Guavira no

Transcrição

Guavira no
Guavira
no10
ISSN 1980-1858
Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e
multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três
Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10,
Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano (Org.).
(Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira;
ISSN: 1980-1858).
Programa de Pós-Graduação em Letras
UFMS/Campus de Três Lagoas
Guavira
Três Lagoas
v.10
n.1
p. 1-248
jan./jul. 2010
Guavira
no10
Revista Guavira – Letras. Edição Comemorativa n. 10
Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de
Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10 (2005 - 2010 Três Lagoas). GUERRA, Vânia
Maria Lescano (Org.).
Semestral (Jan./Jul. 2010) – Versão On-line.
1. Linguística 2. Análise do Discurso 3. Multiculturalismo
I. Título: Guavira-Letras: “Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo”.
(Versão On-Line http://www.pgletras.ufms.br/revistaguavira/ - ISSN: 1980-1858)
GUERRA, Vânia Maria Lescano (Org.) Guavira-Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e
multiculturalismo. Três Lagoas, UFMS, n. 10. Jan./jul. 2010.
Conselho Editorial:
Kelcilene Grácia Rodrigues (Editora chefe)
Taísa Peres de Oliveira (Editora adjunta)
Vitória Regina Spanghero Ferreira (Secretaria executiva)
Claudionor Messias da Silva (Apoio técnico)
Conselho Científico:
Antônio Rodrigues Belon (UFMS)
Celina A. G. S. Nascimento (UFMS)
Claudete Cameschi de Souza (UFMS)
Edgar C. Nolasco dos Santos (UFMS)
João Luis Pereira Ourique (UFMS)
José Batista de Sales (UFMS)
Kelcilene Grácia-Rodrigues (UFMS)
Marlene Durigan (UFMS)
Rauer Ribeiro Rodrigues (UFMS)
Rogério Vicente Ferreira (UFMS)
Rosana C. Zanelatto dos Santos (UFMS)
Vânia Maria Lescano Guerra (UFMS)
Vitória R. Spanghero Ferreira (UFMS)
Wagner Corsino Enedino (UFMS)
Corpo Editorial:
Eneida Maria de Souza (UFMG)
João Luís Cardoso Tápias Ceccantini (UNESP/Assis)
José Luiz Fiorin (USP)
Paulo S. Nolasco dos Santos (UFGD)
Maria do Rosário Valencise Gregolin (UNESP/Araraquara)
Maria José Faria Coracini (UNICAMP)
Márcia Teixeira Nogueira (UFCE)
Maria Beatriz Nascimento Decat (UFMG)
Rita Maria Silva Marnoto (Universidade de Coimbra - Portugal)
Roberto Leiser Baronas (UNEMAT)
Sheila Dias Maciel (UFMT)
Silvia Inês Coneglian Carrilho de Vasconcelos (UEM)
Silvane Aparecida de Freitas Martins (UEMS)
Vera Lúcia de Oliveira (Lecce – Itália)
Vera Teixeira de Aguiar (PUC/Porto Alegre)
Projeto Gráfico e Editoração
Conselho Editorial
1|Página
Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três
Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano
(Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858).
Guavira
no10
EDITORIAL COMEMORATIVO
Guavira Letras n. 10
“Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo”
Este número merece um editorial comemorativo: Guavira Letras completa cinco anos de
publicação e tem alcançado a meta de colocar, nas mãos do público leitor, o volume semestral
dentro do período esperado, na busca da apreciação e valorização deste veículo.
A Revista Guavira Letras nasceu da iniciativa de professores do Curso de Letras da
Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), quando o Mestrado em Letras,
instalado no primeiro semestre de 1998, completou sete anos na formação de mestres nas
áreas de concentração em Estudos Literários e Estudos Linguísticos. Os professores,
acreditando na pesquisa sobre a linguagem como ferramenta de transformação social, não
mediram esforços para materializar o projeto editorial da Revista Guavira Letras.
Esta revista semestral, de cunho transdisciplinar, vem contribuindo, desde 2005, para a
partilha de experiências e de ideias tornando-se, assim, um fórum privilegiado de debate
acerca dos problemas que dizem respeito ao estudo da Linguística, Literatura e áreas afins.
A qualidade científica da revista é alicerçada nos critérios de avaliação seguidos pela política
editorial da revista que, por meio da revisão por pares, seleciona e avalia os artigos
submetidos à publicação, no sentido de que seus textos contribuam efetivamente para o
conhecimento e desenvolvimento do pensamento crítico e da pesquisa no bojo das Ciências
Humanas.
Guavira Letras integra o Qualis da CAPES, o que garante a validade dos artigos publicados
para fins de avaliação de programas de pós-graduação, e nos incentiva a melhorar ainda mais.
Ela está consolidada como um espaço significativo de publicação, uma vez que os autores são
de diversas regiões e instituições superiores do País. Contamos com a colaboração dos
pesquisadores de todo o Brasil para que possamos continuar atingindo nossas metas.
Com esforço e dedicação, temos mantido a Revista Eletrônica no ar desde 2005, respeitando
sua periodicidade com rigor e seriedade. O crescente acesso à Internet possibilitou o
desenvolvimento da Revista Eletrônica do Programa de Pós-Graduação em Letras e ela se
constitui também em um espaço importante para a divulgação da produção regional e nacional
nas temáticas que propõe.
É gratificante contar com as participações de pesquisadores de várias IES, neste número 10 da
revista, sob a temática Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, em
que o argumento central é o de que pensar e viver no mundo atual passa pelo reconhecimento
da pluralidade e diversidade de sujeitos e de culturas com base no respeito e tolerância
recíproca, concebendo as diferenças culturais não como sinônimo de inferioridade ou
desigualdade, mas equivalente a plural e diverso.
2|Página
Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três
Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano
(Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858).
Guavira
no10
Dessa feita, propõe-se aqui valorizar, no processo formativo dos sujeitos, a necessidade e
importância de se reconhecer e acolher identidades plurais sem representar ameaças ou
quaisquer formas de naturalização do preconceito e desrespeito à vida humana,
independentemente de sexo, cor, gênero, credo, etnia, nacionalidade.
Nessa direção, inicialmente, trazemos uma entrevista com a Profa. Dra. Maria José
Coracini, doutora em Linguística Aplicada, Livre Docente e professora titular do IEL, na
UNICAMP. Autora de muitos livros e artigos nacionais e internacionais, pesquisadora A1 do
CNPq e orientadora dedicada e incansável, ela é atualmente uma da mais respeitadas
linguistas brasileiras. Coracini, que integra diferentes diretórios e grupos de pesquisa, fala
aqui sobre diversos assuntos atuais que são debatidos no meio acadêmico: discurso, cultura,
identidade, desconstrução, psicanálise, educação, política linguística e os rumos do analista do
discurso brasileiro.
Já o primeiro artigo intitulado “Travessias contemporâneas: o brasileiro clandestino
deportado”, de Marcos Aurélio Barbai (UNICAMP), tem como meta apresentar um estudo
da imigração clandestina de brasileiros e sua deportação, da perspectiva discursiva. O sujeito
brasileiro clandestino deportado é um corpo apagado no território vivendo com a deportação
uma humilhação política, subjetiva e social. Segundo o autor, o estudo dessa imigração se
deu a partir das condições de produção da pesquisa, em duas vias: a do imigrante que,
adentrando em um território estrangeiro, prolonga a sua estadia para além da duração
prescrita; e a do imigrante que, contratando serviço especializado de grupos que oferecem a
travessia de pessoas entre as fronteiras de Estados Nacionais, adentra em um território outro
sem autorização e lá permanece. Dessa ótica, refletir sobre a imigração clandestina não mais é
se referir aos clandestinos que escapam dos circuitos legais de mobilidade ou burlam esses
sistemas, mas de uma imigração inevitavelmente clandestina, que se situa fora de todo e
qualquer reconhecimento legal.
O segundo texto, intitulado “O apelo à emoção: uma estratégia de tom persuasivo no
discurso religioso pentecostal”, de Rachel Camilla Rodrigues de Castro e Mônica Santos de
Souza Melo (UFV), traz a análise da linguagem, no discurso religioso, e seu funcionamento
como mecanismo de sedução e captação de adeptos, avaliando a utilização do apelo à
emoção, o chamado “efeito patêmico”, nos termos de Charaudeau (1999). A partir desse
estudioso, nessa investigação, as autoras adotam o ponto de vista segundo o qual é possível o
estudo discursivo da emoção numa situação comunicativa, considerando pressupostos teóricos
que abordam a questão da emoção/patemização enquanto estratégia de caráter persuasivo, a
partir da análise de um cântico de louvor de um culto da igreja Assembléia de Deus, gravado
na cidade de Viçosa (MG).
Pedro Celso Campos (FAAC/UNESP) traz a investigação intitulada “Os meios de
comunicação social e o ‘empoderamento’ da Terceira Idade” em que atenta para o fato de
que, ainda, nos bancos universitários, os futuros jornalistas devem ser sensibilizados para o
fenômeno que envolve importante processo de mudança social no que diz respeito à Terceira
Idade. Um dos caminhos pode ser o estudo das técnicas de empoderamento e formação de
Capital Social, por intermédio das novas Tecnologias de Informação e Comunicação (TIC).
Segundo Campos, exercendo plenamente os seus deveres de cidadania, os comunicadores
podem (no exercício da profissão ou no voluntariado) contribuir com o fortalecimento das
reivindicações da Terceira Idade, na luta pela preservação dos direitos adquiridos, na
3|Página
Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três
Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano
(Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858).
Guavira
no10
organização pela conquista de novos direitos, principalmente cobrando dos meios de
comunicação mais respeito e dignidade, condenando a discriminação, não se calando diante
de qualquer iniciativa que vise prejudicar os direitos das pessoas idosas.
O artigo “A questão agrária na continuidade das línguas minoritárias: o caso Terena de
Ipegue”, de Mariana de Souza Garcia (UFMS), trata das línguas minoritárias e minorizadas e,
particularmente, do perigo delas desaparecerem. Segundo a autora, saber quais são as ameaças
mais fortes é uma saída para a resolução do problema e, para isso, desenvolve as Tipologias
Sociolinguísticas, a partir de duas seções: a primeira discute duas macrovariáveis fortes da
Tipologia Sociolinguística desenvolvida junto aos Terena (a questão da terra como eixo de
conflitos políticos e econômicos, e a questão tecnológica aliada aos deslocamentos e
desaparecimento de línguas/terras indígenas). Desse embate duas representações de terra
emergem. Já a segunda seção traz a desterritorialização Terena, exemplificando de que forma
as micro e as macrovariáveis surgem no seio da Comunidade de Fala Terena e como vêm
destruindo os bens materiais e imateriais do referido povo indígena. Para a sobrevivência das
línguas minoritárias, é fundamental atentar-se à questão agrária, que se encontra em meio à
situação social (tecnológica), política e econômica, conclui Garcia.
O trabalho intitulado “Opinião de Raça: as estratégias argumentativas no gênero textual
artigo de opinião da revista Raça Brasil”, de Mirian Lúcia Brandão Mendes, Júnia Diniz
Focas e Raquel Lima de Abreu Aoki (UFMG), tem por objetivo principal investigar as
estratégias argumentativas presentes no gênero textual artigo de opinião. O artigo selecionado
para análise foi escrito por Maurício Pestana e publicado na seção “Opinião de Raça” da
revista Raça Brasil. Segundo as autoras, o trabalho vem apresentar alguns pressupostos
teóricos sobre argumentação, gênero textual artigo de opinião, dialogismo e polifonia, com
base nos conceitos da Análise do Discurso.
O trabalho intitulado “A criança, a escola e os micropoderes: uma análise das técnicas
disciplinares atravessando corpos”, de Mariana Diniz Bittencourt Nepomuceno e Márcia
Aparecida Amador Mascia (USF), tem como propósito levantar as relações de poder-saber
enquanto mecanismo de controle e normalização dos sujeitos e de suas subjetividades
instaurados desde a tenra infância, na instituição escolar. Tendo como referencial teórico os
estudos da arquegenealogia realizados por Foucault, as autoras buscam apreender a realidade
de uma escola enquanto um micropoder institucional. Os sujeitos, professores e alunos
(crianças de 2 a 3 anos, neste caso), são construídos, embora de modo imperceptível, nas
práticas diárias em função do espaço e tempo, que delimitam o que deve ser feito ou não. Tais
práticas constituem as técnicas disciplinares de que fala Foucault e funcionam de modo a
desenhar os corpos, tornando-os dóceis e, portanto, úteis socialmente.
“Por novos temas e abordagens em Linguística Aplicada – uma viagem através das
novas identidades do século XXI nas tirinhas de Adão Iturrusgarai”, de Alex Caldas
Simões e Maria Carmen Aires Gomes (UFV), vem discorrer sobre a atual perspectiva da
Linguística Aplicada (LA) e as suas inquietantes indagações. Ao observarem as novas
identidades da modernidade presentes “ficcionalmente” nas tirinhas de Aline, de Adão
Iturrusgarai (2007, 2009a, 2009b), a partir de um percurso teórico-caracterizador do período
moderno/pós-moderno, na trilha de Berman (2007) e Giddens (1991), os autores
4|Página
Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três
Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano
(Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858).
Guavira
no10
problematizam o campo teórico da LA, de modo a ressaltarem a sua atual emergência
epistemológica. Simões e Gomes concluem que novas identidades surgiram no contexto da
modernidade e, com elas, emerge a crescente necessidade de construção de novos paradigmas
teóricos e práticos.
Na sequência, o trabalho “A tradução cultural-local entre Brasil, Paraguai e Bolívia”, de
Rony Márcio Cardoso Ferreira e Edgar Cézar Nolasco (UFMS), visa discutir a questão da
contaminação cultural, que permeia e se dissemina entre culturas locais de Mato Grosso do
Sul, do Paraguai e da Bolívia. O texto traz à pauta da discussão o conceito de tradução
cultural (Homi Bhabha), a fim de se pensar criticamente a confluência dos signos culturais,
proporcionada pela noção de transferencialidade, que, por sua vez, borra uma pretensa ideia
de especificidade que singulariza o local, o próprio, o alheio, o outro, o aqui, o lá, e assim por
diante. Os autores discutem, ainda, a questão da multiplicidade, que faz que a cultura em
questão se singularize, não no sentido primeiro do termo, mas na/pela diferença.
Prosseguindo, Ana Teresa Cabañas e Deise Daiana Gugeler Bazanella (UFSM/RS), a partir da
pesquisa intitulada “Para ler o antipoema como discurso híbrido: considerações sobre
texto e imagem em Ás de Colete, de Zuca Sardan”, afirmam que, nos anos 70, a poesia
marginal brasileira ampliou os níveis de comunicabilidade do texto poético no intuito de atrair
mais leitores. Para isso, questionou os procedimentos tradicionais da poesia lírica moderna,
explicitando uma série de mudanças na sensibilidade dos sujeitos contemporâneos e criando
dificuldades para as formas consagradas de abordagem crítica. Para as estudiosas, nesse
período de ruptura de paradigmas situa-se o poeta Zuca Sardan, cujo livro Ás de Colete é
objeto de reflexão deste artigo. No intuito de discutir algumas de suas características,
Bazanella e Cabañas propõem uma abordagem a partir do conceito de antipoesia de
Hamburger (1991), que ajuda a compreender o poema como discurso híbrido, com base em
dois de seus aspectos mais proeminentes: imagem e forma comunicável.
Silvane Aparecida Freitas (UEMS), no trabalho intitulado “Parceleiro do Assentamento
Serra: identidade e representações”, apresenta o relato da história de vida de um morador
do Assentamento Serra. Verifica-se, a partir das teorias do discurso, um sujeito em conflito
identitário, que, mesmo assim, consegue deslocar-se na história, reelabora seu discurso,
realiza seu sonho, que é ter um pedaço de terra, onde pudesse viver com sua família e buscar
sua subsistência. Segundo a autora, após a análise dos dados, pôde-se constatar o quanto a
marginalização e o esquecimento estão presentes naquele local, pois tanto as autoridades
como a sociedade ignoram os direitos desse povo, que enfrenta muitas dificuldades para
sobreviver no local.
O objetivo do trabalho intitulado “Do ‘entre-lugar’ do leitor à recepção e circulação da
tradução em contexto estadunidense”, de Rosa Maria Olher (UEM/PR), é discutir as
representações que alguns professores-leitores e, também, tradutores têm da tradução em
diferentes contextos. Concepções de leitura, sentido, autoria e originalidade implicam a forma
de recepção e circulação da tradução em lugares específicos, já que é nas vozes do leitor e do
tradutor que se observam a tensão e o conflito que o “entre-lugar” das línguas pode provocar
no sujeito, ao se posicionar como construtor e responsável por seu discurso e sua história,
afirma Olher. Os enunciadores falam a partir de um contexto de ensino superior de literaturas
estrangeiras, nos Estados Unidos da América e a análise fundamenta-se, especialmente, nas
noções estudadas por Coracini e Derrida.
5|Página
Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três
Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano
(Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858).
Guavira
no10
Flávio Roberto Gomes Benites (UNEMAT), no artigo intitulado “Imigração e discurso:
conflitos identitários na música matogrossense”, vem discutir o problema da imigração no
Estado de Mato Grosso a partir de letras de música (rasqueado) as quais materializam sentidos
conflitivos entre nativo e imigrante. De uma perspectiva discursiva e culturalista, o autor
mostra que tais letras são prenhes de diferentes práticas culturais que instituem o status da
identidade mato-grossense, diferenciando-o do imigrante, ainda que este esteja inserido nas
referidas práticas.
“Caipiras, arribantes temporais: letramento, identidade cultural e subjetividade”, de
Elzira Yoko Uyeno (UNITAU), trata da subjetividade que se revela na e pela escrita, a partir
da Análise do Discurso de perspectiva francesa e dos conceitos da psicanálise lacaniana. A
pesquisa estuda a sensação paradoxal de imigração na própria cidade onde nasceu, viveu e
continua vivendo, em textos de alunos da Escola de Jovens e Adultos. Os resultados da
análise empreendida revelaram que as identidades a condição de todo imigrante, não apenas
dos imigrantes topológicos, mas dos temporais também: estar saudoso, como estar tomado por
uma triste aspiração por algo indefinido que se foi há muito tempo, e saber que o passado não
é um país que possa ser reencontrado.
O trabalho “A propósito das designações: de ribeirinhos à sem rios”, de Neuraci
Vasconcelos Reginaldo e Celina Aparecida Garcia de Souza Nascimento (UFMS),
com base nos pressupostos teóricos da Análise do Discurso de Linha Francesa, analisa
a (re)constituição dos sentidos das designações atribuídas aos sujeitos ribeirinhos
motivadas pelo acontecimento discursivo de saída de seu local de origem (margem do
rio Paraná) e posterior realocação. A partir de Guimarães (2005), as autoras
consideram que as designações são produzidas no âmbito de relações de linguagem
tomadas na história. O corpus é constituído por recortes do documentos/vídeos
produzidos pelos ribeirinhos e pelo Movimento dos Ameaçados por Barragens
(MAB), em que a imagem desse acontecimento discursivo provocou deslocamentos de
sentidos, nas designações atribuídas a esses sujeitos, isto é, fez que essas expressões
fossem (re)significadas.
A pesquisa de Manolita Correia Lima e Viviane Riege (ESPM/São Paulo) intitulada
“Motivações da Mobilidade Estudantil entre os Estudantes do Curso de Administração”
tem como objetivo conhecer as motivações que justificam o crescente interesse dos estudantes
pelos programas de formação internacional. A investigação se concentrou em estudantes e
egressos do curso de Administração, oferecidos no Brasil, participantes de programas de
intercâmbio. O grupo é predominantemente formado por jovens, de ambos os sexos, que
participaram de programas de intercâmbio durante a graduação. Estão vinculados a
instituições paulistanas, respeitadas na área de Administração. Segundo as autoras, apesar de
efetivados em sólidas empresas nacionais e multinacionais e ter renda própria, residem com
os pais e estes assumem papel preponderante nas decisões relativas ao planejamento do
programa. Preferem países ricos, de língua inglesa, localizados no hemisfério norte, com
reputado sistema de educação. Apesar do avançado nível de proficiência da língua inglesa,
preferem escolas e cursos de língua (inglesa) de curta duração, oferecidos durante as férias.
6|Página
Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três
Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano
(Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858).
Guavira
no10
“Ensino de gramática versus ensino de língua”, de Marlon Leal Rodrigues (UEMS), tem
como proposta abordar alguns aspectos polêmicos do discurso sobre o ensino gramatical
versus ensino de língua. Para o autor, o ensino de língua é um lugar onde se defrontam
gramáticos e linguistas, cada qual com suas posições-sujeito, às vezes, apaixonadas. Assim,
os sentidos das concepções de gramática (de Arnauld e Lancelot), enquanto língua, se
inscreve na memória discursiva de certa tradição, cujo efeito compete com o sentido da
Linguística Contemporânea fundada por Saussure (XIX). Tal sentido permeia não apenas o
discurso da prática escolar e o do senso comum sobre ensino de língua, mas de forma
significativa também o espaço acadêmico.
O artigo intitulado “Uma visão linguístico-culturalista do discurso da Revista Playboy”, de
Glauciane Pontes Helena Franco e Vânia Maria Lescano Guerra (UFMS), tem por meta
problematizar os discursos que perpassam a nova configuração de homem e mulher, que estão
inseridos numa sociedade cada vez mais fragmentada, dividida e dispersa que, outrora
supúnhamos ter unidade, ser fixa, coerente e estável. No dizer das autoras, a análise dos textos
produzidos pelo homem e para o homem, que expõe as formações discursivas a que está
submetido, permite perceber como ele estabelece sua relação com a língua, com a história e
com o mundo contemporâneo. O estudo do discurso produzido pelo e para o homem contribui
para revelar as constantes da masculinidade que permeiam o universo de valores que definem
o sujeito social, político e cultural, a partir dos pressupostos teóricos da Análise do Discurso
de origem francesa e dos Estudos Culturais.
Mary Del Priore, Alberto Carlos de Souza e Túlio Alberto Martins de Figueiredo (UFES), a
partir da pesquisa “Milton Nascimento: uma questão de gênero com crianças na escola”,
estudam a oficina de gênero realizada com 27 crianças de 11 anos de idade, estudantes de uma
escola pública municipal de Vitória (ES), com o propósito de celebrar o Dia Internacional da
Mulher, em 8 de março. Segundo os autores, toda a produção estética dessa oficina girou em
torno da música “Maria, Maria”, de autoria de Milton Nascimento e Fernando Brant (1978) e
constou de canto coral e elaboração de pictografias femininas (desenho com massa de
modelar), a partir da questão norteadora: “Quem é essa mulher, de quem tanto fala a música?”
No estudo, Maria foi representada pelas crianças principalmente como figura parental (mãe,
avó), trabalhadora (cantora, feirante, lavadeira e professora) ou ente religioso (santa) e a
oficina culminou com a apresentação de toda a produção estética (canto coral e projeção de
imagens) para as mães daquelas crianças.
Por fim, trazemos o artigo “Regionalismo e literatura sul-mato-grossense na fronteira
Brasil-Paraguai”, de Paulo Sérgio Nolasco dos Santos (UFGD), que tem como propósito
divulgar uma pesquisa acerca da obra do escritor regionalista sul-mato-grossense Hélio
Serejo, cujo nome e obra mostram-se de significativa produtividade para os Estudos Culturais
e para a região da fronteira Brasil-Paraguai. Segundo Santos, tais reflexões são, ainda,
resultados de um projeto de pesquisa institucional, intitulado “Regionalismos culturais: trocas
e relações entre literaturas de fronteira”, em desenvolvimento, e integram o livro “Fronteiras
do local: roteiro para uma leitura crítica do regional sul-mato-grossense” (2008), ambos de
sua autoria. A reflexão volta-se para a revisão do Regionalismo como renovada categoria
trans-histórica, cujo conceito operatório torna-se validado, em sua análise, para explicar os
atuais transladamentos culturais e ao que o discurso crítico latino-americano denomina
“transculturação narrativa”.
7|Página
Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três
Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano
(Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858).
Guavira
no10
Resta-nos agradecer a todos os autores contemplados, nesta edição comemorativa, pelos
trabalhos apresentados e colocar a Guavira Letras da UFMS à disposição da comunidade
acadêmica, na expectativa de reflexões e deslocamentos.
Vânia Maria Lescano Guerra
(organizadora)
Três Lagoas, junho de 2010.
8|Página
Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três
Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano
(Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858).
Guavira
no10
SUMÁRIO
ENTREVISTA
1. Diálogo com Maria José Coracini
Vânia Maria Lescasno Guerra.................................................................................................11
ARTIGOS
2. Travessias contemporâneas: o brasileiro clandestino deportado
Marcos Aurélio Barbai.............................................................................................................25
3. O apelo à emoção: uma estratégia de tom persuasivo no discurso religioso pentecostal
Rachel Camilla Rodrigues de Castro e Mônica Santos de Souza Melo..................................40
4. Os meios de comunicação social e o “empoderamento” da Terceira Idade
Pedro Celso Campos................................................................................................................48
5. A questão agrária na continuidade das línguas minoritárias: o caso Terena de Ipegue
Mariana de Souza Garcia.........................................................................................................60
6. Opinião de Raça: as estratégias argumentativas no gênero textual artigo de opinião da
revista Raça Brasil
Mirian Lúcia Brandão Mendes, Júnia Diniz Focas e Raquel Lima de Abreu Aoki................77
7. A criança, a escola e os micropoderes: uma análise das técnicas disciplinares
atravessando corpos
Mariana Diniz Bittencourt Nepomuceno e Márcia Aparecida Amador Mascia .....................85
8. Por novos temas e abordagens em Linguística Aplicada – uma viagem através das
novas identidades do século XXI nas tirinhas de Adão Iturrusgarai
Alex Caldas Simões e Maria Carmen Aires Gomes................................................................96
9. A tradução cultural-local entre Brasil, Paraguai e Bolívia
Rony Márcio Cardoso Ferreira e Edgar Cézar Nolasco..........................................................110
10. Para ler o antipoema como discurso híbrido: considerações sobre texto e imagem em
Às de Colete, de Zuca Sardan
Ana Teresa Cabañas e Deise Daiana Gugeler Bazanella........................................................115
9|Página
Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três
Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano
(Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858).
Guavira
no10
11. Parceleiro do Assentamento Serra: identidade e representações
Silvane Aparecida Freitas......................................................................................................128
12. Do “entre-lugar” do leitor à recepção e circulação da tradução em contexto
estadunidense
Rosa Maria Olher ..................................................................................................................143
13. Imigração e discurso: conflitos identitários na música matogrossense
Flávio Roberto Gomes Benites..............................................................................................151
14. Caipiras, arribantes temporais: letramento, identidade cultural e subjetividade
Elzira Yoko Uyeno................................................................................................................158
15. A propósito das designações: de ribeirinhos à sem rios
Neuraci Vasconcelos Reginaldo e Celina Aparecida Garcia de Souza Nascimento.............170
16. Motivações da Mobilidade Estudantil entre os Estudantes do Curso de
Administração
Vivane Riege e Manolita Correia Lima.................................................................................178
17. Ensino de gramática versus ensino de língua
Marlon Leal Rodrigues..........................................................................................................198
18. Uma visão linguístico-culturalista do discurso da Revista Playboy
Glauciane Pontes Helena Franco e Vânia Maria Lescano Guerra.........................................219
19. 10. Milton Nascimento: uma questão de gênero com crianças na escola
Mary Del Priore, Alberto Carlos de Souza e Túlio Alberto Martins de Figueiredo..............228
20. Regionalismo e literatura sul-mato-grossense na fronteira Brasil-Paraguai
Paulo Sérgio Nolasco dos Santos...........................................................................................236
10 | P á g i n a
Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três
Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano
(Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858).
Guavira
no10
DIÁLOGO COM MARIA JOSÉ CORACINI
Vânia Maria Lescano Guerra
Diversos artigos, ensaios, dissertações, resenhas, teses e livros assumem Maria José Coracini
como referência, no bojo das Ciências Humanas. Nossa revista também está trazendo neste
número ecos das várias obras da pesquisadora, via trabalhos dos autores. Hospitaleira, a
estudiosa abriu espaço na sua agenda para as nossas interlocuções. Neste espaço, pode ser
apresentada como Livre Docente e professora titular em Linguística Aplicada na Área de
Ensino/Aprendizagem de Língua Estrangeira pela UNICAMP. Possui pós-doutorado junto ao
Centre Inter-universitaire en Analyse du Discours et Sociocritique des Textes (Ciadest) e ao
grupo de pesquisa Marges (Marginalisation et Marginalité dans les discours), em Montréal,
Canadá. Recentemente, fez um estágio pós-doutoral junto à Université de Paris 3 (Sorbonne
Nouvelle), Sylled, e junto à Universidade de Lisboa (Faculdade de Ciências da Psicologia e
Educação). É hoje, sem dúvida, uma figura de muita expressão na busca da constituição do
sujeito contemporâneo e das práticas identitárias. Mas vamos ao diálogo...
GUAVIRA LETRAS - Sua importante trajetória de trabalho, com a análise de discurso de
base psicanalítica e a desconstrução, é evidenciada pelas edições de livros como “Um Fazer
Persuasivo: o discurso subjetivo da ciência” (1991, 2007), “O Jogo Discursivo da Aula de
Leitura (Língua Materna e Língua Estrangeira) (1995)”, “Interpretação, Autoria e
Legitimação do Livro Didático” (1999), “Identidade e Discurso: (des)construindo
subjetividades” (2003). Para a educação, todos são marcantes, mas parece que “Um Fazer
Persuasivo: o discurso subjetivo da ciência” é o mais revisitado. Você concorda?
MJC - Eu não saberia dizer com absoluta certeza se ”Um Fazer Persuasivo” é o livro mais
revisitado, já que “O Jogo Discursivo na Aula de Leitura” está à beira de uma terceira
edição. Mas, considerando que o primeiro é de minha exclusiva autoria e o segundo é uma
organização e se dirige a um público mais definido – professores de língua portuguesa e de
língua estrangeira –, é possível dizer que “Um Fazer Persuasivo” tem tido uma importante
repercussão no âmbito acadêmico não apenas na área de Letras, mas em outras áreas como,
por exemplo, a do Direito. É interessante que, sem que eu pudesse imaginar, ele tem sido
muito usado em disciplinas que têm por objetivo introduzir o aluno ao discurso acadêmicocientífico. Acredito que a polêmica em torno da subjetividade do discurso científico e a
discussão, portanto, em torno da objetividade, isenção, afastamento do cientista, que se
manifesta na linguagem por meio do uso frequente da terceira pessoa, dos tempos do
passado, das formas passivas, da objetificação do sujeito da oração que dá voz ao objeto em
observação, como um vegetal, um mineral, um animal – afinal, é ele que fala, que se diz, que
se apresenta ao cientista que apenas observa – constitui, ainda hoje, alvo de reflexões e de
discussão. Por mais que se tenha avançado nas pesquisas e nas discussões em torno do
discurso científico, este ainda continua a perseguir o modelo da ciência, do fazer científico,
procurando respeitar um dos polos da dicotomia objetividade / subjetividade, enfatizando o
primeiro como o único a permitir, um dia, chegar à verdade, ao conhecimento total, graças

Docente do Programa de Mestrado em Letras da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul.
11 | P á g i n a
Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três
Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano
(Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858).
Guavira
no10
ao progresso da ciência. Embora esse ideal pareça inalcançável, ele persiste no horizonte da
ciência, para quem nada é impossível... A questão é que, apesar do desejo de onisciência, de
progresso paulatino das pesquisas que vão questionando, pondo em cheque os resultados
obtidos por pesquisas anteriores, com o objetivo de colocar mais um grão na grande área do
conhecimento, há sempre um resto que escapa, que não se deixa dominar, que resvala pelas
brechas da linguagem, da natureza, do sujeito, impedindo a apropriação do “objeto”, a
objetificação daquilo que sofre a ação do tempo, das contingências geográficas, do homem,
do momento histórico-social, que, por sua vez, (de)limita o olhar do cientista, sempre
“contaminado” pela teoria, pela cultura, pela ideologia, pelos interesses políticos e, por que
não, econômicos... A verdade – se é que há uma verdade – é que no exato momento em que
acreditamos nos apropriar de algo, dominar algo ou algum saber, esse algo, esse saber nos
escapa, incitando-nos a uma nova busca. E é isso o que nos move, enquanto sujeitos do
desejo, é a busca do preenchimento da falta que perseguimos, na ilusão de um dia atingirmos
a completude, a totalidade impossível. E a ciência, o cientista não escapa desse pro-jeto, que
nos lança para o futuro, na esperança de superar o passado. Penso que são essas questões
ainda muito atuais que fazem a sobrevida da obra, que defende a ideia de que o discurso da
ciência é argumentativo, buscando persuadir ou convencer (não fazemos a distinção entre os
dois vocábulos, como o faz a obra de Perelman e Olbrecht-Tyteca, sobre a Argumentação) da
validade da pesquisa, da verdade que ela encerra, da intenção de contribuir para o avanço
da ciência que, nos dias de hoje, em plena globalização, se manifesta em termos de
“avanços” tecnológicos, o que nos leva à objetificação de tudo e de todos, à manipulação e
descartabilidade...
GUAVIRA LETRAS – No seu último livro, “A Celebração do Outro: arquivo, memória e
identidade - línguas (materna e estrangeira), plurilinguismo e tradução” (2007), do ponto de
vista teórico, você afirma que “seu trabalho atualmente se insere no espaço movediço e
escorregadio das fronteiras opacas e difusas entre discurso, psicanálise e desconstrução, na
tentativa de compreender sempre mais as subjetividades em travessia”. Quais foram os
deslocamentos teóricos que a levou a essas paragens?
MJC - Houve um tempo em que eu acreditava na possibilidade de se alcançar a verdade, de
se viver na certeza, de se ter a possibilidade do controle de si e do outro, através da
argumentação e da psicologia da cognição. Isso remonta aos anos 80, antes e após o
mestrado. Este se apoiou em teorias linguísticas, sobre tempo, aspecto, abordagem
distribucionista para dar conta da relação entre os advérbios de relatividade e o seu entorno
linguístico, também denominado cotexto. Já nessa época, cheguei à teoria do texto para
explicar as diferentes distribuições e sentidos dos advérbios já-ainda, déjà-encore, nas
sequências extraídas de textos de jornais e revistas brasileiros e franceses. De uma
abordagem estritamente linguística passei a considerar a presença do sujeito na linguagem,
a partir da leitura da obra La subjectivité dans le langage, de autoria de Catherine KerbratOrecchioni, datada de 1980, retomando e ampliando a obra de Benveniste, primeiro linguista
a considerar a subjetividade na língua. A leitura dessa obra me abriu as portas para a
possibilidade de olhar o sujeito na língua, o que veio ao encontro de um interesse abafado em
mim. Evidentemente, no que diz respeito ao ensino-aprendizagem de línguas, esse sujeito
consciente tinha a sua explicação na psicologia da cognição. Em 1984, eu iniciava as
disciplinas de Doutorado na PUC-SP, com uma expectativa de compreender o processo de
12 | P á g i n a
Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três
Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano
(Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858).
Guavira
no10
leitura e expressão escrita tanto em língua materna quanto em língua estrangeira e, ao
mesmo tempo, analisar e compreender o discurso científico, mais especificamente da área de
Biociências (Botânica, Zoologia, Biomédicas). O interesse pela área surgiu por estar eu, na
ocasião, ministrando aulas para um grupo de biólogos – graduandos e pós-graduandos – na
USP, num convênio entre USP e Embaixada da França. Surpreendia-me, nas aulas, a reação
dos alunos, principalmente pós-graduandos, quando os textos em francês apresentavam a
seção de Material e Métodos no presente do indicativo e na primeira pessoa do singular:
segundo eles, esses textos eram subjetivos e, portanto, contrários às regras de isenção e
objetividade da ciência. Diziam eles que deviam escrever os artigos no passado e na terceira
pessoa ou nas formas impessoais como a voz passiva ou sujeito indeterminado. O
pesquisador não poderia “aparecer” nos textos científicos. Aí surgiu a minha tese: investigar
a razão pela qual um texto era subjetivo e outro objetivo, pelo simples fato de apresentar
diferentes marcas linguísticas. Evidentemente, Benveniste foi um dos primeiros linguistas a
ser revisitado. A tese seguiu um tal percurso que percebi a impossibilidade de determinar de
uma vez por todas e a priori a subjetividade ou a objetividade de um discurso. Seria
necessário considerar a situação de enunciação na qual se dá a escrita e a leitura, porque a
dicotomia subjetivo-objetivo depende, em primeira e última instância, daquele que escreve,
de um lado, e daquele que lê, de outro; afinal, o que pode parecer subjetivo para um pode
não ser para outro. Pensemos num soneto ou numa peça musical e numa pesquisa com uma
planta. Que trabalho será mais objetivo? Será que o autor do soneto ou o compositor da peça
musical não têm de seguir regras, normas, à semelhança do pesquisador em Botânica? Este,
por sua vez, não precisa de uma acuidade de observação e sensibilidade para observar sua
planta, descrevê-la e, se necessário, desenhá-la? Eu mesma submeti três pesquisadores à
tarefa de desenhar uma folha de uma planta para que descrevessem, utilizando o mesmo
microscópio, em iguais circunstâncias de luminosidade (mesma hora do dia, mesma posição
na sala), mesmos instrumentos (lápis, papel), mesma mesa na mesma posição e percebi que, a
olhos nus, os desenhos resultantes eram semelhantes, mas não iguais; para leigos, não
parecia tratar-se da mesma folha: ficou claro que cada pesquisador visualizava a imagem à
sua maneira. Concluí, então, que seria imprescindível desconstruir as dicotomias que
organizam desde sempre (ou desde a Antiguidade) o pensamento ocidental. E aí eu já estava
lendo Foucault e Derrida. A questão da subjetividade perseguiu daí por diante minhas
pesquisas, de forma que até mesmo as pesquisas em torno do discurso didático-pedagógico,
que sucederam ao doutorado, visavam sempre compreender a subjetividade e a relação que
se estabelecia em sala de aula entre professor e aluno. Pouco a pouco, fui construindo com
meus orientandos, principalmente, quando eu já estava na Unicamp, um grupo de pesquisa
que centrava sua atenção no sujeito. E, graças à pressão dos alunos, fui me dando conta da
impossibilidade de limitar os estudos da subjetividade à filosofia; era me render à evidência
de que, ainda que com alguma resistência inicial, eu precisava estudar psicanálise. Ora,
Foucault, Derrida, Lacan (Freud) são considerados, pela maioria dos acadêmicos da área da
linguagem como incompatíveis entre si, no que diz respeito às concepções defendidas. Mas,
algo me dizia, já nos anos 90, que era possível, não reuni-los para dialogarem como amigos,
mas colocá-los um ao lado do outro para neles encontrar concepções comuns, sem, com isso,
fazer tabula rasa das diferenças. Daí a ideia de que as pesquisas que eu e o grupo, que tive a
satisfação de coordenar, se encontra(va)m nas “fronteiras opacas e difusas entre discurso,
psicanálise e desconstrução, na tentativa de compreender sempre mais as subjetividades em
travessia”. Por que subjetividades em travessia? De um lado, porque a identidade é
movediça, está sempre em movimento, sempre em transformação; de outro, porque, depois
dos projetos em torno do discurso pedagógico, preocupado com a identidade, penetrei no
13 | P á g i n a
Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três
Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano
(Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858).
Guavira
no10
mundo complexo daqueles que, como eu, são constituídos por mais de uma língua, seja
porque imigraram, saíram de seus países de origem em busca de novas possibilidades de
vida, de trabalho, seja porque saíram de seus países para estudar, seja, ainda, porque
simplesmente “adotaram” uma língua para estudar e lecionar. Rastrear a identidade dessas
pessoas levou a mim e a orientandos meus ao questionamento do que seja língua materna e
língua estrangeira e à consideração de que todos somos/estamos-entre-línguas-culturas. Daí
a lançar um olhar perscrutador sobre os migrantes – pessoas que saem de sua região, de seu
estado, de sua cidade para se instalar noutra região, estado, cidade, ainda que dentro das
fronteiras do mesmo país – foi muito fácil: a estrangeiridade, o outro, o diferente, nos
constitui e nos habita. O que dizer, então, dos migrantes em situação de rua? Por que se
reduziram a (quase) nada, numa sociedade em que ser é ter e em que quem nada tem, nada é,
não conta, não é considerado. Como se veem tais pessoas? Como veem os outros, isto é,
como nos veem, nós que temos moradia, educação, condições de higiene e poder aquisitivo?
Nós, que por eles passamos e fazemos de tudo para não vê-los, porque a diferença que
exibem nos agride, nos coloca face a face com o que somos, sem as vestes que nos envolvem,
camuflando o que, de fato, somos: nada... e tudo ao mesmo tempo.
GUAVIRA LETRAS - Na sua abordagem do discurso pedagógico, Derrida, Foucault e
Lacan são referências constantes. Parece que eles se encontram muito presentes nas suas
formulações teóricas e metodológicas, uma vez que você aponta para caminhos que passam
pelas noções delineadas nas obras deles.
MJC - De fato, Derrida, Foucault e Lacan foram, pouco a pouco, fazendo parte do universo
que fundamenta minhas pesquisas e, na medida do possível, as de meus orientandos e colegas
que comigo constituem grupos de pesquisa. Digo pouco a pouco, porque, como já disse,
Foucault foi o primeiro filósofo a problematizar as concepções que eu trazia da teoria da
argumentação e da pragmática de Oswald Ducrot, Récanati, da teoria da enunciação de
Benveniste, de Culioli, da Teoria dos Atos de Fala de Searle - linguista que fez uma leitura de
Austin altamente questionável, mas bastante consistente para a área. A primeira obra que li,
sob a recomendação de meu orientador de doutorado, Prof. Kanavilil Rajagopalan, e que
questionava a leitura (linguística) de Searle sobre a obra de Austin, How to do things with
words, foi o livro The Scandal of the Speaking Body, de Shoshana Felman. A obra desta
autora, a de Michel Foucault, as primeiras leituras de Derrida e, depois, a psicanálise,
dentre outras, foram orientando meu pensamento e minhas atitudes como profissional e
pesquisadora, ainda durante o doutorado. Quero com isso dizer que passei a questionar
aquilo que parecia inquestionável, naturalizado pelos hábitos e pela cultura, tudo o que
faz(ia) parte de meu cotidiano, tudo o que parece(ia) verdade... Aos poucos, aprendi com
Foucault e Derrida a “desconfiar” de tudo; não numa atitude paranóica ou de falta de
confiança. Desconfiar da veracidade do que dizem os escritores, os teóricos, sobretudo
quando insistem em defender aquilo em que acreditam como se fosse a única e última
verdade. Com Foucault e com Derrida, mas também com Lacan, aprendi que a verdade não
está em ninguém, a não ser em você mesmo(a), no grupo social ao qual pertence, em suas
crenças, valores, objetivos. Mas, no âmbito da pesquisa e no meio acadêmico, não colocar
nada no lugar daquilo que se critica – porque todo olhar problematizador é visto,
negativamente, como uma crítica – é quase sempre mal interpretado: você critica, mas o que
põe no lugar? era (e ainda é, embora mais raramente) a pergunta mais normal no final de
14 | P á g i n a
Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três
Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano
(Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858).
Guavira
no10
uma comunicação ou uma palestra. Pertencemos à cultura ocidental, para a qual o certo é
buscar a verdade e esta só pode ser encontrada na razão, na certeza da objetividade, na
teoria, na religião ou na ciência que pro-gride (vai subindo, pouco a pouco, os degraus da
longa escadaria que culmina na verdade, na sabedoria, na perfeição). O uso que fazemos da
razão nos constitui culturalmente, é certo, mas é possível questioná-lo, como é possível
questionar a escola, sem que, com isso, tenhamos de colocar outro modo de ensinar ou outra
instituição no lugar; mesmo porque é impossível fazer isso sem tomar como parâmetro aquilo
que refutamos; onde estaria, então, a novidade? Só podemos desconstruir de dentro do
edifício da cultura ocidental, caracterizado pelo pensamento dicotômico, que nos constitui e,
assim, só é possível lançar um olhar problematizador e questionador às articulações que
constituem tal edifício e às consequências do funcionamento do mesmo na sociedade. Se
entendermos que a escola foi construída com objetivos específicos, seremos capazes de
entender que ela poderia ser diferente – não melhor nem pior, mas diferente. Isso nos dá
liberdade para questionar o que se apresenta diante de nós como verdades irrefutáveis,
modos de ser e de ver a nós mesmo(a)s, ao outro, ao mundo que nos cerca de uma certa
maneira e não de outra e, ao mesmo tempo, aceitar o outro, a cultura do outro, as diferenças
do outro. A desconstrução permite que percebamos, como já afirmava Nietzsche, que
acreditamos naquilo que não passa de construções humanas como se fossem naturais,
criadas por algum ser divino. A psicanálise freudo-lacaniana também se posiciona contrária
a tudo o que se diz “verdade” e, sobretudo, à concepção de sujeito centrado, consciente,
racional. A contribuição da psicanálise para o estudo do discurso didático-pedagógico se
encontra principalmente no entendimento do aluno e do professor como sujeito do desejo, o
que muda radicalmente o nosso olhar sobre as relações que se estabelecem entre eles no
contexto de sala de aula. Se considerarmos que é impossível ensinar, porque é impossível
controlar o desejo do outro (aluno, no caso), a não ser que se acredite que uma metodologia
seja capaz de motivar e, portanto, de fazer o aluno aprender – o que, para mim é uma falácia
–, então, compreenderemos que só é possível instigar no aluno o desejo de aprender e isso se
dá através do professor que funciona, para o aluno, como sujeito “suposto” saber, como
alguém a quem se confere um saber e uma confiança proveniente da admiração que esse
saber pode instigar. Insisto em dizer que se trata de um “suposto” saber, porque ninguém
sabe tudo e o professor precisa entender isso e aprender a conviver com a falta. Se o
professor se coloca diante do aluno como aquele que sabe, como aquele que não tem falhas,
o aluno não terá jamais a oportunidade de, ele também, perseguir o seu desejo, em busca
desse saber que é sempre faltante, sempre falho, sempre incompleto, mas também sempre
instigante, sempre provocador... Mas, como eu costumo dizer, para que isso ocorra, é
necessário que o(a) professor(a) ame o que faz, goste de estudar, seja responsável por suas
ações, ainda que nem sempre possa controlar os efeitos de sentido nem suas consequências
inevitáveis; que ele ou ela se envolva e se identifique com aquilo que ensina. A aprendizagem,
sustentada em algumas concepções da psicanálise, se dá na relação entre subjetividades, que
se encontram pelo amor ao saber, que não se totaliza em ninguém, que está sempre aberto a
outras interpretações, a transformações, às mudanças que a vida inevitavelmente
proporciona. Só é possível falar de aprendizagem se um dado saber atravessar o corpo,
constituí-lo, fizer-se carne e sangue, transformando a subjetividade daquele que se expõe e
nele se in(ex)screve (lt.: in-scribere; ex-scribere).
GUAVIRA LETRAS – Você afirma que outras teorias de discurso são igualmente
transdisciplinares, daí podermos afirmar que a análise de discurso se encontra no espaço
15 | P á g i n a
Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três
Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano
(Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858).
Guavira
no10
incômodo do entre – entre linguagem e social. Afirma ainda que suas pesquisas baseiam-se
em concepções teórico-metodológicas conflitantes e até certo ponto incompatíveis – o podersaber em Foucault, que, de certo modo, substitui, embora a ele não se sobreponha, o conceito
de ideologia presente em suas primeiras obras; a noção de formação e prática discursivas,
além de sujeito como lugar discursivo (Foucault, 1969); a noção de texto e, sobretudo de
différance, suplemento e traço em Derrida; e a noção de sujeito cindido, fragmentado,
constituído pelo outro, sujeito da linguagem e do gozo desejado e interditado, em Freud e
Lacan. Sob seu olhar, o que eles guardam em comum?
MJC - Apesar de diferentes, singulares em sua maneira de questionar o que parece óbvio, os
três intelectuais guardam algo em comum, sim, ou, pelo menos, algumas concepções se
tangenciam. O primeiro aspecto a ser considerado como traço que une – sem unir – é a
concepção de sujeito. No movimento de 68, estavam os três unidos contra a racionalidade
como única maneira de chegar à verdade, contra a concepção de sujeito centrado,
cartesiano, caracterizado pela razão, ainda que marcado pela dúvida, única capaz de abrir
as portas da verdade que se encontrava na capacidade de pensar e de fazer ciência. O sujeito
racional, como sabemos, remonta à tradição greco-latina, de que somos herdeiros: Platão
postulava a existência do mundo das ideias (da razão, da verdade, do controle) e do mundo
das sensações (sentimentos, instintos, subjetividade). O primeiro deveria prevalecer sobre o
segundo que precisava ser banido para podermos, um dia, alcançar Deus, a sabedoria
perfeita, completa. Descartes foi buscar em Platão inspiração para o seu pensamento e
outros, como Chomsky, foram buscar em Descartes a sua fonte de inspiração. Então, a
concepção de sujeito dividido, incompleto, incapaz de exercer controle sobre si e sobre o
outro, de modo a, de antemão, prever as consequências de seus atos, de suas atitudes, de suas
palavras. Isso nos leva a outro ponto em que os três intelectuais se tangenciam: a concepção
de linguagem – opaca, capaz de provocar no interlocutor (ou leitor) efeitos de sentido, muitas
vezes, inesperados; linguagem, portanto, polissêmica, cujos sentidos só são controlados pela
cultura, pelo momento histórico-social, pelos grupos sociais em que se inscreve o sujeito;
linguagem porosa, incapaz de tamponar o inconsciente. Sobre este, de modos diferentes, os
três intelectuais em pauta se pronunciam. Tanto Foucault quanto Derrida concordam com a
existência de uma dimensão inconsciente, que promove o não controle do dizer e do agir, a
ausência de previsibilidade dos acontecimentos, que urdem uma trama, à revelia do próprio
sujeito. O aspecto social permanece no pensamento dos três: em Foucault, nas formações
discursivas ou nos discursos em formação, que delimitam o que pode e deve ser dito, num
dado momento, para uma dada cultura, para um determinado grupo. Em Derrida, na
impossibilidade de haver sujeito ou de falar de identidade sem o outro, o que, de certo modo,
coincide com o pensamento de Lacan, para quem o ego se constrói no espelho do olhar do
outro, cujos traços vão sendo internalizados, de modo a constituir o que denominamos
identidade, ilusão de completude, de seres inteiros, de coincidência de si consigo mesmo (cf.
Lt.: idem). Outro ponto, ligado a estes, diz respeito à verdade: nenhum deles acredita na
existência de uma verdade, sem consideração do momento histórico-social no qual se
inscreve o sujeito e a(s) verdade(s). Para Lacan, a verdade é aquela que não se sabe, isto é,
aquela que nos constitui como sujeito: a verdade do inconsciente. Além do mais, tanto
Foucault quanto Derrida não aceitam a elaboração de uma teoria como a psicanalítica, que
propõe uma estrutura para o inconsciente: segundo Lacan, o inconsciente se estrutura como
uma linguagem. Não aceitam a existência do eu ideal, do ideal do eu, do imaginário,
simbólico e real, dentre outros conceitos, como postula a psicanálise lacaniana, que, assim,
16 | P á g i n a
Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três
Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano
(Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858).
Guavira
no10
parece tornar concreto o que é da ordem do impossível a definir. Para os dois, mas,
principalmente para Foucault, a psicanálise é um dispositivo de poder; o analista promove,
no analisando, a confissão de si e, desse modo, assim como ocorre com a confissão na
religião católica, exerce sobre ele um certo poder, que provém de um saber, que se constroi
com o consentimento do analisando que não se dá conta do que ocorre. Entretanto, apesar
das discordâncias, da desconstrução que os dois filósofos operam sobre a psicanálise, ambos
a conhecem muito bem (sobretudo a freudiana) e dela se servem ao longo de sua obra,
principalmente de noções que não comprometem a sua crítica à estrutura, à classificação,
enfim, à teoria, que promove sempre uma verdade, através de seus postulados. Tais
semelhanças talvez se devam ao fato de que os três foram heideggerianos no início de sua
formação acadêmica e Derrida, embora ele discorde, porque também desconstroi muitos
conceitos em Heidegger, foi considerado, na época do movimento estudantil de 1968, o mais
heideggeriano de todos: Foucault era visto, no meio acadêmico, como a soma das ideias de
Heidegger e Nietzsche; Lacan, de Heideigger e Freud e Derrida, de Heidegger + Heidegger.
Na ocasião, não era nada confortável ser visto como heideggeriano, na medida em que este
filósofo, assim como Nietzsche e, mais tarde, Foucault, Derrida e, de certa maneira, Lacan,
se posicionavam contrários a todo o tipo de imposição da razão, de verdades preestabelecidas, que acaba(va)m por discriminar, segregar, criar preconceitos e, portanto,
marginalizar uns em favor de outros, daqueles que permaneciam no poder e no centro,
fazendo valer como únicos e verdadeiros os seus postulados, as suas crenças, o seu modo de
pensar e de ver o mundo, o seu jeito de ser. Entretanto, quando afirmo que todas as vertentes
da Análise de Discurso são transdisciplinares, assumindo o espaço incômodo do entre – entre
linguagem e social –, refiro-me também a outras abordagens como a orientação britânica da
Análise Crítica do Discurso, que encontra em Fairclough e seus seguidores o seu esteio. É
bem verdade que, sob a denominação de Análise de Discurso, abrigam-se vertentes textuais,
que, nos seus primórdios, pouco trabalhavam com o componente social, mas, os Estudos do
Texto também foram mudando e, hoje, incluem o componente social, ainda que o considerem
extra-linguístico. Não se trata, em todos os casos aqui citados, da mesma concepção de
social, da mesma inserção na abordagem discursiva, que, dentre outros, se ancoram na
psicologia cognitivista. Além disso, toda Análise de Discurso se constitui de várias áreas do
conhecimento: num caso, teorias do discurso, história, filosofia, linguística, psicanálise;
noutro caso, linguística, estudos sociais, ciências da cognição; noutro, ainda, estudos do
texto, análise conversacional, psicologia, para citar apenas algumas possibilidades
transdisciplinares, que, certamente, se modificam em função dos registros em estudo (corpus)
ou em análise.
GUAVIRA LETRAS - Há uma frase no seu livro de 2003 (Identidade & Discurso)
desafiadora, instigante, marcante, em especial para a área da educação: “De identidade
paradoxal, o sujeito-professor de português oscila entre representações utópicas, idealizadas,
que acabam por encobrir ou sublimar as dificuldades do profissional nos dias de hoje, e a
realidade de um cotidiano penoso, que o distancia cada vez mais da imagem ideal de
professor construída ao longo dos anos e das gerações...” (p. 253-4). A proposta aqui é tomála como tema para que você aborde as relações entre sujeito e alteridade.
MJC - Veja: não é possível falar de identidade sem falar de alteridade. Isso porque a
identidade é construída pelo outro. Há quem fale da identidade política, moldada segundo
17 | P á g i n a
Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três
Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano
(Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858).
Guavira
no10
interesses específicos, mas não é a essa identidade que me refiro. A palavra “identidade” se
constitui do pronome latino idem, que significa o mesmo; assim, quando falamos de
identidade subjetiva (não profissional, não apenas linguística nem política), estamos dizendo
que há coincidência de si para consigo, que eu sou exatamente como me descrevo ou como
me descrevem. Há aí uma ilusão de completude, ainda que se diga, nos estudos sociais, que a
identidade muda; seja como for, ela pode ser apreendida, descrita, estabilizada. Lacan trata
da identidade quando aborda (cf. “O estádio do espelho como formador da função do eu”,
em Escritos) o que ele denomina estádio do espelho. A mãe ou um adulto que a representa
coloca o bebê diante do espelho e vai nomeando (olha, você, Renatinho); pouco a pouco, a
criança vai internalizando essa imagem invertida de si (basta pensar que nos vemos como o
outro nos vê, isto é, pelo espelho (o olhar do outro), que transmite a imagem de nós mesmos.
Da mesma forma, o modo como a criança é tratada na escola, como os pais definem suas
qualidades e seus defeitos vai construindo o seu ego ou o eu ideal. É, portanto, na instância
do imaginário que se constrói a identidade, que, é bem verdade, não passa de uma ilusão, ou,
como quer Nicole Berry, de um sentimento de identidade (título de sua obra traduzida por
mim e publicada pela Editora Escuta). O que e como somos só o inconsciente pode dizer: ele
se manifesta pelas brechas da linguagem, nos atos falhos, lapsos, sonhos, chistes, sintomas...,
mas a questão que, raramente, somos capazes de interpretá-los fora do divã do psicanalista.
Quando me referi aos professores e ao imaginário que os constitui, estava pensando no
imaginário social, aquele construído pela memória discursiva que vai se transformando com
o tempo, mas que, herdado, vai constituindo o (futuro) professor. Sabe-se que a escola
urbana, tal como a conhecemos hoje, teve origem na época da Revolução Industrial, quando
houve uma grande migração do campo para a cidade, em busca de trabalho. As mulheres dos
empresários reuniam as novas habitantes, esposas dos operários, para ensinar a elas noções
de higiene, como forma de prevenir que doenças fossem trazidas, do campo, para a região
urbana. Aos poucos, as crianças foram se tornando alvo dessa espécie de ensino ministrado
pelas mulheres até que os religiosos, com o intuito de catequizar, tomaram para si a
responsabilidade pela educação, que já começou como uma tarefa missionária, sem
remuneração em troca. Isso explica, a meu ver, a representação de professor, primeiro como
uma tarefa feminina, segundo como um trabalho missionário, que permanece, com
transformações, ainda hoje, no imaginário de professores: apesar de insistirem que são
profissionais com o direito de lutar por uma remuneração mais justa, num mundo em que o
dinheiro é o significante mestre, ainda se veem como abnegados, cuja recompensa é mais o
resultado de sua ação sobre as crianças e adolescentes, além da valorização de seu saber ou
de seus conhecimentos, do que o dinheiro – é ao menos o que se percebe em muitas das
redações de professores que analisamos em nosso projeto. Ao mesmo tempo, esse imaginário
entra em conflito com uma realidade difícil de enfrentar, como falta de infraestrutura para
ensinar, de forma moderna e adequada, em escolas onde falta tudo – desde aparelhos até
tomadas para se ligar um gravador, por exemplo. Numa sociedade onde se valorizam os
avanços da tecnologia, parece imprescindível a existência de instrumentos, como gravador,
retroprojetor, mais atualmente, vídeo, computadores, em sala de aula. Situação difícil de
enfrentar também por conta da falta de reconhecimento social de seus conhecimentos, o que
se traduz pela baixa remuneração e pela desconfiança dos alunos quanto ao saber, há alguns
anos atrás, inquestionável. Situação difícil, finalmente, em razão dos alunos, desrespeitosos,
muito mais violentos e agressivos do que outrora, sobretudo – mas não apenas – quando se
trata de escolas públicas da periferia, pobre e cheia de problemas sociais, alunos
desmotivados, desinteressados. Desse modo, a identidade do professor se constitui desse e
nesse emaranhado de conflitos e contradições: de um lado, a memória discursiva que os
18 | P á g i n a
Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três
Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano
(Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858).
Guavira
no10
exalta, herança de um tempo em que eram reconhecidos pela sociedade como portadores do
saber, como missionários, de outro, uma sociedade que os desvaloriza como profissionais
mal-preparados, com necessidade freqüente de “atualização”, o que se concretiza na baixa
remuneração. Ora, como afirma uma professora, em sua redação para o Concurso, “o
professor narra a sua história”, promovido pela Secretaria de Educação do Estado de São
Paulo, em 1996, ser mal remunerado, numa época em que o dinheiro domina como fator de
reconhecimento e valorização, é ser um nada, incompetente, descartável... Essa sensação de
objeto dispensável vem sendo enfatizada pelo uso de instrumentos que parecem ocupar o
lugar do professor ou ao menos reduzir a sua relevância, como a internet, no ensino semipresencial ou a distância, tão exaltado e pouco questionado, nos dias atuais.
GUAVIRA LETRAS – Sabemos que coordena um grupo de estudos sobre novas
tecnologias e que estas permitem configurações textuais cada vez mais diversificadas,
multifacetadas e complexas. Conte-nos sobre os principais desafios da(s) leitura(s) dos textos
tecidos por múltiplas linguagens.
MJC - É interessante que sempre nos referimos aos textos das e nas chamadas novas
tecnologias como sendo complexos, tecidos por múltiplas linguagens, como se a
complexidade não caracterizasse todo e qualquer texto, escrito no papel ou na tela.
Pensamos, por exemplo, que o hipertexto é uma prerrogativa do texto-tela, que permite
acessar ad infinitum outros textos, a um simples clique do mouse. Esquecemos que a
intertextualidade se faz presente nos textos-papel através das referências a obras e autores e
citações dos mesmos, no corpo do texto, além das referências bibliográficas no final dos
mesmos. A grande diferença é a facilidade de encontrar esses outros textos na internet, o que
não ocorre no segundo caso, que exige um trabalho de busca em bibliotecas e livrarias.
Entretanto, esquece-se que, tanto quanto no texto-papel, os textos inseridos e ativados com
um clique do mouse sobre uma palavra destacada (seja pela cor, seja pela ênfase –
sublinhado, negrito ou itálico) são escolhidos, limitados, pelo “autor” ou pelo especialista
que informa ao técnico em computação, para que este insira os textos, muitas vezes,
fabricados a partir de outros textos, assinados (“originais”) por outros especialistas, autores
de textos grafados em papel. Neste caso, os textos, encontrados na íntegra em livros ou
artigos publicados em papel, são frequentemente sintetizados pelo autor do texto-tela, que
permanece, muitas vezes, anônimo, eximido de responsabilidades, que passa para o site ou
para a empresa promotora, responsável por aquelas informações. Por essas e outras razões,
pode-se afirmar que há semelhanças e diferenças a serem consideradas nos dois casos,
diferenças que advêm do veículo: o manuseio do papel em oposição à distância do texto-tela
com relação ao leitor A facilidade com que se relê e se refaz o caminho para a obtenção de
uma dada informação e a dificuldade, por vezes a impossibilidade de refazer o caminho
percorrido, principalmente quando se trata de textos que rastreamos sem a orientação de um
site, constitui mais uma diferença... Talvez se deva a essas diferenças a manutenção do textopapel, apesar do receio que as editoras e nós, velhos amantes dos livros, que carregamos
debaixo do braço, podendo ser transportados e abertos a qualquer momento, em qualquer
situação, em qualquer lugar, sentimos diante da possibilidade do desaparecimento das
publicações em papel. Haverá sempre, como afirma Derrida, em sua obra Papel-máquina,
lugar para os livros em papel, lugar que, evidentemente, está sendo modificado pela web e
que, certamente, sofrerá ainda mais transformações; mas ele permanecerá, como ocorreu
19 | P á g i n a
Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três
Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano
(Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858).
Guavira
no10
com o rádio, no momento em que a televisão surgiu; como acontece com o jornal escrito,
mais tarde radiofonizado, depois, inserido na televisão e, mais recentemente, na internet... No
caso do jornal, já se percebe uma imbricação entre o papel e a tela, cada um deixando-se
adentrar pelo outro, construindo um texto híbrido, heterogeneidade ampliada,
complexificada a cada momento. Observem-se os jornais como A Folha e o Estado de S.
Paulo, que, cada vez mais, incluem imagens, fotos, publicidades, textos paralelos,
diagramações incorporando estratégias encontradas na internet. Lembremo-nos também que
o que se encontra na internet não deixa de ser uma espécie de “decalque” dos jornais em
papel – afinal nada se cria do nada –, que, pouco a pouco, foi se beneficiando das facilidades
encontradas pelo meio (reportagens ao vivo, com falas e movimentos, como na televisão).
Essa imbricação – que se dá entre os meios de comunicação – está ocorrendo também com as
formas de grafar, tacitamente convencionadas para a internet (o famoso “internetês”), e o
modo escolarizado, tido como “correto” da escrita padrão. Na escola, já é preciso perceber
essa “mistura”, apesar da recusa da mesma – e dos professores, em particular – em assumir
os textos da internet como gêneros (e-mail, blogs, orkut etc.) a serem integrados a outros, que
já fazem parte dos programas de língua portuguesa. Cada vez mais, é possível dizer que os
textos são heterogêneos, como você afirma em sua fala, “tecidos por múltiplas linguagens”:
pictórica (não verbal), escrita (verbal) – padrão, oral, internetês –, sonora (verbal e não
verbal- musical, por exemplo), etc.
GUAVIRA LETRAS – Suas investigações, sob a luz da desconstrução de Jacques Derrida,
levaram-na ao questionamento da dicotomia língua materna e língua estrangeira, bastante
difundida, no campo da Linguística Aplicada e, consequentemente, da sala de aula. Tal
questionamento alavancou muitos trabalhos no intuito de aprofundar o saber científico em
torno da relação entre língua materna e língua estrangeira na constituição da subjetividade e
da identidade. Nessa direção, qual foi a leitura mais empolgante dos textos de Derrida que
marcou para sempre sua visão de mundo?
MJC - Embora todos os textos de Derrida me toquem profundamente, não apenas pelas
“verdades” que eles desconstroem em mim, anteriormente irrefutáveis, mas por sua
escrit(ur)a, que se desconstrói a si mesma, na medida em que se volta para si, para sua
constituição histórico-social e realiza um trabalho que expõe sua identidade. Entretanto, foi
O Monolinguismo do Outro que mais me marcou, talvez porque aborde questões que eu
desejava abordar, sem saber. Quando o li pela primeira vez, num período de férias, eu me
emocionei e descobri em mim um interesse que, antes, estava velado, embora já se tivesse
manifestado pelo meu gosto por línguas: o interesse de compreender o sujeito entre línguasculturas, tema que foi sendo amadurecido até se tornar “objeto” de um de meus projetos
posteriores e que, desde então, não me abandonou mais. Era como se tudo o que ali estava
escrito tivesse a ver comigo, como se toda a problemática fosse dele, Derrida, minha e de
todos sem exceção. Não é difícil se identificar com o que ele diz, já que trata da língua(gem)
que é sempre cultura e que nos constitui em sujeito da linguagem ou sujeito do desejo ou
sujeito do inconsciente, para usar uma nomenclatura lacaniana. Derrida aborda essa
questão, a partir de suas próprias experiências de vida, alicerçadas, é claro, num
pensamento filosófico de uma erudição admirável e, por que não, invejável. O filósofo trata
da linguagem o tempo todo em sua obra; aliás, ele faz da linguagem, indiretamente, o seu
“objeto” de estudo. Derrida, num diálogo imaginado, inicia sua obra com a seguinte
questão: “imagine alguém que cultivasse o francês, o que se chama francês e que o francês o
20 | P á g i n a
Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três
Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano
(Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858).
Guavira
no10
cultivasse. Ora, um dia, esse sujeito de cultura francesa viria lhe dizer, por exemplo, em bom
francês: Eu só tenho uma língua, ela não é minha”1. E prossegue falando de um
monolinguismo aparente que vai, pouco a pouco sendo desconstruído; afinal, não há
monolinguismo a não ser no outro, que se deseja ser mas que nos é interditado, assim como
não existe um sujeito monolíngue: toda língua resulta de muitas outras que, historicamente,
vão deixando seus traços, que vão se “sedificando”2, ou melhor, se sedimentando, se
naturalizando, se transformando e transformando a língua em questão. Paralelamente à
questão do monolinguismo, Derrida discute a impossibilidade de uma língua pertencer a
alguém, embora, em nome dessa propriedade, dessa apropriação, impossível (“uma língua
não se deixa apropriar”), mas na qual se crê, muitas injustiças sejam cometidas, muitas
discriminações e preconceitos sejam nutridos ou mesmo construídos. Uma língua pode ser
um instrumento de poder de uns sobre os outros, na medida em que ela é imposta ao povo
conquistado, ao imigrante, aos refugiados políticos. E isso pode acontecer de tal modo que a
língua do povo conquistado chegue a ser até mesmo suprimida, seja por força da lei ou por
força das circunstâncias. Derrida, por exemplo, judeu, nascido na Argélia, nos anos 30,
nunca aprendeu a língua árabe, porque, segundo acreditavam seus pais, esta não lhe traria
benefício algum, num país dominado pela França. Língua que ele ama, que ele defende, mas
que não é dele, como, aliás, não é de ninguém. Essa obra me levou – a mim e a meus
orientandos – a questionar a dicotomia língua materna vs língua estrangeira: até que ponto é
possível definir a chamada língua materna como a língua do repouso, do gozo, e até que
ponto a língua estrangeira seria aquela(s) que não é possível “saber”, mas apenas conhecer,
como afirma Melman em seu livro Imigrantes: incidências subjetivas das mudanças de língua
e país? Até que ponto é possível antecipar, ou melhor, determinar, sem considerar o sujeito e
sua história de vida, marcas do tempo e das circunstâncias que o envolve(ra)m, marcas das
experiências pessoais, a língua materna de alguém (adquirida, portanto) em oposição à(s)
língua(s) estrangeira(s) que aprendeu? Nossa pesquisa mostrou a impossibilidade de
conservar tal dicotomia, não apenas porque cabe ao sujeito se pronunciar a respeito, como
também porque, se for possível falar de língua materna, seria necessário, considerá-la
híbrida, resultado das línguas que nos constituem, uma verdadeira lalangue, lalação (como
afirma Milner, com base em Lacan) - que se caracteriza pela sonoridade -, impossível de
tocar, de analisar, mas que se manifesta, pontualmente, cá e lá, na materialidade linguística
de nosso dizer, na imbricação das línguas, de forma inconsciente e, portanto, imperceptível.
Tais reflexões levaram-nos a considerar a estrangeiridade naquela que se insiste em
denominar língua materna e a possibilidade de regiões de maternização naquela que
consideramos estrangeira. Estudamos, então, o discurso de migrantes, pessoas que se
deslocam dentro do mesmo país, em busca seja de melhores condições de trabalho e/ou de
estudo. No momento, a mesma questão está sendo estudada com relação aos pobres, aos
migrantes em situação de rua. Trata-se, sempre, de uma questão de língua(gem)-cultura,
identidade e, portanto, de subjetividade.
GUAVIRA LETRAS - Como você consegue vislumbrar as veredas atuais para a questão
do discurso?
1
Tradução da entrevistada.
Acabo de dizer algo que pode ser considerado da ordem de lalangue, na medida em que a palavra,
pronunciada imediatamente antes, resulta da sonoridade de outro termo: “sedificando” parece proceder de “se
edificando” ou “s’édifiant”; seja como for, a ideia é de construção e não de manutenção ou de sedimentação.
2
21 | P á g i n a
Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três
Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano
(Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858).
Guavira
no10
MJC - De um lado, não é mais possível analisar apenas a materialidade linguística; é
preciso considerar os demais componentes do texto, como as imagens, as ilustrações, os
gestos, tudo o que é visual, tudo o que não é verbal. Isso porque o sentido não está apenas
nas palavras. Se pensarmos no discurso midiático, compreenderemos melhor o que estou
querendo dizer: os aspectos não verbais são tão importantes para a produção do(s)
sentido(s) quanto o aspecto verbal. Analisar, portanto, o componente não verbal é um dos
grandes desafios para a Análise de Discurso nos dias de hoje, sobretudo se considerarmos
que o não verbal deve ser analisado em outras bases que o virtual. Pode-se guardar uma
mesma filosofia, mas, para analisar uma materialidade que é muito diferente, outros
conhecimentos, outra metodologia se fazem necessários. Sabemos que, dentre outros, o grupo
de pesquisa da colega Maria do Rosário Gregolin, da UNESP (Araraquara), está tentando
teorizar e até mesmo criar uma metodologia de análise, a respeito do não verbal, mas
sabemos, também, das dificuldades que estão encontrando. Por outro lado, os discursos do
cotidiano, da rua, dos sem nome, dos marginalizados merecem ser analisados,
compreendidos, rastreados, como única maneira de conhecer melhor o mundo que nos cerca,
contribuir para a problematização de uma situação político-social insuportável, injustiça que
só pode culminar na violência, na revolta, no ódio... Finalmente, não há como escapar do
discurso multimidiático, que mina a vida de todos os que, sem reagirem, abrem as portas de
suas casas, de seu corpo, de seu universo para a vigilância, para a tecnologia que, cada vez
mais, não nos deixa sós, nem a sós, ao mesmo tempo em que nos isola do contato social,
exclui a presença do outro em nossa vida, expondo-nos ao controle daqueles que não
conhecemos, que não nos conhecem nem querem conhecer; querem apenas adentrar em
nossa vida para com isso lucrar, extrair dinheiro, ludibriar. Os discursos sobre as chamadas
novas tecnologias e suas articulações, seu funcionamento devem ser estudados, analisados,
com o objetivo de provocar reflexões, questionamentos que sejam capazes de desnaturalizar
o que, embora tendo sido construído – como tudo o que nos cerca, aliás -, paira no mundo
contemporâneo como se fosse natural, inevitável. Mas, é preciso considerar a
impossibilidade de fazer esses estudos sem uma visão menos compartimentalizada das áreas
de conhecimento, para que seja possível adentrar por uma sociedade multilínguemulticultural como a que estamos vivendo. Como será no futuro? Fica difícil prever, já que
estamos atravessando – e sendo atravessados – por um momento de profundos conflitos
sociais, emergindo cada vez mais fortes, contra consequências avassaladoras do fenômeno
da globalização que, sedimentado pelo regime neoliberal, tem como projeto a
homogeneização de tudo e de todos, o apagamento das diferenças, sob o rótulo falsamente
generoso de criar possibilidades iguais para todos num mundo que é de todos. Contra esse
projeto muitos grupos sociais, considerados minoritários, têm se rebelado, intensificando sua
identidade e, portanto, aquilo que os distingue do ocidente ou de outros povos (muitas vezes
não tão diferentes assim). As mudanças políticas e sociais correspondem sempre mudanças
de discursos. E só o futuro poderá dizer para onde esses discursos, sempre em formação,
levarão as pesquisas que se preocupam com o seu funcionamento, discursos ao mesmo tempo
construídos pelo momento histórico-social e responsáveis pela transformação da realidade.
GUAVIRA LETRAS - Você escreveu no seu livro, “O jogo discursivo na aula de leitura”
(1995), a frase: “Entendemos, então, o silêncio não como ausência de som e,
22 | P á g i n a
Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três
Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano
(Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858).
Guavira
no10
consequentemente, de significado, como vazio que precisa necessariamente ser preenchido...”
(p. 68). Como você interpreta esse enunciado hoje?
MJC - Sim, o silêncio é normalmente entendido como ausência de ruído, de barulho, de
palavras, apenas. Mas, na nossa cultura latina, o silêncio constitui um problema: não
suportamos ficar calados por mais de alguns segundos; dizemos qualquer coisa para quebrar
o silêncio que incomoda, perturba. Isso não ocorre com outras culturas. Por exemplo, o
silêncio para os indígenas é um tempo para pensar, elaborar o que será dito... Mas, por outro
lado, o silêncio pode significar resistência, não aceitação de alguma forma de poder, de
alguma imposição ou, ainda, pode constituir uma estratégia (consciente ou não) para
manifestar uma espécie de descontentamento por alguma coisa, principalmente quando não é
possível expressar com palavras o que se sente. Pode ser o caso de alunos que, para não
serem repreendidos, se calam em aula: aparentemente, estão prestando atenção, mas sua
cabeça está em outro lugar. Falta de educação ou desrespeito com relação ao professor?
Pode ser. Mas, pode também significar desinteresse pela aula, pela metodologia, pelas
atitudes do(a) professor(a). Seja lá como for, trata-se de uma atitude de resistência numa
relação de poder. Entretanto, silêncio não é o mesmo que silenciamento. Este é imposto por
outro(s), que impede(m) a expressão “livre” de um pensamento ou de um sentimento; é o
caso dos regimes políticos totalitários, que exercem um poder soberano sobre a população,
não permitindo, sob ameaça, qualquer espécie de resistência. Silenciar, portanto, não é
apenas calar o outro, mas anulá-lo, enquanto calar-se pode ser uma atitude consciente de
resistência, como dissemos. Hoje, na época do que muitos denominam pós-modernidade, de
forma paradoxal, ao mesmo tempo em que a solidão toma conta da vida administrada por
tecnologias, ou talvez exatamente por isso, não se suporta o silêncio, talvez porque este nos
coloque frente a frente a nós mesmos, com nossas mazelas, com as injustiças que cometemos
ou que deixamos que se cometam, com nossa indiferença; queremos barulho o tempo todo,
música ruidosa nos ouvidos, tampados por fones de orelhas, imagens, que ofusquem nossos
olhos para que enxerguemos apenas o que outros querem e que nos traz a sensação de
“felicidade”, e, assim todos os sentidos a tudo o que não seja prazer, gozo, ilusão de
felicidade. Vive-se como se o sofrimento, a dor – moral e física –, a morte, enfim, que nos
assombra, pudessem ser banidos do mundo de cada um, cada vez mais reduzido pela solidão,
na crença ilusória e mentirosa de que, assim, (com)partilhando apenas com máquinas, com
objetos e pessoas descartáveis, buscando consumir desenfreadamente, encontraremos a
nossa realização pessoal. Não estaremos também sendo silenciados, amestrados, agenciados,
ainda que de forma subliminar, sutil, pela mídia, que, hoje, funciona como o veículo da
verdade, a serviço do neoliberalismo e do marketing? Preenchemos a falta, o vazio que nos
constitui com objetos, na esperança de, no final da empreitada, depararmo-nos com um ser
completo, capaz de, sozinho, suprir todas as suas necessidades... doce ilusão que nos leva ao
abismo da depressão e da droga.
GUAVIRA LETRAS – Conte-nos acerca do seu momento atual, dos seus projetos,
perspectivas, sonhos.
MJC - Dos projetos atuais já falei um pouco... De minhas perspectivas acadêmicas, não
tanto, talvez porque, eu mesma acredite que, já sendo professora titular e pesquisadora 1A
junto ao CNPq, não me resta senão manter firme essa posição. Mas, apesar dos meus 40
23 | P á g i n a
Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três
Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano
(Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858).
Guavira
no10
anos de profissão, eu ainda conservo algumas ambições: almejo um pouco mais no que diz
respeito a uma certa internacionalização das pesquisas e trabalhos que implementamos.
Tenho ido a diversos congressos internacionais em vários países, sempre com apresentação
de trabalho; fiz vários cursos com professores e pesquisadores de renome internacional na
Linguística e na Linguística Aplicada, sobretudo na França. Já fiz estágios de pósdoutoramento em Montreal (Canadá), em Paris (França) e em Lisboa (Portugal). E tenho
alguns artigos publicados no exterior. Mas, onde eu pude, realmente, expor minhas ideias,
dizer o que pensava, me expor e, talvez, me impor, foi na Universidade de Franche-Comté,
em Besançon (França), onde estive, em 2000, durante dois meses como professora
convidada. É claro que nem sempre concordavam comigo, diziam alguns que eu era
“iconoclasta”, mas eu pude discutir de igual para igual, o que é muito difícil acontecer num
país estrangeiro. Pretendemos, num futuro próximo, realizar um acordo entre a Unicamp e a
Universidade de Franche-Comté, entre a Unicamp e a Universidade de Montpellier 3, para
levarmos a cabo, juntamente com a Universidade Federal de Uberlândia, um projeto
interinstitucional sobre questões identitárias de (i)migrantes em São Paulo e Minas Gerais,
em Besançon e Montpellier. Mais proximamente ainda irei a Hangzou, na China, por ocasião
de um congresso sobre multiculturalismo, expor alguns resultados de pesquisa em torno da
identidade do sujeito em situação de rua, marcado pela miséria, pela droga, pelo álcool, pela
exclusão, pelo abandono, pelo menosprezo inclusive dos familiares; essa exclusão, ou
melhor, essa estrangeiridade, se torna ainda mais forte quando se trata de migrantes que
saíram de suas terras em busca de trabalho, mas se depararam com a realidade que os
aguardava: viver debaixo dos viadutos, ao relento, tendo de catar lixo ou pedir esmola para
sobreviverem na rua, sem família, sem amigos, sem nada para perder e, menos ainda, para
ganhar. Interessa-me saber, além das representações de si e do outro (não morador de rua)
se algo resta em sua memória dos tempos de escolarização - se isso aconteceu, é claro –, e
que representações têm de língua estrangeira, expostos que estão todos os dias a outdoors, a
músicas no rádio, que ouvem, sozinhos, em silêncio. Também temos pesquisado sobre a
escrita no corpo (marcas, cicatrizes, escaras, tatuagens), analisando filmes e respostas a
entrevistas informais, tanto com pessoas em situação de rua, quanto com jovens de classe
média. Quanto à pesquisa em torno das tecnologias, minha preocupação gira em torno da
escrit(ur)a de si no corpo da escrita: como se manifesta – se é que se manifesta – a
subjetividade nos textos-tela, como blogs, orkut, twitter... Que subjetividade está se
construindo num mundo em que se é mais falado pelos meios tecnológicos do que se fala.
Como funcionam as chamadas novas tecnologias na produção do sujeito do gozo, também
denominado sujeito do imaginário ou sujeito do consumo. Prosseguimos na busca
interminável da compreensão da subjetividade, da singularidade, da memória que constrói a
história de cada um e que é também construída pelo outro que nos constitui, constituindo o
saber inconsciente. De resto, continuar a colaborar com a formação de professores e
pesquisadores – mestrandos, doutorandos... –, a possibilitar a troca acadêmica com colegas
de outras universidades em nível de pós-doutorado e continuar a estudar, a pesquisar e a
escrever, a colaborar, se possível for, para a problematização das evidências, provocando
um certo mal-estar, capaz de minar a torre de marfim em que muitos se refugiam, e, assim,
produzir deslocamentos, rupturas, transformações, pequenas revoluções diárias, como diria
Foucault, únicas capazes de acarretar mudanças legítimas e duradouras...
24 | P á g i n a
Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três
Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano
(Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858).
Guavira
no10
TRAVESSIAS CONTEMPORÂNEAS: O BRASILEIRO
CLANDESTINO DEPORTADO
Marcos Aurélio Barbai (IEL/UNICAMP)3
RESUMO: O objetivo deste artigo é apresentar minha pesquisa de doutorado que analisou, na perspectiva da
Análise de Discurso, a imigração clandestina e a deportação de brasileiros. O sujeito brasileiro clandestino
deportado é um corpo apagado no território, vivendo com a deportação, uma humilhação política, subjetiva e
social.
Palavras-chave: discurso; imigração; clandestinidade; deportação.
ABSTRACT: The aim of this article is to introduce my doctorate research that analyzed, in the Speech Analysis
perspective, the illegal immigration and deportation of Brazilians. The Brazilian illegal banished subject is an
effaced body on the territory, living with deportation, a politics, subjective and social humiliation.
Key Word: speech; immigration; clandestineness; deportation.
Assim, Heine confessa: “Minha disposição é a mais
pacífica. Os meus desejos são: uma humilde cabana com
teto de palha, mas boa cama, boa comida, o leite e a
manteiga mais frescos, flores em minha janela e algumas
belas árvores em frente de minha porta; e, se deus quiser
tornar completa a minha felicidade, me concederá a
alegria de ver seis ou sete de meus piores inimigos
enforcados nessas árvores. Antes da morte deles, eu,
tocando em meu coração, lhe perdoarei todo o mal que em
vida me fizeram. Deve-se, é verdade, perdoar os inimigos –
mas não antes de terem sido enforcados”.
(Sigmund Freud - Mal-estar na civilização, 1974, p. 115)
Considerando tão atual quanto importante o lugar de reflexão que esta edição da
Revista Guavira propõe, a saber, “Sociedade Contemporânea: diversidade e
multiculturalismo”, gostaria de aqui apresentar parte do percurso de minha pesquisa de
doutorado4 que abordou, na perspectiva da Análise de Discurso, a problemática da imigração
clandestina de brasileiros e o retorno desses sujeitos, ao Brasil, via deportação.
Escutar esses sujeitos, corpos significantes (históricos, simbólicos e sociais), na
materialidade do espaço, foi meu gesto de inquietude discursiva frente a um acontecimento
que se mostrava absorvido por uma memória. Ou seja, certa noite, durante o processo de
escrita de minha dissertação de mestrado5, ouvi a chamada de uma reportagem, em um
programa de televisão, que noticiava que muitos brasileiros estavam retornando ao Brasil
deportados.
3
Pesquisador do Laboratório de Estudos Urbanos (Labeurb/Nudecri/UNICAMP). [email protected]
BARBAI, M. A. Discurso e Identificação: o migrante brasileiro clandestino deportado. Iel/Unicamp,
2008. Pesquisa financiada pela Fapesp (processo: 04/07881-3).
5
BARBAI, M. A. No fio do discurso: o seqüestro como um fato de linguagem. Iel/Unicamp, 2004.
4
25 | P á g i n a
Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três
Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano
(Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858).
Guavira
no10
Ao assistir essa reportagem, realizada no Aeroporto Internacional de São Paulo, era
possível ver alguns brasileiros agitados, com seus poucos pertences nas mãos, passando
apressadamente no saguão do aeroporto e, à sua espera, um repórter, ávido a lhes fazer
algumas questões. Entre o dito e ao se dizer, entre o visível e o nomeado, não havia silêncio e
sim uma surdez: tudo ali aparecia menos o fato de que se tratava de brasileiros imigrando
clandestinamente e retornando ao Brasil como sujeitos deportados.
O efeito de assistir a cena, produzida por uma reportagem, incitou-me a pensar naquilo
que Pêcheux (1998) diz, sobretudo em referência, ao poder da mise en scène. Examinando
essa reportagem, era possível ver dois movimentos se produzindo: um já-demarcado e um jávisto – portanto o evidente - (esses brasileiros que você está vendo e ouvindo ai em sua
televisão voltaram deportados para o Brasil porque migraram clandestinamente) ou ainda a
simulação e presentificação do visto e do escutado (se você tivesse migrado clandestinamente
para um dado país e retornado ao Brasil como deportado você saberia do que eu estou
falando).
Assim, esse acontecimento rebelde (como se o acontecido não tivesse ocorrido) se
impôs. Um encontro iria se marcar, com hora e lugar, para mim e para meu outro, no cerne de
uma problemática dos tempos atuais: fronteiras que segregam quem pode e quem não pode,
quem deve e quem não deve circular; travessias subjetivas que nunca se desembaraçam
completamente do trás-mundo, ou dos pré-mundos que fundamentalmente habitam.
No ano de 2005, dirigi-me ao Aeroporto Internacional de São Paulo, na cidade de
Guarulhos, depois de um período de negociação com a Polícia Federal, a Infraero e a Receita
Federal (as instâncias gerenciadoras do aeroporto) para realizar a pesquisa de campo. Mais do
que entrevistar brasileiros que retornavam deportados porque haviam migrado
clandestinamente, fui trabalhar como um brasileiro que foi ouvir outros brasileiros, retornando
ao Brasil em uma situação difícil e dolorosa. Recolhi relatos de vinte e cinco pessoas
deportadas de diferentes países: Estados Unidos da América, México, Bélgica, Espanha,
Itália, França, Inglaterra e Japão.
Frente a um objeto de estudo (“coisas-a-saber”) o trabalho do analista de discurso
depende de uma questão, da natureza de seu material e de seus objetivos. Desse modo, duas
questões sustentaram o trabalho: quais são os sentidos que essa posição-sujeito migrante
brasileiro clandestino deportado vem mobilizar? E, como construir um mundo mais
hospitaleiro para a humanidade quando o que se vê, principalmente hoje, é o apagamento da
historicidade das fronteiras e o seu fechamento, em nome de uma segurança global, que não
significa segurança para todos? O que me permite fazer essas perguntas, para além do desejo
de uma resposta unívoca, é o trabalho com a linguagem: um modo de se abrir para o outro,
não recusando o que a alteridade tem de mais fecundo.
Errância Moderna: da mobilidade no espaço
Considerar a diáspora uma ferramenta de produção na sociedade das experiências
multiculturais e do hibridismo é ver a imigração como uma “possibilidade de definição sóciohistórica da humanidade” (cf. HALL, 2003, p. 55). A imigração tem esse potencial, pois a
mobilidade humana não se resume a um simples e mero deslocamento de lugares.
Segundo Lévy, 2002 (apud HAESBAERT, 2006, p. 238), pode-se definir a
mobilidade como a relação social ligada à mudança de lugar, ou seja, como o conjunto de
modalidades pelas quais os membros de uma sociedade vivem a possibilidade de eles
mesmos, ou de outros, ocuparem sucessivamente vários lugares.
26 | P á g i n a
Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três
Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano
(Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858).
Guavira
no10
A mobilidade, a meu ver, funda uma outra relação do sujeito com o espaço. Ela é um
convite à experiência de múltiplos territórios. Isso se dá porque a mobilidade do sujeito passa
a ser vista como um gesto simbólico que constrói a territorialidade, experiência capaz de
transformar as formas de habitar o mundo, tornando-o flexível e mutável.
O homem errante é aquele que nega, transgride e supera a fantasia de que todas as
pessoas necessitam ter “um” lugar fixo no mundo. O tempo desses sujeitos no mundo não é o
do sedentarismo, o da inércia, mas aquele do movimento e da novidade. A vida errante,
nômade (veja os ciganos6, por exemplo) suscita tanto a admiração quanto o medo, já que o
migrante ou o viajante vive no corpo da cidade a contradição entre a dimensão do que é
provisório e do que é permanente.
Maffesoli (2001, p. 16) salienta que um dos princípios fundamentais da modernidade é
o de inscrever no coração do homem o compromisso com a residência. Para o autor, destinar
o homem à residência é um processo que o fixa para a dominação, fazendo-o viver sob a
ordem, sob a sombra do poder. No entanto, a imobilização do humano pode produzir, segundo
a ótica do filósofo, um fechamento do mundo com efeitos mortíferos, atingindo, assim, o ideal
do poder de uma imobilidade absoluta “da qual a morte é, com toda a segurança, o exemplo
acabado” (Id., p. 25). A mobilidade do homem produz uma desconfiança para com aquilo que
é errante, para com o corpo que escapa ao olhar e ao lugar.
Mudar de referente, ou seja, transformar-se em um sujeito errante, altera as formas ver
e de habitar o mundo. Nesse sentido, Ulisses – o arquétipo dos migrantes – nos lembra que,
procurar outras orlas, faz parte da condição humana. Dauk (2006, p. 8) ressalta que Homero
ao enaltecer Ulisses o faz porque ele goza de uma hospitalidade humana fabulosamente
generosa. “Um mundo humano, esse é o refrão recorrente na Odisséia, só existe lá onde ‘se
come pão, se bebe vinho e se reconhecem as leis de hospitalidade’”.
Entretanto, a hospitalidade é sempre posta em cheque pelo próprio estranho: uma
figura enigmática, ambígua e secreta. O estranho e o estrangeiro convocam experiências com
a exterioridade, com as formas mais diversas de alteridade – aquilo que fascina também pode
matar. A hospitalidade, desse modo, só pode ser exercida quando uma fronteira precisa ser
aberta. Isso se dá porque elas automaticamente não estão, mesmo que a globalização as faça
em seu imaginário da integração.
Abrir fronteiras é aquilo que o errante moderno faz, desafiando a nacionalidade como
o modo de identificação mais importante de todos os tempos. Essa Odisséia moderna pode
constituir o migrante como herói e como vilão. Assim, escutar o brasileiro imigrante
clandestino deportado é constituir, pelos relatos do sujeito que fala sobre si mesmo, um
laboratório interessante para se ver a alteridade convocando a identificação.
A imigração clandestina
A imigração clandestina, aquela que escapa do circuito de gestão da mobilidade
humana de um Estado Nacional, tem um funcionamento interessante. Ela se dá, e pensando
aqui as condições de produção da pesquisa, por duas vias: (a) a do imigrante que, adentrando
em um território estrangeiro, prolonga a sua estadia para além da duração prescrita; (b) a do
imigrante que, contratando serviço especializado de grupos que oferecem a travessia de
6
Faço aqui referência ao trabalho de FILHOL, E. Un camp de concentration français – Les Tsiganes
alsaciens-lorains à Crest 1915-1919. Presses Universitaires de Grenoble, 2004. A resenha desta obra pode ser
acessada na Revista Rua, n° 14, no site: http://www.labeurb.unicamp.br/rua.
27 | P á g i n a
Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três
Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano
(Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858).
Guavira
no10
pessoas entre as fronteiras de Estados Nacionais, adentra em um território outro sem
autorização e lá permanece.
A imigração clandestina é inevitavelmente clandestina, pois ela se situa fora de todo e
qualquer reconhecimento legal. As migrações, sobretudo à procura de trabalho, eram aquilo
que dissimulavam o fato de alguém migrar clandestinamente. Hoje, a característica
predominante deste tipo de mobilidade, é “não se deixar ver” – “ne pas se laisser voir”, (cf.
ALALLUF, 2001, p. 92).
O processo de uma migração dissimulada transforma, a meu ver, a abordagem do
estudioso sobre esse fenômeno, já que falar dos processos econômicos tornou-se quase
irrelevante. Aquele que não se deixa ver no espaço, quando migra, é um sujeito da
metamorfose, tal qual a personagem de Kafka (1997), Gregor Samsa, em A Metaformose, que
vai perdendo suas características humanas, tornando-se um monstro, ou ainda, em O Castelo
(Id., 2000), cuja personagem principal tem por nome uma letra (K.) e é designado na cidade
como um estranho.
Considero a clandestinidade como tomada de posição, efeitos que incidem sobre o
corpo do sujeito em um certo tipo de mobilidade no espaço. A clandestinidade é, portanto,
determinada como gesto de ilegalidade pelas instâncias administrativas do corpo da
população, cabendo ao Estado aplicar a lei e enviar os sujeitos sob sua jurisdição, para as
fronteiras do país de origem, configurando aí a deportação.
No entanto, o que a imigração clandestina tem de importante em seu funcionamento é
justamente o fato de que o sujeito que adentra em um dado Estado Nacional (utilizando os
recursos que delimitam os meios de entrada, com a posse de passaporte ou vistos ou ainda
recorrendo ao mercado de tráfico humano entre as fronteiras) é a necessidade de não ser
percebido em sua mobilidade e estadia no Estado Nacional em que adentrou. Esse processo
implica em se mover e habitar no mundo sob o nome do imperceptível.
A posse do passaporte e do visto é, aliás, o mecanismo fundamental para se defender
da entrada de pessoas indesejáveis e, garantir, como destaca Torpey (2005, p. 205), que toda
essa documentação forneça ao Estado que acolhe a “garantia que um outro Estado está pronto
a aceitar um estrangeiro que o país de acolhida pode decidir de não admitir ou de expulsar7.”
O clandestino é uma imagem localizada em um outro mundo, quando não, vivendo
dentre dele. Por isso é um elemento perigoso, já que esfacelou fronteiras visíveis: as do sítio
de significância (interior, exterior), as fronteiras protetoras (vigiadas pelo poder) e as
fronteiras de contenção (destinadas a prevenir fugas). Em um mundo em que não há espaço
para a multiplicidade, para a contradição, a adversidade, sem o adversário, toma corpo e se
materializa.
Assim, ao se dar visibilidade àquilo que é adverso, produz-se o adversário,
transformando o sujeito, um intruso em um Estado Nacional, no “clandestino”, no
“terrorista”, no “criminoso”, devendo-se, portanto, expulsá-lo “para fora do ‘nós’ unânime do
indivíduo universal” (cf. PÊCHEUX, 1990, p. 15), que todo Estado-Nação deve proteger.
Banir um sujeito do espaço (espaço simbólico que tem sua materialidade e formas
específicas de significar) é um modo de produzir uma fratura no corpo, já que o corpo do
sujeito e o corpo da cidade formam um só (cf. ORLANDI, 2004, p. 11). É um modo também
de uma fratura outra: entre o homem (que possui direitos) e o cidadão (direito a cidadania –
“droit de cite” – dimensão jurídica de cidadão).
7
Do francês : “garantie qu’un autre État est prêt à accepter un étranger que le pays d’accueil peut décider
de ne pas admettre ou d’expulsé.”
28 | P á g i n a
Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três
Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano
(Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858).
Guavira
no10
Imigrar clandestinamente, como demonstra alguns estudos em ciências sociais, nem
sempre significa se relacionar com o Estado Nacional em que se deseja viver um tempo ou,
ainda, uma porção de vida. Há aí uma relação com o trabalho, com o dinheiro, com a
sobrevivência, com ganhar e manter a vida. A isso se acrescenta que o clandestino vive um
rosto outro para si mesmo, frente às instâncias institucionais e jurídicas do Estado em que
habita provisoriamente. A imigração clandestina produz, enquanto acontecimento do discurso,
uma face outra, que tem um reflexo imperceptível.
A invisibilidade do migrante clandestino, no território do Estado Nacional do qual ele
se faz presente, produz um estado do imperceptível. E é, portanto, se revelando o mundo dos
segredos, desse segredo, que algo pode vir a ser visualizado. Porém, essa revelação, nas
condições de produção da imigração clandestina, tem a função de produzir um monstro.
Como ressalta Foucault (1997, p. 61), o monstro, o anormal, estabeleceu uma perturbação às
regularidades jurídicas, pois ele “combina o impossível e o interdito”.
O migrante clandestino, ao adentrar sem autorização em um Estado Nacional outro,
perturbou as regularidades jurídicas, tornando-se um problema de natureza, pois não nasceu
naquele território, não é natural dali. Ele é um estranho-familiar (o unheimlich, para lembrar
Freud8). O momento do estranho é aquele em que a subjetividade se torna objeto puro,
posição insuportável, uma nada que se assemelhe. O estranho (heim) é a queda da
representação de qualquer imagem que seja familiar. É o humano ao avesso de sua própria
natureza. Assim, o migrante clandestino é aquele que suscita a animosidade (um corpo
deslocado de seu habitat) e que, além disso, coloca problemas de ordens diversas: políticos, de
cidadania e de direitos humanos.
A deportação
A deportação, na conjuntura de hoje, tem se tornado uma ferramenta política de
desterro, de humilhação e de violência contra estrangeiros, criminalizando o imigrante e
também os viajantes (diga-se os turistas) que são detidos pelas instâncias que gerenciam as
fronteiras entre Estados Nacionais e, muitas vezes, impedidos de entrar em um dado país.
Qualificar como criminosa a massa migrante, sobretudo a que compõe o dito terceiro
mundo, isto é, nada mais, nada menos, que os (sobre)viventes das desvantagens sóciohistóricas das condições do capitalismo, não me parece exagero. O recrudescimento das
fronteiras tem feito as pessoas perderem espaço no mundo em nome de uma dita segurança
global - que não significa segurança para todos.
A deportação, uma tecnologia de humilhação, me interessa em seu funcionamento, em
virtude daquilo que ela produz enquanto afeto, ou seja, força que ameaça a subjetividade e a
integridade dos sujeitos, inscrevendo no corpo formações reativas e defensivas na relação do
sujeito consigo mesmo.
A história política e de poder produziu muitas outras formas de desterro e a deportação
é uma de suas versões. Proponho, para entender o seu funcionamento, recorrer ao que está
institucionalizado no Direito Internacional. Essa leitura não deve ser separada, a meu ver, das
outras penas contemporâneas, isto é, a expulsão e a extradição.
8
Faço aqui referência ao texto de Freud, O Estranho, de 1919. Ver (ESB, vol. 17, Imago, 1996).
29 | P á g i n a
Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três
Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano
(Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858).
Guavira
no10
No Direito Internacional, mais especificamente a leitura brasileira deste, com a lei
6.815/80, que determina os modos de entrada e permanência do estrangeiro no Brasil, têm-se
delimitado9 a deportação, a extradição e a expulsão como:
1- Deportação
[1] Nos casos de entrada ou estada irregular de estrangeiro, se este não se retirar
voluntariamente do território nacional fixado em Regulamento, será promovida sua
deportação.
[2] A deportação consistirá na saída compulsória do estrangeiro.
[3] Não sendo apurada a responsabilidade do transportador pelas despesas com a
retirada do estrangeiro, nem podendo este terceiro por ela responder, serão as mesmas
custeadas pelo Tesouro Nacional.
2 - Expulsão
[1] É passível de expulsão o estrangeiro que, de qualquer forma, atentar contra a
segurança nacional, a ordem política ou social, a tranqüilidade ou moralidade pública
e a economia popular, ou cujo procedimento o torne nocivo à conveniência e aos
interesses nacionais.
[2] É passível de expulsão o estrangeiro que:
b) havendo entrado no território nacional com infração à lei, dele não se retirar no
prazo que lhe for determinado...
3 – Extradição
[1] a Extradição poderá ser concedida quando o governo requerente se fundamentar
em tratado ou quando prometer ao Brasil reciprocidade.
[2] São condições para concessão da extradição:
ter sido o crime cometido no território do Estado requerente ou serem aplicáveis ao
extraditando as leis penais desse Estado.
Essas formulações presentes na lei colocam-nos frente a um fato intrigante. Temos três
designações (deportar, expulsar e extraditar) determinando o envio do estrangeiro para fora
das fronteiras do Estado Nacional em que ele, um não natural, se encontra. Há aqui, um
trabalho do político, nas relações de força da linguagem, na tentativa de diferenciar o que
constitui um único gesto (justo): banir o outro do espaço.
A aplicação da deportação, questão que aqui me interessa, mostra, segundo Gailliègue
(2000, p. 14), que as pessoas são culpadas por um delito relativo à entrada e à estadia em um
país. Perante a lei daquele país, ela não pode ser imputada, já que não se cometeu nenhum
crime, cabendo a pessoa, portanto, ser deportada. A situação irregular é a constatação pelo
9
Os grifos, presentes na definição dos enunciados, deportação, expulsão e extradição, são meus.
30 | P á g i n a
Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três
Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano
(Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858).
Guavira
no10
Estado de pelo menos quatro causas: (a) uma entrada irregular; (b) um prolongamento de
estadia para além da validade do visto; (c) a falta da carta de identidade, mesmo que esse
título tenha sido requerido e até mesmo recusado; e, (d) uma estadia persistente, mesmo com
uma sanção de interdição ou expulsão.
A deportação, uma tecnologia política de imobilidade e de aprisionamento do corpo,
naturaliza o sujeito não-natural, o seu corpo imperceptível às instâncias do poder. O corpo
apagado, transformado em corpo naturalizado, é enunciativamente índice de uma fratura no
sujeito deportado. O imigrante brasileiro clandestino deportado é o sujeito que não pode se
deixar ver pelo outro (o Estado Nacional em que ele adentra e se estabelece).
Nessa posição sujeito, a de ilegal, de clandestino, a marca constitutiva de pessoa do
homem moderno cai. O sujeito não pode se deixar ver. Ele vive uma vida imperceptível para
o Estado, perdendo sua individualidade (marca também jurídica), sofrendo subjetivamente a
divisibilidade de sua imagem. Enquanto pessoa, portanto, individualizado, o migrante
clandestino é aquele que fala a língua portuguesa, é o sujeito jurídico que habita o Brasil.
Caindo a sua marca de pessoa, isto é, transformando-se em um sujeito despessoalizado, ele é
ninguém, ou seja, o seu lugar, tal qual o pro-nome, é o do indefinido.
Uma formulação da língua francesa nos ajuda a visualizar o que esse processo de
indefinição subjetiva produz: o imigrante clandestino é “une personne qui devient
personne10”, ou seja, “uma pessoa que se torna ninguém”. Esse ninguém é “no-body”, ou seja,
um corpo zero no espaço. Despessoalizado, indefinido, o imigrante clandestino vive
subjetivamente como um intruso imperceptível.
A cena discursiva em que o imigrante clandestino deportado se investe mostra que
viver o disfarce, o imperceptível, é um suplicio identitário. Vive-se despessoalizado. Os jogos
que se inscrevem para naturalizar aquilo que é despessoalizado, indefinido e imperceptível,
transformam a deportação numa cruel ferramenta de definição.
Isso se dá porque o gesto de deportar é um processo de desenraizamento do sujeito
clandestino das fronteiras do Estado Nacional, no qual ele adentrou. No entanto, ele é uma
vida que escapa à jurisdição e, mesmo arrancado do espaço – o que transforma o corpo que é
tirado forçosamente de um território para um outro território, em um corpo resto, corpo lixo
porque quebrado – algo ali sobrevive, isto é, a voz.
A deportação não silencia o corpo quebrado, desenraizado do espaço. Ela produz uma
disjunção entre corpo e voz, fazendo a boca balbuciar e exibir o corpo como um resto, uma
sobra que transforma a voz em cacos de enunciação, ponto de furo do interdiscurso no
intradiscurso. Viver despessoalizado é habitar no limiar entre o nacional e o intruso, o jurídico
e o ilegal, a vida e a morte, o humano e o inumano. Porém, não se apaga a vida: a acústica da
voz em um corpo habitado pela quebra.
Da entrevista e sua análise
Realizar a pesquisa de campo no aeroporto, uma paisagem contemporânea (para
lembrar Augé, 1992, p. 121), é acolher nas condições de circulação do espaço um viajante
enunciador. Abrir, com a entrevista, um espaço de enunciação montado para os sujeitos em
trânsito, sobretudo nas condições de produção da imigração clandestina e da deportação, é dar
aos relatos, que se recolhem, uma materialidade, uma espessura semântica. Ao invés de falas
esparsas no mundo, voz que ecoa sem sentido, tem-se uma narrativa do eu, um espaço de
irrupção dos jogos de filiação a uma rede de memória, uma relação aberta com o sentido.
10
Entre personne (pessoa) e personne (ninguém) há uma assonância.
31 | P á g i n a
Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três
Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano
(Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858).
Guavira
no10
Isso dá para o estudioso da linguagem condições de ver, nos relatos que ele colheu, as
fronteiras que configuram o Eu. Luta do sujeito para ser a fonte do sentido, o pai daquilo que
fala, quando na verdade, o que há, diz Robin (1997), nessa conjuntura, é um “eu”
autobiográfico.
Trabalhar com o sujeito que fala de si mesmo em uma dada situação é adentrar no
universo do discurso que circula em torno de si, vivendo o incessante encontro entre uma
memória e uma atualidade (cf. PÊCHEUX, 1997). O sujeito que fala de si mesmo é aquele
que fala a si mesmo. Há uma voz que fala o sujeito, materialidade imposta em silêncio e
significação, que rasga o oral, vocalizando, para no indizível poder dizer.
O sujeito brasileiro, quando migra para um Estado Nacional e lá permanece sem
autorização, ou quando conta com o auxílio de redes de tráfico humano para adentrar e
permanecer em dado país, vive os efeitos de pré-construído que faz com que essa situação
pareça algo premeditado. É preciso que ele não se deixe ver e isso simplesmente é o fato mais
natural que existe.
Porém, é nesse lugar de constituição, ou seja, não se deixar ver pelo outro, permanecer
imperceptível, que os jogos de identificação tomam corpo e voz: cego nos efeitos de seu
apagamento, o sujeito é determinado como ilegal, sofrendo esses efeitos em sua posição
subjetiva.
Apresento aqui três recortes11, como lugar de textualização da voz e do corpo,
sobretudo de um corpo exibido à autoridade que não pode se deixar aprisionar.
Recorte [1]
Data de saída do Brasil: 01/01/2000
País de destino: Bélgica
Data de retorno ao Brasil: 28/04/2005
PESQUISADOR: Você falou assim pra mim::... uma longa história é::... sua na Bélgica:::. conta pra
mim... é::... como que foi a tua preparação:::... da viagem na Bélgica... e teu objetivo... nesta viagem...
quatro anos atrás::...
S2: Bom... Marcos é::... Eu já te disse no no no ... no RElato... no escrito... é... que eu não tinha...
intenção... nenhuma de ir pra Bélgica a procura de... TRAbalho de uma coisa assim SEmelhante...
eu fu eu REcebi um convite de uma da minha irmã... pra um casamento... e::... que::... na ocasião
pagou o meu bilhete... eu tive... eu tive a... a oportunidade de ir pra Bélgica... e::... de lá fomos pro
Portugal... onde se realizou o casamento:::... e:::... por um acaso eu comprei um jornal... e:::... li...
algum anúncio a respeito de trabalho NA MInha Área... gostei... me chamou muita a Atenção... o
salário... e:::.... acabei ficando::... pra aproveitar::... a minha EStadia que era o meu visto de três
meses... Eu acabei ficando SEte MEses da primeira vez que eu tive na Bélgica... e depois disso
eu:::... (pausa longa) veio pro Brasil e não consegui mais ficar aqui:::... devido:::... a situação
financeira... Aí sim a partir desse momento:::... eu JÁ::... SENTI na pele a diferença:::... é::..
Econômica dos ambos países... e:::... a partir daí eu não consegui mais ficar no Brasil e... levei toda
a minha família e:::... estou lá até hoje e:::... se Deus quiser VOLto:::... o mais rápido possível...
(pausa bem longa)
A imigração clandestina, enquanto um acontecimento, estabelece um processo
identitário no qual o sujeito, ao falar de si mesmo, realiza pelo dizer um conjunto de reajustes
de sua imagem vivida no mundo. A atualização da memória, o momento em que os sentidos
11
Os recortes apresentados estão configurados de acordo com o protocolo de pesquisa. Os dados dos
sujeitos entrevistados foram coletados em uma ficha de informação contendo dados pessoais, dados da viagem e
autorização para gravação, transcrição e análise da entrevista, mediante anonimato. A transcrição das entrevistas
seguiu as indicações do Projeto NURC – Norma Linguística Urbana Culta.
32 | P á g i n a
Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três
Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano
(Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858).
Guavira
no10
tomam corpo, faz da linguagem uma materialidade significante, pois ela não é um instrumento
a serviço da ilustração do pensamento ou da representação de um referente, no caso aqui, o
sujeito que fala de si mesmo.
Chamo a atenção, nessa formulação, para as marcas de primeira pessoa, as pausas, as
indicações verbo-temporais e os encadeamentos enunciativos que aí se inscrevem. O pretérito,
marcado nas seguintes construções: “eu não tinha, eu recebi, eu comprei, acabei ficando, não
consegui, levei”, além das marcas de encadeamento “por um acaso, e depois, Aí sim, a partir
daí” produzem um efeito narrativo em que o sujeito se encena, se silencia e abre o Eu para a
hibridez, no veio da voz.
O Eu, enquanto marca de pessoa, é comumente designado “como aquele que fala” e o
responsável pela linearidade do dizer. No entanto, não há coincidência entre a forma-sujeito e
o eu, ou seja, no desdobramento do sujeito da enunciação e do sujeito do enunciado, há
discrepância e desarranjo entre aquilo que é dado a pensar lá, e independentemente, e o que é
pensado e vivido aqui e agora.
Destaco nesse relato quatro enunciados:
[1] eu não tinha... intenção... nenhuma de ir pra Bélgica a procura de... TRAbalho de uma coisa
assim SEmelhante... eu fu eu REcebi um convite de uma da minha irmã...
[2] Eu acabei ficando SEte MEses da primeira vez que eu tive na Bélgica...
[3] e depois disso eu:::... (pausa longa) veio pro Brasil e não consegui mais ficar aqui:::...
[3] estou lá até hoje
Em [1] há um jogo de hesitação de modo a se desidentificar da imagem e dos efeitos
que [2] materializa. Ao transformar o visto de três meses em uma “EStadia” de sete meses a
viagem configurou um lugar para o sujeito, o de imigrante clandestino, o de ilegal. É
interessante notar em [1] três funcionamentos: a negação, a indefinição e a interdição.
O sujeito, pelo dizer, nega que a sua intenção de viajar para a Bélgica (e veja aqui a
indefinição – intenção... nenhuma) se baseava no fato e na procura de um trabalho ou algo
semelhante. Porém, a evidência daquilo que ele nega não se sustenta e, a viagem, se abre para
o equívoco: quando o sujeito enuncia “eu fu eu REcebi”, é a intenção que retorna agora pela
via da interdição, irrompendo pela modulação da voz, o silenciamento daquele que vai (eu fu)
pela voz daquele que recebeu um convite (eu REcebi). O convite também é de natureza
indefinida, pois no plano dizer “um convite de uma da minha irmã” é convite nenhum.
Migrar para procurar trabalho produz um lugar de identificação e migrar através de um
convite que se recebe outra. O convite abre oportunidades, inscritas na evidência do dizer,
como a de se encontrar “por acaso” um trabalho. Esse encontro é aquele que transforma a
legalidade do “meu visto” em uma “EStadia” de sete meses. Há um desarranjo entre aquilo
que pode significar uma viagem por trabalho e uma viagem por convite, abrindo a indefinição
tanto de um quanto de outro, inscrevendo o sujeito nesse lugar: o da indefinição.
O enunciado [2] Eu acabei ficando SEte MEses da primeira vez que eu tive na
Bélgica... se inscreve no domínio de uma experimentação subjetiva e identitária, marcada
pelo passado. No plano da linearidade imaginária do dizer, um funcionamento interessante vai
se produzir.
A marca de junção e continuidade em [3] (e depois disso eu:::...) dá progressão ao
movimento da fala, porém se inscreve aí uma pausa, abrindo subjetivamente uma ruptura
identitária. Na formulação “e depois disso eu:::... (pausa longa) veio pro Brasil ) aquele fala
no passado retomado pela junção e progressão enunciativa não fala agora, ele está indefinido.
33 | P á g i n a
Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três
Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano
(Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858).
Guavira
no10
Veja como isso se dá: se uma pergunta for feita através do enunciado “Quem veio pro
Brasil?”, se obterá como resposta ELE veio, e não eu vim.
A desidentificação produz o equívoco: faz do sujeito um passado que ficou na Bélgica
(ELE veio) e um presente que chegou ao Brasil (eu vim). Dividido, o sujeito entra nas
fronteiras do Brasil como um ele (do passado) e um eu também do passado, pois na
enunciação algo é dito: “eu não consegui mais ficar aqui”.
Esse processo se intensifica na interessante formulação “eu JÁ::... SENTI na pele a
diferença”. Há uma diferença de pele, ou seja, pele subjetiva (o eu é um ele), pele econômica
(há uma diferença da situação financeira) e pele territorial (a economia faz os dois países
serem vivenciados como diferentes).
Quando o presente irrompe – e é a deportação que faz do Brasil o presente – o sujeito
se diz “estou lá até hoje”. Se uma questão for feita aqui: Quem está lá até hoje? Ter-se-á como
resposta: eu estou. O Eu (o imaginário) está na Bélgica e ele - o Moi-peau [Eu- pele], para
lembrar uma expressão de Anzieu (1995) - é aquele que está no Brasil. Em solo brasileiro e na
condição jurídica de brasileiro, o sujeito vive uma controvérsia: aquilo que Benveniste disse a
respeito da terceira pessoa do discurso, “o ele é a não-pessoa”. A ideologia e o inconsciente
são a manutenção constante do Eu. E o Eu, o que ele é aqui? Híbrido!
Recorte [2]
Data de saída do Brasil: 07/11/04
País de destino: E.U.A.
Data de retorno ao Brasil: 26/04/05
PESQUISADOR: Quando você ouviu o agente dizendo pra você Come Back, o que você sentiu?
S1: Eu senti uma emoção tremenda de ir emBOra ... depois esperando cinco meses esse dia... a gente...
doido querendo ir embora... não tinha... não falava com a família... não falava nada... porque não
chamava... a ligação não chamava a cobrar... então... na hora que ele falou vamos embora BRASIL...
go home go home... (respira rapidamente) a eu já corri juntei meu colchão... meus negócios joguei
e sai lá pra fora... eu fui o primeiro a sair... cheguei lá e já coloquei minhas roupas porque eu perdi as
roupas tudo... aí ESsa camisa um amigo me deu... a calça um amigo que me deu... porque na travessia
do rio eu travessei só de bermuda... aí eu perdi pelo rio abaixo... aí eu vesti a minha roupa alegre
Demais da conta... aí eu fui pro eroporto... do eroporto eu já liguei pra minha mãe... minha mãe
começou a CHOrar::... falei Não mãe tô indo embora não chora não porque amanhã quarta-feira eu tô
aí... falou Não meu Filho muito tempo que eu não te Vejo::.... não esquenta a cabeça... não rápido já
liguei.. dá aquela emoção... aí o cara falou que a gente ia voltar que a gente não ia vir embora... daí
bateu aquela trisTEza... daí ele falou não... vamos embora Brasil... vou mandar vocês dois... aí
colocou a gente no avião GRAças a Deus... a viagem foi boa nós tamos aqui... Com a graça de
Deus::....
Destaco neste enunciado uma formulação:
[1] então... na hora que ele falou vamos embora BRASIL... go home go home... (respira
rapidamente) a eu já corri juntei meu colchão... meus negócios joguei e sai lá pra fora... eu fui o
primeiro a sair...
As pessoas detidas pela polícia de imigração dos Estados Unidos da América, durante
a travessia pelo deserto, na fronteira entre México e EUA, são encaminhadas para um
conjunto de penitenciárias até ocorrer a deportação. Caso se capture, nesse momento, os
coiotes (nome que designa os mexicanos que operam na travessia irregular de pessoas), a
34 | P á g i n a
Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três
Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano
(Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858).
Guavira
no10
permanência na penitenciária pode se estender, já que algumas delas entram como
testemunhas do processo de acusação de tráfico de pessoas e ou drogas.
O acontecimento da deportação desencadeia, em [1], um interessante processo de
nomeação do sujeito. No plano do enunciado, a pessoa que vai ser deportada é nomeada por
uma fala que o designa como o sujeito “BRASIL...”. Tem-se, aqui, um curioso efeito de
determinação de um nome, ou seja, uma pessoa tem um nome X e lhe é dado um nome Y –
que passa a significá-la, nomeando-a. A isso se acrescenta, ainda, uma fala que evoca um
imperativo, uma ordem “go home go home...”
Refletindo sobre a nomeação Guimarães (2002, p. 41) afirma que
As pessoas não são pessoas em si. O sentido do nome próprio lhes constitui, em certa
medida. [...] E o constitui enquanto produz identificações sociais que são o
fundamento do funcionamento do indivíduo enquanto sujeito. É preciso lembrar aqui
que este processo de identificação se faz no espaço da enunciação da Língua do
Estado e assim identifica o indivíduo como cidadão.
O autor aponta algo muito importante, já que um nome (seja ele próprio ou comum)
não deve ser compreendido como a expressão de uma fala em um dado momento e lugar, mas
sim na cena enunciativa, considerada aqui como o jogo entre sujeito e situação, inscrevendo
na materialidade do dizer um efeito de presença do sujeito.
O nome “Brasil...” ecoando na enunciação, na situação em que uma dada pessoa vai
ser banida de um outro país, tem um significado. Mandar o “Brasil...” embora já mostra o
modo como ele está significado e carregado de sentido, em uma dada formação social. Mais
do que identificar um território ou seu povo, o nome “Brasil...”, pelo movimento da memória,
reveste e identifica materialmente o sujeito.
Essa fala, que atualiza a memória, produz a deportação como uma prática política e
social. Há uma ordem, um imperativo “go home go home...” que incita o sujeito a sair,
indicando que lá não é a sua casa. O deslocamento das pessoas é um desafio no mundo de
hoje, exigindo um esforço de se pensá-lo para além do movimento idealizado em que se
integram pessoas, sem se interrogar quem está fora e quem está dentro, quem está perto e
quem está longe e o porquê dessa segregação. Banir os estrangeiros clandestinos e reforçar as
fronteiras territoriais é a ferramenta contemporânea para um velho dilema simbólico: quem é
(o que é) o nacional e quem é (o que é) o estrangeiro?
Recorte [3]
Data de saída do Brasil: 28/-03-2005
País de destino: U.S.A.
Data de retorno ao Brasil: 07-04-2005
PESQUISADOR: Como é que você se sente sendo deportado?
S7: Ah... sei lá né? sente::... CHUtado do outro país::: né? HUMIlhado::: você não pode:: entrar num
país:: que não::: precisa de visto:: eles manda você deporta POR que:: que pode ENtão:: você se sente
muito humilhado::: né?
PESQUISADOR: Humilhado em que sentido? Você pode explicar pra mim?
S7: No sentido de:...... te ter de ficar ali::: assim::: você ter de ficar numa sala esperando um vôo:: você
não pode sair::: VOcê está praticamente PREso::: ali::: é uma deportação mas é um tipo de
35 | P á g i n a
Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três
Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano
(Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858).
Guavira
no10
prisão:: que você não pode ir pra continuar indo pra onde você quer ir::... e no mesmo tempo você não
pode voltar:: tem de ficar ali naquela SAla:: come o que eles te der pra comer se der:::... você dá
dinheiro pro oficiais::: comprar cartão pra você ligar pra sua família:: eles:: te ROBAM:: o que
Aconteceu::: lá eu dei dinheiro pra eles:: comprar cartão pra mim ligar pra minha mãe:: eles:::
SUmiram:: deu a hora do vôo eles:: não chegou:: robaram o meu dinheiro::: então isso é muita
humilhação né?
Neste recorte vou me deter em dois enunciados:
[1] CHUtado do outro país::: né? HUMIlhado:::
[2] VOcê está praticamente PREso::: ali::: é uma deportação mas é um tipo de prisão:: [...] você
dá dinheiro pro oficiais::: comprar cartão pra você ligar pra sua família:: eles:: te ROBAM::
Esses dois enunciados chamam a atenção por uma discrepância entre aquilo que se
fala e aquilo que se escuta. Em [1] há um funcionamento interessante no fio da formulação. A
expressão “CHUtado do outro país::: né?” indetermina o sujeito paciente que sofre a ação
do verbo. Se uma questão for inscrita aqui: “Quem foi chutado do outro país?”, obter-se-á
como resposta “Você foi chutado!”.
Esse lugar de subjetivação inscreve a humilhação, pois pelo funcionamento
metafórico, ser chutado desliza para o lugar do humilhado. Enriquez (2006, p. 37) diz que
humilhar um indivíduo consiste em colocá-lo em uma posição onde ele está impossibilitado
de responder à violência que sofre. Como um sujeito paciente que sofre a ação de ser
humilhado o migrante brasileiro vive subjetivamente como um objeto.
Um fato aqui vale ser ressaltado, ou seja, aquele do Brasil ser conhecido como país do
futebol. Assim, ser chutado - tal qual se chuta uma bola em um jogo de futebol - por outro
país é uma forma contemporânea de ser ganhar uma partida com um adversário indesejável.
Porém, em se tratando da humilhação, no campo em que este jogo é disputado, não existe
time adversário, apenas um objeto revestido de sujeito – a sombra de um nome – que deve, tal
qual uma bola, ser depositada nas redes de uma trave.
Os brasileiros, utilizando cada vez mais a fronteira entre México e Estados Unidos da
América, para uma travessia ilegal, tornam-se um alvo potencial da polícia de imigração. O
papel da polícia, enquanto instituição do Estado-Nação, é manter a ordem. O Estado outorga a
polícia (e no caso aqui uma polícia de imigração) o direito de vigiar a mobilidade da
população, sendo amparada por um ordenamento jurídico.
Assim, passar pelas fronteiras exige a necessidade de se mostrar ao poder, o que
implica mostrar a si mesmo. O acontecimento, como uma agitação da memória, produz a
presença-ausência do sujeito e os aparelhos de Estado a fixam. Os que conseguem entrar pelas
brechas atravessam, aqueles que não, retornam. Há resistência.
Em [2], é possível se notar um jogo entre prisão e deportação. Tentando denegar os
jogos de sentido que tipificam e corporificam a deportação, como uma modalidade de
aprisionamento e, portanto, um gesto contra um criminoso, o sujeito se contra-identifica com
esse processo e mostra, no dizer, quem (e o que é) para ele o criminoso, ou seja, a polícia.
Considerações Finais
Refletir sobre a mobilidade do sujeito brasileiro migrante clandestino, que
experimenta em seu próprio corpo a deportação, é adentrar em uma conjuntura na qual um
sujeito, em movimento no espaço, esse quadro de todos os fenômenos, rompeu fronteiras
36 | P á g i n a
Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três
Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano
(Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858).
Guavira
no10
historicamente delimitadas e determinadas. Choque dos corpos e dos humores, a vida dos
muitos migrantes clandestinos acaba se tornando uma sobrevida. Vida vergonhosa, vida de
intruso, vida irregular, vida ilegal. Assim, escutar pela linguagem essa situação
contemporânea mostra como as travessias de nossos tempos estão se revestindo de uma
complexidade nunca vista.
Ao decidir habitar orlas outras, em busca daquilo que economicamente e
subjetivamente lhe falta, seja o trabalho, o consumo, ou para viver um outro para si mesmo, o
migrante clandestino desafia os sentidos daquilo que se pode entender hoje por nacional, por
estrangeiro, por fronteiras, por integração. Um mundo integrado economicamente ou
conectado virtualmente é um fato. E sua realidade mostra uma abertura para a circulação de
dinheiro, mercadorias e informação. Porém, quando se trata de pessoas, a discursividade é
outra. Atraídas pelas conquistas econômicas, sociais e políticas, de fato, pela imagem da
mundialização, ou seja, um mundo tolerante (multicultural), o que se vê é que as fronteiras
estão abertas somente para alguns, e em uma dada situação (a da indústria do turismo, por
exemplo).
Considero que migrar clandestinamente não é simplesmente o repúdio ou a
desobediência às normas legais de circulação, estabelecidas na relação entre Estados
Nacionais, e muito menos a busca por condições de trabalho e vida digna. Vejo o espaço
como um lugar de relação simbólica dos sujeitos, como um lugar de existência simbólica. Isso
permite ver a imigração clandestina como uma prática de resistência a sentidos
institucionalizados, já que estes têm produzido hoje efeitos mortíferos – dado o grande
número de mortes de pessoas que se arriscam em travessias pelo deserto (e pelo mar,
principalmente o fluxo migratório em direção à Europa e aos Estados Unidos da América).
Migrar clandestinamente é ter que sofrer, em seu próprio corpo, o apagamento de sentidos que
não se deseja e que não pode ser visto. De certa forma, uma vida imperceptível, dada as
consequências daquilo que se experimenta quando se é descoberto nessa situação.
A deportação se inscreve e se institucionaliza como uma ferramenta política de
retirada do intruso do Estado Nacional. Ao apoderar-se do corpo do migrante clandestino, o
sujeito vive a experiência da prisão e da humilhação, porque desobedeceu e atravessou
fronteiras que não lhe eram permitido cruzar. O corpo sustenta, assim, os sentidos de
criminoso, intruso, indesejado, resto. Ao ser desenraizado do espaço, o sujeito sofre uma
fratura que atinge as suas relações subjetivas, as relações com o espaço, com o tempo e com a
língua. Os cacos de enunciação vocalizados mostram, na voz do migrante clandestino
deportado, a agressão, a ferida e o ultraje a que muitos são submetidos. O sujeito
despessoalizado torna-se uma pessoa zero, ou seja, tal qual o valor matemático ou categoria
linguística, um vazio. Ele é um nada enquanto sujeito de direito, um nada, um indefinido,
enquanto pessoa humana e sujeito de enunciação.
A deportação, em seu funcionamento, é uma ferramenta política de humilhação da
modernidade. Humilhar o sujeito é proporcionar à vítima o confronto “a uma situação ou um
acontecimento que é contrário às suas vontades, contrário aos seus desejos, que não faz
sentido para ele, e que é a negação da imagem que ele se faz de si mesmo12” (cf. ANSART,
2006, p. 131). Mais do que isso: o humilhado é agredido (por um agente que pode ser
individual ou coletivo) sem a possibilidade de responder a isso. A deportação tem como corpo
a lei, que incide sobre o sujeito, criminalizando-o.
12
Do francês : “à une situation ou à un événement qui est contraire à ses attentes, à ses désirs, qui ne fait
pas sens pour lui, et qui est la négation de l’image qu’il se fait de lui-même.”
37 | P á g i n a
Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três
Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano
(Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858).
Guavira
no10
Por fim, resta dizer que acolher o sujeito em movimento, no espaço, é se abrir também
para a linguagem em movimento, para um corpo humano, que muito mais que a sede da vida,
é um lugar em que a língua falha, faz furo e fratura a história. O sujeito sai do Brasil feliz
como Ulisses e retorna, tal qual Adão e Eva, corpos decaídos, expulsos do paraíso.
Referências
ALALLUF, M. Des clandestins aux sans-papiers. À la lumière des sans-papiers. À La
rencontre des contradictions. Édité par Antoine Pickels. In: Revue de l’université de Bruxelles.
Éditions Complexes, Bruxelles: 2001, p. 89-98.
ANSART, P. Les humiliatitions politiques. In: Le sentiment d’Humiliation. Déloye, Y. et
Haroche, C. (orgs). Paris: Éditions de Press, 2006, p. 131-146.
ANZIEU, D. Le moi-peau. Paris: Dunod, 1995.
AUGÉ, M. Non-Lieux: introduction à une anthropologie de la surmodernité. Paris: Éditions
du Seuil, 1992.
DAUK, E. A hospitalidade e os estrangeiros em tempos de terror e migração. Novos nômades
em busca de um mundo mais humano. In: Humboldt. Goethe-Institut. Ano 48/2006/Número
93.
ENRIQUEZ, E. L’autre comme objet de la violence humiliante. In: Le sentiment
d’Humiliation. Déloye, Y. et Haroche, C. (orgs). Paris: Éditions de Press, 2006, p. 35-48.
FOUCAULT, M. Resumo dos cursos do Collège de France (1970-1982). Trad. Andréa
Daher; consultoria Roberto Machado. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1997.
FREUD, S. O Mal Estar na Civilização. Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas
Completas de Sigmund Freud, Vol.XXI. Rio de Janeiro: Imago, 1974.
GAILLIÈGUE, G. La prison des étrangers: clandestins et délinquants. Paris: Imago, 2000.
GUIMARÃES, E. Semântica do Acontecimento: um estudo enunciativo da designação.
Campinas: São Paulo, Pontes, 2002.
HAESBAERT, R. O Mito da Desterritorialização: do “fim dos territórios” à
multiterritorialidade. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2006.
HALL, S. Da Diáspora: identidades e mediações culturais. Trad. Adelaine La Guardia
Resende [et al.]. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2003.
KAFKA, F. A Metamorfose. Trad. e posfácio de Modesto Carone. São Paulo: Companhia da
Lestras, 1997.
______. O Castelo. Trad. Modesto Carone. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.
MAFFESOLI, M. Sobre o nomadismo: vagabundagens pós-modernas. Trad. Marcos de
Castro. Rio de Janeiro, 2001.
38 | P á g i n a
Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três
Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano
(Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858).
Guavira
no10
ORLANDI, E. P. Cidade dos Sentidos. Campinas, São Paulo: Pontes, 2004.
PÊCHEUX, M. Semântica e Discurso: uma Crítica à Afirmação do Óbvio. Campinas: Ed.
Unicamp, 1988.
______. O discurso: estrutura ou acontecimento. Trad. Eni P. Orlandi. Campinas: Pontes,
1997.
ROBIN, R. Le Golem de l’écriture – De l’autofiction au cybersoi. Montréal (Québec): XYZ
éditeur, 1997.
TORPEY, J. L’invention du passaport, États, citoyenneté et surveillance. Traduit de l’anglais
par Élisabeth Lamothe. Paris: Belin, 2005.
39 | P á g i n a
Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três
Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano
(Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858).
Guavira
no10
O APELO À EMOÇÃO: UMA ESTRATÉGIA DE TOM PERSUASIVO NO
DISCURSO RELIGIOSO PENTECOSTAL
Rachel Camilla Rodrigues de Castro (PG-UFV)13
Mônica Santos de Souza Melo (UFV)14
RESUMO: Neste trabalho pretendemos analisar como a linguagem, no discurso religioso, pode funcionar como
mecanismo de sedução e captação de adeptos, avaliando a utilização do apelo à emoção, num cântico de um
culto da igreja Assembléia de Deus. Trata-se de um estudo de caso, que adotará como principal referencial
teórico e metodológico a teoria semiolinguística do discurso de Patrick Charaudeau, que propõe um estudo
discursivo das emoções. Tal análise nos permitiu constatar, no corpus, a presença de vários recursos que
poderiam seduzir e persuadir o crente, tais como, a seleção lexical, o uso de metáforas, exclamações, interjeições
e a descrição do estado emocional do locutor através da modalidade elocutiva, o que nos leva a pensar que o
apelo à emoção pode ser uma estratégia de tom persuasivo.
Palavras-chave: discurso religioso; emoção; semiolinguística.
ABSTRACT: In this paper we analyze how language, in religious discourse, can function as a mechanism of
seduction and of attracting followers, evaluating the use of the appeal to emotion in a song of the cult of the
Assembly of God church. This is a case study based on the Semiolinguistics Discourse Analysis by Patrick
Charaudeau, who proposes a discursive study of emotions. The analysis has shown that the song presents some
features that can persuade the believer by emotion, such as lexical selection, the use of metaphors, exclamations,
interjections and description of the talker's emotional state through the elocutive modality, which leads us to
think that the appeal to emotion can be a strategy for a persuasive tone.
Key words: religious discourse; emotion; semiolinguistics.
Introdução
Este trabalho tem como objetivo analisar como a linguagem, no discurso religioso,
pode funcionar como mecanismo de sedução e captação de adeptos, avaliando a utilização do
apelo à emoção, o chamado “efeito patêmico”, nos termos de Charaudeau (1999, p.5).
Adotaremos em nossa investigação o ponto de vista deste autor, segundo o qual é possível o
estudo discursivo da emoção numa situação comunicativa. Primeiramente, partiremos de
pressupostos teóricos abordando a questão da emoção/patemização enquanto estratégia de
caráter persuasivo. Em seguida, analisaremos um cântico de louvor de um culto da igreja
Assembléia de Deus, gravado na cidade de Viçosa.
Emoção e persuasão
Plantin (apud AMOSSY, 2000, p.164) identifica três “operações discursivas” que
seriam necessárias para se obter a persuasão completa. Assim, o discurso deve ensinar,
agradar e tocar. De acordo com Plantin, o caminho intelectual (a razão) não é suficiente para
13
Mestranda em Estudos Linguísticos pela Universidade Federal de Viçosa (UFV).
Doutora em Estudos Linguísticos pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e Professora
Adjunta de Linguística no Departamento de Letras da UFV.
14
40 | P á g i n a
Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três
Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano
(Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858).
Guavira
no10
desencadear a ação. A partir daí surge a dupla atividade convencer-persuadir, sendo que a
primeira atividade está ligada às faculdades intelectuais e a segunda, ao coração.
Pascal (apud AMOSSY, 2000, p. 165), compartilha da mesma opinião de Plantin, ou
seja, também pensa que somente a razão é insuficiente para se alcançar a persuasão. Para
Pascal, é necessário conhecer o espírito e o coração.
Se, de um lado, encontramos autores como Plantin e Pascal, que acreditam na união
entre razão e emoção, enquanto vias para persuadir um sujeito; de outro, deparamo-nos com
autores que privilegiam a emoção, como Gibert. Para Gibert (apud AMOSSY, 2000, 165), o
sujeito é assujeitado a uma “verdade” por razões claras, óbvias, sem que haja uma verdadeira
persuasão. Esta só ocorre quando o coração é vencido. Daí decorre a conclusão de que ce qui
ne touche pas est contraire à la persuasion15 (apud AMOSSY, p.165).
Amossy (2000, p. 167) apresenta, ainda, outro teórico que também privilegia o estudo
argumentativo da emoção: Walton (1992), que mostrou a legitimidade das emoções no
processo argumentativo. Para ele, as emoções têm uma importância no diálogo persuasivo.
Esse autor examina as condições de validade dos argumentos que suscitam sentimentos como
a piedade.
Emoção e patemização
Charaudeau (1999) estuda a emoção, sob o ponto de vista discursivo, utilizando o
termo “patemização” para delimitá-lo, diferenciando esse objeto do de outras disciplinas,
como a psicologia e a sociologia.
Nessa perspectiva, as representações patêmicas são sócio-discursivas. Uma
representação pode ser considerada patêmica quando ela descreve uma situação a propósito da
qual um julgamento de valor coletivamente partilhado e instituído em norma social envolve
um actante que é um ser beneficiário ou vítima e ao qual o sujeito da representação se
encontra ligado.
Acreditamos, como Charaudeau, ser possível estudar a emoção sob a perspectiva de
um estudo linguageiro, considerando essa abordagem através de uma situação de
comunicação particular, no nosso caso, o discurso religioso.
Efeitos patêmicos do discurso
Charaudeau (1999, p.20) propõe que a patemização seja tratada discursivamente como
uma categoria de efeito que se opõe a outros efeitos como o efeito cognitivo, pragmático, etc.
Como toda categoria de efeito depende das circunstâncias em que aparece, ou seja, a
organização do universo patêmico depende da situação social e cultural na qual se inscreve a
troca comunicativa. Assim, um mesmo enunciado pode produzir diferentes efeitos patêmicos
e esses vão variar conforme a cultura.
Para ele, o efeito patêmico depende de três tipos de condição:
1) que o discurso produzido se inscreva num dispositivo comunicativo cujos componentes (sua finalidade
e os lugares que são atribuídos antecipadamente aos parceiros da troca) predisponham ao surgimento de
efeitos patêmicos;
15
Em português, quem não toca é contrário à persuasão. (Tradução nossa).
41 | P á g i n a
Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três
Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano
(Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858).
Guavira
no10
2) que o campo temático sobre o qual se apóia o dispositivo comunicativo preveja a existência de um
universo de patemização e proponha uma certa organização dos tópicos (imaginários socio-discursivos)
susceptíveis de produzir tal efeito;
3) que, no espaço de estratégias deixado disponível pelas restrições do dispositivo comunicativo, a
instância de enunciação utilize uma encenação 16 discursiva com finalidade patemizante.
O efeito patêmico pode ser obtido pelo emprego de certas palavras que podem remeter
ao universo emocional, mas também por enunciados em que essas palavras não são utilizadas.
Ou seja, o efeito patêmico pode ser obtido por um discurso explícito e direto, na medida em
que as próprias palavras dão uma tonalidade patêmica, ou de forma implícita e indireta.
A construção discursiva do sentido como construção de efeitos intencionais visados
depende das inferências que podem produzir os parceiros do ato de comunicação e essas
inferências dependem do conhecimento que os parceiros possam ter da situação de
comunicação.
Segundo Charaudeau (1999, p.15), há uma dupla enunciação de efeito patêmico, as
quais sintetizamos a seguir:
1) uma enunciação da expressão patêmica, a qual pode ser ao mesmo tempo elocutiva e alocutiva, que
visa a produzir um efeito de patemização, seja pela descrição ou manifestação do estado emocional no
qual o locutor se encontra, seja pela descrição do estado emocional no qual o outro deveria se encontrar;
2) uma enunciação da descrição patêmica, que propõe ao destinatário a narrativa (ou um fragmento) de
uma cena dramatizante susceptível de produzir o efeito patêmico. Nesse caso, tal efeito é construído por
uma construção identitária entre os interlocutores, ou seja, depende do elo que se supõe unir o
destinatário à situação descrita e aos protagonistas.
Características gerais do discurso religioso
Orlandi (1996) apresenta algumas características do discurso religioso, dentre as quais
destacamos a assimetria, entre as instâncias de produção e recepção, e a ilusão de
reversibilidade, entre os planos terreno e espiritual.
Segundo Orlandi (1996, p. 246), uma marca do discurso religioso é a assimetria na
relação entre a instância de produção e a instância de recepção. Enquanto a primeira é
composta por Deus, pela Igreja e seus representantes (que falam em nome do plano
espiritual), a segunda se compõe dos fiéis (que fazem parte do plano terreno). Esses dois
planos são afetados por um valor hierárquico, por uma desigualdade, uma vez que o
celebrante reproduz a voz de Deus, que é imortal, eterno, onipotente, onipresente, onisciente,
enquanto os ouvintes são mortais e passageiros.
Ainda para Orlandi (1996, p. 240), a ilusão da reversibilidade entre os dois planos (o
plano terreno e o espiritual) também caracteriza o discurso religioso. Essa ilusão pode ter duas
direções: de cima para baixo, ou seja, de Deus para os homens, momento em que Ele
compartilha suas propriedades por meio de sacramentos, bênçãos, de milagres; de baixo para
cima, quando o homem se alça a Deus, principalmente, através da obediência à palavra de
Deus. Como veremos, essa ilusão de reversibilidade se constitui numa importante estratégia
de captação de fiéis.
16
Tradução para a expressão mise en scène.
42 | P á g i n a
Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três
Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano
(Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858).
Guavira
no10
Ao abordar o discurso religioso, Maingueneau (2008, p. 199) afirma que, embora
pertença a um corpora de prestígio, esse tipo de discurso é geralmente pouco estudado,
provavelmente pelo fato de que sua compreensão implica o conhecimento de um vasto
intertexto, nem sempre acessível a todos. Assim, uma característica do discurso religioso, em
seus vários gêneros (homilias, pregações, cânticos, orações) é a vinculação a um texto
“primeiro”, com o qual esses discursos mantêm uma espécie de relação parafrásica. Também
essa relação intertextual será observada no cântico que nos propomos, a partir de agora, a
analisar.
Análise do cântico
O cântico analisado foi executado em um culto da Assembléia de Deus. De acordo
com Ferreira (2006) a igreja Assembléia de Deus é um dos principais expoentes do
pentecostalismo no Brasil. O cântico analisado foi executado em um culto da Assembléia de
Deus. Caracteriza-se pela crença no Espírito Santo e na autoridade da Bíblia, livro escrito sob
a inspiração de Deus, e que seria o melhor exemplo de como viver uma vida de fé. Acreditam
ainda na possibilidade da cura divina dos doentes e defendem que a Igreja tem a função de
buscar e salvar aqueles que estão em pecado.17
O culto da Assembléia de Deus é dividido em três partes. São elas: Louvor,
Testemunhos e Pregação da Palavra de Deus. O Louvor pode ser compreendido como um
momento que leva a congregação a adorar a Deus na beleza da Sua Santidade.
Durante o Louvor, foram cantados seis (6) cânticos. Analisaremos, no entanto, apenas
um deles. Vejamos a seguir.
Sobre as ondas do mar
Oh! Por que duvidar,
Sobre as ondas do mar,
Quando Cristo caminho abriu?
- Quando forçado és, contra as ondas lutar,
Seu amor a ti quer revelar.
Refrão: Solta o cabo da nau
Toma os remos na mão,
E navega com fé em Jesus;
E então, tu verás que bonança se faz
Pois com Ele, seguro serás.
Trevas vêm te assustar,
Tempestades no mar?
- Da montanha o Mestre te vê;
E na tribulação
Ele vem socorrer,
17
Informações
disponíveis
em:
<http://chistianity.about.com/old/assembliesofgod/a/assemblyhistory.htm.> acesso em 08 de junho
de 2010.
43 | P á g i n a
Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três
Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano
(Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858).
Guavira
no10
Sua mão bem te pode suster.
Podes tu recordar,
Maravilhas, sem par?
- No deserto ao povo fartou;
E o mesmo poder
Ele sempre terá,
Pois não muda e não falhará.
Quando pedes mais fé,
Ele ouve, ó crê!
Mesmo sendo em tribulação;
Quando a mão de poder o teu “ego’” tirar,
Sobre as ondas poderás andar.
Sabe-se que a instância de produção do cântico religioso, em geral, e do cântico
acima, em particular, é ampla e complexa, uma vez que este é produzido dentro de uma
instituição – a Igreja – que regula as interpretações do texto bíblico, ao qual a letra se refere.
A partir dessas coerções, o sujeito- autor vai utilizar as estratégias consideradas mais
adequadas para se expressar e para captar seu público.
No cântico manifesta-se o texto bíblico, em pelo menos duas passagens. Primeiro, nos
versos que dizem “Oh! Por que duvidar, /Sobre as ondas do mar,/Quando Cristo caminho
abriu?” e “Quando a mão de poder o teu ego tirar,/Sobre as ondas poderás andar”, há uma
referência ao Evangelho de Mateus, no seguinte versículo: “Entre as três e as seis da
madrugada, Jesus foi até os discípulos, andando sobre o mar.”18 Também o verso “ No
deserto ao povo fartou” refere-se à passagem bíblica:
Jesus mandou que as multidões se sentassem na grama. Depois pegou os cinco pães e
os dois peixes, ergueu os olhos para o céu, pronunciou a bênção, partiu os pães, e os
deu aos discípulos; os discípulos distribuíram às multidões. Todos comeram, ficaram
satisfeitos, e ainda recolheram doze cestos cheios de pedaços que sobraram. 19
Evidencia-se, nos versos destacados, o recurso à autoridade sintetizada no texto bíblico
para fundamentar a tese da necessidade da fé.
A instância de recepção, por sua vez, é bastante heterogênea, pois, apesar de o cântico
estar inserido num culto da Assembléia de Deus, sendo sua execução direcionada para os fiéis
dessa Igreja, de outro, não se pode ignorar o fato de que é também executado também em
outras Igrejas Evangélicas20 , o que nos leva a concluir que pretende alcançar o cristão, de
uma forma ampla.
Ao abordar o texto sob a perspectiva da emoção, o primeiro aspecto que devemos
destacar é o favorecimento da obtenção do efeito patêmico pela inserção do discurso num
dispositivo comunicativo cujos componentes predisponham ao surgimento de efeitos
patêmicos. O momento de Louvor, por sua finalidade, a expressão do amor a Deus, a
adoração a ele atribui aos presentes, antecipadamente, uma posição de assimetria,
inscrevendo-os no plano do material em oposição ao plano do divino. Além disso, o espaço
físico (a igreja) e simbólico (o culto) em que se inscrevem determinam a expressão de
18
BÍBLIA, N.T. Mateus. Português. Bíblia Sagrada. SP: Paulus, 1990. Cap. 14, vers: 25.
BÍBLIA, N.T. Mateus. Português. Bíblia Sagrada. SP: Paulus, 1990. Cap. 14, vers: 19-20.
20
Tal conclusão se baseia em depoimentos de fiéis, tanto da Igreja Metodista quanto da Igreja
Presbiteriana, que nos revelaram que o cântico analisado é introduzido, com relativa frequência, nos cultos
dessas duas Igrejas.
19
44 | P á g i n a
Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três
Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano
(Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858).
Guavira
no10
sentimentos e também criam uma espécie de clima favorável à promoção de emoção entre os
presentes.
Observa-se que a mensagem sintetizada na letra do cântico propõe a enunciação de
uma cena dramatizante susceptível de produzir no destinatário um efeito patêmico. O efeito
patêmico é, então, provocado por uma construção identitária entre os interlocutores, que busca
estabelecer um elo entre os protagonistas a partir da situação descrita. Esse elo é sugerido
pela criação de uma ilusão de reversibilidade entre os planos espiritual e material, que pode
ser verificada nos versos “Quando pedes mais fé,/ Ele ouve, ó crê!” nos quais afirma-se a
possibilidade de um “diálogo” entre o crente e Deus.
O cântico “Sobre as ondas do mar” aborda a questão da fé: “Tendo fé, você verá
bonança”. A imagem provocada pela afirmação tende a despertar no ouvinte um sentimento
de esperança e, conseqüentemente, uma adesão ao que se diz. Para isso, é determinante o
emprego metafórico do substantivo “bonança”, significando “calmaria”, “fase próspera”. Isso
deixaria o interlocutor mais predisposto a aceitar as teses que estão por vir.
Verifica-se, ainda, no plano da encenação discursiva, o uso de uma série de recursos
que dão ao texto um tom mais emotivo. Aqui comentaremos alguns desses recursos, dentre
eles, a seleção lexical, a ordem das palavras, o emprego da modalidade alocutiva e o uso de
metáforas.
Além do substantivo “bonança”, citado acima, constatamos uma seleção lexical que
remete ao campo semântico da emoção. As palavras que constituem esse campo podem ser
organizadas em dois grupos de palavras que se opõem: um deles com termos de sentido
positivo, tais como: “amor”, “poder”, “maravilhas”, “seguro” e outro grupo de palavras com
sentido negativo, como “trevas”, “tribulação”, “assustar”. Essa oposição representa os dois
pólos nos quais se encontra, respectivamente, aquele que tem fé e aquele que não tem fé.
Também a ordem das palavras no enunciado – sobretudo a inversão da ordem
canônica - pode ser usada com valor afetivo. Kerbrat-Orecchioni (2000, p.39) cita alguns
autores (CRESSOT 1947; MAROUZEAU 1959; VINAY; DARBELNET 1958) que admitem
a existência de um inventário de procedimentos linguageiros, os quais constituiriam os
melhores vetores potenciais de afetividade. Dentre eles está a “ordem das palavras”21.
Percebemos que a inversão é um fenômeno frequente no cântico que estamos
analisando: “Quando Cristo caminho abriu?” em vez de “Quando Cristo abriu caminho?”; “Quando forçado és, contra as ondas lutar” ao invés de “- Quando és forçado, contra as ondas
lutar”; “Seu amor a ti quer revelar” ao contrário de “Quer revelar seu amor a ti”; “Pois com
Ele, seguro serás” em vez de “Pois com Ele, serás seguro”; “Da montanha o Mestre te vê” no
lugar de “O Mestre te vê da montanha”; “Podes tu recordar” ao invés de “Tu podes recordar”;
“No deserto ao povo fartou” em vez de “Fartou ao povo no deserto”; “Sobre as ondas poderás
andar” no lugar de “Poderás andar sobre as ondas.
O uso da modalidade pode funcionar como mais um recurso para favorecer a sedução
do interlocutor. No nosso corpus, percebe-se que, a partir da enunciação alocutiva (presença
explícita do interlocutor), o enunciador, no cântico analisado. descreve o estado emocional em
que o interlocutor se encontrará: “E então, tu verás que bonança se faz/ Pois com Ele, seguro
serás.”, contribuindo para o surgimento, novamente, do efeito patêmico. E ainda, nestes dois
versos, visualizamos dois operadores argumentativos – “então” e “pois” –, sendo que o
primeiro expressa conclusão e o segundo, explicação. Tais operadores são utilizados para a
defesa da tese “Confie em Cristo, tenha fé”. Observamos, assim, a dupla “convencerpersuadir” apontada por Plantin (apud AMOSSY, 2000, p.164), sendo favorecida através do
21
Tradução nossa para a expressão ordre des mots.
45 | P á g i n a
Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três
Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano
(Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858).
Guavira
no10
apelo à emoção e às faculdades intelectuais, estas demonstradas na operação lógicodiscursiva, evidenciada nos dois versos comentados acima.
A modalidade alocutiva se faz presente, ainda, através do emprego de verbos no
imperativo – marca do discurso religioso –, segundo Orlandi (1987, p.259). Esses verbos
(“Solta”, “Toma”, “Navega”, “Crê”) incitam o fiel a ações baseadas na confiança, na bondade
e na força de Deus. Neste cântico, há, ainda, o uso das interjeições “Oh!” e “Ó crê!”, que
visam estabelecer esse diálogo com o ouvinte, conclamando-o não só à reflexão, mas também,
à ação. De acordo com Cunha (1982, p.547), “interjeição é uma espécie de grito com que
traduzimos de modo vivo nossas emoções”. Compartilham dessa mesma idéia alguns autores
mencionados por Kerbrat-Orecchioni (2000, p.40). Para tais autores, a interjeição seria mais
um vetor potencial de afetividade.
Deve-se, enfim, destacar a natureza predominantemente metafórica do texto. A idéia
da fé, da confiança sem limites em Deus está expressa numa série de expressões metafóricas,
como: “Solta o cabo da nau/ Toma os remos na mão/ E navega com fé em Jesus”; “Trevas
vêm te assustar,/ Tempestades no mar?/ - Da montanha o Mestre te vê”; “Sua mão bem te
pode suster”; “Sobre as ondas poderás andar”. A metáfora pode favorecer a promoção de um
efeito patêmico no discurso. Essa é a posição de Kerbrat-Orecchioni (2000, p.40), segundo a
qual vários autores assimilam conotação e valor afetivo.
O quadro a seguir pode resumir o que comentamos sobre o cântico.
Recursos
Passagens do
cântico
“Tendo
fé,
Tema
você
verá
bonança”
“amor”;
Seleção lexical
“bonança”;
“trevas” , etc.
“Quando
Inversão
Cristo
caminho
abriu?”, etc.
“Solta o cabo
Expressões
da nau/ Toma
metafóricas
os remos na
mão”, etc.
Alocutiva (Tu)
Modalidade
“Oh!”;
“Ó
Interjeições
crê!”
Verbo
no “Solta”;
“Toma”;
imperativo
“Navega”
Quadro n. 1
46 | P á g i n a
Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três
Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano
(Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858).
Guavira
no10
Considerações Finais
Pudemos notar, a partir da análise de um cântico da Assembléia de Deus, o apelo à
emoção através de alguns recursos que poderiam seduzir e, possivelmente, persuadir o crente.
Recursos, como: tema; seleção lexical – uso de palavras de diversas classes gramaticais
remetendo ao campo semântico da emoção; ordem das palavras/inversão; expressões
metafóricas; descrição do estado emocional do locutor através da modalidade elocutiva;
descrição do estado emocional em que o interlocutor deveria se encontrar, através da
modalidade alocutiva; exclamações; interjeições. Tais recursos poderiam emocionar o
interlocutor, deixando-o mais predisposto a aceitar as teses que se seguem. Daí considerarmos
o apelo à emoção como uma estratégia de tom persuasivo.
Além do apelo à emoção, o locutor se valeu das faculdades intelectuais, das operações
lógico-discursivas, utilizando os operadores argumentativos, principalmente, “então” e “pois”
para defender suas teses, o que confirma a tese de Plantin, apresentada acima, segundo a qual
o caminho intelectual não é suficiente para desencadear a ação. Assim, notamos que o cântico
conjuga recursos da ordem da argumentação lógica ao apelo à emoção. Provavelmente com a
finalidade de captar novos fiéis.
Referências
AMOSSY, R. Le pathos ou le rôle des émotions dans l’argumentation. In: L’argumentation
dans le discours: discours politique, littérature d’idées, fiction. Paris: Nathan Université,
2000. p.163-182.
KERBRAT-ORECCHIONI, C. Quelle place pour les émotions dans la linguistique du XX
siècle? Remarques et aperçus. In: Doury, M.; Travesso, V. Les émotions dans les interactions.
Lyon: Presses universitaires, 2000. p. 33-63.
CHARAUDEAU, P. La Pathemisation à la Télévision comme Stratégie d’Authenticité. Paris:
Univ. Paris XIII. 1999. Inédito.
CUNHA, C. F. da. Gramática da Língua Portuguesa. 8 ed. Rio de Janeiro: FENAME, 1982.
FERREIRA, V.A. O protestantismo na atualidade. Revista Espaço Acadêmico. n.59, abr.
2006. Disponível em <http://www.espaçoacadêmico.com.br/059/59 ferreira.htm. Acesso em
04 abr. 2010.
MAINGUENEAU, D. Polifonia e cena de enunciação na pregação religiosa. In: Lara, G. M.
P., Machado, I. L.; Emediato, W. Análises do discurso hoje, vol.1. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 2008. p. 199-218.
ORLANDI. E. O Discurso religioso. In: A linguagem e seu funcionamento. 2 ed. Campinas:
Pontes, 1987. p. 239-262.
47 | P á g i n a
Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três
Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano
(Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858).
Guavira
no10
OS MEIOS DE COMUNICAÇÃO SOCIAL E O “EMPODERAMENTO” DA
TERCEIRA IDADE
Pedro Celso Campos (UNESP/FAAC)22
RESUMO: A sociedade está envelhecendo. Esta pauta vai se tornando presente, cada vez mais, na rotina dos
meios de comunicação. Ainda nos bancos universitários, os futuros jornalistas devem ser sensibilizados
para este fenômeno que envolve importante processo de mudança social. Um dos caminhos pode ser o
estudo das técnicas de empoderamento e formação de Capital Social, através das novas Tecnologias de
Informação e Comunicacão – TIC, Por outro lado, exercendo plenamente os seus deveres de cidadania,
os comunicadores podem – no exercício da profissão ou no voluntariado – contribuir com o
fortalecimento das reivindicações da Terceira Idade, na luta pela preservação dos direitos adquiridos, na
organização pela conquista de novos direitos, principalmente cobrando dos meios de comunicação mais
respeito e dignidade, condenando a discriminação, não se calando diante de qualquer iniciativa que vise
prejudicar os direitos das pessoas idosas.
Palavras-Chave: jornalismo; sociedade; mudança.
ABSTRACT: The society is aging. This subject is becoming increasingly more present on the communication
media. Still, at the university level, the future journalists must be sensibilized to this phenomena that involves an
important process of society change. One route could be the study of empowerment techniques and Social
Capital formation, using the new information and communication technologies – IIT. On the other hand, as they
fully exercise they duties as a citizen, the communicators could– through the exercise of their profession or by
voluntary action - contribute with the strengthening of the third age (seniors) demands, on their fight to protect
acquired rights, with the organization of newly acquired rights, in particular demanding from the mass media
more respect, dignity, and rejecting discrimination, not staying quiet when faced with initiatives that target
curtailing the rights of the seniors citizens.
Keywords: journalism; society; change.
Introdução
A exemplo dos estudos ambientais, a área da Gerontologia é amplamente
interdisciplinar. São inúmeras as abordagens possíveis quando tratamos das questões
relacionadas com o envelhecimento demográfico que é uma característica do nosso tempo e
22
Coordenador do Curso de Jornalismo da Faculdade de Arquitetura, Artes e Comunicação da
Universidade Estadual Paulista - FAAC/UNESP, campus de Bauru/SP ([email protected]). Este
artigo faz parte de seus estudos pós-doutorais na Facultad de Comunicación de la Universidad de Sevilla, entre
setembro/2007 e março/2008, com supervisão do Prof. Dr. Francisco Sierra Caballero e com bolsa do Programa
de Estágio de Pós-Doutorado no Exterior, da Pró-Reitoria de Pesquisa da UNESP, em convênio com a Fundação
Banespa/Santander.
48 | P á g i n a
Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três
Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano
(Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858).
Guavira
no10
que provoca tantas mudanças na sociedade, por isto mesmo exigindo a contribuição
acadêmica em diversas áreas do saber.
Aqui cuidamos de relacionar a problemática do idoso com os meios de comunicação.
Para tanto, buscamos uma teoria da área sociológica – o “empoderamento” – para refletir
sobre o papel que os meios de comunicação têm diante do fenômeno do envelhecimento
demográfico. É um papel, sobretudo, de, primeiramente, reconhecer o fenômeno, estudandoo, pautando-o, aprofundando-se sobre ele. Depois, trata-se de buscar a linguagem adequada
que situe a pessoa idosa como sujeito e não como objeto da história. Trata-se, também, de dar
voz ao idoso, de falar a partir dele e não apenas para ele.
Para reduzir o preconceito social contra as pessoas idosas – injustamente acusadas de
improdutivas e de serem um peso para o Estado e para a sociedade – os gestores de mídia
podem ser convidados, por exemplo, a refletir sobre o potencial de consumo de horas-mídia
representado pelos idosos. Por terem mais tempo, são eles os maiores leitores de meios
impressos, os que mais assistem aos programas de televisão, os que mais acompanham o rádio
e já estão cada vez mais presentes na Internet. Em alguns países, os idosos já se organizam
com o apoio de entidades não governamentais, lutando pela preservação de seus direitos,
conquistando novos direitos, inclusive procurando votar – no período eleitoral – naqueles
políticos sérios que assumem compromissos em defesa dos direitos dos idosos.
Esse trabalho de organização da terceira idade como protagonista da história; um
protagonismo que levanta uma voz forte toda vez que os idosos são discriminados,
violentados, desrespeitados, roubados, ignorados – dentro ou fora de casa - e que pode ser
fortalecido através das técnicas de “empoderamento” e com apoio dos meios de comunicação,
como veremos a seguir.
O empoderamento é visto como um processo de construção social que relaciona forças
individuais e capacidades (competência), sistemas naturais de ajuda e condutas pró-ativas
com assuntos de mudança social e política social (ZIMMERMAN, 2000; RAPPORT, 1998),
que se desenvolve em três níveis: individual, organizacional e comunitário.
Em nível individual, os processos de empoderamento podem ser alcançados através da
participação em organizações ou atividades comunitárias, integrando grupos de trabalho,
aprendendo novas tarefas, desenvolvendo novos potenciais etc. O próprio fato de trabalhar em
equipe, perseguindo metas comuns, já pode ter um potencial empoderador, do ponto de vista
disciplinar. Esse processo pode ser ativado por animadores externos como agentes sociais,
ONGs, mentores, líderes de grupo, professores que atuam de forma a prover oportunidades
para as pessoas exercerem controle sobre suas vidas, podendo elas mesmas formarem novos
grupos empoderadores, num processo solidário e continuado de formação cidadã. Esse
processo sofre influências diretas (positivas ou negativas) do contexto social, isto é, do
entorno ecológico no qual se desenvolve. Naturalmente, no ambiente favorável, em que a
sociedade, o poder público, as entidades organizadas estão voltadas para a inclusão social, o
processo de empoderamento prosperará de modo mais eficaz.
Ao tratar do nível organizacional do empoderamento, Zimmerman (2000) destaca a
importância de se desenvolver a noção de “pertencimento”, de “sentir-se parte do grupo”, de
“ser equipe”, pois é essa noção de pertença que legitima e fortalece o grupo. Aqui sobressai o
papel da comunicação como agregadora dos sujeitos sociais, ajudando a criar um ambiente
favorável em busca das metas propostas. O comunicador precisa estar consciente de que sua
atuação é fundamental na coesão interna do grupo e na busca de apoios que ele precisa para
ter visibilidade e resultados. Trata-se, portanto, de fortalecer a organização, no marco teórico
da teoria de difusão de informações, segundo a qual, um adequado fluxo de informação e uso
apropriado dos meios de comunicação de massa podem contribuir para mudar os hábitos dos
49 | P á g i n a
Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três
Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano
(Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858).
Guavira
no10
indivíduos. Mas a comunicação em si não é capaz de mudar a realidade. A mudança só ocorre
a partir da motivação individual. A comunicação pode reforçar as técnicas de empoderamento
do grupo social. Em muitas situações, isso significa colocar em marcha processos de liderança
compartilhada, processos de capacitação de membros em função dos objetivos da
organização, processos de tomada de decisões, sistemas de distribuição de funções e
responsabilidades conforme a capacidade de cada um, criação de mecanismos de intercâmbio
de informações e recursos, um modelo ou estilo de gestão adequada em função do
crescimento e desenvolvimento da organização. Naturalmente nada disto é atingível se todo o
grupo não estiver imbuído dos mesmos objetivos, se não for solidário, se não houver respeito,
confiança e tolerância.
O nível comunitário do empoderamento resulta dos dois níveis anteriormente citados.
Quando se conta com indivíduos interiormente empoderados e organizações voltadas para o
empoderamento, então se pode falar em comunidades empoderadas que defendem os seus
direitos, que se interessam pelo bem coletivo, que se solidarizam com o semelhante, que
lutam pela inclusão social de modo a empoderar outros grupos, que têm visão crítica sobre as
injustiças sociais e econômicas em nível local e mundial, que respeitam o meio ambiente etc.
Speer e Hughey (1995) observam que o empoderamento a nível comunitário implica
no desenvolvimento de redes intersetoriais de organizações e instituições da comunidade
local. Essa cooperação, mediante a troca de informação e experiência, levando em conta todos
os agentes dentro do enfoque ecológico, é determinante para o bem estar de toda a
comunidade, na mesma medida em que a participação individual é que vai enriquecer e
fortalecer as organizações empoderadoras.
A intenção é evidenciar o caráter eminentemente sistêmico do processo de
empoderamento. Nem mesmo o professor, o líder de grupo, o mentor poderá estar só, na sua
tarefa de empoderar. Assim, na comunidade empoderada também haverá uma acentuada
noção de democracia interna, de horizontalidade de mando, de modo tal que todos possam ser
ouvidos com respeito.
Retornando a Zimmerman (2000), dos três níveis citados, emerge um
questionamento: O que é mais importante, o empoderamento individual, organizacional ou
comunitário? Os psicólogos transpessoais, entre eles Ken Wilbur, Michael Washburn,
Stanislav Grof (citados por CAPRA, 1988) assinalam que a transformação interna resultante
do empoderamento individual está muito ligada a um espírito de comunidade, de
solidariedade humana. À medida que a pessoa passa a se conhecer, a aceitar-se e a amar-se a
si mesma, ela começa a aceitar e amar o outro, uma vez que pode ver a si mesma no outro.
Assim, o empoderamento individual promove a solidariedade, uma auto-definição pessoal
baseada no sentido de pertencimento a uma comunidade maior, universal, cósmica e não
como indivíduo egoisticamente isolado.
No empoderamento de nível transpessoal, pelo fortalecimento interno do sujeito, há
uma sensação automática de solidariedade com todos os viventes, um sentido de compaixão
pelo excluído, acompanhado pelo deslocamento da mentalidade temerosa e avara do “eu
primeiro” que é norma do capitalismo, a uma mentalidade de maior plenitude (“viver e deixar
viver”), uma confiança de que “já tenho o suficiente”. Esse ponto de vista da psicologia
transcendental e dos sociólogos transpessoais sobre empoderamento está muito próximo dos
pontos de vista de muitas tradições espirituais do mundo antigo.
Segundo McLaughlin e Davidson (1994), “o empoderamento baseado na
transformação interior motiva a pessoa a melhorar não só sua própria vida, mas também a
vida dos demais”, enquanto Lape e DuBois (1984) afirmam que “o empoderamento individual
se manifesta na conscientização e participação política – um sentido de militância baseado
50 | P á g i n a
Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três
Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano
(Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858).
Guavira
no10
não em um pequeno interesse pessoal, tão pouco em sentir-se vítima, nem em lançar a culpa
nos demais, mas no sentido maior de comunidade e responsabilidade. Com a participação,
crescem as habilidades políticas¨.
A teoria do empoderamento ensina que todos e cada um tem poder de transformação,
de superação. O empoderamento nos transforma em sujeitos da história, pessoas que
transformam seu ambiente ao invés de serem transformadas por ele. O empoderamento
individual traz a força de cada um à mesa de negociação por um mundo melhor, por uma vida
mais digna. Mas não há jogo sem jogadores. E não basta participar, é preciso se envolver, se
comprometer, jogar-se por inteiro.
Assim, é tão importante o empoderamento individual quanto o organizacional e o
comunitário, mas nada se consegue se as pessoas não se dispuserem a colaborar,
disciplinadamente, pois não se trata de um bem que se pode dar, mas sim de um processo
induzido, amplo e vagaroso no qual as próprias pessoas participantes são protagonistas através
de seus esforços individuais e coletivos. Por isso é importante que o processo seja organizado
horizontalmente, pela própria sociedade, atuando diretamente junto aos grupos e segmentos
envolvidos de modo que alcancem seus objetivos com a união do grupo e não com poderes
outorgados por outros quase sempre com segundas intenções, para tirar proveito político etc.
Granovetter (1985), Bourdieu (1989), Durston (2000) e Romano (2002) concordam
que o empoderamento envolve Auto-confiança (para fugir da apatia, ser atuante, acreditar na
causa, alimentar o otimismo); Capacidade Crítica (para perceber, no entorno, quais são os
problemas a serem analisados e superados); Participação (reunir-se, dialogar, agir,
manifestar-se); Organização (estudar, aprender, abrir-se ao novo conhecimento, às novas
tecnologias, doar-se ao coletivo); Solidariedade (no sentido de generosidade, alteridade,
aceitação das diferenças) e Capital Social (constituir-se como ser pensante e crítico para
conduzir sem ser conduzido).
Certamente, o que se destaca dessa discussão é a vontade de querer participar, é a
decisão de não se acomodar, de não ficar alheio ao mundo em volta. O trabalho de
empoderamento pode ser convincente nesse particular, resultando na acumulação de um tipo
de poder pessoal ou grupal que os sociólogos chamam de “capital social”, conforme veremos
a seguir.
Capital Social
O empoderamento é capaz de elevar o nível de “capital social”, ou de participação
cidadã na sociedade civil, de um grupo, ou de uma comunidade. Para Pierre Bourdieu (1983,
p. 249), “capital social é a agregação de recursos reais ou potenciais que estão ligados à posse
de uma rede durável de relações mais ou menos institucionalizadas de conhecimento mútuo e
de reconhecimento” (grifo nosso). Distingue três formas de CS (Capital Social): econômico,
cultural e social, chamando atenção para a desigualdade de acesso aos recursos. Para
Bourdieu as novas tecnologias acabam favorecendo sempre mais as elites que são,
naturalmente, contrárias à formação de capital social nas democracias abertas onde existe, por
exemplo, liberdade de expressão.
A observação de Bourdieu põe em destaque o papel do ativismo político a favor das
classes excluídas, cabendo ao jornalismo socialmente comprometido dar voz a esses setores e
colaborar com o seu empoderamento. Também Paulo Freire insiste que só o reconhecimento
traz o conhecimento, só a atitude humilde diante do saber pode conduzir ao saber em si, um
conceito valiosíssimo para o jornalista interessado em conferir exaustivamente a informação
recebida antes de publicá-la, no marco da ética que a profissão requer e exige.
51 | P á g i n a
Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três
Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano
(Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858).
Guavira
no10
Em Coleman’s (1994, p. 302) aprendemos que “o capital social é definido por sua
função. Não é uma entidade única, mas uma variedade de diferentes entidades, com duas
características em comum: todas elas consistem em algum aspecto de uma estrutura social e
facilitam certas ações de indivíduos que se encontram dentro da estrutura”. Coleman’s
acredita que a formação de capital social, embora favorecendo as elites como ensina
Bourdieu, também está acessível às comunidades carentes e aos grupos excluídos da
sociedade, desde que venha a contar com motivação e apoio neste sentido. Novamente se vê
aqui a importância da comunicação quando ela se coloca a serviço da sociedade e não apenas
de grupos políticos, ideológicos ou de governos. A pesquisa de Coleman’s realça, igualmente,
o papel da família, das relações de parentesco e das instituições religiosas na formação de
capital social.
Segundo o Banco Mundial – em suas análises de projetos comunitários - quando
falamos em CS estamos nos referindo às instituições, relações e normas que definem a
qualidade e a quantidade de interações sociais em uma comunidade. O CS não é apenas a
soma das instituições que constituem elementos essenciais de uma sociedade, é a “liga”, a
“cola” que cimenta essas relações, que as mantém unidas e coesas.
Entre os estudos mais citados, nos últimos anos, sobre CS está o de Robert Putnam
(1941) que, a partir das teorizações de Coleman’s e Bourdieu, mapeou os níveis de
participação cívica nos Estados Unidos e constatou acentuado declínio nas últimas três
décadas do milênio. Sua pesquisa foi publicada no livro “Bowling Alone”, em 2000. Esta é
sua definição de CS: “Considerando que o capital físico se refere a objetos físicos e no capital
humano refere-se às propriedades dos indivíduos, o capital social refere-se às ligações entre
os indivíduos, às redes sociais e às normas de confiança e reciprocidade que surgem a partir
dessas ligações”. Neste sentido o capital social está intimamente relacionado com o que
alguns têm chamado de “virtude cívica”. A diferença é que o capital social é mais poderoso
quando incorporado em um sentido rede de reciprocidade das relações sociais. A sociedade de
indivíduos isolados, embora muito virtuosos, não é, necessariamente, rica em capital social
(PUTNAM, 2000, p. 19).
Putnam constatou uma diminuição significativa na quantidade de americanos que
participam de organizações religiosas, atividades cívicas, recreativas, clubes e outras
iniciativas coletivas (como jogar vôlei) com um correspondente aumento de atividades
individualizadas (principalmente ver televisão). Em sua pesquisa, os indicadores de
conhecimento político, confiança na classe política, ativismo político e atuação em bases
populares estão todos para baixo. Os americanos estão assinando 30% menos petições e
revelam 40% menos disposição de participarem de um boicote de consumidores em
comparação com uma ou duas décadas atrás. Em meados da década de 1970 o americano
médio frequentava clubes todos os meses. Em 1998 essa participação havia caído quase 60%.
Em 1975 as reuniões com amigos chegavam a 15 encontros por ano, em 1998 caíram pela
metade. Embora os americanos se revelem mais tolerantes uns com os outros em relação a
gerações passadas, eles confiam menos uns nos outros.
Os dados revelam esse crescimento da desconfiança mútua, da desonestidade. Há mais
reclamações à polícia e aos tribunais, o que provocou a elevação do número de advogados,
policiais e pessoal de segurança, lembrando que durante a maior parte do século tais
atividades estavam estagnadas, a ponto da América ter menos advogados per capita em 1970
do que tinha em 1900. A conclusão de Putnam é que isto enfraqueceu o capital social do país.
Dessa forma, poderosos meios de comunicação, como a TV ou a Internet, ao invés de
contribuírem para o empoderamento das pessoas e dos grupos sociais, estariam atuando em
sentido contrário.
52 | P á g i n a
Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três
Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano
(Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858).
Guavira
no10
Nem todos os estudiosos concordam com a teoria de Putnam. Não se poderia atribuir
à televisão o papel de mudar totalmente a sociedade, ainda que pesem as críticas gerais contra
o conteúdo da programação de TV mais voltado para o espetáculo e a força da imagem. Theda
Skocpol (2003), ao criticar o trabalho de Putnam, observa que as alterações mais
significativas na sociedade atual referem-se à mudança da forma associativa de vida. Ela
questiona o excesso de ênfase no trabalho de Putnam e outros sobre o funcionamento dos
grupos locais e das associações. “O voluntariado cívico nunca foi predominantemente local
nos Estados Unidos e nunca se desenvolveu para além do governo nacional e da política. Os
teóricos do capital social têm a tendência de analisar todas as formas de participação de uma
só vez” (SKOCPOL, 2003, p.12). Ela sugere que uma confluência de tendências e eventos
gerou uma mudança de adesão à mobilização geral em forma de organizações cívicas.
Segundo ela, depois de 1960, época de mudanças nos ideais raciais e de gênero, um novo tipo
de relacionamento empurrou as lideranças dos públicos masculino e feminino para novas
direções. Novas oportunidades e desafios políticos atraíram recursos e ativistas cívicos em
direção aos lobbies centralizados. As novas tecnologias e fontes de apoio financeiro
permitiram a constituição de novos modelos de associativismo. Finalmente, mudanças na
estrutura e nas classes elitistas americanas criaram um círculo mais amplo para organizações
profissionalmente geridas. Agora os americanos mais privilegiados podem se organizar
virtualmente (SKOCPOL, 2003, p.178).
Outra contribuição significativa ao trabalho de Putnam veio de Ann Bookman (2004).
Ela acha que não se pode falar em capital social, hoje, sem levar em conta o papel da mulher
na sociedade que teria um capital social “acumulado” ao desempenhar duplas jornadas como
profissional e mãe de família. Novas formas de CS estão se desenvolvendo, entre famílias que
trabalham em ambientes urbanos e suburbanos (como no caso dos cuidadores de crianças e
idosos, os empregados domésticos).
De todo modo o trabalho de Putnam deixa claro que a formação de capital social traz
inúmeras vantagens. Ele cita, por exemplo, o desenvolvimento das crianças, através do
melhor aproveitamento escolar e, consequentemente, do comportamento e desenvolvimento
futuro, quando a família dá ao acompanhamento da formação escolar o destaque que ele
merece. Mostra que é perceptível a redução no índice de criminalidade nas comunidades onde
os jovens estão interligados por redes de amigos e participam de atividades comuns. Diz que o
CS pode ajudar a atenuar os efeitos insidiosos da desvantagem socioeconômica, quando uma
nação, uma sociedade ou mesmo um grupamento de pessoas, ou de empresas, se organizam
para formar capital social através do florescimento de redes sociais, mediante técnicas de
empoderamento. Ele também vê uma relação entre CS e boa saúde, ao observar que cai pela
metade o risco de morte entre pessoas que vivem em grupo em relação a pessoas que vivem
isoladas, solitárias. No grupo, a pessoa acaba sendo ajudada a desenvolver hábitos mais
saudáveis como deixar de fumar, fazer exercícios, sair de casa, alimentar-se melhor, cuidar
dos medicamentos etc. Para ele, a assiduidade a um clube, a participação em trabalhos
voluntários, a recreação, a frequência à Igreja equivalem, para a pessoa que antes vivia só, à
felicidade de receber um diploma acadêmico ou ter o salário duplicado. Pode-se ter uma vida
rica e feliz sem ter riqueza material, ensina.
Meios de Comunicação
Este artigo tem o objetivo de relacionar o papel social dos meios de comunicação com
sua capacidade de contribuir para o empoderamento e, consequentemente, a elevação do
capital social nas comunidades. Muito embora as técnicas de formação de capital social sejam
aplicáveis a todas as pessoas e grupos sociais, faremos aqui um recorte no segmento de
53 | P á g i n a
Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três
Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano
(Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858).
Guavira
no10
público que mais tem crescido nos últimos tempos e que vai se tornando, cada vez mais, uma
pauta de abordagem diária para a imprensa. Trata-se do segmento das pessoas idosas e do
fenômeno global do envelhecimento demográfico, tema, aliás, pouco tratado na área
acadêmica, o que parece confirmar o modo paternalista e assistencialista como é vista a
pessoa idosa na sociedade, como se não tivesse ou não pudesse ter qualquer papel social.
Igualmente é importante lembrar que o idoso é, hoje, um consumidor urbano de notícias e
informações, ao contrário de algumas décadas atrás quando ainda existiam comunidades
rurais e as tecnologias de informação limitavam-se praticamente ao rádio.
PAÍSES COM MAIOR ENVELHECIMENTO (2000-2050)
População de 65 e mais anos
2000
2050
número
número
(milhões) % (milhões) %
Italia
Japón
España
Alemania
Francia
Reino
Unido
Ucrania
Rusia
EEUU
China
Vietnam
Brasil
Indonesia
India
México
Egipto
Paquistán
Bangladesh
Nigeria
População de 80 e mais anos
2000
2050
número
número
(milhões) % (milhões) %
10.525
21.862
6.797
13.483
9.669
18,2
17,2
16,7
16,4
16,3
18.090
40.269
14.504
22.376
17.114
35,5
35,9
34,1
28,4
27,1
Reino
Unido
Italia
Francia
Japón
Alemania
9.306
6.863
18.081
35.078
87.228
4.251
9.457
10.236
50.054
4.759
3.027
5.261
4.370
3.495
15,9
14,0
12,3
12,3
6,8
5,4
5,4
4,9
4,9
4,8
4,5
3,7
3,4
3,0
15.558
7.689
25.747
81.547
329.103
21.712
48.693
49.670
236.513
29.371
16.727
31.119
28.240
14.726
23,2
29,1
23,0
20,6
23,6
18,6
19,2
17,4
14,8
21,1
13,3
10,2
11,6
5,7
España
EEUU
Ucrania
Rusia
Brasil
China
México
Vietnam
India
Egipto
Indonesia
Paquistán
Bangladesh
Nigeria
2.390
2.309
2.341
4.812
2.859
4,1
4,0
3,9
3,8
3,5
1.413
9.138
1.107
2.935
1.624
11.373
854
671
6.761
320
1.092
652
479
359
3,5
3,2
2,3
2,0
0,9
0,9
0,9
0,9
0,7
0,5
0,5
0,5
0,4
0,3
5.885
7.756
6.863
17.159
9.585
8,8
15,2
10,9
15,3
12,2
5.213 12,3
28.725 7,3
2.075 7,9
6.588 5,9
13.989 5,5
100.551 7,2
8.002 5,8
5.082 4,4
52.915 3,3
3.077 2,4
9.492 3,3
5.651 1,9
4.595 1,9
1.910 0,7
Fuente: N.U.: World Population Prospects: The 2004 Revision. N.U. (consulta em Junho de 2006)
O mundo do século XXI será, em grande parte, urbano. Nos países em
desenvolvimento, a população urbana decuplicou em apenas 65 anos, passando de 100
milhões em 1920 a 1 bilhão em fins do século. Considerando o conjunto da humanidade, hoje
com 6,5 bilhões de pessoas – onde se inserem os problemas ecológicos e ambientais, inclusive
questões prementes como a mudança do clima e o envelhecimento demográfico – os
planejadores levam em conta dados da Organização das Nações Unidas - ONU segundo os
quais a população poderia se estabilizar entre 8 e 14 bilhões de habitantes em algum momento
do século XXI. É importante registrar que 90% desse crescimento populacional ocorrerá nos
54 | P á g i n a
Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três
Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano
(Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858).
Guavira
no10
países mais pobres, conforme o documento da ONU “Nosso Futuro Comum”. Isto significa
que os países mais desenvolvidos também terão as populações mais idosas do mundo. De fato
isto já vem ocorrendo. Até meados do século XVIII, a esperança de vida nos países europeus
rondava os 30 anos. No ano 2000 era de 77 e está subindo (SEMPERE; RIECHMENN, 2000,
p.191). No Japão atual é de 85 anos. Em 2050 dois em cada cinco japoneses terão mais de 65
anos, somando-se a uma população superior a dois bilhões de idosos em todo o mundo,
segundo projeções da ONU. O gráfico, a seguir dá uma idéia da situação. É possível,
observar, por exemplo, que apesar da longevidade estar crescendo também nos países pobres,
a sobrevida segue elevada proporcionalmente à qualidade de vida do país onde vive o idoso.
Assim, na faixa superior a 80 anos, os percentuais de sobrevida vão se reduzindo
drasticamente nas regiões mais pobres, se comparadas com as regiões mais ricas do planeta.
Enquanto na Alemanha (15,3%) e no Japão (15,2%) a Quarta Idade mantém representação
expressiva na população, em outros países como Índia (3,3%), México (2,4%) e Nigéria
(0,7%) esse segmento é cada vez menor.
Perante esses dados, parece correto supor que os meios de comunicação, notadamente
os Novos Meios de Informação e Comunicação (NOMIC), sem abrir mão dos meios
tradicionais, têm muito a contribuir nessa tarefa de dar visibilidade social aos grupos
excluídos, neste caso ao segmento dos idosos, sempre que estivermos falando de um
jornalismo socialmente comprometido.
É curioso observar que, muitas vezes, na busca desenfreada do lucro, o capitalismo
acaba flanqueando alguns espaços que a sociedade organizada pode explorar. Um exemplo
claro é o apoio que a Comissão Européia vem dando ao desenvolvimento de novos produtos
midiáticos na área das Tecnologias da Informação e da Comunicação – TICs. Desde 2007 até
2013 a União Européia e os EUA, junto com o setor privado, investirão mais de um bilhão de
euros em pesquisa e inovação dentro do programa “Envelhecer bem na Sociedade da
Informação”. Apesar dos objetivos econômicos, o programa está organizado em normativas
que podem contribuir com a inclusão social, tais como: 1. Uma Sociedade da Informação
aberta a todos (IP/05/643); 2. Uma Sociedade da Informação aberta ao crescimento e ao
emprego (IP/05/643); 3. Acessibilidade Eletrônica (IP/05/1144); 4. Uma agenda política de
inclusão digital, conforme acordado em 2006 pelos Estados-Membros reunidos em Riga
(IP/06/769) e para o final de 2007 estava prevista uma comunicação relativa à estratégia da
União Européia em inclusão digital.
Da verba total, 600 milhões de euros são destinados ao programa “Vida Quotidiana
Assistida pela Comunidade”; 400 milhões de euros destinam-se ao recente Programa Marco
de pesquisa da União Européia (IP/06/1590) e 30 milhões foram aplicados em 2007 no
Programa de Apoio à Política em matéria de TIC (IP/06/716). O objetivo, segundo o site da
UE, é “criar uma sólida base industrial na Europa para as Tecnologias da Informação e da
Comunicação e o envelhecimento. A própria Europa poderia converter-se em um mercado
referencial das TICs para um envelhecimento melhor. Posto que o envelhecimento é um
fenômeno mundial, uma indústria européia forte significaria oportunidade em todo o mundo”.
Ao lançar o plano em junho de 2007 em Bruxelas, a Comissária Européia de Sociedade da
Informação e Meios de Comunicação, Viviane Reding, disse que “as Tecnologias de
Informação e Comunicação proporcionarão novos produtos e serviços mais acessíveis que
respondam às necessidades de nossos idosos”, lembrando que a pesquisa voltada para o
desenvolvimento de aplicações mais práticas e simples, de mais fácil compreensão e
utilização, tem um âmbito de aplicação muito mais amplo.
Dessa forma, atraindo os empresários para o negócio, a Comissão Européia contribui,
de modo substancial, para chamar a atenção da sociedade para o fenômeno do envelhecimento
55 | P á g i n a
Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três
Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano
(Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858).
Guavira
no10
demográfico que, do ponto de vista ecológico, é tão importante quanto a mudança do clima e,
no entanto, não vem sendo tratado com a devida seriedade, uma vez que parece estranho falar
de “envelhecimento” na Sociedade do Conhecimento permeada por bens simbólicos que
remetem a um mundo freneticamente high tech, sem tempo ou sem espaço para reflexões.
Resulta claro, todavia, que os investimentos em TICs também podem ser canalizados para o
empoderamento de pessoas e grupos sociais visando a elevação do capital social, mesmo que
não seja esta a intenção primeira da elite econômica que centraliza os meios de comunicação.
O documento da União Européia reconhece que a maioria dos idosos ainda não se
beneficia das vantagens da era digital, por exemplo, e que só 10% deles, na Europa, utilizam a
Internet. O programa da UE defende “comunicações de baixo custo e serviços on line
especialmente dirigidos aos idosos, o que poderia aliviar suas limitações de locomoção, além
de poder gerar até mesmo um mercado virtual para o trabalho do idoso no lar. Conforme o
documento, “os graves problemas de visão, audição ou destreza frustram com freqüência os
intentos de 21% das pessoas de mais de 50 anos que tentam integrar-se na sociedade da
informação”. Trata-se de uma situação que realmente demanda algum tipo de atenção – não
só na Europa, mas em todo o mundo – pois, conforme os levantamentos que deram origem ao
programa da UE para envelhecer bem, em 2020, 25% dos cidadãos da União Européia terão
mais de 65 anos. Calcula-se que o gasto com pensões, assistência à saúde e cuidados de longa
duração aumentarão de 4% a 8% do Produto Interno Bruto - PIB, nos próximos decênios e em
2050 o gasto total triplicará.
O objetivo do programa de apoio às TICs é a formatação de programas, inclusive na
área da Comunicação, que ajudarão cada vez mais as pessoas idosas a prolongar sua vida
ativa e produtiva, a continuar participando da sociedade com serviços on line mais acessíveis
e a desfrutar durante mais tempo de uma melhor qualidade de vida e melhor saúde. É
necessário lembrar, ainda de acordo com o documento, que “os europeus mais idosos são
também importantes consumidores, possuindo bens que superam os três bilhões de euros”. O
mesmo ocorre nos Estados Unidos, onde a maior parte da economia americana está sob
controle de pessoas com mais de 75 anos. E nos Estados Unidos os idosos estão se
organizando em força eleitoral e já são maioria no Congresso, comprometendo-se a votar
projetos que beneficiem diretamente esse segmento da população (THUROW,1997).
O Plano de Ação que integra o Programa da UE “Envelhecer bem na Sociedade da
Informação” pretende “aumentar a sensibilização e criar consenso através da cooperação dos
interessados, incluindo um portal de Internet sobre melhores práticas; acelerar a aceitação das
novas tecnologias através, por exemplo, de um conjunto de projetos-piloto e de um sistema de
prêmios europeus para lares inteligentes e para aplicações que favoreçam uma vida
independente; impulsionar a pesquisa e a inovação, apoiando o surgimento de produtos,
serviços e sistemas inovadores baseados nas TICs, destinados aos idosos europeus, cada vez
mais numerosos”.
Todos esses dados revelam que os meios de comunicação, em todo o mundo, precisam
se voltar, com atenção, para este segmento de público que se faz cada vez mais importante
entre os consumidores de informação. A grande pergunta é se os jovens atualmente
empenhados na formação acadêmica para o futuro desempenho do jornalismo estão sendo
conscientizados, preparados, sensibilizados para o cumprimento dessa nova pauta. Afinal, o
envelhecimento não pode ser visto como um “modismo”, um fenômeno “de momento”. A
opção, para todas as pessoas, incluindo os jovens, não é escolher entre “sim” ou “não” nesta
questão. Portanto, o jovem que hoje convive com a presença do idoso na própria família, ao
frequentar a casa dos amigos, no ambiente de estudos, no comércio, nas ruas, nos meios de
comunicação, nas manifestações de todo tipo sabem que isto se tornará cada vez mais
56 | P á g i n a
Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três
Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano
(Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858).
Guavira
no10
frequente, como indicam as estatísticas, e sabem também que este será o seu mundo futuro. A
característica das questões eminentemente sistêmicas como esta é que todos estão imbricados,
de um modo ou de outro, na complexidade do mundo, daí a importância ecológica do
problema. Se não temos a opção de “não envelhecer” só nos resta a opção de “envelhecer
bem”.
Por isso a questão do idoso deve ser tratada, em nível de comunicação, não com
pieguice, paternalismo ou comiseração, mas com a dignidade e o respeito que o fato merece.
Assim, não se deve tolerar qualquer tipo de discriminação dos meios de comunicação ou da
sociedade em relação aos idosos. O Brasil inova nessa matéria com a criação do Estatuto do
Idoso que protege os direitos da pessoa idosa e pune a discriminação. Mas ainda não há, no
país, uma cultura de respeito aos “maiores”, para usar o carinhoso termo espanhol, como
ocorre em países orientais, caso do Japão e Índia, por exemplo. Tanto assim que o próprio
Estatuto cobra dos empresários de mídia um espaço próprio para a Terceira Idade, mas isto é,
praticamente, ignorado.
Do mesmo modo que a preparação dos futuros jornalistas para lidar com temas
ambientais ainda é precária no Brasil, pois só algumas universidades adotam essa questão
como matéria disciplinar nos cursos de Comunicação, também é escassa e quase inexistente a
preocupação em preparar os comunicadores para a pauta do envelhecimento demográfico.
Mas alguma coisa já está surgindo e um exemplo é o caso das Universidades Abertas à
Terceira Idade que podem ser um instrumento de aplicação da Teoria do Empoderamento ou
do Capital Social na medida em que preparam o idoso para uma vida social ativa e plena.
Considerações Finais
Vimos neste artigo que as técnicas de empoderamento podem contribuir
significativamente para a inclusão dos indivíduos e dos grupos sociais. Também vimos que o
empoderamento faz crescer o nível de capital social da comunidade, levando a uma
participação cidadã mais efetiva. Consideramos que os meios de comunicação têm importante
contribuição a dar a este respeito e registramos a possibilidade de se produzir empoderamento
a partir dos investimentos nas Tecnologias de Informação e Comunicação – TIC. Finalmente
citamos o caso das Universidades Abertas à Terceira Idade que são exemplo prático de
aplicação das técnicas de empoderamento que merecem mais cobertura da mídia. O que
queremos chamar atenção, entretanto, é para o pouco destaque que os meios de comunicação
dão à questão do envelhecimento demográfico e para a falta de interesse dos cursos de
Comunicação Social em preparar os futuros jornalistas em temáticas de cunho ambiental e de
ecologia humana, como no caso da visibilidade dos idosos na sociedade, através da mídia.
Referências
AMANCIO, G.; ROMANO, J. O. Capital Social e Empoderamento. Contribuições
metodológicas da abordagem reflect-action para o desenvolvimento de uma comunidade da
Zona da Mata norte-pernambucana-Brasil. In: www.alasru.org. Acesso em 20 de abril de
2010.
BOURDIEU, Pierre. Formas de Capitais. In: JC Richards (org.). Handbook de Teoria e
Pesquisa de Sociologia da Educação. New York: Greenwood Press. 1983.
57 | P á g i n a
Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três
Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano
(Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858).
Guavira
no10
______. O Poder Simbólico. Lisboa/Rio: Difel/Bertrand Brasil. 1989.
BOOKMAN, A. Starting in our own backyards. How working families can build community
and survive the new economy. New York: Routledge. 2004.
CAPRA, F. Uncommon wisdom: Conversations with Remarkable People. New York: Simon
and Schuster. 1988.
COLEMAN’S, J.C. Capital social na criação de capital humano. American Journal of
Sociology 94: p.95-120. 1988.
______. Foundations of Social Theory. Cambridge: Mass/Harvard University Press.1984.
DURSTON, J. Qué es el capital social comunitário?. Santiago de Chile: CEPAL – Série
Políticas Sociales. 2000.
FREIRE, P. Pedagogia do Oprimido. Rio: Paz e Terra, 1980.
GRANOVETTER, M. Economic action and the social structure: the problem of
embeddedness. Chicago: University of Chicago Press, 1985.
MCLAUGHLIN, C.; DAVIDSON, G. Spiritual Politics: changing the world from the inside
out. New York: Ballantine. 1984.
PUTTNAM, R. D. Making Democracy Work. Civic Traditions Modern in Italy. Princeton:
Princeton University Press. 1993.
______. Bowling alone: America’s Declining Social Capital. Journal of Democracy 6: 1 Jan,
p. 65-78, 1995.
______. Bowling alone: The collapsy and revival of American Community. New York:
Simon and Schuster. 2000.
ROMANO, J. O.; ANTUNES, M., (org.) Empoderamento e direitos no combate à pobreza.
Rio DE Janeiro: Actionaid, 2000.
SEMPERE J.; RIECHMENN, J. Sociologia y Medio Ambiente. Madrid: Editorial Síntesis,
2000.
SKOCPOL, T. Diminished Democracy. Norman, Oklahoma: University Oklahoma Press.
2003.
SPEER, P. W.; HUGHEY, J. Community organizing: Ecological route to empowerment and
power. American Journal of Community psychology, 23 (5), p. 729-764. 1995.
THUROW, Lester C. O Futuro do Capitalismo – Como as forças econômicas moldam o
mundo de amanhã. Trad. de Nivaldo Montingelli Jr. Rio de Janeiro: Rocco.1997.
58 | P á g i n a
Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três
Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano
(Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858).
Guavira
no10
ZIMMERMAN, M. A.; RAPPORT (1998): Citizen participation, perceived control and
psycological empowerment. American Journal of Community Psychology, 16, 1998, p.725750.
______. Empowerment Theory. In: J. Rapport; E. Seidman (Eds). Handbook of Community
Psychology. New York: Kluver. 2000, p. 43-63.
59 | P á g i n a
Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três
Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano
(Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858).
Guavira
no10
A QUESTÃO AGRÁRIA NA CONTINUIDADE DAS LÍNGUAS
MINORITÁRIAS: O CASO TERENA DE IPEGUE
Mariana de Souza Garcia23 (UFMS)
RESUMO: Este artigo concebe a língua como patrimônio imaterial e, por isso, um bem a ser preservado. A
discussão recai sobre as línguas minoritárias e minorizadas e particularmente, sobre o perigo delas
desaparecerem. Saber quais são as ameaças mais fortes é uma saída para a resolução do problema e para isto,
faz-se imprescindível o desenvolvimento de Tipologias Sociolingüísticas. Constam duas seções. A primeira
discute duas macrovariáveis fortes da Tipologia Sociolinguística desenvolvida junto aos Terena são essas: a
questão da terra como eixo de conflitos políticos e econômicos, e a questão tecnológica aliada aos deslocamentos
e desaparecimento de línguas/terras indígenas. Do embate duas concepções de terra emergem. A segunda seção
trata da desterritorialização Terena aplicando todo o quadro descrito e analisado na introdução e na primeira
seção, exemplificando como as micro e as macrovariáveis surgem no seio da Comunidade de Fala Terena e,
sorrateiramente, vêm destruindo os bens materiais e imateriais do referido povo indígena. Conclui constando que
para a sobrevivência das línguas minoritárias, é fundamental atentar-se à questão agrária, que se encontra em
meio à situação social (tecnológica), política e econômica.
Palavras-chave: línguas minoritárias; terra indígena; etnia terena.
ABSTRACT: This article considers the proposition that language, as an intangible heritage, must be preserved.
Focusing on minority languages, it is specially concerned with the risk of their disappearance. Identifying the
most important threats to them is a way of solving the problem and the development of Sociolinguistic
Typologies is essential for that to occur. The article is organized into two sections. The first one discusses two
important Sociolinguistic Typology macro variables developed among the Terena people: the question of land
possession as related to political and economic conflicts, and the question of technology as a reason for
indigenous language/land disappearance and minorization. Two conceptions of land emerge from the
discussion. The second section focuses on the Terena land loss and applies the situation described and analysed
in the introduction and in the first section. It also exemplifies how the micro and macro variables emerge within
the Terena Speech Community and silently destroy that people’s tangible and intangible heritage. In conclusion,
it is argued that the land question is essential for the minority languages to survive, since it is related to the
social (technological), political and economic situation.
Key words: Endangered languages; Indigenous land; Terena ethnic group.
Introdução
A preservação da diversidade linguística é tão importante para a humanidade quanto a
preservação da flora e fauna (NETTLE; ROMAINE, 2000) muito embora a consciência
acerca dessas últimas seja, em geral, mais nítida. Muitos são os argumentos apresentados
pelos estudiosos em prol da diversidade linguística: as línguas são parte essencial da
humanidade, carregam a história da coletividade humana, são produto da milenar indústria
mental humana, codificam experiências únicas e insubstituíveis, além de serem um tipo muito
23
Este artigo faz parte do Projeto LIBA – Línguas Indígenas Brasileiras Ameaçadas: documentação
(análise e descrição) e tipologias sociolinguísticas. Trata-se de projeto coordenado por pesquisadores da UFG,
contando com a participação de pesquisadores da UnB, UFT e a presente autora, da UFMS.
60 | P á g i n a
Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três
Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano
(Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858).
Guavira
no10
especial de saber servindo, inclusive, de base para outros saberes (BRAGGIO, 2001-2002;
CRYSTAL, 2000; DORIAN, 1998; FISHMAN, 1991; GRENOBLE e WHALEY, 1998;
HALE, 1998, 1992a, 1992b; HINTON, 2001; KRAUSS, 1992; MITHUN, 1998; NETTLE e
ROMAINE, 2000; OLIVEIRA, 2009).
Patrimônio imaterial, as línguas estão se extinguindo de uma maneira alarmante e sem
precedentes em todo o mundo. As causas desse fenômeno são estudadas pormenorizadamente,
a partir da década de 1990, por um grupo crescente de sociolinguistas especializados em
tipologias sociolinguísticas (EDWARDS, 1992; FISHMAN, 1991; GRENOBLE e
WHALEY, 1998; HALE, 1992a; HINTON, 2001; 1998; KINCADE, 1991 apud CRYSTAL,
2000; KRAUSS, 1992; 1997 apud GRENOBLE e WHALEY, 2006; WURM, 1998 apud
BRAGGIO 2003).
Este artigo focaliza a questão da terra, dentro das perspectivas econômica e política da
tipologia proposta por Edwards (1992) e Grenoble e Whaley (1998), sendo consideradas as de
maior peso, no contexto brasileiro, para a extinção das línguas minoritárias (GARCIA, 2007).
Nesse contexto, são línguas minoritárias aquelas não oficiais, apagadas ideologicamente pelo
Estado. No Brasil, elas chegam a cerca de 190 (OLIVEIRA, 2009) e são faladas por grupos
étnicos pequenos em termos populacionais. Essas línguas podem ser também consideradas
minorizadas dado o ínfimo prestígio econômico e político de seus falantes. Tal situação
ocorre em praticamente todos os 185-200 Estados-nações reconhecidos pela ONU (NETTLE;
ROMAINE, 2000), onde vivem cerca de quinze mil povos, muitos deles em uma situação de
colonialismo interno – o Quarto mundo (ROMAINE, 1994). São línguas que estão em contato
com outras línguas (idiomas) em um mundo onde o bilinguismo é a regra, ao contrário do que
a tradição linguística preconiza (COOK, 1992; CRYSTAL, 2000; GROSJEAN, 1982;
NETTLE; ROMAINE, 2000; ROMAINE, 1995). Entretanto, nesse contexto o
monolinguismo tem sido, na maioria das vezes, a política de língua oficial.
Estima-se a existência de cerca de 6000 línguas no mundo (ROMAINE, 1995). As
línguas minoritárias (96% do total de línguas) representam a grande maioria da diversidade
linguística atual e são faladas por apenas 4% da população mundial. A situação delas é muito
delicada. Considerando o fato da (não) transmissão dessas línguas intergerações e o fato de
muitos falantes serem bilíngues24, estima-se que entre cinquenta a noventa por cento não mais
existirão até o final do presente século (CRYSTAL, 2000; FISHMAN, 2001; HALE, 1998;
KRAUSS, 1992; LEE; MCLAUGHLIN, 2001; NETTLE; ROMAINE, 2000). As outras
línguas (4%) são idiomas, línguas fortes, ou seja, são línguas oficiais e faladas por 96% da
população mundial; estas estão seguras quanto à extinção.
24
Considerando contextos bilíngues, Cummins (1981 apud MCGROARTY, 1991) propõe a diferença
entre bilinguismo aditivo e bilinguismo subtrativo. O primeiro ocorre quando a aquisição/aprendizado da
segunda língua é um fato de prestígio sócio-econômico, sendo, assim, um bilinguismo de elite. Podemos citar
como exemplo um falante de português (língua 1) aprendendo inglês (língua 2). Já no segundo tipo de
bilinguismo, uma das línguas do falante marca o seu estigma social e, conforme a política de língua oficial da
sociedade envolvente, é considerada prejudicial, feia, primitiva. Logo, objetiva-se a sua supressão (por exemplo,
uma língua indígena). É importante considerar que, da perspectiva linguística, todas as línguas são complexas,
ricas, suficientes e capazes para a expressão e que antes da língua estigmatiza-se o falante por sua condição
sócio-econômica. Daí o sociolinguista Hamel (1988) compreender o termo diglossia como integrante de um
conflito intercultural maior, em que a língua em processo de deslocamento é a língua do povo sob dominação.
61 | P á g i n a
Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três
Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano
(Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858).
Guavira
no10
As línguas não existem isoladas, mas estão em contato umas com as outras. Segundo
Braggio (2001; 2002) e Hinton (2001), o problema de deslocamento de uma língua é muito
mais grave quando decorre do contato não entre duas línguas fortes, mas entre uma língua
forte e outra língua fraca. É o caso da língua terena em contato com a língua portuguesa. Essa
assimetria ocorre também – pelo menos no caso brasileiro – na quantidade de linguistas e de
estudos linguísticos realizados em cada uma dessas línguas.
Nettle e Romaine (2000), em um belíssimo livro intitulado Vanishing voice,
mencionam vários casos apontando para a interligação língua e ambiente físico (terra) e as
contribuições de populações minoritárias através de soluções inovadoras e únicas no
desenvolvimento sustentável da humanidade, colaborando, assim, para a resolução de
problemas, sobretudo nos âmbitos ambiental e ecológico. Assim, o conhecimento das línguas
minoritárias pode resultar em contribuições para as teorias científicas, graças à descoberta de
perspectivas potencialmente únicas sobre vários problemas, como por exemplo, o manuseio
da terra, a tecnologia marinha, o cultivo de plantas e o manuseio animal, entre outros.
Uma grande quantidade de línguas tem desaparecido sem qualquer estudo científico.
Hinton (2001) sumariza-os em sentido amplo e em sentido restrito (específico à Linguística).
Neste âmbito, os estudos de línguas indígenas possibilitaram o avançar de áreas como a
Linguística Histórica, os universais linguísticos e a tipologia das línguas, a Sociolinguística e
a Linguística Cognitiva. Afirma Hale (1998) que dados de uma ‘nova’ língua promoveram
mudanças no desenvolvimento de teorias e em alguns casos a diversidade linguística
favoreceu uma nova agenda de estudos. O desaparecimento de cada língua, além de deixar
uma lacuna no grande quebra-cabeça linguístico da humanidade, significa, em sentido mais
amplo, a “morte” de um povo (ALBÓ, 1988; 1999 apud BRAGGIO, 2001-2002).
A questão da relevância da terra para a sobrevivência cultural e linguística de um
povo, bem como a força econômica e a política de língua oficial, serão abordados no próximo
item. Em seguida, será apresentado o caso da desterritorialização terena e suas consequências
na política de língua em Ipegue.
Terra indígena: suporte para a continuidade das línguas minoritárias e objeto
dos interesses econômicos e políticos
1.
A terra e o fator tecnológico
Para o conhecimento e o estudo científico das línguas é fundamental garantir a
existência e vitalidade física e cultural de suas comunidades de fala, o que se dá mediante a
oferta de condições dentre as quais a terra figura como umas das mais importantes.
Os fatores político e econômico que incluem a questão da terra contam com a mídia
como forte aliado. A partir da proposta de Grenoble e Whaley (1998), Garcia (2007) analisa
essa questão como fator tecnológico. Neste artigo, pretende-se considerar a tríade economia,
política e tecnologia igualando o peso desta última às demais. A mídia eletrônica e escrita
exerce grande influência no deslocamento das línguas minoritárias, pois, mantidas pelos
62 | P á g i n a
Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três
Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano
(Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858).
Guavira
no10
poderosos interesses econômicos e políticos e a serviço deles, divulgam e inculcam na
maioria das pessoas, na sociedade majoritária, ideologias que pouco valorizam as populações
indígenas, suas línguas e sobretudo a necessidade fundamental da terra para sua sobrevivência
física e culturalmente distinta. É o que Dorian (1998) denomina “ideologia do desdém”. Esta
concepção ideológica vincula o pouco desenvolvimento tecnológico de um grupo ao pouco
desenvolvimento linguístico e, consequentemente, os membros do grupo majoritário rotulam
essas línguas como primitivas e não desenvolvidas, chegando, segundo a autora, a colocar em
dúvida a humanidade dos povos falantes.
Essa concepção, responsável pela maioria dos conflitos entre Estados-nações e povos
minoritários em todo o mundo (NETTLE; ROMAINE, 2000), decorre da visão dos Estados
ocidentais oficialmente monolíngues após a Revolução Francesa. Tais estados preconizam
como lema “um estado uma língua” (MAYBURY LEWIS, 1983; OLIVEIRA, 2009) e,
portanto, em razão de uma política de língua contrária ao multilinguismo, as demais línguas
devem ser exterminadas ou “apagadas” oficialmente. Dessa idéia decorre a política de língua
oficial, assumida implícita e explicitamente pelo Brasil, no que diz respeito aos diferentes
grupos minoritários que falam diferentes línguas: tornar suas línguas invisíveis, visando a sua
integração à cultura majoritária. Assim, a língua portuguesa é a única língua oficial (idioma)
no Brasil e, além das 190 línguas indígenas autóctones, também são invisíveis as 20 línguas
alóctones de comunidades imigrantes (OLIVEIRA, 2009). Esse contexto interfere nas atitudes
linguísticas tanto do grupo majoritário como do grupo minoritário em relação à língua
minoritária (ROMAINE, 1994).
Outra ideologia inculcada na população brasileira é a de que o índio é detentor de uma
enorme extensão de terra – é o caso, por exemplo, das reportagens “A dupla conquista” e “As
falsas vítimas” na Revista Veja, em 2006, dos jornalistas Guandalini e Silva, e Edward e
Coutinho, respectivamente. Contudo, não se divulgam os verdadeiros dados da realidade
agrária brasileira, como se lê em estudos sérios, dentre os quais a obra organizada por
Almeida (2008) “A questão agrária em Mato Grosso do Sul – uma visão multidisciplinar”.
Segundo Oliveira (2008), um quinto do Brasil são terras devolutas nas mãos das elites que
cercaram muito mais do que lhes pertence. O estado brasileiro que figura em primeiro lugar
no que tange à concentração de terras (latifúndios) é o Mato Grosso do Sul, com uma área de
50,35% de propriedades com mais de dois mil (2.000) hectares, segundo reportagem da
Revista Caros Amigos, de setembro de 2003 (apud AVELINO JR, 2008). Por outro lado, é
das pequenas propriedades e não das terras dos grandes latifúndios que saem mais de 70% da
produção de alimentos básicos e cerca de 80% dos empregos do campo.
O discurso político em torno do progresso e da geração de empregos com a
implantação do agronegócio deixa de considerar o fato de que esses novos postos de trabalho
perpetuam a miséria da gente subempregada. Dentro das diretrizes da política monetária
internacional, uma grande parcela da população fica cada vez mais empobrecida, formando-se
grandes massas de excluídos, marginalizados, quase não cidadãos, em razão da violação dos
seus direitos humanos. É o caso dos empregos no campo gerado pelas usinas sucroalcoleiras
do Mato Grosso do Sul, empregando indígenas e não indígenas. Podem ser consideradas,
nesses casos, pelo menos duas concepções de terra. De um lado a terra como propriedade
privada, particular, o agronegócio, o lucro imediato, a monocultura, a produção mecanizada,
sua exaustão e desertificação, a adubação química, a impermeabilização do solo – em terras
onde se pratica a pecuária (cf. RAMOS, 1995), enfim a destruição real e descompromissada
63 | P á g i n a
Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três
Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano
(Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858).
Guavira
no10
do meio ambiente, contudo apagada pelo difundido progresso. Por outro lado, comum a outras
diferentes óticas culturais tradicionais (BROWN, 1970; MONTOYA, 1998; OBERG, 1949), a
terra é um bem coletivo, histórico, e deve ser preservada para as futuras gerações. Seu
manuseio ocorre na forma de rodízio entre vários cultivos simultâneos. Ela é fundamental na
estruturação das várias esferas da vida: a material, a física e também a cosmológica, a
filosófica, a mitológica, a social, a cultural e a espiritual, sendo elas não
compartimentalizadas, mas interligadas (BRAGGIO, 2005; GOMEZ-IMBERT, 1997).
São inúmeros os casos em que a primeira concepção apresentada desloca e exclui a
segunda concepção de terra (BRAGGIO, 2005; BROWN, 1970; CRYSTAL, 2000; GARCIA,
2007; MONTOYA, 1998; NETTLE; ROMAINE, 2000). Segundo Crystal (2000), muitos
ambientes ficaram degradados, tornando-se áreas áridas ou semi-áridas pelo exaustivo, total,
ininterrupto e excessivo cultivo voraz, buscando o lucro. Tal procedimento reduziu as terras
disponíveis para a produção de colheitas de comida para o povo local pelo desmatamento e
pelas péssimas práticas de irrigação, implicando também em mudanças de ciclos pluviais e de
modelos climáticos. A terra que perdeu sua fertilidade é incapaz de suportar a sua população,
um fenômeno visto repentinamente na África durante as décadas de 1970 e de 1980, quando
ocorreu a desertificação por todo o Sahel.
Logo, se por um lado quem se beneficia com a liquidação dos recursos da preservação são
os centros metropolitanos, por outro, quem paga o custo da insustentabilidade do planeta não são
estes, mas sim a periferia pobre, conforme afirmam Nettle e Romaine (2000). E, nos países pobres,
quem mais sofre são as populações marginalizadas, como as indígenas, que perdem o seu solo,
ficando impedidas do uso da floresta para a coleta, dos rios para a pesca etc. E são justamente as
comunidades locais que detêm o controle dos recursos ecológicos ambientais a fim de conservá-los
melhor. No entanto, o que se considera atualmente como mundo desenvolvido está a favor das elites
urbanas, da liquidação dos recursos naturais e da homogeneidade (NETTLE; ROMAINE, 2000).
2. A luta pela terra: língua e etnicidade
O argumento da morte da língua vinculado à morte étnica é muito usado externamente
para justificar as usurpações feitas contra esses povos, especialmente por quem tem interesse
em seus bens, como as terras indígenas (DORIAN, 1998; ROMAINE, 1995). Em trabalho de
campo realizado por esta pesquisadora em 2004, na comunidade Terena de Ipegue, vários
foram os relatos de situações vividas pelos jovens quando “solicitados”, fora de sua
comunidade, a falar a língua indígena a fim de provar serem índios. Percebe-se que tal
exigência não reflete uma atitude linguística favorável à língua indígena e ao bilinguismo por
parte da sociedade não índia.
No Mato Grosso do Sul, assim como em todo Brasil, há uma grande pressão externa às
populações indígenas do Estado no intuito de considerar extintas as línguas indígenas entre os
jovens indígenas que trabalham fora de suas reservas. Muitas pessoas de Ipegue mencionaram
solicitações extra-oficiais, na forma de cobranças, de mostras de língua para “provarem” ser
“indígenas”, quando buscaram obter algum auxílio ou benefício oficial. A intenção subjacente
a essas cobranças, ocorridas inclusive veladamente, ou informalmente na esfera políticoeconômica, caminha para o desejo de afirmar a inexistência de índios considerados “puros”
que, na visão dos grupos interessados, ainda sustentam a existência das reservas indígenas.
64 | P á g i n a
Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três
Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano
(Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858).
Guavira
no10
Grande é o interesse sobre as terras indígenas no estado sul-mato-grossense. A
cobrança e a pressão sentidas pelo índio são evidentes nas falas a seguir, fragmentos de
respostas justificando a opção “mais terena” para responder a pergunta “Qual língua você
prefere que seja usada para ensinar seu filho na escola? Por quê?”, em Garcia (2007, p. 171):
Para não largar a língua e perder nosso lugar pois está perigoso. Pois e se perder a língua? Aí é duro. Aí
vai perder o direito da terra e ficar só com o quintal. Getúlio Vargas que deu a terra já morreu. Aí
querem acabar com índio. Tem muitos casamentos mistos com civilizado...
Para que possam aprender, porque mais tarde vão precisar por causa da terra. Eu acho bonito aprender
as duas línguas, é necessário.
Tem que falar mais em Terena, para a Terra não ser tomada.
Nota-se que alguns entrevistados captaram a intenção de eliminar os Terena,
homogeneizando-os, integrando seus descendentes às bases da sociedade majoritária e
tomando-lhes a terra. Percebe-se, ainda, que a ideologia e a política do não índio
fundamentam-se, a partir da mudança da língua indígena para a língua majoritária, em
argumentar que o índio deixou de ser índio, negando-lhe a legitimidade da reivindicação por
um status especial e por direitos à terra (ROMAINE, 1994).
Entretanto, autores como Cunha (1983), em um parecer pela Associação Brasileira de
Antropologia, Oberg (1949) e Romaine (1995) consideram que a etnicidade de um grupo
indígena é constituída por vários elementos, não sendo a língua o único, mas um deles.
Segundo esses autores, não há somente um critério para definir a etnicidade de diferentes e
singulares povos. Em alguns casos (e épocas dentro deles), a língua pode ser ou não o
componente de mais relevância na análise e consideração da etnicidade. Nesse momento
histórico em Ipegue, a língua não é o fator principal, ou determinante, que mantém a
comunidade Terena unida (GARCIA, 2007).
A desterritorialização Terena e suas consequências na política de língua da
comunidade Ipegue
Os Terena são uma das etnias indígenas do Mato Grosso do Sul, juntamente com
Chamacoco, Guarani-Kaiowá, Kadiwéu, Kamba, Kinikinau, Ofaié e Guató (ISA, 2009b).
Atualmente os Terena são a quinta maior população indígena, com cerca de 16 mil
indivíduos, em 2001 (ISA, 2009a), número muito pequeno considerando-se o número de não
índios falantes da língua portuguesa no Brasil e no mundo. Vivem em um território
descontínuo, fragmentado em pequenas “ilhas” cercadas por fazendas e espalhadas por sete
municípios sul-matogrossenses: Miranda, Aquidauana, Anastácio, Dois Irmãos do Buriti,
Sidrolândia, Nioaque e Rochedo. De acordo com o ISA 25(2009a), também há famílias terena
vivendo em Porto Murtinho (na Terra Indígena Kadiweu), em Dourados (Terra Indígena
Guarani) e no estado de São Paulo (Terra Indígena Araribá). Residem, ainda, em aldeias
urbanas junto com indígenas de outras etnias como Marçal de Sousa e Xerogami, em Campo
Grande, e, também, dispersos em bairros de cidades como Campo Grande, Aquidauana e
outras.
25
Instituto socioambiental.
65 | P á g i n a
Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três
Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano
(Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858).
Guavira
no10
Outro local de moradia dos indígenas sul matogrossenses, entre eles os Terena, são os
barracões das empresas onde trabalham. Nos últimos anos, um número significativamente
grande, passa a maior parte do ano longe da família, ausente de sua comunidade, cortando
cana-de-açúcar nas empresas sucroalcoleiras. São sucessivas temporadas de 70 dias
ininterruptos, passando no máximo uma semana na comunidade. A população masculina
jovem e adulta se submete a elas, na busca da sobrevivência física-alimentar de suas famílias.
Essa realidade ocorre com praticamente toda a população indígena do estado e foi objeto de
estudo desta pesquisadora ao analisar o deslocamento da língua na comunidade indígena de
Ipegue (GARCIA, 2007).
De acordo com os relatos dos índios (do Posto Indígena Taunay/Ipegue nos trabalhos
de campo realizados em 2004) e de outros pesquisadores, utilizou-se dos braços dos
indígenas, na construção do estado do Mato Grosso do Sul, para os trabalhos mais pesados de
infra-estrutura (linha telegráfica, estrada de ferro noroeste do Brasil). Eles atuaram, ainda, nas
empresas agropastoris (as fazendas) como peões, e, também, nos inúmeros ciclos de cultivos
no estado, como a erva-mate, o algodão, o café e, mais recentemente, a cana-de-açúcar26 e o
eucalipto. Os indígenas são as bases, o alicerce invisível na construção deste estado
(CARVALHO, 1992; MOURA, 2001). Além dos tipos de cultivos, o que se intensificou com
o passar das décadas foi a frequência de saída dos índios para o labor externo. Nas empresas
de outrora, trabalhavam duas ou três vezes ao ano, havendo tempo para a vida na comunidade.
Contudo, ressalta-se que atualmente os contratos são simultâneos e os jovens e adultos do
sexo masculino passam a maior parte do tempo ausentes de suas comunidades e terras.
Os fatores do macrocontexto – local, regional, nacional, internacional (GRENOBLE e
WHALEY, 1998) – e do microcontexto no deslocamento da língua indígena Terena da
comunidade de Ipegue foram estudados por Garcia (2007). Nesta comunidade, encontrou-se a
língua Terena em processo avançado de deslocamento pela língua portuguesa. O uso externo
da mão-de-obra indígena promove, com intensidade crescente, o esfacelamento das
comunidades e o deslocamento da língua indígena.
O início da vida econômica e laboral externa dos Terena ocorreu quando eles foram
obrigados pelo antigo SPI (Serviço de Proteção ao Índio) a viver em pequenas glebas de terra
(as reservas indígenas) a fim de desocupar espaço para as recém-formadas empresas
agropecuárias; e, para a garantia de sua sobrevivência (através do salário), teve início a venda
externa da mão-de-obra indígena para os “donos” das mesmas terras anteriormente ocupada
pelos próprios Terena, com contratos de trabalho intermediados pelos Postos Indígenas. De
agricultores, caçadores, auto-suficientes e autônomos tornaram-se trabalhadores braçais,
pobres, dependentes e tutelados (OBERG, 1949).
Embora não se conheça exatamente a localização dos Terena no período précolombiano, pelo relato de Sanchez Labrador 1910/1917 (apud OBERG, 1949), sabe-se que
em 1767 eles estavam instalados ao longo do rio Paraguai, latitudes 22° a 19° S. Pressume-se
que, em geral, habitavam essa área quando foram descobertos pelos espanhóis (OBERG,
26
O primeiro registro bibliográfico acerca de indígenas Terena trabalhando na agroindústria da cana-deaçúcar data da década de 1960 e foi encontrado pelo antropólogo Cardoso de Oliveira (1968), que relata a
existência de um grupo Terena, da comunidade Passarinho, localizada no município de Miranda, trabalhando
durante todo o ano nos canaviais da Usina Santo Antônio.
66 | P á g i n a
Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três
Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano
(Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858).
Guavira
no10
1949). A desterritorialização das sociedades indígenas desde o território paraguaio até o
território brasileiro estava profundamente ligada à questão econômica, gerando conflitos entre
os novos ocupantes e os indígenas (SCHUCH, 1995 apud VARGAS, 2003). Na historiografia
desse período, encontram-se mais informações, pelo grupo genérico: Guaná. No século XVIII
(ano de 1767), os Guaná estavam subdivididos em Tereno, Kinikinao, Layaná, Niguecactemic
e Echoaladi (MÉTRAUX, 1946 apud Oberg, 1949). No final do século XVIII, moveram-se
para o norte e instalaram-se próximo à atual Corumbá. Castelnau (1850-1859 apud OBERG,
1949) visitou um aldeamento próximo a Miranda e outro próximo a Corumbá e afirmou que
os Terena chegados do Chaco estavam localizados em quatro vilas com uma população de
cerca de três mil pessoas. As quatro tradicionais comunidades Terena eram Naxedaxe, Ipegue,
Cachoeirinha e Grande, além de outros pequenos agrupamentos.
Habitantes do chaco paraguaio (século XVI), os Terena, índios agricultores, explicam
sua origem e existência através de um mito telúrico (ALTENFELDER-SILVA, [1946] 1976;
OBERG, 1949). Viviam em grandes áreas e eram agricultores. Cada família extensa tinha
uma maloca na praça residencial e cultivava em sistema de rodízio os campos arredores,
inclusive nas vazantes dos rios onde construíam abrigos provisórios em razão da distância da
praça residencial e da necessidade do cuidado das roças (ALTENFELDER-SILVA, [1946]
1976; OBERG, 1949). Eram organizados em três camadas: naati (chefes), wharerê-xané
(povo) e kauti (estrangeiros, cativos de guerra) constituídas em duas metades (OLIVEIRA,
1968). Fugindo dos colonizadores da América espanhola, no século XVIII, começaram a
habitar as terras atualmente brasileiras quando atravessaram o rio Paraguai, na altura de
Corumbá (OBERG, 1949; VARGAS, 2003), seguindo sua dinâmica tradicional de vida por
algum tempo. Contudo, a faixa de terra que ocuparam logo foi palco da Guerra do Paraguai
(1864-1870).
Esse novo evento marcou profundamente a vida dos Terena. Na guerra em que o
Brasil lutou contra o Paraguai em disputa territorial, os Terena lutaram bravamente pelo lado
do exército brasileiro, acreditando com isso garantir sua permanência futura naquelas terras.
Sua perspicácia muito contribuiu com o exército. Segundo relato de trabalho de campo
realizado em julho-agosto de 2004 (GARCIA, 2007), os índios ficaram nas montanhas e
saíam dos seus esconderijos durante a noite, para o ataque, deslocando-se em pequenas
canoas, andando de costas ao descer das mesmas, confundindo, assim, os paraguaios. Com
suas roças emergenciais, acudiram generosamente a pequena população civil existente nos
arredores de fortes (como o do município de Miranda) e que procurou abrigo nas serras,
segundo a pesquisa documental de Vargas (2003). Várias perdas ocorreram e os índios
atualmente mais idosos relatam que “essa terra custou o sangue de nossos avós” (GARCIA,
2007, p. 87).
Em reconhecimento pela ajuda, receberam do exército, além de uniformes e patentes,
documentos escritos nos quais se garantia a posse de, pelo menos, parte de suas terras.
Contudo, pela fragilidade desses registros (em papel) e pelo antigo costume Terena de
queimar todos os pertences e, às vezes, até a casa, ou mudar a porta de entrada, por ocasião da
morte (OBERG, 1949), a evidência de propriedade da terra tornou-se mais incerta.
Finda a Guerra, o governo brasileiro promoveu uma rápida ocupação da região. Os
indígenas foram impedidos de retornar para suas terras, onde estavam suas casas, roças,
cemitérios. Viveram os tempos da dispersão e, para sua sobrevivência física, tiveram que se
67 | P á g i n a
Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três
Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano
(Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858).
Guavira
no10
render ao trabalho nas propriedades dos novos senhores, migrantes aventureiros vindos de
outras regiões do Brasil, ganhando as terras e, assim, tornando-se fazendeiros. Isso porque as
terras antes ocupadas pelos indígenas foram grafadas nos mapas oficiais como “espaços em
branco”, ou seja, terras devolutas que foram distribuídas para não índios pelos órgãos
governamentais (MOURA, 2001; VARGAS, 2003). Dispersos, desabrigados, famintos,
renderam-se a trabalhos realizados em condições desumanas, ocorridos nas fazendas onde
foram profundamente explorados em razão do regime de cativeiro (SIMONIAN, 1988, p. 11
apud MOURA, 2001, p. 28). Contudo, o índio, na visão sociopolítica brasileira, ainda na
atualidade é tratado como um latifundiário e como um empecilho ao “progresso” econômico.
Contudo, diante dos conflitos e das inúmeras tentativas de reaverem suas terras, os
indígenas formaram comissões para reivindicar, aos representantes do estado no local, o
retorno à terra que anteriormente ocuparam, como atesta o seguinte fragmento de documento:
[...] Acerca do índio da tribu Terena, de nome José Caetano [...] é que o dito índio com mais
alguns da sua tribo, em número de 17, procurou-me para representar que era filho do
fallecido Pedro Tavares, capitão da aldêa do Ipégue, no districto de Miranda, e seo
substituto, que por ocasião da invasão paraguaya não só a sua tribu, como todas outras e mais
habitantes do districto abandonarão os seos lares e retirarão-se para os montes e bosques,
onde permanererão por 6 annos, que ultimamente voltando os moradores a reocuparem os
seos domcílios, elles Terenas encontrarão a sua aldêa do Ipégue ocupada por Simplicio
Tavares, por Antonio Maria Piche, o qual lhes obsta a repovoarem e labrarem suas antigas
terras e de seos antepassados; pelo que vinhão pedir providencias para não serem esbulhados
de suas propriedades das quais não podião desprender-se um outro índio da mesma tribu de
nome Victorino, que farda-se como Alferes, e pertence a aldêa do Nachedache, distante da
Ipegue uma legoa, fez-me igual reclamação.” (Doc. 1871, p. 79v 80 – Livro nº 191.18601873. APMT apud Vargas, 2003, p. 89, grifo nosso).
Somente em 1910 criou-se o SPI, cuja intenção era gerir a política indigenista do Estado
vigente e fazer com que os indígenas fossem pequenos produtores rurais capazes de se autosustentar. A visão político-econômica da época era a de assimilar os indígenas na economia
local (HECK, 1996; OBERG, 1949), pois eles eram vistos como empecilhos ao progresso
econômico, diante de um Estado que se baseava nos ideais positivistas. Após muito sangue,
reivindicações, entraves e conflitos entre indígenas e os fazendeiros, reservaram-se para as
populações indígenas Terena, inclusive de Ipegue, pequenas áreas de terra (LATA, 1902D,
doc. Avulso, APMT apud VARGAS, 2003). Os índios eram vistos como obstáculos ao
progresso.
Com a extinção do SPI, criou-se a Fundação Nacional do Índio (Funai), em 1967, em
pleno regime militar. Certidões negativas (da não existência de índios) sobre terras
tradicionalmente ocupadas por índios foram concedidas a empresas agropecuárias cinco anos
após a criação desta fundação, como afirmou o sertanista Cotrin Neto (1972 apud MOURA,
2001). Nesses tempos, a intenção era “transformar o Brasil em uma potência mundial”, de
modo que só se aceitavam os indígenas “assimilados” (MOURA, 2001, p. 53), pois
continuaram sendo vistos como barreiras ao desenvolvimento econômico e tecnológico,
mantendo-se, portanto, na Funai, a mesma mentalidade empresarial da política indigenista do
SPI (HECK, 1996).
O Grupo de Estudos Indígenas Kurumim (1984) menciona um projeto elaborado pela
Funai, em 1977, especificamente para o Posto Indígena Taunay/Ipegue. No projeto, nota-se a
68 | P á g i n a
Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três
Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano
(Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858).
Guavira
no10
prática de agenciar mão-de-obra indígena para o trabalho externo pelos Postos Indígenas da
Funai: “segundo relatório da FUNAI de 1977 (Projetos Taunay/Ipegue), ‘metade da força de
trabalho das duas áreas, através de contratos patrocinados pela FUNAI, está empregada em
fazendas circunvizinhas, mediante diária mínima [...]’” (G.E.I. KURUMIM, 1984, p. 20, grifo
nosso). Observa-se que, no projeto econômico brasileiro, indígenas como os Terena só eram
bem-vindos se estivessem na base da pirâmide socioeconômica, fora de suas terras, integrados
e fornecendo seus braços para enriquecer senhores não índios.
Enfim, a aldeia passou a ser a fazenda do posto, uma reserva de mão-de-obra que foi
sucessivamente muito bem usada e abusada, por seu preço tão reduzido. Não ao acaso, as
atuais empresas sucroalcoleiras instalaram-se no estado onde há a segunda maior população
indígena do Brasil, trabalhadores que, em sua maioria, não sabem reivindicar seus mínimos
direitos trabalhistas (GEI KURUMIM, 1984). Com a dependência do salário externo, destruiuse a antiga economia que girava em torno da família extensa e passou-se a focar a família
nuclear (OBERG, 1949). A proximidade com a ferrovia e a estação Taunay promoveu
impactos nas suas crenças e costumes (OBERG, 1949; OLIVEIRA, 1957), pois ali se
instalaram comerciantes que os levaram a ter necessidade de consumir produtos como sal,
arroz, erva-mate, ferramentas, bebidas alcoólicas etc. Assim, a fim de adquirirem esses
produtos, os indígenas passaram a depender do dinheiro vindo do trabalho externo.
O governo militar do general Geisel ainda instalou energia elétrica na reserva indígena
Taunay/Ipegue, visando a fazer da população Terena um modelo do que se desejava fazer em
termos de integração dos demais indígenas à sociedade nacional. Assim, cedo as famílias
passaram a ter contas a pagar. Nas sedes dos postos, havia professores de ofícios manuais
como ferreiro, seladeiro, sapateiro etc. Também cedo houve a presença de missionários
protestantes e católicos com sua oferta educacional dentro das diretrizes da política oficial de
integração cultural e linguística.
Na pequena ilha de terra reservada aos Terena do município de Aquidauana –
insuficiente para a continuidade da dinâmica cultural em que viviam anteriormente – os índios
sofrem pela escassez de água até mesmo para as necessidades mais elementares, como esta
pesquisadora pôde presenciar no ano de 2007, conforme representação protocolada junto à
Procuradoria da República no Estado de Mato Grosso do Sul em 19 de novembro de 2007.
Contudo, no município há belos rios que atraem até turistas, inclusive para a pesca esportiva
no pantanal. Segundo dados de Oliveira (2008), atualmente há no município de Aquidauana
46 grandes imóveis (latifúndios). Eles ocupam uma área de duzentos e cinquenta e oito mil,
cento e nove (258.109,1) hectares improdutivos (OLIVEIRA. 2008).
Todo esse processo de desterritorialização culminou na realidade recente. A terra
indígena Taunay/Ipegue, nos tempos dos estudos de Oliveira (1968, p. 43-44), tinham sete mil
e duzentos (7.200) hectares limitando-se “com terras do Coronel Estêvão Alves Corrêa, ao
Norte e ao Nascente, e de Francisco Ferreira Mendes, ao Sul e ao Poente, e a Leste com terras
que foram de João Batista da Fonseca”. Em 1995, com uma população de 3.872 pessoas,
essas terras tinham oficialmente exatos 6.548,82 hectares (FUNAI, Administração Regional
de Campo Grande, MS, 1995 apud Carvalho, 1996), o que representa uma ocupação de 1,69
hectares por pessoa na reserva Taunay/Ipegue 1995. Apenas três décadas depois diminuiu
ainda mais. Segundo os relatos dos índios, tal fato ocorre nos limites da reserva com as
fazendas onde os fazendeiros avançam com suas cercas, alguns deles chegando a eletrificá-las
69 | P á g i n a
Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três
Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano
(Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858).
Guavira
no10
para impedir qualquer acesso dos índios a aguadas ou a coletas de frutas nativas como a
guavira.
As terras indígenas, restritas em sua extensão, limitam-se basicamente ao local de
moradia, ficando fora delas o acesso aos rios, assim como locais para rodízios de roças,
imprescindíveis para os Terena retomarem a dinâmica ecológica, cultural e sua forma de vida
auto-suficiente e autônoma anterior (OBERG, 1949). Essa dinâmica foi esfacelada com as
inúmeras medidas tomadas. Eram gerenciados até no ir e vir pelos “chefes de posto”, que
escolhiam para ser “capitães” aqueles com maior destaque no uso da língua portuguesa,
dentre a camada popular (wharerê-xané). Eram, assim, escolhidos pela autoridade externa (o
chefe do Posto Indígena) e cada um deles tornava-se o porta-voz de seu grupo.
Com a alta densidade demográfica de Ipegue, muitas famílias moradoras de áreas mais
centrais têm para cultivar somente a área do pequeno quintal, que vai diminuindo à medida
que este vai sendo ocupado por novas casas da descendência indígena. Mesmo com uma terra
reduzidíssima, algumas famílias (cerca de dez por cento do total), coincidentemente aquelas
em que se percebe uma política de língua familiar voltada para a manutenção da língua
indígena, lutam por cultivá-la a fim de não se separarem pelo trabalho externo. Contudo, a
dificuldade é ainda maior do que a do pequeno produtor não índio. A terra, sendo pública, de
usufruto do indígena, não pode ser dada como garantia em um financiamento agrícola. Alguns
tentam plantar mandioca para vender o excedente externamente. Todavia, o reduzido valor
oferecido pela caixa de mandioca colhida (perecível) é insuficiente para o indígena arcar com
todos os custos das diferentes fases do cultivo, conforme Garcia (2007) observou em 2004.
Outras famílias – cerca de quarenta por cento – complementam a dieta com alimentos
cultivados nos quintais (excetuam-se as árvores frutíferas comuns em todos os quintais).
Entre os agricultores indígenas, o mais praticado é a diversidade de culturas: abóbora,
milho, melancia, mandioca, milho, batata, banana, feijão-de-corda, com o uso mínimo de
maquinário, e nenhum uso de produtos químicos para o controle de pragas ou aumento
artificial da fertilidade do solo. Porém, os Terena queixam-se dos ataques de animais
silvestres que, diante da escassez de alimentos, atacam as roças. Ipegue está na divisa da
reserva e parte das terras vizinhas são ocupadas por pastagens e bovinos que, além de
desalojarem também os animais silvestres e a vegetação nativa, prejudicam o ciclo das
chuvas.
Conforme constatado por Garcia (2007), em Ipegue, no ano de 2004, praticamente
toda a população masculina indígena economicamente ativa servilmente saía para o trabalho
externo e para realizar atividades braçais, sobretudo no corte de cana-de-açúcar nas destilarias
sucroalcooleiras, fixando-se permanentemente na reserva somente após sérios prejuízos na
saúde, a diminuição do vigor físico ou mesmo a chegada da idade para a aposentadoria. Isso
acarreta grandes prejuízos para a vida das comunidades, inclusive na transmissão da cultura, e
influi na política de língua das famílias e da comunidade, pois é crescente a proporção de
indígenas em tal tipo de trabalho. Entre os jovens, ocorre também um maior distanciamento
do que é peculiar ao seu povo, em função da não vivência cultural na comunidade.
De acordo com um jovem Terena entrevistado, “[s]air para trabalhar fora deixa a gente
distante da cultura. A gente é obrigado a sair por dinheiro e deixar o povo e a cultura pra trás.
Em Ipegue, se vai tentar viver da terra, na hora de vender a mandioca, pagam pela ‘caixona’
70 | P á g i n a
Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três
Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano
(Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858).
Guavira
no10
de mandioca só três reais” (GARCIA, 2007, p. 102). Esse entrevistado conclui que é obrigado
a sair para trabalhar porque não tem escolha. Outros também expressaram a vontade de parar
de ir para a destilaria, comentando que prefeririam ficar na comunidade se tivessem trabalho
(entende-se remunerado ou passível de se obter recursos financeiros para a subsistência). O
trabalho inexistente a que se referem passa pela questão da falta de terra para um labor
coletivo, diversificado, peculiar ao povo e à cultura Terena.
No que diz respeito às línguas em si, como já explicado anteriormente, as línguas indígenas
são muito sensíveis ao contato com outra língua e às mudanças, dentre elas as territoriais,
acompanhadas por suas consequências. Contudo, ainda são poucos os estudos dessa natureza na
língua Terena e na maioria das línguas indígenas brasileiras. Algumas línguas já contam com
equipes de linguistas. Um exemplo é , estudada por pesquisadores do projeto LIBA. Dela já
sea língua Xerente-Akwe conhecem vários fatos da gramática e léxico, inclusive os que
mudaram nas gerações mais jovens em razão do contato e também de interferências
ambientais que afetaram suas terras (BRAGGIO, 2005).
Quanto à língua Terena, no artigo “Tendências de ordem lexical da aculturação
linguística em Terêna”, Kietzman (1958) relaciona itens lexicais que caíram em desuso ou até
se perderam em razão de as novas gerações não mais experimentarem os fatos culturais que os
sustentavam bem como por não mais terem acesso a ambientes físicos em que os mesmos
existiam e aconteciam. É o caso, por exemplo, das palavras yu’ku, oroi’ti e nekokoti, que
significam, respectivamente: uma fogueira para se cozinhar perto ou dentro de uma casa; uma
fogueira ardendo num campo, mas visível para o falante; uma fogueira distante, fora da vista,
mas perceptível pelo seu brilho, como acontece à noite. Conforme esse autor, os dois últimos
termos caíram em desuso, ficando apenas o primeiro, com o sentido geral de fogueira.
Entre os Terena, de acordo com os registros de outros pesquisadores, a visão
cosmológica identificava uma ema (kipaé) nos céus. Uma de suas danças se chama Kipaé
(dança da ema), que ocorria na época em que as plêiades atingiam seu ponto mais alto no céu
e atualmente acontece em forma de apresentação no dia do índio. O costume era de se
confeccionar as vestimentas com as penas desse animal. Contudo, isso já não é possível uma
vez que esses animais já não estão disponíveis e é comum vê-los com saias feitas de vegetais.
Inúmeros outros exemplos poderiam ser citados a respeito de mudanças materiais entre os
Terena, tais como o telhado de capim, que passa a ser feito de barro ou amianto, e a flauta,
anteriormente de madeira e agora de plástico, etc. Junto com a terra, o lugar geográfico e
espacial ocupado por um povo, situa-se uma série de referências sobre sua língua, sua cultura,
sua visão de mundo. Logo, qualquer alteração na terra afeta profundamente a língua, que,
como vemos, encontra-se ameaçada de extinção por ser muito sensível a modificações
(BRAGGIO, 2005). Assim, a conservação terra é fator preponderante para a manutenção da
língua.
Considerando o conceito de bilinguismo de Grosjean (1994), em certas esferas do
conhecimento o falante prefere o uso de uma língua, em outras esferas uma outra língua. Por
exemplo, um indígena pode falar sobre educação escolar ou comércio na língua portuguesa,
mas ao falar sobre aspectos mágico-religiosos, utiliza-se da língua em que foram adquiridos e
praticam esses conhecimentos. O mesmo ocorre com relação a sentimentos (xingamentos etc)
(GROSJEAN, 1982; ROMAINE, 1995).
71 | P á g i n a
Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três
Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano
(Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858).
Guavira
no10
A preservação das línguas minoritárias é um direito humano, acima de tudo. Como
promulga a Declaración Universal de los Derechos Lingüísticos (1996, p. 14), o território de
um povo não é apenas seu espaço geográfico, mas é também um espaço social e funcional
indispensável ao pleno desenvolvimento da língua. Para Hinton (2001), a morte de uma
língua é resultado da opressão e supressão do direito dos povos indígenas, que abandonam
suas terras e seu modo de vida tradicional coagidos pelas forças econômicas nacionais e
mundiais. Assim, a manutenção da terra é parte fundamental na revitalização das línguas
minoritárias.
Conclusão
As línguas ameaçadas são espécies muito sensíveis a mudanças. Fatos relativos ao
lugar de existência de seus falantes no mundo e às suas terras exercem impacto em seus
sistemas econômico, social, cosmológico etc., promovendo mudanças na política de língua
das comunidades e deixando suas marcas na estrutura da língua. Logo, à medida que as terras
se encolhem, os membros se atrofiam; as mutilações territoriais por que passam os povos
minoritários são também mutilações culturais e mutilações linguísticas em um corpo que fica
cada vez mais moribundo. Assim, um povo indígena sem terra vive um etnocídio e é
comparado também a um cardume sem rio.
Para a sobrevivência das línguas minoritárias, é fundamental atentar-se à questão
agrária. Pela perspectiva ecológica, o relacionamento (sentimentos, pensamentos) dos povos
com o seu ambiente, enfim, o bem-estar físico de uma comunidade, é a principal prioridade.
Há importantes relações ético-ecológicas entre a preservação da diversidade de flora e fauna e
a manutenção da diversidade linguística e etnocultural. E como fica isso em reservas
indígenas como Taunay/Ipegue, reserva de mão-de-obra barata, minúscula e de crescente
densidade demográfica, onde é impossível o auto-sustento e a saída é o trabalho assalariado
externo? Haverá interesse de possibilitar a sua preservação? Haverá interesse em ampliá-la,
uma vez que as terras indígenas são motivo da ambição e cobiça daqueles que visam a
ampliação das fronteiras econômicas e o lucro individual e imediato? Enfim, o estudo das
línguas indígenas e o impacto exercido nas mesmas em decorrência das mudanças agrárias,
ambientais, é um tema incipiente, mas de extrema relevância e merecedor de um volume
maior de reflexões e considerações, inclusive com estudos verticalizados e com a análise
desse fenômeno nas estruturas linguísticas.
Referências
ALMEIDA, R. A. (org). A questão agrária em Mato Grosso do Sul: uma visão
multidisciplinar. Campo Grande: Ed. UFMS, 2008.
ALTHENFELDER-SILVA, F. Religião Terena. In: Schaden, E. Leituras de etnologia
brasileira. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1976. p. 268-276.
AVELINO JÚNIOR, F. J. A geografia dos conflitos pela terra em Mato Grosso do Sul. In:
Almeida, R. A. de. (Org.) A questão agrária em Mato Grosso do Sul: uma visão
multidisciplinar. Campo Grande: Ed. UFMS, 2008. p. 113-137.
72 | P á g i n a
Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três
Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano
(Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858).
Guavira
no10
BRAGGIO, S. L. B. Línguas indígenas brasileiras ameaçadas de extinção. Revista do Museu
Antropológico, Goiânia, v. 5/6, n.1, p. 9-53, 2001-2002.
______. O papel da pesquisa sociolingüística em projetos de educação, vitalização de língua e
cultura: relatos sociolingüísticos iniciais dos Avá-Canoeiro de Minaçu. Revista Liames –
Línguas indígenas americanas 3. Campinas: Unicamp, p. 113-133, 2003.
______. Um estudo tipológico: questões de vitalização. sociolingüístico dos Xerente Akwe
In: Aguiar, O. B. (Org.) Região, Nação, identidade. Goiânia: AGEPEL: Instituto CentroBrasileiro de Cultura, 2005, p. 165 – 182.
BROWN, D. Enterrem meu coração na curva do rio: índios contam o massacre de sua gente.
São Paulo: Melhoramentos, 1970.
CARVALHO, I. M. Professor indígena: um educador do índio ou um índio educador? 150 f.
Dissertação (Mestrado em Educação) – Universidade Católica Dom Bosco, Campo Grande,
1996.
CARVALHO, S. M. S. Chaco: encruzilhada de povos e “Melting pot” cultural. In: Cunha, M.
C. (Org.). História dos índios no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras/ Secretaria
Municipal de Cultura/ Fapesp, 1992. p. 457-474.
COOK, V. J. Evidence for multicompetence. Language Learning, v. 42, n. 4, p. 557-591,
Dec. 1992.
CRYSTAL, D. Language death. Cambridge: Cambridge University Press, 2000.
CUNHA, M. M. C. Parecer sobre os critérios de identidade étnica. In: CPI - Comissão PróÍndio /SP. O índio e a cidadania. São Paulo: Brasiliense, 1983. p. 96-100.
DORIAN, N. C. Western language ideologies and small-language prospects. In: Grenoble, L.
A.; Whaley, L. J. (Eds.). Endangered languages: language loss and community response.
Cambridge: Cambridge University Press, 1998. p 3-21.
EDWARDS, J. Sociopolitical aspects of language maintenance and loss: towards a typology
of minority language situations. In: Fase, W.; Jaspaert, K.; Kroon, S. (Eds.). Maintenance and
loss of minority languages. Amsterdam/Philadelphia: John Benjamins Publishing Company,
1992. p. 37-54.
EDWARD, J.; COUTINHO, L. As falsas vítimas – tratados como crianças sem malícia pela
Funai e por ONGs, os índios já tiram 24 milhões de reais de grandes empresas. Revista Veja,
29 mar. 2006.
FISHMAN, J. A. Why is it hard to save a threatened language? In: ______. (Ed.). Can
threatened languages be saved? – Reversing language shift, revisited: a 21st century
perspective. Clevedon: Multilingual Matters, 2001. p. 1-22.
73 | P á g i n a
Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três
Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano
(Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858).
Guavira
no10
GARCIA, M. S. Uma análise tipológica sociolingüística na comunidade indígena de Ipegue:
extinção e resistência. 250 f. Tese (Doutorado em Linguística) – Universidade Federal de
Goiás, Goiânia, 2007.
G.E.I. KURUMIM. Relatório da Estadia do G.E.I. Kurumim em Mato Grosso do Sul (set.
1984). Terra Indígena. Araraquara: ILCSE/UNESP, n. 28, p. 8-30, set. 1984.
GOMEZ-IMBERT. When animals become “rounded” and “feminine”. Conceptual
categories and linguistic classification in a multilingual setting. In: Gumperz, J. J.; Levinson,
S.C. (Eds.) Rethinking linguistic relativity. Cambridge, 1997.
GRENOBLE, L. A.; WHALEY, L. J. (Eds.). Endangered languages: language loss and
community response. Cambridge: Cambridge University Press, 1998.
______. Saving languages: an introduction to language revitalization. New York: Cambridge,
2006.
GROSJEAN, F. Life with two languages: an introduction to bilingualism. Harvard: Harvard
University Press, 1982.
GROSJEAN, F. Individual bilingualism. The encyclopedia of language and linguistics.
Oxford: Pergamon Press, 1994, p. 1656-1660.
GUANDALINI, G.; SILVA, C. A dupla conquista. Revista Veja, 1º fev. 2006.
HALE, K. On endangered languages and the safeguarding of diversity. Language, v. 68, n. 1,
p. 1-3, 1992a.
______. Language endangerment and the human value of linguistic diversity. Language, v.
68, n. 1, p. 35-42, 1992b.
______. On endangered languages and the importance of linguistic diversity. In: Grenoble, L
A.; Whaley, L J. (Eds.). Endangered languages: language loss and community response.
Cambridge: Cambridge University Press, 1998. p. 192-216.
HAMEL, R. E. La política del lenguaje y el conflicto interétnico: problemas de investigación
sociolingüística. In: Orlando, E. P. (Org.). Política lingüística na América Latina. Campinas:
Pontes, 1988.
HECK, E. D. Os índios e a caserna: políticas indigenistas dos governos militares 1964-1985.
151 f. Dissertação (Mestrado em Ciências Políticas) – Universidade Estadual de Campinas,
Campinas, 1996.
HINTON, L. Language revitalization: an overview. In: Hinton, L.; Hale, K. (Eds.). The green
book of language revitalization. New York: Academic Press, 2001. p. 3-18
74 | P á g i n a
Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três
Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano
(Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858).
Guavira
no10
ISA. Disponível em: <http://pib.socioambiental.org/pt/c/quadro-geral>. Acesso em: 24 fev.
2009b.
ISA. Disponível em: <http://pib.socioambiental.org/pt/povo/terena/1040> Acesso em: 24 fev.
2009a.
KIETZMAN, D. Tendências de ordem lexical da aculturação lingüística em Terêna. Revista
de Antropologia. São Paulo: FFLCH, USP, v. 6, n. 1, 1958.
KRAUSS, M. The world’s languages in crisis. Language: journal of the linguistic society of
America, v. 68, n.1, p. 4-10, Mar. 1992.
LEE, T.; MCLAUGHLIN, D. Reversing Navajo language shift, revisited. In: Fishman, J. A.
(Ed.). Can threatened languages be saved? Clevedon: Multilingual Matters, 2001. p. 23-43.
MAYBURY-LEWIS, D. Vivendo Leviatã: grupos étnicos e o Estado. In: Oliveira, R. C.
(Dir.) Anuário Antropológico 83. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro/ Edições UFC, 1983. p.
103-118.
MCGROARTY, M. Second language acquisition theory relevant to language minorities:
Cummins, Krashen, and Schumann. In: Mckay, S.L.; Wong, S. C. (Orgs.). Language
diversity: problem or resource? Boston, MA: Heinle & Heinle Publishers, 1991. p. 295-337.
MITHUN, M. The significance of diversity in language endangerment and preservation. In:
Grenoble, L. A.; Whaley, L. J. (Eds.). Endangered languages: language loss and community
response. Cambridge: Cambridge University Press, 1998. p. 163-191.
MOURA, N. S. P. UNIEDAS: o símbolo da apropriação do protestantismo norte-americano
pelos Terena (1972-1993). 256 f. Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Federal
do Mato Grosso do Sul, Campo Grande, 2001.
NETTLE, D.; ROMAINE S. Vanishing voices: the extinction of the world’s languages. New
York: Oxford, 2000.
OBERG. K. The Terêna and the Caduveo of Southern Mato Grosso, Brazil. Washington:
Smithsonian Institution – Institute of Social Anthropology, 1949. (Publication n. 9).
OLIVEIRA, A. U. Prefácio. A questão agrária em Mato Grosso do Sul: uma visão
multidisciplinar. Campo Grande: Ed. UFMS, 2008. p. 5-14.
OLIVEIRA, G. M. Línguas como patrimônio imaterial. Disponível em: <www.ipol.org.br>.
Acesso em: 17 fev. 2009.
OLIVEIRA, R. C. Preliminares de uma pesquisa sobre a assimilação dos Terena. Revista de
Antropologia, São Paulo, v. 5, n. 2, 1957.
75 | P á g i n a
Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três
Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano
(Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858).
Guavira
no10
_______. Urbanização e tribalismo: a integração dos índios Terêna numa sociedade de
classes. Rio de Janeiro: Zahar, 1968.
_______. O dualismo Terena. In: SCHADEN, E. (Org.). Leituras de etnologia brasileira.
São Paulo. Companhia Editora Nacional, 1976. p. 186-192.
RAMOS, A. R. Sociedades indígenas. São Paulo: Ática, 1995.
ROMAINE, S. Language in society: an introduction to sociolinguistics. London: Blackwell,
1994.
______. Bilingualism. Massachussets: Basil Blackwell, 1995.
VARGAS, V. L. F. A construção do território Terena (1870-1966): uma sociedade entre a
imposição e a opção. 250 f. Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Federal de
Mato Grosso do Sul, Campo Grande, 2003.
UNESCO. Declaración Universal de los derechos linguisticos. (1996) Disponível em:
<http://www.linguistic-declaration.org/versions/espanyol.pdf>. Acesso em 25 fev. 2010.
76 | P á g i n a
Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três
Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano
(Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858).
Guavira
no10
OPINIÃO DE RAÇA: AS ESTRATÉGIAS ARGUMENTATIVAS NO GÊNERO
TEXTUAL “ARTIGO DE OPINIÃO” DA REVISTA RAÇA BRASIL
Júnia Diniz Focas (UFMG)27
Mirian Lúcia Brandão Mendes (PG-UFMG)28
Raquel Lima de Abreu Aoki (PG-UFMG)29
RESUMO: Este trabalho tem por objetivo principal investigar as estratégias argumentativas presentes no gênero
textual artigo de opinião. O artigo selecionado para análise foi escrito por Maurício Pestana e publicado na seção
“Opinião de Raça” da revista Raça Brasil. Inicialmente, este trabalho cuida de apresentar alguns pressupostos
teóricos sobre argumentação, gênero textual artigo de opinião, dialogismo e polifonia, com base nos conceitos da
Análise do Discurso. Em seguida, pretende identificar as principais estratégias discursivas e argumentativas
utilizadas pelo autor na construção dos enunciados do gênero textual artigo de opinião. Estas estratégias têm a
finalidade de persuadir e convencer um público específico: o leitor/interlocutor da revista Raça Brasil.
Palavras-chave: Argumentação; Dialogismo; Polifonia
ABSTRACT: This study aims mainly to investigate the argumentative strategies present in the textual genre
opinion article. The article selected for analysis was written by Maurício Pestana and published in the section
"Opinião de Raça” of the magazine Raça Brasil. Initially, the work presents some theoretical assumptions about
argumentation, the textual genre opinion article, dialogism and polyphony, based on the concepts of the
Discourse Analysis. Following that, it makes an attempt to identify key discursive and argumentative strategies
used by the author in the construction of statements in the opinion article genre. Such strategies are intended to
persuade and convince a specific audience: the reader/interlocutor of the magazine Raça Brasil.
Key words: Argumentation; Dialogism; Polyphony
Introdução
O discurso como processo de construção social pode ser considerado uma forma de
ação no mundo. É por intermédio da linguagem que as pessoas agem no mundo, isto é, tentam
fazer circular seus discursos e torná-los legítimos perante o próprio grupo e a sociedade. As
construções discursivas provocam mudanças no imaginário social, nos processos de
construção de identidades e nas relações de poder que se estabelecem na prática. A revista
Raça Brasil, em específico, é dirigida à comunidade negra e desenvolve o seu discurso em
função do seu público-alvo. Entretanto, para analisar um discurso que se dirige explicitamente
ao negro brasileiro é preciso considerar as condições de produção desse discurso. Desse
modo, o contexto sócio-histórico é um elemento importante, pois delineia uma discursividade
acerca do negro e de suas formas de organização e resistência no Brasil.
É fundamental esclarecer também que o discurso é histórico, processual e circunscrito
a discursos já-ditos, isto é, retoma outros processos discursivos. Os textos históricos sobre o
negro no Brasil sempre nos remetem ao período da escravidão. Mas, no Brasil, o escravo não
foi um simples componente passivo que apenas observava a história. Várias foram as formas
de resistência do escravo negro ao regime escravagista. Entre essas formas de resistência,
27
Docente do Programa de Pós-graduação em Letras da Universidade Federal de Minas Gerais, no
Departamento de Letras Vernáculas, e doutora em Linguística pela Universidade Estadual de Campinas.
28
Mestranda em Estudos Linguísticos da Universidade Federal de Minas Gerais.
29
Mestranda em Estudos Linguísticos da Universidade Federal de Minas Gerais
77 | P á g i n a
Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três
Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano
(Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858).
Guavira
no10
merece destaque especial a formação de Quilombos. Eles eram um lugar de refúgio, onde os
negros que conseguiam fugir se juntavam com outros também fugitivos.
Na história dos negros brasileiros, além dos Quilombos, primeira forma de resistência
contra a condição de subjugado, encontraremos muitas outras formas de manifestação e
organização contra o racismo e a imprensa negra é uma delas. Essa imprensa especializada
refletia os anseios e as reivindicações da comunidade negra. Os primeiros jornais dirigidos ao
público negro foram: O Melick (1915), O Clarim as Alvorada (1924) e algumas revistas como
Senzala, Ébano, Níger e, nos tempos atuais, a Raça Brasil que surgiu em 1996.
Na revista Raça Brasil, Maurício Pestana escreve a seção “Opinião de Raça”,
abordando, numa perspectiva crítica, as questões relacionadas à discriminação racial. Essa
seção apresenta mensalmente um artigo de opinião no qual o autor defende os interesses dos
negros brasileiros.
A opção de trabalhar com o gênero “artigo de opinião” em uma revista que se dirige
ao público negro se deu por ser um gênero que pode exercer influência ideológica em grupos
de uma sociedade. Essa possível influência se dá através das estratégias argumentativas que o
autor do artigo de opinião constrói no seu discurso.
A argumentação
A história da argumentação tem sua origem a partir do sistema retórico nos primeiros
anos do século V. A.C. Nesta época, os conflitos de interesses eram resolvidos
prioritariamente pelo uso da palavra. Utilizando-se da linguagem como elemento de
persuasão, a argumentação ou “arte oratória” apresentava-se como solução para a resolução
dos dilemas.
Considerações mais recentes a respeito da argumentação admitem que a língua em si
possui uma orientação argumentativa. Segundo Ducrot (1987), a argumentatividade está
inscrita na própria língua, ou seja, nas frases. Isso porque o uso da linguagem é
essencialmente argumentativo, pois temos sempre objetivos, fins a serem atingidos, efeitos
que pretendemos causar, ou seja, pretendemos atuar sobre o outro para induzi-lo a
determinadas conclusões.
A nova retórica retratada por Chaïm Perelman (1996), no livro Tratado da
Argumentação também traz, na atualidade, uma análise dos aspectos particulares da
argumentação, dando ênfase ao orador e ao auditório. Segundo Perelman (1996, p. 6),
argumentar é um ato que visa provocar em um auditório, por meio de um enunciado ou de um
conjunto de enunciados, uma relativa adesão a um outro enunciado (tese, conclusão ou
inferência) deduzido a partir do primeiro. Perelman (1996, p. 16), esclarece que para que haja
argumentação, é necessário que seja estabelecido o “contato entre os espíritos”, ou seja, o
contato entre o orador e o seu auditório.
Dessa forma, é essencial para o êxito da argumentação que o orador preocupe-se com
as técnicas discursivas que permitem provocar ou aumentar a adesão dos espíritos às teses que
lhes são apresentadas. É em função de um auditório que qualquer argumentação se
desenvolve. Perelman (1996, p. 22) define “auditório” como o “conjunto daqueles que o
orador quer influenciar com sua argumentação. Cada orador pensa, mais ou menos consciente,
naqueles que procura persuadir e que constituem o auditório ao qual se dirigem seus
discursos.” O auditório da revista Raça Brasil que, por sua vez, é dirigida ao segmento negro
da sociedade, é composto pelos leitores negros ou afrodescendentes. Assim, se o orador para
influenciar um auditório deve adaptar-se a ele, conviver, manter relações sociais,
78 | P á g i n a
Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três
Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano
(Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858).
Guavira
no10
consequentemente o seu discurso irá refletir os posicionamentos, crenças e expectativas do
auditório ao qual é dirigido, ou seja, o público negro.
Artigo de opinião, dialogismo e polifonia
O estudo dos gêneros discursivos, desde a Antiguidade greco-latina, vem sendo uma
temática constante entre os estudiosos da linguagem.
No livro, Estética da Criação Verbal Bakhtin (2003, p. 262) inicia seus trabalhos
sobre gêneros relacionando-os ao uso da linguagem. É através da linguagem que se expressam
ideias, pensamentos e intenções que se materializam em forma de enunciados. O autor define
os gêneros do discurso como sendo tipos relativamente estáveis de enunciados, e os
caracteriza em função do conteúdo temático (assunto), estrutura composicional (organização
do texto) e estilo (linguagem). Bakhtin (2003, p. 268) considera também que os gêneros
“refletem de modo mais imediato, preciso e flexível todas as mudanças que transcorrem na
vida social.” Nas palavras do autor:
Esses enunciados refletem as condições específicas e as finalidades de cada referido
campo não só por seu conteúdo (temático) e pelo estilo da linguagem, ou seja, pela
seleção dos recursos lexicais, fraseológicos e gramaticais da língua mas, acima de
tudo, por sua construção composicional. Todos esses três elementos – o conteúdo
temático, o estilo, a construção composicional estão indissoluvelmente ligados no todo
do enunciado e são igualmente determinados pela especificidade de um determinado
campo da comunicação. Evidentemente, cada enunciado particular é individual, mas
cada campo de utilização da língua elabora seus tipos relativamente estáveis de
enunciados, os quais denominamos gêneros do discurso.
A ideia bakhtiniana de que os gêneros são influenciados por fenômenos sociais e são
dependentes da situação comunicativa também é encontrada na hipótese de Charaudeau
(2004, p. 16) que considera que: “todo domínio de prática social tende a regular as trocas, e
por consequência, a instaurar as regularidades discursivas”. Para Charaudeau (2004) as
características dos discursos dependem de suas condições de produção situacionais em que
são enunciados, ou seja, os gêneros do discurso são subordinados pela situação de
comunicação ao ambiente físico e social do ato de comunicação. Segundo o autor, no ato de
comunicação o sujeito falante ocupa o lugar central em relação ao seu interlocutor.
Os componentes do ato de comunicação são: a situação de comunicação, os modos de
organização do discurso e o texto. Charaudeau (2008, p. 74) considera que os gêneros são
categorias de língua ordenadas em um dos componentes do ato de linguagem, ou seja, nos
modos de organização do discurso. Esses modos de organização são divididos em quatro
grupos: o enunciativo, o descritivo, o narrativo e o argumentativo. O “artigo de opinião”,
objeto de estudo deste trabalho, pertence à ordem do argumentar, portanto se insere no modo
de organização argumentativo. Argumentar é uma atividade que inclui numerosos
procedimentos que dependem da situação e da finalidade persuasiva. A qualidade da
argumentação é essencial para obter a adesão daqueles a quem se dirige, por este motivo nos
artigos de opinião é frequente o uso de mecanismos linguísticos como operadores
argumentativos, qualificadores, modalizadores, conectivos, organizadores textuais, citações,
ironia, asserções, entre outros.
Assim como Bakhtin (2003) e Charaudeau (2008), outro autor que aborda a questão do
gênero numa perspectiva histórica e social é Maingueneau (2008). O autor lembra que os
discursos se modificam ao longo do tempo e refletem as características da própria sociedade.
79 | P á g i n a
Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três
Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano
(Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858).
Guavira
no10
Desse modo, é possível analisar uma sociedade pelos discursos que ela produz, uma vez que a
materialidade desses discursos origina-se de sujeitos posicionados em um tempo e em um
espaço condicionados social e historicamente. Maingueneau (2008, p. 65) esclarece que a
“finalidade reconhecida” é uma das condições importantes para o êxito de uma atividade. Nas
palavras do autor:
Todo gênero de discurso visa a um certo tipo de modificação da situação da qual
participa. Essa finalidade se define ao se responder à questão implícita: “Estamos aqui
para dizer ou fazer o que?”. A determinação correta dessa finalidade é indispensável
para que o destinatário possa ter um comportamento adequado ao gênero de discurso
utilizado.
O artigo de opinião é um gênero da esfera jornalística presente em seções de opinião
de revistas, jornais impressos ou virtuais. A tarefa do autor deste gênero (jornalista,
colaborador ou convidado de renome) é apresentar uma opinião, sustentar ou refutar opiniões
anteriores com base no seu conhecimento e na leitura do real, a fim convencer o leitor através
da argumentação. O leitor ou interlocutor, elemento-chave na constituição do gênero, poderá
aceitar as argumentações apresentadas no texto e valorizar as ideias do autor ou refutá-las,
mantendo a sua opinião sobre um determinado assunto. Esta situação de produção e
interpretação dos enunciados do artigo de opinião indica uma relação dialógica entre os
interlocutores deste gênero.
Dialogismo
Para falar de diálogo, recorremos a Bakhtin. Segundo Bakhtin (1997), o discurso é
dialógico pelo fato de que ele se constrói entre, pelo menos, dois interlocutores que, por sua
vez, são seres sociais que estabelecem relações com outros discursos que configuram uma
sociedade, uma comunidade, uma cultura. A linguagem é, portanto, uma atividade social
essencialmente dialógica realizada com vistas à realização de determinados fins. Porém, há
uma outra dimensão do sentido de que não o reduz às relações entre os sujeitos nos processos
discursivos, mas que se refere ao permanente diálogo entre os diversos discursos que
configuram uma sociedade. Esta é a dimensão que nos permite considerar o dialogismo como
o princípio que determina a natureza interdiscursiva da linguagem. A interdiscursividade é um
recurso argumentativo utilizado com frequência nos artigos de opinião da revista “Raça
Brasil”
Estreitamente ligada ao dialogismo, outra noção bakhtiniana importante é a polifonia,
que nos leva a perceber a impossibilidade de contar com as palavras como se fossem signos
neutros, transparentes, já que elas são afetadas pelos conflitos históricos e sociais que sofrem
os falantes de uma língua e, por isso, permanecem impregnadas de suas vozes, de seus
valores, de seus desejos. Assim, a polifonia se refere às outras vozes que condicionam o
discurso do sujeito.
Polifonia
O termo polifonia, conforme Ducrot (1987), é empregado para caracterizar um texto
que deixa entrever muitas vozes, por oposição aos textos monofônicos, que escondem os
diálogos que os constituem. A monofonia e a polifonia são efeitos de sentido decorrentes de
procedimentos discursivos que se utilizam em textos dialógicos.
80 | P á g i n a
Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três
Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano
(Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858).
Guavira
no10
Ducrot (1987) postula que há polifonia quando for possível distinguir em uma
enunciação dois tipos de personagens, os enunciadores e os locutores. Segundo ele, por
“locutor” entende-se um ser que, no enunciado, é apresentado como seu responsável. Trata-se
de uma ficção discursiva que não coincide necessariamente com o produtor físico do
enunciado. Já os enunciadores, para Ducrot (1987), são os seres cujas vozes estão presentes na
enunciação sem que lhes possa, entretanto, ser atribuídas palavras precisas: efetivamente eles
não falam, mas a enunciação permite expressar seu ponto de vista. A diferenciação entre
locutor e ser empírico nos remete à polifonia.
Dominique Maingueneau (2002), em seu trabalho Novas tendências em Análise do
Discurso, utiliza conceitos de Ducrot, no que diz respeito à heterogeneidade enunciativa, sem,
contudo, deixar de alertar que essa não é a única abordagem linguística que considera os fatos
de polifonia. Mas é Authier-Revuz (1982) que propõe utilizar o termo heterogeneidade como
forma de distinguir a presença do outro e oferece uma diferenciação importante de ser
destacada:
a) a heterogeneidade constitutiva do discurso (Outro), que não é marcada em
superfície, mas que a AD pode definir, formulando hipóteses através do interdiscurso.
b) a heterogeneidade mostrada, que indica a presença do outro no discurso do locutor.
Este tipo de heterogeneidade se desdobra em duas modalidades: a marcada, da ordem da
enunciação e visível na materialidade linguística (o discurso relatado direto e o discurso
relatado indireto, as formas de conotação autonímica: por meio de aspas, do itálico, de
entonações específicas, do comentário, da glosa, do ajustamento etc.) e a não marcada,
identificável no nível do pré-consciente, com base na intertextualidade. As formas não
marcadas são reconhecidas por seus efeitos polifônicos (discurso indireto livre, a ironia, a
alusão, a imitação, pastiche, paródia etc).
Na revista Raça Brasil, objeto de estudo deste trabalho, o “outro” pode ser
considerado o leitor negro (interlocutor) e o “Outro” é a discursividade (historicidade
concebida sob a forma de interdiscurso). A revista Raça, o se textualizar, ao falar para o leitor
negro, se inscreve em uma posição de autoria, de um “eu” organizado imaginariamente e que
se faz presente em todas as seções da revista.
Quanto ao conteúdo temático, o gênero em questão normalmente apresenta questões
polêmicas de relevância social, como a racial, por exemplo, que afeta o segmento negro da
nossa sociedade. O racismo é um problema global da sociedade brasileira. Colocar em
discussão a questão racial é uma tarefa complexa, pois ela é polêmica e conflituosa. O artigo
de opinião da seção “Opinião de Raça” da revista Raça Brasil orienta-se em direção ao
interlocutor, o público negro. Nele, o autor aborda, de forma direta, a questão racial, cobra
atitudes diante da desigualdade social e econômica entre negros e brancos, além de destacar a
importância do negro, de sua cultura e de seu trabalho para a sociedade brasileira.
Opinião de Raça: estratégias argumentativas
A partir da exposição teórica já realizada, serão analisados fragmentos de um artigo de
opinião da seção “Opinião de Raça” publicado na edição nº 129, no dia 02/03/2009, na revista
Raça Brasil. O artigo em pauta foi escrito por Maurício Pestana, jornalista, cartunista e
presidente do Conselho Editorial da referida revista. Eis o artigo:
De um lado é este carnaval... Do outro, a fome total!
A cultura, em um mundo globalizado como o de hoje, é setor estratégico em vários países. Prova disso
são os relatórios do Banco Mundial indicando que 7% do PIB do planeta provêm deste produto. A
81 | P á g i n a
Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três
Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano
(Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858).
Guavira
no10
América Latina e a África, apesar da diversidade cultural que possuem, não somam 4% da
movimentação desse mercado em que apenas cinco paises controlam 60% de toda a produção. Somente
as empresas de Hollywood possuem 80% das salas de cinemas de todo o planeta.
No Brasil, segundo os últimos dados do IBGE, a indústria cultural conta com mais de 269 mil empresas
e emprega 1, 4 milhão de pessoas (sem contar a economia informal). Em um país onde a cultura negra é
patente, estando presente em todos os aspectos, como música, culinária, religião, artes visuais, moda,
dança..., torna-se praticamente impossível pensar no Brasil sem reportar à sua influência. E qual a
contrapartida econômica que esta contribuição tem dado a nós negros?
Nas vésperas de realizar o maior evento cultural do país, o Carnaval, ressurge a velha história: quando
se trata de setores estratégicos e lucrativos, mesmo sendo nós os protagonistas da festa, não somos nós
que levamos a maior parte do bolo.
Das grandes escolas de sambas, concentradas principalmente no eixo Rio-São Paulo, a maioria não é
mais comandada por famílias negras como no passado, quando o carnaval não era um negócio lucrativo
dos milhões de dólares dos dias atuais. Se focalizarmos a cidade onde a cultura negra é soberana - onde
mais de 80% de sua população é negra - o retrato será igualmente desolador e a história se repete: os
que mais lucram no carnaval de Salvador não são os negros.
Registrado no Guiness Book como a maior festa popular do mundo, o Carnaval soteropolitano, neste
ano, tem investimentos astronômicos de empresas que vão de grandes cervejarias à telefonia móvel,
passando pelas de cartões de créditos, entre outros gigantes financeiros.
A cobertura jornalística se fará em180 paises, através de 24 jornais (oito internacionais e 17 nacionais),
37 emissoras de televisão estrangeiras. Estima-se que mais de dois milhões de pessoas circularão
durante a festa, (das quais 450 mil são turistas brasileiros e do exterior) gerando uma receita de US$
87.000.000, segundo as Secretarias de Cultura e Turismo da Bahia (Bahiatursa). Mas não são
necessárias estatísticas para demonstrar a nítida desigualdade!
O protagonismo negro apresenta-se maciçamente na outra ponta da economia, a dos trabalhos informais,
como cordeiros de blocos, ambulantes de acarajés, picolés, venda de coco na praia, catadores de latinhas...
mostrando a verdadeira face do apartheid social e racial na principal cidade negra do país [...]
(Revista Raça BrasilL, n. 129, março, 2009)
A leitura desse artigo de opinião nos permite constatar que se trata de um fragmento
argumentativo. Nele, a argumentação é orientada no sentido de conduzir o leitor a identificar
a relação de desigualdade social entre negros e brancos no Brasil. Na produção dos
enunciados, o autor utiliza alguns recursos linguísticos para construir sua argumentação. Logo
no primeiro parágrafo, ele faz uma asserção que revela, em termos quantitativos, a
participação da indústria cultural no PIB do planeta. A partir desta afirmação, o autor
desenvolve a introdução da sua argumentação.
O segundo parágrafo traz na textualidade argumentos que levam o “outro” (leitor
negro) a se reconhecer como elemento importante na história cultural do Brasil. Efeito este
visível na formulação: “Em um país onde a cultura negra é patente, estando presente em todos
os aspectos, música culinária, religião, arte visuais, moda, dança..., torna-se praticamente
impossível pensar no Brasil sem reportar à sua influência.” Neste fragmento, é possível
perceber que há uma chamada para a consciência de que a diversidade cultural dos afrodescendentes deve ser valorizada, e não desqualificada.
A ocorrência de alguns itens lexicais empregados na construção dos enunciados
merece atenção especial, como do pronome “nós” e do advérbio de negação “não”. No
enunciado “quando se trata de setores estratégicos e lucrativos, mesmo sendo nós os
82 | P á g i n a
Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três
Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano
(Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858).
Guavira
no10
protagonistas da festa, não somos nós que levamos a maior parte do bolo”, a ocorrência do
pronome “nós” é inclusiva e identitária, pois envolve o enunciador e o leitor como parceiros
que abraçam a mesma causa. Já o advérbio de negação “não”, no mesmo enunciado, é um
elemento polifônico utilizado como estratégia argumentativa pois, segundo Ducrot (1972),
coloca em evidência o pressuposto de que há uma outra voz que diria: “a maioria é
comandada por famílias negras como no passado”, “[...] os que mais lucram no carnaval de
Salvador são os negros”. Logo, se há uma negativa, é possível pressupor que também há uma
afirmativa. Na análise deste trecho, é preciso considerar também que a construção “mesmo
sendo” utilizada pelo autor pode ser substituída pelo operador argumentativo “apesar de”.
Dessa forma, o autor introduz o argumento que afirma serem os negros a matriz da festa
carnavalesca no Brasil, “apesar de” os organizadores dessa festa de massa não reconhecerem
essa verdade e os colocarem na posição secundária na divisão dos lucros.
Partindo para o aspecto ideológico e seguindo a argumentação criada pelo autor ao
longo do texto é possível afirmar que há uma relação opositiva de inclusão/exclusão,
negação/afirmação entre negros e brancos no Brasil. Esta relação opositiva no artigo de
opinião da revista Raça Brasil pode ser exemplificada nas palavras “negro” e “branco” que
também fazem alusão ao “pobre” e ao “rico”, ao “excluído” e ao “privilegiado”, como pode
ser facilmente constatado já no título do artigo: “De um lado é carnaval... Do outro, a fome
total!”
Para reforçar a tese defendida no artigo, ou seja, a inclusão e valorização do
trabalhador negro na divisão dos lucros das festas carnavalescas, o autor recorre ao discurso
histórico relembrando a importante contribuição cultural dos afrodescendentes na religião, na
música, na dança e na alimentação. Neste argumento, o autor reforça o indivíduo negro como
protagonista das festas carnavalescas, mas secundário na divisão dos lucros.
A última análise deste trabalho destina-se à forma como o autor aborda a questão da
discriminação do trabalhador negro nas festas carnavalescas. No artigo de opinião da revista
Raça Brasil, é possível observar que o autor não se mostra apenas como um julgador dos
fatos, mas sim como um profissional que acompanha os fatos e coloca os dados à disposição
do seu interlocutor, na intenção de que a sua tese se torne mais verdadeira. Através dos
enunciados, o autor mantém relações dialógicas com o seu interlocutor. Os fatos e os dados
presentes nos enunciados são recursos argumentativos que ele utiliza para explicitar a questão,
sustentar a sua tese e levar o interlocutor a refletir sobre a necessidade da construção de uma
democracia racial.
Considerações finais
Bakhtin (2003), ao falar de gênero em seus trabalhos, aponta para o fato de eles
refletirem as mudanças que transcorrem na vida social. Desse modo, pode-se dizer que há
uma relação de diálogo entre sociedade e linguagem que se realiza por meio de enunciados
(orais ou escritos) organizados em tipos relativamente estáveis, gêneros do discurso. Os
enunciados materializam as condições sociais e a finalidade da interação. Assim, o artigo de
opinião da revista Raça Brasil reflete uma realidade pertencente a uma determinada esfera
social: o racismo e a desigualdade social brasileira. Colocar em discussão esta questão, como
faz a seção “Opinião de Raça” na revista Raça Brasil, é uma tarefa complexa, pois ela é
polêmica e conflituosa.
Retomando Perelman (1996), o domínio das técnicas argumentativas, principalmente
em auditórios heterogêneos, é que caracteriza um bom orador. A revista Raça Brasil, objeto
de estudo deste trabalho, é destinada ao público afrodescendente. Porém, é preciso considerar
83 | P á g i n a
Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três
Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano
(Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858).
Guavira
no10
que esse público é um conjunto de inúmeros brasileiros com características distintas no que
diz respeito à religião, idade e bagagem cultural. Argumentar para esse público heterogêneo
exige do orador, além do conhecimento daqueles que se pretende conquistar, a utilização de
argumentos múltiplos e dados favoráveis a sustentação do ponto de vista que se quer
defender. Portanto, no artigo analisado, os dados e informações retidos de fontes dignas de
confiança, como os relatórios do Banco Mundial, dados do IBGE e registro do Guiness Book
são estratégias argumentativas do autor para conseguir a adesão do seu auditório à ideia de
desigualdade e exclusão apresentada como tese no enunciado que inicia o artigo: “De um lado
é este carnaval... Do outro, a fome total”.
Referências
AUTHIER, J. Entre a transparência e a opacidade: um estudo enunciativo do sentido. Trad.
Leci Borges Barbisan; Valdir do Nascimento Flores. Porto Alegre; EDIPUCRS, 1982.
BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
BAKHTIN, M. M. / VOLOCHINOV, V. N. (1981) Marxismo e filosofia da linguagem. São
Paulo: Hucitec, 1986,196 p.
CHARAUDEAU, Patrick. Visadas discursivas, gêneros situacionais e construção textual. In:
Ida Lúcia; Mello, Renato de (Org.). Gêneros: Reflexões em Análise do Discurso. Belo
Horizonte: NAD/FALE/UFMG, 2004. p. 13 a 41.
_______. Gênero de discurso. In: Charaudeau, Patrick; Maingueneau, Dominique (orgs.)
Dicionário de Análise do Discurso. São Paulo: Contexto, 2004.
_______. Discurso das mídias. São Paulo: Contexto, 2006.
_______.Linguagem e Discurso: modos de organização. São Paulo: Contexto, 2008.
DUCROT, O. Esboço de uma teoria polifônica da enunciação. In: O dizer e o dito. Campinas:
Pontes, 1987, 22 p.
_______. Princípios de Semântica Lingüística. Dizer e não dizer. São Paulo: Cultrix LTDA,
1972, 75.
MAINGUENEAU, Dominique. Análise de Textos de Comunicação. São Paulo: Cortez, 2008.
_______. Novas tendências em análise do discurso. São Paulo: Pontes, 2002.
MOURA, Clóvis. Os quilombos e a rebelião negra. São Paulo: Brasiliense, 1981.
PERELMAN, Chaïm; OLBRECHTS-TYTECA, Lucie. Tratado da Argumentação - a nova
retórica. São Paulo: Martins Fontes, 1996.
REVISTA RAÇA BRASIL. São Paulo: Editora Escala, n. 129, março. 2009. 6p.
84 | P á g i n a
Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três
Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano
(Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858).
Guavira
no10
A CRIANÇA, A ESCOLA E OS MICROPODERES: UMA ANÁLISE DAS
TÉCNICAS DISCIPLINARES ATRAVESSANDO CORPOS
Mariana Diniz Bittencourt Nepomuceno (USF)30
Márcia Aparecida Amador Mascia (USF)31
RESUMO: O presente artigo tem como objetivo levantar as relações de poder-saber enquanto mecanismo de
controle e normalização dos sujeitos e de suas subjetividades instaurados desde a tenra infância, na instituição
escolar. Tendo como referencial teórico os estudos da arquegenealogia realizados por Foucault, buscamos
apreender a realidade de uma escola enquanto um micropoder institucional. Para tanto, procedemos à análise de
algumas práticas e registros produzidos na referida instituição, nas quais se visualiza a aplicação das técnicas de
coerção e de normalização próprias à gestão disciplinar dos sujeitos escolares. Conclui-se que os sujeitos,
professores e alunos (crianças de 2 a 3 anos, neste caso), são construídos, embora de modo imperceptível, nas
práticas diárias em função do espaço e tempo, que delimitam o que deve ser feito ou não. Tais práticas
constituem as técnicas disciplinares de que fala Foucault e funcionam de modo a desenhar os corpos, tornandoos dóceis e, portanto, úteis socialmente.
Palavras-chave: escola infantil; relações de poder-saber; sujeito.
ABSTRACT: This article aims at raising the relations of power-knowledge as a mechanism of control and
standardization of the subjects and their subjectivities established since early childhood, in schools. Having as
the theoretical framework the arqueological studies undertaken by Foucault, we try to apprehend the reality of a
school while a micro-power institution. In order to do this, we analyzed some practices and records produced in
the institution, in which we can see the techniques of coercion and norms related to the disciplinary management
of the school subjects. We conclude that the subjects, teachers and students (children from 2 to 3 years, in this
case) are constructed, though in a imperceptible way, in the daily practices in terms of space and time, that limit
what should be done or not. Such practices constitute the disciplinary techniques of which Foucault deals and
operate in a way of drawing the bodies, making them docile and therefore socially useful.
Keywords: early childhood school; power-knowledge relations; subject.
Introdução
Em meio a uma época de manifesta inconstância, marcada por deslocamentos
incessantes que desarticulam e liquefazem o modo como são construídas as identidades, o
sujeito contemporâneo atravessa [e é atravessado por] uma crise de paradigmas produzidos
por relações de poder derivada não de uma carência de parâmetros, mas de seu excesso e
superfluidade (BAUMAN, 2001), de onde se postula estarmos vivendo uma fase de transição,
na qual o próprio modelo de sociedade reflete a passagem de um regime de dominação para
outro: de uma sociedade disciplinar para uma sociedade de controle. Tal postulado
atravessará, consequentemente, a escola.
30
Graduada em Letras pela Universidade São Francisco (USF) e atualmente cursa Mestrado em
Educação Intercultural, na Universidade de Lisboa (Portugal).
31
Professora do curso de Letras e do Programa de Pós-Graduação em Educação, na linha de Linguagem,
Discurso e Práticas Educativas, da Universidade São Francisco (USF) - Itatiba. Membro do Grupo de Estudos
“Vozes (in)fames; exclusão e resistência”, sob a coordenação da Profª. Maria José Coracini, no IEL/UNICAMP.
85 | P á g i n a
Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três
Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano
(Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858).
Guavira
no10
É neste contexto de transformação das tecnologias do poder, de disciplinar para de
controle, que se torna pertinente indagar sobre a dimensão política da escola, através do
levantamento das relações de poder-saber que nela circulam enquanto modos de produção da
subjetividade contemporânea. Ademais, é necessário investigar de que maneira e a partir de
quais dispositivos, enquanto instituição [em crise], a escola, em sua função social, sustenta o
regime de dominação de controle, e averiguar como essas relações adquirem formas
específicas neste contexto, produzindo certas subjetividades em detrimento de outras.
O presente trabalho pretende elucidar algumas destas questões, utilizando-se, para tal,
do escopo teórico da vertente pós-crítica em educação e tendo como principal referência as
análises da arquegenealogia perpetradas pelo filósofo Michel Foucault. Servindo-se dos
conceitos de poder, saber, disciplina, vigilância, governabilidade e seus desdobramentos, a
análise se assenta, essencialmente, na abordagem foucaultiana. Apreender a realidade escolar
através da ótica foucaultiana significa, portanto, reconhecer a escola como um micropoder
institucional que sustenta relações de poder-saber, de modo a investigar como essas relações
adquirem formas específicas neste contexto e quais as subjetividades produzidas a partir
destas relações.
Nesta pesquisa, hipotetiza-se que o poder disciplinar, uma das facetas das relações de
poder-saber, quando aplicado na instituição escolar, manifesta toda a eficácia de suas técnicas
de coerção e normalização. Demonstrar-se-á, sobretudo, como a instituição escolar opera
totalizações que subjetivam os indivíduos inseridos no processo educacional através do
investimento político de seus corpos, docilizando-os e coagindo-os numa constante utilização.
Para a coleta dos registros do corpus deste trabalho, procedeu-se à investigação do
cotidiano de uma Escola Municipal de Educação Infantil, a fim de discutir e problematizar as
práticas escolares e o disciplinamento dos corpos engendrados pelas relações de poder e saber
instauradas entre os sujeitos envolvidos no processo educacional. Para tanto, foram
observadas diferentes aplicações das técnicas de coerção e normalização próprias à gestão
disciplinar dos corpos destes sujeitos, tais como: controle do tempo; disposição física;
organização curricular; organização hierárquica; composição arquitetural; vigilância
constante; registros de conhecimento; rituais de exame/classificação/seleção; dentre outras.
Compreender o motivo da ênfase, dada pela escola, à questão disciplinar e explicitar a
maneira como, nesta instituição – através da tecnologia disciplinar –, estabelecem-se relações
de poder-saber que subjetivam os sujeitos inseridos neste contexto é, portanto, o escopo deste
artigo.
Sociedade Disciplinar e de Controle
O poder, para Foucault (2005a), se expressa nos mais diversos vínculos sociais,
permeando e se estabelecendo nas práticas cotidianas; de forma que se pode pensar em termos
de relações de poder, analisando-o como algo que se exerce em rede, que perpassa todo o
cotidiano social, composto por relações dispersas em toda a sociedade.
A concepção foucaultiana de poder encerra caráter inovador na medida em que o
filósofo desloca o problema para a análise de práticas de poder, afirmando não existir “o”
poder propriamente dito como algo situado, material, possuível e transferível, mas sim
relações de poder que se estabelecem e permeiam, nas mais diversas instâncias, as práticas
sociais. Para Foucault, “o poder não existe; existem sim práticas ou relações de poder”
(FOUCAULT, 2005a, p. IV), isto é, o poder se expressa nas diversas relações sociais, de
86 | P á g i n a
Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três
Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano
(Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858).
Guavira
no10
forma que se possa conceber o poder enquanto estratégia operacional – e não como
propriedade – pois é um tipo de poder que se exerce, e não que se possui.
As relações de poder são, portanto, constitutivas da vida social e o indivíduo é
transmissor deste mesmo poder que o perpassa, constituindo-se, simultaneamente, como
sujeito e objeto de poder. Com base nesta proposição, Foucault subverte o conceito de poder
definindo-o, através do método de investigação genealógico, não por sua negatividade, isto é,
por sua função repressiva, autoritária, mas por sua positividade, como produtor de
subjetividades que normaliza a sociedade através da gestão e controle da vida dos homens,
com a função de torná-los úteis economicamente e dóceis politicamente. A perspectiva
foucaultiana orienta-se, portanto, no sentido de analisar como as relações de poder produzem
subjetividades, isto é, como os indivíduos se subjetivam a partir das relações de poder e saber,
que permeiam toda a estrutura social.
Nas sociedades modernas, o olhar panóptico, enquanto instrumento de normalização e
controle, figurava como mecanismo fundamental de produção de subjetividades, sua mais
contundente materialização. Segundo Foucault (op., cit., p. 211), “utilizar a organização do
espaço para alcançar objetivos econômico-políticos” constitui a síntese do funcionamento do
dispositivo panóptico, máquina ótica universal das concentrações humanas. O autor concebe o
Panóptico como um mecanismo de produção da subjetividade uma vez que engendra a
internalização da vigilância, a internalização do olhar do outro. A vigilância panóptica
combina os atos de vigiar e ser vigiado e constitui uma tecnologia de poder que inaugura toda
uma “anatomia política” baseada no panoptismo, o qual possibilita estabelecer, entre os
sujeitos vigilantes/vigiados, relações de disciplina.
Através do panoptismo, o poder projeta luz sobre cada indivíduo, esquadrinhando-o,
pois, baseando-se na visibilidade, no controle do tempo (e das operações do corpo) e dos
espaços (e dos corpos nestes inseridos), o que permite, por meio de um registro permanente, a
elaboração de saberes sobre cada indivíduo vigiado/enclausurado, estabelecendo uma relação
hierárquica (pois o poder emana do “centro” e se difunde pela “periferia”) de poder-saber que
tem, neste contexto, como objetivo último, tornar o corpo humano [politicamente] dócil e
[economicamente] útil à sociedade. A partir deste dispositivo polivalente, torna-se possível a
consolidação, a partir do século XVIII, daquilo a que Foucault denominou Sociedade
Disciplinar – modelo este que “sucedia às sociedades de soberania cujo objetivo e funções
eram completamente diferentes (açambarcar, mais do que organizar a produção, decidir sobre
a morte mais do que gerir a vida)” (DELEUZE, 1992, p. 219) – baseada numa economia do
poder onde, a fim de elaborar um saber sobre o corpo e exercer um controle sobre as suas
forças, o “vigiar” revela-se mais eficaz do que o “punir”.
As relações de poder-saber e os regimes de verdade
O poder produtor de subjetividades consiste numa modalidade específica do mesmo: o
poder disciplinar é definido como um conjunto de técnicas através das quais se controla e
normaliza-se os sujeitos, constituindo-se, em última análise, como um conjunto de técnicas de
individualização. O indivíduo, por encontrar-se inserido em relações de poder-saber, é,
portanto, simultaneamente alvo e efeito do poder, uma vez que os dispositivos de subjetivação
produzem e derivam de formações discursivas que se instrumentalizam, principalmente,
através da tecnologia política disciplinar.
Foucault analisa como os saberes aparecem e se transformam, “procurando
estabelecer a constituição de saberes privilegiando as interrelações discursivas e sua
87 | P á g i n a
Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três
Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano
(Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858).
Guavira
no10
articulação com as instituições” (op., cit., p. X), observando que as relações de poder
estabelecem campos de saber e que estas, por sua vez, constituem relações de poder,
implicando-se mutuamente: “A investigação do saber não deve remeter a um sujeito de
conhecimento que seria sua origem, mas a relações de poder que lhe constituem. Não há saber
neutro. Todo saber é político.” (op., cit., p. XVII), pois todo saber tem sua gênese em relações
de poder. É a partir das técnicas disciplinares que emerge um tipo peculiar de conjunto de
saberes: as ciências humanas (op., cit., p. XX). Assim, os saberes das ciências humanas,
incluindo nesses os pedagógicos, convertem-se em elementos de um dispositivo estratégico,
através das relações de poder.
A verdade, na sociedade ocidental contemporânea, se materializa na forma do discurso
científico e nas [micro]instituições vinculadas a este. A produção do conhecimento científico
é feita por meio de procedimentos de poder que, entre outros, incluem o olhar (empirismo) e a
interpretação (hermenêutica). Tais procedimentos tornam possíveis, simultaneamente, a
produção de um conhecimento com estatuto de “verdade” e a produção/exclusão daquele que
seria “falso”. Portanto, o conceito foucaultiano de verdade não supõe algo verdadeiro que
precisa ser descoberto, que deve se fazer aceito, mas sim de um conjunto de “regras segundo
as quais se distingue o verdadeiro do falso e se atribui ao verdadeiro efeitos específicos de
poder; entendendo-se, também, que não se trata de um combate ‘em favor’ da verdade, mas
em torno do estatuto da verdade e do papel econômico-político que ela desempenha.” (op.,
cit., p.13). Para o autor, poder e verdade estão, portanto, ligados numa relação circular, de
forma que todo e qualquer discurso, por ser necessariamente político, funciona como um
regime de verdade.
Foucault (1996) discorre sobre procedimentos internos e externos que regulam o
acontecimento discursivo e, mais especificamente, sobre as práticas discursivas e os poderes
que as atravessam, perpetrando uma crítica acerca da “institucionalização do discurso”. Ao
afirmar que o discurso encontra-se submetido ao jugo das instituições, o autor constata que a
legitimidade/validade do mesmo emana do poder que as instituições lhe atribuem, de modo
que este instaura técnicas de controle e limitação da produção de discursos. O discurso
engendrado/sancionado pelas instituições atribui-lhes, portanto, poderes (de interdição e
exclusão), e dentre os procedimentos externos reguladores do acontecimento discursivo
encontra-se o mecanismo de oposição do verdadeiro e do falso (discursos) ou vontade de
verdade. A vontade de verdade, como vontade de saber, opera uma oposição entre discursos
falsos e discursos verdadeiros – e, na medida em que estes últimos procedem do poder
institucionalizado, Foucault revela ser este um sistema de exclusão, pois ao
selecionar/valorizar/distribuir determinados discursos (pretensamente verdadeiros), estabelece
uma “hierarquia” entre as possíveis formações discursivas, legitimando alguns enunciados e
desautorizando outros. Afirma o filósofo serem as interdições do discurso instauradoras de
desejos de poder – se o discurso é controlado/interditado, ele instaura o desejo. Portanto, para
Foucault, o discurso é poder. Em última instância, verifica-se que o controle do discurso
equivale ao controle do sujeito, a uma técnica de sujeição, pois não há discurso sem sujeito:
“Somos julgados, condenados, classificados, obrigados a desempenhar tarefas e destinados a
um certo modo de viver ou morrer em função dos discursos verdadeiros que trazem consigo
efeitos específicos de poder” (FOUCAULT, 2005a, p. 180).
Articulando os saberes (enunciados possíveis) com o extradiscursivo (contexto social
ou, neste caso, micropoderes institucionais), torna-se possível analisar de que maneira as
relações de poder e saber se estabelecem nas diversas instituições sociais – inclusive na
escola. A instituição escolar é um local onde o poder produz um saber correlativo e, graças
aos regimes de verdade que nela circulam, este poder sustenta-se nos e é aceito e
88 | P á g i n a
Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três
Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano
(Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858).
Guavira
no10
[simultaneamente] perpetrado pelos sujeitos inseridos na escola. Nesta instituição, os
mecanismos que efetivam a normalização dos indivíduos que a compõe adquirem formas
específicas, das quais trataremos a seguir.
A escola enquanto [micro]poder institucional
Nas escolas mais tradicionais, os professores, funcionários da ortopedia moral,
“usando da punição como forma de manter o controle disciplinar sobre cada aluno e sobre
todo o grupo” (GALLO, 2009), exercem toda uma economia interna da pena, através da qual
produz-se um saber sobre o indivíduo indisciplinado (criminoso/infrator), saber este que,
pretendendo explicar um ato, é, na realidade, uma maneira de qualificar/controlar o próprio
indivíduo. Trata-se de efeitos positivos instigados pela prática dos mecanismos punitivos, os
quais determinam a função social da punição. As relações de poder engendram, destarte, um
investimento político do corpo, pois sobre ele têm alcance imediato, atravessando-o. Consiste,
efetivamente, de uma tecnologia política do corpo, de um saber e um controle do corpo não
localizado nas instituições, mas que a ela recorrem, utilizando-a: “Trata-se de alguma maneira
de uma microfísica do poder posta em jogo pelos aparelhos e instituições” (FOUCAULT,
2005b, p. 26), do funcionamento de um poder que se exerce sobre o corpo dos punidos (em
torno, na superfície e no interior deste) e, “de uma maneira mais geral, sobre os que são
vigiados, treinados e corrigidos, sobre os loucos, as crianças, os escolares, os colonizados,
sobre os que são fixados a um aparelho de produção e controle durante toda a existência.”
(op., cit, p. 28).
Na instituição escolar, exercer constante pressão sobre os alunos para que todos
obedeçam às normas é parte de um sistema punitivo com função normalizadora, isto é, que
implica em juízos de normalidade. O “normal” se estabelece (inclusive discursivamente)
como princípio de coerção, de controle, e com ele o poder de regulamentação. Trata-se, a
rigor, de uma biopolítica: através da organização tempo-espacial, é possível – além de vigiar e
controlar – gerir as condutas dos indivíduos, numa estratégia político-econômica
eminentemente operacional. Na instituição escolar, a disciplina, por sistemática, permite que
os efeitos de poder sejam homogêneos e, objetivando a suspensão das multiplicidades e a
supressão de desvios das condutas, instauram-se, na rotina escolar, micropenalidades
baseadas em juízos de normalidade ou sanções normalizadoras. O indivíduo escolar emerge
assim como efeito de verdade do discurso transmitido pelo poder disciplinador, nele se
inscrevendo, subjetivando-se. Pode-se afirmar que as caracterizações a estes indivíduos
atribuídas pelo discurso institucionalizado da escola constituem, realmente, técnicas de
subjetivação dos mesmos, pois, derivadas de relações de poder-saber, operam a produção da
experiência de si, ou, em termos foucaultianos, funcionam como tecnologias do eu, pois
“constroem e medeiam a relação do sujeito consigo mesmo” (LARROSA, 2002, p. 37),
inscrevem nos corpos e mentes dos indivíduos uma determinada forma de se ver, de se narrar,
de se expressar, de se relacionar consigo e com os outros, designando uma posição de sujeito,
que se lhe é atribuída como própria.
Nestas instituições, quaisquer comportamentos desviantes, que transgridam o
sistema punitivo de função normalizadora são continuamente registrados na forma de
ocorrências, isto é, documentos redigidos pela diretoria – que, obrigatoriamente assinados
pelo “transgressor” ou seu “responsável” – constituem um procedimento de confissão desses
atos e descrevem as ações dos sujeitos, a fim de controlá-las e examiná-las. Desta forma, a
escola constitui-se em um “[...] espaço fechado, recortado, vigiado em todos os seus pontos,
89 | P á g i n a
Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três
Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano
(Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858).
Guavira
no10
onde os indivíduos estão inseridos num lugar fixo, onde os menores movimentos são
controlados, onde todos os acontecimentos são registrados [...]” (FOUCAULT, 2005b, p.
193). O poder disciplinar, através destes dispositivos, faz “[...] funcionar o espaço escolar
como uma máquina de ensinar, mas também de vigiar, de hierarquizar, de recompensar.” (op.,
cit., p. 126). Essa relação eminentemente hierárquica induz os sujeitos a se sentirem
constantemente vigiados e controlados.
No contexto da contemporaneidade, todavia, instauram-se novas formas de
sociabilidade e de subjetividade as quais não são constituídas [apenas] por relações
[exclusivamente] hierárquicas de vigilância e controle, fundamentadas no confinamento e
estabelecidas em espaços/tempos compartimentados (como se pode observar nas escolas mais
tradicionalistas). A partir de meados do século XX, segundo Deleuze (1992, p. 220), observase uma mudança na natureza mesma do poder decorrente, basicamente, de uma “crise
generalizada de todos os meios de confinamento, prisão, hospital, fábrica, escola, família. São
as sociedades de controle que estão substituindo as sociedades disciplinares.”
Investigando os efeitos do emergente desenvolvimento técnico, Deleuze constatou
que as tecnologias de informação [também] constituíam mecanismos de controle os quais
possibilitaram o surgimento de um novo investimento político dos corpos, através de
dispositivos tecnológicos que extraem informações exatas das ações do indivíduo, até mesmo
– ou principalmente – em espaços abertos, a fim de identificar certas regularidades ou
padrões de comportamento para, de forma mais eficaz, controlá-lo. Trata-se do Sinóptico,
mecanismo de vigilância que, com efeito, caracteriza a sociedade de controle. O poder, neste
contexto, não mais se operacionaliza exclusivamente de maneira hierárquica, central, mas
encontra-se disperso, difuso, numa rede planetária capaz de captar toda e qualquer
informação no tempo e no espaço, e é nesta conjuntura, instaurando-se nas mais diversas
instâncias da vida cotidiana, que surgem os micropoderes institucionais.
A interpenetração dos espaços, os quais, em variação contínua, nos leva a crer numa
(hipotética) imprecisão de seus limites – “a rede”, em termos deleuzianos – além do
surgimento da noção de um tempo ininterrupto, de forma que, atualmente, os indivíduos
encontram-se numa espécie de modulação constante, num estado de metaestabilidade que
atravessa e regula as malhas do tecido social: “Nas sociedades de disciplina não se parava de
recomeçar (da escola à caserna, da caserna à fábrica), enquanto nas sociedades de controle
nunca se termina nada, a empresa, a formação, o serviço sendo os estados metaestáveis e
coexistentes de uma mesma modulação, como que de um deformador universal” (op., cit., p.
221). A noção de “deformador universal” é entendida por Bauman (1999, p.7) como uma das
características do fenômeno da globalização: “estamos todos sendo ‘globalizados’ – e isso
significa basicamente o mesmo para todos”. O autor afirma que um dos mais importantes – e
nocivos – efeitos da globalização é a utilização/gestão dos tempos e espaços (não
compartimentados), a qual opera, através de mecanismos de vigilância, uma gradual exclusão
social. Nesta nova conjuntura, os próprios vigiados, num ato de evasão de privacidade,
fornecem todo um “banco de dados” a respeito de sua localização tempo-espacial,
constituindo a principal fonte de informação que, pelo regime de dominação, será utilizada
para controlá-los, num movimento em que os vigiados tornam-se efetivamente voluntários de
sua própria vigilância. Engendra-se uma redistribuição dos poderes de controle e vigilância
que, gradualmente, vem substituindo o dispositivo Panóptico, onde, contrariamente a este,
muitos vigiam poucos, onde os vigiados passam a ser vigilantes: trata-se, portanto, de um
novo mecanismo de poder.
Observa-se que, nas escolas contemporâneas, mormente em instituições que afirmam
adotar uma pedagogia “alternativa”, menos tradicionalista, tanto os olhares panóptico quanto
90 | P á g i n a
Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três
Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano
(Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858).
Guavira
no10
sinóptico (este de forma insidiosa, pois disfarçada de “livre-arbítrio”) fazem-se presentes,
numa relação inequivocamente complementar: o poder exerce-se sobre (externo) e pelos
(internalizado) sujeitos. A escola passa a constituir-se num observatório político, num
aparelho que permite o conhecimento, o controle contínuo de seus sujeitos, por meio dos
professores, dos funcionários e dos próprios alunos, por meio dos dispositivos de vigilância
panópticos e sinópticos, os quais produzem uma subjetividade específica. Assim, a escola e
seus dispositivos de controle, vigilância e normalização fazem com que os indivíduos aceitem
o poder de punir e de serem punidos. Constata-se que a tecnologia do poder conquista um
lugar privilegiado nos discursos e nas ações, sendo a principal personagem das relações que
compõe o universo escolar, revelando, portanto, a possibilidade de se apreender a escola
enquanto um micropoder institucional, instrumento de controle, vigilância e normalização dos
indivíduos escolares.
Análise do corpus
Procedendo à observação do cotidiano da escola em que foi realizada a análise,
tornou-se possível verificar e problematizar algumas práticas, empregadas nesta instituição,
produtoras dos efeitos de prescrição (o que se deve fazer) e de codificação (o que se deve
saber). De forma que, assim como a noção foucaultiana de poder, as práticas escolares são
definidas aqui em sua positividade (em termos de efeitos), pois produzem modos de
objetivação e subjetivação dos indivíduos.
As análises descritas a seguir, resultado do percurso investigativo, de cunho
qualitativo-interpretativo focalizam, portanto, práticas escolares desenvolvidas em uma
Escola Municipal de Educação Infantil, na cidade de Campinas, no período de abril a maio de
2007. A investigação deu-se através de observação e acompanhamento das rotinas diárias das
crianças, professores e demais agentes institucionais. O foco da pesquisa se deu no
Agrupamento II, no qual encontravam-se inseridas 17 crianças (na faixa etária de 2-3 anos),
matriculadas em período integral, além de professoras, monitoras, educadoras, funcionárias e
equipe diretiva.
E, através da observação/participação de propostas pedagógicas vivenciadas pelos
sujeitos (crianças e adultos) inseridos neste contexto, foi selecionado, para o corpus desta
análise, uma das mais recursivas práticas (inclusive discursivas) perpetradas por esta
instituição: a rotina escolar diária das crianças (e dos professores e demais agentes neste
espaço).
Rotina oficial – administração do corpo no espaço e tempo
O planejamento das práticas escolares cotidianas regula as atividades de forma
sistemática, organizando/normatizando os tempos e os espaços a fim de homogeneizar o
comportamento dos escolares, adequando seu corpo à fragmentação do tempo e ao
enquadramento no espaço, produzindo, destarte, regimes corporais políticos particulares
(SILVA, 2002).
A instituição onde se procedeu à pesquisa, em seu Projeto Pedagógico (doravante PP),
define 17 momentos constituintes da “rotina geral”, os quais devem estar presentes nos planos
de trabalho de todos os educadores, sem distinção: entrada; hora da roda; higiene; café da
91 | P á g i n a
Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três
Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano
(Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858).
Guavira
no10
manhã; descanso; higiene; atividades diversificadas; higiene; almoço; higiene; descanso;
higiene; lanche; higiene; atividades diversificadas; higiene; lanche; saída.
Vejamos, a seguir, como os momentos de descanso e alimentação (sempre procedido e
sucedido da higienização) podem ser compreendidos enquanto práticas escolares que
materializam o investimento político dos corpos dos indivíduos.
Diariamente, na instituição, são prescritos dois momentos em que as crianças devem
descansar, nos quais professores e monitores devem, preferencialmente, fazê-las adormecer:
após o café da manhã, das 8h30min até às 9h30min, e após o horário do almoço, das 12h até
às 13h45min. Colchonetes são ordenadamente dispostos no chão da sala, de forma que as
crianças mais “tranquilas, que dormem com facilidade” (Diário de Campo, doravante DC,
12/04/07), – isto é, mais passíveis de controle, neste momento – fiquem agrupadas no
“cantinho mais escuro e silencioso” (DC, 12/04/07), distantes das janelas e porta da sala.
Quanto às crianças que “têm dificuldades para dormir” (DC, 12/04/07) – isto é, que não
querem ou não estão, necessariamente, cansadas o suficiente para precisarem descansar –,
seus colchonetes ficam localizados próximos à porta da sala, para que, caso “façam barulho
ou bagunça” (DC, 16/04/07) – transitando pela sala, em busca de seus livros preferidos,
brincando com o próprio corpo, falando sozinhas, cantando, contando histórias, etc... – e a fim
de evitar “desordem no ambiente” (DC, 16/04/07), são transferidas imediatamente dos
colchonetes para o colo dos professores e monitores que, orientadas pela equipe diretiva,
retiram-nas da sala para que se possa realizar a “adaptação da criança problemática” (DC,
19/04/07) à hora do sono. Tal prática, explicitamente utilitária, revela seu caráter disciplinar
na medida em que permite à instituição vigiar constantemente e, ao mesmo tempo, controlar
minuciosamente os corpos dos indivíduos no tempo e no espaço. Porém, nota-se que a
situação de resistência das crianças (categorizadas “problemáticas”) a esta prática, confirma a
teoria foucaultiana sobre a natureza mesma do poder disciplinar – quer dizer, que este não é
exercido de forma unilateral, não é algo que se possua ou se conquiste, e sim exercido/sofrido
por todos os indivíduos, crianças e adultos, (simultaneamente alvos e efeitos deste poder)
inseridos neste micropoder institucional, que é a escola.
Os momentos de alimentação, uma segunda prática escolar cotidiana, compreendem
quatro refeições: o café da manhã, servido às 8h15min, o almoço, às 11h30min e dois lanches,
um primeiro às 14h15min e um último às 16h. Após serem adequadamente calçadas – pois
“quando andam nas áreas externas não podem estar sem sapatos” (DC, 03/05/07) – e
propriamente higienizadas – todas devem lavar as mãos, e algumas precisam trocar as blusas
que, em atividades artísticas, derramaram tinta – as crianças, finalmente e enfileiradamente
são, diversas vezes ao dia, dirigidas ao refeitório. Espaço de composição arquitetural mais
rígido da instituição, o refeitório, quase que inteiramente fechado (há apenas uma janela
pequena localizada muito acima do campo de visão das crianças), apresenta três grandes
mesas (em uma delas é disposta a comida) e inúmeras cadeiras, apropriadas à altura das
crianças, nas quais elas – e somente elas – devem sentar-se, além de uma pequena abertura
para a cozinha, esta inapropriada à altura das crianças – pois não conseguem ver o que lá se
passa, mas são perfeitamente vistas pelas funcionárias que lá se encontram. O horário da
alimentação, o tempo de sua duração, e a forma como deve ser feita – ordenadamente, pois,
como estabelece o PP escolar, também nesses momentos (assim como na hora da
higienização), “são trabalhados alguns hábitos de boa educação e normas de conduta, como
não correr no trajeto para o refeitório nem dentro dele, não gritar, não ficar pondo a mão em
tudo, não falar com a boca cheia, conversar falando baixo, comer e beber devagar, colocar as
canecas no balde, antes de sair encostar a cadeira na mesa.” (PP, p.27) – são
institucionalmente prescritos e pormenorizadamente controlados por todos os “agentes”
92 | P á g i n a
Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três
Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano
(Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858).
Guavira
no10
dispostos no espaço do refeitório, os quais, inclusive, vigiam-se uns aos outros: a equipe
diretiva vigia as funcionárias da cozinha para estas preparem as refeições nos horários
determinados; as funcionárias da cozinha vigiam os professores e monitores para que esses
cumpram o horário de saída e entrada das turmas do refeitório; os professores e monitores
vigiam as crianças para que cumpram o tempo determinado no qual – silenciosamente, de
forma disciplinada – devem servir-se da comida e da bebida, pegar os talheres, sentar-se nas
cadeirinhas, mastigar “direitinho, sem babar” (DC, 25/04/07), engolir o sustento, devolver
seus copinhos e – silenciosamente, de forma disciplinada – esperar as outras crianças do
grupo terminarem o processo.
Assim disposta, a regulamentação dos momentos de alimentação e as práticas nestes
instauradas ordenam o cotidiano escolar e podem ser definidas enquanto mecanismos de
controle dos corpos, tempos e espaços dos indivíduos. Ainda, relativamente à vigilância
exercida/sofrida pelos sujeitos, pôde-se verificar que neste espaço cruzam-se olhares
panópticos e sinópticos – mecanismos instauradores/constituintes do poder disciplinar – que,
em última instância, objetivam impedir quaisquer transgressões à “norma” institucionalmente
forjada.
Tais práticas escolares podem, de fato, ser definidas enquanto técnicas de
normatização dos comportamentos, pois trata-se, a rigor, de uma biopolítica: através da
organização tempo-espacial, é possível – além de vigiar e controlar – gerir as condutas dos
indivíduos, numa estratégia político-econômica eminentemente operacional. Destarte,
observa-se que, nestes momentos, a disciplina, por adquirir caráter sistemático, permite que os
efeitos de poder sejam homogêneos e, objetivando a suspensão das multiplicidades e a
supressão de desvios das condutas, instauram-se, na rotina escolar, micropenalidades baseadas
em juízos de normalidade, sanções normalizadoras, tais como: crianças que não dormem são
caracterizadas como insolentes, pois falam alto, desrespeitando o sono das outras, e devem
ser retiradas da sala (micropenalidade do discurso); crianças descalças são caracterizadas
como negligentes, pois não zelam pela regra da escola “lugar fechado pode ficar descalça,
lugar aberto dever estar calçada” e, portanto, não podem andar nas áreas abertas
(micropenalidade da atividade); crianças que correm ou instauram qualquer tipo de desordem
no refeitório são caracterizadas como grosseiras, incivilizadas, e portanto devem ser de lá
retiradas e voltar para a sala de aula (micropenalidade da maneira de ser); crianças que se
dispersem das brincadeiras/atividades propostas, interrompendo-as, são caracterizadas como
desatentas, distraídas, e das mesmas devem ser apartadas (micropenalidade do tempo);
crianças que não foram adequadamente higienizadas são caracterizadas como sujas, e
portanto não podem comer (micropenalidade do corpo); dentre outras. Trata-se, aqui, de uma
microfísica do detalhe que permite, simultaneamente, individualizar e homogeneizar
comportamentos. As caracterizações descritas acima constituem, realmente, técnicas de
subjetivação dos indivíduos inseridos na instituição escolar (crianças) as quais, derivadas de
relações de poder-saber, operam a produção da experiência de si, funcionando como
tecnologias do eu, pois “constroem e medeiam a relação do sujeito consigo mesmo” (SILVA,
2002, p. 37), inscrevem nos corpos dos indivíduos uma determinada forma de se ver, de se
narrar, de se expressar, de se relacionar consigo e com os outros, designando uma posição de
sujeito, que lhe é atribuída como própria.
93 | P á g i n a
Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três
Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano
(Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858).
Guavira
no10
Considerações finais
A partir das apreciações realizadas, através das quais procuramos problematizar as
relações de poder-saber que sustentam algumas das práticas escolares observadas na
instituição em questão – atentando especialmente a alguns efeitos desta relação –, pode-se
afirmar que as análises da leitura de alguns dos registros escolares, assim como das práticas
do cotidiano, tornaram possível identificar/revelar o modo como se operam os mecanismos
disciplinares neste micropoder institucional.
A hipótese inicialmente levantada, a saber, de que o projeto pedagógico vigente,
quando materializado nas relações entre os sujeitos envolvidos no processo escolar, consiste,
na verdade, em mecanismos de controle e normalização, subjetivando os indivíduos escolares
e forjando assim um tipo específico de individualidade, pôde ser confirmada por análises
realizadas a partir do referencial foucaultiano. Com efeito, o indivíduo escolar, emaranhado
na rede de relações de poder, constitui-se enquanto sujeito através de mecanismos
disciplinares normalizadores, e sua identidade é construída por meio de prescrições que
obedeçam à norma socialmente estabelecida, da qual a escola figura como uma das mais
importantes difusoras, homogeneizando os comportamentos humanos desde seus primeiros
anos. Ao considerarmos as práticas escolares como socialmente produzidas – pois se
fundamentam em normas historicamente forjadas – torna-se possível desnaturalizá-las,
ensaiando outras posições-sujeito, e diferentes modos de agir e de pensar, mais livres e
originais.
Como vimos, à análise do funcionamento político da instituição escolar, Foucault
oferece indispensável arcabouço teórico, pois a partir desta perspectiva, a escola passa a
constituir-se num observatório político, num aparelho que permite o conhecimento, o controle
contínuo de seus sujeitos, através dos diretores, dos professores, dos funcionários e dos
próprios alunos. A escola e suas técnicas disciplinares fazem com que os indivíduos aceitem o
poder de punir e de serem punidos, e a disciplina conquista assim um lugar privilegiado nos
discursos e nas ações, sendo a principal personagem das relações que compõe o universo
escolar.
Postulamos que a teoria foucaultiana da relação de poder-saber dos discursos e das
práticas disciplinares consiste em uma lente possível de olhar o funcionamento político da
instituição escolar de modo que os profissionais da área de ensino-aprendizagem possam
ressignificar o discurso político-educacional através de práticas que subvertam as relações
estabelecidas em sala de aula, deslocando as subjetividades a fim de impedir que os sujeitos
envolvidos no processo educacional se inscrevam em formações discursivas normalizadoras.
Para concluir o presente artigo (mas com o intuito de apenas iniciar a discussão),
torna-se pertinente esclarecer que o objetivo maior de se proceder à pesquisa desenvolvida
deriva da necessidade de levantarmos os regimes de verdade que legitimam os sistemas de
dominação e coerção dentro dos quais nos encontramos e, com certeza, encontra-se a escola.
Ao puxar os fios da teia educacional, podemos olhar por trás e tentar entender como tal teia é
construída e, por que não, construirmos uma teia melhor. Ou nas palavras de Foucault (2005a,
p. 37), “[...] destruir as venerações tradicionais a fim de libertar o homem e não lhe deixar
outra origem senão aquela em que ele quer se reconhecer”, e através do qual apareçam “todas
as descontinuidades que nos atravessam” (op., cit., p. 35) – pois o que torna singular o ser
humano é, precisamente, a quebra da norma, a invenção de si: é através da resistência, no
imponderável e no imprevisível, que se dá a prática criativa da liberdade humana.
94 | P á g i n a
Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três
Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano
(Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858).
Guavira
no10
Referências
BAUMAN, Zygmunt. Globalização: as conseqüências humanas. Trad. Marcus Penchel. Rio
de Janeiro: Jorge Zahar, 1999.
_______. Modernidade Líquida. Trad. Plínio Dentzien. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.
CORAZZA, Sandra. O que quer um currículo?: pesquisas pós-críticas em Educação.
Petrópolis: Vozes, 2001.
DELEUZE, Gilles. Conversações: 1972-1990. Trad. Peter Pál Pelbart. Rio de Janeiro: 34,
1992.
DREYFUS, H.; RABINOW, P. Michel Foucault: uma trajetória filosófica. Trad. Vera Porto
Carrero. São Paulo: Forense Universitário, 1995.
FOUCAULT, Michel. A Ordem do Discurso. Trad. L.F.A. Sampaio. São Paulo: Loyola,
1996.
______. Em Defesa da Sociedade. Trad. M.E. Galvão. São Paulo: Martins Fontes, 2000.
_______. Ditos e Escritos IV. Trad. Vera Lucia Avellar Ribeiro. Rio de Janeiro: Forense
Universitária, 2003.
_______. Microfísica do Poder. Trad. Roberto Machado. Rio de Janeiro: Graal, 2005a.
_______. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Trad. Raquel Ramalhete. Petrópolis: Vozes,
2005b.
GALLO, Silvio. Entrevista concedida à Revista do Instituto Humanitas. 2009. Disponível
em: www.unisinos.com.br. Acesso em 06 Jan 2009.
LARROSA, Jorge. Tecnologias do Eu e Educação. In: Silva, Tomaz Tadeu da (org). O sujeito
da educação: estudos foucaultianos. Petrópolis: Vozes, 2002, p. 23-38.
MASCIA, Márcia A. Amador. A Hermenêutica do Sujeito do Desejo: as Confissões do
Professor de Língua Inglesa e as Técnicas de Si. In: Anais do II SEMAD. Uberlândia, 2006.
Ó, Jorge Ramos do. O Governo dos Escolares. Uma aproximação teórica às perspectivas de
Michel Foucault. Lisboa: Educa, 2001.
SILVA, Tomaz Tadeu da (org). O sujeito da educação: estudos foucaultianos. Petrópolis:
Vozes, 2002.
95 | P á g i n a
Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três
Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano
(Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858).
Guavira
no10
POR NOVOS TEMAS E ABORDAGENS EM LINGUÍSTICA APLICADA –
UMA VIAGEM ATRAVÉS DAS NOVAS IDENTIDADES DO SÉCULO XXI
NAS TIRINHAS DE ADÃO ITURRUSGARAI
Alex Caldas Simões (PG-UFV)32
Maria Carmen Aires Gomes (UFV)33
RESUMO: A partir de um percurso teórico-caracterizador do período moderno/pós-moderno – Berman, (2007);
Giddens (1991) –, pretendemos em nossa exposição problematizar o campo teórico conhecido como Linguística
Aplicada (LA), de modo a ressaltar a sua atual emergência epistemológica: é necessário compreender a vida
social – moderna e quem sabe pós-moderna – com os grupos minoritários “em suas perspectivas e vozes, sem
hierarquizá-los” (MOITA-LOPES, 2006, p. 96). Dessa forma – apoiados em Moita-Lopes (1996; 2006), Rojo
(2006), Bohn (2005), Fabrício (2006), Rajagopalan (2003, 2006a; 2006b) e Hall (2004) – pretendemos discorrer
sobre a atual perspectiva da LA e as suas inquietantes indagações, ao observarmos as novas identidades da
modernidade presentes “ficcionalmente” nas tirinhas de Aline, de Adão Iturrusgarai (2007, 2009a, 2009b).
Concluímos com este, portanto, que novas identidades surgiram no contexto da modernidade e, assim, emerge no
campo em questão a necessidade de construção de novos paradigmas teóricos e práticos.
Palavras-chave: Identidade; Modernidade; Linguística Aplicada.
ABSTRACT: With a theoretical characterization of the modern/postmodern – Berman (2007), Giddens (1991) –
we want with our exposure to realize a problematization of the theoretical field known as Applied Linguistics
(LA), so as well as to highlight the Current epistemological emergency: it is necessary to understand the social
life – modern and perhaps post-modern – with minority groups "in their perspectives and voices, not prioritizing
them (MOITA-LOPES, 2006, p. 96) . Thus – supported by Moita-Lopes (1996; 2006), Rojo (2006), Bohn (2005),
Fabricio (2006), Rajagopalan (2003, 2006a; 2006b) and Hall (2004) – we want to discuss the current view of
LA and its disturbing questions when setting observing the new identities in the modernity "fictionally" presented
in strips of Aline, Adam Iturrusgarai (2007, 2009a, 2009b). As conclusion, we can say that new identities
emerged in the context of modernity and thus emerge in this field, these is a necessity for new theoretical
paradigms and practical construction.
.
Keywords: Identity; Modernity; Applied Linguistics.
Entendendo a modernidade e as suas imbricações
Ao observarmos o campo da Linguística Aplicada (LA) percebemos que ela deixou,
há algum tempo, de problematizar a antiga tensão entre “Linguística Aplicada versus
Linguística teórica” para se concentrar no interior de seu próprio campo de estudo. Tal
mudança se fez necessária hoje, pois a sociedade contemporânea sente mais energicamente a
vida moderna e pós-moderna. Antes de desenvolvermos essa questão, cabe aqui realizarmos
um pequeno panorama teórico-caracterizador do período moderno e pós-moderno de forma a
entendermos com maior clareza a atual necessidade epistemológica do campo Lingüístico
Aplicado.
32
Mestrando em Letras pela Universidade Federal de Viçosa – Bolsista CAPES/REUNI.
Doutora em Estudos Linguísticos pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), com Pósdoutorado em Linguística Aplicada pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Professora
adjunta da Universidade Federal de Viçosa (UFV).
33
96 | P á g i n a
Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três
Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano
(Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858).
Guavira
no10
Modernidade, segundo Anthony Giddens (1991, p. 11), “refere-se a estilo, costume de
vida ou organização social que emergiam na Europa a partir do século XVII e que
ulteriormente se tornaram mais ou menos mundiais em sua influência.” Para Marshall Berman
(2007, p. 24) “ser moderno é encontrar-se em um ambiente que promete aventura, poder,
alegria, crescimento, autotransformação e transformação das coisas em redor – mas ao mesmo
tempo ameaça destruir tudo o que temos, tudo o que sabemos, tudo o que somos.”
Berman (2007) dividiu o fenômeno da modernidade em três fases. A primeira fase,
que começou no século XVI e foi até o final do século XVIII que corresponde ao período em
que a sociedade estava apenas começando a viver a modernidade e não sabia muito bem como
agir diante dela. A segunda fase, que começou com a onda revolucionária de 1790 – com a
revolução francesa – e que corresponde ao período em que as pessoas viviam um pouco mais
intensamente a dicotomia “viver na revolução e ao mesmo tempo lembrar o que era viver
material e espiritualmente”. E a terceira fase que corresponde ao período em que o processo
de modernização se expandiu e abarcou o mundo todo – a arte, o pensamento e muitas outras
formas de atividade humana.
Dentre as características dessa nova sociedade, destacamos juntamente com Giddens
(1991) que atualmente: vivemos em um ritmo acelerado de mudanças – a mudança na
modernidade é extrema e essa aceleração toma as tecnologias e todas as outras esferas da vida
humana –; vivemos em um escopo de mudança onde “diferentes áreas do globo são postas em
interconexão” (GIDDENS, 1991, p. 16) ocasionando uma transformação global e geral da
sociedade; vivemos em uma sociedade em que “as formas sociais modernas simplesmente não
se encontram em períodos históricos precedentes” (GIDDENS, 1991, p. 16).
Ainda podemos dizer, como também indica Berman (2007, p. 24), que a modernidade
“nos despeja a todos num turbilhão de permanente desintegração e mudança, de luta e
contradição, de ambigüidade e angústia”. As constantes mudanças têm levado a atual
civilização a sentir muito profundamente uma enorme ausência e vazio de valores, e, ao
mesmo tempo, contraditoriamente, tem a levado a viver uma “desconcertante abundância de
possibilidades” (Cf. BERMAN, 2007, p. 24) – o que provoca um processo de
individualização. O sujeito moderno está “isolado, exilado ou alienado, colocado contra o
pano-de-fundo da multidão ou da metrópole anônima e impessoal” (Cf. HALL, 2004, p.32).
Nesse crescente turbilhão moderno alguns acreditam, segundo Berman (2007, p. 33),
que a única solução para tamanho caos seria “tentar deixar de viver.” Outros, entretanto,
segundo o autor (2007), acreditam que o homem de amanhã trará no futuro os valores que o
homem do presente ainda não possui: pois hoje somos “seres sem espírito, sem coração, sem
identidade sexual, ou pessoal – quase poderíamos dizer: sem ser” (BERMAN, 2007, p. 39).
Essa crença em uma nova sociedade configura o panorama histórico-social da pósmodernidade: “[a]lém da modernidade, devo argumentar, podemos perceber os contornos de
uma ordem nova e diferente, que é ‘pós-moderna’” (GIDDENS, 2007, p. 13). Entretanto,
segundo Giddens (1991), a sociedade ainda não vive a época pós-moderna, observa apenas
poucos relances dessa nova ordem social.
“Em vez de estarmos entrando num período de pós-modernidade, estamos alcançando
um período em que as conseqüências da modernidade estão se tornando mais radicalizadas e
universalizadas do que antes” (GIDDENS, 1991, p. 13).
Tais radicalizações, segundo Giddens (1991), se configuram na medida em que o
advento da modernidade trouxe a população mundial enormes benéficos industriais e de
modos de vida; em detrimento, nem sempre previsto, de um certo desgaste ambiental. Essa
nova ordem social, ainda moderna, se configura, segundo o autor, por um sistema econômico
capitalista móvel/acelerado – visto o ciclo crescente entre investimento-lucro-investimento. A
97 | P á g i n a
Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três
Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano
(Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858).
Guavira
no10
euforia econômica, entretanto, não se deve tanto a uma ordem capitalista, mas sim a um forte
processo de industrialização:
O caráter de rápida transformação da vida social moderna não deriva essencialmente
do capitalismo, mas do impulso energizante de uma complexa divisão de trabalho,
aproveitando a produção para as necessidades humanas através da exploração
industrial da natureza (GIDDENS, 1991, p. 20).
Podemos compreender esse dinamismo moderno, como também indica Giddens
(1991), entendendo que vivemos uma dissociação tempo-espaço, ou seja, a modernidade
“arranca crescentemente o espaço do tempo fomentando relações entre outros ‘ausentes’,
localmente distantes de qualquer situação dada ou interação face a face” (GIDDENS, 1991, p.
27). Essa dissociação tempo-espaço, ocasionada pela modernidade, afeta consideravelmente o
nosso modo de vida atual, uma vez que as categorias de tempo e espaço atualmente, segundo
Giddens (1991, p. 29), são recombinadas “para formar uma estrutura histórico-mundial
genuína de ação e experiência.”
Nesse novo contexto tempo-espacial, a sociedade vive uma experiência singular de
desencaixe, ou seja, um “‘deslocamento’ das relações sociais de contextos locais e de
interação e sua reestruturação através de extensões indefinidas de tempo-espaço” (GIDDENS,
1991, p. 29). Nessa ação de desencaixe predominam a confiança – que, segundo Giddens
(1991), pressupõe uma consciência de risco – e uma reflexibilidade sobre a vida social –
afinal, “as práticas sociais são constantemente examinadas e reformuladas à luz de informação
renovada sobre estas próprias práticas, alterando assim constitutivamente seu caráter”
(GIDDENS, 1991, p. 45).
Com estes dois aspectos do desencaixe, a sociedade moderna vive um impasse: ela,
por ser reflexiva, sabe que o conhecimento que formula nunca será seguro, uma vez que é
constantemente reformulado: “[e]m ciência, nada é certo e nada pode ser provado, ainda que
o empenho científico nos forneça a maior parte da informação digna de confiança sobre o
mundo a que podemos aspirar” (GIDDENS, 1991, p. 46).
A atmosfera moderna, portanto, pode ser descrita pelas palavras de Berman (2007, p.
28) como um espaço de “agitação, expansão das possibilidades de experiência e destruição
das barreiras morais e dos compromissos pessoais, auto-expansão e auto-desordem.”
Diante deste novo cenário de vida surgem inúmeras novas identidades sociais e
institucionais; isso nos leva a uma crise de identidade, uma vez que “uma mudança estrutural
está fragmentando as paisagens culturais de classe, gênero, sexualidade, etnia, raça e
nacionalidade” (HALL, 2004, p.9). Esta reação à sociedade moderna nos conduz à pósmodernidade, a qual para Stuart Hall (2004, p. 10), corresponde a uma “modernidade tardia.”
Esse novo cenário estrutural tardio tem levado a formação de um sujeito diferente,
fragmentado: “composto não de uma única, mas de várias identidades, algumas vezes
contraditórias ou não resolvidas” (HALL, 2004, p. 12) – estas identidades, portanto, não são
fixas ou permanentes; alteram-se de acordo com os diferentes momentos histórico-sociais
vividos por cada indivíduo ou sociedade. Hall (2004) indica que, na modernidade tardia,
surgirão novas identidades culturais advindas de processos de tradução cultural: são
formações de identidade de pessoas que não moram mais em sua terra Natal, mas que mantém
vínculos com as suas tradições e costumes, “elas são obrigadas a negociar com as novas
culturas em que vivem, sem simplesmente serem assimiladas por elas e sem perder
completamente suas identidades” (HALL, 2004, p. 88). Esse é o caso, por exemplo, de uma
98 | P á g i n a
Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três
Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano
(Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858).
Guavira
no10
imigrante brasileira que se casa com um americano. Ela não mora mais no Brasil, mas ainda
assim mantém os seus costumes.
LA: por novos paradigmas de pesquisa
Diante deste caldeirão moderno e pós-moderno, a LA, segundo Moita-Lopes (1996),
procura se desenvolver em torno dos seguintes elementos: i) visa à resolução de problemas de
usos da linguagem tanto no contexto escolar quanto fora dele; ii) observa a linguagem do
ponto de vista de sua interação tentando descrever como ela se processa; iii) se localiza entre
o campo teórico e os problemas de uso da linguagem; e iv) utiliza um arcabouço teórico
advindo de diversas áreas do conhecimento humano para dar conta de analisar e de interpretar
um objeto – o que pode fortalecer/criar um determinado modelo teórico de pesquisa.
Segundo Moita-Lopes (1996) a tendência atual dos estudos em LA se foca “na sala de
aula” e não “para sala de aula” – ou seja, o pesquisador de LA tem se tornado um professorpesquisador que realiza pesquisas de intervenção, seja pelo método etnográfico – observação
participante – ou pelo método interativista – pesquisa não-participante com caráter de
interação mais planejado.
Moita Lopes (2006) afirma que o antigo debate “Linguística teórica versus Lingüística
aplicada” migrou para o interior da LA: há uma preocupação por novas epistemologias, por
um projeto de renovação e de reinvenção da Linguística Aplicada – afinal, o mundo já não é
mais o mesmo. Segundo o autor há na contemporaneidade uma plenitude icônica e novas
identidades: é necessário, compreender a vida social com os grupos minoritários “em suas
perspectivas e vozes, sem hierarquizá-los” (MOITA-LOPES, 2006, p. 96). Dessa forma, a
condição essencial das pesquisas em LA na contemporaneidade, principalmente após a virada
discursiva, é o estudo da linguagem sob o enfoque do social, do político e do histórico. Fazer
pesquisa em LA é realizar uma teorização política e ideológica “em que teoria e prática sejam
conjuntamente consideradas em uma formulação de conhecimento” (MOITA-LOPES, 2006,
p. 101).
Em relação à modernidade e à pós-modernidade e aos novos temas abordados em LA,
Roxane Helena Rodrigues Rojo (2006) afirma que é necessário que a LA da pós-modernidade
entenda que só conseguirá refletir as soluções para os problemas sociais da linguagem na
medida em que esta se veja como um campo transdiciplinar tomando como objeto de estudo
as privações sofridas, ou seja, os estudos de casos desviantes, para assim estruturar suas
próprias configurações teórico-metodológicas que a definirão como campo de pesquisa
acadêmica diferencial.
Agregando-se a esta discussão da pós-modernidade, Hilário Bohn (2005) acredita que
é na diferença, nas dicotomias em contraste, que surgirão as “respostas” às novas perspectivas
da LA, pois o que se estuda hoje são as similitudes e não os desvios (as novas identidades) – a
perspectiva moderna da LA, portanto, se dirige ao estudo dos casos desviantes 34: novos
paradigmas, segundo ele (2005), se fazem na diferença e não no universal.
Branca Falabella Fabrício (2006) indica ainda que o mundo contemporâneo, moderno
e pós-moderno, se caracteriza por um constante movimento, oscilando entre continuidades e
rupturas. Dessa forma, no século XXI a LA reivindica temas e pesquisas que se
comprometam com a política, a ética e uma ação transformadora/intervencionista na
34
Entendemos aqui casos desviantes, segundo Bohn (2005), como temas de pesquisa marginais ou grupos
minoritários marginalizados.
99 | P á g i n a
Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três
Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano
(Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858).
Guavira
no10
sociedade. Ela postula também que são os espaços marginais os focos de estudos atuais em
LA. É preciso que a LA moderna e pós-moderna se “desaprenda”, ou seja, que esta aposte na
fluidez e comece a encarar a mestiçagem – a hibridização – como elemento diferencial para a
construção do novo.
Essa necessidade também é percebida por Kanavillil Rajagopalan (2006b): afinal,
segundo ele, a teoria lingüística deve se articular com sua prática; da prática também pode-se
formar a teoria. Nesse sentido, toda a atual LA precisa ser repensada. Sobre as novas
identidades da modernidade e pós-modernidade, Rajagopalan (2006) afirma que, por muito
tempo, a questão da identidade foi tratada de forma pacífica, como se fosse fácil responder a
pergunta “quem sou eu.” A identidade hoje não é fixa ou estanque: “[a] identidade como algo
total estável já não tem nenhuma utilidade prática num mundo marcado pela crescente
migração de massas e pela entremesclagem cultural, religiosa, étnica, numa escala sem
precedentes” (RAJAGOPALAN, 2006, p. 40).
Ainda segundo Rajagopalan (2006) a formação de uma identidade está atrelada a
inúmeras questões de interesse político – ou, ainda, às conveniências do momento (Cf.
RAJAGOPALAN, 2003). A identidade se constrói “na língua e através dela”
(RAJAGOPALAN, 2006, p. 41) – afinal, as identidades, segundo o autor, estão em constante
renovação e recriação.
As novas identidades do momento moderno e pós-moderno
Em meio a esta agitação teórica e contemporânea, cabe-nos aqui ressaltar algumas das
novas identidades surgidas na modernidade e na pós-modernidade como forma de indicar a
necessária urgência da LA quanto à busca por novos temas e abordagens epistemológicas.
Para tanto analisaremos as tirinhas de Aline I, II e III de Adão Iturrusgarai (2006, 2009a,
2009b) como forma de apresentar algumas das novas identidades formadas no período
moderno e pós-moderno aqui esboçado.
Aline é uma personagem de narrativa adulta, que pode ser descrita pelo autor como:
Aline é que é mulher de verdade. Trabalha fora de casa, odeia cozinhar e arrumar a
casa e tem DOIS maridos. Ela divide a cama com Otto e Pedro. Os três se amam, mas
isso não impede que Aline procure diversão fora do lar. Dizem as más línguas que
Aline é ninfomaníaca, tarada sexual. Já as boas línguas preferem dizer que ela é uma
mulher normal e simplesmente “dá vazão livre aos instintos sexuais”.
(ITURRUSGARAI, 2006; 2009b, contracapa).
Toda a sua história começa quando ela e seu companheiro, Otto, procuram mais uma
pessoa para dividir o apartamento (Fig. 1):
100 | P á g i n a
Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três
Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano
(Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858).
Guavira
no10
(ITURRUSGARAI, 2009a, p. 4 – Fig. 1)
O impasse ocasionado pela escolha do(a) novo(a) companheiro(a) de apartamento,
nos revela a possibilidade de uma nova identidade, uma pessoa que fosse ao mesmo tempo
homem/mulher ou mulher/homem e que pudesse preencher a vaga disponível de forma ideal.
Resolvido o impasse, Aline e Otto escolhem o novo morador, Pedro (Fig.2).
(ITURRUSGARAI, 2009a, p. 8 – Fig. 2)
Surpreendentemente, Otto e até mesmo o novo morador, Pedro, começam a estranhar
Aline: afinal que mulher é essa que aplica “testes de sofá”? Para as nossas questões teóricas
podemos nos perguntar: que tipo de mulher é essa? Que identidade feminina está sendo
formada neste cenário moderno e pós-moderno?
Podemos perceber, logo de início, que Aline não é como as meninas que a sua avó
conheceu, ela corresponde a uma nova identidade feminina, afinal tem dois namorados que
futuramente se tornarão seus maridos (Fig. 3):
101 | P á g i n a
Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três
Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano
(Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858).
Guavira
no10
(ITURRUSGARAI, 2009a, p. 32 – Fig. 3)
Aline corresponde a uma nova identidade de mulher, que quer compromisso, mas nem
tanto; por isso, não é reconhecida socialmente por seus pares ou parentes – na maioria das
vezes é marginalizada por assumir a sua identidade. Seus companheiros, por sua vez, parecem
que também a aceitam do jeito ela que é (Fig. 4):
(ITURRUSGARAI, 2009a, p. 39 – Fig. 4)
Tanto Otto quanto Pedro correspondem a uma nova identidade de homem, ainda que
ficcional: homens que aceitam a traição de uma mulher, desde que seja com um deles e não
com um terceiro (Fig. 5):
(ITURRUSGARAI, 2007, p. 68 – Fig. 5)
102 | P á g i n a
Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três
Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano
(Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858).
Guavira
no10
Podemos perceber ainda que outras identidades marginais surgem na Tirinha Aline, na
medida em que a vida da personagem vai correndo. É o caso do patrão de Aline, chefe da loja
de discos, Pipo, da Pipo Records (Fig. 6):
(ITURRUSGARAI, 2009a, p. 67 – Fig. 6)
Com a tirinha acima percebemos que a sociedade moderna ainda não encara muito
bem as novas identidades sexuais. Devido a esse recalque social, muitas vezes uma identidade
marginal na modernidade tende a se esconder. Já em um contexto de pós-modernidade,
podemos observar a formação de um sujeito fragmentado que é, portanto, passível de assumir
diferentes identidades em locais diferentes – de maneira libertadora. O mesmo ocorre com a
nova identidade sexual feminina, na figura da personagem Linda – vizinha de Aline e que,
recentemente, posou nua numa revista masculina (Fig. 7):
(ITURRUSGARAI, 2007, p.12 – Fig. 7)
A exposição não-declarada, mas explícita, de identidade sexual dos personagens
assume contornos sociais modernos e complexos no decorrer da narrativa de Aline. Quando
Pedro e Otto, por exemplo, são alistados no exército e saem pelados em uma revista gay – Hot
Cuecas – podemos perceber que, na contemporaneidade, um indivíduo pode assumir várias
identidades sociais, sem que isto afete nenhuma de suas identidades já assumidas – no caso
em questão, Otto e Pedro não são homossexuais, mas ainda assim posaram em uma revista
homoerótica35 (Fig. 8):
35
Uma revista homoerótica é aquela que se dirige a um público homossexual, seja gay ou lésbica.
103 | P á g i n a
Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três
Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano
(Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858).
Guavira
no10
(ITURRUSGARAI, 2007, p.17 – Fig. 8)
Mesmo assim, percebemos que a sociedade ainda não conseguiu assimilar algumas
dessas novas e reais identidades modernas. A figura de mulher moderna, assim como no caso
acima, ainda não é muito reconhecida na sociedade, apesar das constantes reivindicações
sociais e lutas sociais (Fig. 9):
(ITURRUSGARAI, 2007, p.20 – Fig. 9)
Ainda podemos perceber no cenário moderno e pós-moderno a construção de novas
identidades que, embora não sejam sexuais, são vistas, por falta de compreensão social, como
tal. É o que ocorre quando Aline descobre que o seu psiquiatra Yuri usa calcinha (Fig. 10):
(ITURRUSGARAI, 2007, p.58 – Fig. 10)
A liberdade sexual e de identidade correspondem a fenômenos modernos/pósmodernos que a sociedade atual tem pouco problematizado, como podemos ver também na
tirinha abaixo, em que onde Otto e Pedro pegam escondido a cueca de Antônio Bandeiras da
104 | P á g i n a
Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três
Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano
(Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858).
Guavira
no10
coleção de Aline e acham que podem ser como Antônio Bandeiras caso se vistam como ele
(ou melhor, com a cueca dele) (Fig. 11):
(ITURRUSGARAI, 2007, p. 85 – Fig. 11)
Na tirinha acima, percebemos a construção de uma nova identidade sexual por parte
do personagem Pedro. Ele assume gostar do sexo oposto e sentir atração sexual pelo mesmo
sexo: ainda assim, se considera-se detentor de uma imagem sexual de homem e não de homo(bi)-sexual.
O mesmo corre com Aline quando esta assume sua identidade feminina e, em algumas
circunstâncias, também uma identidade tradicionalmente masculina, que nada remete a sua
sexualidade (Fig. 12, 13, 14):
(ITURRUSGARAI, 2007, p. 85 – Fig. 12)
(ITURRUSGARAI, 2009b, p. 85 – Fig. 13)
105 | P á g i n a
Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três
Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano
(Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858).
Guavira
no10
(ITURRUSGARAI, 2009b, p. 70 – Fig. 14)
Identidades tradicionalmente masculinas, na era moderna/pós-moderna, são
transformadas e redirecionadas para identidades femininas, o que resulta em uma nova
identidade de mulher: sexualmente ativa, certas de seus desejos e capaz de realizá-los (Fig.
12,13,14) – como na tirinha abaixo, em que Aline ensina a sua amiga Kiki os segredos do
sexo e da conquista (Fig. 15):
(ITURRUSGARAI, 2009b, p. 64 – Fig. 15)
A nova identidade feminina em Aline permeia outras personagens além de Aline, o
que causa certo “desconforto” para os homens – como quando Otto e Pedro vão à praia
sozinhos para deixar Aline “alone” e são cortejados por Kátia, uma banhista (Fig. 16):
(ITURRUSGARAI, 2009b, p. 92 – Fig. 16)
106 | P á g i n a
Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três
Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano
(Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858).
Guavira
no10
Há uma nova identidade feminina na modernidade/pós-modernidade que se sente mais
à vontade – até mesmo atraída – por homens comprometidos. Essa nova mulher, portanto, não
considera um crime assumir este novo papel, mesmo sofrendo represálias sociais – que
surgem, por uma incompreensão da possibilidade humana de assumir várias e variadas
identidades sociais.
Como resumo dessa nova perspectiva feminina, Aline se assume como uma “nova
feminista”, radical, forte, segura e ainda assim feminina (Fig. 17):
(ITURRUSGARAI, 2009b, p. 125 – Fig. 17)
Considerações finais
A partir das formulações acima, podemos perceber que o mundo moderno/pósmoderno, ainda que ficcionalmente, apresenta muitas novas identidades, até mesmo
marginais, que ainda não foram muito bem definidas e analisadas. Cabe ao campo científico
pertencente à Linguística Aplicada, portanto, a tarefa de, como já citado anteriormente,
compreender a vida social com os grupos minoritários “em suas perspectivas e vozes, sem
hierarquizá-los” (MOITA-LOPES, 2006, p. 96).
Tal tarefa, uma vez configurada, proporcionará um novo olhar para velhos problemas,
o que corresponderá, quem sabe, a formulação de algumas soluções para antigos paradigmas
teóricos e práticos indecifráveis. Afinal,
talvez a próxima grande revolução na lingüística resulte da constatação, por parte dos
teóricos, de que muitos dos incontroláveis fenômenos que desafiam as teorias
contemporâneas só começarão a fazer sentido, ao que tudo indica, quando começamos
107 | P á g i n a
Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três
Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano
(Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858).
Guavira
no10
a levar seriamente em conta a possibilidade das identidades “vira-latas” de Rushdie36,
o que significa identidades em permanente estado de fluxo (RAJAGOPALAN, 2006,
p. 42).
Talvez ainda haja ao observarmos novas identidades a possibilidade de entendimento
de antigas identidades sociais: ao analisarmos identidades femininas, como as de Aline – que
assume sua identidade feminina e, em algumas circunstâncias, também uma identidade
tradicionalmente masculina, que nada remete a sua sexualidade –, ou masculinas, como as de
Pedro – que assume gostar do sexo oposto e sentir atração sexual pelo mesmo sexo, e não se
considerar homo-(bi)-sexual. A partir disso poderemos, então, descobrir (quem sabe) as
motivações, crenças e desejos dos homens e das mulheres de nossa época e de outras épocas –
o que acabará por fomentar a construção de novos paradigmas teóricos e práticos para LA.
Referências
BERMAN, Marshall. Tudo que é sólido desmancha no ar. Trad. Carlos Felipe Moisés; Ana
Maria L. Ioriatti. São Paulo: Companhia das Letras, 2007. p. 24-49.
BOHN, Hilário I. As exigências da Pós-modernidade sobre a pesquisa em Lingüística
Aplicada no Brasil. In: Freire, Maximina M; Abrahão, Maria Helena Vieira; Barcelos, Ana
Maria Ferreira (org). Lingüística Aplicada e Contemporaneidade. São Paulo: ALAB;
Campinas: Pontes, 2005. p. 11-23.
FABRÍCIO, Branca Falabella. Lingüística Aplicada como espaço de “desaprendizagem”
redescrições em curso. In: Lopes, Luiz Paulo da Moita (org). Por uma linguística
INdisciplinar. São Paulo: Parábola, 2006 . p. 45-66.
GIDDENS, Anthony. As conseqüências da modernidade. Trad. Raul Fiker. São Paulo:
Editora UNESP, 1991. p. 11-60.
HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Trad. Tomaz Tadeu da Silva;
Guaracira Lopes Louro. 9 Ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2004.
ITURRUSGARAI, Adão. Aline e seus dois namorados. Porto Alegre: L&PM, 2009a.
______. Aline 2: TPM – Tensão Pré-mostrual. Porto Alegre: L&PM, 2007.
______. Aline 3: viciada em sexo. Porto Alegre: L&PM, 2009b.
MOITA LOPES, Luiz Paulo. Afinal, o que é Lingüística Aplicada. In: Oficina de Lingüística
Aplicada: a natureza social e educacional dos processos de ensino/aprendizado de línguas.
Campinas: Mercado de Letras, 1996. p. 17-25.
36
Rushdie, S. In good faith. Londres: Granta, 1989.
108 | P á g i n a
Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três
Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano
(Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858).
Guavira
no10
MOITA LOPES, Luiz Paulo. Lingüística Aplicada e vida contemporânea: problematização
dos construtos que têm orientado a pesquisa. In: Lopes, Luiz Paulo da Moita (org). Por uma
linguística INdisciplinar. São Paulo: Parábola, 2006. p. 85-107.
RAJAGOPALAN, Kanavillil. Por uma lingüística crítica: linguagem, identidade e a questão
ética. São Paulo: Parábola Editorial, 2003.
______. O conceito de identidade em lingüística: é chegada a hora para uma reconsideração
radical? In: Signorini, Inês (org.). Lingua(gem) e identidade: elementos para uma discussão
no campo aplicado. 4 Ed. Campinas: Mercado de Letras, 2006a. p. 21-45.
______. Repensar o papel da lingüística aplicada. In: Lopes, Luiz Paulo da Moita (org). Por
uma linguística INdisciplinar. São Paulo: Parábola, 2006b. p. 149-168.
ROJO, Roxane Helena Rodrigues. Fazer Lingüística Aplicada em perspectiva sócio-histórica:
privação sofrida e leveza de pensamento. In: Lopes, Luiz Paulo da Moita (org). Por uma
linguística INdisciplinar. São Paulo: Parábola, 2006. p. 253-279.
RUSHDIE, S. In good faith. Londres: Granta, 1989.
109 | P á g i n a
Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três
Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano
(Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858).
Guavira
no10
A TRADUÇÃO CULTURAL-LOCAL ENTRE
BRASIL, PARAGUAI E BOLÍVIA
Rony Márcio Cardoso Ferreira (PG-UFMS)37
Edgar Cézar Nolasco (UFMS-CCHS)38
RESUMO: Este artigo visa discutir a questão da contaminação cultural, que permeia e se dissemina entre
culturas locais de Mato Grosso do Sul, do Paraguai e da Bolívia. Para tanto, será trazido à pauta da discussão o
conceito de tradução cultural (HOMI BHABHA), a fim de se pensar criticamente a confluência dos signos
culturais proporcionada pela noção de transferencialidade, que, por sua vez, borra uma pretensa idéia de
especificidade que singulariza o local, o próprio, o alheio, o outro, o aqui, o lá, e assim por diante. Será discutida
também, a questão da multiplicidade, que faz com que a cultura em questão se singularize, não no sentido
primeiro do termo, mas na e pela diferença.
Palavras-chave: Tradução cultural, diferença, tranferencialidade
ABSTRACT: This article discuss the cultural contamination question, that cross and disseminate between local
cultures of Mato Grosso do Sul, Paraguay and Bolivia. For so, we are going to discuss the cultural translation
(HOMI BHABHA) conception, that we may think about the confluence of cultural sign, which is provided by the
transferees, that, cross out a supposed idea of specificity which make the local unique, own, other, here, there
and so on. We are also going to discuss, the multiplicity question that make the culture becomes unique, not in
the sense of the first term, but in and of the difference.
Key-words: Cultural Translation, difference, transferees
Introdução
Um lugar é sempre o local da tradução (cultural). Para
traduzi-lo, não devemos mais saber quando começamos a
nos desligar desse lugar, tão histórico e tão familiar ao
mesmo tempo, que pensávamos que era tão nosso.
(Edgar Nolasco - Babelocal, 2010, p.7)
Considerando que o Brasil, o Paraguai e a Bolívia possuem uma zona fronteiriça
híbrida, multicultural e não tão bem demarcada geograficamente, é notória a existência de
uma contaminação cultural que permeia e se dissemina entre as respectivas culturas locais.
Essa zona de fronteira pode ser entendida, metaforicamente, como uma linha intersticial em
que se sobrepõe e se desloca o que viria a ser de domínios pontuais de cada local. Assim, as
37
Graduado em Letras (Português / Espanhol) pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS)
e Mestrando do Programa de Mestrado em Estudos de Linguagens da Universidade Federal de Mato Grosso do
Sul.
38
Doutor em Literatura Comparada pela Universidade Federal de Minas Gerais e Professor dos Cursos de
Letras e do Programa de Mestrado em Estudos de Linguagens da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul.
Coordenador do NECC (Núcleo de Estudos Culturais Comparados) no Centro de Ciências Humanas e Sociais da
Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, campus de Campo Grande.
110 | P á g i n a
Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três
Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano
(Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858).
Guavira
no10
idiossincrasias, que pretensamente procuram delimitar algo, cedem lugar a uma articulação da
diferença.
Quando trazemos à tona essas especificações de qualquer espaço cultural fronteiriço, o
contato com o outro faz emergir uma “ideia” de novo, que tem sua manifestação originária
borrada e passa a rascunhar um esboço que irrompe os limites de um local específico,
configurando-se, assim, um “entre-lugar”. Para Bhabha, essa “ideia do novo” é advinda das
profícuas trocas que travamos com o outro no “ato insurgente de tradução cultural”. É nesse
sentido “do novo” que Heidegger concebe a fronteira não como um “ponto onde algo termina,
mas, como (...) [um] ponto a partir do qual algo começa a se fazer presente” (Apud BHABHA,
1998, p. 19). Esse algo que começa a insurgir se manifesta e/ou se verifica fora de uma visada
binarista e, ainda mais, pode ser visível de qualquer lado ou ângulo, tanto de cá como de lá,
em que optamos por nos posicionar.
Tal ato de tradução, acima mencionado, da-se porque surge um outro lugar cultural e
político, onde os traços que configuram o local se dá na e pela diferença, e, por sua vez,
“jamais [de forma unitária] em si mesma e na relação dualista do Eu com o Outro”
(BHABHA, 1998, p.65). Uma condição sine qua non para articular essa problemática da
diferença cultural é o reconhecimento do surgimento de um espaço “contraditório e
ambivalente” onde a luta por um traço de “originalidade” e “pureza” é inconcebível. Esse
novo espaço, para Homi Bhabha, é um “terceiro espaço” irrepresentável e destituído de
“unidade e fixidez”, que concede aos signos culturais apropriações várias por meio da
tradução cultural.
Com isso, logo a princípio, salta-nos aos olhos o fato de que o contato entre diferentes
culturas faz emergir um locus onde os sentidos tradicionais de fronteira e limite são
embaralhados, postos à mesa e em cena no palco do movediço território da confluência
cultural. Tal confluência se manifesta pela “con-formação” da diferença, que só existe em
função do outro, contudo, em posições não-binárias; mas, sim, conformando as diversas
diferenças locais que estão sempre em constante processo de posicionamento e rearticulação
cultural.
Desse modo, falar em cultura local, no estado de Mato Grosso do Sul, é, ao menos
num primeiro momento, salientar que tal cultura é constituída na diferença. Essa diferença é
oriunda do multiculturalismo presente, uma vez que neste estado diferentes “comunidades
culturais” convivem e constroem uma vida em comum, fazendo surgir um novo locus cultural,
porém sem apagar totalmente as marcas de sua identidade de “origem”.
Essa visada plural sobre a cultura local corrobora a existência de uma sociedade
multiétnica e culturalmente mista. Para nós o prefixo “mult-” é cabível todas às vezes que nos
referirmos a uma manifestação cultural, sobretudo aquela oriunda de um espaço fronteiriço,
como é o nosso caso. Tal prefixo reforça ainda que todo espaço cultural é, no mínimo,
constituído de uma “dupla inscrição”, no sentido proposto por Hall. Essa dupla inscrição não
se concretiza apenas no contato do “eu” com o “outro”, mas do contato daquele com os vários
“outros” que co-habitam o locus cultural.
Com
o
exposto,
as
idiossincrasias
do
local
passam
a
ser
comercializadas/contrabandeadas junto a um grande e livre fluxo de trocas, fazendo com que
a moeda corrente se torne, por conseguinte, comum às respectivas culturas locais envolvidas
em tal processo. Dessa maneira, quando trazemos à discussão o estado de Mato Grosso do
Sul, verificamos que esse “contrabando cultural” é significativo, uma vez que nossa fronteira
se “manifesta” na grande planície pantaneira.
Tal planície é, por si só, a grande metáfora deslizante da cultura local, já que permite
aos signos culturais certa mobilidade e escorregamento. Talvez possamos e consigamos
111 | P á g i n a
Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três
Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano
(Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858).
Guavira
no10
demarcar o começo e o fim dessa planície; agora, difícil será demarcar, geográfica e
culturalmente, a linha tênue que separa Brasil, Paraguai e Bolívia. Ingenuamente, poderíamos
falar que existe uma “marca natural” para essa demarcação: o Rio Paraguai. Ledo engano, já
que quase 70% de nossa fronteira com a Bolívia e grande parte da fronteira com o Paraguai,
sobretudo a do sul do estado, são constituídas do que se costuma chamar de “fronteira seca”.
E mais, se fôssemos insistir nessa demarcação por meio do rio, como ficariam as cidades de
Corumbá e Ladário, ambas do lado de lá da ponte? E as cidades de Ponta Porã, Bela Vista e
Coronel Sapucaia, todas com suas cópias exemplas de si mesmas, ou seja, o seu duplo, do
“lado” Paraguaio?
A nosso ver, essa planície deslizante permite maior desterritorialização aos signos
culturais locais. Ou seja, é como se os nomes ou traços desses signos remetessem a uma
possível “origem”, porém, no ato real da configuração cultural, passassem a
demarcar/constituir o novo local cultural em que se encontram agora inseridos, borrando,
dessa forma, até que ponto são mais paraguaios, mais bolivianos ou mais sul-matogrossenses.
Essas reflexões nos levam ao encontro do que aqui já foi dito acerca da “conformação” da diferença na cultura. Tal “con-formação” só é verificável quando existe no
mínimo um “outro”, porém, não em oposições binárias (eu x outro, local x global, universal x
regional...), mas, sempre, em constante processo de posicionamento e rearticulação. Em
outras palavras, pensar em uma cultura local em Mato Grosso do Sul é, grosso modo, admitir
a existência de um “fluxo” contínuo de trocas que permitem uma reconfiguração no âmbito do
espaço cultural. É significativo esclarecer que tal reconfiguração se dá em uma via de mão
dupla, já que o “lá” e o “cá” se alterarão substancialmente, ou seja, o “eu” e o(s) “outro(s)”
jamais serão os mesmos mediante esse processo. Contudo, resta-nos ressaltar que, nessas
trocas, nota-se que esse “outro” é projetado através da relação mais ou menos contínua que a
“diferença” proporciona.
Assim, para pensarmos um traço que singularize a cultura de nosso estado, temos que
trazer à cena as “comunidades diaspóricas”, no sentido proposto por Hall, que farão com que
o local se configure por meio de uma comunidade étnica e racialmente miscigenada. Dessa
maneira, o que ocorre é um fértil cruzamento entre as respectivas culturas locais dessas
comunidades diaspóricas, pois como afirma Aijaz Ahmad:
A fertilização cruzada das culturas tem sido endêmica a todos os movimentos
populacionais... e todos esses movimentos na história têm envolvido viagem, contato,
transmutação, hibridização de idéias, valores e normas comportamentais. (Apud
HALL, 2003, p. 74)
Essas viagens, transmutações e contatos farão do local um espaço singularmente
híbrido. Quando dizemos híbrido, não é simplesmente pela “composição racial mista” da
população, mas sim por uma articulação existente da lógica da tradução cultural (Cf. HALL,
2003, p. 73). Essa tradução
[...] não é simplesmente apropriação ou adaptação, é um processo através do qual se
demanda das culturas uma revisão de seus próprios sistemas de referencia, normas e
valores, pelo distanciamento de suas regras habituais ou “inerentes” de transformação.
Ambivalência e antagonismo acompanham cada ato de tradução cultural, pois o
negociar com a diferença do outro revela uma insuficiência radical de nossos próprios
112 | P á g i n a
Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três
Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano
(Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858).
Guavira
no10
sistemas de significado e significação. (BHABHA, apud HALL, 2003, p. 75 – grifos
do autor)
A transferência ocorrida entre as culturas locais aqui em discussão se dará por um
meio reinventivo particular, pois cada vez que um novo signo se reconfigura ou migra se
rearticula o espaço cultural local. Ou seja, o que se notará sempre é que o contato por meio da
tradução se dará em algum ponto do espaço da differánce. Essa differánce nos permite
abordar a fronteira cultural entre Brasil, Paraguai e Bolívia como um espaço babélico, onde se
configura uma identidade plural, que pode ser vista como uma construção que está sempre por
terminar devido à constante transferencialidade que tal espaço articula. Esse constante nãoterminar concede à cultura local um caráter de não-acabamento e não-fechamento, pois ela
está em constante rearticulação, já que os signos culturais não precisam de autorizações e
muitos menos de passaporte para se movimentar, ou seja, eles estão em um constante ir e vir.
Junto a este deslocamento sígnico, faz-se desbaratar as fronteiras do processo da
tradução cultural, a ponto de não sabermos mais em que ponto terminam as “marcas” / signos
culturais advindos do “contexto” de origem e as provenientes do novo meio. Desse modo, as
trocas culturais se manifestam por meio de diálogos profícuos, já que “[...] a tradução é a
natureza performativa da comunicação cultural [...]. E o signo da tradução conta, ou ‘canta’,
continuamente os diferentes tempos e espaços entre autoridade cultural e suas respectivas
práticas performativas”. (BHABHA, 1998, p. 313)
Quando tomamos por objeto de análise qualquer meio cultural, temos que trazer em
primeiro plano o sistema híbrido em que se constitui tal meio, uma vez que as categorias de
originalidade e pureza são inoperantes em uma cultura, na qual os próprios signos são
destituídos de unidade e fixidez. Assim, o meio cultural acaba por conceder margem para que
esses signos sejam “apropriados, traduzidos, re-historicizados e lidos de outro modo”.
(BHABHA, 1998, p. 68)
Pensando na tríplice fronteira de Mato Grosso do Sul, sobressai-se uma questão de
suma importância: a contínua confrontação entre o conteúdo cultural traduzido e o seu duplo,
que Bhabha designa por intraduzível. Em outras palavras, o objeto traduzido não trará consigo
a mesma carga semântica que contém a origem, o que teremos é um novo locus cultural, em
nosso caso a cultura sul-mato-grossense, que pode estar configurado pelo mesmo signo, mas
não aberto a receber as mesmas significações. Dessa forma, o ato tradutório de signos
culturais não é uma ação ocorrida em um campo pacífico, mas sim em um ato de reescrita
disjuntiva da experiência transcultural. Aqui, o conteúdo do traduzido é alterado pela nova
forma de significação cultural atribuída pelo processo tradutório.
Assim, pensar em um delineamento da dimensão da cultura local no estado de Mato
Grosso do Sul é trazer em primeiro plano, como já referido, a noção de transferencialidade
que borra uma pretensa especificidade que singulariza o local. Ou seja, é notório que, nesse
lugar onde um dia foi Paraguai e o Paraguai foi Brasil, é impossível falar de qualquer
manifestação cultural sem trazer à tona a multiplicidade que faz com que a cultura em questão
se singularize, não no sentido primeiro do termo, mas na e pela diferença. Em outras palavras,
a cultura é a diferença em si, pois qualquer aspecto ou traço que o torne como particular,
específico ou exclusivo já está, de antemão, atravessado pelo outro.
Dessa maneira, grosso modo, o que se percebe é a existência de uma linha tênue ou
uma membrana permeável que facilita/proporciona o diálogo profícuo entre dois ou mais
meios, como é o nosso caso. Enfim, falar da linguagem, da escrita, da arte, da música, da
vestimenta, da bebida, da comida, entre outras manifestações em Mato Grosso do Sul, é
113 | P á g i n a
Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três
Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano
(Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858).
Guavira
no10
engrossar o “caldo cultural” do ato tradutório enviesado pela transferencialidade com o outro.
E mais, é deixar bem claro que a cultura em Mato Grosso do Sul, apesar de multicultural, é
local.
Referências
BHABHA, Homi K. O local da cultura. Trad. de Myriam Ávila, Eliana Lourenço de Lima e
Gláucia Renate Gonçalves. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1998. (Coleção Humanistas)
Cadernos de Estudos Culturais: Estudos Culturais. Campo Grande: Editora da UFMS,
Volume 1, número 1. p 1-135. jan/jun. 2009.
HALL, Stuart. Da diáspora: identidade e mediações culturais. Org. Liv Sovik; Trad. Adelaine
La Guardia Resende. Belo Horizonte: Editora UFMG; Brasília: Representação da Unesco no
Brasil, 2003. (Coleção Humanistas)
NOLASCO, Edgar Cézar. BabeLocal: lugares das miúdas culturas. Campo Grande: Ed.
UFMS, 2009. (no prelo)
______. Caldo de Cultura: a pesquisa dos Estudos Culturais na Pós-Graduação. Guavira
Letras Revista Eletrônica do Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal
de Mato Grosso do Sul, n. 01 – 01 de agosto de 2005. Ano 01. Disponível em:
http://www.ceul.ufms.br/guavira/numero1/capa.htm
SOUZA, Eneida Maria de. Babel multiculturalista. Cadernos de Estudos Culturais: Estudos
Culturais. Campo Grande: Editora da UFMS, v.1, n.1, jan./jun. 2009. p.17-29.
114 | P á g i n a
Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três
Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano
(Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858).
Guavira
no10
PARA LER O ANTIPOEMA COMO DISCURSO HÍBRIDO:
CONSIDERAÇÕES SOBRE TEXTO E IMAGEM
EM ÁS DE COLETE, DE ZUCA SARDAN
Deise Daiana Gugeler Bazanella (UFSM) 39
Ana Teresa Cabañas (UFSM)40
RESUMO: Nos anos 70, a poesia marginal brasileira ampliou os níveis de comunicabilidade do texto poético no
intuito de atrair mais leitores. Para isso, questionou os procedimentos tradicionais da poesia lírica moderna,
explicitando uma série de mudanças na sensibilidade dos sujeitos contemporâneos e criando dificuldades para as
formas consagradas de abordagem crítica. Nesse período de ruptura de paradigmas situa-se o poeta Zuca Sardan,
cujo livro, Ás de Colete (originalmente publicado em 1979 e reeditado pela Editora da Unicamp em 1994), é o
objeto de reflexão deste artigo. No intuito de discutir algumas de suas características, proponho uma abordagem
a partir do conceito de antipoesia (HAMBURGER, 1991), que ajuda a compreender o poema como discurso
híbrido com base em dois de seus aspectos mais proeminentes: imagem e forma comunicável (efeito do uso de
recursos comumente associados à prosa).
Palavras-chave: antipoesia, imagem, Zuca Sardan.
ABSTRACT: In the 1970’s, Brazilian marginal poetry broadened the communicative levels of the poetic text in
order to attract more readers. To achieve that, it questioned the traditional procedures of modern lyric poetry,
thus making explicit a series of changes in contemporary sensitivity and creating difficulties to established
critical approaches. In this period of paradigms rupture we find the poet Zuca Sardan, whose book, Ás de Colete
(originally published in 1979 and re-edited by Editora da Unicamp in 1994), is the object of reflection of this
paper. Aiming at discussing some of its characteristics, I propose an approach based on the concept of
antipoetry (HAMBURGER, 1991), which helps to understand the poem as a hybrid discourse based on two of its
most prominent aspects: image and communicative form (effect of the use of resources commonly associated to
prose).
Key-words: antipoetry, image, Zuca Sardan.
Antipoesia: noções gerais
Grande parte da produção poética posterior à Segunda Guerra Mundial pode ser
aproximada a partir do que o crítico Michael Hamburger (1991) denominou nova austeridade:
uma forte tendência à clareza comunicativa da linguagem e ao explícito. Essa postura artística
implicou o questionamento de vários recursos tradicionalmente empregados pela lírica
moderna, a cuja perspectiva elevada opôs o rebaixamento de temas e formas, motivo pelo
qual se denomina antipoesia.
Em um ensaio bastante retomado, “Antipoesía y poesía conversacional em
Hispanoamérica” (1975), o crítico cubano Roberto Fernández Retamar discute o conceito de
antipoesia de forma a estabelecer uma relação implícita com o que Octavio Paz (1993)
denominou “tradição da ruptura”, característica subjacente ao próprio movimento da arte
39
Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal de Santa Maria
(UFSM/RS).
40
Orientadora e Professora do Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal de Santa
Maria (UFSM/RS). Doutora em Teoria Literária pela Universidade Estadual de Campinas.
115 | P á g i n a
Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três
Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano
(Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858).
Guavira
no10
moderna que, no seu afã de romper com a tradição literária precedente, busca sempre
instaurar o “novo”. Nesse sentido, é possível reconhecer o caráter abrangente da significação
do termo antipoesia em Retamar: trata-se de uma condição vital da poesia moderna como um
todo, portanto não vinculada a uma produção poética particular. De acordo com essa postura
crítica, compreende-se a história da poesia moderna como uma sucessão que intercalaria
períodos poéticos e períodos em que a tendência antipoética se impõe.
Entretanto, essa teorização não é pacífica. Hamburger difere dela em seu livro La
verdad de la poesía (1991), em que tece um panorama da produção poética de vários
escritores, em diferentes línguas, identificando um determinado Zeitgeist (sentimento de
época) e analisando sua conformação estética no intuito de demonstrar de que modo uma
condição histórica comum suscitou alterações gradativas e profundas de sensibilidade, que
por sua vez influenciaram boa parte da produção artística ocidental do pós-guerra.
Com claro intuito metodológico de traçar a evolução e o adensamento da problemática
da antipoesia, o autor volta seu olhar retrospectivo para os poetas precursores dessa tendência
ao “rebaixamento” (em comparação com a lírica moderna) de temas e formas. Um dos mais
representativos foi certamente Bertolt Brecht, cuja ars poética advertia seus pares sobre o
perigo de se incorrer, por meio das petrificações estéticas, na petrificação da própria vida.
Para evitar isso, o poeta deveria trabalhar de modo contínuo, constante e sempre avaliativo em
torno da necessidade da criação de novas formas (BRECHT apud HAMBURGER, 1991, p.
193-194):
Sólo los contenidos nuevos permiten formas nuevas. En realidad las exigen. Porque si
los contenidos nuevos se expresan en formas viejas, de inmediato se repite esa
desastrosa división entre el contenido y la forma, pues la forma que es vieja se separa
del contenido que es nuevo. La vida, que por todas partes adopta nuevas formas en
nuestra sociedad, y cuyos cimientos están cambiando, no puede ser expresada ni verse
influida por una literatura con formas viejas.
Para Hamburger, o que emerge com veemência da produção poética dos autores
analisados é o esforço sistemático empregado para dotar a poesia de clareza comunicativa e
explicitação. Nesse contexto, impôs-se a busca por uma comunicação tão direta quanto
possível, no intuito de restaurar essa condição de vitalidade literária posta em discussão pelas
Vanguardas do início do século XX (HAMBURGER, 1991, p. 269):
Lo que, a falta de mejor palabra, he llamado la nueva “antipoesía” es una forma
exagerada de “bajo mimetismo”, austeramente dedicado a expresar “las cosas tal
como son” en el lenguaje de la gente tal como lo habla. Esta clase de verso es
antipoética si nuestra norma es la de la poesía romántico-simbolista y su aspiración “a
la condición de la música” (…).
Na América Hispânica, foi o poeta chileno Nicanor Parra quem sistematizou, num
projeto poético plurivalente e de grande reverberação, a antipoesia como prática específica de
desmantelamento da própria literatura. Como visionário e observador atento, Parra percebeu a
necessidade de questionar a portentosa tradição poética dominante em seu país para erigir
uma concepção radicalmente distinta do que seja a poesia e o poeta, bem como suas
atribuições na sociedade da cultura de massa, e sua principal obra, Poemas y Antipoemas,
publicada em 1954, representa um universo formal estruturado para realizar essa contestadora
empreitada crítica e artística.
116 | P á g i n a
Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três
Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano
(Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858).
Guavira
no10
Da tendência antipoética assim esboçada resulta um contradiscurso lírico que explora
as formas da fala cotidiana, comunicado por um sujeito cuja despersonalização é a
característica mais evidente: o antipoeta é o “portador de uma palavra colhida do uso
cotidiano, a qual se pretende fazer retornar à realidade de maneira potencializada”
(CABAÑAS, 2003, p. 200). Esse retorno pressupõe, portanto, a liberação de novas
capacidades expressivas. Entretanto, paradoxalmente o eu antipoético reconhece e vivencia o
conflito da insuficiência da linguagem enquanto instrumento que lhe permitiria significar-se e
ao mundo, o que permite compreender a antipoesia também sob a perspectiva da
incomunicabilidade. De acordo com essa acepção, ela contraria a noção moderna de
transcendência, efetivada por meio da linguagem poética.
Antipoesia à brasileira: tecendo uma relação
No contexto brasileiro, foi o poeta João Cabral de Melo Neto quem, em uma
conferência denominada “Da função moderna da poesia”, em 1954, discutiu com
profundidade e lucidez angustiada os efeitos da ausência de uma proposta poética
comunicável na produção de seus contemporâneos. Em sua análise, o olhar do poeta se volta
para uma figura de contornos historicamente imprecisos – o leitor (MELO NETO, 1998, p.
98-99):
(...) o poeta contemporâneo ficou limitado a um tipo de poema incompatível às
condições da existência do leitor moderno, condições a que este não pode fugir. A
apresentação (não organizada em formas “cômodas” ao leitor) de sua, rica embora,
matéria poética faz da obra do poeta moderno uma coisa difícil de ler, que exige do
leitor lazeres e recolhimento difíceis de serem encontrados nas condições da vida
moderna. (...) a necessidade de comunicação foi desprezada e não entra para nada em
consideração no momento em que o poeta registra sua expressão (...). As
conveniências do leitor, as limitações que lhe foram impostas pela vida moderna (...)
não foram jamais consideradas questões a resolver.
Nesse sentido, se para Melo Neto o que realmente interessa incorporar é a figura do
leitor e sua (im)possível vivência poética no mundo contemporâneo, a problemática da
comunicabilidade adquire contornos dramáticos. A esse respeito, o autor (MELO NETO,
1988, p. 99) se posiciona da seguinte maneira: “O leitor moderno não tem a ocasião de
defrontar-se com a poesia nos atos normais que pratica durante sua vida diária. Ele tem, se
quer encontrá-la, de defender dentro de seu dia um vazio de tempo em que possa viver
momentos de contemplação, de monge ou de ocioso”.
A partir disso, creio ser possível relacionar a discussão de João Cabral de Melo Neto
sobre a poesia brasileira de seu tempo com as observações mais abrangentes sobre a
antipoesia como tendência, ainda que o poeta não faça uso desse termo. A justificativa para
essa aproximação se baseia no fato de que o antipoema, ao empreender uma prática de
exploração de linguagem cuja filiação se dá com os recursos usuais da fala cotidiana,
representa uma ampla empreitada formal rumo à comunicação que evidencia a preocupação
com a própria continuidade possível da poesia nas condições atuais da vida moderna.
Portanto, as reflexões propostas pela antipoesia, que incluem extensa referência ao leitor,
relacionam-se de forma inequívoca às idéias presentes no texto de Melo Neto.
117 | P á g i n a
Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três
Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano
(Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858).
Guavira
no10
A poesia marginal brasileira e a proposta de comunicabilidade antipoética
Na conclusão de sua análise, Melo Neto (1998) discorre sobre as “condições de
sobrevivência” da poesia, as quais dependeriam fundamentalmente da pesquisa formal “no
sentido de se encontrarem formas ajustadas às condições de vida do homem moderno,
principalmente através da utilização dos meios técnicos de difusão que surgiram em nossos
dias” (Ibid., p. 101). Nesse contexto, recai sobre o poeta a responsabilidade pelo
distanciamento do leitor (Ibid., p. 99):
O poeta moderno, que vive no individualismo mais exacerbado, sacrifica ao bem da
expressão a intenção de se comunicar. Por sua vez, o bem da expressão já não precisa
ser ratificado pela possibilidade de comunicação. Escrever deixou de ser para tal poeta
atividade transitiva de dizer determinadas coisas a determinadas classes de pessoas;
escrever é agora atividade intransitiva, é, para esse poeta, conhecer-se, dar-se em
espetáculo; é dizer uma coisa a quem puder entendê-la ou interessar-se por ela.
Portanto, o tom geral do discurso de Melo Neto sugere a noção já presente em Brecht
de que as transformações sócio-históricas, ao acarretarem mudanças mais ou menos
significativas nas sensibilidades dos sujeitos, deveriam orientar os poetas na criação de novas
formas estéticas consideradas mais pertinentes, de modo a se evitar a famigerada
“petrificação” da vida.
No Brasil, a emergência da chamada poesia marginal, nos anos 70, apontou novos
direcionamentos para o fazer poético. Tendo como antecedentes, num sentido amplo, as
tendências antipoéticas, e no contexto brasileiro, o Modernismo de 22 (sobretudo a obra de
Oswald de Andrade), essa nova poesia almejava estabelecer uma comunicabilidade que
permitiria, dentre outras coisas, ampliar o público leitor, doravante concebido como “(...) um
público jovem que não se confunde com o antigo leitor de poesia” (HOLLANDA, 1998, p. 9).
Em função disso, vinculou-se ao questionamento dos procedimentos tradicionais da poesia
moderna, explicitando uma mudança paradigmática na sensibilidade dos sujeitos
contemporâneos.
Em termos estruturais, a proposta de comunicabilidade da poesia marginal caracterizase, de acordo com Hollanda (Ibid., p. 10), pela “presença de uma linguagem informal, à
primeira vista fácil, leve e engraçada e que fala da experiência vivida (...)”, e que tem como
conseqüência política “a desierarquização do espaço nobre da poesia – tanto em seus aspectos
materiais gráficos quanto no plano do discurso” (Ibid., p. 10). Além disso, a comunicabilidade
representa, ainda conforme a autora (Ibid., p. 11), “a retomada da contribuição mais rica do
modernismo brasileiro, ou seja, a incorporação poética do coloquial como fator de inovação e
ruptura com o discurso nobre acadêmico”, assimilado criticamente de modo a traduzir “um
dramático sentimento do mundo” (Ibid., p. 11).
Portanto, pode-se notar que as preocupações com o leitor, com a recepção e com a
emergência de novas formas sociais e históricas da sensibilidade, tão características da
antipoesia, tornaram-se grandes propulsoras da pesquisa formal empreendida pela poesia
marginal, na esteira da discussão proposta por João Cabral de Melo Neto.
Zuca Sardan ou a poesia sem estrela
O poeta Glauco Mattoso, no livro intitulado O que é poesia marginal (1981), faz a
seguinte pergunta: “Poesia tem que ter estrela?” (p. 11). Essa indagação, aparentemente
118 | P á g i n a
Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três
Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano
(Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858).
Guavira
no10
ingênua, propõe na verdade reflexão das mais relevantes, se compreendermos “estrela”
metaforicamente: certa distinção que permite valorar a poesia como “elevada” (ou seja, avessa
ao “rebaixamento” de temas e formas), hermética ou transcendente, traços caracterizadores da
poesia lírica moderna.
As possíveis respostas a essa pergunta irão variar imensamente, abrangendo desde um
sonoro e historicamente validado sim até a negação mais peremptória e radical, passando
pelos ricos entremeios (por vezes pouco iluminados). Entretanto, todas elas terão em comum
o fato de veicularem posicionamentos específicos a respeito do fazer poético, como a noção
de poesia enquanto arte universal de transcendência ou como manifestação relacionada a um
determinado momento histórico que, por sua vez, incita nos sujeitos a emergência de
sensibilidades cuja genealogia pode ser mais ou menos demarcada.
Nesse contexto de ruptura e diálogo com os antecedentes da tradição literária
brasileira, situa-se o poeta Carlos Saldanha, mais conhecido como Zuca Sardan, cuja obra Ás
de Colete (originalmente publicada em 1979 e reeditada pela Editora da Unicamp em 1994) é
o objeto de reflexão deste artigo.
A articulação discursiva de Ás de Colete visa a atrair o leitor através da construção de
uma aparente familiaridade com as formas lingüísticas selecionadas pelo poeta, que explora
uma perspectiva comunicável. Trata-se, entretanto, de um canto de sereia: uma vez atraído
pela linguagem aparentemente “fácil”, o leitor é surpreendido por uma irônica e com
freqüência bem-humorada trama verbal, à qual se mesclam desenhos cujo traço lembra o
infantil. Essa combinação inusitada faz parte de uma estratégia que pretende seduzir,
sobretudo por meio da conjunção humor, ironia e imagem, o leitor confuso, distraído e
atordoado, de contato restrito com a poesia.
O livro é organizado em atos, espécie de grande espetáculo que aproxima os poemas
no âmbito de suas correspondências temáticas. Além disso, há outra especificidade geral que
os agrega: seu caráter antipoético. Da vinculação a essa proposta, interessa-me investigar o
emprego de elementos lingüísticos e imagéticos tradicionalmente expulsos pela concepção
poética pré-vanguardista. Essa experimentação com diferentes linguagens tem um objetivo
claro: ampliar a comunicação por meio do emprego sistemático de formas tradicionalmente
relacionadas à prosa e de recursos provenientes da linguagem não-verbal.
Miríades da comunicabilidade antipoética: a questão da imagem
A experiência de um tempo em que a proliferação de imagens tornou-se um dado
trivial da vida cotidiana, inclusive levando a um embotamento da própria capacidade de
percepção mais detida, instiga a refletir sobre os sentidos, alcances e efeitos do verdadeiro
espetáculo visual em que nos inserimos. Para isso, considero pertinente resgatar alguns
aspectos que nos ajudem a compreender como se deu o longo processo de transformação da
imagem, dividido em 3 etapas de massificação (MOLES, 1990) que compartilham um
propósito comum: ampliar sua presença na vida social facilitando o acesso a ela.
Da primeira etapa, caracterizada pela forma única, artesanal e reprodutora da realidade
– por exemplo, os desenhos em cavernas –, a imagem passa a multiplicar-se, ainda que
timidamente, a partir do Renascimento. Isso se torna técnica e economicamente viável em
virtude das novas formas de reprodução. Porém, a imagem artística (pintura) ainda ocupa um
patamar distinto: é venerável por sua raridade, além de inacessível para a maioria das pessoas.
A invenção da fotografia marca a segunda fase, em que surge a pressão exercida pela
imprensa, fato que levará, devido à superabundância, ao que Moles (1990) chama
acertadamente de “inflação da imagem”. Desse processo advém a perda progressiva de valor
119 | P á g i n a
Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três
Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano
(Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858).
Guavira
no10
da reprodução icônica, associada ao esvaziamento da imagem como recurso comunicativo
privilegiado. Sabemos que os veículos midiáticos empregam imagens com base num
pressuposto central: elas ajudam, e muito, a vender produtos. Em função desse imperativo, a
imagem necessita tornar-se objeto de sedução, isto é, deve buscar atrair o olhar alienado pela
sua própria proliferação e escapar à percepção automática.
O terceiro momento de massificação é o que vivemos, o da expansão inédita e
conseqüente trivialidade da imagem – o contato com ela torna-se, assim, um fato a mais na
nossa rotina diária. Esse aspecto, de fato intrigante, propõe um questionamento acerca das
potências expressivas da imagem na comunicação atual, seu alcance, utilidades e limitações.
A partir dessa breve introdução, interessa-me pensar de que modo e com que efeitos a
poesia, forma estética tradicionalmente caracterizada pela criação de imagens verbais, pode
empregar também a iconicidade como recurso expressivo.
Em um artigo denominado “Un acercamiento a la poesía visual en España: Julio
Campal y Fernando Millan”, Laura López Fernández nos previne de que a poesia visual não é
algo novo. Essa observação inicial é importante porque freqüentemente se associa o
surgimento da visualidade na poesia às conquistas das Vanguardas do final do século XIX e
início do XX, momento em que a literatura buscou aproximar-se de outras artes, notadamente
da pintura. Entretanto, a poesia visual “es tan vieja como la poesía escrita, aunque obedece a
distintos fines de acuerdo a la época en la que se ha producido” (Fernández, s/d, p. 1).
Segundo a autora, foi o francês Appolinaire quem resgatou a visualidade com intuitos
líricos, retirando-a do ostracismo. Contudo, em Appolinaire verifica-se a continuidade de
sentidos entre as esferas lingüística e icônica (por exemplo, caligramas em forma de cruz ou
ave cujos temas remetem a essas formas), numa espécie de redundância discursiva (o discurso
textual reflete o discurso da imagem e vice-versa) que objetiva reforçar, enfatizar o que é dito
verbalmente. Posteriormente, tanto Appolinaire quanto Mallarmé passaram a desenvolver o
que Fernández denomina “caligramas metonímicos”, em que “no hay semejanzas sino
contigüidad entre el contenido y la imagen” (Mosher apud Fernández, s/d, p. 2).
No Brasil do surto desenvolvimentista dos anos 50, a visualidade foi a característica
marcante e polêmica da poesia concreta, cujo abstracionismo gerou fortes oposições tanto no
meio acadêmico quanto no artístico. Entretanto, o recurso visual novamente resgatado
influenciou, ainda que pela recusa e conseqüente retorno ao figurativismo, o trabalho de
Sardan. Em Ás de Colete, a relação entre aspectos verbais e visuais, embora com esse
antecedente importante na poesia concreta, extrapola as dimensões cristalizadas dos
parâmetros anteriores que configuram, até o momento, a sensibilidade coletiva – ou seja, o
que se entende por poesia. Em função disso, é possível que a pretensa familiaridade inicial,
tão aliciante num primeiro momento, gere desconforto, e o leitor pode se perguntar: mas isso
é poesia? A indagação é pertinente, pois dá a medida da afronta à tradição literária em voga.
Nessa obra, a associação de discursos proveniente de esferas distintas da comunicação
cria uma variedade notável de efeitos. No intuito de identificá-los e propor uma possível
leitura, apresento a seguir a análise de “O soberano” (SARDAN, 1994, p.4), poema a meu ver
bastante representativo da obra como um todo. Antes disso, porém, é necessário esclarecer o
percurso de abordagem: como os poemas de Sardan caracterizam-se pelo discurso híbrido,
misto sincrético de linguagem verbal e visual, é necessário considerá-los primeiramente em
cada um dos dois estratos de sentido. Todavia, o significado global do poema será dado pela
relação que se estabelece entre eles. Por questões um tanto nebulosas de afinidade
metodológica, inicio a análise pelo aspecto lingüístico; a seguir, volto-me para a dimensão
icônica. A ordem de análise parece-me irrelevante: poderia indicar o itinerário oposto, uma
vez que o que realmente importa é desvelar o diálogo e o tipo de relação que emerge do
120 | P á g i n a
Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três
Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano
(Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858).
Guavira
no10
contato entre essas duas esferas discursivas, no intuito de se perscrutar os sentidos do poema
nos interstícios, no entre-lugar.
Fricções antipoéticas no poema “O soberano”: proposta de leitura dialógica entre
os estratos lingüístico e imagético
FIGURA 1
“O soberano” é um poema que apresenta um tom narrativo bem marcado. Na primeira
estrofe, há uma descrição no presente de algo que está acontecendo agora (indicada pelo
gerúndio em “vem chegando”). Na segunda estrofe, encontramos versos no presente simples,
cujo emprego, nesse caso, pode remeter a duas possibilidades:
1ª) identificar uma dada situação que se passa num momento presente mas para a qual
a referência temporal não é importante41;
2ª) expressar uma lei geral, uma propriedade comprovada empiricamente. O tempo do
presente é o tempo das definições, verdades universais e dos fenômenos da natureza42.
41
“If you want to talk about a settled state of affairs which includes the present moment but where the
particular time reference is not important, you use the simple present”. Por exemplo, “My dad works in Saudi
Arabia”; “She’s a doctor’s daughter”. (COLLINS COBUILD. English Grammar, 1996, p. 247).
121 | P á g i n a
Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três
Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano
(Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858).
Guavira
no10
O presente é também o tempo das máximas e dos ditos populares. Nesse poema, os
dois últimos versos constroem uma máxima nefasta porém perspicaz: “O soberano
perfeito/deve suspeitar de tudo”. Trata-se de uma advertência de valor generalizante.
O tempo é uma das categorias fundamentais do gênero narrativo. Sua presença em “O
soberano” permite indagar o seguinte: quais são os efeitos do uso do presente no poema? O
que significa construí-lo com base num recurso comumente associado à prosa narrativa?
Uma vez que o emprego do presente origina na verdade uma indeterminação temporal,
é necessário investigar qual seria, afinal, o tempo do poema. Nesse contexto de enunciação, a
que momento histórico, passado ou atual, poderíamos associar a cena narrada nos primeiros
versos? A julgar pela menção a uma figura datada historicamente (o soberano), poderia se
tratar de um passado remoto. Porém, a construção discursiva fundada no presente impede essa
vinculação direta, uma vez que a referência temporal permanece imprecisa ao longo do
poema. Em função disso, é possível depreender que os verbos no presente escamoteiam a
dimensão temporal do passado que se esperaria de um poema que fala de um soberano, figura
em princípio extinta pela democracia moderna na maioria dos países. Consequentemente,
considerando-se apenas o nível de interpretação do texto visual, o hermetismo se impõe e é
difícil atribuir um sentido mais preciso ao poema.
Por outro lado, creio já ser possível realizar, nesse momento inicial da análise, uma
observação a respeito da relação entre o presente da narração e o presente da máxima (dois
últimos versos). Da forma como se estrutura, a máxima veicula a percepção de algo cujo valor
se pretende/se entende como universal, verdadeiro, atemporal e portanto imutável. Logo, é
interessante notar como seu caráter dogmático associa-se à configuração discursiva do tempo
no poema. Entretanto, essa possibilidade interpretativa deverá ser confrontada à análise da
imagem, de modo a corroborar ou relativizar sua influência.
No tocante à imagem presente no poema, parece haver, num primeiro momento, uma
relação de correspondência entre o desenho e o texto verbal. Se assim for, trata-se do icônico
como mera ilustração do signo linguístico. A imagem empregada como ilustração é um
recurso muito frequente na publicidade e também em livros de histórias. Nesses casos
específicos, ela cumpre um papel muito restrito: enfatizar e reiterar, pelo efeito da
redundância bi-mídia, o que está expresso pela dimensão verbal. É o que comumente se
conhece por tradução icônica.
A cena representada no desenho também é narrativa. Vemos uma ação acontecendo,
em andamento, e portanto no presente (gerúndio). Dos dois personagens, um deles, o
soberano, é muito bem situado historicamente, ao passo que o outro é nosso contemporâneo
(vide as roupas do menino e seu boné). Essa simultaneidade de sujeitos tão díspares, na
mesma seqüência narrativa, provoca indagações e já de início surpreende, embora talvez não
se saiba exatamente por quê.
Em contraste com o texto escrito, o texto verbal introduz um dado novo: a relação do
antigo (soberano) com o atual (menino). Como o poema é uma unidade de sentido, a imagem
tem o poder de alterar (ou de especificar o que de outro modo talvez ficasse muito amplo) o
significado do discurso verbal.
Entretanto, o rei, personagem histórico e pois vinculado a uma experiência temporal
circunscrita (que não é a atual), é espontaneamente transladado para o nosso tempo
contemporâneo (esse processo é construído via imagem). Nesse contexto, é provável que o
42
“If you want to say that something is always or generally true, you use the simple present”. Por
exemplo, “Near the equator, the sun evaporates greater quantities of water”; “A molecule of water has two atoms
of hydrogen and one of oxygen”. (Idem, Ibidem, p.247).
122 | P á g i n a
Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três
Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano
(Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858).
Guavira
no10
tempo presente do poema cumpra o papel de explicitar uma prática de poder que se repete
(daí a importância da máxima) e que é sempre igual a si mesma no seu descolamento da
realidade circundante (novamente, isso está manifestado pela imagem, em que é explícita a
altivez do rei e sua desconsideração do menino que leva a cauda). Desse modo, poderíamos
ler nos poderosos de hoje a mesma empáfia dos soberanos de antanho, numa atitude
atemporal incongruente com a realidade, mais do que nunca caracterizada pela mobilidade e
pela fluidez.
Logo, a referência temporal presente-passado do poema é estabelecida sobretudo por
sua dimensão icônica. O passado torna-se sincrônico em relação ao presente, pois as velhas
práticas do poder seguem atuais e, há que se admitir, eficientes no seu propósito de
dominação. Dentre elas, o poema deixa entrever o exercício do poder como humilhação do
súdito, o luxo empolado, a alienação e a idéia naturalizada de que o poder se adquire e se
mantém pela força, pois “o soberano perfeito deve desconfiar de tudo”. O ridículo da
representação desse poder é, pois, seu dado anacrônico.
Nesse ponto, é importante ressaltar a potência transformadora do emprego da imagem
nesse poema. Dentre as muitas relações possíveis que podem ocorrer entre os níveis icônico e
lingüístico, neste caso a imagem altera, especifica e critica o que está manifesto no discurso
verbal. Além disso, exerce o efeito de ridicularizar, pela incongruência dos personagens, o
caráter dissonante da situação representada. Assim, é por meio da relação imagem-texto
verbal que o poema obtém o teor irônico que lhe permite realizar uma crítica contumaz de
uma experiência de desfaçatez político-social.
Aspectos manufatureiros: a peculiaridade artesanal de Ás de colete
Outro elemento que chama a atenção nos poemas de Ás de colete é seu caráter
artesanal, que pressupõe o desligamento – e o afrontamento – das formas de reprodução
técnica da imagem editorial e midiática em grande escala. É sintomático que essa opção seja
assumida por Sardan logo no início do livro, à guisa de introdução/apresentação:
123 | P á g i n a
Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três
Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano
(Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858).
Guavira
no10
FIGURA 2
O feito a mão é o feito a mão do artista, que se personifica no seu fazer e lhe imprime,
desse modo, uma indelével configuração individual. A caligrafia desenhada mostra
preocupação com a dimensão de beleza contida na escritura, veiculando a idéia de tipografia
com valor estético. Desse trabalho minucioso decorre a humanização do próprio fazer, que se
diferencia, portanto, da reprodução impessoal ou da fria ilustração.
No contexto da poesia marginal brasileira, a que se filia Sardan, ainda é possível
discutir a abdicação do aparato técnico e publicitário subjacente à publicação e à distribuição
dos livros não apenas como mera expressão do desejo – ainda que lícito – de rompimento do
poeta, mas como fator que reflete amplamente as condições sociais e políticas a que estavam
submetidos artista e obra nesse período da história brasileira recente: encurralados pela
censura, muitos autores tiveram que desenvolver mecanismos alternativos de criação e
distribuição de seus trabalhos. Nesse sentido, é necessário investigar de que forma esses
mecanismos acabaram por subverter, ainda que com alcance restrito, as regras de difusão de
poesia no Brasil, reconquistando um espaço que havia se fechado de repente e de maneira
violenta.
A experimentação formal com a imagem em Ás de colete torna o livro um objeto
estético que reage aos imperativos da pasteurização a que estamos sofrivelmente submetidos,
124 | P á g i n a
Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três
Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano
(Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858).
Guavira
no10
almejando, dentre outras coisas, nos causar prazer. Sardan desconstrói o papel do ilustrador e
do técnico na sociedade de massa ao trabalhar a imagem como recriação ativa do discurso
verbal, fazer sincrético e iconoclasta que atualiza uma percepção vanguardista fundamental: a
de que a arte não existe em formas compartimentadas e a literatura deve ser permeável às
conquistas e possibilidades dos demais campos estéticos.
Ao compararmos a potencialidade expressiva da imagem icônica com a da imagem
construída verbalmente, podemos perceber que um dos grandes trunfos da imagem visual é a
possibilidade (variável, é claro) de apreendê-la de uma só vez, em totalidade, algo que requer
do espectador relativamente pouca energia ao passo que, em contrapartida, surte um grande
efeito, atingindo com veemência a sua sensibilidade. A partir do momento em que a noção de
velocidade passou a tiranizar a vida moderna, as imagens se impuseram como o mecanismo
mais eficiente de transmissão rápida de informações. Se somos capturados pela imagem, se
ela seqüestra e seduz a nossa percepção, é compreensível que o poeta reconheça nela uma
estratégia riquíssima de atração para seu leitor, o que corresponde ao anseio de muitos autores
de ampliar seu público. Entretanto, a especificidade da arte, da imagem estética, consiste em
transgredir a noção de imagem como cópia ou ilustração, de modo a criar novas
possibilidades de leituras, romper padrões fossilizados de percepção e gosto e expandir a
experiência sensível do receptor. Seu emprego no âmbito da literatura corresponde, portanto,
à pesquisa por formas mais ajustadas à experiência contemporânea, função mesma do poeta,
que deve “inventar escrituras que no sean repertorios de pretendidos conocimientos. Los
poetas deben inventar los medios con que crear el mundo, porque el mundo se hace, no se
conoce” (Liaño apud Fernández, s/d, p. 4).
Considerações finais
Através do contato com o conceito de antipoesia de Nicanor Parra e do
estabelecimento do diálogo crítico referente ao seu estudo, foi possível identificar algumas
das características gerais dessa corrente, relacionadas sobretudo ao rompimento com os
valores tradicionalmente empregados pela poesia lírica moderna. A obra de Zuca Sardan
também oferece como uma possível aproximação teórico-crítica o seu discurso antipoético,
cuja estratégia é um canto de sereia: por meio da aparente familiaridade formal e temática que
desperta, exerce um sofisticado efeito de sedução sobre o leitor. Este é surpreendido por uma
trama icônico-verbal que o desconcerta e o desnuda ao desnudar, por meio do humor e da
ironia, o seu mundo.
Para tentar entender esse momento em que a poesia brasileira tomou um rumo
diferente, a discussão sobre a figura do leitor necessita ser constantemente resgatada. A
antipoesia desenvolveu uma noção de leitor ideal (como entidade implícita e prevista pela
construção discursiva) que deve ser capaz de realizar associações inter e extratextuais, uma
vez que o artista maneja as mais diferentes formas e recursos disponíveis, combinando-os de
modo a criar algo inédito, que parte do que já existe e o transpassa (CARRASCO, 1988, p.
45):
(...) el antipoema incorpora, en el acto de lectura que le es proprio, las diversas
posibilidades del extratexto, tanto en sus dimensiones textuales como no textuales. En
este sentido, (…) se trata de un texto que no sólo reescribe otros textos, sino también
diversos géneros de escritura y de discurso, artísticos y referenciales, estereotipos
ideológicos y culturales, situaciones de la vida cotidiana, personas, hechos y lugares
125 | P á g i n a
Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três
Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano
(Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858).
Guavira
no10
históricos, espacios geográficos; en otras palabras, no sólo la literatura, sino también
la vida.
Esse processo é particularmente visível em Sardan. Como resultado, o leitor, de
receptor passivo, é convocado a assumir o papel de construtor ativo dos significados do
poema que, por ser discurso híbrido, contém diferentes níveis sobrepostos ou justapostos de
sentido, muitos deles oriundos da associação entre o texto e os elementos visuais.
Combinando experiências literárias e não-literárias, o que surge em toda sua potência
significativa nesses discursos é o poder do não dito, vazio inscrito como virtualidade a ser
preenchida pelo engajamento de um interlocutor disposto a arriscar suas certezas e enfrentar
corajosamente seus pré-julgamentos.
A participação da palavra poética na vida cotidiana atualiza uma série de questões a
respeito da função do poeta e da própria poesia na sociedade de consumo e meios de
comunicação de massa. Nesse sentido, um dos aspectos da antipoesia, como projeto literário
concebido e desenvolvido por Nicanor Parra e presente na obra de Zuca Sardan, é sua
perspectiva problematizadora, que indaga, radicalmente e sobre bases inéditas, a pertinência
dos conceitos comumente naturalizados de literatura, gêneros, gosto, cânone e estilo.
A investigação dessa temática, diferentemente do que acontece em diversos países da
América Hispânica, é muito restrita no Brasil. Apesar disso, penso que sua proposta de
abordagem seja relevante em dois sentidos fundamentais: primeiro, porque instaura um
espaço de interlocução com o pensamento crítico de estudiosos de outros contextos; em
segundo lugar, porque o conhecimento advindo desse processo de intercâmbio intelectual
pode, dependendo do objeto de investigação, configurar-se como alternativa possível para a
pesquisa em torno das problemáticas da poesia brasileira contemporânea, notadamente em
relação à poesia marginal dos anos 70 e suas possíveis derivações posteriores. No tocante ao
trabalho de Sardan, acredito que essa orientação represente uma possibilidade interessante
para a área da investigação literária, pois auxilia no entendimento de uma manifestação
estética complexa e multifacetada ainda pouco estudada pela academia.
Referências
CABAÑAS, Teresa. Nicanor Parra: a ruptura poética da antipoesia. Expressão – Revista do
Centro de Artes e Letras - UFSM, Santa Maria, v. 1, n. 1, p. 196-202, 2003.
CARRASCO, Iván M. Antipoesía y neovanguardia. Estudios filológicos, Valdivia, n. 23, p.
35-53, 1988.
COLLINS COBUILD. English Grammar. London: Harper Collins Publishers, 1996. p. 247.
FERNÁNDEZ, Laura López. Un acercamiento a la poesía visual en España: Julio Campal y
Fernando
Millan,
s/d.
Disponível
em:
http://www.ucm.es/info/especulo/numero18/campal_m.html> Acesso em: 10/06/2009.
HAMBURGER, Michael. Un periodo sin ton ni son. In: HAMBURGER, Michael. La verdad
de la poesía. Tensiones en la poesía moderna de Baudelaire a los años sesenta. México:
Fondo de Cultura Económica, 1991. p. 187-224.
126 | P á g i n a
Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três
Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano
(Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858).
Guavira
no10
______. La nueva austeridad. In: HAMBURGER, Michael. La verdad de la poesía.
Tensiones en la poesía moderna de Baudelaire a los años sesenta. México: Fondo de Cultura
Económica, 1991. p. 225-271.
HOLLANDA, Heloísa Buarque de. 26 poetas hoje. 2 ed. Rio de Janeiro: Aeroplano, 1998.
MATTOSO, Glauco. O que é poesia marginal. São Paulo: Brasiliense, 1981.
MELO NETO, João Cabral de. Da moderna função da poesia. In: Melo Neto, João Cabral de.
Prosa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998. p. 97-101.
MOLES, Abraham A. La imagen como cristalización de lo real. Revista Criterios, 25-28,
Enero 1989 – Diciembre 1990. p. 118-150.
PARRA, Nicanor. Antipoemas – Antologia (1944-1969). Barcelona: Seix Barral, 1976.
PAZ, Octavio. A outra voz. São Paulo: Siciliano, 1993.
RETAMAR, Roberto Fernández. Antipoesía y poesía conversacional en Hispanoamérica. Dos
cosas. In: Retamar, Roberto Fernández.. Para una teoría de la literatura hispanoamericana y
otras aproximaciones. La Habana: Casa de las Américas, 1975. p. 111-126.
SARDAN, Zuca. Ás de colete. Campinas: Editora da Unicamp, 1994.
127 | P á g i n a
Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três
Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano
(Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858).
Guavira
no10
PARCELEIRO DO ASSENTAMENTO SERRA:
IDENTIDADE E REPRESENTAÇÕES
Silvane Aparecida Freitas (UEMS)43
RESUMO: Neste artigo, será apresentado o relato da história de vida de um morador do Assentamento Serra,
com o objetivo de verificar como se dá a formação da identidade desse sujeito, que ideologias defende, que
representações possui do local onde lutou para conseguir, de que lugar social o assentado produz seu discurso.
Após a análise dos dados, pôde-se verificar o quanto a marginalização e o esquecimento estão presentes naquele
local, pois tanto as autoridades como a sociedade ignoram os direitos desse povo, que enfrenta muitas
dificuldades para sobreviver. Conclui-se que o sujeito desta pesquisa está em conflito identitário, mas mesmo
assim, conseguiu deslocar-se, reelabora seu discurso, realiza seu sonho, que é ter um pedaço de terra, onde possa
viver com sua família e buscar sua subsistência.
Palavras-chave: história de vida; identidade; Assentamento Serra.
ABSTRACT: This article will present the story of the life story of one resident of the Assentamento Serra, in
order to verify how the formation of identity of the subject, argues that ideologies, representations that the site
has struggled to achieve, which place the settler produces its social discourse. After analyzing the data, we could
check how marginalization and neglect are present at that place, since both the authorities and society ignore
the rights of the people, who face many difficulties to survive at the site. We conclude that the subject of this
research is conflicting identity, but still able to move, reworks his speech, realize your dream, it is to have a
piece of land where he could live with his family and pursue their livelihoods.
Key word: life history; identify; Assentamento Serra.
Introdução
Neste artigo, abordamos a história de vida de um Assentado do Assentamento Serra.
Um morador, dentre tantos outros, que vive o problema de ser marginalizado, estigmatizado,
apesar de ser um desbravador e lutador. É importante ressaltar a diversidade cultural existente
dentro do Assentamento Serra, com assentados provenientes de várias cidades vizinhas e de
culturas bastante diferenciadas, tornando o local um rico e variado pólo cultural. Talvez
ignorado por muitos, por isso a importância de um trabalho que resgate as histórias de vida
desses moradores, respeitando e valorizando seus valores e saberes.
Para isso, desenvolvemos uma pesquisa44 intitulada História de vida: a construção da
identidade dos parceleiros do Assentamento Serra – com apoio da FUNDECT-MS-,
oportunidade em que o grupo de pesquisadores desse Projeto - apoiados na metodologia da
História Oral, pesquisa qualitativa -, coletou as histórias de vida de vinte moradores (via
entrevista áudio-gravada) que fazem parte do Assentamento, desde o sorteio das terras, ou
seja, são os mais antigos do local. Dentre esses entrevistados, selecionamos a história de vida
de um deles para compor o corpus deste artigo, denominado (AA). É importante salientar que
os dados utilizados neste artigo já foram utilizados na pesquisa de TCC, em 2007, pelo
43
Docente da Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul (UEMS), campus de Paranaíba (MS) e
colaboradora do Programa de Mestrado em Letras da UFMS, campus de Três Lagoas. Doutora em Linguística
pela UNICAMP e Pesquisadora da FUNDECT.
44
Pesquisa desenvolvida no âmbito da UEMS com o apoio da FUNDECT de Mato Grosso do Sul.
128 | P á g i n a
Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três
Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano
(Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858).
Guavira
no10
acadêmico Luciano Rodrigues Borges, do curso de Pedagogia da UEMS, Unidade de
Paranaíba; no entanto, neste artigo, com base nos pressupostos teóricos da Análise do
Discurso de linha francesa (AD), re-significamos esses resultados, ou seja, analisamos os
dados coletados com o olhar de analista do discurso, que considera as condições de produção
e a ideologia do sujeito pesquisado como fundamentais na interpretação dos dados.
Ressaltamos que o objetivo principal neste artigo é verificar como se dá a formação da
identidade desse sujeito, que ideologias defende, que representações possui do local onde
lutou, de que lugar social o assentado produz seu discurso, procurando assim refletir sobre
como se dão as condições de produção do discurso desse sujeito, uma vez que, segundo o
senso comum, os assentados são sujeitos estigmatizados pela sociedade, considerados sem
voz, não-ativos e preguiçosos.
Assim, esperamos que, ao tornar público o discurso de um dos assentados do
Assentamento Serra, estejamos contribuindo para trazer à tona um discurso encoberto,
dissimulado pela mídia e pela sociedade, em geral. Tudo isso, devido às condições políticas,
histórico-culturais em que vivem, questões que derivam da situação de contato entre
assentados e população em geral, não esquecendo das relações de poder existentes ente
assentados e governo.
Além disso, nenhuma história, embora seja processo e construção da trajetória da
humanidade ao longo dos tempos, permanece apenas na oralidade. A história da humanidade,
em sua realização, constitui-se pela inter-relação de fatos, processos e dinâmicas que,
mediante movimentos dialéticos e da ação dos sujeitos históricos, individuais ou coletivos,
transformam as condições de vida do ser humano ou se empenham em mantê-las como estão
(DELGADO, 2006, p.15). Assim, é fundamental o registro de suas histórias de vida, para que,
a partir daí, seus relatos possam gerar novas reflexões, novas pesquisas e até algum
deslocamento na história.
As questões discursivas e a produção de sentido
Nossa visão de linguagem, nesta pesquisa, não será a linguagem enquanto sistema de
signos ou de regras, mas com a língua no mundo, com maneiras de significar, com homens
falando, considerando a produção de sentidos como parte de suas vidas. Entendemos a
linguagem como discurso, que, etimologicamente, tem a ideia de curso, de percurso, de correr
por, de movimento (ORLANDI, 1999).
Assim, consideramos que o discurso é “palavra em movimento, prática de
linguagem” (ORLANDI, 1999, p. 15); eis a razão de analisarmos os relatos das histórias de
vida de um assentado, uma vez que pretendemos entender de que lugar social o assentado
produz seu discurso, isso porque, na análise do discurso, procuramos compreender a língua
fazendo sentido, enquanto trabalho simbólico, parte do trabalho social geral, constitutivo do
homem e da sua história. Observa-se o homem falando, considerando o homem e sua história,
os processos e as condições de produção da linguagem. Por isso é de suma importância que o
analista do discurso relacione a linguagem à sua exterioridade, ou seja, às condições de
produção do discurso, ou ao contexto sócio-histórico-ideológico.
Necessariamente determinado pela exterioridade, todo discurso remete a outros
discursos (memórias do dizer). Assim, a interpretação é sempre regida por condições de
produção específicas que, segundo Orlandi (2007, p.31), aparecem como verdades universais
e eternas. “É a ideologia que produz o efeito de evidência e da unidade, sustentando sobre o já
dito, os sentidos intitucionalizados, admitidos como naturais. Há uma parte do dizer,
129 | P á g i n a
Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três
Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano
(Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858).
Guavira
no10
inacessível ao sujeito, e que fala em sua fala”. Assim, ao analisar o discurso de um assentado,
estaremos refletindo sobre sua ideologia, suas identificações, pois a produção de sentido se dá
mediante a análise das relações entre o sujeito que fala, com quem fala e para quem diz.
Nessa perspectiva, para a Análise do Discurso, não há sentido, sem interpretação,
diante de qualquer objeto simbólico, o homem é levado a interpretar. Pela ideologia, se
naturaliza o que é produzido pela história. “A ideologia é interpretação de sentido em certa
direção, direção determinada pela relação da linguagem com a história em seus mecanismos
imaginários” (ORLANDI, 2007, p. 31).
Assim, buscamos em Bakhtin (1992) o conceito de ideologia, o qual é entendido
como o conjunto dos reflexos e de interpretações da realidade social e natural que tem lugar
no cérebro do homem e, se expressa por meio de palavras ou outras formas sígnicas. Assim,
ideologia é a expressão de uma tomada de posição, uma produção de sentido de um
determinado sujeito, em determinadas circunstâncias sócio-históricas. Para esse autor, a
palavra é o signo ideológico por excelência, produto da interação social, caracteriza-se pela
plurivalência. Por isso é o lugar privilegiado para a manifestação da ideologia, retrata as
diferentes formas de significar a realidade, segundo vozes, pontos de vista daqueles que a
empregam. Dialógica por natureza, a palavra se transforma em arena de luta de vozes que,
situadas em diferentes posições, querem ser ouvidas por outras vozes.
Ratificando tais pressupostos, Pêcheux também afirma que as palavras têm sentido
em conformidade com as formações ideológicas em que os sujeitos se inscrevem:
O sentido de uma palavra, de uma expressão, de uma proposição, etc.,, não existe “em si mesmo” […] mas, ao
contrário, é determinado pelas posições ideológicas colocadas em jogo no processo sócio-histórico no qual as
palavras, expressões, proposições são produzidas. (PÊCHEUX, 1997, 190).
Assim, entendemos que a noção de sentido é dependente da inscrição ideológica da
enunciação, do lugar histórico-social de onde se enuncia, da formação discursiva a que o
sujeito pertence. Isso envolve os sujeitos em interlocução. De acordo com as posições dos
sujeitos envolvidos, a enunciação tem um sentido e não outro(s). Assim sendo,
[…] o sentido de uma sequência só é materialmente concebido na medida em que se
concebe esta sequência como pertencente necessariamente a esta ou aquela formação
discursiva […] trata-se de um “efeito de sentidos” entre os pontos A e B. […] Os
elementos A e B designam algo diferente da presença física de organismos humanos
individuais […] A e B designam lugares determinados na estrutura de uma formação
social. (PÊCHEUX; FUCHS, 1990, 169).
Os dizeres são efeitos de sentidos que são produzidos por um determinado sujeito,
em condições determinadas e que estão de alguma forma presentes no modo como se diz,
deixando vestígios que o analista do discurso tem de apreender.
Segundo Orlandi (1999), o indivíduo é interpelado em sujeito pela ideologia para que
se produza o dizer. O sujeito discursivo é um sujeito social, apreendido em um espaço
coletivo, não é um sujeito fundamentado na individualidade, mas um sujeito que tem
existência em um espaço social e ideológico, em um dado momento da história e não em
outro. A voz desse sujeito revela o lugar social; a sua formação discursiva logo expressa um
conjunto de outras vozes integrantes de uma dada realidade social, de sua voz ecoam as vozes
constitutivas e/ou integrantes desse lugar social.
Mediante o exposto, afirmamos que o sujeito, previamente concebido como tendo
uma identidade unificada e estável, está se tornando fragmentado, disperso, composto não de
130 | P á g i n a
Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três
Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano
(Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858).
Guavira
no10
uma única, mas de várias identidades, algumas vezes contraditórias ou não resolvidas. A
identidade plenamente unificada, completa, segura e coerente é uma fantasia. Ao invés disso,
à medida que os sistemas de significação e representação cultural se modificam, somos
confrontados por uma multiplicidade desconcertante e cambiante de identidades possíveis,
com as quais poderíamos nos identificar – ao menos temporariamente (HALL, 2005).
Portanto, essas identidades são construções sociais e culturalmente situadas, são
formadas na relação inescapável e necessária com a alteridade. Os sujeitos, segundo
Grigoletto (2006), possuem identidades fragmentadas e proteiformes em constante mobilidade
num mundo (pós-moderno, midiático) em que as referências são cada vez mais cambiantes e
fragmentadas, em que os modelos fixos e perenes deixaram de existir.
Nessa perspectiva, supomos que o sujeito constrói as representações da realidade de
acordo com o lugar de onde fala, com suas experiências de vida e sua ideologia. Que
representações o assentado faz do seu pedaço de terra? Segundo Jodelet (2002, p.22), as
representações sociais são uma forma de conhecimento socialmente elaborado e
compartilhado, com um objetivo prático, e contribui para a construção de uma realidade
comum a um conjunto social.
O Assentamento Serra: história e descrição
Conhecer a realidade a ser pesquisada é essencial para o desenvolvimento de
qualquer estudo. Mais necessária ainda é esta condição quando se trata de povos que vivem à
margem da sociedade, como é o caso dos assentados do Assentamento Serra. Nesse sentido,
conhecer onde moram, como moram, onde viviam antes de fazer parte desse assentamento e
por que deixaram suas raízes (antigas moradias e residências) para fazer parte desse
assentamento é fundamental para entender as identificações do sujeito pesquisado.
Para melhor entender a realidade a ser analisada, foi preciso buscar um pouco da
História desse Assentamento, a descrição do local e como vive esse povo.
Em Mato Grosso do Sul, algumas medidas também foram planejadas e estão sendo
adotadas pelo atual governo, em parceria com o governo federal. Além de
desapropriações efetuadas ao longo de sua história (considerando ser um estado
bastante jovem), outras vêm sendo pouco a pouco implantadas com o fito de manter o
homem no campo, estabelecer uma forte economia de mercado e por fim diminuir a
miséria no campo. (LAMBLÉM, 2001, p.96).
Foi essa a intenção do governo, ao desapropriar as terras do Assentamento Serra, após
desapropriação da Fazenda na região nordeste do estado de Mato Grosso do Sul, no município
de Paranaíba (MS). Com o acompanhamento das pessoas interessadas por sua parcela de terra,
a área foi divida em 116 (cento e dezesseis) lotes (parcelas), possuindo, em média, vinte
hectares cada, agregando 116 (cento e dezesseis famílias), que passaram a fazer parte do
Assentamento Serra, a partir de 12 de dezembro de 1997, data em que foi realizado o sorteio
dos lotes, segundo informações dos próprios moradores do local.
É importante salientar que, segundo o Plano do Desenvolvimento Sustentável de
Assentamento da Reforma Agrária – Projeto de Assentamento Serra (1998), a maioria das
famílias assentadas é proveniente da região do Bolsão Sul-mato-grossense (municípios de
Paranaíba, Cassilândia, Inocência, Aparecida do Tabuado e Três Lagoas) – que estava
desempregada ou subempregada. Essas pessoas tinham nas atividades agropecuárias a sua
manutenção e a de suas famílias e, pela falta de oportunidades no meio em que viviam, foram
131 | P á g i n a
Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três
Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano
(Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858).
Guavira
no10
obrigadas a migrarem. Além dessas, há algumas famílias que vieram de outros estados
brasileiros em busca de melhores oportunidades e, por estarem desempregadas, viram na
reforma agrária um meio de desempenharem a sua profissão e manterem as suas famílias.
Os lotes são protegidos por terraços, em sua maioria, porém, em muitas das parcelas,
já houve um rebaixamento, havendo, portanto a necessidade de aterrá-los (dados levantados
no escritório do INCRA e checados, a partir de diversas visitas locais e entrevistas aos
moradores).
Em relação aos recursos hídricos na área do Assentamento, existe o Córrego do
Divisa, o Córrego da Barraca, Cabeceira da Velhacaria e a Cabeceira do Azulão e algumas
outras sem denominação. Mas apesar dessas cabeceiras, 80% das parcelas de terra não
possuem aguadas naturais, dificultando a principal forma de exploração que seria a pecuária,
ficando difícil inclusive a obtenção de água para o consumo diário e a agricultura doméstica.
Constatamos que existem parceleiros que buscam água até a distância de três
quilômetros para atenderem as suas necessidades domésticas (serviços domésticos, higiene,
alimentação), sendo que alguns buscam em vizinhos e a maioria traz água da sede, água essa
proveniente do poço semi-artesiano que já existia. Devido a essa dificuldade, muitos
assentados usam água de represas ou de poços artesianos, sem nenhum tratamento adequado à
saúde dos assentados. Praticamente todas as moradias possuem fossas sépticas e o lixo é
jogado em buracos que ficaram abertos, por ocasião da construção das casas, sendo que todas
possuem banheiros internos. Nota-se, portanto, que no quesito saúde, há necessidade de
diversas melhorias por parte do poder público (BORGES, 2007).
No que diz respeito ao atendimento à saúde, a situação do Assentamento também é
muito deficitária, pois o médico visita o local apenas uma vez na semana, e, quando precisa de
algum remédio, o paciente deve esperar até a semana seguinte, quando o médico lá retornará.
Por isso muitas famílias preferem ir ao município vizinho, Inocência, para poderem consultar
um profissional da saúde, principalmente, quando o paciente precisa de um atendimento
imediato. Apesar dessas dificuldades, quase toda área dos lotes, hoje, já está ocupada com
pastagens cultivadas, em quase todos os lotes foram plantadas algumas culturas de
subsistência, tais como, mandioca, milho, arroz, feijão, hortaliças e pomar caseiro, segundo
Borges (2007).
Esse autor comenta que, por meio das visitas de campo, foi observado que uma forma
muito usada no Assentamento é a troca de dias de serviço, pois, devido à falta de recursos, os
parceleiros promovem ajudas entre si, tanto às mulheres quanto aos homens, por meio de
mutirões ou a troca de dias de serviço, tanto nas atividades agropecuárias quanto nas demais
necessidades, não havendo quase nunca alguma remuneração em espécie. Além disso, não se
vê, no local, muita distinção entre trabalho masculino e feminino, pois as mulheres tanto
apartam vacas, cuidam dos porcos, consertam cercas, como vão para a lavoura, e alguns
homens ajudam nos serviços domésticos, sobretudo, nas refeições diárias.
Pela observação in loco, sobre a questão da educação no Assentamento, verificou-se
que só existe uma escola, improvisada na antiga sede da fazenda, não sendo planejada para
receber as crianças de forma adequada. Nessa escola só são atendidas crianças que cursam até
o 5º ano, e as demais séries do ensino fundamental só são oferecidas nas cidades vizinhas, ou
no Distrito do Tamandaré, que pertence ao município de Paranaíba (FREITAS, 2008).
Segundo um dos nossos entrevistados (AA), a prefeitura oferece o ônibus que faz o transporte
dos alunos, mas essa locomoção se torna um processo muito desgastante para as crianças, em
decorrência da distância, estradas ruins e ônibus escolar em condições precárias.
132 | P á g i n a
Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três
Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano
(Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858).
Guavira
no10
Não se vê no local uma escola que atenda as diferenças culturais desse povo; há uma
grande homogeneização do saber e, sempre, visando à economia de gastos com a educação.
Portanto a questão da inclusão social desse povo, por meio da educação, está longe de ser
atendida. Seria importante que a escola realizasse um trabalho que mantivesse a diversidade
na unidade, isto é, concebesse a unidade como garantia de sobrevivência sem desconhecer as
diferenças (ORLANDI, 2002).
Com relação à cultura e lazer no Assentamento, praticamente não há manifestações
culturais, exceção feita às reuniões de senhoras e de alguns parceleiros na direção de
realizações de cultos religiosos. Um tipo de lazer que merece ser mencionado é o campo de
futebol no local denominado “área verde”, que é ocupado, de vez em quando, pelos
moradores da região (FREITAS, 2008).
Ainda há muito a ser investido no Assentamento, fala-se muito em leis de reforma
agrária, no incentivo aos moradores rurais a permanecerem no campo, em direitos iguais para
todos e em estimular o homem a permanecer no campo. No entanto, muito pouco é feito na
realidade, como poderemos ratificar ao lermos o relato da história de vida de um morador
desse Assentamento.
História de vida de um dos parceleiros do Assentamento Serra
As características de um povo não podem ser atribuídas improvisadamente, são
produzidas ao longo de uma história de trabalho e, por conseguinte, é necessário certo tempo
para que possamos entendê-las melhor e, assim quem sabe, interferir positivamente na
realidade encontrada (se necessário for).
O assentado faz parte de uma comunidade marginalizada pela sociedade, vive em
condições sócio-econômico-culturais estigmatizadas, por isso necessita da sociedade não só
mais atenção, mas, sobretudo, de ações que visem a sua inclusão sócio-político-cultural, com
o fito de propiciar a esse morador condições para que possa: “defender-se da exploração;
defender seus territórios; progredir para além da alfabetização inicial; apropriar-se das
técnicas do letramento e processos subsequentes; sentir-se prestigiado perante o mundo”
(ORLANDI, 2001, p. 242).
Partimos do princípio de que os movimentos da História são múltiplos e se traduzem
por mudanças lentas ou abruptas, por conservação de ordens sociais, políticas e econômicas e
também por reações às transformações (DELGADO, 2006, 15). Nesse sentido, ao relatarmos
a história de vida de um dos moradores do Assentamento, estaremos acompanhando o seu
movimento na história, os seus deslocamentos, rumo à transformação de uma sociedade
solidificada pelo poder e exclusão.
O assentado, cujo discurso analisamos neste texto, tem quarenta e quatro anos de
idade, possui esposa e três filhos. Antes de ir para o Assentamento, trabalhava com lavoura de
abacaxi em Goiás.
AA - Eu morava, em Goiás. Nós mexia com abacaxi, eu plantava. Nós vivia até bem [...] Aí, eu quis vir
para cá porque a gente vivia morando de arrendamento, aí eu achei que se trabalhar numa terra minha,
eu ia desenvolver melhor. Mas infelizmente, parece que não deu muito certo não. Agora pra frente está
melhorando, mas até uns três anos atrás não deu certo não.
AA é um morador que está no Assentamento Serra desde o sorteio dos lotes, e,
mediante seu relato, observa-se que a maioria dos moradores que está no Assentamento, desde
133 | P á g i n a
Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três
Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano
(Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858).
Guavira
no10
o início do loteamento, era trabalhadora do campo, já tinha sua vida sofrida de empregado em
fazendas ou empreitas. No entanto, o desejo de mudança, a utopia por um mundo melhor, a
busca pela sua completude marcam o discurso desse sujeito. Isso porque ele se constitui no
embate constante, e sem fim, entre o desejo por um lugar melhor, lugar da completude e o
lugar em que sempre viveu, lugar da falta, do ilegitimado, do desvalorizado, isto é,
[…] como todo sujeito que ocupa um lugar determinado numa formação discursiva,
sua identidade se constitui no conflito entre o desejo da completude e a percepção,
ainda que não totalmente consciente, da falta; daí a angústia, a busca incansável de
soluções, momentaneamente apaziguadoras, para os problemas do dia-a-dia
(CORACINI, 2003, p. 207).
Nas palavras de Coracini, a identidade do sujeito não é algo pronto, ela vai sendo
construída e constituída desde as primeiras vivências do ser humano e continua se
aperfeiçoando após as diversas experiências vivenciadas e os novos desejos. Para isso,
precisam estar continuamente buscando novas informações, novos lugares, seja na profissão
ou na busca por uma identidade mais segura que chegue mais próximo de suas utopias.
Mediante os relatos de AA, pode-se observar certas artimanhas usadas pelos
fazendeiros que já venderam suas terras para o Instituto Nacional de Colonização e Reforma
Agrária - INCRA.
AA - Aqui foi meio complicado, porque nós ficou 90 dias acampado ali na divisa com Inocência, aí
depois o fazendeiro queria que nóis entrasse pra fazenda [...] só que todos é assim, depois que o pessoal
entra, eles falam que invadiram e recorrem na justiça pra aumentar os preços da terra. Aí nóis não
quisemos entrar não, porque nós não tinha a autorização da fiscalização. Aí nós aguardamos, e só
entramos pra dentro, ai veio a autorização falando que já tinha negociado, e estava tudo pronto. Ai
depois nós começamos a trabalhar, a medir terra, a conhecer os corgos, pra ver onde fazer a represa.
Esse assentado tem consigo a representação de que todo Sem Terra é considerado um
invasor tanto pela mídia, como pela sociedade em geral, sabe que o dono da terra pode ter o
poder na mão, portanto, prefere não arriscar a sua face, entrando nas terras sem autorização do
INCRA. Além do mais, a desapropriação era algo conveniente para ambas as partes, tanto
para o dono da terra, como para os assentados. Portanto, seu discurso revela o mascaramento
das conveniências, dos desejos de cada um, da luta pela sobrevivência.
O homem, na visão bakthiniana, só pode ser estudado como sujeito que tem voz, como
produtor de sua própria história, nunca como coisa ou objeto e, nesse sentido, o conhecimento
só pode ter caráter dialógico. Conhecimento dialógico é acontecimento. É encontro, pois será
na sua relação com os diversos textos da cultura que o sujeito vai se constituindo, visto que a
palavra do outro se transforma dialogicamente com a ajuda de outras palavras até transformarse em pessoal. A essa transformação das ideias do outro em opinião, Bakhtin (1992b)
denomina de “o processo de esquecimento progressivo dos autores”, pois “nossos enunciados
estão repletos de palavras dos outros, caracterizados, em graus variados, pela alteridade ou
pela assimilação, caracterizados, também em graus variáveis, por um emprego consciente e
decalcado” (p. 314).
O entrevistado construiu seu discurso mediante a imagem que possui do discurso do
outro (sociedade, mídia), por isso foi cauteloso para não ser denominado de invasor, já que
sabemos ser muito comum aparecer na mídia a manchete “Sem Terra invade propriedade
alheia”. Esse sujeito nega o discurso já cristalizado, mostra consciência de seu lugar social.
Assim podemos afirmar que o discurso não é neutro
134 | P á g i n a
Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três
Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano
(Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858).
Guavira
no10
[…] por ser heterogêneo, a autonomia do sujeito é uma ilusão, pois ele não é dono
absoluto de seu dizer, assim como lhe escapa o controle dos efeitos de sentido que seu
dizer causa, já que as palavras são sempre, e inevitavelmente, as palavras do outro. As
palavras vêm sempre de um já-dito na fala do outro (ECKERT-HOFF, 2003, p. 271).
Apesar da pouca escolarização, dos poucos conhecimentos jurídicos que
possui, AA demonstra ser um sujeito ativo, que percebe as artimanhas do poder. Nesse
sentido, na esteira de Cevasco (2003), afirmamos que esse sujeito soube destrinchar as névoas
de que a ideologia se utiliza para recobrir a realidade, na tentativa de cumprir seu objetivo de
dificultar o entendimento do modo como funciona nossa sociedade.
Assim, os assentados foram seguindo seu curso na história, passando por diversas
dificuldades, superando as armadilhas do poder, até poderem entrar em seu lote, mas isso não
quer dizer que, quando entraram, as dificuldades acabaram-se; pelo contrário, apenas
começaram os problemas, já que tiveram que lutar muito para conquistar o seu lote, a sua
moradia.
AA - Minha esposa ficava em Tarumã, porque tinha filho na escola e tudo, né! Então não tinha como
ficar os dois aqui. Depois do sorteio, a gente localizou cada um o seu lote. Limpamos o local para fazer
o barraco, até construir a casa. Nóis já começamos a se enganar, por que achamos que era rápido as
coisas pra vim do INCRA, mas enganamos, e ficamos muito tempo jogados aqui. Nóis ficamos dois
anos aqui sem sair nada, sem sair o dinheiro pra casa [...] Ah, nóis morava num barraco de plástico,
durante dois anos. Não tinha água, não tinha nada, nada, nada! Isso daqui era uma braquiara alta, mas
uma terra dura aqui não sai nada, vocês mesmo podem ver aí. As mudas ficavam pequenininhas assim,
e não virava nada não. Depois de dois anos saiu o dinheiro da casa, e nóis fez a casa. Depois de três
meses saiu o investimento pra comprar as vacas, ai que foi melhorando as coisas [...].
Pelo discurso de AA, o governo comprou a fazenda, loteou, sorteou os lotes de
acordo com os inscritos no Sindicato, dando prioridade aos que já trabalhavam com a terra, ou
seja, a quem tinha experiência comprovada como agricultor. Todavia, o primeiro
financiamento para esse pessoal trabalhar só saiu após dois anos de acampamento. Como
fazer reforma agrária sem dar condições para se trabalhar a terra?
Apesar disso, o assentado tem seu ideal: ser dono de sua terra, ser proprietário, assim
como seu “ex-patrão”. É nesta busca de identificação com o outro que reside o discurso. AA
tem sua identificação com a terra, ser dono de seu pedaço de terra, por isso mesmo com as
dificuldades, observa-se que seu discurso ora está carregado por um discurso de esperança,
ora se desespera na busca de respostas para problemas cotidianos, “atravessada por
identificações conflitantes, a subjetividade […], constitui-se na e da tensão entre um discurso
que o valoriza, produto de um desejo, e outro que o desvaloriza, resultante de uma realidade
social em manutenção” (CORACINI, 2003, p. 249).
Dentre os diversos discursos de desespero, destacamos o discurso sobre a falta de
água, que segundo AA,
AA - Buscava água na cacunda, numa represa que tem lá embaixo. Quase dois km daqui. Até pra
construir a casa foi buscando água lá embaixo, muitas vezes era na cacunda, por que a gente não tinha
dinheiro pra pagar, mas às vezes tinha carro aí a gente pagava para ir buscar pra nóis [...] Hoje eu não
tenho o que reclamar, porque graças a Deus, a gente foi trabalhando e pelejando e eu dei conta de furar
um poço aqui né! Então este problema eu não tenho, mas muita gente ainda tem. O nosso sistema de
água lá da sede não funciona porque ninguém tinha renda pra pagar a energia, então depois de três
meses eles cortam.
135 | P á g i n a
Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três
Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano
(Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858).
Guavira
no10
Assim, muitos assentados vão sendo conduzidos, outros se perdem, não conseguem
alcançar soluções para os problemas, negam suas identidades e praticam um discurso do
poder, entrando em uma crise de identidade que, conforme Hall (2005, p. 7), “[…] é parte de
um processo mais amplo de mudança, que está deslocando as estruturas e processos centrais
das sociedades modernas e abalando os quadros de referência que davam aos indivíduos uma
ancoragem estável no mundo social”. Diante do desespero, a ideia de convivência coletiva,
que poderia haver em um Assentamento, vai se esvaziando e voltando ao individualismo do
mundo urbano selvagem, em que cada um procura alcançar seus próprios bens para ter uma
vida individualizada com menos problemas. O cada um para si se sobressai, aqueles que têm
condições deixam o sofrimento da posse coletiva de água para ter a sua posse individual, o
seu poço d’água, em sua propriedade particular.
Para melhor entender as relações de poder existentes nessa sociedade, é fundamental
termos em mente que o processo de apropriação da palavra do outro acontece de maneira
diferente, de pessoa para pessoa. O sujeito é híbrido, porque o conjunto de discursos sociais
que formam o indivíduo “X” pode ser diferente do conjunto que forma o indivíduo “Y”;
porém isso não elimina a possibilidade de os sujeitos “X” e “Y” terem discursos em comum.
A essa altura, citando João Cabral de Mello Neto, é importante ter em mente que um
“galo sozinho não tece a manhã” e os fios de sol que tecem o nosso discurso nascem das
experiências tecidas anteriormente “entre os muitos galos”; complementa-se com os bordados
atuais e são modificados por meio de estudos e experiências do outro e com o outro. Por isso
é preciso que “um galo apanhe o grito de um outro galo antes e o lance a outro”. Isso nos leva
a refletir sobre o quanto nossa identidade está sempre em constituição, ela
[…] se forma ao longo do tempo, através de processos inconscientes, ela não poderia
ser vista como algo inato, existente na consciência no momento do nascimento […].
Apesar da ilusão que se instaura no sujeito, a identidade permanece sempre
incompleta, sempre em processo, sempre em formação. Assim, em vez de falar de
identidade como algo acabado, deveríamos vê-la como um processo em andamento e
preferir o termo identificação, pois só é possível capturar momentos de identificação
do sujeito com outros sujeitos, fatos e objetos. (CORACINI, 2003, p. 243).
Nesse sentido, a cada luta que travamos, a cada embate, a cada dificuldade imposta,
novas maneiras de agir vamos encontrando, melhor vamos nos conhecendo, melhor vamos
aprendendo a driblar os embates político-ideológicos que nos são impostos a cada dia.
A questão da Associação dos Moradores do Assentamento Serra também foi
mencionada por AA, que já foi um dos presidentes dessa Associação. AA apresenta as várias
dificuldades enfrentadas por ele e pelos outros presidentes que passaram pela Associação.
AA - Um problema sério aqui hoje, eu falo pela minha experiência calejada, é a união, porque a gente
depende muito da união pra conseguir as coisas, e aqui ninguém tem, aqui cada um pra si. Quando surge
uma ideia boa pro povo daqui, eles acham que aquela ideia está surgindo pra beneficio de um só. Aqui é
meio complicado. Estamos querendo montar uma cooperativa aí, e parece que essa ideia vai andar, foi a
primeira reunião que foi feita que deu certo. As pessoas que veio concordou, mas nem todo mundo veio.
As coisas é assim, quando você está quase conseguindo fazer as coisas, vem três ou quatro pessoas e
atrapalha tudo, porque não confia [...] Eu cansei de sair daqui e ir pra Campo Grande, com ônibus com
setenta, sessenta pessoas dentro, e pessoas daqui mesmo denunciavam a gente pra prender a gente antes
de chegar no INCRA. Então líder desse movimento que trabalha pro povo sofre muito. A gente sofre
por eles, e eles não estão nem ai com você, não!
A questão da falta de união e conscientização por parte dos próprios assentados fica
muito bem representada. Se as autoridades não trabalham em prol do Assentamento, e nem
136 | P á g i n a
Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três
Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano
(Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858).
Guavira
no10
seus assentados conseguem se articular para poderem reivindicar melhorias, como pode ser
possível obter alguma vitória? Há falta de solidariedade, conscientização e de identificações
comuns para esses assentados. Agindo dessa forma, eles mesmos contribuem para sua
exclusão social, pois lhes falta uma identificação comum, uma luta em comum dos moradores
desse local para que possam serem reconhecidos junto às autoridades governamentais, e terem
mais força em suas reivindicações.
Nessa perspectiva, Eagleton (1997), baseando-se em Althusser, afirma que é preciso
uma organização específica de práticas significantes que vão constituir os seres humanos
como sujeitos sociais que produzem as relações vivenciadas, mediante as quais tais sujeitos
vinculam-se às relações de produção dominante em uma sociedade. Talvez seja isso que
esteja faltando a esses sujeitos, práticas significantes que venham motivá-los à luta pelos
direitos deles mesmos.
Portanto, é complexo pensar na subjetividade, na identidade do sujeito, visto que ela
oscila, fruto de momentos vividos, felizes, de realizações, mas também conflitantes, que
ferem, maltratando-o, humilhando-o e exigindo mudanças de atitudes. Por isso se descobre
tendo que lidar não apenas com a terra que tanto deseja, mas também lutar pela subsistência,
por moradia, pela educação dos filhos, por direitos mais amplos. Assim, “identificando-se, ao
mesmo tempo e confusamente, com o herói e a vítima, o sujeito vê-se como imprescindível e
desnecessário, paradoxo apenas aparente, se considerarmos a heterogeneidade constitutiva do
sujeito e do discurso” (CORACINI, 2003, p. 248).
AA - Coitados! Eles se ferram, coitados dos presidentes e membros, sofrem! Eles sempre concordam
com as discussões nas reuniões, mas depois que sai dali, eles já começam a falar e desmanchar aquilo
tudo. A associação tem uma dificuldade muito grande para trabalhar aqui dentro, na verdade, eles não
trabalham, porque o pessoal não ajuda eles.
São atitudes de união que lhes dariam voz, no entanto, como sabemos, as pessoas são
diferentes, pensam diferente, possuem formações e identificações diferenciadas, por isso é
pertinente a conscientização da necessidade de discutir, pois é por meio da palavra do outro
que poderemos nos modificar, transformar nossa maneira de agir e pensar. Aqui é importante
citar Bakhtin (1992) quando afirma que nenhuma negociação é harmoniosa e pacífica; nesse
caso, também conflitos de interesses podem ser previstos.
As mudanças, segundo Hall (2005), abrangem transformações nos conceitos que antes
eram cristalizados, estáveis, sólidos. São mudanças estruturais presentes na cultura, nas
classes sociais, gênero, sexualidade, etnia, raça, nacionalidade e que passam a influenciar
nossas identidades. Por isso, ao distanciarmos de conceitos que eram tidos como certos, que
guiavam nossas práticas, perdemos também a certeza da identidade fixa.
Essas mudanças são necessárias para que se alcance algum objetivo em comum. É
obvio que a pós-modernidade em que vivemos é constantemente transformada, forçando o
surgimento de uma identidade que também precisa estar concomitantemente preparada para
assumir as novas responsabilidades. Não é possível ao sujeito permanecer imutável, pois a
cada dia mais lhe é cobrado resoluções. “A modernidade, em contraste, não é definida apenas
como a experiência de convivência com a mudança rápida, abrangente e contínua, mas é uma
forma altamente reflexiva de vida”. (HALL, 2005, p. 15).
Mesmo assim, AA, durante o tempo que ficou à frente da Associação, sente orgulho
de ter conseguido, pelo menos, uma melhoria para o Assentamento junto à prefeitura.
AA - O Posto de Saúde foi até no mandato da gente, que conseguimos este posto de saúde. Antes não
existia ele aqui não. Quando adoecia uma pessoa aqui, a gente tinha que sair doido pras cidades mais
137 | P á g i n a
Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três
Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano
(Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858).
Guavira
no10
perto, e ainda tinha aquelas burocracias de não atender por que não era da cidade. E Paranaíba era muito
longe e quase ninguém tinha carro. Nós conseguimos no mandato do Tita, e isso começou a melhorar
um pouco, porque muitas coisinhas que precisava ir na cidade agora não precisa mais. Toda terça-feira
o médico tá aí, então ele tá sabendo das necessidades das pessoas aqui. Quando ele não vem, o
enfermeiro vem, anota algum pedido de remédio, e na próxima semana, eles mesmo traz. Então é muito
bom!
O pouco que se consegue, para ele, já é uma grande vitória. Sabemos que numa
comunidade de cento e dezesseis famílias é mais do que obrigatório que se tenha assistência
médica adequada. No entanto, o poder constituído nega-lhes o que deveriam ter por direito.
Por isso a interação com o outro é fundamental, pois o diálogo ativo é “compreendido como
uma relação intersubjetiva instauradora de sujeitos” (OLIVEIRA, 2006, p. 35). Dessa forma,
o diálogo é fruto do respeito ao dizer do outro, pois para Bakhtin (1992), “[…] o acabamento
do eu vem de fora, é o outro que nos completa, pois só ele, pela posição que ocupa – exotopia
– pode ver o que não vemos pelo excedente de visão”. O termo exotopia, empregado por
Bakhtin, significa desdobramento de olhares a partir de um lugar exterior, ou seja, não é
possível observar-me sem que meu ego interfira nesse olhar.
“A presença da palavra do locutor e da contrapalavra do ouvinte faz que, em cada
momento singular da interação verbal, cada qual se constitua também como sujeito”
(FREITAS, 1999, p. 45). Observa-se dessa forma, a importância que se atribui ao diálogo,
pois
[…] é através da crítica ou da negociação dialógica que ocorre entre os interlocutores,
que se amplia o horizonte social dos sujeitos, elevando-se o grau de consciência dos
sujeitos sociais através da linguagem, pois a relação dialógica implica a presença e a
contrapalavra do outro, real ou virtual, que, estando numa posição exotópica no
processo da interação verbal social, tem melhores condições para elaborar a crítica,
ampliando a consciência do interlocutor no processo dialógico (FREITAS, 1999, p.
45).
Nessa perspectiva, é importante aceitar críticas de seus pares e aprender com elas,
constituindo-se; contribuir com o outro, pois, nesse espaço, as trocas devem ser constantes.
Prosseguindo nossa discussão, no quesito vida familiar, AA afirma ter filhos, uma
filha que já era casada ao vir para o Assentamento, continuou em Goiás. Já os outros dois
filhos, que vieram junto com ele, estudaram na escola do Assentamento, por algum tempo, e a
escola, na visão de AA, era eficiente:
AA - Na época, que nos assentamos aqui, não tinha nada, era um barracão, improvisamos um quadro
que era um papelão. Aí começamos, e foi assim durante um ano. Ai, a sede foi desocupada, e passou a
escola pra lá, onde é até hoje. Eu nunca tive o que reclamar não, pelo menos pros meus meninos eu
achei muito boa a professora. Muito boa! Eles aprendeu bem [...] Pararam, porque os dois casaram
novos, todos os dois. E mudaram daqui.
Apesar de ter passado por várias dificuldades, AA conseguiu prosperar no
Assentamento. Segundo seu relato, hoje ele já possui cerca de setenta cabeças de gado,
arrenda pastos dos vizinhos para poder criá-las, e conseguiu resolver o seu problema com a
água e seguir a sua vida com mais tranquilidade. No entanto, percebe-se que a única solução
para os filhos já adultos é procurar outro local para trabalhar, uma vez que não ficam no
Assentamento para levar a mesma vida do pai, saem à procura de alternativas de vida, não
pretendem continuar o trabalho do pai. Isso decorre, talvez, da falta de qualidade de vida no
local, carência de assistência médica, de escola e de condições para melhor trabalhar a terra.
138 | P á g i n a
Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três
Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano
(Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858).
Guavira
no10
Dessa forma, os mais jovens passam a ter outras identificações, não concebem a ideia de viver
no campo, isolados, querem o mundo globalizado, as novidades do mundo urbano, pensam
como se pertencessem ao esse mundo, afinal, estudaram segundo os moldes da perspectiva
urbana e globalizada.
Referindo-se às identidades culturais, é possível examinar três consequências dessa
globalização, a saber:
1)As identidades nacionais estão se desintegrando, como resultado do crescimento da
homogeneização cultural e do “pós-moderno global”.
2)As identidades nacionais e outras identidades “locais” ou particularistas estão sendo
reforçadas pela resistência à globalização.
3)As identidades nacionais estão em declínio, mas novas identidades – híbridas –
estão tomando seu lugar. (HALL, 2005, p. 69) (grifos do autor).
Em suma, vimos que, entre os filhos dos assentados, as identidades locais estão se
desintegrando, os mais jovens saem em busca da vida urbana, do conhecimento globalizado.
Embora ainda existam sujeitos lutando contra a globalização – como os assentados mais
antigos -, temos “novas” identidades sendo fomentadas, identidades “híbridas” conforme Hall
(2005), que são “originárias do cruzamento de espécies diferentes”, proporcionadas pela então
globalização.
Mesmo estando com uma situação financeira estável, controlada, quando se pergunta
para AA se ele faria tudo de novo, ele nos surpreende.
AA - Não! É por que a gente acha uma coisa e só descobre a realidade depois que tá lá dentro. A gente
quando é comum, ninguém dá nada por ela, mas pelo menos nome você tem. A gente pensava que ia
melhorar em tudo, mas aí a gente chega aqui e é enquadrado no ministério. E esse dinheiro acaba
limitando o seu teto. Hoje pra mim fazer um empréstimo no banco, eu preciso de um avalista, e quem
avaliza, um colega assentado? É discriminação porque é sem terra, ou negro [...] Quando eu mexi com
lavoura de abacaxi, eu já estive muito bem, bem mesmo! Infelizmente tem uma coisa na natureza que
judia também! Eu cansei de perder dez ou doze alqueires de roça por causa da geada [...] Agora trabalhá
pros outros não, porque tudo o que faz pra eles não está.
Na visão de Larrosa (1998), sabemos que a constituição do “eu” acontece em relação
com o “outro” mediada pelos valores, pela história, pela cultura. São as semelhanças e
diferenças que determinam o pertencimento. Essa é uma relação facilmente identificada no
cotidiano do Assentamento Serra, pois, embora AA pense que talvez estivesse melhor como
arrendatário, ele conseguiu, em detrimento das dificuldades, melhorar a sua situação de vida
no Assentamento Serra e o fato de não trabalhar de empregado é, para ele, uma grande
conquista, uma questão de pertencimento ao local.
No entanto, devido a sua conscientização mais politizada, AA observa as
diferenciações, as discriminações enfrentadas nos bancos e na sociedade, de modo geral, tanto
é que fala “A gente quando é comum, ninguém dá nada por ela, mas pelo menos nome você
tem [...] É discriminação porque é sem terra, ou negro”; isso porque antes de ser um
assentado, ele tinha nome, agora ele é um simples assentado ou um “Sem Terra”, um “negro”
e precisa ter avalista. Mas quem seria o avalista de um assentado? Outro assentado?
Nesse sentido Freitas (1999) menciona que quanto mais forte for sua orientação social,
seu poder de comunicação, de interação, maior será o grau de consciência do sujeito, “[…]
diz-se da existência de certo nível escalar tanto na língua quanto na constituição dos sujeitos,
e das suas consciências na interação verbal” e “[…] para que o individuo possa atingir um
maior grau de consciência e de subjetividade, ele terá efetivamente que orientar sua
139 | P á g i n a
Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três
Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano
(Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858).
Guavira
no10
enunciação para o meio social e manter a visão social de classe para si, ao mesmo tempo
realizando a atividade mental do nós.” (FREITAS, 1999, p. 42). Nessa visão, pensar a
sociedade como um todo, sem voltarmos o pensamento para uma concepção individualista, é
tarefa complexa, mas que resulta na constituição social do sujeito, propiciando, portanto, a
alteração também da própria identidade.
Considerações finais
O Assentamento Serra é composto por pessoas humildes, em sua maioria, não
alfabetizadas, pessoas que sempre trabalharam no campo, acostumadas a lidar com a terra.
Tais características não as destacam dentre os demais sujeitos da sociedade e o governo não
considera viável investir nestas pessoas. No Assentamento Serra, moram apenas cento e
dezesseis famílias, ficando claro que o governo não se preocupa em fazer valer os direitos
desse povo, talvez, para que não se tornem auto-suficientes. É importante para o poder ter os
“mais fracos” sob seu poder, pois assim, ao atender um ou outro pedido, continua tendo-os
nas mãos, fazendo que se sintam sempre devedores.
O que seria do governo se fosse dado mais poder a esses moradores? Com pouca
escolarização, o moradores do Assentamento Serra são ativos, vão à luta por aquilo que
almejam, são desbravadores, lutadores. Fica claro o porquê do descaso das autoridades.
Quando não é o descaso do poder público, é a exclusão por parte do resto da sociedade, que
deixa os parceleiros à margem, colocando-os como menor, inferior às pessoas do meio
urbano.
Um fato comum em nosso cotidiano é o preconceito para com os assentados, pois
quem nunca pensou em um assentado como um Sem Terra? Um baderneiro? Um invasor?
Quem nunca fez este julgamento de primeiro instante? Trata-se de um paradoxo, pois o
assentado possui seu lote, é um pequeno produtor rural, tem suas criações e, mesmo assim,
pensa-se nele como um invasor. Fica-nos óbvio o preconceito para com essa gente
trabalhadora do/no campo.
Diante do exposto, defendemos o princípio de que ainda faltam representações mais
positivas sobre a vida do e no campo, falta uma transformação das relações vivenciadas com a
realidade social, e isso só pode ser assegurado mediante uma mudança material dessa mesma
realidade (EAGLETON, 2007). O sujeito desta pesquisa não conseguiu isso ainda, mas
conseguiu deslocar-se em sua história, e reelabora seu discurso, mesmo imerso no conflito
identitário, permeado, de um lado, pelas divergências de ideias entre os vários moradores do
local, e, de outro, pela falta de apoio do poder público.
Referências
BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e filosofia da linguagem. Trad. Michel Lahud e Yara
Frateschi Vieira. São Paulo: Hucitec, 1992.
______. Estética da Criação Verbal. Trad. Paulo Bezerra. São Paulo: Martins Fontes, 1992b.
140 | P á g i n a
Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três
Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano
(Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858).
Guavira
no10
BORGES, Luciano R. Parceleiros do Assentamento Serra: marginalização, esquecimento ou
discriminação. 70 p.Trabalho de conclusão de curso. Pedagogia. Paranaíba: Universidade
Estadual de mato Grosso do Sul, 2007.
CORACINI, Maria José. Subjetividade e identidade do professor de português. In: Coracini,
Maria José (Org.). Identidade & Discurso. Desconstruindo subjetividades. Campinas: Editora
da Unicamp, 2003.
______. Identidades múltiplas e sociedade do espetáculo. In: Magalhães, In: Grigoletto,
Marisa; Coracini, Maria José (Org.). Práticas identitárias: língua e discurso. São Carlos:
Clara Luz, 2006.
DELGADO, Lucília de Almeida Neves. História oral: memória, tempo, identidades. Belo
Horizonte: Autêntica, 2006.
EAGLETON, Terry. Ideologia. Trad. Silavana Vieira e Luís Carlos Borges. São Paulo:
Editora da Universidade Estadual Paulista, 2007.
ECKERT-HOFF, Beatriz. Processos de identificação do sujeito-professor de língua-materna:
a costura e a sutura dos fios. In: Coracini, Maria José (Org.). Identidade & Discurso.
Desconstruindo subjetividades. Campinas: Editora da Unicamp, 2003.
FREITAS, Antonio Francisco. O diálogo em sala de aula. Análise do discurso. Curitiba: HD
Livros, 1999.
FREITAS, Silvane A. A educação no Assentamento Serra: repetição ou reelaboração? In:
Araujo, Doracina A. C. Pesquisa em educação: inclusão, história e política.Campo Grande:
UCDB, 2008.
HALL, Stuart. A Identidade Cultural na Pós-Modernidade. Trad. Rio de Janeiro: DP&A,
2005.
HISTÓRICO DO ASSENTAMENTO oferecido pela Associação de Moradores do
Assentamento Serra, [1998].
GRIGOLETTO, Marisa. Leituras sobre a identidade: contingência, negatividade e invenção.
In: Magalhães, I.; Grigoletto; Coracini, M. J. (Org.). Práticas identitárias: língua e discurso.
São Carlos: Clara Luz, 2006.
JODELET, Denise. Representações sociais: um domínio em expansão. In: Jodelet, D. (org.).
As Representações sociais. Rio de Janeiro: Eduerj, 2002, p.17-44.
LAMBLÉM, Glaucia A. S. F. Função Social da Propriedade Rural: Sua Aplicabilidade em
Mato Grosso do Sul. 76 p. Trabalho de Conclusão de Curso. Pedagogia. Paranaíba,
Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul, 2001.
141 | P á g i n a
Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três
Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano
(Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858).
Guavira
no10
LARROSA, Jorge. Imagens do outro. Petrópolis: Vozes, 1998.
MORIGI, Valter. A Escola do MST. Porto Alegre: Mediação, 2003.
OLIVEIRA, Maria Bernadete Fernandes. Alteridade e construção de identidades pedagógicas:
revisitando teorias diálogicas. In: Magalhães, Izabel; Grigoletto, Marisa; Coracini, Maria José
(Org.). Práticas identitárias: língua e discurso. São Carlos: Clara Luz, 2006.
ORLANDI, Eni. P. A linguagem e seu funcionamento. Campinas: Pontes. 1999.
______. Identidade Lingüística escolar. In: Signorini, Inês. Língua(gem) e identidade.
Campinas: Mercado de Letras, 2001.
______. Língua e Conhecimento lingüístico: para uma história das idéias no Brasil. São
Paulo: Cortez, 2002.
______. Autoria, leitura e efeitos do trabalho simbólico. Campinas: Pontes, 2007.
PÊCHEUX, Michel. O discurso: estrutura ou acontecimento. Trad. Eni P. Orlandi. Campinas:
Pontes, 1997.
PÊCHEUX, Michel; FUCHS, Catherine. A propósito da análise automática do discurso:
atualização e perspectivas. Trad. Eni P. Orlandi. In: Gadet, F.; Hak, T. Por uma análise
automática do discurso: uma introdução à obra de Michel Pêcheux. Campinas: Editora
Unicamp, 1990.
SILVA, Tomás Tadeu. Documentos de identidade: uma introdução à teoria do currículo. São
Paulo: Autêntica, 2003.
142 | P á g i n a
Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três
Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano
(Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858).
Guavira
no10
“ENTRE-LUGAR” D0 LEITOR À RECEPÇÃO E CIRCULAÇÃO DA
TRADUÇÃO EM CONTEXTO ESTADUNIDENSE
Rosa Maria Olher (UEM/PR)45
RESUMO: O objetivo deste trabalho é o de discutir as representações que alguns professores-leitores e,
também, tradutores têm da tradução em diferentes contextos. Concepções de leitura, sentido, autoria e
originalidade implicam a forma de recepção e circulação da tradução em lugares específicos, já que é nas vozes
do leitor e do tradutor que se observam a tensão e o conflito que o “entre-lugar” das línguas pode provocar no
sujeito, ao se posicionar como construtor e responsável por seu discurso e sua história. Os enunciadores falam a
partir de um contexto de ensino superior de literaturas estrangeiras, nos Estados Unidos da América.
Palavras-chave: Tradução. Leitor. Representação.
ABSTRACT: This paper aims at arguing about the representations that some professors of literature have of
translation as readers and also as translators of literary texts in different contexts. Concepts as reading,
meaning, authorship and originality interfere the way translation is received in specific places, since the tension
and conflict observed in the reader and in the translator’s voices are a result of the “inter-language” place,
situating individuals as the ones in charge of their discourse and history. The interviewees report from a higher
foreign literature teaching context in the United States of America.
Key-words: Translation. Reader. Representation.
Introdução
No sentido formal da palavra, traduzir é ler, embora ler não seja necessariamente
traduzir. Se entendermos que a tradução implica a construção efetiva de um texto, ou seja, o
ato de colocar no papel aquilo que se interpretou, a tradução pode ser entendida, num primeiro
momento, como a materialidade de uma leitura, já que representa uma comunhão entre leitura
e escrita.
Várias concepções de leitura atravessam a literatura sobre o assunto, das mais
clássicas – leitura enquanto decodificação, descoberta de sentido; leitura enquanto interação,
construção de sentido –; às (pós-)modernas – leitura segundo a perspectiva discursivodesconstrucionista (CORACINI, 2005). A escola, em geral, prioriza a visão clássica - da
linguagem como sistema ou como código -, enquanto a academia tende a corroborar a
perspectiva interacionista, na qual o sentido é construído na interação entre leitor e texto. Para
Coracini (2005), entretanto, é preciso ampliar a concepção de leitura para que se alcance a
compreensão ou percepção do espaço social, lançando um olhar a nossa volta para que se
perceba melhor o que nos rodeia. A leitura discursiva na pós-modernidade inscreve-se no
espaço entre o novo e o diferente, interpretação que “não anula o texto, mas o (trans)forma, o
(re)escreve, fazendo de ele surgirem outros textos que produzem outros e outros e mais outros
45
Docente de Língua Inglesa e Tradução do Departamento de Letras da Universidade Estadual de
Maringá; doutora em Linguística Aplicada, área de Teoria, Prática e Ensino da Tradução pelo Instituto da
Linguagem da Universidade Estadual de Campinas. Membro do Grupo de Estudos intitulado “Vozes (in)fames;
exclusão e resistência”, sob a coordenação da Profa. Dra. Maria José Coracini (UNICAMP).
143 | P á g i n a
Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três
Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano
(Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858).
Guavira
no10
[...]”(CORACINI, 2005, p. 40). Segundo a autora, na visão discursiva, o olhar do leitor ou do
observador vem de dentro do sujeito e está “inteiramente impregnado por sua subjetividade,
que se constitui do/no exterior, por sua historicidade”.
Na tentativa de trazer mais elementos que contribuam para a discussão das
representações sobre tradução, este artigo tem como objetivo apresentar e problematizar os
resultados de registros selecionados, com base nas representações dos entrevistados
estadunidenses (professores de literatura estrangeira), na posição de leitores de textos
literários estrangeiros. Para direcionar esta discussão, pergunto se suas representações de
leitores de textos literários são diferentes daquelas de professores de literaturas estrangeiras.
Que posição o sujeito, enquanto leitor, assume, através de seu discurso, ao falar sobre
tradução?
Os entrevistados, em contexto estadunidense, denominados P-1, P-2, P-3 e, assim,
sucessivamente, são professores de literaturas estrangeiras (alemã, espanhola, francesa e
coreana) em uma instituição nova iorquina e trabalham com literatura estrangeira traduzida.
As entrevistas foram gravadas em MP3 e, em seguida, transcritas e traduzidas por mim para a
língua portuguesa. Foram elaboradas sete perguntas relacionadas ao ensino de literatura
estrangeira, ao uso da tradução e à leitura de textos literários estrangeiros na língua “de
origem” ou na tradução.
Análise e Discussão
Nos recortes discursivos (doravante RDs) que seguem, tento abordar a perspectiva do
professor-leitor e tradutor estadunidense, a partir do contexto que chamo de “diferente”, no
qual a literatura estrangeira é, em sua grande maioria, traduzida.
Ao ser questionado sobre sua preferência como leitor de textos literários, se em
alemão ou em inglês, P-20, que ensina Literatura Alemã na instituição estadunidense comenta
que prefere ler em alemão, sempre que possível. Ao responder o “por que” de sua preferência
pela leitura dos textos no “original”, ele completa:
(RD31):- Bem// eu ainda sou bem mais rápido para ler em alemão do que em inglês// também/ as
traduções em inglês/ como eu digo/ são traduções de no máximo $5 a página// Então/ não são muito
boas/ quero dizer/ se você pega uma tradução de um filósofo como o Donald/ homem importante/ mas
com aquelas frases para as quais são traduzidas/ eu não entendo/ pois são simplesmente deixadas de
lado (P-20, tradução minha) 46.
P-20 compara sua leitura em alemão com sua leitura em inglês, afirmando: “ainda sou
bem mais rápido para ler em alemão do que em inglês”. O uso do comparativo “mais rápido
[...] do que” aponta para a necessidade de P-20 em expressar sua identidade alemã naquele
contexto norte-americano, remetendo para uma possível tensão que o conflito de identidades
culturais ocasiona no espaço “entre-línguas” ou entre-culturas (da leitura em alemão
comparada à leitura em inglês).
Retomando Foucault (2007, p. 147-148) sobre a questão do arquivo como responsável
pela materialização dos discursos, o enunciado de P-20 corrobora a afirmação do filósofo de
46
Em inglês: Well// I’m still a lot quicker in reading them in German than in English//also/ English
translations/ as I say/ they are most $ 5 a page translations// so/ they’re not that much adequate/ I mean/ if
you take a translation of / take a philosopher like Donald/ important man/ but those sentences which they are
translated/ I do not understand and they’re just left out.
144 | P á g i n a
Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três
Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano
(Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858).
Guavira
no10
que “é no interior de suas regras que falamos”, ou seja, como não conseguimos descrever
nosso próprio arquivo que nos delimita enquanto sujeito, assumimos, mesmo que
transitoriamente, a alteridade que nos constitui e que nossos dizeres denunciam. P-20 é o que
os norte-americanos denominam de German-American (alemão de nascimento, porém,
cidadão norte-americano), portanto, marcado pela dupla cidadania e, também, pelo hífen que
aproxima, mas, ao mesmo tempo, separa e marca as duas identidades culturais.
O advérbio “ainda”, do primeiro enunciado, chama a atenção para o hífen, para a
tensão do “entre-lugar” de P-20, no sentido de que existe um movimento de deslocamento ou
a fragmentação de identidades, muito embora, ele/a possivelmente resista, pois o advérbio
“ainda”, como verbete dicionarizado (FERREIRA, 2004), significa “até agora”, denunciando,
assim, certa tensão entre o passado e o presente que o constituem.
Comparo o RD31 à questão do nome próprio que, segundo Derrida (2001), ao mesmo
tempo em que pede, resiste à tradução, assim como o texto pede para ser traduzido pela
própria necessidade de sobrevivência, ao mesmo tempo resiste, ditando o “respeite” minha
“lei”. Os efeitos do dizer de P-20 apontam para a constituição de um sujeito traduzido pelo
contexto hegemônico em que se insere, mas que, porém, resiste a se deixar traduzir.
O dizer de P-20 também remete ao texto de Derrida (1998), O Monolinguismo do Outro ou
a Prótese da Origem. Numa reflexão autobiográfica a respeito de sua relação singular com a língua
francesa, Derrida (1998) trata da questão identitária como algo construído via alteridade, face ao
interpelamento da língua do “outro”, do estrangeiro colonizador, tida por alguns filósofos que
discutem a questão identitária como uma perspectiva agonística47, a citar, Bhabha (1998). Tal
perspectiva postula que os indivíduos devem ser pensados como constituídos por tensões e conflitos,
tensões estas intensificadas pela sociedade pós-moderna e que não se dissipam numa sociedade
ideal, como se quer crer. Portanto, fica difícil pensar o indivíduo pós-moderno sem postular seu
deslocamento cultural e, ao mesmo tempo, sua tradução cultural, como estratégia de sobrevivência.
Assim, é preciso que pensemos a respeito do caráter incomensurável da diferença cultural, no
qual não há mais espaço para categorias de consenso e fusão, tendo em vista a consequente tradução
cultural, sugerida por Bhabba (1998) e amplificada pelas tecnologias midiáticas globalizantes,
permitindo ao sujeito uma agência de “si”, fora da lógica das oposições binárias. Compreendendo as
identidades por meio dessa lógica agonística, percebe-se a alteridade permanente que constitui as
identidades, cuja agência se materializa nos conflitos e não na superação deles.
Retomando Derrida (1998) com relação à suas dificuldades com a língua francesa – tida
como materna – o filósofo argumenta que, na condição de judeu franco-argelino, a língua materna,
já que não possui outra, é, desde sempre a língua do outro, do francês colonizador. Observa-se em
tal circunstância, a impossibilidade de reconhecimento do francês como tal. Todavia, Derrida (1998)
não se restringe apenas a seu caso particular, pelo contrário; o “monolinguismo do outro” postula a
inviabilidade da alienação a uma língua tida como absoluta, marcando, dessa forma, a relação
dialética de todo indivíduo com a sua língua materna e com qualquer outra língua estrangeira. Para
Derrida (1998, p. 100), a língua prometida como idioma absoluto, anuncia consigo “a unicidade de
uma língua por vir”, mas que, porém, não existe, ela sempre falta. Essa língua que “nunca é dada,
recebida ou alcançada” (DERRIDA, 1998, p. 43) é irrecuperável, tornando o processo
identificatório do sujeito com a língua, “interminável, indefinidamente fantasmático”, já que não
existe algo que precede a falta na língua (a língua absoluta e impossível), pois toda língua é sempre
a língua do outro, precedendo, necessariamente, o sujeito.
Além desse conflito identitário que emerge da e na língua, o RD31 traz para a discussão a
questão da “qualidade” da tradução também associada à noção de autoria. Ao se referir às
47
Do termo grego agon, que significa tensão ou conflito.
145 | P á g i n a
Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três
Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano
(Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858).
Guavira
no10
traduções “de no máximo $ 5 a página”, P-20, além de sinalizar que, por serem baratas ou mal
pagas tais traduções “não são muito boas”, associando-as depois ao “filósofo”, à autoria como
fator determinante de “boa” qualidade na tradução, faz, ainda, uma crítica ao tratamento que o
mercado tradutório norte-americano confere à tradução, ou aos tradutores. P-20 acrescenta que as
traduções de “no máximo 5$ a página”, ou seja, de baixa qualidade, segundo seu dizer, são
aquelas elaboradas por tradutores não especializados, despreparados para traduzirem uma obra
canônica, materializado no enunciado “você pega uma tradução de um filósofo como o Donald”,
por exemplo, associando a qualidade da tradução ou do trabalho do tradutor à autoria.
O sintagma “deixar de lado” (em inglês: left out) aponta para a noção de perda,
também comum nos dizeres dos leitores de textos literários traduzidos, pois, segundo P-20,
algumas frases não são traduzidas e que, por isso, tornam o texto traduzido incompleto, de
baixa qualidade, ou menor.
A assimetria observada entre original e tradução emerge com frequência, também nos dizeres
de outros leitores estadunidenses. Vejamos o que diz P-12 como sobre a leitura de textos estrangeiros:
(RD32):- Bem/ se é uma língua que eu possuo [conheço]/ eu pego muito mais as nuanças do que na
tradução// é uma leitura mais completa// é uma leitura mais completa// eu não tenho que ler uma
interpretação de outra pessoa// se eu consigo lidar com o original// eu às vezes faço um esforço mesmo
que eu não consiga dominar bem uma língua/ como o italiano// eu leio em italiano mesmo que meu
italiano não seja lá essas coisas// você aprecia mais a leitura (P-12, tradução minha) 48.
O efeito do RD32, além de reforçar a formação discursiva da tradução como
secundária do ponto de vista do leitor, também corrobora a noção de descentralização dos
indivíduos, proposta por Hall (2006, p. 9). O autor trata a questão da fragmentação de
identidades como resultado das mudanças, das transformações das “paisagens culturais de
classe, gênero, sexualidade, etnia, raça e nacionalidade”, como já discutimos anteriormente.
Tal asserção deve-se ao fato de que, em outro momento da entrevista, quando discute
o que entende por tradução e literatura, a representação de P-12 sobre tradução é diferente da
representação que emerge de seu dizer de leitor.
Neste RD32, observam-se dois pontos importantes, ou seja, as noções constituídas por
ele/a de leitura e de língua. A primeira remete ao imaginário de que uma língua possa ser
“dominada” em sua totalidade, pois se ele consegue “dominar” ou possuir língua (do inglês:
possess), ter total controle sobre ela, ele realiza o desejo de “completude”, do sujeito uno que,
por meio da leitura na língua que ele “sabe” e “domina”, consegue fazer uma “leitura mais
completa”. Esta leitura “mais completa” remete à segunda noção, a da ilusão da totalidade e
da essência presente não só nas formações discursivas do sujeito, como também, no seu
próprio desejo ou representação de língua, ou seja, de que aquilo que diz possa ser totalmente
compreendido pelo outro, a língua como algo transparente e facilmente inteligível.
Ainda, com relação à leitura ou à tradução, P-12 acredita que a “outra pessoa”, neste
caso, o tradutor, interpreta o texto original. Porém, o sintagma “não ter que” já denuncia o que
ele/a entende por interpretar, no sentido de que a tradução, que é “interpretação”, texto
transformado, se distancia do texto-fonte e que, somente a “sua” leitura no original
proporcionará as “nuanças” (tonalidades e matizes) que o original permite. Portanto, o dizer
48
Em inglês: Well/ if it’s a language that I possess// I get the nuances much more than in translation// you
know/ it’s a more complete reading/ It’s a more complete reading// I don’t have to go through somebody
else’s interpretation// if I can handle the original// sometimes I’ll do my best/ even if I don’t master a
language well/ such as Italian// I read it in Italian/ even though my Italian is not that great// You enjoy it
more! (P-12 é hispano-americano e ensina literatura espanhola na universidade estadunidense).
146 | P á g i n a
Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três
Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano
(Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858).
Guavira
no10
de P-12 remete ao sujeito que resiste à ideia de pós-maturação e de transformação da língua e
da linguagem, assumindo que somente ele/a, na posição de sujeito-leitor é autorizado a ler e
interpretar o texto, a despeito da leitura do “outro”, ou seja, da leitura do tradutor.
Questiono o que levaria P-12 a tal contradição, já que ao se posicionar como professor
de literatura estrangeira, P-12 remete à tradução como re-escritura de uma obra do passado
para o presente, sinalizando para a importância da amplitude que o termo “tradução” possa
alcançar na literatura? Todavia, as respostas podem ser encontradas na complexidade da
constituição do sujeito, das identidades, apontada por Coracini (2007, p. 151) com base na
psicanálise lacaniana. Na tentativa de explicitar ou rastrear os tipos de sujeito, a autora
apresenta três categorias: i) a do sujeito cartesiano ou consciente, racional e centrado que
acredita ser sujeito da enunciação; ii) a do sujeito inconsciente que Lacan define como
“barrado pelo simbólico”, que persegue a falta e busca a impossível completude e; iii) a do
sujeito da pulsão ou imaginário, sujeito do gozo que “acredita tudo poder, tudo realizar [...]
sujeito que é o próprio consumo” (CORACINI, 2007, p. 151).
Como também coloca Hall (2006, p. 13), o sujeito pós-moderno não é uno, de
identidade fixa ou permanente. Pelo contrário, o sujeito de hoje “assume identidades
diferentes em diferentes momentos, identidades que não são unificadas ao redor de um “eu”
coerente”, dadas às formas pelas quais é interpelado nos sistemas culturais que o rodeiam. O
que construímos, na verdade, é a chamada “narrativa do eu” que nos conforta enquanto nos
iludimos com a crença de que somos o “mesmo” do nascimento até a morte.
Tratar sobre o “mesmo” remete, além das questões identitárias, à tradução pois
traduzir para o senso comum representa uma forma de dizer o “mesmo” a outros. No início
deste trabalho, argumentei que traduzir implica ler no sentido de interpretar, porém, Steiner
(1975 [2000]), por sua vez, expande tal noção ao assumir que traduzir é raptar para então
apoderar-se do texto, como num movimento que ele denomina de hermenêutico.
Steiner (2000, p. 186) explica o movimento tradutório em quatro partes: a primeira
como um ato de trust (confiança) por parte do tradutor, no sentido que ele acredita a priori
que há algo lá, na outra língua, a ser traduzido, confiança esta que é testada ou ameaçada pelo
fato de que praticamente tudo possa ter vários significados ou às vezes nenhum; a segunda
parte consiste no que ele denomina agression (agressividade) como uma atitude de conquista,
de intervenção e transformação do sentido; a terceira é por ele chamada de incorporative
(incorporação), ou seja, a importação do sentido e da forma, também conhecida como
naturalização ou domesticação do termo, na língua e cultura para a qual se traduz; e, a quarta,
que parte do movimento denominado por Steiner de rapture (rapto) – o ato violento de
arrebatamento do sentido ou do significado, deslocando ou desequilibrando a confiança do
primeiro movimento do tradutor, que através da agressão, da invasão apodera-se do sentido
para transformá-lo e, com isso, realizar o ato de infidelidade, naturalizando e domesticando o
texto traduzido.
Existe, portanto, para Steiner (2000) uma visível e inevitável relação dialética entre o
original e a tradução que nada mais é do que uma leitura, um movimento hermenêutico, ou
seja, da tradução como interpretação. De forma mais ampla e completa, Steiner (1998) coloca
que existe uma relação assimétrica de poder entre as línguas envolvidas na tradução, na qual a
língua periférica, por ele entendida como a língua para a qual se traduz, seria invadida e
violentada pela outra, a língua da qual se traduz, associando, assim, a tradução não só à
interpretação, mas também, a um ato de violência, de produção de sentido e de inevitável
“infidelidade”.
Vejamos um RD de P-17, leitor-tradutor de literatura coreana, falando sobre sua
experiência como tradutor:
147 | P á g i n a
Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três
Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano
(Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858).
Guavira
no10
(RD33):- Eu sei// eu quero dizer que um outro projeto meu é um livro/ é uma tradução do século XVII
de um romance coreano e deve ser publicado em fevereiro/ pela Berkeley: East Asian Institute [Instituto
Asiático Oriental]// e eu traduzi muito rápido/ fiel ao original/ mas acabei escrevendo umas cem páginas
de introdução para explicar o contexto cultural// acho que era a única forma de abordagem (P-17,
tradução minha)49.
Na tentativa de justificar o termo “fiel ao original”, reforço que P-17 sinaliza para o
double bind em que o tradutor é colocado ao explicar, mais uma vez, o dilema da
“fidelidade”, ou seja, da tarefa-renúncia benjaminiana em que é colocado, tendo em vista a
ilusão da “equivalência’ entre dois ou mais sistemas linguísticos ou culturais e da busca pela
tradução ou tradutor ideal. P-17 assume que para “explicar o contexto cultural”, isto é, a
diferença que se apresenta entre os contextos culturais coreano e norte-americano, ele
“acab[ou] escrevendo umas cem páginas de introdução”. O termo “acabar” aqui neste
enunciado aponta para a ideia de “concluir”. Entendo que, no dilema tradutório de traduzir
uma cultura, P-17 concluiu que, para dar conta da pluralidade das línguas em uma só língua,
foi necessário escrever (criar) um outro texto, quase um outro livro dentro do mesmo livro, ou
seja, “cem páginas” de introdução, no movimento de passagem, de leitura e interpretação de
um texto para outro.
O exemplo de P-17 me leva a retomar a discussão da différance (DERRIDA, 2001), ao
tratar da noção de signo como uma sucessão de adiamentos na qual o sentido é construído no
movimento metonímico de um “significante” a outro, remetendo à semiologia ou semiose que
originou, também, a semiótica proposta por Pierce (1958). Pierce teoriza que não existem
signos isolados, chamados de símbolos e que há sempre um segundo significante que ele
chama de “interpretante”, o qual dá o sentido do primeiro significante e significado. Quando
escolho dentre estes modelos, o que realmente faço é escolher um termo posterior, um
significante posterior, um “interpretante”.
Trazendo a discussão para nossa prática diária, o crítico Pym (1993) exemplifica tal
simbologia dizendo que, se alguém nos perguntar o que queremos dizer com a palavra “sol”,
vamos usar ou produzir cada vez mais palavras, textos e significantes. É por essa razão que
Pierce (1958) diz que o símbolo cresce; semiose quer dizer, então, o processo de símbolos em
crescimento.
Coadunando com as perspectivas da desconstrução, a leitura que Pym (1993) faz a
respeito da semiótica é aquela na qual o sentido não existe numa relação de equivalência entre
os dos polos: significante e o significado, pois, há sempre outro significante, mesmo no início.
Por isso, é impossível um texto ter apenas um sentido. Um texto pode ter um sentido para
mim aqui e agora, outro para você e, ainda, um outro para mim mesma daqui a alguns anos.
Mais especificamente, quando um texto se distancia de seu lugar de produção ele está
suscetível à tradução, sendo esta sua própria condição enquanto texto. A tradução é uma das
maneiras pela qual os sentidos são produzidos e deslocados, afirma Pym (1993).
A questão da preocupação com o deslocamento ou distanciamento de sentidos
também pode ser observada no relato de P-11, professor de literatura francesa que traduz
romances franco-africanos para o inglês. P-11 comenta o seguinte:
49
Em inglês: I know// I mean one of my other project is a book/it is a translation of the 17 th century of a
Korean Novel and is due to come out in February/ by Berkeley: East Asian Institute// and I translated very
fast/ faithful to the original/ but I ended up writing a hundred pages of introduction into it to explain the
cultural background// I think that’s the only way that could have been approached. (P-17 é professor de
literatura coreana e tradutor nos Estados Unidos).
148 | P á g i n a
Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três
Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano
(Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858).
Guavira
no10
(RD34):- [...] Eu estou traduzindo um texto [romance] franco-africano / [...] /se você está trabalhando
com tradução/ você tem um distanciamento duplo da fonte/ ou do autor// eu quero ficar o mais próximo
possível do que o autor realmente diz ou pretende dizer (P-11, tradução minha) 50.
No enunciado: “você tem um distanciamento duplo da fonte ou do autor”, observa-se a
preocupação de P-11 com o deslocamento que os sentidos sofrem ao se distanciarem do lugar
de produção, isto é, da sua fonte ou origem. Ao traduzir o texto, P-11 percebe o double bind
da impossibilidade de realizar seu desejo de “ficar o mais próximo possível do que o autor
realmente diz ou pretende dizer”. A posição de P-11 é marcada pelo verbo volitivo “quero”
na primeira pessoa, no sentido de que ele/a, o/a tradutor/a, possa assumir a posição, o lugar
do “autor” do texto, retornando à origem, à fonte, lugar este impossível e, por isso mesmo,
desejado pelo enunciador, apontando, também, para o desejo de autoria que constitui o
próprio tradutor (CORACINI, 2007).
No enunciado “ficar o mais próximo possível do que o autor realmente diz ou pretende
dizer”, pode-se observar que o verbo “ficar” já aponta para a impossibilidade de “ocupar” o
lugar do autor, ou seja, a ideia de que o tradutor só possa permanecer por algum tempo,
temporariamente, conforme verbete do dicionário Aurélio (FERREIRA, 2004), próximo à
fonte à suposta origem do sentido. No advérbio “realmente”, observa-se a tentativa de
reforçar seu desejo de verdade, isto é, dizer aquilo que o autor “verdadeiramente” diz ou
“pretende” dizer.
Entendo que, com base nos enunciados discutidos, a citar, “distanciamento da fonte”,
“ficar próximo do autor”, “do que o autor pretende dizer”, o dizer de P-11 faz parte da
formação discursiva articulada pela perspectiva formalista de língua e linguagem, na qual o
traduzir significa transportar sentidos, significados de um vagão a outro, a exemplo da crença
na equivalência ou semelhança entre duas ou mais línguas, como já exposto anteriormente.
Seu RD aponta para a noção de que o sentido está fixado na palavra e que o leitor pode
“captar” exatamente o que o autor diz, como no modelo de comunicação estruturalista
“emissor-mensagem-receptor”.
Considerações Finais
Com relação aos efeitos dos dizeres dos professores-tradutores-leitores em contexto
estadunidense, acrescento que o significado fixo, bem como a suposta intenção do autor,
contribuem para “eternizar” a obra literária, bem como para sua canonização. Assim, entendo
que é a “instituição literária” que determina os limites e a aceitação dessas leituras, a citar as
comunidades científicas acadêmicas, a indústria cultural e a crítica literária, as quais incluem
as representações que o tradutor e o leitor têm da tradução.
Conclui-se, então, que o valor ou tratamento submetido ou atribuído a um texto, assim
como a uma língua, pode determinar seu status na sociedade na qual circula - a exemplo do
cânone literário na literatura universal, da primazia da língua estrangeira. As representações
que os indivíduos têm de literatura, autoria e originalidade, com base na fixidez de sentido e
na busca pela verdade absoluta, exercem influência na circulação e recepção da tradução, pois
quando a tradução não é simplesmente ignorada, ela é, quase sempre, reduzida à precisão
linguística, reprimindo o resíduo doméstico ou cultural, (VENUTI, 2002), limitando, assim, o
50
Em inglês: […] I’m translating a French-African text/ yes/ I always/ I/ if you’re dealing with translation
/ you’re at a double remove from the source/ or the author// I want to get as close as I can to what the author
is really saying or intended to say.
149 | P á g i n a
Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três
Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano
(Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858).
Guavira
no10
princípio da descontinuidade de Foucault (2007), no qual os discursos se cruzam, mas, por
vezes se ignoram e se excluem.
Referências
BHABBA, H. K. The Location of Culture. London: Routledge, 1998. p. 171-197.
CORACINI, M. J. Concepções de Leitura na (Pós-) Modernidade. In: Leitura Múltiplos
Olhares. Campinas: Mercado das Letras. 2005, p. 15 – 44.
______. A celebração do outro: arquivo memória e identidade. Campinas: Mercado das
Letras, 2007.
DERRIDA, J. Monolingualism of the Other or The Prothesis of Origin. Trad. Patrick Mensah.
Califórnia: Stanford University: 1996 [1998].
______. Posições. Tradução de Tomaz Tadeu da Silva. Belo Horizonte: Autêntica, 1972
[2001].
FERREIRA, A. B. de H. Novo Dicionário Eletrônico Aurélio - versão 5.0. Positivo
Informática, 2004.
FOUCAULT, M. A arqueologia do saber. Tradução de Luiz Felipe Baeta Neves. Rio de
Janeiro: Forense, 1969 [2007].
HALL, S. A Identidade Cultural na Pós-modernidade. Trad. De Tomaz Tadeu da Silva e
Guaciara L. Louro. Rio de Janeiro: DP&A, 1992 [2006].
PIERCE, C. S. Collected Papers. Cambridge: Harvard University Press, 1958.
PYM, A. Epistemological Problems in Translation and its Teaching: a Seminar for Thinking
Students. Spain: Caminade, 1993.
STEINER, G. The Hermeneutic Motion (1975). In: VENUTI, L. The Translation Studies
Reader. London; New York: Routledge, 2000. p. 186-191.
VENUTI, L. Escândalos da Tradução. Trad. L. Pelegrini, L. M. Villlela, M. D. Esqueda, V.
Biondo. Bauru: Ed. da EDUSC, 1998 [2002].
150 | P á g i n a
Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três
Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano
(Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858).
Guavira
no10
IMIGRAÇÃO E DISCURSO: CONFLITOS IDENTITÁRIOS
NA MÚSICA MATOGROSSENSE
Flávio Roberto Gomes Benites (UNEMAT)51
RESUMO: Pretendemos discutir o problema da imigração no Estado de Mato Grosso a partir de letras de
música (rasqueado) as quais materializam sentidos conflitivos entre nativo e imigrante. Assim, mostraremos que
tais letras são prenhes de diferentes práticas culturais que instituem o status da identidade matogrossense
diferenciando-o do imigrante, ainda que este esteja inserido nas referidas práticas.
Palavras-chave: Música; Discurso; Imigração.
ABSTRACT: We intend to discuss the problem of immigration in the State of Mato Grosso start from lyrics
(rasqueado) which materialize conflicting senses between native and immigrant. Thus, we will show that lyrics
are loaded of different cultural practices that establish the status of the people from Mato Grosso differentiating
them of the immigrant, even though this immigrant is inserted in that practices.
Key-words: Music; Discourse; Immigration.
Introdução
Gostaríamos de trazer para este trabalho algumas contribuições que giram em torno da
identidade. O viés que elegemos para tratar tal temática não a vê como fixação de
características únicas de um grupo social. O que queremos é mostrar diversas práticas sociais
(danças, festejos, linguajar, culinária) que se irrompem no rasqueado mato-grossense, ou seja,
enquanto valores de uma cultura local que os reivindica para si e os institui como
manifestações da identidade mato-grossense.
Assim, propomos que o rasqueado possa ser entendido como um arquivo, no sentido
que lhe é dado por Michel Foucault (2004), que agrega uma série de costumes que têm a
função de dizer (é também uma prática discursiva) e de atualizar o que é ser mato-grossense.
Há, portanto, em seu ritmo – na letra, sobretudo, – um jogo constante de diferentes práticas
que se interpõem e visam instituir, via memória social, o status da identidade mato-grossense.
Como veremos, essa constituição identitária não é tão pacífica, como se poderia pensar à
primeira vista, posto que o Estado de Mato Grosso, especialmente a partir de sua divisão em
outubro de 1977, é, necessariamente, preenchido por culturas externas em decorrência do
fator migratório de sua ocupação.
Para contextualizar e problematizar a identidade
Os Estudos Culturais, aqui representados em grande parte por Stuart Hall (2004,
2006), abordam o tema identidade relacionando-o com o problema da multiculturalidade,
51
Docente da Universidade do Estado de Mato Grosso, Mestre em Letras pela UFPB, doutorando em
Linguística Aplicada pela UNICAMP/IEL. Membro do Grupo de Estudos intitulado “Vozes (in)fames; exclusão
e resistência”, sob a coordenação da Profa. Dra. Maria José Coracini (UNICAMP).
151 | P á g i n a
Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três
Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano
(Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858).
Guavira
no10
fator que põe em xeque as noções estáveis que envolvem, ou envolviam, as questões
identitárias, além de trazer a importância da alteridade, dados que marcam a relação
identidade e diferença. Esses estudos apontam que as certezas passaram a ser questionadas e
revistas quando houve uma percepção ampliada acerca das complexidades da vida coletiva e
social do Estado Moderno impulsionada pelo advento, sobretudo, do marxismo e do
fenômeno da globalização. Tais fatores direcionaram a identidade para as experiências de
grupos e “o indivíduo passou a ser visto como mais localizado e ‘definido’ no interior dessas
grandes estruturas e formações sustentadoras da sociedade moderna”. (HALL, 2004, p. 30).
Se, por um lado, essas noções descentraram o sujeito moderno, na outra mão, elas
engendraram a discussão sobre as identidades culturais e o contato intercultural enquanto
efeito da globalização; elemento que, de acordo com Hall,
refere-se àqueles processos, atuantes numa escala global, que atravessam fronteiras
nacionais, integrando e conectando comunidades e organizações em novas
combinações de espaço-tempo, tornando o mundo, em realidade e em experiência,
mais interconectado. (2004, p. 67).
No entanto, veio a necessidade de se saber a respeito da maneira como esse sujeito
fragmentado é colocado em termos de suas identidades culturais, uma vez que a globalização
acabou impulsionando aquilo que os Estudos Culturais chamam de “crise de identidade”. A
resposta pode ser dada a partir da implantação de Sistemas de representação cultural, que têm
por finalidade criar um sentimento de pertencimento a uma determinada cultura, a um grupo
social.
Assim, criam-se discursos e símbolos recorrendo-se a idéias de tradição, costumes,
narrativas míticas para se fixar uma identidade nacional ou local. Segundo Woodward, “o
passado e o presente exercem um importante papel nesses eventos. A contestação no presente
busca justificação para a criação de novas – e futuras – identidades nacionais, evocando
origens, mitologias e fronteiras do passado”. (2004, p. 23).
No entanto, essa tentativa de reconstrução identitária é sempre contestada, posto que
estão em jogo relações de poder e de grupos dominantes, e a idéia de identidade pressupõe a
relação de diferenças e “... precisa ser concebida como harmonia e/ou tensão entre o plano
individual e o social e também como harmonia e/ou tensão no interior do próprio social.”
(CHAUÍ, 2006, p. 26). No caso do Brasil, que tem dimensões continentais, a questão da
identidade é, necessariamente, posta pelo jogo de relações entre as diferenças, mesmo que
haja políticas que queiram fixar identidades.
Nos termos apresentados acima, assim como em outros Estados, Mato Grosso não
pode ser identificado como uma cultura homogênea. Essa pluralidade de manifestações
culturais é evidenciada, principalmente, pela música e que traz, como veremos, expressões
locais que implicam conflitos entre grupos locais (os nativos) e o “estrangeiro” (o imigrante).
O rasqueado ou o arquivo da identidade matogrossense
Em se tratando de música, existem aquelas que são facilmente relacionadas com os
agentes sociais que as executam devido ao fato de já terem se tornado de domínio público
porque são disseminadas pelos meios de comunicação de massa. Por exemplo, quando se fala
em forró, o referente imediato são os Estados do Nordeste; o Rio de Janeiro é conhecido pelo
samba, a Bahia pelo axé; há o vanerão gaúcho e o frevo pernambucano. Há outros ritmos,
152 | P á g i n a
Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três
Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano
(Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858).
Guavira
no10
porém, que são menos conhecidos, como o carimbó do Pará, a catira de Goiás e o rasqueado
de Mato Grosso.
O rasqueado cuiabano (assim conhecido por ser mais executado em Cuiabá, a capital
do Estado) “é a música popular mato-grossense que tem as suas origens nos ritmos que
formaram a música popular brasileira”. (ARRUDA, 2007, p. 21). O rasqueado é formado por
três ritmos que estão na base da formação do povo brasileiro, ou seja, o negro, o índio e o
europeu:
Lundu – canto e dança populares no Brasil durante o século XVIII, introduzidos,
provavelmente, pelos escravos de Angola [...] o cateretê – dança de origem
ameríndia. O Padre José de Anchieta aproveitou-se de uma dança religiosa dos índios,
chamada cateretê, para atraí-los ao cristianismo [...] habanera – ritmo antiqüíssimo
hispano-árabe (séc. X). (ARRUDA, 2007, p. 21).
Os instrumentos utilizados na execução do tradicional rasqueado são o ganzá, o mocho
ou adufo (espécie de tambor em forma de banquinho), o violinofone e a imprescindível violade-cocho. Arruda observa que novos instrumentos, principalmente os eletrônicos, são
empregados por bandas ditas da região urbana.
O rasqueado e outras manifestações culturais típicas do Mato Grosso passaram por
uma crise cultural devido ao fluxo migratório iniciado com o movimento chamado Marcha
para o Oeste (década de 1930) e se prolongou pós divisão do Estado em 11 de Outubro de
1977. A divisão levou os políticos de então a se preocuparem mais com o problema agrário e
o crescimento econômico frente à política nacional. “As terras mato-grossenses, abertas à
colonização após a divisão do Estado, não contavam com a infra-estrutura necessária para
receber e fixar o contingente migratório que estava por chegar” (SIQUEIRA, 2002, p. 212).
Nesse contexto, o fator artístico-cultural ficou em segundo plano, sendo criado, somente em
1991 (de acordo com SIQUEIRA) uma Política Estadual de Incentivo à Cultura e a criação da
Secretaria de Estado de Cultura, em 1995.
Esse processo, já apresentado acima a partir da discussão teórica da identidade, fez
com que grupos locais, preocupados com a possível perda de sua cultura, passassem a
constituir diversas ações com o objetivo de fortalecer, preservar e difundir a cultura local em
torno do rasqueado. Segundo Arruda (2007), os movimentos são o Grupo Sarã, os trabalhos
de Vera-Zuleika, o Evento “Encantação Mato Grosso”, a Caravana do Rasqueado e Confraria
do Rasqueado. Esses movimentos abrigam tanto a “velha guarda e a nova geração do
rasqueado”. Com base no que apresenta Castells (2006) acerca da construção de identidades,
podemos considerar esses movimentos como identidades de resistência, posto que atuam
como trincheiras de identidades na relação com o outro, com o imigrante.
Junto a esses eventos, as composições das letras se mostram como importante
instrumento de divulgação de diversas práticas sociais locais. Nesse sentido, dizemos que o
rasqueado se constitui em um arquivo da memória cultural mato-grossense. A noção de
arquivo é tomada de empréstimo a Michel Foucault, que o concebe em termos de práticas
discursivas:
Não entendo esse termo a soma de todos os textos que uma cultura guardou em seu
poder, como documento de seu próprio passado, ou como testemunho de sua
identidade mantida; não entendo, tampouco, as instituições que, em determinada
sociedade, permitem registrar e conservar os discursos de que se quer ter lembrança e
manter a livre disposição. Trata-se antes, e ao contrário, do que faz com que tantas
153 | P á g i n a
Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três
Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano
(Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858).
Guavira
no10
coisas ditas, por tantos homens, há tantos milênios, não tenham surgido apenas
segundo as leis do pensamento, ou apenas segundo o jogo das circunstâncias, [...] mas
que elas tenham aparecido graças a todo um jogo de relações que caracterizam
particularmente o nível discursivo [...] O arquivo é, de início, a lei do que pode ser
dito, o sistema que rege o aparecimento dos enunciados como acontecimentos
singulares. (FOUCAULT, 2004, p. 146-147).
Os enunciados que se materializam nas letras do rasqueado evocam a memória social
para produzir identidades por meio de práticas historicamente instituídas. Além disso, de
acordo com a reflexão de Coracini (s/d, p. 06), comentando Derrida, “uma música pode
também constituir um arquivo, desde que algo se organize, se materialize nela. Enfim, o
arquivo resultaria daquilo que, internalizado na memória, parecia impossível de organização,
apenas fragmentos, por vezes desconexos e embaralhados”.
Vejamos como esses conceitos podem ser aplicados à letra do rasqueado cuiabano. Por
razões metodológicas, reproduzimos as letras das músicas escolhidas, para, em seguida,
analisá-las.
Traços de resistência nas letras de música
Rasqueado do pau rodado (Pescuma e Pineto)
Não agüento mais ser chamado de pau rodado
Já tomo licor de pequi, já danço o Siriri
Como bagre ensopado
Sou devoto de São Benedito
Até já danço o rasqueado
Sou devoto de São Benedito
Até já danço o rasqueado
Adoro banho de rio, vou direto pra Chapada
Na noite cuiabana tomo todas bem gelada
Sou viciado no bozó, pescaria e cururu
Tomo pinga com amargo
Como cabeça de pau
Eá, Eá, Eá, só não nasci em Cuiabá
Mas no que eu cresci
Meu bom Jesus mandou buscar.
Pau fincado (Vera-Zuleika)
Não importa se eu vim dos vales,
Dos pampas ou de além-mares,
Comi cabeça de pacu
Logo que cheguei aqui,
Quase que eu me embriaguei
Tomando licor de pequi
Sou par constante
Nas rodas de siriri,
Sou pau-rodado
Mas não arredo o pé daqui!
154 | P á g i n a
Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três
Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano
(Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858).
Guavira
no10
Chapa e cruz (Vera-Zuleika)
Eu me orgulho de ser um cuiabano
De chapa-e-cruz, confesso e não me engano,
Moro na pracinha, perto da prainha,
Sento na porta só pra ver as moreninhas
Gosto de um amargo, ventrecha de pacu,
Mojica de pintado e bagre ensopado.
Danço rasqueado na casa de Bembém,
Como bolo de arroz e de queijo também.
Como dissemos, nas letras estão sobrepostas diversas práticas sociais, tais como a
culinária, linguajar, festejos e danças. Um fator importante a ser observado na culinária do
Estado está relacionado à pescaria e, como resultado, o peixe mais saboreado na região é o
pacu, que dentre outros preparos, a preferência é pelo pacu assado. Na música, há o
funcionamento da memória do dizer (do interdiscurso), pois faz referência à lenda da cabeça
de pacu que indica uma relação com o fator migratório; conforme observa Loureiro, “... se um
rapaz solteiro chegar em Cuiabá e comer a cabeça desse peixe, não demora muito e se casa
com uma filha da terra. Se casado [...] não sai mais da localidade onde a comeu”. ([grifo
nosso] 2006, p. 146). Há também o pequi, fruto do cerrado muito utilizado para preparar
alimentos, sobretudo com o arroz; é aproveitado para se fazer licor de pequi, bebida muito
apreciada no Mato Grosso.
Em se tratando das festas populares, a mais tradicional é a de São Benedito, festa de
origem negra que cultua tal santo desde o século XVIII, tanto na Capital quanto no interior do
Estado.
Além dos rituais sagrados, comuns a todas as festas de Irmandade, nas Festas de São
Benedito, destacava-se a presença do Rei, um negro, que levava na cabeça uma coroa
de prata, e que, junto com os Juízes, saíam em procissão, acompanhados de música de
banda e um grande número de irmãos com chapéu de sol e a realização das Congadas
ou Dança do Congo [...] a festa ocorre em algumas cidades do interior do Estado,
como Vila Bela da Santíssima Trindade e Nossa Senhora do Livramento.
(LOUREIRO, 2006, p. 45).
Nas festas religiosas é comum a apresentação de músicas e danças regionais, sendo as
mais conhecidas e executadas o siriri e o cururu. Este é uma manifestação folclórica que
atualmente é dançado por homens, mas que antigamente, sobretudo nas Igrejas, tinha a
participação de mulheres. Essa música é executada como se fosse uma reza cantada na qual os
cururueiros se revezam na cantoria. De acordo com Loureiro, é “... uma música de poucas
notas, repetitiva, acompanhada pelo ritmo marcado pelas violas de cocho e ganzás, trovos,
carreiras e toadas sobre religião, comandos de rituais sagrados, assuntos do cotidiano...”
(2006, p. 73).
O siriri, por sua vez, é uma dança executada em fileiras, em roda, de pares um frente
ao outro; utilizando a viola de cocho, o ganzá e o mocho, “cantam os participantes versos e
músicas com temas regionais, vários deles compostos pela comunidade”. (LOUREIRO, 2006,
p. 84).
Uma questão importante a ser observada no linguajar do mato-grossense são as
expressões “pau rodado” e “pau fincado”. Tais expressões marcam a relação do nativo com o
forasteiro, pois pau rodado é a representação que o cuiabano tem da pessoa de outro Estado
ou país que foi para o Mato Grosso (ainda está rodando) e não fixou lugar, como o pau
155 | P á g i n a
Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três
Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano
(Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858).
Guavira
no10
fincado. A expressão Chapa e cruz designa o cuiabano “autêntico”, "puro de origem", similar
às expressões carioca da gema e gaúcho de pêlo-duro. Uma origem dessa expressão seria a
interpretação de que chapa representa a certidão de nascimento e cruz a de óbito,
simbolizando o nascimento em Cuiabá e o desejo de lá morrer. Essa forma de se expressar
evidencia um conflito na questão identitária em relação à ocupação do Estado pós-divisão,
embora seja comum dizer que o Mato Grosso seja um Estado hospitaleiro. O estrangeiro, pau
rodado é compelido a considerar-se pau fincado a partir da prática dos costumes locais, mas
nunca será um chapa e cruz.
Além disso, notamos que as duas primeiras letras trazem marcas, traços de uma
resistência do nativo em aceitar o imigrante, o estrangeiro. As seqüências “já tomo licor”, “já
danço o Siriri”, “até já danço o rasqueado”, “só não nasci em Cuiabá” na primeira letra, e
“não importa se eu vim dos vales, dos pampas ou de além-mares” na segunda letra fazem
ressoar, via interdiscurso, fragmentos da memória, no dizer de Derrida (2001), as vozes da
história, como se o cuiabano, na sua identificação com os primeiros habitantes indígenas,
estivesse dizendo ao (i)migrante: já fomos massacrados e explorados e isso não pode
acontecer novamente. Assim, a música está funcionando como estratégia de resistência.
Resistência essa colocada nos termos foucaultianos (1985), já que o contato entre grupos
distintos está permeado pelas relações de poder.
Considerações finais
Veja-se que as manifestações culturais, típicas do Mato Grosso, são contempladas nas
letras dos rasqueados acima apresentados. Dessa maneira, o rasqueado, a cada vez que é
executado, e repetido, portanto, faz com que haja uma atualização constante, via memória
social, da identidade mato-grossense, ou seja, os sujeitos se envolvem nessas práticas sociais e
reivindicam para si um sentimento de pertença às tradições de seu Estado. Para tanto, há uma
recorrência à memória social, à memória que institui a identidade por meio de sua relação
com o passado. É nesse sentido que apresentamos o rasqueado como um arquivo da
identidade mato-grossense, uma vez que nele estão imbricadas uma diversidade de práticas
sociais, como vimos acima, que funcionam, por meio de seu aspecto repetível para dizer, na
recorrência à história, o que é ser mato-grossense.
Referências
ARRUDA, Zuleika. O que é o rasqueado cuiabano? Cuiabá: Entrelinhas, 2007.
CASTELLS, Manuel. O poder da identidade. Trad. Klauss B. Gerhardt. 5. ed. São Paulo: Paz
e Terra, 2006.
CHAUI, Marilena. Brasil: mito fundador e sociedade autoritária. São Paulo: Fundação
Perseu Abramo, 2006. Reimpressão.
CORACINI, M. J. R. F. A memória em Derrida: uma questão de arquivo e de sobre-vida. s/d.
156 | P á g i n a
Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três
Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano
(Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858).
Guavira
no10
DERRIDA, J. Mal de arquivo: uma impressão freudiana. Trad. Cláudia Rego. Rio de Janeiro:
Relume Dumará, 2001.
FOUCAULT, Michel. A arqueologia do saber. 7. ed. Trad. Luiz Felipe Baeta Neves. Rio de
Janeiro: Forense Universitária, 2004.
______. Não ao sexo rei. In: Microfísica do poder. 5. ed. Trad. e org. de Roberto Machado. Rio de
Janeiro, Graal, 1985, p. 240.
HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. 9. ed. Trad. Tomaz Tadeu da Silva
e Guacira Lopes Louro. Rio de Janeiro: DP&A, 2004.
______. Da diáspora: identidades e mediações culturais. Trad. E org. Liv Sovic. Belo
Horizonte: Ed. da UFMG, 2006.
HENRIQUE; CLAUDINHO. Rasqueado do pau rodado. São Paulo, s/d. Disco Compacto.
Digital, Áudio. 199.001.914. Vol. 5.
LOUREIRO, Roberto. Cultura mato-grossense: festas de Santos e outras tradições. Cuiabá:
Entrelinhas, 2006.
SIQUEIRA, Elizabeth Madureira. História do Mato Grosso: da ancestralidade aos dias atuais.
Cuiabá: Entrelinhas, 2002.
VERA-ZULEIKA. Pau fincado. Cuiabá, 2007. Disco Compacto: Digital, Áudio. 312MT032.
In Arruda, Zuleika. O que é o rasqueado cuiabano? Cuiabá: Entrelinhas, 2007.
______. Chapa e cruz. Cuiabá, 2007. Disco Compacto: Digital, Áudio. 312MT032. In
Arruda, Zuleika. O que é o rasqueado cuiabano? Cuiabá: Entrelinhas, 2007.
WOODWARD, K. Identidade e diferença: uma introdução teórica e conceitual. In: Silva,
Tomaz T. (org.) Identidade e diferença: a perspectiva dos Estudos Culturais. 3. Petrópolis:
Vozes, 2004, p.49-81.
157 | P á g i n a
Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três
Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano
(Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858).
Guavira
no10
CAIPIRAS, ARRIBANTES TEMPORAIS: LETRAMENTO,
IDENTIDADE CULTURAL E SUBJETIVIDADE
Elzira Yoko Uyeno (UNITAU)52
RESUMO: A subjetividade que se revela na e pela escrita é o objeto deste estudo; a Análise do Discurso de
perspectiva francesa e conceitos da psicanálise lacaniana, as balizas analíticas. A menção significativa à
sensação paradoxal de imigração na própria cidade onde nasceu, viveu e continua vivendo, em textos de alunos
da Escola de Jovens e Adultos, constituiu a pedra de toque desta pesquisa. Os resultados da análise empreendida
revelaram que as identidades, a condição de todo imigrante, não apenas dos imigrantes topológicos, mas dos
temporais também: estar saudoso, como estar tomado por uma triste aspiração por algo indefinido que se foi há
muito tempo, e saber que o passado não é um país que possa ser reencontrado.
Palavras-chave: identidade; subjetividade; migração.
ABSTRACT: The subjectivity shown in and by writing is the aim of this study. The French Discourse Analysis
and concepts of lacanian psychoanalysis are its analytical basis. The significant mention of the paradoxal
immigration feeling in one's own hometown, a city where one has always lived, in texts by the students of Escola
de Jovens e Adultos (Youngsters and Adults School), is the foundation stone of this research. The results of the
analysis performed have revealed that the identities, conceived as established and stable, are going down the
subjectivation cliff. And that is the condition of every immigrant, not only of the topological immigrants, but also
of the temporal ones: a feeling of missing, as if a sad aspiration for something indefinite that has gone a long
ago came over them, as if one knew that the past is not a country which can be found again.
Keywords: identity, subjectivity, migration.
Introdução
Migração, palavra derivada do latim migratione, diz respeito, tradicionalmente, ao
deslocamento – movimentação de entrada (imigração) ou saída (emigração) – de um
contingente de pessoas de um país para outro ou de uma região para outra, como fazem as
aves de arribação, diferenciando destas quanto às razões pelas quais migram: se estas migram
por razões climáticas, são razões políticas, econômicas, sociais ou culturais que determinam
os deslocamentos daquelas.
Delimitando-se sua abrangência para a migração interna, observa-se que as pesquisas
que lhe dizem respeito se centram no impacto do problema demográfico e do crescimento da
pobreza no meio urbano, causados pelo migrante topológico.
Arrojou este estudo53 a percepção da existência não apenas de migrantes topológicos,
mas de migrantes temporais. O despossuído não apenas como aquele que não tem terras, mas
como o carente de sua história, é o objeto de eleição.
52
Doutora em Linguística Aplicada pela UNICAMP; docente do Programa de Mestrado em Linguistica
Aplicada da Universidade de Taubaté (UNITAU). Membro do Grupo de Estudos “Vozes (in)fames; exclusão e
resistência ”, sob a coordenação da Profª. Maria José Coracini, no IEL/UNICAMP.
53
Uma versão preliminar deste estudo foi apresentado no XV Congreso Internacional De La Asociación
De Lingüística Y Filología De América Latina, XV ALFAL, na cidade de Montevideo, Uruguay, em 2008.
158 | P á g i n a
Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três
Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano
(Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858).
Guavira
no10
Balizam analiticamente os dados de pesquisa a perspectiva francesa da Análise do
Discurso e conceitos da psicanálise, o que implica a assunção do pressuposto de um sujeito
duplamente causado: por um lado, causado pelo discurso do outro e, como tal, histórico e, por
outro, pelo discurso do Outro e, como tal, psicanalítico. Especificamente, este estudo se
consagra à análise dos processos de subjetivação histórica e de identificações psicanalíticas do
migrante temporal que se revelam na e pela escrita.
A menção significativa à sensação paradoxal de imigração na própria cidade onde
nasceu, viveu e continua vivendo, em textos de alunos da Escola de Jovens e Adultos (EJA),
constituiu a pedra de toque desta pesquisa.
O imigrante, à análise de Melman (1996), constitui um sujeito que emula uma histeria,
ao deixar o seu país de origem – quaisquer que tenham sido as suas motivações para que tenha
tomado tal decisão – e reivindicar o amor de um outro país no qual busca acolhida.
O sujeito não alfabetizado que procura por cursos de alfabetização constitui, em certa
medida, um imigrante das formas atuais da globalização: a escolarização formal constitui a
condição sine qua non para a migração de seu lugar de excluído para a de incluído no mundo
do trabalho. Eis que se torna uma ave de arribação54. Não se trata, contudo, de uma arribação
no seu sentido de se deslocar de um lugar e “se chegar a algum lugar”, mas no sentido de se
deslocar de um tempo para um outro tempo.
Em síntese, entender como o capitalismo em seu estágio atual da globalização afeta a
identidade do arribante temporal constituiu o objetivo do estudo a se relatar.
Para efeito de norteamento de leitura, em um primeiro momento, apresentam-se o
caipira e a sua condição de migrante topológico; em um segundo momento, tecem-se
considerações sobre os estatutos do outro e do Outro como causas da identidade e das
identificações; em um terceiro momento, consideram-se a saudade e a memória discursiva;
finalmente apresenta-se, a título de ilustração de um corpus mais amplo, por contemplar a
singularidade do processo de subjetivação, a análise do discurso de um aluno da Escola de
Jovens e Adultos - EJA.
Caipiras do Vale do Paraiba: de migrantes topológicos a migrantes temporais
“Nomen omen” [o nome é um presságio], escreve, rememorando a origem de seu
nome, Norberto Bobbio, em O Tempo da Memória: de senectude e outros escritos
autobiográficos (1997, p. 58), uma obra composta de fragmentos autobiográficos, em que
exercita um balanço de uma vida consagrada às reflexões acerca das transformações pelas
quais a Europa do século XX passou.
Não menos pressagiador que a atribuição do nome próprio se mostra a nomeação de
um agrupamento de pessoas. Foyer deste estudo que se ensaia, a nomeação de um contingente
de “sobreviventes” da era de mineração colonial que “inventou” uma modalidade de vida
caipira os fez cumprirem, como a um vaticínio, o significado de que é acompanhada essa
nomeação.
54
Arribação, na acepção de “avoante” é uma redução da expressão ave de arribação e apresenta, no
dialeto nordestino brasileiro, a variação arribaçã, com apócope da semivogal, além de ribação, rabaçã e rabação.
Por esse termo, o nordestino denomina o deslocamento de animais, geralmente aves, de uma região para outra
em determinadas épocas ou estações do ano (HOUAISS, 2001).
159 | P á g i n a
Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três
Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano
(Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858).
Guavira
no10
Caipira é aquele que fala o dialeto caipira que é português, mas com palavras tupi e
sotaque da língua brasileira. A língua brasileira é o nheengatu55, que existiu no Brasil até ser
proibida por Portugal, no século 18, mais precisamente quando, no reinado de Dom. José I (de
1750 a 1771), o veto veio em um decreto do então primeiro-ministro Marquês de Pombal que
bania o ensino do nheengatu das escolas. A decisão foi acatada nas salas de aula, mas o povo
continuou falando no dialeto caipira: “só os portugueses, que eram estrangeiros, falavam
português”; o nheengatu falado pelos brasileiros era uma “língua de travessia, não era
português, nem índio, eram ambas”, explicou o professor José de Souza Martins, do
Departamento de Sociologia da Faculdade de Filosofia da USP, em entrevista ao jornalista,
Valdir Sanches (2008).
O nheengatu incorpora a fala dos índios tupi, que ocupavam o litoral brasileiro. No
Brasil Colônia, era falado fluentemente em uma grande área do País que se estendia de Santa
Catarina ao Pará. Quando, hoje, refere-se a “Ibirapuera”, “ficar jururu”, “comer abacaxi”,
“pendurar-se num cipó”, “pegar catapora” está se expressando nessa língua. Ao contrário do
que faz pressupor o senso comum, o nheengatu tem raízes eruditas: a língua foi criada no
século 16 pelos jesuítas, sobretudo pelo fundador de São Paulo, Padre Anchieta, que era
linguista. Para poder se entender com os nativos, o religioso classificou o tupi e criou uma
gramática da língua geral. Os índios tinham dificuldade em pronunciar palavras portuguesas
terminadas em consoante e colocavam vogal entre consoantes: daí, mulher, colher e orelha
terem se tornado “muié”, “cuié” e “oreia”. Tinham também dificuldade em pronunciar
palavras que continham consoantes dobradas: é de sua dificuldade em pronunciar o “erre” que
se originou a realização “poorta”, retroflexa, com a língua tocando o céu da boca. Martins
esclarece que “o dialeto caipira não é um erro, é uma língua dialetal”; à sua avaliação, mais do
que isso, é “uma invenção lingüística musical e social”.
O tempo acabou por impor o português, mas o dialeto nheengatu puro resiste, sendo
ainda falado em alguns pontos da fronteira com o Paraguai. Em São Gabriel da Cachoeira, no
Amazonas, a 860 quilômetros de Manaus, uma lei de 2002 tornou o nheengatu língua cooficial do município. Na contramão do decreto do marquês, essa lei determina que sejam
incentivados seu ensino nas escolas e seu uso nos meios de comunicação (o tucano e o baniva
também se tornaram línguas co-oficiais).
Na região do Vale do Paraíba do Sul que se estende da cidade de São Paulo em direção
à cidade do Rio de Janeiro, ao longo do Rio Paraíba do Sul e entre as duas cadeias de
montanhas, serras do Mar e da Mantiqueira, ficou o “caipirês” da roça, onde, segundo
Martins, a língua se multiplica: quando alguma palavra nova surge, o caipira “inventa, a partir
da matriz da palavra, algo que tem sentido para ele”. Um incidente que se assemelha a uma
anedota ilustra essa afirmação: quando Martins e um grupo de estudantes apresentaram
questões a algumas pessoas na região, perguntaram a um homem: “Você concorda ou não
concorda?” Como o homem pareceu não ter entendido a pergunta, ela foi sendo repetida, sem
que se obtivesse compreensão, até que um dos estudantes mudou a forma, perguntou “Você
concorda ou disconcorda?” e foi compreendido. É, em algum sentido, a justificativa para o
termo “desinfeliz”.
Morfologicamente, substantivo de dois gêneros, a palavra “caipira”, nomeia o
“habitante do campo ou da roça, particularmente os de pouca instrução e de convívio e modos
rústicos e canhestros” ou o “indivíduo natural ou habitante de parte das regiões Sudeste e
55
Etimologicamente, nheengatu se origina do tupi nheenga'tu e significa “língua boa”; segundo Frederico
Edelweiss: Nheengatu; somente a partir de 1850 surge esta palavra com o sentido que é hoje empregada, e
atribui-se a Couto de Magalhães, em seu livro “Os Selvagens (1876), a sua popularização” (HOUAISS, 2001)
160 | P á g i n a
Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três
Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano
(Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858).
Guavira
no10
Centro - Oeste brasileiras, especialmente São Paulo, de origem rural, caracterizado pela
agricultura de subsistência, pela cultura itinerante e por não ter a posse da terra” (Dicionário
Aurélio). Caapora, sinonímia de caipira, e supostamente do qual teria se originado o termo
caipira, tem, na região do Vale do Rio Paraíba, no Estado de São Paulo, suas variantes:
caboclo, capiau, jeca, jacu, matuto.
O termo “caipira” foi atribuído a um contingente de pessoas que se dedicavam à
mineração, atividade extrativista do Brasil colônia, que entrou em decadência; primeiras
desempregadas estruturais, elas procuraram outros afazeres como a agropastoril, uma vez que
a insipiente forma industrial não era permitida legalmente, em virtude da relação da coroa
portuguesa com a Inglaterra. Empobrecidas social e economicamente, restou-lhes “a regressão
a uma economia fechada e autárquica, com o orgulho de suprirem-se em suas necessidades”
(GOUVÊA, 2001, p.20). A modalidade de vida caipira teve lugar entre 1790 e 1840, um
período anterior ao da implantação das fazendas de café, sob regime produtivo escravocrata
como novo sistema produtivo.
Essa modalidade de vida caipira se caracterizava por uma economia artesanal
doméstica – cultura do feijão, do arroz, do milho e da mandioca e a produção de derivados das
últimas, fubá, quirera e farinha – que tinha complementação no mutirão, uma instituição
caipira de solidariedade. O mutirão consistia de ajudas mútuas entre familiares e vizinhos,
além de se configurar em espaço de integração social, lazer e de estabelecimento de vínculos.
A religião constituía a outra instituição que compunha a identidade caipira: o culto a um santo
padroeiro em um determinado bairro constitui um
fator de convívio social, oportunidade de organização de um evento de cunho
comunitário, além de certeiras oportunidades de lazer nos festejos do padroeiro,
concessão lateral da religiosidade. Missas, leilões e bailes aproximam festeiros,
familiares e vizinhos. Esse é, praticamente, o ápice de vida social do caipira, e há
outras oportunidades interessantes: batizados, casamentos, oferta de alimentos entre
vizinhos (caça e carne de porco), caçadas etc (GOUVÊA, 2001, p. 28-29).
Na família, outra instituição que garantia a identidade caipira, as atividades do
cotidiano eram divididas e cumpridas pelos homens, pelas mulheres e pelas crianças sob uma
hierarquização das atribuições. A produção, sem propósito de comercialização, destinava-se
apenas ao consumo, quando nem à suficiência chegava.
Essa vida, entretanto, conferia um caráter lúdico à existência: a arduidade da vida era
permeada por períodos de festa do padroeiro, de mutirões e de leilões (GOUVÊA, 2001).
Configurando as “micro resistências” de que fala Foucault (1985) e as “pequenas revoltas” de
que fala De Certeau (1966), no Vale do Paraíba, ainda se encontram as cidades de Lagoinha
(“Laguinha”, em caipirês) e São Luiz do Paraitinga que resistem à modernização, embora por
vezes se rendam às benesses das tecnologias: na cidade de Lagoinha, táxi é Fusca, “pra guentá
a estrada de chão”, segundo Francisco Marcos em entrevista a Valdir Sanches (20008); na
sala da casa de pau-a-pique com telhado alto e sem forro, há uma TV; na cozinha, o fogão a
lenha e as panelas de ferro convivem com o fogão a gás e utensílios de alumínio.
Muitos moradores falam português com estranhos, e “caipirês” entre si; são, assim, a
sua maneira, bilíngues. Amarildo Pereira Marcos, morador da cidade de Lagoinha e filho de
Francisco da roça, fala o português comum, mas, “quando se distrai, ao atender o celular,
pode sair um “caipirês”: “Eu tava pá roça, ce tá naonde?” A população composta, em sua
maioria, católica (96,5%) promove grandes festas religiosas, a maior das quais é a Folia do
Divino Espírito Santo, surgida no Brasil Colônia e cuja atração central são os violeiros
caipiras.
161 | P á g i n a
Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três
Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano
(Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858).
Guavira
no10
Francisco permaneceu na roça, plantando sua rocinha de feijão, milho, mandioca;
criando porco e galinhas apenas para o consumo da família, mas muitos de sua gente que
foram para a cidade continuam em sua vida caipira. É ocaso de Maria Benedita de Godoy, de
71 anos, que vive no centro da cidade, em uma pequena casa, cujas paredes estão repletas de
imagens de santos e cuja porta da rua fica sempre aberta; na cozinha, onde tem um fogão a
gás e outro a lenha, Maria só usa o de lenha, onde prepara a quirela (feita com milho moído),
a abóbora, cozinha a mandioca para comer com café.
As senhoras do grupo Orgulho Caipira de Lagoinha, criado por Amarildo, têm seus
problemas. “Meus filhos brigam comigo porque eu digo ‘ô criança, vai fechá a poortera do
currá’”, diz Benedita Maria de Jesus. Algumas mulheres do grupo dizem que procuram se
corrigir: uma diz que falava “tratar dos porco”, e agora fala “dos porcos”; outra, mudou
“fechá a jinela” para “fechar a janela”, e uma terceira diz que não fala mais “vamu lavá os pé
pra nóis durmi”, porque agora fala com o jeito da cidade, e, além disso, esse antigo hábito está
em desuso.
A banda “Orgulho Caipira” foi criada por Amarildo há sete anos e tem a viola, o violão,
a sanfona e o bumbo. Segundo Martins, professor e pesquisador da USP, a música caipira
“tem uma matriz musical rica, que nasceu erudita, criada pelos jesuítas” (SANCHES, 2008),
uma das quais, o cururu, “surgiu das mãos do padre Anchieta”. O grupo de Amarildo canta e
dança essas músicas, o catira (ou cateretê) do folclore brasileiro, o lundum, da época do Brasil
colonial e a dança do sabão criada pelo grupo.
A cidade vizinha, São Luiz do Paraitinga, com o casario tombado pelo Condephaat, o
conselho estadual do patrimônio histórico, recentemente devastada por uma enchente e se
encontra em fase de reconstrução, também zela pela cultura caipira e faz a Folia de Reis. Lá,
um administrador de empresas que largou tudo para ser folclorista e artista plástico, Benito
Campos, faz saraus e se apresenta vestido de caipira. Um dos versos que recita começa assim:
“Engraçado este mundo/ de fundo tão profundo/A gente nasce, véve e tira as cria/fáis Maria,
fáis Raimundo/morimbundo a gente vórta/presses zóios raso/sete parmo bem fundo/vão de
terra nuchão/nestes continentes dos mundos”.
Esse estilo de vida – baseado num trabalho não alienado –, imortalizado por Monteiro
Lobato na personagem do Jeca Tatu, foi se diluindo com a emergência das fazendas de café,
de seu fim e de sua conseqüente configuração das “cidades mortas” do Vale do Paraíba
também mencionadas por Monteiro Lobato. Subsequentes ressurreições pelo advento da era
industrial transfiguraram algumas de suas cidades que se transformaram, hoje, em pólos
industriais. Apenas para efeito de ilustração dessa transformação, em poucas décadas, o Vale
do Paraíba passou a abrigar nada mais do que três grandes montadoras de veículos
automotivos Ford, General Motors e Wolksvagen; a centralizar a indústria aeronáutica;
metalúrgicas e a contar com variedade de indústrias como a Kodak, LG, Panasonic, Fuji,
Johnson & Johnson, Nestlé, Pilkington. Para além do setor essencialmente produtivo, a cidade
de São José dos Campos, passou a responder por pesquisas de ponta no campo aeronáutico e
aeroespacial, congregadas em centros de pesquisa de reconhecimento internacional, ITA
(Instituto Tecnológico de Aeronáutica), CTA (Centro Tecnológico de aeronáutica) e INPE
(Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais).
Essa condição peculiar da região não produziu o migrante clássico que se caracteriza
pelo êxodo do campo para a cidade, mas um imigrante que promoveu o êxodo de um tempo
caipira para um tempo moderno; hoje, para um tempo globalizado, não tendo se deslocado em
termos geodésicos, isto é, em termos de latitudes e longitudes. Eis as condições que fizeram
dos caipiras um migrante temporal e não topológico.
162 | P á g i n a
Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três
Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano
(Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858).
Guavira
no10
O imigrante, à análise de Melman (1996), constitui um sujeito que emula uma histeria,
ao deixar o seu país de origem – quaisquer que tenham sido as razões, compulsórias ou
voluntárias, que o levou a tal, quais sejam, razões políticas, econômicas, antropológicas ou
psicológicas – e reivindicar o amor de um outro país no qual busca acolhida. A histerização
artificial do imigrante se faz pela demanda constante e paradoxal de um amor à pátria ao qual
renunciou.
Imigrante temporal, o caipira encena uma histerização por meio de seus textos pela
demanda de um amor a um tempo ao qual renunciou.
O outro e o Outro como causas da identidade e das identificações
O estudo cujo ensaio se prossegue tem como pressuposto anunciado o caipira como
um sujeito duplamente causado: como causa do outro da nomeação pressagiadora e como
causa do Outro da nomeação parental.
A identidade do caipira como causada pelo outro se faz em virtude de o caráter
pressagiador da nomeação dos valeparaibanos pós era da mineração como caipiras se cumprir
não apenas no adjetivo derivante como na identidade do nomeado também. “Diz-se do
indivíduo sem traquejo social; cafona, casca-grossa” (Dicionário Aurélio) ou aquele “que leva
uma vida campestre rústica, tem pouca instrução, pouco convívio social, e hábitos e modos
rudes” (Dicionário Houaiss) são os verbetes relativos ao adjetivo “caipira”.
É dividido entre o sentimento de de esse presságio querer se desvencilhar e o
sentimento de o modus vivendi do tempo que (o) deixou querer resgatar, configurando uma
identidade pós-moderna, que os alunos da Escola de Jovens e Adultos, conhecida como EJA,
manifestam-se em seus textos.
A lealdade e a identificação que, numa era pré-moderna e em sociedades mais
tradicionais, eram dadas à tribo, ao povo, à religião e à região, foram transferidas,
gradualmente, nas sociedades ocidentais, à cultura nacional. As diferenças regionais e étnicas
foram gradualmente sendo subordinadas, sob o que Gellner (1983) nomeou de “teto político”
do estado-nação que conforma as identidades culturais modernas.
A formação de uma cultura nacional contribuiu para criar padrões de alfabetização
universais, generalizou uma única língua vernacular como o meio dominante de
comunicação em toda a nação, criou uma cultura homogênea e manteve instituições
culturais nacionais como um sistema educacional nacional (HALL, 1998, p.49-50).
De fato, observa-se que, no fim do século XX e começo do XXI, a globalização tem
enfraquecido e abalado as formas nacionais de identidade cultural (HALL, 1998, p. 67), além
de suscitar novas modalidades de migração.
O termo identidade “tem sido tradicionalmente usado para descrever ou interpretar o
indivíduo, tal como ele se revela e se conhece ou ele se vê representado”. Sob “uma
perspectiva sociológica, [o termo identidade] situa o indivíduo em um grupo” (CUNHA,
2007, p. 34).
Sob uma perspectiva filosófica, Taylor (1994) postula a necessidade, quando se visa a
uma análise da identidade, de se considerar o aspecto valorativo e, como tal, moral e ético, de
sua visão de certo e errado, de relevância e de irrelevância.
Sob uma perspectiva antropológica, para Ribeiro (2002), a identidade deve ser vista
apenas como modos de representar tanto o próprio pertencimento a uma unidade sócio163 | P á g i n a
Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três
Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano
(Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858).
Guavira
no10
político-cultural como também o do outro; representação na qual a língua é um componente
de relevância.
Essa dimensão de componencialidade da língua é superada, passando a se constituir
um elemento engendrador da identidade, quando se trata de um indivíduo que se vê inserido
em um contexto de bilinguismo. Esse engendramento da identidade pela língua é atestada por
Cunha (2007, p. 40) que, ao analisar a obra da escritora porto-riquenha Esmeralda Santiago
(1994), observa que sua escrita a revela, para além de bilíngue, entendido pela linguista como
falante de duas línguas, bilingualista, ou bilíngue individual e, a partir de Hammers e Blanc
(2000), como estado psicológico de um indivíduo que tem acesso a mais de um código
linguístico como meio de comunicação social.
A prevalência de um bilinguismo na era globalizada é atestada pela existência no
mundo de cerca de “três mil línguas faladas por duzentos Estados politicamente
individualizados”: “por razões históricas como as invasões, as migrações e a organização
política dos Estados, o bilingüismo foi sempre a regra” (MELMAN, 1992, P.16). Nesse
bilinguismo, o inconsciente não oferece resistência à mistura das línguas: retém palavras,
locuções, fragmentos inteiros de discursos tomados de uma língua de infância que, em
seguida, tornou-se estrangeira.
Eis que aqui se manifesta o sujeito como causado pelo desejo do Outro que diz
respeito ao sujeito lacaniano se constituir no sujeito do desejo e do discurso do Outro. O
sujeito do desejo se faz a partir da evidência de que a existência física do sujeito no mundo
resulta dos desejos de outros, seus pais: quaisquer que sejam os complexos motivos que
envolvem esses desejos (prazer, vingança, imortalidade, poder, satisfação), eles continuam a
agir sobre o sujeito, após seu nascimento. O sujeito do discurso do outro diz respeito à sua
condição de sujeito se vislumbrar a partir dos discursos de outros sobre si, entre os quais se
encontra a nomeação: o nome próprio que lhe é escolhido não é simplesmente a designação de
um sujeito, mas se articula com um saber que ele não sabe que é da ordem do inconsciente,
um saber do qual se aproximará a cada identificação imaginária, a partir da especular e
primeira.
Esse sujeito ainda por vir-a-ser deverá, para se tornar sujeito, passar pelo estágio da
dependência primária que o sujeito “filhote de humano” tem de outras pessoas, a qual se
converte na sensação de desamparo; desse estágio, deverá passar para o terceiro que consiste
na angústia da perda do amor o que define a posição subjetiva primária do sujeito em relação
ao Outro (MILLER, 1991, p.50).
Esses estágios de formulação freudiana, sob a reformulação lacaniana, constituiriam a
passagem da demanda no nível da necessidade, isto é, de uma dependência de um Outro que
tem o necessário para satisfazer a necessidade, para a demanda no nível do amor, isto é, de
uma dependência de um Outro que não tem o necessário para satisfazê-lo, que é como se
define o amor (MILLER, 1991, p.52); daí amar significar dar o que não se tem.
Essa passagem se realiza quando o pequeno sujeito vir-a-ser se faz desejante para
continuar desejado pela mãe, manifestando seu desejo e sempre fracassando. É dessa
tentativa, incessante, de atender aos desejos da mãe como a uma ordem que Lacan (1966/
1998, p. 41) elabora seu postulado “Le désir de l’homme, c’est le désir de l’Autre”, [O desejo
do homem é o desejo do Outro], assumindo a ambiguidade desse “do” de “do Outro” pelas
duas leituras: 1. “O desejo do homem é o mesmo que o desejo do Outro” e 2. “O homem
deseja o que o Outro deseja”.
164 | P á g i n a
Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três
Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano
(Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858).
Guavira
no10
Assim, o desejo da criança fracassa, porque ela deseja o desejo da mãe a que ela não
tem acesso, e é, nesse sentido, que o desejo do Outro começa a funcionar como causa do
desejo da criança; essa causa produz, por sua vez, o desejo do outro. Assim, muito mais do
que servir à comunicação, a linguagem tem essencialmente por função identificar o sujeito.
Saudade: memória discursiva
“Da vida fica somente um leve traço na memória”, afirma o filósofo e jurista Bobbio
(1997, p. 58), ao lamentar que não exercitemos com frequência a atividade de rememorar a
qual, a seu ver, é salutar, por nela “reencontramos a nós mesmos e a nossa identidade, não
obstante os muitos anos transcorridos, os mil fatos vividos”.
“Rebenqueado das saudades”, isto é, nutrindo a dor das saudades, da separação, na
linguagem corrente entre alguns cidadãos nativos em Taubaté, no interior de São Paulo, mais
precisamente no Vale do Paraíba, é a condição que se fez predominante em textos redigidos
por alunos da EJA; “açoitado pela saudade” é a sua tradução nesse bilinguismo.
Saudade, substantivo feminino e derivado do latino solitate, “soledade”, “solidão”,
mencionado recorrentemente por esses alunos, tem como verbetes: 1. lembrança nostálgica e,
ao mesmo tempo, suave, de pessoas ou coisas distantes ou extintas, acompanhada do desejo
de tornar a vê-las ou possuí-las; nostalgia; 2. pesar pela ausência de alguém que nos é querido;
rebenqueado das saudades; que curte a dor das saudades, da separação (HOUAISS, 2001).
Afirmando que a “definição escorre das mãos, sinuosa”, abre precisamente seu artigo Pereira
Júnior (2006, p. 36), para sintetizar a pesquisa que empreendera em busca da origem e do
sentido da palavra saudade. Em seu berço, saudade era parente do termo “solidão” (solitudeinis). Solitas-atis nomeava solidão provocada pela falta de alguma coisa. No século XIII,
havia várias formas, das quais saydade, soidade, suidade são as mais conhecidas. Há, no
século XV, registros de soedade (Alfonso Álvares); no século XVI, de suydade (Gil Vicente),
até chegar a saudade, no século XIX, todas derivadas do latim solitas-atis, solitade
(isolamento, solidão). Havia também soledade (isolamento), no português, que derivaria
soedade e soidade, assim como a forma caipira “sôdade”. Soledade teria recebido influência
semântica do árabe saúda ou saud (melancolia). Assim, a “incerteza em torno da saudade
mantém o mistério não só da origem como de seu significado” (PEREIRA JÚNIOR, 2006, p.
37).
Essa menção à sensação de se estar saudoso se faz em decorrência de uma digressão
de remissão a um tempo passado, digressão esta do estatuto da memória, com a delimitação
necessária, para este estudo, em nome da qual se afasta da conceituação de memória enquanto
função biofisiológica e enquanto história documentada. O conceito de memória no qual se
fundamenta é constituir um fator determinante na construção da identidade pela sua
capacidade de manter sentidos tanto por meio “de lembrança, de redefinição e de
transformação, quanto de esquecimento, de ruptura e de negação do vivido e do já dito”
(INDURSKY; CAMPOS, 2000, p.12); como tal, é constitutivo da identidade, ganhando
materialidade discursiva; daí constituir memória discursiva.
Caro à perspectiva discursiva francesa, o conceito de memória discursiva refere-se a
possibilidades de dizeres se atualizarem no momento da enunciação, sob efeito de um
esquecimento, segundo o qual o sujeito enuncia um já dito, sob a ilusão de autoria. Courtine e
Haroche (1994) afirmam que a linguagem e os processos discursivos são responsáveis por
fazer emergir o que, em uma memória coletiva, é característico de um determinado processo
histórico. Para Orlandi (1993), o discurso se produz por meio do interdiscurso que se faz, por
165 | P á g i n a
Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três
Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano
(Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858).
Guavira
no10
sua vez, pela apropriação da memória que se manifesta de diferentes formas em discursos
distintos. É nesse sentido que o interdiscurso constitui a re-significação do sujeito sobre o que
já foi dito, o repetível pela qual determina os deslocamentos promovidos pelo sujeito nas
fronteiras de uma formação discursiva. O interdiscurso determina materialmente o efeito de
encadeamento e articulação de tal modo que aparece como o puro “já-dito” e se simula
materialmente no intradiscurso.
Análise do corpus de pesquisa
Em atendimento à solicitação para que escrevessem um texto no qual manifestassem
as razões que os levaram a retornar aos bancos escolares, mostrou-se proeminente a menção à
importância da educação, revelando-se um dizer sócio-histórico, portanto, ideológico da
importância do estudo para um cidadão, nos sentidos de que promove ascensão social e
garante a empregabilidade. A menção a esse aspecto ideológico se justifica apenas para efeito
de contextualização da pesquisa, não tendo sido contemplado neste estudo em relato.
Elege-se para efeito de ilustração deste artigo, o texto de Francisco Filho,
contemplando como objeto a constituição de sua identidade como aluno que se inscreve em
EJA. Faz-se oportuno mencionar que, sob o pressuposto de que os processos de constituição
da identidade não se deslindam dos de constituição da subjetividade, leva-se em consideração
o principio do estabelecimento da regularidade discursiva; a partir de então, desloca-se o
cânone metodológico e se centra a análise na identidade e subjetividade como um processo
singular, daí contemplar o processo de identidade/subjetividade de Francisco Filho.
Texto de Francisco Filho (F):
Meu nome é Francisco, mesmo nome de meu pai falecido. Eu entrei na escola com sete anos. Sempre
fui um aluno obediente, nunca meus pais tiveram reclamações di mim.
Estudei até a segunda série,
Depois parei, porque precisava trabalhar na roça. Depois já adolecênte comecei a trabalhar para ajudar a
minha família. A cidade chegou até na roça. Na cidade era bom, mas era ruim também. Nossa casa era
um barraco e num tinha um lugar pra gente criar uma galinha ou fazer uma horta.
Lá na roça a gente cansava muito mas tinha o que comê. De manhã o frio cortava a carne, cada um dos
meus irmão tinha um serviço e a minha função era cortar capim pros boi e o frio rachava as minhas
mãos que chegava a sangra, depois todo mundo ia pro roçado do milho, do feijão, do arroz dependendo
do tempo do ano. O que alegrava um pouco era o rodízio da capinação do pasto, cada semana todos nós
da vizinhança ia limpar o pasto de algum de nós, ia tira as erva daninha que matava o boi se ele
comesse, nesse dia, a mulher do dono do pasto servia o almoço, era muito alegre essa hora, noutro dia
todo mundo ia na casa do outro até limpar todos os pasto. Di noite nem conseguia durmir porque doía
tudo. Quando me alembro dessas coisa sinto uma saudade que dói, mas tudo mudou.
Agora eu voltei a estudar porque a escola é muito importante na nossa vida. Porque hoje em dia a
pessoa que tem estudo já está difícil arrumar emprego, imagina a pessoa que não tem estudo. Então por
isso que o estudo é muito importante nós estudarmos para tentar garantir um futuro melhor para nós e
nossas famílias.
Espero que quando eu completar os meus estudos, eu tenha mais oportunidades de trabalho, ser um
outro Francisco, prestar concursos públicos e poder ajudar também outras pessoas que precisam e ainda
não tiveram uma oportunidade, como meu pai.
166 | P á g i n a
Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três
Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano
(Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858).
Guavira
no10
Como um dizer enquanto discurso que se faz sob a ilusão adâmica de se constituir o
autor das palavras, F repete, no final do texto, toda determinação sócio-histórico e ideológica
da importância do estudo para um cidadão. Determinado, ainda, pela antecipação do jogo
imaginário, segundo o qual alunos da EJA imaginam que constitua a expectativa da
professora, menciona que era um aluno disciplinado na infância.
Ainda como um dizer enquanto discurso que se faz sob a ilusão adâmica de se
constituir o autor das palavras, F repete, no final do texto, um dizer sócio-histórico, portanto,
ideológico da importância do estudo para um cidadão, de que promove ascensão social e de
que garante a empregabilidade. A menção a esse aspecto ideológico se justifica apenas para
efeito de contextualização da pesquisa, não tendo sido contemplado para efeito deste estudo.
Estruturalmente, Francisco constrói seu texto com uma configuração que aproxima de
uma biografia, essencialmente memorialista, não “respondendo” diretamente às razões que o
levaram a voltar a estudar.
Inicia por fazer menção a seu nome, oferecendo um dado complementar que fora
nomeado com o mesmo nome do pai o que remete ao conceito de nomeação lacaniana: sua
referência ao pai, no fechamento do texto, se faz em uma passagem em que menciona a
expectativa de vir a ser um outro Francisco, o que leva a crer que não se trata de mera
atribuição de nome próprio.
A singularidade do texto de Francisco se revela no que diz respeito à estrutura
paragrafal. Os três primeiros parágrafos do texto em que inicia o texto memorialista, mas se
faz a partir do presente, apresenta um registro que se aproxima muito da norma culta, com
raros traços de oralidade.
Em seguida, em um parágrafo único, numa digressão absoluta, Francisco, mais do que
proceder ao relato da vida rural que levara, transporta-se para a vida “na roça”. Nesse
transporte, um elemento de ordem do intradiscurso se revela: para além do parágrafo único, as
pontuações em enunciados breves de até então passam para longas frases em que vários
acontecimentos subsequentes se juntam. Em divergência perceptível, vários traços de registro
da fala caipira se fazem perceber: tinha o que come; cada um dos meus irmão; cortar capim
pros boi; todos nós da vizinhança ia limpar o pasto; Di noite nem conseguia durmir; Quando
me alembro dessas coisa.
Após esse longo quarto parágrafo de digressão, volta para o presente e apenas nesse
momento é que passa a explicar as razões que determinaram sua frequência ao EJA. Nessa
volta, também volta a escrever sob a norma culta.
O que se percebe no texto de Francisco é a manifestação de um bilingualismo no
sentido de um bilinguismo peculiar que não se faz propriamente pela mistura de duas línguas,
comum entre imigrantes, mas por um registro que é recortado pelo sentimento de saudade de
um outro tempo e se materializa, aproximando-se de um bilinguismo.
A menção à saudade, outra regularidade que se apresentou em outros textos, faz de
Francisco um imigrante temporal e não topológico: paradoxalmente um imigrante em sua
própria terra, uma vez que não se deslocou espacialmente.
Considerações finais
Os efeitos nas identidades e nas subjetividades das migrações na contemporaneidade
não em seu sentido clássico de êxodos topológicos, mas temporal constituiu o tema do estudo
que ora se encerra. O despossuído de sua própria história, de sua identidade cultural constituiu
167 | P á g i n a
Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três
Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano
(Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858).
Guavira
no10
o objeto de estudo, consagrando à análise dos processos de subjetivação histórica e de
identificações psicanalíticas do migrante temporal que se revelaram na e pela escrita. Mais
precisamente, buscou-se encontrar, no discurso materializando em textos de alunos da Escola
de Jovens e Adultos (EJA), a explicação para a menção significativa à sensação paradoxal de
imigração na própria cidade onde nasceu, viveu e continua vivendo,
Resultados da análise demonstram que o sujeito não alfabetizado que procura por
cursos de alfabetização constitui, em certa medida, um imigrante das formas atuais da
globalização que vem desenredando e subvertendo, cada vez mais, seus próprios modelos
culturais herdados especializantes e homogeneizantes (HALL, 2006). Compelidos a deixar o
modus vivendi eivado de culturas e tradições, como condição para se tornarem incluídos, os
“caipiras” constituem os novos migrantes da configuração globalizada de sua própria terra e,
sob uma histeria artificial, lamentam saudosamente a falta das tradições que deixaram.
Não se deslocando em termos de posições geodésicas, isto é, em termos de latitudes e
de longitudes de onde partem e para onde querem voltar, não se constituem migrantes
topológicos, mas temporais, deslocando-se em termos de tempo de “onde partem” e “para
onde” não podem voltar: não lhe resta alternativa a não ser ficar rebenqueado de saudade, isto
é, nutrindo a dor da saudade.
Eis a condição de todo imigrante, não apenas dos imigrantes topológicos, mas dos
temporais também: estar saudoso como estar tomado por uma triste aspiração por algo
indefinido que se foi há muito tempo, e saber que o passado não é um país que possa ser
reencontrado. “Não podemos jamais ir para casa, voltar à cena primária enquanto momento
esquecido de nossos começos e ‘autenticidade’, pois há sempre algo no meio [between]”
(CHAMBERS, 1990, p.104, apud Hall, 2007, p. 27). Não podemos retornar ao passado; só
podemos conhecê-lo pela memória e pelo inconsciente, por meio de seus efeitos, isto é,
quando este é trazido para dentro da linguagem. E, de lá, embarcamos numa (interminável)
viagem.
Referências
BOBBIO, Norberto. O Tempo da Memória: De senectude e outros escritos autobiográficos.
Rio de Janeiro: Campus, 1997.
CHAMBERS, Ian. Border Dialogues Journeys in Post-Modernity. London Routledge, 1990,
104 p.
COURTINE, Jean-Jacques; HAROCHE, Claudine. O Homem perscrutado: semiologia e
antropologia política da expressão e da fisionomia do século XVII ao século XIX. In: Orlandi,
Eni P. et al. Sujeito e Texto. São Paulo: EDUSC , 1988, p. 37-60.
CUNHA, Maria Jandyira . Memórias da migração. A identidade em pentimento. In. Cunha,
Maria Jandyra et al (org.). Migração e identidade: olhares sobre o tema. São Paulo: Centauro,
2007, p.17-42.
DE CERTEAU, Michel. A Invenção do Cotidiano, artes de fazer. Trad. Ephraim Ferreira
Alves. Rio de Janeiro: Vozes, 1996.
168 | P á g i n a
Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três
Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano
(Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858).
Guavira
no10
FOUCAULT, Michel. Microfisica do Poder. Trad. Roberto Machado. Rio de Janeiro: Graal,
1985.
GELLNER, Ernest. Nationas and Nacionalism. Oxford: Blackwell, 1983.
GOUVÊA, Luzimar G. O Homem caipira nas obras de Lobato e de Mazzaropi: a
construção de um imaginário. 155 f. Dissertação (Mestrado em Linguística Aplicada) –
Instituto de Estudos da Linguagem. Universidade Estadual de Campinas, 2001.
HALL, Stuart. Da Diáspora. Identidades e Mediações Culturais. Org. Liv Sovik. Trad.
Adelaine La. Guardia Resende et. al. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2006.
______.A Identidade cultural na pós-modernidade. Trad. Tomaz Tadeu Silva. Rio de Janeiro:
DP&A, 1998
HAMMERS, Josiane, F. e BLANC, Michel H.A. Bilinguality and Bilingualism. Cambridge
University Press: Cambridge, 2000.
HOUAISS, Antonio. Dicionário Eletrônico Houaiss da Língua Portuguesa. São Paulo:
Objetiva, 2001.
PEREIRA JÚNIOR, Luiz C. As incertezas da saudade. Revista Língua Portuguesa. Vol.
Etimologia. São Paulo: Segmento, 2006, p.36-37.
RIBEIRO, Gustavo L. Tropicalismo e europeísmo: modos de representar o Brasil e a
Argentina”. In: Alejandro Frigerio e Gustavos Lins Ribeiro (orgs), Argentinos e Brasileiros:
encontros, imagens e estereótipos. Rio de Janeiro: Vozes, 2002 (237-264)
SANTIAGO, Esmeralda. Cuando era puertoriqueña. Vintage Books/Random House, Nova
York, 1994
SANCHES, Valdir. Da enxada à moda da viola, eles são caipiras, com muito orgulho. O
Estado de São Paulo, 21 de abril de 2008. p. 13.
TAYLOR, Charles. As fontes do self. A construção da identidade moderna. São Paulo:
Loyola,
1994.
169 | P á g i n a
Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três
Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano
(Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858).
Guavira
no10
A PROPÓSITO DAS DESIGNAÇÕES: DE RIBEIRINHOS À SEM RIOS
Neuraci Vasconcelos Reginaldo (PG-UFMS/SE-MS)56
Celina Aparecida Garcia de Souza Nascimento (UFMS)57
RESUMO: Com base nos pressupostos teóricos da Análise do Discurso de Linha Francesa, este trabalho analisa
a (re)constituição dos sentidos das designações atribuídas aos sujeitos ribeirinhos motivadas pelo acontecimento
discursivo de saída de seu local de origem (margem do rio Paraná) e posterior realocação. Entendemos que as
designações são produzidas no âmbito de relações de linguagem tomadas na história (GUIMARÃES, 2005). O
corpus consistiu em recortes do documentos/vídeos produzidos pelos ribeirinhos e pelo Movimento dos
Ameaçados por Barragens (MAB). Partimos do princípio de que esse acontecimento discursivo provocou
deslocamentos de sentidos, nas designações atribuídas a esses sujeitos, isto é, fez que essas expressões fossem
(re)significadas.
Palavras-chave: Ribeirinho, Designação, Análise do discurso.
ABSTRACT: Based on the theoretical analysis of the Discourses of French Line, this paper examines the (re)
constitution of the senses of the designations assigned to the subject riparian motivated by the event discursive
output their original and subsequent relocation. We understand that the designations are produced within
relations of language taken in history (Guimarães, 2005). The body is cut in a set of extracted documents /
videos produced by the riverside and the Movement of People Affected by Dams (MAB). We assume that the
discursive event caused displacement of meanings, the designations given to these subjects, that is, made that
these words were (re) meant.
Key words: Ribeirinho, Designation, French Discourse Analysis.
Introdução
O processo brasileiro de modernização industrial, a crescente urbanização e o
consequente aumento do consumo energético levaram o governo do Estado de São Paulo a
deliberar pela expansão da produção de energia elétrica e, dentre as formas de ampliação de
produção, optou-se pelo aproveitamento do volume de águas existentes nos rios e, como
consequência, a ampliação da construção de Usinas Hidrelétricas. Entre as décadas de 1960 a
1990, o Estado tornou-se um grande investidor nesses tipos de empreendimentos, os quais
foram planejados e executados com vistas ao “desenvolvimento econômico” do Brasil. Dentre
essas construções, planejadas e executadas no período, figura a Usina Hidrelétrica de Porto
Primavera (SP).
Como consequência, no estado de Mato Grosso do Sul na divisa com o estado de São
Paulo, o acontecimento que nos impulsionou e inquietou foi a abertura das comportas da
Usina Hidrelétrica de Porto Primavera, cujo processo de construção perdurou por quinze anos,
56
Professora Multiplicadora do Núcleo Tecnológico/Três Lagoas–MS e Mestre em Letras/Estudos
Linguísticos, pela UFMS/Câmpus de Três Lagoas.
57
Professora da graduação e mestrado em Letras da UFMS/Câmpus de Três Lagoas. Membro do Grupo
de Estudos “Vozes (in)fames; exclusão e resistência”, sob a coordenação da Profª. Maria José Coracini, no
IEL/UNICAMP.
170 | P á g i n a
Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três
Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano
(Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858).
Guavira
no10
e somente em 2000, é que houve realmente a formação do lago, cujas ocorrências causaram,
em definitivo, a desapropriação dos ribeirinhos das margens do rio Paraná, abrindo um novo
capítulo de litígio discursivo: posições-sujeito entram em rota de colisão, convulsionadas
pelos sentidos que se constroem sob o signo da memória e da sua atualização.
A construção ocorreu em momento de crescente urbanização e aumento da demanda
de consumo energético, o que levou o governo brasileiro a optar pela ampliação da produção
de energia mediante o aproveitamento dos recursos hídricos. O Estado de São Paulo, após a
década de 1960, tornou-se um grande investidor nesse tipo de empreendimento, como bem
salientam:
as grandes hidrelétricas constituem – por sua dimensão, natureza, modo de
implantação, objetivos – um caso típico de Grande Projeto de Investimento. Sua
multiplicação (...) consolida uma política nacional de exploração energética de
recursos hídricos marcada por duas características principais: absoluto predomínio do
Estado como agente empreendedor e afirmação das unidades de grande porte como
sustentáculo essencial do planejamento e expansão do sistema de geração de
eletricidade. (VAINER; ARAÚJO, 1992, p. 51).
A questão que se coloca é, no entanto, polêmica e paradoxal, uma vez que esses
empreendimentos, planejados e executados com vistas ao “desenvolvimento econômico”,
ocorreram ao mesmo tempo em que centenas de famílias foram desalojadas dos lugares de
origem.
Esse processo constituiu, à época, um retrato muito atual de um Brasil dividido em
dois mundos: de um lado, as Centrais Elétricas de São Paulo - CESP, empresa estatal (em
expansão e em prolongado processo de discussão sobre uma possível privatização),
representando o capitalismo em sua fase moderna; de outro, os ribeirinhos (o pequeno
produtor, trabalhador do campo, com seu modo simples de vida e economia voltada para
subsistência), representando o trabalho em fase quase primitiva.
A desapropriação da área, antecedida por negociação entre as partes, discussões,
acordos, resistências, configurou-se na produção de um espaço tenso de interesses,
demonstrando a coexistência de discursos antagônicos: “desenvolvimento”, “progresso”,
“bem estar” versus “lugar de origem” e “resistência”. Nesses casos, o responsável pela obra
(Estado de São Paulo) repassou uma indenização em dinheiro aos antigos
moradores/proprietários, os quais reivindicavam, entretanto, o pagamento sob a forma de
doação de propriedade rural, decorrendo daí a maioria dos conflitos. É o antagonismo da
sociedade organizada, em que atuam diferentes agentes sociais, cada qual agindo conforme
seus ideais ou interesses e demarcando território sob a égide das lutas de força:
os atingidos, quando organizados em movimentos, tendem a recusar a redução
praticada na ação desapropriatória, que vê tudo o que vai ser perdido sob as águas do
lago como passível unicamente de uma avaliação e uma indenização monetária
(GRZYBOWSKI, 1990, p.26).
Uma vez introduzido o acontecimento que ensejou esta pesquisa sobre os ribeirinhos,
objetivamos neste texto58 interpretar a constituição dos sentidos atribuídos aos sujeitos
58
Este artigo é um recorte da dissertação de mestrado “Das Margens do Rio ao interior do Discurso: de
Ribeirinhos à sem Rios”, defendida na Universidade Federal de Mato Grosso do Sul/Campus de Três Lagoas, em
2009.
171 | P á g i n a
Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três
Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano
(Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858).
Guavira
no10
ribeirinhos, motivadas pelo acontecimento discursivo de saída de seu local de origem
(margem do rio Paraná) e posterior realocação e, ainda, discutir quais os efeitos de sentido
decorrentes das designações “ribeirinhos” e “sem rios” (oleiros, pescadores e agricultores).
Nossa análise está ancorada nos pressupostos teóricos da Análise do Discurso
Francesa (AD) – primeira fase. Teoria constituída na França no final da década de 1960,
resultante, sobretudo dos trabalhos de Michel Pêcheux, que buscava a explicitação dos
mecanismos discursivos que embasam a produção dos sentidos. Em desenvolvimento no
Brasil, desde o final dos anos 1970, com as traduções das obras de Pêcheux e com os
trabalhos de Eni Orlandi, a AD consolidou-se como um campo fértil de investigação, por
vincular, nos estudos discursivos, língua, ideologia e história.
O córpus consiste em um vídeo “Sem rios”, gravado em 2000, com duração de trinta
minutos, com o objetivo de denunciar a situação dos oleiros, pescadores e agricultores diante
do processo de desapropriação, veiculado no e pelo Movimento dos Ameaçados por
Barragens (MAB). Trata-se de um material documentário em que a descrição e a narração são
mescladas levando em consideração as emoções e os sentimentos, tanto dos ribeirinhos
quanto do próprio narrador, que, além de, constantemente, destacar os efeitos psicológicos
que a saída da barranca deixará em cada morador, explicita também os sentimentos diante da
situação. Tal narração é permeada pelo discurso direto – ao longo da filmagem, introduzem-se
diálogos dos personagens (os ribeirinhos) – e, como desfecho, o narrador pronuncia o seguinte
texto: “o que não foi filmado não existe”.
Trata-se de um movimento surgido no seio das lutas sociais e que buscava promover
enfrentamentos das populações ribeirinhas em prol dos seus objetivos. No início, a bandeira
do movimento era pela garantia de indenizações justas e reassentamentos, depois, evoluiu
para o questionamento da construção de barragens. Assim, a luta por direitos ampliou-se para
um combate em prol de um novo modelo energético. Foi com o movimento MAB que os
ribeirinhos passaram a ser nomeados e reconhecidos pela mídia como “os sem rios”.
Este artigo está dividido em duas partes, na primeira, abordamos o conceito de
designações e de “ribeirinhos”, na segunda, tratamos dos sentidos atribuídos a sem rios, por
fim, nas considerações finais, fazemos algumas reflexões sobre os conceitos discutidos e as
possíveis (re)significações.
Sobre as designações e sobre os sentidos de ribeirinhos (oleiros, pescadores e
agricultores)
Segundo Guimarães (2005, p. 9), o sentido de um componente lingüístico relaciona-se
ao modo com que este integra uma unidade mais ampla, para isto, deve-se considerar a
constituição histórica de tal elemento. Quanto ao processo de designação, o autor distingue-a
num conjunto de outras palavras, consideradas sinônimas ou correlatas, em três planos:
denotação, nomeação e referência. A primeira pode ser usada como sinônima ou não das
outras, a segunda refere-se ao funcionamento semântico do nomear algo, e a última diz
respeito ao ato, no processo enunciativo, da particularização de algo.
Guimarães (idem) pontua, ainda, que designar, na linguagem, não representa mera
identificação de um objeto no mundo; a significação de uma expressão referencial constitui-se
no funcionamento da língua, no confronto de dizeres e sentidos diversos. Para ele, há espaços
de constituição de sentido, (re)configurados por acontecimentos enunciativos, onde ocorrem
as cenas enunciativas (modos específicos de acesso à palavra), produtoras da designação.
172 | P á g i n a
Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três
Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano
(Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858).
Guavira
no10
Observamos que os trabalhadores ribeirinhos são designados de diferentes formas:
“oleiros”, “pescadores”, “agricultores” e “sem rios”, nomeados segundo Guimarães (2005),
havendo dessa forma a recategorização59 de um referente anterior (MARCUSCHI; KOCH,
2002) sendo que, as designações apontadas constituem marcas da heterogeneidade
constitutiva (AUTHIER REVUZ, 1990) o que remete a uma ordem de discursos ou
interdiscursos, que caracteriza os discursos do e sobre o ribeirinho.
Em se tratando de nomeação Fiorin (2005, p. 11) salienta que o livro do Gênesis e a
mitologia declaram a inexistência de seres antes que Deus os nomeasse. As coisas passaram a
existir mediante a nomeação divina. Nos limites deste texto, não nos compete questionar a
existência divina, nem tampouco a origem dos mitos, porém, consideramos que o homem tem
sua existência condicionada à linguagem, que num processo enunciativo (re)produz o mundo
ao seu redor. Em algum momento da história, ele passou a relacionar-se de maneira diferente
com o mundo, com a natureza, com os outros homens e com ele próprio. Deu nome às coisas
e, ao nomeá-las, criou uma dimensão diferente da coisa em si, a dimensão da linguagem.
Morfologicamente, o vocábulo ribeirinho pode ser tanto um substantivo ou adjetivo
(masculino singular) derivado do substantivo “ribeiro”60, mediante acréscimo do sufixo inho
que, além de expressar a noção de tamanho, pode também provocar efeito de sentido de
desqualificação daquilo que nomeia. As formas aumentativas e diminutivas podem
representar nosso desprezo, a nossa crítica, o nosso pouco caso para certos objetos e pessoas,
sempre em função da significação lexical da base, auxiliado por uma entoação especial
(eufórica, crítica, admirativa, lamentativa etc.) e os entornos que envolvem falante e ouvinte:
livreco, coisinha, homenzinho, por exemplo. Nesse caso, observamos que os substantivos
estão em sentido pejorativo. A ideia de pequenez se associa facilmente à de carinho que
transparece nas formas diminutivas das seguintes bases léxicas – paizinho, mãezinha,
queridinha (BECHARA, 1999, p. 141).
Outro fator que pode ser observado é o funcionamento semântico discutido por
Guimarães (2005) em que o sentido de negatividade também pode se incorporar ao de
desprezo. Mais uma vez, o sufixo -inho corrobora com o ponto de vista do locutor, que
direciona o seu discurso para que o interlocutor o leia de acordo com o efeito que deseja
causar. Logo, inho também pode ser considerado elemento modalizador avaliativo.
Neste trabalho, o campo semântico de “ribeirinhos” compreende todos aqueles que
vivem nas proximidades da barranca do rio, trabalhando em suas margens ou dele retirando o
seu sustento, designados por “oleiros”, “pescadores” ou “agricultores”.
Em relação ao “oleiro”, confira as palavras:
Seq. (1):
oleiro é uma pessoa... que trabaia com o barro... tijolo neh... que a faz a produção para construir os
tijolos... pra fabricá a casa... é um serviço que a gente pega cedo ...trabaia o dia inteiro...a partir das seis
horas da manhã... a gente tá tudo no serviço (J.O.G vídeo1).
Tal qual ribeirinho, o termo oleiro constitui vocábulo que compreende tanto
substantivo quanto adjetivo masculino singular61. Trata-se de uma particularização do oleiro
59
A recategorização lexical pode operar por meio de alguns processos como a rotulação, a argumentação,
e pelo uso de estratégias metalingüísticas que são recategorizadas por nomes ilocucionários (ordem, promessa),
por nomes de atividades “linguajeiras” (descrição, explicação) e por nomes metalingüísticos em sentido próprio
(frase, pergunta) (MARCUSCHI; KOCH, 2002, p. 31-56).
60
Rio pequeno, regato, riacho (FERREIRA, 1975, p. 1236).
61
do Lat. Ollariu, aquele que trabalha em olaria; proprietário de olaria (FERREIRA, 1975, p. 995).
173 | P á g i n a
Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três
Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano
(Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858).
Guavira
no10
(GUIMARÃES 2005) ao designar a atividade praticada pelo sujeito, “pessoa... que trabaia
com o barro”, o que nos remete ao discurso cristão, ao mito da criação e ao discurso fundador
sobre o trabalho, explicitado por Fiorin (2005), numa evocação à Bíblia Sagrada quando
teoriza o mito com que a civilização explica a origem da linguagem.
De acordo com tal mito, uma das condições para existência humana é o trabalho, ou
seja, o homem teria de produzir/trabalhar para conseguir seu sustento. De onde advém o
conceito de trabalho assumido, neste texto, ligado à experiência do cotidiano da comunidade,
que transforma o trabalho em atividade de sobrevivência, em um valor ético marcadamente
propulsor de comportamentos tanto individuais quanto coletivos e que identificam a
comunidade a que nos referimos como oleiros.
Segundo Pêcheux (1988, p. 161), o sentido constitui-se nas relações que cada palavra
mantém com as demais em uma dada formação discursiva. Uma das significações do
vocábulo oleiro está relacionada ao mito da criação do homem, narrado pela Bíblia 62, que
aciona o imaginário popular do sujeito cuja missão é servir. Ainda de acordo com o discurso
religioso, quando há uma recusa em servir, essa é encarada (por Deus) como rebeldia. Temos,
portanto, um discurso inscrito numa filiação histórica ligada ao serviço daquele que não
nasceu para ser alguém e, sim, para servir a alguém. Ou melhor, para doar, ser fonte do amor,
sujeito e não objeto (MOTTA, 2010)63.
Quanto à matéria prima de seu trabalho – o barro – esse é molhado, durante o processo
de moldagem realizado pelo oleiro. Depois de passado no forno, se apresentar algum defeito,
deve ser quebrado. Retomamos aqui, a narrativa religiosa, no tocante ao Reino de Judá, que,
ao tornar-se indiferente a Deus e voltar-se para os ídolos, após inúmeras advertências, sem
arrependimento, fora “quebrado” (Jeremias, 19: 1-11), isto é, destruído enquanto nação. Para
o discurso cristão, esse fato representa uma alerta para a necessidade de acomodação aos
desígnios divinos.
Observamos que o mito bíblico traz implícito o propósito de submissão, de repressão,
um colocar-se a serviço sem discutir, carga semântica que o item lexical oleiro carrega em sua
constituição histórica.
Quanto à designação pescador (também classificado pela gramática como substantivo
ou adjetivo masculino), relaciona-se à atividade praticada para a subsistência, mediante a
pesca como nos aponta o próprio ribeirinho:
Seq. (2):
pescadô né, movimenta de peixe né, movimento aqui de peixe que tinha aqui na beirada do rio (J.F.S.
vídeo2).
Ao particularizar ou referir (GUIMRÃES, 2005) ao pescador, esse vocábulo aciona
também a memória do discurso bíblico. Nos sermões de igrejas evangélicas, padres e pastores
apontam para a necessidade de seguir o chamado de Deus para “pescar homens para o Seu
62
Deus fez o homem do barro da terra: "E formou o Senhor Deus o homem do barro da terra" (Gn 2:7). O
primeiro homem, Adão, significa barro. Em outra passagem bíblica, temos a referência (Is 43:7), de que Deus
fez o homem como um vaso, mas o pecado da desobediência tornou esse vaso inútil. O homem rebelou-se
interior e exteriormente contra Deus (Rm 1:23). Há também referência à figura do oleiro - citada em Jeremias
18, 1-6ss. Citações estas que relatam a manifestação de Deus como um oleiro, moldando, como a argila, àqueles
que pertencem a Ele.
63
Psiquiatra, Psicoterapeuta e Professor convidado do curso de Sexualidade Humana da Universidade de
Campinas/UNICAMP.
174 | P á g i n a
Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três
Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano
(Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858).
Guavira
no10
reino64. Segundo o cristianismo, “pescar homens” significa colocar-se como instrumento do
Criador, trazer vidas ao conhecimento do evangelho e ao arrependimento dos pecados. Neste
aspecto, um dos sentidos de pescador seria “colocar-se a serviço de alguém por alguém”. É o
amor-serviço como sujeito que se relaciona bem com o outro e não como objeto que espera do
outro (MOTTA, 2010).
Já a terceira designação, agricultor, liga-se a terra e a sua capacidade produtiva,
conforme declara a ribeirinha:
Seq. (3):
...a terra pra mim é uma grande vantagem... porque a terra... eu vô plantá um pouco de lavoura... vô criá
minhas criação (A.B.S. vídeo1).
Nesse processo enunciativo, o ribeirinho nomeia as ações que pratica por ser um tipo
de trabalho totalmente vinculado à terra, caracterizado por um sistema de produção
qualificado como familiar, por agregar todos os membros da família. Sem distinção quanto ao
ciclo de vida e ao gênero, dele fazem parte jovens e mulheres que, utilizando do próprio
trabalho, produzem aquilo que necessitam para a sua subsistência.
Para entendermos o funcionamento semântico-enunciativo das designações,
consideramos o fato de que a nomeação ocorre no espaço de enunciação (GUIMARÃES,
2005 p. 35), ou seja, envolve lugares de dizeres diferentes, uma enunciação que nomeia,
recategoriza, por sua vez, enunciações diversas. Quando nos referimos a ribeirinhos, oleiros e
pescadores, lavradores da terra, rememoramos designações diversas acerca daqueles que
vivem nas proximidades dos rios e deles retiram o sustento, desde os primórdios da
civilização até os dias de hoje. Há o entrecruzamento de diversas regiões do interdiscurso,
logo, a designação encontra-se afetada por toda uma memória do dizer.
Os sem rios (deslocamento de sentidos)
Os sem rios65 constitui-se expressão formada pelo artigo definido masculino plural
"os" mais a preposição "sem" [Do lat. sine.], que, de acordo com o dicionário Aurélio66,
indica ‘falta’, ‘privação’, ‘exclusão’, ‘ausência’, ‘exceção’; mais o substantivo masculino
"rio", na forma plural. O fato de apresentar em sua composição o especificador gera um efeito
de sentido de que não se tratam de sujeitos quaisquer, mas de sujeitos específicos que se
constituem mediante a reivindicação de espaço identitário determinado.
Na esteira de Os sem-terra, Os sem rios tornaram-se sujeitos de um movimento que
põe em questão o modo de ser da sociedade capitalista atual e a cultura reproduzida e
consolidada por ela. Ao reivindicarem para si a identidade de população ribeirinha,
questionam posicionamentos de autoridades e ambientalistas que, de acordo com o MAB
(Movimento dos ameaçados por barragens), quando da elaboração dos relatórios de análises
das áreas impactadas, consideram essas áreas como desabitadas, preocupando-se apenas com
a fauna e a flora ali existentes.
64
De acordo com a Bíblia, a expressão “pescadores de homens” foi criada por Jesus no contexto da
convocação dos primeiros apóstolos: Pedro, André, Tiago e João, que tinham por oficio a pesca (S. Mateus 4:
18-22).
65
Não encontramos registro da expressão Os sem rios com hífen. Embora, o Novo Acordo Ortográfico
vigente assim o requeira, neste texto, adotamos a forma empregada pelos sujeitos à época da produção do
documentário.
66
FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda, 1975, p.1283.
175 | P á g i n a
Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três
Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano
(Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858).
Guavira
no10
O surgimento desse nome próprio composto: Os sem rios confunde-se/funde-se e ligase, portanto, ao uso da preposição “sem” mais o substantivo que representa “a coisa”, o objeto
de desejo, isto é, deriva da luta dos despossuídos de algo que anseiam. Mais do que a posse do
objeto de desejo (a terra, no caso, de Os sem-terra) consolidam-se enquanto
movimento/organização que lutam por mudanças estruturais mais amplas.
Historicamente, este item lexical: Os sem rios passa a identificar um sujeito social,
mediante nome que revela uma identidade, um passado e uma memória histórica e uma
cultura de luta e de contestação social. Há um processo de construção desse sujeito, que é a
história de luta contra o represamento dos rios, por ocasião da formação de lago proveniente
de construção de hidrelétricas.
Ao identificarem-se como Os sem rios, além de lutarem pelas terras ribeirinhas,
passam à afirmação de uma condição social: populações ribeirinhas desprovidas de condições
de existência. Essa reivindicação de identidade se amplia à medida que se materializa na luta
por um novo modelo energético, ou seja, que se constitui como cultura, que reivindica
transformações no jeito de ser da sociedade atual e nos valores que a sustentam.
O ribeirinho, ao reivindicar para si uma identidade, constitui-se em sujeito de
permanente transformação, à medida que sujeito (também condicionado a) de vivências
coletivas que exigem ações, escolhas, tomadas de posição, superação de limites, e, assim,
conformam seu jeito de ser. Do entrelaçamento das vivências coletivas que envolvem e se
produzem desde cada família, cada grupo, cada pessoa com o caráter histórico da luta social
que representam, forma-se a coletividade, Os sem rios, enquanto sujeitos atuantes nas ações
do cotidiano ou do processo de luta.
E à medida que Os sem rios constituem uma organização coletiva, eles se posicionam
como sujeitos, vivem experiências de formação humana encarnadas nessa trajetória. Suas
referências se constroem porque essa luta social se faz de um modo que é capaz de colocar em
cena novos sujeitos na busca de seu espaço/representação, ao mesmo tempo em que os
apresenta no embate de lutas quase tão antigas quanto a humanidade.
Considerações Finais
Buscamos uma reflexão sobre as designações e as nomeações atribuídas aos sujeitos e
às mudanças sofridas, motivadas no e pelo acontecimento discursivo, o que possibilitou
compreender as (re)significações e o deslocamento de sentidos da expressão os sem rios, que
mobiliza novos sentidos e configura-se numa luta para além das causas ribeirinhas. Trata-se,
pois, de uma nova categoria social que anseia por mudanças estruturais mais amplas, capazes
de provocar interferência no modelo atual de sociedade, bem como, nos valores que a
sustenta.
A (re)significação ocorre no momento em que irrompe o acontecimento discursivo de
desapropriação das terras ribeirinhas, por ocasião da construção da hidrelétrica de Porto
Primavera, provocando assim, deslocamentos de sentidos. Dito de outro modo, a maneira de
referir/nomear constitui as designações desses sujeitos e, à medida que mobilizam dizeres e
sentidos outros, identifica os ribeirinhos no e pelo acontecimento em questão.
O sujeito, antes ribeirinhos, transformou-se em sem rios, momento de uma nova
reconfiguração, novos processos de luta, dentre esses, a luta contra a exclusão. Esse sujeito se
desidentifica com a formação discursiva que o constituiu, para identificar-se com uma nova
“forma-sujeito” de direito, daquele que reivindica para si e para outro, além da terra,
mudanças na “forma de ser” do sistema capitalista.
176 | P á g i n a
Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três
Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano
(Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858).
Guavira
no10
Dizer "quem somos" significa também dizer "o que não pretendemos ser". Assim,
afirmar a identidade significa demarcar fronteiras, significa fazer distinções incluir-se pela
luta e resistência.
Referências
AUTHIER-REVUZ, J. Heterogeneidade(s) enunciativa(s). Cadernos de Estudos Lingüísticos,
n.19, p.25-42, Campinas, Unicamp, São Paulo: 1990.
GUIMARÃES, E. Semântica do acontecimento: um estudo enunciativo da designação.
Campinas: Pontes, 2. Ed., 2005.
BECHARA, E. Moderna gramática portuguesa. Rio de Janeiro: Lucerna, 1999.
BÍBLIA SAGRADA: Nova Tradução na linguagem hoje. Barueri: Sociedade Bíblica do
Brasil, 2000.
FERREIRA, A. B. H. Novo dicionário da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira
S.A., 1975.
FIORIN, J. L. As astúcias da enunciação: as categorias de pessoa, espaço e tempo. São Paulo:
Ática, 2005.
GRZYBOWSKI, C. Caminhos e descaminhos dos movimentos sociais no campo. 2. ed.
Petrópolis: Vozes, 1990.
MAB, Movimento dos Atingidos por Barragens. A Organização do Movimento dos Atingidos
por Barragens – MAB. Caderno de Formação nº. 5, São Paulo, 2000.
_____. Os Sem rio – Fita VHS.
MARCUSCHI, L. A.; KOCH, I. V. Estratégias de referenciação e progressão referencial na
língua falada. In: ABAURRE, M. B.; RODRIGUES, A C. S. (orgs.) Gramática do Português
Falado, vol. VIII, Campinas: FAPESP/UNICAMP, 2002, p. 31-56.
MOTTA, Joaquim Zailton Bueno. Encontro de amor. In: Revista Swiss Park. Campinas:
Editorial Newslink Comunicação. Ano IV, nº 16, maio, junho, 2010.
PÊCHEUX, M. Semântica e discurso: uma crítica à afirmação do óbvio. Trad. E. P. Orlandi
et. al. Campinas: UNICAMP, 1988.
VAINER, C. B.; ARAUJO, F. G. B. de. Grandes projetos hidrelétricos e desenvolvimento
regional. Rio de Janeiro: CEDI, 1992.
TORREÃO, Nádia. A liderança feminina no desenvolvimento sustentável. Vol.7, João Pessoa:
Revista Ártemis, Dezembro, 2007, p. 101-121.
177 | P á g i n a
Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três
Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano
(Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858).
Guavira
no10
MOTIVAÇÕES DA MOBILIDADE ESTUDANTIL ENTRE
OS ESTUDANTES DO CURSO DE ADMINISTRAÇÃO
Manolita Correia Lima (ESPM–SP)67
Viviane Riegel (ESPM- SP)68
RESUMO: A pesquisa teve o objetivo de conhecer as motivações que justificam o crescente interesse dos
estudantes pelos programas de formação internacional. A investigação se concentrou em estudantes e egressos
do curso de Administração, oferecidos no Brasil, participantes de programas de intercâmbio. O grupo é
predominantemente formado por jovens, de ambos os sexos, que participaram de programas de intercâmbio
durante a graduação. Estão vinculados a instituições paulistanas, respeitadas na área de Administração. Apesar
de efetivados em sólidas empresas nacionais e multinacionais e ter renda própria, residem com os pais e estes
assumem papel preponderante nas decisões relativas ao planejamento do programa.
Palavras-chave: mobilidade estudantil; educação; multiculturalismo
ABSTRACT: The research aimed to understand the motivations that justify the growing interest of students for
international programs. The research focused on students and graduates of the Business Administration course,
offered in Brazil, participants of exchange programs. The group is predominantly composed of young men and
women who participated in exchange programs during graduation. They are linked to institutions in São Paulo,
respected in the Business Administration area. Although effective in strong national and multinational
companies and with their own income, they reside with their parents who take leading role in decisions
regarding the planning of the exchange program.
Key-words: student’s mobility; education; multiculturalism
Introdução
A investigação cujos resultados estão aqui reunidos objetivou conhecer as motivações
que justificam o crescente interesse da população estudantil por programas de formação
internacional, particularmente o intercâmbio acadêmico. Sintomaticamente, o tema tem
conquistado espaço no cinema69, motivado produções literárias70 e acadêmicas, justificando
67
Professora titular do programa de Mestrado em Gestão Internacional da Escola Superior de Propaganda
e Marketing (SP). Graduação em Ciências Sociais - Universite de Paris III (Sorbonne-Nouvelle) (1984),
mestrado em Sociologia dos Espaços Construídos - Universite de Paris VII - Universite Denis Diderot (1984) e
doutorado em Educação pela Universidade de São Paulo (2003). Atual projeto de pesquisa: “Internacionalização
da Educação Superior” – email: [email protected].
68
Professora assistente da Escola Superior de Propaganda e Marketing (SP). Graduação em
Administração de Empresas – Escola Superior de Propaganda e Marketing (SP) (2002), e mestrado em
Comunicação e Práticas de Consumo - Escola Superior de Propaganda e Marketing (SP) (2010) – email:
[email protected].
69
L’auberge espagnole (produção franco-espanhola de 2002, dirigida por Cédric Klapisch), Thelma e
Louise (produção americana de 1991, dirigida por Ridley Scott), Easy rider (produção americana de 1969,
dirigida por Denis Hopper).
70
Moby Dick de Herman Melville (1851), The seven voyages of Sinbad the sailor (conto 133, vol.6 das
Mil e uma noites), On the road de Jack Kerouac (1954), L’usage du monde de Nicolas Bouvier (1963), Le
voyage d’Ulysse de Tim Severin (2000) .
178 | P á g i n a
Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três
Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano
(Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858).
Guavira
no10
levantamentos mundiais por parte de organismos internacionais71, revelando que o fenômeno
não é recente, mas que contemporaneamente envolve amplos setores da população
(NOGUEIRA et al. 2008, p. 356) e mobiliza diferentes atores em razão da multiplicidade de
motivações e interesses implicados (LIMA; CONTEL, 2009, p. 6). Por isso tem ganhado
diversos formatos: mobilidade institucionalizada / espontânea (BALLATORE; BLÖSS, 2008,
p.17); interna / externa; horizontal / vertical; curta, média ou longa duração etc. (DERVIN;
BYRAM, 2008, p. 9).
Os programas de mobilidade estudantil são genericamente nomeados de intercâmbio
internacional, incluem formatos tão diversos quanto os estágios lingüísticos, realização de
disciplinas ou cursos superiores e de high school (PRADO, 2004; NOGUEIRA, 2004). O
programa de intercâmbio acadêmico se caracteriza por um séjour de estudo, concretizado por
estudantes interessados em aperfeiçoar o domínio de uma língua estrangeira, participar de
disciplinas que integram o currículo de determinado semestre escolar, ou realizar curso
oferecido por uma instituição de educação, podendo se estender por até 12 meses,
diferenciando intercambistas de turistas. A organização do programa pressupõe o retorno do
estudante ao país de origem, tão logo as atividades previstas sejam concluídas, distinguindo
intercambistas de imigrantes (CICCHELLI, 2008, p. 144). Com a intensificação da
mobilidade acadêmica e o aperfeiçoamento dos levantamentos de dados sobre o fenômeno,
observa-se que:
a) o fluxo de estudantes internacionais é desequilibrado à medida que desperta mais
interesse entre a população estudantil oriunda dos países periféricos e semiperiféricos
(China, Índia, República da Coréia, Turquia, Marrocos, México, Brasil, etc.) do que a
dos países do centro da economia-mundo – enquanto os EUA acolhem 26% da
população estudantil internacional, enviam 2% (UNESCO, 2008).
b) as motivações que justificam o investimento financeiro e emocional envolvido na
realização do programa são múltiplas em razão da heterogeneidade da população
formada pelos intercambistas, expressa tanto no plano geográfico, quanto sócioeconômico e intelectual (capital intelectual original) (CICCHELLI, 2008).
Assim, recorrentemente, intercambistas são “confundidos” com trabalhadores
imigrados disfarçados (CHARLE et al., 2004, p. 967), preocupados em legitimar a sua
permanência no país de acolhimento e respectiva aceitação social assumindo o status de
estudante. “Confusão” que tem implicado na discussão/adoção de uma política de imigração
restritiva por parte de países do centro da economia-mundo e de maiores exigências para a
expedição de documentos que regularizem a permanência do estudante no país de
acolhimento. Chama-se atenção para o fato de vários países da União Européia transferirem a
responsabilidade pela definição da política de imigração para o Parlamento Europeu.
Os números consolidados (seja por instituição, programa, país ou região) são tão
impressionantes (em 2006 eram 2 754 373 estudantes internacionais em circulação) que
levam autores a anunciar un nouvel ordre éducatif mondial (LAVAL; WEBER, 2002) e a
assegurar que “la mobilité académique [...] semble être devenue incontestablement une
composante des paysages éducatifs de la plupart des pays du monde” (Dervin, Byram, 2008,
p. 9). Apesar de ser uma afirmativa incontestável, seu conteúdo omite o fragrante
desequilíbrio que marca a mobilidade estudantil, particularmente entre Norte e Sul, países
71
Destacam-se os levantamentos realizados pela UNESCO e OCDE e anualmente divulgados: Recueil de
données mondiales sur l’éducation – statistiques comparées sur l’éducation dans le monde (UNESCO), Regards
sur l’éducation (OCDE).
179 | P á g i n a
Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três
Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano
(Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858).
Guavira
no10
centrais e periféricos. Reforçando o que Magali Ballatore e Thierry Blöss (2008, p. 25)
nomeiam de affinité sélective, uma espécie de hierarquia que se traduz não apenas na escolha
do país de destino (reforçando a desigualdade da força simbólica existente entre as nações –
WAGNER, 1998), mas no acesso a determinadas instituições (mais antigas, reputadas e
seletivas), áreas de conhecimento (mais valorizadas pelo mercado de trabalho), e respectivos
impactos sobre a ascensão sócio-econômica dos estudantes em mobilidade (inégalités de
prestige72).
Da década de 1990 em diante, percebe-se alguma evolução no número de instituições
de educação superior brasileiras que dispõe de algum profissional (ou setor) responsável pela
divulgação de programas de intercâmbio internacional (LIMA et al., 2008). Em parte isso se
deve à pressão exercida pelos estudantes, que em número crescente planejam uma experiência
internacional de estudo ainda na graduação (NOGUEIRA et al., 2008). Considerando que a
área de Economia e Gestão é tradicionalmente uma das mais procuradas por estudantes
internacionais, parece contributivo investigar qual é o perfil do estudante intercambista,
vinculado a cursos de graduação em Administração, oferecidos por instituições públicas e
privadas, distribuídas no território brasileiro? Qual seria o tipo de intercâmbio internacional
realizado, o destino preferido, os motivos da preferência e o tempo médio envolvido? Quais
as motivações que justificam o investimento em programas de mobilidade espontânea e quais
os resultados pessoais e profissionais que acreditam ter alcançado com a experiência?
Nos limites deste texto, mobilidade espontânea é aquela em que os estudantes
decidem investir em algum programa de formação internacional e, sem qualquer suporte
acadêmico e/ou financeiro de agências governamentais, escolhem o país de acolhimento, a
instituição que pretendem freqüentar e a atividade que desejam desenvolver (disciplina ou
curso) e, individualmente, criam as condições que viabilizam a experiência. Apesar de este
formato de mobilidade dificultar a estatística da população estudantil envolvida, tem crescido
sobremaneira na medida em que:
a) poucos países desenvolveram programas de incentivo à mobilidade acadêmica
promovendo reformas universitárias capazes de harmonizar diplomas e facilitar os
respectivos processos de validação (BILLAUD, 2007, p. 22). Número ainda menor
criou efetivos mecanismos de financiamento público, capazes de promover não apenas
a circulação de representantes da elite econômica, mas, sobretudo, da elite escolar.
Sendo assim, para a maioria, a experiência requer o financiamento privado das
despesas incluídas no deslocamento, curso e séjour (NOGUEIRA et al., 2008, p. 369);
b) apesar de a globalização da economia, associada à reestruturação do trabalho e às
crescentes taxas de desemprego, particularmente entre os jovens, requerer outro perfil
de trabalhador, parte expressiva dos países periféricos e semi-periféricos ainda não
alcançou a massificação do acesso à educação superior. Neste caso, a mobilidade dos
jovens se revela mais uma necessidade do que uma opção – seja no sentido de adiar
seu ingresso no mercado de trabalho ou no sentido de ampliar a empregabilidade com
a experiência internacional (BALLATORE; BLÖSS, 2008, p. 38);
c) o crescimento das taxas de escolarização, associado ao acesso de novos públicos à
educação superior, em diversos países, engendram a desvalorização dos certificados
escolares (NOGUEIRA et al. 2008, p. 371). Assim, antigos e novos estudantes tendem
a direcionar suas estratégias escolares para níveis mais altos e diferenciados do
sistema escolar. Nas palavras de Andréa Aguiar (2009, p. 73), “a massificação escolar
72
Esta ideia é confirmada pelos resultados da pesquisa realizada por Magali Ballatore e Thierry Blöss
(2008). Em suas palavras, “l’image de grandeur et de prestige associée aux institutions étrangères de formation
supérieure, représentent à ce titre un des facteurs jugés importants” (BALLATORE; BLÖSS, 2008, p.37).
180 | P á g i n a
Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três
Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano
(Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858).
Guavira
no10
e a perda do distintivo dos diplomas [...] teriam acentuado a demanda atual por novos
atributos na formação. Assim, a mobilidade geográfica passaria a ser interpretada
como competência desejada da prática do saber-fazer, avaliada como triunfo
individual e pessoal, num contexto em que o cosmopolitismo se impõe como saber ou
necessidade cultural, em contraposição à imobilidade e ao confinamento nacional”;
d) com o desinvestimento em educação superior, as universidades (públicas e
privadas) que se notabilizaram no cenário mundial estão cada vez mais pressionadas a
diversificar a oferta de serviços educacionais e a atrair estudantes solvíveis como
forma de ampliar a margem de autofinanciamento. É neste contexto que o
protagonismo do mercado confere à mobilidade acadêmica uma lógica mercantil,
capaz de substituir solidariedades acadêmicas por competitividade, no enfrentamento
dos desafios presentes no mundo globalizante (CHARLE et al., 2004, p. 968).
Na intenção de pormenorizar estas ideias, o texto foi estruturado em três partes: a
primeira descreve os recursos metodológicos explorados; a segunda faz a síntese da revisão da
literatura; e a terceira descreve e interpreta os dados resultantes de levantamento realizado de
acordo com os procedimentos preconizados pelo método survey.
Descrição dos Procedimentos Metodológicos
A pesquisa foi desenvolvida com a exploração de recursos típicos do método survey.
Assim sendo, entre os meses de janeiro e fevereiro de 2009 o instrumento de coleta foi
elaborado, testado e aperfeiçoado, para entre os meses de março e abril ser aplicado,
utilizando-se do sistema on-line disponível em www.surveymonkey.com. O questionário
incluiu 27 questões, distribuídas em quatro blocos de perguntas: o primeiro deles permitiu o
desenho do perfil dos respondentes; o segundo ajudou na identificação do tipo de intercâmbio
internacional preferido; o terceiro colaborou para se descobrir o destino escolhido, os motivos
da preferência, e o tempo médio de permanência no exterior; e o quarto permitiu se conhecer
as motivações que justificam o investimento em programas de mobilidade espontânea e o
mapeamento dos resultados pessoais e profissionais alcançados.
O instrumento de coleta envolveu dois tipos de questões: aquelas que solicitavam
informação foram elaboradas em forma de múltipla escolha e, dentro do possível, a sua
formulação respeitou a estrutura semi-aberta, na tentativa de inibir processos de indução,
levando em conta o reduzido número de alternativas de respostas. E aquelas que envolviam
avaliação fizeram uso de uma escala que variou de zero a sete, conforme o grau de
concordância. O acesso ao instrumento de coleta ocorreu por e-mail, enviado para o banco de
dados dos associados da Brazilian Educational & Language Travel Association (BELTA). O
filtro utilizado considerou estudantes e egressos dos cursos de graduação de Administração,
oferecidos por instituições distribuídas em todo o território nacional, que participaram de
algum programa de intercâmbio, com duração igual ou superior a três meses. Visto que a
amostra está limitada a 90 respondentes e foi obtida por meio de critérios não probabilísticos e
por conveniência, os resultados alcançados não ultrapassam o caráter exploratório.
A Mobilidade Acadêmica – origem e evolução
Historicamente as viagens fazem parte de um conjunto de iniciativas que
contribuem para a socialização internacional das classes superiores – a exemplo do
181 | P á g i n a
Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três
Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano
(Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858).
Guavira
no10
grand tour aristocratique (WAGNER, 2007). Nesta direção, a mobilidade dos
acadêmicos não é um fenômeno recente, fruto do incremento tecnológico associado à
globalização econômica, e à elevação do padrão de competitividade e concorrência entre as
economias dos países e regiões do mundo. Guadilla (2005, p. 16) assegura que a natureza
universal do conhecimento, combinada à tradição de cooperação acadêmica, no
desenvolvimento de atividades de ensino, desde a Antiguidade, são fatores que contribuíram
para imprimir caráter intrinsecamente interterritorial às universidades e às instituições de
educação que as precederam. Interterritorial porque a emergência do Estado-nação ocorre em
período posterior, por conseguinte, tais instituições funcionavam em cidades – Bolonha
(1088), Paris (1125), Oxford (1167), Salamanca (1218) etc – ainda não separadas por
fronteiras nacionais.
Assim, desde a Idade Média, o pereginatio academica correspondia a viagens realizadas
por acadêmicos desejosos de estudar com autoridades no tema de especial interesse, em uma
ou mais regiões da Europa. Esta mobilidade acontecia pela confluência de diversos fatores: a
notabilidade conquistada por alguns professores em determinados temas (a), a existência de
uma elite sócio-econômica disposta a desfrutar de alguma experiência inter-regional, apesar
da precariedade dos meios de transporte e acomodações disponíveis (b), a convergência de
currículos definidos e controlados pela Igreja (c), além do uso corrente do latim no ambiente
educacional, facilitando a comunicação entre os atores (d) (CHARLE; VERGER, 1996).
Com a formação do Estado-nação, a mobilidade acadêmica não foi interrompida porque
os governos se viram pressionados a investir na formação de quadros naquelas áreas
descobertas pelo sistema nacional de educação (LIMA; CONTEL, 2009). Com o término das
Grandes Guerras, a mobilidade de professores europeus para universidades estadunidenses
inaugura a internacionalização da educação como estratégia capaz de incrementar o
desenvolvimento. Desde então, o número de acadêmicos originários de países da periferia ou
semiperiferia da economia-mundo só tem crescido na direção dos grandes centros,
corroborando as ideias de Octávio Ianni (2005) – a abertura para o exterior, o contato com
outras culturas, e o domínio de línguas estrangeiras são aspectos importantes da formação de
elites cosmopolitas.
No contexto das famílias pertencentes à bourgeoisie d’affaires, as viagens
permitem aos jovens experimentarem a dimensão internacional do patrimônio
familiar e assimilar elementos típicos do savoir être e do savoir faire constitutivos da
identidade burguesa. De alguma forma, as experiências decorrentes dos
deslocamentos contribuem para formar o esprit d’entreprise próprio das lideranças
internacionais, além de capacitar os viajantes para ocupar posições de comando
(WAGNER, 2007). Essas idéias são fortalecidas pelos resultados de pesquisa
realizada por Alexandre Douek e Alexandre Zylberstajn (2007), que investigaram a
relação existente entre intercâmbio internacional e empregabilidade. Os autores concluíram
que, para os empregadores, mais do que ampliar o capital intelectual, a mobilidade
internacional contribui para o desenvolvimento de atitudes valorizadas pelo ambiente de
trabalho na medida em que promove o amadurecimento emocional dos jovens. E pelo fato de
os referidos programas variarem em extensão de tempo (de três a doze meses), é crescente o
número de estudantes que organiza diversos séjours de estudo ao longo da formação
universitária (graduação e pós-graduação), e no conjunto tais experiências exerçam influência
na passagem para a idade adulta. Nas palavras de Vincenzo Cicchelli (2008, p. 139), “un
séjour allant de trois mois à un an pourrait être vécu comme un moment d’experimentation
intense des marges d’autonomie, en raison de l’eloignement important des jeunes du lieu de
résidence des parents”.
182 | P á g i n a
Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três
Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano
(Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858).
Guavira
no10
A valorização da experiência como um traço de distinção estimula crescente
número de famílias brasileiras a investir na formação internacional dos filhos acreditando
que ela contribui para o desenvolvimento pessoal, o sucesso escolar e a inserção profissional
(NOGUEIRA et al., 2008; PRADO, 2004), na medida em que promove adequação da mão de
obra qualificada ao novo espírito do capitalismo (SENNETT, 1999). Levando-se em conta
que as fronteiras sempre estiveram abertas para as elites políticas, econômicas e intelectuais
não se pode afirmar o mesmo em relação aos trabalhadores pouco qualificados, afinal, a
mobilidade das pessoas tende a acompanhar a dinâmica dos investimentos em escala
planetária (WAGNER, 1998, p.11).
A internacionalização das economias promove a emergência do manager
international, declaradamente comprometido com a defesa de interesses comuns, sintonizados
com negócios desenvolvidos em âmbito mundial (WAGNER, 1998, p.13). Ao aprofundar o
conceito de internacionalisme professionnel, Émile Durkheim (1928) assegura que a
aproximação entre os indivíduos, decorrente de afinidades profissionais, engendra a formação
de sociedades internacionais que reúnem categorias profissionais específicas, cada vez mais
especializadas e orientadas por interesses que ultrapassam a dimensão nacional. Em seus
termos, “les sentiments et les intérêts professionnels sont doués d’une bien plus grande
universalité; ils sont beaucoup moins variables de pays à pays pour une même catégorie de
travailleurs, tandis qu’au contraire ils sont très différents d’une profession à l’autre au sein
d’un même pays” (DURKHEIM, 1928, p. 133).
Conseqüentemente, entre o que a literatura nomeia de peregrinatio accademica
(RIDDER-SYMOENS, 1996, p. 279) e mobilidade acadêmica no contexto da
internacionalização da indústria da educação (SCOCUGLIA, 2008; TEODORO, 2003) é
possível identificar diferentes atores (Estado, universidades, organismos internacionais
multilaterais, empresas voltadas para o turismo e para difusão de conhecimento, famílias,
estudantes, professores, pesquisadores, profissionais qualificados etc.) e interesses envolvidos
(culturais e acadêmicos, políticos, econômicos e comerciais – KNIGHT, 2005, p. 26).
A crescente importância econômica e política conquistada pelo conhecimento e pela
educação correspondem a fatores desencadeadores de mudanças significativas sobre a forma
pela qual a educação é pensada e organizada por países e atores implicados. Nas palavras de
Cláudio Porto e Karla Régnier (2003, p. 6),
Quando se trata da passagem do modelo de desenvolvimento industrial para o
informacional, o qual se faz acompanhar por intenso movimento de transformação nas
dimensões econômica, política, social e cultural das sociedades, percebe-se que a
capacidade de produzir, interpretar, articular e disseminar conhecimentos e
informações passa a ocupar espaço privilegiado na agenda estratégica dos setores
produtivos e dos Estados: a vantagem competitiva de um país em relação a outro
começa a depender da capacitação de seus cidadãos, da qualidade dos conhecimentos
que estes são capazes de produzir e transferir para os sistemas produtivos e da
capacidade de aplicação/ geração de ciência na produção de bens e serviços.
A mobilidade das pessoas – principal manifestação da internacionalização no âmbito
educacional (KNIGHT, 2005) – figura um tema incluído na agenda internacional dos
pesquisadores, e não são modestos aqueles empenhados em localizar e entender os aspectos
que influenciam verdadeira legião de jovens a decidir por uma formação internacional. Entre
outros, quatro autores/textos são particularmente contributivos para a discussão da questão:
Kurt Larsen e Stéphan Vincent-Lancrin (2002); Marie-Claude Muñoz (2004); Mohamed Harfi
(2004); Mohamed Harfi e Claude Mathieu (2006). Pelo fato de convergirem em algumas
183 | P á g i n a
Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três
Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano
(Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858).
Guavira
no10
conclusões é possível consolidar os respectivos resultados em vinte aspectos e distribuí-los
em quatro categorias: motivações de ordem sociocultural, acadêmica, econômico-comercial e
político-administrativo.
Quadro n.1: Aspectos que influenciam na mobilidade internacional dos estudantes
FATORES
Sociocultural
Acadêmicocultural
Econômicocomercial
Político/Adminis
trativo
ASPECTOS
1 Língua oficial do país de destino (preferencialmente a língua inglesa).
2 Proximidade geográfica e cultural entre o país de origem e de destino, assim como
ligações históricas pré-existentes.
3 Presença de grupos de referência capazes de estimular a formação de redes de
relacionamento e de aproximar antigos, atuais e potenciais acadêmicos do país de origem
no país de acolhimento (ex.: associações de ex-alunos, ex-bolsistas, estudantes,
professores, pesquisadores etc.).
4 Qualidade de vida e atratividade cultural existente no país de destino: estabilidade
política, segurança pública, aspectos climáticos, diversidade de ecossistemas, atividades
culturais e turísticas etc.
5 Limitações na oferta de programas e cursos no sistema de educação do país de origem.
6 Equivalência do diploma expedido pelo país de origem, no país de destino.
7 Efetiva possibilidade de estudantes internacionais terem acesso aos cursos desejados no
país de destino (inexistência de numerus clausus).
8 Reputação e percepção de qualidade do sistema educativo, em geral, e dos
estabelecimentos educacionais, em particular, existentes no país de destino, em relação
ao país de origem.
9 Existência de programas bi/multilaterais entre instituições de educação, países ou
regiões (a exemplo do Erasmus, Sócrates, Leonardo, Tempus, Língua, entre outros).
10 Existência de política de bolsa de estudo, bolsa de pesquisa e estágio.
11 Validação do diploma expedido pelo país de destino, no país de origem.
12 Ligações econômicas pré-existentes entre os países que enviam e acolhem
acadêmicos.
13 Custo de vida no país de destino.
14 Comparação entre os custos financeiros envolvidos (taxas de inscrição, mensalidade
escolar, material escolar etc.) na formação oferecida nos países de origem e de destino.
15 Existência e acesso à infra-estrutura destinada a estudantes internacionais: política de
financiamento da mobilidade estudantil (concessão de bolsas ou de estágio remunerado),
seguro de saúde, alojamento para estudante, restaurante universitário, oferta de curso de
língua etc.
16 Valorização das competências desenvolvidas pelas instituições do país de destino.
17 Valor dos diplomas expedidos pelo país de destino no mercado de trabalho.
18 Possibilidade de trabalhar durante o séjour de estudo e obter algum recurso financeiro.
19 Existência de oportunidades no mercado de trabalho e possibilidade de permanecer no
país de destino após o término do curso.
20 Política de imigração que facilite a obtenção de visto de estudante no país de destino.
Fonte: Adaptado de Larsen; Vincent-Lancrin (2002, p.20-22); Muñoz (2004); Harfi (2004, p.2); Harfi; Mathieu (2006, p. 36).
De acordo com os autores consultados, a língua corresponde a um fator relevante na
escolha do país de destino. Esta assertiva é corroborada pelos números divulgados: em 2006,
dos seis destinos mais procurados pelos estudantes internacionais, quatro eram anglo-falantes:
184 | P á g i n a
Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três
Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano
(Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858).
Guavira
no10
Estados Unidos (22%), Reino Unido (11%), Alemanha (10%), França (9%) e Austrália (6%)
(UNESCO, 2008). O interesse em aprender a língua inglesa é reforçado nos resultados de
estudos realizados no Brasil por Aguiar (2009), Nogueira et al., (2008, 2004); Douek e
Zylberstajn (2007), Almeida (2004), Prado (2004), entre outros, atestando a hegemonia da
língua inglesa no ambiente escolar.
Tabela nº.1: Principais Países Receptores de Estudantes (2001-2006)
PAÍSES
ESTADOS UNIDOS
REINO UNIDO
ALEMANHA
FRANÇA
AUSTRÁLIA
CANADÁ
2001
475 169
225 722
199 132
147 402
105 764
40 033
2002
582 996
225 722
219 039
147 402
120 987
40 033
2003
582 996
227 273
240 619
221 567
179 619
40 033
2004
572 509
300 056
260 314
237 587
166 954
40 033
2005
590 128
318 399
259 797
236 518
207 264
132 982
2006
584 814
330 078
259 797
247 510
207 264
75 546
Fonte: Recueil de Données Mondiales sur l’Éducation. Institut de Statistique/UNESCO, 2003, 2004, 2005, 2006, 2008.
Na América latina a situação não é distinta – considerando o ano escolar de 2006,
entre os seis países latino-americanos que enviaram maior contingente de estudantes para o
exterior, todos eles têm como primeiro destino os Estados Unidos (UNESCO, 2008). Chamase atenção para o fato de os países de línguas coloniais – inglês, espanhol, francês e alemão,
por exemplo – manterem a liderança na atração de estudantes internacionais.
Tabela nº.2: Destino dos Estudantes latino-americanos (2006)
PAÍSES
N.estudantes
enviados
Destino
Destino
Destino
Destino
Destino
1º
2º
3º
4º
5º
MÉXICO
Espanha
França
Alemanha
USA
Reino Unido
24 441
1 705
1 479
1 332
14 426
1 738
BRASIL
França
Portugal
Alemanha
USA
Reino Unido
19 978
2 112
1 907
1 770
7 258
1 770
COLÔMBIA
França
Venezuela
Alemanha
Espanha
USA
16 290
2 028
1 206
1 074
929
7 078
PERU
Espanha
Cuba
Itália
Alemanha
USA
10 517
1 035
1 026
993
737
3 644
VENEZUELA
Cuba
Espanha
Portugal
França
USA
9 088
3 846
595
480
393
4 962
ARGENTINA
Espanha
França
Alemanha
Cuba
USA
7 934
975
746
549
454
3 140
FONTE: Recueil de Données Mondiales sur l’Éducation. Institut de Statistique/UNESCO, 2008.
No Brasil é crescente o número de brasileiros que investe tempo e recursos em
programas de intercâmbio – enquanto em 2004 eram 40 mil, em 2008 o número mais que
dobrou: 85 mil estudantes. O interesse pela língua inglesa não está em descompasso com o
resto do mundo: 81,5% dos destinos escolhidos pelos intercambistas brasileiros convergem
para países anglo-falantes (http://www.belta.org.br/revista.asp, consultado em maio de 2008).
185 | P á g i n a
Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três
Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano
(Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858).
Guavira
no10
Descrição e interpretação dos dados
O exercício que envolve descrição e interpretação dos dados resultantes da tabulação
do questionário aplicado está organizado em três partes: inicialmente, aprofundar-se-ão
aspectos relacionados ao perfil do respondente, na expectativa de o conteúdo colaborar para a
interpretação dos dados relativos à formação universitária, às motivações que justificaram a
decisão de participar de um programa de intercâmbio internacional e, finalmente, à percepção
dos principais resultados alcançados com a experiência.
1.Perfil Sócio-Econômico dos Respondentes
Os dados revelam que a população que participa dos programas de intercâmbio
internacional é muito jovem: do total de 90 respondentes, pouco menos de três quartos
(69,7%) têm idade que varia entre 17 e 27 anos. Resultados diferentes daqueles encontrados
por Sandrine Billaud (2007, p. 26), ao estudar o público estudantil acolhido pelas
universidades francesas. A faixa etária mais bem representada pelos estudantes internacionais
na França tem mais de 25 anos. Possivelmente isso ocorre porque a pesquisadora incluiu
estudantes envolvidos com graduação e pós-graduação, desde que bolsistas do programa
Erasmus.
Os dados reforçam uma tendência mundial de antecipação do início da formação
internacional. Até a metade da década de 1990, a matrícula de estudantes internacionais se
concentrava em programas de pós-graduação stricto sensu, de 1995 em diante este quadro
vem se modificando, e atualmente a preocupação de investir em formação internacional
ocorre cada vez mais cedo, entre representantes de estratos sócio-econômicos privilegiados.
Dados referentes ao ano escolar de 2006-2007 apontam que no Reino Unido e na França a
procura por cursos equivalentes à graduação correspondia a quase metade da matrícula
internacional (77% e 49,9%, respectivamente); na Austrália o percentual atinge um pouco
mais da metade (56%); e na Alemanha a quase três quartos (69,5%) (Agence Campus France,
2008).
Tabela nº.3: Matrícula Internacional por Nível de Formação (2006-2007)
Nível de Formação
EUA
Reino Unido
França
Alemanha
29,2%
47%
49,9%
69,5%
21%
37,7%
15,7%
19%
12,4%
8,4%
40%
52,4%
50,1%
24,1%
Fonte:Agence CampusFrance. Les étudiants internationaux: chiffres clés. 2008.
GRADUAÇÃO
MESTRADO
DOUTORADO
MESTRADO+DOUTORADO
Austrália
56%
44%
Refletindo a pouca idade dos respondentes e a tendência de estabelecerem relações
estáveis quando houver substantivo progresso profissional, observa-se que a maioria reside
com os pais (57,8%) – apenas 15,6% vivem sozinhos e 12,2% com o cônjuge, – reforçando
um comportamento recorrente entre os jovens brasileiros oriundos de estratos sócioeconômicos privilegiados. Apesar disso, a maioria possui renda própria e pode assumir a sua
existência com mais autonomia – apenas 6,7% não trabalham (52,2% têm cargo efetivo em
uma empresa, 22,2% trabalham em negócio próprio ou familiar e 21,1% são estagiários).
Assim, fazem parte do grupo de jovens cangurus – trata-se de pessoas que trabalham e têm
renda própria, no entanto resistem à ideia de deixar a residência dos pais e perderem o
186 | P á g i n a
Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três
Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano
(Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858).
Guavira
no10
conforto recebido no domicílio familiar, mesmo que para isso adiem responsabilidades típicas
de quem conquistou independência e autonomia pessoal. Segundo o instituto de
pesquisas LatinPanel, o Brasil tem 3,3 milhões de famílias (pertencentes
às classes A e B) com filhos cangurus: todos têm formação superior e a
maioria se encontra na faixa dos 25 a 30 anos (62%) (ROMANINI, 2009).
Muito mais de três quartos dos respondentes (84%) participaram de um programa de
intercâmbio internacional durante o curso de graduação. Este dado ajuda a entender a faixa
etária predominante e a forte participação da família nas escolhas dos intercambistas – tanto
no que se refere ao país de destino, quanto à instituição de educação e à natureza das
atividades realizadas. Aspecto não retratado pela literatura internacional, mas que vai ao
encontro dos resultados de recente pesquisa realizada por Maria Alice Nogueira (2004) tendo
o estudante brasileiro, filho de empresários, como alvo. A autora chama atenção para o fato de
o discurso dos pais minimizar aspectos considerados negativos da experiência internacional –
dificuldades de adaptação (clima, alimentação, língua etc.), sentimento de discriminação,
solidão e saudades da família e amigos etc. (NOGUEIRA et al., 2008, p. 367). Em contatos
com ex-intercambistas, percebe-se o desenvolvimento de um mecanismo de hiper-valorização
da experiência que aumenta a atenção para os respectivos certificados ou diplomas recebidos.
A quase totalidade dos respondentes (91%) prefere países e instituições que tenham o
inglês como língua oficial. Esta preferência certamente explica porque 66,3% informam ter
estudado em escolas de idioma e 72,9% em instituições que tenham o inglês como língua
oficial. Tanto quanto os participantes da pesquisa realizada por Ceres Leite Prado (2004),
acreditam que o domínio da língua inglesa confere status e amplia as chances de
empregabilidade entre os falantes. O protagonismo do domínio de uma língua estrangeira
também está presente nos resultados da pesquisa de Elisabeth Murphy-Lejeune (2000) que
identifica a promoção do desenvolvimento lingüístico e cognitivo, a aquisição de
competências sociais e a aprendizagem intercultural como as principais conquistas dos
programas de intercâmbio internacional.
O fato de 66,3% ter frequentado escolas de idiomas revela estreita relação com o
formato do curso realizado: cursos de língua, de curta duração (variam entre um e três meses),
realizados durante o período de férias (45,9%). Maria Alice Nogueira (2004) chama atenção
para o fato de os pais empresários, apesar de reconhecerem e valorizarem o lucro simbólico
potencialmente proporcionado por uma experiência de estudos no exterior, não se
interessarem por formatos de cursos mais longos. Preferem financiar sucessivas viagens
internacionais de curta duração, acreditando que não ameaçam o destino profissional dos
filhos. Em suas palavras, “eles temem as conseqüências de uma estadia internacional
prolongada que possa, eventualmente, afastar (material e mentalmente) o jovem de seu
destino e vocação empresarial (o gosto pelos negócios)” (NOGUEIRA, 2004, p. 52).
Talvez isso tenha relação com o fato de poucos associarem o intercâmbio internacional
à prospecção de cursos de pós-graduação (23%) ou à prospecção de estágio internacional
remunerado (20%), apesar de figurarem projetos ajustados à idade, curso, área de atuação
profissional e à categoria socioeconômica de grande parte dos respondentes. Atitude que
revela a dificuldade de os jovens formularem projetos – na direção do conceito desenvolvido
por Jean-Pierre Boutinet (1993) – que envolvam o médio e longo prazos e possivelmente isso
reflita no que Richard Sennett (1999) nomeia de desenraizado e Zygmunt Bauman (1998) de
turista, ou seja, indivíduos que vêem o mundo como espaço de circulação permanente e têm
dificuldades de projetar o futuro com base nas condições de vida presente. No entanto,
preocupações de curto prazo são esboçadas quando informam aspectos que motivaram a
187 | P á g i n a
Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três
Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano
(Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858).
Guavira
no10
realização do intercâmbio: melhorar o currículo (45%) e desenvolver competências
relacionadas à carreira profissional (30,7%) – motivações predominantemente utilitaristas.
Os respondentes não nutrem interesse por destinos que estejam fora das rotas
tradicionais dos intercambistas. Possivelmente sejam influenciados por agentes de viagem a
optar por programas que fazem parte do portifólio de ‘produtos’ disponíveis na agência.
Coerentes com os dados anteriores, entre os cinco países preferidos – EUA (37,1%), Reino
Unido (16,9%), Austrália (14,6 %), Canadá (13,5%) e Espanha (7,9%) –, quatro são anglofalantes. Os países que acolheram os respondentes têm em comum: sistemas educacionais que
ultrapassaram o nível da massificação (a); instituições de educação superior bem classificadas
nos rankings mundiais (b); governos que institucionalizaram agressiva política de divulgação
do sistema de educação nacional (c); reconhecida experiência na recepção de estudantes
internacionais (infra-estrutura e segurança) (d) - aspectos relevantes quando 36,1% dos
respondentes asseguram que a escolha do país de destino se deveu àquele aprovado pelos pais.
Cabe esclarecer que enquanto a literatura acadêmica nacional confere expressiva participação
dos pais na decisão de investir numa experiência internacional, a literatura internacional não
reserva qualquer espaço à discussão da questão.
Consoante à crescente participação da mulher em cursos superiores e respectiva
inserção no mercado de trabalho, se constata que entre os respondentes há paridade entre
garotos e garotas: 51,1% são do sexo feminino e 48,9% do masculino. Em mais este aspecto,
os dados contrariam os resultados do estudo de Billaud (2007, p. 25), tendo a população
estudantil recepcionada pela França, no âmbito do programa Erasmus, como amostra.
Segundo a autora, o número de garotas é predominante em praticamente todos os países –
“dans tous les pays, les filles sont plus nombreuses que les garçons. Dans les pays suivats:
Danemark, Finlande, Irland, Grèce et Pays-Bas, le nombre de filles accueillies en France est
deux fois plus élevé que les garçons. La Pologne envoie même quatre fois plus de filles que
de garçons”.
2.Formação Universitária – vínculo institucional
Considerando a totalidade dos respondentes, 49,4% são egressos de cursos superiores
de Administração e 50,6% são estudantes do curso de graduação em Administração que
realizaram algum programa de intercâmbio internacional. Apesar de o questionário ter sido
divulgado por meio de um sistema on-line, disponível em www.surveymonkey.com, e o seu
acesso ter ocorrido por e-mails enviados para o banco de dados dos associados da BELTA,
observa-se que grande parte dos respondentes estuda na cidade de São Paulo, em instituições
de destaque na área de Administração. Essa constatação foi possível, porque houve a
indicação do nome da instituição a que estão ou estiveram academicamente vinculados:
Escola Superior de Propaganda e Marketing; Faculdade Armando Álvares Penteado;
Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade, Fundação Getúlio Vargas; Instituto
de Ensino e Pesquisa; Pontifícia Universidade Católica de São Paulo; e Universidade
Presbiteriana Mackenzie. Diante da constatação do perfil sociocultural dos estudantes dessas
instituições, questionam-se possíveis significados entre a associação de origem institucional
dos respondentes e as atividades de intercâmbio internacional.
Como principais razões estão o fato de a cidade de São Paulo abrigar instituições que
selecionam os ingressos por mérito acadêmico (vestibular) e por perfil socioeconômico (valor
das taxas escolares), o que explica a crescente mobilidade internacional de parte expressiva do
corpo discente durante a graduação. Essa observação é reforçada quando os respondentes
registram os aspectos que levaram em consideração na escolha do país de destino na medida
188 | P á g i n a
Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três
Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano
(Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858).
Guavira
no10
em que os custos envolvidos (21,1%), estabilidade da moeda local (25,7%) ou a possibilidade
de compatibilizar atividades de estudo e trabalho (33,3%) obtiveram baixa representatividade
entre as respostas, comparativamente a alternativas de respostas.
Além disso, a competição no mercado de trabalho local é tão acirrada que,
precocemente, os estudantes procuram investir em atividades que possam enriquecer o
currículo e as chances de competir por boas oportunidades de estágio e efetivação. Essa
observação é reforçada ao indicarem aspectos que motivaram a realização do intercâmbio
(Tabela 4): aperfeiçoar o conhecimento de uma segunda língua (76,6%); melhorar o
currículo (45%), e desenvolver competências relacionadas à carreira profissional (30,7%).
Ainda há o fato de a cidade abrigar empresas especializadas na organização de programas de
intercâmbio que regularmente promovem produtos comercializados em colégios, faculdades e
feiras, mobilizando estudantes interessados em obter informações. E ao fato de as
supracitadas instituições de educação superior (ESPM, FAAP, FGV, PUC e Mackenzie)
terem investido na criação de uma espécie de escritório dedicado à execução de sua política
de internacionalização. E por isso mesmo já dispõem de acordos internacionais firmados com
instituições, predominantemente localizadas na América do Norte e Europa Ocidental.
3. Motivações que justificam a participação no programa de intercâmbio
Os dados processados revelam que entre os fatores que influenciaram a decisão de
investir em um programa de intercâmbio internacional, o principal deles reside no interesse de
aperfeiçoar o conhecimento de uma segunda língua (com média de 6,42) e no desejo de
concretizar uma vivência pessoal de natureza internacional (com média de 6,29 –
considerando uma escala que varia até sete pontos) (Tabela n.4).
Tabela nº.4: Objetivos que motivaram o investimento do programa de intercâmbio
Objetivos
1
(%)
2
(%)
3
(%)
4
(%)
5
(%)
6
(%)
Aperfeiçoar o conhecimento de
2.6
2.6
1.3
2.6
2.6
11.7
língua estrangeira
Vivência pessoal
1.3
2.6
1.3
1.3
10.3
20.5
Conhecer outra cultura
2.6
0.0
2.6
5.1
11.5
19.2
Conhecer outro país
2.7
2.7
4.0
4.0
8.0
17.3
Melhorar o currículo
2.6
3.9
3.9
7.8
22.1
14.3
Desenvolver
competências
5.3
6.7
9.3
13.3
16.0
18.7
relacionadas à profissão
Prospectar alternativa de estágio
20.0
14.7
16.0
14.7
8.0
9.3
internacional e remunerado
Prospectar alternativas de pós23.0
18.9
13.5
14.9
10.8
8.1
graduação
Fonte: Questionários aplicados via SurveyMonkey – Grupo Experimental (04/2009)
7
(%)
Rating
Average
76.6
6,42
62.8
59.0
61.3
45.5
6,29
6,17
6,09
5,68
30.7
5,07
17.3
3,73
10.8
3,39
Os números estão em harmonia com os dados divulgados pela BELTA
(http://www.belta.org.br/revista.asp, consultado em maio de 2008): enquanto em 2004 os
cursos de idioma representaram mais de 75% do total de intercâmbios realizados, em 2008
eles alcançaram 81,5%. Na maioria das vezes, estudantes e famílias preferiam cursos de curta
duração, envolvendo de um a três meses, realizados no período de férias. Coerentes com o
interesse de aperfeiçoar o inglês, as rotas mais procuradas para a realização dos referidos
cursos foram o Canadá, a Inglaterra, a Austrália e os Estados Unidos.
189 | P á g i n a
Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três
Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano
(Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858).
Guavira
no10
Conhecer bem uma segunda língua permanece uma característica de distinção,
particularmente em um país cujo acesso à educação superior está reservado a poucos – em
2006 (MEC-INEP), a taxa de escolarização líquida foi de 12,1% – e onde a maioria da
população fala, lê e escreve mal a própria língua. Nas palavras de Ceres Leite Prado (2004, p.
69), “os intercâmbios representam [...] uma nova etapa na reconstituição incessante das
desigualdades escolares, já que eles permitem [...] a aprendizagem da língua nos países onde
ela é falada, com toda a carga de distinção que isso acarreta”.
A preferência por programas de intercâmbio orientados para a realização de cursos de
línguas, de curta duração, realizados nas férias, deve-se a múltiplos fatores: faixa etária
prevalecente (a); formato melhor assimilável pelos estudantes e respectivas famílias (b),
dificuldades de adaptação ao país (c), possibilidade de não comprometer o semestre escolar
no Brasil (d); associação entre domínio de língua, inserção e ascensão no mercado de trabalho
(e).
Nogueira (2004) assegura que as escolhas referentes à língua estrangeira e ao país de
destino dos potenciais intercambistas são fortemente influenciadas pela família, justamente o
agente que viabilizará financeiramente a participação dos estudantes nos cursos. Os critérios
utilizados refletem a formação socioeconômica da família e, via de regra, estão relacionadas a
variáveis sócio-culturais (hierarquia das línguas) e econômico-financeiras (custo-benefício).
Esta constatação vai ao encontro das idéias de Calvet (1999, apud PRADO, 2004, p. 67),
quando o Autor argumenta que poucas línguas conferem mais valia no mercado lingüístico,
conseqüentemente, quanto mais Governo e famílias atribuem valor comercial a algumas,
maior é o número de falantes e maior é a sua importância política e econômica.
A busca de uma experiência pessoal pode estar associada a aspectos individuais –
mesmo por pouco tempo, se deslocar para outro país, perder os pontos de referência, enfrentar
problemas novos, experimentar situações que exigem independência, maturidade e
responsabilidade, sem a tutela da família - que representam desafios que podem elevar a autoestima, autoconfiança e a auto-aprendizagem dos jovens (SILVA; ROCHA, 2008;
CICCHELLI, 2008). No texto de Vincenzo Cicchelli (2008, p. 154) há o resgate do
pronunciamento de Guillaume – estudante francês que contabilizava quatro séjours
internacionais (Grã-Bretanha, Alemanha, Suécia e Polônia) e finalizava o mestrado.
“Guillaume parle alors d’une croissance de confiance en soi, d’un sentiment de supériorité à
l’égard de ses camarades restés en France, de son irritation à l’égard de jugements superficiels
émis à l’encontre des autres peuples”.
Tanto quanto les grands tours, o intercâmbio internacional funciona como uma
espécie de rito de passagem necessário para outras experiências que virão com a vida adulta e
as exigências de uma economia em ritmo de globalização: estágio internacional, programas de
expatriação e impatriação etc. A valorização da experiência é reforçada com a convergência
do discurso proferido por colegas, empresas que estagiam, literatura que lêem – jornais e
revistas de grande circulação, artigos e livros acadêmicos – à medida que todos reafirmam o
que Ianni (2005, p. 97) nomeia de intelectuais orgânicos do cosmopolitismo.
4. Escolha da Língua e do País de Acolhimento
Consoante ao que já foi tratado em partes anteriores do texto, o interesse dos
intercambistas está concentrado na aprendizagem do inglês. Quais são os dados que permitem
a inferência? Questionados sobre as razões que justificaram a escolha do país de destino
(Tabela n.5), ter o inglês como língua oficial é a primeira opção com média de 5,25 de um
total de 7,0. Coerentes com esta resposta, 91% dos respondentes escolheram países de língua
190 | P á g i n a
Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três
Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano
(Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858).
Guavira
no10
inglesa – entre os cinco destinos preferidos, quatro são países anglo-falantes. A Espanha foi o
quinto destino na escolha dos respondentes e o único a não ter a língua inglesa como oficial.
Curiosamente, 83,7% dos respondentes asseguram ter nível avançado de proficiência
em inglês e isso ajuda a entender a escolha por cursos de curta duração, realizados durante as
férias (45,9%). Na pesquisa realizada por Prado (2004, p. 69-70), a autora encontra situação
semelhante: apesar de terem freqüentado cursos de inglês no Brasil, os estudantes
justificavam o intercâmbio internacional realizado à determinação de aperfeiçoar o inglês. Por
que isso acontece? Para Elisabeth Murphy-Lejeune (2000), enquanto um séjour no estrangeiro
permite ao estudante a aprendizagem contextualizada da língua porque subordinada à prática
social que envolve contatos dinâmicos e comunicação em tempo real, a aprendizagem em
contexto escolar é limitada na medida em que o processo conduz o estudante a contatos
superficiais e pouco autênticos com a língua. Billaud (2007, p. 27) chama atenção para o fato
de aprender uma língua de forma vivenciada e contextualizada envolver não apenas questões
lingüísticas, mas também aspectos interculturais – “acquérir des savoirs, savoirs-faire et
savoirs-être sur la langue et la culture de l’Autre permet gérer la différence, de la considérer
comme acceptable et enchissante”.
Tabela n.5: Razões que motivaram a escolha do país de destino do intercâmbio
Razões
1
(%)
20.0
6.8
2
(%)
2.7
5.4
3
(%)
1.3
9.5
4
(%)
5.3
16.2
5
(%)
4.0
16.2
6
(%)
12.0
8.1
Ter como língua oficial o inglês
Boa infra-estrutura de acolhimento
Oferta de atividades compatíveis com
16.2
8.1
14.9
13.5
13.5
12.2
nível intelectual dos estudantes
Custos envolvidos
17.1
10.5
11.8
11.8
14.5
13.2
Instituições reconhecidas no mercado
15.1
12.3
17.8
11.0
8.2
15.1
de trabalho
Facilidades de obtenção de visto
27.4
12.3
6.8%
6.8%
11.0
15.1
Indicação de amigos
25.0
13.9
11.1
9.7
12.5
9.7
Estabilidade da moeda local
25.7
14.9
10.8
12.2
9.5
12.2
Possibilidade de compatibilizar estudo
33.3
11.1
8.3
12.5
4.2
12.5
e trabalho
Destino aprovado pelos pais
36.1
8.3
8.3
9.7
9.7
9.7
Indicação da agência
31.5
15.1
9.6
16.4
8.2
8.2
Proximidade geográfica com o Brasil
70.7
9.3
8.0
4.0
4.0
1.3
Fonte: Questionários aplicados via SurveyMonkey – Grupo Experimental (04/2009)
7
(%)
54.7
37.8
Rating
Average
21.6
4,23
21.1
4,2
20.5
4,12
20.5
18.1
14.9
3,89
3,72
3,61
18.1
3,53
18.1
11.0
2.7
3,5
3,23
1,76
5,25
5,05
5. Percepção dos Principais Resultados do Programa de Intercâmbio
Relacionando os objetivos que motivaram a realização do programa de intercâmbio
(Tabela n.4) com a avaliação dos resultados alcançados (Tabela n.6), observa-se que a
vivência pessoal ocupa lugar de destaque entre os respondentes: apesar de ter sido
reconhecida como o segundo objetivo buscado com a realização do intercâmbio internacional,
ela foi considerada o resultado mais significativo da experiência, uma vez que alcançou a
média de 6,48, de um total de 7,0. Aqui, certamente a magia de conhecer outro país, outra
cultura e, de algum modo, se auto-conhecer, são fatores que merecem destaque entre pessoas
tão jovens (69,7% dos respondentes têm idade que varia entre 17 e 27 anos) e que ainda
apresentam significativa dependência financeira e emocional vis-à-vis dos pais.
191 | P á g i n a
Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três
Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano
(Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858).
Guavira
no10
O principal objetivo – aperfeiçoar o conhecimento de uma segunda língua – obteve a
segunda melhor média de resultado, com 6,44 (Tabela n.6), também acima da média dos
objetivos iniciais (Tabela n.4). Os significados que complementam a experiência relacionada
a aspectos pessoais e culturais são as oportunidades de conhecer outro país e outra cultura,
ultrapassando um pouco a visão impressionista e estereotipada do turista, além de
desenvolver conhecimentos que possibilitem diálogos com sociedades cada vez mais diversas,
em termos culturais.
Tabela nº.6: Significado/ Resultados do programa de intercâmbio
Significado/ Resultados
1
2
3
4
5
6
Vivência pessoal
1.3
1.3
0.0
1.3
9.3
14.7
Aperfeiçoar uma segunda língua
1.3
4.0
1.3
0.0
6.7
9.3
Conhecer outra cultura
1.3
1.3
1.3
1.3
9.3
16.0
Conhecer outro país
1.3
1.3
2.6
2.6
10.5
11.8
Melhorar o currículo
2.7
5.3
2.7
4.0
10.7
21.3
Desenvolver competências
6.8
4.1
9.5
12.2
14.9
17.6
relacionadas à carreira profissional
Prospectar alternativas de pós21.6
17.6
9.5
16.2
12.2
9.5
graduação
Prospectar alternativa de estágio
16.9
19.7
16.9
12.7
12.7
7.0
internacional e remunerado
Fonte: Questionários aplicados via SurveyMonkey – Grupo Experimental (04/2009)
7
Rating
Average
72.0
77.3
69.3
69.7
53.3
6,48
6,44
6,41
6,34
5,92
35.1
5,18
13.5
3,62
14.1
3,62
Os aspectos relacionados não podem, no entanto, ser desconectados da própria
possibilidade de melhoria de habilidades profissionais, pois esse também é um resultado
desejado e percebido pelos respondentes, como consequência do desenvolvimento pessoal e
da habilidade multilinguística.
6. Intercâmbio Cultural e Empregabilidade
A relação entre intercâmbio e empregabilidade – já investigada por outros
pesquisadores (DOUEK; ZYLBERSTAJN, 2007; PRADO, 2004; MURPHY-LEJEUNE,
2000) – é reafirmada em mais essa oportunidade: 82,8% asseguram que o domínio de língua
estrangeira figura como um dos critérios de seleção adotados pelos empregadores (Tabela 7).
Os resultados da pesquisa de Murphy-Lejeune (2000), tendo como alvo estudantes da Suécia,
concluem que os empregadores preferem recrutar jovens que tiveram alguma experiência
internacional. Ao enumerar as justificativas apontadas pelos empregadores suecos – (a)
aperfeiçoar competências linguísticas; (b) desenvolver sensibilidade intercultural; (c) elevar a
capacidade de perceber o que ocorre sob diferentes ângulos; (d) melhorar a capacidade de
adaptação às mudanças; (e) responder positivamente à necessidade de mobilidade
internacional – se percebe curiosa proximidade com os aspectos salientados pelos
respondentes brasileiros, ao serem questionados sobre as exigências do empregador ao adotar
processos seletivos (Tabela 7).
Tabela n.7: Exigências do empregador ao fazer a contratação
Exigências
Domínio de língua estrangeira
Senso de responsabilidade
Capacidade de resolver problemas
Capacidade de iniciativa
Percentual (%)
82.8
67.2
57.8
54.7
192 | P á g i n a
Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três
Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano
(Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858).
Guavira
no10
Capacidade de se adaptar em ambientes interculturais e multiculturais
50.0
Capacidade de diagnosticar problemas
43.8
Autonomia pessoal
31.3
Outra.
4.7
Fonte: Questionários aplicados via SurveyMonkey – Grupo Experimental (04/2009)
Contudo, é impossível generalizar esta conclusão: ao divulgar os resultados de uma
pesquisa que fez uso de análise comparativa entre estudantes originários de três países (Itália,
França e Reino Unido), Ballatore e Blöss (2008) asseguram que enquanto para os italianos
uma experiência de estudo fora do país de origem influi não apenas sobre a formação
acadêmica, mas igualmente sobre as chances de inserção profissional; para os britânicos, um
séjour internacional exerce pouca influência sobre seus resultados acadêmicos e sobre suas
aspirações profissionais (BALLATORE; BLÖSS, 2008, p.29). Ou seja, a importância
conferida ao programa de intercâmbio internacional é proporcional à qualidade do ensino
percebida e às perspectivas de inserção profissional existentes no país de origem dos
estudantes.
Apesar de muito jovens, um pouco mais da metade (50,6%) ainda cursava a graduação
no momento em que o questionário foi aplicado, a situação profissional dos respondentes se
revela bastante promissora: 52,2% afirmam ter cargo efetivo em uma empresa; 22,2%
trabalham em negócio próprio ou familiar; 21,1% são estagiários, e apenas 6,7% não
trabalham. Entre aqueles que estão trabalhando, percebe-se que estão vinculados a
organizações bem-estruturadas: 41,2% trabalham em empresas multinacionais; 23,5% em
empresas nacionais; 23,5% em negócio próprio, e 11,8% em empresas nacionais com
atividades fora do país. Os sinais de êxito profissional também podem ser medidos pelo fato
de quase metade (42,9%) trabalhar há mais de dois anos na mesma organização. Os dados
corroboram a leitura que Prado (2004) faz da questão quando a autora associa a aquisição de
uma segunda língua à ideia de um futuro promissor no mercado de trabalho, assegurando ser
esse o principal objetivo dos pais ao decidirem pelo envio dos filhos para um período fora do
país. Isto reforça a ideia de que o consumo de produtos educacionais no exterior contribui
para a legitimação das desigualdades sociais, particularmente em um país ainda carente de
políticas de democratização do acesso à educação superior de qualidade.
Considerações finais
Apesar de a amostra ser predominantemente formada por jovens e apresentar clara
paridade entre garotos e garotas, todos já tinham participado de algum programa de
intercâmbio internacional e, para a maior parte deles, a experiência aconteceu durante a
graduação. A totalidade dos respondentes optou pela graduação em Administração, parte
expressiva esteve ou está vinculada a respeitadas instituições de educação superior, privadas,
localizadas na cidade de São Paulo. Coincidentemente, no momento em que respondeu ao
instrumento, a grande maioria estava efetivada em sólidas empresas nacionais e
multinacionais. Revelando que, independentemente do sexo, as experiências internacionais
acontecem cada vez mais cedo na vida de jovens oriundos de meios sociais favorecidos. Por
isso mesmo os pais têm condições de financiar os custos envolvidos e de influir na escolha de
alternativas capazes de ampliar as chances de os filhos ocuparem espaços profissionais
privilegiados, no concorrido mercado de trabalho. Afinal, as melhores oportunidades de
193 | P á g i n a
Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três
Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano
(Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858).
Guavira
no10
trabalho são limitadas e o administrador concorre com colegas oriundos de diversas áreas de
conhecimento: engenharia de produção, economia, contabilidade, psicologia, etc.
Apesar de a grande maioria ter renda própria, continua residindo com os pais,
fortalecendo uma tendência que se instalou recentemente entre as famílias brasileiras de renda
elevada. Possivelmente isso tenha alguma relação com o papel exercido pelos pais nas
decisões envolvidas com o planejamento do programa de intercâmbio: escolha do país de
destino, da instituição de acolhimento, do tipo e formato da atividade, da extensão do
programa de estudo, do tipo de alojamento, etc. Apesar de a grande maioria assegurar ter
nível avançado de proficiência da língua inglesa, prefere as escolas de línguas, cursos de
língua inglesa de curta duração, oferecidos no período de férias. Reforçando o conceito de
férias produtivas, ou seja, dissociada da ideia de repouso, descanso e relaxamento e associada
à realização de atividades úteis porque, de alguma forma, enriquecem o currículo.
Com a evolução dos meios de transporte e das tecnologias de informação, a circulação
de pessoas, mercadorias e capital forçou os membros de diversas culturas a conviverem e
partilharem espaços geográficos, econômicos e políticos. Com a multipolaridade das esferas
de poder, esse encontro de culturas não pode mais significar o silêncio de muitas e a
supremacia de poucas. Então emerge a necessidade de as sociedades multiculturais
inaugurarem efetivo diálogo intercultural. Neste contexto, o multilinguismo tem exercido
importância vital, na medida em que permite a comunicação entre diferentes e o crescimento
pela diferença. Contudo, o multilinguismo permanece limitado a poucos, uma vez que as
políticas educacionais ainda não conseguem criar as condições que favoreceriam seu pleno
desenvolvimento e isso requer o investimento privado das famílias que podem pagar pelo
consumo de bens culturais fora do país.
Sensíveis a essa questão, os jovens e suas respectivas famílias percebem a importância
que o multilinguismo exerce tanto no plano individual – ampliação do capital intelectual,
social e material – quanto no plano social, uma vez que as sociedades e as organizações
ganham contornos cada vez mais multiculturais. Isso explica o interesse que os estudantes ou
egressos do curso de Administração nutrem pela aprendizagem de línguas, particularmente a
língua inglesa, a ponto de representar o fator que determina a decisão de realizar o programa
de intercâmbio. Entre empregadores, famílias, egressos e estudantes do curso de
Administração há explícita convicção de que o aprendizado do inglês amplia ou ampliará os
conhecimentos, propicia ou propiciará o desenvolvimento de atitudes e de habilidades
profissionais socialmente valorizadas. E, por isso mesmo, tem o poder de ampliar as
perspectivas profissionais dos ex-intercambistas. Apesar de, historicamente, o aprendizado de
línguas estrangeiras fazer parte da cultura geral dos indivíduos, nesse caso, ele reforça a
hierarquia das línguas no mercado linguístico. Reforça também a hegemonia da língua
inglesa, a hierarquização escolar (desvalorização da aprendizagem de uma língua estrangeira
no país de origem do estudante e a valorização do aprendizado de uma língua estrangeira de
forma vivenciada, entre a comunidade de falantes). Além de reforçar as desigualdades sociais
decorrentes do uso de critérios de seleção cada vez mais excludentes, porque prestigiam
fatores socioeconômicos em detrimento de fatores meritocráticos. Parece que o intercâmbio
internacional de curta duração colabora mais para legitimar e perpetuar a desigualdade social
do que para formar pessoas capazes de conviver com a diversidade cultural.
Referências
AGUIAR, Andréa. Estratégias educativas de internacionalização: uma revisão da literatura
sociológica. Educação e Pesquisa, v.35, n.1, jan.abr. 2009, p.67-79.
194 | P á g i n a
Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três
Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano
(Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858).
Guavira
no10
ALMEIDA, Ana Maria F. Língua nacional, competência escolar e posição social. In:
Almeida, Ana Maria F. et alli. Circulação internacional e formação intelectual das elites
brasileiras. Campinas: Editora Unicamp, 2004, p.29-46.
BALLATORE, Magali; BLÖSS, Thierry. Le sens caché de la mobilité des étudiants Erasmus.
IN: Dervin, Fred; Byram, Michael (dir.). Échanges et mobilités académiques: quel bilan?
Paris: L’Harmattan, 2008.
BAUMAN, Zygmunt. O mal-estar da pós-modernidade. Rio de Janeiro: Record, 1998.
BILLAUD, Sandrine. Mises au point sur les mobilités européenes. IN: De, Fred; SuomelaSalmi, Eija (orgs.) Mobilité académique – perspectives croisées. Turku: Université de
Turku/Département d’Études Françaises, 2007.
BOUTINET, Jean-Pierre. L’anthropologie du projet. 2 ed. Paris: PUF, 1993.
CHARLE, Chistophe; VERGER, Jacques. Hitória das universidades. São Paulo: Editora da
UNESP, 1996.
CHARLE, Christophe et al. Ensino superior: o momento crítico. In: Educação & Sociedade,
Campinas, v.25, n.88, Especial, out.2004, p.961-975.
CICCHELLI, Vincenzo. Connaître les autres pour mieux se connaître: les séjours Erasmus,
une Bildung contemporaine. In: Dervin, Fred; Byram, Michael. Échanges et mobilités
académiques: quel bilan? Paris: L’Harmattan, 2008, p.139-162.
DERVIN, Fred; BYRAM, Michel. Présentation da obra dirigida por Dervin, Fred; Byram,
Michael (dir.). Échanges et mobilités académiques: quel bilan? Paris: L’Harmattan, 2008.
DOUEK, Alexandre; ZYLBERSTAJN, Alexandre. Intercâmbio: influência na
empregabilidade do administrador. São Paulo: Monografia de Graduação em Administração
de Empresas, na Escola Superior de Propaganda e Marketing, 2007.
DURKHEIM, Émile. Le socialisme: sa définition, ses débuts, la doctrine saint-simonienne,
1928 (édition électronique, 2002).
GUADILLA, Carmen García. Complejidades de la globalización e internacionalización de la
educación superior: interrogantes para a América Latina. Cuadernos del CENDES, ano 22,
n.58, Enero/Abril, 2005.
IANNI, Octávio. A sociedade global. 12 ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005.
HARFI, Mohamed. Attractivité pour les étudiants étragers et potentiel de la recherche en
France. Le quatre pages, n.2, 15/07/2004.
195 | P á g i n a
Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três
Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano
(Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858).
Guavira
no10
HARFI, Mohamed; MATHIEU, Claude. Mobilité internationale et attractivité des étudiants et
des chercheurs. Centre d’Analyse Stratégique: Horizons Stratégiques, n.1, juillet 2006.
KNIGHT, Jane. Modèle d’internationalisation ou comment faire face aux réalités et enjeux
nouveaux. In: Ocde / Banque Mondiale. L’enseignement supérieur en Amérique latine: la
dimesion internationale. França: OCDE / Banque Mondiale, 2005.
LARSEN, Kurt; VINCENT-LANCRIN, Stéphan. Le commerce international de services
d’éducation: Est-il bon? Est-il méchant? Politiques et gestion de l’enseignement supérieur. 14
(3), déc.2002.
LAVAL, Christian; WEBER, Louis. Le nouvel ordre éducatif mondial – OMC, Baque
Mondial, OCDE, Comission Européenne. Paris: Nouveaux Regards; Syllepse, 2002.
LIMA, Manolita Correia; Fábio Betioli Contel. Fases e motivações da internacionalização da
educação superior brasileira. Grenoble: Anais do 5º Congresso do Instituto Franco-Brasileiro
de Administração de Empresas (IFBAE), maio/2009.
LIMA, Manolita Correia et al. Vamos todos para Passárgada? Rio de Janeiro: Anais do
XXXII Enanpad, setembro/2008.
MUÑOZ, Marie-Claude. Políticas francesas de acolhimento dos estudantes estrangeiros
(1970-2002) In: Almeida, Ana Maria F. Almeida et al. Circulação internacional e formação
intelectual das elites brasileira. Campinas: Editora da Unicamp, 2004, p.188-212.
MURPHY-LEJEUNE, Elisabeth. Mobilité internationale et adaptation interculturelle: les
étudiants voyageurs européens. In Zarate, Geneviève (dir.). Mobilité international et
formation – dimension culturelles et enjeu professionnels. Recherche et Frmation. n.33, 2000.
NOGUEIRA, Maria Alice. Viagens de estudo ao exterior: as experiências de filhos de
empresários. In: Almeida, Ana Maria F. et alli. Circulação internacional e formação
intelectual das elites brasileiras. Campinas: Editora Unicamp, 2004, p.47-63.
NOGUEIRA, Maria Alice et al. Fronteiras desafiadas: a internacionalização das experiências
escolares. Educação & Sociedade, vol.29, n.103, maio/agosto, 2008, p.355-376.
PORTO, Cláudio; RÉGNIER, Karla. O ensino superior no mundo e no Brasil –
condicionantes, tendências e cenários para o horizonte 2003-2025. Brasília: MACROPLAN
Perspectiva & Estratégia, 2003.
PRADO, Ceres Leite. Um aspecto do estudo de línguas estrangeiras no Brasil: os
intercâmbios. In: Almeida, Ana Maria F. et alli. Circulação internacional e formação
intelectual das elites brasileiras. Campinas: Editora Unicamp, 2004, p.64-84.
RIDDER-SYMOENS, Hilde. “A mobilidade” In: Rüegg, Walter (coord.geral da edição). Uma
história da universidade na Europa. As universidades na Idade Média (vol.I). Lisboa:
Imprensa Nacional-Casa da Moeda. 1996, p.279-303.
196 | P á g i n a
Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três
Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano
(Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858).
Guavira
no10
ROMANINI, Carolina. Daqui eu não saio. Veja, ed. 2108, 15/04/2009, p. 23.
SCOCUGLIA, Afonso Celso. Globalizações, política educacional e pedagogia contrahegemônica. In: Teodoro, António. Tempos e andamentos nas políticas de educação. Brasília:
Líber Livro, 2008, p.39-62.
SENNETT, Richard. A corrosão do caráter. Rio de Janeiro: Record, 1999.
SILVA, Rafael Caldas Ferreira da; ROCHA, Sandra Regina da. Brincado de trabalhar,
aprendendo com a vivência: o desenvolvimento de competências a partir de uma experiência
vivida. Internext – Revista Eletrônica de Negócios Internacionais, São Paulo, v.3, n.1, p.136161, jan/jun. 2008.
TEODORO, António. Globalização e educação: políticas educacionais e novos modos de
governação. São Paulo: Cortez, 2003.
UNESCO. Recueil des donneés mondiales sur l’éducation: statistiques comparées sur
l’éducation dans le monde, Montreal: Unesco, 2008.
WAGNER, Anne-Catherine. La place du voyage dans la formation des elites. Paris: Actes de
la Recherche en Sciences Sociales, n.170, 2007, p.58-65.
_____. Les nouvelles elites de la mondialisation – une immigration dorée en France. Paris:
PUF,
1998.
197 | P á g i n a
Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três
Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano
(Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858).
Guavira
no10
ENSINO DE GRAMÁTICA VERSUS ENSINO DE LÍNGUA
Marlon Leal Rodrigues (UEMS/UNICAMP)73
A tradição gramatical, base da gramática escolar até hoje,
tem procurado adaptar os avanços da Lingüística depois de
Saussure, à soma de vinte e três séculos de tradição e
contradições, ou seja, tem procurado acumular às
contradições do passado às contradições da atualidade. É
preciso que se diga que há tantas gramáticas tradicionais
quantos gramáticos e manuais. O principal problema é com
ao caráter normativo e elitista da Gramática que, desde a
sua origem, procurou estabelecer as regras, consideradas as
melhores, para a língua escrita, com base no uso que dela
faziam os “grandes escritores” (Silvia Cardoso - A questão
da referência, 1998, p. 23).
RESUMO: A proposta é abordar alguns aspectos polêmicos dos discursos sobre ensino gramatical versus ensino
de língua. Algumas questões norteiam este trabalho: o que é ensino? E o que é gramática? Considerando a
aparente simplicidade e obviedade das duas perguntas, o ensino de língua é um lugar onde se defrontam
gramáticos e linguistas, cada qual com suas posições ideológicas, às vezes discussões “apaixonadas”. Assim, os
sentidos das concepções de gramática (ARNAULD; LANCELOT) enquanto língua inscreve-se na memória
discursiva com certa tradição, sentido que disputa com o da Lingüística Contemporânea fundada por Saussure
(XIX). É enquanto ciência da língua/linguagem que se opõe a cinco séculos de discursividade em que o estudo
da língua é significado como estudo de gramática. Este sentido permeia não apenas o discurso da prática escolar
e o do senso comum sobre ensino de língua, mas de forma significativa também o espaço acadêmico. Assim, o
objetivo é abordar algumas questões desse “duelo” de significações e tensões em torno dos sentidos.
Palavras-Chave: discurso; língua; gramática; ensino.
ABSTRACT: The idea is to discuss some controversial aspects of the discourses on education versus teaching
grammar of language. Some questions guide this work: what is education? And what is grammar? Given the
apparent simplicity and obviousness of the two questions, the teaching of language is a place where they face
grammarians and linguists, each with their ideological positions, sometimes passionate discussions. Thus, the
meanings of the concepts of grammar (ARNAULD; LANCELOT) as a language is part of the discursive memory
to one tradition, meaning that the dispute with the Contemporary Linguistics founded by Saussure (XIX). I t is a
science of language / language that precludes the five centuries of discourse where language study is meant as a
study of grammar. This sense pervades not only the discourse of school practice and common sense about
language teaching, but also significantly the academic space. The objective is to address some issues that duel
meanings and tensions surrounding the senses.
Key words: speech; language; grammar; teaching.
Introdução
A proposta é abordar alguns aspectos polêmicos dos “discursos” (ORLANDI, 1999,
p. 71) sobre o ensino gramatical versus ensino de língua. As reflexões apontam para
73
Coordenador do Grupo de Estudos NEAD (Núcleo de Estudos de Análise do Discurso), docente de
Linguística no curso de Letras da Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul, campus de Campo Grande, e
pesquisador colaborador da UNICAMP. Doutor em Linguística pela UNICAMP/IEL.
198 | P á g i n a
Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três
Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano
(Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858).
Guavira
no10
concepções e práticas divergentes. Não tenho como objetivo discutir nada de novo ou propor
novas questões a esta “discursividade” (PÊCHEUX, 2002, p. 28), apenas revisitá-las. Dessa
forma, três discursos específicos que norteiam este trabalho: o que é ensino? O que é
gramática? O que é língua? Considerando os aparentes dos “sentidos” (PÊCHEUX, 1997, p.
160) das três perguntas, pode-se considerar que o ensino de língua é um lugar onde se
defrontam os discursos dos gramáticos (o peso do sentido da tradição) e os discursos dos
linguistas (o efeito do novo na demanda de sentidos desestabilizadores) – a partir de “práticas
discursivas” (PÊCHEUX, 1997) declaradas ou de práticas implícitas -, cada qual com suas
“posições sujeito” (idem), às vezes, tensa em torno do sentido.
É importante ressaltar que o sentido de concepção de gramática – de língua (considerando como marco discursivo a gramática de Arnauld e Lancelot do século XVI),
inscreve-se na “memória discursiva” (PÊCHEUX, 1997) com certa tradição. O discurso de
tradição possui um “efeito de sentido” (idem) que confronta com o sentido da Lingüística
contemporânea fundada por Ferdinand de Saussure (início do século XIX). A Linguística
como ciência da língua/linguagem e ciência piloto das humanidades se opõe a cinco séculos
de discursividade em que o estudo da língua foi e é significado como estudo da gramática.
Para Arnauld e Lancelot (1992, p. 03), “a gramática é a arte de falar. Falar é
explicitar seus pensamentos por meio de signos que os homens inventam para esse fim” e “os
que apreciam obras de raciocínio, sem dúvida encontrarão nele alguma coisa que poderá
satisfazê-los e não menosprezarão seu assunto, porque a palavra é uma grande vantagem para
o homem” (ARNAULD e LANCELOT, 1992, p. 05).
É possível destacar três “formações discursivas” (PÊCHEUX, 1997, p. 161) sobre a
gramática. A primeira representada pelo seguinte enunciado – a gramática é a arte de falar –
se refere ao domínio gramatical que não é necessariamente uma formação discursiva de
normas e regras sistêmicas estratificadas social e historicamente, mas sim um espaço onde o
domínio dela significa habilidades artísticas inscritas nos discursos sobre estética e suas
práticas. A gramática nesse sentido se inscreve na formação discursiva artística marcada pelo
“processo de subjetivação” (ORLANDI, 2001, p. 100) o que de certa forma explicaria o não
domínio por parte dos sujeitos em suas posições ideológicas de forma geral. Considerando
que um dos sentidos de arte está relacionado com o discurso de “dom, originalidade,
individualidade, singularidade e dádiva de Deus” etc. dos sujeitos e não como “processo de
subjetivação” (ORLANDI, 2001) inscrito socialmente nas culturas e por isso marcadas pela
historicidade.
A segunda - falar é explicitar seus pensamentos por meio de signos que os homens
inventam para esse fim – o sentido diz respeito à função da gramática como língua na sua
relação com o pensamento. Também diz respeito à função de instrumentalidades e à fisiologia
para servir de canal, meio e suporte ao pensamento para se materializar. Assim criando
condições para os homens estabelecer a comunicação entre si. O sentido de inventaram é
significativo na medida em que obedece a certa lógica da necessidade, projeto lógico inscrito
no discurso de necessidade, mecanicista e instrumental. Como o sujeito em sua trajetória
histórica inventou objetos e coisas para atender às suas necessidades, ele também inventou a
língua porque sentiu a necessidade de se comunicar de outra forma. No entanto, a linguagem é
constitutiva do sujeito. Não existiu primeiro o sujeito para depois a linguagem ou vice-versa.
A terceira formação discursiva representada pelo enunciado - os que apreciam obras
de raciocínio – representa o discurso do tratado filosófico, da razão e da lógica que dá suporte
à concepção de que há uma razão e uma lógica naturais para o funcionamento do mundo. Há
algo que rege a existência das coisas e cabe ao homem compreender essa dinâmica e dela
199 | P á g i n a
Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três
Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano
(Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858).
Guavira
no10
abstrair sua razão enquanto atividade do sujeito de racionar e/ou pensar logicamente a partir
da língua.
O sentido da formação discursiva pertence à tradição grega, quando da falência do
mito, o “homem” grego deslocou o seu olhar para compreender o funcionamento do seu
universo e descobriu regularidades, formas, sistemas, funcionamentos, regras para pensar o
seu estar no mundo, ou seja, sua posição sujeito deixou de ter o mito como referência. A este
novo modo de se relacionar com o seu universo, o homem o nomeou discursivamente de
razão e seu funcionamento de lógica, assim, razão e lógica pertencem ao domínio do
pensamento. Já o pensamento se constitui a partir de certa capacidade do homem de olhar e
apreender e significar o mundo.
O sentido de gramática como arte e como instrumento é significado como objeto do
mundo que possui uma razão de ser - explicar o pensamento dos homens - e uma lógica em
forma de leis para explicitar o seu funcionamento e sua praticidade. De alguma forma, esses
sentidos tensionam as práticas dos sujeitos na relação com a língua/linguagem.
Assim, de acordo com Cardoso (1998, p. 11), os autores de Port-Royal partem
da hipótese de que a natureza da linguagem é racional, porque os homens pensam
conforme as mesmas leis e que a linguagem expressa esse pensamento, Port-Royal
nos legou uma gramática que ao mesmo tempo consolida a tradição gramatical que se
construiu desde Platão e se fundamenta no que havia de mais moderno na época: o
cartesianismo filosófico do século XVII.
É possível afirmar que este é um dos aspectos do legado discursivo de Arnauld e
Lancelot para conceber a língua, legado que ainda produz sentidos nas práticas
contemporâneas quer em sala de aula, quer nos cursos de Letras. É possível constatar tal
embate entre o discurso da gramática e o da lingüística na fala Rajagopalan (2003, p. 11)
creio que há uma necessidade urgente de aprender a lidar com os alunos de hoje, que
tiveram uma formação diferente da nossa. Não estou dizendo com isso que devemos
voltar a ensinar gramática tradicional; longe disso, estou dizendo que precisamos
urgentemente pensar em novas estratégias de abordar a lingüística, já que a velha
tática de apresentar a lingüística moderna discutindo as limitações da gramática
tradicional não funciona mais.
Já Saussure não apenas veio desestabilizar o sentido de língua enquanto gramática
como também suas concepções foram importantes para as disciplinas de humanidades naquele
momento histórico, pois as humanidades ainda não possuíam o estatuto de ciência. Elas
procuravam se constituir enquanto ciência ao lado das áreas biológicas e exatas. O mestre
genebrino reconhece a contribuição dos que o antecederam, no entanto, não se furta de tecer
críticas em relação às concepções e práticas sobre o estudo da língua até então. Não é sem
propósito que suas considerações abarcam inclusive outras disciplinas como a etnologia, a
psicologia, a história, a fisiologia, a antropologia, a sociologia.
Sua contribuição notável está, entre outras, na definição e descrição do objeto de
estudo e na metodologia de análise como condição para qualquer disciplina se constituir
enquanto campo autônomo do conhecimento. No entanto, o ponto central de suas teses, a meu
ver, está na teoria do valor. A discursividade saussuriana depreendeu seu efeito de sentido
para além do campo da língua/linguagem ao estabelecer o paradigma da disciplina autônoma.
Efeito esse que ainda não cessou a sua discursividade.
Para Cardoso (1999, p. 14)
200 | P á g i n a
Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três
Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano
(Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858).
Guavira
no10
o rompimento de Saussure com Port-Royal é sobretudo com o que havia de racional e
lógico nessa concepção de linguagem enquanto representação, com a crença de que
através de uma gramática universal é possível definir “a marcha necessária e natural
do espírito”. É o rompimento com uma concepção de referência, de natureza reflexiva,
que não é capaz de atribuir ao objeto do pensamento um traço específico capaz de
torná-lo distinto do próprio pensamento, rompimento que reduz o que pensamos, o
objeto da linguagem, naquilo em que pensamos.
Assim, para “compreender” alguns aspectos das posições discursivas e das
discursividades que as constituem, será feita uma brevidade histórica como ponto de partida
para alguns dos sentidos de ensino de gramática.
Sentidos: ensino e gramática
A questão do que venha ser ensino ou o seu sentido é uma questão tensa na “ordem
do discurso” (ORLANDI, 1999) uma vez que de acordo com a concepção de ensino, a prática
de ensinar implica em tomadas de metodologia distintas. Se considerar que ensino significa
como objeto “transmissão de conhecimento sistemático, treinamento, instrução, lição e
metodologia” e ensinar significa como prática “dar aula de, ministrar conhecimento de,
indicar, ser fonte de saber ou de conhecimento, treinar” (BORBA, 2004: 503). Esses sentidos
embora dicionarizados vão depreender seus efeitos de forma diversa de acordo com a
formação discursiva em que são materializados, por exemplo, se considerarmos ensino de
línguas, ensino de matemática, ensino em colégio militar, ensino de escola de sistema de
“apostila.”
É importante ressaltar que o ensino enquanto objeto do discurso e ensinar como
prática são construções históricas e não se deixar apreender com tanta facilidade nem o seu
objeto e a sua prática. Assim, no rastro histórico, é possível de forma sintética comentar que
nos povos antigos, o mito e as lendas organizavam o mundo, os anciões eram os portadores e
guardiões do conhecimento e dos segredos da comunidade, e eles eram responsáveis pela
prática de transmitir, ensinar e orientar aos mais jovens. Com o crescimento das comunidades,
criou a necessidade de registrar não apenas os segredos e conhecimentos, mas também a
própria história da comunidade, de uma forma ou de outra, sempre estavam próximos de
outros.
Com o desenvolvimento, tanto o objeto do ensino quanto a prática de ensinar foi
gradativamente significando de forma distinta. O objeto e a prática ficaram restritos de acordo
com a complexidade das comunidades, sendo que reis, nobres, religiosos e “poucos
apadrinhados” ou escolhidos tinham acesso ao conhecimento.
Na Grécia antiga, o ensino acontecia nos jardins da academia ao ar livre, o sistema
era de internato e de acesso muito restrito, como a de Aristóteles. A exceção foi a dos sofistas
que propunham uma educação popular, curiosamente o espaço físico dessa prática discursiva
acontecia nos pórticos das cidades. Eles ensinavam o uso da argumentação e cobravam pelo
trabalho, razão pela qual foram perseguidos. Popularizar o conhecimento era uma heresia.
Durante muito tempo, ainda, foram considerados hereges e filósofos menores.
Os romanos se utilizaram das escolas como objeto de dominação, a cada povo ou
localidade conquistada, construíam escolas, uma vez que para a comunidade participar do
comércio, órgãos públicos, se alistar nas tropas romanas era necessário possuir um certo
domínio da língua latina.
201 | P á g i n a
Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três
Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano
(Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858).
Guavira
no10
Já no final do Império Romano e início da Idade Média, Santo Agostinho reclama
das fugas dos alunos no final do mês quando tinham que pagar pelas aulas. Com o fim o
Império, o ensino ficou bem mais restrito, uma vez que só havia escolas praticamente nos
conventos e mosteiros.
Com o Cisma Católico, os protestantes estimulavam o conhecimento, havia aulas
nas praças públicas uma vez que todo crente deveria ter acesso direto à palavra de Deus.
Nesse sentido, a motivação do ensino público foi religiosa.
Com o fim da Idade Média, no início do Iluminismo - primado da razão -, o sentido
de ensino deixou de ser para poucos privilegiados e passou a ser para todos como condição de
libertação. Com o advento do capitalismo, início dos tempos modernos, o ensino se inscreveu
discursivamente como fonte de libertação, de politização, como uma forma diferenciada de
ver o mundo e agir sobre ele.
Contemporaneamente o ensino e o que ensinar se constitui de elementos necessários,
um imperativo para o sujeito “interagir” na sociedade em seus mais diversos segmentos e para
se constituir enquanto “cidadão”. O ensino passou a significar direito de todos não por uma
preocupação social, mas sim porque o sistema capitalista, no seu modo de produção e
reprodução das forças de trabalho, necessita de mão-de-obra qualificada.
Já o termo gramática, com o avanço teórico da linguística, passa a significar
“conjunto de regras sistemáticas que governam o funcionamento de uma língua” (BORBA,
2004, p. 688) em contraposição do que significou ser o estudo da própria língua em Arnauld e
Lancelot. É importante ressaltar que foi também uma construção histórica e lenta.
Acrescentaria: funcionamento de uma língua enquanto variedade de prestígio social.
Desde os povos mais antigos, a língua/linguagem foi objeto de curiosidade e
tentativa de compreensão. Por motivações religiosas, os Hindus magistralmente deram os
primeiros passos para o estudo e compreensão da língua. Perceberam que a totalidade da fala
concretamente realizada ou enunciada poderia ser fragmentada em sintagmas, palavras e em
sons distintos para em seguida processarem a categorização e as relações paradigmáticas e
sintagmáticas. Elegeram a sua variante como norma padrão e as demais foram significadas
como forma corrupta da língua. Inicia-se o registro e a prática do preconceito lingüístico. O
processo de fragmentação foi a única forma que encontraram para estudar a língua ou “dar
entrada” nos estudos lingüísticos. Ainda hoje para se descrever qualquer língua que não tenha
a escrita, os procedimentos não variam muito. A esta forma foi dado o nome de gramática, no
sentido de código de regras de uma determinada língua de uma determinada variante.
Com o fim do mito grego, os estudos da língua/linguagem além de resultar em
estudos contemplativos, os gregos descobriram diversas categorias: Platão pensou o discurso
enquanto logus, entidade que revelaria a relação entre agentes e ação. Aristóteles por sua vez
descobriu as categorias de artigo, pronome e categorias gerais de verbo e flexão nominal,
além das partes dos discursos e a elaboração de um tratado de argumentação (Arte Poética e
Arte Retórica). Os estóicos investigaram também as partes dos discursos e estudaram os
verbos, as conjunções e o gênero. Estas descobertas em seu conjunto já pronunciavam a
libertação da gramática do âmbito da filosofia (RODRIGUES, 2004).
Com os romanos, em destaque Dionísio da Trácia e Apolônio, a gramática ganhou
relativa independência da filosofia com a reflexão sobre a sintaxe, partindo das partes
menores até o discurso. Prisciano se notabilizou pela descrição morfológica, descobriu oito
acidentes ou categorias, entre elas a de gênero e a de grau. Varrão foi o primeiro gramático
latino, preocupou-se com a etimologia, aspectos regulares e irregulares da linguagem,
identificou as classes do nome, verbo, particípio, advérbio e conjunção.
202 | P á g i n a
Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três
Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano
(Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858).
Guavira
no10
Já na Idade Média, São Tomaz de Aquino estudou as classes gramaticais, “retoma
vigorosamente a doutrina aristotélica e prisciana que propiciaram o estudo das classes e a
noção de acidente” (RODRIGUES, 2004, p. 54). Arnauld e Lancelot (século XVII), reflete,
sistematiza, organiza as categorias dando à gramática uma unidade e uma concepção da qual a
contemporaneidade é herdeira.
Ainda de acordo com Rodrigues (2004, p. 53):
os estóicos, por sua vez, no afã de descreverem a simetria entre a estrutura do
pensamento e da linguagem, terminaram por identificar algumas partes do discurso,
com o verbo, a conjunção e o artigo. Se a contribuição de Aristóteles foi a de
descrever a flexão nominal, os estóicos, em contrapartida, reconheceram a existência
de três gêneros: o masculino, o feminino e o neutro, este último, que rigorosamente
significa “nem um, nem outro” (oudétorom).
A disciplina gramatical de criação helenística tinha por finalidade cultivar e sentir
aquilo que o espírito havia criado e elaborado. Ela ganhou relativa independência com
Dionísio da Trácia e com Apolônio. A gramática em sua caminhada teve a sintaxe
como ponto de reflexão em Apolônio. Ele encadeou as unidades menores até as
maiores de forma hierarquizada como partes do discurso. (...) Varrão, o primeiro
gramático latino, preocupou-se com as questões etimológicas e aos aspectos regulares
e irregulares da linguagem.
Recentemente, Barbosa (1871) de influência iluminista concebe a língua como
instrumento analítico do pensamento. Foi muito complexo em seu legado, motivo pelo qual
não se deixou discípulos. No mesmo período, João Ribeiro e Júlio Ribeiro dedicaram seus
estudos às palavras, assim reconheceram a disciplina lexicologia (RODRIGUES, 2004).
Meados do século passado, por pedido do Governo Federal, a Academia Brasileira
de Letras (Antenor Nascente, Clóvis Monteiro, Cândido Jucá (filho), Celso Cunha, Rocha
Lima) elaborou a primeira gramática de língua portuguesa no Brasil, deu-se então o projeto de
elaboração da Norma Gramatical Brasileira (NGB, 13/8/52). Posteriormente foi revisada em
1971. As definições e conceituação do Português Brasileiro desde o início do projeto não foi
pacífica, de acordo com Bidermam (1978), vigorou muito mais o aspecto político sobre o
científico nas decisões. Em janeiro de 2009 o projeto de Acordo Ortográfico entre os países
que falam a Língua Portuguesa foi assinado.
Assim, as considerações sobre ensino e a prática de ensinar são construções
históricas para compreender alguns dos aspectos da disputa entre gramáticos e linguistas.
Ensino de gramática
O papel da escola é ensinar a língua padrão (POSSENTI, 2000) a partir da norma
que o aluno já conhece ou traz de casa sem estigmatizá-la, no entanto, se o discurso sobre o
ensino tanto quanto o que ensinar é revestido de polêmica, a situação se complica quando se
pensa no sentido de gramática enquanto língua. É importante considerar que o sentido de
gramática não recobre o sentido de língua enquanto o contrário é possível de se afirmar, pois
o sentido de gramática está filiado à tradição de uma camada social de prestígio que sempre
teve acesso ao conhecimento o que se define como norma padrão é uma construção histórica
de uma determinada camada social que impõe sua norma como “verdadeira” ao estigmatizar
as demais. É a política lingüística de quem detém uma posição social privilegiada
historicamente.
203 | P á g i n a
Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três
Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano
(Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858).
Guavira
no10
Pode-se considerar que há um sentido sobre o que é ensinar gramática e isto possui o
mesmo sentido de ensinar língua, uma vez que a gramática é significada como língua. O que
os lingüistas denominam de língua é algo teórico e abstrato. Nesse sentido o ensino de
gramática é significado como ensino de língua. O efeito do sentido de gramática procura
recobrir o sentido de língua, assim, o discurso de resistência, considerando certa tradição de
“prática discursiva” (PÊCHEUX, 1997) sobre o ensino de regras simples sedimenta o sentido
de língua em detrimento do sentido de fatos lingüísticos.
A prática discursiva sobre o ensino de regras encontra seu espaço de significação
nos livros didáticos em meados dos anos 50 e vem se consolidando, mesmo reconhecendo que
há uma certa depuração ou “higienização pedagógica” (PÊCHEUX, 2002) do conteúdo
gramatical em decorrência das diversas teorias e áreas do conhecimento (sociolinguística,
semântica, pragmática, fonética e fonologia, neurolinguística, psicolinguística, linguística
textual, análise da conversação, análise do discurso) que de uma forma ou de outra possuem
algo para dizer diante do fracasso de ensinar língua materna. Há uma discursividade curiosa
sobre este ponto. Alguns discursos procuravam justificar os erros de forma pontual, de forma
geral e esparsa, nos corredores das escolas circularam e circulam alguns discursos, tais como,
o discurso de culpa pela falta de um material unificador, então surgiram os livros didáticos
que no primeiro momento o aluno tinha que comprá-lo e nos anos oitenta o Governo Federal
passou a distribuir para todas as escolas públicas. Esperava-se que com um livro didático
haveria um aprendizado significativo. Não houve.
O outro discurso cujo sentido se constitui pela culpa, aborda sobre a falta de
metodologia e didática, nos anos setenta e oitenta, a proposta de marcar “xizinho” impregnou
os livros e apostilas. Também não era o caso, não deu certo. Se não era a falta de livro
didático e de metodologia, “entrou em cena” o discurso da culpabilidade do aluno, foi
“mártir” por um bom tempo. No entanto, viu-se também que se poderia ver o problema por
um outro olhar discursivo, foi a vez do professor ser “malhado”. Em “socorro” aos
professores, os governos municipais e estaduais implementaram políticas de capacitações,
semanas pedagógicas. Nas universidades e faculdades as especializações foram oferecidas e
programas especiais de capacitação à distância.
Esse contradiscurso, muito embora equivocado por não abordar alguns dos sentidos
significativos, ainda não foi o insuficiente. Acontece que a cada período de propostas e de
tentativas, novos desafios foram colocados para a escola.
O Governo Federal desenvolveu algumas “políticas de apoio” ao professor com
enviando livros para as bibliotecas, elaborou parâmetros curriculares nacionais, diretrizes
curriculares para o ensino médio e fundamental. Comprou também mimeógrafo, videocassete,
televisão e mais recentemente implantando laboratórios de informática. Podemos dizer que o
discurso de crise ainda está longe do fim.
Nos anos oitenta, a discursividade sobre os discursos de ensino e de ensino de língua
materna foram significados por uma reviravolta sobre o que é ensinar e o que é
necessariamente ensinar língua materna. Professores como Geraldi (1993; 2002), Possenti
(2000) e outros desenvolveram reflexões ao analisar as práticas de ensino de língua materna.
No deslocamento de sentido, ao invés de elaborar propostas outras, foram primeiramente
analisar as práticas de até então, e nesse sentido, como resultado de reflexões, o papel da
escola passa a ser o de ensinar a norma padrão, sem estigmatizar as demais normas. Assim, a
aula de ensino de língua passa a privilegiar as aulas de leitura, produção de texto, estudo dos
fatos lingüísticos como trabalho na/com a língua/linguagem.
A gramática sofre o deslocamento de sentido e deixa de significar a própria língua.
O ensino passa a ser uma construção interativa e não mais uma forma de transmissão pura de
204 | P á g i n a
Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três
Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano
(Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858).
Guavira
no10
conhecimento no formato de regras. No entanto, essa nova prática discursiva encontra
resistência para estabilizar seus sentidos enquanto concepção de ensino de língua materna. Há
nas aulas de gramática uma evidência empírica sobre o fracasso; sobre o método do “certo” e
do “errado”, o ensino de regras e exceções.
Normalmente, o olhar do professor se volta para o que o aluno não “acertou” em
termos de norma padrão e ignora que o suposto “erro” pertence à norma coloquial ou
variantes lingüísticas que o aluno possui de seu ambiente familiar e que é uma construção
social, de acordo com Possenti (s/d, p. 09) há “uma gramática de erro”. Ignora,
principalmente, que o suposto “erro” possui uma sistematicidade e regras que permitem sua
materialização discursiva. Podemos considerar de alguma forma que é um tipo de
reivindicação identitária e/ou “identificação” (ORLANDI, 2001) da norma coloquial e das
variantes linguísticas sobre a escola que ainda não a compreende.
É possível elencar algumas posições discursivas do senso comum sobre o ensino de
língua: a Língua Portuguesa é difícil; na teoria é uma coisa, na prática é outra; linguística é
difícil mesmo; os pais pedem que se ensinem gramática etc. No entanto, o contradiscurso de
que todas as línguas possuem o mesmo grau de “dificuldade” para o falante nativo, que a
teoria é constitutiva da prática e a linguística como qualquer área do conhecimento, apresenta
certo de grau de abstração. Mesmo com a discursividade de que todas as línguas são
históricas, multiformes, transformam-se no tempo e no espaço. As línguas são suficientes para
os sujeitos em sua época, elas atendem às necessidades dos grupos (profissão, sexo, etnia,
classe social, espaço geográfico, cultura). A língua é, pois, um sistema semi-autônomo em
relação ao sujeito, sistema semi-aberto em relação a si mesma, realiza-se na interação social,
realiza-se no “fluxo da linguagem” (BAKHTIN, 2003); sabemos mais regras do que
pensamos.
Nesse sentido, ensinar língua materna ao aluno se constitui em um trabalho de ler
diversos gêneros discursivos e textuais, pois, um dos objetivos é tornar o aluno proficiente
(texto científico, literário, jornalístico, dissertação, narração). Outro objetivo do ensino de
língua materna é escrever (diversos gêneros), trabalho na/com a linguagem. Isto implica uma
prática discursiva de levar o aluno a “pesquisar” sua própria língua, observar oralidade e
escrita, elaborar hipóteses sobre as normas sociais de uso, refletir sobre as formas em
“conflito”. É importante ressaltar que a língua sempre é suficiente para as práticas de
linguagem e para a comunidade dos sujeitos em questão.
Esse contra-discurso vem questionar a norma padrão como verdade absoluta em
detrimento das outras. O gramático Evanildo Bechara74 (2002), um dos que estão mais
próximos dos estudos lingüísticos, usa a metáfora do talher para explicar o lugar da gramática
no ensino da língua: “para cada tipo de refeição devemos utilizar um talher específico, ao
passo que devemos nos utilizar de uma norma específica para cada atividade e prática social.”
A resistência ao discurso gramatical, enquanto ensino de língua, como foi visto
anteriormente, possui uma memória discursiva de efeito de sentido consistente, pois, a
gramática (herança helênica) foi e ainda resiste como arte, como técnica, como ciência. Esta
concepção afeta o sentido de língua que passa a ser concebida como meio e instrumento que
os sujeitos utilizam para representar o mundo como se bastasse recorrer a gramática para
interagir com o mundo e as “coisas-a-saber” (PÊCHEUX, 2002). Não é sem propósito que no
discurso do senso comum, alguns professores (que trabalham em outra perspectiva, a
interacionista, por exemplo) são questionados pelos pais de alunos que a escola deveria
ensinar gramática para o filho, para que ele possa aprender a “falar e a escrever bem”. É
74
Palestra no 8º. Encontro de Língua Portuguesa no Brasil – USP-SP.
205 | P á g i n a
Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três
Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano
(Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858).
Guavira
no10
importante ressaltar que até aqueles não são nem professores de língua e nem especialistas da
área, se inscrevem nessa formação discursiva para reivindicar o peso da tradição: ensinar
língua é ensinar gramática.
O que subjaz a essa posição discursiva, entre outros aspectos, além do peso do
sentido da tradição, é a “falta” de um projeto arrojado e efetivo de implantação do que venha
ser o ensino de língua em primeira instância e a gramática normativa, quer para a posição
sujeito do senso comum, quer para professores de língua. A gramática normativa nesse
sentido é significada como conjunto de regras que devem ser seguidas, adotadas pelos livros
didáticos, de alguma forma acredita-se que lendo e estudando as regras e internalizando-as, os
alunos irão apreendê-las de forma competente. Cunha (1985, p. 46-7), já nos anos 70,
concebia o seguinte:
o que geralmente se tem por deficiência é a desorganização do dialeto, provocada pela
interferência do poder repressivo do professor, que considera ilegítimas as suas
normas. (...) aqueles que não dominam razoavelmente tal dialeto – melhor dizendo: a
norma culta – sofrem restrições na progressão social. Daí ser de toda a conveniência
que se propiciem condições ao educando para que ele se assenhoreie
progressivamente do dialeto prestigioso sem que seja violentado com a
desorganização ou a destruição do seu vernáculo, do qual continuará a servir-se nas
situações mais íntimas.
O discurso da linguística, nesse sentido, vem se colocar diante do discurso da
tradição. Pode-se observar as marcas de discursividade da linguística nos livros didáticos
(expressões como sintagma, morfema, dialeto). Os estudos linguísticos não estabelecem
oposição ao discurso da norma padrão, como querem alguns discursos niilistas, pois, afirmam
que com o advento da linguística não existe mais o estudo da gramática e “vale-tudo” em
termos de linguagem, que o ensino estaria “a beira do caos”. A questão é muito pelo contrário.
Trata-se de domínios diferentes. Nesse sentido podemos considerar o seguinte:
a- língua: sistema de signos verbais semi-autônomo em relação ao sujeito e semiaberto em relação a si mesmo, pois a língua está inscrita discursivamente na cultura e
na história;
b- gramática normativa: conjunto de regras de uma variante social de prestígio, forma
de expressão produzida por pessoas cultas, é a forma que funciona como modelo
ideal, ela é uma tradição;
c- gramáticas descritivas: orienta o trabalho do lingüista, a preocupação é descrever os
fatos da língua nas mais variadas situações. O suposto erro ou desvio da norma
acontece de forma organizada e às vezes se constituem em regras e normas. Para o
gramático descritivista, a preocupação é explicar o fenômeno e não atribuir valor.
Nenhuma expressão possui caráter valorativo; não há erro ou certo; o que existe é a
variação e a regularidade (fatores sociais); no entanto, é importante considerar que o
próprio fato de não atribuir valor já é uma atribuição de valor. Exemplo: formas que
desapareceram, mas que continuam na gramática normativa: 2 a pessoa do plural (vós
fostes/ vós iríeis). Uso: vocês foram/ vocês iriam. Posição dos pronomes em início de
oração, caso me: me dê motivo/dai-me motivo;
d- gramáticas internalizadas (POSSENTI, 1996): conhecimento que habilita o falante
a produzir e interpretar frases, textos, discursos etc. O conhecimento está alicerçado
em três pontos: no fonético/fonológico, no lexical e no sintático-semântico. O falante
reconhece o som da própria língua e as diferencia das demais; lexical: o falante
emprega palavras adequadas às situações; sintático-semântico: distribuição das
palavras na sentença e o efeito de sentido que esta distribuição provoca. Exemplo: a
raposa dizer algo para o corvo. Duas hipóteses: ou tem algo estranho na sentença ou
faz sentido no mundo da fantasia, ficção, literatura. A hipótese para explicar a
206 | P á g i n a
Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três
Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano
(Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858).
Guavira
no10
gramática internalizada diz respeito à repetição (nós falamos o que falamos porque
ouvimos);
e- regras: como obrigação (gramática normativa): etiqueta, atribui valor social; como
regularidade (não denota valor social), leis da natureza; e
f- erro: para a gramática normativa é a expressão que foge ao uso da boa linguagem;
para a gramática descritiva: formas de expressão que não fazem parte de forma
sistemática, de nenhuma das variantes de uma língua. Exemplo: os casas eles da
objetos pegaram / eles pegaram os objetos da casa. Erro lingüístico é a construção que
não se enquadra.
Assim, as práticas discursivas em relação às posições de lingüistas e de gramáticos
marcam uma disputa pelo espaço de ensino com tudo que isso possa se configurar
ideologicamente.
Algumas Considerações Finais
De acordo como Geraldi (1991, p. 35),
Considero a produção do texto (orais e escritos) como ponto de partida (e de chegada)
de todo o processo de ensino/aprendizagem da língua. E isto não é apenas por
inspiração ideológica de devolução do direito à palavra às classes desprestigiadas,
para delas ouvirmos a história, contida e não contada, da grande maioria que hoje
ocupa os bancos escolares.
Para Possenti (1996, p. 95):
o ensino do português deixe de ser visto como transmissão de conteúdos prontos, e
passe a ser uma tarefa de construção de conhecimentos por parte dos alunos, uma
tarefa em que o professor deixe de ser a única fonte autorizada de informações,
motivações e sanções. O ensino deveria ser subordinado à aprendizagem.
Para Mendonça (2004, p. 261-162), o que há são as políticas de fechamento,
tentativa de marcar a gramática normativa como ciência utilizando os termos da linguística,
tais como: morfema, sintagma nominal e verbal e
o discurso sobre ensino de língua, sobre língua, que adentra pela escola, também é
heterogêneo, como se procurou mostrar (...) os formadores de opinião e suas políticas
de fechamento; de outro, os lingüistas e os caminhos alternativos. Sem dúvida, são
muitos os fios de galo que têm tecido nossas manhãs. Resta, agora, darmos a esse
produto nosso toque de artesão.
Assim, a passagem do ensino gramatical para o ensino de fatos da língua deve ser
um processo, o professor de ensino fundamental e médio ainda tem a gramática como língua e
objeto de língua, apesar do conhecimento da lingüística como ciência ou outras teorias que
tratam do ensino-aprendizagem. Nesse sentido, considerando que o sentido de ensino de
gramática não comporta necessariamente o sentido de ensino língua e o contrário é possível
afirmar. Não se trata mais de estratégia discursiva de convencimento, mas sim de assumir que
a discursividade do ensino de gramática versus ensino de língua deve ser significada como
uma questão de “identidade/identificação” (ORLANDI, 2001). Pode-se afirmar que é uma
disputa “ideológica” (PÊCHEUX, 1997) no sistema de ensino pela autoridade das práticas de
ensino de língua. Talvez se possível elaborar ainda algumas indagações discursivas
207 | P á g i n a
Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três
Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano
(Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858).
Guavira
no10
provocadores: há a quem interessa o fracasso de ensino de língua materna? Seria possível
conceber que estas posições de alguma forma se inscrevem no domínio mais sutil da luta de
classe?
Para finalizar, concordo com Cardoso (1999, p. 33):
Fica à escola o desafio de oferecer condições para que também os alunos de classes
menos favorecidas se tornem qualificados para o exercício de diferentes tipos de
discurso: o da imprensa, o da propaganda e marketing, o literário, o científico, o
político etc. Se assim não for, nossa escola continuará sendo um poderoso agente de
reprodutor das desigualdades sociais deste país.
Referência
ARISTÓTELES. Arte Poética e Arte Retórica. Trad. Leonel Vallandro e Gerd Bornheim. São
Paulo: Ediouro, 1973.
ARNAULD, A.; LANCELOT, C. Gramática de Port-Royal. Trad. B.F. Basseto, H.G.
Murachco. São Paulo: Martins Fontes, 1992.
BAKHTIN, M. Estética da Criação Verbal. Trad. Paulo Bezerra. São Paulo: Martins Fontes,
2003.
BIDERMAN, M. T. C. Teoria Lingüística: lingüística quantitativa e computacional. Rio de
Janeiro: Livros Técnicos e Científicos, 1978.
BORBA, F. S. (org.) Dicionário UNESP do Português Contemporâneo. São Paulo: Editora
UNESP, 2004.
CARDOSO, S. H. B. A questão da referência: das teorias clássicas à dispersão de discursos.
Campinas: Autores Associados, 1998.
______. Discurso e ensino. Belo Horizonte: Autêntica, 1999.
CUNHA, C. A questão da norma culta. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1985.
LYONS, J. Introdução à Lingüística Teórica. Trad. Rosa Virgínia Mattos e Silva; Hélio
Pimentel. São Paulo: Nacional, 1979.
GERALDI, J. W. Portos de passagem. São Paulo: Martins Fontes, 1991.
______. (org.) O texto na sala de aula. São Paulo: Ática, 2001.
______. Linguagem e ensino. Campinas: ALB e Mercado das Letras, 2002.
MENDONÇA, M. C. Língua e ensino: políticas de fechamento. In: Mussalin, F. e Bentes, A.
C. Introdução à lingüística, domínios e fronteiras. V. 1. São Paulo: Cortez, 2001, p. 233-264.
208 | P á g i n a
Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três
Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano
(Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858).
Guavira
no10
NEVES, M. H. de M. Que gramática estudar na escola, norma e uso na língua portuguesa.
São Paulo: Contexto, 2003.
______. A gramática. São Paulo: Editora da Unesp, 2002.
ORLANDI, E. P. Discurso e Texto. Formulação e circulação dos sentidos. Campinas: Pontes,
2001.
______.Análise do Discurso. Princípios e Procedimentos. Campinas: Pontes, 1999.
PÊCHEUX, M. Semântica e Discurso. Uma afirmação do óbvio. 3 ed. Trad. Eni P. Orlandi.
Campinas: Editora da Unicamp, 1997.
______. Et al. Papel da Memória. Trad. de José H. Nunes. Campinas: Pontes, 1999.
______. O Discurso. Estrutura ou acontecimento. 3. ed. Trad. Eni P. OPrlandi. Campinas:
Pontes, 2002.
POSSENTI, S. Porque (não) ensinar gramática na escola. São Paulo: Mercado das Letras,
1996.
______.Gramática: os diversos contextos. Coleção Linguagens Códigos. São Paulo: Escolas
Associadas, s/d.
RAJAGOPALAN, K. Por uma lingüística crítica, linguagem, identidade e a questão ética.
São Paulo: Parábola, 2003.
RODRIGUES, M. L. Flexão Nominal: problemas de gênero e de grau, algumas
considerações. Revista Avepalavra, UNEMAT, p. 52 – 70, no. 03, 2004.
SAUSSURE, F. Curso de Lingüística Geral. 20 ed. Trad. Antônio Chelini et al. São Paulo:
Cultrix, 1995.
209 | P á g i n a
Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três
Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano
(Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858).
Guavira
no10
UMA VISÃO LINGUÍSTICO-CULTURALISTA
DO DISCURSO DA REVISTA PLAYBOY
Glauciane Pontes Helena Franco (UNIJALES)75
Vânia Maria Lescano Guerra (UFMS/CPTL)76
É preciso dizer que se as mães colaboram
para a conservação de um discurso
sexista, as professoras, que ainda hoje são
vistas como as mães na escola, sobretudo
quando se trata do ensino fundamental,
também o fazem (Maria José Coracini – A
celebração do Outro, 2007, p. 92)
RESUMO: Este trabalho vem problematizar os discursos que perpassam a nova configuração de homem e
mulher, que estão inseridos numa sociedade cada vez mais fragmentada, dividida e dispersa que outrora
supúnhamos ter unidade, ser fixa, coerente e estável. É possível constatar que há uma crise nas referências
simbólicas que constituem tanto o homem quanto a mulher e a proposta de estudo deste trabalho justifica-se na
medida em que se propõe a investigar essas dissonâncias. A análise dos textos produzidos pelo homem e para o
homem, que expõe as formações discursivas a que está submetido, permite perceber como ele estabelece sua
relação com a língua, com a história e com o mundo. Com essas considerações, este trabalho apresenta aspectos
do discurso masculino, em busca das formas de representação masculina na mídia impressa, a partir do discurso
proferido pelo homem na revista Playboy, publicação que circula no Brasil desde 1975, cujo destinatário
específico é o próprio homem, visando à identificação de relações de poder que perpassam essas questões.
Palavras-chave: masculino; feminino; relações de poder; identidades; mídia.
ABSTRACT: This paper is due to question the discourses that underlie the new configuration of the man and
woman, which are inserted in an increasingly fragmented society, divided and dispersed that once we supposed
to have unity, be fixed, coherent and stable. It’s possible to find out there is a crisis in the symbolic references
which constitute both man and woman and the proposal of this paper is justified as it proposes to investigate
these discrepancies. The analyses of the texts produced by the man to the man that expose the discursive and
ideological formations that are submitted allow us to see how it establishes its relationship with the language,
with the history and the world. Based on these considerations, this paper presents aspects of the male discourse,
in search of ways of male representation in the imprinted media, from the discourse made by the man in Playboy
Magazine, a publication that circulates in Brazil since 1975, in which the man himself is the main target, aiming
to identify the power relations that underlie these issues.
Key-words: male, female, powers relations, identities, media.
Palavras iniciais
Numa perspectiva sociocultural, verifica-se que as profundas modificações nos papéis
sociais do homem e da mulher, vivenciados, particularmente, no século XX, delinearam uma
75
Mestre em Letras da UFMS, Campus de Três Lagoas, área de Estudos Linguísticos. Docente no curso
de Jornalismo e Assessora de Imprensa de UNIJALES - Centro Universitário de Jales (SP).
76
Docente do Programa de Mestrado em Letras da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS),
Campus de Três Lagoas (CPTL), doutora em Linguística pela UNESP de Araraquara e pesquisadora da
UNDECT. [email protected]. Membro do NECC (Núcleo dos Estudos Culturais Comparados) na UFMS e
do Grupo de Estudos “Vozes (in)fames; exclusão e resistência”, sob a coordenação da Profª. Maria José
Coracini, no IEL/UNICAMP.
210 | P á g i n a
Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três
Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano
(Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858).
Guavira
no10
nova ordem social. E é na linguagem, entendida como processo marcado pela inscrição do
sujeito, que tais mudanças se materializam.
Esta pesquisa vem delinear aspectos do processo de construção da identidade do
homem contemporâneo, pelo viés da sexualidade, investigando as formações discursivas e
ideológicas que estão na ordem de seu discurso, o que possibilita verificar as significativas
mudanças ocorridas no papel social do homem nos dias atuais. As reflexões versam sobre as
relações de poder no discurso do homem contemporâneo, que são analisadas a partir do
discurso masculino veiculado pela revista Playboy, na seção Caro Playboy, no período de
maio de 2006 a fevereiro de 2007. Mais especificamente, o foco está no discurso do homemleitor, que registra suas impressões sobre a publicação na seção Caro Playboy.
Os estudos do historiador e filósofo Michel Foucault e os Estudos Culturais embasam
teoricamente nossas análises, uma vez que tomamos as relações de poder enquanto práticas
sociais, que são legitimadas, na sociedade contemporânea, pelas práticas discursivas, a partir
de uma visão cultural e histórica.
A partir da materialidade linguística, observamos os mecanismos de referenciação, que
são recorrentes nos enunciados dos leitores e utilizados como recursos estratégicos para
retomada de elementos linguísticos e não-linguísticos. Parte-se das anáforas pronominais
demonstrativas para apresentar uma análise das formações discursivas por que perpassam os
discursos produzidos pelos leitores de Playboy, entendendo que a referência vai muito além
de uma simples representação objetiva da realidade, pois se caracteriza como uma atividade
discursiva (CARDOSO, 2003; NEVES, 2000).
Diante da crise nas referências simbólicas que encontramos na sociedade
contemporânea (SCHULER, 2006), as análises dos textos produzidos pelo homem e para o
homem, que expõem as várias formações discursivas a que está submetido, justifica-se à
medida que permite perceber como ele estabelece sua relação com a língua, com a história,
com a cultura e com o mundo. Como pressuposto teórico, ancoramos nosso trabalho nos
estudos do historiador e filósofo Michel Foucault (1979, 1988, 2004, 2005) e, mais
especificamente, no campo da linguagem, à medida que o autor reconhece o discurso não
como uma manifestação de um sujeito que pensa, mas sim como “um conjunto em que podem
ser determinadas a dispersão do sujeito e sua descontinuidade em relação a si mesmo”
(FOUCAULT, 2004, p. 61).
Como para Foucault, o historiador do presente, não há uma regularidade na produção
do discurso, o sujeito que enuncia está disperso e a sua função enquanto sujeito no enunciado,
embora seja determinada, é vazia, podendo ser exercida por outros indivíduos ou por ele
mesmo, que pode alternadamente ocupar uma série de enunciados, em diferentes posições, ou
ainda assumir o papel de diferentes sujeitos. Ora, entender, pois, os enunciados em sua
singularidade de acontecimento e expor que a descontinuidade não coincide com um acidente
na geologia da história, mas já no simples fato do enunciado, é reconhecer que um discurso
será sempre um acontecimento que nem a língua nem o sentido podem esgotar inteiramente:
fazer aparecer, em sua pureza, o espaço em que se desenvolvem os acontecimentos
discursivos é tornar-se livre para descrever, nele e fora dele, os jogos de relações (GUERRA;
NICOLA, 2008, p. 34)
A fragmentação do sujeito e das identidades caracteriza o momento do presente e da
efemeridade dos posicionamentos discursivos, bem como pode estar associada à implantação
de dispositivos de subjetivação de determinados grupos sociais, o que nos leva à investigação
dos aspectos culturais ancorados na materialidade discursiva (GUERRA, 2006). Segundo
Coracini (2007, p. 15), “assim como ocorre com o sujeito, é preciso penetrar na rede de seu
discurso para daí apreender ou rastrear o que pensa Foucault a respeito da identidade”. No
211 | P á g i n a
Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três
Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano
(Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858).
Guavira
no10
Capítulo 5 da Parte III de Arqueologia do saber, foi possível perceber que, para falar de
identidade, faz-se necessário recorrer ao que Foucault diz a respeito de arquivo e memória.
Para Foucault (2004, p. 146), arquivo não é o conjunto de discursos que as
instituições, numa dada sociedade, conservam, mas:
Trata-se antes, e ao contrário, do que faz com que tantas coisas ditas por tantos
homens, há tantos milênios, não tenham surgido apenas segundo as leis do
pensamento, ou apenas segundo o jogo das circunstâncias, que não sejam
simplesmente a sinalização, no nível das performances verbais, do que se pôde
desenrolar na ordem do espírito ou na ordem das coisas.
O arquivo é responsável pela materialização das práticas discursivas e, portanto, pelos
discursos, sendo o discurso o lugar em que o poder se exerce, mas é também o lugar da
resistência do sujeito a esse poder. É justamente porque constrói verdades que o poder se
conserva e se dissemina na sociedade por meio dos discursos. Dos diferentes tipos de mídias,
o nosso interesse temático diz respeito às revistas masculinas, que circulam no nosso
cotidiano, por considerarmos que funcionam como lugares de memória constituídos por
diferentes discursos sobre como os indivíduos se constituem como sujeitos na nossa
sociedade.
Para Foucault, a análise do arquivo comporta “uma região privilegiada” que esteja “ao
mesmo tempo próxima de nós, mas diferente de nossa atualidade, trata-se da orla do tempo
que cerca nosso presente, que o domina e que o indica em sua alteridade; é aquilo que, fora de
nós, nos delimita” (2004, p.150). Dessa perspectiva, uma análise da produção discursiva da
mídia que se baseia no conceito foucaultiano de enunciado deve considerar o exercício da
função enunciativa de que os enunciados são portadores. “Essa função não confere às
unidades diversas (frases, proposições, atos de fala, quadro de signos) um sujeito, mas um
conjunto de posições subjetivas possíveis. Ela não lhes fixa um limite, pois as coloca em um
campo associado, que possibilita a coexistência” (NAVARRO, 2006, p. 78). A função
enunciativa não vem impor a identidade dessas unidades, mas o regime de seu calibre
material, que propicia a repetição ou a transformação do enunciado.
Partindo do pressuposto de que esses periódicos participam e fazem parte das práticas
sociais e discursivas do cotidiano brasileiro desde o século XIX; que se ligam a uma rede de
poder-saber que determina o que pode e deve ser dito ou silenciado sobre as formas e as
práticas de si, mediante as quais os indivíduos devem se constituir como sujeito
contemporâneo, pretendemos responder a algumas questões: Como se dá o processo de
constituição do sujeito-leitor dessas revistas? Mediante quais formas e práticas os indivíduos
se constituem como sujeito ou se subjetivam nas revistas? De que saberes-poderes tratam os
periódicos?
No item seguinte, articulamos uma parte da história da revista Playboy e
contextualizamos a seção Caro Playboy, no intuito de considerarmos as condições de
produção desse discurso midiático impresso para, enfim, analisarmos suas marcas discursivas
e culturais, objeto de nossas reflexões sobre a construção identitária desse leitor.
As condições de produção do discurso midiático impresso da Playboy
Compreender o discurso atual dos homens na mídia impressa significa recuar no
tempo e penetrar na memória discursiva onde o passado encontra o presente e prepara o
212 | P á g i n a
Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três
Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano
(Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858).
Guavira
no10
futuro (CORACINI, 2007, p. 80). Assim, remontamos, inicialmente, à década de 50, para, em
seguida, tecer comentários sobre a constituição identitária da Playboy de nodosos dias.
Até o início da década de 50, as revistas destinadas ao público masculino disponíveis
no mercado americano tinham o conteúdo voltado para armas, caçadas e carros. Em 1953, o
americano Hugh Hefner, diretor de circulação de algumas revistas da época, entendeu que o
mercado seria receptivo à revista que exibisse modelos femininos em poses sensuais, além de
tratar de assuntos de interesse do público masculino.
Hugh Hefner pagou 500 dólares para uma empresa em Chicago pelo direito de
utilização das fotos de um calendário que trazia Marilyn Monroe como modelo principal e
criou a Stag Party, revista que tinha como símbolo um veado fumando à espera de uma
companhia feminina. Na véspera do lançamento, porém, foi descoberto que já havia uma
publicação com o mesmo nome. Hefner, então, optou por substituí-lo pelo nome Playboy,
dentre outros como Top Hat, Bachelor e Gentlemen. Contratou o diretor de arte Arthur Paul
para criar um logotipo mais adequado à nova marca que seria lançada. O atualmente famoso
coelho com gravata borboleta foi criado e, desde então, utilizado em todas as publicações da
revista. Em algumas edições, os objetos que compõem o cenário possuem o formato do
coelho, assim como os acessórios utilizados pelas modelos ou até as próprias roupas.
A revista Playboy dos dias atuais é publicada em 18 países (Brasil, Bulgária, Croácia,
República Checa, Alemanha, França, Grécia, Hungria, Itália, Japão, México, Holanda,
Polônia, Romênia, Rússia, Eslovênia, Espanha e Taiwan) e tem cerca de 18 milhões de
leitores. É a revista mais vendida da categoria. Marca de tradição, a Playboy é líder no seu
segmento, com um total de 2.858.000 leitores, sendo 85% homens com idade entre 18 e 39
anos77. Vários fatores contribuem para o seu sucesso, sendo o principal deles os ensaios
sensuais de celebridades.
Na revista Playboy, a seção Caro Playboy é condensada em duas páginas, em geral
localizada no início da revista. Apesar de não ter páginas pré-determinadas, a partir de uma
numeração previamente estabelecida, a seção está comumente publicada entre as páginas 10 e
16, variando de edição para edição. Se por um lado as páginas variam de lugar na revista, por
outro, o formato da seção não muda. A disposição dos assuntos bem como as fotografias e os
boxes estão sempre com a mesma distribuição nas páginas, mantendo a proporcionalidade.
Trata-se de uma seção ilustrada por fotografias das edições anteriores, uma vez que
contém comentários dos leitores da revista sobre o conteúdo das publicações passadas. Esse
aspecto temporal é referenciado em um espaço localizado no canto esquerdo da primeira
página da seção, onde aparece uma síntese da edição anterior com referência ao mês e alguns
números que relatam a participação do leitor, como na edição de novembro de 2006 em que
aparece o enunciado “34.378 era o número de membros da comunidade de Playboy no Orkut
no dia 8”. No mesmo mês, há outros relatos também, como: “28 mulheres tiraram a roupa
para os fotógrafos de Playboy (revista e site)”, ou “1 garota visitou a redação e quis tirar a
roupa na frente de todos para mostrar que é bonita. Foi contida”.
Convém ressaltar que se trata de um pequeno espaço na página, um boxe, e, por isso,
apresenta um conteúdo condensado, resumido em poucas palavras. Nesse lugar, a revista
publica fatos rotineiros, como o número de cartas recebidas pela redação, mas também traz
chamadas mais “apimentadas”, com teor erótico, tal como o enunciado “sobrinha do Bandido
da Luz Vermelha ofereceu-se para posar nua”, na edição de dezembro de 2006.
77
Fontes: Projeção Brasil de Leitores com base nos Estudos Marplan Consolidado 2007 e Estudos
Marplan Consolidado 2008.
213 | P á g i n a
Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três
Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano
(Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858).
Guavira
no10
Logo abaixo desse quadro, há um outro boxe, menor, com o título “Procura-se
coelhinho”. Como já dissemos, a revista Playboy possui como marca registrada o desenho da
cabeça de um coelho estilizado, que utiliza em todas as suas publicações e que é oriunda da
revista norte-americana, que foi a precursora no ramo de publicações com nu feminino. No
boxe, a revista publica a resposta de algum leitor sobre a localização do desenho na capa
anterior. Ele normalmente aparece na capa, escondido, perto da modelo. O texto do leitor é
acompanhado por seu nome e cidade em que mora.
Do lado direito da página, aparece uma fotografia da modelo da capa que foi publicada
na edição anterior, com seu nome em evidência, na forma de manchete principal da página, e,
logo abaixo, há um subtítulo, contendo algum comentário dos editores da revista sobre a
mulher. Mais abaixo estão os comentários dos leitores sobre a modelo mencionada na
fotografia.
Há mais uma página dedicada às cartas dos leitores, que geralmente possuem título,
com texto e assinatura dos leitores. Nessa segunda página, os assuntos são variados e os
leitores comentam sobre as modelos fotografadas e também sobre matérias jornalísticas
publicadas na edição anterior. No centro da página, aparece uma fotografia que foi publicada
na edição passada, que nem sempre é de modelos ou mulheres. Também há um boxe com a
publicação de recados que foram escritos por leitores, ao longo do mês, na página da
comunidade da revista Playboy no Orkut, site de relacionamento da Internet, mantido pela
revista, que se configura como uma comunidade virtual, criada pela empresa Google Inc., em
22 de janeiro de 2004 e hospedada no endereço eletrônico www.orkut.com.
Todos os elementos descritos foram recorrentes em todas as edições analisadas neste
trabalho, o que nos leva a crer que se trata de uma configuração permanente e uma estratégia
para conferir familiaridade ao espaço, uma vez que o leitor assíduo já sabe o que irá
encontrar. Como a revista reserva sempre duas páginas para a seção, observa-se que existe,
pelo menos, um critério para a publicação das cartas, ou seja, o espaço limitado também leva
os editores a definirem uma quantidade limitada de textos e, portanto, a selecionarem o que
será publicado.
Uma análise: em revista a perspectiva discursiva e cultural
É possível reconhecer as configurações ideológicas que permeiam as práticas
discursivas do homem que lê a Playboy mediante a análise da seção Caro Playboy e, assim,
mostrar o que dá sustentação à construção de sua identidade, como homem contemporâneo.
Neste trabalho, partimos dos estudos de Pêcheux (1988, p. 144): “as ideologias não são feitas
de ‘idéias’, mas de práticas” e apesar de não estarem explícitas ou transparentes, tais
ideologias aparecem na discursividade do sujeito. O leitor de Playboy traz em seu texto
marcas dessa dispersão assim que inscreve seu discurso em práticas socialmente
convencionalizadas como pertencentes ao universo masculino, demonstrando que seus modos
de falar estão condicionados àquilo que a sociedade espera que ele diga, como, por exemplo,
quando se refere ao corpo das mulheres fotografadas nuas, utilizando palavras com teor
erótico como “tesão”, em julho de 2006; “bunda”, em agosto de 2006; ou “gostosa”, em
novembro de 2006.
Na figura 1, pode-se observar que a mulher fotografada é a modelo Luize Artenhofen.
Ela teve seu ensaio fotográfico publicado na capa e da página 98 até a 123, da edição de
outubro de 2006.
214 | P á g i n a
Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três
Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano
(Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858).
Guavira
no10
Figura 1
Os leitores da revista, na edição de novembro de 2006, fizeram vários comentários
sobre suas fotografias. Dentre os que foram publicados, destacamos o seguinte:
R 1 - A tatuagem nas proximidades da costela foi o ápice da edição. Deu um toque exótico, com pitada
de erotismo. Esse foi o melhor presente de aniversário que eu poderia ter recebido – comemorei em 13
de outubro.
O enunciado R1 revela um discurso inscrito em uma prática socialmente
convencionalizada, ou seja, aquela que permite ao homem falar dos atributos físicos da
mulher, relacionando-se com a formação discursiva do homem machista e, mais
especificamente, com aquele discurso que concebe a mulher como um objeto. Do ponto de
vista linguístico, o uso do pronome demonstrativo “esse” configura-se como uma anáfora
pronominal que, segundo Neves (2000), manifesta-se por um pronome que aparece na posição
de determinante, mas com o nome elíptico e anaforicamente, já que o elemento referido já
apareceu em outra posição precedente do texto.
Sabemos que a anáfora pronominal, no nível sintático, atua como um mecanismo de
retomada textual de algum termo linguístico antecedente. Por esse princípio, poderíamos dizer
que, no enunciado do leitor, o pronome “esse” retoma toda a construção “a tatuagem nas
proximidades da costela foi o ápice da edição. Deu um toque exótico, com pitada de
erotismo”. Porém, a análise discursiva entenderá que o pronome “esse” não só retomou todos
os termos anteriores como também se relacionou com outros referentes que estão na
discursividade, num espaço de interlocução.
O leitor, por meio do uso da anáfora pronominal, referenciou não um objeto do mundo
real, mas sim conceitos que são veiculados pela linguagem, uma vez que esta é repleta de
significados. O leitor relacionou seu enunciado a um conjunto de formulações pressupostas,
situadas no interior do discurso machista, em que a mulher é concebida como objeto de valor,
cujas qualificações físicas sobressaem diante das demais. Pode-se dizer que o leitor inscreveu
seu discurso na representação social do homem moderno que é constituída pelo sexo.
Segundo Bourdieu (2005, p. 27), “o ato sexual é pensado em função do princípio do primado
da masculinidade” e, dessa forma, é o homem que tem a preferência sobre esse ato,
reforçando a noção de que sua identidade é formulada, também, a partir do ato sexual em si.
Discursivamente, há, na contemporaneidade, estratégias sociais que normalizam o
modo de viver do ser humano. E podemos dizer que uma dessas estratégias para o homem, na
contemporaneidade, é poder falar sobre sexo, é colocá-lo em discurso. Verifica-se que o sexo,
como aquilo que pode ser dito na sociedade contemporânea, está longe de ser reprimido ou intolerado. Foucault (1988, p. 30) afirma que “deve-se falar do sexo, e falar publicamente, de
uma maneira que não seja ordenada em função da demarcação entre o lícito e o ilícito [...]”.
215 | P á g i n a
Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três
Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano
(Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858).
Guavira
no10
Conforme o autor, em vez da preocupação em esconder o sexo ou até mesmo em ter recato
com a linguagem, é possível perceber hoje, nas práticas discursivas, a constante referenciação
ao sexo: “a característica de nossos três últimos séculos é a variedade, a larga dispersão dos
aparelhos inventados para dele falar, para fazê-lo falar, para obter que fale de si mesmo, para
escutar, registrar, transcrever e redistribuir o que dele se diz” (FOUCAULT, 1988, p. 40).
Encontramos, no entanto, pontos de resistência no enunciado do leitor. A análise
preconiza o discurso como um lugar de confrontos, onde jamais encontraremos uma
linearidade. Verificamos que o enunciado do leitor apresenta uma ruptura, um ponto de
resistência, a partir de um outro efeito de sentido contraditório. De acordo com Guerra (2006,
p. 207), os “sujeitos, pensando serem cada vez mais conscientes, lutam contra as forças que
tentam reduzi-los a objetos, contra as múltiplas formas de dominação sempre criativas e
renovadas”.
O leitor, em seu enunciado, considerou o “ápice da edição” a tatuagem no corpo da
mulher. Em vez de enaltecer as partes de seu corpo, como os seios, os glúteos, que são as
partes corporais que se relacionam efetivamente com a prática sexual, ele valoriza a tatuagem,
um desenho no corpo da modelo.
Também na edição de junho de 2006, encontramos práticas discursivas do homem que
ancoram sua discursividade numa subjetividade. Na figura 4 da página 98, a modelo Estela
Pereira aparece segurando um piercing, que se localiza no seu mamilo. A fotografia recebeu
vários comentários dos leitores, dentre os quais selecionamos o seguinte para análise:
R 2 - O piercing no seio da monumental Estela Pereira é sensacional! Com uma inspiração dessas, o
Brasil já pode se considerar hexa.
Em R2, quando o leitor utiliza o pronome demonstrativo “dessas”, sintaticamente ele
retoma, por anáfora, “o piercing no seio”. Na perspectiva sintático-semântica, o leitor
compara o objeto (piercing), que se trata de um adorno, a uma “inspiração”. No entanto, o
processo de referenciação que encontramos relaciona discursivamente o piercing ao exercício
da sexualidade.
Observamos que há um processo de interdição quando o leitor não fala explicitamente
sobre a prática do sexo, marcando o que o adorno no corpo da mulher sugere: pode-se dizer
que ele apresenta um ponto de resistência para a prática normatizadora na sociedade que
permite falar abertamente sobre sexo, pois emprega palavras que neutralizam seu discurso. E,
segundo Foucault (1988, p. 27), isso é recorrente, porém ele considera que “poderiam muito
bem ser apenas dispositivos secundários com relação a essa grande sujeição: maneiras de
torná-la moralmente aceitável e tecnicamente útil”.
Ao comparar o piercing a uma inspiração, o enunciado estabelece um diálogo com o
título da revista na edição anterior: “Pedala Brasil! Estela Pereira, a nossa Musa da Copa”,
que se referia à Copa do Mundo, o Campeonato Mundial de Futebol. O exercício da
sexualidade é discursivamente marcado como uma motivação, um estímulo para que o time
de jogadores do Brasil vença o campeonato. Nesse sentido, o enunciado produz efeitos de
sentido do sexo como poder, e sua discursividade traz marcas do dispositivo de sexualidade
concebido por Foucault (1988), no qual os mecanismos de poder se dirigem ao corpo.
Por meio das análises dos enunciados do leitor da revista, verificamos que o
dispositivo de sexualidade funciona de acordo com as técnicas conjunturais de poder
existentes na sociedade, que, por sua vez, estão ligadas à questão do corpo. No processo
identitário do homem contemporâneo, existe uma associação permanente da masculinidade
com o poder e, portanto, os valores mais altos do homem aparecem investidos na sua
216 | P á g i n a
Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três
Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano
(Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858).
Guavira
no10
virilidade. No entanto, o discurso do homem na Playboy desconstrói parte desse conceito.
Para exemplificar, na edição de junho de 2006, ainda se referindo à figura 4, o leitor faz o
seguinte comentário:
R 3 - As fotos que mais causaram impacto foram as da página 98, onde a gata acaricia o mamilo que
tem um piercing, e a da 94, com Estela puxando sua corrente de ouro até os pêlos pubianos. Essa gata
causou um verdadeiro frisson!
O uso do pronome demonstrativo “essa” retoma, sintaticamente, o sujeito Estela, ou
seja, a mulher fotografada pela revista. O leitor utiliza a palavra “gata” para referenciá-la.
Sabemos que esta palavra, enquanto substantivo feminino, apresenta em Ferreira (1986, p.
678) o sinônimo “a fêmea do gato” e nem um outro que se refira especificamente à mulher.
No entanto, sabemos que, na memória discursiva, a expressão aparece como sinônimo de
mulher bela ou com atributos físicos considerados belos. Novamente, temos o discurso do
leitor inscrito numa formação discursiva que valoriza o aspecto físico da mulher. E nossa
análise verifica que há um outro recurso linguístico que redimensiona tal prática e produz
outros efeitos discursivos.
No enunciado “essa gata causou um verdadeiro frisson”, o leitor não só valoriza os
atributos físicos da jovem como enfatiza uma condição de superioridade da mulher por meio
do uso do verbo “causar”. Esse verbo, segundo Neves (2000), é classificado como verbo
causativo, que pode ser considerado um verbo implicativo simples, ou seja, que indica uma
condição suficiente. Na forma de enunciado afirmativo com um desses predicados na oração
principal, como é o caso analisado, o complemento é implicado como factual. Também
podemos recorrer ao sinônimo registrado em Ferreira (1986, p. 299) “ser causa, ou motivo de;
motivar; originar; produzir” para demonstrar a inversão social do poder que o leitor quer
explicitar. Para ele, é a modelo que tem o poder de causar “um verdadeiro frisson”.
Diante disso, o leitor da Playboy estabelece discursivamente uma ruptura com o
discurso proeminente na sociedade, que vê o homem como detentor do poder e que a posse
desse poder só é atrativo para as mulheres. Lipovetsky (2000) afirma que, por muitos anos, o
poder foi objeto de sedução exclusivamente para as mulheres. Ao analisar a sedução na
contemporaneidade, o autor argumenta que “a sedução sempre se apresentou como um teatro
estruturado pela oposição binária do masculino e do feminino” (Lipovetsky, 2000, p.51) e isto
implica a diferença que ambos apresentam ao conduzir a empresa sedutora: “no feminino, a
sedução se apóia essencialmente na aparência e nas estratégias de valorização estética. No
masculino, a paleta dos meios é muito mais ampla: a posição social, o poder, o dinheiro, o
prestígio, a notoriedade, o humor podem funcionar como instrumentos de sedução” (id., p. 6364). No entanto, a condição de dominadora da mulher que vemos no discurso do homem na
Playboy, ainda que atrelada à sua forma física, é uma forma de sedução para ele. Longe de ser
uma atração exclusivamente para as mulheres, o leitor demonstra discursivamente que o poder
exercido pela modelo também é atrativo para os homens.
Encontramos também na discursividade do homem leitor da revista Playboy exemplos
das práticas reguladoras que submetem o corpo. Na revista de junho de 2006, tomamos
também o seguinte enunciado para análise:
R 4 - A tatuagem e o piercing de Estela me deixaram louco. A Playboy deveria mostrar mais mulheres
com esses adereços.
O leitor, por meio do emprego do pronome demonstrativo “esses”, referencia dois
elementos que estão no corpo da mulher, “a tatuagem e o piercing”, que ele chama de
217 | P á g i n a
Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três
Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano
(Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858).
Guavira
no10
“adereços”. O demonstrativo produz efeitos de sentido que estão num espaço enunciativo,
numa memória discursiva, e o processo de referência se dá na relação com uma formação
discursiva que veicula o discurso da moda. Entendemos que a moda contribui para a
construção de uma linguagem que se manifesta no corpo e, na contemporaneidade, isso é feito
por meio dos padrões de beleza que atuam como construtores da identidade do homem e da
mulher, na forma de práticas reguladoras do discurso. Ao entender a beleza como uma
qualidade do corpo, o discurso da moda manifesta valores e significações que passam a ser
assimilados culturalmente.
São concepções ideológicas nas quais a mídia tem importante participação, inclusive
porque, enquanto indústria cultural, ela age pela motivação mercantilista. De acordo com
Lipovetsky (2004, p. 69), “as imagens publicitárias, as fotos da moda e a imprensa feminina
exemplificam bem essa penetração da mídia até no mais íntimo, especialmente o que diz
respeito à aparência do corpo”.
Como esta análise contempla, em um contexto mais amplo, o discurso midiático,
consideramos o esforço que a mídia, de modo geral, faz para colocar em circulação as
representações sociais e que acaba por endossar determinados estereótipos, especialmente
relacionados ao corpo. Sabe-se que, no discurso da mídia, na maioria das vezes, prevalece o
aspecto comercial: a notícia é entendida como entretenimento e, acima de tudo, como uma
mercadoria que tem seu preço. A relação que se estabelece entre o leitor e a revista é,
portanto, predominantemente concebida como uma transação de compra e venda. De acordo
com Almeida (2006), os veículos de comunicação, à medida que almejam criar uma
identificação com seu público, promovem muitas vezes o reforço dos estereótipos.
Diante disso, retomamos o conceito de Pêcheux (1988) sobre a questão do sujeito e o
que chamou de ilusão-esquecimento número dois, que se refere à ordem da enunciação ou,
mais especificamente, à maneira como foi formulado o enunciado. O sujeito, ao falar, esquece
que existem outras maneiras de expor linguisticamente uma mesma ideia, causando a
impressão de que apenas a forma como ele produziu seu enunciado é válida.
Por outro lado, de acordo com Cardoso (2003, p. 132), trata-se do esquecimento que
contempla os estudos da referência. Como o sentido dos enunciados não existe por si mesmo,
e sim pelas posições ideológicas colocadas na enunciação, “palavras, expressões, proposições
mudam de sentido segundo as posições sustentadas por aqueles que as empregam, o que
significa que elas tomam o seu sentido em referência a essas posições [...]”. Como o sujeito
não tem consciência disso, ele acredita que o que está dizendo só pode ser uma forma objetiva
de ver a realidade.
Na forma como analisamos o texto do leitor R3 (cf. p. 95), é possível ver que sua
objetividade é praticamente nula. Como exemplo, em seu enunciado ele explicita que tais
objetos, um desenho e um adorno de pele, possuem aspectos “erotizados” e, dadas as
circunstâncias em que estão mostrados pela modelo, permitem relacioná-los à sua
sexualidade. Nesse caso, recorremos ao conceito de sexualidade, explorado por Foucault
(1988, p. 139), enquanto “conjunto dos efeitos produzidos nos corpos, nos comportamentos,
nas relações sociais, por um certo dispositivo pertencente a uma tecnologia política complexa
(...)”. Tal concepção é pertinente à prática discursiva do leitor e é possível relacioná-la aos
mecanismos de controle existentes na sociedade e referenciados por Foucault (1988). Uma
vez que concebemos o discurso como uma veiculação e uma produção de poder, entendemos
que tal enunciado é produtor de efeitos de poder que reforçam e integram práticas sociais de
dominação e submissão, condições relativas aos papéis do homem e da mulher já
mencionados anteriormente.
218 | P á g i n a
Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três
Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano
(Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858).
Guavira
no10
O leitor, em seu enunciado R3, relaciona também seu dizer ao ideário machista, à
medida que ressalta sua virilidade: “A tatuagem e o piercing de Estela me deixaram louco”.
Para tal discurso, ser viril é ter o controle da situação, é ser mais forte e, por isso, aquele que é
licenciado para subjugar o outro, o mais frágil ou o menos forte, condições que se
configuram, nesse caso, na mulher. Ele provoca, no entanto, ruptura na discursividade ao
utilizar o adjetivo “louco” para qualificar sua motivação sexual. De acordo com Ferreira
(1986, p. 853), a palavra “louco” pode ser sinônimo de “que perdeu a razão; alienado; doido;
demente”, ou ainda “que está fora de si, contrário à razão ou ao bom senso”, sempre
relacionando seu significado à questão da razão.
O item lexical “louco”, utilizado pelo leitor, aciona signos construídos
discursivamente pelo dispositivo da sexualidade e as relações de poder que estão presentes
nessa formação discursiva. Ele provoca uma resistência à discursividade, que estabelece que o
louco é um insano, uma pessoa sem razão, e produz efeitos de sentido do louco enquanto
aquele que tem desejo sexual, que é viril. Segundo Foucault (2005, p. 79), “nas relações de
poder, há forçosamente possibilidade de resistência – de resistência violenta, de fuga, de
astúcia, de estratégias que revertam a situação [...]”.
De modo geral, verifica-se que o leitor inscreve seu discurso numa formação
discursiva do homem contemporâneo que concebe a beleza como uma forma de poder. De
acordo com Lipovetsky (2000, p. 148), “a beleza é apresentada com freqüência como o poder
específico do feminino. Um poder decretado imenso, uma vez que permite reinar sobre os
homens, obter maiores homenagens, influenciar nos bastidores os grandes deste mundo”. Para
o autor, o mito da beleza feminina e seu poder sobre os homens acabam por revelar ainda
mais a sujeição da mulher perante os homens, tendo em vista sua efemeridade: “poder
subalterno dependente dos homens, poder efêmero inelutavelmente destinado a desaparecer
com a idade [...]” (LIPOVETSKY, 2000, p. 148). Assim, na formulação do leitor há um
investimento no mito da beleza e seu poder, ainda que efêmero. Sua identidade, construída
discursivamente, permite que ele assuma, como sujeito social, seu lugar no discurso elaborado
e o qualifica a reproduzir as formações ideológicas que compõem sua formulação discursiva.
Ao conceber o processo de construção da identidade como um movimento de
continuidades e descontinuidades, manifesto no discurso, entendemos que o homem, leitor da
Playboy, apresenta-se inquieto, porém consciente de todas as mudanças que estão em curso e
está em busca de seu espaço nesse cenário de mudanças. Para Lipovetsky (2000, p. 59),
“ainda que os referenciais da masculinidade tenham se tornado indistintos, a maior parte dos
homens não sofre de mal-estar de identidade, mas, como as mulheres, de dificuldades
relacionais ou profissionais”.
Para exemplificar, na edição de julho de 2006, tomamos para análise o seguinte
enunciado:
R 8 - Me surpreendi com a edição de junho, que debatia, de maneira leve, a questão da Índia. Várias
vezes pedi matérias que falassem sobre economia, política e sociedade. Fiquei bastante feliz em ver que
fui atendido. Apesar do nome da revista, acredito que pouquíssimas pessoas no Brasil podem se dar ao
luxo de só conversar sobre carros, tecnologia e bebidas. Inclusive passa a falsa impressão de que
homem só pensa nisso. Só volto a pedir a volta do ranking das faculdades e universidades. Sempre
esperava a edição de setembro com essa matéria.
Nossas considerações partem do uso da anáfora pronominal demonstrativa “nisso”,
que aparece num processo de contração da preposição “em” com o pronome demonstrativo
invariável “isso”. Sintaticamente, o recurso utilizado pelo leitor retoma anaforicamente as
palavras “carros”, “tecnologia” e “bebidas” do enunciado imediatamente anterior. Além desse
219 | P á g i n a
Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três
Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano
(Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858).
Guavira
no10
processo anafórico, atentamos também para a relação sintática estabelecida entre o verbo
“pensar” e o advérbio “só”. Segundo Neves (2000, p. 240), tal advérbio é classificado como
aquele que não opera sobre o valor de verdade da oração, por ser considerado um advérbio de
“inclusão com exclusividade”, ou seja, embora não mude o valor de verdade da oração, o
advérbio “só” aparece numa forma de inclusão que confere exclusividade ao verbo “pensar”.
Discursivamente o enunciado “apesar do nome da revista, acredito que pouquíssimas
pessoas no Brasil podem se dar ao luxo de só conversar sobre carros, tecnologia e bebidas.
Inclusive passa a falsa impressão de que homem só pensa nisso” produz efeitos de sentido que
revelam o posicionamento ideológico do leitor quanto à identidade de homem que ele procura
para se representar. O pronome anafórico “nisso” não somente retoma as palavras
sintaticamente organizadas no enunciado como também o inscreve numa memória discursiva
que apresenta elementos da construção simbólica do homem concebido como materialista, ou
seja, aquele homem que confere valor aos bens materiais, como carros, aparatos tecnológicos
ou bebidas, e como capitalista, ou seja, aquele que, pela prática exacerbada do consumismo,
acaba por conferir merecimento aos elementos da realidade considerados fúteis ou perecíveis.
Nolasco (1995, p. 21) expõe que esta é uma das formas de representação masculina na cultura
do Ocidente: “os padrões de comportamentos que os qualificam como homens se aproxima
dos exigidos para máquinas”.
O leitor procura desqualificar tal concepção de homem à medida que confere valor à
matéria jornalística que abordou aspectos da cultura indiana: “fiquei bastante feliz em ver que
fui atendido”, inscrevendo seu dizer numa formação discursiva que relaciona o homem à
seriedade, conferindo-lhe inteireza de caráter e retidão, com predominância da racionalidade.
Em seu enunciado, ele enumera quais são os assuntos que são de seu interesse, do ponto de
vista do homem “sério”, que busca representação: “várias vezes pedi matérias que falassem
sobre economia, política e sociedade”.
Como o espaço discursivo não é linear nem estático, encontramos em seu dizer
descontinuidades. O leitor, ao utilizar a expressão “acredito que pouquíssimas pessoas no
Brasil podem se dar ao luxo (sic) de só conversar sobre carros, tecnologia e bebidas”, produz
efeitos de sentido que revelam um ponto de vista valorativo sobre esse tipo de conversa,
embora pretenda desqualificá-la. Para ele, conversar sobre carros, tecnologia e bebidas é um
luxo que poucas pessoas têm no país. Em Ferreira (1986, p. 857), a expressão “dar-se ao luxo
de” tem como sinônimos: “dar-se ao capricho, à fantasia, à extravagância de; permitir-se o
luxo de”, o que revela uma posição receptiva à prática. Embora o leitor busque representar-se,
discursivamente, na figura do homem sério e racionalista, ele também inscreve seu discurso
numa formação ideológica que apresenta o homem como consumista e materialista.
Entendemos que o caráter conflituoso de seu discurso revela uma intensa luta do
sujeito homem em buscar sua representatividade num cenário social que apresenta formas de
poder, estabelecidas discursivamente e que tentam reduzi-lo a um ser homogêneo, com um
discurso uniformizado. Na revista Playboy, a partir das análises dos enunciados de seus
leitores, encontramos um homem que provoca rupturas continuamente. Sobre isso, voltamos
nossa atenção para o seguinte enunciado, publicado na edição de novembro de 2006. O leitor
refere-se à modelo Luize Altenhofen, cujo ensaio saiu na revista de outubro de 2006:
R 9 - Fiquei insatisfeito. O trabalho de Luis Crispino foi lamentável. Pela terceira vez, Playboy não
explorou corretamente essa mulher fantástica. Faltou criatividade, sedução – que ela tem à flor da pele –
e feeling.
220 | P á g i n a
Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três
Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano
(Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858).
Guavira
no10
A anáfora pronominal demonstrativa “essa” referencia, sintaticamente, a expressão
“mulher fantástica”. Esta aparece completando o sentido do verbo “explorar”, que, por sua
vez, está marcado pelo advérbio “corretamente”. O leitor refere-se à modelo fotografada na
edição anterior, porém, discursivamente, é ao universo midiático que o pronome
demonstrativo remete, à medida que analisamos os efeitos de sentidos que emergem do uso do
adjetivo “fantástica” atribuído à mulher. Em Ferreira (1986, p. 611), dentre os sinônimos para
a palavra “fantástico”, encontramos “incrível, extraordinário, prodigioso” e, ao relacionarmolos ao discurso midiático, recuperamos as marcas do processo de espetacularização pelo qual
a mulher aparece na mídia, mediante os valores atribuídos a sua beleza.
O leitor usa o adjetivo para evidenciar a beleza da mulher, que, segundo ele, não foi
“corretamente explorada” pelo fotógrafo da revista, Luis Crispiano. Ele argumenta que a
beleza da mulher não foi contemplada nas fotografias veiculadas nas páginas da revista,
inscrevendo seu discurso na formação discursiva do homem machista, que elege a beleza
física da mulher como principal recurso para qualificá-la. Para o leitor, o profissional da
revista não soube fotografá-la e, ao utilizar o verbo “explorar”, que tem como sinônimo em
Ferreira (1986, p. 600) “tirar partido ou proveito de”, produz efeitos de sentido que revelam as
marcas do discurso machista.
A análise de outro recurso linguístico no enunciado do leitor aponta, todavia, para uma
descontinuidade discursiva em seu processo identitário, revelando o caráter clivado desse
sujeito do discurso. O uso do advérbio de modo “corretamente” faz surgir efeitos de sentido
que atribuem valores como exatidão ou isenção de erros ao ato de tirar fotografias que ele
afirma que faltaram ao fotógrafo e, em seguida, enuncia os conceitos considerados como
adequados para fotografar a modelo: criatividade, sedução e feeling. Ao atribuir valor a esses
elementos da personalidade humana e relacioná-los ao ato de fotografar, o leitor revela suas
convicções e crenças, de forma particularizada.
Dessa maneira, o enunciado do leitor traz marcas de uma formação discursiva que,
inserida na contemporaneidade, legitima o homem a sentir ou mostrar sentimentos que
“pertencem” socialmente e discursivamente ao universo feminino. Se, em um primeiro
momento, ao referir-se à mulher, ele inscreve seu discurso numa formação discursiva inserida
numa concepção tradicionalista dos papéis do homem e da mulher, em que esta é tomada
como objeto, a partir de sua beleza, e ao homem são atribuídos conceitos como virilidade e
força, num segundo momento, emerge do enunciado do leitor uma outra forma de conceber
tais papéis, a de que o homem também pode ser sentimental.
Por outro lado, é pertinente mencionar que, apesar dos movimentos feministas, ainda
integra o discurso da/sobre a mulher no Brasil, os valores masculinos, ou seja, “muitas
mulheres continuam a aceitar que não compreendemos bem porque somos mulheres, que não
somos boas motoristas porque somos mulheres, que somos tímidas, porque somos mulheres”,
e que, portanto, fomos feitas apenas para o trabalho no espaço privado, educando nossos
filhos e zelando pelo lar. Isso tudo acompanhado por um tom de voz baixo e doce.
(CORACINI, 2007, p. 91)
Segundo Nolasco (1995, p. 16), a representação masculina associada a
comportamentos como virilidade, posse e força passa por uma relativização na sociedade
contemporânea e é possível pensar numa forma de homem “feminino”. Para o autor,
[...] alguns homens, ao reconhecerem suas necessidades afetivas, o fazem referindo-se ao seu lado
feminino. Há, portanto, uma ‘autorização’ para que o indivíduo possa distanciar-se de um certo
determinismo naturalista utilizado pelas ciências humanas e sociais, que definem o que são
221 | P á g i n a
Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três
Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano
(Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858).
Guavira
no10
comportamentos de homem de mulher, tomando para si o que socialmente está atribuído ao outro sexo
(grifos do autor).
O leitor espera do fotógrafo, que também é homem, comportamentos como
criatividade e feeling para “explorar corretamente” a beleza da modelo fotografada. Além de
serem considerados formas femininas de agir socialmente, tais comportamentos também
distanciam o homem de sua representação tradicionalista, que contempla um papel social
objetivo, racionalista e cético, longe da subjetividade que é valorizada pelo leitor no ato de
fotografar do profissional. Para Nolasco (1995), o homem “feminino” deve ser concebido
como uma virtualidade que aponta para uma transição e não para uma nova representação do
masculino. Entendemos também que são novas práticas incorporadas ao discurso masculino.
Diante disso, a análise da prática discursiva do leitor de Playboy mostra que não existe
uniformidade na representação masculina. Para exemplificar, selecionamos mais um
enunciado. O leitor F. V., na edição de fevereiro de 2007, afirma que:
R 20 - A capa ficou ruim, mas o conteúdo da edição compensa. Só Playboy traz Jece Valadão, Stephen
King, Allan Sieber e Alan Moore na mesma edição. Uma crítica: aquele depoimento da repórter que
botou as aranhas para brigar pela primeira vez só pode ser pegadinha. A moça está tirando onda e aquilo
não passa de um bom conto estilo Pulp Fiction. Se eu estiver errado, peço desculpas. (R20)
O leitor começa enunciando valorativamente a revista, utilizando o recurso da
adjetivação. Na figura 7, encontramos a fotografia veiculada na capa da revista, com a surfista
Andréa Lopes, segurando uma prancha, publicada na edição de janeiro de 2007, que, segundo
o leitor, “ficou ruim”.
A partir da análise de R 20, verificamos que, com o recurso da conjunção “mas” e do
verbo “compensar”, o enunciado produz efeitos de sentido de uma discursividade que valoriza
mais o “conteúdo” da revista, que aparece no sentido de repleto de conhecimento, como
erudição, instrução ou saber, contrapondo-se a uma possível superficialidade disseminada
pelas fotografias que exploram o nu feminino. O discurso do leitor remete a uma memória
discursiva que veicula a ideia de que as fotografias de mulheres nuas são consideradas
superficiais e, por isso, não devem ser levadas a sério e também retoma uma discursividade,
recorrente nos enunciados dos leitores, que entende a revista como um veículo de
comunicação sério. O enunciado do leitor inscreve-se numa formação discursiva do homem
contemporâneo à medida que valoriza o conhecimento enquanto erudição, conferindo status
social e poder àquele que o detém.
No entanto, seu discurso é perpassado por conceitos do homem machista e
tradicionalista, revelando as marcas de uma ruptura ideológica em sua discursividade. Ao
analisarmos o restante do enunciado, encontramos estabelecido um outro lugar de dizer
tomado pelo leitor, por meio do uso das anáforas pronominais demonstrativas “aquele” e
“aquilo”.
Quando diz: “aquele depoimento da repórter que botou as aranhas para brigar pela
primeira vez”, ele retoma a matéria jornalística “A primeira noite de uma mulher”, escrita por
Louise Sottomaior, publicada na edição de janeiro de 2007, nas páginas 77, 78 e 79, que
contém o relato da primeira experiência homossexual da jornalista. No texto, ela conta
detalhadamente como foi a primeira vez que se relacionou sexualmente com outra mulher. A
expressão “botou as aranhas para brigar” revela um processo de interdição, uma vez que o
leitor refere-se especificamente à prática sexual ocorrida entre as mulheres, conforme relato
da repórter.
222 | P á g i n a
Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três
Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano
(Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858).
Guavira
no10
O discurso do leitor apresenta pontos de resistência à discursividade do homem
contemporâneo, à medida que contesta as relações sexuais entre pessoas do mesmo sexo,
mostrando marcas de um discurso tradicionalista que concebe os papéis sociais do homem e
da mulher, inclusive sexualmente, como determinados, ou seja, na concepção tradicionalista,
o corpo biológico tem suas funções previamente determinadas. Quando ele diz que “a moça
está tirando onda”, o recurso metafórico e irônico estabelece uma relação de semelhança com
outra expressão, a de que a moça está “brincando” com o leitor ou que não está contando sua
história com seriedade e os efeitos discursivos que encontramos são de objeção à prática
relatada pela repórter.
No estudo da materialidade discursiva, a análise do emprego da anáfora pronominal
demonstrativa “aquilo”, também, revela que o discurso do leitor apresenta resistências ao
discurso contemporâneo, que a revista veicula com a publicação do texto jornalístico sobre a
prática homossexual. O pronome demonstrativo “aquilo” está fora de sua função dêitica ou
anafórica, quando analisamos discursivamente os sentidos que emergem. Seu discurso
incorpora vozes que interpretam a prática da homossexualidade como pervertida e indecorosa
e que, por isso, não pode ser levada a sério.
Sabemos que uma referenciação é bem sucedida quando o interlocutor consegue
identificar o referente do discurso à medida que essa operação lhe é solicitada. Mostramos
aqui que a acessibilidade a pessoas, objetos e abstrações, que é agenciada pela memória
coletiva, instaura os objetos de discurso. Isso mobiliza estratégias discursivas que constroem
efeitos de verdade (GUERRA, 2008), constituindo-se no momento da enunciação, do
acontecimento discursivo, de modo que a linguagem irônica, metafórica não cria o discurso
midiático, mas o constitui de uma determinada forma e num arranjo específico.
O jogo de linguagem denuncia o uso não ordinário de determinadas expressões,
denuncia o momento em que a teoria retira uma expressão de seu contexto, desloca seu
significado e a re-insere nos contextos linguísticos produzindo sentidos truncados.
Verificamos que a prática enunciativa não é exclusivamente linguística, pois lida com o
discurso, a exterioridade do discurso não é a exterioridade do jogo, mas a exterioridade que
indica que não existem discursos que sejam desconectados de outros discursos em teias
complicadas de serem remontadas, ainda que possam ser refeitas parcialmente, por meio de
determinadas opções feitas no arquivo. Para Foucault (2004), os fenômenos não se originam
em algum lugar que seria como o lugar próprio da sua verdade e nem são reflexos dos atos de
um único sujeito. O tempo é uma sucessão de descontinuidades, e é essa fragmentação da
temporalidade da história que nos permite perceber a finitude do homem. Assim, o homem só
existe por intermédio da história e o sujeito é um acontecimento histórico que obedece à lei do
acaso, é apenas uma posição ocupada por quem enuncia algo em determinado lugar, sendo
assim, ele é suscetível às transformações discursivas que possibilitam novas regras de
enunciação. E tais transformações não dependem exclusivamente de um único sujeito.
Embora os Estudos Culturais tenham mostrado que a fragmentação da identidade é
uma realidade, que aquilo que constitui o sujeito contemporâneo é o descentramento e a
fragmentação do eu, a mídia, a serviço de determinadas instituições que detêm o saber e o
poder, se vale de um discurso que procura produzir um efeito de sentido de unidade sobre as
identidades. Esse discurso tende tanto a apagar a fragmentação quanto a fixar um sentimento
de unidade. Atendendo aos interesses econômicos da Revista Playboy, essas práticas parecem
promover um movimento na contramão do que analisam os estudiosos já citados, pois
necessitam de um sujeito possuidor não de várias identidades, mas de um núcleo unificado e
estável. É somente sobre um sujeito assim constituído que se pode exercer o poder de induzir
ao desejo de uma identidade, aquela eleita como única possível de circular na mídia.
223 | P á g i n a
Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três
Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano
(Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858).
Guavira
no10
Palavras finais
O foco analítico deste trabalho teve como meta o estudo dos aspectos do discurso do
homem, em busca das formas de representação masculina na mídia impressa. Verificamos que
a construção de uma identidade masculina destaca a sexualidade, o que significa que ser
homem é ser essencialmente sexual – ou parecer ser essencialmente sexual –, desfrutando de
sua sexualidade, manifestando-a, alardeando-a, sentindo-se orgulhoso dela e fazendo que
fique em evidência. Em um modelo em que a masculinidade se constrói por oposição à
feminilidade, a masculinidade está ligada à sexualidade. Em seu discurso, o homem, leitor da
revista Playboy, se aproveita de um mecanismo de poder instituído pela sociedade, o da
sexualidade, para expor um discurso erótico, que aparece na ordem do discurso machista.
Assim, falar sobre o corpo é tomado como um elemento instigador, que reflete sua
necessidade de perpetuar a condição de dominação que sempre esteve atrelada à sua condição
social.
Os estudos sobre gênero – masculino e feminino – têm contribuído para a
compreensão do ser humano e do mundo, uma vez que os valores e a ideologia das sociedades
ocidentais materializam-se no discurso sexista divulgado pela mídia impressa da revista
Playboy. É fundamental, para compreender o homem contemporâneo, acompanhá-lo nos
espaços que frequenta. No cotidiano, os gestos, as palavras simples e os detalhes adquirem
grande importância, expõem seu íntimo, seus desejos, sua face oculta – ou ocultada – aos
olhos mais apressados. Respondendo às questões formuladas na introdução, afirmamos que a
divisão de papéis sociais entre os gêneros ainda hoje é bastante acentuada. E, com relação à
construção da identidade do sujeito, é claro que, para as camadas da sociedade que leem os
textos midiáticos, as representações de gênero são fortemente sugeridas, ditando normas de
comportamento “adequadas” aos homens atuais.
O estudo da sexualidade constitui-se num campo privilegiado para a análise do social
e do cultural, um microcosmo em que se atualizam identidades de gênero, pertencimentos de
classe e trajetórias sociais. É, assim, uma forma de pensar e sentir, que se caracteriza por ter
uma existência que está para além das consciências individuais; é um domínio da vida social
em que o indivíduo é levado a agir de acordo com um conjunto de disposições previamente
estabelecido e fundado nas representações sociais. As relações afetivas e sexuais dos homens
são estruturadas e atualizadas por um sistema de significados, dado pela cultura, e, portanto,
determinadas por padrões de gênero, diferenças de ordem sócio-econômica.
É notório que quando homens e mulheres falam de sexo, não estão falando de sexo no
mesmo sentido nem da mesma maneira. Enquanto os discursos femininos se centram na
contextualização afetivo-romântica das suas relações, os discursos masculinos enfocam a
capacidade técnica-corporal para o desempenho do ato sexual. No caso dos homens, a
sexualidade aparece despida de expectativas românticas; a sexualidade masculina pertence ao
domínio do corpo ou figura na representada subalternidade dos sentimentos aos desígnios e
pulsões corporais – do sexo. O corpo masculino age de acordo com aquilo que é percebido
como socialmente legítimo e constitutivo da própria identidade masculina. Exemplificando:
enquanto o discurso feminino enfatiza a descrição do contexto afetivo, em que se dá a relação
sexual, falando do relacionamento, do namoro, do afeto e do parceiro, o discurso masculino,
por sua vez, entra em minúcias do ato. Isso porque, para os homens, o conhecimento acerca
do que fazer com o corpo, no ato sexual, constitui um conhecimento técnico a ser adquirido.
A partir dessas particularidades na forma de tratar o sexo, a concepção que está na
base dessa construção relacional das práticas e identidades masculina e feminina é a de que os
homens e as mulheres são, no fundo, de naturezas diferentes, isto é, trata-se de uma distinção
224 | P á g i n a
Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três
Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano
(Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858).
Guavira
no10
em termos de essência. Enquanto a força das mulheres está no plano moral, a força masculina
reside na disposição sexual.
Afirmamos aqui que a linguagem como discurso ou prática social e cultural constitui
as identidades sociais: as identidades são construídas em processos linguísticos, culturais e
sociais de natureza ideológica. Identidade, portanto, é uma questão discursiva. Ou seja,
diferentemente do que o senso comum costuma acreditar, a identidade social não é algo dado,
algo peculiar a um indivíduo ou grupo porque ele é naturalmente como é. Ao contrário, as
construções de identidade são sempre realizadas como um trabalho simbólico dos indivíduos
em sua cultura e com a sua cultura. Não existe uma relação direta entre atribuições de
identidade e o mundo “real”. Entre um e outro existe uma mediação, constituída pelos
processos de apreensão e elaboração simbólica, que inclui, em especial, estratégias de
mediação linguístico-discursivas.
Assim, as identidades sociais construídas pela mídia impressa assumem uma grande
importância, pois condicionam e marcam o modo como os membros de uma determinada
sociedade categorizam os sujeitos e como a sociedade em si é reproduzida ou modificada. As
identidades construídas pela mídia permitem entrever fenômenos da subjetividade, resultantes
de um empreendimento enunciativo no qual o sujeito exerce uma ação com e sobre a
linguagem.
Conferindo importância fulcral aos estudos de Michel Foucault, homologamos aqui
que a construção discursiva da identidade gerou efeitos de verdade no discurso midiático
analisado. A obra do pensador francês muito acresceu aos estudos discursivos e culturais nas
últimas décadas, sendo possível afirmar que as contribuições do historiador do presente são de
extrema relevância para pensarmos a instituição midiática, as relações de poder e a construção
de efeitos de verdade nos mass media da contemporaneidade.
Por fim, adotar uma abordagem teórico-metodológica que pressupõe a produção
discursiva da cultura e de seus sujeitos implica a afirmação da existência material de pessoas,
coisas e eventos. Implica sustentar que tais coisas só significam e se tornam verdadeiras
dentro, ou pela articulação, de determinados discursos enraizados em contextos particulares e
localizados. Nesse sentido, argumenta-se, então, que é o discurso, e não um indivíduo (leitor),
ou uma instituição social isolada (mídia impressa) que o enuncia ou veicula, que produz
aquilo que re-conhecemos, por exemplo, como modos adequados de viver o gênero e a
sexualidade, em um dado momento e contexto. Indivíduos e instituições, sempre já sujeitos de
determinados discursos, podem estar produzindo “textos particulares”, mas estão operando
dentro dos regimes de verdade de uma época e cultura específicas, que tornam esses textos
possíveis e necessários.
Referências
ALMEIDA, Ricardo Luiz Teixeira de. Mulheres de Antenas: Fotografia, legenda e projeção
de identidades no jornalismo desportivo. In Cadernos de Semiótica Aplicada. Vol. 4 nº2.
Araraquara:
UNESP, 2006. Disponível em http://www.fclar.unesp.br/grupos/casa/ CASA-home.html.
Acesso em jan.2008.
BOURDIEU, Pierre. A dominação masculina. Trad. Maria Helena Kühner. 4. ed. Rio de
Janeiro, Bertrand Brasil, 2005.
225 | P á g i n a
Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três
Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano
(Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858).
Guavira
no10
CARDOSO, Silvia H. B. A questão da referência: das teorias clássicas à dispersão de
discursos. Campinas: Autores Associados, 2003.
CORACINI, Maria José R. F. A celebração do outro. Arquivo, memória e identidade.
Campinas: Mercado de Letras, 2007.
FERREIRA, Aurélio B. H. Dicionário Aurélio da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 1986.
FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Trad. Roberto Machado. Rio de Janeiro: Graal,
1979.
______ História da sexualidade I: A vontade de saber. Trad. Maria Thereza da Costa
Albuquerque e J. A. Guilhon Albuquerque. Rio de Janeiro: Graal, 1988.
______ A arqueologia do saber. Trad. Luiz Felipe Baeta Neves. 7 ed. Rio de Janeiro: Forense
Universitária, 2004.
______Sexo, poder e indivíduo – Entrevistas Selecionadas. Trad. David de Souza e Jason de
Lima e Silva. 2 ed. Desterro: Edições Nefelibata, 2005.
GUERRA, Vânia. M. L. O legado de Michel Foucault: saber e verdade nas ciências humanas.
In GUERRA, V. M. L; NOLASCO, E. C. (orgs.) Discurso, alteridades e gêneros. São Carlos:
Pedro & João Editores, 2006, p. 201-213.
______. Referenciação e oralidade no discurso literário. In ______. Práticas discursivas:
crenças, estratégias e estilos. São Carlos: Pedro & João Editores, 2008, p. 65-96.
GUERRA, Vânia M. L.; NICOLA, Janaina. Das palavras às coisas: por uma nova episteme
arqueológica. GUERRA, Vânia M. L.; NOLASCO, Edgar C.; DURIGAN, Marlene. (orgs.)
Identidade e discurso: história, instituições e práticas. Campo Grande: Editora da
Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, 2008, p. 27-44.
LAURETIS, Teresa de. A tecnologia do gênero. In HOLLANDA, H.B. de (org.) Tendências e
impasses: o feminismo como crítica da cultura. Rio de Janeiro: Rocco, 1994, p. 206-242.
LIPOVETSKY, Gilles. A terceira mulher: permanência e revolução do feminismo. Trad.
Maria Lúcia Machado. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.
______. Metamorfoses da cultura liberal: ética, mídia e empresa. Trad. Juremir Machado da
Silva. Porto Alegre: Sulina, 2004.
MACHADO, Roberto. Ciência e saber: a trajetória da arqueologia de Foucault. 2. edição. Rio
de Janeiro: Graal, 1981.
NAVARRO-BARBOSA, Pedro L. O pesquisador da mídia: entre a “aventura do discurso” e
os desafios do dispositivo de interpretação da AD. In: NAVARRO-BARBOSA, Pedro L.
226 | P á g i n a
Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três
Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano
(Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858).
Guavira
no10
(org.) Estudos do Texto e do Discurso. Mapeando Conceitos e Métodos. São Carlos: Claraluz,
2006, p.67-92.
NEVES, Maria Helena M. Gramática de usos do português. São Paulo: Editora da UNESP,
2000.
NOLASCO, Sócrates. (Org). A desconstrução do masculino. Rio de Janeiro: Rocco, 1995.
PÊCHEUX, Michel. Semântica e discurso: uma crítica à afirmação do óbvio. Trad. Eni
Orlandi et al. Campinas: Editora da UNICAMP, 1988.
PLAYBOY. São Paulo, edição nº 372, ano 31, jun. 2006. 168p.
______. São Paulo, edição nº 373, ano 31, jul. 2006. 144p.
______. São Paulo, edição nº 374, ano 32, ago. 2006. 240p.
______. São Paulo, edição nº 375, ano 32, set. 2006. 160p.
______. São Paulo, edição nº 376, ano 32, out. 2006. 168p.
______. São Paulo, edição nº 377, ano 32, nov. 2006. 176p.
______. São Paulo, edição nº 378, ano 32, nov. 2006. 120p.
______. São Paulo, edição nº 379, ano 32, dez. 2006. 188p.
______. São Paulo, edição nº 380, ano 32, jan. 2007. 140p.
______. São Paulo, edição nº 381, ano 32, fev. 2007. 144p.
SCHÜLER, Fernando. Pós-modernidade: ruptura ou continuidade? In _____ ; SILVA,
Janaina M. (orgs.). Metamorfoses da cultura contemporânea. Porto Alegre: Sulina, 2006, p.
41-46.
227 | P á g i n a
Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três
Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano
(Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858).
Guavira
no10
MILTON NASCIMENTO: UMA QUESTÃO DE
GÊNERO COM CRIANÇAS NA ESCOLA
Túlio Alberto Martins de Figueiredo (UFES/UNR-Arg)78
Alberto Carlos de Souza (UNR-Arg)79
Mary Del Priore (UNIVERSO)80
RESUMO: Oficina de gênero realizada com 27 crianças de 11 anos de idade, estudantes de uma escola pública
municipal de Vitória – ES, e que teve como propósito celebrar o Dia Internacional da Mulher, em 8 de março.
Toda a produção estética dessa oficina girou em torno da música “Maria, Maria”, de autoria de Milton
Nascimento e Fernando Brant (1978) e constou de canto coral e elaboração de pictografias femininas (desenho
com massa de modelar), a partir da questão norteadora: “Quem é essa mulher, de quem tanto fala a música?”
Maria foi representada pelas crianças principalmente como figura parental (mãe, avó), trabalhadora (cantora,
feirante, lavadeira e professora) ou ente religioso (santa). A oficina culminou com a apresentação de toda a
produção estética (canto coral e projeção de imagens) para as mães daquelas crianças.
Palavras Chave: Milton Nascimento; Gênero; Música Popular Brasileira; Crianças; Arte.
ABSTRACT: A Gender workshop accomplished with 27 children of 11 years old, students of a public school in
Vitória - in the state of Espirito Santo, celebrated the International Women's Day, on March 8th. All the
aesthetic production of the workshop was focused on the song "Maria, Maria", by Milton Nascimento and
Fernando Brant (1978) which was presented by a coral and female pictures were made, all the discussion was
based on the question: "Who is the woman which the song talks about?" Maria was mainly represented by the
children as a family caracter, like (mother, grandmother), worker (singer, merchant, laundress and teacher) or
religious being (saint). The workshop was ended with a presentation of all the aesthetic production (coral and
the projection of images) for the children's mothers.
Keywords: Milton Nascimento; Gender; Brazilian Popular Music, Children, Art.
Introdução
Este estudo vem relatar as representações sociais que um grupo de 27 crianças de onze
anos de idade, estudantes do 5º Ano da Escola Municipal de Ensino Fundamental (EMEF)
Prof. Vercenílio da Silva Pascoal, no Município de Vitória / ES -, têm sobre a mulher. Tal
estudo constituiu-se como a primeira parte de um projeto que teve como motivação criar um
espaço estético para comemorar, em nossa escola, o Dia Internacional da Mulher, cuja data é
reconhecida pela Organização das Nações Unidas (ONU), desde 1975, como o dia 8 de
março.
78
Docente do Programa de Posgrado da Universidad Nacional de Rosário (Argentina) e da Universidade
Federal do Espírito Santo (UFES), com doutorado em Saúde Pública pela Universidade de São Paulo.
79
Doutorando em Humanidades y Artes do Programa de Posgrado da Universidad Nacional de Rosário
(Argentina) e Mestre em História do Brasil pela Universidade Salgado de Oliveira (UNIVERSO), campus de
Niterói (RJ).
80
Docente do Programa de Mestrado em História da Universidade Salgado de Oliveira (UNIVERSO),
campus de Niterói (RJ) e Membro do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB). Doutora em História
Social pela Universidade de São Paulo com Pós-Doutorado na Ecole des Hautes Etudes en Sciences Sociales.
228 | P á g i n a
Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três
Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano
(Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858).
Guavira
no10
Esta data em que se comemora o Dia Internacional da Mulher foi marcada há 152 anos
por uma tragédia: um incêndio no dia 8 de março de 1857, na cidade de Nova Iorque, que
causou a morte de 130 manifestantes, dentre as centenas de mulheres trabalhadoras das
fábricas de vestuários e têxteis. Essas mulheres, em greve, protestavam contra os baixos
salários, as péssimas condições de trabalho e a jornada estafante de 12 horas diárias de
trabalho (BRITO, 2003, p.1).
Dessa forma, ocupando cada vez mais os lugares de trabalho, a mulher se vê mais
obrigada a construir um equilíbrio entre o público e o privado. Assim posto, Del Priore (2000)
observa que,
[...] são inúmeras as dificuldades e os sacrifícios da mulher quando ela quer conciliar
seus papéis familiares e profissionais. Ela é obrigada a utilizar estratégias complicadas
para dar conta do que os sociólogos chamam de “dobradinha infernal”. A carga mental
em que se constituem as imbricações e sucessões de atividades profissionais, o
trabalho doméstico e a educação dos filhos são mais pesados para ela do que o do
homem. (...) muitas mulheres, menos afortunadas, são assim empurradas para uma
pesadíssima jornada de trabalho ( DEL PRIORE, 2000, p. 12- 13).
Sobre este relato, especificamente, tratou-se de um projeto implementado à luz dos
Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) – um documento editado pelo Ministério da
Educação e que oferece as balizas para se construir uma referência curricular nacional para o
ensino fundamental. Dentre as suas muitas recomendações estes parâmetros recomendam aos
educadores que,
[...] as crianças e os jovens deste país desenvolvam suas diferentes capacidades,
enfatizando que a apropriação dos conhecimentos socialmente elaborados é a base
para a construção da cidadania e da sua identidade, e que todos são capazes de
aprender e mostrar que a escola deve proporcionar ambientes de construção dos seus
conhecimentos e de desenvolvimento de suas Inteligências com suas múltiplas
competências (BRASIL, 1998, p. 10-11).
Tais PCN prescrevem também que os temas sociais urgentes – chamados Temas
Transversais -, devam ser desenvolvidos de maneira interdisciplinar no ensino fundamental
(BRASIL, 1998).
De acordo com os referidos PCN, é necessário que os docentes atuem com a
diversidade existente entre os alunos e que com os seus conhecimentos prévios sirvam como
fonte de aprendizagem de convívio social e não apenas como um meio de aprendizagem de
conteúdos específicos (BRASIL, 1998).
Entendermos que as questões afeitas às relações de gênero – aqui incluídas a mulher e
a sua relação com o trabalho -, constituem um tema social urgente. Como forma de celebrar o
Dia Internacional da Mulher na escola, propusemos este projeto interdisciplinar de
protagonismo das crianças, deixando emergir suas representações sobre a mulher.
Conforme observam Schiele e Boucher (2001), as representações são construções
simbólicas que norteiam as atividades. Tais representações são elaboradas coletiva e
socialmente pelos atores sociais e servem para os mesmos nomearem, apreenderem e
transformarem o seu meio ambiente. Essas representações circulam e transformam-se
principalmente por meio das relações de comunicação desenvolvidas entre os atores sociais.
Como podemos observar, nas décadas posteriores constituíram um palco de luta pela
obrigatoriedade de direitos, e os mesmos, de idéias configuradas, provocando a repensar uma
formação de relações sociais. Estou de acordo com Pinto e Sarmento (1999) que resguardam,
229 | P á g i n a
Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três
Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano
(Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858).
Guavira
no10
“ (...) a realidade social não se transforma por efeito direto de normas jurídicas, tampouco pela
emergência de outros olhares e concepções da sociedade e dos sujeitos” (PINTO;
SARMENTO, 1999, p. 14).
Assim posto, Bakhtin (1988) observa que,
[...] a consciência individual não só nada pode explicar, mas, ao contrário, deve ela
própria ser explicada a partir do meio ideológico e social [...] a consciência adquire
forma e existência nos signos criados por um grupo organizado no curso de suas
relações sociais (BAKHTIN, 1988, p. 35).
Sobre essas representações, a que nosso sistema perceptivo, cognitivo, pode ser
colocado. Bower (1977) entende que,
[...] No mundo feito por mãos humanas em que vivemos, a percepção das
representações é tão importante como a percepção dos objetos reais. Por representação
eu quero dizer um conjunto de estímulos feitos pelos homens, que têm a finalidade de
servir como um substituto a um sinal ou som que não pode correr naturalmente.
Algumas representações funcionam como substitutos de estímulos; elas produzem a
mesma experiência que o mundo natural produziria (BOWER, 1977, p. 58).
Sobre as representações sociais - uma forma de conhecimento prático que se insere
muito bem entre as correntes que estudam o senso comum -, Moscovici (1978, p. 26) as
definem como “uma modalidade de conhecimento particular que tem por função a elaboração
de comportamentos e a comunicação entre os indivíduos”, visto que constituem “um corpus
organizado de conhecimentos e uma das atividades psíquicas graças às quais os homens
tornam inteligível a realidade física e social, inserem-se num grupo ou numa ligação cotidiana
de trocas, liberando os poderes de sua imaginação” (MOSCOVICI, 1978, p. 28).
Na elaboração do referido projeto, o nosso propósito foi o de deixar emergir as
representações que as crianças – enquanto atores sociais cheios de conhecimentos prévios -,
tinham sobre as mulheres. Para tal nos apropriamos da música “Maria, Maria”, de autoria de
Nascimento e Brant (1978), como ponto de partida da nossa intervenção, por entendermos que
esta letra é um hino de amor às mulheres (in)comuns brasileiras, que, assim como aquelas
trabalhadoras norte-americanas de 1857, ainda lutam por fazer valer os seus direitos e
participam da construção do nosso cotidiano social.
Apoiados pela musicalidade da interpretação de “Maria, Maria”, na voz de Milton
Nascimento, buscamos através do desenvolvimento da tensão psíquica das crianças, dar
visibilidade às representações que as mesmas têm sobre a mulher. Utilizamos para tal a
linguagem estética, compreendida pela sua dimensão plástica e musical.
Sobre o conceito de tensão psíquica, tão essencial ao processo de criação, Ostrower
(1987) observa que,
[...] Criar não representa um relaxamento ou um esvaziamento pessoal, nem uma
substituição imaginativa da realidade; criar representa uma intensificação do viver, um
vivenciar-se no fazer; e, em vez de substituir a realidade, é a realidade; é uma
realidade nova que adquire dimensões novas pelo fato de nos articularmos, em nós e
perante nós mesmos, em níveis de consciência mais elevados e mais complexos.
Somos, nós, a realidade nova. Daí o sentimento do essencial e necessário no criar, o
sentimento de um crescimento interior, em que nos ampliamos em nossa abertura para
a vida (OSTROWER, 1987, p. 27-28).
230 | P á g i n a
Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três
Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano
(Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858).
Guavira
no10
O ponto de partida do projeto foi o alcance do seguinte objetivo: conhecer as
representações sociais que crianças têm sobre as mulheres, tendo como referência a música
“Maria, Maria”, de Milton Nascimento e Fernando Brant.
Metodologia
Tratou-se de uma experimentação estética de caráter plástico, teatral e musical,
enquanto intervenção de ensino-aprendizagem interdisciplinar (Arte – Educação Física), em
uma escola de ensino fundamental de Vitória.
A intervenção teve como cenário a Escola Municipal de Ensino Fundamental (EMEF)
Prof. Vercenílio da Silva Pascoal, da Rede Municipal de Educação de Vitória / ES. O
universo desta intervenção foi constituído pelos 27 estudantes da turma única do 5º ano do
Ensino Fundamental da referida escola.
Sob o ponto estratégico que aguça esse trabalho, a pesquisa pode ser tanto descritiva,
quanto experimental. Suas diferenças fundamentais podem ser evidenciadas, pelo fato que a
descritiva, o pesquisador procura conhecer e interpretar a realidade, sem na mesma, interferir
para modificá-la. Enquanto na experimental, o pesquisador interfere deliberadamente em
alguns aspectos da realidade, a fim de estudar seus efeitos. Essa forma se denomina
experimento: pois, não existe pesquisa experimental sem experimento.
Para tornar real uma pesquisa tanto descritiva ou experimental é necessário trabalhar
com variáveis. Assim posto, Rudio (1986) entende que: “[...] Este termo- “variáveis”constantemente usado na ciência, tem sua origem no campo da matemática, onde serve para
designar uma quantidade que pode tornar diversos valores, geralmente considerados em
relação a outros valores” (RUDIO, 1986, p.69).
O trabalho foi realizado através de atividades de laboratório e constou dos seguintes
momentos:
1º) Leitura compreensiva da letra “Maria, Maria”, composta por Nascimento e Brant (1978);
buscando esclarecer termos ou expressões desconhecidas pelas crianças;
Maria, Maria
É um dom, uma certa magia
Uma força que nos alerta
Uma mulher que merece
Viver e amar
Como outra qualquer
Do planeta
Maria, Maria
É o som, é a cor, é o suor
É a dose mais forte e lenta
De uma gente que rí
Quando deve chorar
E não vive, apenas aguenta
Mas é preciso ter força
É preciso ter raça
É preciso ter gana sempre
Quem traz no corpo a marca
Maria, Maria
Mistura a dor e a alegria
Mas é preciso ter manha
É preciso ter graça
231 | P á g i n a
Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três
Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano
(Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858).
Guavira
no10
É preciso ter sonho sempre
Quem traz na pele essa marca
Possui a estranha mania
De ter fé na vida....
Mas é preciso ter força
É preciso ter raça
É preciso ter gana sempre
Quem traz no corpo a marca
Maria, Maria
Mistura a dor e a alegria...
Mas é preciso ter manha
É preciso ter graça
É preciso ter sonho sempre
Quem traz na pele essa marca
Possui a estranha mania
De ter fé na vida....
Ah! Hei! Ah! Hei! Ah! Hei!
Ah! Hei! Ah! Hei! Ah! Hei!!
Lá Lá Lá Lerererê Lerererê
Lá Lá Lá Lerererê Lerererê
Hei! Hei! Hei! Hei!
Ah! Hei! Ah! Hei! Ah! Hei!
Ah! Hei! Ah! Hei! Ah! Hei!
Lá Lá Lá Lerererê Lerererê!
Lá Lá Lá Lerererê Lerererê!...
Mas é preciso ter força
É preciso ter raça
É preciso ter gana sempre
Quem traz no corpo a marca
Maria, Maria
Mistura a dor e a alegria...
Mas é preciso ter manha
É preciso ter graça
É preciso ter sonho, sempre
Quem traz na pele essa marca
Possui a estranha mania
De ter fé na vida
Ah! Hei! Ah! Hei! Ah! Hei!
Ah! Hei! Ah! Hei! Ah! Hei!!
Lá Lá Lá Lerererê Lerererê
Lá Lá Lá Lerererê Lerererê
Hei! Hei! Hei! Hei!
Ah! Hei! Ah! Hei! Ah! Hei!
Ah! Hei! Ah! Hei! Ah! Hei!
Lá Lá Lá Lerererê Lerererê!
Lá Lá Lá Lerererê Lerererê!...
2º) Audição silenciosa da música;
3º) Memorização da letra da música, através da escuta e canto simultâneo e,
4º) Representação da mulher, através da técnica de desenho com massa de modelar, a partir da
seguinte questão norteadora: “Quem é essa mulher, de quem tanto fala a música?”
232 | P á g i n a
Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três
Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano
(Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858).
Guavira
no10
O trabalho foi implementado em uma oficina de arte na referida escola, utilizando-se
como estratégia de ensino/aprendizagem a leitura, a audição, a memorização - da letra da
música -, e a representação pictórica individual que os estudantes têm sobre a mulher - Maria, de que tanto fala a música. Na criação das pictografias adotamos a orientação de Klepsch e
Logie (1984), que recomendam o processo de livre criação, pressupondo, pois, um mínimo de
interferência do adulto sobre o processo de criação estética da criança. A análise de conteúdo
(BARDIN, 2000) norteou o processo de categorização do material produzido pelos alunos.
Para a elaboração do relatório desta experimentação estética tomamos como suporte a
Análise de Conteúdo, entendida como,
[...] um conjunto de técnicas de análise das comunicações visando obter, por
procedimentos sistemáticos e objetivos de descrição de conteúdo das mensagens,
indicadores (quantitativos ou não) que permitam interferência de conhecimentos
relativos às condições de produção/ recepção (variáveis inferidas) dessas mensagens
(BARDIN, 2000, p. 42).
Maria, Marias...
Nem todos os fenômenos sociais são formadores de Representações Sociais. Uma
Representação Social surge onde houver perigo para uma identidade coletiva e traduz a
relação de um grupo com um objeto socialmente valorizado. Assim, toda Representação
Social é a representação de algo e/ou de alguém por alguém.
Nossa opção por esse quadro teórico ficou assim justificada: a representação de
alguém – a mulher –, por um grupo de crianças. Mas afinal, quem são essas crianças? São,
conforme nos apresenta Del Priore (2006), crianças brasileiras como aquelas que estão em
toda parte, com destinos variados e variados rostos: rostinhos mulatos, brancos, negros e
mestiços. Algumas amadas e outras simplesmente usadas.
A partir das cenas de produção estética elaboradas por aquelas crianças, através da
técnica de desenho com massa de modelar em papel branco, construímos cinco categorias
analíticas que nos deram conta de compreender que, para essas crianças, Maria faz-se
representar, nesta ordem, principalmente como:
1) figura parental (mãe = 6 referências, avó = 3 referências);
2) trabalhadora (cantora = 2 referências, feirante = 3 referências, lavadeira = 3 referências e
professora = 1 referência);
3) ente religioso (santa = 5 referências);
4) personagem (mutante de uma novela = 3 referências) e, por fim,
5) simplesmente como persona (mulher feliz = 1 referência).
Podemos evidenciar que neste estudo, as representações de Maria como figura parental
– mãe ou avó -, ou como trabalhadora, são as que mais se sobressaem, denotando a
importância da família e do trabalho feminino na vida dessas crianças.
Sobre a família, D’Inácio (2004) observa que foi a partir do século XIX, época
marcada pelo início da urbanização brasileira, que a mulher ressignifica, pela primeira vez em
nosso contexto histórico, o seu lugar nas relações da chamada família burguesa, fortemente
valorizada pelos sentimentos de intimidade e maternidade. Dessa forma, a mulher passa a
fazer parte de um sólido ambiente familiar, o lar acolhedor, tendo como função o cuidar dos
“filhos educados e (ser) esposa dedicada ao marido, às crianças e desobrigadas de qualquer
trabalho produtivo, representavam o ideal de retidão e probidade, um tesouro social
imprescindível” (D’INACIO, 2004, p. 223).
233 | P á g i n a
Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três
Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano
(Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858).
Guavira
no10
Tal concepção de sociedade, reservando “ao homem, o universo do público, o trabalho
remunerado, o papel de provedor econômico da família, a racionalidade, a fibra” (SOUZA,
1997, p. 182) e “à mulher, o universo do privado, o trabalho não remunerado do lar, o cuidado
com os filhos, a sensibilidade, a fragilidade” (Op. Cit., p. 182) foi algo que perdurou ao longo
dos séculos. Trata-se, no entanto, de uma visão burguesa da sociedade brasileira, pois nas
camadas de baixo poder aquisitivo as mulheres, em todos os tempos sempre estiveram
inseridas no mercado de trabalho.
No presente estudo, as crianças referem Maria como uma trabalhadora – geralmente
inserida em ocupações pertencentes ao setor de serviços: Maria é feirante, ou lavadeira, ou
professora ou cantora. Em relação à inserção da mulher de classes menos favorecidas no
trabalho, temos de considerar que historicamente as mesmas sempre foram pressionadas a
obter remuneração “(...) As empregadas domesticas (...) existem desde o fim da escravatura.
No campo, as mulheres sempre estiveram presentes na lavoura, basta ver qualquer ilustração
de colheitas de café ou cana de açúcar para constatá-lo...” (SOUZA, 1997, p. 182).
A finalização do projeto se deu através de um encontro de socialização do mesmo com
as mães das crianças: as crianças receberam suas mães cantando em coro a canção “Maria,
Maria”. Simultaneamente, as representações elaboradas foram apresentadas em uma tela.
Considerações Finais
O ponto de partida desta intervenção consistiu na exploração da musicalidade de
Milton Nascimento, protagonista do “movimento” Clube da Esquina, que floresceu em Minas
Gerais, a partir da década de 60, no auge de um dos períodos mais críticos da história
contemporânea brasileira: a ditadura militar (BORGES, 1996). Dentre o seu conjunto da obra,
nossa opção se deu pela música Maria, Maria.
As representações sociais da mulher, aqui apresentadas, são entidades quase tangíveis
que “circulam, cruzam-se e se cristalizam incessantemente através de uma fala, um gesto, um
encontro” (MOSCOVICI, 1978, p. 41), no universo cotidiano dessas crianças.
A partir de sua vivencia e de sua cultura local, as mesmas, foram convidadas a criarem
suas representações sobre a mulher - Maria-, com imaginassem, procedendo, a seguir o
desenho como massinha de modelar. Compareceram 27 pictografias que foram elaboradas
pelos alunos.
Por meio desses desenhos, o estudo evidenciou que, para essas crianças, Maria se faz
representar como aquela mulher comum, representada por Milton Nascimento, em sua
infância de menino negro, filho adotivo, criança traquina, tão igual a muitas das crianças que
frequentam as nossas escolas de periferia: Maria é mãe, ou avó, ou trabalhadora, ou santa, ou
– simplesmente -, uma mulher que é feliz!
Referências
BARDIN, L. Análise de conteúdo. Lisboa: Edições 70, 2000.
BAKHTIN, M. Marxismo e filosofia da linguagem. 4. ed. Trad. Michel Lahud e Yara
Frateschi Vieira. São Paulo: Hucitec, 1988.
234 | P á g i n a
Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três
Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano
(Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858).
Guavira
no10
BORGES, M. Os sonhos não envelhecem: histórias do Clube da Esquina. São Paulo: Geração
Editorial, 1996.
BRASIL. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros curriculares nacionais: terceiro e
quarto ciclos do ensino fundamental: introdução aos parâmetros curriculares nacionais /
Secretaria de Educação Fundamental. Brasília: MEC/SEF, 1998.
BRITO, M. Dia Internacional da Mulher – história. In: Femenina comemora o dia da mulher
na Fafi. Disponível em: www.vitoria.es.gov.br/secretarias/cultura/femenina2003.htm. Acesso
em 8 fev. 2009.
BOWER, T. The perceptual world of the child. Londres: Fontana, 1977.
DEL PRIORE, M. História das crianças no Brasil. 5 ed. São Paulo: Contexto, 2006.
______. Corpo a corpo com a mulher: pequena história das transformações do corpo
feminino no Brasil. São Paulo: Editora SENAC, 2000.
D’INACIO, M.A. Mulher e família burguesa. In: DEL PRIORE, M. (Org.). História das
mulheres no Brasil. São Paulo: Contexto, 2004.
KLEPSCH, M.; LOGIE, L. Crianças desenham e comunicam. Porto Alegre, Artes Médicas,
1984.
MOSCOVICI, S. A representação social da psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar, 1978.
NASCIMENTO, M.; BRANT, F. Maria, Maria. In: Clube da Esquina 2. Rio de Janeiro: EMIODEON, 1978. 2 CD, CD 2, faixa 8.
OSTROWER, F. Criatividade e processos de criação. 19 ed. Petrópolis: Vozes, 1987.
PINTO, M.; SARMENTO, M. (org.). Saberes sobre crianças: para uma bibliografia sobre a
infância e as crianças de Portugal. (1974- 1998): Centro de Estudos da Criança/ Universidade
do Minho, 1999;
RUDIO, F. V. Introdução ao projeto de pesquisa científica. Rio de Janeiro: Petrópolis,
Vozes, 1986.
SCHIELE, B.; BOUCHER, L. A exposição científica: uma maneira de representar a ciência.
In: JODELET, D. (org.). As representações sociais. Rio de Janeiro: Eduerj, 2001. p. 363-377.
SOUZA, B.P. Mães contemporâneas e a orientação dos filhos para a escola. In: MACHADO,
A. M.; SOUZA, Marilene P. R. Psicologia escolar: em busca de novos rumos. São Paulo:
Casa do Psicólogo, 1997.
235 | P á g i n a
Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três
Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano
(Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858).
Guavira
no10
REGIONALISMO E LITERATURA SUL-MATO-GROSSENSE
NA FRONTEIRA BRASIL-PARAGUAI
Paulo Sérgio Nolasco dos Santos (UFGD/FACALE) 81
RESUMO: Este artigo visa a divulgar uma pesquisa acerca da obra do escritor regionalista sul-mato-grossense
Hélio Serejo. Trata-se de escritor regionalista cujo nome e obra mostram-se de significativa produtividade para
os Estudos Culturais e para a região da fronteira Brasil-Paraguai. Originariamente, essas reflexões são, ainda,
resultados do nosso projeto de pesquisa institucional, intitulado “Regionalismos culturais: trocas e relações
entre literaturas de fronteira”, em desenvolvimento, e fazem parte do livro Fronteiras do local: roteiro para uma
leitura crítica do regional sul-mato-grossense (2008), de nossa autoria. Sob esta perspectiva, nossa reflexão
volta-se para a revisão do Regionalismo como renovada categoria trans-histórica, cujo conceito operatório tornase validado, em sua análise, para explicar os atuais transladamentos culturais e ao que o discurso crítico latinoamericano denomina “transculturação narrativa”.
Palavras-chave: Regionalismo; Hélio Serejo; Fronteira Brasil-Paraguai; Região sul-mato-grossense.
ABSTRACT: This essay aims to publish a research concerning the work of Hélio Serejo, a regional writer from
Mato Grosso do Sul. It refers of the works of a regionalist writer whose name and work are shown to present a
significant productivity for the Cultural Studies and to the frontier of Brasil-Paraguai’s region. Originally,
these reflections are, also, results of our Project of Institutional Research entitled “Cultural Regionalisms:
changes and relations between the frontier literatures” (in development) and make part of the book Local
Frontiers: itinerary to a critical reading of the sul-mato-grossense’s regional (2008), of our authorship. Under
this perspective, our reflection goes back to the revision of the Regionalism as a renewed trans-historical
category, whose operative concept is validated, in this analysis, to explain the current cultural translations and
what Latin-American critical speech denominates “narrative transculturation.”
Keywords: Regionalism; Hélio Serejo; Brasil-Paraguai’s frontier; Sul-mato-grossense’s region.
Hélio Serejo – nenhuma dúvida – é o
florão do regionalismo e do folclore do
Estado de Mato Grosso do Sul. Ninguém
o iguala nestes dois campos. É o “rei” que
reina
esplendorosamente
e...
gigantemente.
(Elpídio Reis - Os 13 pontos de Hélio
Serejo, 1980, p. 17).
Na fronteira “sulestemagrossense”
Iniciemos este artigo, que visa à abordagem do regionalismo na literatura hoje, com
duas citações. A primeira sobre a obra de Hélio Serejo, o nosso regionalista sul-matogrossense, da fronteira Brasil–Paraguai, e a segunda sobre a do conhecido escritor baiano
Jorge Amado, procurando extrair de ambas as citações o que elas põem em pauta,
explicitamente ou como dado sugerido ao leitor arguto, e sobretudo no que as duas implicam
81
Doutor em Literatura Comparada, Pesquisador do CNPq, Professor de Teoria da Literatura e Literatura
Comparada nos cursos de Graduação e Pós-Graduação da Universidade Federal da Grande Dourados. Autor de
Nas malhas da rede: uma leitura crítico-comparativa de Julio Cortázar e Virginia Woolf (Editora UFMS, 1998);
O outdoor Invisível: Crítica reunida (Editora UFMS, 2006) e de Fronteiras do Local: Roteiro para uma leitura
crítica do regional sul-mato-grossense (Editora UFMS, 2008), entre outros. Membro do NECC (Núcleo de
Estudos Culturais Comparados) na UFMS.
236 | P á g i n a
Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três
Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano
(Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858).
Guavira
no10
valoração da poética
diferenciadores:
de dois escritores situados num tempo-espaço relativamente
Já comparado a Jorge Amado para as letras nacionais, é Lenine Póvoas, o historiador e
crítico literário, quem destaca, em Hélio Serejo, o autor de temas regionais, “mais
importante do que Jorge Amado, porque escreve sobre uma das regiões
sociologicamente mais importantes do país: a do ‘Melting-pot’ da fronteira BrasilParaguai.” (Lins, Apud Silva; Santos, 2009, p.6). (grifo nosso).
Aí justamente Jorge Amado revelou-se mestre incomparável. [...] essa extraordinária
capacidade de renovação [...] se exerceu sempre sobre a sua base regional, o
recôncavo baiano, [...]. Residia no acervo lendário e folclórico (às vezes sociológico)
da região que o escritor ofereceu à literatura, fosse o naturalismo de Jubiabá ou a
prodigiosa invenção de Gabriela. Por isso mesmo, Jorge Amado constitui o caso limite
do regionalismo brasileiro. (CHAVES, 2006, p. 38).
A primeira citação serve ao propósito tanto de Lenine Póvoas como meu, ao discorrer
sobre o assunto, que é o de constituir um espaço e universo de discurso que, sem rivalizar com
outras regiões e regionalismos, possa caracterizar um entorno comum ou locus de enunciação,
a partir do qual a região “sulestemagrossense”, fronteira Brasil-Paraguai, seja fruto
constitutivo de uma voz e dicção própria e, grosso modo, integrada as demais regiões e países
do Cone-Sul.
Sob esta perspectiva, daremos ênfase à ampla e copiosa, porem pouco conhecida e
abordada, prosa regionalista de Hélio Serejo, elegendo-o, a despeito de tantos outros
escritores sul-mato-grossenses, como, por exemplo, Manoel de Barros. Neste caso, a
justificativa da seleção torna-se a própria “justificativa”, uma vez que tanto Manoel de Barros
como Jorge Amado dispensariam, no panorama da literatura brasileira contemporânea,
maiores apresentações.
A língua crioja ou crioulismo de Hélio Serejo
Hoje não mais lamentamos o fato de as obras de Hélio Serejo e sua vasta produção,
que se achava dispersa em sessenta volumes e praticamente desconhecida dos pesquisadores,
pois que toda sua produção literária foi recém-reunida e publicada, pelo Instituto Histórico e
Geográfico do Mato Grosso do Sul, em edição especial, organizada por Hildebrando
Campestrini: Obras completas de Hélio Serejo, em 9 (nove) volumes, num total de 2.800
páginas, incluindo todos os livros publicados pelo autor, em sistematização e revisão final do
próprio Campestrini (Cf. SEREJO, 2008).
Considerado o “nosso Catulo, o das paixões sul-mato-grossenses”, Hélio Serejo
dedicou inumeráveis páginas à sua cidade de Ponta Porã/MS, fronteira seca com Pedro Juan
Caballero/PY. Nascido em 1º de junho de 1912, na Fazenda São João, no Município de
Nioaque, Hélio Serejo faleceu no dia 08 de outubro de 2007, em Campo Grande, aos 95 anos
de idade. Cidade predestinada a sua, pois, segundo o abalizado escritor Elpidio Reis, se
houvesse um concurso “para saber-se qual a cidade do mundo que mais livros tem sobre si
237 | P á g i n a
Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três
Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano
(Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858).
Guavira
no10
escritos, Ponta Porã – com as obras de Hélio Serejo – ganharia de corpo inteiro!” (LINS,
1996, p. 79).
Não era sem tempo a atenção que sua vasta produção reclama: se em cada uma das
regiões do Brasil encontra-se um relato constitutivo da região, aqui deparamos com a
formidável narração de um escritor antes de tudo conhecedor dos mais variados estratos da
gente, da formação étnica e do povoamento da região sul-mato-grossense. Em tudo e por tudo,
a extensa obra de Helio Serejo – cujas composições literárias são lendas, contos, poesias,
narrativas ervateiras e evocações de imagens do sertão –, é compêndio dos usos e costumes
regionais e principalmente das tradições relacionadas com a atividade ervateira.
É do próprio Hélio Serejo a caracterização mais adequada do locus de enunciação do
que denominamos a sua variada produção de textos e o próprio lugar da cultura na qual se
filiou, num emaranhamento resultante no contexto geral de sua prosa poética; em “Amor pelo
crioulismo”, que abre o volume de Contos crioulos, lê-se no primeiro parágrafo: “Desde
meninote fui assim: um enamorado, em grau muito elevado, das paisagens sertanejas,
portanto, dos ‘mistérios’ das coisas charruas. Fui – sem nenhuma dúvida – um trilhador de
caminhos, um observador incansável, um perguntador de muito fôlego.” Continua o narrador,
falando da intensidade com que sorveu todos os momentos formadores de um “crioulismo
embriagador”:
Sorvi, com muita sofreguidão, o selvático, o descampado, os cômoros, os brejos
infindáveis, as croas, o vargeado de moitas clorofiladas, os pára-tudos chamadores de
raios, a solitária lagoa de água azulada, os trilheiros dos bichos-do mato, o vento
sulino anunciando chuva, a sinfonia das taboas nos alagadiços, a algazarra ruidosa das
‘baitacas’ na roça de milho, as ‘canhadas’ onde as aves diversas buscam o farnel
apetitoso, as árvores desgalhadas, no espigão de pouca sombra, o chirlar festivo da
passarada, o urro da fera andeja que corta o despovoado sem rumo determinado, o
barulho cantante da quebra d’água no coração das brenhas, e o luar que branqueja a
vastidão. (SEREJO, 1998, p.35).
Ademais, em toda a coletânea de Contos crioulos registram-se alusões e referências
mil à virtude de permanecer entontecido com os amanheceres e a magia do sol-se-pondo.
Também o relato “Das coisas crioulas” é emblemático, principalmente pela fixação do
crioulismo e das experiências no mundo bruto da erva-mate, onde o crioulismo “impera, não
só na vivência diuturna, mas também no falar, nas brejeiradas, nas manifestações de alegria,
nas festanças e nas caminhadas exploradoras.”, pois que o crioulismo se manifesta em todo o
labutar do ervateiro:
O velho pilão, o catre mal trançado, o arreio cacareco, o gamelão, o maroto chapéu
carandá, o poncho descolorido, soltando fiapos, a forma de rapadura, o ferro de brasa
para passar roupa, a mariquinha, corote, o panelão de ferro desbeiçado, o porongo
guardador de água, a caneca de latão, o resto de cobertor para se defender do frio, o
sapatão de couro de anta e centenas de outros pertences são marcas indestrutíveis do
crioulismo. (SEREJO, 1998, p.145).
A presença do autor como narrador e/ou personagem é uma constante nos relatos de
Hélio Serejo. Em muitos deles é a figura do próprio pai do escritor – o furador de sertão Don
Chico Serejo –, que, em companhia do próprio Helio Serejo, tornam-se desbravadores e
criadores dos “Ranchos”, espécie de parada, morada que abrigava o ervateiro, freqüentemente
assentados em lugares tão ermos que eram batizados de “divisas com o inferno”, pois situados
em região de dificílimo acesso onde a maleita não perdoava nenhum vivente. Atravessando as
238 | P á g i n a
Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três
Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano
(Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858).
Guavira
no10
lonjuras da linha fronteiriça e só conhecendo uma estrada boiadeira, por ali chegavam levas
guaranis, paraguaios que sofriam, derramando o seu suor no mundo bruto e selvagem da ervamate, trazendo para os ervais da região sulina mato-grossense, muitas criaturas excêntricas,
algumas de hábitos verdadeiramente anormais, e até denotadoras de demência – como relata
em “Tipos excêntricos dos ervais”. Tipos pertencentes a um mundo de amarguras, misérias e
desgraças, como a personagem Zico do conto homônimo, dono de uma filosofia crioula, que
Serejo assim caracterizou: frangalho humano, açoitado rudemente pelo vento de todos os
infortúnios, caladão e envelhecido, descrente e amargurado; e ainda como as personagens
Palmira e seu filho, no relato de “O conto”, que tinham uma expressão de horror na face
bexigosa e desenhados, nos próprios gestos vagos, o infortúnio e a dor. Tipos que concorrem
e resultam da paisagem aberta, vazia e distante, formadora do variegado cipoal dos ervais; e
de músicas que ressumam amores perdidos, desditas, abandono e infelicidade, num mundo
sem fronteiras, sem lei nem rei, onde velhos peões e guapos borrachos trançam passos em
falso sob o compasso de um porno-forró.
Assim, a lida, a vida enfim, nos ervais, só era suportável para um peão do erval “guapo
e calmo como o Janjão”, “se não era da erva, o que veio fazer ali?”. Num lance de olho se
reconhecia o peão que não entendia nada de erval: “barbacuá, tirú, nangarekuara, topuitá,
mbureo, caácaigue, mensu, guaino, capataz, rancho, sapêco e ataqueio.” (Op. cit., p. 81). Peão
bom era o Janjão: “O que carregava no íntimo, dia e noite, era a sua vivência sertaneja: o
cantar do galo, madrugadão, o aboio do gado, queimada de campo, leiteação, tropilha rumo à
mangueira, carreta cortando o espigão, a passagem do ribeirão que a enxurrada esburacou e
suas músicas tão do gosto dos moradores da região.” (Op. cit., p.56).
A história da gente mato-grossense adensa-se nesses “contos crioulos”, nascendo daí
as lendas da erva-mate e do urutau, um fabuloso registro folclórico e de glossários, além da
sua capacidade inventiva de recriação da linguagem:
Dia e noite, noite e dia, eu me irrito e xingo, vendo esses pingos, pingo a pingo,
caírem na calçada lamacenta. Pinga, pingando, vai o chuvisco pingando, tamborilando
no zinco, parece até que dizendo: um pingo, outro pingo: um pingo, outro pingo. E
nesse pingar, de pingos pingalhados, o homem pingando pensamento, embarafusta-se
no tédio e, sem ser pinguço, pensa na pinga. Pinga esquenta, encoraja, e traz pingo a
pingo, pingaços de lembranças ao coração! (Op. cit., p.31).
Ainda, em tudo e por tudo a prosa regionalista de Helio Serejo pode-se traduzir naquele
excerto do Discurso do escritor, quando de seu ingresso na Academia Sul-mato-grossense de
Letras, que eu reproduzi durante a sessão de “Homenagem a Helio Serejo”, promovida pela
Academia Douradense de Letras, no dia 10 de abril de 2005, e que vale transcrever:
Eu sou o homem desajeitado e de gestos xucros que veio de longe. Eu sou o
fronteiriço que na infância atribulada recebeu nas faces sanguíneas os açoites dos
ventos dessa região, vadios e haraganos, que, no afirmar da lenda avoenga, nascem
nas terras incaicas, num recôncavo do mar, varrem o altiplano boliviano, penetram o
imenso aberto do Chaco paraguaio, para depois, exaustos do bailado demoníaco, numa
cólera e estrupício de tormenta, arrebentar, cortantes e gélidos, nesta querida cidade de
Ponta porã, a Princesa da Fronteira, sentinela avançada das terrarias sul-matogrossenses. Eu vim dos ervais, meus irmãos, do fogo dos barbaquás, do canto triste e
gemente dos urus, dos bailados divertidos, dos entreveros dos bailados das estradas,
do mais hirsuto da paulama seca, do pôr-do-sol campineiro, dos dutos, das
encruzilhadas e das distâncias perdidas. Eu sou filho da jungle, sou gaudério de todos
os pagos, apaixonado das querências e cria de todos os galpões d aterra. Eu vim de
longe, eu sou um misto da poeira da estrada, de fogo de queimada, de aboio de
239 | P á g i n a
Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três
Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano
(Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858).
Guavira
no10
vaqueiro, de passarada em sarabanda festiva no romper da madrugada, de lua andeja
rendilhando os campos, as matas, as canhadas, o vargedo. Sou misto também de índio
vago, cruza-campo e trota-mundo. (SEREJO, Apud SANTOS, 2006, p. 207-210).
Seja no famoso “Discurso de posse” à Academia, seja em “Paisagem de erval”, ou ainda
também em “Paisagem sertaneja”, vamos encontrar o continuum significativo da escrita e da
temática de Hélio Serejo, que ele deixaria consagrado na seguinte passagem de “Paisagem
sertaneja”:
Dentro de mim, como bênção do Senhor, viverá para todo o sempre a fulgurante e
evocadora paisagem sertaneja, formada pelo entardecer, raiar festivo das madrugadas,
aboio comovedor do vaqueiro, tropel de xucros, fogo dos pousos, silêncio aterrador da
tarde escaldante, vento sulão soprando desabridamente pelos campos e varjões,
rechinar de carretas, cantiga de andariego, tropilha em marcha cadenciada, marcação,
pega, roça granando, colheita, soca de monjolo, estralidar de galhos na tormenta,
enxurrada, cantar melodioso do sabiaúna, vôo de seriema, cargueiros, fogo de galpão,
queimada de roça, armadilha de caça sinuelo, junta de coice, pastorejo, festa de
marcação, pega de baguais, floração campesina, redemunho de outubro, filigranas de
luar, brilho das estrelas, vento bandoleiro balançando as folhas das árvores, o azul do
céu imenso e cantaria de pouso ao anoitecer. [...]. Desejo, sinceramente, morrer como
um xucro, com os olhos embaciados, voltados para essa paisagem. (SEREJO, 2008, p.
170-171).
Como autor de Surrão crioulo – uma coleção de cinco livros –, que levava em seu
próprio surrão (embornal), Serejo formatou a tradução da vivência de um povo, tornando-se
ele mesmo uma espécie de mimetismo da cultura fronteiriça deste extremo Oeste do Brasil
Meridional. Sua obra constitui manifestação literária das mais importantes da região, e que de
forma mais completa se voltou para o registro da história e da vida na fronteira BrasilParaguai. Com longa história de vida dedicada à observação da cultura regional, a obra do
escritor é imenso painel de análise de aspectos tão múltiplos quanto originais na abordagem
das questões lingüísticas, literárias e culturais a partir da convivência com os ervateiros, à
época gloriosa da extração da erva-mate. Alguns dos títulos do autor, Os heróis da erva
(1987), Vivência ervateira (1991), No mundo bruto da erva-mate (1991), Fiapos de
regionalismo (2004), Pelas orilhas da fronteira (1981), entre outros, hoje raros em edição
original, felizmente recém-incluídos nas “obras completas”, ilustram a formação da região
ervateira. Sua obra dá conta e constitui, por si só, o registro de uma das regiões culturais mais
singulares do Brasil, ao abordar as origens e a fundação do povoamento e do desbravamento
socioeconômico da nossa “hinterlândia” inóspita. Retrato de um período de grande
empreendedorismo que reuniu a região fronteiriça do Brasil, no Sul de Mato Grosso com o
Paraguai e a Argentina.
Enfim, a obra serejiana constitui o mais completo relato de fundação desta
“hinterlândia”: O recente documentário, “Caá, A Força da Erva” (direção de Lú Bigattão e
roteiro de Rosiney Bigattão, 2005), filmado nas cidades da região de fronteira entre Brasil e
Paraguai, é valioso documento que resgata o ciclo da erva-mate. Com sessenta minutos de
duração, o documentário constitui-se do relato de mineiros, cancheadores, urus, gerentes,
pequenos funcionários, que contam suas experiências com o empreendimento da erva-mate.
Responsável pelo primeiro ciclo econômico do sul do Estado, a erva-mate, explorada pela
Mate Laranjeira, não só foi responsável pela ocupação, como inúmeras cidades, entre elas
Ponta Porã, Rio Brilhante, Caarapó, Porto Murtinho, Iguatemi e Tacuru, nasceram durante a
sua extração. (O Progresso, 05/04/06). Ainda, é Hélio Serejo quem traz, como legado para a
240 | P á g i n a
Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três
Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano
(Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858).
Guavira
no10
literatura sul-mato-grossense, sua sensível percepção da história deste imenso caldo de
cultura, de uma região de etnias diferentes, com a alma de uma época e de um povo numa
região distante, registrando os modismos, regionalismos, crendices e expressões típicas da
fronteira.
Ao lado do relato de “Amor pelo crioulismo”, o conto “Isto também é crioulismo”
constitui uma das manifestações literárias mais importantes no registro das peculiaridades da
vida na fronteira Brasil-Paraguai. É um compêndio de história natural e de botânica, que
resulta numa delicada observação da cultura regional; constitui um painel de análise de
aspectos múltiplos e originais de questões linguísticas, literárias e culturais, provenientes da
convivência do escritor com os ervateiros, à época gloriosa da extração da erva-mate.
(SEREJO, 1998, p.163-166).
Retomando, assim, o elo de intermediação desses relatos, faz-se necessário observar
que, não só esses textos, mas também o expressivo conjunto que constitui hoje os “nove”
volumes da edição Obras completas de Hélio Serejo (SEREJO, 2008), de Campestrini,
incluindo os sessenta títulos, voltam-se explicitamente para a abordagem de dois universos,
caros à poética do nosso escritor. De um lado, o registro microscópico, em efeito zoom, de
quem vivenciou a extensíssima saga dos ervais, na região de fronteira Brasil-Paraguai – o
“sulestematogrossense”, como bem subintitulou seu antológico livro, Selva trágica: a gesta
ervateira no sulestematogrossense, de 1959, o escritor “desses fatos trágicos”, Hernani
Donato; de outro lado, e a nos interessar de modo especial, os textos de Hélio Serejo
atualizam as diversas e potentes vozes do “regionalismo” fronteiriço, o que nos leva a voltar a
retomar o tema de nosso trabalho, sobretudo porque lemos agora, na prestigiosa Edição, os
mais fulgurantes momentos de que a prosa serejiana foi capaz de elaborar num discurso
genuinamente “crioulo”, constitutivo de um locus de enunciação específico. Em breve
consulta sobre textos como “Paisagem de erval”, “Paisagem sertaneja”, “Boicará” e “Tereré”
entre outros, o olhar mais arguto capta os loci dessa “vivência ervateira”, das “orilhas da
fronteira”.
Se, em “Boicará” (SEREJO, 2008, p.170-171) o folclorista genial dá vida a um boi que
nasceu nas orilhas da fronteira, dando forma escrita a esta lenda do boi fronteiriço, que
”nasceu na orilha da fronteira. [...]. Boicará fronteiriço ainda anda por ai, varando os campos,
os cerrados e os atoleiros. Carrega na barriga, no pescoço, na testa e nos quartos, aquelas
manchas brancas pequeninas que, dizem, são as estrrelas que patrulham as fronteiras.”, em
“Tereré” ele narra a história e os ritos envolvidos na prática comunitária em torno da roda de
tereré:
Disseram já, e é verdade, que o tereré, refrescante, é o abraço de quatro nações:
Paraguai, o grande líder no uso, Uruguai, Argentina e Brasil. Afirmativa sem
contestación. Esta bebida crioja, em qualquer um desses pagos, significa
emotivamente: descanso, hora de meditação, amizade, troça, parceria para o trabalho,
alegria e, algumas vezes... troca de ideia para a fuga temerária. (SEREJO, 2008,
p.197). (grifo nosso).
Sob esta perspectiva, o “tereré” como a língua guarani destacam-se na posa do escritor,
principalmente na obra Fiapos de regionalismos, sobre a qual nos deteremos agora sobretudo
pelo seu ineditismo, pois, só hoje publicada nas Obras completas (SEREJO, 2008, p.171246). O livro, inédito, revela talvez o ponto mais alto da prosa serejiana, a partir do título o
leitor depara a matriz poética de um regionalismo bem formatado na região de fronteira entre
Brasil e Paraguai. Já no início, o relato de “Peão paraguaio” prolonga magistralmente o topos
241 | P á g i n a
Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três
Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano
(Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858).
Guavira
no10
referido da língua guarani e sua amplidão a batizar com nomes a topografia e as
“denominações dos acidentes geofísicos da República do Paraguai, parte da República
Argentina e da República Federativa do Brasil” e revelando-se como sendo “a alma de uma
geração insubstituível, é a própria natureza da América Latina.”. Na realidade, este relato
traduz uma originalidade perspicaz, cuja ideia é nuclear quando se considera a capacidade
plástica de um narrador não somente sensível, mas acima de tudo consciente do caráter
representativo, simbólico, da linguagem para a caracterização de sua região, do regionalismo
que se tematiza na obra como um todo:
As historicidades manifestadas por esta língua continuam sendo as mesmas de antes.
As descrições tecidas pelas suas construções idiomáticas continuam sendo as mais
encantadoras narrações. Nesta língua encontramos ideias onomatopaicas, acentos
melódicos dos pássaros, das árvores, dos animais silvestres, das cascatas, dos mansos
córregos, dos majestosos rios, dos campos floridos, o sibilar dos ventos, o barulho
ensurdecedor das tormentas, a magnificência do pôr-do-sol, a voz da natureza.
(SEREJO. Op. cit., p. 178).
Ao referir-se à região do estado de Mato Grosso do Sul, registra as denominações de nossos
córregos, rios, cabeceiras, quedas, cerros, campestres, brejos, campos e matas, onde
florescem em forma insubstituível os acentos guaranis:
As regiões de Mato Grosso do Sul, com especialidade as do extremo sul, contam com
as magníficas implantações literárias dos índios guaranis. E para uma justificação
histórica, no município de Amambaí, no lugar denominado Pra-Jauy (água de peixe
amarelo), ainda existem índios guaranis, naturalmente que com educação diferente.
Eles têm aldeia. Falam a mesma língua. E sentem-se orgulhosos em poder afirmar que
são índios guaranis. (SEREJO. Op. cit., p. 179).
Ainda, em Fiapos de regionalismos, noutro pequeno texto que vale a sua
reprodução inteira, Hélio Serejo assim descreve a “Chuva fronteiriça”:
Tenho amor... amor grande pela chuva fronteiriça da minha terra. Chuva que cai
devagarzinho que nem dá para assustar a pombinha-rola que caminha, aqui e ali,
procurando o farnel que a chuvinha sossegada espantou do esconderijo para buscar o
trilheiro dos bichos. A chuvinha fronteiriça rega a terra para que a semente da
esperança brote e cresça livremente, produzindo fartura, fartura que traz alegrias e põe
brilho de fé nos olhos do vivente... vivente que, de mãos postas, agradece a Deus,
porque a chuva criadora choveu na hora certa, por vontade do Pai Eterno, que vela
sempre pelo seus filhos amados. (SEREJO, Op. cit., p. 242-243).
Um outro texto, digno de destaque, é “Apresentação”, assim intitulado, que abre a
obra em análise, projetando-a no universo do discurso sobre o regionalismo sul-matogrossense e marcando o registro peculiar dessas narrativas, ao recobrir como um todo o livro
Fiapos de regionalismos:
Este livro te pode servir aos estudiosos do gênero em alguma coisa. O autor acredita
que assim venha a acontecer. A realidade está nele espelhada. É vivência nua e crua.
Não há enfeites bombásticos, nem imagens literárias para impressionar o leitor.
Homens entendidos das coisas do mundo da erva-mate e do idioma guarani
manusearam os originais. Incentivaram de maneira franca o despretensioso escritor
dos ervais. Daí a publicação. (SEREJO, Op. cit., p. 177).
242 | P á g i n a
Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três
Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano
(Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858).
Guavira
no10
Transnacionalização e interculturalidade na região sul-mato-grossense
Impõe-se ressaltar que o processo de colonização no Sul do estado de MS é resultante
de uma heterogeneidade cultural, que, como observa o historiador Jérri Marin (2004), muito
decorreu das uniões matrimoniais inter-raciais, cuja mestiçagem torna-se um conceito crítico
adequado para a explicação do caldo de cultura que Lévi-Strauss atribuíra às “tradições
brasileira, paraguaia, boliviana e argentina”, onde os elementos da indumentária eram de uso
comum e alternado entre as diversas populações e etnias da região. Ainda, como zona de
interculturalidade, de hibridismo cultural, a língua como elemento agregador era, na realidade,
constitutiva de uma Babel linguística:
[...] a língua predominante era o guarani, seguida pelo castelhano, tornando a região
numa nova “Babel”. A língua portuguesa era pouco empregada. De ambos os lados da
fronteira, após uma polca alegre, ouviam-se aplausos bilíngues, trilíngues. Nas
corridas de cavalo, o juiz de partida gritava a ordem de largada em guarani e repetia
logo após em português. (DONATO, Apud MARIN, 2004, p. 327-329).
Neste sentido, o escritor regionalista douradense Brígido Ibanhes, em recente
depoimento sobre seu livro Silvino Jacques, o último dos bandoleiros, lançado no dia 30 de
maio de 1986, já em quinta edição, também observa que,
[...] eu não queria um livro qualquer, mas um livro que fosse o retrato da região
sudoeste do antigo Mato Grosso; registrasse o costume da época, as lendas da
fronteira, a violência gerada pelos coronéis na luta pelo domínio das terras, mas,
principalmente, o linguajar aguaranizado, típico do mestiço da fronteira [...]. Através
das polcas paraguaias, da chipa, do puchero, do locro, do tererê, do tôro candil, etc, o
Paraguai carimbou suas tradições no Estado. Em várias cidades, inclusive na Capital,
Campo Grande, temos colônias paraguaias, organizadas em associações. Essa
penetração paraguaia se perde nas brumas do passando, anterior à Grande Guerra. A
influência boliviana é mais recente e mais discreta, mas ela existe. É comum, nas
praças públicas, das nossas cidades, se ouvir a flauta andina tocando músicas de
inspiração espiritual, como era a visão da existência mística dos povos das altas
montanhas. A ocupação de grandes áreas pelos imigrantes sulistas, nordestinos,
mineiros e paulistas, agregou também valores culturais ao universo onde
anteriormente só se ouvia o “jeroky” (dança) e o “ñembo´ê” (reza) ritualísticos. À
taquara “takuapú” sagrada, com cadência, batida no chão seco, enquanto mantras são
pronunciados em voz grave ao chacoalhar do “mbaraká”, se contrapôs a batida dura
da bota, o tilintar das esporas, na dança das lanças dos gaúchos. De Minas, a Folia dos
Reis. São Paulo, a Festa do Divino. Do nordeste, o forró e a carne de sol. Os centros
de tradições, tanto gaúchos como nordestinos, reforçam os laços com o Estado de
origem, ao mesmo tempo em que, neste Estado, se implantam idiossincrasias
regionalistas. (Cf. IBANHES, 2009).
Há que sublinhar, também, a vitalidade do multiculturalismo na poesia do brasiguaio Douglas
Diegues, como observa Kaimoti (2009) em “Douglas Diegues: ‘Las fronteras siguem
incontrolábles”. Escrevendo num “portunhol salvage”, o poeta incorpora ao registro poético,
na própria materialidade do texto, sua condição de hibridismo dos usos da língua na fronteira
do brasileiro Mato Grosso do Sul com o Paraguai:
De acordo com Diegues, o “portunhol selvagem”, seria uma espécie de “lengua
poética”, que “...brota de las selvas de los kuerpos triplefronteros, se inventa por si
mismo, acontece ou non...” (DIEGUES, 2009, 2008). Para além do costumeiro
“portunhol” da fronteira de Mato Grosso do Sul com o Paraguai, que mistura de
243 | P á g i n a
Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três
Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano
(Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858).
Guavira
no10
maneiras variadas o português falado no Brasil com o espanhol paraguaio e o guarani
dos índios da região e seus descendentes, Diegues afirma que sua versão dessa mistura
resulta do acaso de encontros de diferentes identidades e discursos fronteiriços,
considerando, nesse portunhol selvagem, que “...además del guaraní, posso enfiar
numa frase palabras de mais de 20 lenguas ameríndias que existem em Paraguaylândia
y el resto de las lenguas que existem en este mundo” (DIEGUES, 2009). Essa língua
inventada remete à trajetória biográfica do poeta que o leva do centro à periferia e
vice-versa: do Rio de Janeiro, onde nasceu, à Ponta Porã, em Mato Grosso do Sul, na
divisa com o Paraguai, região original de sua mãe, filha de um imigrante espanhol e
de uma paraguaia. (KAIMOTI, 2009).
Com efeito, o escritor e poeta fronteiriço Douglas Diegues vem, desde Da gusto andar
desnudos por estas selvas, de 2003, marcando compasso com a interculturalidade existente na
fronteira entre Brasil e Paraguai, cuja proposta político-linguística deixa-se entrever no
próprio formato de suas obras, como a “a cartonera”, resultante da coleta de cartões ou
papelão, em material reciclável. (Cf. DIEGUES, 2009).
Dentre as várias manifestações da cultura paraguaia na região de fronteira, incluindo a
realização de Semanas da Cultura Paraguaia (Cf. Jornal “O Progresso”, 15, 16-17/05/09), um
dos festejos tradicionais refere-se à homenagem a “Virgencita de Caacupé” [Caacupé: do
vocábulo Caá – que significa erva, e Cupê – que significa atrás, a palavra Caacupé se traduz
em “atrás da erva-mate”], cuja imagem remete a uma lenda indígena. Nesse contexto é que
surge a manifestação do folguedo popular denominado “Toro Candil”, trazida ao Paraguai por
espanhóis, na qual um boi, armado com estrutura de madeira e arame, tem seus chifres acesos
com óleo diesel e passa a ser toureado por homens travestidos chamados “mascaritas”. (Cf.
Revista ARCA, 1993). Segundo Sigrist (2006, p.78-79), trata-se, antes, de uma “brincadeira”,
mais do que uma dança ou folguedo, feita com o touro (toro – em espanhol) e duas tochas
acessas aos chifres do boi candeeiro (candil – em espanhol). A manifestação do “Toro
Candil” concorre com a celebração da Virgem de Caacupé, no dia oito de dezembro:
Fica evidente, nesse fato que, mantendo características do Paraguai, a brincadeira
assume alegorias e identidade local, com base em um processo transculturativo e
híbrido, podemos dizer que a brincadeira, por sua popularidade e disseminação no
lado brasileiro, já não é somente paraguaia, mas é sul-mato-grossense também.
(TEDESCO; NOLASCO, 2009).
De resto, consequentemente, deve-se salientar que a percepção de transnacionalização da
região, calcada sobretudo na urbanização das cidades do antigo sul de Mato Grosso do Sul,
aspecto para o qual chama a atenção o historiador de Nas águas do prata (2009); observa o
autor que:
O movimento de populações no Cone Sul era uma via de mão dupla. Da mesma forma
que paraguaios desciam o rio para trabalhar na Argentina e no Uruguai ou subiam para
o Mato Grosso, também os brasileiros, os argentinos e os uruguaios se movimentavam
em busca de melhores condições de vida e trabalho. (OLIVEIRA, 2009, p.57).
Decorria deste fato a mescla da língua que, fertilizada pelos contatos interculturais,
resultava na mistura do guarani com o castelhano carregada de “pitadas do regionalismo
gaúcho”, despontando sobretudo devido à “exploração de madeira no Pantanal, nos ervais,
nas fazendas de gado, entre outras atividades fronteiriças que utilizavam especialmente o
trabalho compulsório de índios e paraguaios” (Op. cit.,56). Advém dessa ambiência
fronteiriça o fato cultural que se traduz na tradição do “tereré”, o mate batido, com água fria
244 | P á g i n a
Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três
Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano
(Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858).
Guavira
no10
ou gelada, tem a denominação de tereré, como bebida compartilhada transnacionalmente,
como bem observou Hélio Serejo, nosso regionalista maior, em citação já anteriormente
referida (SEREJO, 2008, p. 197). Sob essa perspectiva, o relato “Tereré”, de Hélio Serejo,
constitui viva manifestação e atualização das práticas interculturais no Cone Sul, e de modo
especial em nossa região Centro-Sul do estado de MS, do que é ilustrativo a recente iniciativa
do governo do Estado que requereu tombamento do tereré como novo bem patrimonial
imaterial, atendendo um processo que fora deflagrado pela Prefeitura de Ponta Porã/MS. (Cf.
Jornal “Correio do Estado”, 23/01/10).
Considerações finais
Bem ao encontro da ideia de Walter Mignolo, em seu Histórias locais / Projetos
globais (2003), o percurso de nosso trabalho demonstra, ao traduzir aspectos de
interculturalidade e “saberes subalternos”, o que o crítico latino-americano caracterizou em
seu livro, intitulando-o “histórias locais”. Assim, nota-se desde a concepção guarani de
família, que se firmara com tal força na sociedade paraguaia e também entre seus
colonizadores, que, quando a reforma cristã quis impor os padrões europeus, o povo,
españoles, mestizos, criollos e indios, reagiu prontamente as mudanças de seus costumes e
história local. (Cf. GONZALEZ, 1948, p.218).
À guisa de conclusão, salientamos o interessante estudo em antropologia social que a
pesquisadora Marcia Sprandel realizou como trabalho de campo: “Brasiguaios: conflito e
identidade em fronteiras internacionais”. O que releva destacar, aqui, é o precioso
levantamento bibliográfico que a estudiosa empreende, através de livros antigos e em livrarias
conhecidas como sebos, deparando ao final com uma significativa literatura regional, onde
constam autores como o nosso Elpídio Reis, o já citado Brígido Ibanhes, Lécio Gomes de
Souza, Otávio Gonçalves Gomes, Francisco Bernardes Ferreira e Albino Pereira da Rosa,
entre outros, que contam cada um à sua maneira a história do Mato Grosso do Sul através de
suas cidades. Como chamou a atenção da autora e a nossa também, o livro de Brígido
Ibanhes, Che Ru – O pequeno brasiguaio, a integração de um povo, traz em sua
Apresentação, intitulada “Como é bom ser brasiguaio”, por Elpídio Reis, palavras que vêm
corroborar, concluindo nossa análise e abrindo espaço para a ampliação dessas reflexões, que
se desdobram para outras vertentes de pesquisa:
Os brasiguaios são em geral, mais felizes que os filhos de outras regiões. Em primeiro
lugar porque são, de saída, internacionais... [...] É só atravessar a rua em Ponta Porã e
já se está no Paraguai, ou no Brasil. [...] em segundo lugar porque os brasiguaios têm
orgulho de dizer que nasceram numa fronteira onde os dois povos não têm consciência
de que vivem em países diferentes. Para eles – fronteiriços – as duas nações são como
se fossem uma só. [...] Os brasiguaios autênticos têm, pois, dupla razão para uma
felicidade mais ampla. São duplamente felizes. Têm duas casas, duas pátrias.
(IBANHES, Apud SPRANDEL, 1993, p.82).
Concluindo, reportamo-nos àquelas duas citações inicias, a do historiador Lenine
Póvoas e a do crítico Flavio Loureiro Chaves, reconhecendo originalidade e perspicácia na
análise do primeiro, sobretudo ao comparar a profícua literatura de Hélio Serejo, escritor da
fronteira Brasil-Paraguai, com a formidável escrita de Jorge Amado, que desenhara um
vivíssimo painel do regionalismo nordestino evidenciando um matizado colorido da terra e
gente da região da Bahia. Para o crítico literário, de certo que a fortuna de um escritor não
245 | P á g i n a
Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três
Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano
(Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858).
Guavira
no10
resulta tão somente das condições que garantiram o sucesso e divulgação “universal” de suas
obras, para uma justa valoração das obras e autores diferentes, mais nos interessa verificar
aquilo que os tornam originais e o vate de um lugar, um espaço, de uma civilização; assim, no
caso de nossa literatura brasileira, fazendo ver como as diversidades regionais se articulam
com o todo nacional e o constroem – lembrando que, assim como a nação, a região é também
uma tradição inventada. (Cf. SENA, 2003, p. 135). Interessa ainda ao crítico comparatista
sublinhar que: a noção de região, considerada em seu processo de constituição e de
acentuação de peculiaridades locais, aproxima-se à de nação, pois que adota idênticos
procedimentos de construção e de afirmação. O regionalismo aparece na ficção,
sublinhando as particularidades locais e mostrando as várias maneiras possíveis de ser
brasileiro (CARVALHAL, 2003, p.144-145). (grifo nosso).
Referências
CARVALHAL, Tania Franco. O próprio e o alheio – Ensaios de literatura comparada. São
Leopoldo: Editora Unisinos, 2003. 264p. Capítulo 8: O próprio e o alheio no percurso literário
brasileiro, p. 125-152.
CHAVES, Flávio Loureiro. Ponta de estoque. Caxias do Sul: Editora Educs, 2006, 141 p.
Parte 1: O limite do regionalismo, p. 35-38.
DIEGUES, Douglas. Portunhol selvagem em Quito. Jornal “O Progresso”. Caderno 1.
Dourados, MS. 24/11/2009.
DONATO, Hernâni. Selva trágica: a gesta ervateria no sulestematogrossense. São Paulo:
Autores Reunidos, 1959.
GONZALEZ, J. Natalicio. Proceso y formación de la cultura paraguaia. 2. ed. Assunción:
Guarania, 1948.
GRANCE, Rafaela Carolina; Santos, Paulo Sérgio Nolasco dos. Diversidade e práticas
culturais paraguaias na região da grande Dourados. In: Santos, Paulo Sérgio N. dos. (Org.).
Literatura, arte & cultura na fronteira sul-mato-grossense. Dourados: Seriema. (no prelo).
IBANHES, Brígido. Literatura sul-mato-grossense – O estado das
fronteiras. In:
<http://www.midiamax.com/pontodevista/?pon_id=627 > Acesso em: 10 nov. 2009.
KAIMOTI, Ana Paula M. Cartapatti. Douglas Diegues: Las fronteras siguem incontrolábles.
In: Santos, Paulo Sérgio N. dos; Góis, Marcos Lucio de S. (Org.). Literatura e Linguística:
práticas de interculturalidade no Mato Grosso do Sul. Dourados: Editora UFGD (no prelo).
LINS, José Pereia. Hélio serejo... Sublime poema!. Dourados: Franquini & Santini Ltda.,
1996.
_______. O sol dos ervais – Exaltação à obra literária de Hélio Serejo. Dourados: Dinâmica,
2002.
246 | P á g i n a
Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três
Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano
(Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858).
Guavira
no10
MARIN, Jérri Roberto. Hibridismo cultural na fronteira do Brasil com o Paraguai e a Bolívia.
In: Abdala-Junior, Benjamin; Scarpelli, M. Fantini. (Org.) Portos flutuantes – Trânsitos iberoafro-americanos. São Paulo: Ateliê Editorial, 2004, p. 325-342.
NOLASCO, Edgar Cézar. Para onde devem voar os pássaros depois do último céu? Revista
Raído. Dourados, v.2 nº 3, p.65-76. Jan./jun. 2008.
OLIVEIRA, Vitor Wagner Neto de. Nas águas do Prata: Os trabalhadores da rota fluvial
entre Buenos Aires e Corumbá. Campinas: Editora Unicamp, 2009.
REIS, Elpídio. Os 13 pontos de Hélio Serejo. (Biografia). Coord. Editorial de Aparício
Fernandes. Rio de Janeiro: Folha Carioca, 1980.
Revista Arca – Revista de divulgação do arquivo histórico de Campo Grande. n. 4, dez. 1993.
Campo Grande: Datagraf Estúdio Gráfico Ltda.
SANTOS, Paulo Sérgio Nolasco dos. (Coord.).Ciclo De Literatura / Seminário Internacional
“As Letras Em Tempos de Pós”, 13., 2009, Dourados. As Letras em Tempo de Pós. Dourados:
Faculdade de Comunicação, Artes e Letras / Mestrado em Letras / UFGD, 2009. 1 CD-ROM.
_______. O Outdoor invisivel: crítica reunida. Campo Grande: Editora UFMS, 2006. Capítulo
17: Homenagem a Hélio Serejo, p. 207-210.
_______. Fronteiras do local: Roteiro para uma leitura crítica do regional sul-matogrossense. Campo Grande: EditoraUFMS, 2008.
SILVA, Gecilei de Oliveira ; SANTOS, Paulo Sérgio N. dos. Sobre Hélio Serejo: O escritor
regionalista de Contos crioulos. In: 3º Encontro de Extensão e de Iniciação Científica e 2º
Encontro de Pós-Graduação. Ciência no Brasil. Universidade Federal da Grande Dourados.
Dourados, MS. 2009. 1 CD-ROM.
SENA, Custódia Selma. Interpretações dualistas do Brasil. Goiânia: Editora da UFG, 2003.
SEREJO, H. Obras completas de Hélio Serejo. Sistematização, revisão e projeto final de H.
Campestrini. Campo Grande: Instituto Histórico e Geográfico de Mato Groso do Sul / Gibim,
2008, 9 volumes.
_______. Contos crioulos. Campo Grande: Editora UFMS, 1996
_______. Boicará. In: Obras completas de Hélio Serejo. Op. cit., p. 170-171.
_______. Fiapos de regionalismos. In: Obras completas de Hélio Serejo. Op. cit., 2008, v.9,
Livro 50: p. 171-246.
247 | P á g i n a
Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três
Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano
(Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858).
Guavira
no10
SPRANDEL, Marcia Anita. Fronteiriços e brasiguaios na história do Mato Grosso do Sul. In:
Revista Arca. n° 4, 1993, Campo Grande: Datagraf Estúdio Gráfico Ltda.
TEDESCO, Giselda P.; NOLASCO, Edgar C. A brincadeira do “toro candil”: Uma
manifestação da memória cultural local. In: Santos, Paulo S. N dos (Coord.). Ciclo de
Literatura / Seminário Internacional: “As Letras Em Tempo de Pós”, 13, 2009, Dourados. As
Letras em Tempo de Pós. Dourados: Faculdade de Comunicação, Artes e Letras / Mestrado
em Letras / UFGD, 2009. 1 CD-ROM.
Matéria de jornal não assinada
PRAÇA Paraguaia realiza torneio de malha. O Progresso. Dourados MS, 16-17 maio 2009.
CAARAPÓ realiza semana da Cultura Paraguaia. O Progresso. Dourados MS, 15 maio 2009.
TERERÉ é o próximo no processo de tombamento. Correio do Estado. Campo Grande MS,
23 janeiro 2010.
248 | P á g i n a
Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três
Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano
(Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858).

Documentos relacionados

Guavira no

Guavira no empregados por bandas ditas da região urbana. O rasqueado e outras manifestações culturais típicas do Mato Grosso passaram por uma crise cultural devido ao fluxo migratório iniciado com o movimento...

Leia mais