Revista Subtexto nº 07 (2010)
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Revista Subtexto nº 07 (2010)
Os desafios da dramaturgia contemporânea brasileira: formação, criação e processo colaborativo O autor no grupo teatral | Rafael Martins 13 Fragilidade e força: reflexões sobre criação e formação dramatúrgica no Brasil hoje | Márcio Abreu 23 Dramaturgia em colaboração: por um aprimoramento Adélia Nicolete 33 Dramaturgia colaborativa: notas sobre o aprendizado da desmedida no teatro brasileiro | Kil Abreu 41 Galpão em Foco Sobre escrever um livro e a busca de sentido do teatro | Eduardo Moreira 49 Cine Horto em Foco Núcleos de Pesquisa do Galpão Cine Horto: a teoria na prática | Lydia Del Picchia 57 Núcleos de Pesquisa do Galpão Cine Horto: uma experiência inventiva | Kenia Dias 63 Grupo Teatro Invertido: representação e publicação Sara Rojo 69 Teatro e Política Políticas Públicas para a cultura: um olhar panarâmico sobre o Brasil, Minas Gerais e Belo Horizonte | Chico Pelúcio e Leonardo Lessa 77 Cultura: hora de pensar a cadeia produtiva como um todo | Romulo Avelar 85 expediente editorial SUBTEXTO – REVISTA DE TEATRO DO GALPÃO CINE HORTO – No.7 – ISSN 1807-5959 Em 2010, Galpão Cine Horto completou 13 anos de existência comprometidos em inventar e reinventar caminhos que possibilitem o desenvolvimento do teatro como ação importante para construção de uma sociedade mais humana e justa. Para vencer nossos desafios sempre buscamos unir formação com criação, processos com espectador, informação com difusão das artes cênicas, fomento com profissionalização, produção com financiamento, encontros com parcerias e parcerias com redes de colaboração. COORDENAÇÃO EDITORIAL: Luciene Borges JORNALISTA RESPONSÁVEL: Luciene Borges (MG 09820 JP) CONSELHO EDITORIAL: Chico Pelúcio, Fernando Mencarelli e Leonardo Lessa COLABORADORES DESTA EDIÇÃO: Adélia Nicolete, Chico Pelúcio, Eduardo Moreira, Kenia Dias, Kil Abreu, Leonardo Lessa, Luis Alberto de Abreu, Lydia Del Picchia, Marcio Abreu, Rafael Martins, Romulo Avelar e Sara Rojo REVISÃO ORTOGRÁFICA: Rachel Murta DIAGRAMAÇÃO: Otávio Santiago Rafael Martins: p.14, 19 / Rafael Escócio: p.15, 17, 20, 37 / Guto Muniz: p. 25, 29, 46, 58, 59, 60, 61, 63, 65, 66, 72 / Roberto Áudio: p. 34 / Elaine Perli: p. 35 / Vanderlei Bernardino: p. 38 / Marcelo Lipiane: p: 43 / Lenise Pinheiro: p. 44 / Pedro Motta: p. 50 / Thiago Sabino - p. 70 / Marco Aurélio Prates - p. 71 / Assim, o Galpão Cine Horto se transformou em uma passagem para muitos grupos de teatro que se constituíram em Belo Horizonte ou para grupos de outros Estados que transitam pela cidade. Através de nossos projetos ou de nosso teatro multi-meios, artistas e coletivos teatrais têm encontrado espaço para suas experimentações, compartilhamento e apresentações de seus espetáculos que sempre resultam em encontros férteis com parceiros e público em geral. Nossa atuação vai além das fronteiras de Minas Gerais e hoje atinge, de forma descentralizada, vários estados do Brasil. Criada há sete anos, a publicação da revista Subtexto tem sido uma iniciativa importante para discussão de temas pertinentes que acreditamos afetar a cena teatral brasileira. E a sétima edição não foge a regra. Ao elegermos a dramaturgia contemporânea como foco dessa edição da revista, o fazemos por constatar que nela reside a fragilidade de boa parte dos espetáculos produzidos ultimamente pelos grupos, especialmente, por aqueles que mergulham no processo colaborativo de criação. Centro de Pesquisa e Memória do Teatro / Galpão Cine Horto Rua Pitangui, 3613 – Horto | 31.030-065 Belo Horizonte – Minas Gerais – Brasil | Tel. +55 31 3481 5580 www.galpaocinehorto.com.br/galpaocinehorto_cpmt.php | centro de pesquisa@ galpaocinehorto.com.br A Revista Subtexto é uma publicação independente. Todas as opiniões expressas nos artigos são de responsabilidade exclusiva dos autores. TIRAGEM 2.000 exemplares IMPRESSÃO Gráfica Formato DEZEMBRO DE 2010 Segundo Aimar Labak, “não basta criar um projeto, mas estar preparado para responder à demanda e os desdobramentos posteriores que ele gera”. O Galpão Cine Horto tem um papel relevante na difusão e experimentação do processo colaborativo em Minas Gerais e por isso, focamos essa questão na sessão principal da revista como forma de contribuir com a continuidade da reflexão entorno desse tema. Assim, convidamos artistas e pesquisadores como Luis Alberto de Abreu, Adélia Nicolette, Rafael Martins, Kil Abreu e Márcio Abreu para abordarem a questão da dramaturgia contemporânea no Brasil, sob diferentes perspectivas: criação e formação, dramaturgia e grupo, dramaturgia no processo colaborativo. Não podemos nos furtar também de participar do debate sobre as recentes mudanças nas políticas de fomento à cultura. Na seção Teatro e Política, o artigo de Chico Pelúcio e Leonardo Lessa faz uma análise das políticas públicas nas três esferas de governo nos últimos oito anos e tenta estabelecer um panorama sobre a atual situação dos mecanismos disponíveis para a produção cultural nessas esferas. A profissionalização e organização da cadeia produtiva da cultura também é motivo de uma criteriosa análise no texto de Romulo Avelar, respeitado especialista mineiro em gestão e produção cultural. A seção Cine Horto em Foco traz dois artigos, de Lydia Del Picchia e Kenia Dias, sobre uma nova vertente de atuação do centro cultural, em franca expansão: os Núcleos de Pesquisa, que promovem formação e experiências práticas em diversas áreas adjacentes ao teatro: figurino, cenografia, iluminação, dramaturgia, produção, sonorização, jornalismo cultural e teatro para educadores. Essa seção apresenta também a resenha produzida pela professora Sara Rojo sobre o livro Cena Invertida – Dramaturgias em Processo, do Grupo Teatro Invertido lançado pelo selo Edições CPMT. Com essa publicação, o selo do Centro de Pesquisa e Memória do Teatro do Galpão Cine Horto inaugura as produções em parceria e reafirma seu compromisso com a preservação e difusão da dramaturgia brasileira. Outra publicação realizada em parceria é objeto da seção Galpão em Foco: o recém-lançado livro Grupo Galpão – Uma História de Encontros, de Eduardo Moreira, co-editado pela Duo Editorial. Neste artigo o próprio autor relata o processo e as inquietações que geraram a publicação, na tentativa de recompor o fio da memória e encontrar o sentido do teatro. Essa edição da Subtexto chega a público acompanhada da nova Coleção dos Cadernos de Dramaturgia do Galpão Cine Horto, dedicada ao projeto Cine Horto Pé na Rua, que traz seis textos originais produzidos para o teatro de rua, além de ensaios reflexivos sobre o processo de criação dos espetáculos e suas dramaturgias. O CPMT ainda reinaugura o portal Primeiro Sinal, que entra 2011 de cara nova, reestruturado, mais dinâmico e interativo. Acesse www. primeirosinal.com.br , cadastre seu grupo, escola ou espaço e faça parte da comunidade associada ao portal de teatro do Galpão Cine Horto. Com estas iniciativas fechamos um ciclo de ações que, esperamos, possam contribuir para a ampliação do conhecimento e do debate sobre teatro. Registramos também aqui um grande desejo para 2011: que possamos retomar o seminário Subtexto em Diálogo, inaugurado na 6ª edição da Subtexto, e que antecede a elaboração dos artigos da sessão principal. Boas leituras! Equipe do Galpão Cine Horto Os desafios da dramaturgia contemporânea brasileira: formação, criação e processo colaborativo 13 O autor no grupo teatral Rafael Martins1 Neste momento em que vários coletivos se formam pautados por novas referências e pela reorganização das antigas, o sentido do teatro vem sendo rediscutido, bem como seu posicionamento diante do mundo. A teoria se movimenta na busca de apreender e questionar a recente prática dos grupos, com suas possíveis novidades. Através de motes como a “dramaturgia do ator” ou o “esfacelamento do drama”, a discussão paira com frequência sobre o texto. A atual produção de textos nos grupos de teatro do Brasil é alvo de opiniões divergentes. Enquanto alguns creditam à fragilidade técnica dos autores uma certa “crise do teatro”, outros veem nos textos recentes uma base forte de provocação e subversão. Para além das discordâncias e das metamorfoses que os textos vêm passando, percebo a urgência de repensarmos o sentido dos autores teatrais dentro dos grupos. Antes de mergulharmos no assunto, deixo claro que nada do que exponho deve ser entendido como verdade única. Há uma infinidade de grupos com formas distintas de organização e criação. Alguns trabalham com textos fechados (ou abertos a pequenas modificações, apenas). Outras companhias possuem uma relação hierárquica muito bem esclarecida, em que há um dono e os demais artistas trabalham como contratados. Além dessas, existem outras realidades específicas de coletivos que possuem o autor na equipe, mas trabalhando em moldes diferentes do que irei abordar. Tratarei de grupos nos quais todos os membros sejam igualmente donos ou que se proponham a relações de igual para igual entre todos os artistas que o compõem. E que estejam abertos ao processo colaborativo, tendo um autor disponível, é claro. Através destas linhas, espero dividir um pouco do que tenho vivenciado, na esperança de ser útil a outros autores e grupos. Portanto, abordarei o assunto de uma perspectiva mais prática que teórica: a do artista. A de um autor que também é ator (exerço, às vezes, as duas funções no mesmo espetáculo), que 1 Ator e dramaturgo. Fundador do Grupo Bagaceira de Teatro e da Companhia Vão de Teatro. Autor do livro “Lesados e outras peças”. 14 | Subtexto | Revista de Teatro do Galpão Cine Horto costuma escrever em processo colaborativo e que também já experimentou este tipo de processo como convidado de outros grupos, dos quais não faço parte. Espetáculo En Passant - Companhia Vão de Teatro O exercício como ator desde a infância, muitos anos antes da escrita do primeiro texto, me trouxe percepções fundamentais e um olhar “de dentro” para os entraves dos atores com os textos que depois comecei a escrever. Facilitou-me, e muito, a relação com os atores e encenadores. Assim como diversos autores da minha geração, eu não me aproximei da realidade de grupo. Eu já estava lá. Por outro lado, pude perceber, à custa de tropeços, que o conhecimento de ator não me dava tudo. Era importante adquirir noções universais de dramaturgia. E eu não as tinha sequer para contestá-las. Comecei a suprir minha deficiência sem jamais me desvincular das práticas de escrever e atuar. Por já ser “gente de teatro”, tive a oportunidade de ver meus primeiros textos concretizados em montagens, quase sempre participando e contribuindo. Gradualmente, fui me interessando em ampliar essa relação entre autor e grupo, indo além dos retoques na estrutura dramatúrgica e me aproximando do que muitos chamam de processo colaborativo. O processo colaborativo se diferencia do coletivo por haver distinção das funções, mas conserva o espírito de troca, no qual todos são levados em consideração. Vale ressaltar que o colaborativo, tal como vislumbro, não significa processo solto. Demanda conhecimentos e habilidades específicas do autor, como também 15 são necessárias ao ator e ao diretor, por exemplo. Por estar aberto às influências de tanta gente, o autor deve ser hábil o suficiente para transitar pelo maior número possível de técnicas e conhecimentos. Trata-se de um cultivo individual e eterno. Soma-se a isso a capacidade de compreensão humana, de sensibilidade no contato e, sobretudo, de contemplar as divergências, harmonizando-as no texto. Livre de rótulos e limitações, o autor se dispõe a sair da comodidade, buscando seu potencial e trazendo com ele todo o grupo. Quem viveu experiências em grupos teatrais sabe que, muitas vezes, podemos entrar num estado de passividade criativa, em que nós, artistas, sequer percebemos ou admitimos estar. Ficamos à espera de um líder ou mentor criativo (o diretor ou seja lá quem), que trará as ideias para a discussão, seus interesses para a próxima montagem etc. Os outros, vazios de propostas, debatem e contribuem com as que foram trazidas por uma única pessoa. É como se houvesse uma hierarquia sigilosa da criatividade. Geralmente isso não se cria de maneira arquitetada ou mal-intencionada. Trata-se de uma relação que vai se construindo de maneira imperceptível. Nessa hierarquia, o ator muitas vezes se contenta em executar as ideias artísticas que lhe chegam. Criar, muitas vezes, se reduz ao ato mecânico de montar o próximo espetáculo. Numa rotina automática, o ator se desinteressa por tudo que não diga respeito à sua função específica, alienando-se assim do sentido da obra. O espetáculo, ao invés de afirmar o ator como gente, o deixa de fora, não lhe diz respeito. Com Espetáculo InCerto Grupo Bagaceira de Teatro 16 | Subtexto | Revista de Teatro do Galpão Cine Horto o passar do tempo, esse já não se sentirá mais capaz de conceber, mantendo uma relação parasitária com o mentor artístico do grupo, do qual vê surgirem as ideias interessantes. O trabalho, que deveria representar o sentido do grupo, muitas vezes lhe contradiz, chegando a negar seu discurso e suas ideologias. Por submissão ou mesmo admiração incondicional, a saudável discordância cede lugar ao silêncio, prejudicando a visão dialética da obra. Muitas vezes o artista consegue enxergar em outros grupos esse sistema alienante, mas raramente no seu. Por sentir-se incapaz de exercer sua autonomia, ele se acomoda e inventa desculpas para si, julgando-se exceção. 17 ideia é tão boa para que o outro não reprove. Nada se promove. Processo com entrave. Processo cansado de bater na trave. Caso grave. Situação urgente. Guerra mais quente do que fria. Adeus diplomacia. Tentamos ser otimistas. Propus ao grupo uma série de entrevistas. Quem é você? O que quer dizer? Qual é o seu problema? Qual é o seu momento? O que você tem visto? E lido? E sofrido? Está resolvido? Como se vê no grupo? Como se vê no mundo? Como se vê na arte? Voou resposta por toda parte. Se não duvidar, tem resposta que foi bater em Marte.” (Trecho de InCerto, Grupo Bagaceira de Teatro, 2010 ). Em outros casos, não se sentindo contemplado ou compreendido inteiramente, o ator compartimenta seu trabalho, dividindo-se entre dois ou mais grupos, além de projetos independentes e outras atividades (não estou abordando aqui o fator financeiro, que muitas vezes se soma a isso). Com horários e trabalhos compartimentados, o ator insatisfeito reduz todas as suas expectativas pelo grupo e o abandona, ou simplesmente vai levando, trabalhando de forma apática até o dia de um conflito maior. Daí vem a minha proposta para o autor de teatro de grupo. Caberá a ele, como um coletor de material humano, a função de questionar, sacudir o pensamento do coletivo, colocar as convicções artísticas de todos (inclusive as suas) à prova. Provocar nos artistas uma busca que vai desde o sentido da montagem até o de suas próprias vidas. Possibilitar, a cada membro, um contato profundo consigo mesmo, para que isso resvale na construção da peça e, futuramente, no contato com o público. Por isso, a responsabilidade do autor se agiganta ao captar as inspirações de todos e filtrá-las artisticamente. Compreendendo o grupo como o cerne de sua inspiração, o autor perceberá a complexidade de seu trabalho. Uma pessoa já representa um conjunto imenso de especificidades, histórias, gostos e sentimentos. Imagine então um conjunto de pessoas em constante trânsito afetivo (na acepção de Espinosa). Muitas das complexidades desse tipo de processo estão retratadas no espetáculo InCerto: “Dois mil e oito. Turbulência e todo mundo afoito. Muita briga e nenhum coito. Relações em crise, situações em reprise. Começo de dois mil e nove. Nenhuma O autor precisa ter consciência do desafio que o espera e elaborar seu próprio método na lida com o grupo. Pertencer ao coletivo ou participar como convidado lhe exigem abordagens diferentes, mas igualmente difíceis. A qualidade do material de trabalho dependerá da capacidade de desarmar a si e aos outros, tirando de cada um as sinceridades mais secretas. Entrevistas particulares, experimentos cênicos livres, conversas coletivas, tudo pode ser feito, de acordo a situação. Registro do processo de criação do espetáculo InCerto Grupo Bagaceira de Teatro 18 | Subtexto | Revista de Teatro do Galpão Cine Horto 19 Abolido de preconceitos, o autor deverá se interessar por cada indivíduo, suas histórias pessoais e suas experiências artísticas, pesquisando sobre referências mencionadas e buscando o significado que o teatro adquire na vida daquela pessoa. O mais importante não são as respostas prontas, mas os caminhos tortuosos do pensamento perante a incerteza. Nesse período, o autor deve alimentar-se também das propostas práticas que surgem, como improvisações e exercícios curtos (sem compromisso com o formato final da montagem). Um processo como esse exige tempo e reflexão, não podendo se submeter às leis da urgência. Novas atividades surgirão naturalmente, propostas por um ator, diretor, autor ou seja quem for. No colaborativo, pouco importa a autoria da ideia. Apesar das funções distintas, existe uma confusão benéfica de onde começa o trabalho de um e termina o do outro. A verdadeira colaboração pede liberdade e intensa atividade de todos. Desacomoda, muda rotas de vida, levanta questões antes silenciadas e pode fazer brotar sinceridades individuais incômodas a outros membros do grupo. Em casos extremos, chega a modificar relações pessoais e de trabalho, podendo culminar com a saída de membros para a formação de outro coletivo, ou mesmo com a dissolução do grupo. É um risco que se corre, devido às reorganizações internas. Mas de que valeria ser grupo, sem essas reorganizações? O processo colaborativo não inventa tais crises. Pelo contrário: ele é muitas vezes fruto delas. A preparação para a escrita de um texto teatral pode levantar questões em todos os âmbitos, suscitar acontecimentos potencialmente políticos que certamente influenciarão no texto a ser escrito, na obra encenada e na visão artística do grupo. Com o coletivo em ebulição e um farto material fisgado, o autor poderá começar a escrever, dividindo suas inquietações com o grupo e solicitando apoio. Caso seja preciso, o autor poderá se afastar por alguns dias sem grandes prejuízos. A enorme quantidade de informações poderá se tornar desesperadora. O autor precisa ter em mente que a obra será uma síntese do que paira em comum a muitos do grupo. Nessa hora, a técnica é fundamental para que não se enfie tudo como numa passarela de temas e propostas desconexas. A obra deverá harmonizar pontos divergentes, dialéticos. Mas tem de haver um senso estético do autor para que, em vez de uma peça, não tenhamos a mera enumeração do que foi levantado durante o processo. No período de escrita, enquanto novas páginas são criadas, as anteriores já estão sendo discutidas e experimentadas por um grupo que, a essa altura, tem plena Espetáculo En Passant - Companhia Vão de Teatro consciência do que quer. Depois dos incômodos, uma reacomodação benéfica se instaura. É o consenso: palavra que só existe depois que as diferenças são assumidas. O processo colaborativo, ao contrário do que se possa supor, não elimina a “assinatura”, a identidade, o estilo do autor. As aspirações e inspirações surgem de todo o grupo, mas quem converte em texto é o autor. A abordagem aos artistas é do autor. Enfim, o autor é fundamental ao processo. É claro que estou tratando, aqui, do trabalho do autor, mas a importância e os desafios referentes às outras funções são tão grandes quanto. O resultado é um teatro sincero, à flor da pele e, devido ao seu processo, naturalmente corajoso; uma arte que, antes de chegar ao público, já intervém na vida, desafiando e trocando questionamentos com esta. Teatro é troca. Atores vazios não terão o que trocar com a plateia. Bem mais que representar, o ator contemporâneo precisa se sentir representado pelo que faz. Implantar esse tipo de projeto no coletivo é difícil, exige cautela e muita persistência. Em grupos estabelecidos, há uma grande possibilidade de o autor ser mal compreendido ao propor um processo dessa natureza. Os atores muitas vezes não esperam outra coisa que não seja uma boa narrativa. Cada um volta a expectativa para a personagem que lhe cairá nas mãos, esquecendo-se, às vezes, do todo. Uma proposta como essa parece excessivamente abstrata para quem estabeleceu uma rotina tão objetiva de trabalho, com cartas previamente marcadas. O autor precisa ter uma organização muito clara das ideias, para 20 | Subtexto | Revista de Teatro do Galpão Cine Horto comunicá-las bem. E ter paciência diante das recusas, explicando e reexplicando o projeto a todos. Mas, quando a confiança do grupo é finalmente alcançada, a recompensa é incalculável. Existem muitos tipos de processo, com e sem colaboração. Eu, por exemplo, escrevo alguns textos por iniciativa individual. Muitos grupos realizam montagens de alta qualidade aderindo a processos nos quais o encenador tem mais influência que os demais. Quanto ao ator, não há metodologia que lhe retire por completo a participação criativa. Mesmo que não queira, esse sempre estará criando algo através de sua presença cênica. O que falo aqui é da ampliação dessa criatividade e da troca, para artistas e grupos que realmente queiram isto. Experimento cênico durante processo do espetáculo InCerto Grupo Bagaceira de Teatro Graças aos grupos de teatro, tenho experimentado uma prática intensa e muito diversificada de escrita. Percebi que, quando as pessoas estão abertas, as propostas de um artista não tolhem as do outro, mas expandem. Este texto certamente encontrará quem concorde, discorde ou acrescente. O importante é que, muito além dos discursos inflamados, verifiquemos se a organização interna do grupo corresponde aos nossos ideais artísticos e políticos. 21 É muito cedo para analisar o resultado artístico do que faço. Trata-se de um início de caminho. Mas, avaliando as primeiras distâncias percorridas, vislumbro uma direção. Espetáculos como En Passant (Companhia Vão de Teatro) e In Certo (Grupo Bagaceira) geraram transformações profundas nos grupos, no discernimento dos artistas e no próprio sentido da obra perante o público. Esse tipo de procedimento, antes de formar autores, encenadores, atores, figurinistas, cenógrafos, iluminadores, forma artistas. Pessoas da arte, conscientes de suas atuações no mundo. 22 | Subtexto | Revista de Teatro do Galpão Cine Horto 23 Fragilidade e força: Reflexões sobre criação e formação dramatúrgica no Brasil hoje Marcio Abreu1 “Nós devemos preservar os lugares da criação, os lugares do luxo do pensamento, os lugares do superficial, os lugares da invenção daquilo que ainda não existe, os lugares da interrogação do ontem, os lugares do questionamento (…) Uma sociedade, uma cidade, uma civilização que renuncia à arte (...), à sua parte de imprevisto, à sua margem de erro, às suas demoras, às suas hesitações (...) Ela é orgulhosa e triste (...) Ela acredita no seu esplendor (...) sem história futura e sem espírito. Ela é magnífica e acredita nisso já que é o que declara, mesmo sendo a única a se ouvir. Ela está morta.” Jean-Luc Lagarce (Do Luxo e da Impotência) Primeiras reflexões Não é de hoje a percepção de que na dramaturgia localiza-se um dos pontos frágeis dos processos de criação teatral no Brasil. No entanto, a reiteração histórica dessa ideia, a mobilização crítica e as reflexões e práticas que, de tempos em tempos, surgem ao redor do tema, revelam, paradoxalmente, a força desse campo criativo não apenas relacionado ao teatro, mas também à dança, ao cinema, à televisão, às artes visuais e às muitas experiências de interseção entre as artes. É evidente uma certa noção, fundamentada ou intuitiva, de que há algo essencial a ser investigado aí, seja nos meios acadêmicos ou nas experiências de criação. É evidente o interesse pelo tema, sempre renovado. Vemos, frequentemente, a dramaturgia no centro das atenções: desde o jovem diretor de teatro que procura um texto para montar, até o autor de novela que detém todos os segredos que serão revelados nos últimos capítulos; do ator que deseja interpretar tal personagem clássico no teatro ao roteirista de cinema que quer abordar um tema polêmico na sociedade; do artista que deseja se expressar através de uma história 1 Dramaturgo e diretor teatral, criador da Companhia Brasileira de Teatro, sediada em Curitiba, com a qual desenvolve trabalhos de pesquisa, intercâmbio e criação. Orienta periodicamente oficinas de dramaturgia e construção da cena em diversas partes do país. diversas partes do país. 24 | Subtexto | Revista de Teatro do Galpão Cine Horto 25 àquele que pensa a arquitetura dessa mesma história; dos coletivos teatrais em busca de novas linguagens às produções de cunho puramente mercadológico. Se pensarmos que no conceito amplo de dramaturgia estão contidas as principais discussões estéticas e políticas sobre o que dizer, para quem dizer e como dizer, não nos surpreenderemos com as frequentes inquietações sobre o tema, o que acaba por ser um sintoma de uma sociedade que amadurece culturalmente. Da mesma forma, não nos surpreenderemos com o fato de que um campo tão aberto a experiências seja foco de constantes crises e revisões. Isso faz parte de um ambiente vivo de tentativas e é fundamental para potencializar a presença das ações artísticas na sociedade. É notório que nesta primeira década do século XXI a dramaturgia no Brasil passou a um patamar de discussões mais diverso e em consonância com o que se problematiza no resto do mundo quando se trata de arte contemporânea. A interação entre as artes, as teorias e práticas relacionadas à recepção, a afirmação do teatro de grupo como espaço legítimo de criação, proposição estética e reflexão política, a revisão dos modos coletivos de trabalho, o amadurecimento dos processos colaborativos, as ações de intercâmbio entre artistas, as iniciativas de publicação de dramaturgia, a ampliação do diálogo sobre cultura com as instâncias públicas e o pensamento sobre a formação em arte no país são apenas alguns sinais do aumento no nível do debate. Leitura do mundo Antes de tentar dar exemplos de espaços e iniciativas de formação, é importante inscrever o tema num contexto social mais amplo e, assim, observá-lo em nossa realidade cultural. Sabemos que, no Brasil, o teatro ainda ocupa um lugar de privilégio, assim como a prática artística de um modo geral. Significa que é para poucos, se pensarmos na massa populacional do país. Diferenças sociais e territoriais contribuem para que se reforce essa ideia, muito embora possamos identificar nos últimos anos o crescimento substancial de ações inclusivas no campo da cultura, como programas de circulação de bens artísticos e de formação de público realizados por companhias teatrais, por instituições como o SESC e o SESI e também através de editais públicos nacionais ou regionais que permitem minimamente que os artistas produzam e tentem ampliar o alcance de sua obra. Ainda é muito pouco diante da enorme demanda e é bastante frequente que grupos e artistas agreguem ao seu trabalho de criação outras práticas que incluam oficinas, mostras de processo, debates e ensaios abertos, o que contribui fortemente com um sentido maior de formação e de compromisso social. Por outro lado, é comum ouvirmos a frase: “o Brasil é um país que não lê”. Ela confirma uma certa realidade, mas também reforça certa inércia frente à questão. Ouvimos a frase, repetimos, e pouco fazemos para transformar essa realidade. São insuficientes, muito embora crescentes, os projetos de estímulo à leitura. “Problemas mais urgentes e importantes” tomam o lugar das iniciativas de educação continuada, que acabam cedendo às ações pontuais que “morrem na praia”. Se é verdade que “o Brasil é um país que não lê”, isso certamente não se deve à falta de interesse das pessoas, mas à falta de políticas e ações em longo prazo que insistam em mudar essa condição. Posso citar um exemplo, bastante positivo, realizado pela Fundação Cultural de Curitiba, órgão público municipal responsável pelo setor, que nos últimos quatro anos, pelo menos, vem realizando oficinas regulares de formação do leitor e do escritor e rodas de leitura em todas as regiões da cidade, além de um projeto de aparelhamento de bibliotecas e de criação de bibliotecas volantes em pontos de ônibus. Os depoimentos sobre o impacto dessas ações é animador. Tive a chance de ver de perto e de colaborar orientando nos últimos dois anos oficinas de estética da leitura e de processos criativos em produção de texto a partir do teatro. Nesse período de mais ou menos quatro anos já conseguimos perceber avanços significativos. Um número expressivo de pessoas acorre às bibliotecas volantes e exerce a prática de empréstimo e devolução de livros nos bairros, assim como vemos o início da formação de leitores e escritores em potencial. Centro de Pesquisa e Memória do Teatro do Galpão Cine Horto 26 | Subtexto | Revista de Teatro do Galpão Cine Horto Os déficits de leitura são um dos fatores responsáveis pela falha de formação em diversas áreas do conhecimento. Se falarmos de literatura e, mais especificamente, de dramaturgia, o problema fica mais evidente. Escrever sem bagagem de leitura é muito improvável - só em casos raros de intuição e genialidade, e aqui não estamos falando disso. É comum encontrarmos, no nosso meio, gente que não lê. Isso é um fato. E é comum, portanto, encontrar esses mesmos não leitores inseridos em processos coletivos de criação teatral e dramatúrgica, como numa fórmula que possa garantir resultados positivos. Nenhuma fórmula ou caminho garante nada, nem pode substituir a experiência individual ou coletiva de leitura específica ou de leitura do mundo, que ao longo do tempo constrói um repertório de referências a partir das quais uma pessoa ou um grupo pode responder de maneira potente aos estímulos criativos. 27 os seus Cadernos de Dramaturgia e criou no Galpão Cine Horto o Centro de Pesquisa e Memória do Teatro - CPMT, que tem um selo editorial e um acervo disponibilizado à comunidade artística e de estudantes. Dois exemplos de coleções editoriais de dramaturgia que ganham espaço e circulação ao longo do tempo são os da editora 7 Letras, com a Coleção Dramaturgias, dirigida pela tradutora Angela Leite Lopes e que tem um foco voltado para lançamento de textos contemporâneos inéditos no Brasil, assim como a Coleção Palco Sur Scène, edição bilíngue português-francês, que alterna a publicação de autores brasileiros e franceses numa parceria entre o Consulado Geral da França em São Paulo, a Aliança Francesa e a Imprensa Oficial do Estado de São Paulo. Todas essas iniciativas são frequentemente ligadas a projetos de encenação e divulgação das obras, o que torna mais eficaz a experiência. Cito ainda os espaços virtuais de publicação de pensamento e crítica , como o site teatrojornal – leituras de cena, Quero dizer com isso que não compartilho a ideia de que os processos colaborativos produzem dramaturgia frágil. Há dramaturgia frágil em processos de gabinete também. Há literatura frágil. Há obras, de todo o tipo, frágeis num país onde não se estimula continuamente a leitura e onde não se realizam, em grande escala, ações de formação em longo prazo. Assim como há inúmeras experiências fortes de escrita teatral tanto nos grupos quanto individualmente, mesmo na nossa realidade precária. Quero dizer com isso que, para pensar em formação dramatúrgica no Brasil, precisamos começar a formar leitores, de livros e do mundo. Considero, portanto, iniciativas como essa a que me referi acima, como opções realistas para formar gente que pense, que leia com sensibilidade e que possa responder expressivamente através das diversas formas de escrita, incluindo a dramaturgia. Revista Eletrônica Teatrojornal Imagem do site Publicação e circulação de ideias Outro aspecto fundamental que penso estar na base de um processo mais amplo e eficiente de formação é a publicação de dramaturgia, reflexão teórica e crítica, e registros de experiências criativas. No Brasil publica-se pouco se nos compararmos a países de maior tradição editorial como Argentina, França e Alemanha. Nos últimos anos, entretanto, vemos pontuais, porém significativos exemplos de edições, tanto em livros e revistas, como na internet. Geralmente as iniciativas mais importantes partem de artistas ou grupos inseridos na realidade da produção de cultura e pensamento do país. Cito aqui a Revista Vintém, da Companhia do Latão, de São Paulo, assim como as compilações de peças, entrevistas e experimentos realizados pelo grupo ao longo de seus mais de 10 anos. Outra experiência relevante é a do Grupo Galpão, de Belo Horizonte, que, além de lançar desde 2004, anualmente, esta Revista Subtexto, publicou criado recentemente pelo jornalista e pesquisador teatral Valmir Santos, de São Paulo, e a revista Questão de Crítica, criada pela pesquisadora Daniele Avila, no Rio de Janeiro. Ambos têm se revelado como potentes meios de acesso aos processos criativos e ao pensamento das companhias e artistas mais atuantes no país e são cada vez mais reconhecidos como espaços legítimos de troca e reflexão. 28 | Subtexto | Revista de Teatro do Galpão Cine Horto 29 da dramaturgia demanda abordagens diversas e é fundamental a multiplicidade de experiências. Portanto, as oficinas realizadas pelos grupos, os seminários realizados pelos autores, as mostras de processo e ensaios abertos e o intercâmbio entre artistas e coletivos são meios indispensáveis e complementares num campo enorme do conhecimento a ser reaquecido e reinventado permanentemente. Revista Eletrônica Questão de Crítica Imagem do site Algumas experiências Nesse sentido vale a pena destacar alguns exemplos de ações realizadas por coletivos teatrais ou destinadas a eles que, através de encontros e troca, ampliam a experiência que acaba por adquirir contornos formativos. Posso citar a Lapada, movimento nordestino que promove intercâmbio entre grupos e que, certamente, é responsável por uma espécie de aprimoramento dos artistas que dele participam. Outro fundamental espaço de reflexão contemporânea foi o Próximo Ato, evento do Itaú Cultural que durante cerca de sete anos realizou em São Paulo e, mais recentemente nas outras regiões do país, minicursos, palestras, discussões com artistas e teóricos de ponta, apresentações de grupos estrangeiros e brasileiros, e o encontro de coletivos teatrais de todo o Brasil, o que acabou gerando o projeto Rumos de Teatro que, lançado em 2010, promoverá parcerias de pesquisa e criação no contexto do teatro de grupo. Cito ainda o Retomando a questão da formação continuada, percebo que há uma tendência a valorizar os espaços dedicados a isso. Se com poucos e fragmentados estímulos já vemos respostas significativas, é natural que nos processos em longo prazo tenhamos resultados importantes. Fora das universidades, que em geral não se dedicam à formação específica do dramaturgo, mas a uma base teórica ampla relacionada ao teatro, vemos ações mais direcionadas como, por exemplo, os núcleos de dramaturgia do SESI. Iniciado em 2007, o núcleo de São Paulo, coordenado atualmente pela dramaturga Marici Salomão, forma novos autores numa relação de pesquisa e criação ligada ao intercâmbio entre as experiências brasileiras e britânicas, em parceria com o British Council. Inspirado pelo exemplo paulista, o SESI do Paraná criou um núcleo próprio, que é orientado pelo diretor e dramaturgo carioca Roberto Alvim. Nas duas iniciativas realizam-se atividades anuais e, além das oficinas regulares, são organizadas mesas, debates e workshops específicos com profissionais brasileiros e estrangeiros, assim como a montagem de peças escritas por autores integrantes do projeto. O núcleo do Paraná, que foi inaugurado em 2009, já lançou uma publicação de textos selecionados entre os novos autores. Em pouco tempo de atividade, notamos um impacto real no cenário formativo do país a partir dessas duas experiências, que já nasceram compromissadas com a continuidade. De qualquer maneira, são valiosas as ações de formação realizadas no contexto de trabalho dos grupos e artistas pelo país afora. O universo dinâmico e permeável Acto, um encontro de teatro realizado por três companhias por iniciativa do grupo Espanca, de Belo Horizonte, e contando com a participação do Grupo Projeto Acto 2 – outubro de 2010 30 | Subtexto | Revista de Teatro do Galpão Cine Horto XIX, de São Paulo, e da Companhia Brasileira de Teatro, de Curitiba. O primeiro encontro, o Acto 1, aconteceu em 2007. A partir da apresentação de peças de seu repertório, de oficinas abertas e de exercícios em conjunto, os três coletivos potencializam o contato com o público e com os estudantes, que acompanham de perto todas as atividades. Em 2010, o Acto 2 foi realizado junto com o FETO, um festival estudantil, o que possibilitou o acesso de estudantes de várias partes do país às atividades de criação de 3 companhias profissionais durante cerca de 10 dias em Belo Horizonte. Outras reflexões O que é forte e o que é frágil no contexto dinâmico da criação e da formação dramatúrgica no Brasil? Na dialética entre essas duas condições, talvez se manifeste o nosso lugar atual. Aquilo que aparentemente é frágil pode revelar forças escondidas e improváveis. A criação não necessita lidar somente com conceitos como eficiência, resultado, eficácia, sucesso e acerto. Transitamos no território da experiência, das tentativas, das múltiplas referências, da antropofagia e da criação de uma tradição própria. Somos um país adolescente e podemos ter certa irresponsabilidade, podemos nos livrar do medo de errar. Devemos errar muito ainda e sempre. Nossa cultura é herdeira das tradições do velho mundo, tanto quanto das manifestações ligadas à terra. Tudo pode ser nosso. Assim como o negro, o branco e o amarelo são brasileiros, a cultura erudita, as expressões regionais e as pesquisas de ponta também integram nosso campo de referências. E isso está ligado às diversas possibilidades de formação, desde as mais convencionais às informais e ainda por serem experienciadas. O Brasil, assim como a dramaturgia, está apoiado sobre dois extremos: o da consciência histórica e o da reinvenção. A dramaturgia existe na amplitude desses dois pontos. E é nessa amplitude que surgem os êxitos e as distorções. A dramaturgia é o lugar da articulação estética e política do discurso, seja no texto ou na cena, na imagem ou no espaço invisível que surge entre a cena e a plateia no momento exato do fenômeno teatral. É lugar de criação de linguagem. E linguagem tem a ver com liberdade, poder e identidade, tem a ver com nação. Há quem diga que está mesmo ligada ao conceito de nação. Um dos primeiros sinais de que existe uma nação é quando identificamos uma língua autônoma, que se articula em linguagem. Um dos primeiros sinais, portanto, de que existe uma nação autônoma, há quem diga, é quando identificamos a existência da dramaturgia. Na medida em que tento organizar informações e ideias para escrever este artigo, percebo que, ao refletir de dentro, no “olho do furacão”, o que me cabe é 31 também me colocar questões e compartilhá-las com os leitores da Subtexto. Não tenho distanciamento, portanto me ponho a pensar junto. Estamos em pleno processo de transformação. Eu mesmo, vindo de formação autodidata em escrita pra teatro e egresso da verdadeira escola que pode ser a experiência do teatro de grupo, percebo que não tem valor determinante esse ou aquele caminho de formação. O que, sim, pode ser determinante, é existirem os mais diversos meios de formação difundidos e acessíveis à população, de forma continuada. Em longo prazo é isso que faz a diferença. Em nenhum país do mundo surgem dramaturgos do nada. Uma dramaturgia forte requer insistência e investimento duradouro, com estratégia e consciência, mas também com risco e entusiasmo. A esta altura, já não podemos nos considerar um país ingênuo. A arte é a expressão mais legítima do nosso porvir. E o acesso às ferramentas da linguagem é um direito do qual não podemos abrir mão. 32 | Subtexto | Revista de Teatro do Galpão Cine Horto 33 Dramaturgia em colaboração: por um aprimoramento Adélia Nicolete1 Há alguns anos vemos aumentar significativamente o número de espetáculos realizados em processo colaborativo. Dentre as críticas que recebem é comum apontarem falhas na configuração dramatúrgica, como se o fato de muitas e diferentes vozes atuarem na composição da obra tornasse a dramaturgia quase sempre “poluída”, desarticulada, mal urdida. A que se deve isso? Após um breve panorama, apontaremos aqui algumas possíveis causas desses problemas e, quem sabe, uma ou outra possível solução. Desde os anos 1990 o número de coletivos de criação tem crescido tanto no Brasil quanto no exterior. Espetáculos teatrais, músicas, artes plásticas, audiovisuais têm sido criados e exibidos a partir da ação conjunta dos integrantes e, grande parte das vezes, no chamado processo colaborativo. O método é semelhante, embora os objetivos possam ser diversos. O Ateliê Fidalga, por exemplo, idealizado pelos artistas plásticos Sandra Cinto e Albano Afonso, em São Paulo, reúne artistas que trabalham com diferentes técnicas e um procedimento básico: levam suas ideias ou seus esboços às reuniões semanais para serem analisados pelo coletivo, e receber críticas e sugestões antes de serem executados ou finalizados. É o coletivo que responde também pela organização das exposições e divulgação dos trabalhos. Esse tipo de conduta tem ganhado cada vez mais seguidores a partir dos anos 1990 e garante uma série de vantagens que os métodos tradicionais de produção já não garantem mais: autonomia de criação, equivalência de funções, mútua interferência nas instâncias criativas, maior independência em relação a produtor/curador/gravadora e ao mercado, gestão própria de recursos, entre tantos outros. No teatro o processo colaborativo ganhou contornos mais definidos e uma pesquisa formal e acadêmica a partir dos trabalhos do Teatro da Vertigem, de São Paulo, nos anos 1990. Trata-se, a nosso ver, de um processo que tem como antecedentes imediatos a prática da criação coletiva e a experiência do dramaturgismo (NICOLETE, 2005). Dessa, herdou a pesquisa e a presença de alguém responsável pela dramaturgia na sala de ensaio. O dramaturgista atua muitas vezes como “braço-escritor” do diretor, aliando a criação dos intérpretes, 1 Dramaturga, professora, mestre em Artes pela ECA-USP e doutoranda em pedagogia do teatro pela mesma Universidade. 34 | Subtexto | Revista de Teatro do Galpão Cine Horto 35 do período, movidos pelos mesmos impulsos, praticamente desconsideravam os possíveis e frequentes “defeitos”, porque a comunicação se estabelecia menos por canais estéticos que ideológicos ou empáticos. Dessa forma, um aspecto meio “sujinho” ou “descosido” que poderia ser visto como um problema dramatúrgico ganha status de “charme”, de “it”, de resíduo do processo – este o protagonista. Espetáculo O Livro do Jó, Teatro da Vertigem Mudado o contexto, acessadas novas formas e novos procedimentos artísticos, faz-se necessário investigar o por que da permanência de certas falhas. Em primeiro lugar é preciso levar em consideração que, assim como havia diferenças de abordagem da criação coletiva pelos grupos, o processo colaborativo pode variar também de acordo com uma série de fatores. Podemos elencar o nível de experiência dos participantes, o tempo disponível, as condições econômicas e físicas de trabalho, entre outros (NICOLETE, 2005). Sendo assim, a presença de um dramaturgo experiente, por exemplo, pode fazer toda a diferença na condução e no acabamento dramatúrgico de um espetáculo, assim como um prazo mais flexível para pesquisa intelectual e cênica. Ou seja, torna-se difícil fazer um diagnóstico geral a respeito do assunto. os elementos pesquisados, a visão do diretor e a sua própria na escrita do texto a ser enunciado em cena. Da criação coletiva o processo colaborativo parece ter herdado, em muitos casos, a concretização de um desejo grupal, que leva à pesquisa conjunta e à execução de múltiplas funções com interferências mútuas, de modo a que as linhas autorais esmaeçam em nome da assinatura coletiva. À parte as vantagens todas do coletivo criador, talvez decorra dessa segunda ascendência – a da criação coletiva - o fato de muitos dos espetáculos frutos de processo colaborativo receberem críticas desabonadoras em relação à dramaturgia. Melhor dizendo: ao assumir a influência direta da criação coletiva, talvez devêssemos aprimorar seus “métodos” - e aqui vão comentários estritamente referentes à elaboração do texto a ser enunciado. Ao levarmos em conta o contexto em que a criação coletiva se deu mais intensamente no Brasil – final dos anos 1960 até princípio dos 1980 – poderemos notar que o procedimento (processo) trazia um peso de transgressão, inovação e vitalidade, tão grande e necessário que, compreensivelmente, se sobrepunha, muitas vezes, à questão estética. Dado o contexto, o teatro da militância, o teatro feito com operários e os grupos amadores em geral estavam menos preocupados com a forma final de seu trabalho que com o processo de pesquisa, atuação comunitária, democratização do fazer artístico, expressão de pensamento e tantas outras necessidades e motivações. Consequentemente, público e crítica Outro aspecto a se considerar é a formação do dramaturgo. Se entre os anos 1960-1980 a formação dramatúrgica era, em grande parte, empírica ou Projeto Beyus Ateliê de Escrita Dramática da FAINC (Santo André) – 18/11/2010 | 36 | Subtexto | Revista de Teatro do Galpão Cine Horto autodidata devido à ausência de cursos formais, temos visto, desde o final da década de 1980, um aumento significativo de cursos, oficinas e, por isso, de dramaturgos “formados ”. São eles responsáveis pela renovação da dramaturgia brasileira nos últimos tempos – quando ainda se afirmava que não havia mais autores nacionais. Porém, convém uma pergunta: que tipo de formação é necessário para um dramaturgo que se disponha a atuar em processo colaborativo? Seria a mesma do autor de gabinete? Há um perfil adequado para cada tipo de processo? Pode haver migração de um dramaturgo de gabinete para o processo colaborativo? Esse procedimento é adequado a um texto de contornos dramáticos ou é preciso que se busquem novos enfoques? A experiência diz que um dramaturgo de gabinete pode atuar satisfatoriamente em processo colaborativo. O trabalho de Luís Alberto de Abreu junto ao Teatro da Vertigem e ao Grupo Galpão confirma a hipótese. É certo que, desde seus tempos amadores, Abreu dialoga com a cena. Mas é também certo que alguma “marca” de sua dramaturgia está impressa tanto em um quanto em outro espetáculo daqueles coletivos (NICOLETE, 2005). Ocorre que a presença de um dramaturgo “profissional” na equipe pode causar a impressão de maior segurança e estabilidade – sensações caras quando se trata de um processo tão instável e imprevisível quanto o colaborativo. Esse suposto “profissionalismo” pode, por sua vez, dar ao dramaturgo maior “autoridade” junto ao grupo na hora de argumentar sobre determinadas soluções, e a configuração pode vir a ser mais uniforme do ponto de vista dramatúrgico. E o dramaturgo iniciante? Que dificuldades enfrenta nesse tipo de processo? Em primeiro lugar sua formação é, na maioria das vezes, dramática. Os cânones consagrados como principal referência tendem a conduzir a soluções vinculadas à presença de um enredo reproduzível, personagens e conflitos definidos, clímax, desenlace – soluções limitadas quando se trata de uma dinâmica criativa capaz de levar a outro tipo de resolução. É como se tentássemos adequar um material com determinada maleabilidade a um molde que não lhe dá a melhor conformação ou não explora suas características mais pulsantes. Esse dramaturgo iniciante encontra também dificuldade no que se refere ao próprio trabalho em grupo. Condicionado, em geral, ao trabalho solitário, em que é o senhor da obra em sua totalidade – da ideia à formatação final –, ao se ver inserido em um ambiente de “promiscuidade criativa” (ARAÚJO, 2003) tende a acionar mecanismos de defesa que, pelo menos a princípio, podem colocá-lo à parte do processo. Por isso cremos que uma formação adequada ao dramaturgo de hoje deveria levar em conta o desvelamento do processo criativo e a reflexão 37 grupal sobre ele, prática comum nos ateliês de escrita em língua francesa. Ao ter sua ideia e seu texto analisados e discutidos em grupo por outros autores ou mesmo iniciantes, além de aprimorar o trabalho, proporciona ao dramaturgo uma experiência de troca, de mútua interferência, de sair do próprio universo e mergulhar no universo criativo alheio, entre outras (NICOLETE, 2010). Isso pode prepará-lo mais adequadamente para um processo como o colaborativo, que exige desprendimento, análise, visão de conjunto, crítica em perspectiva, seleção de material e de sugestões, por exemplo. Que exige um fazer e refazer constantes, um abrir mão de grandes achados poéticos em nome da concretude da cena (ABREU, 2003). Esse aprendizado nos parece necessário porque uma das críticas mais recorrentes ao resultado dramatúrgico do processo colaborativo é o excesso - como se todos os criadores tivessem de ser contemplados no texto final. Como se ao dramaturgo coubesse tão somente “costurar” as criações alheias – por vezes discrepantes – tendo o cuidado ético (e talvez ideológico) de processar equitativamente as contribuições de cada criador, mesmo que não tenham tanta consistência ou significado no conjunto. Por isso, um aprendizado coletivo já em sua formação poderia dar ao dramaturgo a experiência da escuta, do aproveitamento criterioso de material sugerido por outrem e, principalmente, a noção de sua autonomia em relação às contribuições do grupo. Aliado a isso, um outro fator sinaliza a diferença entre processos: a convivência do grupo. Um coletivo que atua há um certo tempo junto difere, no processo, de outro que engatinha na criação compartilhada? Parece-nos que sim. A afinação entre os parceiros que o convívio tende a proporcionar leva, à parte os conflitos também gerados pela intimidade, a certa sintonia criativa, como se uns “lessem o pensamento” dos outros, de modo que as respostas aos estímulos possam vir mais rápidas, os acordos ou os enfrentamentos possam se dar mais objtivamente. Registro de criação da dramaturgia do espetáculo InCerto – Grupo Bagaceira de Teatro. Foto: Rafael Escócio 38 | Subtexto | Revista de Teatro do Galpão Cine Horto Um dramaturgo residente, como ocorre em algumas companhias, talvez alcance um aperfeiçoamento cada vez maior a cada trabalho. Espetáculo O Livro do Jó, Teatro da Vertigem Por outro lado, a questão das críticas à dramaturgia colaborativa nos leva, necessariamente, a uma visão mais abrangente da situação. É preciso lembrar que a deposição do texto como elemento central de uma montagem e sua disposição no mesmo patamar das outras instâncias emissoras de sentido trazem à reflexão a noção de uma dramaturgia da luz, da interpretação, da cenografia, da direção e assim por diante. E se há um texto a ser lido pelo espectador em cada uma dessas áreas não seria recomendável, então, um aprendizado, ainda que mínimo, de dramaturgia para todos esses criadores/autores? Não seria mais produtivo, não traria melhor resultado dramatúrgico final se atores, diretor, cenógrafo, figurinista tivessem noções de dramaturgia? Não a dramaturgia acadêmica, reverente à tradição, mas a experiência dramatúrgica da imaginação, da concepção, da organização, da composição, da harmonização de elementos com vistas a uma escrita que, paradoxalmente, pode nem vir a ser escrita/enunciada! A experiência com diversos tipos de materiais textuais desvinculados de padrões dramáticos, como narrativas, depoimentos, documentos, tiradas, formas breves em geral (NICOLETE, 2010). 39 Abreu, realizado com o Teatro da Vertigem (FERNANDES, 2010). Sendo assim, ao dramaturgo não seria benéfico se, desde sua formação, tivesse contato por mínimo que fosse com as demais áreas? Enfim, como foi dito no início, tentamos apontar alguns motivos que justifiquem as falhas encontradas na dramaturgia em processo colaborativo. Causas de origem estrutural, grupal ou da própria formação dos artistas. E uma das soluções nos parece que pode ser encontrada, principalmente, em uma pedagogia que vise à preparação e ao aperfeiçoamento do trabalho criativo coletivo em todas as áreas de produção de um espetáculo. Bibliografia ABREU, Luís Alberto de. Processo colaborativo: relato e reflexões sobre uma experiência de criação. Cadernos da ELT, Santo André, v.1, n.0, p. 33-41, mar. 2003. SILVA, Antonio Carlos de Araújo. A gênese da vertigem: o processo de criação de O Paraíso Perdido. 2003. 192p. Dissertação (Mestrado em Artes) - Escola de Comunicações e Artes, Universidade de São Paulo. FERNANDES, Sílvia. Teatralidades contemporâneas. São Paulo: Perspectiva, 2010. Essa reflexão traz, necessariamente, a reboque uma outra. O ator vem sendo formado para um processo que exige dele bem mais que a interpretação de um papel previamente construído? E o diretor? Sua atuação leva em conta os demais criadores ou insiste em um papel de compositor e regente de uma partitura por ele previamente definida? O cenógrafo, o iluminador, o figurinista, por sua vez, vêm sendo preparados para opinar criativamente sobre algo ainda em construção ou permanecem aguardando uma melhor definição da cena para atuar criativamente? E os demais artífices? São questões importantes e que merecem uma reflexão mais alentada porque, em geral, se critica a dramaturgia, mas se esquece de que ela é também a configuração verbal de criações várias. E se essas criações não trouxerem em seu bojo um material limpo e bem cosido, mais dificilmente resultarão em excelência estética. É notável a incorporação de alguns paradigmas cênicos nos textos teatrais elaborados no coletivo, o que pode ser verificado, por exemplo, em O Livro de Jó, de Luís Alberto de NICOLETE, Adélia. Da cena ao texto: dramaturgia em processo colaborativo. 2005. Dissertação (Mestrado em Artes) - Escola de Comunicações e Artes, Universidade de São Paulo. ______. Criação coletiva e processo colaborativo: algumas semelhanças e diferenças no trabalho dramatúrgico. Sala preta. São Paulo: v. 2, n. 1, p. 318325, 2002. ______. Fazer para aprender: a prática dos ateliês de escrita dramática em língua francesa. ANAIS do VI Congresso da ABRACE, 2010. 40 | Subtexto | Revista de Teatro do Galpão Cine Horto 41 Dramaturgia colaborativa: notas sobre o aprendizado da desmedida no teatro brasileiro Kil Abreu1 As notas que seguem tentam responder às questões colocadas em pauta nesta edição da Subtexto, no capítulo de qualidade das dramaturgias colaborativas, amadurecidas nos quase sempre duros e nem sempre pacíficos processos arquitetados pelos grupos de teatro. O pressuposto, creio, é utilíssimo. A esta altura, e desde meados dos anos 1980, em que a criação grupal voltou a tomar corpo e consistência entre nós, já é possível fazer alguma avaliação sobre a fatura estética dessas “cenas de coro” que marcaram definitivamente o teatro brasileiro a partir dos anos 1990 e se estendem até agora. Entretanto, não será sem algum embaraço que, às perguntas recorrentes sobre o valor estético das dramaturgias colaborativas criadas neste tempo, que indicam quase sempre a preocupação com alguma insuficiência formal que parece resultar delas, tenhamos que responder com novas perguntas, ou com observações “pelo avesso”. Qual seja, responder com a constatação de que não é possível medir qualidade artística sem que um modelo ou, ao menos, sem que parâmetros modelares estejam em jogo. E, no caso, não é que eles não existam. É que, dadas as circunstâncias, nem sempre serão úteis. Perspectiva histórica A questão é que, salvo engano, se trata de um período importante justo porque há algo de novo e não totalmente modelar no campo da experiência – social, política, artística. No campo social e político os últimos 20 anos foram de aprendizado, a duras penas, de uma negociação difícil entre modelos de gestão da sociedade que representaram as saídas possíveis ao período ditatorial e que transitaram do neoliberalismo ao liberalismo de Estado, um pouco mais responsável socialmente que o anterior, mas que, por outro lado, nem de longe alcançou o sonho juvenil da esquerda brasileira de outras épocas, mesmo que institucionalmente a sua principal representação partidária tenha chegado ao 1 Jornalista, crítico e pesquisador de teatro. É membro da Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA). Atualmente investiga as dramaturgias contemporâneas no Brasil, como pesquisado rdo CNPq. 42 | Subtexto | Revista de Teatro do Galpão Cine Horto poder. Ainda estão por se levantar os efeitos de adesão, alienação em relação ao quadro, ou mesmo de desnorteamento que essas conjunturas novas provocaram no imaginário dos artistas de teatro, porque elas estão inscritas na cena, explícita ou subliminarmente. Por isso, em uma visada geral e certamente insuficiente não será exagero dizer que a dramaturgia atual, especialmente essa nascida em criações colaborativas, se mantém à maior distância das estruturas narrativas tradicionais - sejam as do teatro dramático ou mesmo da cena épica - que aquelas ocorridas até o final dos anos 1970. Mais que antes, parece claro que, agora, por força de movimentos explícitos na direção de uma permissividade que o próprio teatro como um todo tem vivido; mas também por força de uma consciência local cada vez mais difundida sobre os impasses do sujeito e da sociedade em um país “a meio termo de”, como vem se definindo o Brasil atual; por força dessas circunstâncias as narrativas teatrais estão se formalizando em bases próprias, que se inventam em materiais e formatos originais ou fazem a revisão de tradições importantes do teatro, mas a partir de perspectivas cada vez mais particulares de intervenção, por vezes desconcertantes. Daí a necessidade de uma avaliação de qualidade que se dê em termos próprios. Nesse sentido, já se disse, com o desejo de igualar experiências que são parecidas, mas não gêmeas, que os processos colaborativos atuais são extensão pacífica das criações coletivas setentistas, apenas retomados em época diferente. Não o são. Se, em ambos os períodos, é clara a ocorrência de alguma iconoclastia diante da forma que o trabalho coletivo parece necessariamente gerar, é também evidente que os motivadores históricos definem um outro tanto da experiência, no campo dos conteúdos e também das suas formalizações. Se antes a coletivização respondia à necessidade de dispersão da autoridade e insistia em uma deliberada liberalidade formal, depois daquelas mediações históricas pós-ditadura passamos a viver uma época de “individuamento” radical da vida e ainda maior racionalização na divisão do trabalho (que coincidem com a formação cada vez mais sistemática de artistas nos cursos universitários). É quando surgem processos que, embora coletivizados, obedecem a uma disciplina interna nova em alguns aspectos, em que o tema da autoridade já não é o problema, e sim a ordenação e o trânsito de saberes entre as diversas fontes autorais – todas “competentes”, autorizadas e com seus repertórios particulares: o ator, o diretor, o dramaturgo, o cenógrafo, o sonoplasta... - que colaboram em um regime marcado pela fluidez das funções, para o trabalho final. A desmedida, então, é de outra ordem, porque entra em jogo, nessa dinâmica, uma política 43 Espetáculo Corte Seco Cia. Vértice nova que envolve tanto as relações entre os artistas em processo quanto a própria noção de obra, na busca da sua justa medida e de acabamento, agora tomados como tarefa incontornável. Políticas do erro Apesar deste esquema – o de uma colaboração sistematizada -, provavelmente o mais interessante nessas dramaturgias, quando consequentes, tem sido o oposto desse plano de disciplinamento, mesmo, por vezes, a contragosto dos autores. É que em tais processos a variedade dos recursos cênicos e de pensamento disponibilizados por cada um dos colaboradores tende a resultar em linguagens heterogêneas, de maneira que a descontinuidade dos materiais seja algo não apenas esperado, como necessário, o que justificaria a ideia de que, nesses casos, o melhor resultado, ou ao menos o mais honesto, é aquele que assume a impureza formal para que a problematização dos conteúdos seja possível. A compensação é que, para ficar com a boa expressão de Jean-Pierre Sarrazac, se trata de um momento em que, em geral, temos mais chances de nos reconhecermos nesses “textos desviados” das formas modelares já reconhecidas da narrativa teatral porque essas estruturas “erradas”, quando não ficam reféns do ensimesmamento (o que também não é incomum), nascem como respostas legítimas a questões históricas concretas, que os grupos têm se colocado deliberadamente, ou por intuição, e têm procurado executar nas atuais dinâmicas coletivas de criação. 44 | Subtexto | Revista de Teatro do Galpão Cine Horto Essas desmedidas talvez nos ajudem a entender a importância de uma série de trabalhos estranhos e inquietos na cena atual, que ganham relevância talvez menos pelo “acabamento” e mais pelo que levantam de questões produtivas sobre o real e sobre as suas possibilidades de representação – às vezes mais, às vezes menos criticamente. Evidentemente há diferenças marcantes entre os diversos processos de colaboração que, dependendo dos propósitos de cada grupo, encontram os seus pontos de apoio próprios, desde os que dispensam o dramaturgo “de profissão”, fazendo o grupo assumir a escritura, passando pelos coletivos que mantêm a geração de materiais totalmente centrada nos atores, sob a condução do diretor, até aqueles em que o dramaturgo, incluído no processo, opera como provocador de narrativas que nascem antes no experimento da cena que no papel. E, ainda, uma infinidade de variações a partir dessas coordenadas. E cada uma delas oferece possibilidades específicas de criação da cena. Espetáculo Êxodos – Grupo Folias D’arte Na maior parte dos espetáculos saídos dessas experiências, entretanto, é evidente a sensação de transbordamento dos materiais reunidos. Isso muitas vezes pode ser visto na descontinuidade de linguagem (como no curioso O bizarro sonho de Steven, do grupo potiguar Facetas, mutretas e outras estórias, em que a plateia circula na estrutura cenográfica em que se vive uma fábula onírica e que vai do lírico ao grotesco; ou em Ópera dos vivos, da Cia. do Latão, em que a mercantilização da vida ganha diferentes eixos de representação, assimilando literalmente o cinema, o show musical e a TV, em uma ambiciosa reflexão sobre 45 os últimos 50 anos da história brasileira); nos saltos temporais que desafiam as lições de unidade fabular e distendem propositalmente a história contada, como que correndo em busca de seu sentido final – político, existencial – que sempre escapa (como no violento e poético Marcha para Zenturo, colaboração entre o grupo mineiro Espanca e o paulista XIX); no trânsito brusco entre os pontos de vista narrativos (como em Êxodos, do Folias D’arte, em que há um movimento pendular e radical entre o depoimento íntimo e o painel épico); ou em dramaturgias ainda mais abertas, a ponto de se avizinharem da performance e criarem um jogo deliberado entre acaso e representação, entre o plano ficcional e o momento material, real, da cena (como na trilogia da carioca Cia. Vértice, especialmente a última montagem, Corte seco, em que os atores são chamados a construir uma parte do espetáculo no momento em que ele acontece). Pedagogia da colaboração Todos esses trabalhos, assim como tem ocorrido em uma parte considerável do teatro brasileiro atual, ou ao menos no que nele interessa, todos esses são leituras em diálogo com a realidade – a realidade ela mesma e a dos processos de montagem cujas autorias são, em diferentes medidas, bastante dispersas, ainda que todos tenham seus respectivos dramaturgos a serviço-; e só podem ser avaliados segundo o critério das suas desmedidas, por vezes, como se disse, inesperadas. São formas que respondem a proposições de pensamento - o desnorteamento e a alienação do sujeito diante de uma sociedade hiperinformada (O bizarro sonho de Steven), o passado próximo como estratégia para reconhecermos criticamente o presente (Ópera dos vivos), a necessidade de reunir os sujeitos dispersos para recolocar a utopia em perspectiva (Êxodos), um olhar melancólico sobre o futuro para entender a violência do presente (Marcha para Zenturo), o estudo exaustivo das relações para denunciar, por contraste, a quase afasia da época (Corte seco). São espetáculos que, por princípio político e estético, pediriam de fato um processo de criação compartilhada e a socialização da experiência, sem o que os resultados jamais poderiam ser os atuais. Dependem do ajuntamento – nem sempre cordato - de pontos de vista sobre o mundo e sobre a cena; e sobrevivem, em obra, deste ajuntamento. As montagens são dramaturgias necessárias, às vezes mais, às vezes menos em diálogo com outras narrativas já dadas, mas sempre guardando algum elemento de discurso cênico próprio, no qual é possível encontrar o elemento da sociabilidade inquieta do processo que as gerou. Isso, evidentemente, não coloca uma marca de valor positivo sobre toda e qualquer experiência de dramaturgia colaborativa. Não as livra da necessidade 46 Espetáculo Marcha para Zenturo - Grupo Espanca e Grupo XIX de Teatro | Subtexto | Revista de Teatro do Galpão Cine Horto de consequência. Mas a avaliação terá que ser feita em acordo com esse campo processual, sob o risco de se equivocar desde o princípio. E o acompanhamento crítico é importante porque há em curso, sem dúvida, um processo de ideologização da novidade, que tende a identificar como valor algo que virou uma espécie de marca do teatro, hoje pronta para circular. Seria tarefa da crítica, talvez, tentar discernir nesse contexto não a fatura estética correta, do ponto de vista de um resultado acertado, mas aquelas que estão mais próximas desse acordo problemático com estas realidades – da obra e seu processo e a histórica. Na direção de uma pedagogia em bases colaborativas parece que o fundamental seria evitar as fórmulas, já que o processo compartilhado deve se inventar à medida dos seus agentes e dos propósitos de intervenção artística que estes decidirem colocar em jogo. Por um lado, deveria olhar a criação como invenção livre, articulada em um modo determinado de trabalho – o coletivo – e segundo a ideia de que não há uma natureza “imexível” nos meios da expressão teatral. As técnicas, os treinamentos, as estratégias próprias que os artistas usam para expressar o que precisa ser expresso, muitas vezes também têm que ser inventadas e postas em movimento. E o ambiente da criação em coletivo tem sido o melhor laboratório para isso, para a gestão de meios necessários para tarefas específicas. Os espetáculos gerados aqui merecem uma dedicada atenção, pois, mais que os outros, tendem a se firmar nos terrenos da estranheza. Muitas vezes estamos nela, mas não nos reconhecemos. É preciso, então, atenção para perceber que a obra aparentemente “errada” está tateando o caminho certo – aquele que intui a vida e a sociedade com uma sensibilidade ainda não escrita. Galpão em Foco | Galpão em Foco 47 48 | Subtexto | Revista de Teatro do Galpão Cine Horto Galpão em Foco | Sobre escrever um livro e a busca de sentido do teatro Eduardo Moreira1 A partir de 2007, incentivado por uma necessidade de alimentar um blog do Galpão, comecei a escrever relatos sobre aqueles que me pareciam ser os principais encontros do grupo ao longo dos seus primeiros 25 anos de existência. Os textos foram se sucedendo e, pelo menos na minha cabeça, pareciam formar uma história sob o meu ponto de vista pessoal, o que se justificava, em grande parte, por eu ter sido o único componente do núcleo do grupo que viveu integralmente todos esses anos e atividades do Galpão. É claro que, no decorrer do tempo em que os textos eram produzidos ficava muitas vezes difícil distinguir o que seria uma opinião pessoal de um discurso oficial do grupo. Com o crescimento da sucessão de textos e de relatos sobre os encontros do Galpão, comecei a me perguntar se aquilo não poderia constituir um projeto que estivesse além de uma mera publicação ocasional de um blog. E, ao mesmo tempo que me perguntava e começava a formular uma espécie de formatação para o projeto, comecei a me questionar sobre o sentido de tudo aquilo. Seria uma espécie de necessidade de transmissão de uma experiência de tantos anos e que, pelo menos em sua longevidade, provava ter sido bem-sucedida? Ou, mais intimamente, seria uma maneira de me libertar daquele passado e compartilhar as dúvidas e os questionamentos daquelas experiências, tornandoas públicas, e permitindo assim que elas pudessem ser desfrutadas ou não pelas pessoas, da maneira como melhor lhes conviesse ou como desejassem. O fato é que diariamente escrever esses encontros me fazia pensar no sentido que o teatro ainda pode ter no mundo de hoje. Acho que essa é, na verdade, a pergunta essencial que todo artista, e especialmente um grupo de artistas, se faz diariamente. E que, com o Galpão, não podia ser diferente. 1 Ator e diretor de teatro, membro do Grupo Galpão. Autor do livro Grupo Galpão – uma história de Encontros (Duo Editorial e Edições CPMT) 49 50 | Subtexto | Revista de Teatro do Galpão Cine Horto Galpão em Foco | 51 Encontro do Grupo Galpão com o diretor polonês Jerzy Grotowski – turnê Itália Grupo Galpão com o diretor Paulo José | Num mundo cada vez mais atolado de informações, de opções de lazer e de entretenimento, onde a comunicação instantânea com o outro lado do mundo é feita sem que se tire os olhos do computador, de dentro da sua casa, qual ainda pode ser o sentido do teatro e sua arcaica e ancestral maneira de reunir as pessoas? Qual ainda pode ser o lugar do teatro no mundo, depois que o cinema e mais ainda a televisão roubaram seu lugar de divertir e entreter as pessoas? Talvez os escritos sobre a história do Galpão sejam uma maneira de descobrir para mim mesmo e expressar para os outros uma força do teatro que está por trás e além das apresentações e dos ensaios das peças e que se concretiza na estruturação e na vivência de um projeto coletivo que se enraíza numa comunidade. E que, mesmo buscando ser popular, não deixa nunca de visar também ao indivíduo, fazendo com que as pessoas compreendam, encontrem e estruturem seu lugar no mundo, tornando-as menos solitárias e , de alguma forma, menos infelizes. Essa O projeto foi também a tentativa de deitar os olhos sobre a trajetória do Galpão e perceber como, apesar das incoerências, das mudanças de diretores e de rotas, dos desvios provocados por tantos desejos (muitas vezes tão díspares!), o Galpão guardou um caminho. Esse caminho, aliás, que foi moldado desde os seus primórdios, no encontro com os diretores da companhia alemã “Freies Theater Munchen” na montagem do espetáculo “A alma boa de Setsuan”, de Bertolt Brecht, e que teve seu primeiro alicerce fundado no desejo de se viver de teatro. Um teatro que fosse vivo e que se tornasse viável, o que necessariamente exigia a conciliação de uma excelência e um rigor artístico com uma capacidade de organização e de gerenciamento do trabalho. Ou, em outros termos, um teatro que, além de comunicar com um público o mais amplo o possível, fosse um teatro calcado na criação coletiva e que visasse à pesquisa e à experimentação. Teatro popular e de rua mesclado com a necessidade artística de buscar outros formatos é, pelo menos na minha cabeça, a utopia perseguida, mais alcançada em algumas ocasiões, menos em outras. mais intimistas e vanguardistas, encontro com diretores de diferentes formações e escolas, buscas pelo aprendizado de diferentes técnicas, escolas e formações, tudo isso foi moldando o Galpão dessa matéria muito mais multifacetada e camaleônica do que algo que tendesse à especialidade e à criação de um sistema que tende a formatar uma prática e uma visão de todo o fenômeno teatral. 52 | Subtexto | Revista de Teatro do Galpão Cine Horto É um teatro que se manteve aberto a tantas influências de tão distintos processos e técnicas, que acabou virando aquilo que internamente chamamos de algo “viralata”. Mas, mesmo assim, muitas vezes eu não deixava de ficar intrigado como, diante de espetáculos muitas vezes tão diferentes que eram produzidos pelo grupo, as pessoas sempre enxergavam uma essência inerente ao Grupo Galpão. E, curioso, me perguntava: que essência seria essa? Livro Grupo GalpãoUma História de Encontros, de Eduardo Moreira – Duo Editorial e Edições CPMT Seria a ausência da “quarta parede” em que o teatro se estabelece permanentemente com uma comunicação direta com o público? Ou um teatro de essência coletiva em que o todo da encenação e do jogo entre os atores se sobressai às peças das interpretações individuais? Ou seria um teatro em que elementos e técnicas diversos como, por exemplo, a música e o universo do circo se acumulam e se misturam, fazendo do teatro do Galpão um caleidoscópio de linguagens e de influências? Tudo isso e um pouco mais. O fato fundamental em termos de postura artística é que o coletivo do Galpão sempre pautou suas discussões sobre os rumos dos caminhos artísticos, pensando menos no que já havia sido conquistado e mais no que seriam nossas deficiências, naquilo que precisa ser conquistado. Cada novo projeto é pensado como uma tentativa de responder àquilo que nos falta. Nesse sentido, o Galpão persegue mais a diversidade e menos a especialização. O livro é uma tentativa de compreender e lançar uma luz sobre esse caleidoscópio que foram e continuam sendo os diversos encontros vividos pelo grupo ao longo desses anos. Galpão em Foco | 53 Ele começa com os diretores – Fernando Linares, Paulinho Polika, Carmen Paternostro, Aderbal Freire-filho, Jerzy Grotowski e o teatro Antropológico, Ulysses Cruz, Eid Ribeiro, Gabriel Villela, Cacá Carvalho, Paulo José e Paulo de Moraes; passa pelas transformações dos elementos que constituem o teatro – a dramaturgia, o cenário, o figurino, o público, o trabalho corporal, a música, a produção, as viagens, a luz e o som; e termina com duas experiências ligadas ao universo do cinema, que foram o encontro com o diretor Sérgio Penna e com Eduardo Coutinho e Enrique Dias, no documentário “Moscou”. A lista poderia seguir em frente, incluindo nomes como Newton Moreno, os atores do Grupo Armazém, um novo encontro com Aderbal Freire-Filho, mas era preciso delimitar um tempo. Note-se também que na lista dos diretores estão alguns encontros que não produziram espetáculos – Grotowski, Barba, Aderbal e Ulysses – , mas que foram suficientemente marcantes e que transformaram não só nossa maneira de fazer teatro como nosso modo de enxergar o mundo individual e coletivamente. Diretor polonês Jerzy Grotowski – turnê Itália 54 | Subtexto | Revista de Teatro do Galpão Cine Horto Ficaram de fora também os processos de criação e direção internas – “Um Molière imaginário” (Eduardo Moreira), “Um trem chamado desejo” (Chico Pelúcio) e “Till, a saga de um herói torto” (Julio Maciel). Não porque sejam menos importantes, mas porque ficaram para um outro livro. Mera questão de demarcação de um território de trabalho. Acho que o livro lança uma reflexão mais detida sobre os primeiros anos de existência do grupo, o chamado período “heroico”, que vai da fundação do Galpão até mais ou menos 1991, com a montagem de “Álbum de família”, de Nelson Rodrigues, com direção de Eid Ribeiro. Isso porque a história do Galpão é muito mais conhecida a partir da explosão de “Romeu e Julieta”, que foi, sem sombra de dúvida, um marco. Existem muitas lacunas de informações sobre esse primeiro período e frequentemente a importância desses primeiros anos de formação é relegada a um segundo plano. Mas a luta e as sementes forjadas nesses primeiros nove anos foram absolutamente fundamentais e constituintes da base artística do Galpão. Sem dúvida, que em “Romeu e Julieta”, o grande mérito do Gabriel foi, além de ter criado uma encenação arrebatadora, ter usado até as últimas consequências o potencial criativo de um grupo de atores que já trabalhava intensamente há nove anos e que estava pronto para explodir seu processo criativo. Eu diria que a grande pergunta que perpassa todo o livro é como um grupo de atores conseguiu e consegue manter acesa a chama viva do teatro por tantos anos, buscando novos caminhos que nos tirem do conforto do já conquistado e que, muitas vezes, se tornou uma referência de sucesso junto ao público. É alimentar essa chama de desassossego e de inquietação, com tanta paciência e perseverança que, acredito eu, mantém de pé a fascinante experiência teatral do Galpão. E, para concluir, eu diria que esse livro foi uma tentativa não só de expor e tornar pública essa experiência, mas também de refletir e repensar comigo mesmo essa trajetória. Refazer os passos dessa caminhada que, no fundo, tenta compreender e fazer jus a um possível sentido de ser do teatro. Cine Horto em Foco 56 | Subtexto | Revista de Teatro do Galpão Cine Horto Cine Horto em Foco | Núcleos de Pesquisa do Galpão Cine Horto: A teoria na prática Lydia Del Picchia1 Para falar sobre o nascimento dos Núcleos de Pesquisa, sinto-me impelida primeiramente a esclarecer um pouco sobre o funcionamento do Galpão Cine Horto como um todo desde sua fundação, pois os novos projetos sempre nos surgiram não como ideias prontas e preconcebidas, mas quase como consequência, como possibilidade de aprofundamento, de ampliação ou de expansão de uma ação já consolidada. Nesse sentido, o projeto mais fértil foi, sem dúvida, o Oficinão, atividade pensada em 1998 para inaugurar o contato do Galpão Cine Horto com a comunidade artística de Belo Horizonte. Dele, que ainda hoje abriga vários outros projetos, surgiram vários filhotes, tais como: a Oficina de Dramaturgia, coordenada por Luis Alberto de Abreu (1999 a 2002), o Festival de Cenas Curtas (2000 a 2010), a Oficina de Direção, coordenada por Aderbal Freire Filho (2001 e 2002), o Cena 3 x 4, em parceria com a Maldita Cia. de Teatro (2003 a 2005), o Pé na Rua (2005 a 2010). O Galpão Cine Horto sempre nos pareceu – e com o tempo confirmou sua forte vocação para isso – um espaço propício a experimentações e riscos de diversas origens: de linguagem, estéticos, pedagógicos, de modos de produção, de criação de projetos, e, principalmente, de misturas de tudo isso. A possibilidade de tentar sem a obrigação de acertar sempre produz receitas interessantes e aumenta a vontade de continuar testando novos ingredientes. Desde o início de nossas atividades procuramos oferecer diversos cursos e oficinas nas áreas de Teatro (Rita Clemente, David Dolpi, Iara Fernandes), Dança (Dudude Herrmann, Daniela Penna, Heloísa Domingues), Música (Paulinho Silva, Wilson Lopes), Canto (Babaya), Vídeo (Cláudio Costa Val, Sérgio Penna), Circo (Alexandre Marques), Clown (Bete Penido), Yoga (Sofia Martins), Capoeira (Márcio Gunga), Esgrima (Ricardo Maqui), entre tantas outras. Com o passar do tempo, as aulas mais diretamente ligadas à formação prática do ator acabaram se transformando nos Cursos Livres de Teatro – estruturados como cursos básicos de formação continuada e progressiva, atualmente contando com 1 Atriz do Grupo Galpão e Coordenadora Pedagógica do Galpão Cine Horto 57 58 | Subtexto | Revista de Teatro do Galpão Cine Horto oito professores que se revezam em cinco módulos semestrais para adultos, além de turmas para crianças e adolescentes. As demais oficinas passaram a funcionar, até 2008, como atividades eventuais. Mostra dos Núcleos de Pesquisa do Galpão Cine Horto – outubro de 2010 | Nessa época, partindo de uma análise provocada por um seminário interno, percebemos que essas oficinas estavam cada vez mais distantes dos demais projetos da casa, principalmente pela falta de um conceito que as unisse, já que, muitas vezes, elas aconteciam mais por questões de oferta do que por demandas internas ou de um projeto específico. Foram algumas das questões levantadas:“As oficinas avulsas estão ficando superficiais; precisamos debater as diferenças entre Curso, Oficina, Workshop e seus alcances; precisamos compartilhar um conceito dentro da equipe; investir em parcerias com entidades que já possuem algum trabalho de formação; precisamos de pessoas propositivas que queiram fazer um trabalho prático; propostas de um trabalho continuado e que abre espaço para o diálogo com os projetos da casa nos interessam mais” (reuniões da Coordenação Pedagógica). Foi então que decidimos que, a partir de 2009, não mais ofereceríamos oficinas de curta duração, a não ser aquelas que estivessem ligadas a um projeto maior, como, por exemplo, as do Galpão Convida, ou as realizadas pelo Pé na Rua em viagens do Cine Horto na Estrada. Cine Horto em Foco | 59 Exatamente nesse momento em que buscávamos novas alternativas de lidar com a formação, fomos procurados pela jornalista de moda Ana Luísa Santos, que nos oferecia uma oficina em que parte do trabalho desenvolvido com os alunos seria o estudo e a catalogação do acervo de figurinos do Grupo Galpão, objetivo maior de sua pesquisa. Ela propunha um formato com aulas expositivas alternadas com palestras e atividades práticas. Imediatamente percebemos ali a enorme possibilidade de o Galpão Cine Horto oferecer outras oficinas nesse formato, que aliassem teoria e prática, esta diretamente ligada aos projetos artísticos da casa. A ideia vinha ao encontro dos nossos desejos e tinha tudo para ocupar uma lacuna existente no mercado cultural de Belo Horizonte. Surgia assim o embrião dos Núcleos de Pesquisa, que inaugurou seu formato com o Núcleo de Pesquisa em Figurino, Moda e Cultura, em março de 2009. Aula Inaugural do Núcleo de Pesquisa em Figurino, Moda e Cultura – 2009. Coincidentemente (acreditamos em coincidências?), nesse mesmo ano, a também jornalista Carolina Braga nos procurou propondo uma oficina de Jornalismo Cultural, que teria o Festival de Cenas Curtas como base para suas aulas. A atividade acabou se transformando no segundo piloto dos Núcleos de Pesquisa. Percebendo a oportunidade que se desenhava, convidamos Romulo Avelar, nosso parceiro de longa data e coordenador da oficina de Produção e Gestão Cultural, realizada desde 1999, a fazer parte do projeto. Sua oficina naquele ano já havia acontecido, mas fizemos uma carta-convite aos ex-participantes, oferecendo àqueles que tivessem interesse a oportunidade de fazerem uma 60 | Subtexto | Revista de Teatro do Galpão Cine Horto espécie de “laboratório prático” acompanhando as Coordenações de Produção e de Planejamento do Galpão Cine Horto e também do Grupo Galpão. Convocamos ainda outro antigo parceiro, Luis Alberto de Abreu, para que, juntamente com Nina Caetano, coordenasse o Núcleo de Pesquisa em Dramaturgia, com a tarefa de dar suporte à segunda edição do Cena Espetáculo, abrindo espaço para mais um exercício prático. Então, de março a dezembro de 2009, quatro pilotos decolaram com seus projetos, sem saber exatamente como ou quando iriam aterrissar! Acho que posso dizer que o projeto foi um sucesso! Não somente pelo número de participantes e profissionais envolvidos, mas, principalmente, pela janela que claramente se abria para a possibilidade da pesquisa aliada à prática artística, contribuindo inclusive para o arejamento dos projetos mais antigos do Galpão Cine Horto que, volta e meia, precisam ser repensados para não caírem na mesmice daquilo que “já está funcionando”... Mostra dos Núcleos de Pesquisa do Galpão Cine Horto – outubro de 2010 | O próximo passo foi pensar na continuidade dos módulos já existentes e, aí, mais uma vez, aparece o desafio de formatar um projeto em andamento. O modelo inicial, apesar da nossa grande expectativa, havia sido tímido e nos deparávamos agora com alguns “remendos” do projeto, que alcançou uma proporção muito maior que a esperada. Era o momento de repensar o formato e, se fosse o caso, parar e começar de novo. Decidimos então, como se diz por aqui, “atolar o pé na jaca”. Apostando novamente no sucesso do projeto, convidamos outros profissionais, todos já parceiros do Galpão Cine Horto em ações anteriores, para coordenar mais quatro Núcleos de Pesquisa: Bruna Christófaro e Tereza Bruzzi (Cenografia), Wladimir Medeiros (Iluminação Cênica), Ricardo Garcia (Sonorização), e Glaucia Vandeveld (Teatro para Educadores). Diante desse desafio, percebemos a necessidade de uma coordenação única que pudesse articular os diversos Núcleos entre si e também com os outros projetos do Galpão Cine Horto. Convidamos então a professora, atriz e diretora Kenia Dias, vinda de Brasília para Cine Horto em Foco | 61 edição do Oficinão Residência de 2008, que assumiu a função de Coordenadora Geral dos oito Núcleos de Pesquisa que funcionariam em 2010. A esse time de coordenadores foi pedido que montassem, individualmente, seu projeto ideal, com as particularidades e especificidades de cada conteúdo, e que contemplassem tanto um primeiro momento de preparação/formação, quanto sua continuação, tentando abrir um leque de opções, que se mostrariam viáveis ou não com o tempo. Solicitamos também que envolvessem ao máximo os projetos do Galpão Cine Horto, bem como suas equipes. Nesse momento de insanidade, a principal questão que insistia em não sair da pauta era a preocupação com o crescimento súbito da casa, pois o significativo aumento dos Núcleos geraria novos custo e outras demandas, como a ocupação do espaço físico e a contínua assistência de pessoal (técnica, produção, etc.). Precisávamos, com urgência, pensar numa forma de financiamento. Não sabíamos se, em curto prazo, teríamos capacidade para a sustentação de tantos núcleos, pois os pilotos haviam funcionado como oficinas pagas pelos participantes e complementados com recursos próprios. Confesso que, por várias, vezes tentei colocar o pé no freio, mas a força do projeto falou mais alto. A solução – em parte – veio de uma aprovação pelo Fundo Municipal de Cultura de Belo Horizonte, que subsidiou uma etapa do projeto, continuando o restante sendo financiado pelo pagamento dos participantes. Como contrapartida pelo aporte do Fundo, cinco bolsistas, indicados pela Fundação Municipal de Cultura, participam das atividades e pesquisas – em cada Núcleo. Mostra dos Núcleos de Pesquisa do Galpão Cine Horto – outubro de 2010 | 62 | Subtexto | Revista de Teatro do Galpão Cine Horto Com o tempo, outras perguntas foram aparecendo e nos ajudando a definir caminhos: “Os participantes são alunos ou artistas pesquisadores? O que haveria de comum entre os diversos Núcleos? Produção é tão diferente do artístico... O que une os núcleos é a discussão a partir da prática, da pesquisa. Pode ser feito um revezamento de Núcleos, abrindo-se a oportunidade para novos projetos? A pesquisa não pode parar. É preciso que haja continuidade; precisamos trabalhar por módulos, sempre teremos pessoas novas; não há pré-requisito para participar, nem conhecimento prévio; é difícil oficializar, organizar os núcleos, sem um padrão de funcionamento. As pessoas precisam entrar sabendo a que tipo de conteúdo terão acesso, para que, depois, sigam na pesquisa que já vem sendo realizada, ou ainda, outros grupos de pesquisa se formem.” (Grupos de Trabalho – Seminário Interno 2010) Algumas dessas questões ainda estamos tratando de entender. São elas que nos movem. Mas, com a experiência, algumas respostas também estão surgindo: “O módulo básico deve ter começo, meio e fim. O coordenador deve propor um caminho, um plano pedagógico; buscar a formação horizontal, a experiência se dá através da criação, projetos não devem ficar presos a uma formalidade; os laboratórios práticos podem começar a qualquer momento, assim que surgirem propostas dentro dos grupos; os projetos do GCH estarão abertos a receber as pesquisas de qualquer Núcleo; a Coordenação Geral deve tentar cruzar os interesses de vários Núcleos, para chamar um palestrante, por exemplo, ou para propor uma atividade conjunta.” (Reuniões do Conselho Gestor com as Coordenações dos Núcleos de Pesquisa) Cine Horto em Foco | Núcleos de Pesquisa do Galpão Cine Horto: uma experiência inventiva Kenia Dias1 O Galpão Cine Horto, prestes a completar 15 anos de existência, atua como um importante espaço de trabalho para artistas/pesquisadores que têm a oportunidade de imergir em projetos voltados para questões didático-pedagógicas e de cunho estético-artístico no campo das artes cênicas. A consolidação e o crescimento dos Núcleos de Pesquisa, cursos e projetos como Oficinão, Cine Horto Pé na Rua, Conexão Galpão e Festival Cenas Curtas vêm acompanhados de um consequente aumento na demanda de profissionais e artistas em formação que se interessam, seja pelas especificidades dos elementos constitutivos da cena e suas interações, seja pelas estratégias de produção e divulgação de projetos, ou ainda por métodos e investigações calcados no terreno do teatro-educação. Em meio a tantas perguntas e possibilidades, fica a certeza de que o esforço tem sido válido, pois ganhamos na mesma proporção em que investimos. Como criador e QG dessa santa loucura, o Galpão Cine Horto cresce e ganha maturidade procurando munir-se constantemente de material que possa servir aos Núcleos, desde suas salas que foram equipadas para receber telões, projetores, refletores, computadores, mesas de som e de luz – e dá-lhe liga e desliga de equipamento, carrega e troca de sala que lá vem mais! – até a aquisição de acervo especializado para o Centro de Pesquisa e Memória do Teatro, a abertura de seus espaços, de seus cenários, enfim... E se redescobre sendo começo, meio e fim, matéria e objeto de cada uma dessas pesquisas, perguntas, investigações e indagações. Navegando na dor e na delícia de ser o que é... 63 Mostra dos Núcleos de Pesquisa do Galpão Cine Horto – outubro de 2010 1 Atriz e diretora. Formada em dança e teatro, é mestre em Artes pela UnB, lecionando nessa instituição aulas de teoria e prática teatral. É professora do Cefar e ministra aulas de técnica de improvisação na Cia. de Dança do Palácio das Artes. Coordenadora dos Núcleos de Pesquisa do Galpão Cine Horto em 2010. É Professora do Galpão Cine Horto há dois anos. 64 | Subtexto | Revista de Teatro do Galpão Cine Horto A partir da premissa básica na qual se fortalecem as particularidades de interesses enquanto se reforça o diálogo e a conexão entre eles, os Núcleos de Pesquisa iniciaram, neste ano de 2010, uma fértil fase de ampliação e desdobramentos. Ampliação pelo fato de, antes, haver quatro núcleos funcionando de forma isolada e que, agora, são oito desenvolvendo suas atividades simultaneamente com naturezas e dinâmicas distintas de trabalho.2 E desdobramentos, pelo fato de os núcleos não reduzirem as atividades em si. Pelo contrário, a tentativa foi a de traçar (na medida do possível) um plano de diálogo entre as propostas de pesquisa de cada coordenador, levar em consideração os interesses e projetos de investigação dos participantes a serem desenvolvidos e, por último, fazer um estudo sobre quais projetos do Galpão Cine Horto poderiam relacionar e abarcar em seus processos os Núcleos de Pesquisa. Além de os coordenadores serem profissionais reconhecidamente qualificados por suas trajetórias referenciadas na investigação de linguagens e suas possíveis interfaces, essa estratégia de diálogos e intercâmbios acaba por caracterizar e fortalecer o lugar da pesquisa nos núcleos, pois tornam-se evidentes os seguintes aspectos: Cine Horto em Foco | 65 Essas diversas camadas de atuação que tanto o participante quanto o coordenador experienciam estão, nesse exato momento, em processo de descoberta e avaliação. Cada núcleo, ao iniciar as atividades junto aos projetos do Galpão Cine Horto , demanda um tipo de articulação e envolvimento e, consequentemente, novos enfrentamentos são percebidos de ordem reflexiva e prática: é possível afinar o conhecimento prático/teórico que fora apreendido e transformado ao longo das atividades dos núcleos com a realidade de processos de criação grupais que envolvem horários, prazos, profissionais, ideias em andamento e prioridades? Quais são os percursos criativos adotados pelo participante ao acompanhar um processo, ou ao assumir uma função inserida nele? No caso dos coordenadores, como encontrar estratégias de orientação com relação ao participante que se depara com propostas e concepções de criação elaboradas por outros profissionais? Até onde vai o envolvimento do coordenador com os profissionais envolvidos nos projetos? 1 - A função do coordenador não se resume a oferecer uma certa quantidade de informação e conhecimento ao participante, mas ampliar o seu horizonte de recepção, análise e produção a partir de textos e práticas que ele próprio propõe nos encontros e daquilo que ele (o participante) traz como objeto e interesse de pesquisa; 2 - As relações com os projetos da casa coloca o participante no campo da experimentação imediata, ora assumindo a função, por exemplo, de cenógrafo, figurinista ou dramaturgo, ora acompanhando o processo do profissional responsável pela iluminação, produção ou trilha sonora, por exemplo, de determinados projetos; 3 - Há uma descentralização na relação entre coordenador e participante, quando este começa a se envolver com projetos da casa e tem que dialogar com outros processos de criação e profissionais. 2 A saber, são eles: Produção e Gestão Cultural, coordenado por Romulo Avelar; Jornalismo Cultural, por Carolina Braga; Figurino, por Ana Luisa Santos; Sonorização, por Ricardo Garcia; Cenografia, por Bruna Christófaro e Tereza Bruzzi; Iluminação, por Wladmir Medeiros; Dramaturgia, por Nina Caetano e Teatro para Educadores, por Gláucea Vandeveld. Mostra dos Núcleos de Pesquisa do Galpão Cine Horto – outubro de 2010 São questões de mérito processual, em que as respostas ou os apontamentos estão no dia a dia da experiência criativa em grupo. Uma das riquezas dos Núcleos de Pesquisa, nesse momento, é justamente compreender formas de articulação, aprendizagem e criação enquanto se participa de uma experiência inventiva prática, pensada e vivida no instante dela mesma.3 3 Para uma melhor elucidação, ver a tabela relacional entre os projetos do GCH e os Núcleos de Pesquisa ao final do texto. 66 | Subtexto | Revista de Teatro do Galpão Cine Horto A partir do momento em os participantes começam a interagir com os projetos da casa, não há uma regra a seguir, mas possibilidades de intervenção. Há aquele participante, por exemplo, que frequenta os ensaios e reuniões e interage diretamente com os artistas envolvidos. Essa experiência presencial junto com os registros em vídeo é compartilhada e discutida nos encontros semanais dos núcleos com toda a turma e a coordenação. Dessa forma, aqueles que têm o interesse, mas não podem comparecer aos ensaios, participam de forma indireta do processo de pesquisa do projeto em desenvolvimento. O coordenador também sugere práticas a serem realizadas pelos participantes a partir das proposições feitas pelos diretores, atores, cenógrafos e iluminadores envolvidos. Esse processo se iniciou, ao mesmo tempo, de uma forma organizacional e espontânea em alguns núcleos (sonorização, iluminação, cenografia). Em outros, as estratégias são diferentes como, por exemplo, o Núcleo de Jornalismo Cultural, no qual os participantes interagem de imediato com o Festival Cenas Curtas através da escrita e postagem no blog criado por eles próprios, ou o Núcleo de Teatro para Educadores, cuja intervenção feita no FETO - Festival de Teatro Estudantil foi feita através de uma oficina ministrada para uma escola que não foi selecionada a participar do festival. Temos como exemplo, também, no Núcleo de Dramaturgia, um participante que exerce a função de dramaturgo na montagem da peça do núcleo de criação para adolescentes. Ele é orientado pela coordenadora Nina Caetano, mas tem um envolvimento e um papel decisivo no pensamento e na elaboração dramatúrgica do espetáculo. Mostra dos Núcleos de Pesquisa do Galpão Cine Horto – outubro de 2010 No momento, os Núcleos de Pesquisa reúnem boas perspectivas de crescimento qualitativo, pois se, por um lado, temos profissionais altamente qualificados para coordenar as pesquisas, por outro, temos uma demanda de artistas profissionais e em formação interessados na verticalização e no intercâmbio de saberes. Cine Horto em Foco | Além disso, é importante salientar que a viabilidade dos Núcleos de Pesquisa se efetiva a partir do momento em que se investe no potencial investigativo do artista, estimulando o pensamento e a abertura de novas reflexões, proposições e práticas. O que temos aqui é um campo fértil de estratégias de pesquisa que abrangem uma significativa imersão em diversas áreas do conhecimento das artes cênicas. Refletir e praticá-las é uma das ações dos Núcleos de Pesquisa do Galpão Cine Horto que fortalecem e reafirmam aquilo que vem sendo gerado e produzido no cenário nacional e internacional de centros acadêmicos e culturais, festivais, encontros e reuniões de pesquisadores e artistas: diversidade de perguntas e de linhas investigativas que oxigenam e afetam concepções preestabelecidas e inaugurais de conceitos, tendências e fazeres relacionados à arte da cena. 67 68 | Subtexto | Revista de Teatro do Galpão Cine Horto Cine Horto em Foco | Tabela relacional dos projetos do Galpão Cine Horto com os Núcleos de Pesquisa PROJETOS ENVOLVIDOS NÚCLEOS DE PESQUISA FESTIVAL DE CENAS CURTAS 2009 e 2010 Jornalismo Cultural, Iluminação, Sonorização PÉ NA RUA 2009 (“Sonho de uma Noite de São João”) Figurino CONEXÃO GALPÃO 2010 (Ações Formativas) Sonorização, Teatro para Educadores CENA-ESPETÁCULO 2009 (“A Mudança”) e 2010 (“1999 = 10”) Dramaturgia, Figurino, Iluminação, Jornalismo Cultural OFICINÃO 2010 (“Pop Love”) Cenografia, Sonorização, Iluminação CENTRO DE PESQUISA E MEMÓRIA DO TEATRO Figurino GRUPO GALPÃO Produção e Gestão Cultural, Figurino 2009 (“Till – a saga de um herói torto”) CURSOS LIVRES 2010 (Núcleo de Criação para Adolescentes) Cenografia, Dramaturgia FESTIVAL ESTUDANTIL DE TEATRO (Projeto em parceria com o Galpão Cine Horto) 2010 Produção e Gestão Cultural, Teatro para Educadores Grupo Teatro Invertido: representação e publicação1 Sara Rojo2 Toda fala teatral que se instala na cidade propõe uma “desordem que interfere nos fluxos centrais estabelecidos.” (CARREIRA, 2008, p. 71). Ainda que concordemos com André Carreira, parece-nos que devemos fazer distinções no grau de interferência de cada proposta. Nos últimos anos, diversos grupos mineiros registraram suas experiências no formato de livros: o Galpão lançou as suas em 2007; o Grupo Oficcina Multimédia e Ione Medeiros, em 2007; a Cia Acômica, em 2007, e o Mayombe Grupo de Teatro está em fase de organização de um livro que será lançado em 2011 e dará ao público o conhecimento das peças que foram montadas em seus 15 anos de formação. A esse movimento soma-se, este ano, o livro do Grupo Teatro Invertido, “Cena Invertida – Dramaturgias em processo”. Essa necessidade de registrar os processos que hoje apresentam os grupos mineiros, e que se diferencia do que acontecia em épocas precedentes (das quais temos poucos documentos escritos), merece uma reflexão. O registro é também uma forma de interferência não só na cidade, mas também na historiografia do teatro brasileiro. Só que estamos diante de uma nova forma de fazê-lo (os próprios sujeitos assumem essa responsabilidade). Portanto, o registro é da própria memória, entendendo esta como categoria afetiva, desempenho dos corpos e reflexão teórico-prática. Nesse sentido, é fundamental destacar que a escrita é um exercício, dentro do fazer teatral, que adquire um caráter político no campo da arte. O primeiro livro do Grupo Teatro Invertido reúne estudos críticos, textos, fotografias e análises dos próprios trabalhos, sob a coordenação editorial de Nina Caetano (DEART/UFOP). Dentro de cada bloco, gostaríamos de mencionar os eixos centrais. 1 Este texto surge como uma reflexão a partir do livro CAETANO, Nina (Coord. editorial). Grupo Teatro Invertido. Cena Invertida - Dramaturgias em processo. Belo Horizonte: Edições CPMT, 2010. 2 Professora Associada da UFMG. Pesquisadora do CNPq e da Fapemig e Diretora do Mayombe Grupo de Teatro. 69 70 | Subtexto | Revista de Teatro do Galpão Cine Horto Cine Horto em Foco | 71 Espetáculo Estado de Coma – Grupo Teatro Invertido Nos estudos críticos: o texto de Fernando Mencarelli (EBA/UFMG) traz uma análise histórica e uma conceitualização do que se entende como “dramaturgia em processo” por meio de um estudo da situação dos grupos brasileiros (segundo os dados proporcionados pelo autor, quase 3.000). O texto de Davi de Oliveira Pinto (DEART/UFOP) faz uma reflexão comparativa entre o texto original de Brecht e Nossa pequena Mahagonny, do grupo Teatro Invertido, colocando ênfase no “caráter géstico” desta última. Rita Gusmão (EBA/UFMG) analisa a montagem de Lugar cativo através das significações que trazem para o texto espetacular os diversos enunciadores. Luiz Carlos Garrocho, artista e filósofo, enfatiza os dois planos presentes nas textualidades que perpassam Medeiazonamorta: significação e sensação. Marcos Antônio Alexandre (FALE/UFMG) centra seu estudo nas linguagens que trazem à tona a questão da memória em Proibido retornar. Antonio Hildebrando (EBA/UFMG) teoriza e toma uma posição para o estudo da relação cena-público em Estado de coma. Nos estudos dos próprios atores: Rita Maia discorre sobre a formação do ator a partir das experiências desenvolvidas pelo Grupo Teatro Invertido no processo colaborativo; e o coletivo, como um todo, se apresenta num texto introdutório à leitura das obras. O terceiro bloco é constituído pelo registro das próprias peças que, mesmo sendo diferentes (nas temáticas e nas linguagens estéticas empregadas), têm fios condutores que remetem à questão da representação e dos limites entre a ficção e a realidade: “William: Moisés, estamos ao vivo.” (Nossa pequena Mahagonny, 2010, p. 55). “Lumen: Às vezes parece que sinto como se a plateia estivesse aqui, parece que ouço as vozes e sinto os olhares.” (Lugar cativo, 2010, p. 78). “Hospedeira volta para cena e declara para o público: Estão esperando o quê?” (Medeiazonamorta, p. 148). “Moacir para um espectador: É só ter um pouquinho de paciência que ele aprende rápido.” (Proibido retornar, p. 174). “Doutor: Boa noite! Mostra um prato. A senha. Enquanto recolhe as senhas, ele conversa com os espectadores.” (Estado de Coma, p. 202). Essa preocupação com a representação é uma constante no teatro atual, inclusive no campo acadêmico hoje se fala de atuação performática, que seria aquela que procura atravessar os limites da representação para caminhar em direção a essa zona de indeterminação que constitui o presente do ator e do público. De alguma maneira, consiste numa tentativa para produzir um encontro além das Espetáculo Proibido Retornar– Grupo Teatro Invertido 72 | Subtexto | Revista de Teatro do Galpão Cine Horto Cine Horto em Foco | cultural, que orientam e dialogam com a produção artística e com as leituras realizadas dentro desse sistema, mas que não o fazem necessariamente da mesma forma, podem surgir reflexões que vão além desse sistema. Análises estéticas dentro dos parâmetros estabelecidos por cada peça em questão possibilitarão um caminho de acesso à decodificação das mesmas dentro do próprio jogo que elas propõem. Trata-se de avançar para a realização de uma crítica que reflexione sobre as produções de arte sem estabelecer hierarquias redutoras entre suas linguagens e com uma metodologia dinâmica e capaz de dialogar de maneira multifacetada com os distintos tipos de criações. O Teatro Invertido utiliza, em cada uma de suas peças, estéticas diferentes que perpassam desde o documentário até o claramente ficcional, como os estudos críticos que integram o livro assinalam. O interessante, e que gostaríamos de pontuar nestas poucas palavras, é que todas as peças do Teatro Invertido surgem da dialética entre o pessoal e o social e no limite entre a ficção e a realidade, e é nesse âmbito que nós, críticos de suas produções, podemos atuar. Espetáculo MedeiaZonaMorta– Grupo Teatro Invertido personagens apresentadas. O trabalho do Teatro Invertido reflete também essas preocupações. Não podemos desconsiderar que estas ideias se gestam dentro de um mundo neoliberal, que separou o desenvolvimento tecnológico-econômico do culturalartístico e no qual se primou pelo bem-estar de alguns sobre o de outros, produzindo, assim, um processo de desintegração humano e ético que alguns coletivos teatrais rejeitam. O conflito, geralmente, aparece no choque entre essas preocupações da ordem da ética e da vida e as que surgem no campo formal. Parece-nos que a questão é estabelecer, no produto artístico, um diálogo entre a arte, a história e a cultura, intervindas pela subjetividade e pelos discursos. O Teatro Invertido não foge desse desafio nas suas peças nem em seu livro. O trabalho desse grupo, ou de outros com esses tipos de preocupações éticas e artísticas, requer que pensemos a forma de fazer crítica. Se a ideologia preexiste às linguagens criadas no espetáculo e em uma mesma produção existem diversas concepções do mundo — portanto, diversas ideologias que podem entrar em choque ou mesmo criar outras —; não cabe analisar as peças só como linguagens estéticas ou como produtos da História e, menos ainda, entendê-las como estáticas ou unívocas; pois se cria um vazio ou uma incapacidade de ler o conjunto da obra apresentada. Dessa maneira, se partimos do princípio de que cada sistema possui ideologias, imagens constituintes de uma determinada visão 73 74 | Subtexto | Revista de Teatro do Galpão Cine Horto Teatro e Politica | Teatro e Política 75 76 | Subtexto | Revista de Teatro do Galpão Cine Horto Teatro e Politica | Políticas Públicas para a cultura: um olhar panarâmico sobre o Brasil, Minas Gerais e Belo Horizonte Chico Pelúcio1 e Leonardo Lessa2 Os últimos anos, certamente, foram importantes e definidores de novos caminhos para a área cultural. Acompanhamos mudanças de conceitos e paradigmas que vêm norteando as ações não só de quem pensa, mas também de quem financia a Cultura, tanto no setor público, quanto no privado. Com as eleições de 2010 fecharam-se dois longos ciclos de governos sob a mesma batuta, em âmbito federal e no estado de Minas Gerais. Consideramos, portanto, que esse fato merece de nossa parte uma análise aguda e apartidária. Aproveitamos a oportunidade para também incluir nesta reflexão a atuação do governo municipal de Belo Horizonte que, em última instância, é uma gestão de continuidade. Para isso, optamos por uma abordagem que extrapole o universo do teatro, nossa área de atuação, e lance um olhar crítico sobre o contexto das políticas culturais nas três esferas. Ainda que de forma panorâmica, pretendemos apresentar ao leitor nossa perspectiva de artistas e gestores, portanto, repleta de parcialidades, e contribuir para enriquecer a discussão em torno desse fervilhante assunto, num momento em que novos governantes assumem o leme da gestão pública. Depois de oito anos com os mesmos representantes à frente do governo federal e estadual, podemos constatar avanços na área da Cultura. Já em Belo Horizonte, o que vem acontecendo nos últimos seis anos são fatos lamentáveis que, somados, têm gerado grandes retrocessos para o segmento. Correndo o risco das generalizações, podemos afirmar que, nacionalmente, ganhou vulto a retomada das responsabilidades constitucionais do Estado para com a Cultura. Com muitas dificuldades e algumas conquistas, o Governo Federal vem diminuindo o abismo entre teoria e prática, embora ainda haja muito que avançar. Capitaneando grande parte dos avanços nesse campo, o Ministério da Cultura (MinC), além de ampliar seus recursos orçamentários, ganhou espaço político dentro do próprio Governo e soube utilizar sua limitada estrutura parafortalecer sua atuação. A reativação efetiva da FUNARTE é uma prova disso. O papel de gerir e implementar programas de fomento às artes foi de fato 1 Ator, diretor, integrante do Grupo Galpão e diretor geral do Galpão Cine Horto. 2 Ator, integrante do Grupo Teatro Invertido e coordenador geral do Galpão Cine Horto. 77 78 | Subtexto | Revista de Teatro do Galpão Cine Horto assumido por essa fundação, que, também, nos últimos anos, ganhou papel de protagonista na articulação política entre os artistas e o Poder Público Federal. Uma antiga reivindicação do segmento cultural, ainda que tardiamente, foi posta em prática pelo executivo: a reforma da Lei Rouanet. Em seu último biênio de gestão, o Governo, através do Ministro Juca Ferreira, encorajou-se a iniciar publicamente um debate sobre a reformulação desse mecanismo de fomento. Basicamente, foram propostas mudanças que corrigem a distorção nefasta da política pública de investimentos em Cultura dos últimos 19 anos, ocasionada, sob nosso ponto de vista, por três motivos fundamentais: primeiro, a Lei Rouanet transferiu ao poder privado a decisão e a escolha do que patrocinar com dinheiro público incentivado; segundo, a progressiva ausência e omissão do Estado frente aos seus deveres constitucionais com a Cultura abandonou todos os segmentos sem apelo mercadológico; e, finalmente, a combinação desses dois fatores fez das leis de incentivo o único mecanismo público de financiamento à Cultura, influenciando estados e municípios, que tendem a acompanhar as políticas adotadas pelo Governo Federal. Levado ao público em março de 2009, um primeiro texto da nova lei apresentava diversas fragilidades que suscitaram polêmicas, por sua superficialidade em alguns pontos. O Procultura, novo nome dado à Lei Federal de Incentivo, esquentou um debate que já vinha sendo feito no interior de diversos movimentos da sociedade civil organizada, como, no âmbito das artes cênicas, o extinto Redemoinho - Movimento Brasileiro de Espaços de Criação, Compartilhamento e Pesquisa Teatral, que já vinha discutindo o Prêmio para o Teatro Brasileiro, orientado pelos mesmos princípios posteriormente propostos pelo MinC para a reestruturação da Lei Rouanet. O principal deles e, talvez, o que determina o grande avanço dessa gestão, é o reconhecimento da responsabilidade do Estado para com a Cultura, que se deve traduzir em muitas ações estruturantes, mas, principalmente, no investimento de recursos próprios de seu orçamento para o financiamento da área. Daí, a previsão do deslocamento da base desse investimento que, atualmente, se concentra no incentivo fiscal (mecenato) para o fomento direto (fundo orçamentário regido por editais), através de um Fundo Nacional de Cultura mais robusto e criterioso. Em 2010, último ano de governo, o Fundo Nacional foi setorizado e regido por editais públicos que exprimem demandas específicas de cada área da cultura. No campo das artes cênicas os recursos mais expressivos se concentraram em três vertentes, que contemplam a diversidade do segmento: manutenção de núcleos artísticos, produção artística e programação de espaços cênicos. Assim, o Governo Teatro e Politica | reconheceu a importância dos projetos de continuidade e seus equipamentos para a formação de uma nova cadeia produtiva, o que possibilitará a descentralização da criação, da formação, da produção e da exibição, contemplando mais pessoas e cidades. Nessa gestão, a prática da democracia participativa na elaboração das políticas para a Cultura ganhou canais diretos e organizados pelo Ministério, seja através de consultas públicas – como as realizadas no caso das reformas das Leis Rouanet e do Direito Autoral – seja pela realização de duas conferências nacionais, em 2008 e 2010. Sem dúvidas, o envolvimento de representantes da sociedade civil em instâncias consultivas do Poder Público mostrou-se como um dos caminhos de diálogo entre as duas esferas. A criação das Câmaras Setoriais, hoje Colegiados, embora seja uma instância governamental e represente parte dos segmentos artísticos, garantiu uma comunicação direta entre os diversos agentes culturais e os gestores do Estado. Entretanto, ainda é necessário que o MinC fortaleça o diálogo e reconheça, de fato, esse e outros fóruns como espaços legítimos de formulação e avaliação das políticas culturais. Ao reconhecer tais avanços, não podemos nos eximir de lançar uma visão mais crítica sobre o contexto político federal dos últimos oito anos. O Governo Lula, que assumiu o poder com tantas promessas, termina sua gestão contabilizando conquistas aquém de muitas expectativas, inclusive no campo da Cultura. A ideologização excessiva das discussões por parte dos setores envolvidos, sociedade civil organizada – seja de esquerda ou direita – e Poder Público Federal, omitiu dados importantes para um diagnóstico mais contundente da realidade dos investimentos em cultura no país, dificultando a criação de uma pauta mínima conjunta e mais fortalecida. No que diz respeito à Lei Rouanet, por exemplo, a afirmação de que grande parte dos recursos para o financiamento à Cultura está relegada ao controle dos executivos de marketing das grandes empresas através do incentivo fiscal é uma verdade parcial, uma vez que aproximadamente 30%3 dessa verba vêm de empresas estatais como a Petrobras, os Correios, o Banco do Brasil e a Caixa Econômica Federal. Ao confrontarmos esses dois dados, percebemos que, se no início de sua gestão o MinC tivesse coordenado conjuntamente com as empresas estatais seus investimentos em cultura, de modo a ampliar ações estruturantes do Governo, teriam sido minimizadas algumas distorções que o levam agora a reformular toda a legislação. Pouco ou quase nada se falou dessa alternativa de intervenção governamental direta no financiamento à cultura, embora possamos 3 Fonte: Secretaria de Fomento e Incentivo à Cultura – Ministério da Cultura 79 80 | Subtexto | Revista de Teatro do Galpão Cine Horto identificar um aumento de seleções públicas para patrocínios das estatais que serviram de exemplo, inclusive, para algumas empresas privadas. Essa mesma omissão se constata na conduta da administração federal em relação ao Fundo Nacional de Cultura. Hoje, elevado pelo Procultura a estrutura basilar do fomento, esse mecanismo esteve por oito anos funcionando como uma “caixa preta” inoperante, sem intervenções realmente significativas do MinC em sua regulamentação e na democratização do acesso a seus recursos. Diante desse quadro, numa análise consciente do contexto em que nos encontramos, seguimos com algumas perguntas que não podemos deixar de fazer nesse momento de transição de governos e de políticas: estará o MinC preparado estruturalmente para gerir com eficiência e agilidade as mudanças previstas no Procultura? Será possível operacionalizar, de forma objetiva e transparente, os complexos critérios previstos na nova lei? Qual será a ação do MinC para diminuir a evasão de recursos privados da área cultural que as mudanças na lei poderão provocar? Os últimos oito anos da ação do Governo de Minas Gerais na área da Cultura foram marcados por fases contraditórias. Nos dois primeiros anos do Governo Aécio, a Secretaria de Cultura simplesmente não operou, ficando jogada ao esquecimento e à total apatia. Nomeada para assumir a pasta em 2005, Eleonora Santa Rosa conseguiu, com amplo respaldo do governador, delinear fundamentos norteadores de uma política pública para a Cultura no estado. Dentre as diretrizes básicas estabelecidas, ganhou destaque a interiorização não só das ações diretas da Secretaria, mas também da orientação e distribuição dos recursos. O acesso aos bens culturais tornou-se mais democrático e ampliou-se o alcance de diversos programas de fomento a municípios do interior, especialmente àqueles localizados em regiões economicamente mais pobres, como o Vale do Jequitinhonha. Em quatro anos, a Secretaria de Cultura organizou e fortaleceu seus diversos órgãos vinculados, dando-lhes orientação precisa de atuação pública. A criação do Fundo Estadual de Cultura, garantido por lei, foi a mais importante e simbólica conquista dessa gestão. Também foram criados programas de fomento setoriais, como o Cena Minas e o Música Minas que, somados ao já existente Filme em Minas, marcaram a atuação do estado no fomento a projetos do segmento artístico profissional. Os editais públicos desses programas foram elaborados a partir de discussões com artistas, entidades e movimentos que representavam a produção contemporânea de cada área. O financiamento desses editais se deu Teatro e Politica | através de uma articulação da política pública desenhada pelo Governo e suas empresas estatais que, conjuntamente, definiram a distribuição dos recursos de seus patrocínios. Essa ação articulada contou com a colaboração do MinC em sua operacionalização e, ainda que por meio do mecenato, deu claramente uma destinação pública para o dinheiro público, fortalecendo a ação das políticas culturais do estado e contribuindo para a redução das distorções causadas pelas leis de incentivo fiscal. Essas e outras estratégias para ampliação do orçamento da pasta possibilitaram que o investimento em áreas anteriormente colocadas em segundo plano fosse retomado. Exemplo disso foi a instalação de bibliotecas públicas em todos os municípios de Minas Gerais e a duplicação do número de Pontos de Cultura, em parceria com o MinC. Vale ressaltar, ainda, que o potencial dessa iniciativa deve ser mais explorado pelo Governo do Estado, através da extensão do mecanismo de seleção pública por editais também para projetos de empreendedores da sociedade civil. Programas como CEMIG Cultural e COPASA Cultural podem definir seus patrocinados por meio de editais públicos alinhados com a política da Secretaria de Cultura e as demandas dos segmentos artísticos e respaldados por comissões paritárias, representativas e especializadas. Infelizmente, entre 2008 e 2010, assumiram o cargo dois outros secretários de cultura pouco representativos, que fizeram com que essas importantes ações perdessem parte de seu lastro e não conseguissem avançar. Entre uma série de equívocos, nesse período, a Secretaria propôs a extinção do percentual de contrapartida obrigatória das empresas que patrocinam via Lei Estadual de Incentivo, congelou os recursos destinados ao Prêmio Cena Minas e ameaçou a realização do Programa Música Minas e do convênio com os Pontos de Cultura, estes dois últimos fatos revertidos graças a uma grande mobilização do setor. Outro ponto que não pode deixar de ser registrado é o fato de Minas Gerais ser um dos três estados brasileiros que ainda não possuem um Conselho Estadual de Cultura, o que compromete substancialmente a participação e o controle da sociedade na elaboração e aplicação das políticas para a Cultura no estado. Em Belo Horizonte, o que se constata é um grande retrocesso, crescente e preocupante. A cultura da capital mineira vive uma fase crítica, iniciada com a extinção truculenta da Secretaria Municipal de Cultura. Esse episódio envolveu o ex-prefeito Fernando Pimentel e vereadores que aprovaram, ao “apagar das luzes” do ano de 2004, uma reforma administrativa que previa a extinção dessa Secretaria, transformando-a em Fundação Municipal. Essa manobra 81 82 | Subtexto | Revista de Teatro do Galpão Cine Horto autoritária abriu uma série de crises, desgovernos e paralisações, colocando a política municipal na contramão do que vinha acontecendo no estado e no país. Enquanto o Governo Federal dava sinais de comprometer parte de seu orçamento com o financiamento direto à Cultura, a Prefeitura de Belo Horizonte extinguia sua Secretaria com o principal argumento de que essa nova estrutura administrativa possibilitaria a captação de recursos junto à iniciativa privada, via leis de incentivo. Teatro e Politica | 83 data marcada, uma equipe de diretores da Fundação assumiu a coordenação do evento e, superando as expectativas, conseguiu viabilizar um Festival grandioso, com uma programação de qualidade. A crise anteriormente instaurada trouxe renovação ao FIT BH e, o que é mais importante, abriu um canal direto de comunicação entre artistas e o Poder Público, e a promessa de que esse diálogo será levado à frente como fundamental para a continuidade desse projeto garantido por Lei e que tem papel estruturante para o teatro mineiro. A partir de então, o que se viu foi uma Fundação Municipal de Cultura pouco atuante, que enfrenta sérios entraves burocráticos e a paralisação de projetos antigos e bem sucedidos, como o Arena da Cultura, o BH Cidadania e o Arte Expandida, dentre outros. O decreto que proibiu a realização de eventos culturais na Praça da Estação e a ameaça à realização da edição de 2010 do Festival Internacional de Teatro são fatos que ganharam repercussão nacional e comprovam o descaso da gestão do prefeito Márcio Lacerda com a vocação cultural da cidade. foto do Movimento Praia da Estação (http://pracalivrebh. wordpress.com/ - postado em 20/12/2010 Esses dois episódios mobilizaram grande parte do setor cultural em manifestações públicas de repúdio a tais condutas. O Movimento Praia da Estação levou à Praça, por finais de semana seguidos, dezenas de manifestantes com roupas e acessórios de banho, numa espécie de protesto festivo contra a proibição de eventos no espaço público. A Prefeitura se dispôs ao diálogo e revogou o decreto imposto, substituindo-o por uma regulamentação de uso da Praça através da análise de cada evento por uma comissão. Ainda que nesse desfecho a paridade entre os membros do Poder Público e da sociedade civil nessa comissão não tenha sido respeitada, o bom senso e a democracia prevaleceram. Conclusão semelhante se deu no possível adiamento da 10ª edição do FIT BH. Após uma rápida articulação dos artistas e seu apelo veemente para que a decisão fosse revista, a Fundação Municipal de Cultura voltou atrás. A poucos meses da Manifestação de artistas contra o cancelamento do FIT-BH Ainda que não seja pertinente nos determos nesse assunto, não podemos nos esquecer de um fato que sela o desrespeito com que a Prefeitura de Belo Horizonte vem tratando a comunidade e a Cultura desde 2004: o edital de ocupação do Mercado Santa Tereza. Lançada em 2008, essa seleção pública por meio do voto popular envolveu diversas entidades e instituições culturais, dentre elas o Galpão Cine Horto, que apresentaram projetos de revitalização desse importante equipamento, fechado há alguns anos. Durante o pleito, diversas suspeitas de fraudes e manipulações foram constatadas, levando o Ministério Público a paralisar todo o processo e iniciar uma investigação. Desde então, a Prefeitura não voltou a público para dar explicações e se justificar perante os milhares de cidadãos que confiaram no sistema de votação, o mesmo do “festejado” orçamento participativo digital. Mais um tema diretamente ligado à Cultura da capital mineira que segue sem conclusão ou mesmo sem um pronunciamento público da administração municipal. 84 | Subtexto | Revista de Teatro do Galpão Cine Horto Finalmente, numa análise ainda mais genérica da ação dos governos nas três esferas, durante esse período, concluímos que uma maior mobilização e participação da sociedade civil foi fator determinante para que as políticas públicas para a cultura emergissem e se tornassem pautas de discussão. Em alguns casos, por interesse de ambos e, em outros, à revelia de governantes que, a contragosto, tiveram que dialogar, frente a pressões de movimentos sociais reivindicatórios. O que ainda se constata, porém, é a fragilidade histórica das bases sobre as quais se assentam os pilares das políticas públicas para a cultura brasileira, que ainda dependem da vontade pessoal de gestores dos governos. A ausência de programas específicos para a Cultura no projeto governamental da maioria dos partidos políticos revela a vulnerabilidade da área, fazendonos reféns de conveniências momentâneas. O antagonismo radical relatado na atuação do PT no Governo Federal e no município de Belo Horizonte, ou ainda as condutas tão díspares dentro do governo de um mesmo partido como o PSDB em âmbito estadual são desdobramentos naturais dessa preocupante negligência com a importância da Cultura na gestão pública. Findo o último pleito eleitoral, constatamos um descaso generalizado com o tema, que não foi abordado nos discursos ou debates públicos por nenhum dos candidatos aos mais importantes cargos do executivo e do legislativo. Mais uma vez, ficou patente a falta de compreensão, por parte desses candidatos, do quanto a Cultura está vinculada à melhoria da qualidade de vida e da educação da população brasileira, fundamentais para avançarmos rumo a um país mais desenvolvido e sustentável. Considerando esse contexto instável, é necessário reconhecer o quão fundamental tem sido a militância de artistas e produtores para que a política pública cultural se mantenha na pauta prioritária dos governantes. Ainda que incipiente e, na maioria das vezes, inconstante, essa mobilização vem sendo responsável por grande parte dos avanços na área, ou mesmo pela neutralização de interesses que poderiam levá-la a retrocessos. Infelizmente, porém, ao longo dos últimos anos, testemunhamos importantes iniciativas serem destruídas pela incapacidade de articulação e pela ausência de uma visão mais ampla do segmento artístico que, por uma nociva “partidarização” de interesses, rapidamente se desmobiliza. Acreditamos que a maior contribuição que nós, artistas e gestores, temos a oferecer nesse processo de construção de políticas públicas seja uma melhor organização em torno de um projeto democrático para a cultura nacional. Teatro e Politica | Cultura: hora de pensar a cadeia produtiva como um todo Romulo Avelar1 Que a produção cultural brasileira vem ganhando uma nova dinâmica não é nenhuma novidade. As velhas fórmulas de sucesso levadas à exaustão pelas engrenagens da indústria cultural aos poucos cedem lugar a um modelo mais plural, em que se multiplicam oportunidades e se torna cada vez mais possível a emergência de iniciativas locais. A cultura ganha vigor, e não mais apenas nas grandes capitais. O crescimento e a descentralização dos recursos destinados ao setor são marcha sem volta. Entretanto, se o momento é positivo e favorável ao surgimento de experiências bem-sucedidas pelos quatro cantos do país, a manutenção de grupos e entidades culturais e a continuidade de suas iniciativas permanecem como enormes desafios para seus produtores e gestores. Os editais de financiamento se multiplicam, os recursos começam a irrigar a área e os resultados se tornam aos poucos mais visíveis, mas a profissionalização efetiva ainda é uma realidade distante da grande maioria daqueles que se aventuram por esse caminho. Os empreendedores culturais brasileiros vivem aos sobressaltos, obrigados a conviver com o fantasma da descontinuidade e com a incômoda sensação de “fim de linha” a cada resultado de edital, a cada reunião de negociação de patrocínio. Como então explicar essa situação paradoxal que combina indicadores positivos com sinais de forte instabilidade? Uma primeira e óbvia resposta para essa questão está na maneira historicamente descuidada com que as instâncias públicas quase sempre trataram a cultura no Brasil. Está na ausência de políticas claras, na adoção de modelos concentradores e conservadores e na resistência dos governos, sejam eles de direita ou de esquerda, em considerá-la como área estratégica. Tudo isso aliado à própria desarticulação do meio, que teima em atuar de maneira fragmentada, pautado por diferenças e até mesmo por vaidades. É claro que não se pode desconsiderar os avanços significativos que vêm ocorrendo, tanto na esfera das políticas quanto na representatividade dos profissionais da 1 Produtor e gestor cultural, consultor de diversos grupos e entidades culturais e assessor de planejamento do Grupo Galpão e do Grupo do Beco. Nos últimos anos, tem ministrado cursos nas áreas de produção, planejamento e gestão cultural, em várias cidades brasileiras. Autor do livro “O Avesso da Cena: Notas sobre Produção e Gestão Cultural”. 85 86 | Subtexto | Revista de Teatro do Galpão Cine Horto cultura. Os últimos anos foram de grandes articulações pela construção de um modelo mais justo e eficaz para o setor, num processo de amadurecimento que, embora não tenha a velocidade que desejaríamos, é claramente perceptível. No entanto, é necessário admitir que ainda são grandes os desafios a serem vencidos até que tenhamos melhores condições de trabalho nesse campo. Quanto mais se afasta dos grandes centros urbanos, maior a dificuldade daqueles que atuam na área em identificar um fio de meada para a costura de um trabalho mais profissional. A criação acontece com espontaneidade e, em muitos casos, com bastante originalidade, mas perde em força, com frequência, pela carência de referências técnicas e estéticas. Artistas, grupos e instituições culturais, alheios também a uma série de parâmetros básicos do campo da gestão, empreendem grandes esforços de criação e produção, mas com resultados muitas vezes frustrantes. A cultura tropeça no amadorismo e na falta de informação, seja nas capitais ou no interior. Além disso, ressente-se pela fragilidade de alguns elos de sua cadeia produtiva. Definitivamente, não há como pensar em sustentabilidade para um setor obrigado a conviver com pontos vulneráveis e sempre prestes a se romper quando submetidos ao menor esforço. O pior é que boa parte daqueles que trabalham na área tem baixa percepção da urgência de fortalecer tais pontos. No âmbito da cultura, ainda persiste certa tendência a visualizar apenas a área finalística, ou seja, os produtos finais e os responsáveis diretos por sua concepção. Essa ênfase excessiva naquilo que é levado aos olhos e ouvidos do público é até compreensível, na medida em que o trabalho de criação representa a própria essência do setor. No entanto, é imprescindível identificar e conferir o devido valor a outros elos menos visíveis, mas essenciais para a viabilização de carreiras sustentáveis e, em última instância, para a construção de um cenário cultural mais vigoroso no país. Entre os elos notadamente fracos é possível citar a debilidade da infraestrutura cultural dos municípios brasileiros, a baixa qualidade de parte expressiva dos serviços prestados por fornecedores de toda sorte, a dificuldade para a formação de plateias e a falta de canais adequados para a distribuição, em um país de dimensões continentais. Apenas um olhar sobre tais fatores e seu enorme potencial de desestabilização é o bastante para que se compreenda o descompasso da cena brasileira. Sem dúvida, as questões elencadas até aqui guardam enorme complexidade e demandam soluções imediatas do Poder Público, da própria classe e da sociedade como um todo. Entretanto, é preciso perceber que existe um aspecto ainda Teatro e Politica | mais relevante e urgente nesse contexto. Um ponto vem recebendo tratamento inadequado no Brasil, a despeito de sua incrível capacidade de gerar impactos em toda a cadeia produtiva: a questão da capacitação. Viajando por esses interiores, é possível constatar a ocorrência de certa letargia motivada pela absoluta falta de conhecimentos nas diversas áreas do fazer artístico-cultural. Existem lacunas impressionantes na formação de artistas e técnicos, o que faz com que os resultados levados ao público tenham, muitas vezes, níveis colegiais. No entanto, é nas áreas-meio que o problema se torna mais agudo. A carência de informações nos campos da produção e da gestão é algo preocupante. Grande parte das vezes, as iniciativas no mundo da cultura acontecem “na marra”, após longa peregrinação de seus executores em busca de recursos, passando o pires entre os empresários locais e recolhendo donativos classificados equivocadamente como patrocínios. O desconhecimento dos canais de financiamento, a falta de noções de como elaborar um projeto e a pouca habilidade para a captação são limites concretos a serem transpostos. O amadorismo, porém, não se restringe aos procedimentos de busca dos recursos. A gestão dos projetos e do cotidiano das instituições também ocorre, muitas vezes, de maneira precária. Na verdade, os profissionais da cultura ainda não se apropriaram de uma série de ferramentas essenciais do campo da administração, como o planejamento estratégico, a gestão financeira, a logística e a gestão da qualidade, entre outras. O manejo adequado dessas ferramentas de gestão poderia significar um grande salto de qualidade para o meio, mas permanece como algo impensável para muitos daqueles que nele atuam. Um bom exemplo disso é a dificuldade que muitos artistas, produtores e gestores têm de trabalhar com planejamento, tanto de seus projetos quanto de sua própria carreira. Metodologias de planejamento estratégico, por exemplo, há muito presentes no ambiente empresarial, são praticamente estranhas à área. Esse fato talvez explique a paralisia e a falta de rumos que afetam a vida de muitos grupos e entidades culturais brasileiros. Talvez esteja aqui um dos grandes desafios das instâncias culturais públicas no Brasil, seja no plano federal, estadual ou municipal: formar gestores. Uma iniciativa de porte nesse sentido foi implementada com sucesso pelo Ministério da Cultura do México há alguns anos, mas permanece sem similar por aqui. Diante do despreparo que impera nos bastidores da cultura brasileira, é imprescindível que o Poder Público tome para si a responsabilidade por tal empreitada. As secretarias e fundações estaduais e municipais, assim como o próprio Ministério, precisam acordar para essa necessidade premente. É importante que tenhamos 87 88 | Subtexto | Revista de Teatro do Galpão Cine Horto Teatro e Politica | profissionais tecnicamente capacitados para buscar os recursos, geri-los de maneira eficaz e ordenar o ambiente das organizações culturais, mas também devidamente sensibilizados para reconhecer e valorizar a riqueza presente à sua volta. Precisamos de pessoas aptas a desencadear pequenas revoluções em seu universo imediato, a captar, processar e difundir informações para o benefício de suas comunidades. procedimentos restritivos como esses, muitas vezes de forma descuidada, é neutralizar a intenção do incentivo à cultura e tratar o setor com um desrespeito que não encontra paralelos em outras áreas merecedoras de incentivos governamentais. Será que os produtores agrícolas beneficiados, por exemplo, aceitariam entregar sua produção gratuitamente à população e prosseguir na dependência total do Governo? Isso seria justo e produtivo? No processo de formação de gestores, outra premissa importante deve ser considerada: é necessário pensar a cultura numa perspectiva sustentável, como forma de combater o vício da eventualidade que impera entre nós. A vida dos artistas, grupos e instituições culturais ainda é regida por ações de caráter efêmero e, quando muito, por ciclos de trabalho anuais. A cultura no Brasil permanece limitada à dimensão do evento, do transitório. Muito pouco se fala de planejamentos plurianuais, de projetos de manutenção e de continuidade. Situações como essas expõem, mais uma vez, a fragilidade do elo capacitação. Por todo o país, é notável a carência de gestores públicos aptos a lidar com as engrenagens burocráticas, mas também capazes de avaliar previamente os impactos de suas decisões administrativas sobre o meio. Infelizmente, grande parte dos cargos-chave em nossas instâncias culturais públicas continua a ser ocupada por pessoas estranhas ao metier ou sem nenhuma experiência do outro lado do balcão. Isso sob os olhares resignados de uma classe desmobilizada. O próprio Ministério da Cultura, até muito recentemente, esteve alheio à urgência de se estabelecerem políticas e práticas que favoreçam a sustentabilidade. Por mais de duas décadas, os projetos de manutenção foram tratados sem nenhuma distinção em relação àqueles voltados à produção de eventos. No âmbito da Lei Federal de Incentivo, por exemplo, por muito tempo foi negada a aprovação de determinadas rubricas dos projetos, sob a justificativa vaga de se tratarem de “despesas de responsabilidade do proponente”. Esse procedimento obrigava os artistas, grupos e entidades culturais a esgotarem suas reservas, inclusive aquelas provenientes de vendas de produtos e ingressos, ao final de cada ciclo anual. Os proponentes eram pressionados a gastar com o projeto aprovado todos os recursos captados de outras fontes, diga-se de passagem, a duras penas, como se fosse pecado buscar alguma estabilidade financeira com a criação de um fundo de reserva. O tom crítico destas linhas, longe de se caracterizar como mais um manifesto ácido e pouco propositivo, visa a trazer para a roda alguns pontos de vista sobre temas importantes para o universo cultural brasileiro, num momento de renovação da cena política brasileira. Instabilidade maior é impossível, certo? Errado. A coisa pode ser ainda pior. O equívoco ganhou proporções mais sérias quando começaram a surgir mecanismos de incentivo municipais e estaduais que, a pretexto de defesa do interesse público, passaram a impedir a comercialização de produtos realizados com os recursos repassados aos proponentes. Ao proceder dessa maneira, as secretarias e fundações de cultura condenaram de vez os empreendedores a se tornarem escravos de tais mecanismos. Aos artistas é negado o direito legítimo de buscar a consolidação de sua carreira por meio da venda direta de seus produtos ao público. Naturalmente, é fundamental que os governos estabeleçam regras que garantam a correta aplicação dos recursos e acessibilidade àquilo que foi produzido por intermédio dos instrumentos de financiamento. Entretanto, adotar A cultura é um direito constitucional do cidadão e precisa ser tratada como tal. Além disso, é um recurso econômico inesgotável que pode render cada vez mais ao país. A consolidação do setor passa necessariamente por uma atuação responsável dos governos, por meio de investimentos na cadeia produtiva como um todo, e não apenas em seus elos mais visíveis. Há que se pensar mais seriamente em instrumentos e políticas que favoreçam a continuidade do trabalho de artistas, grupos e entidades por todo o país, e não apenas a proposição de ações efêmeras. Nesse sentido, é necessário buscar o rompimento de certas amarras burocráticas, de forma a permitir o financiamento a planos plurianuais de manutenção de entidades culturais de caráter relevante para a sociedade. 89 90 | Subtexto | Revista de Teatro do Galpão Cine Horto Entretanto, é na questão da formação que precisamos apostar a maior parte das nossas fichas. As discussões de políticas para a cultura ora em curso no Brasil somente resultarão em avanços significativos quando houver, nos municípios, pessoas conectadas com o mundo e, a partir de bases técnicas seguras, capacitadas para atuar pela transformação da realidade à sua volta. Artigo publicado originalmente na edição de nº 4 do periódico cultural Letras. Ficha Técnica | 91 92 | Subtexto | Revista de Teatro do Galpão Cine Horto Ficha Técnica | 93 Equipe Galpão Cine Horto Direção geral: Chico Pelúcio Conselho gestor: Beto Franco, Chico Pelúcio, Leonardo Lessa, Lydia Del Picchia e Romulo Avelar Coordenação geral: Leonardo Lessa Coordenação de planejamento e projetos: Fernanda Werneck Assistente administrativo: Vanessa Fonseca Assistente de planejamento: Christina Ribeiro Coordenação de produção: Fernanda Magalhães Produção executiva: Gustavo Ruas e William Gomes Coordenação Técnica: Bruno Cerezoli Técnicos: Orlan Torres (Sabará) e Rodrigo Marçal Assistente técnico: Wellington Santos Estagiário técnico: Henrique Sousa Coordenação do Centro de Pesquisa e Memória do Teatro (CPMT): Luciene Borges Bibliotecária do CPMT: Fernanda Christina da Costa Estagiário do CPMT: Tiago Carneiro Estagiário do portal Primeiro Sinal: Marcus Vinícius Souza Direção pedagógica: Lydia Del Picchia Coordenação pedagógica dos núcleos de pesquisa: Kenia Dias Coordenação pedagógica dos cursos e oficinas: Ana Domitila Secretária de cursos: Cláudia Rodrigues Núcleo pedagógico: Gláucia Vandeveld, Juliana Martins, Kelly Crifer, Kenia Dias, Manuela Rebouças, Reginaldo Santos e Tarcísio Ramos Coordenação do projeto sócio-cultural Conexão Galpão: Reginaldo Santos Atores-monitores: Camila Morena, Dayane Lacerda e Hugo Araújo Gerência administrativa e financeira: Maria José dos Santos 94 | Subtexto | Revista de Teatro do Galpão Cine Horto Ficha Técnica Auxiliar administrativo: Leandro Dias Equipe Grupo Galpão Gerência operacional: Rose Campos Recepcionista: Cláudia Maria Porteiro: Eberton Pereira Segurança: Odelmo Marques da Silva Júnior Serviços gerais: Juarez Pereira, Maria Márcia e Rozeli Dias Assessoria de comunicação: Tiago Penna Assistente de comunicação: Caio Otta Fotografia: Guto Muniz / Casa da Foto Programação Visual: Otávio Santiago | Atores Antonio Edson Arildo de Barros Beto Franco Chico Pelúcio Eduardo Moreira Fernanda Vianna Inês Peixoto Júlio Maciel Lydia Del Picchia Paulo André Rodolfo Vaz Simone Ordones Teuda Bara Coordenação de Produção Gilma Oliveira Consultoria em Planejamento Romulo Avelar Assessoria de Planejamento Ana Amélia Arantes Assessoria de Comunicação Paula Senna Produção Executiva Beatriz Radicchi Produção Executiva Evandro Alves Iluminação e sonorização Alexandre Galvão Iluminação Wladimir Medeiros Cenotécnica Helvécio Izabel Sonorização Vinícius Alves Gerência Administrativa Arlene Marques Auxiliar Administrativo Andreia Oliveira Estagiários de comunicação Ana Alyce Ly e João Luis Santos Recepção Gabrielle Silva Serviços Gerais Marlene Oliveira Auxiliar de Serviços Gerais Elton John Patrocínio Exclusivo PETROBRAS 95