Revista Subtexto nº 07 (2010)

Transcrição

Revista Subtexto nº 07 (2010)
Os desafios da dramaturgia contemporânea
brasileira: formação, criação e processo
colaborativo
O autor no grupo teatral | Rafael Martins
13
Fragilidade e força: reflexões sobre criação e
formação dramatúrgica no Brasil hoje | Márcio Abreu
23
Dramaturgia em colaboração: por um aprimoramento
Adélia Nicolete
33
Dramaturgia colaborativa: notas sobre o aprendizado
da desmedida no teatro brasileiro | Kil Abreu
41
Galpão em Foco
Sobre escrever um livro e a busca de sentido do
teatro | Eduardo Moreira
49
Cine Horto em Foco
Núcleos de Pesquisa do Galpão Cine Horto: a teoria
na prática | Lydia Del Picchia
57
Núcleos de Pesquisa do Galpão Cine Horto:
uma experiência inventiva | Kenia Dias
63
Grupo Teatro Invertido: representação e publicação
Sara Rojo
69
Teatro e Política
Políticas Públicas para a cultura: um olhar
panarâmico sobre o Brasil, Minas Gerais e Belo
Horizonte | Chico Pelúcio e Leonardo Lessa
77
Cultura: hora de pensar a cadeia produtiva como um
todo | Romulo Avelar
85
expediente
editorial
SUBTEXTO – REVISTA DE TEATRO DO GALPÃO CINE HORTO – No.7 – ISSN 1807-5959
Em 2010, Galpão Cine Horto completou 13 anos de existência comprometidos
em inventar e reinventar caminhos que possibilitem o desenvolvimento do
teatro como ação importante para construção de uma sociedade mais humana e
justa. Para vencer nossos desafios sempre buscamos unir formação com criação,
processos com espectador, informação com difusão das artes cênicas, fomento
com profissionalização, produção com financiamento, encontros com parcerias e
parcerias com redes de colaboração.
COORDENAÇÃO EDITORIAL: Luciene Borges
JORNALISTA RESPONSÁVEL: Luciene Borges (MG 09820 JP)
CONSELHO EDITORIAL: Chico Pelúcio, Fernando Mencarelli e Leonardo Lessa
COLABORADORES DESTA EDIÇÃO: Adélia Nicolete, Chico Pelúcio, Eduardo
Moreira, Kenia Dias, Kil Abreu, Leonardo Lessa, Luis Alberto de Abreu, Lydia Del Picchia,
Marcio Abreu, Rafael Martins, Romulo Avelar e Sara Rojo
REVISÃO ORTOGRÁFICA: Rachel Murta
DIAGRAMAÇÃO: Otávio Santiago
Rafael Martins: p.14, 19 / Rafael Escócio: p.15, 17, 20, 37 / Guto Muniz: p. 25, 29, 46,
58, 59, 60, 61, 63, 65, 66, 72 / Roberto Áudio: p. 34 / Elaine Perli: p. 35 / Vanderlei
Bernardino: p. 38 / Marcelo Lipiane: p: 43 / Lenise Pinheiro: p. 44 / Pedro Motta: p. 50 /
Thiago Sabino - p. 70 / Marco Aurélio Prates - p. 71 /
Assim, o Galpão Cine Horto se transformou em uma passagem para muitos
grupos de teatro que se constituíram em Belo Horizonte ou para grupos de outros
Estados que transitam pela cidade. Através de nossos projetos ou de nosso
teatro multi-meios, artistas e coletivos teatrais têm encontrado espaço para
suas experimentações, compartilhamento e apresentações de seus espetáculos
que sempre resultam em encontros férteis com parceiros e público em geral.
Nossa atuação vai além das fronteiras de Minas Gerais e hoje atinge, de forma
descentralizada, vários estados do Brasil.
Criada há sete anos, a publicação da revista Subtexto tem sido uma iniciativa
importante para discussão de temas pertinentes que acreditamos afetar a
cena teatral brasileira. E a sétima edição não foge a regra. Ao elegermos a
dramaturgia contemporânea como foco dessa edição da revista, o fazemos por
constatar que nela reside a fragilidade de boa parte dos espetáculos produzidos
ultimamente pelos grupos, especialmente, por aqueles que mergulham no
processo colaborativo de criação.
Centro de Pesquisa e Memória do Teatro / Galpão Cine Horto
Rua Pitangui, 3613 – Horto | 31.030-065
Belo Horizonte – Minas Gerais – Brasil | Tel. +55 31 3481 5580
www.galpaocinehorto.com.br/galpaocinehorto_cpmt.php | centro de pesquisa@
galpaocinehorto.com.br
A Revista Subtexto é uma publicação independente. Todas as opiniões expressas nos
artigos são de responsabilidade exclusiva dos autores.
TIRAGEM 2.000 exemplares IMPRESSÃO Gráfica Formato DEZEMBRO DE 2010
Segundo Aimar Labak, “não basta criar um projeto, mas estar preparado para
responder à demanda e os desdobramentos posteriores que ele gera”. O Galpão
Cine Horto tem um papel relevante na difusão e experimentação do processo
colaborativo em Minas Gerais e por isso, focamos essa questão na sessão
principal da revista como forma de contribuir com a continuidade da reflexão
entorno desse tema.
Assim, convidamos artistas e pesquisadores como Luis Alberto de Abreu, Adélia
Nicolette, Rafael Martins, Kil Abreu e Márcio Abreu para abordarem a questão
da dramaturgia contemporânea no Brasil, sob diferentes perspectivas: criação e
formação, dramaturgia e grupo, dramaturgia no processo colaborativo.
Não podemos nos furtar também de participar do debate sobre as recentes
mudanças nas políticas de fomento à cultura. Na seção Teatro e Política, o artigo
de Chico Pelúcio e Leonardo Lessa faz uma análise das políticas públicas nas
três esferas de governo nos últimos oito anos e tenta estabelecer um panorama
sobre a atual situação dos mecanismos disponíveis para a produção cultural
nessas esferas. A profissionalização e organização da cadeia produtiva da cultura
também é motivo de uma criteriosa análise no texto de Romulo Avelar, respeitado
especialista mineiro em gestão e produção cultural.
A seção Cine Horto em Foco traz dois artigos, de Lydia Del Picchia e Kenia Dias,
sobre uma nova vertente de atuação do centro cultural, em franca expansão: os
Núcleos de Pesquisa, que promovem formação e experiências práticas em diversas
áreas adjacentes ao teatro: figurino, cenografia, iluminação, dramaturgia,
produção, sonorização, jornalismo cultural e teatro para educadores. Essa seção
apresenta também a resenha produzida pela professora Sara Rojo sobre o livro
Cena Invertida – Dramaturgias em Processo, do Grupo Teatro Invertido lançado
pelo selo Edições CPMT. Com essa publicação, o selo do Centro de Pesquisa e
Memória do Teatro do Galpão Cine Horto inaugura as produções em parceria e
reafirma seu compromisso com a preservação e difusão da dramaturgia brasileira.
Outra publicação realizada em parceria é objeto da seção Galpão em Foco: o
recém-lançado livro Grupo Galpão – Uma História de Encontros, de Eduardo
Moreira, co-editado pela Duo Editorial. Neste artigo o próprio autor relata o
processo e as inquietações que geraram a publicação, na tentativa de recompor
o fio da memória e encontrar o sentido do teatro.
Essa edição da Subtexto chega a público acompanhada da nova Coleção dos
Cadernos de Dramaturgia do Galpão Cine Horto, dedicada ao projeto Cine
Horto Pé na Rua, que traz seis textos originais produzidos para o teatro de
rua, além de ensaios reflexivos sobre o processo de criação dos espetáculos e
suas dramaturgias. O CPMT ainda reinaugura o portal Primeiro Sinal, que entra
2011 de cara nova, reestruturado, mais dinâmico e interativo. Acesse www.
primeirosinal.com.br , cadastre seu grupo, escola ou espaço e faça parte da
comunidade associada ao portal de teatro do Galpão Cine Horto.
Com estas iniciativas fechamos um ciclo de ações que, esperamos, possam
contribuir para a ampliação do conhecimento e do debate sobre teatro.
Registramos também aqui um grande desejo para 2011: que possamos retomar
o seminário Subtexto em Diálogo, inaugurado na 6ª edição da Subtexto, e que
antecede a elaboração dos artigos da sessão principal.
Boas leituras!
Equipe do Galpão Cine Horto
Os desafios da dramaturgia
contemporânea brasileira:
formação, criação e processo
colaborativo
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O autor no grupo teatral
Rafael Martins1
Neste momento em que vários coletivos se formam pautados por novas referências
e pela reorganização das antigas, o sentido do teatro vem sendo rediscutido, bem
como seu posicionamento diante do mundo. A teoria se movimenta na busca
de apreender e questionar a recente prática dos grupos, com suas possíveis
novidades. Através de motes como a “dramaturgia do ator” ou o “esfacelamento
do drama”, a discussão paira com frequência sobre o texto.
A atual produção de textos nos grupos de teatro do Brasil é alvo de opiniões
divergentes. Enquanto alguns creditam à fragilidade técnica dos autores uma
certa “crise do teatro”, outros veem nos textos recentes uma base forte de
provocação e subversão. Para além das discordâncias e das metamorfoses que os
textos vêm passando, percebo a urgência de repensarmos o sentido dos autores
teatrais dentro dos grupos.
Antes de mergulharmos no assunto, deixo claro que nada do que exponho deve
ser entendido como verdade única. Há uma infinidade de grupos com formas
distintas de organização e criação. Alguns trabalham com textos fechados (ou
abertos a pequenas modificações, apenas). Outras companhias possuem uma
relação hierárquica muito bem esclarecida, em que há um dono e os demais
artistas trabalham como contratados. Além dessas, existem outras realidades
específicas de coletivos que possuem o autor na equipe, mas trabalhando em
moldes diferentes do que irei abordar.
Tratarei de grupos nos quais todos os membros sejam igualmente donos ou
que se proponham a relações de igual para igual entre todos os artistas que
o compõem. E que estejam abertos ao processo colaborativo, tendo um autor
disponível, é claro.
Através destas linhas, espero dividir um pouco do que tenho vivenciado, na
esperança de ser útil a outros autores e grupos. Portanto, abordarei o assunto
de uma perspectiva mais prática que teórica: a do artista. A de um autor que
também é ator (exerço, às vezes, as duas funções no mesmo espetáculo), que
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Ator e dramaturgo. Fundador do Grupo Bagaceira de Teatro e da Companhia
Vão de Teatro. Autor do livro “Lesados e outras peças”.
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| Subtexto | Revista de Teatro do Galpão Cine Horto
costuma escrever em processo colaborativo e que também já experimentou este
tipo de processo como convidado de outros grupos, dos quais não faço parte.
Espetáculo En Passant
- Companhia Vão de
Teatro
O exercício como ator desde a infância, muitos anos antes da escrita do primeiro
texto, me trouxe percepções fundamentais e um olhar “de dentro” para os
entraves dos atores com os textos que depois comecei a escrever. Facilitou-me,
e muito, a relação com os atores e encenadores. Assim como diversos autores da
minha geração, eu não me aproximei da realidade de grupo. Eu já estava lá. Por
outro lado, pude perceber, à custa de tropeços, que o conhecimento de ator não
me dava tudo. Era importante adquirir noções universais de dramaturgia. E eu
não as tinha sequer para contestá-las. Comecei a suprir minha deficiência sem
jamais me desvincular das práticas de escrever e atuar.
Por já ser “gente de teatro”, tive a oportunidade de ver meus primeiros textos
concretizados em montagens, quase sempre participando e contribuindo.
Gradualmente, fui me interessando em ampliar essa relação entre autor e grupo,
indo além dos retoques na estrutura dramatúrgica e me aproximando do que
muitos chamam de processo colaborativo. O processo colaborativo se diferencia
do coletivo por haver distinção das funções, mas conserva o espírito de troca, no
qual todos são levados em consideração.
Vale ressaltar que o colaborativo, tal como vislumbro, não significa processo
solto. Demanda conhecimentos e habilidades específicas do autor, como também
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são necessárias ao ator e ao diretor, por exemplo. Por estar aberto às influências
de tanta gente, o autor deve ser hábil o suficiente para transitar pelo maior
número possível de técnicas e conhecimentos. Trata-se de um cultivo individual
e eterno. Soma-se a isso a capacidade de compreensão humana, de sensibilidade
no contato e, sobretudo, de contemplar as divergências, harmonizando-as no
texto. Livre de rótulos e limitações, o autor se dispõe a sair da comodidade,
buscando seu potencial e trazendo com ele todo o grupo.
Quem viveu experiências em grupos teatrais sabe que, muitas vezes, podemos
entrar num estado de passividade criativa, em que nós, artistas, sequer percebemos
ou admitimos estar. Ficamos à espera de um líder ou mentor criativo (o diretor ou
seja lá quem), que trará as ideias para a discussão, seus interesses para a próxima
montagem etc. Os outros, vazios de propostas, debatem e contribuem com as
que foram trazidas por uma única pessoa. É como se houvesse uma hierarquia
sigilosa da criatividade. Geralmente isso não se cria de maneira arquitetada ou
mal-intencionada. Trata-se de uma relação que vai se construindo de maneira
imperceptível. Nessa hierarquia, o ator muitas vezes se contenta em executar as
ideias artísticas que lhe chegam. Criar, muitas vezes, se reduz ao ato mecânico
de montar o próximo espetáculo.
Numa rotina automática, o ator se desinteressa por tudo que não diga respeito
à sua função específica, alienando-se assim do sentido da obra. O espetáculo, ao
invés de afirmar o ator como gente, o deixa de fora, não lhe diz respeito. Com
Espetáculo InCerto Grupo Bagaceira de
Teatro
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| Subtexto | Revista de Teatro do Galpão Cine Horto
o passar do tempo, esse já não se sentirá mais capaz de conceber, mantendo
uma relação parasitária com o mentor artístico do grupo, do qual vê surgirem
as ideias interessantes. O trabalho, que deveria representar o sentido do grupo,
muitas vezes lhe contradiz, chegando a negar seu discurso e suas ideologias.
Por submissão ou mesmo admiração incondicional, a saudável discordância cede
lugar ao silêncio, prejudicando a visão dialética da obra. Muitas vezes o artista
consegue enxergar em outros grupos esse sistema alienante, mas raramente no
seu. Por sentir-se incapaz de exercer sua autonomia, ele se acomoda e inventa
desculpas para si, julgando-se exceção.
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ideia é tão boa para que o outro não reprove. Nada se promove. Processo com
entrave. Processo cansado de bater na trave. Caso grave. Situação urgente.
Guerra mais quente do que fria. Adeus diplomacia. Tentamos ser otimistas.
Propus ao grupo uma série de entrevistas. Quem é você? O que quer dizer?
Qual é o seu problema? Qual é o seu momento? O que você tem visto? E lido? E
sofrido? Está resolvido? Como se vê no grupo? Como se vê no mundo? Como se
vê na arte? Voou resposta por toda parte. Se não duvidar, tem resposta que foi
bater em Marte.” (Trecho de InCerto, Grupo Bagaceira de Teatro, 2010 ).
Em outros casos, não se sentindo contemplado ou compreendido inteiramente,
o ator compartimenta seu trabalho, dividindo-se entre dois ou mais grupos,
além de projetos independentes e outras atividades (não estou abordando aqui
o fator financeiro, que muitas vezes se soma a isso). Com horários e trabalhos
compartimentados, o ator insatisfeito reduz todas as suas expectativas pelo
grupo e o abandona, ou simplesmente vai levando, trabalhando de forma apática
até o dia de um conflito maior.
Daí vem a minha proposta para o autor de teatro de grupo. Caberá a ele, como
um coletor de material humano, a função de questionar, sacudir o pensamento
do coletivo, colocar as convicções artísticas de todos (inclusive as suas) à prova.
Provocar nos artistas uma busca que vai desde o sentido da montagem até o de
suas próprias vidas. Possibilitar, a cada membro, um contato profundo consigo
mesmo, para que isso resvale na construção da peça e, futuramente, no contato
com o público.
Por isso, a responsabilidade do autor se agiganta ao captar as inspirações
de todos e filtrá-las artisticamente. Compreendendo o grupo como o cerne
de sua inspiração, o autor perceberá a complexidade de seu trabalho. Uma
pessoa já representa um conjunto imenso de especificidades, histórias, gostos
e sentimentos. Imagine então um conjunto de pessoas em constante trânsito
afetivo (na acepção de Espinosa).
Muitas das complexidades desse tipo de processo estão retratadas no espetáculo
InCerto:
“Dois mil e oito. Turbulência e todo mundo afoito. Muita briga e nenhum coito.
Relações em crise, situações em reprise. Começo de dois mil e nove. Nenhuma
O autor precisa ter consciência do desafio que o espera e elaborar seu próprio
método na lida com o grupo. Pertencer ao coletivo ou participar como convidado
lhe exigem abordagens diferentes, mas igualmente difíceis. A qualidade do
material de trabalho dependerá da capacidade de desarmar a si e aos outros,
tirando de cada um as sinceridades mais secretas. Entrevistas particulares,
experimentos cênicos livres, conversas coletivas, tudo pode ser feito, de acordo
a situação.
Registro do processo
de criação do
espetáculo InCerto Grupo Bagaceira de
Teatro
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| Subtexto | Revista de Teatro do Galpão Cine Horto
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Abolido de preconceitos, o autor deverá se interessar por cada indivíduo, suas
histórias pessoais e suas experiências artísticas, pesquisando sobre referências
mencionadas e buscando o significado que o teatro adquire na vida daquela
pessoa. O mais importante não são as respostas prontas, mas os caminhos
tortuosos do pensamento perante a incerteza. Nesse período, o autor deve
alimentar-se também das propostas práticas que surgem, como improvisações
e exercícios curtos (sem compromisso com o formato final da montagem). Um
processo como esse exige tempo e reflexão, não podendo se submeter às leis da
urgência.
Novas atividades surgirão naturalmente, propostas por um ator, diretor, autor
ou seja quem for. No colaborativo, pouco importa a autoria da ideia. Apesar das
funções distintas, existe uma confusão benéfica de onde começa o trabalho de
um e termina o do outro. A verdadeira colaboração pede liberdade e intensa
atividade de todos. Desacomoda, muda rotas de vida, levanta questões antes
silenciadas e pode fazer brotar sinceridades individuais incômodas a outros
membros do grupo. Em casos extremos, chega a modificar relações pessoais e de
trabalho, podendo culminar com a saída de membros para a formação de outro
coletivo, ou mesmo com a dissolução do grupo. É um risco que se corre, devido às
reorganizações internas. Mas de que valeria ser grupo, sem essas reorganizações?
O processo colaborativo não inventa tais crises. Pelo contrário: ele é muitas vezes
fruto delas.
A preparação para a escrita de um texto teatral pode levantar questões em todos
os âmbitos, suscitar acontecimentos potencialmente políticos que certamente
influenciarão no texto a ser escrito, na obra encenada e na visão artística do
grupo. Com o coletivo em ebulição e um farto material fisgado, o autor poderá
começar a escrever, dividindo suas inquietações com o grupo e solicitando apoio.
Caso seja preciso, o autor poderá se afastar por alguns dias sem grandes prejuízos.
A enorme quantidade de informações poderá se tornar desesperadora. O autor
precisa ter em mente que a obra será uma síntese do que paira em comum a
muitos do grupo. Nessa hora, a técnica é fundamental para que não se enfie
tudo como numa passarela de temas e propostas desconexas. A obra deverá
harmonizar pontos divergentes, dialéticos. Mas tem de haver um senso estético
do autor para que, em vez de uma peça, não tenhamos a mera enumeração do
que foi levantado durante o processo.
No período de escrita, enquanto novas páginas são criadas, as anteriores já estão
sendo discutidas e experimentadas por um grupo que, a essa altura, tem plena
Espetáculo En Passant
- Companhia Vão de
Teatro
consciência do que quer. Depois dos incômodos, uma reacomodação benéfica
se instaura. É o consenso: palavra que só existe depois que as diferenças são
assumidas. O processo colaborativo, ao contrário do que se possa supor, não
elimina a “assinatura”, a identidade, o estilo do autor. As aspirações e inspirações
surgem de todo o grupo, mas quem converte em texto é o autor. A abordagem
aos artistas é do autor. Enfim, o autor é fundamental ao processo. É claro que
estou tratando, aqui, do trabalho do autor, mas a importância e os desafios
referentes às outras funções são tão grandes quanto.
O resultado é um teatro sincero, à flor da pele e, devido ao seu processo,
naturalmente corajoso; uma arte que, antes de chegar ao público, já intervém
na vida, desafiando e trocando questionamentos com esta. Teatro é troca. Atores
vazios não terão o que trocar com a plateia. Bem mais que representar, o ator
contemporâneo precisa se sentir representado pelo que faz.
Implantar esse tipo de projeto no coletivo é difícil, exige cautela e muita
persistência. Em grupos estabelecidos, há uma grande possibilidade de o autor
ser mal compreendido ao propor um processo dessa natureza. Os atores muitas
vezes não esperam outra coisa que não seja uma boa narrativa. Cada um volta
a expectativa para a personagem que lhe cairá nas mãos, esquecendo-se, às
vezes, do todo. Uma proposta como essa parece excessivamente abstrata para
quem estabeleceu uma rotina tão objetiva de trabalho, com cartas previamente
marcadas. O autor precisa ter uma organização muito clara das ideias, para
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comunicá-las bem. E ter paciência diante das recusas, explicando e reexplicando
o projeto a todos. Mas, quando a confiança do grupo é finalmente alcançada, a
recompensa é incalculável.
Existem muitos tipos de processo, com e sem colaboração. Eu, por exemplo,
escrevo alguns textos por iniciativa individual. Muitos grupos realizam
montagens de alta qualidade aderindo a processos nos quais o encenador tem
mais influência que os demais. Quanto ao ator, não há metodologia que lhe retire
por completo a participação criativa. Mesmo que não queira, esse sempre estará
criando algo através de sua presença cênica. O que falo aqui é da ampliação
dessa criatividade e da troca, para artistas e grupos que realmente queiram isto.
Experimento cênico
durante processo do
espetáculo InCerto Grupo Bagaceira de
Teatro
Graças aos grupos de teatro, tenho experimentado uma prática intensa e
muito diversificada de escrita. Percebi que, quando as pessoas estão abertas,
as propostas de um artista não tolhem as do outro, mas expandem. Este texto
certamente encontrará quem concorde, discorde ou acrescente. O importante é
que, muito além dos discursos inflamados, verifiquemos se a organização interna
do grupo corresponde aos nossos ideais artísticos e políticos.
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É muito cedo para analisar o resultado artístico do que faço. Trata-se de um
início de caminho. Mas, avaliando as primeiras distâncias percorridas, vislumbro
uma direção. Espetáculos como En Passant (Companhia Vão de Teatro) e In
Certo (Grupo Bagaceira) geraram transformações profundas nos grupos, no
discernimento dos artistas e no próprio sentido da obra perante o público. Esse
tipo de procedimento, antes de formar autores, encenadores, atores, figurinistas,
cenógrafos, iluminadores, forma artistas. Pessoas da arte, conscientes de suas
atuações no mundo.
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Fragilidade e força:
Reflexões sobre criação e formação dramatúrgica no Brasil hoje
Marcio Abreu1
“Nós devemos preservar os lugares da criação, os lugares do luxo do pensamento,
os lugares do superficial, os lugares da invenção daquilo que ainda não existe,
os lugares da interrogação do ontem, os lugares do questionamento (…) Uma
sociedade, uma cidade, uma civilização que renuncia à arte (...), à sua parte de
imprevisto, à sua margem de erro, às suas demoras, às suas hesitações (...) Ela
é orgulhosa e triste (...) Ela acredita no seu esplendor (...) sem história futura
e sem espírito. Ela é magnífica e acredita nisso já que é o que declara, mesmo
sendo a única a se ouvir. Ela está morta.”
Jean-Luc Lagarce (Do Luxo e da Impotência)
Primeiras reflexões
Não é de hoje a percepção de que na dramaturgia localiza-se um dos pontos
frágeis dos processos de criação teatral no Brasil. No entanto, a reiteração
histórica dessa ideia, a mobilização crítica e as reflexões e práticas que, de
tempos em tempos, surgem ao redor do tema, revelam, paradoxalmente, a força
desse campo criativo não apenas relacionado ao teatro, mas também à dança,
ao cinema, à televisão, às artes visuais e às muitas experiências de interseção
entre as artes.
É evidente uma certa noção, fundamentada ou intuitiva, de que há algo essencial
a ser investigado aí, seja nos meios acadêmicos ou nas experiências de criação.
É evidente o interesse pelo tema, sempre renovado. Vemos, frequentemente, a
dramaturgia no centro das atenções: desde o jovem diretor de teatro que procura
um texto para montar, até o autor de novela que detém todos os segredos
que serão revelados nos últimos capítulos; do ator que deseja interpretar tal
personagem clássico no teatro ao roteirista de cinema que quer abordar um tema
polêmico na sociedade; do artista que deseja se expressar através de uma história
1
Dramaturgo e diretor teatral, criador da Companhia Brasileira de Teatro,
sediada em Curitiba, com a qual desenvolve trabalhos de pesquisa, intercâmbio e
criação. Orienta periodicamente oficinas de dramaturgia e construção da cena em
diversas partes do país.
diversas partes do país.
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àquele que pensa a arquitetura dessa mesma história; dos coletivos teatrais em
busca de novas linguagens às produções de cunho puramente mercadológico.
Se pensarmos que no conceito amplo de dramaturgia estão contidas as principais
discussões estéticas e políticas sobre o que dizer, para quem dizer e como
dizer, não nos surpreenderemos com as frequentes inquietações sobre o tema, o
que acaba por ser um sintoma de uma sociedade que amadurece culturalmente.
Da mesma forma, não nos surpreenderemos com o fato de que um campo tão
aberto a experiências seja foco de constantes crises e revisões. Isso faz parte de
um ambiente vivo de tentativas e é fundamental para potencializar a presença
das ações artísticas na sociedade.
É notório que nesta primeira década do século XXI a dramaturgia no Brasil
passou a um patamar de discussões mais diverso e em consonância com o que
se problematiza no resto do mundo quando se trata de arte contemporânea. A
interação entre as artes, as teorias e práticas relacionadas à recepção, a afirmação
do teatro de grupo como espaço legítimo de criação, proposição estética e
reflexão política, a revisão dos modos coletivos de trabalho, o amadurecimento
dos processos colaborativos, as ações de intercâmbio entre artistas, as iniciativas
de publicação de dramaturgia, a ampliação do diálogo sobre cultura com as
instâncias públicas e o pensamento sobre a formação em arte no país são apenas
alguns sinais do aumento no nível do debate.
Leitura do mundo
Antes de tentar dar exemplos de espaços e iniciativas de formação, é importante
inscrever o tema num contexto social mais amplo e, assim, observá-lo em nossa
realidade cultural. Sabemos que, no Brasil, o teatro ainda ocupa um lugar de
privilégio, assim como a prática artística de um modo geral. Significa que é
para poucos, se pensarmos na massa populacional do país. Diferenças sociais e
territoriais contribuem para que se reforce essa ideia, muito embora possamos
identificar nos últimos anos o crescimento substancial de ações inclusivas
no campo da cultura, como programas de circulação de bens artísticos e de
formação de público realizados por companhias teatrais, por instituições como o
SESC e o SESI e também através de editais públicos nacionais ou regionais que
permitem minimamente que os artistas produzam e tentem ampliar o alcance de
sua obra. Ainda é muito pouco diante da enorme demanda e é bastante frequente
que grupos e artistas agreguem ao seu trabalho de criação outras práticas que
incluam oficinas, mostras de processo, debates e ensaios abertos, o que contribui
fortemente com um sentido maior de formação e de compromisso social.
Por outro lado, é comum ouvirmos a frase: “o Brasil é um país que não lê”.
Ela confirma uma certa realidade, mas também reforça certa inércia frente à
questão. Ouvimos a frase, repetimos, e pouco fazemos para transformar essa
realidade. São insuficientes, muito embora crescentes, os projetos de estímulo à
leitura. “Problemas mais urgentes e importantes” tomam o lugar das iniciativas
de educação continuada, que acabam cedendo às ações pontuais que “morrem
na praia”. Se é verdade que “o Brasil é um país que não lê”, isso certamente não
se deve à falta de interesse das pessoas, mas à falta de políticas e ações em longo
prazo que insistam em mudar essa condição. Posso citar um exemplo, bastante
positivo, realizado pela Fundação Cultural de Curitiba, órgão público municipal
responsável pelo setor, que nos últimos quatro anos, pelo menos, vem realizando
oficinas regulares de formação do leitor e do escritor e rodas de leitura em todas
as regiões da cidade, além de um projeto de aparelhamento de bibliotecas e de
criação de bibliotecas volantes em pontos de ônibus. Os depoimentos sobre o
impacto dessas ações é animador. Tive a chance de ver de perto e de colaborar
orientando nos últimos dois anos oficinas de estética da leitura e de processos
criativos em produção de texto a partir do teatro. Nesse período de mais ou
menos quatro anos já conseguimos perceber avanços significativos. Um número
expressivo de pessoas acorre às bibliotecas volantes e exerce a prática de
empréstimo e devolução de livros nos bairros, assim como vemos o início da
formação de leitores e escritores em potencial.
Centro de Pesquisa e
Memória do Teatro do
Galpão Cine Horto
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| Subtexto | Revista de Teatro do Galpão Cine Horto
Os déficits de leitura são um dos fatores responsáveis pela falha de formação em
diversas áreas do conhecimento. Se falarmos de literatura e, mais especificamente,
de dramaturgia, o problema fica mais evidente. Escrever sem bagagem de leitura
é muito improvável - só em casos raros de intuição e genialidade, e aqui não
estamos falando disso. É comum encontrarmos, no nosso meio, gente que não
lê. Isso é um fato. E é comum, portanto, encontrar esses mesmos não leitores
inseridos em processos coletivos de criação teatral e dramatúrgica, como numa
fórmula que possa garantir resultados positivos. Nenhuma fórmula ou caminho
garante nada, nem pode substituir a experiência individual ou coletiva de leitura
específica ou de leitura do mundo, que ao longo do tempo constrói um repertório
de referências a partir das quais uma pessoa ou um grupo pode responder de
maneira potente aos estímulos criativos.
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os seus Cadernos de Dramaturgia e criou no Galpão Cine Horto o Centro de
Pesquisa e Memória do Teatro - CPMT, que tem um selo editorial e um acervo
disponibilizado à comunidade artística e de estudantes. Dois exemplos de
coleções editoriais de dramaturgia que ganham espaço e circulação ao longo
do tempo são os da editora 7 Letras, com a Coleção Dramaturgias, dirigida pela
tradutora Angela Leite Lopes e que tem um foco voltado para lançamento de
textos contemporâneos inéditos no Brasil, assim como a Coleção Palco Sur
Scène, edição bilíngue português-francês, que alterna a publicação de autores
brasileiros e franceses numa parceria entre o Consulado Geral da França em São
Paulo, a Aliança Francesa e a Imprensa Oficial do Estado de São Paulo. Todas essas
iniciativas são frequentemente ligadas a projetos de encenação e divulgação das
obras, o que torna mais eficaz a experiência. Cito ainda os espaços virtuais de
publicação de pensamento e crítica , como o site teatrojornal – leituras de cena,
Quero dizer com isso que não compartilho a ideia de que os processos
colaborativos produzem dramaturgia frágil. Há dramaturgia frágil em processos
de gabinete também. Há literatura frágil. Há obras, de todo o tipo, frágeis num
país onde não se estimula continuamente a leitura e onde não se realizam, em
grande escala, ações de formação em longo prazo. Assim como há inúmeras
experiências fortes de escrita teatral tanto nos grupos quanto individualmente,
mesmo na nossa realidade precária. Quero dizer com isso que, para pensar em
formação dramatúrgica no Brasil, precisamos começar a formar leitores, de livros
e do mundo. Considero, portanto, iniciativas como essa a que me referi acima,
como opções realistas para formar gente que pense, que leia com sensibilidade
e que possa responder expressivamente através das diversas formas de escrita,
incluindo a dramaturgia.
Revista Eletrônica
Teatrojornal
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Publicação e circulação de ideias
Outro aspecto fundamental que penso estar na base de um processo mais
amplo e eficiente de formação é a publicação de dramaturgia, reflexão teórica
e crítica, e registros de experiências criativas. No Brasil publica-se pouco se nos
compararmos a países de maior tradição editorial como Argentina, França e
Alemanha. Nos últimos anos, entretanto, vemos pontuais, porém significativos
exemplos de edições, tanto em livros e revistas, como na internet. Geralmente
as iniciativas mais importantes partem de artistas ou grupos inseridos na
realidade da produção de cultura e pensamento do país. Cito aqui a Revista
Vintém, da Companhia do Latão, de São Paulo, assim como as compilações de
peças, entrevistas e experimentos realizados pelo grupo ao longo de seus mais
de 10 anos. Outra experiência relevante é a do Grupo Galpão, de Belo Horizonte,
que, além de lançar desde 2004, anualmente, esta Revista Subtexto, publicou
criado recentemente pelo jornalista e pesquisador teatral Valmir Santos, de São
Paulo, e a revista Questão de Crítica, criada pela pesquisadora Daniele Avila,
no Rio de Janeiro. Ambos têm se revelado como potentes meios de acesso aos
processos criativos e ao pensamento das companhias e artistas mais atuantes
no país e são cada vez mais reconhecidos como espaços legítimos de troca e
reflexão.
28
| Subtexto | Revista de Teatro do Galpão Cine Horto
29
da dramaturgia demanda abordagens diversas e é fundamental a multiplicidade
de experiências. Portanto, as oficinas realizadas pelos grupos, os seminários
realizados pelos autores, as mostras de processo e ensaios abertos e o intercâmbio
entre artistas e coletivos são meios indispensáveis e complementares num campo
enorme do conhecimento a ser reaquecido e reinventado permanentemente.
Revista Eletrônica
Questão de Crítica
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Algumas experiências
Nesse sentido vale a pena destacar alguns exemplos de ações realizadas por
coletivos teatrais ou destinadas a eles que, através de encontros e troca,
ampliam a experiência que acaba por adquirir contornos formativos. Posso citar
a Lapada, movimento nordestino que promove intercâmbio entre grupos e que,
certamente, é responsável por uma espécie de aprimoramento dos artistas que
dele participam. Outro fundamental espaço de reflexão contemporânea foi o
Próximo Ato, evento do Itaú Cultural que durante cerca de sete anos realizou
em São Paulo e, mais recentemente nas outras regiões do país, minicursos,
palestras, discussões com artistas e teóricos de ponta, apresentações de grupos
estrangeiros e brasileiros, e o encontro de coletivos teatrais de todo o Brasil, o
que acabou gerando o projeto Rumos de Teatro que, lançado em 2010, promoverá
parcerias de pesquisa e criação no contexto do teatro de grupo. Cito ainda o
Retomando a questão da formação continuada, percebo que há uma tendência a
valorizar os espaços dedicados a isso. Se com poucos e fragmentados estímulos
já vemos respostas significativas, é natural que nos processos em longo prazo
tenhamos resultados importantes. Fora das universidades, que em geral não se
dedicam à formação específica do dramaturgo, mas a uma base teórica ampla
relacionada ao teatro, vemos ações mais direcionadas como, por exemplo, os
núcleos de dramaturgia do SESI. Iniciado em 2007, o núcleo de São Paulo,
coordenado atualmente pela dramaturga Marici Salomão, forma novos autores
numa relação de pesquisa e criação ligada ao intercâmbio entre as experiências
brasileiras e britânicas, em parceria com o British Council. Inspirado pelo
exemplo paulista, o SESI do Paraná criou um núcleo próprio, que é orientado pelo
diretor e dramaturgo carioca Roberto Alvim. Nas duas iniciativas realizam-se
atividades anuais e, além das oficinas regulares, são organizadas mesas, debates
e workshops específicos com profissionais brasileiros e estrangeiros, assim como
a montagem de peças escritas por autores integrantes do projeto. O núcleo
do Paraná, que foi inaugurado em 2009, já lançou uma publicação de textos
selecionados entre os novos autores. Em pouco tempo de atividade, notamos um
impacto real no cenário formativo do país a partir dessas duas experiências, que
já nasceram compromissadas com a continuidade.
De qualquer maneira, são valiosas as ações de formação realizadas no contexto
de trabalho dos grupos e artistas pelo país afora. O universo dinâmico e permeável
Acto, um encontro de teatro realizado por três companhias por iniciativa do
grupo Espanca, de Belo Horizonte, e contando com a participação do Grupo
Projeto Acto 2 –
outubro de 2010
30
| Subtexto | Revista de Teatro do Galpão Cine Horto
XIX, de São Paulo, e da Companhia Brasileira de Teatro, de Curitiba. O primeiro
encontro, o Acto 1, aconteceu em 2007. A partir da apresentação de peças de
seu repertório, de oficinas abertas e de exercícios em conjunto, os três coletivos
potencializam o contato com o público e com os estudantes, que acompanham
de perto todas as atividades. Em 2010, o Acto 2 foi realizado junto com o FETO,
um festival estudantil, o que possibilitou o acesso de estudantes de várias partes
do país às atividades de criação de 3 companhias profissionais durante cerca de
10 dias em Belo Horizonte.
Outras reflexões
O que é forte e o que é frágil no contexto dinâmico da criação e da formação
dramatúrgica no Brasil? Na dialética entre essas duas condições, talvez se
manifeste o nosso lugar atual. Aquilo que aparentemente é frágil pode revelar
forças escondidas e improváveis. A criação não necessita lidar somente com
conceitos como eficiência, resultado, eficácia, sucesso e acerto. Transitamos
no território da experiência, das tentativas, das múltiplas referências, da
antropofagia e da criação de uma tradição própria. Somos um país adolescente
e podemos ter certa irresponsabilidade, podemos nos livrar do medo de errar.
Devemos errar muito ainda e sempre. Nossa cultura é herdeira das tradições
do velho mundo, tanto quanto das manifestações ligadas à terra. Tudo pode
ser nosso. Assim como o negro, o branco e o amarelo são brasileiros, a cultura
erudita, as expressões regionais e as pesquisas de ponta também integram nosso
campo de referências. E isso está ligado às diversas possibilidades de formação,
desde as mais convencionais às informais e ainda por serem experienciadas.
O Brasil, assim como a dramaturgia, está apoiado sobre dois extremos: o da
consciência histórica e o da reinvenção. A dramaturgia existe na amplitude
desses dois pontos. E é nessa amplitude que surgem os êxitos e as distorções.
A dramaturgia é o lugar da articulação estética e política do discurso, seja no
texto ou na cena, na imagem ou no espaço invisível que surge entre a cena e a
plateia no momento exato do fenômeno teatral. É lugar de criação de linguagem.
E linguagem tem a ver com liberdade, poder e identidade, tem a ver com nação.
Há quem diga que está mesmo ligada ao conceito de nação. Um dos primeiros
sinais de que existe uma nação é quando identificamos uma língua autônoma,
que se articula em linguagem. Um dos primeiros sinais, portanto, de que existe
uma nação autônoma, há quem diga, é quando identificamos a existência da
dramaturgia.
Na medida em que tento organizar informações e ideias para escrever este
artigo, percebo que, ao refletir de dentro, no “olho do furacão”, o que me cabe é
31
também me colocar questões e compartilhá-las com os leitores da Subtexto. Não
tenho distanciamento, portanto me ponho a pensar junto. Estamos em pleno
processo de transformação. Eu mesmo, vindo de formação autodidata em escrita
pra teatro e egresso da verdadeira escola que pode ser a experiência do teatro
de grupo, percebo que não tem valor determinante esse ou aquele caminho de
formação. O que, sim, pode ser determinante, é existirem os mais diversos meios
de formação difundidos e acessíveis à população, de forma continuada. Em longo
prazo é isso que faz a diferença. Em nenhum país do mundo surgem dramaturgos
do nada. Uma dramaturgia forte requer insistência e investimento duradouro,
com estratégia e consciência, mas também com risco e entusiasmo. A esta
altura, já não podemos nos considerar um país ingênuo. A arte é a expressão
mais legítima do nosso porvir. E o acesso às ferramentas da linguagem é um
direito do qual não podemos abrir mão.
32
| Subtexto | Revista de Teatro do Galpão Cine Horto
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Dramaturgia em colaboração:
por um aprimoramento
Adélia Nicolete1
Há alguns anos vemos aumentar significativamente o número de espetáculos
realizados em processo colaborativo. Dentre as críticas que recebem é comum
apontarem falhas na configuração dramatúrgica, como se o fato de muitas e
diferentes vozes atuarem na composição da obra tornasse a dramaturgia quase
sempre “poluída”, desarticulada, mal urdida. A que se deve isso? Após um breve
panorama, apontaremos aqui algumas possíveis causas desses problemas e,
quem sabe, uma ou outra possível solução.
Desde os anos 1990 o número de coletivos de criação tem crescido tanto no Brasil
quanto no exterior. Espetáculos teatrais, músicas, artes plásticas, audiovisuais têm
sido criados e exibidos a partir da ação conjunta dos integrantes e, grande parte
das vezes, no chamado processo colaborativo. O método é semelhante, embora
os objetivos possam ser diversos. O Ateliê Fidalga, por exemplo, idealizado pelos
artistas plásticos Sandra Cinto e Albano Afonso, em São Paulo, reúne artistas
que trabalham com diferentes técnicas e um procedimento básico: levam suas
ideias ou seus esboços às reuniões semanais para serem analisados pelo coletivo,
e receber críticas e sugestões antes de serem executados ou finalizados. É o
coletivo que responde também pela organização das exposições e divulgação dos
trabalhos. Esse tipo de conduta tem ganhado cada vez mais seguidores a partir
dos anos 1990 e garante uma série de vantagens que os métodos tradicionais de
produção já não garantem mais: autonomia de criação, equivalência de funções,
mútua interferência nas instâncias criativas, maior independência em relação
a produtor/curador/gravadora e ao mercado, gestão própria de recursos, entre
tantos outros.
No teatro o processo colaborativo ganhou contornos mais definidos e uma
pesquisa formal e acadêmica a partir dos trabalhos do Teatro da Vertigem,
de São Paulo, nos anos 1990. Trata-se, a nosso ver, de um processo que tem
como antecedentes imediatos a prática da criação coletiva e a experiência do
dramaturgismo (NICOLETE, 2005). Dessa, herdou a pesquisa e a presença de
alguém responsável pela dramaturgia na sala de ensaio. O dramaturgista atua
muitas vezes como “braço-escritor” do diretor, aliando a criação dos intérpretes,
1
Dramaturga, professora, mestre em Artes pela ECA-USP e doutoranda em
pedagogia do teatro pela mesma Universidade.
34
| Subtexto | Revista de Teatro do Galpão Cine Horto
35
do período, movidos pelos mesmos impulsos, praticamente desconsideravam os
possíveis e frequentes “defeitos”, porque a comunicação se estabelecia menos
por canais estéticos que ideológicos ou empáticos. Dessa forma, um aspecto meio
“sujinho” ou “descosido” que poderia ser visto como um problema dramatúrgico
ganha status de “charme”, de “it”, de resíduo do processo – este o protagonista.
Espetáculo O Livro do
Jó, Teatro da Vertigem
Mudado o contexto, acessadas novas formas e novos procedimentos artísticos,
faz-se necessário investigar o por que da permanência de certas falhas.
Em primeiro lugar é preciso levar em consideração que, assim como havia
diferenças de abordagem da criação coletiva pelos grupos, o processo colaborativo
pode variar também de acordo com uma série de fatores. Podemos elencar o nível
de experiência dos participantes, o tempo disponível, as condições econômicas
e físicas de trabalho, entre outros (NICOLETE, 2005). Sendo assim, a presença
de um dramaturgo experiente, por exemplo, pode fazer toda a diferença na
condução e no acabamento dramatúrgico de um espetáculo, assim como um
prazo mais flexível para pesquisa intelectual e cênica. Ou seja, torna-se difícil
fazer um diagnóstico geral a respeito do assunto.
os elementos pesquisados, a visão do diretor e a sua própria na escrita do texto
a ser enunciado em cena. Da criação coletiva o processo colaborativo parece
ter herdado, em muitos casos, a concretização de um desejo grupal, que leva à
pesquisa conjunta e à execução de múltiplas funções com interferências mútuas,
de modo a que as linhas autorais esmaeçam em nome da assinatura coletiva.
À parte as vantagens todas do coletivo criador, talvez decorra dessa segunda
ascendência – a da criação coletiva - o fato de muitos dos espetáculos frutos
de processo colaborativo receberem críticas desabonadoras em relação à
dramaturgia. Melhor dizendo: ao assumir a influência direta da criação
coletiva, talvez devêssemos aprimorar seus “métodos” - e aqui vão comentários
estritamente referentes à elaboração do texto a ser enunciado.
Ao levarmos em conta o contexto em que a criação coletiva se deu mais
intensamente no Brasil – final dos anos 1960 até princípio dos 1980 – poderemos
notar que o procedimento (processo) trazia um peso de transgressão, inovação
e vitalidade, tão grande e necessário que, compreensivelmente, se sobrepunha,
muitas vezes, à questão estética. Dado o contexto, o teatro da militância, o teatro
feito com operários e os grupos amadores em geral estavam menos preocupados
com a forma final de seu trabalho que com o processo de pesquisa, atuação
comunitária, democratização do fazer artístico, expressão de pensamento e
tantas outras necessidades e motivações. Consequentemente, público e crítica
Outro aspecto a se considerar é a formação do dramaturgo. Se entre os anos
1960-1980 a formação dramatúrgica era, em grande parte, empírica ou
Projeto Beyus Ateliê de Escrita
Dramática da FAINC
(Santo André) –
18/11/2010 |
36
| Subtexto | Revista de Teatro do Galpão Cine Horto
autodidata devido à ausência de cursos formais, temos visto, desde o final da
década de 1980, um aumento significativo de cursos, oficinas e, por isso, de
dramaturgos “formados ”. São eles responsáveis pela renovação da dramaturgia
brasileira nos últimos tempos – quando ainda se afirmava que não havia
mais autores nacionais. Porém, convém uma pergunta: que tipo de formação
é necessário para um dramaturgo que se disponha a atuar em processo
colaborativo? Seria a mesma do autor de gabinete? Há um perfil adequado para
cada tipo de processo? Pode haver migração de um dramaturgo de gabinete
para o processo colaborativo? Esse procedimento é adequado a um texto de
contornos dramáticos ou é preciso que se busquem novos enfoques?
A experiência diz que um dramaturgo de gabinete pode atuar satisfatoriamente
em processo colaborativo. O trabalho de Luís Alberto de Abreu junto ao Teatro
da Vertigem e ao Grupo Galpão confirma a hipótese. É certo que, desde seus
tempos amadores, Abreu dialoga com a cena. Mas é também certo que alguma
“marca” de sua dramaturgia está impressa tanto em um quanto em outro
espetáculo daqueles coletivos (NICOLETE, 2005). Ocorre que a presença de
um dramaturgo “profissional” na equipe pode causar a impressão de maior
segurança e estabilidade – sensações caras quando se trata de um processo tão
instável e imprevisível quanto o colaborativo. Esse suposto “profissionalismo”
pode, por sua vez, dar ao dramaturgo maior “autoridade” junto ao grupo na hora
de argumentar sobre determinadas soluções, e a configuração pode vir a ser mais
uniforme do ponto de vista dramatúrgico.
E o dramaturgo iniciante? Que dificuldades enfrenta nesse tipo de processo?
Em primeiro lugar sua formação é, na maioria das vezes, dramática. Os cânones
consagrados como principal referência tendem a conduzir a soluções vinculadas
à presença de um enredo reproduzível, personagens e conflitos definidos, clímax,
desenlace – soluções limitadas quando se trata de uma dinâmica criativa
capaz de levar a outro tipo de resolução. É como se tentássemos adequar um
material com determinada maleabilidade a um molde que não lhe dá a melhor
conformação ou não explora suas características mais pulsantes.
Esse dramaturgo iniciante encontra também dificuldade no que se refere ao
próprio trabalho em grupo. Condicionado, em geral, ao trabalho solitário, em
que é o senhor da obra em sua totalidade – da ideia à formatação final –, ao se
ver inserido em um ambiente de “promiscuidade criativa” (ARAÚJO, 2003) tende
a acionar mecanismos de defesa que, pelo menos a princípio, podem colocá-lo à
parte do processo. Por isso cremos que uma formação adequada ao dramaturgo
de hoje deveria levar em conta o desvelamento do processo criativo e a reflexão
37
grupal sobre ele, prática comum nos ateliês de escrita em língua francesa. Ao
ter sua ideia e seu texto analisados e discutidos em grupo por outros autores
ou mesmo iniciantes, além de aprimorar o trabalho, proporciona ao dramaturgo
uma experiência de troca, de mútua interferência, de sair do próprio universo
e mergulhar no universo criativo alheio, entre outras (NICOLETE, 2010). Isso
pode prepará-lo mais adequadamente para um processo como o colaborativo,
que exige desprendimento, análise, visão de conjunto, crítica em perspectiva,
seleção de material e de sugestões, por exemplo. Que exige um fazer e refazer
constantes, um abrir mão de grandes achados poéticos em nome da concretude
da cena (ABREU, 2003).
Esse aprendizado nos parece necessário porque uma das críticas mais recorrentes
ao resultado dramatúrgico do processo colaborativo é o excesso - como se todos
os criadores tivessem de ser contemplados no texto final. Como se ao dramaturgo
coubesse tão somente “costurar” as criações alheias – por vezes discrepantes
– tendo o cuidado ético (e talvez ideológico) de processar equitativamente as
contribuições de cada criador, mesmo que não tenham tanta consistência ou
significado no conjunto. Por isso, um aprendizado coletivo já em sua formação
poderia dar ao dramaturgo a experiência da escuta, do aproveitamento criterioso
de material sugerido por outrem e, principalmente, a noção de sua autonomia
em relação às contribuições do grupo.
Aliado a isso, um outro fator sinaliza a diferença entre processos: a convivência
do grupo. Um coletivo que atua há um certo tempo junto difere, no processo, de
outro que engatinha na criação compartilhada? Parece-nos que sim. A afinação
entre os parceiros que o convívio tende a proporcionar leva, à parte os conflitos
também gerados pela intimidade, a certa sintonia criativa, como se uns “lessem
o pensamento” dos outros, de modo que as respostas aos estímulos possam vir
mais rápidas, os acordos ou os enfrentamentos possam se dar mais objtivamente.
Registro de criação
da dramaturgia do
espetáculo InCerto –
Grupo Bagaceira de
Teatro. Foto: Rafael
Escócio
38
| Subtexto | Revista de Teatro do Galpão Cine Horto
Um dramaturgo residente, como ocorre em algumas companhias, talvez alcance
um aperfeiçoamento cada vez maior a cada trabalho.
Espetáculo O Livro do
Jó, Teatro da Vertigem
Por outro lado, a questão das críticas à dramaturgia colaborativa nos leva,
necessariamente, a uma visão mais abrangente da situação. É preciso lembrar que
a deposição do texto como elemento central de uma montagem e sua disposição
no mesmo patamar das outras instâncias emissoras de sentido trazem à reflexão
a noção de uma dramaturgia da luz, da interpretação, da cenografia, da direção
e assim por diante. E se há um texto a ser lido pelo espectador em cada uma
dessas áreas não seria recomendável, então, um aprendizado, ainda que mínimo,
de dramaturgia para todos esses criadores/autores? Não seria mais produtivo,
não traria melhor resultado dramatúrgico final se atores, diretor, cenógrafo,
figurinista tivessem noções de dramaturgia? Não a dramaturgia acadêmica,
reverente à tradição, mas a experiência dramatúrgica da imaginação, da
concepção, da organização, da composição, da harmonização de elementos com
vistas a uma escrita que, paradoxalmente, pode nem vir a ser escrita/enunciada!
A experiência com diversos tipos de materiais textuais desvinculados de padrões
dramáticos, como narrativas, depoimentos, documentos, tiradas, formas breves
em geral (NICOLETE, 2010).
39
Abreu, realizado com o Teatro da Vertigem (FERNANDES, 2010). Sendo assim,
ao dramaturgo não seria benéfico se, desde sua formação, tivesse contato por
mínimo que fosse com as demais áreas?
Enfim, como foi dito no início, tentamos apontar alguns motivos que justifiquem
as falhas encontradas na dramaturgia em processo colaborativo. Causas de
origem estrutural, grupal ou da própria formação dos artistas. E uma das soluções
nos parece que pode ser encontrada, principalmente, em uma pedagogia que vise
à preparação e ao aperfeiçoamento do trabalho criativo coletivo em todas as
áreas de produção de um espetáculo.
Bibliografia
ABREU, Luís Alberto de. Processo colaborativo: relato e reflexões sobre uma
experiência de criação. Cadernos da ELT, Santo André, v.1, n.0, p. 33-41, mar.
2003.
SILVA, Antonio Carlos de Araújo. A gênese da vertigem: o processo de criação
de O Paraíso Perdido. 2003. 192p. Dissertação (Mestrado em Artes) - Escola de
Comunicações e Artes, Universidade de São Paulo.
FERNANDES, Sílvia. Teatralidades contemporâneas. São Paulo: Perspectiva, 2010.
Essa reflexão traz, necessariamente, a reboque uma outra.
O ator vem sendo formado para um processo que exige dele
bem mais que a interpretação de um papel previamente
construído? E o diretor? Sua atuação leva em conta os demais
criadores ou insiste em um papel de compositor e regente de
uma partitura por ele previamente definida? O cenógrafo, o
iluminador, o figurinista, por sua vez, vêm sendo preparados
para opinar criativamente sobre algo ainda em construção
ou permanecem aguardando uma melhor definição da cena
para atuar criativamente? E os demais artífices? São questões
importantes e que merecem uma reflexão mais alentada
porque, em geral, se critica a dramaturgia, mas se esquece de
que ela é também a configuração verbal de criações várias.
E se essas criações não trouxerem em seu bojo um material
limpo e bem cosido, mais dificilmente resultarão em excelência
estética.
É notável a incorporação de alguns paradigmas cênicos
nos textos teatrais elaborados no coletivo, o que pode ser
verificado, por exemplo, em O Livro de Jó, de Luís Alberto de
NICOLETE, Adélia. Da cena ao texto: dramaturgia em processo colaborativo. 2005.
Dissertação (Mestrado em Artes) - Escola de Comunicações e Artes, Universidade
de São Paulo.
______. Criação coletiva e processo colaborativo: algumas semelhanças e
diferenças no trabalho dramatúrgico. Sala preta. São Paulo: v. 2, n. 1, p. 318325, 2002.
______. Fazer para aprender: a prática dos ateliês de escrita dramática em
língua francesa. ANAIS do VI Congresso da ABRACE, 2010.
40
| Subtexto | Revista de Teatro do Galpão Cine Horto
41
Dramaturgia colaborativa:
notas sobre o aprendizado da desmedida no teatro brasileiro
Kil Abreu1
As notas que seguem tentam responder às questões colocadas em pauta nesta
edição da Subtexto, no capítulo de qualidade das dramaturgias colaborativas,
amadurecidas nos quase sempre duros e nem sempre pacíficos processos
arquitetados pelos grupos de teatro. O pressuposto, creio, é utilíssimo. A esta
altura, e desde meados dos anos 1980, em que a criação grupal voltou a tomar
corpo e consistência entre nós, já é possível fazer alguma avaliação sobre a
fatura estética dessas “cenas de coro” que marcaram definitivamente o teatro
brasileiro a partir dos anos 1990 e se estendem até agora.
Entretanto, não será sem algum embaraço que, às perguntas recorrentes sobre
o valor estético das dramaturgias colaborativas criadas neste tempo, que
indicam quase sempre a preocupação com alguma insuficiência formal que
parece resultar delas, tenhamos que responder com novas perguntas, ou com
observações “pelo avesso”. Qual seja, responder com a constatação de que não
é possível medir qualidade artística sem que um modelo ou, ao menos, sem que
parâmetros modelares estejam em jogo. E, no caso, não é que eles não existam.
É que, dadas as circunstâncias, nem sempre serão úteis.
Perspectiva histórica
A questão é que, salvo engano, se trata de um período importante justo porque
há algo de novo e não totalmente modelar no campo da experiência – social,
política, artística. No campo social e político os últimos 20 anos foram de
aprendizado, a duras penas, de uma negociação difícil entre modelos de gestão
da sociedade que representaram as saídas possíveis ao período ditatorial e
que transitaram do neoliberalismo ao liberalismo de Estado, um pouco mais
responsável socialmente que o anterior, mas que, por outro lado, nem de longe
alcançou o sonho juvenil da esquerda brasileira de outras épocas, mesmo que
institucionalmente a sua principal representação partidária tenha chegado ao
1
Jornalista, crítico e pesquisador de teatro. É membro da Associação Paulista
de Críticos de Arte (APCA). Atualmente investiga as dramaturgias contemporâneas no
Brasil, como pesquisado rdo CNPq.
42
| Subtexto | Revista de Teatro do Galpão Cine Horto
poder. Ainda estão por se levantar os efeitos de adesão, alienação em relação ao
quadro, ou mesmo de desnorteamento que essas conjunturas novas provocaram
no imaginário dos artistas de teatro, porque elas estão inscritas na cena, explícita
ou subliminarmente.
Por isso, em uma visada geral e certamente insuficiente não será exagero dizer
que a dramaturgia atual, especialmente essa nascida em criações colaborativas,
se mantém à maior distância das estruturas narrativas tradicionais - sejam as
do teatro dramático ou mesmo da cena épica - que aquelas ocorridas até o final
dos anos 1970. Mais que antes, parece claro que, agora, por força de movimentos
explícitos na direção de uma permissividade que o próprio teatro como um todo
tem vivido; mas também por força de uma consciência local cada vez mais
difundida sobre os impasses do sujeito e da sociedade em um país “a meio termo
de”, como vem se definindo o Brasil atual; por força dessas circunstâncias as
narrativas teatrais estão se formalizando em bases próprias, que se inventam em
materiais e formatos originais ou fazem a revisão de tradições importantes do
teatro, mas a partir de perspectivas cada vez mais particulares de intervenção,
por vezes desconcertantes. Daí a necessidade de uma avaliação de qualidade
que se dê em termos próprios.
Nesse sentido, já se disse, com o desejo de igualar experiências que são parecidas,
mas não gêmeas, que os processos colaborativos atuais são extensão pacífica das
criações coletivas setentistas, apenas retomados em época diferente. Não o são.
Se, em ambos os períodos, é clara a ocorrência de alguma iconoclastia diante da
forma que o trabalho coletivo parece necessariamente gerar, é também evidente
que os motivadores históricos definem um outro tanto da experiência, no campo
dos conteúdos e também das suas formalizações.
Se antes a coletivização respondia à necessidade de dispersão da autoridade
e insistia em uma deliberada liberalidade formal, depois daquelas mediações
históricas pós-ditadura passamos a viver uma época de “individuamento” radical
da vida e ainda maior racionalização na divisão do trabalho (que coincidem com
a formação cada vez mais sistemática de artistas nos cursos universitários). É
quando surgem processos que, embora coletivizados, obedecem a uma disciplina
interna nova em alguns aspectos, em que o tema da autoridade já não é o
problema, e sim a ordenação e o trânsito de saberes entre as diversas fontes
autorais – todas “competentes”, autorizadas e com seus repertórios particulares:
o ator, o diretor, o dramaturgo, o cenógrafo, o sonoplasta... - que colaboram em
um regime marcado pela fluidez das funções, para o trabalho final. A desmedida,
então, é de outra ordem, porque entra em jogo, nessa dinâmica, uma política
43
Espetáculo Corte Seco Cia. Vértice
nova que envolve tanto as relações entre os artistas em processo quanto a
própria noção de obra, na busca da sua justa medida e de acabamento, agora
tomados como tarefa incontornável.
Políticas do erro
Apesar deste esquema – o de uma colaboração sistematizada -, provavelmente o
mais interessante nessas dramaturgias, quando consequentes, tem sido o oposto
desse plano de disciplinamento, mesmo, por vezes, a contragosto dos autores.
É que em tais processos a variedade dos recursos cênicos e de pensamento
disponibilizados por cada um dos colaboradores tende a resultar em linguagens
heterogêneas, de maneira que a descontinuidade dos materiais seja algo não
apenas esperado, como necessário, o que justificaria a ideia de que, nesses casos,
o melhor resultado, ou ao menos o mais honesto, é aquele que assume a impureza
formal para que a problematização dos conteúdos seja possível. A compensação
é que, para ficar com a boa expressão de Jean-Pierre Sarrazac, se trata de um
momento em que, em geral, temos mais chances de nos reconhecermos nesses
“textos desviados” das formas modelares já reconhecidas da narrativa teatral
porque essas estruturas “erradas”, quando não ficam reféns do ensimesmamento
(o que também não é incomum), nascem como respostas legítimas a questões
históricas concretas, que os grupos têm se colocado deliberadamente, ou por
intuição, e têm procurado executar nas atuais dinâmicas coletivas de criação.
44
| Subtexto | Revista de Teatro do Galpão Cine Horto
Essas desmedidas talvez nos ajudem a entender a importância de uma série de
trabalhos estranhos e inquietos na cena atual, que ganham relevância talvez
menos pelo “acabamento” e mais pelo que levantam de questões produtivas
sobre o real e sobre as suas possibilidades de representação – às vezes mais, às
vezes menos criticamente.
Evidentemente há diferenças marcantes entre os diversos processos de
colaboração que, dependendo dos propósitos de cada grupo, encontram os seus
pontos de apoio próprios, desde os que dispensam o dramaturgo “de profissão”,
fazendo o grupo assumir a escritura, passando pelos coletivos que mantêm a
geração de materiais totalmente centrada nos atores, sob a condução do diretor,
até aqueles em que o dramaturgo, incluído no processo, opera como provocador
de narrativas que nascem antes no experimento da cena que no papel. E, ainda,
uma infinidade de variações a partir dessas coordenadas. E cada uma delas
oferece possibilidades específicas de criação da cena.
Espetáculo Êxodos –
Grupo Folias D’arte
Na maior parte dos espetáculos saídos dessas experiências, entretanto, é evidente
a sensação de transbordamento dos materiais reunidos. Isso muitas vezes pode
ser visto na descontinuidade de linguagem (como no curioso O bizarro sonho
de Steven, do grupo potiguar Facetas, mutretas e outras estórias, em que a
plateia circula na estrutura cenográfica em que se vive uma fábula onírica e
que vai do lírico ao grotesco; ou em Ópera dos vivos, da Cia. do Latão, em que
a mercantilização da vida ganha diferentes eixos de representação, assimilando
literalmente o cinema, o show musical e a TV, em uma ambiciosa reflexão sobre
45
os últimos 50 anos da história brasileira); nos saltos temporais que desafiam
as lições de unidade fabular e distendem propositalmente a história contada,
como que correndo em busca de seu sentido final – político, existencial – que
sempre escapa (como no violento e poético Marcha para Zenturo, colaboração
entre o grupo mineiro Espanca e o paulista XIX); no trânsito brusco entre os
pontos de vista narrativos (como em Êxodos, do Folias D’arte, em que há um
movimento pendular e radical entre o depoimento íntimo e o painel épico); ou
em dramaturgias ainda mais abertas, a ponto de se avizinharem da performance
e criarem um jogo deliberado entre acaso e representação, entre o plano ficcional
e o momento material, real, da cena (como na trilogia da carioca Cia. Vértice,
especialmente a última montagem, Corte seco, em que os atores são chamados
a construir uma parte do espetáculo no momento em que ele acontece).
Pedagogia da colaboração
Todos esses trabalhos, assim como tem ocorrido em uma parte considerável
do teatro brasileiro atual, ou ao menos no que nele interessa, todos esses são
leituras em diálogo com a realidade – a realidade ela mesma e a dos processos
de montagem cujas autorias são, em diferentes medidas, bastante dispersas,
ainda que todos tenham seus respectivos dramaturgos a serviço-; e só podem
ser avaliados segundo o critério das suas desmedidas, por vezes, como se
disse, inesperadas. São formas que respondem a proposições de pensamento
- o desnorteamento e a alienação do sujeito diante de uma sociedade hiperinformada (O bizarro sonho de Steven), o passado próximo como estratégia para
reconhecermos criticamente o presente (Ópera dos vivos), a necessidade de reunir os sujeitos dispersos para recolocar a utopia em perspectiva (Êxodos), um
olhar melancólico sobre o futuro para entender a violência do presente (Marcha
para Zenturo), o estudo exaustivo das relações para denunciar, por contraste, a
quase afasia da época (Corte seco). São espetáculos que, por princípio político e
estético, pediriam de fato um processo de criação compartilhada e a socialização
da experiência, sem o que os resultados jamais poderiam ser os atuais. Dependem
do ajuntamento – nem sempre cordato - de pontos de vista sobre o mundo e
sobre a cena; e sobrevivem, em obra, deste ajuntamento. As montagens são
dramaturgias necessárias, às vezes mais, às vezes menos em diálogo com outras
narrativas já dadas, mas sempre guardando algum elemento de discurso cênico
próprio, no qual é possível encontrar o elemento da sociabilidade inquieta do
processo que as gerou.
Isso, evidentemente, não coloca uma marca de valor positivo sobre toda e
qualquer experiência de dramaturgia colaborativa. Não as livra da necessidade
46
Espetáculo Marcha
para Zenturo - Grupo
Espanca e Grupo XIX
de Teatro
| Subtexto | Revista de Teatro do Galpão Cine Horto
de consequência. Mas a avaliação terá que ser feita em acordo com esse campo
processual, sob o risco de se equivocar desde o princípio. E o acompanhamento
crítico é importante porque há em curso, sem dúvida, um processo de
ideologização da novidade, que tende a identificar como valor algo que virou
uma espécie de marca do teatro, hoje pronta para circular. Seria tarefa da crítica,
talvez, tentar discernir nesse contexto não a fatura estética correta, do ponto
de vista de um resultado acertado, mas aquelas que estão mais próximas desse
acordo problemático com estas realidades – da obra e seu processo e a histórica.
Na direção de uma pedagogia em bases colaborativas parece que o fundamental
seria evitar as fórmulas, já que o processo compartilhado deve se inventar à
medida dos seus agentes e dos propósitos de intervenção artística que estes
decidirem colocar em jogo. Por um lado, deveria olhar a criação como invenção
livre, articulada em um modo determinado de trabalho – o coletivo – e segundo
a ideia de que não há uma natureza “imexível” nos meios da expressão teatral.
As técnicas, os treinamentos, as estratégias próprias que os artistas usam para
expressar o que precisa ser expresso, muitas vezes também têm que ser inventadas
e postas em movimento. E o ambiente da criação em coletivo tem sido o melhor
laboratório para isso, para a gestão de meios necessários para tarefas específicas.
Os espetáculos gerados aqui merecem uma dedicada atenção, pois, mais que os
outros, tendem a se firmar nos terrenos da estranheza. Muitas vezes estamos
nela, mas não nos reconhecemos. É preciso, então, atenção para perceber que a
obra aparentemente “errada” está tateando o caminho certo – aquele que intui
a vida e a sociedade com uma sensibilidade ainda não escrita.
Galpão em Foco
|
Galpão
em Foco
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48
| Subtexto | Revista de Teatro do Galpão Cine Horto
Galpão em Foco
|
Sobre escrever um livro e a busca de sentido do teatro
Eduardo Moreira1
A partir de 2007, incentivado por uma necessidade de alimentar um blog do
Galpão, comecei a escrever relatos sobre aqueles que me pareciam ser os
principais encontros do grupo ao longo dos seus primeiros 25 anos de existência.
Os textos foram se sucedendo e, pelo menos na minha cabeça, pareciam formar
uma história sob o meu ponto de vista pessoal, o que se justificava, em grande
parte, por eu ter sido o único componente do núcleo do grupo que viveu
integralmente todos esses anos e atividades do Galpão. É claro que, no decorrer
do tempo em que os textos eram produzidos ficava muitas vezes difícil distinguir
o que seria uma opinião pessoal de um discurso oficial do grupo.
Com o crescimento da sucessão de textos e de relatos sobre os encontros do
Galpão, comecei a me perguntar se aquilo não poderia constituir um projeto
que estivesse além de uma mera publicação ocasional de um blog. E, ao mesmo
tempo que me perguntava e começava a formular uma espécie de formatação
para o projeto, comecei a me questionar sobre o sentido de tudo aquilo. Seria
uma espécie de necessidade de transmissão de uma experiência de tantos
anos e que, pelo menos em sua longevidade, provava ter sido bem-sucedida?
Ou, mais intimamente, seria uma maneira de me libertar daquele passado e
compartilhar as dúvidas e os questionamentos daquelas experiências, tornandoas públicas, e permitindo assim que elas pudessem ser desfrutadas ou não
pelas pessoas, da maneira como melhor lhes conviesse ou como desejassem.
O fato é que diariamente escrever esses encontros me fazia pensar no sentido
que o teatro ainda pode ter no mundo de hoje. Acho que essa é, na verdade, a
pergunta essencial que todo artista, e especialmente um grupo de artistas, se faz
diariamente. E que, com o Galpão, não podia ser diferente.
1
Ator e diretor de teatro, membro do Grupo Galpão. Autor do livro Grupo
Galpão – uma história de Encontros (Duo Editorial e Edições CPMT)
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| Subtexto | Revista de Teatro do Galpão Cine Horto
Galpão em Foco
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Encontro do Grupo
Galpão com o
diretor polonês Jerzy
Grotowski – turnê
Itália
Grupo Galpão com o
diretor Paulo José |
Num mundo cada vez mais atolado de informações, de opções de lazer e de
entretenimento, onde a comunicação instantânea com o outro lado do mundo
é feita sem que se tire os olhos do computador, de dentro da sua casa, qual
ainda pode ser o sentido do teatro e sua arcaica e ancestral maneira de reunir as
pessoas? Qual ainda pode ser o lugar do teatro no mundo, depois que o cinema e
mais ainda a televisão roubaram seu lugar de divertir e entreter as pessoas? Talvez
os escritos sobre a história do Galpão sejam uma maneira de descobrir para mim
mesmo e expressar para os outros uma força do teatro que está por trás e além
das apresentações e dos ensaios das peças e que se concretiza na estruturação
e na vivência de um projeto coletivo que se enraíza numa comunidade. E que,
mesmo buscando ser popular, não deixa nunca de visar também ao indivíduo,
fazendo com que as pessoas compreendam, encontrem e estruturem seu lugar no
mundo, tornando-as menos solitárias e , de alguma forma, menos infelizes. Essa
O projeto foi também a tentativa de deitar os olhos sobre a trajetória do Galpão
e perceber como, apesar das incoerências, das mudanças de diretores e de
rotas, dos desvios provocados por tantos desejos (muitas vezes tão díspares!), o
Galpão guardou um caminho. Esse caminho, aliás, que foi moldado desde os seus
primórdios, no encontro com os diretores da companhia alemã “Freies Theater
Munchen” na montagem do espetáculo “A alma boa de Setsuan”, de Bertolt
Brecht, e que teve seu primeiro alicerce fundado no desejo de se viver de teatro.
Um teatro que fosse vivo e que se tornasse viável, o que necessariamente exigia
a conciliação de uma excelência e um rigor artístico com uma capacidade de
organização e de gerenciamento do trabalho. Ou, em outros termos, um teatro
que, além de comunicar com um público o mais amplo o possível, fosse um teatro
calcado na criação coletiva e que visasse à pesquisa e à experimentação. Teatro
popular e de rua mesclado com a necessidade artística de buscar outros formatos
é, pelo menos na minha cabeça, a utopia perseguida, mais alcançada em algumas
ocasiões, menos em outras.
mais intimistas e vanguardistas, encontro com diretores de diferentes formações
e escolas, buscas pelo aprendizado de diferentes técnicas, escolas e formações,
tudo isso foi moldando o Galpão dessa matéria muito mais multifacetada e
camaleônica do que algo que tendesse à especialidade e à criação de um sistema
que tende a formatar uma prática e uma visão de todo o fenômeno teatral.
52
| Subtexto | Revista de Teatro do Galpão Cine Horto
É um teatro que se manteve aberto a tantas influências de tão distintos processos
e técnicas, que acabou virando aquilo que internamente chamamos de algo “viralata”. Mas, mesmo assim, muitas vezes eu não deixava de ficar intrigado como,
diante de espetáculos muitas vezes tão diferentes que eram produzidos pelo
grupo, as pessoas sempre enxergavam uma essência inerente ao Grupo Galpão.
E, curioso, me perguntava: que essência seria essa?
Livro Grupo GalpãoUma História de
Encontros, de
Eduardo Moreira
– Duo Editorial e
Edições CPMT
Seria a ausência da “quarta parede” em que o teatro se estabelece
permanentemente com uma comunicação direta com o público? Ou um teatro
de essência coletiva em que o todo da encenação e do jogo entre os atores se
sobressai às peças das interpretações individuais? Ou seria um teatro em que
elementos e técnicas diversos como, por exemplo, a música e o universo do circo
se acumulam e se misturam, fazendo do teatro do Galpão um caleidoscópio de
linguagens e de influências? Tudo isso e um pouco mais. O fato fundamental
em termos de postura artística é que o coletivo do Galpão sempre pautou suas
discussões sobre os rumos dos caminhos
artísticos, pensando menos no que já havia
sido conquistado e mais no que seriam
nossas deficiências, naquilo que precisa ser
conquistado. Cada novo projeto é pensado
como uma tentativa de responder àquilo que
nos falta. Nesse sentido, o Galpão persegue
mais a diversidade e menos a especialização.
O livro é uma tentativa de compreender e
lançar uma luz sobre esse caleidoscópio
que foram e continuam sendo os diversos
encontros vividos pelo grupo ao longo desses
anos.
Galpão em Foco
|
53
Ele começa com os diretores – Fernando Linares, Paulinho Polika, Carmen
Paternostro, Aderbal Freire-filho, Jerzy Grotowski e o teatro Antropológico,
Ulysses Cruz, Eid Ribeiro, Gabriel Villela, Cacá Carvalho, Paulo José e Paulo de
Moraes; passa pelas transformações dos elementos que constituem o teatro – a
dramaturgia, o cenário, o figurino, o público, o trabalho corporal, a música, a
produção, as viagens, a luz e o som; e termina com duas experiências ligadas
ao universo do cinema, que foram o encontro com o diretor Sérgio Penna e com
Eduardo Coutinho e Enrique Dias, no documentário “Moscou”. A lista poderia
seguir em frente, incluindo nomes como Newton Moreno, os atores do Grupo
Armazém, um novo encontro com Aderbal Freire-Filho, mas era preciso delimitar
um tempo.
Note-se também que na lista dos diretores estão alguns encontros que não
produziram espetáculos – Grotowski, Barba, Aderbal e Ulysses – , mas que foram
suficientemente marcantes e que transformaram não só nossa maneira de fazer
teatro como nosso modo de enxergar o mundo individual e coletivamente.
Diretor polonês Jerzy
Grotowski – turnê
Itália
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| Subtexto | Revista de Teatro do Galpão Cine Horto
Ficaram de fora também os processos de criação e direção internas – “Um Molière
imaginário” (Eduardo Moreira), “Um trem chamado desejo” (Chico Pelúcio) e “Till,
a saga de um herói torto” (Julio Maciel). Não porque sejam menos importantes,
mas porque ficaram para um outro livro. Mera questão de demarcação de um
território de trabalho.
Acho que o livro lança uma reflexão mais detida sobre os primeiros anos de
existência do grupo, o chamado período “heroico”, que vai da fundação do
Galpão até mais ou menos 1991, com a montagem de “Álbum de família”, de
Nelson Rodrigues, com direção de Eid Ribeiro. Isso porque a história do Galpão
é muito mais conhecida a partir da explosão de “Romeu e Julieta”, que foi,
sem sombra de dúvida, um marco. Existem muitas lacunas de informações sobre
esse primeiro período e frequentemente a importância desses primeiros anos de
formação é relegada a um segundo plano. Mas a luta e as sementes forjadas
nesses primeiros nove anos foram absolutamente fundamentais e constituintes
da base artística do Galpão. Sem dúvida, que em “Romeu e Julieta”, o grande
mérito do Gabriel foi, além de ter criado uma encenação arrebatadora, ter usado
até as últimas consequências o potencial criativo de um grupo de atores que já
trabalhava intensamente há nove anos e que estava pronto para explodir seu
processo criativo.
Eu diria que a grande pergunta que perpassa todo o livro é como um grupo de
atores conseguiu e consegue manter acesa a chama viva do teatro por tantos
anos, buscando novos caminhos que nos tirem do conforto do já conquistado
e que, muitas vezes, se tornou uma referência de sucesso junto ao público. É
alimentar essa chama de desassossego e de inquietação, com tanta paciência e
perseverança que, acredito eu, mantém de pé a fascinante experiência teatral
do Galpão.
E, para concluir, eu diria que esse livro foi uma tentativa não só de expor e tornar
pública essa experiência, mas também de refletir e repensar comigo mesmo essa
trajetória. Refazer os passos dessa caminhada que, no fundo, tenta compreender
e fazer jus a um possível sentido de ser do teatro.
Cine Horto
em Foco
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| Subtexto | Revista de Teatro do Galpão Cine Horto
Cine Horto em Foco |
Núcleos de Pesquisa do Galpão Cine Horto:
A teoria na prática
Lydia Del Picchia1
Para falar sobre o nascimento dos Núcleos de Pesquisa, sinto-me impelida
primeiramente a esclarecer um pouco sobre o funcionamento do Galpão Cine
Horto como um todo desde sua fundação, pois os novos projetos sempre nos
surgiram não como ideias prontas e preconcebidas, mas quase como consequência,
como possibilidade de aprofundamento, de ampliação ou de expansão de uma
ação já consolidada.
Nesse sentido, o projeto mais fértil foi, sem dúvida, o Oficinão, atividade pensada
em 1998 para inaugurar o contato do Galpão Cine Horto com a comunidade
artística de Belo Horizonte. Dele, que ainda hoje abriga vários outros projetos,
surgiram vários filhotes, tais como: a Oficina de Dramaturgia, coordenada por
Luis Alberto de Abreu (1999 a 2002), o Festival de Cenas Curtas (2000 a 2010),
a Oficina de Direção, coordenada por Aderbal Freire Filho (2001 e 2002), o Cena
3 x 4, em parceria com a Maldita Cia. de Teatro (2003 a 2005), o Pé na Rua
(2005 a 2010).
O Galpão Cine Horto sempre nos pareceu – e com o tempo confirmou sua forte
vocação para isso – um espaço propício a experimentações e riscos de diversas
origens: de linguagem, estéticos, pedagógicos, de modos de produção, de criação
de projetos, e, principalmente, de misturas de tudo isso. A possibilidade de tentar
sem a obrigação de acertar sempre produz receitas interessantes e aumenta a
vontade de continuar testando novos ingredientes.
Desde o início de nossas atividades procuramos oferecer diversos cursos e oficinas
nas áreas de Teatro (Rita Clemente, David Dolpi, Iara Fernandes), Dança (Dudude
Herrmann, Daniela Penna, Heloísa Domingues), Música (Paulinho Silva, Wilson
Lopes), Canto (Babaya), Vídeo (Cláudio Costa Val, Sérgio Penna), Circo (Alexandre
Marques), Clown (Bete Penido), Yoga (Sofia Martins), Capoeira (Márcio Gunga),
Esgrima (Ricardo Maqui), entre tantas outras.
Com o passar do tempo, as aulas mais diretamente ligadas à formação prática do
ator acabaram se transformando nos Cursos Livres de Teatro – estruturados como
cursos básicos de formação continuada e progressiva, atualmente contando com
1
Atriz do Grupo Galpão e Coordenadora Pedagógica do Galpão Cine Horto
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| Subtexto | Revista de Teatro do Galpão Cine Horto
oito professores que se revezam em cinco módulos semestrais para adultos, além
de turmas para crianças e adolescentes. As demais oficinas passaram a funcionar,
até 2008, como atividades eventuais.
Mostra dos Núcleos
de Pesquisa do
Galpão Cine Horto –
outubro de 2010 |
Nessa época, partindo de uma análise provocada por um seminário interno,
percebemos que essas oficinas estavam cada vez mais distantes dos demais
projetos da casa, principalmente pela falta de um conceito que as unisse, já que,
muitas vezes, elas aconteciam mais por questões de oferta do que por demandas
internas ou de um projeto específico. Foram algumas das questões levantadas:“As
oficinas avulsas estão ficando superficiais; precisamos debater as diferenças
entre Curso, Oficina, Workshop e seus alcances; precisamos compartilhar um
conceito dentro da equipe; investir em parcerias com entidades que já possuem
algum trabalho de formação; precisamos de pessoas propositivas que queiram
fazer um trabalho prático; propostas de um trabalho continuado e que abre
espaço para o diálogo com os projetos da casa nos interessam mais” (reuniões
da Coordenação Pedagógica).
Foi então que decidimos que, a partir de 2009, não mais ofereceríamos oficinas
de curta duração, a não ser aquelas que estivessem ligadas a um projeto maior,
como, por exemplo, as do Galpão Convida, ou as realizadas pelo Pé na Rua em
viagens do Cine Horto na Estrada.
Cine Horto em Foco |
59
Exatamente nesse momento em que buscávamos novas alternativas de lidar com
a formação, fomos procurados pela jornalista de moda Ana Luísa Santos, que nos
oferecia uma oficina em que parte do trabalho desenvolvido com os alunos seria
o estudo e a catalogação do acervo de figurinos do Grupo Galpão, objetivo maior
de sua pesquisa. Ela propunha um formato com aulas expositivas alternadas
com palestras e atividades práticas. Imediatamente percebemos ali a enorme
possibilidade de o Galpão Cine Horto oferecer outras oficinas nesse formato,
que aliassem teoria e prática, esta diretamente ligada aos projetos artísticos da
casa. A ideia vinha ao encontro dos nossos desejos e tinha tudo para ocupar uma
lacuna existente no mercado cultural de Belo Horizonte. Surgia assim o embrião
dos Núcleos de Pesquisa, que inaugurou seu formato com o Núcleo de Pesquisa
em Figurino, Moda e Cultura, em março de 2009.
Aula Inaugural do
Núcleo de Pesquisa
em Figurino, Moda e
Cultura – 2009.
Coincidentemente (acreditamos em coincidências?), nesse mesmo ano, a também
jornalista Carolina Braga nos procurou propondo uma oficina de Jornalismo
Cultural, que teria o Festival de Cenas Curtas como base para suas aulas. A
atividade acabou se transformando no segundo piloto dos Núcleos de Pesquisa.
Percebendo a oportunidade que se desenhava, convidamos Romulo Avelar,
nosso parceiro de longa data e coordenador da oficina de Produção e Gestão
Cultural, realizada desde 1999, a fazer parte do projeto. Sua oficina naquele
ano já havia acontecido, mas fizemos uma carta-convite aos ex-participantes,
oferecendo àqueles que tivessem interesse a oportunidade de fazerem uma
60
| Subtexto | Revista de Teatro do Galpão Cine Horto
espécie de “laboratório prático” acompanhando as Coordenações de Produção e
de Planejamento do Galpão Cine Horto e também do Grupo Galpão. Convocamos
ainda outro antigo parceiro, Luis Alberto de Abreu, para que, juntamente com
Nina Caetano, coordenasse o Núcleo de Pesquisa em Dramaturgia, com a tarefa
de dar suporte à segunda edição do Cena Espetáculo, abrindo espaço para
mais um exercício prático. Então, de março a dezembro de 2009, quatro pilotos
decolaram com seus projetos, sem saber exatamente como ou quando iriam
aterrissar!
Acho que posso dizer que o projeto foi um sucesso! Não somente pelo número
de participantes e profissionais envolvidos, mas, principalmente, pela janela que
claramente se abria para a possibilidade da pesquisa aliada à prática artística,
contribuindo inclusive para o arejamento dos projetos mais antigos do Galpão
Cine Horto que, volta e meia, precisam ser repensados para não caírem na
mesmice daquilo que “já está funcionando”...
Mostra dos Núcleos
de Pesquisa do
Galpão Cine Horto –
outubro de 2010 |
O próximo passo foi pensar na continuidade dos módulos já existentes e, aí, mais
uma vez, aparece o desafio de formatar um projeto em andamento. O modelo
inicial, apesar da nossa grande expectativa, havia sido tímido e nos deparávamos
agora com alguns “remendos” do projeto,
que alcançou uma proporção muito maior
que a esperada. Era o momento de repensar
o formato e, se fosse o caso, parar e começar
de novo. Decidimos então, como se diz
por aqui, “atolar o pé na jaca”. Apostando
novamente no sucesso do projeto,
convidamos outros profissionais, todos já
parceiros do Galpão Cine Horto em ações
anteriores, para coordenar mais quatro
Núcleos de Pesquisa: Bruna Christófaro
e Tereza Bruzzi (Cenografia), Wladimir
Medeiros (Iluminação Cênica), Ricardo
Garcia (Sonorização), e Glaucia Vandeveld
(Teatro para Educadores). Diante desse
desafio, percebemos a necessidade de uma
coordenação única que pudesse articular
os diversos Núcleos entre si e também com
os outros projetos do Galpão Cine Horto.
Convidamos então a professora, atriz e
diretora Kenia Dias, vinda de Brasília para
Cine Horto em Foco |
61
edição do Oficinão Residência de 2008, que assumiu a função de Coordenadora
Geral dos oito Núcleos de Pesquisa que funcionariam em 2010.
A esse time de coordenadores foi pedido que montassem, individualmente, seu
projeto ideal, com as particularidades e especificidades de cada conteúdo, e que
contemplassem tanto um primeiro momento de preparação/formação, quanto
sua continuação, tentando abrir um leque de opções, que se mostrariam viáveis
ou não com o tempo. Solicitamos também que envolvessem ao máximo os
projetos do Galpão Cine Horto, bem como suas equipes.
Nesse momento de insanidade, a principal questão que insistia em não sair da
pauta era a preocupação com o crescimento súbito da casa, pois o significativo
aumento dos Núcleos geraria novos custo e outras demandas, como a ocupação
do espaço físico e a contínua assistência de pessoal (técnica, produção, etc.).
Precisávamos, com urgência, pensar numa forma de financiamento. Não
sabíamos se, em curto prazo, teríamos capacidade para a sustentação de
tantos núcleos, pois os pilotos haviam funcionado como oficinas pagas pelos
participantes e complementados com recursos próprios. Confesso que, por várias,
vezes tentei colocar o pé no freio, mas a força do projeto falou mais alto. A
solução – em parte – veio de uma aprovação pelo Fundo Municipal de Cultura
de Belo Horizonte, que subsidiou uma etapa do projeto, continuando o restante
sendo financiado pelo pagamento dos participantes. Como contrapartida pelo
aporte do Fundo, cinco bolsistas, indicados pela Fundação Municipal de Cultura,
participam das atividades e pesquisas – em cada Núcleo.
Mostra dos Núcleos
de Pesquisa do
Galpão Cine Horto –
outubro de 2010 |
62
| Subtexto | Revista de Teatro do Galpão Cine Horto
Com o tempo, outras perguntas foram aparecendo e nos ajudando a definir
caminhos: “Os participantes são alunos ou artistas pesquisadores? O que haveria
de comum entre os diversos Núcleos? Produção é tão diferente do artístico... O
que une os núcleos é a discussão a partir da prática, da pesquisa. Pode ser feito
um revezamento de Núcleos, abrindo-se a oportunidade para novos projetos? A
pesquisa não pode parar. É preciso que haja continuidade; precisamos trabalhar
por módulos, sempre teremos pessoas novas; não há pré-requisito para
participar, nem conhecimento prévio; é difícil oficializar, organizar os núcleos,
sem um padrão de funcionamento. As pessoas precisam entrar sabendo a que
tipo de conteúdo terão acesso, para que, depois, sigam na pesquisa que já vem
sendo realizada, ou ainda, outros grupos de pesquisa se formem.” (Grupos de
Trabalho – Seminário Interno 2010)
Algumas dessas questões ainda estamos tratando de entender. São elas que nos
movem. Mas, com a experiência, algumas respostas também estão surgindo: “O
módulo básico deve ter começo, meio e fim. O coordenador deve propor um
caminho, um plano pedagógico; buscar a formação horizontal, a experiência se
dá através da criação, projetos não devem ficar presos a uma formalidade; os
laboratórios práticos podem começar a qualquer momento, assim que surgirem
propostas dentro dos grupos; os projetos do GCH estarão abertos a receber
as pesquisas de qualquer Núcleo; a Coordenação Geral deve tentar cruzar os
interesses de vários Núcleos, para chamar um palestrante, por exemplo, ou
para propor uma atividade conjunta.” (Reuniões do Conselho Gestor com as
Coordenações dos Núcleos de Pesquisa)
Cine Horto em Foco |
Núcleos de Pesquisa do Galpão Cine Horto:
uma experiência inventiva
Kenia Dias1
O Galpão Cine Horto, prestes a completar 15 anos de existência, atua como um
importante espaço de trabalho para artistas/pesquisadores que têm a oportunidade
de imergir em projetos voltados para questões didático-pedagógicas e de cunho
estético-artístico no campo das artes cênicas. A consolidação e o crescimento
dos Núcleos de Pesquisa, cursos e projetos como Oficinão, Cine Horto Pé na Rua,
Conexão Galpão e Festival Cenas Curtas vêm acompanhados de um consequente
aumento na demanda de profissionais e artistas em formação que se interessam,
seja pelas especificidades dos elementos constitutivos da cena e suas interações,
seja pelas estratégias de produção e divulgação de projetos, ou ainda por
métodos e investigações calcados no terreno do teatro-educação.
Em meio a tantas perguntas e possibilidades, fica a certeza de que o esforço
tem sido válido, pois ganhamos na mesma proporção em que investimos. Como
criador e QG dessa santa loucura, o Galpão Cine Horto cresce e ganha maturidade
procurando munir-se constantemente de material que possa servir aos Núcleos,
desde suas salas que foram equipadas para receber telões, projetores, refletores,
computadores, mesas de som e de luz – e dá-lhe liga e desliga de equipamento,
carrega e troca de sala que lá vem mais! – até a aquisição de acervo especializado
para o Centro de Pesquisa e Memória do Teatro, a abertura de seus espaços, de
seus cenários, enfim...
E se redescobre sendo começo, meio e fim, matéria e objeto de cada uma dessas
pesquisas, perguntas, investigações e indagações. Navegando na dor e na delícia
de ser o que é...
63
Mostra dos Núcleos de
Pesquisa do Galpão Cine
Horto – outubro de 2010
1
Atriz e diretora. Formada em dança e teatro, é mestre em Artes pela UnB,
lecionando nessa instituição aulas de teoria e prática teatral. É professora do Cefar
e ministra aulas de técnica de improvisação na Cia. de Dança do Palácio das Artes.
Coordenadora dos Núcleos de Pesquisa do Galpão Cine Horto em 2010. É Professora do
Galpão Cine Horto há dois anos.
64
| Subtexto | Revista de Teatro do Galpão Cine Horto
A partir da premissa básica na qual se fortalecem as particularidades de interesses
enquanto se reforça o diálogo e a conexão entre eles, os Núcleos de Pesquisa
iniciaram, neste ano de 2010, uma fértil fase de ampliação e desdobramentos.
Ampliação pelo fato de, antes, haver quatro núcleos funcionando de forma
isolada e que, agora, são oito desenvolvendo suas atividades simultaneamente
com naturezas e dinâmicas distintas de trabalho.2 E desdobramentos, pelo fato
de os núcleos não reduzirem as atividades em si. Pelo contrário, a tentativa foi
a de traçar (na medida do possível) um plano de diálogo entre as propostas de
pesquisa de cada coordenador, levar em consideração os interesses e projetos
de investigação dos participantes a serem desenvolvidos e, por último, fazer um
estudo sobre quais projetos do Galpão Cine Horto poderiam relacionar e abarcar
em seus processos os Núcleos de Pesquisa.
Além de os coordenadores serem profissionais reconhecidamente qualificados
por suas trajetórias referenciadas na investigação de linguagens e suas possíveis
interfaces, essa estratégia de diálogos e intercâmbios acaba por caracterizar e
fortalecer o lugar da pesquisa nos núcleos, pois tornam-se evidentes os seguintes
aspectos:
Cine Horto em Foco |
65
Essas diversas camadas de atuação que tanto o participante quanto o coordenador
experienciam estão, nesse exato momento, em processo de descoberta e
avaliação. Cada núcleo, ao iniciar as atividades junto aos projetos do Galpão Cine
Horto , demanda um tipo de articulação e envolvimento e, consequentemente,
novos enfrentamentos são percebidos de ordem reflexiva e prática: é possível
afinar o conhecimento prático/teórico que fora apreendido e transformado
ao longo das atividades dos núcleos com a realidade de processos de criação
grupais que envolvem horários, prazos, profissionais, ideias em andamento
e prioridades? Quais são os percursos criativos adotados pelo participante ao
acompanhar um processo, ou ao assumir uma função inserida nele? No caso
dos coordenadores, como encontrar estratégias de orientação com relação ao
participante que se depara com propostas e concepções de criação elaboradas
por outros profissionais? Até onde vai o envolvimento do coordenador com os
profissionais envolvidos nos projetos?
1 - A função do coordenador não se resume a oferecer uma certa quantidade
de informação e conhecimento ao participante, mas ampliar o seu horizonte de
recepção, análise e produção a partir de textos e práticas que ele próprio propõe
nos encontros e daquilo que ele (o participante) traz como objeto e interesse de
pesquisa;
2 - As relações com os projetos da casa coloca o participante no campo da
experimentação imediata, ora assumindo a função, por exemplo, de cenógrafo,
figurinista ou dramaturgo, ora acompanhando o processo do profissional
responsável pela iluminação, produção ou trilha sonora, por exemplo, de
determinados projetos;
3 - Há uma descentralização na relação entre coordenador e participante, quando
este começa a se envolver com projetos da casa e tem que dialogar com outros
processos de criação e profissionais.
2
A saber, são eles: Produção e Gestão Cultural, coordenado por Romulo
Avelar; Jornalismo Cultural, por Carolina Braga; Figurino, por Ana Luisa Santos;
Sonorização, por Ricardo Garcia; Cenografia, por Bruna Christófaro e Tereza Bruzzi;
Iluminação, por Wladmir Medeiros; Dramaturgia, por Nina Caetano e Teatro para
Educadores, por Gláucea Vandeveld.
Mostra dos Núcleos de
Pesquisa do Galpão Cine
Horto – outubro de 2010
São questões de mérito processual, em que as respostas ou os apontamentos
estão no dia a dia da experiência criativa em grupo. Uma das riquezas dos
Núcleos de Pesquisa, nesse momento, é justamente compreender formas de
articulação, aprendizagem e criação enquanto se participa de uma experiência
inventiva prática, pensada e vivida no instante dela mesma.3
3
Para uma melhor elucidação, ver a tabela relacional entre os projetos do GCH
e os Núcleos de Pesquisa ao final do texto.
66
| Subtexto | Revista de Teatro do Galpão Cine Horto
A partir do momento em os participantes começam a interagir com os projetos
da casa, não há uma regra a seguir, mas possibilidades de intervenção. Há
aquele participante, por exemplo, que frequenta os ensaios e reuniões e interage
diretamente com os artistas envolvidos. Essa experiência presencial junto com
os registros em vídeo é compartilhada e discutida nos encontros semanais dos
núcleos com toda a turma e a coordenação. Dessa forma, aqueles que têm o
interesse, mas não podem comparecer aos ensaios, participam de forma indireta
do processo de pesquisa do projeto em desenvolvimento. O coordenador também
sugere práticas a serem realizadas pelos participantes a partir das proposições
feitas pelos diretores, atores, cenógrafos e iluminadores envolvidos. Esse processo
se iniciou, ao mesmo tempo, de uma forma organizacional e espontânea em
alguns núcleos (sonorização, iluminação, cenografia). Em outros, as estratégias
são diferentes como, por exemplo, o Núcleo de Jornalismo Cultural, no qual os
participantes interagem de imediato com o Festival Cenas Curtas através da
escrita e postagem no blog criado por eles próprios, ou o Núcleo de Teatro para
Educadores, cuja intervenção feita no FETO - Festival de Teatro Estudantil foi feita
através de uma oficina ministrada para uma escola que não foi selecionada a
participar do festival. Temos como exemplo, também, no Núcleo de Dramaturgia,
um participante que exerce a função de dramaturgo na montagem da peça do
núcleo de criação para adolescentes. Ele é orientado pela coordenadora Nina
Caetano, mas tem um envolvimento e um papel decisivo no pensamento e na
elaboração dramatúrgica do espetáculo.
Mostra dos Núcleos
de Pesquisa do
Galpão Cine Horto –
outubro de 2010
No momento, os Núcleos de Pesquisa reúnem boas perspectivas de crescimento
qualitativo, pois se, por um lado, temos profissionais altamente qualificados para
coordenar as pesquisas, por outro, temos uma demanda de artistas profissionais
e em formação interessados na verticalização e no intercâmbio de saberes.
Cine Horto em Foco |
Além disso, é importante salientar que a viabilidade dos Núcleos de Pesquisa
se efetiva a partir do momento em que se investe no potencial investigativo
do artista, estimulando o pensamento e a abertura de novas reflexões,
proposições e práticas. O que temos aqui é um campo fértil de estratégias
de pesquisa que abrangem uma significativa imersão em diversas áreas do
conhecimento das artes cênicas.
Refletir e praticá-las é uma das ações dos Núcleos de Pesquisa do Galpão
Cine Horto que fortalecem e reafirmam aquilo que vem sendo gerado e
produzido no cenário nacional e internacional de centros acadêmicos
e culturais, festivais, encontros e reuniões de pesquisadores e artistas:
diversidade de perguntas e de linhas investigativas que oxigenam e afetam
concepções preestabelecidas e inaugurais de conceitos, tendências e fazeres
relacionados à arte da cena.
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Cine Horto em Foco |
Tabela relacional dos projetos do Galpão Cine Horto com os Núcleos de Pesquisa
PROJETOS ENVOLVIDOS
NÚCLEOS DE PESQUISA
FESTIVAL DE CENAS CURTAS
2009 e 2010
Jornalismo Cultural, Iluminação,
Sonorização
PÉ NA RUA
2009 (“Sonho de uma Noite de São
João”)
Figurino
CONEXÃO GALPÃO
2010 (Ações Formativas)
Sonorização, Teatro para Educadores
CENA-ESPETÁCULO
2009 (“A Mudança”) e
2010 (“1999 = 10”)
Dramaturgia, Figurino, Iluminação,
Jornalismo Cultural
OFICINÃO
2010 (“Pop Love”)
Cenografia, Sonorização, Iluminação
CENTRO DE PESQUISA E MEMÓRIA DO
TEATRO
Figurino
GRUPO GALPÃO
Produção e Gestão Cultural, Figurino
2009 (“Till – a saga de um herói torto”)
CURSOS LIVRES
2010 (Núcleo de Criação para
Adolescentes)
Cenografia, Dramaturgia
FESTIVAL ESTUDANTIL DE TEATRO
(Projeto em parceria com o
Galpão Cine Horto)
2010
Produção e Gestão Cultural, Teatro
para Educadores
Grupo Teatro Invertido:
representação e publicação1
Sara Rojo2
Toda fala teatral que se instala na cidade propõe uma “desordem que interfere
nos fluxos centrais estabelecidos.”
(CARREIRA, 2008, p. 71).
Ainda que concordemos com André Carreira, parece-nos que devemos fazer
distinções no grau de interferência de cada proposta. Nos últimos anos, diversos
grupos mineiros registraram suas experiências no formato de livros: o Galpão
lançou as suas em 2007; o Grupo Oficcina Multimédia e Ione Medeiros, em
2007; a Cia Acômica, em 2007, e o Mayombe Grupo de Teatro está em fase
de organização de um livro que será lançado em 2011 e dará ao público o
conhecimento das peças que foram montadas em seus 15 anos de formação.
A esse movimento soma-se, este ano, o livro do Grupo Teatro Invertido, “Cena
Invertida – Dramaturgias em processo”.
Essa necessidade de registrar os processos que hoje apresentam os grupos
mineiros, e que se diferencia do que acontecia em épocas precedentes (das quais
temos poucos documentos escritos), merece uma reflexão. O registro é também
uma forma de interferência não só na cidade, mas também na historiografia
do teatro brasileiro. Só que estamos diante de uma nova forma de fazê-lo (os
próprios sujeitos assumem essa responsabilidade). Portanto, o registro é da
própria memória, entendendo esta como categoria afetiva, desempenho dos
corpos e reflexão teórico-prática. Nesse sentido, é fundamental destacar que a
escrita é um exercício, dentro do fazer teatral, que adquire um caráter político
no campo da arte.
O primeiro livro do Grupo Teatro Invertido reúne estudos críticos, textos,
fotografias e análises dos próprios trabalhos, sob a coordenação editorial de
Nina Caetano (DEART/UFOP). Dentro de cada bloco, gostaríamos de mencionar
os eixos centrais.
1
Este texto surge como uma reflexão a partir do livro CAETANO, Nina (Coord.
editorial). Grupo Teatro Invertido. Cena Invertida - Dramaturgias em processo. Belo
Horizonte: Edições CPMT, 2010.
2
Professora Associada da UFMG. Pesquisadora do CNPq e da Fapemig e Diretora
do Mayombe Grupo de Teatro.
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Cine Horto em Foco |
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Espetáculo Estado de
Coma – Grupo Teatro
Invertido
Nos estudos críticos: o texto de Fernando Mencarelli (EBA/UFMG) traz uma
análise histórica e uma conceitualização do que se entende como “dramaturgia
em processo” por meio de um estudo da situação dos grupos brasileiros (segundo
os dados proporcionados pelo autor, quase 3.000). O texto de Davi de Oliveira
Pinto (DEART/UFOP) faz uma reflexão comparativa entre o texto original de Brecht
e Nossa pequena Mahagonny, do grupo Teatro Invertido, colocando ênfase no
“caráter géstico” desta última. Rita Gusmão (EBA/UFMG) analisa a montagem
de Lugar cativo através das significações que trazem para o texto espetacular
os diversos enunciadores. Luiz Carlos Garrocho, artista e filósofo, enfatiza os
dois planos presentes nas textualidades que perpassam Medeiazonamorta:
significação e sensação. Marcos Antônio Alexandre (FALE/UFMG) centra seu
estudo nas linguagens que trazem à tona a questão da memória em Proibido
retornar. Antonio Hildebrando (EBA/UFMG) teoriza e toma uma posição para o
estudo da relação cena-público em Estado de coma.
Nos estudos dos próprios atores: Rita Maia discorre sobre a formação do ator a
partir das experiências desenvolvidas pelo Grupo Teatro Invertido no processo
colaborativo; e o coletivo, como um todo, se apresenta num texto introdutório
à leitura das obras.
O terceiro bloco é constituído pelo registro das próprias peças que, mesmo
sendo diferentes (nas temáticas e nas linguagens estéticas empregadas), têm
fios condutores que remetem à questão da representação e dos limites entre a
ficção e a realidade:
“William: Moisés, estamos ao vivo.” (Nossa pequena Mahagonny, 2010,
p. 55).
“Lumen: Às vezes parece que sinto como se a plateia estivesse aqui,
parece que ouço as vozes e sinto os olhares.” (Lugar cativo, 2010, p. 78).
“Hospedeira volta para cena e declara para o público: Estão esperando
o quê?” (Medeiazonamorta, p. 148).
“Moacir para um espectador: É só ter um pouquinho de paciência que
ele aprende rápido.” (Proibido retornar, p. 174).
“Doutor: Boa noite! Mostra um prato. A senha. Enquanto recolhe as
senhas, ele conversa com os espectadores.” (Estado de Coma, p. 202).
Essa preocupação com a representação é uma constante no teatro atual, inclusive
no campo acadêmico hoje se fala de atuação performática, que seria aquela
que procura atravessar os limites da representação para caminhar em direção a
essa zona de indeterminação que constitui o presente do ator e do público. De
alguma maneira, consiste numa tentativa para produzir um encontro além das
Espetáculo Proibido
Retornar– Grupo
Teatro Invertido
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| Subtexto | Revista de Teatro do Galpão Cine Horto
Cine Horto em Foco |
cultural, que orientam e dialogam com a produção artística e com as leituras
realizadas dentro desse sistema, mas que não o fazem necessariamente da mesma
forma, podem surgir reflexões que vão além desse sistema. Análises estéticas
dentro dos parâmetros estabelecidos por cada peça em questão possibilitarão
um caminho de acesso à decodificação das mesmas dentro do próprio jogo que
elas propõem.
Trata-se de avançar para a realização de uma crítica que reflexione sobre as
produções de arte sem estabelecer hierarquias redutoras entre suas linguagens
e com uma metodologia dinâmica e capaz de dialogar de maneira multifacetada
com os distintos tipos de criações. O Teatro Invertido utiliza, em cada uma de
suas peças, estéticas diferentes que perpassam desde o documentário até o
claramente ficcional, como os estudos críticos que integram o livro assinalam. O
interessante, e que gostaríamos de pontuar nestas poucas palavras, é que todas
as peças do Teatro Invertido surgem da dialética entre o pessoal e o social e no
limite entre a ficção e a realidade, e é nesse âmbito que nós, críticos de suas
produções, podemos atuar.
Espetáculo
MedeiaZonaMorta–
Grupo Teatro Invertido
personagens apresentadas. O trabalho do Teatro Invertido reflete também essas
preocupações.
Não podemos desconsiderar que estas ideias se gestam dentro de um mundo
neoliberal, que separou o desenvolvimento tecnológico-econômico do culturalartístico e no qual se primou pelo bem-estar de alguns sobre o de outros,
produzindo, assim, um processo de desintegração humano e ético que alguns
coletivos teatrais rejeitam. O conflito, geralmente, aparece no choque entre essas
preocupações da ordem da ética e da vida e as que surgem no campo formal.
Parece-nos que a questão é estabelecer, no produto artístico, um diálogo entre
a arte, a história e a cultura, intervindas pela subjetividade e pelos discursos. O
Teatro Invertido não foge desse desafio nas suas peças nem em seu livro.
O trabalho desse grupo, ou de outros com esses tipos de preocupações éticas e
artísticas, requer que pensemos a forma de fazer crítica. Se a ideologia preexiste
às linguagens criadas no espetáculo e em uma mesma produção existem diversas
concepções do mundo — portanto, diversas ideologias que podem entrar em
choque ou mesmo criar outras —; não cabe analisar as peças só como linguagens
estéticas ou como produtos da História e, menos ainda, entendê-las como
estáticas ou unívocas; pois se cria um vazio ou uma incapacidade de ler o
conjunto da obra apresentada. Dessa maneira, se partimos do princípio de que
cada sistema possui ideologias, imagens constituintes de uma determinada visão
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| Subtexto | Revista de Teatro do Galpão Cine Horto
Teatro e Politica
|
Teatro e
Política
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Teatro e Politica
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Políticas Públicas para a cultura:
um olhar panarâmico sobre o Brasil, Minas Gerais e Belo Horizonte
Chico Pelúcio1 e Leonardo Lessa2
Os últimos anos, certamente, foram importantes e definidores de novos caminhos
para a área cultural. Acompanhamos mudanças de conceitos e paradigmas que
vêm norteando as ações não só de quem pensa, mas também de quem financia
a Cultura, tanto no setor público, quanto no privado. Com as eleições de 2010
fecharam-se dois longos ciclos de governos sob a mesma batuta, em âmbito
federal e no estado de Minas Gerais. Consideramos, portanto, que esse fato merece
de nossa parte uma análise aguda e apartidária. Aproveitamos a oportunidade
para também incluir nesta reflexão a atuação do governo municipal de Belo
Horizonte que, em última instância, é uma gestão de continuidade. Para isso,
optamos por uma abordagem que extrapole o universo do teatro, nossa área de
atuação, e lance um olhar crítico sobre o contexto das políticas culturais nas três
esferas. Ainda que de forma panorâmica, pretendemos apresentar ao leitor nossa
perspectiva de artistas e gestores, portanto, repleta de parcialidades, e contribuir
para enriquecer a discussão em torno desse fervilhante assunto, num momento
em que novos governantes assumem o leme da gestão pública.
Depois de oito anos com os mesmos representantes à frente do governo federal e
estadual, podemos constatar avanços na área da Cultura. Já em Belo Horizonte, o
que vem acontecendo nos últimos seis anos são fatos lamentáveis que, somados,
têm gerado grandes retrocessos para o segmento.
Correndo o risco das generalizações, podemos afirmar que, nacionalmente,
ganhou vulto a retomada das responsabilidades constitucionais do Estado para
com a Cultura. Com muitas dificuldades e algumas conquistas, o Governo Federal
vem diminuindo o abismo entre teoria e prática, embora ainda haja muito que
avançar. Capitaneando grande parte dos avanços nesse campo, o Ministério da
Cultura (MinC), além de ampliar seus recursos orçamentários, ganhou espaço
político dentro do próprio Governo e soube utilizar sua limitada estrutura
parafortalecer sua atuação. A reativação efetiva da FUNARTE é uma prova
disso. O papel de gerir e implementar programas de fomento às artes foi de fato
1
Ator, diretor, integrante do Grupo Galpão e diretor geral do Galpão Cine
Horto.
2
Ator, integrante do Grupo Teatro Invertido e coordenador geral do Galpão
Cine Horto.
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| Subtexto | Revista de Teatro do Galpão Cine Horto
assumido por essa fundação, que, também, nos últimos anos, ganhou papel de
protagonista na articulação política entre os artistas e o Poder Público Federal.
Uma antiga reivindicação do segmento cultural, ainda que tardiamente, foi
posta em prática pelo executivo: a reforma da Lei Rouanet. Em seu último biênio
de gestão, o Governo, através do Ministro Juca Ferreira, encorajou-se a iniciar
publicamente um debate sobre a reformulação desse mecanismo de fomento.
Basicamente, foram propostas mudanças que corrigem a distorção nefasta da
política pública de investimentos em Cultura dos últimos 19 anos, ocasionada,
sob nosso ponto de vista, por três motivos fundamentais: primeiro, a Lei Rouanet
transferiu ao poder privado a decisão e a escolha do que patrocinar com dinheiro
público incentivado; segundo, a progressiva ausência e omissão do Estado frente
aos seus deveres constitucionais com a Cultura abandonou todos os segmentos
sem apelo mercadológico; e, finalmente, a combinação desses dois fatores fez
das leis de incentivo o único mecanismo público de financiamento à Cultura,
influenciando estados e municípios, que tendem a acompanhar as políticas
adotadas pelo Governo Federal.
Levado ao público em março de 2009, um primeiro texto da nova lei apresentava
diversas fragilidades que suscitaram polêmicas, por sua superficialidade
em alguns pontos. O Procultura, novo nome dado à Lei Federal de Incentivo,
esquentou um debate que já vinha sendo feito no interior de diversos movimentos
da sociedade civil organizada, como, no âmbito das artes cênicas, o extinto
Redemoinho - Movimento Brasileiro de Espaços de Criação, Compartilhamento
e Pesquisa Teatral, que já vinha discutindo o Prêmio para o Teatro Brasileiro,
orientado pelos mesmos princípios posteriormente propostos pelo MinC para
a reestruturação da Lei Rouanet. O principal deles e, talvez, o que determina
o grande avanço dessa gestão, é o reconhecimento da responsabilidade do
Estado para com a Cultura, que se deve traduzir em muitas ações estruturantes,
mas, principalmente, no investimento de recursos próprios de seu orçamento
para o financiamento da área. Daí, a previsão do deslocamento da base desse
investimento que, atualmente, se concentra no incentivo fiscal (mecenato) para
o fomento direto (fundo orçamentário regido por editais), através de um Fundo
Nacional de Cultura mais robusto e criterioso.
Em 2010, último ano de governo, o Fundo Nacional foi setorizado e regido por
editais públicos que exprimem demandas específicas de cada área da cultura. No
campo das artes cênicas os recursos mais expressivos se concentraram em três
vertentes, que contemplam a diversidade do segmento: manutenção de núcleos
artísticos, produção artística e programação de espaços cênicos. Assim, o Governo
Teatro e Politica
|
reconheceu a importância dos projetos de continuidade e seus equipamentos para
a formação de uma nova cadeia produtiva, o que possibilitará a descentralização
da criação, da formação, da produção e da exibição, contemplando mais pessoas
e cidades.
Nessa gestão, a prática da democracia participativa na elaboração das políticas
para a Cultura ganhou canais diretos e organizados pelo Ministério, seja
através de consultas públicas – como as realizadas no caso das reformas das
Leis Rouanet e do Direito Autoral – seja pela realização de duas conferências
nacionais, em 2008 e 2010. Sem dúvidas, o envolvimento de representantes da
sociedade civil em instâncias consultivas do Poder Público mostrou-se como um
dos caminhos de diálogo entre as duas esferas. A criação das Câmaras Setoriais,
hoje Colegiados, embora seja uma instância governamental e represente parte
dos segmentos artísticos, garantiu uma comunicação direta entre os diversos
agentes culturais e os gestores do Estado. Entretanto, ainda é necessário que o
MinC fortaleça o diálogo e reconheça, de fato, esse e outros fóruns como espaços
legítimos de formulação e avaliação das políticas culturais.
Ao reconhecer tais avanços, não podemos nos eximir de lançar uma visão mais
crítica sobre o contexto político federal dos últimos oito anos. O Governo Lula,
que assumiu o poder com tantas promessas, termina sua gestão contabilizando
conquistas aquém de muitas expectativas, inclusive no campo da Cultura.
A ideologização excessiva das discussões por parte dos setores envolvidos,
sociedade civil organizada – seja de esquerda ou direita – e Poder Público
Federal, omitiu dados importantes para um diagnóstico mais contundente da
realidade dos investimentos em cultura no país, dificultando a criação de uma
pauta mínima conjunta e mais fortalecida.
No que diz respeito à Lei Rouanet, por exemplo, a afirmação de que grande
parte dos recursos para o financiamento à Cultura está relegada ao controle
dos executivos de marketing das grandes empresas através do incentivo fiscal
é uma verdade parcial, uma vez que aproximadamente 30%3 dessa verba vêm
de empresas estatais como a Petrobras, os Correios, o Banco do Brasil e a Caixa
Econômica Federal. Ao confrontarmos esses dois dados, percebemos que, se no
início de sua gestão o MinC tivesse coordenado conjuntamente com as empresas
estatais seus investimentos em cultura, de modo a ampliar ações estruturantes
do Governo, teriam sido minimizadas algumas distorções que o levam agora a
reformular toda a legislação. Pouco ou quase nada se falou dessa alternativa de
intervenção governamental direta no financiamento à cultura, embora possamos
3
Fonte: Secretaria de Fomento e Incentivo à Cultura – Ministério da Cultura
79
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| Subtexto | Revista de Teatro do Galpão Cine Horto
identificar um aumento de seleções públicas para patrocínios das estatais que
serviram de exemplo, inclusive, para algumas empresas privadas.
Essa mesma omissão se constata na conduta da administração federal em
relação ao Fundo Nacional de Cultura. Hoje, elevado pelo Procultura a estrutura
basilar do fomento, esse mecanismo esteve por oito anos funcionando como uma
“caixa preta” inoperante, sem intervenções realmente significativas do MinC em
sua regulamentação e na democratização do acesso a seus recursos.
Diante desse quadro, numa análise consciente do contexto em que nos
encontramos, seguimos com algumas perguntas que não podemos deixar de fazer
nesse momento de transição de governos e de políticas: estará o MinC preparado
estruturalmente para gerir com eficiência e agilidade as mudanças previstas no
Procultura? Será possível operacionalizar, de forma objetiva e transparente,
os complexos critérios previstos na nova lei? Qual será a ação do MinC para
diminuir a evasão de recursos privados da área cultural que as mudanças na lei
poderão provocar?
Os últimos oito anos da ação do Governo de Minas Gerais na área da Cultura
foram marcados por fases contraditórias. Nos dois primeiros anos do Governo
Aécio, a Secretaria de Cultura simplesmente não operou, ficando jogada ao
esquecimento e à total apatia. Nomeada para assumir a pasta em 2005, Eleonora
Santa Rosa conseguiu, com amplo respaldo do governador, delinear fundamentos
norteadores de uma política pública para a Cultura no estado. Dentre as diretrizes
básicas estabelecidas, ganhou destaque a interiorização não só das ações
diretas da Secretaria, mas também da orientação e distribuição dos recursos. O
acesso aos bens culturais tornou-se mais democrático e ampliou-se o alcance
de diversos programas de fomento a municípios do interior, especialmente
àqueles localizados em regiões economicamente mais pobres, como o Vale do
Jequitinhonha.
Em quatro anos, a Secretaria de Cultura organizou e fortaleceu seus diversos
órgãos vinculados, dando-lhes orientação precisa de atuação pública. A criação
do Fundo Estadual de Cultura, garantido por lei, foi a mais importante e simbólica
conquista dessa gestão. Também foram criados programas de fomento setoriais,
como o Cena Minas e o Música Minas que, somados ao já existente Filme em
Minas, marcaram a atuação do estado no fomento a projetos do segmento
artístico profissional. Os editais públicos desses programas foram elaborados a
partir de discussões com artistas, entidades e movimentos que representavam a
produção contemporânea de cada área. O financiamento desses editais se deu
Teatro e Politica
|
através de uma articulação da política pública desenhada pelo Governo e suas
empresas estatais que, conjuntamente, definiram a distribuição dos recursos de
seus patrocínios. Essa ação articulada contou com a colaboração do MinC em
sua operacionalização e, ainda que por meio do mecenato, deu claramente uma
destinação pública para o dinheiro público, fortalecendo a ação das políticas
culturais do estado e contribuindo para a redução das distorções causadas pelas
leis de incentivo fiscal. Essas e outras estratégias para ampliação do orçamento
da pasta possibilitaram que o investimento em áreas anteriormente colocadas
em segundo plano fosse retomado. Exemplo disso foi a instalação de bibliotecas
públicas em todos os municípios de Minas Gerais e a duplicação do número de
Pontos de Cultura, em parceria com o MinC.
Vale ressaltar, ainda, que o potencial dessa iniciativa deve ser mais explorado pelo
Governo do Estado, através da extensão do mecanismo de seleção pública por
editais também para projetos de empreendedores da sociedade civil. Programas
como CEMIG Cultural e COPASA Cultural podem definir seus patrocinados por
meio de editais públicos alinhados com a política da Secretaria de Cultura e
as demandas dos segmentos artísticos e respaldados por comissões paritárias,
representativas e especializadas.
Infelizmente, entre 2008 e 2010, assumiram o cargo dois outros secretários de
cultura pouco representativos, que fizeram com que essas importantes ações
perdessem parte de seu lastro e não conseguissem avançar. Entre uma série
de equívocos, nesse período, a Secretaria propôs a extinção do percentual de
contrapartida obrigatória das empresas que patrocinam via Lei Estadual de
Incentivo, congelou os recursos destinados ao Prêmio Cena Minas e ameaçou a
realização do Programa Música Minas e do convênio com os Pontos de Cultura,
estes dois últimos fatos revertidos graças a uma grande mobilização do setor.
Outro ponto que não pode deixar de ser registrado é o fato de Minas Gerais ser
um dos três estados brasileiros que ainda não possuem um Conselho Estadual
de Cultura, o que compromete substancialmente a participação e o controle da
sociedade na elaboração e aplicação das políticas para a Cultura no estado.
Em Belo Horizonte, o que se constata é um grande retrocesso, crescente e
preocupante. A cultura da capital mineira vive uma fase crítica, iniciada com a
extinção truculenta da Secretaria Municipal de Cultura. Esse episódio envolveu
o ex-prefeito Fernando Pimentel e vereadores que aprovaram, ao “apagar das
luzes” do ano de 2004, uma reforma administrativa que previa a extinção
dessa Secretaria, transformando-a em Fundação Municipal. Essa manobra
81
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| Subtexto | Revista de Teatro do Galpão Cine Horto
autoritária abriu uma série de crises, desgovernos e paralisações, colocando
a política municipal na contramão do que vinha acontecendo no estado e no
país. Enquanto o Governo Federal dava sinais de comprometer parte de seu
orçamento com o financiamento direto à Cultura, a Prefeitura de Belo Horizonte
extinguia sua Secretaria com o principal argumento de que essa nova estrutura
administrativa possibilitaria a captação de recursos junto à iniciativa privada, via
leis de incentivo.
Teatro e Politica
|
83
data marcada, uma equipe de diretores da Fundação assumiu a coordenação do
evento e, superando as expectativas, conseguiu viabilizar um Festival grandioso,
com uma programação de qualidade. A crise anteriormente instaurada trouxe
renovação ao FIT BH e, o que é mais importante, abriu um canal direto de
comunicação entre artistas e o Poder Público, e a promessa de que esse diálogo
será levado à frente como fundamental para a continuidade desse projeto
garantido por Lei e que tem papel estruturante para o teatro mineiro.
A partir de então, o que se viu foi uma Fundação Municipal de Cultura pouco
atuante, que enfrenta sérios entraves burocráticos e a paralisação de projetos
antigos e bem sucedidos, como o Arena da Cultura, o BH Cidadania e o Arte
Expandida, dentre outros. O decreto que proibiu a realização de eventos
culturais na Praça da Estação e a ameaça à realização da edição de 2010 do
Festival Internacional de Teatro são fatos que ganharam repercussão nacional
e comprovam o descaso da gestão do prefeito Márcio Lacerda com a vocação
cultural da cidade.
foto do Movimento
Praia da Estação
(http://pracalivrebh.
wordpress.com/
- postado em
20/12/2010
Esses dois episódios mobilizaram grande parte do setor cultural em manifestações
públicas de repúdio a tais condutas. O Movimento Praia da Estação levou à
Praça, por finais de semana seguidos, dezenas de manifestantes com roupas e
acessórios de banho, numa espécie de protesto festivo contra a proibição de
eventos no espaço público. A Prefeitura se dispôs ao diálogo e revogou o decreto
imposto, substituindo-o por uma regulamentação de uso da Praça através da
análise de cada evento por uma comissão. Ainda que nesse desfecho a paridade
entre os membros do Poder Público e da sociedade civil nessa comissão não
tenha sido respeitada, o bom senso e a democracia prevaleceram.
Conclusão semelhante se deu no possível adiamento da 10ª edição do FIT BH.
Após uma rápida articulação dos artistas e seu apelo veemente para que a decisão
fosse revista, a Fundação Municipal de Cultura voltou atrás. A poucos meses da
Manifestação de
artistas contra o
cancelamento do
FIT-BH
Ainda que não seja pertinente nos determos nesse assunto, não podemos nos
esquecer de um fato que sela o desrespeito com que a Prefeitura de Belo Horizonte
vem tratando a comunidade e a Cultura desde 2004: o edital de ocupação do
Mercado Santa Tereza. Lançada em 2008, essa seleção pública por meio do
voto popular envolveu diversas entidades e instituições culturais, dentre elas o
Galpão Cine Horto, que apresentaram projetos de revitalização desse importante
equipamento, fechado há alguns anos. Durante o pleito, diversas suspeitas de
fraudes e manipulações foram constatadas, levando o Ministério Público a
paralisar todo o processo e iniciar uma investigação. Desde então, a Prefeitura
não voltou a público para dar explicações e se justificar perante os milhares
de cidadãos que confiaram no sistema de votação, o mesmo do “festejado”
orçamento participativo digital. Mais um tema diretamente ligado à Cultura da
capital mineira que segue sem conclusão ou mesmo sem um pronunciamento
público da administração municipal.
84
| Subtexto | Revista de Teatro do Galpão Cine Horto
Finalmente, numa análise ainda mais genérica da ação dos governos nas
três esferas, durante esse período, concluímos que uma maior mobilização e
participação da sociedade civil foi fator determinante para que as políticas
públicas para a cultura emergissem e se tornassem pautas de discussão. Em
alguns casos, por interesse de ambos e, em outros, à revelia de governantes que,
a contragosto, tiveram que dialogar, frente a pressões de movimentos sociais
reivindicatórios. O que ainda se constata, porém, é a fragilidade histórica das
bases sobre as quais se assentam os pilares das políticas públicas para a cultura
brasileira, que ainda dependem da vontade pessoal de gestores dos governos.
A ausência de programas específicos para a Cultura no projeto governamental
da maioria dos partidos políticos revela a vulnerabilidade da área, fazendonos reféns de conveniências momentâneas. O antagonismo radical relatado na
atuação do PT no Governo Federal e no município de Belo Horizonte, ou ainda as
condutas tão díspares dentro do governo de um mesmo partido como o PSDB em
âmbito estadual são desdobramentos naturais dessa preocupante negligência
com a importância da Cultura na gestão pública. Findo o último pleito eleitoral,
constatamos um descaso generalizado com o tema, que não foi abordado nos
discursos ou debates públicos por nenhum dos candidatos aos mais importantes
cargos do executivo e do legislativo. Mais uma vez, ficou patente a falta de
compreensão, por parte desses candidatos, do quanto a Cultura está vinculada
à melhoria da qualidade de vida e da educação da população brasileira,
fundamentais para avançarmos rumo a um país mais desenvolvido e sustentável.
Considerando esse contexto instável, é necessário reconhecer o quão fundamental
tem sido a militância de artistas e produtores para que a política pública cultural
se mantenha na pauta prioritária dos governantes. Ainda que incipiente e, na
maioria das vezes, inconstante, essa mobilização vem sendo responsável por
grande parte dos avanços na área, ou mesmo pela neutralização de interesses
que poderiam levá-la a retrocessos. Infelizmente, porém, ao longo dos últimos
anos, testemunhamos importantes iniciativas serem destruídas pela incapacidade
de articulação e pela ausência de uma visão mais ampla do segmento artístico
que, por uma nociva “partidarização” de interesses, rapidamente se desmobiliza.
Acreditamos que a maior contribuição que nós, artistas e gestores, temos a
oferecer nesse processo de construção de políticas públicas seja uma melhor
organização em torno de um projeto democrático para a cultura nacional.
Teatro e Politica
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Cultura:
hora de pensar a cadeia produtiva como um todo
Romulo Avelar1
Que a produção cultural brasileira vem ganhando uma nova dinâmica não é
nenhuma novidade. As velhas fórmulas de sucesso levadas à exaustão pelas
engrenagens da indústria cultural aos poucos cedem lugar a um modelo mais
plural, em que se multiplicam oportunidades e se torna cada vez mais possível
a emergência de iniciativas locais. A cultura ganha vigor, e não mais apenas nas
grandes capitais. O crescimento e a descentralização dos recursos destinados ao
setor são marcha sem volta.
Entretanto, se o momento é positivo e favorável ao surgimento de experiências
bem-sucedidas pelos quatro cantos do país, a manutenção de grupos e
entidades culturais e a continuidade de suas iniciativas permanecem como
enormes desafios para seus produtores e gestores. Os editais de financiamento
se multiplicam, os recursos começam a irrigar a área e os resultados se tornam
aos poucos mais visíveis, mas a profissionalização efetiva ainda é uma realidade
distante da grande maioria daqueles que se aventuram por esse caminho. Os
empreendedores culturais brasileiros vivem aos sobressaltos, obrigados a conviver
com o fantasma da descontinuidade e com a incômoda sensação de “fim de
linha” a cada resultado de edital, a cada reunião de negociação de patrocínio.
Como então explicar essa situação paradoxal que combina indicadores positivos
com sinais de forte instabilidade?
Uma primeira e óbvia resposta para essa questão está na maneira historicamente
descuidada com que as instâncias públicas quase sempre trataram a cultura no
Brasil. Está na ausência de políticas claras, na adoção de modelos concentradores
e conservadores e na resistência dos governos, sejam eles de direita ou de
esquerda, em considerá-la como área estratégica. Tudo isso aliado à própria
desarticulação do meio, que teima em atuar de maneira fragmentada, pautado
por diferenças e até mesmo por vaidades.
É claro que não se pode desconsiderar os avanços significativos que vêm ocorrendo,
tanto na esfera das políticas quanto na representatividade dos profissionais da
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Produtor e gestor cultural, consultor de diversos grupos e entidades culturais
e assessor de planejamento do Grupo Galpão e do Grupo do Beco. Nos últimos anos,
tem ministrado cursos nas áreas de produção, planejamento e gestão cultural, em várias
cidades brasileiras. Autor do livro “O Avesso da Cena: Notas sobre Produção e Gestão
Cultural”.
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cultura. Os últimos anos foram de grandes articulações pela construção de um
modelo mais justo e eficaz para o setor, num processo de amadurecimento que,
embora não tenha a velocidade que desejaríamos, é claramente perceptível. No
entanto, é necessário admitir que ainda são grandes os desafios a serem vencidos
até que tenhamos melhores condições de trabalho nesse campo. Quanto mais
se afasta dos grandes centros urbanos, maior a dificuldade daqueles que atuam
na área em identificar um fio de meada para a costura de um trabalho mais
profissional. A criação acontece com espontaneidade e, em muitos casos, com
bastante originalidade, mas perde em força, com frequência, pela carência de
referências técnicas e estéticas. Artistas, grupos e instituições culturais, alheios
também a uma série de parâmetros básicos do campo da gestão, empreendem
grandes esforços de criação e produção, mas com resultados muitas vezes
frustrantes.
A cultura tropeça no amadorismo e na falta de informação, seja nas capitais
ou no interior. Além disso, ressente-se pela fragilidade de alguns elos de sua
cadeia produtiva. Definitivamente, não há como pensar em sustentabilidade para
um setor obrigado a conviver com pontos vulneráveis e sempre prestes a se
romper quando submetidos ao menor esforço. O pior é que boa parte daqueles
que trabalham na área tem baixa percepção da urgência de fortalecer tais
pontos. No âmbito da cultura, ainda persiste certa tendência a visualizar apenas
a área finalística, ou seja, os produtos finais e os responsáveis diretos por sua
concepção. Essa ênfase excessiva naquilo que é levado aos olhos e ouvidos do
público é até compreensível, na medida em que o trabalho de criação representa
a própria essência do setor. No entanto, é imprescindível identificar e conferir o
devido valor a outros elos menos visíveis, mas essenciais para a viabilização de
carreiras sustentáveis e, em última instância, para a construção de um cenário
cultural mais vigoroso no país.
Entre os elos notadamente fracos é possível citar a debilidade da infraestrutura
cultural dos municípios brasileiros, a baixa qualidade de parte expressiva
dos serviços prestados por fornecedores de toda sorte, a dificuldade para a
formação de plateias e a falta de canais adequados para a distribuição, em
um país de dimensões continentais. Apenas um olhar sobre tais fatores e seu
enorme potencial de desestabilização é o bastante para que se compreenda o
descompasso da cena brasileira.
Sem dúvida, as questões elencadas até aqui guardam enorme complexidade e
demandam soluções imediatas do Poder Público, da própria classe e da sociedade
como um todo. Entretanto, é preciso perceber que existe um aspecto ainda
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mais relevante e urgente nesse contexto. Um ponto vem recebendo tratamento
inadequado no Brasil, a despeito de sua incrível capacidade de gerar impactos
em toda a cadeia produtiva: a questão da capacitação. Viajando por esses
interiores, é possível constatar a ocorrência de certa letargia motivada pela
absoluta falta de conhecimentos nas diversas áreas do fazer artístico-cultural.
Existem lacunas impressionantes na formação de artistas e técnicos, o que faz
com que os resultados levados ao público tenham, muitas vezes, níveis colegiais.
No entanto, é nas áreas-meio que o problema se torna mais agudo. A carência
de informações nos campos da produção e da gestão é algo preocupante. Grande
parte das vezes, as iniciativas no mundo da cultura acontecem “na marra”, após
longa peregrinação de seus executores em busca de recursos, passando o pires
entre os empresários locais e recolhendo donativos classificados equivocadamente
como patrocínios. O desconhecimento dos canais de financiamento, a falta de
noções de como elaborar um projeto e a pouca habilidade para a captação são
limites concretos a serem transpostos.
O amadorismo, porém, não se restringe aos procedimentos de busca dos recursos.
A gestão dos projetos e do cotidiano das instituições também ocorre, muitas
vezes, de maneira precária. Na verdade, os profissionais da cultura ainda não se
apropriaram de uma série de ferramentas essenciais do campo da administração,
como o planejamento estratégico, a gestão financeira, a logística e a gestão
da qualidade, entre outras. O manejo adequado dessas ferramentas de gestão
poderia significar um grande salto de qualidade para o meio, mas permanece
como algo impensável para muitos daqueles que nele atuam. Um bom exemplo
disso é a dificuldade que muitos artistas, produtores e gestores têm de trabalhar
com planejamento, tanto de seus projetos quanto de sua própria carreira.
Metodologias de planejamento estratégico, por exemplo, há muito presentes
no ambiente empresarial, são praticamente estranhas à área. Esse fato talvez
explique a paralisia e a falta de rumos que afetam a vida de muitos grupos e
entidades culturais brasileiros.
Talvez esteja aqui um dos grandes desafios das instâncias culturais públicas
no Brasil, seja no plano federal, estadual ou municipal: formar gestores. Uma
iniciativa de porte nesse sentido foi implementada com sucesso pelo Ministério
da Cultura do México há alguns anos, mas permanece sem similar por aqui. Diante
do despreparo que impera nos bastidores da cultura brasileira, é imprescindível
que o Poder Público tome para si a responsabilidade por tal empreitada. As
secretarias e fundações estaduais e municipais, assim como o próprio Ministério,
precisam acordar para essa necessidade premente. É importante que tenhamos
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profissionais tecnicamente capacitados para buscar os recursos, geri-los de
maneira eficaz e ordenar o ambiente das organizações culturais, mas também
devidamente sensibilizados para reconhecer e valorizar a riqueza presente à sua
volta. Precisamos de pessoas aptas a desencadear pequenas revoluções em seu
universo imediato, a captar, processar e difundir informações para o benefício de
suas comunidades.
procedimentos restritivos como esses, muitas vezes de forma descuidada, é
neutralizar a intenção do incentivo à cultura e tratar o setor com um desrespeito
que não encontra paralelos em outras áreas merecedoras de incentivos
governamentais. Será que os produtores agrícolas beneficiados, por exemplo,
aceitariam entregar sua produção gratuitamente à população e prosseguir na
dependência total do Governo? Isso seria justo e produtivo?
No processo de formação de gestores, outra premissa importante deve ser
considerada: é necessário pensar a cultura numa perspectiva sustentável, como
forma de combater o vício da eventualidade que impera entre nós. A vida dos
artistas, grupos e instituições culturais ainda é regida por ações de caráter
efêmero e, quando muito, por ciclos de trabalho anuais. A cultura no Brasil
permanece limitada à dimensão do evento, do transitório. Muito pouco se fala
de planejamentos plurianuais, de projetos de manutenção e de continuidade.
Situações como essas expõem, mais uma vez, a fragilidade do elo capacitação.
Por todo o país, é notável a carência de gestores públicos aptos a lidar com
as engrenagens burocráticas, mas também capazes de avaliar previamente os
impactos de suas decisões administrativas sobre o meio. Infelizmente, grande
parte dos cargos-chave em nossas instâncias culturais públicas continua a ser
ocupada por pessoas estranhas ao metier ou sem nenhuma experiência do outro
lado do balcão. Isso sob os olhares resignados de uma classe desmobilizada.
O próprio Ministério da Cultura, até muito recentemente, esteve alheio à urgência
de se estabelecerem políticas e práticas que favoreçam a sustentabilidade. Por
mais de duas décadas, os projetos de manutenção foram tratados sem nenhuma
distinção em relação àqueles voltados à produção de eventos. No âmbito da
Lei Federal de Incentivo, por exemplo, por muito tempo foi negada a aprovação
de determinadas rubricas dos projetos, sob a justificativa vaga de se tratarem
de “despesas de responsabilidade do proponente”. Esse procedimento obrigava
os artistas, grupos e entidades culturais a esgotarem suas reservas, inclusive
aquelas provenientes de vendas de produtos e ingressos, ao final de cada ciclo
anual. Os proponentes eram pressionados a gastar com o projeto aprovado todos
os recursos captados de outras fontes, diga-se de passagem, a duras penas, como
se fosse pecado buscar alguma estabilidade financeira com a criação de um
fundo de reserva.
O tom crítico destas linhas, longe de se caracterizar como mais um manifesto
ácido e pouco propositivo, visa a trazer para a roda alguns pontos de vista
sobre temas importantes para o universo cultural brasileiro, num momento de
renovação da cena política brasileira.
Instabilidade maior é impossível, certo? Errado. A coisa pode ser ainda pior. O
equívoco ganhou proporções mais sérias quando começaram a surgir mecanismos
de incentivo municipais e estaduais que, a pretexto de defesa do interesse
público, passaram a impedir a comercialização de produtos realizados com os
recursos repassados aos proponentes. Ao proceder dessa maneira, as secretarias
e fundações de cultura condenaram de vez os empreendedores a se tornarem
escravos de tais mecanismos. Aos artistas é negado o direito legítimo de buscar
a consolidação de sua carreira por meio da venda direta de seus produtos ao
público. Naturalmente, é fundamental que os governos estabeleçam regras
que garantam a correta aplicação dos recursos e acessibilidade àquilo que foi
produzido por intermédio dos instrumentos de financiamento. Entretanto, adotar
A cultura é um direito constitucional do
cidadão e precisa ser tratada como tal. Além
disso, é um recurso econômico inesgotável
que pode render cada vez mais ao país. A
consolidação do setor passa necessariamente
por uma atuação responsável dos governos,
por meio de investimentos na cadeia
produtiva como um todo, e não apenas
em seus elos mais visíveis. Há que se
pensar mais seriamente em instrumentos
e políticas que favoreçam a continuidade
do trabalho de artistas, grupos e entidades
por todo o país, e não apenas a proposição
de ações efêmeras. Nesse sentido, é
necessário buscar o rompimento de certas
amarras burocráticas, de forma a permitir
o financiamento a planos plurianuais de
manutenção de entidades culturais de
caráter relevante para a sociedade.
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Entretanto, é na questão da formação que precisamos apostar a maior parte das
nossas fichas. As discussões de políticas para a cultura ora em curso no Brasil
somente resultarão em avanços significativos quando houver, nos municípios,
pessoas conectadas com o mundo e, a partir de bases técnicas seguras,
capacitadas para atuar pela transformação da realidade à sua volta.
Artigo publicado originalmente na edição de nº 4 do periódico cultural Letras.
Ficha Técnica
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Ficha Técnica
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Equipe Galpão Cine Horto
Direção geral: Chico Pelúcio
Conselho gestor: Beto Franco, Chico Pelúcio, Leonardo Lessa, Lydia Del Picchia e
Romulo Avelar
Coordenação geral: Leonardo Lessa
Coordenação de planejamento e projetos: Fernanda Werneck
Assistente administrativo: Vanessa Fonseca
Assistente de planejamento: Christina Ribeiro
Coordenação de produção: Fernanda Magalhães
Produção executiva: Gustavo Ruas e William Gomes
Coordenação Técnica: Bruno Cerezoli
Técnicos: Orlan Torres (Sabará) e Rodrigo Marçal
Assistente técnico: Wellington Santos
Estagiário técnico: Henrique Sousa
Coordenação do Centro de Pesquisa e Memória do Teatro (CPMT): Luciene Borges
Bibliotecária do CPMT: Fernanda Christina da Costa
Estagiário do CPMT: Tiago Carneiro
Estagiário do portal Primeiro Sinal: Marcus Vinícius Souza
Direção pedagógica: Lydia Del Picchia
Coordenação pedagógica dos núcleos de pesquisa: Kenia Dias
Coordenação pedagógica dos cursos e oficinas: Ana Domitila
Secretária de cursos: Cláudia Rodrigues
Núcleo pedagógico: Gláucia Vandeveld, Juliana Martins, Kelly Crifer, Kenia
Dias, Manuela Rebouças, Reginaldo Santos e Tarcísio Ramos
Coordenação do projeto sócio-cultural Conexão Galpão: Reginaldo Santos
Atores-monitores: Camila Morena, Dayane Lacerda e Hugo Araújo
Gerência administrativa e financeira: Maria José dos Santos
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Ficha Técnica
Auxiliar administrativo: Leandro Dias
Equipe Grupo Galpão
Gerência operacional: Rose Campos
Recepcionista: Cláudia Maria
Porteiro: Eberton Pereira
Segurança: Odelmo Marques da Silva Júnior
Serviços gerais: Juarez Pereira, Maria Márcia e Rozeli Dias
Assessoria de comunicação: Tiago Penna
Assistente de comunicação: Caio Otta
Fotografia: Guto Muniz / Casa da Foto
Programação Visual: Otávio Santiago
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Atores Antonio Edson
Arildo de Barros
Beto Franco
Chico Pelúcio
Eduardo Moreira
Fernanda Vianna
Inês Peixoto
Júlio Maciel
Lydia Del Picchia
Paulo André
Rodolfo Vaz
Simone Ordones
Teuda Bara
Coordenação de Produção Gilma Oliveira
Consultoria em Planejamento Romulo Avelar
Assessoria de Planejamento Ana Amélia Arantes
Assessoria de Comunicação Paula Senna
Produção Executiva Beatriz Radicchi
Produção Executiva Evandro Alves
Iluminação e sonorização Alexandre Galvão
Iluminação Wladimir Medeiros
Cenotécnica Helvécio Izabel
Sonorização Vinícius Alves
Gerência Administrativa Arlene Marques
Auxiliar Administrativo Andreia Oliveira
Estagiários de comunicação Ana Alyce Ly e João Luis Santos
Recepção Gabrielle Silva
Serviços Gerais Marlene Oliveira
Auxiliar de Serviços Gerais Elton John
Patrocínio Exclusivo PETROBRAS
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