que tem carro, mas é pior de que o correio, hoje ele já tem cinco
viagem no hospital e está pra lá de novo.
Tenho orgulho porque eu lutei tanto pra conseguir fazer essa
igreja, e pedindo a Deus e Nossa Senhora que me desse coragem
pra mim só adoecer quando terminasse a igreja. E foi feito comigo.
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Leituras Diversas: Crônicas, Ensaios e Contos
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Era... eu já era doente, mas eu andava pra todo canto. Está com
bem dois anos que eu não saio de casa. Eu andei saindo e quando
foi pra receber, eu ia só até o carro... O Adolfo me deixava no carro
e ia lá, e vinham alguns homens onde eu estava, aí eu escrevia meu
nome e eu vinha embora. Eu ainda quero ficar boa, pra mim andar
mais, pra mim fazer meus serviços. É só o que eu penso, e com fé
em Deus eu ainda vou ficar boa.
Eu não conheci meu pai, só minha mãe e padrasto. Meu pai
quando morreu eu tava com quase dois anos. A minha mãe cortava seringa, minha mãe fazia tudo, trabalhava no roçado. No seringal é puxado, se eu tivesse no seringal talvez já tivesse morrido.
Os jovens estão começando a vida agora, mas quando chegar
na minha idade eu não sei.. Eu estou cansada de dizer pros meus
netos: “Meninos, vocês tomem cuidado, meus filhos. Vocês pensam na vida de vocês”. Eles ficam é achando graça. “Vocês pensam
que eu não já fui nova como vocês? Já fui nova e hoje estou nessas
condições”. E ficam achando graça... Ainda hoje andou um aqui e
eu aconselhei ele. E ele saiu achando graça. Eu queria que eles
pensassem na vida deles e dissesse: “Olhe, o que a minha vó está
dizendo é verdade”. É preciso que nós pensemos na nossa vida,
porque essa vida não é boa, é ruim. Mas eles nem se lembram disso, né? Pra eles, tudo é uma coisa só. Olha, aqui nessa frente, esses
dias eu faltava ficar doida. Fechava a porta, os cachorros corria,
um pra cá... E esse pessoal aí: “pei, pei, pei”. Aí eu falei: “Minha
gente, vocês pensam que não vão ficar velho também? Vocês vão
ficar velho, por isso, não façam isso não”. É do mesmo jeito, tanto
faz eu pedir como não pedir.
Pra mim nunca teve nada de bom. Nada... A não ser essa
igreja... Essa igreja, quando eu cheguei aqui, não tinha. Aí tinha a
Rosa, uma que morava na Estação, que ela vinha fazer reunião na
rua “A”. Aí, de lá, ela resolveu vir pra cá. Aí ela foi, o dono deu
esse terreno... E, aí, ela foi e construiu, era quatro toco e os banquinhos assim... Parecia, banco de casinha de menino, cobertinha de
alumínio. E aí, depois, trabalhar pra construir essa igreja... Aí nós
fomos trabalhar pra construir a igreja e fazer arraial o mês todinho... Todo mundo trabalhava, era churrasco, era café, era nescau,
era macacheira, esses quatro era meu, era assim...
Aí eu tava me tratando e o médico disse: “A senhora vai
precisar ir pra outro canto”. Aí me jogou pra cá, pra outro hospital
que tinha praculá. Aí cheguei lá, eu saía bem cedinho pra chegar lá
. Nove horas, cheguei lá. O médico olhou: “Não é causo daqui,
SUMÁRIO
230 | M a g n o N i c o l a u ( O r g . )
você vai pra Santa Casa”. Olha, aí doutor não passou remédio pra
mim não. Aí, nesse tempo, Maria Raimunda já tinha vindo pra cá.
Aí vai ser operada aí marcou lá o dia tudo, né? E eu fui... Era o
doutor... nós dois... doutor bem novinho, não tinha um sinal de
barba. Tava ele e outro lá da Santa Casa. Quando eu cheguei lá,
tava os dois. Eu disse: “Vocês vão me matar?” “Não, senhora.
Ninguém vai matar, não”. “Vocês não têm nem sinal ou barba,
rapaz!” Toda a vida eu fui assim... Aí, vamos para a sala de cirurgia...Eu nunca tive medo de operação... aí, fui operada. O Adolfo
pagou uma parte e o meu marido dava a outra parte, aí lá eu fui
operada, fiquei boa. Esse meu filho com raiva disse que ia embora
pra Porto Velho. Eu disse pra ele: “Vá”. E ele foi. Com dois mês
começou a telefonar pra vir embora. E Maria telefonava, todo
mundo telefonava. O Adolfo mandava passagem dele, naquele
tempo o Adolfo trabalhava na...
Mal cheguei e o marido me procurou... Aí lá se vem ele, aí
me arrebentou toda, eu pegava a casa alta aqui, eu pego ele, descer
ele pra lá pro fundo do quintal, atar a rede dele lá nas mangueira.
Eu sofri... sofri... até quando ele morreu. Aí ele morreu... morreu
na Santa Casa. Com seis meses ele morreu. Aí eu fique mais os
meninos. Deus me perdoe, mas aí eu melhorei minha vida. Aí deixei de sofrer. Melhorei minha vida. Eu ia pra passeio com as mulheres. Os meninos iam pra todo canto. Eu ia pro grupo de jovens a
passeio. Era eu e a Chica da Bueira. Aí nós ia fazer o papel de mãe
do grupo de jovens, nessa rodagem por aculá. Aí fomos... e até
hoje, eu fiquei só.
Eu achei melhor ficar só. O meu filho, o Adolfo dizia bem
que senhora, bem que devia ter arrumado um homem, eu digo
Adolfo arrumar eu arrumei muito, mas eu não quis. Eu escapei de
um e não quero outro. Aí fiquei, fiquei.
Eu dizia pra meu filho que eu tinha 15 anos quando um homem viu minha mão e contou a minha vida toda: “No final da sua
vida você vai ficar sozinha e Deus”. E eu dizia pra minha mamãe.
“Eu não vou te deixar só”. Aí foi indo... passei todos esses anos. Eu
não estou só. Mas aí, eu fui ficando... fui ficando... e fui ficando
só... fiquei só. E hoje eu vivo só.
Hoje a pessoa que eu vi aqui, foi você, agora. Vou lhe dizer
uma coisa... Eu tenho uma vasilha aqui, botei em cima da mesa às
dez horas, pra tirar água do vaso e encher a vasilha pra botar dentro da geladeira. Ainda ta lá. Quando eu lhe vi eu pensei: “Só ele
vai tirar dali”. O Raimundo passa aqui bem cedo e ele diz: “Se eu
SUMÁRIO
Leituras Diversas: Crônicas, Ensaios e Contos
| 231
morrer primeiro que a Senhora, o que será da senhora?” E eu digo:
“Morre não. Deus me livre. Deus vai lhe dar muitos anos de vida”.
Porque ninguém faz o que ele faz aqui. Ele chega bem cedinho, ele
luta aqui, até às oito horas e vai embora. Aí só cinco e meia pra seis
horas é que ele chega de novo. Meu filho, eu passei cinco dias bebendo água da Sanacre... Eu, com dois vasilhame... Que bom que
você veio...
[Atualmente dona Nena mora em sua cama. Já não anda pelo quintal arborizado, pouco a pouco vê as forças se indo. Quase não ouve. Sofre de demências. Já não reconhece a própria família. As dores e doenças fazem-na pedir a
morte. Chora e lamenta a sensação de solidão. Parece ter perdido a alegria de
viver. Dói o peito vê-la naquele estado.].
SUMÁRIO
232 | M a g n o N i c o l a u ( O r g . )
“TERCEIRO SEXO”: A INCERTEZA NA
CONSTRUÇÃO DO MASCULINO*
Valdeci Gonçalves da Silva
“Quando o homossexual diz que é homossexual, o heterossexual é obrigado a se pensar como heterossexual, [...] sobre a sua
identidade e sobre a ordem social pela qual ela está instituída”
(Didier Eribon).
Na Grécia Antiga a pulsão se voltava para o belo (kalos), independente do gênero, assim, o homem livre da pólis tinha intercurso sexual com pessoas de ambos os sexos. O jovem (erômenos amado) era iniciado por um homem idoso (erastes - amante), cuja
função consistia em ensiná-lo a respeito das responsabilidades de
cidadão, verdade e sexo se ligavam no repasse do saber (Foucault,
1985, 1993; Catonné, 2001). A relação sexual não caracterizava homossexualidade, esse termo só foi criado, em 1869, pelo médico
húngaro, Karoly Maria Benkert1, para se referir-se à pederastia
masculina, e a partir disso a primazia da heterossexualidade se
constituiu como a sexualidade-referência (Louro, 2009). Em 1870, o
psiquiatra alemão Karl Westphal adota a expressão “sensibilidade
sexual contrária”, que deu origem à denominação “inversão sexual”, para se referir à alma ou à sensibilidade feminina dos homens
invertidos, que Pinel (1809) chamava de “vício contra a natureza”,
praticado por pessoas do mesmo sexo, igualmente “depravadas”.
A cultural, associada à difusão das teorias da degenerescência e do
instinto, nos meios médicos, fez desse “vício”, uma perversão se* Este texto é fragmento de um capítulo da minha tese sobre Preconceito Sexual (homofobia) em Portugal e no Brasil, que teve o financiamento parcial da
Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes).
1 Há controvérsias sobre a profissão, sobrenome e nacionalidade de Benkert,
para Green (2000) ele era um escritor vienense, e para Mott (2003) era o jornalista e advogado Kertbeny, que usava o pseudônimo de Dr. Benkert.
SUMÁRIO
Leituras Diversas: Crônicas, Ensaios e Contos
| 233
xual e dos “depravados”, um tipo singular de humano: “o perverso”.
Segundo Costa (1995), o denominado homossexual nasceu
no século XIX, por meio de um esforço conjunto da ficção médica e
da literária. Mestres da literatura, a exemplo de Marcel Proust e
tantos outros, diziam-se homossexuais e criaram o mito a partir
das suas realizações e decepções afetivo-sexuais, acreditando, assim, descrever “a natureza homossexual”. A teoria da referência de
Donald Davidson serviu de base para Costa (1992) afirmar que é
incoerente a idéia de uma homossexualidade natural e transhistórica fundamentada no suposto imperativo biológico da diferença de sexos. Somente nos séculos XVIII e XIX tornou-se possível
imaginar que os seres humanos eram “natural e originalmente
divididos em dois sexos” (concepção da sexualidade one-sex-model,
e depois two-sex-model), o que deu sentido aos termos homossexual
e heterossexual. Mesmo que exista essa diferença na natureza, Costa (1992) questiona sobre o que leva a crer que a diferença entre
homens e mulheres é igual à “diferença sexual”? E por que essa
diferença deve tornar todas as pessoas necessariamente homossexuais e heterossexuais? Na realidade, a diferença entre homem e
mulher, levando-se em conta o sexo, é a mesma que obriga a que
todos sejam heterossexuais e homossexuais. Isto ocorre por meio
de especulações que concebem a homossexualidade como um problema moral que merece investigações genéticas, psiquiátricas,
psicanalíticas, antropológicas, históricas, sociológicas e outras.
A ideia de uma “personalidade homossexual”, com traços
característicos, não é sintoma psíquico de uma realidade biológica,
nem a determinação genética, por si só diz apenas que as pessoas
são heterossexuais e homossexuais. A homossexualidade é uma
“realidade linguística”, que existe enquanto descrição e pode ser
alterada por uma redescrição (Costa, 1992). No Império Romano e
na Grécia as pessoas não eram classificadas como heterossexuais
ou homossexuais, o homem podia ter relações sexuais com mulheres, escravos, jovens ou prostitutas sem ser criticado. Crucial era a
manutenção do papel, no caso “ativo”2, e características definidas
Para Schafer (cit. por Granã, 1996), a depender do ângulo de percepção,
comportamento passivo ou ativo é semelhante a decidir se um copo com água
2
SUMÁRIO
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como masculinas (Richards, 1993; Rodrigues, 2004). Para Foucault
(1994) essa singularidade histórica não consiste em que os gregos
tinham prazeres com rapazes, nem que tenham aceitado como
legítimo, e que deu lugar a uma elaboração cultural. O que é preciso apreender não é o porquê desse gosto dos gregos pelos rapazes,
mas, por que tinham uma “pederastia”, e em torno desse gosto,
elaboraram uma prática de corte, uma reflexão moral e um ascetismo filosófico?
A ética erótica dos gregos se distingue da moral do desejo
por três razões: 1) não pretendia aplicar-se indiscriminadamente a
todos os indivíduos, era restrita aos homens livres que, por sua
vez, excluía as mulheres, as crianças, os estrangeiros e os escravos.
O eros, na ética pederástica, não se sujeitava à codificação ou leis
às quais todos devessem obedecer. A erótica era uma prática de
aperfeiçoamento de vida que tinha como pressuposto a liberdade e
não a obediência à ordem legal. A excelência ética tinha como objetivo dominar os excessos para melhor governar a si, aos outros e a
cidade; 2) o domínio de si não buscava controlar o “desejo interior”, mas os atos praticados na interação erótica; 3) na ascese antiga
dos prazeres residia um embrião teórico do que poderia ser uma
ética sexual desenvolvida no quadro da amizade (Costa, 1998).
Nessa perspectiva, Costa (1992) conclui que heterossexuais,
homossexuais, bissexuais, perversos etc., não são fatos naturais
que antecedem e se distinguem da nominação que dá sentido a
todos esses termos. São figuras de discurso que têm uma mesma
força performática na definição das subjetividades humanas. Por
um lado, tendo-se o sujeito e a sua sexualidade como realidades
linguísticas, pode-se observar as variações históricas das suas significações sem recorrer a algo que seja fixo, imutável e indelével na
subjetividade ou na sexualidade. Por outro, homossexual, bissexual e heterossexual não são realidades linguísticas ilusórias, são, de
fato, identidades sócio-culturais condicionadas às maneiras de
interagir com o mundo. Esse autor procura compreender o que
torna “homossexual” todos os homossexuais ou o que faz acreditar
que existe “uma homossexualidade” comum aos homossexuais, e
também o que faz com um sujeito se identifique ou que seja identiaté a metade está meio cheio ou meio vazio. Por esse motivo é preferível o uso
desses termos aspados.
SUMÁRIO
Leituras Diversas: Crônicas, Ensaios e Contos
| 235
ficado como “homossexual” venha a ser visto como uma espécie
de homem à parte.
As realidades servem a determinados propósitos, e a “realidade não-linguística” criada pelo senso comum, também visa
acordos linguísticos ou objetivos pragmáticos. Assim, o sujeito
passa a existir quando se produz sua pretensa natureza: homossexual ou bissexual no momento em que é assim rotulado (Costa,
1995; Becker, 2008). Costa (1995) se pergunta: por que o homem
homossexual é percebido, julgado e avaliado a partir de sua inclinação erótica? O que na figura do sujeito homossexual inquieta
tanto o nosso imaginário?
Quem é esse ator social homoerótico? Sandor Ferenczi usou
o termo homoerotismo para discutir o tema da homossexualidade
corrente no século XIX. Para Costa (1992) esse termo é preferível a
homossexualismo3, por várias razões: o fato de Ferenczi ser um
médico húngaro ressalta a lembrança de ter sido outro médico,
Benkert quem inventou o termo homossexual, na tentativa de
combater a legislação alemã contra a homossexualidade, e Ferenczi, de modo análogo, mostrou que o rótulo de homossexualidade
era insuficiente para descrever a diversidade das experiências dos
sujeitos homoeroticamente inclinados; tem a vantagem de evocar a
oposição similar, proposta por Parker (1991), entre erotismo (constructo teórico) e sexualidade (a experiência da atração sexual e a
descrição dos atos e afetos engajados nessas práticas).
A questão da identidade homossexual remete, de acordo
com Costa (1995), a duas teses que fundamentam a teoria sobre
sua natureza: a) a da imensurabilidade entre paradigmas ou esquemas cognitivos distintos; b) a da indeterminação da tradução e
da inescrutabilidade da referência dos termos empregados. O tipoideal construtivista alia-se as duas; o realismo essencialista negaas. O construtivista afirma que não existe identidade transhistórica da homossexualidade porque não se pode navegar entre
universos de sentido incomensuráveis, guardando o mesmo sentiA partir da retirada do homossexualismo da lista de transtornos sexuais, em
1980, pela Associação Psiquiátrica Americana (APA), o sufixo ismo (de homossexualismo), que significa “doença”, foi então substituído por ade (de
homossexualidade), que indica atividade, comportamento. Assim sendo,
neste trabalho, sempre que possível será usado o termo homossexualidade.
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do para denominar fatos distintos ou afirmar que fatos denominados de maneiras diferentes são idênticos. O fundamental no debate
entre construtivistas e anticonstrutivistas é a questão da referência.
Os paradigmas só podem ser traduzíveis quando apresentam a
mesma referência. Quando não existem mudanças no valor semântico das expressões entre paradigmas diferentes, compreende-se o
que é dito. Para que isto ocorra, é necessário que se tenha a mesma
referência. É possível comparar pederastia grega e homossexualidade porque os termos possuem a mesma referência, ou, no mínimo, correferências parciais (Putnam, 1981).
Mas definir a identidade homossexual constitui uma problemática. Como reconhecer o homossexual? Através da “visibilidade do estigma” (expressão de Goffman, 1988)? E o que não apresenta “visibilidade”? E quando o indivíduo, apesar da sua prática
homossexual não se reconhece como tal? Os sinais que apontam
para esse intento são filigranas de uma multiplicidade de condutas
que se esvaem ao tentar colocá-las numa categoria única denominada homossexualidade. A própria ideia de homossexualidade é
historicamente datada, e em todas as sociedades humanas até hoje
conhecidas existem não somente fatos, mas também registros de
comunidades e subculturas homossexuais (Costa, 1995; Sullivan,
1996).
Todavia, os sujeitos que não correspondem ao ideal masculino são tratados de forma depreciativa na cultura brasileira, em
oposição à imagem do machão e do pai, considerados “verdadeiros homens” (Parker, 1991). Assim, diante das exigências da heterossexualidade, o que resta para o indivíduo que tem desejo pelo
mesmo sexo é se identificar com o que sobra, “uma figura do homem manqué”4, ou seja, menos viril (Costa, 1992). No Brasil atribuise ao homossexual “passivo” o estatuto de meio-homem, conhecido como “bicha” (literalmente “verme”) ou “viado” (o “e” de veado animal substituído por “i”), diferente do “ativo” que tem sua
identidade masculina preservar (Parker, 1991). Porém, Wright
(2006) ressalta que algumas pessoas nascem com uma combinação
de condições genéticas e ambientais que as impele fortemente a
um estilo de vida homossexual, e que não há nenhum conflito da
Grifo nosso. Do francês, o que saiu errado ou não conforme o esperado,
incompleto.
4
SUMÁRIO
Leituras Diversas: Crônicas, Ensaios e Contos
| 237
homossexualidade entre adultos que consintam e o bem-estar de
outras pessoas. Em termos morais, isso deveria encerrar a questão.
Enfim, as práticas homoeróticas são muito mais amplas e diversificadas do que o termo homossexualidade oitocentista sugere,
varia desde um forte apelo por relações físicas até um desejo de
companheirismo erotizado tido como amizade. As abordagens
sociológicas e antropológicas partem do princípio de que não faz
sentido pensar em uma essência homossexual comum a algumas
pessoas que, assim rotuladas, passam a ser diferenciadas daquelas
consideradas heterossexuais. A representação do “homossexual
típico” é uma realidade tão palpável quanto à do “judeu típico” e
outros. De fato, o que une homossexual num mesmo conjunto perceptivo-interpretativo são as regras de identificação sexual criadas
pelo imaginário social. A terminologia homossexual tem sua origem na ideologia médica, com a qual está comprometida, não designa uma coisa que sempre foi e será idêntica a si mesma, mas
uma representação gerada pela cultura, produto de um vocabulário moral da modernidade que insere e divide os indivíduos entre
homossexuais, heterossexuais e bissexuais (MacRae, 1990; Costa,
1995).
Pelo exposto, é possível afirmar que a categoria homoerótica
oferece um leque de possibilidades de práticas sexuais, sem que
isto interfira na identidade sócio-sexual masculina, de modo que,
com exceção dos transexuais, os travestis também podem sentir-se
homens. Para Corneau (1995, p.48), “nem todos os homens são
homossexuais, mas em razão da ausência do pai todos trazem consigo um desejo homoerótico”. Contudo, o “verdadeiro homossexual” é aquele indivíduo que, com ou sem estímulo moral da cultura, sente-se atraído por homens, encarna o ideal do erotismo por
pessoas do mesmo sexo. A simples atração sensual por homens,
que é uma modalidade do desejo homoerótico, não é suficiente
para caracterizar de homossexual aquele que a experimenta. Mais
decisiva é a presença da atração terna, que significa algo além do
puro “tesão” (Costa, 1992).
Entretanto, o papel “ativo” e a ausência da “atração terna”
ou estética pelos clientes são os argumentos usados pelo profissional do sexo, para justificar a sua não identificação homossexual,
mesmo quando confessa sentir-se sexualmente atraído por aquele
que “contrata seu serviço”. No universo homossexual, a virilidade
SUMÁRIO
238 | M a g n o N i c o l a u ( O r g . )
é o “produto” mais valorizado, em especial, quando se trata dessa
sexualidade negociada (Silva, 1999). Assim, quando desprovido de
tal característica o michê procura simulá-la. No entanto, essa simulação pode se desmanchar quando o michê encontra um cliente
com características “mais viris” do que as suas (Ramalho, 1979).
Segundo Freud (1989), na concepção do hermafroditismo
psíquico o objeto sexual dos invertidos é o oposto do normal, como
uma mulher sucumbe aos atributos masculinos do corpo e da alma. Grande parte dos invertidos preserva o caráter psíquico da
virilidade, e apresenta poucas características secundarias do sexo
oposto, e buscam em seu objeto sexual traços psíquicos femininos.
Freud (1989) destaca que na Grécia Antiga, os invertidos estavam
entre os homens mais viris, e o que provocava seu desejo não era o
caráter masculino do efebo, mas a sua semelhança com a mulher,
atributos femininos como a timidez, recato etc. Assim se conclui
que o objeto sexual do invertido não é o mesmo sexo, mas um conjunto de sinais de ambos os sexos. Mas há suspeita de mudança
desse gosto, durante o século IV a.C. e até a metade do século V
a.C., com marcante aprovação da figura masculina de ombros largos, grandes músculos peitorais, cintura estreita, barriga contraída,
nádegas protuberantes (Dover, 1994).
Atualmente, os homossexuais se dedicam a uma espécie de
culto ao corpo másculo, a “saída do armário” para visibilidade,
não estão apenas os homossexuais afeminados, mas outras imagens identitárias, fazendo um contraponto com o tradicional travesti e uma reformulação identitária do gay, inserido num movimento de hipervirilização, a exemplo das figuras: do Boy - jovem
das camadas populares que pratica a musculação para vender seu
corpo, seja em espetáculo dos go-go boys, nas boates, ou se prostituindo nas ruas; e da Barbie - em alusão à boneca americana criada
em 1958, com o corpo feminino “perfeito”, para se referir aos homens que transam com homens, e que se dedicam a manutenção
do corpo musculoso e viril, seguindo a moda norte-americana clubber (Gontijo, 2009).
Para Fenichel (1981), há um interesse original no homossexual por mulheres, talvez isso explique o fato de ser tão difícil para
o homossexual, em especial, para o “ativo” reconhecer essa sua
condição, devido à reminiscência desse interesse que pode confundi-lo como sendo uma tendência heterossexual, uma vez que
sofre pressão da “heterossexualidade compulsória” (expressão de
SUMÁRIO
Leituras Diversas: Crônicas, Ensaios e Contos
| 239
Rich, 1980), e do preconceito sexual fortemente presente na maioria das sociedades. Entre a homofobia e a heterossexualidade compulsória, o medo coletivo das manifestações da diversidade sexual
é suscitado pelas brechas e ambiguidades internas da norma heterossexual, que revela seu caráter de convenção cultural e desloca
seu lugar social nesse processo (Natividade & Oliveira, 2013).
Finalmente, o que sustenta o julgamento de uma sexualidade normal é a união de dois órgãos sexuais diferentes para a preservação da espécie, cujo desvio, a depravação, é definido como a
“contra a natureza”. Concepção essa, herdada dos gregos, em particular de Aristóteles, que se apoia na teológica de uma Natureza,
na qual existiriam inclinações naturais nas coisas. Logo, todo ato
sexual que desvia dessa finalidade primeira da sexualidade, a
exemplo da heterossexualidade separada da procriação, homossexualidade e outros, é considerada perversão (Ceccarelli, 1998).
Para Freud (1976, p.211), “além de sua heterossexualidade manifesta, uma medida muito considerável de homossexualismo latente
ou inconsciente pode ser detectada em todas as pessoas normais”,
portanto, “o interesse sexual exclusivo que os homens sentem pelas mulheres é também um problema que exige esclarecimento
[...]”(Freud, 1989, p. 137). Assim, independente de qual seja a origem da homossexualidade, parece pertinente o que Deleuze (2004,
p.21) afirma: “contra os que pensam ´eu sou isto, eu sou aquilo`, e
pensam assim de uma maneira psicanalítica (referência à sua infância ou destino), é preciso pensar em termos incertos, improváveis:
eu não sei o que sou, tantas buscas ou tentativas necessárias, nãonarcísicas, não-edipianas - nenhuma bicha jamais poderá dizer
com certeza ´eu sou bicha`”.
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242 | M a g n o N i c o l a u ( O r g . )
COMO RESGATAR
PARAIBANOS DA MISÉRIA?
Valério Bronzeado
Como resgatar os 600 mil paraibanos que vivem abaixo da
linha da pobreza, contados no último censo pelo IBGE? Esses concidadãos vivem com rendimento familiar de até 1/4 de salário
mínimo. Por conseguinte, encontram-se em situação de pobreza
extrema, absoluta. Um grande problema que exige uma grande
solução.
Até aqui nosso sistema social foi incapaz de proporcionar
uma existência digna e satisfatória para milhares de concidadãos.
Nem tão pouco materializar a doutrina da “oportunidade igual
para todos”, requisito fundamental, ao lado da liberdade, da democracia verdadeira. Dar a cada um condições de igualdade significa tornar cada cidadão uma pessoa válida, bem informada e com
capacidade de reflexão própria, apta à realização pessoal, ao exercício da cidadania e com meios para tomar iniciativas válidas frente às exigências e às necessidades da vida. O ensino fundamental
obrigatório representa esse nivelamento e a melhor ferramenta de
que dispõe o cidadão na luta pela vida digna.
Há séculos que o ensino fundamental em nosso país, sobretudo na região Nordeste, vem sendo tratado como a última das
prioridades. Em 1995 o Brasil foi considerado no relatório do
UNICEF intitulado "The Progress of Nations" (O Progresso das
Nações), como o campeão do analfabetismo. Nosso país ocupava o
último lugar (129) no que tange ao nível do ensino fundamental
comparado à sua potencialidade econômica. De acordo com o potencial econômico brasileiro, pelo menos 88 por cento das crianças
matriculadas no primeiro grau deveriam concluir pelo menos a 5a.
série. Com base em dados fornecidos pelo Ministério da Educação,
o relatório da ONU informa que apenas 39 por cento alcança este
estágio.
SUMÁRIO
Leituras Diversas: Crônicas, Ensaios e Contos
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A Paraíba, por sua vez, é o terceiro estado do Brasil com
maior percentual de pobreza. Tal situação é reflexo direto de um
sistema educacional precário, de baixa qualidade, não universalizado.
Capitalismo X Socialismo
Leon Tostoi dizia que “enquanto os homens não se considerarem todos irmãos e não pensarem na vida humana como a mais
sagrada de todas as coisas, haverá sempre de arruinar a vida uns
dos outros por motivos de interesse pessoal”. Ao revés, Adam
Smith considerou fundamental que os homens busquem seus interesses. Dizia o pai do liberalismo: “Não é da benevolência do padeiro, do açougueiro ou do cervejeiro que eu espero que saia o
meu jantar, mas sim do empenho deles em promover seus ‘autos
interesses’”. Essas vantagens agem como uma “mão invisível” a
guiar a satisfação geral. O pensador inglês dizia que ao cuidar do
próprio interesse, sem sentir, cada um está cuidando do bem-estar
social. Uma frase de Adam Smith ficou famosa: "Assim, o mercador ou comerciante, movido apenas pelo seu próprio interesse
egoísta (self-interest), é levado por uma mão invisível a promover
algo que nunca fez parte do interesse dele: o bem-estar da sociedade." De fato, como seria difícil a distribuição de leite, pão, verduras
e outros gêneros pelo Estado a cada lar em cidades populosas, com
milhões de habitantes. No entanto, uma mão invisível organiza a
distribuição, e não há escassez desses produtos. A experiência
mostrou que os regimes comunistas, ao revés, caracterizam-se pela
falta, pela carência e pela privação de bens de consumo.
O capitalismo, todavia, gera um subproduto, nocivo, tóxico
às relações sociais: o individualismo. Na busca dos seus interesses
os indivíduos trancam-se em si e se negam, inclusive, a participar
das discussões de cidadania, de união política com seus semelhantes pelo bem comum. Vizinhos sequer se cumprimentam.
O papa Bento XVI condenou as desigualdades entre ricos e
pobres, fruto do capitalismo financeiro não regulado e a predominância da mentalidade egoísta/individualista que promove a "idolatria ao dinheiro" e a não garantia de "trabalho, atendimento à
saúde e educação dignos" a todos.
SUMÁRIO
244 | M a g n o N i c o l a u ( O r g . )
O capitalismo, todavia, tem uma qualidade insuperável. Ele
permite, através do cooperativismo, a prática do socialismo. O
cooperativismo é uma espécie de “comunismo” compartimentado
dentro do capitalismo. O cooperativismo preconiza a colaboração e
a associação de pessoas ou grupos com os mesmos interesses a fim
de obter vantagens comuns em suas atividades econômicas.
Governos que se dizem socialistas deveriam participar diretamente, planejando, organizando, fomentando, dessa poderosa
ferramenta de desenvolvimento humano e social chamada de cooperativismo.
KIBUTZINS PODEM SER A SOLUÇÃO
Programas de transferência de renda para sobrevivência
mínima são necessários, mas insuficientes. Dar o peixe sem ensinar
a pescar diminui a fome e salva vidas. Todavia, a esmola mantém a
miséria e vicia o cidadão.
O programas de concessão de crédito aos pequenos empreendedores e produtores rurais não foca diretamente a pobreza
absoluta.
Um sistema de fazendas coletivas organizadas pelo Estado
em forma de cooperativas seria, talvez, um caminho para o resgate
de milhares da miséria. Os kibutzim israelenses são a doutrina
socialista posta em prática de forma compartimentada para dar
ocupação, trabalho, renda, riqueza a quem precisa.
Em Israel milhares de pessoas participam dos lucros arando, plantando, criando, comercializando em cooperativas rurais e
de pesca. Há mais de 100 kibutzim urbanos nas cidades israelenses.
Temos na Paraíba áreas no entorno de açudes que se prestariam para a implantação desses centros coletivos onde os meios de
produção (terra, equipamento, sementes, etc.) seriam bancados
pelo governo para o resgate exclusivo dos que estão abaixo da
linha da pobreza.
Embora a ideia do kibutizim seja criticada face a uma suposta inaptidão para o trabalho comunitário/cooperativo dos que
vivem com baixíssima renda, nunca foi tentado por aqui, nem sequer como uma experiência piloto.
Por fim, não custa nada perguntar: Você saberia como resgatar 600 mil paraibanos da miséria de forma sustentável?
SUMÁRIO
Leituras Diversas: Crônicas, Ensaios e Contos
| 245
CONTOS
TEORIA DO MATUTISMO
Adilson Silva Ferraz
O trem solta um forte jato de vapor, que sobe rapidamente.
De repente, uma sirene toca, e todas as portas são abertas. Podia-se
ver uma fina neblina pairando no ar. Uma multidão apressada de
passageiros desce com suas malas buscando a saída da Estación
Desamparados. Aparentemente, muitos deles eram descendentes de
indígenas andinos, com sua cor de pele e estatura características,
seus colares e roupas coloridas. Já os forasteiros eram fáceis de
identificar por preferirem tonalidades mais sóbrias. As pessoas
pareciam correr mais do que o normal, não apenas por estarem
cuidando de seus afazeres na Ciudad de los Reyes, mas também para
fugir do frio. Mas nem mesmo a baixa temperatura espantava os
vendedores de artesanato, que, em meio a um burburinho constante vindo dos bancos de pimentas e temperos dos mais variados,
sentavam-se ao lado de suas criações. O cheiro dos temperos competia somente com o de ceviche e o picante de curry; inundava as
narinas, convidando os que chegavam a uma boa refeição no local.
Ao mesmo tempo, se podia escutar não muito longe uma música
tradicional, recheada de flautas e de acordes vivos vindos de algum instrumento de cordas. Sem dúvida, a cena era bastante pitoresca. Zé abre um sorriso. Está vestido com uma camisa branca de
botão, mostrando os pelos do peito, uma calça bege e alpercatas,
cuja sola do lado esquerdo estava se descolando. Destacava-se o
encaixe perfeito do chapéu de couro em sua cabeça. Zé conseguia
ser notado até mesmo naquela confusão de pessoas que se chocavam a todo momento. Alguns olhavam para ele com curiosidade;
SUMÁRIO
246 | M a g n o N i c o l a u ( O r g . )
outros, com desdém. De fato, aquele homem era diferente de qualquer pessoa que tivesse passado até então por aquela estação. Ninguém se daria conta que esta é a melhor estratégia quando alguém
quer justamente passar despercebido. Mas isso não lhe importava,
assim como não era um problema que lhe faltasse um dos dentes
de cima e que sua barba estivesse mal feita. Contanto que ele pudesse assar um milho e dançar um forró no mês de junho, Zé estaria feliz. Levava consigo apenas uma bolsa de tecido com alça,
dessas de pendurar no ombro, costurada com muito zelo por sua
mulher, além de um pequeno cantil com água. Dentro do saco
(como ele chamava a bolsa), havia algumas roupas, uma banda já
velha de bolo de fubá, um resto de pão e as cascas das laranjascravo cujo cheiro havia incensado o vagão do trem por quase toda
a viagem. Na mão, um papel com algumas instruções em ordem
numérica. A primeira delas dizia: “Um coche negro o espera do
lado de fora da estação. Entre no coche”. Ele cumpre à risca a indicação. Após alguns minutos chacoalhando naquela carroça de luxo, Zé descruza os braços e, ao som do trote dos cavalos, olha pela
janela. Sem saber que aquela era a catedral, faz com devoção o
sinal da cruz. A imponência daquela construção não ofuscou a
lembrança imediata da pequena capela de sua terra natal, pintada
com tinta amarela e branca, já descascada pelo tempo, onde ia rezar para Nossa Senhora. Já sentia falta de Maria, do cachorro, que
chamavam Totó, e de seus três filhos. Num impulso, colocou a
mão no bolso e tocou as contas desgastadas do velho terço que
havia herdado de sua finada mãe. Sentiu naquele momento que
nada poderia atrapalhar sua missão. Descendo do coche, uma palavra foi suficiente para definir o que estava vendo: “Arretado!”.
Para quem havia saído do interior de Pernambuco, cresceu indo
buscar balde d’água no açude e comendo palma durante a seca. A
visão do rio Rímac e do tímido encontro gastronômico que depois
se chamaria “Mistura” eram uma dádiva para os olhos.A vida começou difícil para Zé. Primogênito de oito filhos homens, dos
quais alguns morreram pouco tempo após o parto, acabou por
dividir com os pais a tarefa de cuidar dos irmãos mais novos. Aos
dez anos, aprendeu a ler e escrever praticamente sozinho, ensaiando o desenho das letras e a pronúncia com a ajuda de uma tia que
lhe corrigia. Não havia escola a menos de 20 km de distância de
Sapucarana, sua cidade natal, e tardaria muito tempo até que fosse
inaugurada a primeira por um conhecido deputado. Ainda crian-
SUMÁRIO
Leituras Diversas: Crônicas, Ensaios e Contos
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ça, Zé aprendeu com o pai o ofício de “sobrevivente”. Plantavam
milho e feijão, e, às vezes, iam até a feira de Caruaru para vender o
que lhes sobrava ou trocar por outras mercadorias. De vez em
quando, iam para o mato atrás de lambus e rolinhas, mas estava
cada vez mais difícil encontrar o que abater. As coisas não mudavam nunca em Sapucarana; mesmo depois que ele se juntou com
Maria, a vida não passava de uma luta eterna contra a natureza.
Quase todos os anos a seca castigava o roçado e os animais, e, muitas vezes, no prato só havia feijão polvilhado com um punhado de
farinha. Certo dia, um carro para em frente à casa de Zé. Dele, descem dois homens muito bem vestidos, usando ternos, desses que
só eram vendidos longe, em Recife. Batem à porta. A maioria dos
que viviam ali nunca tinha visto um carro, o que fez com que muitos saíssem de suas casas e exclamassem: “Imagina só, um automóvel! Em Sapucarana!”. Na verdade, a maioria não teve tempo
de se orgulhar ao admirar esse avanço civilizatório; preferiam especular sobre o porquê de um carro estar parado exatamente em
frente à casa de Zé: “Só pode ser polícia! Bem que eu ouvi dizer
que esse Zé é metido a cangaceiro!”. Já dentro da casa, os agentes
ficaram impressionados com a esperteza do matuto. Concluíram
que ele possuía uma enorme engenhosidade para solucionar problemas: não foi preciso muito tempo para que transbordasse aquela sabedoria simples que é indispensável naquelas terras. Após
meia hora de conversa, em presença de Maria e Totó, os agentes
fizeram a proposta. A única coisa em que Zé pensou ao fazerem
aquele convite inusual foi: “Eu nunca servi o exército. Nunca votei
em político. Nunca nem saí de Sapucarana, nem ninguém veio
aqui perguntar como eu tô... Por que eu?”.Naqueles tempos, o
Serviço de Inteligência brasileiro estava precisando de um agente
especial. Alguém que, como todo agente secreto, fosse capaz de
entrar e sair de qualquer lugar sem ser percebido e que lograsse se
infiltrar nos grupos mais fechados. Segundo o relatório do próprio
Serviço, o agente deveria ser alguém não só acima de qualquer
suspeita, mas sobretudo “alguém que seja ninguém”. A explicação
é simples. Haviam chegado à conclusão de que a tão aceita teoria
da lealdade é falha. Selecionar dentre milhares de candidatos alguns poucos que não trairiam seu país não parecia mais ser uma
boa estratégia. Na escolha dos agentes, além dos testes intelectuais
e físicos, era realizada uma intensa bateria de provas psicológicas,
para verificar a capacidade do candidato de manter a coerência de
SUMÁRIO
248 | M a g n o N i c o l a u ( O r g . )
seus ideais. Se um candidato demonstrasse possuir ideais considerados contrários aos interesses da pátria, era sumariamente excluído. Claro que a coerência, os ideais e os interesses eram definidos
pelo governo que estava no poder, e é por isso que os aprovados
eram sempre aqueles que aceitassem fazer qualquer coisa pelo seu
país sem questionar as causas e a moralidade de suas ações. Entretanto, após algumas experiências que resultaram desastrosas para
o Serviço, percebeu-se o óbvio: a ideologia dos agentes pode mudar durante o jogo, em função de novos interesses. Como consequência, mudam também suas ações. É o que faz com que a espionagem seja uma atividade de altíssimo risco para qualquer país.
Assim, para evitar a ineficácia do sistema tradicional, foi criada
uma divisão no Serviço, responsável por recrutar pessoas diferentes, que não tivessem sido, em certo sentido, contaminadas pela
ganância e desejo de consumo. O principal critério de seleção não
seria mais a quantidade de conhecimentos, nem a capacidade física, tampouco a lealdade a qualquer custo, mas, sim, o altruísmo
inabalável dos que de pouco necessitam. E foi assim que Zé tornou-se o primeiro agente secreto matuto (Agente-M) da história do
Brasil. A entrada do Agente-M causou polêmica no Serviço. Seus
colegas duvidavam de sua capacidade para integrar aquele grupo
tão seleto. Acreditavam que ele seria incompetente para realizar
uma missão, por mais simples que fosse. E assim, quando se referiam ao novo agente, era comum que o chamassem de “Zé ninguém”. E, de fato, Zé não existia para a maioria dos seus colegas.
A mudança se deu quando Zé foi designado para atuar em Lima,
pois frequentemente um agente acabava se tornando visível por
força da inveja de outros agentes.E por que ele foi a Lima? Desde
1945, havia rumores de que a guerra seria ganha com ajuda de
uma poderosa tecnologia, desenvolvida por “algumas das melhores cabeças pensantes do mundo”, que, naquela época, estavam,
obviamente, na Alemanha... Após o fracasso do Dia D, era sabido
que os engenheiros das forças armadas alemãs haviam logrado
concentrar todo seu potencial destrutivo em uma única arma mortal. Segundo um relatório do Serviço, o seu nome era autoexplicativo. Chamaram-na “MONOS”. Segundo foi informado a Zé, ainda
em Recife, o plano era roubar essa arma, dando ao mesmo tempo
uma lição aos nazistas e peruanos. O Diretório Central do Serviço
(DCS) tinha indícios sólidos de que o Peru entraria brevemente na
guerra apoiando os alemães, o que representava uma grande ame-
SUMÁRIO
Leituras Diversas: Crônicas, Ensaios e Contos
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aça ao Brasil. Dominariam primeiramente o Chile, com um grande
ataque a Santiago, emendando com ofensivas a Buenos Aires e ao
Rio de Janeiro. Se isso fosse verdade, a Hitler faltaria conquistar
apenas alguns países menores da América do Sul. Havia rumores
de que os últimos focos de resistência nos Estados Unidos já não
existiam mais. A situação era realmente preocupante.Frente à iminência dessa catástrofe, se tornou extrema a preocupação com o
que acontecia nos bastidores do Serviço. A corrupção havia, há um
bom tempo, corroído todos os seus estratos, atingindo desde o
mais simples agente até os poucos chefes do alto escalão que tinham o privilégio de conversar diretamente com o presidente da
república, o que pode ser explicado parcialmente pelo momento
político vivido no país. O governo brasileiro lutava para manter-se
no poder, utilizando-se de propaganda ideológica massiva, perseguições aos opositores e outras práticas que eram próprias aos
regimes fascistas, como o de Mussolini. Sem contar que os gastos
com novos direitos sociais acabaram por minar as finanças públicas. E ainda havia a guerra, que obrigou o país a assumir uma posição no tabuleiro. Daí a importância extrema da operação Ciudad
de los Reyes. Mas nada disso importava para Zé. Se não faltasse
chuva naquele ano, se o milho fosse suficiente para dar de comer
às galinhas, se ele pudesse se deitar na rede novamente com Maria,
tudo estaria bem. Ele queria mesmo era voltar para Sapucarana.
Antes de sair do Recife, o Serviço informou a Zé que um carregamento iria chegar naquela noite no porto El Callao. No papel, ele
leu a segunda indicação: “No navio Caraboujan há uma caixa com o
nome ‘MONOS’. É a temível arma. ”Após algumas horas, chegando ao local indicado, Zé avista um cargueiro gigantesco e muito
antigo, cheio de caixas. A noite estava fria e o ar frio da manhã
havia se espessado na forma de uma neblina densa. Zé estava desconfiado, não acreditava muito nessa história de arma, apesar de
ter feito uma longa viagem até aquele lugar. Também achou estranho que não houvesse ninguém a bordo. O navio estava deserto.
No topo da maior caixa que havia, estava escrito o nome indicado
pelo Serviço. Seguindo a terceira instrução, Zé abriu a caixa sem
muito esforço e não acreditou no que viu! Bastaram alguns segundos para entender a situação, em meio a gritos e saltos dos animais. Os alemães riam da Inteligência brasileira e festejavam o
sucesso de sua operação Traduttore, Traditore: MONO quer dizer
“macaco” em espanhol. Comprovaram que às vezes a melhor for-
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ma de enganar alguém é não ocultar nada, e deixar que se emaranhe em suas próprias teorias e especulações. Nesse exato momento, o Peru começava seu ataque a Santiago; não houve qualquer
chance de defesa. Dois dias depois, Buenos Aires seria completamente destruída. Nessa mesma noite, Zé encaminha um comunicado confidencial ao chefe do DCS, solicitando que depois seja
imediatamente repassado ao presidente da república. Dizem que
foi a última carta recebida por Getúlio Vargas:
“Vossa Senhoria, Seu Doutor,
Escrevo pra lhe dizer, preste atenção por favor,
se a tal arma é pra roubar, há muito que se fazer.
Pra num arriscá se aperriar, espere os gringo atacar,
pegue um jumento com balaio, bicho bom pra se defender,
mas tem que ser do que aguenta tudo, feira pesada, sopapo e
mosquito
safado.
Pra dar cumprimento, bote em cima dele um cabra valente, dos
que mata
cobra só de mostrar os dente,
e mande espalhar, sem pena nem pirangagem, banana pra dar e
vender.
E se isso não resolver, diga ao Senhor Presidente,
Excelência de última patente!, que num se avexe não...
A tal arma é peba demais.
Num carece de fazer fuleragem, mandar soldado ou espião;
O tal de MONOS num assusta moça nem rapaz.
Pra resolver a situação, peça milagre a Frei Damião.
E se nada resolver, bote uma roupa de gente!
Aperte o passo, com uma mão atrás e outra na frente,
que, contra macaco, o remédio mesmo é correr.
Agente-M.
P.S.: Contra deslealdade, corrupção e burrice, nem matuto salva!”
(Dedicado a Paul Baudry e em agradecimento a Isabel e Massi
pelos dias em Laggio di Cadore)
Paris, França, 24/07/2013.
SUMÁRIO
Leituras Diversas: Crônicas, Ensaios e Contos
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252 | M a g n o N i c o l a u ( O r g . )
VÊ SE ME TELEFONA, BERENICE
Arland de Souza Lopes
Ficar deitado na cama, com o olhar perdido no forro branco
do quarto, não me leva a nada. Assim eu só penso em sacanagens
mil e aventuras impossíveis. A leitura, essa, me é fatigante depois
de vencer alguns capítulos do livro, embora, no final deles, eu me
sinta intelectualmente realizado, com aquela sensação de ter contribuído com a dose diária de cultura que a minha sensibilidade
exige.
Estou seco que Berenice me telefone, neste sábado de muitas
expectativas e nada de real até agora. Ela é dessa mulheres misteriosas, que surgem na vida da gente de forma inesperada e se vão
sem deixar vestígios – o que restou entre nós foi apenas a lembrança de uma trepada em estado de semiconsciência etílica e o impacto de meia dúzia de ideias pessimistas ditas para impressioná-la.
Aliás, eu estou convencido que não há nada como o cara se fazer
de sofrido e desgraçado para despertar o interesse de uma mulher.
Ela, sempre maternal, logo nos põe nos braços (numa atitude de
amparo incestuoso) e imagina que está realizando a maior caridade de sua vida para depois ficar perdidamente apaixonada.
Berenice não foi diferente das outras, ao me revelar, após
minhas lamentações: - “Como você é estranho!”. Retruquei que
eu não tenho nada de estranho, além de uma atávica fixação suicida e o irresistível impulso de rir nos velórios a que sou obrigado a
comparecer. -“Mas você é completamente louco!”, insistiu ela. –
“Minha nega, você é que ainda não nasceu!”, concluí o papo, entre
beijos e afagos.
O que leva uma pessoa a questionar tudo, achar que a vida é
efêmera demais para ser vivida dentro dos padrões estabelecidos?
Assim sou eu. Fico tentando ver além dos meus horizontes, imagino (sem entender direito) por que se morre por tão pouco – algo
como um cara que caminha pelo asfalto achando que é eterno e, de
repente, pum!, um carro deixa-o em pedacinhos na via pública; ou
SUMÁRIO
Leituras Diversas: Crônicas, Ensaios e Contos
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mesmo um inocente que toma uma bala perdida nos peitos sem
saber a razão daquela surpresa. Me dá um frenesi dos diabos imaginar que corro estes riscos, embora às vezes a velha atração pela
morte embote momentaneamente esse meu pavor ancestral. O
certo é que a vida não é uma simples via de passagem – como querem entender os crédulos – mas uma via de permanência, que pode não ter tido anterioridade nem terá tampouco posteridade.
Amo Berenice? Ou vejo nela apenas uma fêmea bonita, gostosa, que me acolheu em seu regaço numa noite que tinha tudo
para ser vazia e fodida? Se ao menos ela me telefonasse, essa dúvida seria passada a limpo. A verdade é que o amor não tem nada a
ver com a saudade do corpo no qual a gente pastou um dia antes; é
mais do que isso e não é essa merda toda, porque passa, fenece,
cria lodo e cheiro de podre. Digo isso pensando no Judas, de Thomas Hardy, para quem “não está na natureza humana amar o
mesmo ser toda a vida”. Ora, que se fodam as filosofias sobre o
amor, o que sei é que Berenice me cativou desde que a vi e a perdi
de vista e me faria feliz se ressurgisse, mesmo por telefone.
Se deitar não me convém, muito menos vale a pena andar
desvairado pelos cômodos da casa. Radiola, tapete, chuveiro, mesa, pia, tv, quadro, quadro, quadro... A casa é refúgio e prisão e
nela me sinto prestes a ser um novo Gregor Samsa, só que ao invés
de numa barata eu me transformaria num enorme e abominável
roedor, que bufa e extermina cream crackers e chitos do armário da
cozinha. No meu sonho de bicho ninguém me mata, pois morto eu
apodreço rápido e não sofro muito; querem-me vivo, porque a
vida representa uma putrefação mais lenta e complicada. Sair de
casa e ganhar as ruas da cidade, talvez seja a única solução para o
fim do meu drama. As ruas palpitam de agitação e mobilidade,
exibindo rostos suados, peitos, bundas, vozes e uma miríade de
probabilidades. Divido-me entre sair ou ficar, sem forças para tomar uma decisão.
Mas como sair, se a qualquer momento Berenice pode me telefonar?
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ENTRE PONTOS
(Crônica de autoajuda)
Arturo Gouveia
A menor distância entre dois pontos é uma curva. Não sou o
primeiro a dizer isso, nem serei o último. Esse delito da lógica provém da física. Mas vejam bem o que me aconteceu entre o avião e a
favela:
Eu vinha de Barcelona, de um leilão internacional. Tudo tinha sido de exaustivo conforto, até o auge das extravagâncias: no
sanduíche servido pela aeromoça, a azeitona estava sem caroço!
Era uma azeitona completa, gorduchinha, não em fatias. Isso me
chamou mais atenção do que todos os objetos dos Beatles - um
botão de uma calça de Lennon, a primeira chupeta de Paul, o primeiro preservativo de Ringo, o segundo modes da primeira namorada do segundo filho da terceira babá do outro -, tudo arrebatado
por fortunas vivas. Mas a azeitona sem caroço foi um desprezo à
minha arcada, uma das melhores do mundo, segundo meu dentista, a quem pago dois mil dólares por mês. A última cirurgia a laser, sem anestesia, foi um pouco mais cara: seis mil dólares (o que
devorou 100 % de meu orçamento de Brasília). Passei a mão na
boca, para ver se ela ainda estava no lugar: estava. Então chamei a
aeromoça e perguntei que desrespeito era aquele com meus dentes. Será que eu estava ficando velho sem notar, tal era o meu duro
em três, quatro voos por semana?
- É só para o senhor não ter muito trabalho. A companhia
sabe que os executivos são muito ocupados e não têm tempo a
perder com caroço. Assim, facilitamos a sua vida, em tudo o que
nos for possível.
Eu ia entrar na justiça com um pedido de indenização por
danos morais. Mas a aeromoça era tão simpática, estava sempre
rindo, e aí engavetei o processo. Mastiguei a azeitona, que se derreteu na minha língua, antes mesmo de tocar nos dentes. O avião
fez uma curva, que para mim foi uma reta, pois não senti a menor
SUMÁRIO
Leituras Diversas: Crônicas, Ensaios e Contos
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alteração nas almofadas. Talvez fosse o efeito do vinho, muito forte, fabricado, segundo o rótulo, em Avignon, ainda na Idade Média, por ordem de João XXII, que tomou o primeiro gole. Ou talvez
eu estivesse entorpecido pelo sabor da carne: bifes de trinta centímetros quadrados de peito de canguru, contrabandeado da Austrália por uma entidade ecológica. Era também provável que fosse
o sono do uísque, cujos barris eu nem lembro mais de que século
eram. Dizer que eram os lençóis, de seda artesanal indiana, é uma
mentira. Ou que eram os lenços, perfumados com substâncias das
últimas orquídeas roxas da Amazônia, é uma calúnia. O que sei é
que não senti as curvas, mesmo com o piloto anunciando toda
hora. Quando vi a azeitona aberta, esfaqueada por dentro, estuprada pela gentileza dos cozinheiros, para que comêssemos a pequena vítima sem esforço... Quando vi aquela menor abandonada
em meu prato, prostituída pelas facas, desvirginada à força, desvaginada pela arte culinária... aquela bebê sondada, com o carocinho de poucos dias abortado... aquela inocente sem trompas, sem
útero, com o feto jogado no lixo, o ventre agora lambido por minha
língua... Não, não tinha curva que me desviasse do remorso ou,
quiçá, da ereção.
Este ponto ficou na minha cabeça até o aeroporto. Por causa
das chuvas, tive que dispensar o jatinho e enfrentar São Paulo de
táxi. E logo no 16 de junho, dia do meu aniversário! Eu tinha que
estar nos Jardins em uma hora, para uma reunião inadiável. Mas o
trânsito começou a engrossar. Já na periferia, paramos na boca da
Favela do Perdão, com uma ambulância pedindo passagem aos
milhares de concorrentes. A polícia estava caçando um marginal,
espalhando fotos dele em cartazes mortais. Embaixo, alguns traços
dele, para alguém que o visse: não tinha um dente, só metade de
uma orelha, pedaço do nariz rachado a bala, um esfaqueamento no
olho direito, a pálpebra esquerda arrancada, os lábios assados em
brasa, o véu palatal incendiado, a língua atravessada por pregos, o
pescoço com duas tentativas de decapitação, os ouvidos semiestourados, a mandíbula deslocada, o occipital raspado, a testa cortada a canivete, as sobrancelhas lichadas e pichadas, as bochechas
remendadas com maçarico, a nuca com marcas de martelo e pé-decabra, as clavículas esfoladas, o tronco pontilhado, a mão esquerda
decepada, a direita só com o indicador, a bacia torcida, as pernas
em falso, os calcanhares partidos e a alma em petição de óbito.
SUMÁRIO
256 | M a g n o N i c o l a u ( O r g . )
Com todos esses méritos, devidos às brigas de gangs e passagens
pela polícia, que sempre quis reintegrá-lo à sociedade, Gagau ainda foi capaz de um mérito maior: para punir a mulher, que não
queria mais o seu amor, estuprou as duas filhinhas, uma de três
anos e outra de dois. Como era famoso pelo pênis degolado (assim
premiado em uma das sessões de reintegração social), a polícia
suspeitava do indicador, o que, sem dúvida, tinha causado menos
sofrimento às meninas. Levadas para exame de hímen-delito, ficou
comprovado que o pai tinha encaixado no dedo uma garrafinha
com o fundo quebrado, o que ainda era uma opção abençoável. O
exame foi feito com microscópio e mostrava o quanto o pênis dele,
imundo e decapitado, poderia ter sido menos humano. Há meses
que Gagau estava sendo procurado e a polícia vinha vigiando a
mansão dele já há uns dias. Carente, tinha voltado para a mulher,
com a proposta de reatar os laços afetivos. E o resultado era esse aí:
a ambulância gemendo no trânsito doente, em plena Marginal, a
mãe louca e o pai escondido em algum ponto de São Paulo.
Este ponto agora ninguém é obrigado a ler. É um intervalo de desperdício, só para registrar uma pichação que vi num dos muros da favela,
durante a vistoria de meu táxi. Diziam que era o protesto de um poeta apaixonado pela prostituta Maria Sublime, nascida em 1904, morta há um ano
por policiais com supositórios de pólvora. Outros diziam que era mensagem
de grupos de desempregados que estavam formando pequenas polícias
secretas de traficantes para insultar a polícia verdadeira, a patriótica, e convidá-la, dentro da lei, para emboscadas. Fosse o que fosse, era uma linguagem absolutamente cifrada e sem vínculo com o real:
.INTERPONTO
.2+2 = 3,999999999... = curva = espaços impreenchidos = os des-vãos =
a angústia da incompletude = a celebração demoníaca da imperfeição = agônicos quases = o inabsoluto - o mal = infernos sublimes = a impotência do
bem = inequações exatas = entre polí-cia e marginá-lia não há hiato = silêncios nocivos = bocas parafusadas = zeros plurais = 0,999...+2+3 = nada º = o
quadrado do nada = ruínas infantis = palácios de barro = berços atrofiados =
e os sujeitos dos crimes? = insujeitos = anônimos de farda = em detrimento =
Xs e Ys estourados = detritos de Maria = n culpados = e a Branca cega = missais de crimes = execuções exemplares = irrupções de criaturas = teologia do
mal = perdões vingados = proliferar o medo = curvar por dentro = síndromes
SUMÁRIO
Leituras Diversas: Crônicas, Ensaios e Contos
| 257
de grosserias = inoção de limite = favelas descabaçadas = bucetas escolásticas = s esquartejados = pobres ninguéns = os nadas totalizados = - 0,999... =
0,0s = pontos incontínuos = o risco dos ínterins = a miséria até no átomo = o
agora jamais = futuros sem ângulo = 16 de junho de 1904 = entre seios sifílicos = mulheres dissecadas = trono de micróbios = um é dois = a cabeça de
Batista = não serve nem para o mal = covas de cicatrizes = + pus =
9,999999999 feridas = milênios de danos = ponto final.
O capitão Batista afirmou que tinha filósofos trabalhando para os
traficantes. E que o perigo de Gagau ia se irradiar, se o povo colaborasse
com ele. Gagau, por sua vez, andou espalhando a resposta: desde o ventre
nada tinha a perder, tendo se multiplicado agora. Não temia a polícia, sua
mãe e mestra, com quem aprendera tudo. Lembrou que muitas mães foram
mortas por filhos pródigos e a polícia não seria exceção. Batistinha que se
cuidasse, porque sua linda cabecinha ia ser cortada, limpada de todos os
excrementos por dentro e transformada numa cuia para o povo pedir esmola
com dignidade.
Quando as pistas se esvaziaram, já perto da meia-noite, eu já
podia me considerar um miserável: tinha perdido a reunião milionária e meus concorrentes é que iam esfaquear os cofres públicos.
Isso me fez perder a fé em Deus e na justiça, que naquela noite
deram as costas pra mim. Quem deu a frente pra mim, já no fim do
último desvio, foi um mendigo idêntico ao bandido do cartaz. Ele
se aproximou, botou a única mão dentro do táxi e disse:
- Doutor, eu não comi nada hoje. Vim lá da Paraíba há vinte
anos e ainda não arrumei nada. Me dê um trocadinho aí. Hoje é
meu aniversário e eu tenho que comer alguma coisa. Nem que seja
um caroço de azeitona.
SUMÁRIO
258 | M a g n o N i c o l a u ( O r g . )
NOTURNO DE AMSTERDAM
Astier Basílio
Antes que eu cumpra o prometido, tenho de reconhecer que
você tinha razão.
Não deveria ter ido ao teatro ver a adaptação de Operação
Massacre. Sim, o Walsh dos K, sequestrado pela oficialidade, é uma
caricatura do grande escritor que ele foi. Mesmo discordando da
essência que te motiva a dizer isso, o resultado do espetáculo, tenho que reconhecer, não é bom. Ainda que não compactue com as
críticas que você faz a Cristina é, de um modo geral, esquisito a
inversão de signos proposta pela Companhia Estatal de Protesto.
Mas veja: embora eu concorde, em gênero, número e grau,
com o que houve com o Clarín (ok, não vamos discutir isso de novo), do ponto de vista estético, acredito que inverter o signo, nesta
montagem, não funcionou. Seria melhor ter mantido a estrutura
kafkiana de processo de execução sumária, que está no livro, e
optar por uma montagem histórica mesmo. Em suma: mostrar, no
palco, os militares como agentes da repressão e do arbítrio, como
faz Walsh. E sugerir, na dimensão metafórica, a atualização destes
agentes, destas novas relações de poder e opressão – quem sabe de
modo mais sugestivo. Ao vestir a roupa de vilões burocráticos nos
jornalistas e nos donos do Clarín, algo ficou faltando na construção
simbólica do espetáculo. Não que do ponto de vista conceitual seja
inaceitável (não é isso), mas na plataforma de execução artística
algo falhou.
O taxista quase me fez perder meu horário; cheguei em cima da hora, a van com os jornalistas já tinha se deslocado, o jeito
foi seguir direto para o cinema. Engraçado que, por alguma razão
que não sei ainda qual, nem perguntei ao motorista, tive de repetir
umas três vezes o meu destino: “Festival de Cinema holandês”.
Será que ele achou meio inverossímil que tal houvesse por estas
bandas ou precisarei de mais aulas de espanhol?
Não, não me esqueci do seu pedido.
SUMÁRIO
Leituras Diversas: Crônicas, Ensaios e Contos
| 259
Antes, deixa-me te perguntar. Que te parece o título? Noturno de Amsterdam. Eu aprecio muitíssimo.
Que tarefa difícil, contar o filme, sem dizê-lo todo. Você chegou a mencionar algum receio de que pelo fato de ser uma produção franco-holandesa, o Cortázar que surgisse fosse um personagem comprometido com uma paisagem que não era a sua propriamente.
É noite, quando a primeira cena acontece.
A rua é de um tipo de material antigo, suponho que pedra
ou paralelepípedo. Pouco importa. Faz barulho. Ouvimos o matraquear dos sapatos que desviam de poças de lama. Passo a passo.
Antes que notemos o personagem que caminha pela penumbra,
acontece outro barulho. Mais intenso. A ação trascorre em outro
ambiente. Desta vez, em um quarto. Ouvimos batidas numa máquina de escrever. Quem datilografa está fumando. A fumaça impede o rosto. Na imagem simultânea, o marchar de alguém que
continua na escuridão. Lá fora está chovendo.
A tela se divide em duas. É quase um bolero.
A folha é puxada. Antes que se leia qualquer coisa, voltamos
à imagem do solitário que caminha. Chove. Ele está sob um guarda-chuva preto. Fuma. E se direciona para um local iluminado. Há
outras pessoas. Formam uma fila. O homem se acomoda. Estamos
no cine Pathé, de Amsterdam, onde um letreiro risca a escuridão
vaporosa e em que se lê Blow up. Fechando o guarda-chuva, Cortázar pede um ingresso. Agradece. E entra. Como se fosse qualquer
um de nós. No quarto, a janela é aberta. O rosto barbudo se ilumina. O escritor joga o cigarro. Puxa a folha da máquina. Estamos
nos ombros de Cortázar.
París, 4 de septiembre de 1965
Querido Paco
Noticia personal y todavimuy privada. Recebí uma carta increíblede
Antonioni. Leyó lós cuentos em La edición Einaudi, se subió por las
paredes (supongo que com La ayuda de Mónica Vitti, el muy desgraciado, mirá que tener eso en casa...), y me dijo que “Las babas del diablo” era exactamente ló que estaba buscando hace años para hacer um
film.
Agora, mais uma vez, devo concordar contigo.
SUMÁRIO
260 | M a g n o N i c o l a u ( O r g . )
Meu receio era infundado.
Você tem razão.
Mais do que a semelhança física, havia algo de Cortázar em
Vincent Cassel, sim.
Mas não era perceptível a todos. Você riu de meu “patriotismo”, quando disse que ao saber da escalação dele para o papel
achei-a inoportuna e preferia alguém da tarimba de Ricardo Darin
(engraçado que não gostes dele). Me assombrou como o francês
dominou o espanhol e soube, milagroso percurso ao inverso, dosar
a ferrugem francesa do sotaque de Cortázar que até eu, que não
sou muito bom em distinguir nuanças do espanhol, percebia.
Mais do que isso, Vincent Cassel como que adquiriu o jeito
que classifico de ‘arrogante irresistível’. Eu sei. É uma tipificação
que recusas. Até te imagino olhando o longe, arqueando a sobrancelha esquerda e me dizendo:“Isso é coisa de vocês, desse povo
que se desmancha em cordialidades, em meandros como evoluções de samba”.
Enquanto te escrevo, confiro no La Nación uma informação
que circulou entre os jornalistas quando voltávamos da sessão de
Noturno: Vicent Cassel foi convidado para protagonizar uma grande montagem teatral de A Casa Tomada. Na matéria, não há qualquer confirmação do ator ou representantes. Há uma longa entrevista com o diretor Víctor José Fernández, que levará este projeto
adiante. Farão uma inversão de signos também. Espero que desta
vez se consiga um resultado à altura.
Te explico.
Na montagem, Fernández quer ler a narrativa de Cortázar
sob o signo de uma pergunta bem pertinente: Quem é o invasor e
quem é o proprietário? Confesso que após o café da manhã irei a
um dos sebos aqui perto e comprarei uma edição de bolso de Armas secretas e vou reler o livro. Deu-me um certo curto-circuito
(perturbadoramente genial!) só de pensar o conto sob esta perspectiva. E, para você rir um pouco de mim com estes teus olhos que
estão a me matar por sua ausência, Fernández disse que o encadeamento de governos democráticos, progressistas, o que eu denominei de ciclo bolivariano, é uma ótima chave para se estruturar o
seu espetáculo.
O raciocínio dele é o seguinte: Fernández diz que não tem
medo de enfrentar os lugares cristalizados. Daí a ousadia de ver o
SUMÁRIO
Leituras Diversas: Crônicas, Ensaios e Contos
| 261
despertar progressista, do Brasil, da Venezuela, da Argentina, do
Uruguai, a presença silenciosa que restaura a casa – aqueles secretos movimentos que expulsam os supostos donos daquela mansão.
O encenador até cita que Cortázar meio que deixou a entender isso
em pequenos detalhes como a linha de crochê, dos inquilinos expulsos, a denotar certo traço burguês, individualista, pois, remete
diretamente à Penélope e seu drama de esfera pessoal, posto na
Odisseia; concordo com Fernández quando ele diz que o seu Homero preferido é o da Ilíada.
Garanto-lhe uma coisa. Cassel, estando ou não, teremos um
grandioso espetáculo. Embora você vá discordar de mim.
Sempre teremos Buenos Aires.
Queria muito te encontrar.
SUMÁRIO
262 | M a g n o N i c o l a u ( O r g . )
A QUEDA DO PROSTÍBULO
Carlos Henrique Leite
Toda cidade conhecia de sobra a coragem do vigário. Homem jovem, de seus vinte e poucos anos, franzino e sem papas na
língua, já dera provas do seu destemor.
Conhecedor profundo de ciências humanas, a todos encantava com seu verbo fácil e grande poder de convencimento. Diziam até que havia estudado em Roma, como depois foi comprovado. As solteironas ficavam embevecidas com a prosa do padre
Chico Ferreira. As más-línguas diziam que tinha um xodó com a
beata Dasdores, coisas de cidade pequena e gente desocupada.
Mas a verdade é que era por todos amado e respeitado; menos
pelos poderosos e mandantes que temiam o envolvimento em torno de sua figura carismática.
A comunidade se recorda de um episódio que marcou a sua
passagem em Conceição. Cidade pequena de povo atrasado, vivia
momentos de aflição e revolta. Ninguém entendia como uma cidade de gente tão devota e trabalhadora se tornasse, de um momento
para outro, um verdadeiro caos; só sendo coisa do demônio, que
gente daqui não podia ser. Só mesmo um castigo.
Toda essa revolta se justificava pela recente instalação de um
cabaré, pelo comerciante João Cego, na saída da rua principal, verdadeira afronta às recatadas famílias que viam naquilo a perdição
e a depravação por completo da pequena comuna. Era demais.
Não. Não podiam tolerar mesmo. Teria que haver um jeito.
As mulheres mais afoitas se reuniam e discutiam em voz alta; as mais acanhadas ficavam quietas, brechando todo aquele alvoroço pelas frestas das janelas. As moças, essas coitadas, permaneciam trancadas a sete chaves, que moça solteira não podia sequer ouvir falar naquela perdição. Quanto aos homens, se faziam
revoltados apenas para manter as aparências e evitar as brigas em
casa; mas, na verdade, estavam eram gostando.
SUMÁRIO
Leituras Diversas: Crônicas, Ensaios e Contos
| 263
De repente, do meio da multidão, surge uma solução: iriam
todos falar com o delegado de polícia. Mas esse alegou que só podia intervir com um mandado judicial. Como na cidade não havia
juiz, a coisa ficou como estava. Surgiu outra ideia; iriam falar com
o prefeito João Mangueira e exigiriam providências. Mas essa também não surtiu efeito. O homem era jovem e mulherengo, não tinha o menor interesse em se livrar das ¨negas¨; alegou uma coisa e
outra e ficou por isso mesmo.
A multidão voltou acabrunhada e frustrada sem atinar para
quem apelar. Muitos já acreditavam que a causa era perdida,
quando alguém apareceu com a ideia salvadora. Iriam falar e expor o problema para o padre Chico Ferreira; somente ele é que
podia dar um jeito. Dito e feito. O vigário tomou as dores para si, e
expôs a solução no sermão da tarde. Iriam todos, ele, na frente, e
exporiam o problema para João Cego; se o mesmo se negasse em
fechar o prostíbulo e mandar as mulheres de volta para Serra Talhada-PE, só via uma saída: quebrar tudo no pau.
E foi o que aconteceu. A multidão enfurecida, ante a negativa do proprietário, e com o vigário à frente, arrasou tudo. Não
restou nada que pudesse ser aproveitado. João Cego, de mãos na
cabeça, ganhou as capoeiras seguido por suas ¨negas¨ a fim de
livrarem-se do linchamento.
Desde esse fatídico dia, ninguém teve a afoiteza de instalar
outro cabaré em Conceição do Piancó.
SUMÁRIO
264 | M a g n o N i c o l a u ( O r g . )
ÁLBUM DE FAMÍLIA
Cláudio Limeira
Conta-se que lá pelos idos de quarenta, o coronel Vitoriano
de Assunção Pereira do Nascimento era um dos homens mais ricos
do Vale da Ribeira. Casava e batizava, mas era visto como um homem bom pelas autoridades e, principalmente, pela Igreja, na figura servil do padre Antonino. Casado com dona Ambrosina, cujo
pai também fora dono de muitas terras, tiveram dezenove filhos,
três morreram de doença de menino, sarampo, caxumba, lombriga.
Era a lei da natureza, e todos aceitavam essa implacável e impiedosa sentença: mais um anjinho que Deus, na sua infinita bondade,
chamava-o para si, como costumava dizer o padre Antonino, na
sua sábia ponderação na hora do aperreio. Eram muito bem casados. Os filhos, na maioria, se formaram e foram para longe. Só uns
quatro ficaram na labuta com os velhos, não quiseram estudar. Os
pais ficavam divididos na felicidade dos que voaram para longe e
dos que ficaram no aconchego do ninho. Mas eles nunca deixavam
de dar notícias e fazer visitas constantes. Era um aqui, outro acolá,
em datas diferentes. Parecia até, na ótica do velho coronel, que os
filhos não se entendiam. Mas a velha dona Ambrosiana ralhava
com o marido: “Parece que tu só entende mesmo é de terra e de
negócio, vixe!...”
O velho Vitoriano, embora semi-analfabeto, era um homem
de visão. Ganhava muito dinheiro com algodão, mas ficava cismado com os gringos oferecendo dinheiro aos pequenos proprietários. E o preço do algodão a subir feito foguetão em festa junina.
Desconfiado, nunca quis expandir o plantio, conservando o cultivo
do feijão e do milho. Quando os gringos insistiam, ele respondia
prontamente: “Olhe, seu moço, nem minha família, meu povo,
meus bichos, não comem algodão não, viu?” A essas alturas vaticinava a desgraça, o caos que estava por vir. Quando tinham seus
campos cheios de algodão e endividados, o preço do produto foi
SUMÁRIO
Leituras Diversas: Crônicas, Ensaios e Contos
| 265
ao chão. Muito desespero. A matutada não entendia nada de mercado internacional, e houve até suicídio. Mas aí é outra história!
Aproximavam-se as bodas de ouro do coronel e de dona
Ambrosina. Os filhos, morando distante, espalhados, se comunicavam e eram unidos. Não havia fim de ano sem que grande parte
da família estivesse reunida. Nunca todos. Com um ano de antecedência começaram a organizar a festa. Que encaixassem as férias
de todos, pro natal ou fim de ano, sem apelo! Deveriam estar presentes com filhos e netos e até bisnetos, para realizar o sonho dos
velhos, e, principalmente, tirar um retrato com toda a família. Estavam muito espalhados: o mais velho, promotor, morava em Minas. Tinha um em São Paulo, outro, em Belém. Aí vinha Ceará,
Maranhão etc. e, pra complicar, um que era médico, em Portugal.
Mas pra felicidade de todos, um deles era jornalista, morava no
Rio e, muito prático, organizou o encontro.
O velho Vitoriano não sabia como controlar o riso, coisa que
sempre achou difícil para manutenção da autoridade. Dona Ambrosina estava no céu, cercada de netos e bisnetos.
Os filhos estavam reunidos. O médico de Portugal foi o último a chegar com a mulher e quatro meninos pequenos.
Na frente da casa um bonito e grande pátio gramado, um
jardim cheio de flores pra lá de bem cuidado pela mão caprichosa
de D. Ambrosina. Era seu orgulho!
Festas e festas entre o natal e ano novo e nada da foto, que
era o que mais o velho queria.
Paulo, o filho jornalista, trouxera uma máquina sofisticada.
De fabricação alemã, era na época o que tinha de mais moderno,
com fotômetro, telêmetro, disparador automático etc.
Poucos por aqui sabiam disso, mas o velho queria um retratista daqueles que se curvavam por trás de um caixão misterioso,
com a bunda para cima, coberto com um pano preto e, aí, phuft!!!,
clarão, catinga de pólvora. E depois de umas duas “sumanas” vinha o “fotografista” com a “chapa”. Isso sim!
Chegou o dia. Havia um descampado depois do jardim da
casa grande. Os empregados da fazenda, os serviçais a espalharem
cadeiras por cima do gramado. O filho jornalista já traçara tudo.
Depois de muitas recomendações tipo ‘os mais altos atrás’, os meninos de cócoras, ele passou a chamar os familiares. Ocupa daqui,
ocupa dali. Experiente como fotógrafo, já “posicionara” a câmara a
SUMÁRIO
266 | M a g n o N i c o l a u ( O r g . )
uma distância que pudesse enquadrar todos numa panorâmica.
Mas era difícil. Os adultos arrumados a conversar, os meninos a
correr, criança de colo a chorar. “Será possível que a criação que
vocês deram a esses meninos não dá nem pra tirar um retrato?”
Silêncio! Seu lugar estava assegurado perto dos pais. Ia para a máquina, voltava. Avançavam no seu lugar e ele a dizer, este canto
tem que ficar vago.Voltava para a câmara.
Eram pra mais de oitenta figurantes, entre velhos, adultos e
crianças, algumas até de colo, e Paulo a gritar: ‘junta mais, fulano’,
‘se abaixa, sicrano’, ‘fulana, manda este menino tirar o dedo da
boca’, ‘ria agora, papai’ ... Ligou o disparador automático e correu
para ocupar seu lugar. E aí, os que estavam sentados, também,
pernas pra que te quero! Coisa incrível!
Até hoje ninguém sabe no que foi que pensaram. Se num boi
brabo solto, se numa bomba-relógio, ou numa venenosa cascavel.
No silêncio, a máquina começou a chiar, soltando um som esquisito: shishiiiiiiiiiiii!!!... Paulo correu pra tomar seu lugar. Aí espirrou
gente pra tudo quanto era lado... Era velho, menino pisado chorando, cadeira virada, gente gemendo...
E a foto tão esperada das bodas de ouro foi pro brejo também.
SUMÁRIO
Leituras Diversas: Crônicas, Ensaios e Contos
| 267
RONCÓ
Dalmo Oliveira da Silva
O ejó ainda estava quente. Ele podia sentir seu cheiro insosso que exalava da cabeça e do tórax. O calor úmido do roncó acelerou sua transpiração e rapidamente sangue e suor se misturaram
produzindo outra essência sob sua pele com fragrância ainda mais
inédita.
- Tente relaxar agora! Disse-lhe o ogan que o auxiliaria nos
próximos seis dias de recolhimento espiritual.
Mais cedo um pouco, junto a uma jovem árvore de Irôco, no
quintal do ilê, Vicente passava bolos feitos de inhame, farinha de
mandioca e farinha de milho no corpo do iniciante, no primeiro
ritual de limpeza. Abraçado ao tronco da planta Paulino mentaliza
alguns pedidos ao divino. "Sabes do que mais preciso! Peço-te saúde, paz e prosperidade. Dê-me equilíbrio, coragem e resistência
para que eu possa vencer bem essa etapa. Conduza-me no caminho do discernimento, da verdade e da justiça. Me dê forças para
enfrentar os inimigos ocultos. Proteja minha família e que meus
antepassados possam me ajudar nessa jornada".
- Dê três passos para frente e saia do quintal sem olhar para
traz. Ordenou o orientador que conduzia o ebó inicial.
Paulino caminhou descalço sentindo a terra sob os pés e
atravessou o portão dos fundos do ilê. Ao lado da casa principal
Vicente preparou um incenso acondicionado numa lata com brasas
vivas. Defumou o rapaz fazendo com que a fumaça atingisse seus
membros, tórax e cabeça. Paulino fixou seu olhar no crepúsculo do
horizonte longínquo na direção oriental. O céu se distribuía em
luzes alaranjadas, quase vermelhas, realçadas com os tons azulados e cinzas impostos pelas nuvens do final da tarde. Quando entrou no roncó e deitou sob as esteiras, Paulino sabia exatamente
em que posição se encontrava seu corpo em relação ao movimento
que o sol faria nas próximas horas quando a noite finalmente se
instalasse naquela parte do planeta. O giro solar se daria na altura
SUMÁRIO
268 | M a g n o N i c o l a u ( O r g . )
de sua cintura, descendo por sua mão esquerda passando por baixo de suas costas e retornaria em algumas horas despontando a
oeste do seu lado direito. A primeira noite no roncó seria longa,
quente e insone.
- Você é meu primeiro filho-pequeno. Disse Vicente, sem esconder a emoção ancestral daquele instante.
- Parabéns! Respondeu o filho de Xangô, com um sorriso
confiante entre os lábios.
Ainda estava escuro quando Vicente adentrou o roncó para
acordar Paulino, que praticamente não dormira na primeira noite
por causa do calor abafante, das muriçocas, do incômodo espalhado pela pele e pelo pedaço de pano envolto sobre seu ori. As penas
das aves grudadas na cabeça e no tórax eram um outro componente desconcertante para o iniciado.
-- Está na hora do banho, podes levantar, ordenou.
Paulino despiu-se rapidamente e caminhou para uma área
do roncó onde não havia teto. Sentou num banco de madeira de
costas para Vicente, que começou a banhar o ogan pela cabeça.
Paulino se contraiu quando a primeira porção de água fria atingiu
suas costas.
- Ahhhhh! Reagiu jogando o corpo para frente.
- Tá fria?? Quis saber o cuidador.
- Demais! Confirmou Paulino.
Vicente o ajudou a lavar a cabeça e as costas utilizando sabão africano e uma bucha vegetal. Paulino concluiu a limpeza se
lavando em pé. Em seguida vestiu uma roupa limpa branca. Depois lhe foi servido um mingau quente de milho branco.
- Antes e depois de comer você deverá bater palmas dessa
forma. Orientou Vicente, mostrando o ritmo em que as palmadas
deveriam soar.
- Chamamos isso de paó, detalhou o guia.
- Você também deve usar para nos chamar, caso precise de
ajuda ou de alguma outra coisa. Certo?
- Entendi. Obrigado! Respondeu Paulino.
Aos poucos a luz externa do dia foi invadindo o local, passando pelos combongós da área de banho. Deitado na esteira de
palhas Paulino passou a acompanhar a trajetória da réstia da luz
solar se espalhando no chão de barro do roncó, se deslocando de
leste a oeste. Aquilo se tornaria nos próximos dias uma maneira de
SUMÁRIO
Leituras Diversas: Crônicas, Ensaios e Contos
| 269
Paulino marcar o tempo. A partir das 16 horas a mancha de luz
refletia no meio da parede ao lado da única porta do recinto. Os
raios do sol, filtrados pelas folhas de uma samambaia dependurada na área do banho, formavam círculos e semicírculos luminosos
projetados na parede. Algumas composições pareceram para Paulino como se fora olhos intensos numa face indefinidamente vazia.
Dali a pouco o dia se esgotaria mais uma vez.
Antes de escurecer totalmente Vicente veio acender a lamparina de querosene que abrandaria o ébano do roncó durante as
noites do recolhimento.
- Daqui há pouquinho Iasmim, sua mãe-pequena trará seu
ajeun. Informou Vicente, perguntando se estava tudo bem.
- Tudo OK. Só estou sentindo um pouco de dores nas juntas
das pernas e do ombro. Acho que foi por causa do banho frio que
tomei hoje cedo. Será que amanhã você poderia trazer água morna.
É que tenho uma espécie de reumatismo chamado de anemia falciforme e o banho frio me causa dor nos ossos e nas articulações.
- Você deveria ter me avisado antes. Vamos ver o que podemos fazer. Disse Vicente, já saindo apressadamente. Compressas
quentes e analgésicos fizeram com que Paulino conseguisse cumprir todo o recolhimento. Ele também se valeu de pomadas à base
sementes, untadas sobre as regiões dolorosas.
Iasmim voltou depois trazendo consigo a comida da noite
numa vasilha de madeira.
- Boa noite meu pai! Como o senhor está? Foi dizendo enquanto se inclinava para depositar o prato entre as pernas de Paulino que a aguardava sentado sobre a cama de esteiras.
- Tudo em paz, graças a Deus! Disse o ogan.
Ela começou ensinar a Paulino uma reza/canto em iorubá
que deveria ser feita todas as noites antes das refeições, na hora de
acender a luz do candeeiro, quando seriam invocados os orixás.
Em iorubá, a reza diz:
Ogun tanan sile , o tanan so nan, ina ire Ogun ta, Ogun tanan silê o
tanan so nan ina irê ogun ta ô
Oluaiê tanan silê ô tanan son nan ina ilê awo ota, Oluaiê tanan silê o
tanan so nan ina ilê awo ta ô
Odé tanan silê, ô tanan so nan ina ilê ode ta, Odé tana silê ô tana so
nan ina ilê Odé ta ô
SUMÁRIO
270 | M a g n o N i c o l a u ( O r g . )
Obá tanan silê ô tanan sonan ina ilê Obá ta, Obá tanan silê o tanan
sonan ina ilê Obá ta ô
Eunji tanan silê o tanan sonan, ina ilê Eunji ta, Eunji tanan silê o tanan so nan ina ilê Eunji ta ô
Oyá tana silê ô tanan sonan ina ilê Oyá ta, Oyá tanan silê ô tanan so
nan , ina ilê Oyá ta ô
Iyá tanan silê ô tanan so nan, ina ilê Yyá ta, Yyá tanan sonan ô tanan
so nan , ina ilê Iya ta ô
Babá tanan silê o ta nan so nan, ina ilê Babá ta, Babá tanan silê ô tanan so nan ina ilê Babá ta ô
A ialorixá visitou Paulino logo depois do ajeum. Quis saber
como foi a noite e se ele havia sonhado.
- Sonhei com meu pai já falecido. Estávamos num bar e
quando decidimos ir embora ele não nos acompanhou. Estava eu e
meu segundo irmão. “Devíamos ter trazido ele de todo jeito”, disse
meu irmão como quem iria começar a chorar.
Nas noites seguintes sonhos estranhos ocuparam o sono perturbado de Paulino. Ele acordava no meio da noite. O enredo dos
sonhos durante o recolhimento do ogan são parte da mística da
iniciação. A ialorixá escuta a memória dos sonhos da noite anterior
e faz as interpretações.
A clausura e o ambiente inusitado do roncó interferiam diretamente na produção de sonhos do iniciado. Por diversas vezes
Paulino acordou no meio da noite por conta do calor. A fumaça do
candeeiro incensava o ambiente com o cheio típico do querosene
queimado. “Pelo menos serve para espantar as muriçocas”, pensou
Paulino, limpando a testa molhada de suor e espantando os insetos
com as mãos.
Inhame cozido amassado, mingau de milho branco, arroz,
peixe e galinha compuseram o cardápio durante a reclusão. Um
pote com água estava posto perto da parede defronte à esteira.
Uma pequena jarra de barro também estava ao seu dispor que
precisava ser abastecida frequentemente. Abastecer a quartinha
acabou se transformando numa atividade prazerosa para quebrar
a monotonia da reclusão imposta pela obrigação. Durante o dia os
sons ao redor invadiam o quarto de roncó.
SUMÁRIO
Leituras Diversas: Crônicas, Ensaios e Contos
| 271
- Seja bem-vindo à nossa religião, disse o ogan Martinez, que
viera de outra cidade para conduzir a ritualística de consagração
de Paulino ao orixá Oxum.
Tinha o semblante sério, sem risos. Ao apertar sua mão, Paulino percebera trata-se de um homem acostumado com as lides
mais rudes. Mãos de trabalhador braçal, acostumadas com os trabalhos mais pesados. Martinez falou pouco e se retirou rapidamente do ronco, acompanhado de Vicente.
Durante o ritual, Matinez conduziu a matança com uma destreza impressionante. Depois que os animais foram tratados, foi ele
quem mostrou a Vicente como dispor a carne e as vísceras do cabrito para o orixá.
No dia da festa de apresentação do novo ogan o terreiro estava mais barulhento do que nunca. Paulino podia sentir a correria
e a ansiedade dos iaôs, dos abiãs, da ekedi e das outras pessoas
envolvidas nos preparativos. Gritos de crianças e passos correndo
foram se avolumando com o aproximar da hora da cerimônia.
No quarto que ficava ao lado do roncó os filhos e filhas da
casa reviravam seus baús procurando as roupas que usariam naquela noite. Parecia que iria ocorrer ali um desfile de moda africana. Saias rodadas, turbantes de cores variadas, colares de contas,
panos diversos. A fila para banho se formava nos diversos banheiros do ilê.
Na final da tarde, Paulino tomou o último banho do recolhimento. Sentia-se incrivelmente disposto, mesmo tendo sentido
dores reumáticas nas pernas e no quadril durante a semana. Vicente o ajudou a vestir a roupa de ração. Paulino sentou numa cadeira
de balanço e esperou ainda muitos minutos até que Vicente voltasse ao roncó e começasse a ajudá-lo a vestir a roupa feita especialmente para o evento. Paulino comprara a roupa numa loja especializada em produtos africanos, importada da Nigéria. A cor vermelha predominava, com detalhes brancos e um bordado escuro. Ela
cintilava por causa da linha especial usada na costura e nos bordados. Paulino tinha a sensação de se tratar de um tecido sintético.
Mesmo bastante larga e confortável, a bata não causava a mesma
sensação dos tecidos de algodão, preferidos de Paulino.
O salão estava repleto. Além dos frequentadores do ilê, muitos convidados ocupavam as cadeiras e sofás dispostos no lugar,
que estava muito enfeitado com arranjos vegetais e outros adere-
SUMÁRIO
272 | M a g n o N i c o l a u ( O r g . )
ços quase sempre amarelos. Na entrada principal, algumas pessoas
acompanhavam em pé a festa. Fogos de artifício explodiam no céu
provocando um barulho potente sobre o telhado do terreiro. E o
som dos tambores dava uma ambiência musical ancestral à toda a
movimentação naquela momento.
O candomblé já havia começado há quase uma hora. Paulino
ouvia os tambores, os cantos e ia identificando os orixás reverenciados. Vicente veio buscá-lo para, enfim, ser apresentado publicamente. Eles usaram o acesso que passava pela cozinha e saia no
grande salão do ilê, que era chamado de barracão. Quando Paulino
cruzou a cortina dourada Oxum já estava presente e ele foi conduzido até a divindade. Ele tomou o braço da ialorixá que o conduziu
pelo salão com uma espécie de passeio circular. Oxum se dirigiu
para perto dos tambores. Martinez perguntou a Oxum que nome
terá o novo ogan e ela respondeu “Obá L’owó”.
SUMÁRIO
Leituras Diversas: Crônicas, Ensaios e Contos
| 273
SUICÍDIO
Edson Tavares
O vento forte zunindo nos ouvidos emaranhava os cabelos
compridos, espalhando-os, desordenadamente, sobre a cara do
infeliz, que olhava para aquela imensidão de espaço que o separava do solo. O mesmo vento balançavam as árvores que se interpunham no caminho e que talvez inviabilizassem o intento, quebrando a força da velocidade do corpo. A cidade espraiava-se ao redor
– estranhas as casas vistas do alto, a respirar, em seu interior, tantas e tantas histórias de amor, desamor, ódio e esperança. Pouco ou
nada lhe importava tudo isso; a verdade agora era uma só, e se
escancarava, atraente e vertiginosa, nas pedras irregulares – que
daqui (como tudo de longe) pareciam perfeitas, sem ranhuras nem
desníveis. A gravidade era o melhor agente, responsável pela velocidade crescente que o fará esfacelar-se em meio ao pó branco, de
consistência suave, quase aveludado, que se espalha sobre o plástico desdobrado que lhe servia de invólucro. A estricnina fará um
serviço mais rápido e competente: bastam dois ou três miligramas
por quilo (ele estava magro, abatido de tristeza, não gastaria muito
pó) e, em menos de uma hora, começarão as convulsões, os espasmos musculares e, finalmente, a asfixia. Não há antídoto, portanto,
sem perigo de arrependimento. Dá até para escolher a posição do
corpo que achar mais digna e a frieza da lâmina, penetrando sem
qualquer ruído a pele e a carne, vai se fazendo mais quente à medida que vai entrando. É certo que o sangue espirrará e lavará o
chão – ideal para os dramáticos; talvez, num primeiro momento, o
pânico fará subir do seu mais recôndito interior o arrependimento,
e haverá um sofrimento extra, se conseguir se salvar: a chateação
da recuperação se somará à frustração da covardia. Não há de ser
nada, porém, e a navalha firma-se com mais intensidade sobre a
base da mão – verdade que não é possível ser os dois pulsos ao
mesmo tempo, será uma morte à prestação, e provavelmente o
segundo corte já não terá a vitalidade do primeiro, mas aquele fino
SUMÁRIO
274 | M a g n o N i c o l a u ( O r g . )
barbante de nylon será suficiente para antecipar a asfixia, e, por ser
delgado, ajudará cortando o pescoço em que está envolvido, à
proporção que o corpo se balançará, convulsamente, os pés, involuntariamente, buscando com ansiedade histérica o apoio há pouco
perdido. Mas a cadeira jaz ao chão, cúmplice silenciosa e passiva
daquela situação fria redonda como o cano que experimenta variadas partes do corpo; é preciso reunir a rapidez na conclusão, a
certeza da consumação e o mínimo possível de dor. A arma passeia, trêmula, passando do lado esquerdo do tronco à parte inferior
do queixo, ao interior da boca, cujos lábios se fecham sobre o frio
metal e a língua sente-lhe o gosto distante de pólvora, ao ouvido,
onde o cano provoca-lhe cócegas – nada tão indigno quanta essa
fricção irritante; decide-se pela têmpora, menor distância até o
cérebro. Eficiência praticamente garantida, sem chance de retorno,
embora o ruído do tiro vá despertar a atenção, como o chiado dos
freios, que, pressionado pelo aterrorizado motorista que prevê o
acidente, não consegue impedir o caminhão, grande e pesado, de
esmigalhar os ossos e arrancar a vida de dentro daquele corpo, que
quase se liquefaz, sobre o asfalto quente, fervente, como a pedra
sobre a qual os pés dançam um ritmo estranho, substituindo-se
alternadamente no escaldante da rocha. E não há por que pensar
em ardência agora, se lhe espera o frescor da água, lá embaixo, que
se arrebenta, fremente, sobre os rochedos pontiagudos. Jeito nobre
de se ir, abrindo os braços, como ícaras asas sobre o mar, e, num
impulso forte, arremessar o corpo sobre o ar, que, ao perder a força
desse ímpeto de voar, se direcionará, imperturbável, às furiosas
ondas; estas o tragarão em segundos, e a água sanitária que penetrar-lhe liquidará aquela fatura atrasada com a vida. Claro que
sempre existe a possibilidade de falha – aqui ainda maior – e ter
que ouvir de alguém, ainda sentindo o enjoo da lavagem estomacal: “você agora está bem e ainda mais limpo por dentro”. Olha,
entre furioso e frustrado – mas, no fundo, agradecido – para o médico, que lhe sorri e lhe diz uma ou duas palavras de ânimo, em
meio à explicação sobre a forma de tomar o remédio que acabara
de receitar. Para revitalizar a flora frágil do estômago.
SUMÁRIO
Leituras Diversas: Crônicas, Ensaios e Contos
| 275
METÁFORAS BOVINAS
Francisco Dantas
Certo dia era um Boi que, na virtude do cio, tructructiava
atrás dos folgados traseiros de uma Vaca triste. De por que a Vaca
era triste nem o Boi desconfiava, que, na virtude do cio, Boi é gente. O negócio é que interessa. Fazer primeiro. Pensar depois. Se for
o caso. Essa é a filosofia do Boi, que sempre faz e nunca pensa,
porque pensar é coisa de gente, e gente que pensa, que pensa, que
pensa, nada de animais faz. A carne, a flor. A flor da Vaca aberta
para o boi. Passiva. Sem não-tristeza. Sei não! Não compreendo o
mistério que envolve a tristeza humana da Vaca na virtude do cio
que consume o Boi, e que parece estranho à Vaca? Boi taludo em
Vaca triste tanto fura até que bate uma gozada. Penetraçãofundura-estremecimento-espuma-suor-bate-que-bate, até que, batido, se ouve um estrondoso mugido ressoando pela Fazenda inteira. O Boi está satisfeito, está troteando na virtude do cio pelas
campinas azuis-verdejantes atrás de outras Vacas tristes. Até fechar-se o ciclo e suspender-se a virtude do cio, cio, cio... Silêncio,
que o Boi vai dormir.
Barulho, que o Boi acordou. Não Boi qualquer, mas qualquer
Boi a pastar pelas campinas azuis-verdejantes, agora amarelas,
atrás de Vacas-Vacas-Vacas e mais Vacas. Vacas tristes na virtude
do cio que nunca se esgota, porque quem se esgota é gente, e gente
não é boi. Mas Boi é gente, fixado, focado, pensando na flor da
Vaca aberta para o mundo das campinas verdejantes-azuis, não
mais amarelas. Barulho, que o Boi acordou disparado, dando carreiras de felicidades pelas bem-aventuradas virtudes do cio.
A Vaca. Vaca esguia. Vaca esquiva. Difícil penetração. BoiVaca, conluio misterioso, inocente. Não é tempo do cio. Tudo é
ternura de pasto, fofura de Boi, tolete de Vaca que cai com muito
barulho no fofo da terra estrumada, estreme, estremecida, amada.
Pátria amada. O pasto. Boi-imitação. Atrás da Vaca, da Vaca de
SUMÁRIO
276 | M a g n o N i c o l a u ( O r g . )
trás. Contemplando o traseiro. Desinteressado, indiferente. Não é
tempo de cio. Silêncio. Boi e Vaca dormem. O Brasil dorme.
ROMANCE VIRTUAL
Leilah Luahnda Gomes de Almeida
Dona Elvira é uma senhora daquelas enxutas, no bom sentido, brasileira e nordestina do brejo paraibano. Viúva, beirando os
setenta, adorava navegar na internet, em chats (salas virtuais),
visitadas por pessoas com a mesma faixa etária e mesmos interesses, fazer amizades.
Certo dia, Dona Elvira conheceu Seu Manoel, um setentão,
treinador de educação física aposentado, divorciado, tendo conservada a boa aparência, português e residente em Lisboa. Foi então que os dois passaram a conversar virtualmente todas as noites
até que acabaram se tornando bastante íntimos, nutrindo mutuamente um sentimento real de verdadeiros companheiros.
Todos os familiares e amigos do casal virtual já tinham notícia de que eles viviam uma grande paixão e cobravam que se conhecessem pessoalmente. Seis meses depois, Seu Manoel resolveu
sugerir um encontro real com Dona Elvira, iria visita-la muito em
breve no Brasil.
Dona Elvira, ao ouvir o anúncio, ficou atônita, sua respiração
quase parou e mil coisas passaram por sua cabeça naqueles milésimos de instante. Chegava a perguntar a si mesma, seria Seu Manoel um maníaco, um aproveitador desses que sempre se ouve
falar ou um Don Juan querendo armar alguma?
Ela passou dois dias sem ligar seu notebook, quando, no terceiro dia, sufocada por tantos questionamentos gritando em seu
coração quente de paixão, abriu sua caixa de entrada do e.mail e lá
estava uma linda declaração de Manoel, que dizia: “Minha querida
Elvira, você surgiu na minha vida como um sol que reluz todas as
manhãs me trazendo a vida de volta, me trazendo alegria com suas
conversas, me fazendo companhia, mesmo do outro lado do Atlântico, não posso imaginar minha vida sem você! Por favor, respon-
SUMÁRIO
Leituras Diversas: Crônicas, Ensaios e Contos
| 277
da minhas chamadas virtuais e se for por medo de me conhecer
pessoalmente que você tenha desaparecido, sou capaz de cancelar
minha ida ao Brasil só para ter a oportunidade de falar mais uma
vez com você.”
Dona Elvira mudou seu status para on line imediatamente e
respondeu a Seu Manoel que esteve pensando melhor sobre o assunto e havia decidido deixar tudo como estava e lhe disse que
não fosse ao seu encontro, sugerindo-lhe conhecer-lhe um pouco
mais. Com todos aqueles receios, ela tinha medo de que Seu Manoel não tivesse todo o encanto imaginado e perder isso seria o
mesmo que volver àquelas velhas noites de solidão vividas antes
de conhecê-lo.
Ela pensou muito, durante semanas conversou com as amigas sobre seu romance virtual, com os olhos brilhantes, toda ouriçada aos quase setenta, tudo isso lhe parecia bastante auspicioso,
exceto se não fosse o medo.
Ele voltou a mencionar sobre o desejo de conhecê-la pessoalmente, comprou passagem para o Brasil, enviou os dados de seu
vôo por email e desapareceu por dois dias, foi então que Dona
Elvira pensou, não havia mais saída, em breve Seu Manoel chegaria! E ela pensava, e agora? Onde ele ficará? Será que virá direto
para minha casa? O que os vizinhos podem pensar? O que minhas
amigas e minha família pensarão a meu respeito? Não! Um homem que mal conhecia ... quer dizer, ela o conhecia muito, mas
não o suficiente para hospedá-lo em sua casa, para acolhê-lo em
sua cama, não naquela idade, não naquela situação.
Seu Manoel voltou a ligar para Dona Elvira, dizendo-lhe que
se tratava de uma brincadeira, só para ver a reação dela, não havia
viajado, mas que tinha curiosidade em vê-la pessoalmente, bastava
ela dar-lhe sinal verde.
Ao ouvir que não o veria, seu coração voltou a bater aliviado, parecia não ser dessa vez que eles iriam se encontrar pessoalmente, sobretudo porque ela não havia ido ao cabeleireiro, nem a
manicure para preparar-se para um encontro romântico e especial,
sim, ele já era especial em sua vida, mas, por enquanto, reverenciando as emoções imaginárias, reverenciando o fogo da paixão virtual.
Passou-se um ano e Seu Manoel disse-lhe não conseguir
mais viver longe de sua amada e a pediu em casamento.
SUMÁRIO
278 | M a g n o N i c o l a u ( O r g . )
Dona Elvira surtou e retrucou sem pensar: “Eu? Casar?
Nunca!”
Seu Manoel ficou profundamente lastimoso e desativou seu
status on line, por longas semanas, desapontado.
Ela descobriu que tinha mais fogo do que coragem de viver
novas paixões. Era tudo fogo de palha, suas amigas diziam que ela
ainda era do tempo de antigamente, nunca mais quis saber dessa
coisa de internet e desativou todos os bate-papos pra não sofrer
mais desses males do coração.
Pobre Manoel, seu amor era real...
SUMÁRIO
Leituras Diversas: Crônicas, Ensaios e Contos
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A PROMESSA
Magno Nicolau
-“Maria, chama as crianças. Vem comer.”
João era dedicado. Cuidava de tudo, inclusive da casa. Desde adolescente ajudava a mãe. Sempre dizia que cozinhar era somente arte, como muitos falavam. É preciso ter gosto pelo que faz,
em tudo, para ficar bom. Calma, de boa índole, a família o admirava pela paciência e sabedoria.
Maria, apesar de família tradicional, pouco se interessava
pelos afazeres da casa. Gostava mesmo era de namorar. Encontrou
em João tudo o que precisava para um casamento feliz. Não suportava pressão. Perdê-lo era um suicídio.
20 anos casados, tinham três filhos mais parecidos com o João. Pacientes, gostavam de ouvir as histórias do pai, suas poesias e
repentes que ele ouviu ao longo do tempo. Poucas, mas algumas
trovas ele sempre arriscava construir. Não pode ir às letras. Mas,
com tanta sabedoria, as letras vieram a ele. Os filhos, esses sim,
fazia questão que se formassem. Para isso, acordava às quatro horas da madrugada e só chegava do roçado ao escurecer. Era quando preparava a janta e o almoço do dia seguinte. Maria só esquentava.
Os filhos corriam, após o jantar, para o jardim, principalmente em noites de lua cheia, chamando o pai para que contasse
suas histórias, principalmente as religiosas. Eram mais empolgantes. Mas João aproveitava para fazer mais, e sempre colocava algum ensinamento para a vida futura dos filhos. Certa vez, o mais
velho disse que a professora, senhora evangélica, falava sempre da
volta do Messias. E seria esse o novo ensinamento dele, hoje. Falou
que “as pessoas aguardavam o novo Messias, mas que muitos já
vieram e ninguém percebeu. Após Jesus, Aquele que deixou os
ensinamentos principais da vida, vieram Gandhi, um homem que
libertou seu povo, e suas frases são sopradas pelos ventos sempre
que necessitamos; Madre Tereza de Calcutá, mostrando que não
SUMÁRIO
280 | M a g n o N i c o l a u ( O r g . )
existem doenças quando existe amor; Chico Xavier, com palavras
psicografadas de conforto e paz. E todos esperam Jesus, quando na
verdade, ele já nos enviou vários para nos alertar”. Maria apenas
se debruçava na janela, mas aquilo tudo não lhe atraía. Achava
bobagem. Preferia ir para casa das amigas quando João saía para o
roçado.
Um dia, numa dessas visitas, veio um primo distante. E após
algum tempo em sua casa, após ter tentado Maria várias vezes,
ofereceu um bom dinheiro e ela acabou aceitando. Maria se entregou prazerosamente, imaginando o que faria com aqueles trocados. Comprou roupas para os meninos, para ela e, evidentemente,
uma camisa para João. Questionado por ele sobre a origem do
mesmo, desconversou e disse que foi da venda de alguns bordados
que porventura fazia.
Logo, logo, Maria fez praça, na cidade foi ficando conhecida.
Era jeitosa e muitos queriam tirar uma “casquinha”.
João, matreiro, um dia resolveu investigar. Fez que ia para o
roçado e ficou à espreita. Maria após sair da casa de seu Joaquim,
enfiou o dinheiro entre os seios. Ele já estava esperando-a na cozinha. Maria levou um susto ao vê-lo tão cedo em casa. Pacientemente pediu que lhe entregasse o dinheiro. Ela implorou que não a
colocasse para fora de casa. Ele sorriu e insistiu pelo dinheiro. Ela
tentou explicar, mas João não queria saber. Aliás, já sabia demais.
Pegou as notas e as enfiou num pequeno vidro vazio no armário
da cozinha. Daquele dia em diante não se deitaria mais ela, mas
também não a colocaria para fora. Precisava mostrar-lhe que o que
ela tinha feito era errado e os filhos não mereciam.
A lição veio no jantar.
Todos à mesa, João, como sempre, fez um jantar delicioso.
Na oração, ao terminar, olhou para os filhos e disse: - “De hoje em
diante vamos fazer uma oração à parte para não precisarmos desse
dinheiro”, colocando o pote sobre a mesa. Maria sabia que o início
de um longo caminho.
Ao meio-dia, sempre que João voltava do roçado, Maria sentia um frio na barriga. Aquela oração fazia com que ela entrasse
em desespero. Tinha esperança de que um dia, Ele esqueceria
aquela história. Mais um dia, e mais Maria definhava. Era insuportável aquele ruído, aquela voz dele, aquele olhar dos filhos.
SUMÁRIO
Leituras Diversas: Crônicas, Ensaios e Contos
| 281
Certo dia, Maria mandou os garotos para casa da mãe.
Aproveitou a ausência de todos e cometeu o maior dos martírios.
Retirar a própria vida não justifica. Mas era a única maneira de
João ser tocado no coração. Ele, ao chegar do roçado, ao ver a cena,
a mulher a quem dedicara toda sua vida, ali, caída, debruçada
sobre um bilhete que dizia: - “Perdoe, meu companheiro. Não fui
mulher digna do seu amor. Peça perdão aos nossos filhos”.
João, em seu último gesto de carinho pela esposa, levou-a até
seu roçado e enterrou-a. Não queria que os filhos presenciassem
aquela situação. Quando eles chegaram, avisou-os que Maria resolveu fazer uma longa viagem e que, um dia, todos iriam se encontrar. Ele era religioso, acreditava que Maria encontrara a luz e
um caminho de perdão. De certo modo, sentia que ela o estaria
esperando. Desta vez, ela a perdoará.
SUMÁRIO
282 | M a g n o N i c o l a u ( O r g . )
PENDENGA DE MATUTO
Marcos Feliciano Pereira Barbosa
Sempre passei minhas férias de meio de ano no interior. Tenho sangue de sertanejo do seridó correndo nas veias e, talvez por
essa razão, sempre me senti atraído pelas coisas simples do campo.
Gosto dos costumes do mato e da sua gente. Aprendi com meu
pai, desde cedo, a admirar a beleza das serras e dos baixios, a obstinação do homem pela terra, o seu destemor diante do perigo, da
sua bondade, da sua sinceridade, da sua religiosidade, da sua solidariedade, do seu modo de ser, quase pueril. Coletei durante as
minhas estadas nas fazendas de parentes e amigos estórias que
merecem ser partilhadas por suas próprias peculiaridades. E por
assim entender, temendo a traição do esquecimento que já se
anuncia, vez em quando, resolvi juntá-las, para deleite daqueles
que, como eu, apreciam as coisas e os episódios protagonizados
pelas pessoas humildes que habitam os nossos implacáveis sertões.
Narrou-me, certa feita, um amigo, um episódio que se passara lá pras bandas de Jucurutú, envolvendo um jovem Magistrado
recém-concursado e, portanto, sem a menor experiência ou vivência com as coisas do interior. Não conhecia seus costumes, nem tão
pouco sua gente. Aliás, da vida não conhecia quase nada. Era um
desses alienados que ingressam na faculdade de direito com objetivo único e exclusivo de passar num concurso público. Escolhem
o curso pelos certames que são oferecidos, não se importando se
têm aptidão para a carreira que vão abraçar. O que de fato interessa é a vantagem pecuniária que podem auferir e a segurança que
ainda são propiciadas no serviço público. E o resultado não poderia ser outro: juízes, promotores, procuradores e servidores desinteressados ou completamente frustrados, que tocam suas carreiras
sem nenhum “açoite”, pensando única e exclusivamente nos polpudos proventos. Por isso mesmo, não é raro encontrarem-se engenheiros, economistas e administradores que, em razão de uma
melhor situação financeira, ingressaram na magistratura, sem pos-
SUMÁRIO
Leituras Diversas: Crônicas, Ensaios e Contos
| 283
suir a menor aptidão para o cargo. É claro que existem as exceções,
mas são poucas.
Já fazem parte do folclore alguns despachos e decisões desbaratadas da lavra dessas figuras carimbadas dos nossos foros e
comarcas por aí afora. Tive conhecimento de um despacho saneador lançado em um processo de inventário, onde o noviço magistrado, atabalhoado com as repetidas alusões postas pelo causídico
na peça de ingresso, determinou, incontinenti, a intimação do de
cujus para prestar o compromisso de inventariante. O escrivão,
surpreso diante de tamanho absurdo, indagou-lhe em qual sessão
espírita deveria agendar o ato processual, posto que o de cujus era
simplesmente o falecido.
Não quero com isso tecer críticas generalizadas àqueles que
ingressaram ainda jovens na magistratura. Estou a criticar, tão
somente, aqueles obstinados oportunistas que procuram em determinados cargos a satisfação exclusivamente pecuniária, sem a
menor vocação ou pendor. Costumo dizer sempre que concurso
público não mede conhecimento de ninguém. Pode até ajudar na
escolha, mas o Estado não pode ficar a mercê de uma singela
aprovação em certame público. Tem que ir mais fundo na escolha
dos seus agentes. Investigar, se possível, até os seus antepassados,
pois, como diz o adágio popular, “filho de peixe, peixinho é”.
Pois bem, o Dr. Paulo Henrique era um daqueles meninos
que, ainda esquentando os bancos da faculdade, já se preparava
para ingressar na Magistratura. Sair pelo mundo afora fazendo
tolices e brincando de autoridade. Esse tipo de juiz se conhece de
longe. Carregam dentro de si uma doença conhecida no meio jurídico como “juizite”. E, a arrogância e a prepotência são os sintomas marcantes desse mal terrível. Tratam as pessoas simples com
desdém, e detestam receber em seus gabinetes as partes ou seus
advogados.
Pois bem, João de Lindolfo, vizinho de propriedade de Antônio Ferreira, eram amigos fraternais, e já tinham selado essa amizade com o compadrio. Levavam uma vida simples e viviam do
pouco que plantavam e de algumas criações que volta e meia negociavam nos dias de feira livre.
João de Lindolfo tinha um “lote” de jumentos que usava para transportar alguns produtos de seu roçado, além de cambitar
cana-de-açucar e capim de corte. Tinha um curral por trás da pe-
SUMÁRIO
284 | M a g n o N i c o l a u ( O r g . )
quena sede, onde criava quatro vaquinhas mestiças. Não era muita
coisa, mas dava pra abastecer a meninada.
Antônio Ferreira, apesar de plantar de tudo um pouco, não
ligava muito pra lavoura. Preferia lidar com criação. Mantinha
alguns animais no pasto, dentre eles algumas éguas meio sangue
que muito o envaideciam, além de algumas poucas vacas na cocheira. As éguas de Toinho realmente eram muito formosas.
Um belo dia, um dos jumentos de João de Lindolfo, inebriado pelo cheiro do cio de uma das éguas de Toinho, após forçar a
passagem através da combalida cerca divisória, conseguiu cruzar
com uma das melhores do rebanho. Realmente era um belo animal, e o jumento parece que tinha “escolhido a dedo”. O fato, apesar de ter sido levado ao conhecimento de Toinho, não causou
maiores especulações. Foi considerado de somenos importância,
não causando nenhuma mácula na amizade dos vizinhos, há muito já consolidada.
Passados alguns meses e concluído o ciclo da gestação, a
égua pariu um formoso burro mulo de cor acinzentada. E, à proporção que o animal ia crescendo, aumentavam também os comentários dos desocupados da cidade, principalmente no tocante à
beleza daquele animalzinho que o dono fazia questão de exibir nos
dias de feira. Conduzia-o puxando por cabresto bem acabado, tecido em corda de algodão. Por onde passava, arrebatava elogios: Eta bicho bonito danado! Um bicho desse vale uma fortuna. Matuto é bicho que gosta de botar fogo em briga alheia.
Num desses dias, quando desfilava orgulhoso pelo pátio da
feira de gado puxando o formoso burrinho, encontrava-se, no meio
dos desocupados, João de Lindolfo, proprietário do jumento invasor. O pessoal, ante a falta de assunto, passou a instigá-lo com relação à propriedade do burrinho. Afinal de contas, não é concebível que João de Lindolfo, sendo o proprietário do pai do burro
mulo, “ficasse a ver navios”, enquanto Toinho deleitava-se sozinho
com o fruto daquela relação, um tanto quanto proibida. De jeito
nenhum.
E, como não falta em cidade pequena gente para colocar fogo na fervura, instigar quem tá quieto, não demorou para aparecerem os conselhos e provocações:
- Ô João...se o jumento que cobriu a égua de Toinho é teu,
logicamente que tu tem um pedaço desse animalzinho que a égua
SUMÁRIO
Leituras Diversas: Crônicas, Ensaios e Contos
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pariu, ou será que num tem? - Tem sim, respondiam todos, atiçando cada vez mais o dono do jumento.
João parou um pouco pra pensar e respondeu:
- É... eu acho que tenho direito mermo a um pedaço desse
burrinho!
As provocações e as instigações foram criando corpo, até que
um belo dia o negócio engrossou de vez e João de Lindolfo procurou Toinho pra tirar satisfações quanto à divisão do já anunciado e
perfeitamente previsível lucro que o semovente iria garantir. Pelo
menos essa era a expectativa de todos na região. Não é a toa que
um burro mulo bom de passada vale mais do que certos cavalos de
raça.
Ameaças e Insultos foram trocados, tornando as discussões
bastantes acaloradas. Já não havia mais a cordialidade de outrora
entre aqueles vizinhos, e a amizade que sempre existiu entre os
dois estava escoando ralo abaixo. Até o afilhado de Toinho se negava a pedir a benção ao padrinho. O clima ficou tenso entre os
dois vizinhos. Para evitar um mal maior, foram aconselhados a
procurar a Justiça a fim de colocarem as coisas nos seus devidos
lugares. E assim foi feito.
O juiz da comarca, a exemplo de tantos outros que assumem
tão importante cargo sem nenhuma experiência, não tinha a menor
vivência com as coisas da vida e muito menos com as coisas do
interior. Não era capaz de distinguir uma galinha de capoeira de
um guiné. Saíra da faculdade de direito para ingressar na magistratura. Faltava-lhe, portanto, algumas qualidades que devem ser
inerentes a um magistrado, tais como: experiência, maturidade,
equilíbrio, sensatez e, sobretudo, conhecimento das coisas simples
do campo. Não bastam só os vastos conhecimentos teóricos. Esses
só servem para os certames. O entendimento daquele magistrado
era só teórico, aliás, tudo o que sabia, todo o seu conhecimento,
fora extraído apenas dos livros e compêndios de direito.
Dessa maneira, como resolver o imbróglio que fora criado
por aqueles matutos; como seria possível desatar esse nó que
amarrava a questão que lhe fora apresentada pelos dois litigantes.
Realmente, era uma situação bastante vexatória, apesar da aparente singeleza que o caso apresentava, caso fosse examinado por um
juiz experiente, que tivesse um pouco de vivência com as coisas
simples do interior, dos seus costumes e, principalmente, de sua
SUMÁRIO
286 | M a g n o N i c o l a u ( O r g . )
gente. Como poderia entender o caso de uma cobertura realizada
por um jumento numa égua para tirar um burro mulo? Esse tipo
de coisa não se ensina na faculdade, só se aprende vivendo e convivendo no mato.
Toinho quanto mais explicava, mais atônito ficava o jovem
magistrado. Não estava entendendo absolutamente nada daquela
estória envolvendo o cruzamento de dois animais completamente
diferentes. E o que é pior. Como conceber que dessa relação pudesse advir um terceiro animal, um burro mulo, bicho completamente diferente da mãe e do pai. Não, não dava para entender
tamanha asneira.
Depois de várias tentativas fracassadas para explicar o cruzamento dos bichos, Toinho resolveu apelar para uma demonstração mais real, utilizando-se, para tanto, das suas qualidades cênicas, tomando a pessoa do jovem juiz como coadjuvante. Ficou de
pé, e gesticulando com exagero, procurou narrar o ocorrido da
melhor forma que encontrou. Dentro de um realismo bem peculiar:
- Olhe doutor, deixe eu explicar ao senhor bem direitinho o
que aconteceu: - Eu sendo um jumento como de fato sou, e Vossa
Excelência sendo uma égua como de fato é. Eu pulo a cerca e pego
o senhor... depois de nove meses o senhor pari um burrinho. Agora me responda. De quem é o burrinho? – Só após a desrespeitosa,
mas inocente indagação, foi que o jovem magistrado se deu conta
do emaranhado da teia em que estava metido. Irritadíssimo e quase colérico respondeu a Toinho: - É da puta que o pariu... – Toinho
sem entender o que estava se passando, saltou da cadeira eufórico
e proclamou: Pronto, é de mãe e está resolvida a questão...
Parece brincadeira ou pilhéria fabricada, mas foi absolutamente verdadeiro o caso narrado.
SUMÁRIO
Leituras Diversas: Crônicas, Ensaios e Contos
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AVIS RARA
Madalena Zaccara
Tua dor pode ser subproduto do meu prazer. Como um reflexo no espelho. Gosto de pensar em ti assim, debatendo-se como
eu, a cada noite, contra cada momento da realidade que odeias que odiamos- contra cada minuto regido por Kronus que abominas, contra cada grade da gaiola em que habitas. Gaiola que você
mesmo construiu ao seu redor. Gaiola construída de memórias de
terror e medo. Uma fortaleza feita de palitos. Uma prisão da qual
tu não percebes as portas escancaradas.
Mas, o que sabemos nós, seres diurnos – gosto de me pensar
assim - sobre pássaros da noite de distantes olhos verdes que por
vezes se metamorfoseiam em gente de chapéu e óculos escuros,
chegam sem serem anunciados e sentam a tomar vinho, até cair, na
nossa mesa?
Foi assim que fizemos contato. Era um fim de tarde de pôr
do sol vermelhão e de violinos com ecos ciganos. Tocava uma
czarda, acho. Eu estava mais uma vez só, fingia estudar as doutrinas Schmittiana e Benjaminiana a respeito da violência. Mais um
tributo a minha obsessão por arte e política. Livro sempre funciona
como exorcismo. Mantem indesejáveis respeitosamente afastados.
Atrevido ou inconsequente aterrissaste na cadeira ao meu
lado, afastando o escudo feito de bolsa, celular e livros cuidadosamente empilhados como uma muralha. A surpresa sempre me
paralisa. Começamos um pseudo diálogo onde os monólogos, por
vezes, se cruzavam em proximidades perigosas. Estudiosos de arte
e o grupo esotérico o classificariam de surreal.
Se nada se falou de muito objetivo, nada também teve qualquer conotação sexual. Afinal, séculos de ditadura da Igreja católica nos condicionaram ao mito de que anjos não têm sexo. E o que
são criaturas aladas, de insondáveis olhos verdes, que, sem serem
curiosamente divinos, carregam uma carga de tédio, de onipotência presunçosa e, por vezes, de vago desprezo por nossa fragilida-
SUMÁRIO
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de humana que não anjos? Caídos, talvez, quem sabe corrompidos,
fedendo um pouco a humanidade... Mas, enfim, anjos.
E foi assim que tudo começou. Ou seja, objetivamente nada.
Quinta-feira era quase noite quando me telefonastes. Anjos
pós-modernos têm telefone e endereços eletrônicos. Estou tão só,
disseste. Os anjos são grandes filhos da puta sedutores- devíamos
ter aprendido isso nas antigas lições de catecismo quando engolíamos rodelas de bananas como se fossem hóstias em treinamento
para não morder Jesus Cristo. E minha solidão acreditou na tua.
Chegaste de taxi, estás sempre com medo de voar. Existirá
porventura terapeuta para anjos com fobia de espaços livres e de
alturas?
Concordei em te encontrar de puro desespero. Estava só e
tão desencantada com a noite que se aproximava veloz, como
sempre, nessa época do ano nos trópicos, que tinha vontade de
ganir como o cachorro vizinho que padece amarrado, com fome,
frio e coleira, por obra e graça do cidadão humano exemplar que se
diz seu dono. Destravei cautelosamente a corrente da porta após
olhar repetidas vezes pelo tal do olho mágico que, como única
magia, nos faz espionar as pessoas que nos batem à porta.
Estou aqui, disseste, sem apertar sequer a campainha. Como
se tivesses certeza de que eu estava logo ali a te espreitar atrás da
porta. Não te dei boa noite, apenas perguntei como tiveste coragem de sair da gaiola.
É o meu lado suicida, respondeste, rindo, enquanto depositavas sobre a mesa umas duas garrafas de vinho tinto e outras tantas de vodca polonesa.
Gostei de te ver na penumbra deserta da sala. E ainda mais
quando apenas sorriste para a colossal imagem de uma gaiola que
toma toda uma parede do apartamento. Sem palavras desnecessárias.
Comprei e fotografei essa gaiola. Dessas de feira de passarinho que até pouco tempo atrás eram ilegais, mas que nunca deixaram de existir. E preenchi com ela o meu habitat. Gosto de te imaginar aqui, dentro desta gaiola vazia. Pensar no teu constante se
debater contra as grades que facilmente poderias quebrar com o
bico. Uma espécie de prolongamento, uma prótese de mim.
Sabes? Sequer podemos prender periquitos em gaiolas assim. Feitas de material vegetal. Para eles as gaiolas têm que ser de
SUMÁRIO
Leituras Diversas: Crônicas, Ensaios e Contos
| 289
arame. Escapam das outras, como a tua, à bicadas. E a tua, ouso
dizer a nossa, meu anjo, só existe na tua cabeça, na nossa, e na fotografia na parede. Mas está lá. Onipresente. Indestrutível.
Bebida demais, afirmei um pouco sem convicção, conhecendo muito bem a mim mesma e tendo certeza de ti.
Após não sei quantas garrafas e de toda uma teoria exposta
sobre o ceticismo pós-moderno em relação ao desejo, transcendências e imanências y otras cositas mas, depois de horas a discutirmos sobre grades e gaiolas, fugas e permanências, anjos e humanos, quando as primeiras nuvens vermelhas no horizonte, que
junta céu e mar para espetáculo da minha varanda devidamente
gradeada, anunciaram o dia esquecestes meus olhos e os teus. Desenrolaste timidamente as tuas imensas asas de um cinza pálido,
entorpecidas pelo pouco uso e me beijastes a boca.
SUMÁRIO
290 | M a g n o N i c o l a u ( O r g . )
DETURPARAM O MEU “COLÓQUIO”,
QUE HORROR!
Maria das Graças Ataíde Dias
Existem três jeitos de fazer as coisas: o jeito certo, o jeito errado e o
meu jeito, que é igual ao jeito errado, só que rápido.
Homer Simpson
Eram oito moças desejosas para arranjar um marido. Moravam na minha rua, quase em frente à minha casa. Todas as noites,
duas delas, Dolores e Maria de Lourdes frequentavam as cadeiras
que mamãe colocava na calçada da sua bodega, onde negociava,
para tomar fresca e conversar.
Certa noite, nas suas conversas com mamãe, Dolores reportou-se a um rapaz que sempre via na bodega e que a olhava com
insistência, mas ela se sentia tímida para se aproximar e estabelecer uma conversação. Logo eu identifiquei quem era o rapaz. Era o
representante de uma firma que vendia doces em grosso, e na qual
mamãe comprava para revender no varejo. Todas as vezes em que
ele ia oferecer sua mercadoria a mamãe, cantarolava: “Balas, bombons, caramelos, pirulitos kibom, vai querer, dona Carmelita?”
Ocorreu-me então uma ideia. Decidi fazer uma brincadeira
para estimulá-la a falar com o rapaz, mas não imaginei as consequências que poderiam advir decorrentes do meu ato, tentando
arranjar marido para a referida moça.
Na bodega de mamãe havia, nos idos de 1960, alguns modelos do formulário que se usava para passar telegrama, também
conhecidos como fórmula. Tomei um desses modelos, pedi a uma
amiga para preenchê-lo a fim de que ninguém identificasse a minha letra. Dei os dados da destinatária e mandei colocar o seguinte
texto: “Dolores vg convido-a para um colóquio hoje vg às 20h00 vg
no Parque Teófilo Dantas pt. Emerson”. Dobrei o falso telegrama
na maneira usual e esperei uma oportunidade para fazer a entrega.
SUMÁRIO
Leituras Diversas: Crônicas, Ensaios e Contos
| 291
Posteriormente, quando uma das moças apareceu à janela de
sua casa, eu atravessei a rua com o dito cujo na mão e fiz a entrega,
dizendo: o estafeta esteve aqui na sua casa, chamou, mas ninguém
atendeu. Ele pediu-me para deixar aqui este telegrama. Corri para
casa na expectativa do reboliço que provavelmente aconteceria.
Esperei, esperei, mas nada; o silêncio era total. Não me contive de tanta curiosidade e fui até lá, a pretexto de levar a revista O
Cruzeiro para as moças lerem, a fim de sondar o ambiente.
Assim que entrei, Dolores, a moça a quem o telegrama havia
sido dirigido, me perguntou: “Maria, como era o estafeta que trouxe o telegrama? Ele usava a farda do correio?” Enquanto dialogava
com a vítima, escutei um burburinho vindo de um dos quartos, e
uma voz feminina que dizia mais ou menos assim: “Como foi que
esse rapaz teve coragem de chamar uma moça de família, para um
colóquio, à noite, numa praça? Ele está mal intencionado. Colóquio
não é coisa boa. Vamos chamar nosso irmão que mora no interior,
em Salgado, para resolver a situação.” Eu me retirei às pressas,
apavorada, porque o conteúdo do telegrama estava tomando um
rumo diferente ao da minha intenção.
Pensei, pensei muito e não entendia porque haviam dado
uma conotação tão diferente à palavra colóquio. Eu havia aprendido nas aulas de português “no antigo ginásio”, com o Cônego
Ovídio, nosso professor, que colóquio era uma conversação entre
duas pessoas. Na ocasião, ele orientou para usarmos palavras bonitas quando falássemos, e colóquio era uma delas. Eu achei a palavra tão bonita! Por isso eu a usei para mostrar que sabia falar
difícil.
Procurando entender o rumo que a minha brilhante ideia estava tomando, me questionei: e se o irmão dela viesse do interior e
fosse tomar justificativas com o rapaz que não sabia de nada! E se
descobrissem que tinha sido eu a causadora do fato? Estava perdida, era caso de polícia. O que seria de mim? Dessa vez, com certeza, mamãe tiraria o meu coro para curtir. Fiquei apavorada, no
aguardo dos acontecimentos.
À noite, como era de costume, a destinatária do telegrama
foi conversar com mamãe e mostrou o dito cujo. Os olhos estavam
inchados de tanto chorar, gaguejava, as mãos tremiam e só se referia à maldade do rapaz. Eu só fazia observar, mas o coração batia a
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292 | M a g n o N i c o l a u ( O r g . )
mil de aflição. Mamãe mandou que eu fosse pegar um copo com
água e açúcar para ela tomar.
Depois de acalmá-la, pegou o telegrama para ver o seu conteúdo, analisou, analisou e concluiu: “Minha filha, tire tudo de
ruim que tem na cabeça, você é que está sendo maliciosa, colóquio
é apenas uma conversa entre duas pessoas. Ademais, isso aqui não
me parece ter vindo através do correio oficial, ele foi escrito em
uma dessas fórmulas que eu tenho aqui na bodega, servem de borrão para redigir telegramas e depois levar ao correio. Veja, não tem
carimbo nem foi lacrado, apenas dobrado.”
Num abrir e fechar d’olhos, mamãe descobriu a autora da
tão urdida trama. Eu já era conhecida de muitas outras. Só não
sofri uma boa sova no lombo, porque fui inocentada. A culpa não
tinha sido minha, mas do colóquio.
Afinal, minha ideia saiu vitoriosa, foi o caminho para Dolores se encorajar e iniciar um colóquio com o rapaz.
Depois que fizemos as pazes, brindando com ela, eu cantarolei tal qual o rapaz: balas, bombons, caramelos pirulitos kibom. Vai
querer, Dolores? Ela me respondeu: “Vou sim, mas quero é casar”.
Valeu minha trela, valeu minha intenção. Eles casaram, tiveram um filho e foram felizes.
Esteja ciente o leitor disso:
Aqui tudo é verdade
Nada é mentira
Não quero fazer média
Nem provocar ira.
Nesta minha narrativa
Converso na voz ativa:
Não faço como Pinóquio
Digo somente a verdade
Pois não tenho mais idade
Prá deturpar um colóquio.
SUMÁRIO
Leituras Diversas: Crônicas, Ensaios e Contos
| 293
TUDO POR AMOR
Octavio Caúmo Serrano
dade?
Um recado para os que defendem o aborto. Ficção ou reali-
Ela, dezessete anos. Bonita, cheia de sonhos a povoar-lhe a
mente. O príncipe encantado a atendia nos mais minuciosos anseios.
Filha única, família importante, vivia em conceituada cidade
do interior de Minas Gerais. Sua mãe, respeitável senhora, e o pai,
um político influente. Eram figuras obrigatórias nas sociedades e
nos eventos locais.
Apenas estudava, pois queria ter uma formação cultural para nivelar-se ao noivo, cobiçado jovem da cidade, que acabara de
formar-se em medicina. Era competente obstetra que, além de trabalhar no hospital da cidade, tinha bem montado consultório presenteado pelos pais.
Programavam casar-se em seis meses. A casa já estava decorada, e a lua de mel, depois de uma festa como a cidade jamais
vira, seria em Veneza. Com direito a passeio pelos canais, ouvindo
os gondoleiros com suas cançonetas.
Acabara de voltar da faculdade e passeava pelo florido parque da cidade. Um local aprazível e pacato. Era dia de semana e
havia pouca gente em passeio. Mas ali não havia violência, assalto.
No entanto, como se fora trama do destino que às vezes tenta entravar-nos a felicidade e altera o que era impossível de dar
errado, ágil como um gato, um louco salta à sua frente, tapa-lhe a
boca e a conduz a um lugar ermo. Asfixiada, desmaia e o maníaco
se aproveita para destruir o tesouro que guardava para o seu eleito: sua honra de donzela, que ali desaparecia sem que ninguém
explicasse o porquê.
A família preocupada, porque a noite chegara, sai a sua procura. Tiveram de recorrer à polícia, que rapidamente a encontrou.
SUMÁRIO
294 | M a g n o N i c o l a u ( O r g . )
De roupas sujas, com dores e desconforto, imaginava que tivera
um mal-estar e desmaiara.
Mais calma, consegue recordar-se da cena. Fora atacada. De
nada mais se lembrava.
Levada aos médicos, realmente havia sido estuprada e restava saber se do ato viria um filho e também alguma doença.
Passado o tempo necessário aos exames e, felizmente, nenhuma contaminação, mas a gravidez fora confirmada.
A revolta dos pais é a convencional. - Por que na nossa casa?
- Por que com nossa filha? Diante disso, aconselham o aborto para
limpar-se da sujeira que seu ventre carregava, resultante de um ato
agressivo e sórdido.
Consultada, a jovem é incisiva: – Não admito, sequer, discutir o assunto. Meu filho vai nascer.
A jovem sentia uma alegria interior que a unia intensamente
àquele ser que começava a ter vida em suas entranhas. Uma luz se
acendera dentro dela, fazendo esquecer o momento de dor que
parecia trazer-lhe desgraça e infelicidade.
Nessa hora, suas convicções espíritas, que jamais havia revelado aos pais, davam-lhe a certeza de que não herdamos dos ancestrais a moral e o sentimento. Eles só fornecem um novo corpo
para que a alma que já existe possa viver novamente.
Repetiu, enfaticamente: - Meu filho viverá.
O noivo não podia aceitar a decisão. Concordaria em desposá-la, apesar de tudo, mas não criaria o filho de um maníaco que,
certamente, teria os mesmos instintos perversos do pai.
Ela, serenamente, esperou o filho nascer.
O doutor, totalmente desinteressado pelo destino da jovem,
nem lhe ofereceu seus préstimos profissionais. O destino os separou totalmente.
A moça, sem abalar-se, com total convicção do que fazia e
queria, chega ao hospital onde em pouco tempo vem ao mundo
um bonito e saudável menino. Perfeito, fisicamente.
Ela, com muito leite, o amamenta com prazer. Ele, ao sugarlhe o peito, extrai o alimento com lhaneza. Parece que não quer
feri-la nunca. Se o neném é pequeno, o espírito que o anima já se
demonstra um gigante de sentimentos e já o mostra no simples ato
de mamar.
SUMÁRIO
Leituras Diversas: Crônicas, Ensaios e Contos
| 295
Passam-se os anos e o menino se desenvolve. É motivo de
alegria para a mãe, que o amou desde o primeiro segundo que o
sentiu em seu ventre. Inseparáveis, completam-se.
Na escola, goza da simpatia de todos e, apesar de não ter
pai, o que se realça numa cidade de interior, ninguém o discrimina. É bom colega, as meninas já o paqueram e os professores o
respeitam pelo interesse e responsabilidade como se dedica aos
estudos. A mãe já o havia deixado a par do acontecimento, e o fato
de ter nascido de um estupro não o incomodava. Amava ainda
mais a mãe por ter lutado pelo seu nascimento.
Estuda línguas, pratica natação. Tem corpo de atleta.
Os avós aprenderam a amá-lo e esqueceram os traumas que
envolveram o seu nascimento. Acreditam, mesmo, que a determinação da filha valeu a pena.
Chegam férias e os dois saem em merecida viagem de recreio. Mãe e filho, felizes, botam o pé na estrada…
Oito horas de uma manhã ensolarada. De repente, um carro
que ia à frente deles despenca do alto da ponte para dentro do rio.
O moço não pensa duas vezes. Estanca o veículo e, ágil, jogase nas águas, mergulha fundo e retira um homem que tivera um
mal súbito.
Levam-no ao hospital, enquanto a mãe, emocionada, admira
a coragem do seu “menino”. Bem atendido, o homem fica fora de
perigo.
Informado do acontecimento, demonstra desejos de conhecer e compensar o jovem pelo seu gesto corajoso. Pede que o convidem a vir visitá-lo, pois seus dados foram anotados na portaria.
Amável e simpático, como de hábito, atende ao chamado e
volta ao hospital para conversar com aquele estranho. Vai na companhia da mãe que se mantivera em silêncio durante todo o episódio.
Quando o paciente viu a mulher, levou um susto e perguntou-lhe:
- Que faz você aqui?
- Vim acompanhar o meu filho, que atendeu ao seu convite.
- Seu filho?!
- Sim, meu filho. Aquele menino que você não quis aceitar e
a quem, agora, deve a sua vida.
SUMÁRIO
296 | M a g n o N i c o l a u ( O r g . )
Num longo e emocionado silêncio, todos se abraçaram, sem
que o jovem compreendesse o que estava acontecendo, porque esta
parte da vida de sua mãe lhe era ainda desconhecida...
SUMÁRIO
Leituras Diversas: Crônicas, Ensaios e Contos
| 297
NECROBALLET
Oziel Rodrigues
Despachei o grito surdo da coruja, vomitando luz no canal.
É certo que era noite... em relances...? Lancei a vista para os
telhados das casas próximas. Vi também o pico dos prédios – queria desviar o olhar. O maldito parecia roncar no meu pé do ouvido.
Deitei as pálpebras, chamei o Senhor dos Exércitos a fim de que
me enviasse o anjo arqueiro... nem o trompete escutei.
Fiz da garganta, escorrego pro álcool, e dentro de mim não
escutava respiração ou a taquicardia. Imagens se mexiam enquanto eu tentava fixar o olhar em alguma merda que escorresse pela
boca do bueiro. Não veio dejetos, impurezas. Danei a cabeça naquela água escura. Deu uma vontade danada de beber. Ai, como
girava tudo! Meus dedos doíam em cotos sangrentos. Nada me
veio. Eu nem sabia se estava em pé ou sentado, deitado... o universo uniforme... apenas uma camada. Outra mão, decepada. Tempo
rápido: picadas que me cutucavam o corpo pareciam contar os
segundos. Um feixe de luz iluminava meu rosto, outro piscava
mostrando os cadáveres úmidos. Um roedor se aproximou, tentei
espantá-lo antes que mordesse a orelha da criancinha.
... meu filho!... horrendo. O sangue sujava o esgoto, e o fluído negro arrastava naturalmente os corpos, a mim também. Relancei o olhar ao céu, as folhas diurnamente verdes, não me permitiram ver a imensidão: Eu, mendigo de estrelas. Concordei com a
natureza e me vi na sina que a vida me preparou. E meu filho lamenta chorando sangue pelas feridas recém-abertas... o balé dos
cadáveres... Olha lá minha mulher rodando feito um peão na água
rasa, turva...
Tentei me arrastar para seu corpo. Acho que estava acordada. Percebi um movimento dolorido. O esputo escarlate descia do
meu queixo para o peito. Me vi sentado, dando tapinhas na superfície da água suja. Sabia que aquilo poderia ser grandes átomos do
SUMÁRIO
298 | M a g n o N i c o l a u ( O r g . )
Açude Velho de Campina. Que noite gélida! Era pra chover. Assim
morreríamos afogados.
A coruja tornou a gritar sobre nós. Uma galinha morta jogada ali. Parecia também querer entrar na dança, a água nos regia.
Merecia um banho, a danada. Os donos só dão banho nas bichas
ao torcerem seus pescoços. Apodrecem no nosso estômago. Acabam virando merda depois de muita luta digestiva. Vejam: no final
tudo é bosta, excremento de Deus. Estrume é bom pra planta. Mire
as margens do canal da cidade: é onde as flores mais bonitas brotam, apesar da intempérie. Eta, galinha feia! Tem penas pretas nas
patas em riste. Apontam pra mim. Olá!
Uns cocozinhos peixeformes me rodearam, sai, sai, sai do corpo, quintessência, fingi não entender. Era obrigado a retrucar em
linguagem de bosta? Me entrou com tanta força nos tímpanos que
estremeci. Visível quase-morto, quase-tal a galinha meio depenada, tremulei as pálpebras. Hum? Em duas vertigens comecei a vomitar sangue. E as merdas repetiam a sentença. Soube pouco antes
que aqui era um matadouro clandestino. Vi a cabeça da Mula sem
cabeça.
Supetão: “quem não nasce pra servir, não serve pra viver”,
ouvi muito dessas da boca do comandante na época em que eu
enfiava no cano dos fuzis no cu dos outros. Me lembro até que já
peguei um M16 semiautomático; veio dos americanos. Era tão bonito o bicho que tive que enfiar no meu próprio rabo. Eu nem aí:
sabia que o comandante tinha o costume de cheira os canos das
armas antes de levá-las a combate.
E a galinha entrava em convulsão. O bico, um formigueiro,
acusava alto vida pequena, morte eterna! E a coruja gritava nunca
mais! Fundo, no bueiro, emergia um menino, fardamento militar,
voz, senhor assim, senhor assado, céu não é paraíso, nem quente nem frio,
soldado? Me fitava encolhendo os ombros. Sei não, senhor, foi o que
proferi no estado de bio falência. Ele foi à galinha e mordeu o pescoço. O animal era oco, só formigas seu pescoço torcido derramou
pelo esgoto. Soldado, sentido! Quis fazer a reverência, quis sim, mas
eu não sentia meus braços. Mirei o olhar para o horizonte. ATENÇÃAAO! SENTIDO! Vi seu jeito irascível e competente se dirigindo a mim, colocando meus cotos em posição de vênia. É o quê?
porque meus membros sempre desciam indiferentes à ordens. Tá
SUMÁRIO
Leituras Diversas: Crônicas, Ensaios e Contos
| 299
vendo que ninguém vai assistir ao miserável enterro da tua última quimera? E a coruja NUNCA!
O menilitar arregaçou as calças, mangas, tirou as botas; começou a saltar. Aterrissava desjeitoso, chapinhando água em mim.
Danço nada não.
E a coruja NÃO!
Uma sereia do esgoto bateu calda até, Precisa de alguém, o
menino Não!, puxou um bacamarte, estourou a linda peixa.
A galinha encurvou o pescoço, quê tá..., Menilitante apontou
a arma pra ela, quer o quê?, nada o animal desviveu. Pôs um ovo.
Nasceu o pinto. A criança jogou o bacamarte por ali e o bebê penas
entrou pelo bocal. Não reparou.
O cachorro do mato uivou o abismo do caos. Me senti calmo.
Não vi coisa aqui contemplativa; prestei a observar o balé. Dança
ridícula, posso nem descrever, tal-quase, quase-tal passos se queimando na praia. Me vi entretido. Estalaria os dedos se ainda os
tivesse. Cantaria se minha voz não fugisse. Que tal? perguntou.
Entortei os lábios num sorriso, Nada? Como possível...? Nem eu,
nem eles.
Passou a arrastar minha mulher pelos fios da cabeça. Deitoua no meu peito nu. Essa? Sim-não, eu pedi? Ia deslizar a criança
também, ela começou a berrar. Pronto, pronto, acalmou? E continuava a carpir. Tava um menininho feio, o meu filho. Adiposo, sangrento, fungando. Cambaleou me reparando o olhar furtivo. Me
fiz de morto. Vivo quase, me desmentiu o pequeno militar. Meu
herdeiro das feridas Quase? Apesar do pesar que pesava em coração alheio, Morto quase também, ratificou o comandantezinho. A
mãozinha puxou e trouxe o meu para si. Corpos se chocaram. Retifico: se dançaram. O swing satânico não podia mais entreter a
mim-nós. A lua agigantou enquanto os escudos da alma se debatiam. A mulher mexeu, senti. Vi o osso exposto dela do joelho e braço, não podia movimentar muito sem que a dor subtraísse a vontade. Existe dor, ainda bem; se não tivesse é certo a gente perder
esses membros tão funcionais sem perceber, né? A mulher esbugalhou o olhar em minha direção Morto, me fingi idem. Contive respiraços. Ela desencostou de mim, tentou se arrastar. Alavantú
Anarriê balancê. E conseguiu alcançar o bacamarte, erguer, apontar... a dança... se interessou. Os meninos tudo quase-tão bonitos.
Escolheu atirar, escolheu em quem. Mirou, dedilhou o gatinho.
SUMÁRIO
300 | M a g n o N i c o l a u ( O r g . )
Saiu voando, com pena e tudo e pico e tudo e canto. Saiu galo.
Cantou chamando o sol. Não veio sol.
A lua fria e a coruja gritando NUNCA MAIS!
SUMÁRIO
Leituras Diversas: Crônicas, Ensaios e Contos
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TRECHO DO ROMANCE “HAMLET”, PARTE
DA “HISTÓRIA UNIVERSAL DA ANGÚSTIA”
W. J. Solha
O céu era uma vasta abstração sobre Copenhague, na tarde
em que o desfile fúnebre saiu de Christiansborg - o concretíssimo
castelo que, naquela época, era a residência real - o som do tambor
angustiado e fundo seguindo o carro em que arcanjos tocavam
clarins mudos em torno do enorme esquife. Emocionaram-me o
cavalo trotando sem cavaleiro, vindo atrás, a rainha velada, o Príncipe no magnífico luto. Depois do cortejo de nobres, a cavalaria
conduzindo centenas de estandartes com todos os esmaltes e insígnias da heráldica danesa. E lá íamos nós, os seres humanos,
abatidos, mais uma vez livrar-nos dos despojos (com o processo de
decomposição iniciado) de um dos nossos. Veja-me ali, no meio da
multidão que segue a família enlutada a pouca distância, eu ao
lado do Conselheiro do Rei - Polonius - e de seus filhos Laertes e
Ofélia (o rapaz, famoso pela condição de duelista imbatível, a moça... apaixonada, como tantas outras do Reino, pelo Príncipe). Eisme ali, um dandy à italiana - meiões justos valorizando as coxas,
luxuoso dólmã negro caído de um ombro, gola sanfonada (da qual
minha cabeça parece aflorar feito a de João Batista na bandeja de
Salomé), o bigodinho - fininho fininho -, os cabelos negros encaracolados - ridículo! - mas quem está livre da óptica de seu tempo?
Nem os geniais Voltaire e Bach, de enormes perucas empoadas,
nem o grande Velázquez - que não se livrou de pintar um Marte
com bigodão portuga -, ou James Joyce - o enciclopédico gênio da
literatura do século XX - que posou tão vaidoso para a posteridade
com seu chapéu palheta abestalhado, o tolo pince-nez a lhe ampliar os olhos precários, a inútil bengala ( espécie de guarda-chuva nu
) , os apalhaçados sapatos de duas cores - tudo considerado indispensável no civilizadíssimo meio em que viveu. Hamlet, no entanto... ah, meu deus... Hamlet seria elegantíssimo, em seu traje negro,
SUMÁRIO
302 | M a g n o N i c o l a u ( O r g . )
em qualquer espaço e ocasião, o veludo e a seda sombrios realçando-lhe os olhos e os cintilantes cabelos louros!
Algo, no entanto, tirou-o de profundis para mágoas mais rasas: seu tio Claudius lá adiante, na rua, vindo entre as duas alas do
povão, a cabeça de másculo modelado, ele alto e com a largura
realçada pelas mangas bufantes e pelo manto, o ar de senhor da
situação confirmado pelo belo colar de ombro a ombro, além da
chave e das esporas de ouro presas ao cinturão. Reconheci-o pelo
retrato eqüestre realizado por Rubens, de grande porte, que eu
vira ainda naquela manhã no castelo, em que ele exibia os atributos de capitão-general: a faixa vermelha cruzando-lhe o peitoral da
cintilante armadura negra, o bastão de comando, a manobra que
realizava no cavalo - chamada levade - utilizando só uma das mãos
para dominar o animal, a facilidade para o controle e rigidez da
postura convertendo montaria e ginete em demonstração de capacidade para o mando. Percebi que não seria nada agradável cobrar
dele o débito que tinha com meu pai. Vi quando deixou passar o
carro com o corpo do irmão - no que fez o sinal da cruz (ele também convertido, como a Rainha!) - e, em solene elegância, caminhou no sentido contrário ao de todos, aproximando-se do sobrinho, cujas faces osculou, depois alcançando a viúva e se pondo ao
lado dela, fazendo-me de imediato entender ...porque o Príncipe
não era rei.
Hamlet, sem alterar o passo em que ia isolado, voltou-se olhou-me... sinistro... como se tivesse ouvido meus pensamentos fez um aceno para que me aproximasse. A quebra do protocolo me
constrangeu. Destaquei-me da corte, procurando não perder a
compostura no que me apressava, emparelhei com ele, cabeça baixa, mãos juntas à altura da virilha, e o vi indicar o tio:
- Ricardo III...
Como não compreendi a que se referia, murmurou-me:
- A cena me lembra aquela em que o monstro, ainda Duque de
Gloster, interrompe a passagem do féretro do rei que ele assassinou, e
mantém aquele diálogo cínico mais a viúva, que o desgraçado acaba cantando... e comendo... para chegar ao trono...
Chocado, olhei para o casal que centralizava o séqüito, depois desviei os olhos para o tambor marcando a marcha fúnebre
repicada pelos pacatás dos cavalos - os do carro, os do sem cavaleiro, os da cavalaria atrás de nós - e, como vi Hamlet voltando à ati-
SUMÁRIO
Leituras Diversas: Crônicas, Ensaios e Contos
| 303
tude anterior, de filho enlutado, deixei-o avançar sozinho, esperei
que a corte me alcançasse e retomei os passos, com os outros, ouvindo mais forte o estalar de todas aquelas bandeiras ao vento,
controlando minha agitação interior. Já vi muita gente fazendo de
tudo para parecer natural em público e tenho pena de mim diante
do que reassisto agora, de memória. Felizmente a imagem do rei
sendo picado por uma serpente enquanto dormia no jardim me
distraiu, de repente figurando-se definitivamente... fábula, igual à
do Gênesis, evocada pela lembrança de uma outra queda, a de
Abel assassinado por Caim, que se revoltara com a especial atenção dada pelo Criador ao irmão. O que se insinuava na mente de
Hamlet, concluí tenso, é que seu tio lhe matara o pai, requestava a
rainha e - pelo visto - não se deteria diante de nada (como a eliminação do príncipe herdeiro) para chegar ao Poder!
Como é natural nos enterros, veio-me à memória o dia em
que tivera de viajar (eu estava em Olinda) para comparecer a um
outro funeral - o de minha mãe - na Capitania de Para’iwa. Houvera, sim, um primeiro momento de emoção - como os que eu via
agora em Copenhague - com meu abraço nas irmãs que tinham
vindo me receber aos prantos, depois o instante em que tocara nas
mãos do cadáver cruzadas sobre o peito, e - pela derradeira vez acariciara-lhe as feições. Mas logo a reunião inusitada na família,
com tios e primos que há muito não se viam, tornara-se... festiva...
o que, aliás, não destoava do espírito de mamãe. “Não me olhe todo
solene, no meu velório, como se eu estivesse com Deus ou coisa que o
valha, porque aquela região de refrigério, de luz e de paz com que o cristianismo nos acena, parece-me de uma monotonia terrível! O paraíso cristão seria paradisíaco para mim por - no máximo - uma semana. Aí começaria uma enorme vontade de voltar para a ativa, pra estiva...”
Quando se trata da morte de homens públicos, entretanto,
viúva, herdeiros, amigos, servidores do morto, todos se tornam
alvo da compunção, curiosidade, vigilância coletiva. O povo reage
mais poderosamente ainda quando se trata de um rei, para muitos
o próprio Deus na Terra. Paradoxalmente, os que mais choravam contidos pela força mercenária da polícia (recrutada, como todas,
entre os miseráveis, para de seus iguais proteger os poderosos) eram os mais mal acabados, mal ajambrados, os saídos de entulhos
e monturos, dentre ratos, percevejos e baratas... como que para
usufruir... da presença divina, por algumas horas a seu alcance.
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304 | M a g n o N i c o l a u ( O r g . )
Percebi que Hamlet, muito refinado, bonito, triste, claro, limpo, de
negro, acrescentava ainda mais ternura àquela já enorme comoção
popular, principalmente junto às moças, no fundo no fundo candidatas a cinderelas, todas, loucas por consolar seu príncipe desencantado.
Mas houve um murmúrio de deslumbramento e escândalo
da população - na maioria luterana - quando, pela primeira vez,
entrou na catedral. O vertiginoso espaço, os trios de velas, quartetos de círios, quintetos de archotes, sextetos de brandões, a estonteante música do órgão e o coro vigoroso, o Cristo em ouro com
esplendor em prata e cruz cravejada de brilhantes, o urco vulto do
barqueiro do Aqueronte, o grupo escultórico da Anunciação - Maria com seu clássico susto de cinema mudo ante o Arcanjo (ele de
cabelos penteados na madeira, suor de verniz ), o Nazareno terrivelmente morto - costelas e clavículas expostas - tudo era magnífico e assombroso. Mas nada se comparava ao céu como que transbordando do teto na Apoteose de Hamlet Rei em sua famosa batalha
no lago gelado contra os poloneses, com milhares de guerreiros a
cavalo e de trenós, o superespetáculo enriquecido de bandeiras,
plumas, brilhos de armas, a gritaria ritmada pelos estrondos surdos de canhões - e que homens, que corcéis, que crepúsculo... que
massacre!
Onde a religião do “amai vossos inimigos” que Hamlet somente
agora aferia?
- Os cristãos foram sempre de uma duplicidade absurda - eu
lhe dissera na Capela Sistina - É sintomático que mantenham Cristo e seu séquito de mártires enclausurados em todas estes templos
e claustros, enquanto soltam os deuses pagãos, cheios de sensualidade e alegria, pelas praças e jardins de toda a Europa. Vocês são
como crianças! O que é isto, o que é uma igreja, senão arapuca pra
capturar Deus e seus santos, a isca no altar? E o que são as orações,
hinos e incenso, senão bajulação ao Rei dos Reis, o mundo atribuindo ao Todo-Poderoso a vaidade, ambição e venalidade de tiranos
como seu pai? Olha lá, que aberração o “Juízo Final”, com todos
aqueles seres humanos apavorados ante a desproporção entre seus
breves crimes e a insuportável idéia sádica de um castigo eterno!
Cadê o ‘Perdoa-lhes porque não sabem o que fazem?’ Você mesmo
já me disse, mais de uma vez, que somos máquinas. Como se pode
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Leituras Diversas: Crônicas, Ensaios e Contos
| 305
puni-las, em lugar de consertá-las ou aperfeiçoá-las? Isso não seria
impossível para alguém considerado Onipotente”.
Mas o grande momento das exéquias (todo um ritual pomposo para livrar Hamlet Rei do Inferno) ainda estava por vir. Foi o
da revelação do túmulo monumental para onde seu ataúde foi
levado. Começava na escadaria, com a estátua de bronze do finado
em tamanho natural ( e uma particularidade: como a de Carlos V,
hoje no museu do Prado, em Madri, seu corpo fora fundido separado da armadura, que poderia ser removida em ocasiões especiais, tornando-se o rei, nu, a representação de um herói da antigüidade com o Furor derrotado a seus pés ).
Mais adiante, quatro cariátides - representando Virtudes sustentavam a laje sobre a qual todos viram as imagens orantes do
Soberano e da Rainha em ouro, a multidão se comovendo com a
efígie do monarca, serena e arrogante como ele fora, eu extasiado
com o realismo de sua blindagem - da qual só as mãos postas sobre o genuflexório e o rosto forte emergiam nus - ombros e costas
cobertos pelo manto brocado de esmeraldas, Gertrude, ajoelhada
logo atrás dele, belíssima em seu luxo máximo. Eu encontrara
magnificência semelhante apenas no monumento funerário do
mesmo Carlos V na igreja-panteão d’El Escorial, na Espanha, embora também fosse soberbo o túmulo de D. Inês de Castro, no Mosteiro de Alcobaça, em Portugal, embora também fosse esplêndido
o sepulcro do Senescal Philippe Pot (hoje no Louvre).
Partidário de Lutero desde a Reforma, o povo dinamarquês
se viu forçado a uma missa de réquiem pelo rei convertido ao catolicismo pela esposa. O Príncipe me dera a intimidade de confirmar:
o que a mãe tanto prezava na religião desprezada em todo o norte
da Europa era o fausto de onde agora surgia o sacerdote opulentamente paramentado, que subiu alguns degraus do mausoléu e com voz piedosa e afeminada - começou, na estupenda acústica do
recinto:
- Caríssimos irmãos em Nosso Senhor Jesus Cristo! Meu
amado Rei! (emocionou-se, os olhos marejados voltando-se para o
ataúde, a cabeça oscilando como se não lhe aceitasse a morte ) Alteza! (disse para a Rainha, a cabeça, ainda insegura, negando ).
Querido Príncipe... (e o velho afagou Hamlet com seu olhar, o que
me fez procurar alguma ressonância do afeto no órfão, mas vi-o
apenas cruzar os braços e levar a mão direita ao rosto baixo, medi-
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tativo). O amado esposo e pai, que hoje baixa à sepultura a fim de
que - como Cristo - dela irrompa aos céus em glória, queria que
sua estátua jacente - que lhe cobrirá o sepulcro - bem como a de
sua querida Rainha, que um dia seguirá seu mesmo caminho aludissem à natureza transitória da carne, mostrando vermes a
entrar e sair das cavidades de seus corpos nus, para que todos vós,
irmãos, tivésseis ciência presente, sempre, da vanidade de nossos
apegos ao mundo e da necessidade de estarmos instantemente
preparados para a chegada da Morte. Cristianíssima alma, a de
Sua Majestade! Mas a Rainha - mãe querida, imagem de nossa
querida pátria - tocada pela angústia dos mais sensíveis ante tal
espetáculo, à revelia de Hamlet Rei, que morreu sem ver acabado o
excelente trabalho do escultor Germain Pilon, que vós todos havereis de admirar agora, decidiu que tal arte fosse retrospectiva, não
prospectiva, e o que todos vereis aqui, a partir de hoje, será o régio
casal despojadamente nu, sim, reproduzido sobre o tampo do sarcófago, mas como se... tivesse falecido logo após a Graça de conceber nosso querido príncipe, aqui presente!.. .
A mão pensativa de Hamlet parou no ar. Seus olhos passaram a querer... e temer... essas esculturas. A reação de seu tio não
foi menos inquieta. E a da corte. A Rainha, cabeça baixa, coberta
pelo fino véu negro, permaneceu imóvel - mas sabe deus como se
sentia ante a iminência de ter o próprio corpo exibido - eros via
tanatos - dentro de alguns instantes. E a ralé? Você já viu aquela
azáfama da multidão de técnicos montando um quadrirreator num
gigantesco hangar e atinou em como ela lembra um formigueiro
igualmente afanoso em desmembrar um gafanhoto morto? Confesso que eu mesmo, só depois de ver a réplica da Rainha, me detive na do finado Rei, que me pareceu algo como um Cristo morto
sem suplícios nem carisma, num sono de pedra, sexo coberto pelos
grandes dedos superpostos. E ela? Gertrude - para estupefação do
filho, principalmente, posara como a Vênus clássica que tenta cobrir os seios e a virilha com as mãos. A boca entreaberta, olhos
revirados como que num sonho de gozo, a bela cabeça e os ombros
nus pressionando o travesseiro aparentemente macio embora de
mármore, lembravam demais o êxtase suspeito da Santa Teresa de
Bernini, na capela Cornaro da Igreja de Santa Maria della Vittoria,
em Roma, que mais goza do que sofre a iminência de ser varada
pela lança do belo anjo que misteriosamente lhe sorri.
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Leituras Diversas: Crônicas, Ensaios e Contos
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Hamlet, arrasado e abalado pela morte do pai, pelo golpe
branco no Estado, e - agora - pela exposição daquela nudez, saiu
sem falar com ninguém, nem comigo, atropelando a multidão,
indo enclausurar-se - incomunicável - no Kronborg Slot - o castelo
Kronborg - em Elsinor, a quase dez léguas de Copenhague.
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A APARIÇÃO DO EXPRESSO
DA MEIA NOITE
Ythoganny Nicacio Silva de Araujo
Aparição.
De acordo com o dicionário,
1. Aparecimento.
2. Manifestação súbita de um ente, de um objeto.
3. Visão, fantasma.
O relógio está a cumprir a sua árdua tarefa, batendo mais
uma vez, à sólida meia-noite, fazendo surgir no horizonte o expresso vindo de tão longe que seu assovio frenético nos faz tremer
de medo, e mais uma vez dentro de sua carcaça metálica traz aquele anjo que está sempre no mesmo assento. Ela, que não falava, não
mexia sequer uma única pena de suas asas, ao menos não no início, não que fosse um anjo, mas gostava de pensar que fosse sempre com um olhar fixo no nada que se projetava de sua mente primaveril. É assim todas as noites: eu a observá-la em sua inércia,
atento a seus mínimos detalhes.
Chamam-me de louco, louco por acreditar que ali, naquele
expresso da meia-noite, exista algo que só eu possa ver. Chamamme de louco, louco por sentar e esperar o nascer da lua, e mais
louco ainda por ficar deslumbrado com seu balé magnífico que me
leva ao nascer do sol. Se é assim que me chamam, então que assim
eu seja: sou louco, e se minha insanidade projetou algo tão belo
como esta aparição que vejo todas as noites, então sinto que estou
perto de vislumbrar o paraíso.
Não sei de onde ela vem e nem para onde vai. Uma coisa é
certa: sempre que o expresso passa nos limites da terra do nunca,
sua silhueta esvai-se em meio às brumas desta terra tão santa
quanto obscena. Terá ela um elo que a prende nesta densa bruma
de fobias e desejos projetados por meros mortais?
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Leituras Diversas: Crônicas, Ensaios e Contos
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Não quero amá-la, não quero odiá-la, não peço gestos e nem
olhares, apenas quero a doce loucura de sua presença. Tenho medo
do que ela tenha a me dizer, tenho medo de que seu olhar escarlate
traga à tona meus segredos que, guardados há tanto tempo, não
afetam mais a minha sanidade.
– O que faço para que possa contigo discursar? Falei quando
não mais suportava o passar dos anos sem ao menos escutar sua
voz.
Por que logo para mim ela foi aparecer? Por que só eu vejo e
mais ninguém? Que segredos teria para me revelar? Valeria realmente à pena trocar a sua doce história por minha vã sanidade?
– Por que então eu falaria com você, se por tantas vezes te
encontrei neste expresso, que tão melancolicamente transporta
almas cansadas para suas moradas? Suas falas em nada se comparavam com as vozes que ouvia frequentemente.
– Não sei, gosto de te olhar, mas não sei de onde vens e nem
o que sois.
– Sou uma projeção de tua mente que treme diante das dores
de tua sede.
Ela estava a falar comigo, e a tantas luas que eu esperava por
este momento, mas nada tinha a fazer, não diante do que ela falava
tão gentilmente.
O que tem ela dizer? Será ela uma história contada por um
alguém sem voz, uma história que o vento carrega sem saber o
porquê, a mesma história que ninguém quis ouvir?
– Tantas coisas que queria te perguntar, todos esses anos e
imaginei tantas conversas, que ficava ensaiando enquanto esperava por você.
– Olhe meus olhos e neles irás ver a pergunta da qual queres
a resposta. Seus olhos eram cristalinos, um torpor tomava-me o
corpo me deixando à mercê de seus desejos, naquele momento
tudo fazia sentido, e só uma verdade importava.
Será que deveria eu entregar-me a meus desejos, assim como
todos acabam se entregando?
– Como está ela?
– Ainda pensa em você, você sabe que foi triste, mas ela teve
de partir.
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– Mas não precisava, eu a amava tanto, não queria que ela
tivesse ido, queria que ficasse comigo, que me abraçasse mais uma
vez.
Uma história, uma vida, um filme passaram em minha frente, e mais uma vez a verdade estava mais evidente.
– Ela chora há muitos anos. Você deve deixá-la partir.
– E como posso fazer isso? Quero tanto encontrá-la, dizer
mais uma vez o quanto a amo.
– Apenas sinta o que ela lhe transmite, toque em mim.
Um sentimento com um misto de amor e ódio me tomou por
completo, um amor por tudo o que vivemos, um ódio por ter que
me deixar.
– Diga-lhe que ela deve seguir em frente, que eu ainda a amo
e sei que ela tinha que partir, diga-lhe com os olhos, com os lábios,
diga-lhe com todo o amor que carregas consigo.
– Ela sabe disso, mas você deve partir, pois o peso de tua
presença ainda atormenta seu espirito.
– Desta vez sou eu quem desce, eu não mais ficarei neste expresso, o peso de um sofrimento é insuportável para minha eternidade, mas ainda preciso que leve mais um recado para mim.
– Claro que sim, o que você desejar. De seus olhos vertiam
lagrimas, um choro de despedida.
Diga-lhe que ela foi o filme perfeito de um sonho inacabado,
um sonho incompleto e cheio de labirintos. Como outrora, meus
devaneios falaram mais alto, e por pouco tempo esqueci de mim e
não dela, diga-lhe que ficarei a esperar.
– Sim meu amor, ela já sabe, pois sois uma doce aparição
quase a enlouquecer-me lentamente agora parte para longe, e logo
te encontrarei na eternidade.
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