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Guavira no10 ISSN 1980-1858 Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano (Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Programa de Pós-Graduação em Letras UFMS/Campus de Três Lagoas Guavira Três Lagoas v.10 n.1 p. 1-248 jan./jul. 2010 Guavira no10 Revista Guavira – Letras. Edição Comemorativa n. 10 Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10 (2005 - 2010 Três Lagoas). GUERRA, Vânia Maria Lescano (Org.). Semestral (Jan./Jul. 2010) – Versão On-line. 1. Linguística 2. Análise do Discurso 3. Multiculturalismo I. Título: Guavira-Letras: “Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo”. (Versão On-Line http://www.pgletras.ufms.br/revistaguavira/ - ISSN: 1980-1858) GUERRA, Vânia Maria Lescano (Org.) Guavira-Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo. Três Lagoas, UFMS, n. 10. Jan./jul. 2010. Conselho Editorial: Kelcilene Grácia Rodrigues (Editora chefe) Taísa Peres de Oliveira (Editora adjunta) Vitória Regina Spanghero Ferreira (Secretaria executiva) Claudionor Messias da Silva (Apoio técnico) Conselho Científico: Antônio Rodrigues Belon (UFMS) Celina A. G. S. Nascimento (UFMS) Claudete Cameschi de Souza (UFMS) Edgar C. Nolasco dos Santos (UFMS) João Luis Pereira Ourique (UFMS) José Batista de Sales (UFMS) Kelcilene Grácia-Rodrigues (UFMS) Marlene Durigan (UFMS) Rauer Ribeiro Rodrigues (UFMS) Rogério Vicente Ferreira (UFMS) Rosana C. Zanelatto dos Santos (UFMS) Vânia Maria Lescano Guerra (UFMS) Vitória R. Spanghero Ferreira (UFMS) Wagner Corsino Enedino (UFMS) Corpo Editorial: Eneida Maria de Souza (UFMG) João Luís Cardoso Tápias Ceccantini (UNESP/Assis) José Luiz Fiorin (USP) Paulo S. Nolasco dos Santos (UFGD) Maria do Rosário Valencise Gregolin (UNESP/Araraquara) Maria José Faria Coracini (UNICAMP) Márcia Teixeira Nogueira (UFCE) Maria Beatriz Nascimento Decat (UFMG) Rita Maria Silva Marnoto (Universidade de Coimbra - Portugal) Roberto Leiser Baronas (UNEMAT) Sheila Dias Maciel (UFMT) Silvia Inês Coneglian Carrilho de Vasconcelos (UEM) Silvane Aparecida de Freitas Martins (UEMS) Vera Lúcia de Oliveira (Lecce – Itália) Vera Teixeira de Aguiar (PUC/Porto Alegre) Projeto Gráfico e Editoração Conselho Editorial 1|Página Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano (Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no10 EDITORIAL COMEMORATIVO Guavira Letras n. 10 “Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo” Este número merece um editorial comemorativo: Guavira Letras completa cinco anos de publicação e tem alcançado a meta de colocar, nas mãos do público leitor, o volume semestral dentro do período esperado, na busca da apreciação e valorização deste veículo. A Revista Guavira Letras nasceu da iniciativa de professores do Curso de Letras da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), quando o Mestrado em Letras, instalado no primeiro semestre de 1998, completou sete anos na formação de mestres nas áreas de concentração em Estudos Literários e Estudos Linguísticos. Os professores, acreditando na pesquisa sobre a linguagem como ferramenta de transformação social, não mediram esforços para materializar o projeto editorial da Revista Guavira Letras. Esta revista semestral, de cunho transdisciplinar, vem contribuindo, desde 2005, para a partilha de experiências e de ideias tornando-se, assim, um fórum privilegiado de debate acerca dos problemas que dizem respeito ao estudo da Linguística, Literatura e áreas afins. A qualidade científica da revista é alicerçada nos critérios de avaliação seguidos pela política editorial da revista que, por meio da revisão por pares, seleciona e avalia os artigos submetidos à publicação, no sentido de que seus textos contribuam efetivamente para o conhecimento e desenvolvimento do pensamento crítico e da pesquisa no bojo das Ciências Humanas. Guavira Letras integra o Qualis da CAPES, o que garante a validade dos artigos publicados para fins de avaliação de programas de pós-graduação, e nos incentiva a melhorar ainda mais. Ela está consolidada como um espaço significativo de publicação, uma vez que os autores são de diversas regiões e instituições superiores do País. Contamos com a colaboração dos pesquisadores de todo o Brasil para que possamos continuar atingindo nossas metas. Com esforço e dedicação, temos mantido a Revista Eletrônica no ar desde 2005, respeitando sua periodicidade com rigor e seriedade. O crescente acesso à Internet possibilitou o desenvolvimento da Revista Eletrônica do Programa de Pós-Graduação em Letras e ela se constitui também em um espaço importante para a divulgação da produção regional e nacional nas temáticas que propõe. É gratificante contar com as participações de pesquisadores de várias IES, neste número 10 da revista, sob a temática Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, em que o argumento central é o de que pensar e viver no mundo atual passa pelo reconhecimento da pluralidade e diversidade de sujeitos e de culturas com base no respeito e tolerância recíproca, concebendo as diferenças culturais não como sinônimo de inferioridade ou desigualdade, mas equivalente a plural e diverso. 2|Página Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano (Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no10 Dessa feita, propõe-se aqui valorizar, no processo formativo dos sujeitos, a necessidade e importância de se reconhecer e acolher identidades plurais sem representar ameaças ou quaisquer formas de naturalização do preconceito e desrespeito à vida humana, independentemente de sexo, cor, gênero, credo, etnia, nacionalidade. Nessa direção, inicialmente, trazemos uma entrevista com a Profa. Dra. Maria José Coracini, doutora em Linguística Aplicada, Livre Docente e professora titular do IEL, na UNICAMP. Autora de muitos livros e artigos nacionais e internacionais, pesquisadora A1 do CNPq e orientadora dedicada e incansável, ela é atualmente uma da mais respeitadas linguistas brasileiras. Coracini, que integra diferentes diretórios e grupos de pesquisa, fala aqui sobre diversos assuntos atuais que são debatidos no meio acadêmico: discurso, cultura, identidade, desconstrução, psicanálise, educação, política linguística e os rumos do analista do discurso brasileiro. Já o primeiro artigo intitulado “Travessias contemporâneas: o brasileiro clandestino deportado”, de Marcos Aurélio Barbai (UNICAMP), tem como meta apresentar um estudo da imigração clandestina de brasileiros e sua deportação, da perspectiva discursiva. O sujeito brasileiro clandestino deportado é um corpo apagado no território vivendo com a deportação uma humilhação política, subjetiva e social. Segundo o autor, o estudo dessa imigração se deu a partir das condições de produção da pesquisa, em duas vias: a do imigrante que, adentrando em um território estrangeiro, prolonga a sua estadia para além da duração prescrita; e a do imigrante que, contratando serviço especializado de grupos que oferecem a travessia de pessoas entre as fronteiras de Estados Nacionais, adentra em um território outro sem autorização e lá permanece. Dessa ótica, refletir sobre a imigração clandestina não mais é se referir aos clandestinos que escapam dos circuitos legais de mobilidade ou burlam esses sistemas, mas de uma imigração inevitavelmente clandestina, que se situa fora de todo e qualquer reconhecimento legal. O segundo texto, intitulado “O apelo à emoção: uma estratégia de tom persuasivo no discurso religioso pentecostal”, de Rachel Camilla Rodrigues de Castro e Mônica Santos de Souza Melo (UFV), traz a análise da linguagem, no discurso religioso, e seu funcionamento como mecanismo de sedução e captação de adeptos, avaliando a utilização do apelo à emoção, o chamado “efeito patêmico”, nos termos de Charaudeau (1999). A partir desse estudioso, nessa investigação, as autoras adotam o ponto de vista segundo o qual é possível o estudo discursivo da emoção numa situação comunicativa, considerando pressupostos teóricos que abordam a questão da emoção/patemização enquanto estratégia de caráter persuasivo, a partir da análise de um cântico de louvor de um culto da igreja Assembléia de Deus, gravado na cidade de Viçosa (MG). Pedro Celso Campos (FAAC/UNESP) traz a investigação intitulada “Os meios de comunicação social e o ‘empoderamento’ da Terceira Idade” em que atenta para o fato de que, ainda, nos bancos universitários, os futuros jornalistas devem ser sensibilizados para o fenômeno que envolve importante processo de mudança social no que diz respeito à Terceira Idade. Um dos caminhos pode ser o estudo das técnicas de empoderamento e formação de Capital Social, por intermédio das novas Tecnologias de Informação e Comunicação (TIC). Segundo Campos, exercendo plenamente os seus deveres de cidadania, os comunicadores podem (no exercício da profissão ou no voluntariado) contribuir com o fortalecimento das reivindicações da Terceira Idade, na luta pela preservação dos direitos adquiridos, na 3|Página Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano (Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no10 organização pela conquista de novos direitos, principalmente cobrando dos meios de comunicação mais respeito e dignidade, condenando a discriminação, não se calando diante de qualquer iniciativa que vise prejudicar os direitos das pessoas idosas. O artigo “A questão agrária na continuidade das línguas minoritárias: o caso Terena de Ipegue”, de Mariana de Souza Garcia (UFMS), trata das línguas minoritárias e minorizadas e, particularmente, do perigo delas desaparecerem. Segundo a autora, saber quais são as ameaças mais fortes é uma saída para a resolução do problema e, para isso, desenvolve as Tipologias Sociolinguísticas, a partir de duas seções: a primeira discute duas macrovariáveis fortes da Tipologia Sociolinguística desenvolvida junto aos Terena (a questão da terra como eixo de conflitos políticos e econômicos, e a questão tecnológica aliada aos deslocamentos e desaparecimento de línguas/terras indígenas). Desse embate duas representações de terra emergem. Já a segunda seção traz a desterritorialização Terena, exemplificando de que forma as micro e as macrovariáveis surgem no seio da Comunidade de Fala Terena e como vêm destruindo os bens materiais e imateriais do referido povo indígena. Para a sobrevivência das línguas minoritárias, é fundamental atentar-se à questão agrária, que se encontra em meio à situação social (tecnológica), política e econômica, conclui Garcia. O trabalho intitulado “Opinião de Raça: as estratégias argumentativas no gênero textual artigo de opinião da revista Raça Brasil”, de Mirian Lúcia Brandão Mendes, Júnia Diniz Focas e Raquel Lima de Abreu Aoki (UFMG), tem por objetivo principal investigar as estratégias argumentativas presentes no gênero textual artigo de opinião. O artigo selecionado para análise foi escrito por Maurício Pestana e publicado na seção “Opinião de Raça” da revista Raça Brasil. Segundo as autoras, o trabalho vem apresentar alguns pressupostos teóricos sobre argumentação, gênero textual artigo de opinião, dialogismo e polifonia, com base nos conceitos da Análise do Discurso. O trabalho intitulado “A criança, a escola e os micropoderes: uma análise das técnicas disciplinares atravessando corpos”, de Mariana Diniz Bittencourt Nepomuceno e Márcia Aparecida Amador Mascia (USF), tem como propósito levantar as relações de poder-saber enquanto mecanismo de controle e normalização dos sujeitos e de suas subjetividades instaurados desde a tenra infância, na instituição escolar. Tendo como referencial teórico os estudos da arquegenealogia realizados por Foucault, as autoras buscam apreender a realidade de uma escola enquanto um micropoder institucional. Os sujeitos, professores e alunos (crianças de 2 a 3 anos, neste caso), são construídos, embora de modo imperceptível, nas práticas diárias em função do espaço e tempo, que delimitam o que deve ser feito ou não. Tais práticas constituem as técnicas disciplinares de que fala Foucault e funcionam de modo a desenhar os corpos, tornando-os dóceis e, portanto, úteis socialmente. “Por novos temas e abordagens em Linguística Aplicada – uma viagem através das novas identidades do século XXI nas tirinhas de Adão Iturrusgarai”, de Alex Caldas Simões e Maria Carmen Aires Gomes (UFV), vem discorrer sobre a atual perspectiva da Linguística Aplicada (LA) e as suas inquietantes indagações. Ao observarem as novas identidades da modernidade presentes “ficcionalmente” nas tirinhas de Aline, de Adão Iturrusgarai (2007, 2009a, 2009b), a partir de um percurso teórico-caracterizador do período moderno/pós-moderno, na trilha de Berman (2007) e Giddens (1991), os autores 4|Página Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano (Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no10 problematizam o campo teórico da LA, de modo a ressaltarem a sua atual emergência epistemológica. Simões e Gomes concluem que novas identidades surgiram no contexto da modernidade e, com elas, emerge a crescente necessidade de construção de novos paradigmas teóricos e práticos. Na sequência, o trabalho “A tradução cultural-local entre Brasil, Paraguai e Bolívia”, de Rony Márcio Cardoso Ferreira e Edgar Cézar Nolasco (UFMS), visa discutir a questão da contaminação cultural, que permeia e se dissemina entre culturas locais de Mato Grosso do Sul, do Paraguai e da Bolívia. O texto traz à pauta da discussão o conceito de tradução cultural (Homi Bhabha), a fim de se pensar criticamente a confluência dos signos culturais, proporcionada pela noção de transferencialidade, que, por sua vez, borra uma pretensa ideia de especificidade que singulariza o local, o próprio, o alheio, o outro, o aqui, o lá, e assim por diante. Os autores discutem, ainda, a questão da multiplicidade, que faz que a cultura em questão se singularize, não no sentido primeiro do termo, mas na/pela diferença. Prosseguindo, Ana Teresa Cabañas e Deise Daiana Gugeler Bazanella (UFSM/RS), a partir da pesquisa intitulada “Para ler o antipoema como discurso híbrido: considerações sobre texto e imagem em Ás de Colete, de Zuca Sardan”, afirmam que, nos anos 70, a poesia marginal brasileira ampliou os níveis de comunicabilidade do texto poético no intuito de atrair mais leitores. Para isso, questionou os procedimentos tradicionais da poesia lírica moderna, explicitando uma série de mudanças na sensibilidade dos sujeitos contemporâneos e criando dificuldades para as formas consagradas de abordagem crítica. Para as estudiosas, nesse período de ruptura de paradigmas situa-se o poeta Zuca Sardan, cujo livro Ás de Colete é objeto de reflexão deste artigo. No intuito de discutir algumas de suas características, Bazanella e Cabañas propõem uma abordagem a partir do conceito de antipoesia de Hamburger (1991), que ajuda a compreender o poema como discurso híbrido, com base em dois de seus aspectos mais proeminentes: imagem e forma comunicável. Silvane Aparecida Freitas (UEMS), no trabalho intitulado “Parceleiro do Assentamento Serra: identidade e representações”, apresenta o relato da história de vida de um morador do Assentamento Serra. Verifica-se, a partir das teorias do discurso, um sujeito em conflito identitário, que, mesmo assim, consegue deslocar-se na história, reelabora seu discurso, realiza seu sonho, que é ter um pedaço de terra, onde pudesse viver com sua família e buscar sua subsistência. Segundo a autora, após a análise dos dados, pôde-se constatar o quanto a marginalização e o esquecimento estão presentes naquele local, pois tanto as autoridades como a sociedade ignoram os direitos desse povo, que enfrenta muitas dificuldades para sobreviver no local. O objetivo do trabalho intitulado “Do ‘entre-lugar’ do leitor à recepção e circulação da tradução em contexto estadunidense”, de Rosa Maria Olher (UEM/PR), é discutir as representações que alguns professores-leitores e, também, tradutores têm da tradução em diferentes contextos. Concepções de leitura, sentido, autoria e originalidade implicam a forma de recepção e circulação da tradução em lugares específicos, já que é nas vozes do leitor e do tradutor que se observam a tensão e o conflito que o “entre-lugar” das línguas pode provocar no sujeito, ao se posicionar como construtor e responsável por seu discurso e sua história, afirma Olher. Os enunciadores falam a partir de um contexto de ensino superior de literaturas estrangeiras, nos Estados Unidos da América e a análise fundamenta-se, especialmente, nas noções estudadas por Coracini e Derrida. 5|Página Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano (Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no10 Flávio Roberto Gomes Benites (UNEMAT), no artigo intitulado “Imigração e discurso: conflitos identitários na música matogrossense”, vem discutir o problema da imigração no Estado de Mato Grosso a partir de letras de música (rasqueado) as quais materializam sentidos conflitivos entre nativo e imigrante. De uma perspectiva discursiva e culturalista, o autor mostra que tais letras são prenhes de diferentes práticas culturais que instituem o status da identidade mato-grossense, diferenciando-o do imigrante, ainda que este esteja inserido nas referidas práticas. “Caipiras, arribantes temporais: letramento, identidade cultural e subjetividade”, de Elzira Yoko Uyeno (UNITAU), trata da subjetividade que se revela na e pela escrita, a partir da Análise do Discurso de perspectiva francesa e dos conceitos da psicanálise lacaniana. A pesquisa estuda a sensação paradoxal de imigração na própria cidade onde nasceu, viveu e continua vivendo, em textos de alunos da Escola de Jovens e Adultos. Os resultados da análise empreendida revelaram que as identidades a condição de todo imigrante, não apenas dos imigrantes topológicos, mas dos temporais também: estar saudoso, como estar tomado por uma triste aspiração por algo indefinido que se foi há muito tempo, e saber que o passado não é um país que possa ser reencontrado. O trabalho “A propósito das designações: de ribeirinhos à sem rios”, de Neuraci Vasconcelos Reginaldo e Celina Aparecida Garcia de Souza Nascimento (UFMS), com base nos pressupostos teóricos da Análise do Discurso de Linha Francesa, analisa a (re)constituição dos sentidos das designações atribuídas aos sujeitos ribeirinhos motivadas pelo acontecimento discursivo de saída de seu local de origem (margem do rio Paraná) e posterior realocação. A partir de Guimarães (2005), as autoras consideram que as designações são produzidas no âmbito de relações de linguagem tomadas na história. O corpus é constituído por recortes do documentos/vídeos produzidos pelos ribeirinhos e pelo Movimento dos Ameaçados por Barragens (MAB), em que a imagem desse acontecimento discursivo provocou deslocamentos de sentidos, nas designações atribuídas a esses sujeitos, isto é, fez que essas expressões fossem (re)significadas. A pesquisa de Manolita Correia Lima e Viviane Riege (ESPM/São Paulo) intitulada “Motivações da Mobilidade Estudantil entre os Estudantes do Curso de Administração” tem como objetivo conhecer as motivações que justificam o crescente interesse dos estudantes pelos programas de formação internacional. A investigação se concentrou em estudantes e egressos do curso de Administração, oferecidos no Brasil, participantes de programas de intercâmbio. O grupo é predominantemente formado por jovens, de ambos os sexos, que participaram de programas de intercâmbio durante a graduação. Estão vinculados a instituições paulistanas, respeitadas na área de Administração. Segundo as autoras, apesar de efetivados em sólidas empresas nacionais e multinacionais e ter renda própria, residem com os pais e estes assumem papel preponderante nas decisões relativas ao planejamento do programa. Preferem países ricos, de língua inglesa, localizados no hemisfério norte, com reputado sistema de educação. Apesar do avançado nível de proficiência da língua inglesa, preferem escolas e cursos de língua (inglesa) de curta duração, oferecidos durante as férias. 6|Página Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano (Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no10 “Ensino de gramática versus ensino de língua”, de Marlon Leal Rodrigues (UEMS), tem como proposta abordar alguns aspectos polêmicos do discurso sobre o ensino gramatical versus ensino de língua. Para o autor, o ensino de língua é um lugar onde se defrontam gramáticos e linguistas, cada qual com suas posições-sujeito, às vezes, apaixonadas. Assim, os sentidos das concepções de gramática (de Arnauld e Lancelot), enquanto língua, se inscreve na memória discursiva de certa tradição, cujo efeito compete com o sentido da Linguística Contemporânea fundada por Saussure (XIX). Tal sentido permeia não apenas o discurso da prática escolar e o do senso comum sobre ensino de língua, mas de forma significativa também o espaço acadêmico. O artigo intitulado “Uma visão linguístico-culturalista do discurso da Revista Playboy”, de Glauciane Pontes Helena Franco e Vânia Maria Lescano Guerra (UFMS), tem por meta problematizar os discursos que perpassam a nova configuração de homem e mulher, que estão inseridos numa sociedade cada vez mais fragmentada, dividida e dispersa que, outrora supúnhamos ter unidade, ser fixa, coerente e estável. No dizer das autoras, a análise dos textos produzidos pelo homem e para o homem, que expõe as formações discursivas a que está submetido, permite perceber como ele estabelece sua relação com a língua, com a história e com o mundo contemporâneo. O estudo do discurso produzido pelo e para o homem contribui para revelar as constantes da masculinidade que permeiam o universo de valores que definem o sujeito social, político e cultural, a partir dos pressupostos teóricos da Análise do Discurso de origem francesa e dos Estudos Culturais. Mary Del Priore, Alberto Carlos de Souza e Túlio Alberto Martins de Figueiredo (UFES), a partir da pesquisa “Milton Nascimento: uma questão de gênero com crianças na escola”, estudam a oficina de gênero realizada com 27 crianças de 11 anos de idade, estudantes de uma escola pública municipal de Vitória (ES), com o propósito de celebrar o Dia Internacional da Mulher, em 8 de março. Segundo os autores, toda a produção estética dessa oficina girou em torno da música “Maria, Maria”, de autoria de Milton Nascimento e Fernando Brant (1978) e constou de canto coral e elaboração de pictografias femininas (desenho com massa de modelar), a partir da questão norteadora: “Quem é essa mulher, de quem tanto fala a música?” No estudo, Maria foi representada pelas crianças principalmente como figura parental (mãe, avó), trabalhadora (cantora, feirante, lavadeira e professora) ou ente religioso (santa) e a oficina culminou com a apresentação de toda a produção estética (canto coral e projeção de imagens) para as mães daquelas crianças. Por fim, trazemos o artigo “Regionalismo e literatura sul-mato-grossense na fronteira Brasil-Paraguai”, de Paulo Sérgio Nolasco dos Santos (UFGD), que tem como propósito divulgar uma pesquisa acerca da obra do escritor regionalista sul-mato-grossense Hélio Serejo, cujo nome e obra mostram-se de significativa produtividade para os Estudos Culturais e para a região da fronteira Brasil-Paraguai. Segundo Santos, tais reflexões são, ainda, resultados de um projeto de pesquisa institucional, intitulado “Regionalismos culturais: trocas e relações entre literaturas de fronteira”, em desenvolvimento, e integram o livro “Fronteiras do local: roteiro para uma leitura crítica do regional sul-mato-grossense” (2008), ambos de sua autoria. A reflexão volta-se para a revisão do Regionalismo como renovada categoria trans-histórica, cujo conceito operatório torna-se validado, em sua análise, para explicar os atuais transladamentos culturais e ao que o discurso crítico latino-americano denomina “transculturação narrativa”. 7|Página Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano (Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no10 Resta-nos agradecer a todos os autores contemplados, nesta edição comemorativa, pelos trabalhos apresentados e colocar a Guavira Letras da UFMS à disposição da comunidade acadêmica, na expectativa de reflexões e deslocamentos. Vânia Maria Lescano Guerra (organizadora) Três Lagoas, junho de 2010. 8|Página Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano (Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no10 SUMÁRIO ENTREVISTA 1. Diálogo com Maria José Coracini Vânia Maria Lescasno Guerra.................................................................................................11 ARTIGOS 2. Travessias contemporâneas: o brasileiro clandestino deportado Marcos Aurélio Barbai.............................................................................................................25 3. O apelo à emoção: uma estratégia de tom persuasivo no discurso religioso pentecostal Rachel Camilla Rodrigues de Castro e Mônica Santos de Souza Melo..................................40 4. Os meios de comunicação social e o “empoderamento” da Terceira Idade Pedro Celso Campos................................................................................................................48 5. A questão agrária na continuidade das línguas minoritárias: o caso Terena de Ipegue Mariana de Souza Garcia.........................................................................................................60 6. Opinião de Raça: as estratégias argumentativas no gênero textual artigo de opinião da revista Raça Brasil Mirian Lúcia Brandão Mendes, Júnia Diniz Focas e Raquel Lima de Abreu Aoki................77 7. A criança, a escola e os micropoderes: uma análise das técnicas disciplinares atravessando corpos Mariana Diniz Bittencourt Nepomuceno e Márcia Aparecida Amador Mascia .....................85 8. Por novos temas e abordagens em Linguística Aplicada – uma viagem através das novas identidades do século XXI nas tirinhas de Adão Iturrusgarai Alex Caldas Simões e Maria Carmen Aires Gomes................................................................96 9. A tradução cultural-local entre Brasil, Paraguai e Bolívia Rony Márcio Cardoso Ferreira e Edgar Cézar Nolasco..........................................................110 10. Para ler o antipoema como discurso híbrido: considerações sobre texto e imagem em Às de Colete, de Zuca Sardan Ana Teresa Cabañas e Deise Daiana Gugeler Bazanella........................................................115 9|Página Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano (Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no10 11. Parceleiro do Assentamento Serra: identidade e representações Silvane Aparecida Freitas......................................................................................................128 12. Do “entre-lugar” do leitor à recepção e circulação da tradução em contexto estadunidense Rosa Maria Olher ..................................................................................................................143 13. Imigração e discurso: conflitos identitários na música matogrossense Flávio Roberto Gomes Benites..............................................................................................151 14. Caipiras, arribantes temporais: letramento, identidade cultural e subjetividade Elzira Yoko Uyeno................................................................................................................158 15. A propósito das designações: de ribeirinhos à sem rios Neuraci Vasconcelos Reginaldo e Celina Aparecida Garcia de Souza Nascimento.............170 16. Motivações da Mobilidade Estudantil entre os Estudantes do Curso de Administração Vivane Riege e Manolita Correia Lima.................................................................................178 17. Ensino de gramática versus ensino de língua Marlon Leal Rodrigues..........................................................................................................198 18. Uma visão linguístico-culturalista do discurso da Revista Playboy Glauciane Pontes Helena Franco e Vânia Maria Lescano Guerra.........................................219 19. 10. Milton Nascimento: uma questão de gênero com crianças na escola Mary Del Priore, Alberto Carlos de Souza e Túlio Alberto Martins de Figueiredo..............228 20. Regionalismo e literatura sul-mato-grossense na fronteira Brasil-Paraguai Paulo Sérgio Nolasco dos Santos...........................................................................................236 10 | P á g i n a Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano (Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no10 DIÁLOGO COM MARIA JOSÉ CORACINI Vânia Maria Lescano Guerra Diversos artigos, ensaios, dissertações, resenhas, teses e livros assumem Maria José Coracini como referência, no bojo das Ciências Humanas. Nossa revista também está trazendo neste número ecos das várias obras da pesquisadora, via trabalhos dos autores. Hospitaleira, a estudiosa abriu espaço na sua agenda para as nossas interlocuções. Neste espaço, pode ser apresentada como Livre Docente e professora titular em Linguística Aplicada na Área de Ensino/Aprendizagem de Língua Estrangeira pela UNICAMP. Possui pós-doutorado junto ao Centre Inter-universitaire en Analyse du Discours et Sociocritique des Textes (Ciadest) e ao grupo de pesquisa Marges (Marginalisation et Marginalité dans les discours), em Montréal, Canadá. Recentemente, fez um estágio pós-doutoral junto à Université de Paris 3 (Sorbonne Nouvelle), Sylled, e junto à Universidade de Lisboa (Faculdade de Ciências da Psicologia e Educação). É hoje, sem dúvida, uma figura de muita expressão na busca da constituição do sujeito contemporâneo e das práticas identitárias. Mas vamos ao diálogo... GUAVIRA LETRAS - Sua importante trajetória de trabalho, com a análise de discurso de base psicanalítica e a desconstrução, é evidenciada pelas edições de livros como “Um Fazer Persuasivo: o discurso subjetivo da ciência” (1991, 2007), “O Jogo Discursivo da Aula de Leitura (Língua Materna e Língua Estrangeira) (1995)”, “Interpretação, Autoria e Legitimação do Livro Didático” (1999), “Identidade e Discurso: (des)construindo subjetividades” (2003). Para a educação, todos são marcantes, mas parece que “Um Fazer Persuasivo: o discurso subjetivo da ciência” é o mais revisitado. Você concorda? MJC - Eu não saberia dizer com absoluta certeza se ”Um Fazer Persuasivo” é o livro mais revisitado, já que “O Jogo Discursivo na Aula de Leitura” está à beira de uma terceira edição. Mas, considerando que o primeiro é de minha exclusiva autoria e o segundo é uma organização e se dirige a um público mais definido – professores de língua portuguesa e de língua estrangeira –, é possível dizer que “Um Fazer Persuasivo” tem tido uma importante repercussão no âmbito acadêmico não apenas na área de Letras, mas em outras áreas como, por exemplo, a do Direito. É interessante que, sem que eu pudesse imaginar, ele tem sido muito usado em disciplinas que têm por objetivo introduzir o aluno ao discurso acadêmicocientífico. Acredito que a polêmica em torno da subjetividade do discurso científico e a discussão, portanto, em torno da objetividade, isenção, afastamento do cientista, que se manifesta na linguagem por meio do uso frequente da terceira pessoa, dos tempos do passado, das formas passivas, da objetificação do sujeito da oração que dá voz ao objeto em observação, como um vegetal, um mineral, um animal – afinal, é ele que fala, que se diz, que se apresenta ao cientista que apenas observa – constitui, ainda hoje, alvo de reflexões e de discussão. Por mais que se tenha avançado nas pesquisas e nas discussões em torno do discurso científico, este ainda continua a perseguir o modelo da ciência, do fazer científico, procurando respeitar um dos polos da dicotomia objetividade / subjetividade, enfatizando o primeiro como o único a permitir, um dia, chegar à verdade, ao conhecimento total, graças Docente do Programa de Mestrado em Letras da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul. 11 | P á g i n a Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano (Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no10 ao progresso da ciência. Embora esse ideal pareça inalcançável, ele persiste no horizonte da ciência, para quem nada é impossível... A questão é que, apesar do desejo de onisciência, de progresso paulatino das pesquisas que vão questionando, pondo em cheque os resultados obtidos por pesquisas anteriores, com o objetivo de colocar mais um grão na grande área do conhecimento, há sempre um resto que escapa, que não se deixa dominar, que resvala pelas brechas da linguagem, da natureza, do sujeito, impedindo a apropriação do “objeto”, a objetificação daquilo que sofre a ação do tempo, das contingências geográficas, do homem, do momento histórico-social, que, por sua vez, (de)limita o olhar do cientista, sempre “contaminado” pela teoria, pela cultura, pela ideologia, pelos interesses políticos e, por que não, econômicos... A verdade – se é que há uma verdade – é que no exato momento em que acreditamos nos apropriar de algo, dominar algo ou algum saber, esse algo, esse saber nos escapa, incitando-nos a uma nova busca. E é isso o que nos move, enquanto sujeitos do desejo, é a busca do preenchimento da falta que perseguimos, na ilusão de um dia atingirmos a completude, a totalidade impossível. E a ciência, o cientista não escapa desse pro-jeto, que nos lança para o futuro, na esperança de superar o passado. Penso que são essas questões ainda muito atuais que fazem a sobrevida da obra, que defende a ideia de que o discurso da ciência é argumentativo, buscando persuadir ou convencer (não fazemos a distinção entre os dois vocábulos, como o faz a obra de Perelman e Olbrecht-Tyteca, sobre a Argumentação) da validade da pesquisa, da verdade que ela encerra, da intenção de contribuir para o avanço da ciência que, nos dias de hoje, em plena globalização, se manifesta em termos de “avanços” tecnológicos, o que nos leva à objetificação de tudo e de todos, à manipulação e descartabilidade... GUAVIRA LETRAS – No seu último livro, “A Celebração do Outro: arquivo, memória e identidade - línguas (materna e estrangeira), plurilinguismo e tradução” (2007), do ponto de vista teórico, você afirma que “seu trabalho atualmente se insere no espaço movediço e escorregadio das fronteiras opacas e difusas entre discurso, psicanálise e desconstrução, na tentativa de compreender sempre mais as subjetividades em travessia”. Quais foram os deslocamentos teóricos que a levou a essas paragens? MJC - Houve um tempo em que eu acreditava na possibilidade de se alcançar a verdade, de se viver na certeza, de se ter a possibilidade do controle de si e do outro, através da argumentação e da psicologia da cognição. Isso remonta aos anos 80, antes e após o mestrado. Este se apoiou em teorias linguísticas, sobre tempo, aspecto, abordagem distribucionista para dar conta da relação entre os advérbios de relatividade e o seu entorno linguístico, também denominado cotexto. Já nessa época, cheguei à teoria do texto para explicar as diferentes distribuições e sentidos dos advérbios já-ainda, déjà-encore, nas sequências extraídas de textos de jornais e revistas brasileiros e franceses. De uma abordagem estritamente linguística passei a considerar a presença do sujeito na linguagem, a partir da leitura da obra La subjectivité dans le langage, de autoria de Catherine KerbratOrecchioni, datada de 1980, retomando e ampliando a obra de Benveniste, primeiro linguista a considerar a subjetividade na língua. A leitura dessa obra me abriu as portas para a possibilidade de olhar o sujeito na língua, o que veio ao encontro de um interesse abafado em mim. Evidentemente, no que diz respeito ao ensino-aprendizagem de línguas, esse sujeito consciente tinha a sua explicação na psicologia da cognição. Em 1984, eu iniciava as disciplinas de Doutorado na PUC-SP, com uma expectativa de compreender o processo de 12 | P á g i n a Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano (Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no10 leitura e expressão escrita tanto em língua materna quanto em língua estrangeira e, ao mesmo tempo, analisar e compreender o discurso científico, mais especificamente da área de Biociências (Botânica, Zoologia, Biomédicas). O interesse pela área surgiu por estar eu, na ocasião, ministrando aulas para um grupo de biólogos – graduandos e pós-graduandos – na USP, num convênio entre USP e Embaixada da França. Surpreendia-me, nas aulas, a reação dos alunos, principalmente pós-graduandos, quando os textos em francês apresentavam a seção de Material e Métodos no presente do indicativo e na primeira pessoa do singular: segundo eles, esses textos eram subjetivos e, portanto, contrários às regras de isenção e objetividade da ciência. Diziam eles que deviam escrever os artigos no passado e na terceira pessoa ou nas formas impessoais como a voz passiva ou sujeito indeterminado. O pesquisador não poderia “aparecer” nos textos científicos. Aí surgiu a minha tese: investigar a razão pela qual um texto era subjetivo e outro objetivo, pelo simples fato de apresentar diferentes marcas linguísticas. Evidentemente, Benveniste foi um dos primeiros linguistas a ser revisitado. A tese seguiu um tal percurso que percebi a impossibilidade de determinar de uma vez por todas e a priori a subjetividade ou a objetividade de um discurso. Seria necessário considerar a situação de enunciação na qual se dá a escrita e a leitura, porque a dicotomia subjetivo-objetivo depende, em primeira e última instância, daquele que escreve, de um lado, e daquele que lê, de outro; afinal, o que pode parecer subjetivo para um pode não ser para outro. Pensemos num soneto ou numa peça musical e numa pesquisa com uma planta. Que trabalho será mais objetivo? Será que o autor do soneto ou o compositor da peça musical não têm de seguir regras, normas, à semelhança do pesquisador em Botânica? Este, por sua vez, não precisa de uma acuidade de observação e sensibilidade para observar sua planta, descrevê-la e, se necessário, desenhá-la? Eu mesma submeti três pesquisadores à tarefa de desenhar uma folha de uma planta para que descrevessem, utilizando o mesmo microscópio, em iguais circunstâncias de luminosidade (mesma hora do dia, mesma posição na sala), mesmos instrumentos (lápis, papel), mesma mesa na mesma posição e percebi que, a olhos nus, os desenhos resultantes eram semelhantes, mas não iguais; para leigos, não parecia tratar-se da mesma folha: ficou claro que cada pesquisador visualizava a imagem à sua maneira. Concluí, então, que seria imprescindível desconstruir as dicotomias que organizam desde sempre (ou desde a Antiguidade) o pensamento ocidental. E aí eu já estava lendo Foucault e Derrida. A questão da subjetividade perseguiu daí por diante minhas pesquisas, de forma que até mesmo as pesquisas em torno do discurso didático-pedagógico, que sucederam ao doutorado, visavam sempre compreender a subjetividade e a relação que se estabelecia em sala de aula entre professor e aluno. Pouco a pouco, fui construindo com meus orientandos, principalmente, quando eu já estava na Unicamp, um grupo de pesquisa que centrava sua atenção no sujeito. E, graças à pressão dos alunos, fui me dando conta da impossibilidade de limitar os estudos da subjetividade à filosofia; era me render à evidência de que, ainda que com alguma resistência inicial, eu precisava estudar psicanálise. Ora, Foucault, Derrida, Lacan (Freud) são considerados, pela maioria dos acadêmicos da área da linguagem como incompatíveis entre si, no que diz respeito às concepções defendidas. Mas, algo me dizia, já nos anos 90, que era possível, não reuni-los para dialogarem como amigos, mas colocá-los um ao lado do outro para neles encontrar concepções comuns, sem, com isso, fazer tabula rasa das diferenças. Daí a ideia de que as pesquisas que eu e o grupo, que tive a satisfação de coordenar, se encontra(va)m nas “fronteiras opacas e difusas entre discurso, psicanálise e desconstrução, na tentativa de compreender sempre mais as subjetividades em travessia”. Por que subjetividades em travessia? De um lado, porque a identidade é movediça, está sempre em movimento, sempre em transformação; de outro, porque, depois dos projetos em torno do discurso pedagógico, preocupado com a identidade, penetrei no 13 | P á g i n a Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano (Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no10 mundo complexo daqueles que, como eu, são constituídos por mais de uma língua, seja porque imigraram, saíram de seus países de origem em busca de novas possibilidades de vida, de trabalho, seja porque saíram de seus países para estudar, seja, ainda, porque simplesmente “adotaram” uma língua para estudar e lecionar. Rastrear a identidade dessas pessoas levou a mim e a orientandos meus ao questionamento do que seja língua materna e língua estrangeira e à consideração de que todos somos/estamos-entre-línguas-culturas. Daí a lançar um olhar perscrutador sobre os migrantes – pessoas que saem de sua região, de seu estado, de sua cidade para se instalar noutra região, estado, cidade, ainda que dentro das fronteiras do mesmo país – foi muito fácil: a estrangeiridade, o outro, o diferente, nos constitui e nos habita. O que dizer, então, dos migrantes em situação de rua? Por que se reduziram a (quase) nada, numa sociedade em que ser é ter e em que quem nada tem, nada é, não conta, não é considerado. Como se veem tais pessoas? Como veem os outros, isto é, como nos veem, nós que temos moradia, educação, condições de higiene e poder aquisitivo? Nós, que por eles passamos e fazemos de tudo para não vê-los, porque a diferença que exibem nos agride, nos coloca face a face com o que somos, sem as vestes que nos envolvem, camuflando o que, de fato, somos: nada... e tudo ao mesmo tempo. GUAVIRA LETRAS - Na sua abordagem do discurso pedagógico, Derrida, Foucault e Lacan são referências constantes. Parece que eles se encontram muito presentes nas suas formulações teóricas e metodológicas, uma vez que você aponta para caminhos que passam pelas noções delineadas nas obras deles. MJC - De fato, Derrida, Foucault e Lacan foram, pouco a pouco, fazendo parte do universo que fundamenta minhas pesquisas e, na medida do possível, as de meus orientandos e colegas que comigo constituem grupos de pesquisa. Digo pouco a pouco, porque, como já disse, Foucault foi o primeiro filósofo a problematizar as concepções que eu trazia da teoria da argumentação e da pragmática de Oswald Ducrot, Récanati, da teoria da enunciação de Benveniste, de Culioli, da Teoria dos Atos de Fala de Searle - linguista que fez uma leitura de Austin altamente questionável, mas bastante consistente para a área. A primeira obra que li, sob a recomendação de meu orientador de doutorado, Prof. Kanavilil Rajagopalan, e que questionava a leitura (linguística) de Searle sobre a obra de Austin, How to do things with words, foi o livro The Scandal of the Speaking Body, de Shoshana Felman. A obra desta autora, a de Michel Foucault, as primeiras leituras de Derrida e, depois, a psicanálise, dentre outras, foram orientando meu pensamento e minhas atitudes como profissional e pesquisadora, ainda durante o doutorado. Quero com isso dizer que passei a questionar aquilo que parecia inquestionável, naturalizado pelos hábitos e pela cultura, tudo o que faz(ia) parte de meu cotidiano, tudo o que parece(ia) verdade... Aos poucos, aprendi com Foucault e Derrida a “desconfiar” de tudo; não numa atitude paranóica ou de falta de confiança. Desconfiar da veracidade do que dizem os escritores, os teóricos, sobretudo quando insistem em defender aquilo em que acreditam como se fosse a única e última verdade. Com Foucault e com Derrida, mas também com Lacan, aprendi que a verdade não está em ninguém, a não ser em você mesmo(a), no grupo social ao qual pertence, em suas crenças, valores, objetivos. Mas, no âmbito da pesquisa e no meio acadêmico, não colocar nada no lugar daquilo que se critica – porque todo olhar problematizador é visto, negativamente, como uma crítica – é quase sempre mal interpretado: você critica, mas o que põe no lugar? era (e ainda é, embora mais raramente) a pergunta mais normal no final de 14 | P á g i n a Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano (Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no10 uma comunicação ou uma palestra. Pertencemos à cultura ocidental, para a qual o certo é buscar a verdade e esta só pode ser encontrada na razão, na certeza da objetividade, na teoria, na religião ou na ciência que pro-gride (vai subindo, pouco a pouco, os degraus da longa escadaria que culmina na verdade, na sabedoria, na perfeição). O uso que fazemos da razão nos constitui culturalmente, é certo, mas é possível questioná-lo, como é possível questionar a escola, sem que, com isso, tenhamos de colocar outro modo de ensinar ou outra instituição no lugar; mesmo porque é impossível fazer isso sem tomar como parâmetro aquilo que refutamos; onde estaria, então, a novidade? Só podemos desconstruir de dentro do edifício da cultura ocidental, caracterizado pelo pensamento dicotômico, que nos constitui e, assim, só é possível lançar um olhar problematizador e questionador às articulações que constituem tal edifício e às consequências do funcionamento do mesmo na sociedade. Se entendermos que a escola foi construída com objetivos específicos, seremos capazes de entender que ela poderia ser diferente – não melhor nem pior, mas diferente. Isso nos dá liberdade para questionar o que se apresenta diante de nós como verdades irrefutáveis, modos de ser e de ver a nós mesmo(a)s, ao outro, ao mundo que nos cerca de uma certa maneira e não de outra e, ao mesmo tempo, aceitar o outro, a cultura do outro, as diferenças do outro. A desconstrução permite que percebamos, como já afirmava Nietzsche, que acreditamos naquilo que não passa de construções humanas como se fossem naturais, criadas por algum ser divino. A psicanálise freudo-lacaniana também se posiciona contrária a tudo o que se diz “verdade” e, sobretudo, à concepção de sujeito centrado, consciente, racional. A contribuição da psicanálise para o estudo do discurso didático-pedagógico se encontra principalmente no entendimento do aluno e do professor como sujeito do desejo, o que muda radicalmente o nosso olhar sobre as relações que se estabelecem entre eles no contexto de sala de aula. Se considerarmos que é impossível ensinar, porque é impossível controlar o desejo do outro (aluno, no caso), a não ser que se acredite que uma metodologia seja capaz de motivar e, portanto, de fazer o aluno aprender – o que, para mim é uma falácia –, então, compreenderemos que só é possível instigar no aluno o desejo de aprender e isso se dá através do professor que funciona, para o aluno, como sujeito “suposto” saber, como alguém a quem se confere um saber e uma confiança proveniente da admiração que esse saber pode instigar. Insisto em dizer que se trata de um “suposto” saber, porque ninguém sabe tudo e o professor precisa entender isso e aprender a conviver com a falta. Se o professor se coloca diante do aluno como aquele que sabe, como aquele que não tem falhas, o aluno não terá jamais a oportunidade de, ele também, perseguir o seu desejo, em busca desse saber que é sempre faltante, sempre falho, sempre incompleto, mas também sempre instigante, sempre provocador... Mas, como eu costumo dizer, para que isso ocorra, é necessário que o(a) professor(a) ame o que faz, goste de estudar, seja responsável por suas ações, ainda que nem sempre possa controlar os efeitos de sentido nem suas consequências inevitáveis; que ele ou ela se envolva e se identifique com aquilo que ensina. A aprendizagem, sustentada em algumas concepções da psicanálise, se dá na relação entre subjetividades, que se encontram pelo amor ao saber, que não se totaliza em ninguém, que está sempre aberto a outras interpretações, a transformações, às mudanças que a vida inevitavelmente proporciona. Só é possível falar de aprendizagem se um dado saber atravessar o corpo, constituí-lo, fizer-se carne e sangue, transformando a subjetividade daquele que se expõe e nele se in(ex)screve (lt.: in-scribere; ex-scribere). GUAVIRA LETRAS – Você afirma que outras teorias de discurso são igualmente transdisciplinares, daí podermos afirmar que a análise de discurso se encontra no espaço 15 | P á g i n a Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano (Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no10 incômodo do entre – entre linguagem e social. Afirma ainda que suas pesquisas baseiam-se em concepções teórico-metodológicas conflitantes e até certo ponto incompatíveis – o podersaber em Foucault, que, de certo modo, substitui, embora a ele não se sobreponha, o conceito de ideologia presente em suas primeiras obras; a noção de formação e prática discursivas, além de sujeito como lugar discursivo (Foucault, 1969); a noção de texto e, sobretudo de différance, suplemento e traço em Derrida; e a noção de sujeito cindido, fragmentado, constituído pelo outro, sujeito da linguagem e do gozo desejado e interditado, em Freud e Lacan. Sob seu olhar, o que eles guardam em comum? MJC - Apesar de diferentes, singulares em sua maneira de questionar o que parece óbvio, os três intelectuais guardam algo em comum, sim, ou, pelo menos, algumas concepções se tangenciam. O primeiro aspecto a ser considerado como traço que une – sem unir – é a concepção de sujeito. No movimento de 68, estavam os três unidos contra a racionalidade como única maneira de chegar à verdade, contra a concepção de sujeito centrado, cartesiano, caracterizado pela razão, ainda que marcado pela dúvida, única capaz de abrir as portas da verdade que se encontrava na capacidade de pensar e de fazer ciência. O sujeito racional, como sabemos, remonta à tradição greco-latina, de que somos herdeiros: Platão postulava a existência do mundo das ideias (da razão, da verdade, do controle) e do mundo das sensações (sentimentos, instintos, subjetividade). O primeiro deveria prevalecer sobre o segundo que precisava ser banido para podermos, um dia, alcançar Deus, a sabedoria perfeita, completa. Descartes foi buscar em Platão inspiração para o seu pensamento e outros, como Chomsky, foram buscar em Descartes a sua fonte de inspiração. Então, a concepção de sujeito dividido, incompleto, incapaz de exercer controle sobre si e sobre o outro, de modo a, de antemão, prever as consequências de seus atos, de suas atitudes, de suas palavras. Isso nos leva a outro ponto em que os três intelectuais se tangenciam: a concepção de linguagem – opaca, capaz de provocar no interlocutor (ou leitor) efeitos de sentido, muitas vezes, inesperados; linguagem, portanto, polissêmica, cujos sentidos só são controlados pela cultura, pelo momento histórico-social, pelos grupos sociais em que se inscreve o sujeito; linguagem porosa, incapaz de tamponar o inconsciente. Sobre este, de modos diferentes, os três intelectuais em pauta se pronunciam. Tanto Foucault quanto Derrida concordam com a existência de uma dimensão inconsciente, que promove o não controle do dizer e do agir, a ausência de previsibilidade dos acontecimentos, que urdem uma trama, à revelia do próprio sujeito. O aspecto social permanece no pensamento dos três: em Foucault, nas formações discursivas ou nos discursos em formação, que delimitam o que pode e deve ser dito, num dado momento, para uma dada cultura, para um determinado grupo. Em Derrida, na impossibilidade de haver sujeito ou de falar de identidade sem o outro, o que, de certo modo, coincide com o pensamento de Lacan, para quem o ego se constrói no espelho do olhar do outro, cujos traços vão sendo internalizados, de modo a constituir o que denominamos identidade, ilusão de completude, de seres inteiros, de coincidência de si consigo mesmo (cf. Lt.: idem). Outro ponto, ligado a estes, diz respeito à verdade: nenhum deles acredita na existência de uma verdade, sem consideração do momento histórico-social no qual se inscreve o sujeito e a(s) verdade(s). Para Lacan, a verdade é aquela que não se sabe, isto é, aquela que nos constitui como sujeito: a verdade do inconsciente. Além do mais, tanto Foucault quanto Derrida não aceitam a elaboração de uma teoria como a psicanalítica, que propõe uma estrutura para o inconsciente: segundo Lacan, o inconsciente se estrutura como uma linguagem. Não aceitam a existência do eu ideal, do ideal do eu, do imaginário, simbólico e real, dentre outros conceitos, como postula a psicanálise lacaniana, que, assim, 16 | P á g i n a Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano (Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no10 parece tornar concreto o que é da ordem do impossível a definir. Para os dois, mas, principalmente para Foucault, a psicanálise é um dispositivo de poder; o analista promove, no analisando, a confissão de si e, desse modo, assim como ocorre com a confissão na religião católica, exerce sobre ele um certo poder, que provém de um saber, que se constroi com o consentimento do analisando que não se dá conta do que ocorre. Entretanto, apesar das discordâncias, da desconstrução que os dois filósofos operam sobre a psicanálise, ambos a conhecem muito bem (sobretudo a freudiana) e dela se servem ao longo de sua obra, principalmente de noções que não comprometem a sua crítica à estrutura, à classificação, enfim, à teoria, que promove sempre uma verdade, através de seus postulados. Tais semelhanças talvez se devam ao fato de que os três foram heideggerianos no início de sua formação acadêmica e Derrida, embora ele discorde, porque também desconstroi muitos conceitos em Heidegger, foi considerado, na época do movimento estudantil de 1968, o mais heideggeriano de todos: Foucault era visto, no meio acadêmico, como a soma das ideias de Heidegger e Nietzsche; Lacan, de Heideigger e Freud e Derrida, de Heidegger + Heidegger. Na ocasião, não era nada confortável ser visto como heideggeriano, na medida em que este filósofo, assim como Nietzsche e, mais tarde, Foucault, Derrida e, de certa maneira, Lacan, se posicionavam contrários a todo o tipo de imposição da razão, de verdades preestabelecidas, que acaba(va)m por discriminar, segregar, criar preconceitos e, portanto, marginalizar uns em favor de outros, daqueles que permaneciam no poder e no centro, fazendo valer como únicos e verdadeiros os seus postulados, as suas crenças, o seu modo de pensar e de ver o mundo, o seu jeito de ser. Entretanto, quando afirmo que todas as vertentes da Análise de Discurso são transdisciplinares, assumindo o espaço incômodo do entre – entre linguagem e social –, refiro-me também a outras abordagens como a orientação britânica da Análise Crítica do Discurso, que encontra em Fairclough e seus seguidores o seu esteio. É bem verdade que, sob a denominação de Análise de Discurso, abrigam-se vertentes textuais, que, nos seus primórdios, pouco trabalhavam com o componente social, mas, os Estudos do Texto também foram mudando e, hoje, incluem o componente social, ainda que o considerem extra-linguístico. Não se trata, em todos os casos aqui citados, da mesma concepção de social, da mesma inserção na abordagem discursiva, que, dentre outros, se ancoram na psicologia cognitivista. Além disso, toda Análise de Discurso se constitui de várias áreas do conhecimento: num caso, teorias do discurso, história, filosofia, linguística, psicanálise; noutro caso, linguística, estudos sociais, ciências da cognição; noutro, ainda, estudos do texto, análise conversacional, psicologia, para citar apenas algumas possibilidades transdisciplinares, que, certamente, se modificam em função dos registros em estudo (corpus) ou em análise. GUAVIRA LETRAS - Há uma frase no seu livro de 2003 (Identidade & Discurso) desafiadora, instigante, marcante, em especial para a área da educação: “De identidade paradoxal, o sujeito-professor de português oscila entre representações utópicas, idealizadas, que acabam por encobrir ou sublimar as dificuldades do profissional nos dias de hoje, e a realidade de um cotidiano penoso, que o distancia cada vez mais da imagem ideal de professor construída ao longo dos anos e das gerações...” (p. 253-4). A proposta aqui é tomála como tema para que você aborde as relações entre sujeito e alteridade. MJC - Veja: não é possível falar de identidade sem falar de alteridade. Isso porque a identidade é construída pelo outro. Há quem fale da identidade política, moldada segundo 17 | P á g i n a Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano (Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no10 interesses específicos, mas não é a essa identidade que me refiro. A palavra “identidade” se constitui do pronome latino idem, que significa o mesmo; assim, quando falamos de identidade subjetiva (não profissional, não apenas linguística nem política), estamos dizendo que há coincidência de si para consigo, que eu sou exatamente como me descrevo ou como me descrevem. Há aí uma ilusão de completude, ainda que se diga, nos estudos sociais, que a identidade muda; seja como for, ela pode ser apreendida, descrita, estabilizada. Lacan trata da identidade quando aborda (cf. “O estádio do espelho como formador da função do eu”, em Escritos) o que ele denomina estádio do espelho. A mãe ou um adulto que a representa coloca o bebê diante do espelho e vai nomeando (olha, você, Renatinho); pouco a pouco, a criança vai internalizando essa imagem invertida de si (basta pensar que nos vemos como o outro nos vê, isto é, pelo espelho (o olhar do outro), que transmite a imagem de nós mesmos. Da mesma forma, o modo como a criança é tratada na escola, como os pais definem suas qualidades e seus defeitos vai construindo o seu ego ou o eu ideal. É, portanto, na instância do imaginário que se constrói a identidade, que, é bem verdade, não passa de uma ilusão, ou, como quer Nicole Berry, de um sentimento de identidade (título de sua obra traduzida por mim e publicada pela Editora Escuta). O que e como somos só o inconsciente pode dizer: ele se manifesta pelas brechas da linguagem, nos atos falhos, lapsos, sonhos, chistes, sintomas..., mas a questão que, raramente, somos capazes de interpretá-los fora do divã do psicanalista. Quando me referi aos professores e ao imaginário que os constitui, estava pensando no imaginário social, aquele construído pela memória discursiva que vai se transformando com o tempo, mas que, herdado, vai constituindo o (futuro) professor. Sabe-se que a escola urbana, tal como a conhecemos hoje, teve origem na época da Revolução Industrial, quando houve uma grande migração do campo para a cidade, em busca de trabalho. As mulheres dos empresários reuniam as novas habitantes, esposas dos operários, para ensinar a elas noções de higiene, como forma de prevenir que doenças fossem trazidas, do campo, para a região urbana. Aos poucos, as crianças foram se tornando alvo dessa espécie de ensino ministrado pelas mulheres até que os religiosos, com o intuito de catequizar, tomaram para si a responsabilidade pela educação, que já começou como uma tarefa missionária, sem remuneração em troca. Isso explica, a meu ver, a representação de professor, primeiro como uma tarefa feminina, segundo como um trabalho missionário, que permanece, com transformações, ainda hoje, no imaginário de professores: apesar de insistirem que são profissionais com o direito de lutar por uma remuneração mais justa, num mundo em que o dinheiro é o significante mestre, ainda se veem como abnegados, cuja recompensa é mais o resultado de sua ação sobre as crianças e adolescentes, além da valorização de seu saber ou de seus conhecimentos, do que o dinheiro – é ao menos o que se percebe em muitas das redações de professores que analisamos em nosso projeto. Ao mesmo tempo, esse imaginário entra em conflito com uma realidade difícil de enfrentar, como falta de infraestrutura para ensinar, de forma moderna e adequada, em escolas onde falta tudo – desde aparelhos até tomadas para se ligar um gravador, por exemplo. Numa sociedade onde se valorizam os avanços da tecnologia, parece imprescindível a existência de instrumentos, como gravador, retroprojetor, mais atualmente, vídeo, computadores, em sala de aula. Situação difícil de enfrentar também por conta da falta de reconhecimento social de seus conhecimentos, o que se traduz pela baixa remuneração e pela desconfiança dos alunos quanto ao saber, há alguns anos atrás, inquestionável. Situação difícil, finalmente, em razão dos alunos, desrespeitosos, muito mais violentos e agressivos do que outrora, sobretudo – mas não apenas – quando se trata de escolas públicas da periferia, pobre e cheia de problemas sociais, alunos desmotivados, desinteressados. Desse modo, a identidade do professor se constitui desse e nesse emaranhado de conflitos e contradições: de um lado, a memória discursiva que os 18 | P á g i n a Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano (Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no10 exalta, herança de um tempo em que eram reconhecidos pela sociedade como portadores do saber, como missionários, de outro, uma sociedade que os desvaloriza como profissionais mal-preparados, com necessidade freqüente de “atualização”, o que se concretiza na baixa remuneração. Ora, como afirma uma professora, em sua redação para o Concurso, “o professor narra a sua história”, promovido pela Secretaria de Educação do Estado de São Paulo, em 1996, ser mal remunerado, numa época em que o dinheiro domina como fator de reconhecimento e valorização, é ser um nada, incompetente, descartável... Essa sensação de objeto dispensável vem sendo enfatizada pelo uso de instrumentos que parecem ocupar o lugar do professor ou ao menos reduzir a sua relevância, como a internet, no ensino semipresencial ou a distância, tão exaltado e pouco questionado, nos dias atuais. GUAVIRA LETRAS – Sabemos que coordena um grupo de estudos sobre novas tecnologias e que estas permitem configurações textuais cada vez mais diversificadas, multifacetadas e complexas. Conte-nos sobre os principais desafios da(s) leitura(s) dos textos tecidos por múltiplas linguagens. MJC - É interessante que sempre nos referimos aos textos das e nas chamadas novas tecnologias como sendo complexos, tecidos por múltiplas linguagens, como se a complexidade não caracterizasse todo e qualquer texto, escrito no papel ou na tela. Pensamos, por exemplo, que o hipertexto é uma prerrogativa do texto-tela, que permite acessar ad infinitum outros textos, a um simples clique do mouse. Esquecemos que a intertextualidade se faz presente nos textos-papel através das referências a obras e autores e citações dos mesmos, no corpo do texto, além das referências bibliográficas no final dos mesmos. A grande diferença é a facilidade de encontrar esses outros textos na internet, o que não ocorre no segundo caso, que exige um trabalho de busca em bibliotecas e livrarias. Entretanto, esquece-se que, tanto quanto no texto-papel, os textos inseridos e ativados com um clique do mouse sobre uma palavra destacada (seja pela cor, seja pela ênfase – sublinhado, negrito ou itálico) são escolhidos, limitados, pelo “autor” ou pelo especialista que informa ao técnico em computação, para que este insira os textos, muitas vezes, fabricados a partir de outros textos, assinados (“originais”) por outros especialistas, autores de textos grafados em papel. Neste caso, os textos, encontrados na íntegra em livros ou artigos publicados em papel, são frequentemente sintetizados pelo autor do texto-tela, que permanece, muitas vezes, anônimo, eximido de responsabilidades, que passa para o site ou para a empresa promotora, responsável por aquelas informações. Por essas e outras razões, pode-se afirmar que há semelhanças e diferenças a serem consideradas nos dois casos, diferenças que advêm do veículo: o manuseio do papel em oposição à distância do texto-tela com relação ao leitor A facilidade com que se relê e se refaz o caminho para a obtenção de uma dada informação e a dificuldade, por vezes a impossibilidade de refazer o caminho percorrido, principalmente quando se trata de textos que rastreamos sem a orientação de um site, constitui mais uma diferença... Talvez se deva a essas diferenças a manutenção do textopapel, apesar do receio que as editoras e nós, velhos amantes dos livros, que carregamos debaixo do braço, podendo ser transportados e abertos a qualquer momento, em qualquer situação, em qualquer lugar, sentimos diante da possibilidade do desaparecimento das publicações em papel. Haverá sempre, como afirma Derrida, em sua obra Papel-máquina, lugar para os livros em papel, lugar que, evidentemente, está sendo modificado pela web e que, certamente, sofrerá ainda mais transformações; mas ele permanecerá, como ocorreu 19 | P á g i n a Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano (Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no10 com o rádio, no momento em que a televisão surgiu; como acontece com o jornal escrito, mais tarde radiofonizado, depois, inserido na televisão e, mais recentemente, na internet... No caso do jornal, já se percebe uma imbricação entre o papel e a tela, cada um deixando-se adentrar pelo outro, construindo um texto híbrido, heterogeneidade ampliada, complexificada a cada momento. Observem-se os jornais como A Folha e o Estado de S. Paulo, que, cada vez mais, incluem imagens, fotos, publicidades, textos paralelos, diagramações incorporando estratégias encontradas na internet. Lembremo-nos também que o que se encontra na internet não deixa de ser uma espécie de “decalque” dos jornais em papel – afinal nada se cria do nada –, que, pouco a pouco, foi se beneficiando das facilidades encontradas pelo meio (reportagens ao vivo, com falas e movimentos, como na televisão). Essa imbricação – que se dá entre os meios de comunicação – está ocorrendo também com as formas de grafar, tacitamente convencionadas para a internet (o famoso “internetês”), e o modo escolarizado, tido como “correto” da escrita padrão. Na escola, já é preciso perceber essa “mistura”, apesar da recusa da mesma – e dos professores, em particular – em assumir os textos da internet como gêneros (e-mail, blogs, orkut etc.) a serem integrados a outros, que já fazem parte dos programas de língua portuguesa. Cada vez mais, é possível dizer que os textos são heterogêneos, como você afirma em sua fala, “tecidos por múltiplas linguagens”: pictórica (não verbal), escrita (verbal) – padrão, oral, internetês –, sonora (verbal e não verbal- musical, por exemplo), etc. GUAVIRA LETRAS – Suas investigações, sob a luz da desconstrução de Jacques Derrida, levaram-na ao questionamento da dicotomia língua materna e língua estrangeira, bastante difundida, no campo da Linguística Aplicada e, consequentemente, da sala de aula. Tal questionamento alavancou muitos trabalhos no intuito de aprofundar o saber científico em torno da relação entre língua materna e língua estrangeira na constituição da subjetividade e da identidade. Nessa direção, qual foi a leitura mais empolgante dos textos de Derrida que marcou para sempre sua visão de mundo? MJC - Embora todos os textos de Derrida me toquem profundamente, não apenas pelas “verdades” que eles desconstroem em mim, anteriormente irrefutáveis, mas por sua escrit(ur)a, que se desconstrói a si mesma, na medida em que se volta para si, para sua constituição histórico-social e realiza um trabalho que expõe sua identidade. Entretanto, foi O Monolinguismo do Outro que mais me marcou, talvez porque aborde questões que eu desejava abordar, sem saber. Quando o li pela primeira vez, num período de férias, eu me emocionei e descobri em mim um interesse que, antes, estava velado, embora já se tivesse manifestado pelo meu gosto por línguas: o interesse de compreender o sujeito entre línguasculturas, tema que foi sendo amadurecido até se tornar “objeto” de um de meus projetos posteriores e que, desde então, não me abandonou mais. Era como se tudo o que ali estava escrito tivesse a ver comigo, como se toda a problemática fosse dele, Derrida, minha e de todos sem exceção. Não é difícil se identificar com o que ele diz, já que trata da língua(gem) que é sempre cultura e que nos constitui em sujeito da linguagem ou sujeito do desejo ou sujeito do inconsciente, para usar uma nomenclatura lacaniana. Derrida aborda essa questão, a partir de suas próprias experiências de vida, alicerçadas, é claro, num pensamento filosófico de uma erudição admirável e, por que não, invejável. O filósofo trata da linguagem o tempo todo em sua obra; aliás, ele faz da linguagem, indiretamente, o seu “objeto” de estudo. Derrida, num diálogo imaginado, inicia sua obra com a seguinte questão: “imagine alguém que cultivasse o francês, o que se chama francês e que o francês o 20 | P á g i n a Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano (Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no10 cultivasse. Ora, um dia, esse sujeito de cultura francesa viria lhe dizer, por exemplo, em bom francês: Eu só tenho uma língua, ela não é minha”1. E prossegue falando de um monolinguismo aparente que vai, pouco a pouco sendo desconstruído; afinal, não há monolinguismo a não ser no outro, que se deseja ser mas que nos é interditado, assim como não existe um sujeito monolíngue: toda língua resulta de muitas outras que, historicamente, vão deixando seus traços, que vão se “sedificando”2, ou melhor, se sedimentando, se naturalizando, se transformando e transformando a língua em questão. Paralelamente à questão do monolinguismo, Derrida discute a impossibilidade de uma língua pertencer a alguém, embora, em nome dessa propriedade, dessa apropriação, impossível (“uma língua não se deixa apropriar”), mas na qual se crê, muitas injustiças sejam cometidas, muitas discriminações e preconceitos sejam nutridos ou mesmo construídos. Uma língua pode ser um instrumento de poder de uns sobre os outros, na medida em que ela é imposta ao povo conquistado, ao imigrante, aos refugiados políticos. E isso pode acontecer de tal modo que a língua do povo conquistado chegue a ser até mesmo suprimida, seja por força da lei ou por força das circunstâncias. Derrida, por exemplo, judeu, nascido na Argélia, nos anos 30, nunca aprendeu a língua árabe, porque, segundo acreditavam seus pais, esta não lhe traria benefício algum, num país dominado pela França. Língua que ele ama, que ele defende, mas que não é dele, como, aliás, não é de ninguém. Essa obra me levou – a mim e a meus orientandos – a questionar a dicotomia língua materna vs língua estrangeira: até que ponto é possível definir a chamada língua materna como a língua do repouso, do gozo, e até que ponto a língua estrangeira seria aquela(s) que não é possível “saber”, mas apenas conhecer, como afirma Melman em seu livro Imigrantes: incidências subjetivas das mudanças de língua e país? Até que ponto é possível antecipar, ou melhor, determinar, sem considerar o sujeito e sua história de vida, marcas do tempo e das circunstâncias que o envolve(ra)m, marcas das experiências pessoais, a língua materna de alguém (adquirida, portanto) em oposição à(s) língua(s) estrangeira(s) que aprendeu? Nossa pesquisa mostrou a impossibilidade de conservar tal dicotomia, não apenas porque cabe ao sujeito se pronunciar a respeito, como também porque, se for possível falar de língua materna, seria necessário, considerá-la híbrida, resultado das línguas que nos constituem, uma verdadeira lalangue, lalação (como afirma Milner, com base em Lacan) - que se caracteriza pela sonoridade -, impossível de tocar, de analisar, mas que se manifesta, pontualmente, cá e lá, na materialidade linguística de nosso dizer, na imbricação das línguas, de forma inconsciente e, portanto, imperceptível. Tais reflexões levaram-nos a considerar a estrangeiridade naquela que se insiste em denominar língua materna e a possibilidade de regiões de maternização naquela que consideramos estrangeira. Estudamos, então, o discurso de migrantes, pessoas que se deslocam dentro do mesmo país, em busca seja de melhores condições de trabalho e/ou de estudo. No momento, a mesma questão está sendo estudada com relação aos pobres, aos migrantes em situação de rua. Trata-se, sempre, de uma questão de língua(gem)-cultura, identidade e, portanto, de subjetividade. GUAVIRA LETRAS - Como você consegue vislumbrar as veredas atuais para a questão do discurso? 1 Tradução da entrevistada. Acabo de dizer algo que pode ser considerado da ordem de lalangue, na medida em que a palavra, pronunciada imediatamente antes, resulta da sonoridade de outro termo: “sedificando” parece proceder de “se edificando” ou “s’édifiant”; seja como for, a ideia é de construção e não de manutenção ou de sedimentação. 2 21 | P á g i n a Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano (Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no10 MJC - De um lado, não é mais possível analisar apenas a materialidade linguística; é preciso considerar os demais componentes do texto, como as imagens, as ilustrações, os gestos, tudo o que é visual, tudo o que não é verbal. Isso porque o sentido não está apenas nas palavras. Se pensarmos no discurso midiático, compreenderemos melhor o que estou querendo dizer: os aspectos não verbais são tão importantes para a produção do(s) sentido(s) quanto o aspecto verbal. Analisar, portanto, o componente não verbal é um dos grandes desafios para a Análise de Discurso nos dias de hoje, sobretudo se considerarmos que o não verbal deve ser analisado em outras bases que o virtual. Pode-se guardar uma mesma filosofia, mas, para analisar uma materialidade que é muito diferente, outros conhecimentos, outra metodologia se fazem necessários. Sabemos que, dentre outros, o grupo de pesquisa da colega Maria do Rosário Gregolin, da UNESP (Araraquara), está tentando teorizar e até mesmo criar uma metodologia de análise, a respeito do não verbal, mas sabemos, também, das dificuldades que estão encontrando. Por outro lado, os discursos do cotidiano, da rua, dos sem nome, dos marginalizados merecem ser analisados, compreendidos, rastreados, como única maneira de conhecer melhor o mundo que nos cerca, contribuir para a problematização de uma situação político-social insuportável, injustiça que só pode culminar na violência, na revolta, no ódio... Finalmente, não há como escapar do discurso multimidiático, que mina a vida de todos os que, sem reagirem, abrem as portas de suas casas, de seu corpo, de seu universo para a vigilância, para a tecnologia que, cada vez mais, não nos deixa sós, nem a sós, ao mesmo tempo em que nos isola do contato social, exclui a presença do outro em nossa vida, expondo-nos ao controle daqueles que não conhecemos, que não nos conhecem nem querem conhecer; querem apenas adentrar em nossa vida para com isso lucrar, extrair dinheiro, ludibriar. Os discursos sobre as chamadas novas tecnologias e suas articulações, seu funcionamento devem ser estudados, analisados, com o objetivo de provocar reflexões, questionamentos que sejam capazes de desnaturalizar o que, embora tendo sido construído – como tudo o que nos cerca, aliás -, paira no mundo contemporâneo como se fosse natural, inevitável. Mas, é preciso considerar a impossibilidade de fazer esses estudos sem uma visão menos compartimentalizada das áreas de conhecimento, para que seja possível adentrar por uma sociedade multilínguemulticultural como a que estamos vivendo. Como será no futuro? Fica difícil prever, já que estamos atravessando – e sendo atravessados – por um momento de profundos conflitos sociais, emergindo cada vez mais fortes, contra consequências avassaladoras do fenômeno da globalização que, sedimentado pelo regime neoliberal, tem como projeto a homogeneização de tudo e de todos, o apagamento das diferenças, sob o rótulo falsamente generoso de criar possibilidades iguais para todos num mundo que é de todos. Contra esse projeto muitos grupos sociais, considerados minoritários, têm se rebelado, intensificando sua identidade e, portanto, aquilo que os distingue do ocidente ou de outros povos (muitas vezes não tão diferentes assim). As mudanças políticas e sociais correspondem sempre mudanças de discursos. E só o futuro poderá dizer para onde esses discursos, sempre em formação, levarão as pesquisas que se preocupam com o seu funcionamento, discursos ao mesmo tempo construídos pelo momento histórico-social e responsáveis pela transformação da realidade. GUAVIRA LETRAS - Você escreveu no seu livro, “O jogo discursivo na aula de leitura” (1995), a frase: “Entendemos, então, o silêncio não como ausência de som e, 22 | P á g i n a Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano (Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no10 consequentemente, de significado, como vazio que precisa necessariamente ser preenchido...” (p. 68). Como você interpreta esse enunciado hoje? MJC - Sim, o silêncio é normalmente entendido como ausência de ruído, de barulho, de palavras, apenas. Mas, na nossa cultura latina, o silêncio constitui um problema: não suportamos ficar calados por mais de alguns segundos; dizemos qualquer coisa para quebrar o silêncio que incomoda, perturba. Isso não ocorre com outras culturas. Por exemplo, o silêncio para os indígenas é um tempo para pensar, elaborar o que será dito... Mas, por outro lado, o silêncio pode significar resistência, não aceitação de alguma forma de poder, de alguma imposição ou, ainda, pode constituir uma estratégia (consciente ou não) para manifestar uma espécie de descontentamento por alguma coisa, principalmente quando não é possível expressar com palavras o que se sente. Pode ser o caso de alunos que, para não serem repreendidos, se calam em aula: aparentemente, estão prestando atenção, mas sua cabeça está em outro lugar. Falta de educação ou desrespeito com relação ao professor? Pode ser. Mas, pode também significar desinteresse pela aula, pela metodologia, pelas atitudes do(a) professor(a). Seja lá como for, trata-se de uma atitude de resistência numa relação de poder. Entretanto, silêncio não é o mesmo que silenciamento. Este é imposto por outro(s), que impede(m) a expressão “livre” de um pensamento ou de um sentimento; é o caso dos regimes políticos totalitários, que exercem um poder soberano sobre a população, não permitindo, sob ameaça, qualquer espécie de resistência. Silenciar, portanto, não é apenas calar o outro, mas anulá-lo, enquanto calar-se pode ser uma atitude consciente de resistência, como dissemos. Hoje, na época do que muitos denominam pós-modernidade, de forma paradoxal, ao mesmo tempo em que a solidão toma conta da vida administrada por tecnologias, ou talvez exatamente por isso, não se suporta o silêncio, talvez porque este nos coloque frente a frente a nós mesmos, com nossas mazelas, com as injustiças que cometemos ou que deixamos que se cometam, com nossa indiferença; queremos barulho o tempo todo, música ruidosa nos ouvidos, tampados por fones de orelhas, imagens, que ofusquem nossos olhos para que enxerguemos apenas o que outros querem e que nos traz a sensação de “felicidade”, e, assim todos os sentidos a tudo o que não seja prazer, gozo, ilusão de felicidade. Vive-se como se o sofrimento, a dor – moral e física –, a morte, enfim, que nos assombra, pudessem ser banidos do mundo de cada um, cada vez mais reduzido pela solidão, na crença ilusória e mentirosa de que, assim, (com)partilhando apenas com máquinas, com objetos e pessoas descartáveis, buscando consumir desenfreadamente, encontraremos a nossa realização pessoal. Não estaremos também sendo silenciados, amestrados, agenciados, ainda que de forma subliminar, sutil, pela mídia, que, hoje, funciona como o veículo da verdade, a serviço do neoliberalismo e do marketing? Preenchemos a falta, o vazio que nos constitui com objetos, na esperança de, no final da empreitada, depararmo-nos com um ser completo, capaz de, sozinho, suprir todas as suas necessidades... doce ilusão que nos leva ao abismo da depressão e da droga. GUAVIRA LETRAS – Conte-nos acerca do seu momento atual, dos seus projetos, perspectivas, sonhos. MJC - Dos projetos atuais já falei um pouco... De minhas perspectivas acadêmicas, não tanto, talvez porque, eu mesma acredite que, já sendo professora titular e pesquisadora 1A junto ao CNPq, não me resta senão manter firme essa posição. Mas, apesar dos meus 40 23 | P á g i n a Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano (Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no10 anos de profissão, eu ainda conservo algumas ambições: almejo um pouco mais no que diz respeito a uma certa internacionalização das pesquisas e trabalhos que implementamos. Tenho ido a diversos congressos internacionais em vários países, sempre com apresentação de trabalho; fiz vários cursos com professores e pesquisadores de renome internacional na Linguística e na Linguística Aplicada, sobretudo na França. Já fiz estágios de pósdoutoramento em Montreal (Canadá), em Paris (França) e em Lisboa (Portugal). E tenho alguns artigos publicados no exterior. Mas, onde eu pude, realmente, expor minhas ideias, dizer o que pensava, me expor e, talvez, me impor, foi na Universidade de Franche-Comté, em Besançon (França), onde estive, em 2000, durante dois meses como professora convidada. É claro que nem sempre concordavam comigo, diziam alguns que eu era “iconoclasta”, mas eu pude discutir de igual para igual, o que é muito difícil acontecer num país estrangeiro. Pretendemos, num futuro próximo, realizar um acordo entre a Unicamp e a Universidade de Franche-Comté, entre a Unicamp e a Universidade de Montpellier 3, para levarmos a cabo, juntamente com a Universidade Federal de Uberlândia, um projeto interinstitucional sobre questões identitárias de (i)migrantes em São Paulo e Minas Gerais, em Besançon e Montpellier. Mais proximamente ainda irei a Hangzou, na China, por ocasião de um congresso sobre multiculturalismo, expor alguns resultados de pesquisa em torno da identidade do sujeito em situação de rua, marcado pela miséria, pela droga, pelo álcool, pela exclusão, pelo abandono, pelo menosprezo inclusive dos familiares; essa exclusão, ou melhor, essa estrangeiridade, se torna ainda mais forte quando se trata de migrantes que saíram de suas terras em busca de trabalho, mas se depararam com a realidade que os aguardava: viver debaixo dos viadutos, ao relento, tendo de catar lixo ou pedir esmola para sobreviverem na rua, sem família, sem amigos, sem nada para perder e, menos ainda, para ganhar. Interessa-me saber, além das representações de si e do outro (não morador de rua) se algo resta em sua memória dos tempos de escolarização - se isso aconteceu, é claro –, e que representações têm de língua estrangeira, expostos que estão todos os dias a outdoors, a músicas no rádio, que ouvem, sozinhos, em silêncio. Também temos pesquisado sobre a escrita no corpo (marcas, cicatrizes, escaras, tatuagens), analisando filmes e respostas a entrevistas informais, tanto com pessoas em situação de rua, quanto com jovens de classe média. Quanto à pesquisa em torno das tecnologias, minha preocupação gira em torno da escrit(ur)a de si no corpo da escrita: como se manifesta – se é que se manifesta – a subjetividade nos textos-tela, como blogs, orkut, twitter... Que subjetividade está se construindo num mundo em que se é mais falado pelos meios tecnológicos do que se fala. Como funcionam as chamadas novas tecnologias na produção do sujeito do gozo, também denominado sujeito do imaginário ou sujeito do consumo. Prosseguimos na busca interminável da compreensão da subjetividade, da singularidade, da memória que constrói a história de cada um e que é também construída pelo outro que nos constitui, constituindo o saber inconsciente. De resto, continuar a colaborar com a formação de professores e pesquisadores – mestrandos, doutorandos... –, a possibilitar a troca acadêmica com colegas de outras universidades em nível de pós-doutorado e continuar a estudar, a pesquisar e a escrever, a colaborar, se possível for, para a problematização das evidências, provocando um certo mal-estar, capaz de minar a torre de marfim em que muitos se refugiam, e, assim, produzir deslocamentos, rupturas, transformações, pequenas revoluções diárias, como diria Foucault, únicas capazes de acarretar mudanças legítimas e duradouras... 24 | P á g i n a Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano (Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no10 TRAVESSIAS CONTEMPORÂNEAS: O BRASILEIRO CLANDESTINO DEPORTADO Marcos Aurélio Barbai (IEL/UNICAMP)3 RESUMO: O objetivo deste artigo é apresentar minha pesquisa de doutorado que analisou, na perspectiva da Análise de Discurso, a imigração clandestina e a deportação de brasileiros. O sujeito brasileiro clandestino deportado é um corpo apagado no território, vivendo com a deportação, uma humilhação política, subjetiva e social. Palavras-chave: discurso; imigração; clandestinidade; deportação. ABSTRACT: The aim of this article is to introduce my doctorate research that analyzed, in the Speech Analysis perspective, the illegal immigration and deportation of Brazilians. The Brazilian illegal banished subject is an effaced body on the territory, living with deportation, a politics, subjective and social humiliation. Key Word: speech; immigration; clandestineness; deportation. Assim, Heine confessa: “Minha disposição é a mais pacífica. Os meus desejos são: uma humilde cabana com teto de palha, mas boa cama, boa comida, o leite e a manteiga mais frescos, flores em minha janela e algumas belas árvores em frente de minha porta; e, se deus quiser tornar completa a minha felicidade, me concederá a alegria de ver seis ou sete de meus piores inimigos enforcados nessas árvores. Antes da morte deles, eu, tocando em meu coração, lhe perdoarei todo o mal que em vida me fizeram. Deve-se, é verdade, perdoar os inimigos – mas não antes de terem sido enforcados”. (Sigmund Freud - Mal-estar na civilização, 1974, p. 115) Considerando tão atual quanto importante o lugar de reflexão que esta edição da Revista Guavira propõe, a saber, “Sociedade Contemporânea: diversidade e multiculturalismo”, gostaria de aqui apresentar parte do percurso de minha pesquisa de doutorado4 que abordou, na perspectiva da Análise de Discurso, a problemática da imigração clandestina de brasileiros e o retorno desses sujeitos, ao Brasil, via deportação. Escutar esses sujeitos, corpos significantes (históricos, simbólicos e sociais), na materialidade do espaço, foi meu gesto de inquietude discursiva frente a um acontecimento que se mostrava absorvido por uma memória. Ou seja, certa noite, durante o processo de escrita de minha dissertação de mestrado5, ouvi a chamada de uma reportagem, em um programa de televisão, que noticiava que muitos brasileiros estavam retornando ao Brasil deportados. 3 Pesquisador do Laboratório de Estudos Urbanos (Labeurb/Nudecri/UNICAMP). [email protected] BARBAI, M. A. Discurso e Identificação: o migrante brasileiro clandestino deportado. Iel/Unicamp, 2008. Pesquisa financiada pela Fapesp (processo: 04/07881-3). 5 BARBAI, M. A. No fio do discurso: o seqüestro como um fato de linguagem. Iel/Unicamp, 2004. 4 25 | P á g i n a Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano (Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no10 Ao assistir essa reportagem, realizada no Aeroporto Internacional de São Paulo, era possível ver alguns brasileiros agitados, com seus poucos pertences nas mãos, passando apressadamente no saguão do aeroporto e, à sua espera, um repórter, ávido a lhes fazer algumas questões. Entre o dito e ao se dizer, entre o visível e o nomeado, não havia silêncio e sim uma surdez: tudo ali aparecia menos o fato de que se tratava de brasileiros imigrando clandestinamente e retornando ao Brasil como sujeitos deportados. O efeito de assistir a cena, produzida por uma reportagem, incitou-me a pensar naquilo que Pêcheux (1998) diz, sobretudo em referência, ao poder da mise en scène. Examinando essa reportagem, era possível ver dois movimentos se produzindo: um já-demarcado e um jávisto – portanto o evidente - (esses brasileiros que você está vendo e ouvindo ai em sua televisão voltaram deportados para o Brasil porque migraram clandestinamente) ou ainda a simulação e presentificação do visto e do escutado (se você tivesse migrado clandestinamente para um dado país e retornado ao Brasil como deportado você saberia do que eu estou falando). Assim, esse acontecimento rebelde (como se o acontecido não tivesse ocorrido) se impôs. Um encontro iria se marcar, com hora e lugar, para mim e para meu outro, no cerne de uma problemática dos tempos atuais: fronteiras que segregam quem pode e quem não pode, quem deve e quem não deve circular; travessias subjetivas que nunca se desembaraçam completamente do trás-mundo, ou dos pré-mundos que fundamentalmente habitam. No ano de 2005, dirigi-me ao Aeroporto Internacional de São Paulo, na cidade de Guarulhos, depois de um período de negociação com a Polícia Federal, a Infraero e a Receita Federal (as instâncias gerenciadoras do aeroporto) para realizar a pesquisa de campo. Mais do que entrevistar brasileiros que retornavam deportados porque haviam migrado clandestinamente, fui trabalhar como um brasileiro que foi ouvir outros brasileiros, retornando ao Brasil em uma situação difícil e dolorosa. Recolhi relatos de vinte e cinco pessoas deportadas de diferentes países: Estados Unidos da América, México, Bélgica, Espanha, Itália, França, Inglaterra e Japão. Frente a um objeto de estudo (“coisas-a-saber”) o trabalho do analista de discurso depende de uma questão, da natureza de seu material e de seus objetivos. Desse modo, duas questões sustentaram o trabalho: quais são os sentidos que essa posição-sujeito migrante brasileiro clandestino deportado vem mobilizar? E, como construir um mundo mais hospitaleiro para a humanidade quando o que se vê, principalmente hoje, é o apagamento da historicidade das fronteiras e o seu fechamento, em nome de uma segurança global, que não significa segurança para todos? O que me permite fazer essas perguntas, para além do desejo de uma resposta unívoca, é o trabalho com a linguagem: um modo de se abrir para o outro, não recusando o que a alteridade tem de mais fecundo. Errância Moderna: da mobilidade no espaço Considerar a diáspora uma ferramenta de produção na sociedade das experiências multiculturais e do hibridismo é ver a imigração como uma “possibilidade de definição sóciohistórica da humanidade” (cf. HALL, 2003, p. 55). A imigração tem esse potencial, pois a mobilidade humana não se resume a um simples e mero deslocamento de lugares. Segundo Lévy, 2002 (apud HAESBAERT, 2006, p. 238), pode-se definir a mobilidade como a relação social ligada à mudança de lugar, ou seja, como o conjunto de modalidades pelas quais os membros de uma sociedade vivem a possibilidade de eles mesmos, ou de outros, ocuparem sucessivamente vários lugares. 26 | P á g i n a Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano (Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no10 A mobilidade, a meu ver, funda uma outra relação do sujeito com o espaço. Ela é um convite à experiência de múltiplos territórios. Isso se dá porque a mobilidade do sujeito passa a ser vista como um gesto simbólico que constrói a territorialidade, experiência capaz de transformar as formas de habitar o mundo, tornando-o flexível e mutável. O homem errante é aquele que nega, transgride e supera a fantasia de que todas as pessoas necessitam ter “um” lugar fixo no mundo. O tempo desses sujeitos no mundo não é o do sedentarismo, o da inércia, mas aquele do movimento e da novidade. A vida errante, nômade (veja os ciganos6, por exemplo) suscita tanto a admiração quanto o medo, já que o migrante ou o viajante vive no corpo da cidade a contradição entre a dimensão do que é provisório e do que é permanente. Maffesoli (2001, p. 16) salienta que um dos princípios fundamentais da modernidade é o de inscrever no coração do homem o compromisso com a residência. Para o autor, destinar o homem à residência é um processo que o fixa para a dominação, fazendo-o viver sob a ordem, sob a sombra do poder. No entanto, a imobilização do humano pode produzir, segundo a ótica do filósofo, um fechamento do mundo com efeitos mortíferos, atingindo, assim, o ideal do poder de uma imobilidade absoluta “da qual a morte é, com toda a segurança, o exemplo acabado” (Id., p. 25). A mobilidade do homem produz uma desconfiança para com aquilo que é errante, para com o corpo que escapa ao olhar e ao lugar. Mudar de referente, ou seja, transformar-se em um sujeito errante, altera as formas ver e de habitar o mundo. Nesse sentido, Ulisses – o arquétipo dos migrantes – nos lembra que, procurar outras orlas, faz parte da condição humana. Dauk (2006, p. 8) ressalta que Homero ao enaltecer Ulisses o faz porque ele goza de uma hospitalidade humana fabulosamente generosa. “Um mundo humano, esse é o refrão recorrente na Odisséia, só existe lá onde ‘se come pão, se bebe vinho e se reconhecem as leis de hospitalidade’”. Entretanto, a hospitalidade é sempre posta em cheque pelo próprio estranho: uma figura enigmática, ambígua e secreta. O estranho e o estrangeiro convocam experiências com a exterioridade, com as formas mais diversas de alteridade – aquilo que fascina também pode matar. A hospitalidade, desse modo, só pode ser exercida quando uma fronteira precisa ser aberta. Isso se dá porque elas automaticamente não estão, mesmo que a globalização as faça em seu imaginário da integração. Abrir fronteiras é aquilo que o errante moderno faz, desafiando a nacionalidade como o modo de identificação mais importante de todos os tempos. Essa Odisséia moderna pode constituir o migrante como herói e como vilão. Assim, escutar o brasileiro imigrante clandestino deportado é constituir, pelos relatos do sujeito que fala sobre si mesmo, um laboratório interessante para se ver a alteridade convocando a identificação. A imigração clandestina A imigração clandestina, aquela que escapa do circuito de gestão da mobilidade humana de um Estado Nacional, tem um funcionamento interessante. Ela se dá, e pensando aqui as condições de produção da pesquisa, por duas vias: (a) a do imigrante que, adentrando em um território estrangeiro, prolonga a sua estadia para além da duração prescrita; (b) a do imigrante que, contratando serviço especializado de grupos que oferecem a travessia de 6 Faço aqui referência ao trabalho de FILHOL, E. Un camp de concentration français – Les Tsiganes alsaciens-lorains à Crest 1915-1919. Presses Universitaires de Grenoble, 2004. A resenha desta obra pode ser acessada na Revista Rua, n° 14, no site: http://www.labeurb.unicamp.br/rua. 27 | P á g i n a Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano (Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no10 pessoas entre as fronteiras de Estados Nacionais, adentra em um território outro sem autorização e lá permanece. A imigração clandestina é inevitavelmente clandestina, pois ela se situa fora de todo e qualquer reconhecimento legal. As migrações, sobretudo à procura de trabalho, eram aquilo que dissimulavam o fato de alguém migrar clandestinamente. Hoje, a característica predominante deste tipo de mobilidade, é “não se deixar ver” – “ne pas se laisser voir”, (cf. ALALLUF, 2001, p. 92). O processo de uma migração dissimulada transforma, a meu ver, a abordagem do estudioso sobre esse fenômeno, já que falar dos processos econômicos tornou-se quase irrelevante. Aquele que não se deixa ver no espaço, quando migra, é um sujeito da metamorfose, tal qual a personagem de Kafka (1997), Gregor Samsa, em A Metaformose, que vai perdendo suas características humanas, tornando-se um monstro, ou ainda, em O Castelo (Id., 2000), cuja personagem principal tem por nome uma letra (K.) e é designado na cidade como um estranho. Considero a clandestinidade como tomada de posição, efeitos que incidem sobre o corpo do sujeito em um certo tipo de mobilidade no espaço. A clandestinidade é, portanto, determinada como gesto de ilegalidade pelas instâncias administrativas do corpo da população, cabendo ao Estado aplicar a lei e enviar os sujeitos sob sua jurisdição, para as fronteiras do país de origem, configurando aí a deportação. No entanto, o que a imigração clandestina tem de importante em seu funcionamento é justamente o fato de que o sujeito que adentra em um dado Estado Nacional (utilizando os recursos que delimitam os meios de entrada, com a posse de passaporte ou vistos ou ainda recorrendo ao mercado de tráfico humano entre as fronteiras) é a necessidade de não ser percebido em sua mobilidade e estadia no Estado Nacional em que adentrou. Esse processo implica em se mover e habitar no mundo sob o nome do imperceptível. A posse do passaporte e do visto é, aliás, o mecanismo fundamental para se defender da entrada de pessoas indesejáveis e, garantir, como destaca Torpey (2005, p. 205), que toda essa documentação forneça ao Estado que acolhe a “garantia que um outro Estado está pronto a aceitar um estrangeiro que o país de acolhida pode decidir de não admitir ou de expulsar7.” O clandestino é uma imagem localizada em um outro mundo, quando não, vivendo dentre dele. Por isso é um elemento perigoso, já que esfacelou fronteiras visíveis: as do sítio de significância (interior, exterior), as fronteiras protetoras (vigiadas pelo poder) e as fronteiras de contenção (destinadas a prevenir fugas). Em um mundo em que não há espaço para a multiplicidade, para a contradição, a adversidade, sem o adversário, toma corpo e se materializa. Assim, ao se dar visibilidade àquilo que é adverso, produz-se o adversário, transformando o sujeito, um intruso em um Estado Nacional, no “clandestino”, no “terrorista”, no “criminoso”, devendo-se, portanto, expulsá-lo “para fora do ‘nós’ unânime do indivíduo universal” (cf. PÊCHEUX, 1990, p. 15), que todo Estado-Nação deve proteger. Banir um sujeito do espaço (espaço simbólico que tem sua materialidade e formas específicas de significar) é um modo de produzir uma fratura no corpo, já que o corpo do sujeito e o corpo da cidade formam um só (cf. ORLANDI, 2004, p. 11). É um modo também de uma fratura outra: entre o homem (que possui direitos) e o cidadão (direito a cidadania – “droit de cite” – dimensão jurídica de cidadão). 7 Do francês : “garantie qu’un autre État est prêt à accepter un étranger que le pays d’accueil peut décider de ne pas admettre ou d’expulsé.” 28 | P á g i n a Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano (Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no10 Imigrar clandestinamente, como demonstra alguns estudos em ciências sociais, nem sempre significa se relacionar com o Estado Nacional em que se deseja viver um tempo ou, ainda, uma porção de vida. Há aí uma relação com o trabalho, com o dinheiro, com a sobrevivência, com ganhar e manter a vida. A isso se acrescenta que o clandestino vive um rosto outro para si mesmo, frente às instâncias institucionais e jurídicas do Estado em que habita provisoriamente. A imigração clandestina produz, enquanto acontecimento do discurso, uma face outra, que tem um reflexo imperceptível. A invisibilidade do migrante clandestino, no território do Estado Nacional do qual ele se faz presente, produz um estado do imperceptível. E é, portanto, se revelando o mundo dos segredos, desse segredo, que algo pode vir a ser visualizado. Porém, essa revelação, nas condições de produção da imigração clandestina, tem a função de produzir um monstro. Como ressalta Foucault (1997, p. 61), o monstro, o anormal, estabeleceu uma perturbação às regularidades jurídicas, pois ele “combina o impossível e o interdito”. O migrante clandestino, ao adentrar sem autorização em um Estado Nacional outro, perturbou as regularidades jurídicas, tornando-se um problema de natureza, pois não nasceu naquele território, não é natural dali. Ele é um estranho-familiar (o unheimlich, para lembrar Freud8). O momento do estranho é aquele em que a subjetividade se torna objeto puro, posição insuportável, uma nada que se assemelhe. O estranho (heim) é a queda da representação de qualquer imagem que seja familiar. É o humano ao avesso de sua própria natureza. Assim, o migrante clandestino é aquele que suscita a animosidade (um corpo deslocado de seu habitat) e que, além disso, coloca problemas de ordens diversas: políticos, de cidadania e de direitos humanos. A deportação A deportação, na conjuntura de hoje, tem se tornado uma ferramenta política de desterro, de humilhação e de violência contra estrangeiros, criminalizando o imigrante e também os viajantes (diga-se os turistas) que são detidos pelas instâncias que gerenciam as fronteiras entre Estados Nacionais e, muitas vezes, impedidos de entrar em um dado país. Qualificar como criminosa a massa migrante, sobretudo a que compõe o dito terceiro mundo, isto é, nada mais, nada menos, que os (sobre)viventes das desvantagens sóciohistóricas das condições do capitalismo, não me parece exagero. O recrudescimento das fronteiras tem feito as pessoas perderem espaço no mundo em nome de uma dita segurança global - que não significa segurança para todos. A deportação, uma tecnologia de humilhação, me interessa em seu funcionamento, em virtude daquilo que ela produz enquanto afeto, ou seja, força que ameaça a subjetividade e a integridade dos sujeitos, inscrevendo no corpo formações reativas e defensivas na relação do sujeito consigo mesmo. A história política e de poder produziu muitas outras formas de desterro e a deportação é uma de suas versões. Proponho, para entender o seu funcionamento, recorrer ao que está institucionalizado no Direito Internacional. Essa leitura não deve ser separada, a meu ver, das outras penas contemporâneas, isto é, a expulsão e a extradição. 8 Faço aqui referência ao texto de Freud, O Estranho, de 1919. Ver (ESB, vol. 17, Imago, 1996). 29 | P á g i n a Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano (Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no10 No Direito Internacional, mais especificamente a leitura brasileira deste, com a lei 6.815/80, que determina os modos de entrada e permanência do estrangeiro no Brasil, têm-se delimitado9 a deportação, a extradição e a expulsão como: 1- Deportação [1] Nos casos de entrada ou estada irregular de estrangeiro, se este não se retirar voluntariamente do território nacional fixado em Regulamento, será promovida sua deportação. [2] A deportação consistirá na saída compulsória do estrangeiro. [3] Não sendo apurada a responsabilidade do transportador pelas despesas com a retirada do estrangeiro, nem podendo este terceiro por ela responder, serão as mesmas custeadas pelo Tesouro Nacional. 2 - Expulsão [1] É passível de expulsão o estrangeiro que, de qualquer forma, atentar contra a segurança nacional, a ordem política ou social, a tranqüilidade ou moralidade pública e a economia popular, ou cujo procedimento o torne nocivo à conveniência e aos interesses nacionais. [2] É passível de expulsão o estrangeiro que: b) havendo entrado no território nacional com infração à lei, dele não se retirar no prazo que lhe for determinado... 3 – Extradição [1] a Extradição poderá ser concedida quando o governo requerente se fundamentar em tratado ou quando prometer ao Brasil reciprocidade. [2] São condições para concessão da extradição: ter sido o crime cometido no território do Estado requerente ou serem aplicáveis ao extraditando as leis penais desse Estado. Essas formulações presentes na lei colocam-nos frente a um fato intrigante. Temos três designações (deportar, expulsar e extraditar) determinando o envio do estrangeiro para fora das fronteiras do Estado Nacional em que ele, um não natural, se encontra. Há aqui, um trabalho do político, nas relações de força da linguagem, na tentativa de diferenciar o que constitui um único gesto (justo): banir o outro do espaço. A aplicação da deportação, questão que aqui me interessa, mostra, segundo Gailliègue (2000, p. 14), que as pessoas são culpadas por um delito relativo à entrada e à estadia em um país. Perante a lei daquele país, ela não pode ser imputada, já que não se cometeu nenhum crime, cabendo a pessoa, portanto, ser deportada. A situação irregular é a constatação pelo 9 Os grifos, presentes na definição dos enunciados, deportação, expulsão e extradição, são meus. 30 | P á g i n a Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano (Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no10 Estado de pelo menos quatro causas: (a) uma entrada irregular; (b) um prolongamento de estadia para além da validade do visto; (c) a falta da carta de identidade, mesmo que esse título tenha sido requerido e até mesmo recusado; e, (d) uma estadia persistente, mesmo com uma sanção de interdição ou expulsão. A deportação, uma tecnologia política de imobilidade e de aprisionamento do corpo, naturaliza o sujeito não-natural, o seu corpo imperceptível às instâncias do poder. O corpo apagado, transformado em corpo naturalizado, é enunciativamente índice de uma fratura no sujeito deportado. O imigrante brasileiro clandestino deportado é o sujeito que não pode se deixar ver pelo outro (o Estado Nacional em que ele adentra e se estabelece). Nessa posição sujeito, a de ilegal, de clandestino, a marca constitutiva de pessoa do homem moderno cai. O sujeito não pode se deixar ver. Ele vive uma vida imperceptível para o Estado, perdendo sua individualidade (marca também jurídica), sofrendo subjetivamente a divisibilidade de sua imagem. Enquanto pessoa, portanto, individualizado, o migrante clandestino é aquele que fala a língua portuguesa, é o sujeito jurídico que habita o Brasil. Caindo a sua marca de pessoa, isto é, transformando-se em um sujeito despessoalizado, ele é ninguém, ou seja, o seu lugar, tal qual o pro-nome, é o do indefinido. Uma formulação da língua francesa nos ajuda a visualizar o que esse processo de indefinição subjetiva produz: o imigrante clandestino é “une personne qui devient personne10”, ou seja, “uma pessoa que se torna ninguém”. Esse ninguém é “no-body”, ou seja, um corpo zero no espaço. Despessoalizado, indefinido, o imigrante clandestino vive subjetivamente como um intruso imperceptível. A cena discursiva em que o imigrante clandestino deportado se investe mostra que viver o disfarce, o imperceptível, é um suplicio identitário. Vive-se despessoalizado. Os jogos que se inscrevem para naturalizar aquilo que é despessoalizado, indefinido e imperceptível, transformam a deportação numa cruel ferramenta de definição. Isso se dá porque o gesto de deportar é um processo de desenraizamento do sujeito clandestino das fronteiras do Estado Nacional, no qual ele adentrou. No entanto, ele é uma vida que escapa à jurisdição e, mesmo arrancado do espaço – o que transforma o corpo que é tirado forçosamente de um território para um outro território, em um corpo resto, corpo lixo porque quebrado – algo ali sobrevive, isto é, a voz. A deportação não silencia o corpo quebrado, desenraizado do espaço. Ela produz uma disjunção entre corpo e voz, fazendo a boca balbuciar e exibir o corpo como um resto, uma sobra que transforma a voz em cacos de enunciação, ponto de furo do interdiscurso no intradiscurso. Viver despessoalizado é habitar no limiar entre o nacional e o intruso, o jurídico e o ilegal, a vida e a morte, o humano e o inumano. Porém, não se apaga a vida: a acústica da voz em um corpo habitado pela quebra. Da entrevista e sua análise Realizar a pesquisa de campo no aeroporto, uma paisagem contemporânea (para lembrar Augé, 1992, p. 121), é acolher nas condições de circulação do espaço um viajante enunciador. Abrir, com a entrevista, um espaço de enunciação montado para os sujeitos em trânsito, sobretudo nas condições de produção da imigração clandestina e da deportação, é dar aos relatos, que se recolhem, uma materialidade, uma espessura semântica. Ao invés de falas esparsas no mundo, voz que ecoa sem sentido, tem-se uma narrativa do eu, um espaço de irrupção dos jogos de filiação a uma rede de memória, uma relação aberta com o sentido. 10 Entre personne (pessoa) e personne (ninguém) há uma assonância. 31 | P á g i n a Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano (Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no10 Isso dá para o estudioso da linguagem condições de ver, nos relatos que ele colheu, as fronteiras que configuram o Eu. Luta do sujeito para ser a fonte do sentido, o pai daquilo que fala, quando na verdade, o que há, diz Robin (1997), nessa conjuntura, é um “eu” autobiográfico. Trabalhar com o sujeito que fala de si mesmo em uma dada situação é adentrar no universo do discurso que circula em torno de si, vivendo o incessante encontro entre uma memória e uma atualidade (cf. PÊCHEUX, 1997). O sujeito que fala de si mesmo é aquele que fala a si mesmo. Há uma voz que fala o sujeito, materialidade imposta em silêncio e significação, que rasga o oral, vocalizando, para no indizível poder dizer. O sujeito brasileiro, quando migra para um Estado Nacional e lá permanece sem autorização, ou quando conta com o auxílio de redes de tráfico humano para adentrar e permanecer em dado país, vive os efeitos de pré-construído que faz com que essa situação pareça algo premeditado. É preciso que ele não se deixe ver e isso simplesmente é o fato mais natural que existe. Porém, é nesse lugar de constituição, ou seja, não se deixar ver pelo outro, permanecer imperceptível, que os jogos de identificação tomam corpo e voz: cego nos efeitos de seu apagamento, o sujeito é determinado como ilegal, sofrendo esses efeitos em sua posição subjetiva. Apresento aqui três recortes11, como lugar de textualização da voz e do corpo, sobretudo de um corpo exibido à autoridade que não pode se deixar aprisionar. Recorte [1] Data de saída do Brasil: 01/01/2000 País de destino: Bélgica Data de retorno ao Brasil: 28/04/2005 PESQUISADOR: Você falou assim pra mim::... uma longa história é::... sua na Bélgica:::. conta pra mim... é::... como que foi a tua preparação:::... da viagem na Bélgica... e teu objetivo... nesta viagem... quatro anos atrás::... S2: Bom... Marcos é::... Eu já te disse no no no ... no RElato... no escrito... é... que eu não tinha... intenção... nenhuma de ir pra Bélgica a procura de... TRAbalho de uma coisa assim SEmelhante... eu fu eu REcebi um convite de uma da minha irmã... pra um casamento... e::... que::... na ocasião pagou o meu bilhete... eu tive... eu tive a... a oportunidade de ir pra Bélgica... e::... de lá fomos pro Portugal... onde se realizou o casamento:::... e:::... por um acaso eu comprei um jornal... e:::... li... algum anúncio a respeito de trabalho NA MInha Área... gostei... me chamou muita a Atenção... o salário... e:::.... acabei ficando::... pra aproveitar::... a minha EStadia que era o meu visto de três meses... Eu acabei ficando SEte MEses da primeira vez que eu tive na Bélgica... e depois disso eu:::... (pausa longa) veio pro Brasil e não consegui mais ficar aqui:::... devido:::... a situação financeira... Aí sim a partir desse momento:::... eu JÁ::... SENTI na pele a diferença:::... é::.. Econômica dos ambos países... e:::... a partir daí eu não consegui mais ficar no Brasil e... levei toda a minha família e:::... estou lá até hoje e:::... se Deus quiser VOLto:::... o mais rápido possível... (pausa bem longa) A imigração clandestina, enquanto um acontecimento, estabelece um processo identitário no qual o sujeito, ao falar de si mesmo, realiza pelo dizer um conjunto de reajustes de sua imagem vivida no mundo. A atualização da memória, o momento em que os sentidos 11 Os recortes apresentados estão configurados de acordo com o protocolo de pesquisa. Os dados dos sujeitos entrevistados foram coletados em uma ficha de informação contendo dados pessoais, dados da viagem e autorização para gravação, transcrição e análise da entrevista, mediante anonimato. A transcrição das entrevistas seguiu as indicações do Projeto NURC – Norma Linguística Urbana Culta. 32 | P á g i n a Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano (Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no10 tomam corpo, faz da linguagem uma materialidade significante, pois ela não é um instrumento a serviço da ilustração do pensamento ou da representação de um referente, no caso aqui, o sujeito que fala de si mesmo. Chamo a atenção, nessa formulação, para as marcas de primeira pessoa, as pausas, as indicações verbo-temporais e os encadeamentos enunciativos que aí se inscrevem. O pretérito, marcado nas seguintes construções: “eu não tinha, eu recebi, eu comprei, acabei ficando, não consegui, levei”, além das marcas de encadeamento “por um acaso, e depois, Aí sim, a partir daí” produzem um efeito narrativo em que o sujeito se encena, se silencia e abre o Eu para a hibridez, no veio da voz. O Eu, enquanto marca de pessoa, é comumente designado “como aquele que fala” e o responsável pela linearidade do dizer. No entanto, não há coincidência entre a forma-sujeito e o eu, ou seja, no desdobramento do sujeito da enunciação e do sujeito do enunciado, há discrepância e desarranjo entre aquilo que é dado a pensar lá, e independentemente, e o que é pensado e vivido aqui e agora. Destaco nesse relato quatro enunciados: [1] eu não tinha... intenção... nenhuma de ir pra Bélgica a procura de... TRAbalho de uma coisa assim SEmelhante... eu fu eu REcebi um convite de uma da minha irmã... [2] Eu acabei ficando SEte MEses da primeira vez que eu tive na Bélgica... [3] e depois disso eu:::... (pausa longa) veio pro Brasil e não consegui mais ficar aqui:::... [3] estou lá até hoje Em [1] há um jogo de hesitação de modo a se desidentificar da imagem e dos efeitos que [2] materializa. Ao transformar o visto de três meses em uma “EStadia” de sete meses a viagem configurou um lugar para o sujeito, o de imigrante clandestino, o de ilegal. É interessante notar em [1] três funcionamentos: a negação, a indefinição e a interdição. O sujeito, pelo dizer, nega que a sua intenção de viajar para a Bélgica (e veja aqui a indefinição – intenção... nenhuma) se baseava no fato e na procura de um trabalho ou algo semelhante. Porém, a evidência daquilo que ele nega não se sustenta e, a viagem, se abre para o equívoco: quando o sujeito enuncia “eu fu eu REcebi”, é a intenção que retorna agora pela via da interdição, irrompendo pela modulação da voz, o silenciamento daquele que vai (eu fu) pela voz daquele que recebeu um convite (eu REcebi). O convite também é de natureza indefinida, pois no plano dizer “um convite de uma da minha irmã” é convite nenhum. Migrar para procurar trabalho produz um lugar de identificação e migrar através de um convite que se recebe outra. O convite abre oportunidades, inscritas na evidência do dizer, como a de se encontrar “por acaso” um trabalho. Esse encontro é aquele que transforma a legalidade do “meu visto” em uma “EStadia” de sete meses. Há um desarranjo entre aquilo que pode significar uma viagem por trabalho e uma viagem por convite, abrindo a indefinição tanto de um quanto de outro, inscrevendo o sujeito nesse lugar: o da indefinição. O enunciado [2] Eu acabei ficando SEte MEses da primeira vez que eu tive na Bélgica... se inscreve no domínio de uma experimentação subjetiva e identitária, marcada pelo passado. No plano da linearidade imaginária do dizer, um funcionamento interessante vai se produzir. A marca de junção e continuidade em [3] (e depois disso eu:::...) dá progressão ao movimento da fala, porém se inscreve aí uma pausa, abrindo subjetivamente uma ruptura identitária. Na formulação “e depois disso eu:::... (pausa longa) veio pro Brasil ) aquele fala no passado retomado pela junção e progressão enunciativa não fala agora, ele está indefinido. 33 | P á g i n a Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano (Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no10 Veja como isso se dá: se uma pergunta for feita através do enunciado “Quem veio pro Brasil?”, se obterá como resposta ELE veio, e não eu vim. A desidentificação produz o equívoco: faz do sujeito um passado que ficou na Bélgica (ELE veio) e um presente que chegou ao Brasil (eu vim). Dividido, o sujeito entra nas fronteiras do Brasil como um ele (do passado) e um eu também do passado, pois na enunciação algo é dito: “eu não consegui mais ficar aqui”. Esse processo se intensifica na interessante formulação “eu JÁ::... SENTI na pele a diferença”. Há uma diferença de pele, ou seja, pele subjetiva (o eu é um ele), pele econômica (há uma diferença da situação financeira) e pele territorial (a economia faz os dois países serem vivenciados como diferentes). Quando o presente irrompe – e é a deportação que faz do Brasil o presente – o sujeito se diz “estou lá até hoje”. Se uma questão for feita aqui: Quem está lá até hoje? Ter-se-á como resposta: eu estou. O Eu (o imaginário) está na Bélgica e ele - o Moi-peau [Eu- pele], para lembrar uma expressão de Anzieu (1995) - é aquele que está no Brasil. Em solo brasileiro e na condição jurídica de brasileiro, o sujeito vive uma controvérsia: aquilo que Benveniste disse a respeito da terceira pessoa do discurso, “o ele é a não-pessoa”. A ideologia e o inconsciente são a manutenção constante do Eu. E o Eu, o que ele é aqui? Híbrido! Recorte [2] Data de saída do Brasil: 07/11/04 País de destino: E.U.A. Data de retorno ao Brasil: 26/04/05 PESQUISADOR: Quando você ouviu o agente dizendo pra você Come Back, o que você sentiu? S1: Eu senti uma emoção tremenda de ir emBOra ... depois esperando cinco meses esse dia... a gente... doido querendo ir embora... não tinha... não falava com a família... não falava nada... porque não chamava... a ligação não chamava a cobrar... então... na hora que ele falou vamos embora BRASIL... go home go home... (respira rapidamente) a eu já corri juntei meu colchão... meus negócios joguei e sai lá pra fora... eu fui o primeiro a sair... cheguei lá e já coloquei minhas roupas porque eu perdi as roupas tudo... aí ESsa camisa um amigo me deu... a calça um amigo que me deu... porque na travessia do rio eu travessei só de bermuda... aí eu perdi pelo rio abaixo... aí eu vesti a minha roupa alegre Demais da conta... aí eu fui pro eroporto... do eroporto eu já liguei pra minha mãe... minha mãe começou a CHOrar::... falei Não mãe tô indo embora não chora não porque amanhã quarta-feira eu tô aí... falou Não meu Filho muito tempo que eu não te Vejo::.... não esquenta a cabeça... não rápido já liguei.. dá aquela emoção... aí o cara falou que a gente ia voltar que a gente não ia vir embora... daí bateu aquela trisTEza... daí ele falou não... vamos embora Brasil... vou mandar vocês dois... aí colocou a gente no avião GRAças a Deus... a viagem foi boa nós tamos aqui... Com a graça de Deus::.... Destaco neste enunciado uma formulação: [1] então... na hora que ele falou vamos embora BRASIL... go home go home... (respira rapidamente) a eu já corri juntei meu colchão... meus negócios joguei e sai lá pra fora... eu fui o primeiro a sair... As pessoas detidas pela polícia de imigração dos Estados Unidos da América, durante a travessia pelo deserto, na fronteira entre México e EUA, são encaminhadas para um conjunto de penitenciárias até ocorrer a deportação. Caso se capture, nesse momento, os coiotes (nome que designa os mexicanos que operam na travessia irregular de pessoas), a 34 | P á g i n a Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano (Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no10 permanência na penitenciária pode se estender, já que algumas delas entram como testemunhas do processo de acusação de tráfico de pessoas e ou drogas. O acontecimento da deportação desencadeia, em [1], um interessante processo de nomeação do sujeito. No plano do enunciado, a pessoa que vai ser deportada é nomeada por uma fala que o designa como o sujeito “BRASIL...”. Tem-se, aqui, um curioso efeito de determinação de um nome, ou seja, uma pessoa tem um nome X e lhe é dado um nome Y – que passa a significá-la, nomeando-a. A isso se acrescenta, ainda, uma fala que evoca um imperativo, uma ordem “go home go home...” Refletindo sobre a nomeação Guimarães (2002, p. 41) afirma que As pessoas não são pessoas em si. O sentido do nome próprio lhes constitui, em certa medida. [...] E o constitui enquanto produz identificações sociais que são o fundamento do funcionamento do indivíduo enquanto sujeito. É preciso lembrar aqui que este processo de identificação se faz no espaço da enunciação da Língua do Estado e assim identifica o indivíduo como cidadão. O autor aponta algo muito importante, já que um nome (seja ele próprio ou comum) não deve ser compreendido como a expressão de uma fala em um dado momento e lugar, mas sim na cena enunciativa, considerada aqui como o jogo entre sujeito e situação, inscrevendo na materialidade do dizer um efeito de presença do sujeito. O nome “Brasil...” ecoando na enunciação, na situação em que uma dada pessoa vai ser banida de um outro país, tem um significado. Mandar o “Brasil...” embora já mostra o modo como ele está significado e carregado de sentido, em uma dada formação social. Mais do que identificar um território ou seu povo, o nome “Brasil...”, pelo movimento da memória, reveste e identifica materialmente o sujeito. Essa fala, que atualiza a memória, produz a deportação como uma prática política e social. Há uma ordem, um imperativo “go home go home...” que incita o sujeito a sair, indicando que lá não é a sua casa. O deslocamento das pessoas é um desafio no mundo de hoje, exigindo um esforço de se pensá-lo para além do movimento idealizado em que se integram pessoas, sem se interrogar quem está fora e quem está dentro, quem está perto e quem está longe e o porquê dessa segregação. Banir os estrangeiros clandestinos e reforçar as fronteiras territoriais é a ferramenta contemporânea para um velho dilema simbólico: quem é (o que é) o nacional e quem é (o que é) o estrangeiro? Recorte [3] Data de saída do Brasil: 28/-03-2005 País de destino: U.S.A. Data de retorno ao Brasil: 07-04-2005 PESQUISADOR: Como é que você se sente sendo deportado? S7: Ah... sei lá né? sente::... CHUtado do outro país::: né? HUMIlhado::: você não pode:: entrar num país:: que não::: precisa de visto:: eles manda você deporta POR que:: que pode ENtão:: você se sente muito humilhado::: né? PESQUISADOR: Humilhado em que sentido? Você pode explicar pra mim? S7: No sentido de:...... te ter de ficar ali::: assim::: você ter de ficar numa sala esperando um vôo:: você não pode sair::: VOcê está praticamente PREso::: ali::: é uma deportação mas é um tipo de 35 | P á g i n a Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano (Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no10 prisão:: que você não pode ir pra continuar indo pra onde você quer ir::... e no mesmo tempo você não pode voltar:: tem de ficar ali naquela SAla:: come o que eles te der pra comer se der:::... você dá dinheiro pro oficiais::: comprar cartão pra você ligar pra sua família:: eles:: te ROBAM:: o que Aconteceu::: lá eu dei dinheiro pra eles:: comprar cartão pra mim ligar pra minha mãe:: eles::: SUmiram:: deu a hora do vôo eles:: não chegou:: robaram o meu dinheiro::: então isso é muita humilhação né? Neste recorte vou me deter em dois enunciados: [1] CHUtado do outro país::: né? HUMIlhado::: [2] VOcê está praticamente PREso::: ali::: é uma deportação mas é um tipo de prisão:: [...] você dá dinheiro pro oficiais::: comprar cartão pra você ligar pra sua família:: eles:: te ROBAM:: Esses dois enunciados chamam a atenção por uma discrepância entre aquilo que se fala e aquilo que se escuta. Em [1] há um funcionamento interessante no fio da formulação. A expressão “CHUtado do outro país::: né?” indetermina o sujeito paciente que sofre a ação do verbo. Se uma questão for inscrita aqui: “Quem foi chutado do outro país?”, obter-se-á como resposta “Você foi chutado!”. Esse lugar de subjetivação inscreve a humilhação, pois pelo funcionamento metafórico, ser chutado desliza para o lugar do humilhado. Enriquez (2006, p. 37) diz que humilhar um indivíduo consiste em colocá-lo em uma posição onde ele está impossibilitado de responder à violência que sofre. Como um sujeito paciente que sofre a ação de ser humilhado o migrante brasileiro vive subjetivamente como um objeto. Um fato aqui vale ser ressaltado, ou seja, aquele do Brasil ser conhecido como país do futebol. Assim, ser chutado - tal qual se chuta uma bola em um jogo de futebol - por outro país é uma forma contemporânea de ser ganhar uma partida com um adversário indesejável. Porém, em se tratando da humilhação, no campo em que este jogo é disputado, não existe time adversário, apenas um objeto revestido de sujeito – a sombra de um nome – que deve, tal qual uma bola, ser depositada nas redes de uma trave. Os brasileiros, utilizando cada vez mais a fronteira entre México e Estados Unidos da América, para uma travessia ilegal, tornam-se um alvo potencial da polícia de imigração. O papel da polícia, enquanto instituição do Estado-Nação, é manter a ordem. O Estado outorga a polícia (e no caso aqui uma polícia de imigração) o direito de vigiar a mobilidade da população, sendo amparada por um ordenamento jurídico. Assim, passar pelas fronteiras exige a necessidade de se mostrar ao poder, o que implica mostrar a si mesmo. O acontecimento, como uma agitação da memória, produz a presença-ausência do sujeito e os aparelhos de Estado a fixam. Os que conseguem entrar pelas brechas atravessam, aqueles que não, retornam. Há resistência. Em [2], é possível se notar um jogo entre prisão e deportação. Tentando denegar os jogos de sentido que tipificam e corporificam a deportação, como uma modalidade de aprisionamento e, portanto, um gesto contra um criminoso, o sujeito se contra-identifica com esse processo e mostra, no dizer, quem (e o que é) para ele o criminoso, ou seja, a polícia. Considerações Finais Refletir sobre a mobilidade do sujeito brasileiro migrante clandestino, que experimenta em seu próprio corpo a deportação, é adentrar em uma conjuntura na qual um sujeito, em movimento no espaço, esse quadro de todos os fenômenos, rompeu fronteiras 36 | P á g i n a Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano (Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no10 historicamente delimitadas e determinadas. Choque dos corpos e dos humores, a vida dos muitos migrantes clandestinos acaba se tornando uma sobrevida. Vida vergonhosa, vida de intruso, vida irregular, vida ilegal. Assim, escutar pela linguagem essa situação contemporânea mostra como as travessias de nossos tempos estão se revestindo de uma complexidade nunca vista. Ao decidir habitar orlas outras, em busca daquilo que economicamente e subjetivamente lhe falta, seja o trabalho, o consumo, ou para viver um outro para si mesmo, o migrante clandestino desafia os sentidos daquilo que se pode entender hoje por nacional, por estrangeiro, por fronteiras, por integração. Um mundo integrado economicamente ou conectado virtualmente é um fato. E sua realidade mostra uma abertura para a circulação de dinheiro, mercadorias e informação. Porém, quando se trata de pessoas, a discursividade é outra. Atraídas pelas conquistas econômicas, sociais e políticas, de fato, pela imagem da mundialização, ou seja, um mundo tolerante (multicultural), o que se vê é que as fronteiras estão abertas somente para alguns, e em uma dada situação (a da indústria do turismo, por exemplo). Considero que migrar clandestinamente não é simplesmente o repúdio ou a desobediência às normas legais de circulação, estabelecidas na relação entre Estados Nacionais, e muito menos a busca por condições de trabalho e vida digna. Vejo o espaço como um lugar de relação simbólica dos sujeitos, como um lugar de existência simbólica. Isso permite ver a imigração clandestina como uma prática de resistência a sentidos institucionalizados, já que estes têm produzido hoje efeitos mortíferos – dado o grande número de mortes de pessoas que se arriscam em travessias pelo deserto (e pelo mar, principalmente o fluxo migratório em direção à Europa e aos Estados Unidos da América). Migrar clandestinamente é ter que sofrer, em seu próprio corpo, o apagamento de sentidos que não se deseja e que não pode ser visto. De certa forma, uma vida imperceptível, dada as consequências daquilo que se experimenta quando se é descoberto nessa situação. A deportação se inscreve e se institucionaliza como uma ferramenta política de retirada do intruso do Estado Nacional. Ao apoderar-se do corpo do migrante clandestino, o sujeito vive a experiência da prisão e da humilhação, porque desobedeceu e atravessou fronteiras que não lhe eram permitido cruzar. O corpo sustenta, assim, os sentidos de criminoso, intruso, indesejado, resto. Ao ser desenraizado do espaço, o sujeito sofre uma fratura que atinge as suas relações subjetivas, as relações com o espaço, com o tempo e com a língua. Os cacos de enunciação vocalizados mostram, na voz do migrante clandestino deportado, a agressão, a ferida e o ultraje a que muitos são submetidos. O sujeito despessoalizado torna-se uma pessoa zero, ou seja, tal qual o valor matemático ou categoria linguística, um vazio. Ele é um nada enquanto sujeito de direito, um nada, um indefinido, enquanto pessoa humana e sujeito de enunciação. A deportação, em seu funcionamento, é uma ferramenta política de humilhação da modernidade. Humilhar o sujeito é proporcionar à vítima o confronto “a uma situação ou um acontecimento que é contrário às suas vontades, contrário aos seus desejos, que não faz sentido para ele, e que é a negação da imagem que ele se faz de si mesmo12” (cf. ANSART, 2006, p. 131). Mais do que isso: o humilhado é agredido (por um agente que pode ser individual ou coletivo) sem a possibilidade de responder a isso. A deportação tem como corpo a lei, que incide sobre o sujeito, criminalizando-o. 12 Do francês : “à une situation ou à un événement qui est contraire à ses attentes, à ses désirs, qui ne fait pas sens pour lui, et qui est la négation de l’image qu’il se fait de lui-même.” 37 | P á g i n a Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano (Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no10 Por fim, resta dizer que acolher o sujeito em movimento, no espaço, é se abrir também para a linguagem em movimento, para um corpo humano, que muito mais que a sede da vida, é um lugar em que a língua falha, faz furo e fratura a história. O sujeito sai do Brasil feliz como Ulisses e retorna, tal qual Adão e Eva, corpos decaídos, expulsos do paraíso. Referências ALALLUF, M. 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Tal análise nos permitiu constatar, no corpus, a presença de vários recursos que poderiam seduzir e persuadir o crente, tais como, a seleção lexical, o uso de metáforas, exclamações, interjeições e a descrição do estado emocional do locutor através da modalidade elocutiva, o que nos leva a pensar que o apelo à emoção pode ser uma estratégia de tom persuasivo. Palavras-chave: discurso religioso; emoção; semiolinguística. ABSTRACT: In this paper we analyze how language, in religious discourse, can function as a mechanism of seduction and of attracting followers, evaluating the use of the appeal to emotion in a song of the cult of the Assembly of God church. This is a case study based on the Semiolinguistics Discourse Analysis by Patrick Charaudeau, who proposes a discursive study of emotions. The analysis has shown that the song presents some features that can persuade the believer by emotion, such as lexical selection, the use of metaphors, exclamations, interjections and description of the talker's emotional state through the elocutive modality, which leads us to think that the appeal to emotion can be a strategy for a persuasive tone. Key words: religious discourse; emotion; semiolinguistics. Introdução Este trabalho tem como objetivo analisar como a linguagem, no discurso religioso, pode funcionar como mecanismo de sedução e captação de adeptos, avaliando a utilização do apelo à emoção, o chamado “efeito patêmico”, nos termos de Charaudeau (1999, p.5). Adotaremos em nossa investigação o ponto de vista deste autor, segundo o qual é possível o estudo discursivo da emoção numa situação comunicativa. Primeiramente, partiremos de pressupostos teóricos abordando a questão da emoção/patemização enquanto estratégia de caráter persuasivo. Em seguida, analisaremos um cântico de louvor de um culto da igreja Assembléia de Deus, gravado na cidade de Viçosa. Emoção e persuasão Plantin (apud AMOSSY, 2000, p.164) identifica três “operações discursivas” que seriam necessárias para se obter a persuasão completa. Assim, o discurso deve ensinar, agradar e tocar. De acordo com Plantin, o caminho intelectual (a razão) não é suficiente para 13 Mestranda em Estudos Linguísticos pela Universidade Federal de Viçosa (UFV). Doutora em Estudos Linguísticos pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e Professora Adjunta de Linguística no Departamento de Letras da UFV. 14 40 | P á g i n a Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano (Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no10 desencadear a ação. A partir daí surge a dupla atividade convencer-persuadir, sendo que a primeira atividade está ligada às faculdades intelectuais e a segunda, ao coração. Pascal (apud AMOSSY, 2000, p. 165), compartilha da mesma opinião de Plantin, ou seja, também pensa que somente a razão é insuficiente para se alcançar a persuasão. Para Pascal, é necessário conhecer o espírito e o coração. Se, de um lado, encontramos autores como Plantin e Pascal, que acreditam na união entre razão e emoção, enquanto vias para persuadir um sujeito; de outro, deparamo-nos com autores que privilegiam a emoção, como Gibert. Para Gibert (apud AMOSSY, 2000, 165), o sujeito é assujeitado a uma “verdade” por razões claras, óbvias, sem que haja uma verdadeira persuasão. Esta só ocorre quando o coração é vencido. Daí decorre a conclusão de que ce qui ne touche pas est contraire à la persuasion15 (apud AMOSSY, p.165). Amossy (2000, p. 167) apresenta, ainda, outro teórico que também privilegia o estudo argumentativo da emoção: Walton (1992), que mostrou a legitimidade das emoções no processo argumentativo. Para ele, as emoções têm uma importância no diálogo persuasivo. Esse autor examina as condições de validade dos argumentos que suscitam sentimentos como a piedade. Emoção e patemização Charaudeau (1999) estuda a emoção, sob o ponto de vista discursivo, utilizando o termo “patemização” para delimitá-lo, diferenciando esse objeto do de outras disciplinas, como a psicologia e a sociologia. Nessa perspectiva, as representações patêmicas são sócio-discursivas. Uma representação pode ser considerada patêmica quando ela descreve uma situação a propósito da qual um julgamento de valor coletivamente partilhado e instituído em norma social envolve um actante que é um ser beneficiário ou vítima e ao qual o sujeito da representação se encontra ligado. Acreditamos, como Charaudeau, ser possível estudar a emoção sob a perspectiva de um estudo linguageiro, considerando essa abordagem através de uma situação de comunicação particular, no nosso caso, o discurso religioso. Efeitos patêmicos do discurso Charaudeau (1999, p.20) propõe que a patemização seja tratada discursivamente como uma categoria de efeito que se opõe a outros efeitos como o efeito cognitivo, pragmático, etc. Como toda categoria de efeito depende das circunstâncias em que aparece, ou seja, a organização do universo patêmico depende da situação social e cultural na qual se inscreve a troca comunicativa. Assim, um mesmo enunciado pode produzir diferentes efeitos patêmicos e esses vão variar conforme a cultura. Para ele, o efeito patêmico depende de três tipos de condição: 1) que o discurso produzido se inscreva num dispositivo comunicativo cujos componentes (sua finalidade e os lugares que são atribuídos antecipadamente aos parceiros da troca) predisponham ao surgimento de efeitos patêmicos; 15 Em português, quem não toca é contrário à persuasão. (Tradução nossa). 41 | P á g i n a Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano (Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no10 2) que o campo temático sobre o qual se apóia o dispositivo comunicativo preveja a existência de um universo de patemização e proponha uma certa organização dos tópicos (imaginários socio-discursivos) susceptíveis de produzir tal efeito; 3) que, no espaço de estratégias deixado disponível pelas restrições do dispositivo comunicativo, a instância de enunciação utilize uma encenação 16 discursiva com finalidade patemizante. O efeito patêmico pode ser obtido pelo emprego de certas palavras que podem remeter ao universo emocional, mas também por enunciados em que essas palavras não são utilizadas. Ou seja, o efeito patêmico pode ser obtido por um discurso explícito e direto, na medida em que as próprias palavras dão uma tonalidade patêmica, ou de forma implícita e indireta. A construção discursiva do sentido como construção de efeitos intencionais visados depende das inferências que podem produzir os parceiros do ato de comunicação e essas inferências dependem do conhecimento que os parceiros possam ter da situação de comunicação. Segundo Charaudeau (1999, p.15), há uma dupla enunciação de efeito patêmico, as quais sintetizamos a seguir: 1) uma enunciação da expressão patêmica, a qual pode ser ao mesmo tempo elocutiva e alocutiva, que visa a produzir um efeito de patemização, seja pela descrição ou manifestação do estado emocional no qual o locutor se encontra, seja pela descrição do estado emocional no qual o outro deveria se encontrar; 2) uma enunciação da descrição patêmica, que propõe ao destinatário a narrativa (ou um fragmento) de uma cena dramatizante susceptível de produzir o efeito patêmico. Nesse caso, tal efeito é construído por uma construção identitária entre os interlocutores, ou seja, depende do elo que se supõe unir o destinatário à situação descrita e aos protagonistas. Características gerais do discurso religioso Orlandi (1996) apresenta algumas características do discurso religioso, dentre as quais destacamos a assimetria, entre as instâncias de produção e recepção, e a ilusão de reversibilidade, entre os planos terreno e espiritual. Segundo Orlandi (1996, p. 246), uma marca do discurso religioso é a assimetria na relação entre a instância de produção e a instância de recepção. Enquanto a primeira é composta por Deus, pela Igreja e seus representantes (que falam em nome do plano espiritual), a segunda se compõe dos fiéis (que fazem parte do plano terreno). Esses dois planos são afetados por um valor hierárquico, por uma desigualdade, uma vez que o celebrante reproduz a voz de Deus, que é imortal, eterno, onipotente, onipresente, onisciente, enquanto os ouvintes são mortais e passageiros. Ainda para Orlandi (1996, p. 240), a ilusão da reversibilidade entre os dois planos (o plano terreno e o espiritual) também caracteriza o discurso religioso. Essa ilusão pode ter duas direções: de cima para baixo, ou seja, de Deus para os homens, momento em que Ele compartilha suas propriedades por meio de sacramentos, bênçãos, de milagres; de baixo para cima, quando o homem se alça a Deus, principalmente, através da obediência à palavra de Deus. Como veremos, essa ilusão de reversibilidade se constitui numa importante estratégia de captação de fiéis. 16 Tradução para a expressão mise en scène. 42 | P á g i n a Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano (Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no10 Ao abordar o discurso religioso, Maingueneau (2008, p. 199) afirma que, embora pertença a um corpora de prestígio, esse tipo de discurso é geralmente pouco estudado, provavelmente pelo fato de que sua compreensão implica o conhecimento de um vasto intertexto, nem sempre acessível a todos. Assim, uma característica do discurso religioso, em seus vários gêneros (homilias, pregações, cânticos, orações) é a vinculação a um texto “primeiro”, com o qual esses discursos mantêm uma espécie de relação parafrásica. Também essa relação intertextual será observada no cântico que nos propomos, a partir de agora, a analisar. Análise do cântico O cântico analisado foi executado em um culto da Assembléia de Deus. De acordo com Ferreira (2006) a igreja Assembléia de Deus é um dos principais expoentes do pentecostalismo no Brasil. O cântico analisado foi executado em um culto da Assembléia de Deus. Caracteriza-se pela crença no Espírito Santo e na autoridade da Bíblia, livro escrito sob a inspiração de Deus, e que seria o melhor exemplo de como viver uma vida de fé. Acreditam ainda na possibilidade da cura divina dos doentes e defendem que a Igreja tem a função de buscar e salvar aqueles que estão em pecado.17 O culto da Assembléia de Deus é dividido em três partes. São elas: Louvor, Testemunhos e Pregação da Palavra de Deus. O Louvor pode ser compreendido como um momento que leva a congregação a adorar a Deus na beleza da Sua Santidade. Durante o Louvor, foram cantados seis (6) cânticos. Analisaremos, no entanto, apenas um deles. Vejamos a seguir. Sobre as ondas do mar Oh! Por que duvidar, Sobre as ondas do mar, Quando Cristo caminho abriu? - Quando forçado és, contra as ondas lutar, Seu amor a ti quer revelar. Refrão: Solta o cabo da nau Toma os remos na mão, E navega com fé em Jesus; E então, tu verás que bonança se faz Pois com Ele, seguro serás. Trevas vêm te assustar, Tempestades no mar? - Da montanha o Mestre te vê; E na tribulação Ele vem socorrer, 17 Informações disponíveis em: <http://chistianity.about.com/old/assembliesofgod/a/assemblyhistory.htm.> acesso em 08 de junho de 2010. 43 | P á g i n a Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano (Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no10 Sua mão bem te pode suster. Podes tu recordar, Maravilhas, sem par? - No deserto ao povo fartou; E o mesmo poder Ele sempre terá, Pois não muda e não falhará. Quando pedes mais fé, Ele ouve, ó crê! Mesmo sendo em tribulação; Quando a mão de poder o teu “ego’” tirar, Sobre as ondas poderás andar. Sabe-se que a instância de produção do cântico religioso, em geral, e do cântico acima, em particular, é ampla e complexa, uma vez que este é produzido dentro de uma instituição – a Igreja – que regula as interpretações do texto bíblico, ao qual a letra se refere. A partir dessas coerções, o sujeito- autor vai utilizar as estratégias consideradas mais adequadas para se expressar e para captar seu público. No cântico manifesta-se o texto bíblico, em pelo menos duas passagens. Primeiro, nos versos que dizem “Oh! Por que duvidar, /Sobre as ondas do mar,/Quando Cristo caminho abriu?” e “Quando a mão de poder o teu ego tirar,/Sobre as ondas poderás andar”, há uma referência ao Evangelho de Mateus, no seguinte versículo: “Entre as três e as seis da madrugada, Jesus foi até os discípulos, andando sobre o mar.”18 Também o verso “ No deserto ao povo fartou” refere-se à passagem bíblica: Jesus mandou que as multidões se sentassem na grama. Depois pegou os cinco pães e os dois peixes, ergueu os olhos para o céu, pronunciou a bênção, partiu os pães, e os deu aos discípulos; os discípulos distribuíram às multidões. Todos comeram, ficaram satisfeitos, e ainda recolheram doze cestos cheios de pedaços que sobraram. 19 Evidencia-se, nos versos destacados, o recurso à autoridade sintetizada no texto bíblico para fundamentar a tese da necessidade da fé. A instância de recepção, por sua vez, é bastante heterogênea, pois, apesar de o cântico estar inserido num culto da Assembléia de Deus, sendo sua execução direcionada para os fiéis dessa Igreja, de outro, não se pode ignorar o fato de que é também executado também em outras Igrejas Evangélicas20 , o que nos leva a concluir que pretende alcançar o cristão, de uma forma ampla. Ao abordar o texto sob a perspectiva da emoção, o primeiro aspecto que devemos destacar é o favorecimento da obtenção do efeito patêmico pela inserção do discurso num dispositivo comunicativo cujos componentes predisponham ao surgimento de efeitos patêmicos. O momento de Louvor, por sua finalidade, a expressão do amor a Deus, a adoração a ele atribui aos presentes, antecipadamente, uma posição de assimetria, inscrevendo-os no plano do material em oposição ao plano do divino. Além disso, o espaço físico (a igreja) e simbólico (o culto) em que se inscrevem determinam a expressão de 18 BÍBLIA, N.T. Mateus. Português. Bíblia Sagrada. SP: Paulus, 1990. Cap. 14, vers: 25. BÍBLIA, N.T. Mateus. Português. Bíblia Sagrada. SP: Paulus, 1990. Cap. 14, vers: 19-20. 20 Tal conclusão se baseia em depoimentos de fiéis, tanto da Igreja Metodista quanto da Igreja Presbiteriana, que nos revelaram que o cântico analisado é introduzido, com relativa frequência, nos cultos dessas duas Igrejas. 19 44 | P á g i n a Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano (Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no10 sentimentos e também criam uma espécie de clima favorável à promoção de emoção entre os presentes. Observa-se que a mensagem sintetizada na letra do cântico propõe a enunciação de uma cena dramatizante susceptível de produzir no destinatário um efeito patêmico. O efeito patêmico é, então, provocado por uma construção identitária entre os interlocutores, que busca estabelecer um elo entre os protagonistas a partir da situação descrita. Esse elo é sugerido pela criação de uma ilusão de reversibilidade entre os planos espiritual e material, que pode ser verificada nos versos “Quando pedes mais fé,/ Ele ouve, ó crê!” nos quais afirma-se a possibilidade de um “diálogo” entre o crente e Deus. O cântico “Sobre as ondas do mar” aborda a questão da fé: “Tendo fé, você verá bonança”. A imagem provocada pela afirmação tende a despertar no ouvinte um sentimento de esperança e, conseqüentemente, uma adesão ao que se diz. Para isso, é determinante o emprego metafórico do substantivo “bonança”, significando “calmaria”, “fase próspera”. Isso deixaria o interlocutor mais predisposto a aceitar as teses que estão por vir. Verifica-se, ainda, no plano da encenação discursiva, o uso de uma série de recursos que dão ao texto um tom mais emotivo. Aqui comentaremos alguns desses recursos, dentre eles, a seleção lexical, a ordem das palavras, o emprego da modalidade alocutiva e o uso de metáforas. Além do substantivo “bonança”, citado acima, constatamos uma seleção lexical que remete ao campo semântico da emoção. As palavras que constituem esse campo podem ser organizadas em dois grupos de palavras que se opõem: um deles com termos de sentido positivo, tais como: “amor”, “poder”, “maravilhas”, “seguro” e outro grupo de palavras com sentido negativo, como “trevas”, “tribulação”, “assustar”. Essa oposição representa os dois pólos nos quais se encontra, respectivamente, aquele que tem fé e aquele que não tem fé. Também a ordem das palavras no enunciado – sobretudo a inversão da ordem canônica - pode ser usada com valor afetivo. Kerbrat-Orecchioni (2000, p.39) cita alguns autores (CRESSOT 1947; MAROUZEAU 1959; VINAY; DARBELNET 1958) que admitem a existência de um inventário de procedimentos linguageiros, os quais constituiriam os melhores vetores potenciais de afetividade. Dentre eles está a “ordem das palavras”21. Percebemos que a inversão é um fenômeno frequente no cântico que estamos analisando: “Quando Cristo caminho abriu?” em vez de “Quando Cristo abriu caminho?”; “Quando forçado és, contra as ondas lutar” ao invés de “- Quando és forçado, contra as ondas lutar”; “Seu amor a ti quer revelar” ao contrário de “Quer revelar seu amor a ti”; “Pois com Ele, seguro serás” em vez de “Pois com Ele, serás seguro”; “Da montanha o Mestre te vê” no lugar de “O Mestre te vê da montanha”; “Podes tu recordar” ao invés de “Tu podes recordar”; “No deserto ao povo fartou” em vez de “Fartou ao povo no deserto”; “Sobre as ondas poderás andar” no lugar de “Poderás andar sobre as ondas. O uso da modalidade pode funcionar como mais um recurso para favorecer a sedução do interlocutor. No nosso corpus, percebe-se que, a partir da enunciação alocutiva (presença explícita do interlocutor), o enunciador, no cântico analisado. descreve o estado emocional em que o interlocutor se encontrará: “E então, tu verás que bonança se faz/ Pois com Ele, seguro serás.”, contribuindo para o surgimento, novamente, do efeito patêmico. E ainda, nestes dois versos, visualizamos dois operadores argumentativos – “então” e “pois” –, sendo que o primeiro expressa conclusão e o segundo, explicação. Tais operadores são utilizados para a defesa da tese “Confie em Cristo, tenha fé”. Observamos, assim, a dupla “convencerpersuadir” apontada por Plantin (apud AMOSSY, 2000, p.164), sendo favorecida através do 21 Tradução nossa para a expressão ordre des mots. 45 | P á g i n a Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano (Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no10 apelo à emoção e às faculdades intelectuais, estas demonstradas na operação lógicodiscursiva, evidenciada nos dois versos comentados acima. A modalidade alocutiva se faz presente, ainda, através do emprego de verbos no imperativo – marca do discurso religioso –, segundo Orlandi (1987, p.259). Esses verbos (“Solta”, “Toma”, “Navega”, “Crê”) incitam o fiel a ações baseadas na confiança, na bondade e na força de Deus. Neste cântico, há, ainda, o uso das interjeições “Oh!” e “Ó crê!”, que visam estabelecer esse diálogo com o ouvinte, conclamando-o não só à reflexão, mas também, à ação. De acordo com Cunha (1982, p.547), “interjeição é uma espécie de grito com que traduzimos de modo vivo nossas emoções”. Compartilham dessa mesma idéia alguns autores mencionados por Kerbrat-Orecchioni (2000, p.40). Para tais autores, a interjeição seria mais um vetor potencial de afetividade. Deve-se, enfim, destacar a natureza predominantemente metafórica do texto. A idéia da fé, da confiança sem limites em Deus está expressa numa série de expressões metafóricas, como: “Solta o cabo da nau/ Toma os remos na mão/ E navega com fé em Jesus”; “Trevas vêm te assustar,/ Tempestades no mar?/ - Da montanha o Mestre te vê”; “Sua mão bem te pode suster”; “Sobre as ondas poderás andar”. A metáfora pode favorecer a promoção de um efeito patêmico no discurso. Essa é a posição de Kerbrat-Orecchioni (2000, p.40), segundo a qual vários autores assimilam conotação e valor afetivo. O quadro a seguir pode resumir o que comentamos sobre o cântico. Recursos Passagens do cântico “Tendo fé, Tema você verá bonança” “amor”; Seleção lexical “bonança”; “trevas” , etc. “Quando Inversão Cristo caminho abriu?”, etc. “Solta o cabo Expressões da nau/ Toma metafóricas os remos na mão”, etc. Alocutiva (Tu) Modalidade “Oh!”; “Ó Interjeições crê!” Verbo no “Solta”; “Toma”; imperativo “Navega” Quadro n. 1 46 | P á g i n a Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano (Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no10 Considerações Finais Pudemos notar, a partir da análise de um cântico da Assembléia de Deus, o apelo à emoção através de alguns recursos que poderiam seduzir e, possivelmente, persuadir o crente. Recursos, como: tema; seleção lexical – uso de palavras de diversas classes gramaticais remetendo ao campo semântico da emoção; ordem das palavras/inversão; expressões metafóricas; descrição do estado emocional do locutor através da modalidade elocutiva; descrição do estado emocional em que o interlocutor deveria se encontrar, através da modalidade alocutiva; exclamações; interjeições. Tais recursos poderiam emocionar o interlocutor, deixando-o mais predisposto a aceitar as teses que se seguem. Daí considerarmos o apelo à emoção como uma estratégia de tom persuasivo. Além do apelo à emoção, o locutor se valeu das faculdades intelectuais, das operações lógico-discursivas, utilizando os operadores argumentativos, principalmente, “então” e “pois” para defender suas teses, o que confirma a tese de Plantin, apresentada acima, segundo a qual o caminho intelectual não é suficiente para desencadear a ação. Assim, notamos que o cântico conjuga recursos da ordem da argumentação lógica ao apelo à emoção. Provavelmente com a finalidade de captar novos fiéis. Referências AMOSSY, R. Le pathos ou le rôle des émotions dans l’argumentation. In: L’argumentation dans le discours: discours politique, littérature d’idées, fiction. Paris: Nathan Université, 2000. p.163-182. KERBRAT-ORECCHIONI, C. Quelle place pour les émotions dans la linguistique du XX siècle? Remarques et aperçus. In: Doury, M.; Travesso, V. Les émotions dans les interactions. Lyon: Presses universitaires, 2000. p. 33-63. CHARAUDEAU, P. La Pathemisation à la Télévision comme Stratégie d’Authenticité. Paris: Univ. Paris XIII. 1999. Inédito. CUNHA, C. F. da. Gramática da Língua Portuguesa. 8 ed. Rio de Janeiro: FENAME, 1982. FERREIRA, V.A. O protestantismo na atualidade. Revista Espaço Acadêmico. n.59, abr. 2006. Disponível em <http://www.espaçoacadêmico.com.br/059/59 ferreira.htm. Acesso em 04 abr. 2010. MAINGUENEAU, D. Polifonia e cena de enunciação na pregação religiosa. In: Lara, G. M. P., Machado, I. L.; Emediato, W. Análises do discurso hoje, vol.1. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2008. p. 199-218. ORLANDI. E. O Discurso religioso. In: A linguagem e seu funcionamento. 2 ed. Campinas: Pontes, 1987. p. 239-262. 47 | P á g i n a Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano (Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no10 OS MEIOS DE COMUNICAÇÃO SOCIAL E O “EMPODERAMENTO” DA TERCEIRA IDADE Pedro Celso Campos (UNESP/FAAC)22 RESUMO: A sociedade está envelhecendo. Esta pauta vai se tornando presente, cada vez mais, na rotina dos meios de comunicação. Ainda nos bancos universitários, os futuros jornalistas devem ser sensibilizados para este fenômeno que envolve importante processo de mudança social. Um dos caminhos pode ser o estudo das técnicas de empoderamento e formação de Capital Social, através das novas Tecnologias de Informação e Comunicacão – TIC, Por outro lado, exercendo plenamente os seus deveres de cidadania, os comunicadores podem – no exercício da profissão ou no voluntariado – contribuir com o fortalecimento das reivindicações da Terceira Idade, na luta pela preservação dos direitos adquiridos, na organização pela conquista de novos direitos, principalmente cobrando dos meios de comunicação mais respeito e dignidade, condenando a discriminação, não se calando diante de qualquer iniciativa que vise prejudicar os direitos das pessoas idosas. Palavras-Chave: jornalismo; sociedade; mudança. ABSTRACT: The society is aging. This subject is becoming increasingly more present on the communication media. Still, at the university level, the future journalists must be sensibilized to this phenomena that involves an important process of society change. One route could be the study of empowerment techniques and Social Capital formation, using the new information and communication technologies – IIT. On the other hand, as they fully exercise they duties as a citizen, the communicators could– through the exercise of their profession or by voluntary action - contribute with the strengthening of the third age (seniors) demands, on their fight to protect acquired rights, with the organization of newly acquired rights, in particular demanding from the mass media more respect, dignity, and rejecting discrimination, not staying quiet when faced with initiatives that target curtailing the rights of the seniors citizens. Keywords: journalism; society; change. Introdução A exemplo dos estudos ambientais, a área da Gerontologia é amplamente interdisciplinar. São inúmeras as abordagens possíveis quando tratamos das questões relacionadas com o envelhecimento demográfico que é uma característica do nosso tempo e 22 Coordenador do Curso de Jornalismo da Faculdade de Arquitetura, Artes e Comunicação da Universidade Estadual Paulista - FAAC/UNESP, campus de Bauru/SP ([email protected]). Este artigo faz parte de seus estudos pós-doutorais na Facultad de Comunicación de la Universidad de Sevilla, entre setembro/2007 e março/2008, com supervisão do Prof. Dr. Francisco Sierra Caballero e com bolsa do Programa de Estágio de Pós-Doutorado no Exterior, da Pró-Reitoria de Pesquisa da UNESP, em convênio com a Fundação Banespa/Santander. 48 | P á g i n a Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano (Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no10 que provoca tantas mudanças na sociedade, por isto mesmo exigindo a contribuição acadêmica em diversas áreas do saber. Aqui cuidamos de relacionar a problemática do idoso com os meios de comunicação. Para tanto, buscamos uma teoria da área sociológica – o “empoderamento” – para refletir sobre o papel que os meios de comunicação têm diante do fenômeno do envelhecimento demográfico. É um papel, sobretudo, de, primeiramente, reconhecer o fenômeno, estudandoo, pautando-o, aprofundando-se sobre ele. Depois, trata-se de buscar a linguagem adequada que situe a pessoa idosa como sujeito e não como objeto da história. Trata-se, também, de dar voz ao idoso, de falar a partir dele e não apenas para ele. Para reduzir o preconceito social contra as pessoas idosas – injustamente acusadas de improdutivas e de serem um peso para o Estado e para a sociedade – os gestores de mídia podem ser convidados, por exemplo, a refletir sobre o potencial de consumo de horas-mídia representado pelos idosos. Por terem mais tempo, são eles os maiores leitores de meios impressos, os que mais assistem aos programas de televisão, os que mais acompanham o rádio e já estão cada vez mais presentes na Internet. Em alguns países, os idosos já se organizam com o apoio de entidades não governamentais, lutando pela preservação de seus direitos, conquistando novos direitos, inclusive procurando votar – no período eleitoral – naqueles políticos sérios que assumem compromissos em defesa dos direitos dos idosos. Esse trabalho de organização da terceira idade como protagonista da história; um protagonismo que levanta uma voz forte toda vez que os idosos são discriminados, violentados, desrespeitados, roubados, ignorados – dentro ou fora de casa - e que pode ser fortalecido através das técnicas de “empoderamento” e com apoio dos meios de comunicação, como veremos a seguir. O empoderamento é visto como um processo de construção social que relaciona forças individuais e capacidades (competência), sistemas naturais de ajuda e condutas pró-ativas com assuntos de mudança social e política social (ZIMMERMAN, 2000; RAPPORT, 1998), que se desenvolve em três níveis: individual, organizacional e comunitário. Em nível individual, os processos de empoderamento podem ser alcançados através da participação em organizações ou atividades comunitárias, integrando grupos de trabalho, aprendendo novas tarefas, desenvolvendo novos potenciais etc. O próprio fato de trabalhar em equipe, perseguindo metas comuns, já pode ter um potencial empoderador, do ponto de vista disciplinar. Esse processo pode ser ativado por animadores externos como agentes sociais, ONGs, mentores, líderes de grupo, professores que atuam de forma a prover oportunidades para as pessoas exercerem controle sobre suas vidas, podendo elas mesmas formarem novos grupos empoderadores, num processo solidário e continuado de formação cidadã. Esse processo sofre influências diretas (positivas ou negativas) do contexto social, isto é, do entorno ecológico no qual se desenvolve. Naturalmente, no ambiente favorável, em que a sociedade, o poder público, as entidades organizadas estão voltadas para a inclusão social, o processo de empoderamento prosperará de modo mais eficaz. Ao tratar do nível organizacional do empoderamento, Zimmerman (2000) destaca a importância de se desenvolver a noção de “pertencimento”, de “sentir-se parte do grupo”, de “ser equipe”, pois é essa noção de pertença que legitima e fortalece o grupo. Aqui sobressai o papel da comunicação como agregadora dos sujeitos sociais, ajudando a criar um ambiente favorável em busca das metas propostas. O comunicador precisa estar consciente de que sua atuação é fundamental na coesão interna do grupo e na busca de apoios que ele precisa para ter visibilidade e resultados. Trata-se, portanto, de fortalecer a organização, no marco teórico da teoria de difusão de informações, segundo a qual, um adequado fluxo de informação e uso apropriado dos meios de comunicação de massa podem contribuir para mudar os hábitos dos 49 | P á g i n a Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano (Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no10 indivíduos. Mas a comunicação em si não é capaz de mudar a realidade. A mudança só ocorre a partir da motivação individual. A comunicação pode reforçar as técnicas de empoderamento do grupo social. Em muitas situações, isso significa colocar em marcha processos de liderança compartilhada, processos de capacitação de membros em função dos objetivos da organização, processos de tomada de decisões, sistemas de distribuição de funções e responsabilidades conforme a capacidade de cada um, criação de mecanismos de intercâmbio de informações e recursos, um modelo ou estilo de gestão adequada em função do crescimento e desenvolvimento da organização. Naturalmente nada disto é atingível se todo o grupo não estiver imbuído dos mesmos objetivos, se não for solidário, se não houver respeito, confiança e tolerância. O nível comunitário do empoderamento resulta dos dois níveis anteriormente citados. Quando se conta com indivíduos interiormente empoderados e organizações voltadas para o empoderamento, então se pode falar em comunidades empoderadas que defendem os seus direitos, que se interessam pelo bem coletivo, que se solidarizam com o semelhante, que lutam pela inclusão social de modo a empoderar outros grupos, que têm visão crítica sobre as injustiças sociais e econômicas em nível local e mundial, que respeitam o meio ambiente etc. Speer e Hughey (1995) observam que o empoderamento a nível comunitário implica no desenvolvimento de redes intersetoriais de organizações e instituições da comunidade local. Essa cooperação, mediante a troca de informação e experiência, levando em conta todos os agentes dentro do enfoque ecológico, é determinante para o bem estar de toda a comunidade, na mesma medida em que a participação individual é que vai enriquecer e fortalecer as organizações empoderadoras. A intenção é evidenciar o caráter eminentemente sistêmico do processo de empoderamento. Nem mesmo o professor, o líder de grupo, o mentor poderá estar só, na sua tarefa de empoderar. Assim, na comunidade empoderada também haverá uma acentuada noção de democracia interna, de horizontalidade de mando, de modo tal que todos possam ser ouvidos com respeito. Retornando a Zimmerman (2000), dos três níveis citados, emerge um questionamento: O que é mais importante, o empoderamento individual, organizacional ou comunitário? Os psicólogos transpessoais, entre eles Ken Wilbur, Michael Washburn, Stanislav Grof (citados por CAPRA, 1988) assinalam que a transformação interna resultante do empoderamento individual está muito ligada a um espírito de comunidade, de solidariedade humana. À medida que a pessoa passa a se conhecer, a aceitar-se e a amar-se a si mesma, ela começa a aceitar e amar o outro, uma vez que pode ver a si mesma no outro. Assim, o empoderamento individual promove a solidariedade, uma auto-definição pessoal baseada no sentido de pertencimento a uma comunidade maior, universal, cósmica e não como indivíduo egoisticamente isolado. No empoderamento de nível transpessoal, pelo fortalecimento interno do sujeito, há uma sensação automática de solidariedade com todos os viventes, um sentido de compaixão pelo excluído, acompanhado pelo deslocamento da mentalidade temerosa e avara do “eu primeiro” que é norma do capitalismo, a uma mentalidade de maior plenitude (“viver e deixar viver”), uma confiança de que “já tenho o suficiente”. Esse ponto de vista da psicologia transcendental e dos sociólogos transpessoais sobre empoderamento está muito próximo dos pontos de vista de muitas tradições espirituais do mundo antigo. Segundo McLaughlin e Davidson (1994), “o empoderamento baseado na transformação interior motiva a pessoa a melhorar não só sua própria vida, mas também a vida dos demais”, enquanto Lape e DuBois (1984) afirmam que “o empoderamento individual se manifesta na conscientização e participação política – um sentido de militância baseado 50 | P á g i n a Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano (Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no10 não em um pequeno interesse pessoal, tão pouco em sentir-se vítima, nem em lançar a culpa nos demais, mas no sentido maior de comunidade e responsabilidade. Com a participação, crescem as habilidades políticas¨. A teoria do empoderamento ensina que todos e cada um tem poder de transformação, de superação. O empoderamento nos transforma em sujeitos da história, pessoas que transformam seu ambiente ao invés de serem transformadas por ele. O empoderamento individual traz a força de cada um à mesa de negociação por um mundo melhor, por uma vida mais digna. Mas não há jogo sem jogadores. E não basta participar, é preciso se envolver, se comprometer, jogar-se por inteiro. Assim, é tão importante o empoderamento individual quanto o organizacional e o comunitário, mas nada se consegue se as pessoas não se dispuserem a colaborar, disciplinadamente, pois não se trata de um bem que se pode dar, mas sim de um processo induzido, amplo e vagaroso no qual as próprias pessoas participantes são protagonistas através de seus esforços individuais e coletivos. Por isso é importante que o processo seja organizado horizontalmente, pela própria sociedade, atuando diretamente junto aos grupos e segmentos envolvidos de modo que alcancem seus objetivos com a união do grupo e não com poderes outorgados por outros quase sempre com segundas intenções, para tirar proveito político etc. Granovetter (1985), Bourdieu (1989), Durston (2000) e Romano (2002) concordam que o empoderamento envolve Auto-confiança (para fugir da apatia, ser atuante, acreditar na causa, alimentar o otimismo); Capacidade Crítica (para perceber, no entorno, quais são os problemas a serem analisados e superados); Participação (reunir-se, dialogar, agir, manifestar-se); Organização (estudar, aprender, abrir-se ao novo conhecimento, às novas tecnologias, doar-se ao coletivo); Solidariedade (no sentido de generosidade, alteridade, aceitação das diferenças) e Capital Social (constituir-se como ser pensante e crítico para conduzir sem ser conduzido). Certamente, o que se destaca dessa discussão é a vontade de querer participar, é a decisão de não se acomodar, de não ficar alheio ao mundo em volta. O trabalho de empoderamento pode ser convincente nesse particular, resultando na acumulação de um tipo de poder pessoal ou grupal que os sociólogos chamam de “capital social”, conforme veremos a seguir. Capital Social O empoderamento é capaz de elevar o nível de “capital social”, ou de participação cidadã na sociedade civil, de um grupo, ou de uma comunidade. Para Pierre Bourdieu (1983, p. 249), “capital social é a agregação de recursos reais ou potenciais que estão ligados à posse de uma rede durável de relações mais ou menos institucionalizadas de conhecimento mútuo e de reconhecimento” (grifo nosso). Distingue três formas de CS (Capital Social): econômico, cultural e social, chamando atenção para a desigualdade de acesso aos recursos. Para Bourdieu as novas tecnologias acabam favorecendo sempre mais as elites que são, naturalmente, contrárias à formação de capital social nas democracias abertas onde existe, por exemplo, liberdade de expressão. A observação de Bourdieu põe em destaque o papel do ativismo político a favor das classes excluídas, cabendo ao jornalismo socialmente comprometido dar voz a esses setores e colaborar com o seu empoderamento. Também Paulo Freire insiste que só o reconhecimento traz o conhecimento, só a atitude humilde diante do saber pode conduzir ao saber em si, um conceito valiosíssimo para o jornalista interessado em conferir exaustivamente a informação recebida antes de publicá-la, no marco da ética que a profissão requer e exige. 51 | P á g i n a Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano (Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no10 Em Coleman’s (1994, p. 302) aprendemos que “o capital social é definido por sua função. Não é uma entidade única, mas uma variedade de diferentes entidades, com duas características em comum: todas elas consistem em algum aspecto de uma estrutura social e facilitam certas ações de indivíduos que se encontram dentro da estrutura”. Coleman’s acredita que a formação de capital social, embora favorecendo as elites como ensina Bourdieu, também está acessível às comunidades carentes e aos grupos excluídos da sociedade, desde que venha a contar com motivação e apoio neste sentido. Novamente se vê aqui a importância da comunicação quando ela se coloca a serviço da sociedade e não apenas de grupos políticos, ideológicos ou de governos. A pesquisa de Coleman’s realça, igualmente, o papel da família, das relações de parentesco e das instituições religiosas na formação de capital social. Segundo o Banco Mundial – em suas análises de projetos comunitários - quando falamos em CS estamos nos referindo às instituições, relações e normas que definem a qualidade e a quantidade de interações sociais em uma comunidade. O CS não é apenas a soma das instituições que constituem elementos essenciais de uma sociedade, é a “liga”, a “cola” que cimenta essas relações, que as mantém unidas e coesas. Entre os estudos mais citados, nos últimos anos, sobre CS está o de Robert Putnam (1941) que, a partir das teorizações de Coleman’s e Bourdieu, mapeou os níveis de participação cívica nos Estados Unidos e constatou acentuado declínio nas últimas três décadas do milênio. Sua pesquisa foi publicada no livro “Bowling Alone”, em 2000. Esta é sua definição de CS: “Considerando que o capital físico se refere a objetos físicos e no capital humano refere-se às propriedades dos indivíduos, o capital social refere-se às ligações entre os indivíduos, às redes sociais e às normas de confiança e reciprocidade que surgem a partir dessas ligações”. Neste sentido o capital social está intimamente relacionado com o que alguns têm chamado de “virtude cívica”. A diferença é que o capital social é mais poderoso quando incorporado em um sentido rede de reciprocidade das relações sociais. A sociedade de indivíduos isolados, embora muito virtuosos, não é, necessariamente, rica em capital social (PUTNAM, 2000, p. 19). Putnam constatou uma diminuição significativa na quantidade de americanos que participam de organizações religiosas, atividades cívicas, recreativas, clubes e outras iniciativas coletivas (como jogar vôlei) com um correspondente aumento de atividades individualizadas (principalmente ver televisão). Em sua pesquisa, os indicadores de conhecimento político, confiança na classe política, ativismo político e atuação em bases populares estão todos para baixo. Os americanos estão assinando 30% menos petições e revelam 40% menos disposição de participarem de um boicote de consumidores em comparação com uma ou duas décadas atrás. Em meados da década de 1970 o americano médio frequentava clubes todos os meses. Em 1998 essa participação havia caído quase 60%. Em 1975 as reuniões com amigos chegavam a 15 encontros por ano, em 1998 caíram pela metade. Embora os americanos se revelem mais tolerantes uns com os outros em relação a gerações passadas, eles confiam menos uns nos outros. Os dados revelam esse crescimento da desconfiança mútua, da desonestidade. Há mais reclamações à polícia e aos tribunais, o que provocou a elevação do número de advogados, policiais e pessoal de segurança, lembrando que durante a maior parte do século tais atividades estavam estagnadas, a ponto da América ter menos advogados per capita em 1970 do que tinha em 1900. A conclusão de Putnam é que isto enfraqueceu o capital social do país. Dessa forma, poderosos meios de comunicação, como a TV ou a Internet, ao invés de contribuírem para o empoderamento das pessoas e dos grupos sociais, estariam atuando em sentido contrário. 52 | P á g i n a Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano (Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no10 Nem todos os estudiosos concordam com a teoria de Putnam. Não se poderia atribuir à televisão o papel de mudar totalmente a sociedade, ainda que pesem as críticas gerais contra o conteúdo da programação de TV mais voltado para o espetáculo e a força da imagem. Theda Skocpol (2003), ao criticar o trabalho de Putnam, observa que as alterações mais significativas na sociedade atual referem-se à mudança da forma associativa de vida. Ela questiona o excesso de ênfase no trabalho de Putnam e outros sobre o funcionamento dos grupos locais e das associações. “O voluntariado cívico nunca foi predominantemente local nos Estados Unidos e nunca se desenvolveu para além do governo nacional e da política. Os teóricos do capital social têm a tendência de analisar todas as formas de participação de uma só vez” (SKOCPOL, 2003, p.12). Ela sugere que uma confluência de tendências e eventos gerou uma mudança de adesão à mobilização geral em forma de organizações cívicas. Segundo ela, depois de 1960, época de mudanças nos ideais raciais e de gênero, um novo tipo de relacionamento empurrou as lideranças dos públicos masculino e feminino para novas direções. Novas oportunidades e desafios políticos atraíram recursos e ativistas cívicos em direção aos lobbies centralizados. As novas tecnologias e fontes de apoio financeiro permitiram a constituição de novos modelos de associativismo. Finalmente, mudanças na estrutura e nas classes elitistas americanas criaram um círculo mais amplo para organizações profissionalmente geridas. Agora os americanos mais privilegiados podem se organizar virtualmente (SKOCPOL, 2003, p.178). Outra contribuição significativa ao trabalho de Putnam veio de Ann Bookman (2004). Ela acha que não se pode falar em capital social, hoje, sem levar em conta o papel da mulher na sociedade que teria um capital social “acumulado” ao desempenhar duplas jornadas como profissional e mãe de família. Novas formas de CS estão se desenvolvendo, entre famílias que trabalham em ambientes urbanos e suburbanos (como no caso dos cuidadores de crianças e idosos, os empregados domésticos). De todo modo o trabalho de Putnam deixa claro que a formação de capital social traz inúmeras vantagens. Ele cita, por exemplo, o desenvolvimento das crianças, através do melhor aproveitamento escolar e, consequentemente, do comportamento e desenvolvimento futuro, quando a família dá ao acompanhamento da formação escolar o destaque que ele merece. Mostra que é perceptível a redução no índice de criminalidade nas comunidades onde os jovens estão interligados por redes de amigos e participam de atividades comuns. Diz que o CS pode ajudar a atenuar os efeitos insidiosos da desvantagem socioeconômica, quando uma nação, uma sociedade ou mesmo um grupamento de pessoas, ou de empresas, se organizam para formar capital social através do florescimento de redes sociais, mediante técnicas de empoderamento. Ele também vê uma relação entre CS e boa saúde, ao observar que cai pela metade o risco de morte entre pessoas que vivem em grupo em relação a pessoas que vivem isoladas, solitárias. No grupo, a pessoa acaba sendo ajudada a desenvolver hábitos mais saudáveis como deixar de fumar, fazer exercícios, sair de casa, alimentar-se melhor, cuidar dos medicamentos etc. Para ele, a assiduidade a um clube, a participação em trabalhos voluntários, a recreação, a frequência à Igreja equivalem, para a pessoa que antes vivia só, à felicidade de receber um diploma acadêmico ou ter o salário duplicado. Pode-se ter uma vida rica e feliz sem ter riqueza material, ensina. Meios de Comunicação Este artigo tem o objetivo de relacionar o papel social dos meios de comunicação com sua capacidade de contribuir para o empoderamento e, consequentemente, a elevação do capital social nas comunidades. Muito embora as técnicas de formação de capital social sejam aplicáveis a todas as pessoas e grupos sociais, faremos aqui um recorte no segmento de 53 | P á g i n a Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano (Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no10 público que mais tem crescido nos últimos tempos e que vai se tornando, cada vez mais, uma pauta de abordagem diária para a imprensa. Trata-se do segmento das pessoas idosas e do fenômeno global do envelhecimento demográfico, tema, aliás, pouco tratado na área acadêmica, o que parece confirmar o modo paternalista e assistencialista como é vista a pessoa idosa na sociedade, como se não tivesse ou não pudesse ter qualquer papel social. Igualmente é importante lembrar que o idoso é, hoje, um consumidor urbano de notícias e informações, ao contrário de algumas décadas atrás quando ainda existiam comunidades rurais e as tecnologias de informação limitavam-se praticamente ao rádio. PAÍSES COM MAIOR ENVELHECIMENTO (2000-2050) População de 65 e mais anos 2000 2050 número número (milhões) % (milhões) % Italia Japón España Alemania Francia Reino Unido Ucrania Rusia EEUU China Vietnam Brasil Indonesia India México Egipto Paquistán Bangladesh Nigeria População de 80 e mais anos 2000 2050 número número (milhões) % (milhões) % 10.525 21.862 6.797 13.483 9.669 18,2 17,2 16,7 16,4 16,3 18.090 40.269 14.504 22.376 17.114 35,5 35,9 34,1 28,4 27,1 Reino Unido Italia Francia Japón Alemania 9.306 6.863 18.081 35.078 87.228 4.251 9.457 10.236 50.054 4.759 3.027 5.261 4.370 3.495 15,9 14,0 12,3 12,3 6,8 5,4 5,4 4,9 4,9 4,8 4,5 3,7 3,4 3,0 15.558 7.689 25.747 81.547 329.103 21.712 48.693 49.670 236.513 29.371 16.727 31.119 28.240 14.726 23,2 29,1 23,0 20,6 23,6 18,6 19,2 17,4 14,8 21,1 13,3 10,2 11,6 5,7 España EEUU Ucrania Rusia Brasil China México Vietnam India Egipto Indonesia Paquistán Bangladesh Nigeria 2.390 2.309 2.341 4.812 2.859 4,1 4,0 3,9 3,8 3,5 1.413 9.138 1.107 2.935 1.624 11.373 854 671 6.761 320 1.092 652 479 359 3,5 3,2 2,3 2,0 0,9 0,9 0,9 0,9 0,7 0,5 0,5 0,5 0,4 0,3 5.885 7.756 6.863 17.159 9.585 8,8 15,2 10,9 15,3 12,2 5.213 12,3 28.725 7,3 2.075 7,9 6.588 5,9 13.989 5,5 100.551 7,2 8.002 5,8 5.082 4,4 52.915 3,3 3.077 2,4 9.492 3,3 5.651 1,9 4.595 1,9 1.910 0,7 Fuente: N.U.: World Population Prospects: The 2004 Revision. N.U. (consulta em Junho de 2006) O mundo do século XXI será, em grande parte, urbano. Nos países em desenvolvimento, a população urbana decuplicou em apenas 65 anos, passando de 100 milhões em 1920 a 1 bilhão em fins do século. Considerando o conjunto da humanidade, hoje com 6,5 bilhões de pessoas – onde se inserem os problemas ecológicos e ambientais, inclusive questões prementes como a mudança do clima e o envelhecimento demográfico – os planejadores levam em conta dados da Organização das Nações Unidas - ONU segundo os quais a população poderia se estabilizar entre 8 e 14 bilhões de habitantes em algum momento do século XXI. É importante registrar que 90% desse crescimento populacional ocorrerá nos 54 | P á g i n a Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano (Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no10 países mais pobres, conforme o documento da ONU “Nosso Futuro Comum”. Isto significa que os países mais desenvolvidos também terão as populações mais idosas do mundo. De fato isto já vem ocorrendo. Até meados do século XVIII, a esperança de vida nos países europeus rondava os 30 anos. No ano 2000 era de 77 e está subindo (SEMPERE; RIECHMENN, 2000, p.191). No Japão atual é de 85 anos. Em 2050 dois em cada cinco japoneses terão mais de 65 anos, somando-se a uma população superior a dois bilhões de idosos em todo o mundo, segundo projeções da ONU. O gráfico, a seguir dá uma idéia da situação. É possível, observar, por exemplo, que apesar da longevidade estar crescendo também nos países pobres, a sobrevida segue elevada proporcionalmente à qualidade de vida do país onde vive o idoso. Assim, na faixa superior a 80 anos, os percentuais de sobrevida vão se reduzindo drasticamente nas regiões mais pobres, se comparadas com as regiões mais ricas do planeta. Enquanto na Alemanha (15,3%) e no Japão (15,2%) a Quarta Idade mantém representação expressiva na população, em outros países como Índia (3,3%), México (2,4%) e Nigéria (0,7%) esse segmento é cada vez menor. Perante esses dados, parece correto supor que os meios de comunicação, notadamente os Novos Meios de Informação e Comunicação (NOMIC), sem abrir mão dos meios tradicionais, têm muito a contribuir nessa tarefa de dar visibilidade social aos grupos excluídos, neste caso ao segmento dos idosos, sempre que estivermos falando de um jornalismo socialmente comprometido. É curioso observar que, muitas vezes, na busca desenfreada do lucro, o capitalismo acaba flanqueando alguns espaços que a sociedade organizada pode explorar. Um exemplo claro é o apoio que a Comissão Européia vem dando ao desenvolvimento de novos produtos midiáticos na área das Tecnologias da Informação e da Comunicação – TICs. Desde 2007 até 2013 a União Européia e os EUA, junto com o setor privado, investirão mais de um bilhão de euros em pesquisa e inovação dentro do programa “Envelhecer bem na Sociedade da Informação”. Apesar dos objetivos econômicos, o programa está organizado em normativas que podem contribuir com a inclusão social, tais como: 1. Uma Sociedade da Informação aberta a todos (IP/05/643); 2. Uma Sociedade da Informação aberta ao crescimento e ao emprego (IP/05/643); 3. Acessibilidade Eletrônica (IP/05/1144); 4. Uma agenda política de inclusão digital, conforme acordado em 2006 pelos Estados-Membros reunidos em Riga (IP/06/769) e para o final de 2007 estava prevista uma comunicação relativa à estratégia da União Européia em inclusão digital. Da verba total, 600 milhões de euros são destinados ao programa “Vida Quotidiana Assistida pela Comunidade”; 400 milhões de euros destinam-se ao recente Programa Marco de pesquisa da União Européia (IP/06/1590) e 30 milhões foram aplicados em 2007 no Programa de Apoio à Política em matéria de TIC (IP/06/716). O objetivo, segundo o site da UE, é “criar uma sólida base industrial na Europa para as Tecnologias da Informação e da Comunicação e o envelhecimento. A própria Europa poderia converter-se em um mercado referencial das TICs para um envelhecimento melhor. Posto que o envelhecimento é um fenômeno mundial, uma indústria européia forte significaria oportunidade em todo o mundo”. Ao lançar o plano em junho de 2007 em Bruxelas, a Comissária Européia de Sociedade da Informação e Meios de Comunicação, Viviane Reding, disse que “as Tecnologias de Informação e Comunicação proporcionarão novos produtos e serviços mais acessíveis que respondam às necessidades de nossos idosos”, lembrando que a pesquisa voltada para o desenvolvimento de aplicações mais práticas e simples, de mais fácil compreensão e utilização, tem um âmbito de aplicação muito mais amplo. Dessa forma, atraindo os empresários para o negócio, a Comissão Européia contribui, de modo substancial, para chamar a atenção da sociedade para o fenômeno do envelhecimento 55 | P á g i n a Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano (Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no10 demográfico que, do ponto de vista ecológico, é tão importante quanto a mudança do clima e, no entanto, não vem sendo tratado com a devida seriedade, uma vez que parece estranho falar de “envelhecimento” na Sociedade do Conhecimento permeada por bens simbólicos que remetem a um mundo freneticamente high tech, sem tempo ou sem espaço para reflexões. Resulta claro, todavia, que os investimentos em TICs também podem ser canalizados para o empoderamento de pessoas e grupos sociais visando a elevação do capital social, mesmo que não seja esta a intenção primeira da elite econômica que centraliza os meios de comunicação. O documento da União Européia reconhece que a maioria dos idosos ainda não se beneficia das vantagens da era digital, por exemplo, e que só 10% deles, na Europa, utilizam a Internet. O programa da UE defende “comunicações de baixo custo e serviços on line especialmente dirigidos aos idosos, o que poderia aliviar suas limitações de locomoção, além de poder gerar até mesmo um mercado virtual para o trabalho do idoso no lar. Conforme o documento, “os graves problemas de visão, audição ou destreza frustram com freqüência os intentos de 21% das pessoas de mais de 50 anos que tentam integrar-se na sociedade da informação”. Trata-se de uma situação que realmente demanda algum tipo de atenção – não só na Europa, mas em todo o mundo – pois, conforme os levantamentos que deram origem ao programa da UE para envelhecer bem, em 2020, 25% dos cidadãos da União Européia terão mais de 65 anos. Calcula-se que o gasto com pensões, assistência à saúde e cuidados de longa duração aumentarão de 4% a 8% do Produto Interno Bruto - PIB, nos próximos decênios e em 2050 o gasto total triplicará. O objetivo do programa de apoio às TICs é a formatação de programas, inclusive na área da Comunicação, que ajudarão cada vez mais as pessoas idosas a prolongar sua vida ativa e produtiva, a continuar participando da sociedade com serviços on line mais acessíveis e a desfrutar durante mais tempo de uma melhor qualidade de vida e melhor saúde. É necessário lembrar, ainda de acordo com o documento, que “os europeus mais idosos são também importantes consumidores, possuindo bens que superam os três bilhões de euros”. O mesmo ocorre nos Estados Unidos, onde a maior parte da economia americana está sob controle de pessoas com mais de 75 anos. E nos Estados Unidos os idosos estão se organizando em força eleitoral e já são maioria no Congresso, comprometendo-se a votar projetos que beneficiem diretamente esse segmento da população (THUROW,1997). O Plano de Ação que integra o Programa da UE “Envelhecer bem na Sociedade da Informação” pretende “aumentar a sensibilização e criar consenso através da cooperação dos interessados, incluindo um portal de Internet sobre melhores práticas; acelerar a aceitação das novas tecnologias através, por exemplo, de um conjunto de projetos-piloto e de um sistema de prêmios europeus para lares inteligentes e para aplicações que favoreçam uma vida independente; impulsionar a pesquisa e a inovação, apoiando o surgimento de produtos, serviços e sistemas inovadores baseados nas TICs, destinados aos idosos europeus, cada vez mais numerosos”. Todos esses dados revelam que os meios de comunicação, em todo o mundo, precisam se voltar, com atenção, para este segmento de público que se faz cada vez mais importante entre os consumidores de informação. A grande pergunta é se os jovens atualmente empenhados na formação acadêmica para o futuro desempenho do jornalismo estão sendo conscientizados, preparados, sensibilizados para o cumprimento dessa nova pauta. Afinal, o envelhecimento não pode ser visto como um “modismo”, um fenômeno “de momento”. A opção, para todas as pessoas, incluindo os jovens, não é escolher entre “sim” ou “não” nesta questão. Portanto, o jovem que hoje convive com a presença do idoso na própria família, ao frequentar a casa dos amigos, no ambiente de estudos, no comércio, nas ruas, nos meios de comunicação, nas manifestações de todo tipo sabem que isto se tornará cada vez mais 56 | P á g i n a Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano (Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no10 frequente, como indicam as estatísticas, e sabem também que este será o seu mundo futuro. A característica das questões eminentemente sistêmicas como esta é que todos estão imbricados, de um modo ou de outro, na complexidade do mundo, daí a importância ecológica do problema. Se não temos a opção de “não envelhecer” só nos resta a opção de “envelhecer bem”. Por isso a questão do idoso deve ser tratada, em nível de comunicação, não com pieguice, paternalismo ou comiseração, mas com a dignidade e o respeito que o fato merece. Assim, não se deve tolerar qualquer tipo de discriminação dos meios de comunicação ou da sociedade em relação aos idosos. O Brasil inova nessa matéria com a criação do Estatuto do Idoso que protege os direitos da pessoa idosa e pune a discriminação. Mas ainda não há, no país, uma cultura de respeito aos “maiores”, para usar o carinhoso termo espanhol, como ocorre em países orientais, caso do Japão e Índia, por exemplo. Tanto assim que o próprio Estatuto cobra dos empresários de mídia um espaço próprio para a Terceira Idade, mas isto é, praticamente, ignorado. Do mesmo modo que a preparação dos futuros jornalistas para lidar com temas ambientais ainda é precária no Brasil, pois só algumas universidades adotam essa questão como matéria disciplinar nos cursos de Comunicação, também é escassa e quase inexistente a preocupação em preparar os comunicadores para a pauta do envelhecimento demográfico. Mas alguma coisa já está surgindo e um exemplo é o caso das Universidades Abertas à Terceira Idade que podem ser um instrumento de aplicação da Teoria do Empoderamento ou do Capital Social na medida em que preparam o idoso para uma vida social ativa e plena. Considerações Finais Vimos neste artigo que as técnicas de empoderamento podem contribuir significativamente para a inclusão dos indivíduos e dos grupos sociais. Também vimos que o empoderamento faz crescer o nível de capital social da comunidade, levando a uma participação cidadã mais efetiva. Consideramos que os meios de comunicação têm importante contribuição a dar a este respeito e registramos a possibilidade de se produzir empoderamento a partir dos investimentos nas Tecnologias de Informação e Comunicação – TIC. Finalmente citamos o caso das Universidades Abertas à Terceira Idade que são exemplo prático de aplicação das técnicas de empoderamento que merecem mais cobertura da mídia. O que queremos chamar atenção, entretanto, é para o pouco destaque que os meios de comunicação dão à questão do envelhecimento demográfico e para a falta de interesse dos cursos de Comunicação Social em preparar os futuros jornalistas em temáticas de cunho ambiental e de ecologia humana, como no caso da visibilidade dos idosos na sociedade, através da mídia. Referências AMANCIO, G.; ROMANO, J. O. Capital Social e Empoderamento. 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American Journal of Community Psychology, 16, 1998, p.725750. ______. Empowerment Theory. In: J. Rapport; E. Seidman (Eds). Handbook of Community Psychology. New York: Kluver. 2000, p. 43-63. 59 | P á g i n a Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano (Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no10 A QUESTÃO AGRÁRIA NA CONTINUIDADE DAS LÍNGUAS MINORITÁRIAS: O CASO TERENA DE IPEGUE Mariana de Souza Garcia23 (UFMS) RESUMO: Este artigo concebe a língua como patrimônio imaterial e, por isso, um bem a ser preservado. A discussão recai sobre as línguas minoritárias e minorizadas e particularmente, sobre o perigo delas desaparecerem. Saber quais são as ameaças mais fortes é uma saída para a resolução do problema e para isto, faz-se imprescindível o desenvolvimento de Tipologias Sociolingüísticas. Constam duas seções. A primeira discute duas macrovariáveis fortes da Tipologia Sociolinguística desenvolvida junto aos Terena são essas: a questão da terra como eixo de conflitos políticos e econômicos, e a questão tecnológica aliada aos deslocamentos e desaparecimento de línguas/terras indígenas. Do embate duas concepções de terra emergem. A segunda seção trata da desterritorialização Terena aplicando todo o quadro descrito e analisado na introdução e na primeira seção, exemplificando como as micro e as macrovariáveis surgem no seio da Comunidade de Fala Terena e, sorrateiramente, vêm destruindo os bens materiais e imateriais do referido povo indígena. Conclui constando que para a sobrevivência das línguas minoritárias, é fundamental atentar-se à questão agrária, que se encontra em meio à situação social (tecnológica), política e econômica. Palavras-chave: línguas minoritárias; terra indígena; etnia terena. ABSTRACT: This article considers the proposition that language, as an intangible heritage, must be preserved. Focusing on minority languages, it is specially concerned with the risk of their disappearance. Identifying the most important threats to them is a way of solving the problem and the development of Sociolinguistic Typologies is essential for that to occur. The article is organized into two sections. The first one discusses two important Sociolinguistic Typology macro variables developed among the Terena people: the question of land possession as related to political and economic conflicts, and the question of technology as a reason for indigenous language/land disappearance and minorization. Two conceptions of land emerge from the discussion. The second section focuses on the Terena land loss and applies the situation described and analysed in the introduction and in the first section. It also exemplifies how the micro and macro variables emerge within the Terena Speech Community and silently destroy that people’s tangible and intangible heritage. In conclusion, it is argued that the land question is essential for the minority languages to survive, since it is related to the social (technological), political and economic situation. Key words: Endangered languages; Indigenous land; Terena ethnic group. Introdução A preservação da diversidade linguística é tão importante para a humanidade quanto a preservação da flora e fauna (NETTLE; ROMAINE, 2000) muito embora a consciência acerca dessas últimas seja, em geral, mais nítida. Muitos são os argumentos apresentados pelos estudiosos em prol da diversidade linguística: as línguas são parte essencial da humanidade, carregam a história da coletividade humana, são produto da milenar indústria mental humana, codificam experiências únicas e insubstituíveis, além de serem um tipo muito 23 Este artigo faz parte do Projeto LIBA – Línguas Indígenas Brasileiras Ameaçadas: documentação (análise e descrição) e tipologias sociolinguísticas. Trata-se de projeto coordenado por pesquisadores da UFG, contando com a participação de pesquisadores da UnB, UFT e a presente autora, da UFMS. 60 | P á g i n a Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano (Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no10 especial de saber servindo, inclusive, de base para outros saberes (BRAGGIO, 2001-2002; CRYSTAL, 2000; DORIAN, 1998; FISHMAN, 1991; GRENOBLE e WHALEY, 1998; HALE, 1998, 1992a, 1992b; HINTON, 2001; KRAUSS, 1992; MITHUN, 1998; NETTLE e ROMAINE, 2000; OLIVEIRA, 2009). Patrimônio imaterial, as línguas estão se extinguindo de uma maneira alarmante e sem precedentes em todo o mundo. As causas desse fenômeno são estudadas pormenorizadamente, a partir da década de 1990, por um grupo crescente de sociolinguistas especializados em tipologias sociolinguísticas (EDWARDS, 1992; FISHMAN, 1991; GRENOBLE e WHALEY, 1998; HALE, 1992a; HINTON, 2001; 1998; KINCADE, 1991 apud CRYSTAL, 2000; KRAUSS, 1992; 1997 apud GRENOBLE e WHALEY, 2006; WURM, 1998 apud BRAGGIO 2003). Este artigo focaliza a questão da terra, dentro das perspectivas econômica e política da tipologia proposta por Edwards (1992) e Grenoble e Whaley (1998), sendo consideradas as de maior peso, no contexto brasileiro, para a extinção das línguas minoritárias (GARCIA, 2007). Nesse contexto, são línguas minoritárias aquelas não oficiais, apagadas ideologicamente pelo Estado. No Brasil, elas chegam a cerca de 190 (OLIVEIRA, 2009) e são faladas por grupos étnicos pequenos em termos populacionais. Essas línguas podem ser também consideradas minorizadas dado o ínfimo prestígio econômico e político de seus falantes. Tal situação ocorre em praticamente todos os 185-200 Estados-nações reconhecidos pela ONU (NETTLE; ROMAINE, 2000), onde vivem cerca de quinze mil povos, muitos deles em uma situação de colonialismo interno – o Quarto mundo (ROMAINE, 1994). São línguas que estão em contato com outras línguas (idiomas) em um mundo onde o bilinguismo é a regra, ao contrário do que a tradição linguística preconiza (COOK, 1992; CRYSTAL, 2000; GROSJEAN, 1982; NETTLE; ROMAINE, 2000; ROMAINE, 1995). Entretanto, nesse contexto o monolinguismo tem sido, na maioria das vezes, a política de língua oficial. Estima-se a existência de cerca de 6000 línguas no mundo (ROMAINE, 1995). As línguas minoritárias (96% do total de línguas) representam a grande maioria da diversidade linguística atual e são faladas por apenas 4% da população mundial. A situação delas é muito delicada. Considerando o fato da (não) transmissão dessas línguas intergerações e o fato de muitos falantes serem bilíngues24, estima-se que entre cinquenta a noventa por cento não mais existirão até o final do presente século (CRYSTAL, 2000; FISHMAN, 2001; HALE, 1998; KRAUSS, 1992; LEE; MCLAUGHLIN, 2001; NETTLE; ROMAINE, 2000). As outras línguas (4%) são idiomas, línguas fortes, ou seja, são línguas oficiais e faladas por 96% da população mundial; estas estão seguras quanto à extinção. 24 Considerando contextos bilíngues, Cummins (1981 apud MCGROARTY, 1991) propõe a diferença entre bilinguismo aditivo e bilinguismo subtrativo. O primeiro ocorre quando a aquisição/aprendizado da segunda língua é um fato de prestígio sócio-econômico, sendo, assim, um bilinguismo de elite. Podemos citar como exemplo um falante de português (língua 1) aprendendo inglês (língua 2). Já no segundo tipo de bilinguismo, uma das línguas do falante marca o seu estigma social e, conforme a política de língua oficial da sociedade envolvente, é considerada prejudicial, feia, primitiva. Logo, objetiva-se a sua supressão (por exemplo, uma língua indígena). É importante considerar que, da perspectiva linguística, todas as línguas são complexas, ricas, suficientes e capazes para a expressão e que antes da língua estigmatiza-se o falante por sua condição sócio-econômica. Daí o sociolinguista Hamel (1988) compreender o termo diglossia como integrante de um conflito intercultural maior, em que a língua em processo de deslocamento é a língua do povo sob dominação. 61 | P á g i n a Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano (Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no10 As línguas não existem isoladas, mas estão em contato umas com as outras. Segundo Braggio (2001; 2002) e Hinton (2001), o problema de deslocamento de uma língua é muito mais grave quando decorre do contato não entre duas línguas fortes, mas entre uma língua forte e outra língua fraca. É o caso da língua terena em contato com a língua portuguesa. Essa assimetria ocorre também – pelo menos no caso brasileiro – na quantidade de linguistas e de estudos linguísticos realizados em cada uma dessas línguas. Nettle e Romaine (2000), em um belíssimo livro intitulado Vanishing voice, mencionam vários casos apontando para a interligação língua e ambiente físico (terra) e as contribuições de populações minoritárias através de soluções inovadoras e únicas no desenvolvimento sustentável da humanidade, colaborando, assim, para a resolução de problemas, sobretudo nos âmbitos ambiental e ecológico. Assim, o conhecimento das línguas minoritárias pode resultar em contribuições para as teorias científicas, graças à descoberta de perspectivas potencialmente únicas sobre vários problemas, como por exemplo, o manuseio da terra, a tecnologia marinha, o cultivo de plantas e o manuseio animal, entre outros. Uma grande quantidade de línguas tem desaparecido sem qualquer estudo científico. Hinton (2001) sumariza-os em sentido amplo e em sentido restrito (específico à Linguística). Neste âmbito, os estudos de línguas indígenas possibilitaram o avançar de áreas como a Linguística Histórica, os universais linguísticos e a tipologia das línguas, a Sociolinguística e a Linguística Cognitiva. Afirma Hale (1998) que dados de uma ‘nova’ língua promoveram mudanças no desenvolvimento de teorias e em alguns casos a diversidade linguística favoreceu uma nova agenda de estudos. O desaparecimento de cada língua, além de deixar uma lacuna no grande quebra-cabeça linguístico da humanidade, significa, em sentido mais amplo, a “morte” de um povo (ALBÓ, 1988; 1999 apud BRAGGIO, 2001-2002). A questão da relevância da terra para a sobrevivência cultural e linguística de um povo, bem como a força econômica e a política de língua oficial, serão abordados no próximo item. Em seguida, será apresentado o caso da desterritorialização terena e suas consequências na política de língua em Ipegue. Terra indígena: suporte para a continuidade das línguas minoritárias e objeto dos interesses econômicos e políticos 1. A terra e o fator tecnológico Para o conhecimento e o estudo científico das línguas é fundamental garantir a existência e vitalidade física e cultural de suas comunidades de fala, o que se dá mediante a oferta de condições dentre as quais a terra figura como umas das mais importantes. Os fatores político e econômico que incluem a questão da terra contam com a mídia como forte aliado. A partir da proposta de Grenoble e Whaley (1998), Garcia (2007) analisa essa questão como fator tecnológico. Neste artigo, pretende-se considerar a tríade economia, política e tecnologia igualando o peso desta última às demais. A mídia eletrônica e escrita exerce grande influência no deslocamento das línguas minoritárias, pois, mantidas pelos 62 | P á g i n a Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano (Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no10 poderosos interesses econômicos e políticos e a serviço deles, divulgam e inculcam na maioria das pessoas, na sociedade majoritária, ideologias que pouco valorizam as populações indígenas, suas línguas e sobretudo a necessidade fundamental da terra para sua sobrevivência física e culturalmente distinta. É o que Dorian (1998) denomina “ideologia do desdém”. Esta concepção ideológica vincula o pouco desenvolvimento tecnológico de um grupo ao pouco desenvolvimento linguístico e, consequentemente, os membros do grupo majoritário rotulam essas línguas como primitivas e não desenvolvidas, chegando, segundo a autora, a colocar em dúvida a humanidade dos povos falantes. Essa concepção, responsável pela maioria dos conflitos entre Estados-nações e povos minoritários em todo o mundo (NETTLE; ROMAINE, 2000), decorre da visão dos Estados ocidentais oficialmente monolíngues após a Revolução Francesa. Tais estados preconizam como lema “um estado uma língua” (MAYBURY LEWIS, 1983; OLIVEIRA, 2009) e, portanto, em razão de uma política de língua contrária ao multilinguismo, as demais línguas devem ser exterminadas ou “apagadas” oficialmente. Dessa idéia decorre a política de língua oficial, assumida implícita e explicitamente pelo Brasil, no que diz respeito aos diferentes grupos minoritários que falam diferentes línguas: tornar suas línguas invisíveis, visando a sua integração à cultura majoritária. Assim, a língua portuguesa é a única língua oficial (idioma) no Brasil e, além das 190 línguas indígenas autóctones, também são invisíveis as 20 línguas alóctones de comunidades imigrantes (OLIVEIRA, 2009). Esse contexto interfere nas atitudes linguísticas tanto do grupo majoritário como do grupo minoritário em relação à língua minoritária (ROMAINE, 1994). Outra ideologia inculcada na população brasileira é a de que o índio é detentor de uma enorme extensão de terra – é o caso, por exemplo, das reportagens “A dupla conquista” e “As falsas vítimas” na Revista Veja, em 2006, dos jornalistas Guandalini e Silva, e Edward e Coutinho, respectivamente. Contudo, não se divulgam os verdadeiros dados da realidade agrária brasileira, como se lê em estudos sérios, dentre os quais a obra organizada por Almeida (2008) “A questão agrária em Mato Grosso do Sul – uma visão multidisciplinar”. Segundo Oliveira (2008), um quinto do Brasil são terras devolutas nas mãos das elites que cercaram muito mais do que lhes pertence. O estado brasileiro que figura em primeiro lugar no que tange à concentração de terras (latifúndios) é o Mato Grosso do Sul, com uma área de 50,35% de propriedades com mais de dois mil (2.000) hectares, segundo reportagem da Revista Caros Amigos, de setembro de 2003 (apud AVELINO JR, 2008). Por outro lado, é das pequenas propriedades e não das terras dos grandes latifúndios que saem mais de 70% da produção de alimentos básicos e cerca de 80% dos empregos do campo. O discurso político em torno do progresso e da geração de empregos com a implantação do agronegócio deixa de considerar o fato de que esses novos postos de trabalho perpetuam a miséria da gente subempregada. Dentro das diretrizes da política monetária internacional, uma grande parcela da população fica cada vez mais empobrecida, formando-se grandes massas de excluídos, marginalizados, quase não cidadãos, em razão da violação dos seus direitos humanos. É o caso dos empregos no campo gerado pelas usinas sucroalcoleiras do Mato Grosso do Sul, empregando indígenas e não indígenas. Podem ser consideradas, nesses casos, pelo menos duas concepções de terra. De um lado a terra como propriedade privada, particular, o agronegócio, o lucro imediato, a monocultura, a produção mecanizada, sua exaustão e desertificação, a adubação química, a impermeabilização do solo – em terras onde se pratica a pecuária (cf. RAMOS, 1995), enfim a destruição real e descompromissada 63 | P á g i n a Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano (Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no10 do meio ambiente, contudo apagada pelo difundido progresso. Por outro lado, comum a outras diferentes óticas culturais tradicionais (BROWN, 1970; MONTOYA, 1998; OBERG, 1949), a terra é um bem coletivo, histórico, e deve ser preservada para as futuras gerações. Seu manuseio ocorre na forma de rodízio entre vários cultivos simultâneos. Ela é fundamental na estruturação das várias esferas da vida: a material, a física e também a cosmológica, a filosófica, a mitológica, a social, a cultural e a espiritual, sendo elas não compartimentalizadas, mas interligadas (BRAGGIO, 2005; GOMEZ-IMBERT, 1997). São inúmeros os casos em que a primeira concepção apresentada desloca e exclui a segunda concepção de terra (BRAGGIO, 2005; BROWN, 1970; CRYSTAL, 2000; GARCIA, 2007; MONTOYA, 1998; NETTLE; ROMAINE, 2000). Segundo Crystal (2000), muitos ambientes ficaram degradados, tornando-se áreas áridas ou semi-áridas pelo exaustivo, total, ininterrupto e excessivo cultivo voraz, buscando o lucro. Tal procedimento reduziu as terras disponíveis para a produção de colheitas de comida para o povo local pelo desmatamento e pelas péssimas práticas de irrigação, implicando também em mudanças de ciclos pluviais e de modelos climáticos. A terra que perdeu sua fertilidade é incapaz de suportar a sua população, um fenômeno visto repentinamente na África durante as décadas de 1970 e de 1980, quando ocorreu a desertificação por todo o Sahel. Logo, se por um lado quem se beneficia com a liquidação dos recursos da preservação são os centros metropolitanos, por outro, quem paga o custo da insustentabilidade do planeta não são estes, mas sim a periferia pobre, conforme afirmam Nettle e Romaine (2000). E, nos países pobres, quem mais sofre são as populações marginalizadas, como as indígenas, que perdem o seu solo, ficando impedidas do uso da floresta para a coleta, dos rios para a pesca etc. E são justamente as comunidades locais que detêm o controle dos recursos ecológicos ambientais a fim de conservá-los melhor. No entanto, o que se considera atualmente como mundo desenvolvido está a favor das elites urbanas, da liquidação dos recursos naturais e da homogeneidade (NETTLE; ROMAINE, 2000). 2. A luta pela terra: língua e etnicidade O argumento da morte da língua vinculado à morte étnica é muito usado externamente para justificar as usurpações feitas contra esses povos, especialmente por quem tem interesse em seus bens, como as terras indígenas (DORIAN, 1998; ROMAINE, 1995). Em trabalho de campo realizado por esta pesquisadora em 2004, na comunidade Terena de Ipegue, vários foram os relatos de situações vividas pelos jovens quando “solicitados”, fora de sua comunidade, a falar a língua indígena a fim de provar serem índios. Percebe-se que tal exigência não reflete uma atitude linguística favorável à língua indígena e ao bilinguismo por parte da sociedade não índia. No Mato Grosso do Sul, assim como em todo Brasil, há uma grande pressão externa às populações indígenas do Estado no intuito de considerar extintas as línguas indígenas entre os jovens indígenas que trabalham fora de suas reservas. Muitas pessoas de Ipegue mencionaram solicitações extra-oficiais, na forma de cobranças, de mostras de língua para “provarem” ser “indígenas”, quando buscaram obter algum auxílio ou benefício oficial. A intenção subjacente a essas cobranças, ocorridas inclusive veladamente, ou informalmente na esfera políticoeconômica, caminha para o desejo de afirmar a inexistência de índios considerados “puros” que, na visão dos grupos interessados, ainda sustentam a existência das reservas indígenas. 64 | P á g i n a Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano (Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no10 Grande é o interesse sobre as terras indígenas no estado sul-mato-grossense. A cobrança e a pressão sentidas pelo índio são evidentes nas falas a seguir, fragmentos de respostas justificando a opção “mais terena” para responder a pergunta “Qual língua você prefere que seja usada para ensinar seu filho na escola? Por quê?”, em Garcia (2007, p. 171): Para não largar a língua e perder nosso lugar pois está perigoso. Pois e se perder a língua? Aí é duro. Aí vai perder o direito da terra e ficar só com o quintal. Getúlio Vargas que deu a terra já morreu. Aí querem acabar com índio. Tem muitos casamentos mistos com civilizado... Para que possam aprender, porque mais tarde vão precisar por causa da terra. Eu acho bonito aprender as duas línguas, é necessário. Tem que falar mais em Terena, para a Terra não ser tomada. Nota-se que alguns entrevistados captaram a intenção de eliminar os Terena, homogeneizando-os, integrando seus descendentes às bases da sociedade majoritária e tomando-lhes a terra. Percebe-se, ainda, que a ideologia e a política do não índio fundamentam-se, a partir da mudança da língua indígena para a língua majoritária, em argumentar que o índio deixou de ser índio, negando-lhe a legitimidade da reivindicação por um status especial e por direitos à terra (ROMAINE, 1994). Entretanto, autores como Cunha (1983), em um parecer pela Associação Brasileira de Antropologia, Oberg (1949) e Romaine (1995) consideram que a etnicidade de um grupo indígena é constituída por vários elementos, não sendo a língua o único, mas um deles. Segundo esses autores, não há somente um critério para definir a etnicidade de diferentes e singulares povos. Em alguns casos (e épocas dentro deles), a língua pode ser ou não o componente de mais relevância na análise e consideração da etnicidade. Nesse momento histórico em Ipegue, a língua não é o fator principal, ou determinante, que mantém a comunidade Terena unida (GARCIA, 2007). A desterritorialização Terena e suas consequências na política de língua da comunidade Ipegue Os Terena são uma das etnias indígenas do Mato Grosso do Sul, juntamente com Chamacoco, Guarani-Kaiowá, Kadiwéu, Kamba, Kinikinau, Ofaié e Guató (ISA, 2009b). Atualmente os Terena são a quinta maior população indígena, com cerca de 16 mil indivíduos, em 2001 (ISA, 2009a), número muito pequeno considerando-se o número de não índios falantes da língua portuguesa no Brasil e no mundo. Vivem em um território descontínuo, fragmentado em pequenas “ilhas” cercadas por fazendas e espalhadas por sete municípios sul-matogrossenses: Miranda, Aquidauana, Anastácio, Dois Irmãos do Buriti, Sidrolândia, Nioaque e Rochedo. De acordo com o ISA 25(2009a), também há famílias terena vivendo em Porto Murtinho (na Terra Indígena Kadiweu), em Dourados (Terra Indígena Guarani) e no estado de São Paulo (Terra Indígena Araribá). Residem, ainda, em aldeias urbanas junto com indígenas de outras etnias como Marçal de Sousa e Xerogami, em Campo Grande, e, também, dispersos em bairros de cidades como Campo Grande, Aquidauana e outras. 25 Instituto socioambiental. 65 | P á g i n a Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano (Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no10 Outro local de moradia dos indígenas sul matogrossenses, entre eles os Terena, são os barracões das empresas onde trabalham. Nos últimos anos, um número significativamente grande, passa a maior parte do ano longe da família, ausente de sua comunidade, cortando cana-de-açúcar nas empresas sucroalcoleiras. São sucessivas temporadas de 70 dias ininterruptos, passando no máximo uma semana na comunidade. A população masculina jovem e adulta se submete a elas, na busca da sobrevivência física-alimentar de suas famílias. Essa realidade ocorre com praticamente toda a população indígena do estado e foi objeto de estudo desta pesquisadora ao analisar o deslocamento da língua na comunidade indígena de Ipegue (GARCIA, 2007). De acordo com os relatos dos índios (do Posto Indígena Taunay/Ipegue nos trabalhos de campo realizados em 2004) e de outros pesquisadores, utilizou-se dos braços dos indígenas, na construção do estado do Mato Grosso do Sul, para os trabalhos mais pesados de infra-estrutura (linha telegráfica, estrada de ferro noroeste do Brasil). Eles atuaram, ainda, nas empresas agropastoris (as fazendas) como peões, e, também, nos inúmeros ciclos de cultivos no estado, como a erva-mate, o algodão, o café e, mais recentemente, a cana-de-açúcar26 e o eucalipto. Os indígenas são as bases, o alicerce invisível na construção deste estado (CARVALHO, 1992; MOURA, 2001). Além dos tipos de cultivos, o que se intensificou com o passar das décadas foi a frequência de saída dos índios para o labor externo. Nas empresas de outrora, trabalhavam duas ou três vezes ao ano, havendo tempo para a vida na comunidade. Contudo, ressalta-se que atualmente os contratos são simultâneos e os jovens e adultos do sexo masculino passam a maior parte do tempo ausentes de suas comunidades e terras. Os fatores do macrocontexto – local, regional, nacional, internacional (GRENOBLE e WHALEY, 1998) – e do microcontexto no deslocamento da língua indígena Terena da comunidade de Ipegue foram estudados por Garcia (2007). Nesta comunidade, encontrou-se a língua Terena em processo avançado de deslocamento pela língua portuguesa. O uso externo da mão-de-obra indígena promove, com intensidade crescente, o esfacelamento das comunidades e o deslocamento da língua indígena. O início da vida econômica e laboral externa dos Terena ocorreu quando eles foram obrigados pelo antigo SPI (Serviço de Proteção ao Índio) a viver em pequenas glebas de terra (as reservas indígenas) a fim de desocupar espaço para as recém-formadas empresas agropecuárias; e, para a garantia de sua sobrevivência (através do salário), teve início a venda externa da mão-de-obra indígena para os “donos” das mesmas terras anteriormente ocupada pelos próprios Terena, com contratos de trabalho intermediados pelos Postos Indígenas. De agricultores, caçadores, auto-suficientes e autônomos tornaram-se trabalhadores braçais, pobres, dependentes e tutelados (OBERG, 1949). Embora não se conheça exatamente a localização dos Terena no período précolombiano, pelo relato de Sanchez Labrador 1910/1917 (apud OBERG, 1949), sabe-se que em 1767 eles estavam instalados ao longo do rio Paraguai, latitudes 22° a 19° S. Pressume-se que, em geral, habitavam essa área quando foram descobertos pelos espanhóis (OBERG, 26 O primeiro registro bibliográfico acerca de indígenas Terena trabalhando na agroindústria da cana-deaçúcar data da década de 1960 e foi encontrado pelo antropólogo Cardoso de Oliveira (1968), que relata a existência de um grupo Terena, da comunidade Passarinho, localizada no município de Miranda, trabalhando durante todo o ano nos canaviais da Usina Santo Antônio. 66 | P á g i n a Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano (Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no10 1949). A desterritorialização das sociedades indígenas desde o território paraguaio até o território brasileiro estava profundamente ligada à questão econômica, gerando conflitos entre os novos ocupantes e os indígenas (SCHUCH, 1995 apud VARGAS, 2003). Na historiografia desse período, encontram-se mais informações, pelo grupo genérico: Guaná. No século XVIII (ano de 1767), os Guaná estavam subdivididos em Tereno, Kinikinao, Layaná, Niguecactemic e Echoaladi (MÉTRAUX, 1946 apud Oberg, 1949). No final do século XVIII, moveram-se para o norte e instalaram-se próximo à atual Corumbá. Castelnau (1850-1859 apud OBERG, 1949) visitou um aldeamento próximo a Miranda e outro próximo a Corumbá e afirmou que os Terena chegados do Chaco estavam localizados em quatro vilas com uma população de cerca de três mil pessoas. As quatro tradicionais comunidades Terena eram Naxedaxe, Ipegue, Cachoeirinha e Grande, além de outros pequenos agrupamentos. Habitantes do chaco paraguaio (século XVI), os Terena, índios agricultores, explicam sua origem e existência através de um mito telúrico (ALTENFELDER-SILVA, [1946] 1976; OBERG, 1949). Viviam em grandes áreas e eram agricultores. Cada família extensa tinha uma maloca na praça residencial e cultivava em sistema de rodízio os campos arredores, inclusive nas vazantes dos rios onde construíam abrigos provisórios em razão da distância da praça residencial e da necessidade do cuidado das roças (ALTENFELDER-SILVA, [1946] 1976; OBERG, 1949). Eram organizados em três camadas: naati (chefes), wharerê-xané (povo) e kauti (estrangeiros, cativos de guerra) constituídas em duas metades (OLIVEIRA, 1968). Fugindo dos colonizadores da América espanhola, no século XVIII, começaram a habitar as terras atualmente brasileiras quando atravessaram o rio Paraguai, na altura de Corumbá (OBERG, 1949; VARGAS, 2003), seguindo sua dinâmica tradicional de vida por algum tempo. Contudo, a faixa de terra que ocuparam logo foi palco da Guerra do Paraguai (1864-1870). Esse novo evento marcou profundamente a vida dos Terena. Na guerra em que o Brasil lutou contra o Paraguai em disputa territorial, os Terena lutaram bravamente pelo lado do exército brasileiro, acreditando com isso garantir sua permanência futura naquelas terras. Sua perspicácia muito contribuiu com o exército. Segundo relato de trabalho de campo realizado em julho-agosto de 2004 (GARCIA, 2007), os índios ficaram nas montanhas e saíam dos seus esconderijos durante a noite, para o ataque, deslocando-se em pequenas canoas, andando de costas ao descer das mesmas, confundindo, assim, os paraguaios. Com suas roças emergenciais, acudiram generosamente a pequena população civil existente nos arredores de fortes (como o do município de Miranda) e que procurou abrigo nas serras, segundo a pesquisa documental de Vargas (2003). Várias perdas ocorreram e os índios atualmente mais idosos relatam que “essa terra custou o sangue de nossos avós” (GARCIA, 2007, p. 87). Em reconhecimento pela ajuda, receberam do exército, além de uniformes e patentes, documentos escritos nos quais se garantia a posse de, pelo menos, parte de suas terras. Contudo, pela fragilidade desses registros (em papel) e pelo antigo costume Terena de queimar todos os pertences e, às vezes, até a casa, ou mudar a porta de entrada, por ocasião da morte (OBERG, 1949), a evidência de propriedade da terra tornou-se mais incerta. Finda a Guerra, o governo brasileiro promoveu uma rápida ocupação da região. Os indígenas foram impedidos de retornar para suas terras, onde estavam suas casas, roças, cemitérios. Viveram os tempos da dispersão e, para sua sobrevivência física, tiveram que se 67 | P á g i n a Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano (Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no10 render ao trabalho nas propriedades dos novos senhores, migrantes aventureiros vindos de outras regiões do Brasil, ganhando as terras e, assim, tornando-se fazendeiros. Isso porque as terras antes ocupadas pelos indígenas foram grafadas nos mapas oficiais como “espaços em branco”, ou seja, terras devolutas que foram distribuídas para não índios pelos órgãos governamentais (MOURA, 2001; VARGAS, 2003). Dispersos, desabrigados, famintos, renderam-se a trabalhos realizados em condições desumanas, ocorridos nas fazendas onde foram profundamente explorados em razão do regime de cativeiro (SIMONIAN, 1988, p. 11 apud MOURA, 2001, p. 28). Contudo, o índio, na visão sociopolítica brasileira, ainda na atualidade é tratado como um latifundiário e como um empecilho ao “progresso” econômico. Contudo, diante dos conflitos e das inúmeras tentativas de reaverem suas terras, os indígenas formaram comissões para reivindicar, aos representantes do estado no local, o retorno à terra que anteriormente ocuparam, como atesta o seguinte fragmento de documento: [...] Acerca do índio da tribu Terena, de nome José Caetano [...] é que o dito índio com mais alguns da sua tribo, em número de 17, procurou-me para representar que era filho do fallecido Pedro Tavares, capitão da aldêa do Ipégue, no districto de Miranda, e seo substituto, que por ocasião da invasão paraguaya não só a sua tribu, como todas outras e mais habitantes do districto abandonarão os seos lares e retirarão-se para os montes e bosques, onde permanererão por 6 annos, que ultimamente voltando os moradores a reocuparem os seos domcílios, elles Terenas encontrarão a sua aldêa do Ipégue ocupada por Simplicio Tavares, por Antonio Maria Piche, o qual lhes obsta a repovoarem e labrarem suas antigas terras e de seos antepassados; pelo que vinhão pedir providencias para não serem esbulhados de suas propriedades das quais não podião desprender-se um outro índio da mesma tribu de nome Victorino, que farda-se como Alferes, e pertence a aldêa do Nachedache, distante da Ipegue uma legoa, fez-me igual reclamação.” (Doc. 1871, p. 79v 80 – Livro nº 191.18601873. APMT apud Vargas, 2003, p. 89, grifo nosso). Somente em 1910 criou-se o SPI, cuja intenção era gerir a política indigenista do Estado vigente e fazer com que os indígenas fossem pequenos produtores rurais capazes de se autosustentar. A visão político-econômica da época era a de assimilar os indígenas na economia local (HECK, 1996; OBERG, 1949), pois eles eram vistos como empecilhos ao progresso econômico, diante de um Estado que se baseava nos ideais positivistas. Após muito sangue, reivindicações, entraves e conflitos entre indígenas e os fazendeiros, reservaram-se para as populações indígenas Terena, inclusive de Ipegue, pequenas áreas de terra (LATA, 1902D, doc. Avulso, APMT apud VARGAS, 2003). Os índios eram vistos como obstáculos ao progresso. Com a extinção do SPI, criou-se a Fundação Nacional do Índio (Funai), em 1967, em pleno regime militar. Certidões negativas (da não existência de índios) sobre terras tradicionalmente ocupadas por índios foram concedidas a empresas agropecuárias cinco anos após a criação desta fundação, como afirmou o sertanista Cotrin Neto (1972 apud MOURA, 2001). Nesses tempos, a intenção era “transformar o Brasil em uma potência mundial”, de modo que só se aceitavam os indígenas “assimilados” (MOURA, 2001, p. 53), pois continuaram sendo vistos como barreiras ao desenvolvimento econômico e tecnológico, mantendo-se, portanto, na Funai, a mesma mentalidade empresarial da política indigenista do SPI (HECK, 1996). O Grupo de Estudos Indígenas Kurumim (1984) menciona um projeto elaborado pela Funai, em 1977, especificamente para o Posto Indígena Taunay/Ipegue. No projeto, nota-se a 68 | P á g i n a Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano (Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no10 prática de agenciar mão-de-obra indígena para o trabalho externo pelos Postos Indígenas da Funai: “segundo relatório da FUNAI de 1977 (Projetos Taunay/Ipegue), ‘metade da força de trabalho das duas áreas, através de contratos patrocinados pela FUNAI, está empregada em fazendas circunvizinhas, mediante diária mínima [...]’” (G.E.I. KURUMIM, 1984, p. 20, grifo nosso). Observa-se que, no projeto econômico brasileiro, indígenas como os Terena só eram bem-vindos se estivessem na base da pirâmide socioeconômica, fora de suas terras, integrados e fornecendo seus braços para enriquecer senhores não índios. Enfim, a aldeia passou a ser a fazenda do posto, uma reserva de mão-de-obra que foi sucessivamente muito bem usada e abusada, por seu preço tão reduzido. Não ao acaso, as atuais empresas sucroalcoleiras instalaram-se no estado onde há a segunda maior população indígena do Brasil, trabalhadores que, em sua maioria, não sabem reivindicar seus mínimos direitos trabalhistas (GEI KURUMIM, 1984). Com a dependência do salário externo, destruiuse a antiga economia que girava em torno da família extensa e passou-se a focar a família nuclear (OBERG, 1949). A proximidade com a ferrovia e a estação Taunay promoveu impactos nas suas crenças e costumes (OBERG, 1949; OLIVEIRA, 1957), pois ali se instalaram comerciantes que os levaram a ter necessidade de consumir produtos como sal, arroz, erva-mate, ferramentas, bebidas alcoólicas etc. Assim, a fim de adquirirem esses produtos, os indígenas passaram a depender do dinheiro vindo do trabalho externo. O governo militar do general Geisel ainda instalou energia elétrica na reserva indígena Taunay/Ipegue, visando a fazer da população Terena um modelo do que se desejava fazer em termos de integração dos demais indígenas à sociedade nacional. Assim, cedo as famílias passaram a ter contas a pagar. Nas sedes dos postos, havia professores de ofícios manuais como ferreiro, seladeiro, sapateiro etc. Também cedo houve a presença de missionários protestantes e católicos com sua oferta educacional dentro das diretrizes da política oficial de integração cultural e linguística. Na pequena ilha de terra reservada aos Terena do município de Aquidauana – insuficiente para a continuidade da dinâmica cultural em que viviam anteriormente – os índios sofrem pela escassez de água até mesmo para as necessidades mais elementares, como esta pesquisadora pôde presenciar no ano de 2007, conforme representação protocolada junto à Procuradoria da República no Estado de Mato Grosso do Sul em 19 de novembro de 2007. Contudo, no município há belos rios que atraem até turistas, inclusive para a pesca esportiva no pantanal. Segundo dados de Oliveira (2008), atualmente há no município de Aquidauana 46 grandes imóveis (latifúndios). Eles ocupam uma área de duzentos e cinquenta e oito mil, cento e nove (258.109,1) hectares improdutivos (OLIVEIRA. 2008). Todo esse processo de desterritorialização culminou na realidade recente. A terra indígena Taunay/Ipegue, nos tempos dos estudos de Oliveira (1968, p. 43-44), tinham sete mil e duzentos (7.200) hectares limitando-se “com terras do Coronel Estêvão Alves Corrêa, ao Norte e ao Nascente, e de Francisco Ferreira Mendes, ao Sul e ao Poente, e a Leste com terras que foram de João Batista da Fonseca”. Em 1995, com uma população de 3.872 pessoas, essas terras tinham oficialmente exatos 6.548,82 hectares (FUNAI, Administração Regional de Campo Grande, MS, 1995 apud Carvalho, 1996), o que representa uma ocupação de 1,69 hectares por pessoa na reserva Taunay/Ipegue 1995. Apenas três décadas depois diminuiu ainda mais. Segundo os relatos dos índios, tal fato ocorre nos limites da reserva com as fazendas onde os fazendeiros avançam com suas cercas, alguns deles chegando a eletrificá-las 69 | P á g i n a Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano (Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no10 para impedir qualquer acesso dos índios a aguadas ou a coletas de frutas nativas como a guavira. As terras indígenas, restritas em sua extensão, limitam-se basicamente ao local de moradia, ficando fora delas o acesso aos rios, assim como locais para rodízios de roças, imprescindíveis para os Terena retomarem a dinâmica ecológica, cultural e sua forma de vida auto-suficiente e autônoma anterior (OBERG, 1949). Essa dinâmica foi esfacelada com as inúmeras medidas tomadas. Eram gerenciados até no ir e vir pelos “chefes de posto”, que escolhiam para ser “capitães” aqueles com maior destaque no uso da língua portuguesa, dentre a camada popular (wharerê-xané). Eram, assim, escolhidos pela autoridade externa (o chefe do Posto Indígena) e cada um deles tornava-se o porta-voz de seu grupo. Com a alta densidade demográfica de Ipegue, muitas famílias moradoras de áreas mais centrais têm para cultivar somente a área do pequeno quintal, que vai diminuindo à medida que este vai sendo ocupado por novas casas da descendência indígena. Mesmo com uma terra reduzidíssima, algumas famílias (cerca de dez por cento do total), coincidentemente aquelas em que se percebe uma política de língua familiar voltada para a manutenção da língua indígena, lutam por cultivá-la a fim de não se separarem pelo trabalho externo. Contudo, a dificuldade é ainda maior do que a do pequeno produtor não índio. A terra, sendo pública, de usufruto do indígena, não pode ser dada como garantia em um financiamento agrícola. Alguns tentam plantar mandioca para vender o excedente externamente. Todavia, o reduzido valor oferecido pela caixa de mandioca colhida (perecível) é insuficiente para o indígena arcar com todos os custos das diferentes fases do cultivo, conforme Garcia (2007) observou em 2004. Outras famílias – cerca de quarenta por cento – complementam a dieta com alimentos cultivados nos quintais (excetuam-se as árvores frutíferas comuns em todos os quintais). Entre os agricultores indígenas, o mais praticado é a diversidade de culturas: abóbora, milho, melancia, mandioca, milho, batata, banana, feijão-de-corda, com o uso mínimo de maquinário, e nenhum uso de produtos químicos para o controle de pragas ou aumento artificial da fertilidade do solo. Porém, os Terena queixam-se dos ataques de animais silvestres que, diante da escassez de alimentos, atacam as roças. Ipegue está na divisa da reserva e parte das terras vizinhas são ocupadas por pastagens e bovinos que, além de desalojarem também os animais silvestres e a vegetação nativa, prejudicam o ciclo das chuvas. Conforme constatado por Garcia (2007), em Ipegue, no ano de 2004, praticamente toda a população masculina indígena economicamente ativa servilmente saía para o trabalho externo e para realizar atividades braçais, sobretudo no corte de cana-de-açúcar nas destilarias sucroalcooleiras, fixando-se permanentemente na reserva somente após sérios prejuízos na saúde, a diminuição do vigor físico ou mesmo a chegada da idade para a aposentadoria. Isso acarreta grandes prejuízos para a vida das comunidades, inclusive na transmissão da cultura, e influi na política de língua das famílias e da comunidade, pois é crescente a proporção de indígenas em tal tipo de trabalho. Entre os jovens, ocorre também um maior distanciamento do que é peculiar ao seu povo, em função da não vivência cultural na comunidade. De acordo com um jovem Terena entrevistado, “[s]air para trabalhar fora deixa a gente distante da cultura. A gente é obrigado a sair por dinheiro e deixar o povo e a cultura pra trás. Em Ipegue, se vai tentar viver da terra, na hora de vender a mandioca, pagam pela ‘caixona’ 70 | P á g i n a Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano (Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no10 de mandioca só três reais” (GARCIA, 2007, p. 102). Esse entrevistado conclui que é obrigado a sair para trabalhar porque não tem escolha. Outros também expressaram a vontade de parar de ir para a destilaria, comentando que prefeririam ficar na comunidade se tivessem trabalho (entende-se remunerado ou passível de se obter recursos financeiros para a subsistência). O trabalho inexistente a que se referem passa pela questão da falta de terra para um labor coletivo, diversificado, peculiar ao povo e à cultura Terena. No que diz respeito às línguas em si, como já explicado anteriormente, as línguas indígenas são muito sensíveis ao contato com outra língua e às mudanças, dentre elas as territoriais, acompanhadas por suas consequências. Contudo, ainda são poucos os estudos dessa natureza na língua Terena e na maioria das línguas indígenas brasileiras. Algumas línguas já contam com equipes de linguistas. Um exemplo é , estudada por pesquisadores do projeto LIBA. Dela já sea língua Xerente-Akwe conhecem vários fatos da gramática e léxico, inclusive os que mudaram nas gerações mais jovens em razão do contato e também de interferências ambientais que afetaram suas terras (BRAGGIO, 2005). Quanto à língua Terena, no artigo “Tendências de ordem lexical da aculturação linguística em Terêna”, Kietzman (1958) relaciona itens lexicais que caíram em desuso ou até se perderam em razão de as novas gerações não mais experimentarem os fatos culturais que os sustentavam bem como por não mais terem acesso a ambientes físicos em que os mesmos existiam e aconteciam. É o caso, por exemplo, das palavras yu’ku, oroi’ti e nekokoti, que significam, respectivamente: uma fogueira para se cozinhar perto ou dentro de uma casa; uma fogueira ardendo num campo, mas visível para o falante; uma fogueira distante, fora da vista, mas perceptível pelo seu brilho, como acontece à noite. Conforme esse autor, os dois últimos termos caíram em desuso, ficando apenas o primeiro, com o sentido geral de fogueira. Entre os Terena, de acordo com os registros de outros pesquisadores, a visão cosmológica identificava uma ema (kipaé) nos céus. Uma de suas danças se chama Kipaé (dança da ema), que ocorria na época em que as plêiades atingiam seu ponto mais alto no céu e atualmente acontece em forma de apresentação no dia do índio. O costume era de se confeccionar as vestimentas com as penas desse animal. Contudo, isso já não é possível uma vez que esses animais já não estão disponíveis e é comum vê-los com saias feitas de vegetais. Inúmeros outros exemplos poderiam ser citados a respeito de mudanças materiais entre os Terena, tais como o telhado de capim, que passa a ser feito de barro ou amianto, e a flauta, anteriormente de madeira e agora de plástico, etc. Junto com a terra, o lugar geográfico e espacial ocupado por um povo, situa-se uma série de referências sobre sua língua, sua cultura, sua visão de mundo. Logo, qualquer alteração na terra afeta profundamente a língua, que, como vemos, encontra-se ameaçada de extinção por ser muito sensível a modificações (BRAGGIO, 2005). Assim, a conservação terra é fator preponderante para a manutenção da língua. Considerando o conceito de bilinguismo de Grosjean (1994), em certas esferas do conhecimento o falante prefere o uso de uma língua, em outras esferas uma outra língua. Por exemplo, um indígena pode falar sobre educação escolar ou comércio na língua portuguesa, mas ao falar sobre aspectos mágico-religiosos, utiliza-se da língua em que foram adquiridos e praticam esses conhecimentos. O mesmo ocorre com relação a sentimentos (xingamentos etc) (GROSJEAN, 1982; ROMAINE, 1995). 71 | P á g i n a Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano (Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no10 A preservação das línguas minoritárias é um direito humano, acima de tudo. Como promulga a Declaración Universal de los Derechos Lingüísticos (1996, p. 14), o território de um povo não é apenas seu espaço geográfico, mas é também um espaço social e funcional indispensável ao pleno desenvolvimento da língua. Para Hinton (2001), a morte de uma língua é resultado da opressão e supressão do direito dos povos indígenas, que abandonam suas terras e seu modo de vida tradicional coagidos pelas forças econômicas nacionais e mundiais. Assim, a manutenção da terra é parte fundamental na revitalização das línguas minoritárias. Conclusão As línguas ameaçadas são espécies muito sensíveis a mudanças. Fatos relativos ao lugar de existência de seus falantes no mundo e às suas terras exercem impacto em seus sistemas econômico, social, cosmológico etc., promovendo mudanças na política de língua das comunidades e deixando suas marcas na estrutura da língua. Logo, à medida que as terras se encolhem, os membros se atrofiam; as mutilações territoriais por que passam os povos minoritários são também mutilações culturais e mutilações linguísticas em um corpo que fica cada vez mais moribundo. Assim, um povo indígena sem terra vive um etnocídio e é comparado também a um cardume sem rio. Para a sobrevivência das línguas minoritárias, é fundamental atentar-se à questão agrária. Pela perspectiva ecológica, o relacionamento (sentimentos, pensamentos) dos povos com o seu ambiente, enfim, o bem-estar físico de uma comunidade, é a principal prioridade. Há importantes relações ético-ecológicas entre a preservação da diversidade de flora e fauna e a manutenção da diversidade linguística e etnocultural. E como fica isso em reservas indígenas como Taunay/Ipegue, reserva de mão-de-obra barata, minúscula e de crescente densidade demográfica, onde é impossível o auto-sustento e a saída é o trabalho assalariado externo? Haverá interesse de possibilitar a sua preservação? Haverá interesse em ampliá-la, uma vez que as terras indígenas são motivo da ambição e cobiça daqueles que visam a ampliação das fronteiras econômicas e o lucro individual e imediato? Enfim, o estudo das línguas indígenas e o impacto exercido nas mesmas em decorrência das mudanças agrárias, ambientais, é um tema incipiente, mas de extrema relevância e merecedor de um volume maior de reflexões e considerações, inclusive com estudos verticalizados e com a análise desse fenômeno nas estruturas linguísticas. Referências ALMEIDA, R. A. (org). A questão agrária em Mato Grosso do Sul: uma visão multidisciplinar. Campo Grande: Ed. UFMS, 2008. ALTHENFELDER-SILVA, F. Religião Terena. In: Schaden, E. Leituras de etnologia brasileira. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1976. p. 268-276. AVELINO JÚNIOR, F. J. A geografia dos conflitos pela terra em Mato Grosso do Sul. In: Almeida, R. A. de. (Org.) A questão agrária em Mato Grosso do Sul: uma visão multidisciplinar. Campo Grande: Ed. 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Guavira no10 OPINIÃO DE RAÇA: AS ESTRATÉGIAS ARGUMENTATIVAS NO GÊNERO TEXTUAL “ARTIGO DE OPINIÃO” DA REVISTA RAÇA BRASIL Júnia Diniz Focas (UFMG)27 Mirian Lúcia Brandão Mendes (PG-UFMG)28 Raquel Lima de Abreu Aoki (PG-UFMG)29 RESUMO: Este trabalho tem por objetivo principal investigar as estratégias argumentativas presentes no gênero textual artigo de opinião. O artigo selecionado para análise foi escrito por Maurício Pestana e publicado na seção “Opinião de Raça” da revista Raça Brasil. Inicialmente, este trabalho cuida de apresentar alguns pressupostos teóricos sobre argumentação, gênero textual artigo de opinião, dialogismo e polifonia, com base nos conceitos da Análise do Discurso. Em seguida, pretende identificar as principais estratégias discursivas e argumentativas utilizadas pelo autor na construção dos enunciados do gênero textual artigo de opinião. Estas estratégias têm a finalidade de persuadir e convencer um público específico: o leitor/interlocutor da revista Raça Brasil. Palavras-chave: Argumentação; Dialogismo; Polifonia ABSTRACT: This study aims mainly to investigate the argumentative strategies present in the textual genre opinion article. The article selected for analysis was written by Maurício Pestana and published in the section "Opinião de Raça” of the magazine Raça Brasil. Initially, the work presents some theoretical assumptions about argumentation, the textual genre opinion article, dialogism and polyphony, based on the concepts of the Discourse Analysis. Following that, it makes an attempt to identify key discursive and argumentative strategies used by the author in the construction of statements in the opinion article genre. Such strategies are intended to persuade and convince a specific audience: the reader/interlocutor of the magazine Raça Brasil. Key words: Argumentation; Dialogism; Polyphony Introdução O discurso como processo de construção social pode ser considerado uma forma de ação no mundo. É por intermédio da linguagem que as pessoas agem no mundo, isto é, tentam fazer circular seus discursos e torná-los legítimos perante o próprio grupo e a sociedade. As construções discursivas provocam mudanças no imaginário social, nos processos de construção de identidades e nas relações de poder que se estabelecem na prática. A revista Raça Brasil, em específico, é dirigida à comunidade negra e desenvolve o seu discurso em função do seu público-alvo. Entretanto, para analisar um discurso que se dirige explicitamente ao negro brasileiro é preciso considerar as condições de produção desse discurso. Desse modo, o contexto sócio-histórico é um elemento importante, pois delineia uma discursividade acerca do negro e de suas formas de organização e resistência no Brasil. É fundamental esclarecer também que o discurso é histórico, processual e circunscrito a discursos já-ditos, isto é, retoma outros processos discursivos. Os textos históricos sobre o negro no Brasil sempre nos remetem ao período da escravidão. Mas, no Brasil, o escravo não foi um simples componente passivo que apenas observava a história. Várias foram as formas de resistência do escravo negro ao regime escravagista. Entre essas formas de resistência, 27 Docente do Programa de Pós-graduação em Letras da Universidade Federal de Minas Gerais, no Departamento de Letras Vernáculas, e doutora em Linguística pela Universidade Estadual de Campinas. 28 Mestranda em Estudos Linguísticos da Universidade Federal de Minas Gerais. 29 Mestranda em Estudos Linguísticos da Universidade Federal de Minas Gerais 77 | P á g i n a Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano (Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no10 merece destaque especial a formação de Quilombos. Eles eram um lugar de refúgio, onde os negros que conseguiam fugir se juntavam com outros também fugitivos. Na história dos negros brasileiros, além dos Quilombos, primeira forma de resistência contra a condição de subjugado, encontraremos muitas outras formas de manifestação e organização contra o racismo e a imprensa negra é uma delas. Essa imprensa especializada refletia os anseios e as reivindicações da comunidade negra. Os primeiros jornais dirigidos ao público negro foram: O Melick (1915), O Clarim as Alvorada (1924) e algumas revistas como Senzala, Ébano, Níger e, nos tempos atuais, a Raça Brasil que surgiu em 1996. Na revista Raça Brasil, Maurício Pestana escreve a seção “Opinião de Raça”, abordando, numa perspectiva crítica, as questões relacionadas à discriminação racial. Essa seção apresenta mensalmente um artigo de opinião no qual o autor defende os interesses dos negros brasileiros. A opção de trabalhar com o gênero “artigo de opinião” em uma revista que se dirige ao público negro se deu por ser um gênero que pode exercer influência ideológica em grupos de uma sociedade. Essa possível influência se dá através das estratégias argumentativas que o autor do artigo de opinião constrói no seu discurso. A argumentação A história da argumentação tem sua origem a partir do sistema retórico nos primeiros anos do século V. A.C. Nesta época, os conflitos de interesses eram resolvidos prioritariamente pelo uso da palavra. Utilizando-se da linguagem como elemento de persuasão, a argumentação ou “arte oratória” apresentava-se como solução para a resolução dos dilemas. Considerações mais recentes a respeito da argumentação admitem que a língua em si possui uma orientação argumentativa. Segundo Ducrot (1987), a argumentatividade está inscrita na própria língua, ou seja, nas frases. Isso porque o uso da linguagem é essencialmente argumentativo, pois temos sempre objetivos, fins a serem atingidos, efeitos que pretendemos causar, ou seja, pretendemos atuar sobre o outro para induzi-lo a determinadas conclusões. A nova retórica retratada por Chaïm Perelman (1996), no livro Tratado da Argumentação também traz, na atualidade, uma análise dos aspectos particulares da argumentação, dando ênfase ao orador e ao auditório. Segundo Perelman (1996, p. 6), argumentar é um ato que visa provocar em um auditório, por meio de um enunciado ou de um conjunto de enunciados, uma relativa adesão a um outro enunciado (tese, conclusão ou inferência) deduzido a partir do primeiro. Perelman (1996, p. 16), esclarece que para que haja argumentação, é necessário que seja estabelecido o “contato entre os espíritos”, ou seja, o contato entre o orador e o seu auditório. Dessa forma, é essencial para o êxito da argumentação que o orador preocupe-se com as técnicas discursivas que permitem provocar ou aumentar a adesão dos espíritos às teses que lhes são apresentadas. É em função de um auditório que qualquer argumentação se desenvolve. Perelman (1996, p. 22) define “auditório” como o “conjunto daqueles que o orador quer influenciar com sua argumentação. Cada orador pensa, mais ou menos consciente, naqueles que procura persuadir e que constituem o auditório ao qual se dirigem seus discursos.” O auditório da revista Raça Brasil que, por sua vez, é dirigida ao segmento negro da sociedade, é composto pelos leitores negros ou afrodescendentes. Assim, se o orador para influenciar um auditório deve adaptar-se a ele, conviver, manter relações sociais, 78 | P á g i n a Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano (Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no10 consequentemente o seu discurso irá refletir os posicionamentos, crenças e expectativas do auditório ao qual é dirigido, ou seja, o público negro. Artigo de opinião, dialogismo e polifonia O estudo dos gêneros discursivos, desde a Antiguidade greco-latina, vem sendo uma temática constante entre os estudiosos da linguagem. No livro, Estética da Criação Verbal Bakhtin (2003, p. 262) inicia seus trabalhos sobre gêneros relacionando-os ao uso da linguagem. É através da linguagem que se expressam ideias, pensamentos e intenções que se materializam em forma de enunciados. O autor define os gêneros do discurso como sendo tipos relativamente estáveis de enunciados, e os caracteriza em função do conteúdo temático (assunto), estrutura composicional (organização do texto) e estilo (linguagem). Bakhtin (2003, p. 268) considera também que os gêneros “refletem de modo mais imediato, preciso e flexível todas as mudanças que transcorrem na vida social.” Nas palavras do autor: Esses enunciados refletem as condições específicas e as finalidades de cada referido campo não só por seu conteúdo (temático) e pelo estilo da linguagem, ou seja, pela seleção dos recursos lexicais, fraseológicos e gramaticais da língua mas, acima de tudo, por sua construção composicional. Todos esses três elementos – o conteúdo temático, o estilo, a construção composicional estão indissoluvelmente ligados no todo do enunciado e são igualmente determinados pela especificidade de um determinado campo da comunicação. Evidentemente, cada enunciado particular é individual, mas cada campo de utilização da língua elabora seus tipos relativamente estáveis de enunciados, os quais denominamos gêneros do discurso. A ideia bakhtiniana de que os gêneros são influenciados por fenômenos sociais e são dependentes da situação comunicativa também é encontrada na hipótese de Charaudeau (2004, p. 16) que considera que: “todo domínio de prática social tende a regular as trocas, e por consequência, a instaurar as regularidades discursivas”. Para Charaudeau (2004) as características dos discursos dependem de suas condições de produção situacionais em que são enunciados, ou seja, os gêneros do discurso são subordinados pela situação de comunicação ao ambiente físico e social do ato de comunicação. Segundo o autor, no ato de comunicação o sujeito falante ocupa o lugar central em relação ao seu interlocutor. Os componentes do ato de comunicação são: a situação de comunicação, os modos de organização do discurso e o texto. Charaudeau (2008, p. 74) considera que os gêneros são categorias de língua ordenadas em um dos componentes do ato de linguagem, ou seja, nos modos de organização do discurso. Esses modos de organização são divididos em quatro grupos: o enunciativo, o descritivo, o narrativo e o argumentativo. O “artigo de opinião”, objeto de estudo deste trabalho, pertence à ordem do argumentar, portanto se insere no modo de organização argumentativo. Argumentar é uma atividade que inclui numerosos procedimentos que dependem da situação e da finalidade persuasiva. A qualidade da argumentação é essencial para obter a adesão daqueles a quem se dirige, por este motivo nos artigos de opinião é frequente o uso de mecanismos linguísticos como operadores argumentativos, qualificadores, modalizadores, conectivos, organizadores textuais, citações, ironia, asserções, entre outros. Assim como Bakhtin (2003) e Charaudeau (2008), outro autor que aborda a questão do gênero numa perspectiva histórica e social é Maingueneau (2008). O autor lembra que os discursos se modificam ao longo do tempo e refletem as características da própria sociedade. 79 | P á g i n a Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano (Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no10 Desse modo, é possível analisar uma sociedade pelos discursos que ela produz, uma vez que a materialidade desses discursos origina-se de sujeitos posicionados em um tempo e em um espaço condicionados social e historicamente. Maingueneau (2008, p. 65) esclarece que a “finalidade reconhecida” é uma das condições importantes para o êxito de uma atividade. Nas palavras do autor: Todo gênero de discurso visa a um certo tipo de modificação da situação da qual participa. Essa finalidade se define ao se responder à questão implícita: “Estamos aqui para dizer ou fazer o que?”. A determinação correta dessa finalidade é indispensável para que o destinatário possa ter um comportamento adequado ao gênero de discurso utilizado. O artigo de opinião é um gênero da esfera jornalística presente em seções de opinião de revistas, jornais impressos ou virtuais. A tarefa do autor deste gênero (jornalista, colaborador ou convidado de renome) é apresentar uma opinião, sustentar ou refutar opiniões anteriores com base no seu conhecimento e na leitura do real, a fim convencer o leitor através da argumentação. O leitor ou interlocutor, elemento-chave na constituição do gênero, poderá aceitar as argumentações apresentadas no texto e valorizar as ideias do autor ou refutá-las, mantendo a sua opinião sobre um determinado assunto. Esta situação de produção e interpretação dos enunciados do artigo de opinião indica uma relação dialógica entre os interlocutores deste gênero. Dialogismo Para falar de diálogo, recorremos a Bakhtin. Segundo Bakhtin (1997), o discurso é dialógico pelo fato de que ele se constrói entre, pelo menos, dois interlocutores que, por sua vez, são seres sociais que estabelecem relações com outros discursos que configuram uma sociedade, uma comunidade, uma cultura. A linguagem é, portanto, uma atividade social essencialmente dialógica realizada com vistas à realização de determinados fins. Porém, há uma outra dimensão do sentido de que não o reduz às relações entre os sujeitos nos processos discursivos, mas que se refere ao permanente diálogo entre os diversos discursos que configuram uma sociedade. Esta é a dimensão que nos permite considerar o dialogismo como o princípio que determina a natureza interdiscursiva da linguagem. A interdiscursividade é um recurso argumentativo utilizado com frequência nos artigos de opinião da revista “Raça Brasil” Estreitamente ligada ao dialogismo, outra noção bakhtiniana importante é a polifonia, que nos leva a perceber a impossibilidade de contar com as palavras como se fossem signos neutros, transparentes, já que elas são afetadas pelos conflitos históricos e sociais que sofrem os falantes de uma língua e, por isso, permanecem impregnadas de suas vozes, de seus valores, de seus desejos. Assim, a polifonia se refere às outras vozes que condicionam o discurso do sujeito. Polifonia O termo polifonia, conforme Ducrot (1987), é empregado para caracterizar um texto que deixa entrever muitas vozes, por oposição aos textos monofônicos, que escondem os diálogos que os constituem. A monofonia e a polifonia são efeitos de sentido decorrentes de procedimentos discursivos que se utilizam em textos dialógicos. 80 | P á g i n a Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano (Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no10 Ducrot (1987) postula que há polifonia quando for possível distinguir em uma enunciação dois tipos de personagens, os enunciadores e os locutores. Segundo ele, por “locutor” entende-se um ser que, no enunciado, é apresentado como seu responsável. Trata-se de uma ficção discursiva que não coincide necessariamente com o produtor físico do enunciado. Já os enunciadores, para Ducrot (1987), são os seres cujas vozes estão presentes na enunciação sem que lhes possa, entretanto, ser atribuídas palavras precisas: efetivamente eles não falam, mas a enunciação permite expressar seu ponto de vista. A diferenciação entre locutor e ser empírico nos remete à polifonia. Dominique Maingueneau (2002), em seu trabalho Novas tendências em Análise do Discurso, utiliza conceitos de Ducrot, no que diz respeito à heterogeneidade enunciativa, sem, contudo, deixar de alertar que essa não é a única abordagem linguística que considera os fatos de polifonia. Mas é Authier-Revuz (1982) que propõe utilizar o termo heterogeneidade como forma de distinguir a presença do outro e oferece uma diferenciação importante de ser destacada: a) a heterogeneidade constitutiva do discurso (Outro), que não é marcada em superfície, mas que a AD pode definir, formulando hipóteses através do interdiscurso. b) a heterogeneidade mostrada, que indica a presença do outro no discurso do locutor. Este tipo de heterogeneidade se desdobra em duas modalidades: a marcada, da ordem da enunciação e visível na materialidade linguística (o discurso relatado direto e o discurso relatado indireto, as formas de conotação autonímica: por meio de aspas, do itálico, de entonações específicas, do comentário, da glosa, do ajustamento etc.) e a não marcada, identificável no nível do pré-consciente, com base na intertextualidade. As formas não marcadas são reconhecidas por seus efeitos polifônicos (discurso indireto livre, a ironia, a alusão, a imitação, pastiche, paródia etc). Na revista Raça Brasil, objeto de estudo deste trabalho, o “outro” pode ser considerado o leitor negro (interlocutor) e o “Outro” é a discursividade (historicidade concebida sob a forma de interdiscurso). A revista Raça, o se textualizar, ao falar para o leitor negro, se inscreve em uma posição de autoria, de um “eu” organizado imaginariamente e que se faz presente em todas as seções da revista. Quanto ao conteúdo temático, o gênero em questão normalmente apresenta questões polêmicas de relevância social, como a racial, por exemplo, que afeta o segmento negro da nossa sociedade. O racismo é um problema global da sociedade brasileira. Colocar em discussão a questão racial é uma tarefa complexa, pois ela é polêmica e conflituosa. O artigo de opinião da seção “Opinião de Raça” da revista Raça Brasil orienta-se em direção ao interlocutor, o público negro. Nele, o autor aborda, de forma direta, a questão racial, cobra atitudes diante da desigualdade social e econômica entre negros e brancos, além de destacar a importância do negro, de sua cultura e de seu trabalho para a sociedade brasileira. Opinião de Raça: estratégias argumentativas A partir da exposição teórica já realizada, serão analisados fragmentos de um artigo de opinião da seção “Opinião de Raça” publicado na edição nº 129, no dia 02/03/2009, na revista Raça Brasil. O artigo em pauta foi escrito por Maurício Pestana, jornalista, cartunista e presidente do Conselho Editorial da referida revista. Eis o artigo: De um lado é este carnaval... Do outro, a fome total! A cultura, em um mundo globalizado como o de hoje, é setor estratégico em vários países. Prova disso são os relatórios do Banco Mundial indicando que 7% do PIB do planeta provêm deste produto. A 81 | P á g i n a Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano (Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no10 América Latina e a África, apesar da diversidade cultural que possuem, não somam 4% da movimentação desse mercado em que apenas cinco paises controlam 60% de toda a produção. Somente as empresas de Hollywood possuem 80% das salas de cinemas de todo o planeta. No Brasil, segundo os últimos dados do IBGE, a indústria cultural conta com mais de 269 mil empresas e emprega 1, 4 milhão de pessoas (sem contar a economia informal). Em um país onde a cultura negra é patente, estando presente em todos os aspectos, como música, culinária, religião, artes visuais, moda, dança..., torna-se praticamente impossível pensar no Brasil sem reportar à sua influência. E qual a contrapartida econômica que esta contribuição tem dado a nós negros? Nas vésperas de realizar o maior evento cultural do país, o Carnaval, ressurge a velha história: quando se trata de setores estratégicos e lucrativos, mesmo sendo nós os protagonistas da festa, não somos nós que levamos a maior parte do bolo. Das grandes escolas de sambas, concentradas principalmente no eixo Rio-São Paulo, a maioria não é mais comandada por famílias negras como no passado, quando o carnaval não era um negócio lucrativo dos milhões de dólares dos dias atuais. Se focalizarmos a cidade onde a cultura negra é soberana - onde mais de 80% de sua população é negra - o retrato será igualmente desolador e a história se repete: os que mais lucram no carnaval de Salvador não são os negros. Registrado no Guiness Book como a maior festa popular do mundo, o Carnaval soteropolitano, neste ano, tem investimentos astronômicos de empresas que vão de grandes cervejarias à telefonia móvel, passando pelas de cartões de créditos, entre outros gigantes financeiros. A cobertura jornalística se fará em180 paises, através de 24 jornais (oito internacionais e 17 nacionais), 37 emissoras de televisão estrangeiras. Estima-se que mais de dois milhões de pessoas circularão durante a festa, (das quais 450 mil são turistas brasileiros e do exterior) gerando uma receita de US$ 87.000.000, segundo as Secretarias de Cultura e Turismo da Bahia (Bahiatursa). Mas não são necessárias estatísticas para demonstrar a nítida desigualdade! O protagonismo negro apresenta-se maciçamente na outra ponta da economia, a dos trabalhos informais, como cordeiros de blocos, ambulantes de acarajés, picolés, venda de coco na praia, catadores de latinhas... mostrando a verdadeira face do apartheid social e racial na principal cidade negra do país [...] (Revista Raça BrasilL, n. 129, março, 2009) A leitura desse artigo de opinião nos permite constatar que se trata de um fragmento argumentativo. Nele, a argumentação é orientada no sentido de conduzir o leitor a identificar a relação de desigualdade social entre negros e brancos no Brasil. Na produção dos enunciados, o autor utiliza alguns recursos linguísticos para construir sua argumentação. Logo no primeiro parágrafo, ele faz uma asserção que revela, em termos quantitativos, a participação da indústria cultural no PIB do planeta. A partir desta afirmação, o autor desenvolve a introdução da sua argumentação. O segundo parágrafo traz na textualidade argumentos que levam o “outro” (leitor negro) a se reconhecer como elemento importante na história cultural do Brasil. Efeito este visível na formulação: “Em um país onde a cultura negra é patente, estando presente em todos os aspectos, música culinária, religião, arte visuais, moda, dança..., torna-se praticamente impossível pensar no Brasil sem reportar à sua influência.” Neste fragmento, é possível perceber que há uma chamada para a consciência de que a diversidade cultural dos afrodescendentes deve ser valorizada, e não desqualificada. A ocorrência de alguns itens lexicais empregados na construção dos enunciados merece atenção especial, como do pronome “nós” e do advérbio de negação “não”. No enunciado “quando se trata de setores estratégicos e lucrativos, mesmo sendo nós os 82 | P á g i n a Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano (Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no10 protagonistas da festa, não somos nós que levamos a maior parte do bolo”, a ocorrência do pronome “nós” é inclusiva e identitária, pois envolve o enunciador e o leitor como parceiros que abraçam a mesma causa. Já o advérbio de negação “não”, no mesmo enunciado, é um elemento polifônico utilizado como estratégia argumentativa pois, segundo Ducrot (1972), coloca em evidência o pressuposto de que há uma outra voz que diria: “a maioria é comandada por famílias negras como no passado”, “[...] os que mais lucram no carnaval de Salvador são os negros”. Logo, se há uma negativa, é possível pressupor que também há uma afirmativa. Na análise deste trecho, é preciso considerar também que a construção “mesmo sendo” utilizada pelo autor pode ser substituída pelo operador argumentativo “apesar de”. Dessa forma, o autor introduz o argumento que afirma serem os negros a matriz da festa carnavalesca no Brasil, “apesar de” os organizadores dessa festa de massa não reconhecerem essa verdade e os colocarem na posição secundária na divisão dos lucros. Partindo para o aspecto ideológico e seguindo a argumentação criada pelo autor ao longo do texto é possível afirmar que há uma relação opositiva de inclusão/exclusão, negação/afirmação entre negros e brancos no Brasil. Esta relação opositiva no artigo de opinião da revista Raça Brasil pode ser exemplificada nas palavras “negro” e “branco” que também fazem alusão ao “pobre” e ao “rico”, ao “excluído” e ao “privilegiado”, como pode ser facilmente constatado já no título do artigo: “De um lado é carnaval... Do outro, a fome total!” Para reforçar a tese defendida no artigo, ou seja, a inclusão e valorização do trabalhador negro na divisão dos lucros das festas carnavalescas, o autor recorre ao discurso histórico relembrando a importante contribuição cultural dos afrodescendentes na religião, na música, na dança e na alimentação. Neste argumento, o autor reforça o indivíduo negro como protagonista das festas carnavalescas, mas secundário na divisão dos lucros. A última análise deste trabalho destina-se à forma como o autor aborda a questão da discriminação do trabalhador negro nas festas carnavalescas. No artigo de opinião da revista Raça Brasil, é possível observar que o autor não se mostra apenas como um julgador dos fatos, mas sim como um profissional que acompanha os fatos e coloca os dados à disposição do seu interlocutor, na intenção de que a sua tese se torne mais verdadeira. Através dos enunciados, o autor mantém relações dialógicas com o seu interlocutor. Os fatos e os dados presentes nos enunciados são recursos argumentativos que ele utiliza para explicitar a questão, sustentar a sua tese e levar o interlocutor a refletir sobre a necessidade da construção de uma democracia racial. Considerações finais Bakhtin (2003), ao falar de gênero em seus trabalhos, aponta para o fato de eles refletirem as mudanças que transcorrem na vida social. Desse modo, pode-se dizer que há uma relação de diálogo entre sociedade e linguagem que se realiza por meio de enunciados (orais ou escritos) organizados em tipos relativamente estáveis, gêneros do discurso. Os enunciados materializam as condições sociais e a finalidade da interação. Assim, o artigo de opinião da revista Raça Brasil reflete uma realidade pertencente a uma determinada esfera social: o racismo e a desigualdade social brasileira. Colocar em discussão esta questão, como faz a seção “Opinião de Raça” na revista Raça Brasil, é uma tarefa complexa, pois ela é polêmica e conflituosa. Retomando Perelman (1996), o domínio das técnicas argumentativas, principalmente em auditórios heterogêneos, é que caracteriza um bom orador. A revista Raça Brasil, objeto de estudo deste trabalho, é destinada ao público afrodescendente. Porém, é preciso considerar 83 | P á g i n a Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano (Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no10 que esse público é um conjunto de inúmeros brasileiros com características distintas no que diz respeito à religião, idade e bagagem cultural. Argumentar para esse público heterogêneo exige do orador, além do conhecimento daqueles que se pretende conquistar, a utilização de argumentos múltiplos e dados favoráveis a sustentação do ponto de vista que se quer defender. Portanto, no artigo analisado, os dados e informações retidos de fontes dignas de confiança, como os relatórios do Banco Mundial, dados do IBGE e registro do Guiness Book são estratégias argumentativas do autor para conseguir a adesão do seu auditório à ideia de desigualdade e exclusão apresentada como tese no enunciado que inicia o artigo: “De um lado é este carnaval... Do outro, a fome total”. Referências AUTHIER, J. Entre a transparência e a opacidade: um estudo enunciativo do sentido. Trad. Leci Borges Barbisan; Valdir do Nascimento Flores. Porto Alegre; EDIPUCRS, 1982. BAKHTIN, Mikhail. 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Guavira no10 A CRIANÇA, A ESCOLA E OS MICROPODERES: UMA ANÁLISE DAS TÉCNICAS DISCIPLINARES ATRAVESSANDO CORPOS Mariana Diniz Bittencourt Nepomuceno (USF)30 Márcia Aparecida Amador Mascia (USF)31 RESUMO: O presente artigo tem como objetivo levantar as relações de poder-saber enquanto mecanismo de controle e normalização dos sujeitos e de suas subjetividades instaurados desde a tenra infância, na instituição escolar. Tendo como referencial teórico os estudos da arquegenealogia realizados por Foucault, buscamos apreender a realidade de uma escola enquanto um micropoder institucional. Para tanto, procedemos à análise de algumas práticas e registros produzidos na referida instituição, nas quais se visualiza a aplicação das técnicas de coerção e de normalização próprias à gestão disciplinar dos sujeitos escolares. Conclui-se que os sujeitos, professores e alunos (crianças de 2 a 3 anos, neste caso), são construídos, embora de modo imperceptível, nas práticas diárias em função do espaço e tempo, que delimitam o que deve ser feito ou não. Tais práticas constituem as técnicas disciplinares de que fala Foucault e funcionam de modo a desenhar os corpos, tornandoos dóceis e, portanto, úteis socialmente. Palavras-chave: escola infantil; relações de poder-saber; sujeito. ABSTRACT: This article aims at raising the relations of power-knowledge as a mechanism of control and standardization of the subjects and their subjectivities established since early childhood, in schools. Having as the theoretical framework the arqueological studies undertaken by Foucault, we try to apprehend the reality of a school while a micro-power institution. In order to do this, we analyzed some practices and records produced in the institution, in which we can see the techniques of coercion and norms related to the disciplinary management of the school subjects. We conclude that the subjects, teachers and students (children from 2 to 3 years, in this case) are constructed, though in a imperceptible way, in the daily practices in terms of space and time, that limit what should be done or not. Such practices constitute the disciplinary techniques of which Foucault deals and operate in a way of drawing the bodies, making them docile and therefore socially useful. Keywords: early childhood school; power-knowledge relations; subject. Introdução Em meio a uma época de manifesta inconstância, marcada por deslocamentos incessantes que desarticulam e liquefazem o modo como são construídas as identidades, o sujeito contemporâneo atravessa [e é atravessado por] uma crise de paradigmas produzidos por relações de poder derivada não de uma carência de parâmetros, mas de seu excesso e superfluidade (BAUMAN, 2001), de onde se postula estarmos vivendo uma fase de transição, na qual o próprio modelo de sociedade reflete a passagem de um regime de dominação para outro: de uma sociedade disciplinar para uma sociedade de controle. Tal postulado atravessará, consequentemente, a escola. 30 Graduada em Letras pela Universidade São Francisco (USF) e atualmente cursa Mestrado em Educação Intercultural, na Universidade de Lisboa (Portugal). 31 Professora do curso de Letras e do Programa de Pós-Graduação em Educação, na linha de Linguagem, Discurso e Práticas Educativas, da Universidade São Francisco (USF) - Itatiba. Membro do Grupo de Estudos “Vozes (in)fames; exclusão e resistência”, sob a coordenação da Profª. Maria José Coracini, no IEL/UNICAMP. 85 | P á g i n a Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano (Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no10 É neste contexto de transformação das tecnologias do poder, de disciplinar para de controle, que se torna pertinente indagar sobre a dimensão política da escola, através do levantamento das relações de poder-saber que nela circulam enquanto modos de produção da subjetividade contemporânea. Ademais, é necessário investigar de que maneira e a partir de quais dispositivos, enquanto instituição [em crise], a escola, em sua função social, sustenta o regime de dominação de controle, e averiguar como essas relações adquirem formas específicas neste contexto, produzindo certas subjetividades em detrimento de outras. O presente trabalho pretende elucidar algumas destas questões, utilizando-se, para tal, do escopo teórico da vertente pós-crítica em educação e tendo como principal referência as análises da arquegenealogia perpetradas pelo filósofo Michel Foucault. Servindo-se dos conceitos de poder, saber, disciplina, vigilância, governabilidade e seus desdobramentos, a análise se assenta, essencialmente, na abordagem foucaultiana. Apreender a realidade escolar através da ótica foucaultiana significa, portanto, reconhecer a escola como um micropoder institucional que sustenta relações de poder-saber, de modo a investigar como essas relações adquirem formas específicas neste contexto e quais as subjetividades produzidas a partir destas relações. Nesta pesquisa, hipotetiza-se que o poder disciplinar, uma das facetas das relações de poder-saber, quando aplicado na instituição escolar, manifesta toda a eficácia de suas técnicas de coerção e normalização. Demonstrar-se-á, sobretudo, como a instituição escolar opera totalizações que subjetivam os indivíduos inseridos no processo educacional através do investimento político de seus corpos, docilizando-os e coagindo-os numa constante utilização. Para a coleta dos registros do corpus deste trabalho, procedeu-se à investigação do cotidiano de uma Escola Municipal de Educação Infantil, a fim de discutir e problematizar as práticas escolares e o disciplinamento dos corpos engendrados pelas relações de poder e saber instauradas entre os sujeitos envolvidos no processo educacional. Para tanto, foram observadas diferentes aplicações das técnicas de coerção e normalização próprias à gestão disciplinar dos corpos destes sujeitos, tais como: controle do tempo; disposição física; organização curricular; organização hierárquica; composição arquitetural; vigilância constante; registros de conhecimento; rituais de exame/classificação/seleção; dentre outras. Compreender o motivo da ênfase, dada pela escola, à questão disciplinar e explicitar a maneira como, nesta instituição – através da tecnologia disciplinar –, estabelecem-se relações de poder-saber que subjetivam os sujeitos inseridos neste contexto é, portanto, o escopo deste artigo. Sociedade Disciplinar e de Controle O poder, para Foucault (2005a), se expressa nos mais diversos vínculos sociais, permeando e se estabelecendo nas práticas cotidianas; de forma que se pode pensar em termos de relações de poder, analisando-o como algo que se exerce em rede, que perpassa todo o cotidiano social, composto por relações dispersas em toda a sociedade. A concepção foucaultiana de poder encerra caráter inovador na medida em que o filósofo desloca o problema para a análise de práticas de poder, afirmando não existir “o” poder propriamente dito como algo situado, material, possuível e transferível, mas sim relações de poder que se estabelecem e permeiam, nas mais diversas instâncias, as práticas sociais. Para Foucault, “o poder não existe; existem sim práticas ou relações de poder” (FOUCAULT, 2005a, p. IV), isto é, o poder se expressa nas diversas relações sociais, de 86 | P á g i n a Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano (Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no10 forma que se possa conceber o poder enquanto estratégia operacional – e não como propriedade – pois é um tipo de poder que se exerce, e não que se possui. As relações de poder são, portanto, constitutivas da vida social e o indivíduo é transmissor deste mesmo poder que o perpassa, constituindo-se, simultaneamente, como sujeito e objeto de poder. Com base nesta proposição, Foucault subverte o conceito de poder definindo-o, através do método de investigação genealógico, não por sua negatividade, isto é, por sua função repressiva, autoritária, mas por sua positividade, como produtor de subjetividades que normaliza a sociedade através da gestão e controle da vida dos homens, com a função de torná-los úteis economicamente e dóceis politicamente. A perspectiva foucaultiana orienta-se, portanto, no sentido de analisar como as relações de poder produzem subjetividades, isto é, como os indivíduos se subjetivam a partir das relações de poder e saber, que permeiam toda a estrutura social. Nas sociedades modernas, o olhar panóptico, enquanto instrumento de normalização e controle, figurava como mecanismo fundamental de produção de subjetividades, sua mais contundente materialização. Segundo Foucault (op., cit., p. 211), “utilizar a organização do espaço para alcançar objetivos econômico-políticos” constitui a síntese do funcionamento do dispositivo panóptico, máquina ótica universal das concentrações humanas. O autor concebe o Panóptico como um mecanismo de produção da subjetividade uma vez que engendra a internalização da vigilância, a internalização do olhar do outro. A vigilância panóptica combina os atos de vigiar e ser vigiado e constitui uma tecnologia de poder que inaugura toda uma “anatomia política” baseada no panoptismo, o qual possibilita estabelecer, entre os sujeitos vigilantes/vigiados, relações de disciplina. Através do panoptismo, o poder projeta luz sobre cada indivíduo, esquadrinhando-o, pois, baseando-se na visibilidade, no controle do tempo (e das operações do corpo) e dos espaços (e dos corpos nestes inseridos), o que permite, por meio de um registro permanente, a elaboração de saberes sobre cada indivíduo vigiado/enclausurado, estabelecendo uma relação hierárquica (pois o poder emana do “centro” e se difunde pela “periferia”) de poder-saber que tem, neste contexto, como objetivo último, tornar o corpo humano [politicamente] dócil e [economicamente] útil à sociedade. A partir deste dispositivo polivalente, torna-se possível a consolidação, a partir do século XVIII, daquilo a que Foucault denominou Sociedade Disciplinar – modelo este que “sucedia às sociedades de soberania cujo objetivo e funções eram completamente diferentes (açambarcar, mais do que organizar a produção, decidir sobre a morte mais do que gerir a vida)” (DELEUZE, 1992, p. 219) – baseada numa economia do poder onde, a fim de elaborar um saber sobre o corpo e exercer um controle sobre as suas forças, o “vigiar” revela-se mais eficaz do que o “punir”. As relações de poder-saber e os regimes de verdade O poder produtor de subjetividades consiste numa modalidade específica do mesmo: o poder disciplinar é definido como um conjunto de técnicas através das quais se controla e normaliza-se os sujeitos, constituindo-se, em última análise, como um conjunto de técnicas de individualização. O indivíduo, por encontrar-se inserido em relações de poder-saber, é, portanto, simultaneamente alvo e efeito do poder, uma vez que os dispositivos de subjetivação produzem e derivam de formações discursivas que se instrumentalizam, principalmente, através da tecnologia política disciplinar. Foucault analisa como os saberes aparecem e se transformam, “procurando estabelecer a constituição de saberes privilegiando as interrelações discursivas e sua 87 | P á g i n a Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano (Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no10 articulação com as instituições” (op., cit., p. X), observando que as relações de poder estabelecem campos de saber e que estas, por sua vez, constituem relações de poder, implicando-se mutuamente: “A investigação do saber não deve remeter a um sujeito de conhecimento que seria sua origem, mas a relações de poder que lhe constituem. Não há saber neutro. Todo saber é político.” (op., cit., p. XVII), pois todo saber tem sua gênese em relações de poder. É a partir das técnicas disciplinares que emerge um tipo peculiar de conjunto de saberes: as ciências humanas (op., cit., p. XX). Assim, os saberes das ciências humanas, incluindo nesses os pedagógicos, convertem-se em elementos de um dispositivo estratégico, através das relações de poder. A verdade, na sociedade ocidental contemporânea, se materializa na forma do discurso científico e nas [micro]instituições vinculadas a este. A produção do conhecimento científico é feita por meio de procedimentos de poder que, entre outros, incluem o olhar (empirismo) e a interpretação (hermenêutica). Tais procedimentos tornam possíveis, simultaneamente, a produção de um conhecimento com estatuto de “verdade” e a produção/exclusão daquele que seria “falso”. Portanto, o conceito foucaultiano de verdade não supõe algo verdadeiro que precisa ser descoberto, que deve se fazer aceito, mas sim de um conjunto de “regras segundo as quais se distingue o verdadeiro do falso e se atribui ao verdadeiro efeitos específicos de poder; entendendo-se, também, que não se trata de um combate ‘em favor’ da verdade, mas em torno do estatuto da verdade e do papel econômico-político que ela desempenha.” (op., cit., p.13). Para o autor, poder e verdade estão, portanto, ligados numa relação circular, de forma que todo e qualquer discurso, por ser necessariamente político, funciona como um regime de verdade. Foucault (1996) discorre sobre procedimentos internos e externos que regulam o acontecimento discursivo e, mais especificamente, sobre as práticas discursivas e os poderes que as atravessam, perpetrando uma crítica acerca da “institucionalização do discurso”. Ao afirmar que o discurso encontra-se submetido ao jugo das instituições, o autor constata que a legitimidade/validade do mesmo emana do poder que as instituições lhe atribuem, de modo que este instaura técnicas de controle e limitação da produção de discursos. O discurso engendrado/sancionado pelas instituições atribui-lhes, portanto, poderes (de interdição e exclusão), e dentre os procedimentos externos reguladores do acontecimento discursivo encontra-se o mecanismo de oposição do verdadeiro e do falso (discursos) ou vontade de verdade. A vontade de verdade, como vontade de saber, opera uma oposição entre discursos falsos e discursos verdadeiros – e, na medida em que estes últimos procedem do poder institucionalizado, Foucault revela ser este um sistema de exclusão, pois ao selecionar/valorizar/distribuir determinados discursos (pretensamente verdadeiros), estabelece uma “hierarquia” entre as possíveis formações discursivas, legitimando alguns enunciados e desautorizando outros. Afirma o filósofo serem as interdições do discurso instauradoras de desejos de poder – se o discurso é controlado/interditado, ele instaura o desejo. Portanto, para Foucault, o discurso é poder. Em última instância, verifica-se que o controle do discurso equivale ao controle do sujeito, a uma técnica de sujeição, pois não há discurso sem sujeito: “Somos julgados, condenados, classificados, obrigados a desempenhar tarefas e destinados a um certo modo de viver ou morrer em função dos discursos verdadeiros que trazem consigo efeitos específicos de poder” (FOUCAULT, 2005a, p. 180). Articulando os saberes (enunciados possíveis) com o extradiscursivo (contexto social ou, neste caso, micropoderes institucionais), torna-se possível analisar de que maneira as relações de poder e saber se estabelecem nas diversas instituições sociais – inclusive na escola. A instituição escolar é um local onde o poder produz um saber correlativo e, graças aos regimes de verdade que nela circulam, este poder sustenta-se nos e é aceito e 88 | P á g i n a Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano (Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no10 [simultaneamente] perpetrado pelos sujeitos inseridos na escola. Nesta instituição, os mecanismos que efetivam a normalização dos indivíduos que a compõe adquirem formas específicas, das quais trataremos a seguir. A escola enquanto [micro]poder institucional Nas escolas mais tradicionais, os professores, funcionários da ortopedia moral, “usando da punição como forma de manter o controle disciplinar sobre cada aluno e sobre todo o grupo” (GALLO, 2009), exercem toda uma economia interna da pena, através da qual produz-se um saber sobre o indivíduo indisciplinado (criminoso/infrator), saber este que, pretendendo explicar um ato, é, na realidade, uma maneira de qualificar/controlar o próprio indivíduo. Trata-se de efeitos positivos instigados pela prática dos mecanismos punitivos, os quais determinam a função social da punição. As relações de poder engendram, destarte, um investimento político do corpo, pois sobre ele têm alcance imediato, atravessando-o. Consiste, efetivamente, de uma tecnologia política do corpo, de um saber e um controle do corpo não localizado nas instituições, mas que a ela recorrem, utilizando-a: “Trata-se de alguma maneira de uma microfísica do poder posta em jogo pelos aparelhos e instituições” (FOUCAULT, 2005b, p. 26), do funcionamento de um poder que se exerce sobre o corpo dos punidos (em torno, na superfície e no interior deste) e, “de uma maneira mais geral, sobre os que são vigiados, treinados e corrigidos, sobre os loucos, as crianças, os escolares, os colonizados, sobre os que são fixados a um aparelho de produção e controle durante toda a existência.” (op., cit, p. 28). Na instituição escolar, exercer constante pressão sobre os alunos para que todos obedeçam às normas é parte de um sistema punitivo com função normalizadora, isto é, que implica em juízos de normalidade. O “normal” se estabelece (inclusive discursivamente) como princípio de coerção, de controle, e com ele o poder de regulamentação. Trata-se, a rigor, de uma biopolítica: através da organização tempo-espacial, é possível – além de vigiar e controlar – gerir as condutas dos indivíduos, numa estratégia político-econômica eminentemente operacional. Na instituição escolar, a disciplina, por sistemática, permite que os efeitos de poder sejam homogêneos e, objetivando a suspensão das multiplicidades e a supressão de desvios das condutas, instauram-se, na rotina escolar, micropenalidades baseadas em juízos de normalidade ou sanções normalizadoras. O indivíduo escolar emerge assim como efeito de verdade do discurso transmitido pelo poder disciplinador, nele se inscrevendo, subjetivando-se. Pode-se afirmar que as caracterizações a estes indivíduos atribuídas pelo discurso institucionalizado da escola constituem, realmente, técnicas de subjetivação dos mesmos, pois, derivadas de relações de poder-saber, operam a produção da experiência de si, ou, em termos foucaultianos, funcionam como tecnologias do eu, pois “constroem e medeiam a relação do sujeito consigo mesmo” (LARROSA, 2002, p. 37), inscrevem nos corpos e mentes dos indivíduos uma determinada forma de se ver, de se narrar, de se expressar, de se relacionar consigo e com os outros, designando uma posição de sujeito, que se lhe é atribuída como própria. Nestas instituições, quaisquer comportamentos desviantes, que transgridam o sistema punitivo de função normalizadora são continuamente registrados na forma de ocorrências, isto é, documentos redigidos pela diretoria – que, obrigatoriamente assinados pelo “transgressor” ou seu “responsável” – constituem um procedimento de confissão desses atos e descrevem as ações dos sujeitos, a fim de controlá-las e examiná-las. Desta forma, a escola constitui-se em um “[...] espaço fechado, recortado, vigiado em todos os seus pontos, 89 | P á g i n a Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano (Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no10 onde os indivíduos estão inseridos num lugar fixo, onde os menores movimentos são controlados, onde todos os acontecimentos são registrados [...]” (FOUCAULT, 2005b, p. 193). O poder disciplinar, através destes dispositivos, faz “[...] funcionar o espaço escolar como uma máquina de ensinar, mas também de vigiar, de hierarquizar, de recompensar.” (op., cit., p. 126). Essa relação eminentemente hierárquica induz os sujeitos a se sentirem constantemente vigiados e controlados. No contexto da contemporaneidade, todavia, instauram-se novas formas de sociabilidade e de subjetividade as quais não são constituídas [apenas] por relações [exclusivamente] hierárquicas de vigilância e controle, fundamentadas no confinamento e estabelecidas em espaços/tempos compartimentados (como se pode observar nas escolas mais tradicionalistas). A partir de meados do século XX, segundo Deleuze (1992, p. 220), observase uma mudança na natureza mesma do poder decorrente, basicamente, de uma “crise generalizada de todos os meios de confinamento, prisão, hospital, fábrica, escola, família. São as sociedades de controle que estão substituindo as sociedades disciplinares.” Investigando os efeitos do emergente desenvolvimento técnico, Deleuze constatou que as tecnologias de informação [também] constituíam mecanismos de controle os quais possibilitaram o surgimento de um novo investimento político dos corpos, através de dispositivos tecnológicos que extraem informações exatas das ações do indivíduo, até mesmo – ou principalmente – em espaços abertos, a fim de identificar certas regularidades ou padrões de comportamento para, de forma mais eficaz, controlá-lo. Trata-se do Sinóptico, mecanismo de vigilância que, com efeito, caracteriza a sociedade de controle. O poder, neste contexto, não mais se operacionaliza exclusivamente de maneira hierárquica, central, mas encontra-se disperso, difuso, numa rede planetária capaz de captar toda e qualquer informação no tempo e no espaço, e é nesta conjuntura, instaurando-se nas mais diversas instâncias da vida cotidiana, que surgem os micropoderes institucionais. A interpenetração dos espaços, os quais, em variação contínua, nos leva a crer numa (hipotética) imprecisão de seus limites – “a rede”, em termos deleuzianos – além do surgimento da noção de um tempo ininterrupto, de forma que, atualmente, os indivíduos encontram-se numa espécie de modulação constante, num estado de metaestabilidade que atravessa e regula as malhas do tecido social: “Nas sociedades de disciplina não se parava de recomeçar (da escola à caserna, da caserna à fábrica), enquanto nas sociedades de controle nunca se termina nada, a empresa, a formação, o serviço sendo os estados metaestáveis e coexistentes de uma mesma modulação, como que de um deformador universal” (op., cit., p. 221). A noção de “deformador universal” é entendida por Bauman (1999, p.7) como uma das características do fenômeno da globalização: “estamos todos sendo ‘globalizados’ – e isso significa basicamente o mesmo para todos”. O autor afirma que um dos mais importantes – e nocivos – efeitos da globalização é a utilização/gestão dos tempos e espaços (não compartimentados), a qual opera, através de mecanismos de vigilância, uma gradual exclusão social. Nesta nova conjuntura, os próprios vigiados, num ato de evasão de privacidade, fornecem todo um “banco de dados” a respeito de sua localização tempo-espacial, constituindo a principal fonte de informação que, pelo regime de dominação, será utilizada para controlá-los, num movimento em que os vigiados tornam-se efetivamente voluntários de sua própria vigilância. Engendra-se uma redistribuição dos poderes de controle e vigilância que, gradualmente, vem substituindo o dispositivo Panóptico, onde, contrariamente a este, muitos vigiam poucos, onde os vigiados passam a ser vigilantes: trata-se, portanto, de um novo mecanismo de poder. Observa-se que, nas escolas contemporâneas, mormente em instituições que afirmam adotar uma pedagogia “alternativa”, menos tradicionalista, tanto os olhares panóptico quanto 90 | P á g i n a Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano (Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no10 sinóptico (este de forma insidiosa, pois disfarçada de “livre-arbítrio”) fazem-se presentes, numa relação inequivocamente complementar: o poder exerce-se sobre (externo) e pelos (internalizado) sujeitos. A escola passa a constituir-se num observatório político, num aparelho que permite o conhecimento, o controle contínuo de seus sujeitos, por meio dos professores, dos funcionários e dos próprios alunos, por meio dos dispositivos de vigilância panópticos e sinópticos, os quais produzem uma subjetividade específica. Assim, a escola e seus dispositivos de controle, vigilância e normalização fazem com que os indivíduos aceitem o poder de punir e de serem punidos. Constata-se que a tecnologia do poder conquista um lugar privilegiado nos discursos e nas ações, sendo a principal personagem das relações que compõe o universo escolar, revelando, portanto, a possibilidade de se apreender a escola enquanto um micropoder institucional, instrumento de controle, vigilância e normalização dos indivíduos escolares. Análise do corpus Procedendo à observação do cotidiano da escola em que foi realizada a análise, tornou-se possível verificar e problematizar algumas práticas, empregadas nesta instituição, produtoras dos efeitos de prescrição (o que se deve fazer) e de codificação (o que se deve saber). De forma que, assim como a noção foucaultiana de poder, as práticas escolares são definidas aqui em sua positividade (em termos de efeitos), pois produzem modos de objetivação e subjetivação dos indivíduos. As análises descritas a seguir, resultado do percurso investigativo, de cunho qualitativo-interpretativo focalizam, portanto, práticas escolares desenvolvidas em uma Escola Municipal de Educação Infantil, na cidade de Campinas, no período de abril a maio de 2007. A investigação deu-se através de observação e acompanhamento das rotinas diárias das crianças, professores e demais agentes institucionais. O foco da pesquisa se deu no Agrupamento II, no qual encontravam-se inseridas 17 crianças (na faixa etária de 2-3 anos), matriculadas em período integral, além de professoras, monitoras, educadoras, funcionárias e equipe diretiva. E, através da observação/participação de propostas pedagógicas vivenciadas pelos sujeitos (crianças e adultos) inseridos neste contexto, foi selecionado, para o corpus desta análise, uma das mais recursivas práticas (inclusive discursivas) perpetradas por esta instituição: a rotina escolar diária das crianças (e dos professores e demais agentes neste espaço). Rotina oficial – administração do corpo no espaço e tempo O planejamento das práticas escolares cotidianas regula as atividades de forma sistemática, organizando/normatizando os tempos e os espaços a fim de homogeneizar o comportamento dos escolares, adequando seu corpo à fragmentação do tempo e ao enquadramento no espaço, produzindo, destarte, regimes corporais políticos particulares (SILVA, 2002). A instituição onde se procedeu à pesquisa, em seu Projeto Pedagógico (doravante PP), define 17 momentos constituintes da “rotina geral”, os quais devem estar presentes nos planos de trabalho de todos os educadores, sem distinção: entrada; hora da roda; higiene; café da 91 | P á g i n a Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano (Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no10 manhã; descanso; higiene; atividades diversificadas; higiene; almoço; higiene; descanso; higiene; lanche; higiene; atividades diversificadas; higiene; lanche; saída. Vejamos, a seguir, como os momentos de descanso e alimentação (sempre procedido e sucedido da higienização) podem ser compreendidos enquanto práticas escolares que materializam o investimento político dos corpos dos indivíduos. Diariamente, na instituição, são prescritos dois momentos em que as crianças devem descansar, nos quais professores e monitores devem, preferencialmente, fazê-las adormecer: após o café da manhã, das 8h30min até às 9h30min, e após o horário do almoço, das 12h até às 13h45min. Colchonetes são ordenadamente dispostos no chão da sala, de forma que as crianças mais “tranquilas, que dormem com facilidade” (Diário de Campo, doravante DC, 12/04/07), – isto é, mais passíveis de controle, neste momento – fiquem agrupadas no “cantinho mais escuro e silencioso” (DC, 12/04/07), distantes das janelas e porta da sala. Quanto às crianças que “têm dificuldades para dormir” (DC, 12/04/07) – isto é, que não querem ou não estão, necessariamente, cansadas o suficiente para precisarem descansar –, seus colchonetes ficam localizados próximos à porta da sala, para que, caso “façam barulho ou bagunça” (DC, 16/04/07) – transitando pela sala, em busca de seus livros preferidos, brincando com o próprio corpo, falando sozinhas, cantando, contando histórias, etc... – e a fim de evitar “desordem no ambiente” (DC, 16/04/07), são transferidas imediatamente dos colchonetes para o colo dos professores e monitores que, orientadas pela equipe diretiva, retiram-nas da sala para que se possa realizar a “adaptação da criança problemática” (DC, 19/04/07) à hora do sono. Tal prática, explicitamente utilitária, revela seu caráter disciplinar na medida em que permite à instituição vigiar constantemente e, ao mesmo tempo, controlar minuciosamente os corpos dos indivíduos no tempo e no espaço. Porém, nota-se que a situação de resistência das crianças (categorizadas “problemáticas”) a esta prática, confirma a teoria foucaultiana sobre a natureza mesma do poder disciplinar – quer dizer, que este não é exercido de forma unilateral, não é algo que se possua ou se conquiste, e sim exercido/sofrido por todos os indivíduos, crianças e adultos, (simultaneamente alvos e efeitos deste poder) inseridos neste micropoder institucional, que é a escola. Os momentos de alimentação, uma segunda prática escolar cotidiana, compreendem quatro refeições: o café da manhã, servido às 8h15min, o almoço, às 11h30min e dois lanches, um primeiro às 14h15min e um último às 16h. Após serem adequadamente calçadas – pois “quando andam nas áreas externas não podem estar sem sapatos” (DC, 03/05/07) – e propriamente higienizadas – todas devem lavar as mãos, e algumas precisam trocar as blusas que, em atividades artísticas, derramaram tinta – as crianças, finalmente e enfileiradamente são, diversas vezes ao dia, dirigidas ao refeitório. Espaço de composição arquitetural mais rígido da instituição, o refeitório, quase que inteiramente fechado (há apenas uma janela pequena localizada muito acima do campo de visão das crianças), apresenta três grandes mesas (em uma delas é disposta a comida) e inúmeras cadeiras, apropriadas à altura das crianças, nas quais elas – e somente elas – devem sentar-se, além de uma pequena abertura para a cozinha, esta inapropriada à altura das crianças – pois não conseguem ver o que lá se passa, mas são perfeitamente vistas pelas funcionárias que lá se encontram. O horário da alimentação, o tempo de sua duração, e a forma como deve ser feita – ordenadamente, pois, como estabelece o PP escolar, também nesses momentos (assim como na hora da higienização), “são trabalhados alguns hábitos de boa educação e normas de conduta, como não correr no trajeto para o refeitório nem dentro dele, não gritar, não ficar pondo a mão em tudo, não falar com a boca cheia, conversar falando baixo, comer e beber devagar, colocar as canecas no balde, antes de sair encostar a cadeira na mesa.” (PP, p.27) – são institucionalmente prescritos e pormenorizadamente controlados por todos os “agentes” 92 | P á g i n a Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano (Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no10 dispostos no espaço do refeitório, os quais, inclusive, vigiam-se uns aos outros: a equipe diretiva vigia as funcionárias da cozinha para estas preparem as refeições nos horários determinados; as funcionárias da cozinha vigiam os professores e monitores para que esses cumpram o horário de saída e entrada das turmas do refeitório; os professores e monitores vigiam as crianças para que cumpram o tempo determinado no qual – silenciosamente, de forma disciplinada – devem servir-se da comida e da bebida, pegar os talheres, sentar-se nas cadeirinhas, mastigar “direitinho, sem babar” (DC, 25/04/07), engolir o sustento, devolver seus copinhos e – silenciosamente, de forma disciplinada – esperar as outras crianças do grupo terminarem o processo. Assim disposta, a regulamentação dos momentos de alimentação e as práticas nestes instauradas ordenam o cotidiano escolar e podem ser definidas enquanto mecanismos de controle dos corpos, tempos e espaços dos indivíduos. Ainda, relativamente à vigilância exercida/sofrida pelos sujeitos, pôde-se verificar que neste espaço cruzam-se olhares panópticos e sinópticos – mecanismos instauradores/constituintes do poder disciplinar – que, em última instância, objetivam impedir quaisquer transgressões à “norma” institucionalmente forjada. Tais práticas escolares podem, de fato, ser definidas enquanto técnicas de normatização dos comportamentos, pois trata-se, a rigor, de uma biopolítica: através da organização tempo-espacial, é possível – além de vigiar e controlar – gerir as condutas dos indivíduos, numa estratégia político-econômica eminentemente operacional. Destarte, observa-se que, nestes momentos, a disciplina, por adquirir caráter sistemático, permite que os efeitos de poder sejam homogêneos e, objetivando a suspensão das multiplicidades e a supressão de desvios das condutas, instauram-se, na rotina escolar, micropenalidades baseadas em juízos de normalidade, sanções normalizadoras, tais como: crianças que não dormem são caracterizadas como insolentes, pois falam alto, desrespeitando o sono das outras, e devem ser retiradas da sala (micropenalidade do discurso); crianças descalças são caracterizadas como negligentes, pois não zelam pela regra da escola “lugar fechado pode ficar descalça, lugar aberto dever estar calçada” e, portanto, não podem andar nas áreas abertas (micropenalidade da atividade); crianças que correm ou instauram qualquer tipo de desordem no refeitório são caracterizadas como grosseiras, incivilizadas, e portanto devem ser de lá retiradas e voltar para a sala de aula (micropenalidade da maneira de ser); crianças que se dispersem das brincadeiras/atividades propostas, interrompendo-as, são caracterizadas como desatentas, distraídas, e das mesmas devem ser apartadas (micropenalidade do tempo); crianças que não foram adequadamente higienizadas são caracterizadas como sujas, e portanto não podem comer (micropenalidade do corpo); dentre outras. Trata-se, aqui, de uma microfísica do detalhe que permite, simultaneamente, individualizar e homogeneizar comportamentos. As caracterizações descritas acima constituem, realmente, técnicas de subjetivação dos indivíduos inseridos na instituição escolar (crianças) as quais, derivadas de relações de poder-saber, operam a produção da experiência de si, funcionando como tecnologias do eu, pois “constroem e medeiam a relação do sujeito consigo mesmo” (SILVA, 2002, p. 37), inscrevem nos corpos dos indivíduos uma determinada forma de se ver, de se narrar, de se expressar, de se relacionar consigo e com os outros, designando uma posição de sujeito, que lhe é atribuída como própria. 93 | P á g i n a Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano (Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no10 Considerações finais A partir das apreciações realizadas, através das quais procuramos problematizar as relações de poder-saber que sustentam algumas das práticas escolares observadas na instituição em questão – atentando especialmente a alguns efeitos desta relação –, pode-se afirmar que as análises da leitura de alguns dos registros escolares, assim como das práticas do cotidiano, tornaram possível identificar/revelar o modo como se operam os mecanismos disciplinares neste micropoder institucional. A hipótese inicialmente levantada, a saber, de que o projeto pedagógico vigente, quando materializado nas relações entre os sujeitos envolvidos no processo escolar, consiste, na verdade, em mecanismos de controle e normalização, subjetivando os indivíduos escolares e forjando assim um tipo específico de individualidade, pôde ser confirmada por análises realizadas a partir do referencial foucaultiano. Com efeito, o indivíduo escolar, emaranhado na rede de relações de poder, constitui-se enquanto sujeito através de mecanismos disciplinares normalizadores, e sua identidade é construída por meio de prescrições que obedeçam à norma socialmente estabelecida, da qual a escola figura como uma das mais importantes difusoras, homogeneizando os comportamentos humanos desde seus primeiros anos. Ao considerarmos as práticas escolares como socialmente produzidas – pois se fundamentam em normas historicamente forjadas – torna-se possível desnaturalizá-las, ensaiando outras posições-sujeito, e diferentes modos de agir e de pensar, mais livres e originais. Como vimos, à análise do funcionamento político da instituição escolar, Foucault oferece indispensável arcabouço teórico, pois a partir desta perspectiva, a escola passa a constituir-se num observatório político, num aparelho que permite o conhecimento, o controle contínuo de seus sujeitos, através dos diretores, dos professores, dos funcionários e dos próprios alunos. A escola e suas técnicas disciplinares fazem com que os indivíduos aceitem o poder de punir e de serem punidos, e a disciplina conquista assim um lugar privilegiado nos discursos e nas ações, sendo a principal personagem das relações que compõe o universo escolar. Postulamos que a teoria foucaultiana da relação de poder-saber dos discursos e das práticas disciplinares consiste em uma lente possível de olhar o funcionamento político da instituição escolar de modo que os profissionais da área de ensino-aprendizagem possam ressignificar o discurso político-educacional através de práticas que subvertam as relações estabelecidas em sala de aula, deslocando as subjetividades a fim de impedir que os sujeitos envolvidos no processo educacional se inscrevam em formações discursivas normalizadoras. Para concluir o presente artigo (mas com o intuito de apenas iniciar a discussão), torna-se pertinente esclarecer que o objetivo maior de se proceder à pesquisa desenvolvida deriva da necessidade de levantarmos os regimes de verdade que legitimam os sistemas de dominação e coerção dentro dos quais nos encontramos e, com certeza, encontra-se a escola. Ao puxar os fios da teia educacional, podemos olhar por trás e tentar entender como tal teia é construída e, por que não, construirmos uma teia melhor. Ou nas palavras de Foucault (2005a, p. 37), “[...] destruir as venerações tradicionais a fim de libertar o homem e não lhe deixar outra origem senão aquela em que ele quer se reconhecer”, e através do qual apareçam “todas as descontinuidades que nos atravessam” (op., cit., p. 35) – pois o que torna singular o ser humano é, precisamente, a quebra da norma, a invenção de si: é através da resistência, no imponderável e no imprevisível, que se dá a prática criativa da liberdade humana. 94 | P á g i n a Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano (Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no10 Referências BAUMAN, Zygmunt. 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Guavira no10 POR NOVOS TEMAS E ABORDAGENS EM LINGUÍSTICA APLICADA – UMA VIAGEM ATRAVÉS DAS NOVAS IDENTIDADES DO SÉCULO XXI NAS TIRINHAS DE ADÃO ITURRUSGARAI Alex Caldas Simões (PG-UFV)32 Maria Carmen Aires Gomes (UFV)33 RESUMO: A partir de um percurso teórico-caracterizador do período moderno/pós-moderno – Berman, (2007); Giddens (1991) –, pretendemos em nossa exposição problematizar o campo teórico conhecido como Linguística Aplicada (LA), de modo a ressaltar a sua atual emergência epistemológica: é necessário compreender a vida social – moderna e quem sabe pós-moderna – com os grupos minoritários “em suas perspectivas e vozes, sem hierarquizá-los” (MOITA-LOPES, 2006, p. 96). Dessa forma – apoiados em Moita-Lopes (1996; 2006), Rojo (2006), Bohn (2005), Fabrício (2006), Rajagopalan (2003, 2006a; 2006b) e Hall (2004) – pretendemos discorrer sobre a atual perspectiva da LA e as suas inquietantes indagações, ao observarmos as novas identidades da modernidade presentes “ficcionalmente” nas tirinhas de Aline, de Adão Iturrusgarai (2007, 2009a, 2009b). Concluímos com este, portanto, que novas identidades surgiram no contexto da modernidade e, assim, emerge no campo em questão a necessidade de construção de novos paradigmas teóricos e práticos. Palavras-chave: Identidade; Modernidade; Linguística Aplicada. ABSTRACT: With a theoretical characterization of the modern/postmodern – Berman (2007), Giddens (1991) – we want with our exposure to realize a problematization of the theoretical field known as Applied Linguistics (LA), so as well as to highlight the Current epistemological emergency: it is necessary to understand the social life – modern and perhaps post-modern – with minority groups "in their perspectives and voices, not prioritizing them (MOITA-LOPES, 2006, p. 96) . Thus – supported by Moita-Lopes (1996; 2006), Rojo (2006), Bohn (2005), Fabricio (2006), Rajagopalan (2003, 2006a; 2006b) and Hall (2004) – we want to discuss the current view of LA and its disturbing questions when setting observing the new identities in the modernity "fictionally" presented in strips of Aline, Adam Iturrusgarai (2007, 2009a, 2009b). As conclusion, we can say that new identities emerged in the context of modernity and thus emerge in this field, these is a necessity for new theoretical paradigms and practical construction. . Keywords: Identity; Modernity; Applied Linguistics. Entendendo a modernidade e as suas imbricações Ao observarmos o campo da Linguística Aplicada (LA) percebemos que ela deixou, há algum tempo, de problematizar a antiga tensão entre “Linguística Aplicada versus Linguística teórica” para se concentrar no interior de seu próprio campo de estudo. Tal mudança se fez necessária hoje, pois a sociedade contemporânea sente mais energicamente a vida moderna e pós-moderna. Antes de desenvolvermos essa questão, cabe aqui realizarmos um pequeno panorama teórico-caracterizador do período moderno e pós-moderno de forma a entendermos com maior clareza a atual necessidade epistemológica do campo Lingüístico Aplicado. 32 Mestrando em Letras pela Universidade Federal de Viçosa – Bolsista CAPES/REUNI. Doutora em Estudos Linguísticos pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), com Pósdoutorado em Linguística Aplicada pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Professora adjunta da Universidade Federal de Viçosa (UFV). 33 96 | P á g i n a Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano (Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no10 Modernidade, segundo Anthony Giddens (1991, p. 11), “refere-se a estilo, costume de vida ou organização social que emergiam na Europa a partir do século XVII e que ulteriormente se tornaram mais ou menos mundiais em sua influência.” Para Marshall Berman (2007, p. 24) “ser moderno é encontrar-se em um ambiente que promete aventura, poder, alegria, crescimento, autotransformação e transformação das coisas em redor – mas ao mesmo tempo ameaça destruir tudo o que temos, tudo o que sabemos, tudo o que somos.” Berman (2007) dividiu o fenômeno da modernidade em três fases. A primeira fase, que começou no século XVI e foi até o final do século XVIII que corresponde ao período em que a sociedade estava apenas começando a viver a modernidade e não sabia muito bem como agir diante dela. A segunda fase, que começou com a onda revolucionária de 1790 – com a revolução francesa – e que corresponde ao período em que as pessoas viviam um pouco mais intensamente a dicotomia “viver na revolução e ao mesmo tempo lembrar o que era viver material e espiritualmente”. E a terceira fase que corresponde ao período em que o processo de modernização se expandiu e abarcou o mundo todo – a arte, o pensamento e muitas outras formas de atividade humana. Dentre as características dessa nova sociedade, destacamos juntamente com Giddens (1991) que atualmente: vivemos em um ritmo acelerado de mudanças – a mudança na modernidade é extrema e essa aceleração toma as tecnologias e todas as outras esferas da vida humana –; vivemos em um escopo de mudança onde “diferentes áreas do globo são postas em interconexão” (GIDDENS, 1991, p. 16) ocasionando uma transformação global e geral da sociedade; vivemos em uma sociedade em que “as formas sociais modernas simplesmente não se encontram em períodos históricos precedentes” (GIDDENS, 1991, p. 16). Ainda podemos dizer, como também indica Berman (2007, p. 24), que a modernidade “nos despeja a todos num turbilhão de permanente desintegração e mudança, de luta e contradição, de ambigüidade e angústia”. As constantes mudanças têm levado a atual civilização a sentir muito profundamente uma enorme ausência e vazio de valores, e, ao mesmo tempo, contraditoriamente, tem a levado a viver uma “desconcertante abundância de possibilidades” (Cf. BERMAN, 2007, p. 24) – o que provoca um processo de individualização. O sujeito moderno está “isolado, exilado ou alienado, colocado contra o pano-de-fundo da multidão ou da metrópole anônima e impessoal” (Cf. HALL, 2004, p.32). Nesse crescente turbilhão moderno alguns acreditam, segundo Berman (2007, p. 33), que a única solução para tamanho caos seria “tentar deixar de viver.” Outros, entretanto, segundo o autor (2007), acreditam que o homem de amanhã trará no futuro os valores que o homem do presente ainda não possui: pois hoje somos “seres sem espírito, sem coração, sem identidade sexual, ou pessoal – quase poderíamos dizer: sem ser” (BERMAN, 2007, p. 39). Essa crença em uma nova sociedade configura o panorama histórico-social da pósmodernidade: “[a]lém da modernidade, devo argumentar, podemos perceber os contornos de uma ordem nova e diferente, que é ‘pós-moderna’” (GIDDENS, 2007, p. 13). Entretanto, segundo Giddens (1991), a sociedade ainda não vive a época pós-moderna, observa apenas poucos relances dessa nova ordem social. “Em vez de estarmos entrando num período de pós-modernidade, estamos alcançando um período em que as conseqüências da modernidade estão se tornando mais radicalizadas e universalizadas do que antes” (GIDDENS, 1991, p. 13). Tais radicalizações, segundo Giddens (1991), se configuram na medida em que o advento da modernidade trouxe a população mundial enormes benéficos industriais e de modos de vida; em detrimento, nem sempre previsto, de um certo desgaste ambiental. Essa nova ordem social, ainda moderna, se configura, segundo o autor, por um sistema econômico capitalista móvel/acelerado – visto o ciclo crescente entre investimento-lucro-investimento. A 97 | P á g i n a Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano (Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no10 euforia econômica, entretanto, não se deve tanto a uma ordem capitalista, mas sim a um forte processo de industrialização: O caráter de rápida transformação da vida social moderna não deriva essencialmente do capitalismo, mas do impulso energizante de uma complexa divisão de trabalho, aproveitando a produção para as necessidades humanas através da exploração industrial da natureza (GIDDENS, 1991, p. 20). Podemos compreender esse dinamismo moderno, como também indica Giddens (1991), entendendo que vivemos uma dissociação tempo-espaço, ou seja, a modernidade “arranca crescentemente o espaço do tempo fomentando relações entre outros ‘ausentes’, localmente distantes de qualquer situação dada ou interação face a face” (GIDDENS, 1991, p. 27). Essa dissociação tempo-espaço, ocasionada pela modernidade, afeta consideravelmente o nosso modo de vida atual, uma vez que as categorias de tempo e espaço atualmente, segundo Giddens (1991, p. 29), são recombinadas “para formar uma estrutura histórico-mundial genuína de ação e experiência.” Nesse novo contexto tempo-espacial, a sociedade vive uma experiência singular de desencaixe, ou seja, um “‘deslocamento’ das relações sociais de contextos locais e de interação e sua reestruturação através de extensões indefinidas de tempo-espaço” (GIDDENS, 1991, p. 29). Nessa ação de desencaixe predominam a confiança – que, segundo Giddens (1991), pressupõe uma consciência de risco – e uma reflexibilidade sobre a vida social – afinal, “as práticas sociais são constantemente examinadas e reformuladas à luz de informação renovada sobre estas próprias práticas, alterando assim constitutivamente seu caráter” (GIDDENS, 1991, p. 45). Com estes dois aspectos do desencaixe, a sociedade moderna vive um impasse: ela, por ser reflexiva, sabe que o conhecimento que formula nunca será seguro, uma vez que é constantemente reformulado: “[e]m ciência, nada é certo e nada pode ser provado, ainda que o empenho científico nos forneça a maior parte da informação digna de confiança sobre o mundo a que podemos aspirar” (GIDDENS, 1991, p. 46). A atmosfera moderna, portanto, pode ser descrita pelas palavras de Berman (2007, p. 28) como um espaço de “agitação, expansão das possibilidades de experiência e destruição das barreiras morais e dos compromissos pessoais, auto-expansão e auto-desordem.” Diante deste novo cenário de vida surgem inúmeras novas identidades sociais e institucionais; isso nos leva a uma crise de identidade, uma vez que “uma mudança estrutural está fragmentando as paisagens culturais de classe, gênero, sexualidade, etnia, raça e nacionalidade” (HALL, 2004, p.9). Esta reação à sociedade moderna nos conduz à pósmodernidade, a qual para Stuart Hall (2004, p. 10), corresponde a uma “modernidade tardia.” Esse novo cenário estrutural tardio tem levado a formação de um sujeito diferente, fragmentado: “composto não de uma única, mas de várias identidades, algumas vezes contraditórias ou não resolvidas” (HALL, 2004, p. 12) – estas identidades, portanto, não são fixas ou permanentes; alteram-se de acordo com os diferentes momentos histórico-sociais vividos por cada indivíduo ou sociedade. Hall (2004) indica que, na modernidade tardia, surgirão novas identidades culturais advindas de processos de tradução cultural: são formações de identidade de pessoas que não moram mais em sua terra Natal, mas que mantém vínculos com as suas tradições e costumes, “elas são obrigadas a negociar com as novas culturas em que vivem, sem simplesmente serem assimiladas por elas e sem perder completamente suas identidades” (HALL, 2004, p. 88). Esse é o caso, por exemplo, de uma 98 | P á g i n a Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano (Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no10 imigrante brasileira que se casa com um americano. Ela não mora mais no Brasil, mas ainda assim mantém os seus costumes. LA: por novos paradigmas de pesquisa Diante deste caldeirão moderno e pós-moderno, a LA, segundo Moita-Lopes (1996), procura se desenvolver em torno dos seguintes elementos: i) visa à resolução de problemas de usos da linguagem tanto no contexto escolar quanto fora dele; ii) observa a linguagem do ponto de vista de sua interação tentando descrever como ela se processa; iii) se localiza entre o campo teórico e os problemas de uso da linguagem; e iv) utiliza um arcabouço teórico advindo de diversas áreas do conhecimento humano para dar conta de analisar e de interpretar um objeto – o que pode fortalecer/criar um determinado modelo teórico de pesquisa. Segundo Moita-Lopes (1996) a tendência atual dos estudos em LA se foca “na sala de aula” e não “para sala de aula” – ou seja, o pesquisador de LA tem se tornado um professorpesquisador que realiza pesquisas de intervenção, seja pelo método etnográfico – observação participante – ou pelo método interativista – pesquisa não-participante com caráter de interação mais planejado. Moita Lopes (2006) afirma que o antigo debate “Linguística teórica versus Lingüística aplicada” migrou para o interior da LA: há uma preocupação por novas epistemologias, por um projeto de renovação e de reinvenção da Linguística Aplicada – afinal, o mundo já não é mais o mesmo. Segundo o autor há na contemporaneidade uma plenitude icônica e novas identidades: é necessário, compreender a vida social com os grupos minoritários “em suas perspectivas e vozes, sem hierarquizá-los” (MOITA-LOPES, 2006, p. 96). Dessa forma, a condição essencial das pesquisas em LA na contemporaneidade, principalmente após a virada discursiva, é o estudo da linguagem sob o enfoque do social, do político e do histórico. Fazer pesquisa em LA é realizar uma teorização política e ideológica “em que teoria e prática sejam conjuntamente consideradas em uma formulação de conhecimento” (MOITA-LOPES, 2006, p. 101). Em relação à modernidade e à pós-modernidade e aos novos temas abordados em LA, Roxane Helena Rodrigues Rojo (2006) afirma que é necessário que a LA da pós-modernidade entenda que só conseguirá refletir as soluções para os problemas sociais da linguagem na medida em que esta se veja como um campo transdiciplinar tomando como objeto de estudo as privações sofridas, ou seja, os estudos de casos desviantes, para assim estruturar suas próprias configurações teórico-metodológicas que a definirão como campo de pesquisa acadêmica diferencial. Agregando-se a esta discussão da pós-modernidade, Hilário Bohn (2005) acredita que é na diferença, nas dicotomias em contraste, que surgirão as “respostas” às novas perspectivas da LA, pois o que se estuda hoje são as similitudes e não os desvios (as novas identidades) – a perspectiva moderna da LA, portanto, se dirige ao estudo dos casos desviantes 34: novos paradigmas, segundo ele (2005), se fazem na diferença e não no universal. Branca Falabella Fabrício (2006) indica ainda que o mundo contemporâneo, moderno e pós-moderno, se caracteriza por um constante movimento, oscilando entre continuidades e rupturas. Dessa forma, no século XXI a LA reivindica temas e pesquisas que se comprometam com a política, a ética e uma ação transformadora/intervencionista na 34 Entendemos aqui casos desviantes, segundo Bohn (2005), como temas de pesquisa marginais ou grupos minoritários marginalizados. 99 | P á g i n a Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano (Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no10 sociedade. Ela postula também que são os espaços marginais os focos de estudos atuais em LA. É preciso que a LA moderna e pós-moderna se “desaprenda”, ou seja, que esta aposte na fluidez e comece a encarar a mestiçagem – a hibridização – como elemento diferencial para a construção do novo. Essa necessidade também é percebida por Kanavillil Rajagopalan (2006b): afinal, segundo ele, a teoria lingüística deve se articular com sua prática; da prática também pode-se formar a teoria. Nesse sentido, toda a atual LA precisa ser repensada. Sobre as novas identidades da modernidade e pós-modernidade, Rajagopalan (2006) afirma que, por muito tempo, a questão da identidade foi tratada de forma pacífica, como se fosse fácil responder a pergunta “quem sou eu.” A identidade hoje não é fixa ou estanque: “[a] identidade como algo total estável já não tem nenhuma utilidade prática num mundo marcado pela crescente migração de massas e pela entremesclagem cultural, religiosa, étnica, numa escala sem precedentes” (RAJAGOPALAN, 2006, p. 40). Ainda segundo Rajagopalan (2006) a formação de uma identidade está atrelada a inúmeras questões de interesse político – ou, ainda, às conveniências do momento (Cf. RAJAGOPALAN, 2003). A identidade se constrói “na língua e através dela” (RAJAGOPALAN, 2006, p. 41) – afinal, as identidades, segundo o autor, estão em constante renovação e recriação. As novas identidades do momento moderno e pós-moderno Em meio a esta agitação teórica e contemporânea, cabe-nos aqui ressaltar algumas das novas identidades surgidas na modernidade e na pós-modernidade como forma de indicar a necessária urgência da LA quanto à busca por novos temas e abordagens epistemológicas. Para tanto analisaremos as tirinhas de Aline I, II e III de Adão Iturrusgarai (2006, 2009a, 2009b) como forma de apresentar algumas das novas identidades formadas no período moderno e pós-moderno aqui esboçado. Aline é uma personagem de narrativa adulta, que pode ser descrita pelo autor como: Aline é que é mulher de verdade. Trabalha fora de casa, odeia cozinhar e arrumar a casa e tem DOIS maridos. Ela divide a cama com Otto e Pedro. Os três se amam, mas isso não impede que Aline procure diversão fora do lar. Dizem as más línguas que Aline é ninfomaníaca, tarada sexual. Já as boas línguas preferem dizer que ela é uma mulher normal e simplesmente “dá vazão livre aos instintos sexuais”. (ITURRUSGARAI, 2006; 2009b, contracapa). Toda a sua história começa quando ela e seu companheiro, Otto, procuram mais uma pessoa para dividir o apartamento (Fig. 1): 100 | P á g i n a Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano (Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no10 (ITURRUSGARAI, 2009a, p. 4 – Fig. 1) O impasse ocasionado pela escolha do(a) novo(a) companheiro(a) de apartamento, nos revela a possibilidade de uma nova identidade, uma pessoa que fosse ao mesmo tempo homem/mulher ou mulher/homem e que pudesse preencher a vaga disponível de forma ideal. Resolvido o impasse, Aline e Otto escolhem o novo morador, Pedro (Fig.2). (ITURRUSGARAI, 2009a, p. 8 – Fig. 2) Surpreendentemente, Otto e até mesmo o novo morador, Pedro, começam a estranhar Aline: afinal que mulher é essa que aplica “testes de sofá”? Para as nossas questões teóricas podemos nos perguntar: que tipo de mulher é essa? Que identidade feminina está sendo formada neste cenário moderno e pós-moderno? Podemos perceber, logo de início, que Aline não é como as meninas que a sua avó conheceu, ela corresponde a uma nova identidade feminina, afinal tem dois namorados que futuramente se tornarão seus maridos (Fig. 3): 101 | P á g i n a Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano (Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no10 (ITURRUSGARAI, 2009a, p. 32 – Fig. 3) Aline corresponde a uma nova identidade de mulher, que quer compromisso, mas nem tanto; por isso, não é reconhecida socialmente por seus pares ou parentes – na maioria das vezes é marginalizada por assumir a sua identidade. Seus companheiros, por sua vez, parecem que também a aceitam do jeito ela que é (Fig. 4): (ITURRUSGARAI, 2009a, p. 39 – Fig. 4) Tanto Otto quanto Pedro correspondem a uma nova identidade de homem, ainda que ficcional: homens que aceitam a traição de uma mulher, desde que seja com um deles e não com um terceiro (Fig. 5): (ITURRUSGARAI, 2007, p. 68 – Fig. 5) 102 | P á g i n a Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano (Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no10 Podemos perceber ainda que outras identidades marginais surgem na Tirinha Aline, na medida em que a vida da personagem vai correndo. É o caso do patrão de Aline, chefe da loja de discos, Pipo, da Pipo Records (Fig. 6): (ITURRUSGARAI, 2009a, p. 67 – Fig. 6) Com a tirinha acima percebemos que a sociedade moderna ainda não encara muito bem as novas identidades sexuais. Devido a esse recalque social, muitas vezes uma identidade marginal na modernidade tende a se esconder. Já em um contexto de pós-modernidade, podemos observar a formação de um sujeito fragmentado que é, portanto, passível de assumir diferentes identidades em locais diferentes – de maneira libertadora. O mesmo ocorre com a nova identidade sexual feminina, na figura da personagem Linda – vizinha de Aline e que, recentemente, posou nua numa revista masculina (Fig. 7): (ITURRUSGARAI, 2007, p.12 – Fig. 7) A exposição não-declarada, mas explícita, de identidade sexual dos personagens assume contornos sociais modernos e complexos no decorrer da narrativa de Aline. Quando Pedro e Otto, por exemplo, são alistados no exército e saem pelados em uma revista gay – Hot Cuecas – podemos perceber que, na contemporaneidade, um indivíduo pode assumir várias identidades sociais, sem que isto afete nenhuma de suas identidades já assumidas – no caso em questão, Otto e Pedro não são homossexuais, mas ainda assim posaram em uma revista homoerótica35 (Fig. 8): 35 Uma revista homoerótica é aquela que se dirige a um público homossexual, seja gay ou lésbica. 103 | P á g i n a Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano (Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no10 (ITURRUSGARAI, 2007, p.17 – Fig. 8) Mesmo assim, percebemos que a sociedade ainda não conseguiu assimilar algumas dessas novas e reais identidades modernas. A figura de mulher moderna, assim como no caso acima, ainda não é muito reconhecida na sociedade, apesar das constantes reivindicações sociais e lutas sociais (Fig. 9): (ITURRUSGARAI, 2007, p.20 – Fig. 9) Ainda podemos perceber no cenário moderno e pós-moderno a construção de novas identidades que, embora não sejam sexuais, são vistas, por falta de compreensão social, como tal. É o que ocorre quando Aline descobre que o seu psiquiatra Yuri usa calcinha (Fig. 10): (ITURRUSGARAI, 2007, p.58 – Fig. 10) A liberdade sexual e de identidade correspondem a fenômenos modernos/pósmodernos que a sociedade atual tem pouco problematizado, como podemos ver também na tirinha abaixo, em que onde Otto e Pedro pegam escondido a cueca de Antônio Bandeiras da 104 | P á g i n a Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano (Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no10 coleção de Aline e acham que podem ser como Antônio Bandeiras caso se vistam como ele (ou melhor, com a cueca dele) (Fig. 11): (ITURRUSGARAI, 2007, p. 85 – Fig. 11) Na tirinha acima, percebemos a construção de uma nova identidade sexual por parte do personagem Pedro. Ele assume gostar do sexo oposto e sentir atração sexual pelo mesmo sexo: ainda assim, se considera-se detentor de uma imagem sexual de homem e não de homo(bi)-sexual. O mesmo corre com Aline quando esta assume sua identidade feminina e, em algumas circunstâncias, também uma identidade tradicionalmente masculina, que nada remete a sua sexualidade (Fig. 12, 13, 14): (ITURRUSGARAI, 2007, p. 85 – Fig. 12) (ITURRUSGARAI, 2009b, p. 85 – Fig. 13) 105 | P á g i n a Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano (Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no10 (ITURRUSGARAI, 2009b, p. 70 – Fig. 14) Identidades tradicionalmente masculinas, na era moderna/pós-moderna, são transformadas e redirecionadas para identidades femininas, o que resulta em uma nova identidade de mulher: sexualmente ativa, certas de seus desejos e capaz de realizá-los (Fig. 12,13,14) – como na tirinha abaixo, em que Aline ensina a sua amiga Kiki os segredos do sexo e da conquista (Fig. 15): (ITURRUSGARAI, 2009b, p. 64 – Fig. 15) A nova identidade feminina em Aline permeia outras personagens além de Aline, o que causa certo “desconforto” para os homens – como quando Otto e Pedro vão à praia sozinhos para deixar Aline “alone” e são cortejados por Kátia, uma banhista (Fig. 16): (ITURRUSGARAI, 2009b, p. 92 – Fig. 16) 106 | P á g i n a Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano (Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no10 Há uma nova identidade feminina na modernidade/pós-modernidade que se sente mais à vontade – até mesmo atraída – por homens comprometidos. Essa nova mulher, portanto, não considera um crime assumir este novo papel, mesmo sofrendo represálias sociais – que surgem, por uma incompreensão da possibilidade humana de assumir várias e variadas identidades sociais. Como resumo dessa nova perspectiva feminina, Aline se assume como uma “nova feminista”, radical, forte, segura e ainda assim feminina (Fig. 17): (ITURRUSGARAI, 2009b, p. 125 – Fig. 17) Considerações finais A partir das formulações acima, podemos perceber que o mundo moderno/pósmoderno, ainda que ficcionalmente, apresenta muitas novas identidades, até mesmo marginais, que ainda não foram muito bem definidas e analisadas. Cabe ao campo científico pertencente à Linguística Aplicada, portanto, a tarefa de, como já citado anteriormente, compreender a vida social com os grupos minoritários “em suas perspectivas e vozes, sem hierarquizá-los” (MOITA-LOPES, 2006, p. 96). Tal tarefa, uma vez configurada, proporcionará um novo olhar para velhos problemas, o que corresponderá, quem sabe, a formulação de algumas soluções para antigos paradigmas teóricos e práticos indecifráveis. Afinal, talvez a próxima grande revolução na lingüística resulte da constatação, por parte dos teóricos, de que muitos dos incontroláveis fenômenos que desafiam as teorias contemporâneas só começarão a fazer sentido, ao que tudo indica, quando começamos 107 | P á g i n a Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano (Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no10 a levar seriamente em conta a possibilidade das identidades “vira-latas” de Rushdie36, o que significa identidades em permanente estado de fluxo (RAJAGOPALAN, 2006, p. 42). Talvez ainda haja ao observarmos novas identidades a possibilidade de entendimento de antigas identidades sociais: ao analisarmos identidades femininas, como as de Aline – que assume sua identidade feminina e, em algumas circunstâncias, também uma identidade tradicionalmente masculina, que nada remete a sua sexualidade –, ou masculinas, como as de Pedro – que assume gostar do sexo oposto e sentir atração sexual pelo mesmo sexo, e não se considerar homo-(bi)-sexual. A partir disso poderemos, então, descobrir (quem sabe) as motivações, crenças e desejos dos homens e das mulheres de nossa época e de outras épocas – o que acabará por fomentar a construção de novos paradigmas teóricos e práticos para LA. Referências BERMAN, Marshall. 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Londres: Granta, 1989. 109 | P á g i n a Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano (Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no10 A TRADUÇÃO CULTURAL-LOCAL ENTRE BRASIL, PARAGUAI E BOLÍVIA Rony Márcio Cardoso Ferreira (PG-UFMS)37 Edgar Cézar Nolasco (UFMS-CCHS)38 RESUMO: Este artigo visa discutir a questão da contaminação cultural, que permeia e se dissemina entre culturas locais de Mato Grosso do Sul, do Paraguai e da Bolívia. Para tanto, será trazido à pauta da discussão o conceito de tradução cultural (HOMI BHABHA), a fim de se pensar criticamente a confluência dos signos culturais proporcionada pela noção de transferencialidade, que, por sua vez, borra uma pretensa idéia de especificidade que singulariza o local, o próprio, o alheio, o outro, o aqui, o lá, e assim por diante. Será discutida também, a questão da multiplicidade, que faz com que a cultura em questão se singularize, não no sentido primeiro do termo, mas na e pela diferença. Palavras-chave: Tradução cultural, diferença, tranferencialidade ABSTRACT: This article discuss the cultural contamination question, that cross and disseminate between local cultures of Mato Grosso do Sul, Paraguay and Bolivia. For so, we are going to discuss the cultural translation (HOMI BHABHA) conception, that we may think about the confluence of cultural sign, which is provided by the transferees, that, cross out a supposed idea of specificity which make the local unique, own, other, here, there and so on. We are also going to discuss, the multiplicity question that make the culture becomes unique, not in the sense of the first term, but in and of the difference. Key-words: Cultural Translation, difference, transferees Introdução Um lugar é sempre o local da tradução (cultural). Para traduzi-lo, não devemos mais saber quando começamos a nos desligar desse lugar, tão histórico e tão familiar ao mesmo tempo, que pensávamos que era tão nosso. (Edgar Nolasco - Babelocal, 2010, p.7) Considerando que o Brasil, o Paraguai e a Bolívia possuem uma zona fronteiriça híbrida, multicultural e não tão bem demarcada geograficamente, é notória a existência de uma contaminação cultural que permeia e se dissemina entre as respectivas culturas locais. Essa zona de fronteira pode ser entendida, metaforicamente, como uma linha intersticial em que se sobrepõe e se desloca o que viria a ser de domínios pontuais de cada local. Assim, as 37 Graduado em Letras (Português / Espanhol) pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS) e Mestrando do Programa de Mestrado em Estudos de Linguagens da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul. 38 Doutor em Literatura Comparada pela Universidade Federal de Minas Gerais e Professor dos Cursos de Letras e do Programa de Mestrado em Estudos de Linguagens da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul. Coordenador do NECC (Núcleo de Estudos Culturais Comparados) no Centro de Ciências Humanas e Sociais da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, campus de Campo Grande. 110 | P á g i n a Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano (Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no10 idiossincrasias, que pretensamente procuram delimitar algo, cedem lugar a uma articulação da diferença. Quando trazemos à tona essas especificações de qualquer espaço cultural fronteiriço, o contato com o outro faz emergir uma “ideia” de novo, que tem sua manifestação originária borrada e passa a rascunhar um esboço que irrompe os limites de um local específico, configurando-se, assim, um “entre-lugar”. Para Bhabha, essa “ideia do novo” é advinda das profícuas trocas que travamos com o outro no “ato insurgente de tradução cultural”. É nesse sentido “do novo” que Heidegger concebe a fronteira não como um “ponto onde algo termina, mas, como (...) [um] ponto a partir do qual algo começa a se fazer presente” (Apud BHABHA, 1998, p. 19). Esse algo que começa a insurgir se manifesta e/ou se verifica fora de uma visada binarista e, ainda mais, pode ser visível de qualquer lado ou ângulo, tanto de cá como de lá, em que optamos por nos posicionar. Tal ato de tradução, acima mencionado, da-se porque surge um outro lugar cultural e político, onde os traços que configuram o local se dá na e pela diferença, e, por sua vez, “jamais [de forma unitária] em si mesma e na relação dualista do Eu com o Outro” (BHABHA, 1998, p.65). Uma condição sine qua non para articular essa problemática da diferença cultural é o reconhecimento do surgimento de um espaço “contraditório e ambivalente” onde a luta por um traço de “originalidade” e “pureza” é inconcebível. Esse novo espaço, para Homi Bhabha, é um “terceiro espaço” irrepresentável e destituído de “unidade e fixidez”, que concede aos signos culturais apropriações várias por meio da tradução cultural. Com isso, logo a princípio, salta-nos aos olhos o fato de que o contato entre diferentes culturas faz emergir um locus onde os sentidos tradicionais de fronteira e limite são embaralhados, postos à mesa e em cena no palco do movediço território da confluência cultural. Tal confluência se manifesta pela “con-formação” da diferença, que só existe em função do outro, contudo, em posições não-binárias; mas, sim, conformando as diversas diferenças locais que estão sempre em constante processo de posicionamento e rearticulação cultural. Desse modo, falar em cultura local, no estado de Mato Grosso do Sul, é, ao menos num primeiro momento, salientar que tal cultura é constituída na diferença. Essa diferença é oriunda do multiculturalismo presente, uma vez que neste estado diferentes “comunidades culturais” convivem e constroem uma vida em comum, fazendo surgir um novo locus cultural, porém sem apagar totalmente as marcas de sua identidade de “origem”. Essa visada plural sobre a cultura local corrobora a existência de uma sociedade multiétnica e culturalmente mista. Para nós o prefixo “mult-” é cabível todas às vezes que nos referirmos a uma manifestação cultural, sobretudo aquela oriunda de um espaço fronteiriço, como é o nosso caso. Tal prefixo reforça ainda que todo espaço cultural é, no mínimo, constituído de uma “dupla inscrição”, no sentido proposto por Hall. Essa dupla inscrição não se concretiza apenas no contato do “eu” com o “outro”, mas do contato daquele com os vários “outros” que co-habitam o locus cultural. Com o exposto, as idiossincrasias do local passam a ser comercializadas/contrabandeadas junto a um grande e livre fluxo de trocas, fazendo com que a moeda corrente se torne, por conseguinte, comum às respectivas culturas locais envolvidas em tal processo. Dessa maneira, quando trazemos à discussão o estado de Mato Grosso do Sul, verificamos que esse “contrabando cultural” é significativo, uma vez que nossa fronteira se “manifesta” na grande planície pantaneira. Tal planície é, por si só, a grande metáfora deslizante da cultura local, já que permite aos signos culturais certa mobilidade e escorregamento. Talvez possamos e consigamos 111 | P á g i n a Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano (Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no10 demarcar o começo e o fim dessa planície; agora, difícil será demarcar, geográfica e culturalmente, a linha tênue que separa Brasil, Paraguai e Bolívia. Ingenuamente, poderíamos falar que existe uma “marca natural” para essa demarcação: o Rio Paraguai. Ledo engano, já que quase 70% de nossa fronteira com a Bolívia e grande parte da fronteira com o Paraguai, sobretudo a do sul do estado, são constituídas do que se costuma chamar de “fronteira seca”. E mais, se fôssemos insistir nessa demarcação por meio do rio, como ficariam as cidades de Corumbá e Ladário, ambas do lado de lá da ponte? E as cidades de Ponta Porã, Bela Vista e Coronel Sapucaia, todas com suas cópias exemplas de si mesmas, ou seja, o seu duplo, do “lado” Paraguaio? A nosso ver, essa planície deslizante permite maior desterritorialização aos signos culturais locais. Ou seja, é como se os nomes ou traços desses signos remetessem a uma possível “origem”, porém, no ato real da configuração cultural, passassem a demarcar/constituir o novo local cultural em que se encontram agora inseridos, borrando, dessa forma, até que ponto são mais paraguaios, mais bolivianos ou mais sul-matogrossenses. Essas reflexões nos levam ao encontro do que aqui já foi dito acerca da “conformação” da diferença na cultura. Tal “con-formação” só é verificável quando existe no mínimo um “outro”, porém, não em oposições binárias (eu x outro, local x global, universal x regional...), mas, sempre, em constante processo de posicionamento e rearticulação. Em outras palavras, pensar em uma cultura local em Mato Grosso do Sul é, grosso modo, admitir a existência de um “fluxo” contínuo de trocas que permitem uma reconfiguração no âmbito do espaço cultural. É significativo esclarecer que tal reconfiguração se dá em uma via de mão dupla, já que o “lá” e o “cá” se alterarão substancialmente, ou seja, o “eu” e o(s) “outro(s)” jamais serão os mesmos mediante esse processo. Contudo, resta-nos ressaltar que, nessas trocas, nota-se que esse “outro” é projetado através da relação mais ou menos contínua que a “diferença” proporciona. Assim, para pensarmos um traço que singularize a cultura de nosso estado, temos que trazer à cena as “comunidades diaspóricas”, no sentido proposto por Hall, que farão com que o local se configure por meio de uma comunidade étnica e racialmente miscigenada. Dessa maneira, o que ocorre é um fértil cruzamento entre as respectivas culturas locais dessas comunidades diaspóricas, pois como afirma Aijaz Ahmad: A fertilização cruzada das culturas tem sido endêmica a todos os movimentos populacionais... e todos esses movimentos na história têm envolvido viagem, contato, transmutação, hibridização de idéias, valores e normas comportamentais. (Apud HALL, 2003, p. 74) Essas viagens, transmutações e contatos farão do local um espaço singularmente híbrido. Quando dizemos híbrido, não é simplesmente pela “composição racial mista” da população, mas sim por uma articulação existente da lógica da tradução cultural (Cf. HALL, 2003, p. 73). Essa tradução [...] não é simplesmente apropriação ou adaptação, é um processo através do qual se demanda das culturas uma revisão de seus próprios sistemas de referencia, normas e valores, pelo distanciamento de suas regras habituais ou “inerentes” de transformação. Ambivalência e antagonismo acompanham cada ato de tradução cultural, pois o negociar com a diferença do outro revela uma insuficiência radical de nossos próprios 112 | P á g i n a Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano (Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no10 sistemas de significado e significação. (BHABHA, apud HALL, 2003, p. 75 – grifos do autor) A transferência ocorrida entre as culturas locais aqui em discussão se dará por um meio reinventivo particular, pois cada vez que um novo signo se reconfigura ou migra se rearticula o espaço cultural local. Ou seja, o que se notará sempre é que o contato por meio da tradução se dará em algum ponto do espaço da differánce. Essa differánce nos permite abordar a fronteira cultural entre Brasil, Paraguai e Bolívia como um espaço babélico, onde se configura uma identidade plural, que pode ser vista como uma construção que está sempre por terminar devido à constante transferencialidade que tal espaço articula. Esse constante nãoterminar concede à cultura local um caráter de não-acabamento e não-fechamento, pois ela está em constante rearticulação, já que os signos culturais não precisam de autorizações e muitos menos de passaporte para se movimentar, ou seja, eles estão em um constante ir e vir. Junto a este deslocamento sígnico, faz-se desbaratar as fronteiras do processo da tradução cultural, a ponto de não sabermos mais em que ponto terminam as “marcas” / signos culturais advindos do “contexto” de origem e as provenientes do novo meio. Desse modo, as trocas culturais se manifestam por meio de diálogos profícuos, já que “[...] a tradução é a natureza performativa da comunicação cultural [...]. E o signo da tradução conta, ou ‘canta’, continuamente os diferentes tempos e espaços entre autoridade cultural e suas respectivas práticas performativas”. (BHABHA, 1998, p. 313) Quando tomamos por objeto de análise qualquer meio cultural, temos que trazer em primeiro plano o sistema híbrido em que se constitui tal meio, uma vez que as categorias de originalidade e pureza são inoperantes em uma cultura, na qual os próprios signos são destituídos de unidade e fixidez. Assim, o meio cultural acaba por conceder margem para que esses signos sejam “apropriados, traduzidos, re-historicizados e lidos de outro modo”. (BHABHA, 1998, p. 68) Pensando na tríplice fronteira de Mato Grosso do Sul, sobressai-se uma questão de suma importância: a contínua confrontação entre o conteúdo cultural traduzido e o seu duplo, que Bhabha designa por intraduzível. Em outras palavras, o objeto traduzido não trará consigo a mesma carga semântica que contém a origem, o que teremos é um novo locus cultural, em nosso caso a cultura sul-mato-grossense, que pode estar configurado pelo mesmo signo, mas não aberto a receber as mesmas significações. Dessa forma, o ato tradutório de signos culturais não é uma ação ocorrida em um campo pacífico, mas sim em um ato de reescrita disjuntiva da experiência transcultural. Aqui, o conteúdo do traduzido é alterado pela nova forma de significação cultural atribuída pelo processo tradutório. Assim, pensar em um delineamento da dimensão da cultura local no estado de Mato Grosso do Sul é trazer em primeiro plano, como já referido, a noção de transferencialidade que borra uma pretensa especificidade que singulariza o local. Ou seja, é notório que, nesse lugar onde um dia foi Paraguai e o Paraguai foi Brasil, é impossível falar de qualquer manifestação cultural sem trazer à tona a multiplicidade que faz com que a cultura em questão se singularize, não no sentido primeiro do termo, mas na e pela diferença. Em outras palavras, a cultura é a diferença em si, pois qualquer aspecto ou traço que o torne como particular, específico ou exclusivo já está, de antemão, atravessado pelo outro. Dessa maneira, grosso modo, o que se percebe é a existência de uma linha tênue ou uma membrana permeável que facilita/proporciona o diálogo profícuo entre dois ou mais meios, como é o nosso caso. Enfim, falar da linguagem, da escrita, da arte, da música, da vestimenta, da bebida, da comida, entre outras manifestações em Mato Grosso do Sul, é 113 | P á g i n a Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano (Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no10 engrossar o “caldo cultural” do ato tradutório enviesado pela transferencialidade com o outro. E mais, é deixar bem claro que a cultura em Mato Grosso do Sul, apesar de multicultural, é local. Referências BHABHA, Homi K. O local da cultura. Trad. de Myriam Ávila, Eliana Lourenço de Lima e Gláucia Renate Gonçalves. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1998. (Coleção Humanistas) Cadernos de Estudos Culturais: Estudos Culturais. Campo Grande: Editora da UFMS, Volume 1, número 1. p 1-135. jan/jun. 2009. HALL, Stuart. Da diáspora: identidade e mediações culturais. Org. Liv Sovik; Trad. Adelaine La Guardia Resende. Belo Horizonte: Editora UFMG; Brasília: Representação da Unesco no Brasil, 2003. (Coleção Humanistas) NOLASCO, Edgar Cézar. BabeLocal: lugares das miúdas culturas. Campo Grande: Ed. UFMS, 2009. (no prelo) ______. Caldo de Cultura: a pesquisa dos Estudos Culturais na Pós-Graduação. Guavira Letras Revista Eletrônica do Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 01 – 01 de agosto de 2005. Ano 01. Disponível em: http://www.ceul.ufms.br/guavira/numero1/capa.htm SOUZA, Eneida Maria de. Babel multiculturalista. Cadernos de Estudos Culturais: Estudos Culturais. Campo Grande: Editora da UFMS, v.1, n.1, jan./jun. 2009. p.17-29. 114 | P á g i n a Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano (Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no10 PARA LER O ANTIPOEMA COMO DISCURSO HÍBRIDO: CONSIDERAÇÕES SOBRE TEXTO E IMAGEM EM ÁS DE COLETE, DE ZUCA SARDAN Deise Daiana Gugeler Bazanella (UFSM) 39 Ana Teresa Cabañas (UFSM)40 RESUMO: Nos anos 70, a poesia marginal brasileira ampliou os níveis de comunicabilidade do texto poético no intuito de atrair mais leitores. Para isso, questionou os procedimentos tradicionais da poesia lírica moderna, explicitando uma série de mudanças na sensibilidade dos sujeitos contemporâneos e criando dificuldades para as formas consagradas de abordagem crítica. Nesse período de ruptura de paradigmas situa-se o poeta Zuca Sardan, cujo livro, Ás de Colete (originalmente publicado em 1979 e reeditado pela Editora da Unicamp em 1994), é o objeto de reflexão deste artigo. No intuito de discutir algumas de suas características, proponho uma abordagem a partir do conceito de antipoesia (HAMBURGER, 1991), que ajuda a compreender o poema como discurso híbrido com base em dois de seus aspectos mais proeminentes: imagem e forma comunicável (efeito do uso de recursos comumente associados à prosa). Palavras-chave: antipoesia, imagem, Zuca Sardan. ABSTRACT: In the 1970’s, Brazilian marginal poetry broadened the communicative levels of the poetic text in order to attract more readers. To achieve that, it questioned the traditional procedures of modern lyric poetry, thus making explicit a series of changes in contemporary sensitivity and creating difficulties to established critical approaches. In this period of paradigms rupture we find the poet Zuca Sardan, whose book, Ás de Colete (originally published in 1979 and re-edited by Editora da Unicamp in 1994), is the object of reflection of this paper. Aiming at discussing some of its characteristics, I propose an approach based on the concept of antipoetry (HAMBURGER, 1991), which helps to understand the poem as a hybrid discourse based on two of its most prominent aspects: image and communicative form (effect of the use of resources commonly associated to prose). Key-words: antipoetry, image, Zuca Sardan. Antipoesia: noções gerais Grande parte da produção poética posterior à Segunda Guerra Mundial pode ser aproximada a partir do que o crítico Michael Hamburger (1991) denominou nova austeridade: uma forte tendência à clareza comunicativa da linguagem e ao explícito. Essa postura artística implicou o questionamento de vários recursos tradicionalmente empregados pela lírica moderna, a cuja perspectiva elevada opôs o rebaixamento de temas e formas, motivo pelo qual se denomina antipoesia. Em um ensaio bastante retomado, “Antipoesía y poesía conversacional em Hispanoamérica” (1975), o crítico cubano Roberto Fernández Retamar discute o conceito de antipoesia de forma a estabelecer uma relação implícita com o que Octavio Paz (1993) denominou “tradição da ruptura”, característica subjacente ao próprio movimento da arte 39 Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM/RS). 40 Orientadora e Professora do Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM/RS). Doutora em Teoria Literária pela Universidade Estadual de Campinas. 115 | P á g i n a Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano (Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no10 moderna que, no seu afã de romper com a tradição literária precedente, busca sempre instaurar o “novo”. Nesse sentido, é possível reconhecer o caráter abrangente da significação do termo antipoesia em Retamar: trata-se de uma condição vital da poesia moderna como um todo, portanto não vinculada a uma produção poética particular. De acordo com essa postura crítica, compreende-se a história da poesia moderna como uma sucessão que intercalaria períodos poéticos e períodos em que a tendência antipoética se impõe. Entretanto, essa teorização não é pacífica. Hamburger difere dela em seu livro La verdad de la poesía (1991), em que tece um panorama da produção poética de vários escritores, em diferentes línguas, identificando um determinado Zeitgeist (sentimento de época) e analisando sua conformação estética no intuito de demonstrar de que modo uma condição histórica comum suscitou alterações gradativas e profundas de sensibilidade, que por sua vez influenciaram boa parte da produção artística ocidental do pós-guerra. Com claro intuito metodológico de traçar a evolução e o adensamento da problemática da antipoesia, o autor volta seu olhar retrospectivo para os poetas precursores dessa tendência ao “rebaixamento” (em comparação com a lírica moderna) de temas e formas. Um dos mais representativos foi certamente Bertolt Brecht, cuja ars poética advertia seus pares sobre o perigo de se incorrer, por meio das petrificações estéticas, na petrificação da própria vida. Para evitar isso, o poeta deveria trabalhar de modo contínuo, constante e sempre avaliativo em torno da necessidade da criação de novas formas (BRECHT apud HAMBURGER, 1991, p. 193-194): Sólo los contenidos nuevos permiten formas nuevas. En realidad las exigen. Porque si los contenidos nuevos se expresan en formas viejas, de inmediato se repite esa desastrosa división entre el contenido y la forma, pues la forma que es vieja se separa del contenido que es nuevo. La vida, que por todas partes adopta nuevas formas en nuestra sociedad, y cuyos cimientos están cambiando, no puede ser expresada ni verse influida por una literatura con formas viejas. Para Hamburger, o que emerge com veemência da produção poética dos autores analisados é o esforço sistemático empregado para dotar a poesia de clareza comunicativa e explicitação. Nesse contexto, impôs-se a busca por uma comunicação tão direta quanto possível, no intuito de restaurar essa condição de vitalidade literária posta em discussão pelas Vanguardas do início do século XX (HAMBURGER, 1991, p. 269): Lo que, a falta de mejor palabra, he llamado la nueva “antipoesía” es una forma exagerada de “bajo mimetismo”, austeramente dedicado a expresar “las cosas tal como son” en el lenguaje de la gente tal como lo habla. Esta clase de verso es antipoética si nuestra norma es la de la poesía romántico-simbolista y su aspiración “a la condición de la música” (…). Na América Hispânica, foi o poeta chileno Nicanor Parra quem sistematizou, num projeto poético plurivalente e de grande reverberação, a antipoesia como prática específica de desmantelamento da própria literatura. Como visionário e observador atento, Parra percebeu a necessidade de questionar a portentosa tradição poética dominante em seu país para erigir uma concepção radicalmente distinta do que seja a poesia e o poeta, bem como suas atribuições na sociedade da cultura de massa, e sua principal obra, Poemas y Antipoemas, publicada em 1954, representa um universo formal estruturado para realizar essa contestadora empreitada crítica e artística. 116 | P á g i n a Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano (Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no10 Da tendência antipoética assim esboçada resulta um contradiscurso lírico que explora as formas da fala cotidiana, comunicado por um sujeito cuja despersonalização é a característica mais evidente: o antipoeta é o “portador de uma palavra colhida do uso cotidiano, a qual se pretende fazer retornar à realidade de maneira potencializada” (CABAÑAS, 2003, p. 200). Esse retorno pressupõe, portanto, a liberação de novas capacidades expressivas. Entretanto, paradoxalmente o eu antipoético reconhece e vivencia o conflito da insuficiência da linguagem enquanto instrumento que lhe permitiria significar-se e ao mundo, o que permite compreender a antipoesia também sob a perspectiva da incomunicabilidade. De acordo com essa acepção, ela contraria a noção moderna de transcendência, efetivada por meio da linguagem poética. Antipoesia à brasileira: tecendo uma relação No contexto brasileiro, foi o poeta João Cabral de Melo Neto quem, em uma conferência denominada “Da função moderna da poesia”, em 1954, discutiu com profundidade e lucidez angustiada os efeitos da ausência de uma proposta poética comunicável na produção de seus contemporâneos. Em sua análise, o olhar do poeta se volta para uma figura de contornos historicamente imprecisos – o leitor (MELO NETO, 1998, p. 98-99): (...) o poeta contemporâneo ficou limitado a um tipo de poema incompatível às condições da existência do leitor moderno, condições a que este não pode fugir. A apresentação (não organizada em formas “cômodas” ao leitor) de sua, rica embora, matéria poética faz da obra do poeta moderno uma coisa difícil de ler, que exige do leitor lazeres e recolhimento difíceis de serem encontrados nas condições da vida moderna. (...) a necessidade de comunicação foi desprezada e não entra para nada em consideração no momento em que o poeta registra sua expressão (...). As conveniências do leitor, as limitações que lhe foram impostas pela vida moderna (...) não foram jamais consideradas questões a resolver. Nesse sentido, se para Melo Neto o que realmente interessa incorporar é a figura do leitor e sua (im)possível vivência poética no mundo contemporâneo, a problemática da comunicabilidade adquire contornos dramáticos. A esse respeito, o autor (MELO NETO, 1988, p. 99) se posiciona da seguinte maneira: “O leitor moderno não tem a ocasião de defrontar-se com a poesia nos atos normais que pratica durante sua vida diária. Ele tem, se quer encontrá-la, de defender dentro de seu dia um vazio de tempo em que possa viver momentos de contemplação, de monge ou de ocioso”. A partir disso, creio ser possível relacionar a discussão de João Cabral de Melo Neto sobre a poesia brasileira de seu tempo com as observações mais abrangentes sobre a antipoesia como tendência, ainda que o poeta não faça uso desse termo. A justificativa para essa aproximação se baseia no fato de que o antipoema, ao empreender uma prática de exploração de linguagem cuja filiação se dá com os recursos usuais da fala cotidiana, representa uma ampla empreitada formal rumo à comunicação que evidencia a preocupação com a própria continuidade possível da poesia nas condições atuais da vida moderna. Portanto, as reflexões propostas pela antipoesia, que incluem extensa referência ao leitor, relacionam-se de forma inequívoca às idéias presentes no texto de Melo Neto. 117 | P á g i n a Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano (Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no10 A poesia marginal brasileira e a proposta de comunicabilidade antipoética Na conclusão de sua análise, Melo Neto (1998) discorre sobre as “condições de sobrevivência” da poesia, as quais dependeriam fundamentalmente da pesquisa formal “no sentido de se encontrarem formas ajustadas às condições de vida do homem moderno, principalmente através da utilização dos meios técnicos de difusão que surgiram em nossos dias” (Ibid., p. 101). Nesse contexto, recai sobre o poeta a responsabilidade pelo distanciamento do leitor (Ibid., p. 99): O poeta moderno, que vive no individualismo mais exacerbado, sacrifica ao bem da expressão a intenção de se comunicar. Por sua vez, o bem da expressão já não precisa ser ratificado pela possibilidade de comunicação. Escrever deixou de ser para tal poeta atividade transitiva de dizer determinadas coisas a determinadas classes de pessoas; escrever é agora atividade intransitiva, é, para esse poeta, conhecer-se, dar-se em espetáculo; é dizer uma coisa a quem puder entendê-la ou interessar-se por ela. Portanto, o tom geral do discurso de Melo Neto sugere a noção já presente em Brecht de que as transformações sócio-históricas, ao acarretarem mudanças mais ou menos significativas nas sensibilidades dos sujeitos, deveriam orientar os poetas na criação de novas formas estéticas consideradas mais pertinentes, de modo a se evitar a famigerada “petrificação” da vida. No Brasil, a emergência da chamada poesia marginal, nos anos 70, apontou novos direcionamentos para o fazer poético. Tendo como antecedentes, num sentido amplo, as tendências antipoéticas, e no contexto brasileiro, o Modernismo de 22 (sobretudo a obra de Oswald de Andrade), essa nova poesia almejava estabelecer uma comunicabilidade que permitiria, dentre outras coisas, ampliar o público leitor, doravante concebido como “(...) um público jovem que não se confunde com o antigo leitor de poesia” (HOLLANDA, 1998, p. 9). Em função disso, vinculou-se ao questionamento dos procedimentos tradicionais da poesia moderna, explicitando uma mudança paradigmática na sensibilidade dos sujeitos contemporâneos. Em termos estruturais, a proposta de comunicabilidade da poesia marginal caracterizase, de acordo com Hollanda (Ibid., p. 10), pela “presença de uma linguagem informal, à primeira vista fácil, leve e engraçada e que fala da experiência vivida (...)”, e que tem como conseqüência política “a desierarquização do espaço nobre da poesia – tanto em seus aspectos materiais gráficos quanto no plano do discurso” (Ibid., p. 10). Além disso, a comunicabilidade representa, ainda conforme a autora (Ibid., p. 11), “a retomada da contribuição mais rica do modernismo brasileiro, ou seja, a incorporação poética do coloquial como fator de inovação e ruptura com o discurso nobre acadêmico”, assimilado criticamente de modo a traduzir “um dramático sentimento do mundo” (Ibid., p. 11). Portanto, pode-se notar que as preocupações com o leitor, com a recepção e com a emergência de novas formas sociais e históricas da sensibilidade, tão características da antipoesia, tornaram-se grandes propulsoras da pesquisa formal empreendida pela poesia marginal, na esteira da discussão proposta por João Cabral de Melo Neto. Zuca Sardan ou a poesia sem estrela O poeta Glauco Mattoso, no livro intitulado O que é poesia marginal (1981), faz a seguinte pergunta: “Poesia tem que ter estrela?” (p. 11). Essa indagação, aparentemente 118 | P á g i n a Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano (Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no10 ingênua, propõe na verdade reflexão das mais relevantes, se compreendermos “estrela” metaforicamente: certa distinção que permite valorar a poesia como “elevada” (ou seja, avessa ao “rebaixamento” de temas e formas), hermética ou transcendente, traços caracterizadores da poesia lírica moderna. As possíveis respostas a essa pergunta irão variar imensamente, abrangendo desde um sonoro e historicamente validado sim até a negação mais peremptória e radical, passando pelos ricos entremeios (por vezes pouco iluminados). Entretanto, todas elas terão em comum o fato de veicularem posicionamentos específicos a respeito do fazer poético, como a noção de poesia enquanto arte universal de transcendência ou como manifestação relacionada a um determinado momento histórico que, por sua vez, incita nos sujeitos a emergência de sensibilidades cuja genealogia pode ser mais ou menos demarcada. Nesse contexto de ruptura e diálogo com os antecedentes da tradição literária brasileira, situa-se o poeta Carlos Saldanha, mais conhecido como Zuca Sardan, cuja obra Ás de Colete (originalmente publicada em 1979 e reeditada pela Editora da Unicamp em 1994) é o objeto de reflexão deste artigo. A articulação discursiva de Ás de Colete visa a atrair o leitor através da construção de uma aparente familiaridade com as formas lingüísticas selecionadas pelo poeta, que explora uma perspectiva comunicável. Trata-se, entretanto, de um canto de sereia: uma vez atraído pela linguagem aparentemente “fácil”, o leitor é surpreendido por uma irônica e com freqüência bem-humorada trama verbal, à qual se mesclam desenhos cujo traço lembra o infantil. Essa combinação inusitada faz parte de uma estratégia que pretende seduzir, sobretudo por meio da conjunção humor, ironia e imagem, o leitor confuso, distraído e atordoado, de contato restrito com a poesia. O livro é organizado em atos, espécie de grande espetáculo que aproxima os poemas no âmbito de suas correspondências temáticas. Além disso, há outra especificidade geral que os agrega: seu caráter antipoético. Da vinculação a essa proposta, interessa-me investigar o emprego de elementos lingüísticos e imagéticos tradicionalmente expulsos pela concepção poética pré-vanguardista. Essa experimentação com diferentes linguagens tem um objetivo claro: ampliar a comunicação por meio do emprego sistemático de formas tradicionalmente relacionadas à prosa e de recursos provenientes da linguagem não-verbal. Miríades da comunicabilidade antipoética: a questão da imagem A experiência de um tempo em que a proliferação de imagens tornou-se um dado trivial da vida cotidiana, inclusive levando a um embotamento da própria capacidade de percepção mais detida, instiga a refletir sobre os sentidos, alcances e efeitos do verdadeiro espetáculo visual em que nos inserimos. Para isso, considero pertinente resgatar alguns aspectos que nos ajudem a compreender como se deu o longo processo de transformação da imagem, dividido em 3 etapas de massificação (MOLES, 1990) que compartilham um propósito comum: ampliar sua presença na vida social facilitando o acesso a ela. Da primeira etapa, caracterizada pela forma única, artesanal e reprodutora da realidade – por exemplo, os desenhos em cavernas –, a imagem passa a multiplicar-se, ainda que timidamente, a partir do Renascimento. Isso se torna técnica e economicamente viável em virtude das novas formas de reprodução. Porém, a imagem artística (pintura) ainda ocupa um patamar distinto: é venerável por sua raridade, além de inacessível para a maioria das pessoas. A invenção da fotografia marca a segunda fase, em que surge a pressão exercida pela imprensa, fato que levará, devido à superabundância, ao que Moles (1990) chama acertadamente de “inflação da imagem”. Desse processo advém a perda progressiva de valor 119 | P á g i n a Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano (Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no10 da reprodução icônica, associada ao esvaziamento da imagem como recurso comunicativo privilegiado. Sabemos que os veículos midiáticos empregam imagens com base num pressuposto central: elas ajudam, e muito, a vender produtos. Em função desse imperativo, a imagem necessita tornar-se objeto de sedução, isto é, deve buscar atrair o olhar alienado pela sua própria proliferação e escapar à percepção automática. O terceiro momento de massificação é o que vivemos, o da expansão inédita e conseqüente trivialidade da imagem – o contato com ela torna-se, assim, um fato a mais na nossa rotina diária. Esse aspecto, de fato intrigante, propõe um questionamento acerca das potências expressivas da imagem na comunicação atual, seu alcance, utilidades e limitações. A partir dessa breve introdução, interessa-me pensar de que modo e com que efeitos a poesia, forma estética tradicionalmente caracterizada pela criação de imagens verbais, pode empregar também a iconicidade como recurso expressivo. Em um artigo denominado “Un acercamiento a la poesía visual en España: Julio Campal y Fernando Millan”, Laura López Fernández nos previne de que a poesia visual não é algo novo. Essa observação inicial é importante porque freqüentemente se associa o surgimento da visualidade na poesia às conquistas das Vanguardas do final do século XIX e início do XX, momento em que a literatura buscou aproximar-se de outras artes, notadamente da pintura. Entretanto, a poesia visual “es tan vieja como la poesía escrita, aunque obedece a distintos fines de acuerdo a la época en la que se ha producido” (Fernández, s/d, p. 1). Segundo a autora, foi o francês Appolinaire quem resgatou a visualidade com intuitos líricos, retirando-a do ostracismo. Contudo, em Appolinaire verifica-se a continuidade de sentidos entre as esferas lingüística e icônica (por exemplo, caligramas em forma de cruz ou ave cujos temas remetem a essas formas), numa espécie de redundância discursiva (o discurso textual reflete o discurso da imagem e vice-versa) que objetiva reforçar, enfatizar o que é dito verbalmente. Posteriormente, tanto Appolinaire quanto Mallarmé passaram a desenvolver o que Fernández denomina “caligramas metonímicos”, em que “no hay semejanzas sino contigüidad entre el contenido y la imagen” (Mosher apud Fernández, s/d, p. 2). No Brasil do surto desenvolvimentista dos anos 50, a visualidade foi a característica marcante e polêmica da poesia concreta, cujo abstracionismo gerou fortes oposições tanto no meio acadêmico quanto no artístico. Entretanto, o recurso visual novamente resgatado influenciou, ainda que pela recusa e conseqüente retorno ao figurativismo, o trabalho de Sardan. Em Ás de Colete, a relação entre aspectos verbais e visuais, embora com esse antecedente importante na poesia concreta, extrapola as dimensões cristalizadas dos parâmetros anteriores que configuram, até o momento, a sensibilidade coletiva – ou seja, o que se entende por poesia. Em função disso, é possível que a pretensa familiaridade inicial, tão aliciante num primeiro momento, gere desconforto, e o leitor pode se perguntar: mas isso é poesia? A indagação é pertinente, pois dá a medida da afronta à tradição literária em voga. Nessa obra, a associação de discursos proveniente de esferas distintas da comunicação cria uma variedade notável de efeitos. No intuito de identificá-los e propor uma possível leitura, apresento a seguir a análise de “O soberano” (SARDAN, 1994, p.4), poema a meu ver bastante representativo da obra como um todo. Antes disso, porém, é necessário esclarecer o percurso de abordagem: como os poemas de Sardan caracterizam-se pelo discurso híbrido, misto sincrético de linguagem verbal e visual, é necessário considerá-los primeiramente em cada um dos dois estratos de sentido. Todavia, o significado global do poema será dado pela relação que se estabelece entre eles. Por questões um tanto nebulosas de afinidade metodológica, inicio a análise pelo aspecto lingüístico; a seguir, volto-me para a dimensão icônica. A ordem de análise parece-me irrelevante: poderia indicar o itinerário oposto, uma vez que o que realmente importa é desvelar o diálogo e o tipo de relação que emerge do 120 | P á g i n a Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano (Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no10 contato entre essas duas esferas discursivas, no intuito de se perscrutar os sentidos do poema nos interstícios, no entre-lugar. Fricções antipoéticas no poema “O soberano”: proposta de leitura dialógica entre os estratos lingüístico e imagético FIGURA 1 “O soberano” é um poema que apresenta um tom narrativo bem marcado. Na primeira estrofe, há uma descrição no presente de algo que está acontecendo agora (indicada pelo gerúndio em “vem chegando”). Na segunda estrofe, encontramos versos no presente simples, cujo emprego, nesse caso, pode remeter a duas possibilidades: 1ª) identificar uma dada situação que se passa num momento presente mas para a qual a referência temporal não é importante41; 2ª) expressar uma lei geral, uma propriedade comprovada empiricamente. O tempo do presente é o tempo das definições, verdades universais e dos fenômenos da natureza42. 41 “If you want to talk about a settled state of affairs which includes the present moment but where the particular time reference is not important, you use the simple present”. Por exemplo, “My dad works in Saudi Arabia”; “She’s a doctor’s daughter”. (COLLINS COBUILD. English Grammar, 1996, p. 247). 121 | P á g i n a Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano (Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no10 O presente é também o tempo das máximas e dos ditos populares. Nesse poema, os dois últimos versos constroem uma máxima nefasta porém perspicaz: “O soberano perfeito/deve suspeitar de tudo”. Trata-se de uma advertência de valor generalizante. O tempo é uma das categorias fundamentais do gênero narrativo. Sua presença em “O soberano” permite indagar o seguinte: quais são os efeitos do uso do presente no poema? O que significa construí-lo com base num recurso comumente associado à prosa narrativa? Uma vez que o emprego do presente origina na verdade uma indeterminação temporal, é necessário investigar qual seria, afinal, o tempo do poema. Nesse contexto de enunciação, a que momento histórico, passado ou atual, poderíamos associar a cena narrada nos primeiros versos? A julgar pela menção a uma figura datada historicamente (o soberano), poderia se tratar de um passado remoto. Porém, a construção discursiva fundada no presente impede essa vinculação direta, uma vez que a referência temporal permanece imprecisa ao longo do poema. Em função disso, é possível depreender que os verbos no presente escamoteiam a dimensão temporal do passado que se esperaria de um poema que fala de um soberano, figura em princípio extinta pela democracia moderna na maioria dos países. Consequentemente, considerando-se apenas o nível de interpretação do texto visual, o hermetismo se impõe e é difícil atribuir um sentido mais preciso ao poema. Por outro lado, creio já ser possível realizar, nesse momento inicial da análise, uma observação a respeito da relação entre o presente da narração e o presente da máxima (dois últimos versos). Da forma como se estrutura, a máxima veicula a percepção de algo cujo valor se pretende/se entende como universal, verdadeiro, atemporal e portanto imutável. Logo, é interessante notar como seu caráter dogmático associa-se à configuração discursiva do tempo no poema. Entretanto, essa possibilidade interpretativa deverá ser confrontada à análise da imagem, de modo a corroborar ou relativizar sua influência. No tocante à imagem presente no poema, parece haver, num primeiro momento, uma relação de correspondência entre o desenho e o texto verbal. Se assim for, trata-se do icônico como mera ilustração do signo linguístico. A imagem empregada como ilustração é um recurso muito frequente na publicidade e também em livros de histórias. Nesses casos específicos, ela cumpre um papel muito restrito: enfatizar e reiterar, pelo efeito da redundância bi-mídia, o que está expresso pela dimensão verbal. É o que comumente se conhece por tradução icônica. A cena representada no desenho também é narrativa. Vemos uma ação acontecendo, em andamento, e portanto no presente (gerúndio). Dos dois personagens, um deles, o soberano, é muito bem situado historicamente, ao passo que o outro é nosso contemporâneo (vide as roupas do menino e seu boné). Essa simultaneidade de sujeitos tão díspares, na mesma seqüência narrativa, provoca indagações e já de início surpreende, embora talvez não se saiba exatamente por quê. Em contraste com o texto escrito, o texto verbal introduz um dado novo: a relação do antigo (soberano) com o atual (menino). Como o poema é uma unidade de sentido, a imagem tem o poder de alterar (ou de especificar o que de outro modo talvez ficasse muito amplo) o significado do discurso verbal. Entretanto, o rei, personagem histórico e pois vinculado a uma experiência temporal circunscrita (que não é a atual), é espontaneamente transladado para o nosso tempo contemporâneo (esse processo é construído via imagem). Nesse contexto, é provável que o 42 “If you want to say that something is always or generally true, you use the simple present”. Por exemplo, “Near the equator, the sun evaporates greater quantities of water”; “A molecule of water has two atoms of hydrogen and one of oxygen”. (Idem, Ibidem, p.247). 122 | P á g i n a Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano (Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no10 tempo presente do poema cumpra o papel de explicitar uma prática de poder que se repete (daí a importância da máxima) e que é sempre igual a si mesma no seu descolamento da realidade circundante (novamente, isso está manifestado pela imagem, em que é explícita a altivez do rei e sua desconsideração do menino que leva a cauda). Desse modo, poderíamos ler nos poderosos de hoje a mesma empáfia dos soberanos de antanho, numa atitude atemporal incongruente com a realidade, mais do que nunca caracterizada pela mobilidade e pela fluidez. Logo, a referência temporal presente-passado do poema é estabelecida sobretudo por sua dimensão icônica. O passado torna-se sincrônico em relação ao presente, pois as velhas práticas do poder seguem atuais e, há que se admitir, eficientes no seu propósito de dominação. Dentre elas, o poema deixa entrever o exercício do poder como humilhação do súdito, o luxo empolado, a alienação e a idéia naturalizada de que o poder se adquire e se mantém pela força, pois “o soberano perfeito deve desconfiar de tudo”. O ridículo da representação desse poder é, pois, seu dado anacrônico. Nesse ponto, é importante ressaltar a potência transformadora do emprego da imagem nesse poema. Dentre as muitas relações possíveis que podem ocorrer entre os níveis icônico e lingüístico, neste caso a imagem altera, especifica e critica o que está manifesto no discurso verbal. Além disso, exerce o efeito de ridicularizar, pela incongruência dos personagens, o caráter dissonante da situação representada. Assim, é por meio da relação imagem-texto verbal que o poema obtém o teor irônico que lhe permite realizar uma crítica contumaz de uma experiência de desfaçatez político-social. Aspectos manufatureiros: a peculiaridade artesanal de Ás de colete Outro elemento que chama a atenção nos poemas de Ás de colete é seu caráter artesanal, que pressupõe o desligamento – e o afrontamento – das formas de reprodução técnica da imagem editorial e midiática em grande escala. É sintomático que essa opção seja assumida por Sardan logo no início do livro, à guisa de introdução/apresentação: 123 | P á g i n a Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano (Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no10 FIGURA 2 O feito a mão é o feito a mão do artista, que se personifica no seu fazer e lhe imprime, desse modo, uma indelével configuração individual. A caligrafia desenhada mostra preocupação com a dimensão de beleza contida na escritura, veiculando a idéia de tipografia com valor estético. Desse trabalho minucioso decorre a humanização do próprio fazer, que se diferencia, portanto, da reprodução impessoal ou da fria ilustração. No contexto da poesia marginal brasileira, a que se filia Sardan, ainda é possível discutir a abdicação do aparato técnico e publicitário subjacente à publicação e à distribuição dos livros não apenas como mera expressão do desejo – ainda que lícito – de rompimento do poeta, mas como fator que reflete amplamente as condições sociais e políticas a que estavam submetidos artista e obra nesse período da história brasileira recente: encurralados pela censura, muitos autores tiveram que desenvolver mecanismos alternativos de criação e distribuição de seus trabalhos. Nesse sentido, é necessário investigar de que forma esses mecanismos acabaram por subverter, ainda que com alcance restrito, as regras de difusão de poesia no Brasil, reconquistando um espaço que havia se fechado de repente e de maneira violenta. A experimentação formal com a imagem em Ás de colete torna o livro um objeto estético que reage aos imperativos da pasteurização a que estamos sofrivelmente submetidos, 124 | P á g i n a Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano (Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no10 almejando, dentre outras coisas, nos causar prazer. Sardan desconstrói o papel do ilustrador e do técnico na sociedade de massa ao trabalhar a imagem como recriação ativa do discurso verbal, fazer sincrético e iconoclasta que atualiza uma percepção vanguardista fundamental: a de que a arte não existe em formas compartimentadas e a literatura deve ser permeável às conquistas e possibilidades dos demais campos estéticos. Ao compararmos a potencialidade expressiva da imagem icônica com a da imagem construída verbalmente, podemos perceber que um dos grandes trunfos da imagem visual é a possibilidade (variável, é claro) de apreendê-la de uma só vez, em totalidade, algo que requer do espectador relativamente pouca energia ao passo que, em contrapartida, surte um grande efeito, atingindo com veemência a sua sensibilidade. A partir do momento em que a noção de velocidade passou a tiranizar a vida moderna, as imagens se impuseram como o mecanismo mais eficiente de transmissão rápida de informações. Se somos capturados pela imagem, se ela seqüestra e seduz a nossa percepção, é compreensível que o poeta reconheça nela uma estratégia riquíssima de atração para seu leitor, o que corresponde ao anseio de muitos autores de ampliar seu público. Entretanto, a especificidade da arte, da imagem estética, consiste em transgredir a noção de imagem como cópia ou ilustração, de modo a criar novas possibilidades de leituras, romper padrões fossilizados de percepção e gosto e expandir a experiência sensível do receptor. Seu emprego no âmbito da literatura corresponde, portanto, à pesquisa por formas mais ajustadas à experiência contemporânea, função mesma do poeta, que deve “inventar escrituras que no sean repertorios de pretendidos conocimientos. Los poetas deben inventar los medios con que crear el mundo, porque el mundo se hace, no se conoce” (Liaño apud Fernández, s/d, p. 4). Considerações finais Através do contato com o conceito de antipoesia de Nicanor Parra e do estabelecimento do diálogo crítico referente ao seu estudo, foi possível identificar algumas das características gerais dessa corrente, relacionadas sobretudo ao rompimento com os valores tradicionalmente empregados pela poesia lírica moderna. A obra de Zuca Sardan também oferece como uma possível aproximação teórico-crítica o seu discurso antipoético, cuja estratégia é um canto de sereia: por meio da aparente familiaridade formal e temática que desperta, exerce um sofisticado efeito de sedução sobre o leitor. Este é surpreendido por uma trama icônico-verbal que o desconcerta e o desnuda ao desnudar, por meio do humor e da ironia, o seu mundo. Para tentar entender esse momento em que a poesia brasileira tomou um rumo diferente, a discussão sobre a figura do leitor necessita ser constantemente resgatada. A antipoesia desenvolveu uma noção de leitor ideal (como entidade implícita e prevista pela construção discursiva) que deve ser capaz de realizar associações inter e extratextuais, uma vez que o artista maneja as mais diferentes formas e recursos disponíveis, combinando-os de modo a criar algo inédito, que parte do que já existe e o transpassa (CARRASCO, 1988, p. 45): (...) el antipoema incorpora, en el acto de lectura que le es proprio, las diversas posibilidades del extratexto, tanto en sus dimensiones textuales como no textuales. En este sentido, (…) se trata de un texto que no sólo reescribe otros textos, sino también diversos géneros de escritura y de discurso, artísticos y referenciales, estereotipos ideológicos y culturales, situaciones de la vida cotidiana, personas, hechos y lugares 125 | P á g i n a Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano (Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no10 históricos, espacios geográficos; en otras palabras, no sólo la literatura, sino también la vida. Esse processo é particularmente visível em Sardan. Como resultado, o leitor, de receptor passivo, é convocado a assumir o papel de construtor ativo dos significados do poema que, por ser discurso híbrido, contém diferentes níveis sobrepostos ou justapostos de sentido, muitos deles oriundos da associação entre o texto e os elementos visuais. Combinando experiências literárias e não-literárias, o que surge em toda sua potência significativa nesses discursos é o poder do não dito, vazio inscrito como virtualidade a ser preenchida pelo engajamento de um interlocutor disposto a arriscar suas certezas e enfrentar corajosamente seus pré-julgamentos. A participação da palavra poética na vida cotidiana atualiza uma série de questões a respeito da função do poeta e da própria poesia na sociedade de consumo e meios de comunicação de massa. Nesse sentido, um dos aspectos da antipoesia, como projeto literário concebido e desenvolvido por Nicanor Parra e presente na obra de Zuca Sardan, é sua perspectiva problematizadora, que indaga, radicalmente e sobre bases inéditas, a pertinência dos conceitos comumente naturalizados de literatura, gêneros, gosto, cânone e estilo. A investigação dessa temática, diferentemente do que acontece em diversos países da América Hispânica, é muito restrita no Brasil. Apesar disso, penso que sua proposta de abordagem seja relevante em dois sentidos fundamentais: primeiro, porque instaura um espaço de interlocução com o pensamento crítico de estudiosos de outros contextos; em segundo lugar, porque o conhecimento advindo desse processo de intercâmbio intelectual pode, dependendo do objeto de investigação, configurar-se como alternativa possível para a pesquisa em torno das problemáticas da poesia brasileira contemporânea, notadamente em relação à poesia marginal dos anos 70 e suas possíveis derivações posteriores. No tocante ao trabalho de Sardan, acredito que essa orientação represente uma possibilidade interessante para a área da investigação literária, pois auxilia no entendimento de uma manifestação estética complexa e multifacetada ainda pouco estudada pela academia. Referências CABAÑAS, Teresa. Nicanor Parra: a ruptura poética da antipoesia. Expressão – Revista do Centro de Artes e Letras - UFSM, Santa Maria, v. 1, n. 1, p. 196-202, 2003. 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Tensiones en la poesía moderna de Baudelaire a los años sesenta. México: Fondo de Cultura Económica, 1991. p. 225-271. HOLLANDA, Heloísa Buarque de. 26 poetas hoje. 2 ed. Rio de Janeiro: Aeroplano, 1998. MATTOSO, Glauco. O que é poesia marginal. São Paulo: Brasiliense, 1981. MELO NETO, João Cabral de. Da moderna função da poesia. In: Melo Neto, João Cabral de. Prosa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998. p. 97-101. MOLES, Abraham A. La imagen como cristalización de lo real. Revista Criterios, 25-28, Enero 1989 – Diciembre 1990. p. 118-150. PARRA, Nicanor. Antipoemas – Antologia (1944-1969). Barcelona: Seix Barral, 1976. PAZ, Octavio. A outra voz. São Paulo: Siciliano, 1993. RETAMAR, Roberto Fernández. Antipoesía y poesía conversacional en Hispanoamérica. Dos cosas. In: Retamar, Roberto Fernández.. Para una teoría de la literatura hispanoamericana y otras aproximaciones. La Habana: Casa de las Américas, 1975. p. 111-126. SARDAN, Zuca. Ás de colete. 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Após a análise dos dados, pôde-se verificar o quanto a marginalização e o esquecimento estão presentes naquele local, pois tanto as autoridades como a sociedade ignoram os direitos desse povo, que enfrenta muitas dificuldades para sobreviver. Conclui-se que o sujeito desta pesquisa está em conflito identitário, mas mesmo assim, conseguiu deslocar-se, reelabora seu discurso, realiza seu sonho, que é ter um pedaço de terra, onde possa viver com sua família e buscar sua subsistência. Palavras-chave: história de vida; identidade; Assentamento Serra. ABSTRACT: This article will present the story of the life story of one resident of the Assentamento Serra, in order to verify how the formation of identity of the subject, argues that ideologies, representations that the site has struggled to achieve, which place the settler produces its social discourse. After analyzing the data, we could check how marginalization and neglect are present at that place, since both the authorities and society ignore the rights of the people, who face many difficulties to survive at the site. We conclude that the subject of this research is conflicting identity, but still able to move, reworks his speech, realize your dream, it is to have a piece of land where he could live with his family and pursue their livelihoods. Key word: life history; identify; Assentamento Serra. Introdução Neste artigo, abordamos a história de vida de um Assentado do Assentamento Serra. Um morador, dentre tantos outros, que vive o problema de ser marginalizado, estigmatizado, apesar de ser um desbravador e lutador. É importante ressaltar a diversidade cultural existente dentro do Assentamento Serra, com assentados provenientes de várias cidades vizinhas e de culturas bastante diferenciadas, tornando o local um rico e variado pólo cultural. Talvez ignorado por muitos, por isso a importância de um trabalho que resgate as histórias de vida desses moradores, respeitando e valorizando seus valores e saberes. Para isso, desenvolvemos uma pesquisa44 intitulada História de vida: a construção da identidade dos parceleiros do Assentamento Serra – com apoio da FUNDECT-MS-, oportunidade em que o grupo de pesquisadores desse Projeto - apoiados na metodologia da História Oral, pesquisa qualitativa -, coletou as histórias de vida de vinte moradores (via entrevista áudio-gravada) que fazem parte do Assentamento, desde o sorteio das terras, ou seja, são os mais antigos do local. Dentre esses entrevistados, selecionamos a história de vida de um deles para compor o corpus deste artigo, denominado (AA). É importante salientar que os dados utilizados neste artigo já foram utilizados na pesquisa de TCC, em 2007, pelo 43 Docente da Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul (UEMS), campus de Paranaíba (MS) e colaboradora do Programa de Mestrado em Letras da UFMS, campus de Três Lagoas. Doutora em Linguística pela UNICAMP e Pesquisadora da FUNDECT. 44 Pesquisa desenvolvida no âmbito da UEMS com o apoio da FUNDECT de Mato Grosso do Sul. 128 | P á g i n a Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano (Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no10 acadêmico Luciano Rodrigues Borges, do curso de Pedagogia da UEMS, Unidade de Paranaíba; no entanto, neste artigo, com base nos pressupostos teóricos da Análise do Discurso de linha francesa (AD), re-significamos esses resultados, ou seja, analisamos os dados coletados com o olhar de analista do discurso, que considera as condições de produção e a ideologia do sujeito pesquisado como fundamentais na interpretação dos dados. Ressaltamos que o objetivo principal neste artigo é verificar como se dá a formação da identidade desse sujeito, que ideologias defende, que representações possui do local onde lutou, de que lugar social o assentado produz seu discurso, procurando assim refletir sobre como se dão as condições de produção do discurso desse sujeito, uma vez que, segundo o senso comum, os assentados são sujeitos estigmatizados pela sociedade, considerados sem voz, não-ativos e preguiçosos. Assim, esperamos que, ao tornar público o discurso de um dos assentados do Assentamento Serra, estejamos contribuindo para trazer à tona um discurso encoberto, dissimulado pela mídia e pela sociedade, em geral. Tudo isso, devido às condições políticas, histórico-culturais em que vivem, questões que derivam da situação de contato entre assentados e população em geral, não esquecendo das relações de poder existentes ente assentados e governo. Além disso, nenhuma história, embora seja processo e construção da trajetória da humanidade ao longo dos tempos, permanece apenas na oralidade. A história da humanidade, em sua realização, constitui-se pela inter-relação de fatos, processos e dinâmicas que, mediante movimentos dialéticos e da ação dos sujeitos históricos, individuais ou coletivos, transformam as condições de vida do ser humano ou se empenham em mantê-las como estão (DELGADO, 2006, p.15). Assim, é fundamental o registro de suas histórias de vida, para que, a partir daí, seus relatos possam gerar novas reflexões, novas pesquisas e até algum deslocamento na história. As questões discursivas e a produção de sentido Nossa visão de linguagem, nesta pesquisa, não será a linguagem enquanto sistema de signos ou de regras, mas com a língua no mundo, com maneiras de significar, com homens falando, considerando a produção de sentidos como parte de suas vidas. Entendemos a linguagem como discurso, que, etimologicamente, tem a ideia de curso, de percurso, de correr por, de movimento (ORLANDI, 1999). Assim, consideramos que o discurso é “palavra em movimento, prática de linguagem” (ORLANDI, 1999, p. 15); eis a razão de analisarmos os relatos das histórias de vida de um assentado, uma vez que pretendemos entender de que lugar social o assentado produz seu discurso, isso porque, na análise do discurso, procuramos compreender a língua fazendo sentido, enquanto trabalho simbólico, parte do trabalho social geral, constitutivo do homem e da sua história. Observa-se o homem falando, considerando o homem e sua história, os processos e as condições de produção da linguagem. Por isso é de suma importância que o analista do discurso relacione a linguagem à sua exterioridade, ou seja, às condições de produção do discurso, ou ao contexto sócio-histórico-ideológico. Necessariamente determinado pela exterioridade, todo discurso remete a outros discursos (memórias do dizer). Assim, a interpretação é sempre regida por condições de produção específicas que, segundo Orlandi (2007, p.31), aparecem como verdades universais e eternas. “É a ideologia que produz o efeito de evidência e da unidade, sustentando sobre o já dito, os sentidos intitucionalizados, admitidos como naturais. Há uma parte do dizer, 129 | P á g i n a Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano (Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no10 inacessível ao sujeito, e que fala em sua fala”. Assim, ao analisar o discurso de um assentado, estaremos refletindo sobre sua ideologia, suas identificações, pois a produção de sentido se dá mediante a análise das relações entre o sujeito que fala, com quem fala e para quem diz. Nessa perspectiva, para a Análise do Discurso, não há sentido, sem interpretação, diante de qualquer objeto simbólico, o homem é levado a interpretar. Pela ideologia, se naturaliza o que é produzido pela história. “A ideologia é interpretação de sentido em certa direção, direção determinada pela relação da linguagem com a história em seus mecanismos imaginários” (ORLANDI, 2007, p. 31). Assim, buscamos em Bakhtin (1992) o conceito de ideologia, o qual é entendido como o conjunto dos reflexos e de interpretações da realidade social e natural que tem lugar no cérebro do homem e, se expressa por meio de palavras ou outras formas sígnicas. Assim, ideologia é a expressão de uma tomada de posição, uma produção de sentido de um determinado sujeito, em determinadas circunstâncias sócio-históricas. Para esse autor, a palavra é o signo ideológico por excelência, produto da interação social, caracteriza-se pela plurivalência. Por isso é o lugar privilegiado para a manifestação da ideologia, retrata as diferentes formas de significar a realidade, segundo vozes, pontos de vista daqueles que a empregam. Dialógica por natureza, a palavra se transforma em arena de luta de vozes que, situadas em diferentes posições, querem ser ouvidas por outras vozes. Ratificando tais pressupostos, Pêcheux também afirma que as palavras têm sentido em conformidade com as formações ideológicas em que os sujeitos se inscrevem: O sentido de uma palavra, de uma expressão, de uma proposição, etc.,, não existe “em si mesmo” […] mas, ao contrário, é determinado pelas posições ideológicas colocadas em jogo no processo sócio-histórico no qual as palavras, expressões, proposições são produzidas. (PÊCHEUX, 1997, 190). Assim, entendemos que a noção de sentido é dependente da inscrição ideológica da enunciação, do lugar histórico-social de onde se enuncia, da formação discursiva a que o sujeito pertence. Isso envolve os sujeitos em interlocução. De acordo com as posições dos sujeitos envolvidos, a enunciação tem um sentido e não outro(s). Assim sendo, […] o sentido de uma sequência só é materialmente concebido na medida em que se concebe esta sequência como pertencente necessariamente a esta ou aquela formação discursiva […] trata-se de um “efeito de sentidos” entre os pontos A e B. […] Os elementos A e B designam algo diferente da presença física de organismos humanos individuais […] A e B designam lugares determinados na estrutura de uma formação social. (PÊCHEUX; FUCHS, 1990, 169). Os dizeres são efeitos de sentidos que são produzidos por um determinado sujeito, em condições determinadas e que estão de alguma forma presentes no modo como se diz, deixando vestígios que o analista do discurso tem de apreender. Segundo Orlandi (1999), o indivíduo é interpelado em sujeito pela ideologia para que se produza o dizer. O sujeito discursivo é um sujeito social, apreendido em um espaço coletivo, não é um sujeito fundamentado na individualidade, mas um sujeito que tem existência em um espaço social e ideológico, em um dado momento da história e não em outro. A voz desse sujeito revela o lugar social; a sua formação discursiva logo expressa um conjunto de outras vozes integrantes de uma dada realidade social, de sua voz ecoam as vozes constitutivas e/ou integrantes desse lugar social. Mediante o exposto, afirmamos que o sujeito, previamente concebido como tendo uma identidade unificada e estável, está se tornando fragmentado, disperso, composto não de 130 | P á g i n a Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano (Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no10 uma única, mas de várias identidades, algumas vezes contraditórias ou não resolvidas. A identidade plenamente unificada, completa, segura e coerente é uma fantasia. Ao invés disso, à medida que os sistemas de significação e representação cultural se modificam, somos confrontados por uma multiplicidade desconcertante e cambiante de identidades possíveis, com as quais poderíamos nos identificar – ao menos temporariamente (HALL, 2005). Portanto, essas identidades são construções sociais e culturalmente situadas, são formadas na relação inescapável e necessária com a alteridade. Os sujeitos, segundo Grigoletto (2006), possuem identidades fragmentadas e proteiformes em constante mobilidade num mundo (pós-moderno, midiático) em que as referências são cada vez mais cambiantes e fragmentadas, em que os modelos fixos e perenes deixaram de existir. Nessa perspectiva, supomos que o sujeito constrói as representações da realidade de acordo com o lugar de onde fala, com suas experiências de vida e sua ideologia. Que representações o assentado faz do seu pedaço de terra? Segundo Jodelet (2002, p.22), as representações sociais são uma forma de conhecimento socialmente elaborado e compartilhado, com um objetivo prático, e contribui para a construção de uma realidade comum a um conjunto social. O Assentamento Serra: história e descrição Conhecer a realidade a ser pesquisada é essencial para o desenvolvimento de qualquer estudo. Mais necessária ainda é esta condição quando se trata de povos que vivem à margem da sociedade, como é o caso dos assentados do Assentamento Serra. Nesse sentido, conhecer onde moram, como moram, onde viviam antes de fazer parte desse assentamento e por que deixaram suas raízes (antigas moradias e residências) para fazer parte desse assentamento é fundamental para entender as identificações do sujeito pesquisado. Para melhor entender a realidade a ser analisada, foi preciso buscar um pouco da História desse Assentamento, a descrição do local e como vive esse povo. Em Mato Grosso do Sul, algumas medidas também foram planejadas e estão sendo adotadas pelo atual governo, em parceria com o governo federal. Além de desapropriações efetuadas ao longo de sua história (considerando ser um estado bastante jovem), outras vêm sendo pouco a pouco implantadas com o fito de manter o homem no campo, estabelecer uma forte economia de mercado e por fim diminuir a miséria no campo. (LAMBLÉM, 2001, p.96). Foi essa a intenção do governo, ao desapropriar as terras do Assentamento Serra, após desapropriação da Fazenda na região nordeste do estado de Mato Grosso do Sul, no município de Paranaíba (MS). Com o acompanhamento das pessoas interessadas por sua parcela de terra, a área foi divida em 116 (cento e dezesseis) lotes (parcelas), possuindo, em média, vinte hectares cada, agregando 116 (cento e dezesseis famílias), que passaram a fazer parte do Assentamento Serra, a partir de 12 de dezembro de 1997, data em que foi realizado o sorteio dos lotes, segundo informações dos próprios moradores do local. É importante salientar que, segundo o Plano do Desenvolvimento Sustentável de Assentamento da Reforma Agrária – Projeto de Assentamento Serra (1998), a maioria das famílias assentadas é proveniente da região do Bolsão Sul-mato-grossense (municípios de Paranaíba, Cassilândia, Inocência, Aparecida do Tabuado e Três Lagoas) – que estava desempregada ou subempregada. Essas pessoas tinham nas atividades agropecuárias a sua manutenção e a de suas famílias e, pela falta de oportunidades no meio em que viviam, foram 131 | P á g i n a Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano (Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no10 obrigadas a migrarem. Além dessas, há algumas famílias que vieram de outros estados brasileiros em busca de melhores oportunidades e, por estarem desempregadas, viram na reforma agrária um meio de desempenharem a sua profissão e manterem as suas famílias. Os lotes são protegidos por terraços, em sua maioria, porém, em muitas das parcelas, já houve um rebaixamento, havendo, portanto a necessidade de aterrá-los (dados levantados no escritório do INCRA e checados, a partir de diversas visitas locais e entrevistas aos moradores). Em relação aos recursos hídricos na área do Assentamento, existe o Córrego do Divisa, o Córrego da Barraca, Cabeceira da Velhacaria e a Cabeceira do Azulão e algumas outras sem denominação. Mas apesar dessas cabeceiras, 80% das parcelas de terra não possuem aguadas naturais, dificultando a principal forma de exploração que seria a pecuária, ficando difícil inclusive a obtenção de água para o consumo diário e a agricultura doméstica. Constatamos que existem parceleiros que buscam água até a distância de três quilômetros para atenderem as suas necessidades domésticas (serviços domésticos, higiene, alimentação), sendo que alguns buscam em vizinhos e a maioria traz água da sede, água essa proveniente do poço semi-artesiano que já existia. Devido a essa dificuldade, muitos assentados usam água de represas ou de poços artesianos, sem nenhum tratamento adequado à saúde dos assentados. Praticamente todas as moradias possuem fossas sépticas e o lixo é jogado em buracos que ficaram abertos, por ocasião da construção das casas, sendo que todas possuem banheiros internos. Nota-se, portanto, que no quesito saúde, há necessidade de diversas melhorias por parte do poder público (BORGES, 2007). No que diz respeito ao atendimento à saúde, a situação do Assentamento também é muito deficitária, pois o médico visita o local apenas uma vez na semana, e, quando precisa de algum remédio, o paciente deve esperar até a semana seguinte, quando o médico lá retornará. Por isso muitas famílias preferem ir ao município vizinho, Inocência, para poderem consultar um profissional da saúde, principalmente, quando o paciente precisa de um atendimento imediato. Apesar dessas dificuldades, quase toda área dos lotes, hoje, já está ocupada com pastagens cultivadas, em quase todos os lotes foram plantadas algumas culturas de subsistência, tais como, mandioca, milho, arroz, feijão, hortaliças e pomar caseiro, segundo Borges (2007). Esse autor comenta que, por meio das visitas de campo, foi observado que uma forma muito usada no Assentamento é a troca de dias de serviço, pois, devido à falta de recursos, os parceleiros promovem ajudas entre si, tanto às mulheres quanto aos homens, por meio de mutirões ou a troca de dias de serviço, tanto nas atividades agropecuárias quanto nas demais necessidades, não havendo quase nunca alguma remuneração em espécie. Além disso, não se vê, no local, muita distinção entre trabalho masculino e feminino, pois as mulheres tanto apartam vacas, cuidam dos porcos, consertam cercas, como vão para a lavoura, e alguns homens ajudam nos serviços domésticos, sobretudo, nas refeições diárias. Pela observação in loco, sobre a questão da educação no Assentamento, verificou-se que só existe uma escola, improvisada na antiga sede da fazenda, não sendo planejada para receber as crianças de forma adequada. Nessa escola só são atendidas crianças que cursam até o 5º ano, e as demais séries do ensino fundamental só são oferecidas nas cidades vizinhas, ou no Distrito do Tamandaré, que pertence ao município de Paranaíba (FREITAS, 2008). Segundo um dos nossos entrevistados (AA), a prefeitura oferece o ônibus que faz o transporte dos alunos, mas essa locomoção se torna um processo muito desgastante para as crianças, em decorrência da distância, estradas ruins e ônibus escolar em condições precárias. 132 | P á g i n a Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano (Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no10 Não se vê no local uma escola que atenda as diferenças culturais desse povo; há uma grande homogeneização do saber e, sempre, visando à economia de gastos com a educação. Portanto a questão da inclusão social desse povo, por meio da educação, está longe de ser atendida. Seria importante que a escola realizasse um trabalho que mantivesse a diversidade na unidade, isto é, concebesse a unidade como garantia de sobrevivência sem desconhecer as diferenças (ORLANDI, 2002). Com relação à cultura e lazer no Assentamento, praticamente não há manifestações culturais, exceção feita às reuniões de senhoras e de alguns parceleiros na direção de realizações de cultos religiosos. Um tipo de lazer que merece ser mencionado é o campo de futebol no local denominado “área verde”, que é ocupado, de vez em quando, pelos moradores da região (FREITAS, 2008). Ainda há muito a ser investido no Assentamento, fala-se muito em leis de reforma agrária, no incentivo aos moradores rurais a permanecerem no campo, em direitos iguais para todos e em estimular o homem a permanecer no campo. No entanto, muito pouco é feito na realidade, como poderemos ratificar ao lermos o relato da história de vida de um morador desse Assentamento. História de vida de um dos parceleiros do Assentamento Serra As características de um povo não podem ser atribuídas improvisadamente, são produzidas ao longo de uma história de trabalho e, por conseguinte, é necessário certo tempo para que possamos entendê-las melhor e, assim quem sabe, interferir positivamente na realidade encontrada (se necessário for). O assentado faz parte de uma comunidade marginalizada pela sociedade, vive em condições sócio-econômico-culturais estigmatizadas, por isso necessita da sociedade não só mais atenção, mas, sobretudo, de ações que visem a sua inclusão sócio-político-cultural, com o fito de propiciar a esse morador condições para que possa: “defender-se da exploração; defender seus territórios; progredir para além da alfabetização inicial; apropriar-se das técnicas do letramento e processos subsequentes; sentir-se prestigiado perante o mundo” (ORLANDI, 2001, p. 242). Partimos do princípio de que os movimentos da História são múltiplos e se traduzem por mudanças lentas ou abruptas, por conservação de ordens sociais, políticas e econômicas e também por reações às transformações (DELGADO, 2006, 15). Nesse sentido, ao relatarmos a história de vida de um dos moradores do Assentamento, estaremos acompanhando o seu movimento na história, os seus deslocamentos, rumo à transformação de uma sociedade solidificada pelo poder e exclusão. O assentado, cujo discurso analisamos neste texto, tem quarenta e quatro anos de idade, possui esposa e três filhos. Antes de ir para o Assentamento, trabalhava com lavoura de abacaxi em Goiás. AA - Eu morava, em Goiás. Nós mexia com abacaxi, eu plantava. Nós vivia até bem [...] Aí, eu quis vir para cá porque a gente vivia morando de arrendamento, aí eu achei que se trabalhar numa terra minha, eu ia desenvolver melhor. Mas infelizmente, parece que não deu muito certo não. Agora pra frente está melhorando, mas até uns três anos atrás não deu certo não. AA é um morador que está no Assentamento Serra desde o sorteio dos lotes, e, mediante seu relato, observa-se que a maioria dos moradores que está no Assentamento, desde 133 | P á g i n a Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano (Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no10 o início do loteamento, era trabalhadora do campo, já tinha sua vida sofrida de empregado em fazendas ou empreitas. No entanto, o desejo de mudança, a utopia por um mundo melhor, a busca pela sua completude marcam o discurso desse sujeito. Isso porque ele se constitui no embate constante, e sem fim, entre o desejo por um lugar melhor, lugar da completude e o lugar em que sempre viveu, lugar da falta, do ilegitimado, do desvalorizado, isto é, […] como todo sujeito que ocupa um lugar determinado numa formação discursiva, sua identidade se constitui no conflito entre o desejo da completude e a percepção, ainda que não totalmente consciente, da falta; daí a angústia, a busca incansável de soluções, momentaneamente apaziguadoras, para os problemas do dia-a-dia (CORACINI, 2003, p. 207). Nas palavras de Coracini, a identidade do sujeito não é algo pronto, ela vai sendo construída e constituída desde as primeiras vivências do ser humano e continua se aperfeiçoando após as diversas experiências vivenciadas e os novos desejos. Para isso, precisam estar continuamente buscando novas informações, novos lugares, seja na profissão ou na busca por uma identidade mais segura que chegue mais próximo de suas utopias. Mediante os relatos de AA, pode-se observar certas artimanhas usadas pelos fazendeiros que já venderam suas terras para o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária - INCRA. AA - Aqui foi meio complicado, porque nós ficou 90 dias acampado ali na divisa com Inocência, aí depois o fazendeiro queria que nóis entrasse pra fazenda [...] só que todos é assim, depois que o pessoal entra, eles falam que invadiram e recorrem na justiça pra aumentar os preços da terra. Aí nóis não quisemos entrar não, porque nós não tinha a autorização da fiscalização. Aí nós aguardamos, e só entramos pra dentro, ai veio a autorização falando que já tinha negociado, e estava tudo pronto. Ai depois nós começamos a trabalhar, a medir terra, a conhecer os corgos, pra ver onde fazer a represa. Esse assentado tem consigo a representação de que todo Sem Terra é considerado um invasor tanto pela mídia, como pela sociedade em geral, sabe que o dono da terra pode ter o poder na mão, portanto, prefere não arriscar a sua face, entrando nas terras sem autorização do INCRA. Além do mais, a desapropriação era algo conveniente para ambas as partes, tanto para o dono da terra, como para os assentados. Portanto, seu discurso revela o mascaramento das conveniências, dos desejos de cada um, da luta pela sobrevivência. O homem, na visão bakthiniana, só pode ser estudado como sujeito que tem voz, como produtor de sua própria história, nunca como coisa ou objeto e, nesse sentido, o conhecimento só pode ter caráter dialógico. Conhecimento dialógico é acontecimento. É encontro, pois será na sua relação com os diversos textos da cultura que o sujeito vai se constituindo, visto que a palavra do outro se transforma dialogicamente com a ajuda de outras palavras até transformarse em pessoal. A essa transformação das ideias do outro em opinião, Bakhtin (1992b) denomina de “o processo de esquecimento progressivo dos autores”, pois “nossos enunciados estão repletos de palavras dos outros, caracterizados, em graus variados, pela alteridade ou pela assimilação, caracterizados, também em graus variáveis, por um emprego consciente e decalcado” (p. 314). O entrevistado construiu seu discurso mediante a imagem que possui do discurso do outro (sociedade, mídia), por isso foi cauteloso para não ser denominado de invasor, já que sabemos ser muito comum aparecer na mídia a manchete “Sem Terra invade propriedade alheia”. Esse sujeito nega o discurso já cristalizado, mostra consciência de seu lugar social. Assim podemos afirmar que o discurso não é neutro 134 | P á g i n a Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano (Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no10 […] por ser heterogêneo, a autonomia do sujeito é uma ilusão, pois ele não é dono absoluto de seu dizer, assim como lhe escapa o controle dos efeitos de sentido que seu dizer causa, já que as palavras são sempre, e inevitavelmente, as palavras do outro. As palavras vêm sempre de um já-dito na fala do outro (ECKERT-HOFF, 2003, p. 271). Apesar da pouca escolarização, dos poucos conhecimentos jurídicos que possui, AA demonstra ser um sujeito ativo, que percebe as artimanhas do poder. Nesse sentido, na esteira de Cevasco (2003), afirmamos que esse sujeito soube destrinchar as névoas de que a ideologia se utiliza para recobrir a realidade, na tentativa de cumprir seu objetivo de dificultar o entendimento do modo como funciona nossa sociedade. Assim, os assentados foram seguindo seu curso na história, passando por diversas dificuldades, superando as armadilhas do poder, até poderem entrar em seu lote, mas isso não quer dizer que, quando entraram, as dificuldades acabaram-se; pelo contrário, apenas começaram os problemas, já que tiveram que lutar muito para conquistar o seu lote, a sua moradia. AA - Minha esposa ficava em Tarumã, porque tinha filho na escola e tudo, né! Então não tinha como ficar os dois aqui. Depois do sorteio, a gente localizou cada um o seu lote. Limpamos o local para fazer o barraco, até construir a casa. Nóis já começamos a se enganar, por que achamos que era rápido as coisas pra vim do INCRA, mas enganamos, e ficamos muito tempo jogados aqui. Nóis ficamos dois anos aqui sem sair nada, sem sair o dinheiro pra casa [...] Ah, nóis morava num barraco de plástico, durante dois anos. Não tinha água, não tinha nada, nada, nada! Isso daqui era uma braquiara alta, mas uma terra dura aqui não sai nada, vocês mesmo podem ver aí. As mudas ficavam pequenininhas assim, e não virava nada não. Depois de dois anos saiu o dinheiro da casa, e nóis fez a casa. Depois de três meses saiu o investimento pra comprar as vacas, ai que foi melhorando as coisas [...]. Pelo discurso de AA, o governo comprou a fazenda, loteou, sorteou os lotes de acordo com os inscritos no Sindicato, dando prioridade aos que já trabalhavam com a terra, ou seja, a quem tinha experiência comprovada como agricultor. Todavia, o primeiro financiamento para esse pessoal trabalhar só saiu após dois anos de acampamento. Como fazer reforma agrária sem dar condições para se trabalhar a terra? Apesar disso, o assentado tem seu ideal: ser dono de sua terra, ser proprietário, assim como seu “ex-patrão”. É nesta busca de identificação com o outro que reside o discurso. AA tem sua identificação com a terra, ser dono de seu pedaço de terra, por isso mesmo com as dificuldades, observa-se que seu discurso ora está carregado por um discurso de esperança, ora se desespera na busca de respostas para problemas cotidianos, “atravessada por identificações conflitantes, a subjetividade […], constitui-se na e da tensão entre um discurso que o valoriza, produto de um desejo, e outro que o desvaloriza, resultante de uma realidade social em manutenção” (CORACINI, 2003, p. 249). Dentre os diversos discursos de desespero, destacamos o discurso sobre a falta de água, que segundo AA, AA - Buscava água na cacunda, numa represa que tem lá embaixo. Quase dois km daqui. Até pra construir a casa foi buscando água lá embaixo, muitas vezes era na cacunda, por que a gente não tinha dinheiro pra pagar, mas às vezes tinha carro aí a gente pagava para ir buscar pra nóis [...] Hoje eu não tenho o que reclamar, porque graças a Deus, a gente foi trabalhando e pelejando e eu dei conta de furar um poço aqui né! Então este problema eu não tenho, mas muita gente ainda tem. O nosso sistema de água lá da sede não funciona porque ninguém tinha renda pra pagar a energia, então depois de três meses eles cortam. 135 | P á g i n a Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano (Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no10 Assim, muitos assentados vão sendo conduzidos, outros se perdem, não conseguem alcançar soluções para os problemas, negam suas identidades e praticam um discurso do poder, entrando em uma crise de identidade que, conforme Hall (2005, p. 7), “[…] é parte de um processo mais amplo de mudança, que está deslocando as estruturas e processos centrais das sociedades modernas e abalando os quadros de referência que davam aos indivíduos uma ancoragem estável no mundo social”. Diante do desespero, a ideia de convivência coletiva, que poderia haver em um Assentamento, vai se esvaziando e voltando ao individualismo do mundo urbano selvagem, em que cada um procura alcançar seus próprios bens para ter uma vida individualizada com menos problemas. O cada um para si se sobressai, aqueles que têm condições deixam o sofrimento da posse coletiva de água para ter a sua posse individual, o seu poço d’água, em sua propriedade particular. Para melhor entender as relações de poder existentes nessa sociedade, é fundamental termos em mente que o processo de apropriação da palavra do outro acontece de maneira diferente, de pessoa para pessoa. O sujeito é híbrido, porque o conjunto de discursos sociais que formam o indivíduo “X” pode ser diferente do conjunto que forma o indivíduo “Y”; porém isso não elimina a possibilidade de os sujeitos “X” e “Y” terem discursos em comum. A essa altura, citando João Cabral de Mello Neto, é importante ter em mente que um “galo sozinho não tece a manhã” e os fios de sol que tecem o nosso discurso nascem das experiências tecidas anteriormente “entre os muitos galos”; complementa-se com os bordados atuais e são modificados por meio de estudos e experiências do outro e com o outro. Por isso é preciso que “um galo apanhe o grito de um outro galo antes e o lance a outro”. Isso nos leva a refletir sobre o quanto nossa identidade está sempre em constituição, ela […] se forma ao longo do tempo, através de processos inconscientes, ela não poderia ser vista como algo inato, existente na consciência no momento do nascimento […]. Apesar da ilusão que se instaura no sujeito, a identidade permanece sempre incompleta, sempre em processo, sempre em formação. Assim, em vez de falar de identidade como algo acabado, deveríamos vê-la como um processo em andamento e preferir o termo identificação, pois só é possível capturar momentos de identificação do sujeito com outros sujeitos, fatos e objetos. (CORACINI, 2003, p. 243). Nesse sentido, a cada luta que travamos, a cada embate, a cada dificuldade imposta, novas maneiras de agir vamos encontrando, melhor vamos nos conhecendo, melhor vamos aprendendo a driblar os embates político-ideológicos que nos são impostos a cada dia. A questão da Associação dos Moradores do Assentamento Serra também foi mencionada por AA, que já foi um dos presidentes dessa Associação. AA apresenta as várias dificuldades enfrentadas por ele e pelos outros presidentes que passaram pela Associação. AA - Um problema sério aqui hoje, eu falo pela minha experiência calejada, é a união, porque a gente depende muito da união pra conseguir as coisas, e aqui ninguém tem, aqui cada um pra si. Quando surge uma ideia boa pro povo daqui, eles acham que aquela ideia está surgindo pra beneficio de um só. Aqui é meio complicado. Estamos querendo montar uma cooperativa aí, e parece que essa ideia vai andar, foi a primeira reunião que foi feita que deu certo. As pessoas que veio concordou, mas nem todo mundo veio. As coisas é assim, quando você está quase conseguindo fazer as coisas, vem três ou quatro pessoas e atrapalha tudo, porque não confia [...] Eu cansei de sair daqui e ir pra Campo Grande, com ônibus com setenta, sessenta pessoas dentro, e pessoas daqui mesmo denunciavam a gente pra prender a gente antes de chegar no INCRA. Então líder desse movimento que trabalha pro povo sofre muito. A gente sofre por eles, e eles não estão nem ai com você, não! A questão da falta de união e conscientização por parte dos próprios assentados fica muito bem representada. Se as autoridades não trabalham em prol do Assentamento, e nem 136 | P á g i n a Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano (Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no10 seus assentados conseguem se articular para poderem reivindicar melhorias, como pode ser possível obter alguma vitória? Há falta de solidariedade, conscientização e de identificações comuns para esses assentados. Agindo dessa forma, eles mesmos contribuem para sua exclusão social, pois lhes falta uma identificação comum, uma luta em comum dos moradores desse local para que possam serem reconhecidos junto às autoridades governamentais, e terem mais força em suas reivindicações. Nessa perspectiva, Eagleton (1997), baseando-se em Althusser, afirma que é preciso uma organização específica de práticas significantes que vão constituir os seres humanos como sujeitos sociais que produzem as relações vivenciadas, mediante as quais tais sujeitos vinculam-se às relações de produção dominante em uma sociedade. Talvez seja isso que esteja faltando a esses sujeitos, práticas significantes que venham motivá-los à luta pelos direitos deles mesmos. Portanto, é complexo pensar na subjetividade, na identidade do sujeito, visto que ela oscila, fruto de momentos vividos, felizes, de realizações, mas também conflitantes, que ferem, maltratando-o, humilhando-o e exigindo mudanças de atitudes. Por isso se descobre tendo que lidar não apenas com a terra que tanto deseja, mas também lutar pela subsistência, por moradia, pela educação dos filhos, por direitos mais amplos. Assim, “identificando-se, ao mesmo tempo e confusamente, com o herói e a vítima, o sujeito vê-se como imprescindível e desnecessário, paradoxo apenas aparente, se considerarmos a heterogeneidade constitutiva do sujeito e do discurso” (CORACINI, 2003, p. 248). AA - Coitados! Eles se ferram, coitados dos presidentes e membros, sofrem! Eles sempre concordam com as discussões nas reuniões, mas depois que sai dali, eles já começam a falar e desmanchar aquilo tudo. A associação tem uma dificuldade muito grande para trabalhar aqui dentro, na verdade, eles não trabalham, porque o pessoal não ajuda eles. São atitudes de união que lhes dariam voz, no entanto, como sabemos, as pessoas são diferentes, pensam diferente, possuem formações e identificações diferenciadas, por isso é pertinente a conscientização da necessidade de discutir, pois é por meio da palavra do outro que poderemos nos modificar, transformar nossa maneira de agir e pensar. Aqui é importante citar Bakhtin (1992) quando afirma que nenhuma negociação é harmoniosa e pacífica; nesse caso, também conflitos de interesses podem ser previstos. As mudanças, segundo Hall (2005), abrangem transformações nos conceitos que antes eram cristalizados, estáveis, sólidos. São mudanças estruturais presentes na cultura, nas classes sociais, gênero, sexualidade, etnia, raça, nacionalidade e que passam a influenciar nossas identidades. Por isso, ao distanciarmos de conceitos que eram tidos como certos, que guiavam nossas práticas, perdemos também a certeza da identidade fixa. Essas mudanças são necessárias para que se alcance algum objetivo em comum. É obvio que a pós-modernidade em que vivemos é constantemente transformada, forçando o surgimento de uma identidade que também precisa estar concomitantemente preparada para assumir as novas responsabilidades. Não é possível ao sujeito permanecer imutável, pois a cada dia mais lhe é cobrado resoluções. “A modernidade, em contraste, não é definida apenas como a experiência de convivência com a mudança rápida, abrangente e contínua, mas é uma forma altamente reflexiva de vida”. (HALL, 2005, p. 15). Mesmo assim, AA, durante o tempo que ficou à frente da Associação, sente orgulho de ter conseguido, pelo menos, uma melhoria para o Assentamento junto à prefeitura. AA - O Posto de Saúde foi até no mandato da gente, que conseguimos este posto de saúde. Antes não existia ele aqui não. Quando adoecia uma pessoa aqui, a gente tinha que sair doido pras cidades mais 137 | P á g i n a Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano (Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no10 perto, e ainda tinha aquelas burocracias de não atender por que não era da cidade. E Paranaíba era muito longe e quase ninguém tinha carro. Nós conseguimos no mandato do Tita, e isso começou a melhorar um pouco, porque muitas coisinhas que precisava ir na cidade agora não precisa mais. Toda terça-feira o médico tá aí, então ele tá sabendo das necessidades das pessoas aqui. Quando ele não vem, o enfermeiro vem, anota algum pedido de remédio, e na próxima semana, eles mesmo traz. Então é muito bom! O pouco que se consegue, para ele, já é uma grande vitória. Sabemos que numa comunidade de cento e dezesseis famílias é mais do que obrigatório que se tenha assistência médica adequada. No entanto, o poder constituído nega-lhes o que deveriam ter por direito. Por isso a interação com o outro é fundamental, pois o diálogo ativo é “compreendido como uma relação intersubjetiva instauradora de sujeitos” (OLIVEIRA, 2006, p. 35). Dessa forma, o diálogo é fruto do respeito ao dizer do outro, pois para Bakhtin (1992), “[…] o acabamento do eu vem de fora, é o outro que nos completa, pois só ele, pela posição que ocupa – exotopia – pode ver o que não vemos pelo excedente de visão”. O termo exotopia, empregado por Bakhtin, significa desdobramento de olhares a partir de um lugar exterior, ou seja, não é possível observar-me sem que meu ego interfira nesse olhar. “A presença da palavra do locutor e da contrapalavra do ouvinte faz que, em cada momento singular da interação verbal, cada qual se constitua também como sujeito” (FREITAS, 1999, p. 45). Observa-se dessa forma, a importância que se atribui ao diálogo, pois […] é através da crítica ou da negociação dialógica que ocorre entre os interlocutores, que se amplia o horizonte social dos sujeitos, elevando-se o grau de consciência dos sujeitos sociais através da linguagem, pois a relação dialógica implica a presença e a contrapalavra do outro, real ou virtual, que, estando numa posição exotópica no processo da interação verbal social, tem melhores condições para elaborar a crítica, ampliando a consciência do interlocutor no processo dialógico (FREITAS, 1999, p. 45). Nessa perspectiva, é importante aceitar críticas de seus pares e aprender com elas, constituindo-se; contribuir com o outro, pois, nesse espaço, as trocas devem ser constantes. Prosseguindo nossa discussão, no quesito vida familiar, AA afirma ter filhos, uma filha que já era casada ao vir para o Assentamento, continuou em Goiás. Já os outros dois filhos, que vieram junto com ele, estudaram na escola do Assentamento, por algum tempo, e a escola, na visão de AA, era eficiente: AA - Na época, que nos assentamos aqui, não tinha nada, era um barracão, improvisamos um quadro que era um papelão. Aí começamos, e foi assim durante um ano. Ai, a sede foi desocupada, e passou a escola pra lá, onde é até hoje. Eu nunca tive o que reclamar não, pelo menos pros meus meninos eu achei muito boa a professora. Muito boa! Eles aprendeu bem [...] Pararam, porque os dois casaram novos, todos os dois. E mudaram daqui. Apesar de ter passado por várias dificuldades, AA conseguiu prosperar no Assentamento. Segundo seu relato, hoje ele já possui cerca de setenta cabeças de gado, arrenda pastos dos vizinhos para poder criá-las, e conseguiu resolver o seu problema com a água e seguir a sua vida com mais tranquilidade. No entanto, percebe-se que a única solução para os filhos já adultos é procurar outro local para trabalhar, uma vez que não ficam no Assentamento para levar a mesma vida do pai, saem à procura de alternativas de vida, não pretendem continuar o trabalho do pai. Isso decorre, talvez, da falta de qualidade de vida no local, carência de assistência médica, de escola e de condições para melhor trabalhar a terra. 138 | P á g i n a Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano (Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no10 Dessa forma, os mais jovens passam a ter outras identificações, não concebem a ideia de viver no campo, isolados, querem o mundo globalizado, as novidades do mundo urbano, pensam como se pertencessem ao esse mundo, afinal, estudaram segundo os moldes da perspectiva urbana e globalizada. Referindo-se às identidades culturais, é possível examinar três consequências dessa globalização, a saber: 1)As identidades nacionais estão se desintegrando, como resultado do crescimento da homogeneização cultural e do “pós-moderno global”. 2)As identidades nacionais e outras identidades “locais” ou particularistas estão sendo reforçadas pela resistência à globalização. 3)As identidades nacionais estão em declínio, mas novas identidades – híbridas – estão tomando seu lugar. (HALL, 2005, p. 69) (grifos do autor). Em suma, vimos que, entre os filhos dos assentados, as identidades locais estão se desintegrando, os mais jovens saem em busca da vida urbana, do conhecimento globalizado. Embora ainda existam sujeitos lutando contra a globalização – como os assentados mais antigos -, temos “novas” identidades sendo fomentadas, identidades “híbridas” conforme Hall (2005), que são “originárias do cruzamento de espécies diferentes”, proporcionadas pela então globalização. Mesmo estando com uma situação financeira estável, controlada, quando se pergunta para AA se ele faria tudo de novo, ele nos surpreende. AA - Não! É por que a gente acha uma coisa e só descobre a realidade depois que tá lá dentro. A gente quando é comum, ninguém dá nada por ela, mas pelo menos nome você tem. A gente pensava que ia melhorar em tudo, mas aí a gente chega aqui e é enquadrado no ministério. E esse dinheiro acaba limitando o seu teto. Hoje pra mim fazer um empréstimo no banco, eu preciso de um avalista, e quem avaliza, um colega assentado? É discriminação porque é sem terra, ou negro [...] Quando eu mexi com lavoura de abacaxi, eu já estive muito bem, bem mesmo! Infelizmente tem uma coisa na natureza que judia também! Eu cansei de perder dez ou doze alqueires de roça por causa da geada [...] Agora trabalhá pros outros não, porque tudo o que faz pra eles não está. Na visão de Larrosa (1998), sabemos que a constituição do “eu” acontece em relação com o “outro” mediada pelos valores, pela história, pela cultura. São as semelhanças e diferenças que determinam o pertencimento. Essa é uma relação facilmente identificada no cotidiano do Assentamento Serra, pois, embora AA pense que talvez estivesse melhor como arrendatário, ele conseguiu, em detrimento das dificuldades, melhorar a sua situação de vida no Assentamento Serra e o fato de não trabalhar de empregado é, para ele, uma grande conquista, uma questão de pertencimento ao local. No entanto, devido a sua conscientização mais politizada, AA observa as diferenciações, as discriminações enfrentadas nos bancos e na sociedade, de modo geral, tanto é que fala “A gente quando é comum, ninguém dá nada por ela, mas pelo menos nome você tem [...] É discriminação porque é sem terra, ou negro”; isso porque antes de ser um assentado, ele tinha nome, agora ele é um simples assentado ou um “Sem Terra”, um “negro” e precisa ter avalista. Mas quem seria o avalista de um assentado? Outro assentado? Nesse sentido Freitas (1999) menciona que quanto mais forte for sua orientação social, seu poder de comunicação, de interação, maior será o grau de consciência do sujeito, “[…] diz-se da existência de certo nível escalar tanto na língua quanto na constituição dos sujeitos, e das suas consciências na interação verbal” e “[…] para que o individuo possa atingir um maior grau de consciência e de subjetividade, ele terá efetivamente que orientar sua 139 | P á g i n a Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano (Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no10 enunciação para o meio social e manter a visão social de classe para si, ao mesmo tempo realizando a atividade mental do nós.” (FREITAS, 1999, p. 42). Nessa visão, pensar a sociedade como um todo, sem voltarmos o pensamento para uma concepção individualista, é tarefa complexa, mas que resulta na constituição social do sujeito, propiciando, portanto, a alteração também da própria identidade. Considerações finais O Assentamento Serra é composto por pessoas humildes, em sua maioria, não alfabetizadas, pessoas que sempre trabalharam no campo, acostumadas a lidar com a terra. Tais características não as destacam dentre os demais sujeitos da sociedade e o governo não considera viável investir nestas pessoas. No Assentamento Serra, moram apenas cento e dezesseis famílias, ficando claro que o governo não se preocupa em fazer valer os direitos desse povo, talvez, para que não se tornem auto-suficientes. É importante para o poder ter os “mais fracos” sob seu poder, pois assim, ao atender um ou outro pedido, continua tendo-os nas mãos, fazendo que se sintam sempre devedores. O que seria do governo se fosse dado mais poder a esses moradores? Com pouca escolarização, o moradores do Assentamento Serra são ativos, vão à luta por aquilo que almejam, são desbravadores, lutadores. Fica claro o porquê do descaso das autoridades. Quando não é o descaso do poder público, é a exclusão por parte do resto da sociedade, que deixa os parceleiros à margem, colocando-os como menor, inferior às pessoas do meio urbano. Um fato comum em nosso cotidiano é o preconceito para com os assentados, pois quem nunca pensou em um assentado como um Sem Terra? Um baderneiro? Um invasor? Quem nunca fez este julgamento de primeiro instante? Trata-se de um paradoxo, pois o assentado possui seu lote, é um pequeno produtor rural, tem suas criações e, mesmo assim, pensa-se nele como um invasor. Fica-nos óbvio o preconceito para com essa gente trabalhadora do/no campo. Diante do exposto, defendemos o princípio de que ainda faltam representações mais positivas sobre a vida do e no campo, falta uma transformação das relações vivenciadas com a realidade social, e isso só pode ser assegurado mediante uma mudança material dessa mesma realidade (EAGLETON, 2007). O sujeito desta pesquisa não conseguiu isso ainda, mas conseguiu deslocar-se em sua história, e reelabora seu discurso, mesmo imerso no conflito identitário, permeado, de um lado, pelas divergências de ideias entre os vários moradores do local, e, de outro, pela falta de apoio do poder público. Referências BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e filosofia da linguagem. Trad. Michel Lahud e Yara Frateschi Vieira. São Paulo: Hucitec, 1992. ______. Estética da Criação Verbal. Trad. Paulo Bezerra. 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Concepções de leitura, sentido, autoria e originalidade implicam a forma de recepção e circulação da tradução em lugares específicos, já que é nas vozes do leitor e do tradutor que se observam a tensão e o conflito que o “entre-lugar” das línguas pode provocar no sujeito, ao se posicionar como construtor e responsável por seu discurso e sua história. Os enunciadores falam a partir de um contexto de ensino superior de literaturas estrangeiras, nos Estados Unidos da América. Palavras-chave: Tradução. Leitor. Representação. ABSTRACT: This paper aims at arguing about the representations that some professors of literature have of translation as readers and also as translators of literary texts in different contexts. Concepts as reading, meaning, authorship and originality interfere the way translation is received in specific places, since the tension and conflict observed in the reader and in the translator’s voices are a result of the “inter-language” place, situating individuals as the ones in charge of their discourse and history. The interviewees report from a higher foreign literature teaching context in the United States of America. Key-words: Translation. Reader. Representation. Introdução No sentido formal da palavra, traduzir é ler, embora ler não seja necessariamente traduzir. Se entendermos que a tradução implica a construção efetiva de um texto, ou seja, o ato de colocar no papel aquilo que se interpretou, a tradução pode ser entendida, num primeiro momento, como a materialidade de uma leitura, já que representa uma comunhão entre leitura e escrita. Várias concepções de leitura atravessam a literatura sobre o assunto, das mais clássicas – leitura enquanto decodificação, descoberta de sentido; leitura enquanto interação, construção de sentido –; às (pós-)modernas – leitura segundo a perspectiva discursivodesconstrucionista (CORACINI, 2005). A escola, em geral, prioriza a visão clássica - da linguagem como sistema ou como código -, enquanto a academia tende a corroborar a perspectiva interacionista, na qual o sentido é construído na interação entre leitor e texto. Para Coracini (2005), entretanto, é preciso ampliar a concepção de leitura para que se alcance a compreensão ou percepção do espaço social, lançando um olhar a nossa volta para que se perceba melhor o que nos rodeia. A leitura discursiva na pós-modernidade inscreve-se no espaço entre o novo e o diferente, interpretação que “não anula o texto, mas o (trans)forma, o (re)escreve, fazendo de ele surgirem outros textos que produzem outros e outros e mais outros 45 Docente de Língua Inglesa e Tradução do Departamento de Letras da Universidade Estadual de Maringá; doutora em Linguística Aplicada, área de Teoria, Prática e Ensino da Tradução pelo Instituto da Linguagem da Universidade Estadual de Campinas. Membro do Grupo de Estudos intitulado “Vozes (in)fames; exclusão e resistência”, sob a coordenação da Profa. Dra. Maria José Coracini (UNICAMP). 143 | P á g i n a Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano (Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no10 [...]”(CORACINI, 2005, p. 40). Segundo a autora, na visão discursiva, o olhar do leitor ou do observador vem de dentro do sujeito e está “inteiramente impregnado por sua subjetividade, que se constitui do/no exterior, por sua historicidade”. Na tentativa de trazer mais elementos que contribuam para a discussão das representações sobre tradução, este artigo tem como objetivo apresentar e problematizar os resultados de registros selecionados, com base nas representações dos entrevistados estadunidenses (professores de literatura estrangeira), na posição de leitores de textos literários estrangeiros. Para direcionar esta discussão, pergunto se suas representações de leitores de textos literários são diferentes daquelas de professores de literaturas estrangeiras. Que posição o sujeito, enquanto leitor, assume, através de seu discurso, ao falar sobre tradução? Os entrevistados, em contexto estadunidense, denominados P-1, P-2, P-3 e, assim, sucessivamente, são professores de literaturas estrangeiras (alemã, espanhola, francesa e coreana) em uma instituição nova iorquina e trabalham com literatura estrangeira traduzida. As entrevistas foram gravadas em MP3 e, em seguida, transcritas e traduzidas por mim para a língua portuguesa. Foram elaboradas sete perguntas relacionadas ao ensino de literatura estrangeira, ao uso da tradução e à leitura de textos literários estrangeiros na língua “de origem” ou na tradução. Análise e Discussão Nos recortes discursivos (doravante RDs) que seguem, tento abordar a perspectiva do professor-leitor e tradutor estadunidense, a partir do contexto que chamo de “diferente”, no qual a literatura estrangeira é, em sua grande maioria, traduzida. Ao ser questionado sobre sua preferência como leitor de textos literários, se em alemão ou em inglês, P-20, que ensina Literatura Alemã na instituição estadunidense comenta que prefere ler em alemão, sempre que possível. Ao responder o “por que” de sua preferência pela leitura dos textos no “original”, ele completa: (RD31):- Bem// eu ainda sou bem mais rápido para ler em alemão do que em inglês// também/ as traduções em inglês/ como eu digo/ são traduções de no máximo $5 a página// Então/ não são muito boas/ quero dizer/ se você pega uma tradução de um filósofo como o Donald/ homem importante/ mas com aquelas frases para as quais são traduzidas/ eu não entendo/ pois são simplesmente deixadas de lado (P-20, tradução minha) 46. P-20 compara sua leitura em alemão com sua leitura em inglês, afirmando: “ainda sou bem mais rápido para ler em alemão do que em inglês”. O uso do comparativo “mais rápido [...] do que” aponta para a necessidade de P-20 em expressar sua identidade alemã naquele contexto norte-americano, remetendo para uma possível tensão que o conflito de identidades culturais ocasiona no espaço “entre-línguas” ou entre-culturas (da leitura em alemão comparada à leitura em inglês). Retomando Foucault (2007, p. 147-148) sobre a questão do arquivo como responsável pela materialização dos discursos, o enunciado de P-20 corrobora a afirmação do filósofo de 46 Em inglês: Well// I’m still a lot quicker in reading them in German than in English//also/ English translations/ as I say/ they are most $ 5 a page translations// so/ they’re not that much adequate/ I mean/ if you take a translation of / take a philosopher like Donald/ important man/ but those sentences which they are translated/ I do not understand and they’re just left out. 144 | P á g i n a Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano (Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no10 que “é no interior de suas regras que falamos”, ou seja, como não conseguimos descrever nosso próprio arquivo que nos delimita enquanto sujeito, assumimos, mesmo que transitoriamente, a alteridade que nos constitui e que nossos dizeres denunciam. P-20 é o que os norte-americanos denominam de German-American (alemão de nascimento, porém, cidadão norte-americano), portanto, marcado pela dupla cidadania e, também, pelo hífen que aproxima, mas, ao mesmo tempo, separa e marca as duas identidades culturais. O advérbio “ainda”, do primeiro enunciado, chama a atenção para o hífen, para a tensão do “entre-lugar” de P-20, no sentido de que existe um movimento de deslocamento ou a fragmentação de identidades, muito embora, ele/a possivelmente resista, pois o advérbio “ainda”, como verbete dicionarizado (FERREIRA, 2004), significa “até agora”, denunciando, assim, certa tensão entre o passado e o presente que o constituem. Comparo o RD31 à questão do nome próprio que, segundo Derrida (2001), ao mesmo tempo em que pede, resiste à tradução, assim como o texto pede para ser traduzido pela própria necessidade de sobrevivência, ao mesmo tempo resiste, ditando o “respeite” minha “lei”. Os efeitos do dizer de P-20 apontam para a constituição de um sujeito traduzido pelo contexto hegemônico em que se insere, mas que, porém, resiste a se deixar traduzir. O dizer de P-20 também remete ao texto de Derrida (1998), O Monolinguismo do Outro ou a Prótese da Origem. Numa reflexão autobiográfica a respeito de sua relação singular com a língua francesa, Derrida (1998) trata da questão identitária como algo construído via alteridade, face ao interpelamento da língua do “outro”, do estrangeiro colonizador, tida por alguns filósofos que discutem a questão identitária como uma perspectiva agonística47, a citar, Bhabha (1998). Tal perspectiva postula que os indivíduos devem ser pensados como constituídos por tensões e conflitos, tensões estas intensificadas pela sociedade pós-moderna e que não se dissipam numa sociedade ideal, como se quer crer. Portanto, fica difícil pensar o indivíduo pós-moderno sem postular seu deslocamento cultural e, ao mesmo tempo, sua tradução cultural, como estratégia de sobrevivência. Assim, é preciso que pensemos a respeito do caráter incomensurável da diferença cultural, no qual não há mais espaço para categorias de consenso e fusão, tendo em vista a consequente tradução cultural, sugerida por Bhabba (1998) e amplificada pelas tecnologias midiáticas globalizantes, permitindo ao sujeito uma agência de “si”, fora da lógica das oposições binárias. Compreendendo as identidades por meio dessa lógica agonística, percebe-se a alteridade permanente que constitui as identidades, cuja agência se materializa nos conflitos e não na superação deles. Retomando Derrida (1998) com relação à suas dificuldades com a língua francesa – tida como materna – o filósofo argumenta que, na condição de judeu franco-argelino, a língua materna, já que não possui outra, é, desde sempre a língua do outro, do francês colonizador. Observa-se em tal circunstância, a impossibilidade de reconhecimento do francês como tal. Todavia, Derrida (1998) não se restringe apenas a seu caso particular, pelo contrário; o “monolinguismo do outro” postula a inviabilidade da alienação a uma língua tida como absoluta, marcando, dessa forma, a relação dialética de todo indivíduo com a sua língua materna e com qualquer outra língua estrangeira. Para Derrida (1998, p. 100), a língua prometida como idioma absoluto, anuncia consigo “a unicidade de uma língua por vir”, mas que, porém, não existe, ela sempre falta. Essa língua que “nunca é dada, recebida ou alcançada” (DERRIDA, 1998, p. 43) é irrecuperável, tornando o processo identificatório do sujeito com a língua, “interminável, indefinidamente fantasmático”, já que não existe algo que precede a falta na língua (a língua absoluta e impossível), pois toda língua é sempre a língua do outro, precedendo, necessariamente, o sujeito. Além desse conflito identitário que emerge da e na língua, o RD31 traz para a discussão a questão da “qualidade” da tradução também associada à noção de autoria. Ao se referir às 47 Do termo grego agon, que significa tensão ou conflito. 145 | P á g i n a Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano (Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no10 traduções “de no máximo $ 5 a página”, P-20, além de sinalizar que, por serem baratas ou mal pagas tais traduções “não são muito boas”, associando-as depois ao “filósofo”, à autoria como fator determinante de “boa” qualidade na tradução, faz, ainda, uma crítica ao tratamento que o mercado tradutório norte-americano confere à tradução, ou aos tradutores. P-20 acrescenta que as traduções de “no máximo 5$ a página”, ou seja, de baixa qualidade, segundo seu dizer, são aquelas elaboradas por tradutores não especializados, despreparados para traduzirem uma obra canônica, materializado no enunciado “você pega uma tradução de um filósofo como o Donald”, por exemplo, associando a qualidade da tradução ou do trabalho do tradutor à autoria. O sintagma “deixar de lado” (em inglês: left out) aponta para a noção de perda, também comum nos dizeres dos leitores de textos literários traduzidos, pois, segundo P-20, algumas frases não são traduzidas e que, por isso, tornam o texto traduzido incompleto, de baixa qualidade, ou menor. A assimetria observada entre original e tradução emerge com frequência, também nos dizeres de outros leitores estadunidenses. Vejamos o que diz P-12 como sobre a leitura de textos estrangeiros: (RD32):- Bem/ se é uma língua que eu possuo [conheço]/ eu pego muito mais as nuanças do que na tradução// é uma leitura mais completa// é uma leitura mais completa// eu não tenho que ler uma interpretação de outra pessoa// se eu consigo lidar com o original// eu às vezes faço um esforço mesmo que eu não consiga dominar bem uma língua/ como o italiano// eu leio em italiano mesmo que meu italiano não seja lá essas coisas// você aprecia mais a leitura (P-12, tradução minha) 48. O efeito do RD32, além de reforçar a formação discursiva da tradução como secundária do ponto de vista do leitor, também corrobora a noção de descentralização dos indivíduos, proposta por Hall (2006, p. 9). O autor trata a questão da fragmentação de identidades como resultado das mudanças, das transformações das “paisagens culturais de classe, gênero, sexualidade, etnia, raça e nacionalidade”, como já discutimos anteriormente. Tal asserção deve-se ao fato de que, em outro momento da entrevista, quando discute o que entende por tradução e literatura, a representação de P-12 sobre tradução é diferente da representação que emerge de seu dizer de leitor. Neste RD32, observam-se dois pontos importantes, ou seja, as noções constituídas por ele/a de leitura e de língua. A primeira remete ao imaginário de que uma língua possa ser “dominada” em sua totalidade, pois se ele consegue “dominar” ou possuir língua (do inglês: possess), ter total controle sobre ela, ele realiza o desejo de “completude”, do sujeito uno que, por meio da leitura na língua que ele “sabe” e “domina”, consegue fazer uma “leitura mais completa”. Esta leitura “mais completa” remete à segunda noção, a da ilusão da totalidade e da essência presente não só nas formações discursivas do sujeito, como também, no seu próprio desejo ou representação de língua, ou seja, de que aquilo que diz possa ser totalmente compreendido pelo outro, a língua como algo transparente e facilmente inteligível. Ainda, com relação à leitura ou à tradução, P-12 acredita que a “outra pessoa”, neste caso, o tradutor, interpreta o texto original. Porém, o sintagma “não ter que” já denuncia o que ele/a entende por interpretar, no sentido de que a tradução, que é “interpretação”, texto transformado, se distancia do texto-fonte e que, somente a “sua” leitura no original proporcionará as “nuanças” (tonalidades e matizes) que o original permite. Portanto, o dizer 48 Em inglês: Well/ if it’s a language that I possess// I get the nuances much more than in translation// you know/ it’s a more complete reading/ It’s a more complete reading// I don’t have to go through somebody else’s interpretation// if I can handle the original// sometimes I’ll do my best/ even if I don’t master a language well/ such as Italian// I read it in Italian/ even though my Italian is not that great// You enjoy it more! (P-12 é hispano-americano e ensina literatura espanhola na universidade estadunidense). 146 | P á g i n a Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano (Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no10 de P-12 remete ao sujeito que resiste à ideia de pós-maturação e de transformação da língua e da linguagem, assumindo que somente ele/a, na posição de sujeito-leitor é autorizado a ler e interpretar o texto, a despeito da leitura do “outro”, ou seja, da leitura do tradutor. Questiono o que levaria P-12 a tal contradição, já que ao se posicionar como professor de literatura estrangeira, P-12 remete à tradução como re-escritura de uma obra do passado para o presente, sinalizando para a importância da amplitude que o termo “tradução” possa alcançar na literatura? Todavia, as respostas podem ser encontradas na complexidade da constituição do sujeito, das identidades, apontada por Coracini (2007, p. 151) com base na psicanálise lacaniana. Na tentativa de explicitar ou rastrear os tipos de sujeito, a autora apresenta três categorias: i) a do sujeito cartesiano ou consciente, racional e centrado que acredita ser sujeito da enunciação; ii) a do sujeito inconsciente que Lacan define como “barrado pelo simbólico”, que persegue a falta e busca a impossível completude e; iii) a do sujeito da pulsão ou imaginário, sujeito do gozo que “acredita tudo poder, tudo realizar [...] sujeito que é o próprio consumo” (CORACINI, 2007, p. 151). Como também coloca Hall (2006, p. 13), o sujeito pós-moderno não é uno, de identidade fixa ou permanente. Pelo contrário, o sujeito de hoje “assume identidades diferentes em diferentes momentos, identidades que não são unificadas ao redor de um “eu” coerente”, dadas às formas pelas quais é interpelado nos sistemas culturais que o rodeiam. O que construímos, na verdade, é a chamada “narrativa do eu” que nos conforta enquanto nos iludimos com a crença de que somos o “mesmo” do nascimento até a morte. Tratar sobre o “mesmo” remete, além das questões identitárias, à tradução pois traduzir para o senso comum representa uma forma de dizer o “mesmo” a outros. No início deste trabalho, argumentei que traduzir implica ler no sentido de interpretar, porém, Steiner (1975 [2000]), por sua vez, expande tal noção ao assumir que traduzir é raptar para então apoderar-se do texto, como num movimento que ele denomina de hermenêutico. Steiner (2000, p. 186) explica o movimento tradutório em quatro partes: a primeira como um ato de trust (confiança) por parte do tradutor, no sentido que ele acredita a priori que há algo lá, na outra língua, a ser traduzido, confiança esta que é testada ou ameaçada pelo fato de que praticamente tudo possa ter vários significados ou às vezes nenhum; a segunda parte consiste no que ele denomina agression (agressividade) como uma atitude de conquista, de intervenção e transformação do sentido; a terceira é por ele chamada de incorporative (incorporação), ou seja, a importação do sentido e da forma, também conhecida como naturalização ou domesticação do termo, na língua e cultura para a qual se traduz; e, a quarta, que parte do movimento denominado por Steiner de rapture (rapto) – o ato violento de arrebatamento do sentido ou do significado, deslocando ou desequilibrando a confiança do primeiro movimento do tradutor, que através da agressão, da invasão apodera-se do sentido para transformá-lo e, com isso, realizar o ato de infidelidade, naturalizando e domesticando o texto traduzido. Existe, portanto, para Steiner (2000) uma visível e inevitável relação dialética entre o original e a tradução que nada mais é do que uma leitura, um movimento hermenêutico, ou seja, da tradução como interpretação. De forma mais ampla e completa, Steiner (1998) coloca que existe uma relação assimétrica de poder entre as línguas envolvidas na tradução, na qual a língua periférica, por ele entendida como a língua para a qual se traduz, seria invadida e violentada pela outra, a língua da qual se traduz, associando, assim, a tradução não só à interpretação, mas também, a um ato de violência, de produção de sentido e de inevitável “infidelidade”. Vejamos um RD de P-17, leitor-tradutor de literatura coreana, falando sobre sua experiência como tradutor: 147 | P á g i n a Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano (Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no10 (RD33):- Eu sei// eu quero dizer que um outro projeto meu é um livro/ é uma tradução do século XVII de um romance coreano e deve ser publicado em fevereiro/ pela Berkeley: East Asian Institute [Instituto Asiático Oriental]// e eu traduzi muito rápido/ fiel ao original/ mas acabei escrevendo umas cem páginas de introdução para explicar o contexto cultural// acho que era a única forma de abordagem (P-17, tradução minha)49. Na tentativa de justificar o termo “fiel ao original”, reforço que P-17 sinaliza para o double bind em que o tradutor é colocado ao explicar, mais uma vez, o dilema da “fidelidade”, ou seja, da tarefa-renúncia benjaminiana em que é colocado, tendo em vista a ilusão da “equivalência’ entre dois ou mais sistemas linguísticos ou culturais e da busca pela tradução ou tradutor ideal. P-17 assume que para “explicar o contexto cultural”, isto é, a diferença que se apresenta entre os contextos culturais coreano e norte-americano, ele “acab[ou] escrevendo umas cem páginas de introdução”. O termo “acabar” aqui neste enunciado aponta para a ideia de “concluir”. Entendo que, no dilema tradutório de traduzir uma cultura, P-17 concluiu que, para dar conta da pluralidade das línguas em uma só língua, foi necessário escrever (criar) um outro texto, quase um outro livro dentro do mesmo livro, ou seja, “cem páginas” de introdução, no movimento de passagem, de leitura e interpretação de um texto para outro. O exemplo de P-17 me leva a retomar a discussão da différance (DERRIDA, 2001), ao tratar da noção de signo como uma sucessão de adiamentos na qual o sentido é construído no movimento metonímico de um “significante” a outro, remetendo à semiologia ou semiose que originou, também, a semiótica proposta por Pierce (1958). Pierce teoriza que não existem signos isolados, chamados de símbolos e que há sempre um segundo significante que ele chama de “interpretante”, o qual dá o sentido do primeiro significante e significado. Quando escolho dentre estes modelos, o que realmente faço é escolher um termo posterior, um significante posterior, um “interpretante”. Trazendo a discussão para nossa prática diária, o crítico Pym (1993) exemplifica tal simbologia dizendo que, se alguém nos perguntar o que queremos dizer com a palavra “sol”, vamos usar ou produzir cada vez mais palavras, textos e significantes. É por essa razão que Pierce (1958) diz que o símbolo cresce; semiose quer dizer, então, o processo de símbolos em crescimento. Coadunando com as perspectivas da desconstrução, a leitura que Pym (1993) faz a respeito da semiótica é aquela na qual o sentido não existe numa relação de equivalência entre os dos polos: significante e o significado, pois, há sempre outro significante, mesmo no início. Por isso, é impossível um texto ter apenas um sentido. Um texto pode ter um sentido para mim aqui e agora, outro para você e, ainda, um outro para mim mesma daqui a alguns anos. Mais especificamente, quando um texto se distancia de seu lugar de produção ele está suscetível à tradução, sendo esta sua própria condição enquanto texto. A tradução é uma das maneiras pela qual os sentidos são produzidos e deslocados, afirma Pym (1993). A questão da preocupação com o deslocamento ou distanciamento de sentidos também pode ser observada no relato de P-11, professor de literatura francesa que traduz romances franco-africanos para o inglês. P-11 comenta o seguinte: 49 Em inglês: I know// I mean one of my other project is a book/it is a translation of the 17 th century of a Korean Novel and is due to come out in February/ by Berkeley: East Asian Institute// and I translated very fast/ faithful to the original/ but I ended up writing a hundred pages of introduction into it to explain the cultural background// I think that’s the only way that could have been approached. (P-17 é professor de literatura coreana e tradutor nos Estados Unidos). 148 | P á g i n a Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano (Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no10 (RD34):- [...] Eu estou traduzindo um texto [romance] franco-africano / [...] /se você está trabalhando com tradução/ você tem um distanciamento duplo da fonte/ ou do autor// eu quero ficar o mais próximo possível do que o autor realmente diz ou pretende dizer (P-11, tradução minha) 50. No enunciado: “você tem um distanciamento duplo da fonte ou do autor”, observa-se a preocupação de P-11 com o deslocamento que os sentidos sofrem ao se distanciarem do lugar de produção, isto é, da sua fonte ou origem. Ao traduzir o texto, P-11 percebe o double bind da impossibilidade de realizar seu desejo de “ficar o mais próximo possível do que o autor realmente diz ou pretende dizer”. A posição de P-11 é marcada pelo verbo volitivo “quero” na primeira pessoa, no sentido de que ele/a, o/a tradutor/a, possa assumir a posição, o lugar do “autor” do texto, retornando à origem, à fonte, lugar este impossível e, por isso mesmo, desejado pelo enunciador, apontando, também, para o desejo de autoria que constitui o próprio tradutor (CORACINI, 2007). No enunciado “ficar o mais próximo possível do que o autor realmente diz ou pretende dizer”, pode-se observar que o verbo “ficar” já aponta para a impossibilidade de “ocupar” o lugar do autor, ou seja, a ideia de que o tradutor só possa permanecer por algum tempo, temporariamente, conforme verbete do dicionário Aurélio (FERREIRA, 2004), próximo à fonte à suposta origem do sentido. No advérbio “realmente”, observa-se a tentativa de reforçar seu desejo de verdade, isto é, dizer aquilo que o autor “verdadeiramente” diz ou “pretende” dizer. Entendo que, com base nos enunciados discutidos, a citar, “distanciamento da fonte”, “ficar próximo do autor”, “do que o autor pretende dizer”, o dizer de P-11 faz parte da formação discursiva articulada pela perspectiva formalista de língua e linguagem, na qual o traduzir significa transportar sentidos, significados de um vagão a outro, a exemplo da crença na equivalência ou semelhança entre duas ou mais línguas, como já exposto anteriormente. Seu RD aponta para a noção de que o sentido está fixado na palavra e que o leitor pode “captar” exatamente o que o autor diz, como no modelo de comunicação estruturalista “emissor-mensagem-receptor”. Considerações Finais Com relação aos efeitos dos dizeres dos professores-tradutores-leitores em contexto estadunidense, acrescento que o significado fixo, bem como a suposta intenção do autor, contribuem para “eternizar” a obra literária, bem como para sua canonização. Assim, entendo que é a “instituição literária” que determina os limites e a aceitação dessas leituras, a citar as comunidades científicas acadêmicas, a indústria cultural e a crítica literária, as quais incluem as representações que o tradutor e o leitor têm da tradução. Conclui-se, então, que o valor ou tratamento submetido ou atribuído a um texto, assim como a uma língua, pode determinar seu status na sociedade na qual circula - a exemplo do cânone literário na literatura universal, da primazia da língua estrangeira. As representações que os indivíduos têm de literatura, autoria e originalidade, com base na fixidez de sentido e na busca pela verdade absoluta, exercem influência na circulação e recepção da tradução, pois quando a tradução não é simplesmente ignorada, ela é, quase sempre, reduzida à precisão linguística, reprimindo o resíduo doméstico ou cultural, (VENUTI, 2002), limitando, assim, o 50 Em inglês: […] I’m translating a French-African text/ yes/ I always/ I/ if you’re dealing with translation / you’re at a double remove from the source/ or the author// I want to get as close as I can to what the author is really saying or intended to say. 149 | P á g i n a Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano (Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no10 princípio da descontinuidade de Foucault (2007), no qual os discursos se cruzam, mas, por vezes se ignoram e se excluem. Referências BHABBA, H. K. The Location of Culture. London: Routledge, 1998. p. 171-197. CORACINI, M. J. Concepções de Leitura na (Pós-) Modernidade. In: Leitura Múltiplos Olhares. Campinas: Mercado das Letras. 2005, p. 15 – 44. ______. A celebração do outro: arquivo memória e identidade. Campinas: Mercado das Letras, 2007. DERRIDA, J. Monolingualism of the Other or The Prothesis of Origin. Trad. Patrick Mensah. Califórnia: Stanford University: 1996 [1998]. ______. Posições. Tradução de Tomaz Tadeu da Silva. Belo Horizonte: Autêntica, 1972 [2001]. FERREIRA, A. B. de H. Novo Dicionário Eletrônico Aurélio - versão 5.0. Positivo Informática, 2004. FOUCAULT, M. A arqueologia do saber. Tradução de Luiz Felipe Baeta Neves. Rio de Janeiro: Forense, 1969 [2007]. HALL, S. A Identidade Cultural na Pós-modernidade. Trad. De Tomaz Tadeu da Silva e Guaciara L. Louro. 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Guavira no10 IMIGRAÇÃO E DISCURSO: CONFLITOS IDENTITÁRIOS NA MÚSICA MATOGROSSENSE Flávio Roberto Gomes Benites (UNEMAT)51 RESUMO: Pretendemos discutir o problema da imigração no Estado de Mato Grosso a partir de letras de música (rasqueado) as quais materializam sentidos conflitivos entre nativo e imigrante. Assim, mostraremos que tais letras são prenhes de diferentes práticas culturais que instituem o status da identidade matogrossense diferenciando-o do imigrante, ainda que este esteja inserido nas referidas práticas. Palavras-chave: Música; Discurso; Imigração. ABSTRACT: We intend to discuss the problem of immigration in the State of Mato Grosso start from lyrics (rasqueado) which materialize conflicting senses between native and immigrant. Thus, we will show that lyrics are loaded of different cultural practices that establish the status of the people from Mato Grosso differentiating them of the immigrant, even though this immigrant is inserted in that practices. Key-words: Music; Discourse; Immigration. Introdução Gostaríamos de trazer para este trabalho algumas contribuições que giram em torno da identidade. O viés que elegemos para tratar tal temática não a vê como fixação de características únicas de um grupo social. O que queremos é mostrar diversas práticas sociais (danças, festejos, linguajar, culinária) que se irrompem no rasqueado mato-grossense, ou seja, enquanto valores de uma cultura local que os reivindica para si e os institui como manifestações da identidade mato-grossense. Assim, propomos que o rasqueado possa ser entendido como um arquivo, no sentido que lhe é dado por Michel Foucault (2004), que agrega uma série de costumes que têm a função de dizer (é também uma prática discursiva) e de atualizar o que é ser mato-grossense. Há, portanto, em seu ritmo – na letra, sobretudo, – um jogo constante de diferentes práticas que se interpõem e visam instituir, via memória social, o status da identidade mato-grossense. Como veremos, essa constituição identitária não é tão pacífica, como se poderia pensar à primeira vista, posto que o Estado de Mato Grosso, especialmente a partir de sua divisão em outubro de 1977, é, necessariamente, preenchido por culturas externas em decorrência do fator migratório de sua ocupação. Para contextualizar e problematizar a identidade Os Estudos Culturais, aqui representados em grande parte por Stuart Hall (2004, 2006), abordam o tema identidade relacionando-o com o problema da multiculturalidade, 51 Docente da Universidade do Estado de Mato Grosso, Mestre em Letras pela UFPB, doutorando em Linguística Aplicada pela UNICAMP/IEL. Membro do Grupo de Estudos intitulado “Vozes (in)fames; exclusão e resistência”, sob a coordenação da Profa. Dra. Maria José Coracini (UNICAMP). 151 | P á g i n a Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano (Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no10 fator que põe em xeque as noções estáveis que envolvem, ou envolviam, as questões identitárias, além de trazer a importância da alteridade, dados que marcam a relação identidade e diferença. Esses estudos apontam que as certezas passaram a ser questionadas e revistas quando houve uma percepção ampliada acerca das complexidades da vida coletiva e social do Estado Moderno impulsionada pelo advento, sobretudo, do marxismo e do fenômeno da globalização. Tais fatores direcionaram a identidade para as experiências de grupos e “o indivíduo passou a ser visto como mais localizado e ‘definido’ no interior dessas grandes estruturas e formações sustentadoras da sociedade moderna”. (HALL, 2004, p. 30). Se, por um lado, essas noções descentraram o sujeito moderno, na outra mão, elas engendraram a discussão sobre as identidades culturais e o contato intercultural enquanto efeito da globalização; elemento que, de acordo com Hall, refere-se àqueles processos, atuantes numa escala global, que atravessam fronteiras nacionais, integrando e conectando comunidades e organizações em novas combinações de espaço-tempo, tornando o mundo, em realidade e em experiência, mais interconectado. (2004, p. 67). No entanto, veio a necessidade de se saber a respeito da maneira como esse sujeito fragmentado é colocado em termos de suas identidades culturais, uma vez que a globalização acabou impulsionando aquilo que os Estudos Culturais chamam de “crise de identidade”. A resposta pode ser dada a partir da implantação de Sistemas de representação cultural, que têm por finalidade criar um sentimento de pertencimento a uma determinada cultura, a um grupo social. Assim, criam-se discursos e símbolos recorrendo-se a idéias de tradição, costumes, narrativas míticas para se fixar uma identidade nacional ou local. Segundo Woodward, “o passado e o presente exercem um importante papel nesses eventos. A contestação no presente busca justificação para a criação de novas – e futuras – identidades nacionais, evocando origens, mitologias e fronteiras do passado”. (2004, p. 23). No entanto, essa tentativa de reconstrução identitária é sempre contestada, posto que estão em jogo relações de poder e de grupos dominantes, e a idéia de identidade pressupõe a relação de diferenças e “... precisa ser concebida como harmonia e/ou tensão entre o plano individual e o social e também como harmonia e/ou tensão no interior do próprio social.” (CHAUÍ, 2006, p. 26). No caso do Brasil, que tem dimensões continentais, a questão da identidade é, necessariamente, posta pelo jogo de relações entre as diferenças, mesmo que haja políticas que queiram fixar identidades. Nos termos apresentados acima, assim como em outros Estados, Mato Grosso não pode ser identificado como uma cultura homogênea. Essa pluralidade de manifestações culturais é evidenciada, principalmente, pela música e que traz, como veremos, expressões locais que implicam conflitos entre grupos locais (os nativos) e o “estrangeiro” (o imigrante). O rasqueado ou o arquivo da identidade matogrossense Em se tratando de música, existem aquelas que são facilmente relacionadas com os agentes sociais que as executam devido ao fato de já terem se tornado de domínio público porque são disseminadas pelos meios de comunicação de massa. Por exemplo, quando se fala em forró, o referente imediato são os Estados do Nordeste; o Rio de Janeiro é conhecido pelo samba, a Bahia pelo axé; há o vanerão gaúcho e o frevo pernambucano. Há outros ritmos, 152 | P á g i n a Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano (Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no10 porém, que são menos conhecidos, como o carimbó do Pará, a catira de Goiás e o rasqueado de Mato Grosso. O rasqueado cuiabano (assim conhecido por ser mais executado em Cuiabá, a capital do Estado) “é a música popular mato-grossense que tem as suas origens nos ritmos que formaram a música popular brasileira”. (ARRUDA, 2007, p. 21). O rasqueado é formado por três ritmos que estão na base da formação do povo brasileiro, ou seja, o negro, o índio e o europeu: Lundu – canto e dança populares no Brasil durante o século XVIII, introduzidos, provavelmente, pelos escravos de Angola [...] o cateretê – dança de origem ameríndia. O Padre José de Anchieta aproveitou-se de uma dança religiosa dos índios, chamada cateretê, para atraí-los ao cristianismo [...] habanera – ritmo antiqüíssimo hispano-árabe (séc. X). (ARRUDA, 2007, p. 21). Os instrumentos utilizados na execução do tradicional rasqueado são o ganzá, o mocho ou adufo (espécie de tambor em forma de banquinho), o violinofone e a imprescindível violade-cocho. Arruda observa que novos instrumentos, principalmente os eletrônicos, são empregados por bandas ditas da região urbana. O rasqueado e outras manifestações culturais típicas do Mato Grosso passaram por uma crise cultural devido ao fluxo migratório iniciado com o movimento chamado Marcha para o Oeste (década de 1930) e se prolongou pós divisão do Estado em 11 de Outubro de 1977. A divisão levou os políticos de então a se preocuparem mais com o problema agrário e o crescimento econômico frente à política nacional. “As terras mato-grossenses, abertas à colonização após a divisão do Estado, não contavam com a infra-estrutura necessária para receber e fixar o contingente migratório que estava por chegar” (SIQUEIRA, 2002, p. 212). Nesse contexto, o fator artístico-cultural ficou em segundo plano, sendo criado, somente em 1991 (de acordo com SIQUEIRA) uma Política Estadual de Incentivo à Cultura e a criação da Secretaria de Estado de Cultura, em 1995. Esse processo, já apresentado acima a partir da discussão teórica da identidade, fez com que grupos locais, preocupados com a possível perda de sua cultura, passassem a constituir diversas ações com o objetivo de fortalecer, preservar e difundir a cultura local em torno do rasqueado. Segundo Arruda (2007), os movimentos são o Grupo Sarã, os trabalhos de Vera-Zuleika, o Evento “Encantação Mato Grosso”, a Caravana do Rasqueado e Confraria do Rasqueado. Esses movimentos abrigam tanto a “velha guarda e a nova geração do rasqueado”. Com base no que apresenta Castells (2006) acerca da construção de identidades, podemos considerar esses movimentos como identidades de resistência, posto que atuam como trincheiras de identidades na relação com o outro, com o imigrante. Junto a esses eventos, as composições das letras se mostram como importante instrumento de divulgação de diversas práticas sociais locais. Nesse sentido, dizemos que o rasqueado se constitui em um arquivo da memória cultural mato-grossense. A noção de arquivo é tomada de empréstimo a Michel Foucault, que o concebe em termos de práticas discursivas: Não entendo esse termo a soma de todos os textos que uma cultura guardou em seu poder, como documento de seu próprio passado, ou como testemunho de sua identidade mantida; não entendo, tampouco, as instituições que, em determinada sociedade, permitem registrar e conservar os discursos de que se quer ter lembrança e manter a livre disposição. Trata-se antes, e ao contrário, do que faz com que tantas 153 | P á g i n a Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano (Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no10 coisas ditas, por tantos homens, há tantos milênios, não tenham surgido apenas segundo as leis do pensamento, ou apenas segundo o jogo das circunstâncias, [...] mas que elas tenham aparecido graças a todo um jogo de relações que caracterizam particularmente o nível discursivo [...] O arquivo é, de início, a lei do que pode ser dito, o sistema que rege o aparecimento dos enunciados como acontecimentos singulares. (FOUCAULT, 2004, p. 146-147). Os enunciados que se materializam nas letras do rasqueado evocam a memória social para produzir identidades por meio de práticas historicamente instituídas. Além disso, de acordo com a reflexão de Coracini (s/d, p. 06), comentando Derrida, “uma música pode também constituir um arquivo, desde que algo se organize, se materialize nela. Enfim, o arquivo resultaria daquilo que, internalizado na memória, parecia impossível de organização, apenas fragmentos, por vezes desconexos e embaralhados”. Vejamos como esses conceitos podem ser aplicados à letra do rasqueado cuiabano. Por razões metodológicas, reproduzimos as letras das músicas escolhidas, para, em seguida, analisá-las. Traços de resistência nas letras de música Rasqueado do pau rodado (Pescuma e Pineto) Não agüento mais ser chamado de pau rodado Já tomo licor de pequi, já danço o Siriri Como bagre ensopado Sou devoto de São Benedito Até já danço o rasqueado Sou devoto de São Benedito Até já danço o rasqueado Adoro banho de rio, vou direto pra Chapada Na noite cuiabana tomo todas bem gelada Sou viciado no bozó, pescaria e cururu Tomo pinga com amargo Como cabeça de pau Eá, Eá, Eá, só não nasci em Cuiabá Mas no que eu cresci Meu bom Jesus mandou buscar. Pau fincado (Vera-Zuleika) Não importa se eu vim dos vales, Dos pampas ou de além-mares, Comi cabeça de pacu Logo que cheguei aqui, Quase que eu me embriaguei Tomando licor de pequi Sou par constante Nas rodas de siriri, Sou pau-rodado Mas não arredo o pé daqui! 154 | P á g i n a Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano (Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no10 Chapa e cruz (Vera-Zuleika) Eu me orgulho de ser um cuiabano De chapa-e-cruz, confesso e não me engano, Moro na pracinha, perto da prainha, Sento na porta só pra ver as moreninhas Gosto de um amargo, ventrecha de pacu, Mojica de pintado e bagre ensopado. Danço rasqueado na casa de Bembém, Como bolo de arroz e de queijo também. Como dissemos, nas letras estão sobrepostas diversas práticas sociais, tais como a culinária, linguajar, festejos e danças. Um fator importante a ser observado na culinária do Estado está relacionado à pescaria e, como resultado, o peixe mais saboreado na região é o pacu, que dentre outros preparos, a preferência é pelo pacu assado. Na música, há o funcionamento da memória do dizer (do interdiscurso), pois faz referência à lenda da cabeça de pacu que indica uma relação com o fator migratório; conforme observa Loureiro, “... se um rapaz solteiro chegar em Cuiabá e comer a cabeça desse peixe, não demora muito e se casa com uma filha da terra. Se casado [...] não sai mais da localidade onde a comeu”. ([grifo nosso] 2006, p. 146). Há também o pequi, fruto do cerrado muito utilizado para preparar alimentos, sobretudo com o arroz; é aproveitado para se fazer licor de pequi, bebida muito apreciada no Mato Grosso. Em se tratando das festas populares, a mais tradicional é a de São Benedito, festa de origem negra que cultua tal santo desde o século XVIII, tanto na Capital quanto no interior do Estado. Além dos rituais sagrados, comuns a todas as festas de Irmandade, nas Festas de São Benedito, destacava-se a presença do Rei, um negro, que levava na cabeça uma coroa de prata, e que, junto com os Juízes, saíam em procissão, acompanhados de música de banda e um grande número de irmãos com chapéu de sol e a realização das Congadas ou Dança do Congo [...] a festa ocorre em algumas cidades do interior do Estado, como Vila Bela da Santíssima Trindade e Nossa Senhora do Livramento. (LOUREIRO, 2006, p. 45). Nas festas religiosas é comum a apresentação de músicas e danças regionais, sendo as mais conhecidas e executadas o siriri e o cururu. Este é uma manifestação folclórica que atualmente é dançado por homens, mas que antigamente, sobretudo nas Igrejas, tinha a participação de mulheres. Essa música é executada como se fosse uma reza cantada na qual os cururueiros se revezam na cantoria. De acordo com Loureiro, é “... uma música de poucas notas, repetitiva, acompanhada pelo ritmo marcado pelas violas de cocho e ganzás, trovos, carreiras e toadas sobre religião, comandos de rituais sagrados, assuntos do cotidiano...” (2006, p. 73). O siriri, por sua vez, é uma dança executada em fileiras, em roda, de pares um frente ao outro; utilizando a viola de cocho, o ganzá e o mocho, “cantam os participantes versos e músicas com temas regionais, vários deles compostos pela comunidade”. (LOUREIRO, 2006, p. 84). Uma questão importante a ser observada no linguajar do mato-grossense são as expressões “pau rodado” e “pau fincado”. Tais expressões marcam a relação do nativo com o forasteiro, pois pau rodado é a representação que o cuiabano tem da pessoa de outro Estado ou país que foi para o Mato Grosso (ainda está rodando) e não fixou lugar, como o pau 155 | P á g i n a Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano (Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no10 fincado. A expressão Chapa e cruz designa o cuiabano “autêntico”, "puro de origem", similar às expressões carioca da gema e gaúcho de pêlo-duro. Uma origem dessa expressão seria a interpretação de que chapa representa a certidão de nascimento e cruz a de óbito, simbolizando o nascimento em Cuiabá e o desejo de lá morrer. Essa forma de se expressar evidencia um conflito na questão identitária em relação à ocupação do Estado pós-divisão, embora seja comum dizer que o Mato Grosso seja um Estado hospitaleiro. O estrangeiro, pau rodado é compelido a considerar-se pau fincado a partir da prática dos costumes locais, mas nunca será um chapa e cruz. Além disso, notamos que as duas primeiras letras trazem marcas, traços de uma resistência do nativo em aceitar o imigrante, o estrangeiro. As seqüências “já tomo licor”, “já danço o Siriri”, “até já danço o rasqueado”, “só não nasci em Cuiabá” na primeira letra, e “não importa se eu vim dos vales, dos pampas ou de além-mares” na segunda letra fazem ressoar, via interdiscurso, fragmentos da memória, no dizer de Derrida (2001), as vozes da história, como se o cuiabano, na sua identificação com os primeiros habitantes indígenas, estivesse dizendo ao (i)migrante: já fomos massacrados e explorados e isso não pode acontecer novamente. Assim, a música está funcionando como estratégia de resistência. Resistência essa colocada nos termos foucaultianos (1985), já que o contato entre grupos distintos está permeado pelas relações de poder. Considerações finais Veja-se que as manifestações culturais, típicas do Mato Grosso, são contempladas nas letras dos rasqueados acima apresentados. Dessa maneira, o rasqueado, a cada vez que é executado, e repetido, portanto, faz com que haja uma atualização constante, via memória social, da identidade mato-grossense, ou seja, os sujeitos se envolvem nessas práticas sociais e reivindicam para si um sentimento de pertença às tradições de seu Estado. Para tanto, há uma recorrência à memória social, à memória que institui a identidade por meio de sua relação com o passado. É nesse sentido que apresentamos o rasqueado como um arquivo da identidade mato-grossense, uma vez que nele estão imbricadas uma diversidade de práticas sociais, como vimos acima, que funcionam, por meio de seu aspecto repetível para dizer, na recorrência à história, o que é ser mato-grossense. Referências ARRUDA, Zuleika. O que é o rasqueado cuiabano? Cuiabá: Entrelinhas, 2007. CASTELLS, Manuel. O poder da identidade. Trad. Klauss B. Gerhardt. 5. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2006. CHAUI, Marilena. Brasil: mito fundador e sociedade autoritária. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2006. Reimpressão. CORACINI, M. J. R. F. A memória em Derrida: uma questão de arquivo e de sobre-vida. s/d. 156 | P á g i n a Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano (Org.). 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Guavira no10 CAIPIRAS, ARRIBANTES TEMPORAIS: LETRAMENTO, IDENTIDADE CULTURAL E SUBJETIVIDADE Elzira Yoko Uyeno (UNITAU)52 RESUMO: A subjetividade que se revela na e pela escrita é o objeto deste estudo; a Análise do Discurso de perspectiva francesa e conceitos da psicanálise lacaniana, as balizas analíticas. A menção significativa à sensação paradoxal de imigração na própria cidade onde nasceu, viveu e continua vivendo, em textos de alunos da Escola de Jovens e Adultos, constituiu a pedra de toque desta pesquisa. Os resultados da análise empreendida revelaram que as identidades, a condição de todo imigrante, não apenas dos imigrantes topológicos, mas dos temporais também: estar saudoso, como estar tomado por uma triste aspiração por algo indefinido que se foi há muito tempo, e saber que o passado não é um país que possa ser reencontrado. Palavras-chave: identidade; subjetividade; migração. ABSTRACT: The subjectivity shown in and by writing is the aim of this study. The French Discourse Analysis and concepts of lacanian psychoanalysis are its analytical basis. The significant mention of the paradoxal immigration feeling in one's own hometown, a city where one has always lived, in texts by the students of Escola de Jovens e Adultos (Youngsters and Adults School), is the foundation stone of this research. The results of the analysis performed have revealed that the identities, conceived as established and stable, are going down the subjectivation cliff. And that is the condition of every immigrant, not only of the topological immigrants, but also of the temporal ones: a feeling of missing, as if a sad aspiration for something indefinite that has gone a long ago came over them, as if one knew that the past is not a country which can be found again. Keywords: identity, subjectivity, migration. Introdução Migração, palavra derivada do latim migratione, diz respeito, tradicionalmente, ao deslocamento – movimentação de entrada (imigração) ou saída (emigração) – de um contingente de pessoas de um país para outro ou de uma região para outra, como fazem as aves de arribação, diferenciando destas quanto às razões pelas quais migram: se estas migram por razões climáticas, são razões políticas, econômicas, sociais ou culturais que determinam os deslocamentos daquelas. Delimitando-se sua abrangência para a migração interna, observa-se que as pesquisas que lhe dizem respeito se centram no impacto do problema demográfico e do crescimento da pobreza no meio urbano, causados pelo migrante topológico. Arrojou este estudo53 a percepção da existência não apenas de migrantes topológicos, mas de migrantes temporais. O despossuído não apenas como aquele que não tem terras, mas como o carente de sua história, é o objeto de eleição. 52 Doutora em Linguística Aplicada pela UNICAMP; docente do Programa de Mestrado em Linguistica Aplicada da Universidade de Taubaté (UNITAU). Membro do Grupo de Estudos “Vozes (in)fames; exclusão e resistência ”, sob a coordenação da Profª. Maria José Coracini, no IEL/UNICAMP. 53 Uma versão preliminar deste estudo foi apresentado no XV Congreso Internacional De La Asociación De Lingüística Y Filología De América Latina, XV ALFAL, na cidade de Montevideo, Uruguay, em 2008. 158 | P á g i n a Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano (Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no10 Balizam analiticamente os dados de pesquisa a perspectiva francesa da Análise do Discurso e conceitos da psicanálise, o que implica a assunção do pressuposto de um sujeito duplamente causado: por um lado, causado pelo discurso do outro e, como tal, histórico e, por outro, pelo discurso do Outro e, como tal, psicanalítico. Especificamente, este estudo se consagra à análise dos processos de subjetivação histórica e de identificações psicanalíticas do migrante temporal que se revelam na e pela escrita. A menção significativa à sensação paradoxal de imigração na própria cidade onde nasceu, viveu e continua vivendo, em textos de alunos da Escola de Jovens e Adultos (EJA), constituiu a pedra de toque desta pesquisa. O imigrante, à análise de Melman (1996), constitui um sujeito que emula uma histeria, ao deixar o seu país de origem – quaisquer que tenham sido as suas motivações para que tenha tomado tal decisão – e reivindicar o amor de um outro país no qual busca acolhida. O sujeito não alfabetizado que procura por cursos de alfabetização constitui, em certa medida, um imigrante das formas atuais da globalização: a escolarização formal constitui a condição sine qua non para a migração de seu lugar de excluído para a de incluído no mundo do trabalho. Eis que se torna uma ave de arribação54. Não se trata, contudo, de uma arribação no seu sentido de se deslocar de um lugar e “se chegar a algum lugar”, mas no sentido de se deslocar de um tempo para um outro tempo. Em síntese, entender como o capitalismo em seu estágio atual da globalização afeta a identidade do arribante temporal constituiu o objetivo do estudo a se relatar. Para efeito de norteamento de leitura, em um primeiro momento, apresentam-se o caipira e a sua condição de migrante topológico; em um segundo momento, tecem-se considerações sobre os estatutos do outro e do Outro como causas da identidade e das identificações; em um terceiro momento, consideram-se a saudade e a memória discursiva; finalmente apresenta-se, a título de ilustração de um corpus mais amplo, por contemplar a singularidade do processo de subjetivação, a análise do discurso de um aluno da Escola de Jovens e Adultos - EJA. Caipiras do Vale do Paraiba: de migrantes topológicos a migrantes temporais “Nomen omen” [o nome é um presságio], escreve, rememorando a origem de seu nome, Norberto Bobbio, em O Tempo da Memória: de senectude e outros escritos autobiográficos (1997, p. 58), uma obra composta de fragmentos autobiográficos, em que exercita um balanço de uma vida consagrada às reflexões acerca das transformações pelas quais a Europa do século XX passou. Não menos pressagiador que a atribuição do nome próprio se mostra a nomeação de um agrupamento de pessoas. Foyer deste estudo que se ensaia, a nomeação de um contingente de “sobreviventes” da era de mineração colonial que “inventou” uma modalidade de vida caipira os fez cumprirem, como a um vaticínio, o significado de que é acompanhada essa nomeação. 54 Arribação, na acepção de “avoante” é uma redução da expressão ave de arribação e apresenta, no dialeto nordestino brasileiro, a variação arribaçã, com apócope da semivogal, além de ribação, rabaçã e rabação. Por esse termo, o nordestino denomina o deslocamento de animais, geralmente aves, de uma região para outra em determinadas épocas ou estações do ano (HOUAISS, 2001). 159 | P á g i n a Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano (Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no10 Caipira é aquele que fala o dialeto caipira que é português, mas com palavras tupi e sotaque da língua brasileira. A língua brasileira é o nheengatu55, que existiu no Brasil até ser proibida por Portugal, no século 18, mais precisamente quando, no reinado de Dom. José I (de 1750 a 1771), o veto veio em um decreto do então primeiro-ministro Marquês de Pombal que bania o ensino do nheengatu das escolas. A decisão foi acatada nas salas de aula, mas o povo continuou falando no dialeto caipira: “só os portugueses, que eram estrangeiros, falavam português”; o nheengatu falado pelos brasileiros era uma “língua de travessia, não era português, nem índio, eram ambas”, explicou o professor José de Souza Martins, do Departamento de Sociologia da Faculdade de Filosofia da USP, em entrevista ao jornalista, Valdir Sanches (2008). O nheengatu incorpora a fala dos índios tupi, que ocupavam o litoral brasileiro. No Brasil Colônia, era falado fluentemente em uma grande área do País que se estendia de Santa Catarina ao Pará. Quando, hoje, refere-se a “Ibirapuera”, “ficar jururu”, “comer abacaxi”, “pendurar-se num cipó”, “pegar catapora” está se expressando nessa língua. Ao contrário do que faz pressupor o senso comum, o nheengatu tem raízes eruditas: a língua foi criada no século 16 pelos jesuítas, sobretudo pelo fundador de São Paulo, Padre Anchieta, que era linguista. Para poder se entender com os nativos, o religioso classificou o tupi e criou uma gramática da língua geral. Os índios tinham dificuldade em pronunciar palavras portuguesas terminadas em consoante e colocavam vogal entre consoantes: daí, mulher, colher e orelha terem se tornado “muié”, “cuié” e “oreia”. Tinham também dificuldade em pronunciar palavras que continham consoantes dobradas: é de sua dificuldade em pronunciar o “erre” que se originou a realização “poorta”, retroflexa, com a língua tocando o céu da boca. Martins esclarece que “o dialeto caipira não é um erro, é uma língua dialetal”; à sua avaliação, mais do que isso, é “uma invenção lingüística musical e social”. O tempo acabou por impor o português, mas o dialeto nheengatu puro resiste, sendo ainda falado em alguns pontos da fronteira com o Paraguai. Em São Gabriel da Cachoeira, no Amazonas, a 860 quilômetros de Manaus, uma lei de 2002 tornou o nheengatu língua cooficial do município. Na contramão do decreto do marquês, essa lei determina que sejam incentivados seu ensino nas escolas e seu uso nos meios de comunicação (o tucano e o baniva também se tornaram línguas co-oficiais). Na região do Vale do Paraíba do Sul que se estende da cidade de São Paulo em direção à cidade do Rio de Janeiro, ao longo do Rio Paraíba do Sul e entre as duas cadeias de montanhas, serras do Mar e da Mantiqueira, ficou o “caipirês” da roça, onde, segundo Martins, a língua se multiplica: quando alguma palavra nova surge, o caipira “inventa, a partir da matriz da palavra, algo que tem sentido para ele”. Um incidente que se assemelha a uma anedota ilustra essa afirmação: quando Martins e um grupo de estudantes apresentaram questões a algumas pessoas na região, perguntaram a um homem: “Você concorda ou não concorda?” Como o homem pareceu não ter entendido a pergunta, ela foi sendo repetida, sem que se obtivesse compreensão, até que um dos estudantes mudou a forma, perguntou “Você concorda ou disconcorda?” e foi compreendido. É, em algum sentido, a justificativa para o termo “desinfeliz”. Morfologicamente, substantivo de dois gêneros, a palavra “caipira”, nomeia o “habitante do campo ou da roça, particularmente os de pouca instrução e de convívio e modos rústicos e canhestros” ou o “indivíduo natural ou habitante de parte das regiões Sudeste e 55 Etimologicamente, nheengatu se origina do tupi nheenga'tu e significa “língua boa”; segundo Frederico Edelweiss: Nheengatu; somente a partir de 1850 surge esta palavra com o sentido que é hoje empregada, e atribui-se a Couto de Magalhães, em seu livro “Os Selvagens (1876), a sua popularização” (HOUAISS, 2001) 160 | P á g i n a Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano (Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no10 Centro - Oeste brasileiras, especialmente São Paulo, de origem rural, caracterizado pela agricultura de subsistência, pela cultura itinerante e por não ter a posse da terra” (Dicionário Aurélio). Caapora, sinonímia de caipira, e supostamente do qual teria se originado o termo caipira, tem, na região do Vale do Rio Paraíba, no Estado de São Paulo, suas variantes: caboclo, capiau, jeca, jacu, matuto. O termo “caipira” foi atribuído a um contingente de pessoas que se dedicavam à mineração, atividade extrativista do Brasil colônia, que entrou em decadência; primeiras desempregadas estruturais, elas procuraram outros afazeres como a agropastoril, uma vez que a insipiente forma industrial não era permitida legalmente, em virtude da relação da coroa portuguesa com a Inglaterra. Empobrecidas social e economicamente, restou-lhes “a regressão a uma economia fechada e autárquica, com o orgulho de suprirem-se em suas necessidades” (GOUVÊA, 2001, p.20). A modalidade de vida caipira teve lugar entre 1790 e 1840, um período anterior ao da implantação das fazendas de café, sob regime produtivo escravocrata como novo sistema produtivo. Essa modalidade de vida caipira se caracterizava por uma economia artesanal doméstica – cultura do feijão, do arroz, do milho e da mandioca e a produção de derivados das últimas, fubá, quirera e farinha – que tinha complementação no mutirão, uma instituição caipira de solidariedade. O mutirão consistia de ajudas mútuas entre familiares e vizinhos, além de se configurar em espaço de integração social, lazer e de estabelecimento de vínculos. A religião constituía a outra instituição que compunha a identidade caipira: o culto a um santo padroeiro em um determinado bairro constitui um fator de convívio social, oportunidade de organização de um evento de cunho comunitário, além de certeiras oportunidades de lazer nos festejos do padroeiro, concessão lateral da religiosidade. Missas, leilões e bailes aproximam festeiros, familiares e vizinhos. Esse é, praticamente, o ápice de vida social do caipira, e há outras oportunidades interessantes: batizados, casamentos, oferta de alimentos entre vizinhos (caça e carne de porco), caçadas etc (GOUVÊA, 2001, p. 28-29). Na família, outra instituição que garantia a identidade caipira, as atividades do cotidiano eram divididas e cumpridas pelos homens, pelas mulheres e pelas crianças sob uma hierarquização das atribuições. A produção, sem propósito de comercialização, destinava-se apenas ao consumo, quando nem à suficiência chegava. Essa vida, entretanto, conferia um caráter lúdico à existência: a arduidade da vida era permeada por períodos de festa do padroeiro, de mutirões e de leilões (GOUVÊA, 2001). Configurando as “micro resistências” de que fala Foucault (1985) e as “pequenas revoltas” de que fala De Certeau (1966), no Vale do Paraíba, ainda se encontram as cidades de Lagoinha (“Laguinha”, em caipirês) e São Luiz do Paraitinga que resistem à modernização, embora por vezes se rendam às benesses das tecnologias: na cidade de Lagoinha, táxi é Fusca, “pra guentá a estrada de chão”, segundo Francisco Marcos em entrevista a Valdir Sanches (20008); na sala da casa de pau-a-pique com telhado alto e sem forro, há uma TV; na cozinha, o fogão a lenha e as panelas de ferro convivem com o fogão a gás e utensílios de alumínio. Muitos moradores falam português com estranhos, e “caipirês” entre si; são, assim, a sua maneira, bilíngues. Amarildo Pereira Marcos, morador da cidade de Lagoinha e filho de Francisco da roça, fala o português comum, mas, “quando se distrai, ao atender o celular, pode sair um “caipirês”: “Eu tava pá roça, ce tá naonde?” A população composta, em sua maioria, católica (96,5%) promove grandes festas religiosas, a maior das quais é a Folia do Divino Espírito Santo, surgida no Brasil Colônia e cuja atração central são os violeiros caipiras. 161 | P á g i n a Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano (Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no10 Francisco permaneceu na roça, plantando sua rocinha de feijão, milho, mandioca; criando porco e galinhas apenas para o consumo da família, mas muitos de sua gente que foram para a cidade continuam em sua vida caipira. É ocaso de Maria Benedita de Godoy, de 71 anos, que vive no centro da cidade, em uma pequena casa, cujas paredes estão repletas de imagens de santos e cuja porta da rua fica sempre aberta; na cozinha, onde tem um fogão a gás e outro a lenha, Maria só usa o de lenha, onde prepara a quirela (feita com milho moído), a abóbora, cozinha a mandioca para comer com café. As senhoras do grupo Orgulho Caipira de Lagoinha, criado por Amarildo, têm seus problemas. “Meus filhos brigam comigo porque eu digo ‘ô criança, vai fechá a poortera do currá’”, diz Benedita Maria de Jesus. Algumas mulheres do grupo dizem que procuram se corrigir: uma diz que falava “tratar dos porco”, e agora fala “dos porcos”; outra, mudou “fechá a jinela” para “fechar a janela”, e uma terceira diz que não fala mais “vamu lavá os pé pra nóis durmi”, porque agora fala com o jeito da cidade, e, além disso, esse antigo hábito está em desuso. A banda “Orgulho Caipira” foi criada por Amarildo há sete anos e tem a viola, o violão, a sanfona e o bumbo. Segundo Martins, professor e pesquisador da USP, a música caipira “tem uma matriz musical rica, que nasceu erudita, criada pelos jesuítas” (SANCHES, 2008), uma das quais, o cururu, “surgiu das mãos do padre Anchieta”. O grupo de Amarildo canta e dança essas músicas, o catira (ou cateretê) do folclore brasileiro, o lundum, da época do Brasil colonial e a dança do sabão criada pelo grupo. A cidade vizinha, São Luiz do Paraitinga, com o casario tombado pelo Condephaat, o conselho estadual do patrimônio histórico, recentemente devastada por uma enchente e se encontra em fase de reconstrução, também zela pela cultura caipira e faz a Folia de Reis. Lá, um administrador de empresas que largou tudo para ser folclorista e artista plástico, Benito Campos, faz saraus e se apresenta vestido de caipira. Um dos versos que recita começa assim: “Engraçado este mundo/ de fundo tão profundo/A gente nasce, véve e tira as cria/fáis Maria, fáis Raimundo/morimbundo a gente vórta/presses zóios raso/sete parmo bem fundo/vão de terra nuchão/nestes continentes dos mundos”. Esse estilo de vida – baseado num trabalho não alienado –, imortalizado por Monteiro Lobato na personagem do Jeca Tatu, foi se diluindo com a emergência das fazendas de café, de seu fim e de sua conseqüente configuração das “cidades mortas” do Vale do Paraíba também mencionadas por Monteiro Lobato. Subsequentes ressurreições pelo advento da era industrial transfiguraram algumas de suas cidades que se transformaram, hoje, em pólos industriais. Apenas para efeito de ilustração dessa transformação, em poucas décadas, o Vale do Paraíba passou a abrigar nada mais do que três grandes montadoras de veículos automotivos Ford, General Motors e Wolksvagen; a centralizar a indústria aeronáutica; metalúrgicas e a contar com variedade de indústrias como a Kodak, LG, Panasonic, Fuji, Johnson & Johnson, Nestlé, Pilkington. Para além do setor essencialmente produtivo, a cidade de São José dos Campos, passou a responder por pesquisas de ponta no campo aeronáutico e aeroespacial, congregadas em centros de pesquisa de reconhecimento internacional, ITA (Instituto Tecnológico de Aeronáutica), CTA (Centro Tecnológico de aeronáutica) e INPE (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais). Essa condição peculiar da região não produziu o migrante clássico que se caracteriza pelo êxodo do campo para a cidade, mas um imigrante que promoveu o êxodo de um tempo caipira para um tempo moderno; hoje, para um tempo globalizado, não tendo se deslocado em termos geodésicos, isto é, em termos de latitudes e longitudes. Eis as condições que fizeram dos caipiras um migrante temporal e não topológico. 162 | P á g i n a Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano (Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no10 O imigrante, à análise de Melman (1996), constitui um sujeito que emula uma histeria, ao deixar o seu país de origem – quaisquer que tenham sido as razões, compulsórias ou voluntárias, que o levou a tal, quais sejam, razões políticas, econômicas, antropológicas ou psicológicas – e reivindicar o amor de um outro país no qual busca acolhida. A histerização artificial do imigrante se faz pela demanda constante e paradoxal de um amor à pátria ao qual renunciou. Imigrante temporal, o caipira encena uma histerização por meio de seus textos pela demanda de um amor a um tempo ao qual renunciou. O outro e o Outro como causas da identidade e das identificações O estudo cujo ensaio se prossegue tem como pressuposto anunciado o caipira como um sujeito duplamente causado: como causa do outro da nomeação pressagiadora e como causa do Outro da nomeação parental. A identidade do caipira como causada pelo outro se faz em virtude de o caráter pressagiador da nomeação dos valeparaibanos pós era da mineração como caipiras se cumprir não apenas no adjetivo derivante como na identidade do nomeado também. “Diz-se do indivíduo sem traquejo social; cafona, casca-grossa” (Dicionário Aurélio) ou aquele “que leva uma vida campestre rústica, tem pouca instrução, pouco convívio social, e hábitos e modos rudes” (Dicionário Houaiss) são os verbetes relativos ao adjetivo “caipira”. É dividido entre o sentimento de de esse presságio querer se desvencilhar e o sentimento de o modus vivendi do tempo que (o) deixou querer resgatar, configurando uma identidade pós-moderna, que os alunos da Escola de Jovens e Adultos, conhecida como EJA, manifestam-se em seus textos. A lealdade e a identificação que, numa era pré-moderna e em sociedades mais tradicionais, eram dadas à tribo, ao povo, à religião e à região, foram transferidas, gradualmente, nas sociedades ocidentais, à cultura nacional. As diferenças regionais e étnicas foram gradualmente sendo subordinadas, sob o que Gellner (1983) nomeou de “teto político” do estado-nação que conforma as identidades culturais modernas. A formação de uma cultura nacional contribuiu para criar padrões de alfabetização universais, generalizou uma única língua vernacular como o meio dominante de comunicação em toda a nação, criou uma cultura homogênea e manteve instituições culturais nacionais como um sistema educacional nacional (HALL, 1998, p.49-50). De fato, observa-se que, no fim do século XX e começo do XXI, a globalização tem enfraquecido e abalado as formas nacionais de identidade cultural (HALL, 1998, p. 67), além de suscitar novas modalidades de migração. O termo identidade “tem sido tradicionalmente usado para descrever ou interpretar o indivíduo, tal como ele se revela e se conhece ou ele se vê representado”. Sob “uma perspectiva sociológica, [o termo identidade] situa o indivíduo em um grupo” (CUNHA, 2007, p. 34). Sob uma perspectiva filosófica, Taylor (1994) postula a necessidade, quando se visa a uma análise da identidade, de se considerar o aspecto valorativo e, como tal, moral e ético, de sua visão de certo e errado, de relevância e de irrelevância. Sob uma perspectiva antropológica, para Ribeiro (2002), a identidade deve ser vista apenas como modos de representar tanto o próprio pertencimento a uma unidade sócio163 | P á g i n a Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano (Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no10 político-cultural como também o do outro; representação na qual a língua é um componente de relevância. Essa dimensão de componencialidade da língua é superada, passando a se constituir um elemento engendrador da identidade, quando se trata de um indivíduo que se vê inserido em um contexto de bilinguismo. Esse engendramento da identidade pela língua é atestada por Cunha (2007, p. 40) que, ao analisar a obra da escritora porto-riquenha Esmeralda Santiago (1994), observa que sua escrita a revela, para além de bilíngue, entendido pela linguista como falante de duas línguas, bilingualista, ou bilíngue individual e, a partir de Hammers e Blanc (2000), como estado psicológico de um indivíduo que tem acesso a mais de um código linguístico como meio de comunicação social. A prevalência de um bilinguismo na era globalizada é atestada pela existência no mundo de cerca de “três mil línguas faladas por duzentos Estados politicamente individualizados”: “por razões históricas como as invasões, as migrações e a organização política dos Estados, o bilingüismo foi sempre a regra” (MELMAN, 1992, P.16). Nesse bilinguismo, o inconsciente não oferece resistência à mistura das línguas: retém palavras, locuções, fragmentos inteiros de discursos tomados de uma língua de infância que, em seguida, tornou-se estrangeira. Eis que aqui se manifesta o sujeito como causado pelo desejo do Outro que diz respeito ao sujeito lacaniano se constituir no sujeito do desejo e do discurso do Outro. O sujeito do desejo se faz a partir da evidência de que a existência física do sujeito no mundo resulta dos desejos de outros, seus pais: quaisquer que sejam os complexos motivos que envolvem esses desejos (prazer, vingança, imortalidade, poder, satisfação), eles continuam a agir sobre o sujeito, após seu nascimento. O sujeito do discurso do outro diz respeito à sua condição de sujeito se vislumbrar a partir dos discursos de outros sobre si, entre os quais se encontra a nomeação: o nome próprio que lhe é escolhido não é simplesmente a designação de um sujeito, mas se articula com um saber que ele não sabe que é da ordem do inconsciente, um saber do qual se aproximará a cada identificação imaginária, a partir da especular e primeira. Esse sujeito ainda por vir-a-ser deverá, para se tornar sujeito, passar pelo estágio da dependência primária que o sujeito “filhote de humano” tem de outras pessoas, a qual se converte na sensação de desamparo; desse estágio, deverá passar para o terceiro que consiste na angústia da perda do amor o que define a posição subjetiva primária do sujeito em relação ao Outro (MILLER, 1991, p.50). Esses estágios de formulação freudiana, sob a reformulação lacaniana, constituiriam a passagem da demanda no nível da necessidade, isto é, de uma dependência de um Outro que tem o necessário para satisfazer a necessidade, para a demanda no nível do amor, isto é, de uma dependência de um Outro que não tem o necessário para satisfazê-lo, que é como se define o amor (MILLER, 1991, p.52); daí amar significar dar o que não se tem. Essa passagem se realiza quando o pequeno sujeito vir-a-ser se faz desejante para continuar desejado pela mãe, manifestando seu desejo e sempre fracassando. É dessa tentativa, incessante, de atender aos desejos da mãe como a uma ordem que Lacan (1966/ 1998, p. 41) elabora seu postulado “Le désir de l’homme, c’est le désir de l’Autre”, [O desejo do homem é o desejo do Outro], assumindo a ambiguidade desse “do” de “do Outro” pelas duas leituras: 1. “O desejo do homem é o mesmo que o desejo do Outro” e 2. “O homem deseja o que o Outro deseja”. 164 | P á g i n a Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano (Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no10 Assim, o desejo da criança fracassa, porque ela deseja o desejo da mãe a que ela não tem acesso, e é, nesse sentido, que o desejo do Outro começa a funcionar como causa do desejo da criança; essa causa produz, por sua vez, o desejo do outro. Assim, muito mais do que servir à comunicação, a linguagem tem essencialmente por função identificar o sujeito. Saudade: memória discursiva “Da vida fica somente um leve traço na memória”, afirma o filósofo e jurista Bobbio (1997, p. 58), ao lamentar que não exercitemos com frequência a atividade de rememorar a qual, a seu ver, é salutar, por nela “reencontramos a nós mesmos e a nossa identidade, não obstante os muitos anos transcorridos, os mil fatos vividos”. “Rebenqueado das saudades”, isto é, nutrindo a dor das saudades, da separação, na linguagem corrente entre alguns cidadãos nativos em Taubaté, no interior de São Paulo, mais precisamente no Vale do Paraíba, é a condição que se fez predominante em textos redigidos por alunos da EJA; “açoitado pela saudade” é a sua tradução nesse bilinguismo. Saudade, substantivo feminino e derivado do latino solitate, “soledade”, “solidão”, mencionado recorrentemente por esses alunos, tem como verbetes: 1. lembrança nostálgica e, ao mesmo tempo, suave, de pessoas ou coisas distantes ou extintas, acompanhada do desejo de tornar a vê-las ou possuí-las; nostalgia; 2. pesar pela ausência de alguém que nos é querido; rebenqueado das saudades; que curte a dor das saudades, da separação (HOUAISS, 2001). Afirmando que a “definição escorre das mãos, sinuosa”, abre precisamente seu artigo Pereira Júnior (2006, p. 36), para sintetizar a pesquisa que empreendera em busca da origem e do sentido da palavra saudade. Em seu berço, saudade era parente do termo “solidão” (solitudeinis). Solitas-atis nomeava solidão provocada pela falta de alguma coisa. No século XIII, havia várias formas, das quais saydade, soidade, suidade são as mais conhecidas. Há, no século XV, registros de soedade (Alfonso Álvares); no século XVI, de suydade (Gil Vicente), até chegar a saudade, no século XIX, todas derivadas do latim solitas-atis, solitade (isolamento, solidão). Havia também soledade (isolamento), no português, que derivaria soedade e soidade, assim como a forma caipira “sôdade”. Soledade teria recebido influência semântica do árabe saúda ou saud (melancolia). Assim, a “incerteza em torno da saudade mantém o mistério não só da origem como de seu significado” (PEREIRA JÚNIOR, 2006, p. 37). Essa menção à sensação de se estar saudoso se faz em decorrência de uma digressão de remissão a um tempo passado, digressão esta do estatuto da memória, com a delimitação necessária, para este estudo, em nome da qual se afasta da conceituação de memória enquanto função biofisiológica e enquanto história documentada. O conceito de memória no qual se fundamenta é constituir um fator determinante na construção da identidade pela sua capacidade de manter sentidos tanto por meio “de lembrança, de redefinição e de transformação, quanto de esquecimento, de ruptura e de negação do vivido e do já dito” (INDURSKY; CAMPOS, 2000, p.12); como tal, é constitutivo da identidade, ganhando materialidade discursiva; daí constituir memória discursiva. Caro à perspectiva discursiva francesa, o conceito de memória discursiva refere-se a possibilidades de dizeres se atualizarem no momento da enunciação, sob efeito de um esquecimento, segundo o qual o sujeito enuncia um já dito, sob a ilusão de autoria. Courtine e Haroche (1994) afirmam que a linguagem e os processos discursivos são responsáveis por fazer emergir o que, em uma memória coletiva, é característico de um determinado processo histórico. Para Orlandi (1993), o discurso se produz por meio do interdiscurso que se faz, por 165 | P á g i n a Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano (Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no10 sua vez, pela apropriação da memória que se manifesta de diferentes formas em discursos distintos. É nesse sentido que o interdiscurso constitui a re-significação do sujeito sobre o que já foi dito, o repetível pela qual determina os deslocamentos promovidos pelo sujeito nas fronteiras de uma formação discursiva. O interdiscurso determina materialmente o efeito de encadeamento e articulação de tal modo que aparece como o puro “já-dito” e se simula materialmente no intradiscurso. Análise do corpus de pesquisa Em atendimento à solicitação para que escrevessem um texto no qual manifestassem as razões que os levaram a retornar aos bancos escolares, mostrou-se proeminente a menção à importância da educação, revelando-se um dizer sócio-histórico, portanto, ideológico da importância do estudo para um cidadão, nos sentidos de que promove ascensão social e garante a empregabilidade. A menção a esse aspecto ideológico se justifica apenas para efeito de contextualização da pesquisa, não tendo sido contemplado neste estudo em relato. Elege-se para efeito de ilustração deste artigo, o texto de Francisco Filho, contemplando como objeto a constituição de sua identidade como aluno que se inscreve em EJA. Faz-se oportuno mencionar que, sob o pressuposto de que os processos de constituição da identidade não se deslindam dos de constituição da subjetividade, leva-se em consideração o principio do estabelecimento da regularidade discursiva; a partir de então, desloca-se o cânone metodológico e se centra a análise na identidade e subjetividade como um processo singular, daí contemplar o processo de identidade/subjetividade de Francisco Filho. Texto de Francisco Filho (F): Meu nome é Francisco, mesmo nome de meu pai falecido. Eu entrei na escola com sete anos. Sempre fui um aluno obediente, nunca meus pais tiveram reclamações di mim. Estudei até a segunda série, Depois parei, porque precisava trabalhar na roça. Depois já adolecênte comecei a trabalhar para ajudar a minha família. A cidade chegou até na roça. Na cidade era bom, mas era ruim também. Nossa casa era um barraco e num tinha um lugar pra gente criar uma galinha ou fazer uma horta. Lá na roça a gente cansava muito mas tinha o que comê. De manhã o frio cortava a carne, cada um dos meus irmão tinha um serviço e a minha função era cortar capim pros boi e o frio rachava as minhas mãos que chegava a sangra, depois todo mundo ia pro roçado do milho, do feijão, do arroz dependendo do tempo do ano. O que alegrava um pouco era o rodízio da capinação do pasto, cada semana todos nós da vizinhança ia limpar o pasto de algum de nós, ia tira as erva daninha que matava o boi se ele comesse, nesse dia, a mulher do dono do pasto servia o almoço, era muito alegre essa hora, noutro dia todo mundo ia na casa do outro até limpar todos os pasto. Di noite nem conseguia durmir porque doía tudo. Quando me alembro dessas coisa sinto uma saudade que dói, mas tudo mudou. Agora eu voltei a estudar porque a escola é muito importante na nossa vida. Porque hoje em dia a pessoa que tem estudo já está difícil arrumar emprego, imagina a pessoa que não tem estudo. Então por isso que o estudo é muito importante nós estudarmos para tentar garantir um futuro melhor para nós e nossas famílias. Espero que quando eu completar os meus estudos, eu tenha mais oportunidades de trabalho, ser um outro Francisco, prestar concursos públicos e poder ajudar também outras pessoas que precisam e ainda não tiveram uma oportunidade, como meu pai. 166 | P á g i n a Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano (Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no10 Como um dizer enquanto discurso que se faz sob a ilusão adâmica de se constituir o autor das palavras, F repete, no final do texto, toda determinação sócio-histórico e ideológica da importância do estudo para um cidadão. Determinado, ainda, pela antecipação do jogo imaginário, segundo o qual alunos da EJA imaginam que constitua a expectativa da professora, menciona que era um aluno disciplinado na infância. Ainda como um dizer enquanto discurso que se faz sob a ilusão adâmica de se constituir o autor das palavras, F repete, no final do texto, um dizer sócio-histórico, portanto, ideológico da importância do estudo para um cidadão, de que promove ascensão social e de que garante a empregabilidade. A menção a esse aspecto ideológico se justifica apenas para efeito de contextualização da pesquisa, não tendo sido contemplado para efeito deste estudo. Estruturalmente, Francisco constrói seu texto com uma configuração que aproxima de uma biografia, essencialmente memorialista, não “respondendo” diretamente às razões que o levaram a voltar a estudar. Inicia por fazer menção a seu nome, oferecendo um dado complementar que fora nomeado com o mesmo nome do pai o que remete ao conceito de nomeação lacaniana: sua referência ao pai, no fechamento do texto, se faz em uma passagem em que menciona a expectativa de vir a ser um outro Francisco, o que leva a crer que não se trata de mera atribuição de nome próprio. A singularidade do texto de Francisco se revela no que diz respeito à estrutura paragrafal. Os três primeiros parágrafos do texto em que inicia o texto memorialista, mas se faz a partir do presente, apresenta um registro que se aproxima muito da norma culta, com raros traços de oralidade. Em seguida, em um parágrafo único, numa digressão absoluta, Francisco, mais do que proceder ao relato da vida rural que levara, transporta-se para a vida “na roça”. Nesse transporte, um elemento de ordem do intradiscurso se revela: para além do parágrafo único, as pontuações em enunciados breves de até então passam para longas frases em que vários acontecimentos subsequentes se juntam. Em divergência perceptível, vários traços de registro da fala caipira se fazem perceber: tinha o que come; cada um dos meus irmão; cortar capim pros boi; todos nós da vizinhança ia limpar o pasto; Di noite nem conseguia durmir; Quando me alembro dessas coisa. Após esse longo quarto parágrafo de digressão, volta para o presente e apenas nesse momento é que passa a explicar as razões que determinaram sua frequência ao EJA. Nessa volta, também volta a escrever sob a norma culta. O que se percebe no texto de Francisco é a manifestação de um bilingualismo no sentido de um bilinguismo peculiar que não se faz propriamente pela mistura de duas línguas, comum entre imigrantes, mas por um registro que é recortado pelo sentimento de saudade de um outro tempo e se materializa, aproximando-se de um bilinguismo. A menção à saudade, outra regularidade que se apresentou em outros textos, faz de Francisco um imigrante temporal e não topológico: paradoxalmente um imigrante em sua própria terra, uma vez que não se deslocou espacialmente. Considerações finais Os efeitos nas identidades e nas subjetividades das migrações na contemporaneidade não em seu sentido clássico de êxodos topológicos, mas temporal constituiu o tema do estudo que ora se encerra. O despossuído de sua própria história, de sua identidade cultural constituiu 167 | P á g i n a Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano (Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no10 o objeto de estudo, consagrando à análise dos processos de subjetivação histórica e de identificações psicanalíticas do migrante temporal que se revelaram na e pela escrita. Mais precisamente, buscou-se encontrar, no discurso materializando em textos de alunos da Escola de Jovens e Adultos (EJA), a explicação para a menção significativa à sensação paradoxal de imigração na própria cidade onde nasceu, viveu e continua vivendo, Resultados da análise demonstram que o sujeito não alfabetizado que procura por cursos de alfabetização constitui, em certa medida, um imigrante das formas atuais da globalização que vem desenredando e subvertendo, cada vez mais, seus próprios modelos culturais herdados especializantes e homogeneizantes (HALL, 2006). Compelidos a deixar o modus vivendi eivado de culturas e tradições, como condição para se tornarem incluídos, os “caipiras” constituem os novos migrantes da configuração globalizada de sua própria terra e, sob uma histeria artificial, lamentam saudosamente a falta das tradições que deixaram. Não se deslocando em termos de posições geodésicas, isto é, em termos de latitudes e de longitudes de onde partem e para onde querem voltar, não se constituem migrantes topológicos, mas temporais, deslocando-se em termos de tempo de “onde partem” e “para onde” não podem voltar: não lhe resta alternativa a não ser ficar rebenqueado de saudade, isto é, nutrindo a dor da saudade. Eis a condição de todo imigrante, não apenas dos imigrantes topológicos, mas dos temporais também: estar saudoso como estar tomado por uma triste aspiração por algo indefinido que se foi há muito tempo, e saber que o passado não é um país que possa ser reencontrado. “Não podemos jamais ir para casa, voltar à cena primária enquanto momento esquecido de nossos começos e ‘autenticidade’, pois há sempre algo no meio [between]” (CHAMBERS, 1990, p.104, apud Hall, 2007, p. 27). Não podemos retornar ao passado; só podemos conhecê-lo pela memória e pelo inconsciente, por meio de seus efeitos, isto é, quando este é trazido para dentro da linguagem. E, de lá, embarcamos numa (interminável) viagem. Referências BOBBIO, Norberto. O Tempo da Memória: De senectude e outros escritos autobiográficos. Rio de Janeiro: Campus, 1997. CHAMBERS, Ian. Border Dialogues Journeys in Post-Modernity. London Routledge, 1990, 104 p. COURTINE, Jean-Jacques; HAROCHE, Claudine. O Homem perscrutado: semiologia e antropologia política da expressão e da fisionomia do século XVII ao século XIX. In: Orlandi, Eni P. et al. Sujeito e Texto. São Paulo: EDUSC , 1988, p. 37-60. CUNHA, Maria Jandyira . Memórias da migração. A identidade em pentimento. In. Cunha, Maria Jandyra et al (org.). Migração e identidade: olhares sobre o tema. São Paulo: Centauro, 2007, p.17-42. DE CERTEAU, Michel. A Invenção do Cotidiano, artes de fazer. Trad. Ephraim Ferreira Alves. 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O corpus consistiu em recortes do documentos/vídeos produzidos pelos ribeirinhos e pelo Movimento dos Ameaçados por Barragens (MAB). Partimos do princípio de que esse acontecimento discursivo provocou deslocamentos de sentidos, nas designações atribuídas a esses sujeitos, isto é, fez que essas expressões fossem (re)significadas. Palavras-chave: Ribeirinho, Designação, Análise do discurso. ABSTRACT: Based on the theoretical analysis of the Discourses of French Line, this paper examines the (re) constitution of the senses of the designations assigned to the subject riparian motivated by the event discursive output their original and subsequent relocation. We understand that the designations are produced within relations of language taken in history (Guimarães, 2005). The body is cut in a set of extracted documents / videos produced by the riverside and the Movement of People Affected by Dams (MAB). We assume that the discursive event caused displacement of meanings, the designations given to these subjects, that is, made that these words were (re) meant. Key words: Ribeirinho, Designation, French Discourse Analysis. Introdução O processo brasileiro de modernização industrial, a crescente urbanização e o consequente aumento do consumo energético levaram o governo do Estado de São Paulo a deliberar pela expansão da produção de energia elétrica e, dentre as formas de ampliação de produção, optou-se pelo aproveitamento do volume de águas existentes nos rios e, como consequência, a ampliação da construção de Usinas Hidrelétricas. Entre as décadas de 1960 a 1990, o Estado tornou-se um grande investidor nesses tipos de empreendimentos, os quais foram planejados e executados com vistas ao “desenvolvimento econômico” do Brasil. Dentre essas construções, planejadas e executadas no período, figura a Usina Hidrelétrica de Porto Primavera (SP). Como consequência, no estado de Mato Grosso do Sul na divisa com o estado de São Paulo, o acontecimento que nos impulsionou e inquietou foi a abertura das comportas da Usina Hidrelétrica de Porto Primavera, cujo processo de construção perdurou por quinze anos, 56 Professora Multiplicadora do Núcleo Tecnológico/Três Lagoas–MS e Mestre em Letras/Estudos Linguísticos, pela UFMS/Câmpus de Três Lagoas. 57 Professora da graduação e mestrado em Letras da UFMS/Câmpus de Três Lagoas. Membro do Grupo de Estudos “Vozes (in)fames; exclusão e resistência”, sob a coordenação da Profª. Maria José Coracini, no IEL/UNICAMP. 170 | P á g i n a Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano (Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no10 e somente em 2000, é que houve realmente a formação do lago, cujas ocorrências causaram, em definitivo, a desapropriação dos ribeirinhos das margens do rio Paraná, abrindo um novo capítulo de litígio discursivo: posições-sujeito entram em rota de colisão, convulsionadas pelos sentidos que se constroem sob o signo da memória e da sua atualização. A construção ocorreu em momento de crescente urbanização e aumento da demanda de consumo energético, o que levou o governo brasileiro a optar pela ampliação da produção de energia mediante o aproveitamento dos recursos hídricos. O Estado de São Paulo, após a década de 1960, tornou-se um grande investidor nesse tipo de empreendimento, como bem salientam: as grandes hidrelétricas constituem – por sua dimensão, natureza, modo de implantação, objetivos – um caso típico de Grande Projeto de Investimento. Sua multiplicação (...) consolida uma política nacional de exploração energética de recursos hídricos marcada por duas características principais: absoluto predomínio do Estado como agente empreendedor e afirmação das unidades de grande porte como sustentáculo essencial do planejamento e expansão do sistema de geração de eletricidade. (VAINER; ARAÚJO, 1992, p. 51). A questão que se coloca é, no entanto, polêmica e paradoxal, uma vez que esses empreendimentos, planejados e executados com vistas ao “desenvolvimento econômico”, ocorreram ao mesmo tempo em que centenas de famílias foram desalojadas dos lugares de origem. Esse processo constituiu, à época, um retrato muito atual de um Brasil dividido em dois mundos: de um lado, as Centrais Elétricas de São Paulo - CESP, empresa estatal (em expansão e em prolongado processo de discussão sobre uma possível privatização), representando o capitalismo em sua fase moderna; de outro, os ribeirinhos (o pequeno produtor, trabalhador do campo, com seu modo simples de vida e economia voltada para subsistência), representando o trabalho em fase quase primitiva. A desapropriação da área, antecedida por negociação entre as partes, discussões, acordos, resistências, configurou-se na produção de um espaço tenso de interesses, demonstrando a coexistência de discursos antagônicos: “desenvolvimento”, “progresso”, “bem estar” versus “lugar de origem” e “resistência”. Nesses casos, o responsável pela obra (Estado de São Paulo) repassou uma indenização em dinheiro aos antigos moradores/proprietários, os quais reivindicavam, entretanto, o pagamento sob a forma de doação de propriedade rural, decorrendo daí a maioria dos conflitos. É o antagonismo da sociedade organizada, em que atuam diferentes agentes sociais, cada qual agindo conforme seus ideais ou interesses e demarcando território sob a égide das lutas de força: os atingidos, quando organizados em movimentos, tendem a recusar a redução praticada na ação desapropriatória, que vê tudo o que vai ser perdido sob as águas do lago como passível unicamente de uma avaliação e uma indenização monetária (GRZYBOWSKI, 1990, p.26). Uma vez introduzido o acontecimento que ensejou esta pesquisa sobre os ribeirinhos, objetivamos neste texto58 interpretar a constituição dos sentidos atribuídos aos sujeitos 58 Este artigo é um recorte da dissertação de mestrado “Das Margens do Rio ao interior do Discurso: de Ribeirinhos à sem Rios”, defendida na Universidade Federal de Mato Grosso do Sul/Campus de Três Lagoas, em 2009. 171 | P á g i n a Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano (Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no10 ribeirinhos, motivadas pelo acontecimento discursivo de saída de seu local de origem (margem do rio Paraná) e posterior realocação e, ainda, discutir quais os efeitos de sentido decorrentes das designações “ribeirinhos” e “sem rios” (oleiros, pescadores e agricultores). Nossa análise está ancorada nos pressupostos teóricos da Análise do Discurso Francesa (AD) – primeira fase. Teoria constituída na França no final da década de 1960, resultante, sobretudo dos trabalhos de Michel Pêcheux, que buscava a explicitação dos mecanismos discursivos que embasam a produção dos sentidos. Em desenvolvimento no Brasil, desde o final dos anos 1970, com as traduções das obras de Pêcheux e com os trabalhos de Eni Orlandi, a AD consolidou-se como um campo fértil de investigação, por vincular, nos estudos discursivos, língua, ideologia e história. O córpus consiste em um vídeo “Sem rios”, gravado em 2000, com duração de trinta minutos, com o objetivo de denunciar a situação dos oleiros, pescadores e agricultores diante do processo de desapropriação, veiculado no e pelo Movimento dos Ameaçados por Barragens (MAB). Trata-se de um material documentário em que a descrição e a narração são mescladas levando em consideração as emoções e os sentimentos, tanto dos ribeirinhos quanto do próprio narrador, que, além de, constantemente, destacar os efeitos psicológicos que a saída da barranca deixará em cada morador, explicita também os sentimentos diante da situação. Tal narração é permeada pelo discurso direto – ao longo da filmagem, introduzem-se diálogos dos personagens (os ribeirinhos) – e, como desfecho, o narrador pronuncia o seguinte texto: “o que não foi filmado não existe”. Trata-se de um movimento surgido no seio das lutas sociais e que buscava promover enfrentamentos das populações ribeirinhas em prol dos seus objetivos. No início, a bandeira do movimento era pela garantia de indenizações justas e reassentamentos, depois, evoluiu para o questionamento da construção de barragens. Assim, a luta por direitos ampliou-se para um combate em prol de um novo modelo energético. Foi com o movimento MAB que os ribeirinhos passaram a ser nomeados e reconhecidos pela mídia como “os sem rios”. Este artigo está dividido em duas partes, na primeira, abordamos o conceito de designações e de “ribeirinhos”, na segunda, tratamos dos sentidos atribuídos a sem rios, por fim, nas considerações finais, fazemos algumas reflexões sobre os conceitos discutidos e as possíveis (re)significações. Sobre as designações e sobre os sentidos de ribeirinhos (oleiros, pescadores e agricultores) Segundo Guimarães (2005, p. 9), o sentido de um componente lingüístico relaciona-se ao modo com que este integra uma unidade mais ampla, para isto, deve-se considerar a constituição histórica de tal elemento. Quanto ao processo de designação, o autor distingue-a num conjunto de outras palavras, consideradas sinônimas ou correlatas, em três planos: denotação, nomeação e referência. A primeira pode ser usada como sinônima ou não das outras, a segunda refere-se ao funcionamento semântico do nomear algo, e a última diz respeito ao ato, no processo enunciativo, da particularização de algo. Guimarães (idem) pontua, ainda, que designar, na linguagem, não representa mera identificação de um objeto no mundo; a significação de uma expressão referencial constitui-se no funcionamento da língua, no confronto de dizeres e sentidos diversos. Para ele, há espaços de constituição de sentido, (re)configurados por acontecimentos enunciativos, onde ocorrem as cenas enunciativas (modos específicos de acesso à palavra), produtoras da designação. 172 | P á g i n a Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano (Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no10 Observamos que os trabalhadores ribeirinhos são designados de diferentes formas: “oleiros”, “pescadores”, “agricultores” e “sem rios”, nomeados segundo Guimarães (2005), havendo dessa forma a recategorização59 de um referente anterior (MARCUSCHI; KOCH, 2002) sendo que, as designações apontadas constituem marcas da heterogeneidade constitutiva (AUTHIER REVUZ, 1990) o que remete a uma ordem de discursos ou interdiscursos, que caracteriza os discursos do e sobre o ribeirinho. Em se tratando de nomeação Fiorin (2005, p. 11) salienta que o livro do Gênesis e a mitologia declaram a inexistência de seres antes que Deus os nomeasse. As coisas passaram a existir mediante a nomeação divina. Nos limites deste texto, não nos compete questionar a existência divina, nem tampouco a origem dos mitos, porém, consideramos que o homem tem sua existência condicionada à linguagem, que num processo enunciativo (re)produz o mundo ao seu redor. Em algum momento da história, ele passou a relacionar-se de maneira diferente com o mundo, com a natureza, com os outros homens e com ele próprio. Deu nome às coisas e, ao nomeá-las, criou uma dimensão diferente da coisa em si, a dimensão da linguagem. Morfologicamente, o vocábulo ribeirinho pode ser tanto um substantivo ou adjetivo (masculino singular) derivado do substantivo “ribeiro”60, mediante acréscimo do sufixo inho que, além de expressar a noção de tamanho, pode também provocar efeito de sentido de desqualificação daquilo que nomeia. As formas aumentativas e diminutivas podem representar nosso desprezo, a nossa crítica, o nosso pouco caso para certos objetos e pessoas, sempre em função da significação lexical da base, auxiliado por uma entoação especial (eufórica, crítica, admirativa, lamentativa etc.) e os entornos que envolvem falante e ouvinte: livreco, coisinha, homenzinho, por exemplo. Nesse caso, observamos que os substantivos estão em sentido pejorativo. A ideia de pequenez se associa facilmente à de carinho que transparece nas formas diminutivas das seguintes bases léxicas – paizinho, mãezinha, queridinha (BECHARA, 1999, p. 141). Outro fator que pode ser observado é o funcionamento semântico discutido por Guimarães (2005) em que o sentido de negatividade também pode se incorporar ao de desprezo. Mais uma vez, o sufixo -inho corrobora com o ponto de vista do locutor, que direciona o seu discurso para que o interlocutor o leia de acordo com o efeito que deseja causar. Logo, inho também pode ser considerado elemento modalizador avaliativo. Neste trabalho, o campo semântico de “ribeirinhos” compreende todos aqueles que vivem nas proximidades da barranca do rio, trabalhando em suas margens ou dele retirando o seu sustento, designados por “oleiros”, “pescadores” ou “agricultores”. Em relação ao “oleiro”, confira as palavras: Seq. (1): oleiro é uma pessoa... que trabaia com o barro... tijolo neh... que a faz a produção para construir os tijolos... pra fabricá a casa... é um serviço que a gente pega cedo ...trabaia o dia inteiro...a partir das seis horas da manhã... a gente tá tudo no serviço (J.O.G vídeo1). Tal qual ribeirinho, o termo oleiro constitui vocábulo que compreende tanto substantivo quanto adjetivo masculino singular61. Trata-se de uma particularização do oleiro 59 A recategorização lexical pode operar por meio de alguns processos como a rotulação, a argumentação, e pelo uso de estratégias metalingüísticas que são recategorizadas por nomes ilocucionários (ordem, promessa), por nomes de atividades “linguajeiras” (descrição, explicação) e por nomes metalingüísticos em sentido próprio (frase, pergunta) (MARCUSCHI; KOCH, 2002, p. 31-56). 60 Rio pequeno, regato, riacho (FERREIRA, 1975, p. 1236). 61 do Lat. Ollariu, aquele que trabalha em olaria; proprietário de olaria (FERREIRA, 1975, p. 995). 173 | P á g i n a Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano (Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no10 (GUIMARÃES 2005) ao designar a atividade praticada pelo sujeito, “pessoa... que trabaia com o barro”, o que nos remete ao discurso cristão, ao mito da criação e ao discurso fundador sobre o trabalho, explicitado por Fiorin (2005), numa evocação à Bíblia Sagrada quando teoriza o mito com que a civilização explica a origem da linguagem. De acordo com tal mito, uma das condições para existência humana é o trabalho, ou seja, o homem teria de produzir/trabalhar para conseguir seu sustento. De onde advém o conceito de trabalho assumido, neste texto, ligado à experiência do cotidiano da comunidade, que transforma o trabalho em atividade de sobrevivência, em um valor ético marcadamente propulsor de comportamentos tanto individuais quanto coletivos e que identificam a comunidade a que nos referimos como oleiros. Segundo Pêcheux (1988, p. 161), o sentido constitui-se nas relações que cada palavra mantém com as demais em uma dada formação discursiva. Uma das significações do vocábulo oleiro está relacionada ao mito da criação do homem, narrado pela Bíblia 62, que aciona o imaginário popular do sujeito cuja missão é servir. Ainda de acordo com o discurso religioso, quando há uma recusa em servir, essa é encarada (por Deus) como rebeldia. Temos, portanto, um discurso inscrito numa filiação histórica ligada ao serviço daquele que não nasceu para ser alguém e, sim, para servir a alguém. Ou melhor, para doar, ser fonte do amor, sujeito e não objeto (MOTTA, 2010)63. Quanto à matéria prima de seu trabalho – o barro – esse é molhado, durante o processo de moldagem realizado pelo oleiro. Depois de passado no forno, se apresentar algum defeito, deve ser quebrado. Retomamos aqui, a narrativa religiosa, no tocante ao Reino de Judá, que, ao tornar-se indiferente a Deus e voltar-se para os ídolos, após inúmeras advertências, sem arrependimento, fora “quebrado” (Jeremias, 19: 1-11), isto é, destruído enquanto nação. Para o discurso cristão, esse fato representa uma alerta para a necessidade de acomodação aos desígnios divinos. Observamos que o mito bíblico traz implícito o propósito de submissão, de repressão, um colocar-se a serviço sem discutir, carga semântica que o item lexical oleiro carrega em sua constituição histórica. Quanto à designação pescador (também classificado pela gramática como substantivo ou adjetivo masculino), relaciona-se à atividade praticada para a subsistência, mediante a pesca como nos aponta o próprio ribeirinho: Seq. (2): pescadô né, movimenta de peixe né, movimento aqui de peixe que tinha aqui na beirada do rio (J.F.S. vídeo2). Ao particularizar ou referir (GUIMRÃES, 2005) ao pescador, esse vocábulo aciona também a memória do discurso bíblico. Nos sermões de igrejas evangélicas, padres e pastores apontam para a necessidade de seguir o chamado de Deus para “pescar homens para o Seu 62 Deus fez o homem do barro da terra: "E formou o Senhor Deus o homem do barro da terra" (Gn 2:7). O primeiro homem, Adão, significa barro. Em outra passagem bíblica, temos a referência (Is 43:7), de que Deus fez o homem como um vaso, mas o pecado da desobediência tornou esse vaso inútil. O homem rebelou-se interior e exteriormente contra Deus (Rm 1:23). Há também referência à figura do oleiro - citada em Jeremias 18, 1-6ss. Citações estas que relatam a manifestação de Deus como um oleiro, moldando, como a argila, àqueles que pertencem a Ele. 63 Psiquiatra, Psicoterapeuta e Professor convidado do curso de Sexualidade Humana da Universidade de Campinas/UNICAMP. 174 | P á g i n a Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano (Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no10 reino64. Segundo o cristianismo, “pescar homens” significa colocar-se como instrumento do Criador, trazer vidas ao conhecimento do evangelho e ao arrependimento dos pecados. Neste aspecto, um dos sentidos de pescador seria “colocar-se a serviço de alguém por alguém”. É o amor-serviço como sujeito que se relaciona bem com o outro e não como objeto que espera do outro (MOTTA, 2010). Já a terceira designação, agricultor, liga-se a terra e a sua capacidade produtiva, conforme declara a ribeirinha: Seq. (3): ...a terra pra mim é uma grande vantagem... porque a terra... eu vô plantá um pouco de lavoura... vô criá minhas criação (A.B.S. vídeo1). Nesse processo enunciativo, o ribeirinho nomeia as ações que pratica por ser um tipo de trabalho totalmente vinculado à terra, caracterizado por um sistema de produção qualificado como familiar, por agregar todos os membros da família. Sem distinção quanto ao ciclo de vida e ao gênero, dele fazem parte jovens e mulheres que, utilizando do próprio trabalho, produzem aquilo que necessitam para a sua subsistência. Para entendermos o funcionamento semântico-enunciativo das designações, consideramos o fato de que a nomeação ocorre no espaço de enunciação (GUIMARÃES, 2005 p. 35), ou seja, envolve lugares de dizeres diferentes, uma enunciação que nomeia, recategoriza, por sua vez, enunciações diversas. Quando nos referimos a ribeirinhos, oleiros e pescadores, lavradores da terra, rememoramos designações diversas acerca daqueles que vivem nas proximidades dos rios e deles retiram o sustento, desde os primórdios da civilização até os dias de hoje. Há o entrecruzamento de diversas regiões do interdiscurso, logo, a designação encontra-se afetada por toda uma memória do dizer. Os sem rios (deslocamento de sentidos) Os sem rios65 constitui-se expressão formada pelo artigo definido masculino plural "os" mais a preposição "sem" [Do lat. sine.], que, de acordo com o dicionário Aurélio66, indica ‘falta’, ‘privação’, ‘exclusão’, ‘ausência’, ‘exceção’; mais o substantivo masculino "rio", na forma plural. O fato de apresentar em sua composição o especificador gera um efeito de sentido de que não se tratam de sujeitos quaisquer, mas de sujeitos específicos que se constituem mediante a reivindicação de espaço identitário determinado. Na esteira de Os sem-terra, Os sem rios tornaram-se sujeitos de um movimento que põe em questão o modo de ser da sociedade capitalista atual e a cultura reproduzida e consolidada por ela. Ao reivindicarem para si a identidade de população ribeirinha, questionam posicionamentos de autoridades e ambientalistas que, de acordo com o MAB (Movimento dos ameaçados por barragens), quando da elaboração dos relatórios de análises das áreas impactadas, consideram essas áreas como desabitadas, preocupando-se apenas com a fauna e a flora ali existentes. 64 De acordo com a Bíblia, a expressão “pescadores de homens” foi criada por Jesus no contexto da convocação dos primeiros apóstolos: Pedro, André, Tiago e João, que tinham por oficio a pesca (S. Mateus 4: 18-22). 65 Não encontramos registro da expressão Os sem rios com hífen. Embora, o Novo Acordo Ortográfico vigente assim o requeira, neste texto, adotamos a forma empregada pelos sujeitos à época da produção do documentário. 66 FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda, 1975, p.1283. 175 | P á g i n a Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano (Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no10 O surgimento desse nome próprio composto: Os sem rios confunde-se/funde-se e ligase, portanto, ao uso da preposição “sem” mais o substantivo que representa “a coisa”, o objeto de desejo, isto é, deriva da luta dos despossuídos de algo que anseiam. Mais do que a posse do objeto de desejo (a terra, no caso, de Os sem-terra) consolidam-se enquanto movimento/organização que lutam por mudanças estruturais mais amplas. Historicamente, este item lexical: Os sem rios passa a identificar um sujeito social, mediante nome que revela uma identidade, um passado e uma memória histórica e uma cultura de luta e de contestação social. Há um processo de construção desse sujeito, que é a história de luta contra o represamento dos rios, por ocasião da formação de lago proveniente de construção de hidrelétricas. Ao identificarem-se como Os sem rios, além de lutarem pelas terras ribeirinhas, passam à afirmação de uma condição social: populações ribeirinhas desprovidas de condições de existência. Essa reivindicação de identidade se amplia à medida que se materializa na luta por um novo modelo energético, ou seja, que se constitui como cultura, que reivindica transformações no jeito de ser da sociedade atual e nos valores que a sustentam. O ribeirinho, ao reivindicar para si uma identidade, constitui-se em sujeito de permanente transformação, à medida que sujeito (também condicionado a) de vivências coletivas que exigem ações, escolhas, tomadas de posição, superação de limites, e, assim, conformam seu jeito de ser. Do entrelaçamento das vivências coletivas que envolvem e se produzem desde cada família, cada grupo, cada pessoa com o caráter histórico da luta social que representam, forma-se a coletividade, Os sem rios, enquanto sujeitos atuantes nas ações do cotidiano ou do processo de luta. E à medida que Os sem rios constituem uma organização coletiva, eles se posicionam como sujeitos, vivem experiências de formação humana encarnadas nessa trajetória. Suas referências se constroem porque essa luta social se faz de um modo que é capaz de colocar em cena novos sujeitos na busca de seu espaço/representação, ao mesmo tempo em que os apresenta no embate de lutas quase tão antigas quanto a humanidade. Considerações Finais Buscamos uma reflexão sobre as designações e as nomeações atribuídas aos sujeitos e às mudanças sofridas, motivadas no e pelo acontecimento discursivo, o que possibilitou compreender as (re)significações e o deslocamento de sentidos da expressão os sem rios, que mobiliza novos sentidos e configura-se numa luta para além das causas ribeirinhas. Trata-se, pois, de uma nova categoria social que anseia por mudanças estruturais mais amplas, capazes de provocar interferência no modelo atual de sociedade, bem como, nos valores que a sustenta. A (re)significação ocorre no momento em que irrompe o acontecimento discursivo de desapropriação das terras ribeirinhas, por ocasião da construção da hidrelétrica de Porto Primavera, provocando assim, deslocamentos de sentidos. Dito de outro modo, a maneira de referir/nomear constitui as designações desses sujeitos e, à medida que mobilizam dizeres e sentidos outros, identifica os ribeirinhos no e pelo acontecimento em questão. O sujeito, antes ribeirinhos, transformou-se em sem rios, momento de uma nova reconfiguração, novos processos de luta, dentre esses, a luta contra a exclusão. Esse sujeito se desidentifica com a formação discursiva que o constituiu, para identificar-se com uma nova “forma-sujeito” de direito, daquele que reivindica para si e para outro, além da terra, mudanças na “forma de ser” do sistema capitalista. 176 | P á g i n a Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano (Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no10 Dizer "quem somos" significa também dizer "o que não pretendemos ser". Assim, afirmar a identidade significa demarcar fronteiras, significa fazer distinções incluir-se pela luta e resistência. Referências AUTHIER-REVUZ, J. Heterogeneidade(s) enunciativa(s). Cadernos de Estudos Lingüísticos, n.19, p.25-42, Campinas, Unicamp, São Paulo: 1990. GUIMARÃES, E. Semântica do acontecimento: um estudo enunciativo da designação. Campinas: Pontes, 2. Ed., 2005. BECHARA, E. Moderna gramática portuguesa. Rio de Janeiro: Lucerna, 1999. BÍBLIA SAGRADA: Nova Tradução na linguagem hoje. Barueri: Sociedade Bíblica do Brasil, 2000. FERREIRA, A. B. H. Novo dicionário da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira S.A., 1975. FIORIN, J. L. As astúcias da enunciação: as categorias de pessoa, espaço e tempo. São Paulo: Ática, 2005. GRZYBOWSKI, C. Caminhos e descaminhos dos movimentos sociais no campo. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 1990. MAB, Movimento dos Atingidos por Barragens. A Organização do Movimento dos Atingidos por Barragens – MAB. Caderno de Formação nº. 5, São Paulo, 2000. _____. Os Sem rio – Fita VHS. MARCUSCHI, L. A.; KOCH, I. V. Estratégias de referenciação e progressão referencial na língua falada. In: ABAURRE, M. B.; RODRIGUES, A C. S. (orgs.) 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Guavira no10 MOTIVAÇÕES DA MOBILIDADE ESTUDANTIL ENTRE OS ESTUDANTES DO CURSO DE ADMINISTRAÇÃO Manolita Correia Lima (ESPM–SP)67 Viviane Riegel (ESPM- SP)68 RESUMO: A pesquisa teve o objetivo de conhecer as motivações que justificam o crescente interesse dos estudantes pelos programas de formação internacional. A investigação se concentrou em estudantes e egressos do curso de Administração, oferecidos no Brasil, participantes de programas de intercâmbio. O grupo é predominantemente formado por jovens, de ambos os sexos, que participaram de programas de intercâmbio durante a graduação. Estão vinculados a instituições paulistanas, respeitadas na área de Administração. Apesar de efetivados em sólidas empresas nacionais e multinacionais e ter renda própria, residem com os pais e estes assumem papel preponderante nas decisões relativas ao planejamento do programa. Palavras-chave: mobilidade estudantil; educação; multiculturalismo ABSTRACT: The research aimed to understand the motivations that justify the growing interest of students for international programs. The research focused on students and graduates of the Business Administration course, offered in Brazil, participants of exchange programs. The group is predominantly composed of young men and women who participated in exchange programs during graduation. They are linked to institutions in São Paulo, respected in the Business Administration area. Although effective in strong national and multinational companies and with their own income, they reside with their parents who take leading role in decisions regarding the planning of the exchange program. Key-words: student’s mobility; education; multiculturalism Introdução A investigação cujos resultados estão aqui reunidos objetivou conhecer as motivações que justificam o crescente interesse da população estudantil por programas de formação internacional, particularmente o intercâmbio acadêmico. Sintomaticamente, o tema tem conquistado espaço no cinema69, motivado produções literárias70 e acadêmicas, justificando 67 Professora titular do programa de Mestrado em Gestão Internacional da Escola Superior de Propaganda e Marketing (SP). Graduação em Ciências Sociais - Universite de Paris III (Sorbonne-Nouvelle) (1984), mestrado em Sociologia dos Espaços Construídos - Universite de Paris VII - Universite Denis Diderot (1984) e doutorado em Educação pela Universidade de São Paulo (2003). Atual projeto de pesquisa: “Internacionalização da Educação Superior” – email: [email protected]. 68 Professora assistente da Escola Superior de Propaganda e Marketing (SP). Graduação em Administração de Empresas – Escola Superior de Propaganda e Marketing (SP) (2002), e mestrado em Comunicação e Práticas de Consumo - Escola Superior de Propaganda e Marketing (SP) (2010) – email: [email protected]. 69 L’auberge espagnole (produção franco-espanhola de 2002, dirigida por Cédric Klapisch), Thelma e Louise (produção americana de 1991, dirigida por Ridley Scott), Easy rider (produção americana de 1969, dirigida por Denis Hopper). 70 Moby Dick de Herman Melville (1851), The seven voyages of Sinbad the sailor (conto 133, vol.6 das Mil e uma noites), On the road de Jack Kerouac (1954), L’usage du monde de Nicolas Bouvier (1963), Le voyage d’Ulysse de Tim Severin (2000) . 178 | P á g i n a Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano (Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no10 levantamentos mundiais por parte de organismos internacionais71, revelando que o fenômeno não é recente, mas que contemporaneamente envolve amplos setores da população (NOGUEIRA et al. 2008, p. 356) e mobiliza diferentes atores em razão da multiplicidade de motivações e interesses implicados (LIMA; CONTEL, 2009, p. 6). Por isso tem ganhado diversos formatos: mobilidade institucionalizada / espontânea (BALLATORE; BLÖSS, 2008, p.17); interna / externa; horizontal / vertical; curta, média ou longa duração etc. (DERVIN; BYRAM, 2008, p. 9). Os programas de mobilidade estudantil são genericamente nomeados de intercâmbio internacional, incluem formatos tão diversos quanto os estágios lingüísticos, realização de disciplinas ou cursos superiores e de high school (PRADO, 2004; NOGUEIRA, 2004). O programa de intercâmbio acadêmico se caracteriza por um séjour de estudo, concretizado por estudantes interessados em aperfeiçoar o domínio de uma língua estrangeira, participar de disciplinas que integram o currículo de determinado semestre escolar, ou realizar curso oferecido por uma instituição de educação, podendo se estender por até 12 meses, diferenciando intercambistas de turistas. A organização do programa pressupõe o retorno do estudante ao país de origem, tão logo as atividades previstas sejam concluídas, distinguindo intercambistas de imigrantes (CICCHELLI, 2008, p. 144). Com a intensificação da mobilidade acadêmica e o aperfeiçoamento dos levantamentos de dados sobre o fenômeno, observa-se que: a) o fluxo de estudantes internacionais é desequilibrado à medida que desperta mais interesse entre a população estudantil oriunda dos países periféricos e semiperiféricos (China, Índia, República da Coréia, Turquia, Marrocos, México, Brasil, etc.) do que a dos países do centro da economia-mundo – enquanto os EUA acolhem 26% da população estudantil internacional, enviam 2% (UNESCO, 2008). b) as motivações que justificam o investimento financeiro e emocional envolvido na realização do programa são múltiplas em razão da heterogeneidade da população formada pelos intercambistas, expressa tanto no plano geográfico, quanto sócioeconômico e intelectual (capital intelectual original) (CICCHELLI, 2008). Assim, recorrentemente, intercambistas são “confundidos” com trabalhadores imigrados disfarçados (CHARLE et al., 2004, p. 967), preocupados em legitimar a sua permanência no país de acolhimento e respectiva aceitação social assumindo o status de estudante. “Confusão” que tem implicado na discussão/adoção de uma política de imigração restritiva por parte de países do centro da economia-mundo e de maiores exigências para a expedição de documentos que regularizem a permanência do estudante no país de acolhimento. Chama-se atenção para o fato de vários países da União Européia transferirem a responsabilidade pela definição da política de imigração para o Parlamento Europeu. Os números consolidados (seja por instituição, programa, país ou região) são tão impressionantes (em 2006 eram 2 754 373 estudantes internacionais em circulação) que levam autores a anunciar un nouvel ordre éducatif mondial (LAVAL; WEBER, 2002) e a assegurar que “la mobilité académique [...] semble être devenue incontestablement une composante des paysages éducatifs de la plupart des pays du monde” (Dervin, Byram, 2008, p. 9). Apesar de ser uma afirmativa incontestável, seu conteúdo omite o fragrante desequilíbrio que marca a mobilidade estudantil, particularmente entre Norte e Sul, países 71 Destacam-se os levantamentos realizados pela UNESCO e OCDE e anualmente divulgados: Recueil de données mondiales sur l’éducation – statistiques comparées sur l’éducation dans le monde (UNESCO), Regards sur l’éducation (OCDE). 179 | P á g i n a Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano (Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no10 centrais e periféricos. Reforçando o que Magali Ballatore e Thierry Blöss (2008, p. 25) nomeiam de affinité sélective, uma espécie de hierarquia que se traduz não apenas na escolha do país de destino (reforçando a desigualdade da força simbólica existente entre as nações – WAGNER, 1998), mas no acesso a determinadas instituições (mais antigas, reputadas e seletivas), áreas de conhecimento (mais valorizadas pelo mercado de trabalho), e respectivos impactos sobre a ascensão sócio-econômica dos estudantes em mobilidade (inégalités de prestige72). Da década de 1990 em diante, percebe-se alguma evolução no número de instituições de educação superior brasileiras que dispõe de algum profissional (ou setor) responsável pela divulgação de programas de intercâmbio internacional (LIMA et al., 2008). Em parte isso se deve à pressão exercida pelos estudantes, que em número crescente planejam uma experiência internacional de estudo ainda na graduação (NOGUEIRA et al., 2008). Considerando que a área de Economia e Gestão é tradicionalmente uma das mais procuradas por estudantes internacionais, parece contributivo investigar qual é o perfil do estudante intercambista, vinculado a cursos de graduação em Administração, oferecidos por instituições públicas e privadas, distribuídas no território brasileiro? Qual seria o tipo de intercâmbio internacional realizado, o destino preferido, os motivos da preferência e o tempo médio envolvido? Quais as motivações que justificam o investimento em programas de mobilidade espontânea e quais os resultados pessoais e profissionais que acreditam ter alcançado com a experiência? Nos limites deste texto, mobilidade espontânea é aquela em que os estudantes decidem investir em algum programa de formação internacional e, sem qualquer suporte acadêmico e/ou financeiro de agências governamentais, escolhem o país de acolhimento, a instituição que pretendem freqüentar e a atividade que desejam desenvolver (disciplina ou curso) e, individualmente, criam as condições que viabilizam a experiência. Apesar de este formato de mobilidade dificultar a estatística da população estudantil envolvida, tem crescido sobremaneira na medida em que: a) poucos países desenvolveram programas de incentivo à mobilidade acadêmica promovendo reformas universitárias capazes de harmonizar diplomas e facilitar os respectivos processos de validação (BILLAUD, 2007, p. 22). Número ainda menor criou efetivos mecanismos de financiamento público, capazes de promover não apenas a circulação de representantes da elite econômica, mas, sobretudo, da elite escolar. Sendo assim, para a maioria, a experiência requer o financiamento privado das despesas incluídas no deslocamento, curso e séjour (NOGUEIRA et al., 2008, p. 369); b) apesar de a globalização da economia, associada à reestruturação do trabalho e às crescentes taxas de desemprego, particularmente entre os jovens, requerer outro perfil de trabalhador, parte expressiva dos países periféricos e semi-periféricos ainda não alcançou a massificação do acesso à educação superior. Neste caso, a mobilidade dos jovens se revela mais uma necessidade do que uma opção – seja no sentido de adiar seu ingresso no mercado de trabalho ou no sentido de ampliar a empregabilidade com a experiência internacional (BALLATORE; BLÖSS, 2008, p. 38); c) o crescimento das taxas de escolarização, associado ao acesso de novos públicos à educação superior, em diversos países, engendram a desvalorização dos certificados escolares (NOGUEIRA et al. 2008, p. 371). Assim, antigos e novos estudantes tendem a direcionar suas estratégias escolares para níveis mais altos e diferenciados do sistema escolar. Nas palavras de Andréa Aguiar (2009, p. 73), “a massificação escolar 72 Esta ideia é confirmada pelos resultados da pesquisa realizada por Magali Ballatore e Thierry Blöss (2008). Em suas palavras, “l’image de grandeur et de prestige associée aux institutions étrangères de formation supérieure, représentent à ce titre un des facteurs jugés importants” (BALLATORE; BLÖSS, 2008, p.37). 180 | P á g i n a Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano (Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no10 e a perda do distintivo dos diplomas [...] teriam acentuado a demanda atual por novos atributos na formação. Assim, a mobilidade geográfica passaria a ser interpretada como competência desejada da prática do saber-fazer, avaliada como triunfo individual e pessoal, num contexto em que o cosmopolitismo se impõe como saber ou necessidade cultural, em contraposição à imobilidade e ao confinamento nacional”; d) com o desinvestimento em educação superior, as universidades (públicas e privadas) que se notabilizaram no cenário mundial estão cada vez mais pressionadas a diversificar a oferta de serviços educacionais e a atrair estudantes solvíveis como forma de ampliar a margem de autofinanciamento. É neste contexto que o protagonismo do mercado confere à mobilidade acadêmica uma lógica mercantil, capaz de substituir solidariedades acadêmicas por competitividade, no enfrentamento dos desafios presentes no mundo globalizante (CHARLE et al., 2004, p. 968). Na intenção de pormenorizar estas ideias, o texto foi estruturado em três partes: a primeira descreve os recursos metodológicos explorados; a segunda faz a síntese da revisão da literatura; e a terceira descreve e interpreta os dados resultantes de levantamento realizado de acordo com os procedimentos preconizados pelo método survey. Descrição dos Procedimentos Metodológicos A pesquisa foi desenvolvida com a exploração de recursos típicos do método survey. Assim sendo, entre os meses de janeiro e fevereiro de 2009 o instrumento de coleta foi elaborado, testado e aperfeiçoado, para entre os meses de março e abril ser aplicado, utilizando-se do sistema on-line disponível em www.surveymonkey.com. O questionário incluiu 27 questões, distribuídas em quatro blocos de perguntas: o primeiro deles permitiu o desenho do perfil dos respondentes; o segundo ajudou na identificação do tipo de intercâmbio internacional preferido; o terceiro colaborou para se descobrir o destino escolhido, os motivos da preferência, e o tempo médio de permanência no exterior; e o quarto permitiu se conhecer as motivações que justificam o investimento em programas de mobilidade espontânea e o mapeamento dos resultados pessoais e profissionais alcançados. O instrumento de coleta envolveu dois tipos de questões: aquelas que solicitavam informação foram elaboradas em forma de múltipla escolha e, dentro do possível, a sua formulação respeitou a estrutura semi-aberta, na tentativa de inibir processos de indução, levando em conta o reduzido número de alternativas de respostas. E aquelas que envolviam avaliação fizeram uso de uma escala que variou de zero a sete, conforme o grau de concordância. O acesso ao instrumento de coleta ocorreu por e-mail, enviado para o banco de dados dos associados da Brazilian Educational & Language Travel Association (BELTA). O filtro utilizado considerou estudantes e egressos dos cursos de graduação de Administração, oferecidos por instituições distribuídas em todo o território nacional, que participaram de algum programa de intercâmbio, com duração igual ou superior a três meses. Visto que a amostra está limitada a 90 respondentes e foi obtida por meio de critérios não probabilísticos e por conveniência, os resultados alcançados não ultrapassam o caráter exploratório. A Mobilidade Acadêmica – origem e evolução Historicamente as viagens fazem parte de um conjunto de iniciativas que contribuem para a socialização internacional das classes superiores – a exemplo do 181 | P á g i n a Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano (Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no10 grand tour aristocratique (WAGNER, 2007). Nesta direção, a mobilidade dos acadêmicos não é um fenômeno recente, fruto do incremento tecnológico associado à globalização econômica, e à elevação do padrão de competitividade e concorrência entre as economias dos países e regiões do mundo. Guadilla (2005, p. 16) assegura que a natureza universal do conhecimento, combinada à tradição de cooperação acadêmica, no desenvolvimento de atividades de ensino, desde a Antiguidade, são fatores que contribuíram para imprimir caráter intrinsecamente interterritorial às universidades e às instituições de educação que as precederam. Interterritorial porque a emergência do Estado-nação ocorre em período posterior, por conseguinte, tais instituições funcionavam em cidades – Bolonha (1088), Paris (1125), Oxford (1167), Salamanca (1218) etc – ainda não separadas por fronteiras nacionais. Assim, desde a Idade Média, o pereginatio academica correspondia a viagens realizadas por acadêmicos desejosos de estudar com autoridades no tema de especial interesse, em uma ou mais regiões da Europa. Esta mobilidade acontecia pela confluência de diversos fatores: a notabilidade conquistada por alguns professores em determinados temas (a), a existência de uma elite sócio-econômica disposta a desfrutar de alguma experiência inter-regional, apesar da precariedade dos meios de transporte e acomodações disponíveis (b), a convergência de currículos definidos e controlados pela Igreja (c), além do uso corrente do latim no ambiente educacional, facilitando a comunicação entre os atores (d) (CHARLE; VERGER, 1996). Com a formação do Estado-nação, a mobilidade acadêmica não foi interrompida porque os governos se viram pressionados a investir na formação de quadros naquelas áreas descobertas pelo sistema nacional de educação (LIMA; CONTEL, 2009). Com o término das Grandes Guerras, a mobilidade de professores europeus para universidades estadunidenses inaugura a internacionalização da educação como estratégia capaz de incrementar o desenvolvimento. Desde então, o número de acadêmicos originários de países da periferia ou semiperiferia da economia-mundo só tem crescido na direção dos grandes centros, corroborando as ideias de Octávio Ianni (2005) – a abertura para o exterior, o contato com outras culturas, e o domínio de línguas estrangeiras são aspectos importantes da formação de elites cosmopolitas. No contexto das famílias pertencentes à bourgeoisie d’affaires, as viagens permitem aos jovens experimentarem a dimensão internacional do patrimônio familiar e assimilar elementos típicos do savoir être e do savoir faire constitutivos da identidade burguesa. De alguma forma, as experiências decorrentes dos deslocamentos contribuem para formar o esprit d’entreprise próprio das lideranças internacionais, além de capacitar os viajantes para ocupar posições de comando (WAGNER, 2007). Essas idéias são fortalecidas pelos resultados de pesquisa realizada por Alexandre Douek e Alexandre Zylberstajn (2007), que investigaram a relação existente entre intercâmbio internacional e empregabilidade. Os autores concluíram que, para os empregadores, mais do que ampliar o capital intelectual, a mobilidade internacional contribui para o desenvolvimento de atitudes valorizadas pelo ambiente de trabalho na medida em que promove o amadurecimento emocional dos jovens. E pelo fato de os referidos programas variarem em extensão de tempo (de três a doze meses), é crescente o número de estudantes que organiza diversos séjours de estudo ao longo da formação universitária (graduação e pós-graduação), e no conjunto tais experiências exerçam influência na passagem para a idade adulta. Nas palavras de Vincenzo Cicchelli (2008, p. 139), “un séjour allant de trois mois à un an pourrait être vécu comme un moment d’experimentation intense des marges d’autonomie, en raison de l’eloignement important des jeunes du lieu de résidence des parents”. 182 | P á g i n a Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano (Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no10 A valorização da experiência como um traço de distinção estimula crescente número de famílias brasileiras a investir na formação internacional dos filhos acreditando que ela contribui para o desenvolvimento pessoal, o sucesso escolar e a inserção profissional (NOGUEIRA et al., 2008; PRADO, 2004), na medida em que promove adequação da mão de obra qualificada ao novo espírito do capitalismo (SENNETT, 1999). Levando-se em conta que as fronteiras sempre estiveram abertas para as elites políticas, econômicas e intelectuais não se pode afirmar o mesmo em relação aos trabalhadores pouco qualificados, afinal, a mobilidade das pessoas tende a acompanhar a dinâmica dos investimentos em escala planetária (WAGNER, 1998, p.11). A internacionalização das economias promove a emergência do manager international, declaradamente comprometido com a defesa de interesses comuns, sintonizados com negócios desenvolvidos em âmbito mundial (WAGNER, 1998, p.13). Ao aprofundar o conceito de internacionalisme professionnel, Émile Durkheim (1928) assegura que a aproximação entre os indivíduos, decorrente de afinidades profissionais, engendra a formação de sociedades internacionais que reúnem categorias profissionais específicas, cada vez mais especializadas e orientadas por interesses que ultrapassam a dimensão nacional. Em seus termos, “les sentiments et les intérêts professionnels sont doués d’une bien plus grande universalité; ils sont beaucoup moins variables de pays à pays pour une même catégorie de travailleurs, tandis qu’au contraire ils sont très différents d’une profession à l’autre au sein d’un même pays” (DURKHEIM, 1928, p. 133). Conseqüentemente, entre o que a literatura nomeia de peregrinatio accademica (RIDDER-SYMOENS, 1996, p. 279) e mobilidade acadêmica no contexto da internacionalização da indústria da educação (SCOCUGLIA, 2008; TEODORO, 2003) é possível identificar diferentes atores (Estado, universidades, organismos internacionais multilaterais, empresas voltadas para o turismo e para difusão de conhecimento, famílias, estudantes, professores, pesquisadores, profissionais qualificados etc.) e interesses envolvidos (culturais e acadêmicos, políticos, econômicos e comerciais – KNIGHT, 2005, p. 26). A crescente importância econômica e política conquistada pelo conhecimento e pela educação correspondem a fatores desencadeadores de mudanças significativas sobre a forma pela qual a educação é pensada e organizada por países e atores implicados. Nas palavras de Cláudio Porto e Karla Régnier (2003, p. 6), Quando se trata da passagem do modelo de desenvolvimento industrial para o informacional, o qual se faz acompanhar por intenso movimento de transformação nas dimensões econômica, política, social e cultural das sociedades, percebe-se que a capacidade de produzir, interpretar, articular e disseminar conhecimentos e informações passa a ocupar espaço privilegiado na agenda estratégica dos setores produtivos e dos Estados: a vantagem competitiva de um país em relação a outro começa a depender da capacitação de seus cidadãos, da qualidade dos conhecimentos que estes são capazes de produzir e transferir para os sistemas produtivos e da capacidade de aplicação/ geração de ciência na produção de bens e serviços. A mobilidade das pessoas – principal manifestação da internacionalização no âmbito educacional (KNIGHT, 2005) – figura um tema incluído na agenda internacional dos pesquisadores, e não são modestos aqueles empenhados em localizar e entender os aspectos que influenciam verdadeira legião de jovens a decidir por uma formação internacional. Entre outros, quatro autores/textos são particularmente contributivos para a discussão da questão: Kurt Larsen e Stéphan Vincent-Lancrin (2002); Marie-Claude Muñoz (2004); Mohamed Harfi (2004); Mohamed Harfi e Claude Mathieu (2006). Pelo fato de convergirem em algumas 183 | P á g i n a Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano (Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no10 conclusões é possível consolidar os respectivos resultados em vinte aspectos e distribuí-los em quatro categorias: motivações de ordem sociocultural, acadêmica, econômico-comercial e político-administrativo. Quadro n.1: Aspectos que influenciam na mobilidade internacional dos estudantes FATORES Sociocultural Acadêmicocultural Econômicocomercial Político/Adminis trativo ASPECTOS 1 Língua oficial do país de destino (preferencialmente a língua inglesa). 2 Proximidade geográfica e cultural entre o país de origem e de destino, assim como ligações históricas pré-existentes. 3 Presença de grupos de referência capazes de estimular a formação de redes de relacionamento e de aproximar antigos, atuais e potenciais acadêmicos do país de origem no país de acolhimento (ex.: associações de ex-alunos, ex-bolsistas, estudantes, professores, pesquisadores etc.). 4 Qualidade de vida e atratividade cultural existente no país de destino: estabilidade política, segurança pública, aspectos climáticos, diversidade de ecossistemas, atividades culturais e turísticas etc. 5 Limitações na oferta de programas e cursos no sistema de educação do país de origem. 6 Equivalência do diploma expedido pelo país de origem, no país de destino. 7 Efetiva possibilidade de estudantes internacionais terem acesso aos cursos desejados no país de destino (inexistência de numerus clausus). 8 Reputação e percepção de qualidade do sistema educativo, em geral, e dos estabelecimentos educacionais, em particular, existentes no país de destino, em relação ao país de origem. 9 Existência de programas bi/multilaterais entre instituições de educação, países ou regiões (a exemplo do Erasmus, Sócrates, Leonardo, Tempus, Língua, entre outros). 10 Existência de política de bolsa de estudo, bolsa de pesquisa e estágio. 11 Validação do diploma expedido pelo país de destino, no país de origem. 12 Ligações econômicas pré-existentes entre os países que enviam e acolhem acadêmicos. 13 Custo de vida no país de destino. 14 Comparação entre os custos financeiros envolvidos (taxas de inscrição, mensalidade escolar, material escolar etc.) na formação oferecida nos países de origem e de destino. 15 Existência e acesso à infra-estrutura destinada a estudantes internacionais: política de financiamento da mobilidade estudantil (concessão de bolsas ou de estágio remunerado), seguro de saúde, alojamento para estudante, restaurante universitário, oferta de curso de língua etc. 16 Valorização das competências desenvolvidas pelas instituições do país de destino. 17 Valor dos diplomas expedidos pelo país de destino no mercado de trabalho. 18 Possibilidade de trabalhar durante o séjour de estudo e obter algum recurso financeiro. 19 Existência de oportunidades no mercado de trabalho e possibilidade de permanecer no país de destino após o término do curso. 20 Política de imigração que facilite a obtenção de visto de estudante no país de destino. Fonte: Adaptado de Larsen; Vincent-Lancrin (2002, p.20-22); Muñoz (2004); Harfi (2004, p.2); Harfi; Mathieu (2006, p. 36). De acordo com os autores consultados, a língua corresponde a um fator relevante na escolha do país de destino. Esta assertiva é corroborada pelos números divulgados: em 2006, dos seis destinos mais procurados pelos estudantes internacionais, quatro eram anglo-falantes: 184 | P á g i n a Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano (Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no10 Estados Unidos (22%), Reino Unido (11%), Alemanha (10%), França (9%) e Austrália (6%) (UNESCO, 2008). O interesse em aprender a língua inglesa é reforçado nos resultados de estudos realizados no Brasil por Aguiar (2009), Nogueira et al., (2008, 2004); Douek e Zylberstajn (2007), Almeida (2004), Prado (2004), entre outros, atestando a hegemonia da língua inglesa no ambiente escolar. Tabela nº.1: Principais Países Receptores de Estudantes (2001-2006) PAÍSES ESTADOS UNIDOS REINO UNIDO ALEMANHA FRANÇA AUSTRÁLIA CANADÁ 2001 475 169 225 722 199 132 147 402 105 764 40 033 2002 582 996 225 722 219 039 147 402 120 987 40 033 2003 582 996 227 273 240 619 221 567 179 619 40 033 2004 572 509 300 056 260 314 237 587 166 954 40 033 2005 590 128 318 399 259 797 236 518 207 264 132 982 2006 584 814 330 078 259 797 247 510 207 264 75 546 Fonte: Recueil de Données Mondiales sur l’Éducation. Institut de Statistique/UNESCO, 2003, 2004, 2005, 2006, 2008. Na América latina a situação não é distinta – considerando o ano escolar de 2006, entre os seis países latino-americanos que enviaram maior contingente de estudantes para o exterior, todos eles têm como primeiro destino os Estados Unidos (UNESCO, 2008). Chamase atenção para o fato de os países de línguas coloniais – inglês, espanhol, francês e alemão, por exemplo – manterem a liderança na atração de estudantes internacionais. Tabela nº.2: Destino dos Estudantes latino-americanos (2006) PAÍSES N.estudantes enviados Destino Destino Destino Destino Destino 1º 2º 3º 4º 5º MÉXICO Espanha França Alemanha USA Reino Unido 24 441 1 705 1 479 1 332 14 426 1 738 BRASIL França Portugal Alemanha USA Reino Unido 19 978 2 112 1 907 1 770 7 258 1 770 COLÔMBIA França Venezuela Alemanha Espanha USA 16 290 2 028 1 206 1 074 929 7 078 PERU Espanha Cuba Itália Alemanha USA 10 517 1 035 1 026 993 737 3 644 VENEZUELA Cuba Espanha Portugal França USA 9 088 3 846 595 480 393 4 962 ARGENTINA Espanha França Alemanha Cuba USA 7 934 975 746 549 454 3 140 FONTE: Recueil de Données Mondiales sur l’Éducation. Institut de Statistique/UNESCO, 2008. No Brasil é crescente o número de brasileiros que investe tempo e recursos em programas de intercâmbio – enquanto em 2004 eram 40 mil, em 2008 o número mais que dobrou: 85 mil estudantes. O interesse pela língua inglesa não está em descompasso com o resto do mundo: 81,5% dos destinos escolhidos pelos intercambistas brasileiros convergem para países anglo-falantes (http://www.belta.org.br/revista.asp, consultado em maio de 2008). 185 | P á g i n a Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano (Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no10 Descrição e interpretação dos dados O exercício que envolve descrição e interpretação dos dados resultantes da tabulação do questionário aplicado está organizado em três partes: inicialmente, aprofundar-se-ão aspectos relacionados ao perfil do respondente, na expectativa de o conteúdo colaborar para a interpretação dos dados relativos à formação universitária, às motivações que justificaram a decisão de participar de um programa de intercâmbio internacional e, finalmente, à percepção dos principais resultados alcançados com a experiência. 1.Perfil Sócio-Econômico dos Respondentes Os dados revelam que a população que participa dos programas de intercâmbio internacional é muito jovem: do total de 90 respondentes, pouco menos de três quartos (69,7%) têm idade que varia entre 17 e 27 anos. Resultados diferentes daqueles encontrados por Sandrine Billaud (2007, p. 26), ao estudar o público estudantil acolhido pelas universidades francesas. A faixa etária mais bem representada pelos estudantes internacionais na França tem mais de 25 anos. Possivelmente isso ocorre porque a pesquisadora incluiu estudantes envolvidos com graduação e pós-graduação, desde que bolsistas do programa Erasmus. Os dados reforçam uma tendência mundial de antecipação do início da formação internacional. Até a metade da década de 1990, a matrícula de estudantes internacionais se concentrava em programas de pós-graduação stricto sensu, de 1995 em diante este quadro vem se modificando, e atualmente a preocupação de investir em formação internacional ocorre cada vez mais cedo, entre representantes de estratos sócio-econômicos privilegiados. Dados referentes ao ano escolar de 2006-2007 apontam que no Reino Unido e na França a procura por cursos equivalentes à graduação correspondia a quase metade da matrícula internacional (77% e 49,9%, respectivamente); na Austrália o percentual atinge um pouco mais da metade (56%); e na Alemanha a quase três quartos (69,5%) (Agence Campus France, 2008). Tabela nº.3: Matrícula Internacional por Nível de Formação (2006-2007) Nível de Formação EUA Reino Unido França Alemanha 29,2% 47% 49,9% 69,5% 21% 37,7% 15,7% 19% 12,4% 8,4% 40% 52,4% 50,1% 24,1% Fonte:Agence CampusFrance. Les étudiants internationaux: chiffres clés. 2008. GRADUAÇÃO MESTRADO DOUTORADO MESTRADO+DOUTORADO Austrália 56% 44% Refletindo a pouca idade dos respondentes e a tendência de estabelecerem relações estáveis quando houver substantivo progresso profissional, observa-se que a maioria reside com os pais (57,8%) – apenas 15,6% vivem sozinhos e 12,2% com o cônjuge, – reforçando um comportamento recorrente entre os jovens brasileiros oriundos de estratos sócioeconômicos privilegiados. Apesar disso, a maioria possui renda própria e pode assumir a sua existência com mais autonomia – apenas 6,7% não trabalham (52,2% têm cargo efetivo em uma empresa, 22,2% trabalham em negócio próprio ou familiar e 21,1% são estagiários). Assim, fazem parte do grupo de jovens cangurus – trata-se de pessoas que trabalham e têm renda própria, no entanto resistem à ideia de deixar a residência dos pais e perderem o 186 | P á g i n a Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano (Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no10 conforto recebido no domicílio familiar, mesmo que para isso adiem responsabilidades típicas de quem conquistou independência e autonomia pessoal. Segundo o instituto de pesquisas LatinPanel, o Brasil tem 3,3 milhões de famílias (pertencentes às classes A e B) com filhos cangurus: todos têm formação superior e a maioria se encontra na faixa dos 25 a 30 anos (62%) (ROMANINI, 2009). Muito mais de três quartos dos respondentes (84%) participaram de um programa de intercâmbio internacional durante o curso de graduação. Este dado ajuda a entender a faixa etária predominante e a forte participação da família nas escolhas dos intercambistas – tanto no que se refere ao país de destino, quanto à instituição de educação e à natureza das atividades realizadas. Aspecto não retratado pela literatura internacional, mas que vai ao encontro dos resultados de recente pesquisa realizada por Maria Alice Nogueira (2004) tendo o estudante brasileiro, filho de empresários, como alvo. A autora chama atenção para o fato de o discurso dos pais minimizar aspectos considerados negativos da experiência internacional – dificuldades de adaptação (clima, alimentação, língua etc.), sentimento de discriminação, solidão e saudades da família e amigos etc. (NOGUEIRA et al., 2008, p. 367). Em contatos com ex-intercambistas, percebe-se o desenvolvimento de um mecanismo de hiper-valorização da experiência que aumenta a atenção para os respectivos certificados ou diplomas recebidos. A quase totalidade dos respondentes (91%) prefere países e instituições que tenham o inglês como língua oficial. Esta preferência certamente explica porque 66,3% informam ter estudado em escolas de idioma e 72,9% em instituições que tenham o inglês como língua oficial. Tanto quanto os participantes da pesquisa realizada por Ceres Leite Prado (2004), acreditam que o domínio da língua inglesa confere status e amplia as chances de empregabilidade entre os falantes. O protagonismo do domínio de uma língua estrangeira também está presente nos resultados da pesquisa de Elisabeth Murphy-Lejeune (2000) que identifica a promoção do desenvolvimento lingüístico e cognitivo, a aquisição de competências sociais e a aprendizagem intercultural como as principais conquistas dos programas de intercâmbio internacional. O fato de 66,3% ter frequentado escolas de idiomas revela estreita relação com o formato do curso realizado: cursos de língua, de curta duração (variam entre um e três meses), realizados durante o período de férias (45,9%). Maria Alice Nogueira (2004) chama atenção para o fato de os pais empresários, apesar de reconhecerem e valorizarem o lucro simbólico potencialmente proporcionado por uma experiência de estudos no exterior, não se interessarem por formatos de cursos mais longos. Preferem financiar sucessivas viagens internacionais de curta duração, acreditando que não ameaçam o destino profissional dos filhos. Em suas palavras, “eles temem as conseqüências de uma estadia internacional prolongada que possa, eventualmente, afastar (material e mentalmente) o jovem de seu destino e vocação empresarial (o gosto pelos negócios)” (NOGUEIRA, 2004, p. 52). Talvez isso tenha relação com o fato de poucos associarem o intercâmbio internacional à prospecção de cursos de pós-graduação (23%) ou à prospecção de estágio internacional remunerado (20%), apesar de figurarem projetos ajustados à idade, curso, área de atuação profissional e à categoria socioeconômica de grande parte dos respondentes. Atitude que revela a dificuldade de os jovens formularem projetos – na direção do conceito desenvolvido por Jean-Pierre Boutinet (1993) – que envolvam o médio e longo prazos e possivelmente isso reflita no que Richard Sennett (1999) nomeia de desenraizado e Zygmunt Bauman (1998) de turista, ou seja, indivíduos que vêem o mundo como espaço de circulação permanente e têm dificuldades de projetar o futuro com base nas condições de vida presente. No entanto, preocupações de curto prazo são esboçadas quando informam aspectos que motivaram a 187 | P á g i n a Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano (Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no10 realização do intercâmbio: melhorar o currículo (45%) e desenvolver competências relacionadas à carreira profissional (30,7%) – motivações predominantemente utilitaristas. Os respondentes não nutrem interesse por destinos que estejam fora das rotas tradicionais dos intercambistas. Possivelmente sejam influenciados por agentes de viagem a optar por programas que fazem parte do portifólio de ‘produtos’ disponíveis na agência. Coerentes com os dados anteriores, entre os cinco países preferidos – EUA (37,1%), Reino Unido (16,9%), Austrália (14,6 %), Canadá (13,5%) e Espanha (7,9%) –, quatro são anglofalantes. Os países que acolheram os respondentes têm em comum: sistemas educacionais que ultrapassaram o nível da massificação (a); instituições de educação superior bem classificadas nos rankings mundiais (b); governos que institucionalizaram agressiva política de divulgação do sistema de educação nacional (c); reconhecida experiência na recepção de estudantes internacionais (infra-estrutura e segurança) (d) - aspectos relevantes quando 36,1% dos respondentes asseguram que a escolha do país de destino se deveu àquele aprovado pelos pais. Cabe esclarecer que enquanto a literatura acadêmica nacional confere expressiva participação dos pais na decisão de investir numa experiência internacional, a literatura internacional não reserva qualquer espaço à discussão da questão. Consoante à crescente participação da mulher em cursos superiores e respectiva inserção no mercado de trabalho, se constata que entre os respondentes há paridade entre garotos e garotas: 51,1% são do sexo feminino e 48,9% do masculino. Em mais este aspecto, os dados contrariam os resultados do estudo de Billaud (2007, p. 25), tendo a população estudantil recepcionada pela França, no âmbito do programa Erasmus, como amostra. Segundo a autora, o número de garotas é predominante em praticamente todos os países – “dans tous les pays, les filles sont plus nombreuses que les garçons. Dans les pays suivats: Danemark, Finlande, Irland, Grèce et Pays-Bas, le nombre de filles accueillies en France est deux fois plus élevé que les garçons. La Pologne envoie même quatre fois plus de filles que de garçons”. 2.Formação Universitária – vínculo institucional Considerando a totalidade dos respondentes, 49,4% são egressos de cursos superiores de Administração e 50,6% são estudantes do curso de graduação em Administração que realizaram algum programa de intercâmbio internacional. Apesar de o questionário ter sido divulgado por meio de um sistema on-line, disponível em www.surveymonkey.com, e o seu acesso ter ocorrido por e-mails enviados para o banco de dados dos associados da BELTA, observa-se que grande parte dos respondentes estuda na cidade de São Paulo, em instituições de destaque na área de Administração. Essa constatação foi possível, porque houve a indicação do nome da instituição a que estão ou estiveram academicamente vinculados: Escola Superior de Propaganda e Marketing; Faculdade Armando Álvares Penteado; Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade, Fundação Getúlio Vargas; Instituto de Ensino e Pesquisa; Pontifícia Universidade Católica de São Paulo; e Universidade Presbiteriana Mackenzie. Diante da constatação do perfil sociocultural dos estudantes dessas instituições, questionam-se possíveis significados entre a associação de origem institucional dos respondentes e as atividades de intercâmbio internacional. Como principais razões estão o fato de a cidade de São Paulo abrigar instituições que selecionam os ingressos por mérito acadêmico (vestibular) e por perfil socioeconômico (valor das taxas escolares), o que explica a crescente mobilidade internacional de parte expressiva do corpo discente durante a graduação. Essa observação é reforçada quando os respondentes registram os aspectos que levaram em consideração na escolha do país de destino na medida 188 | P á g i n a Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano (Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no10 em que os custos envolvidos (21,1%), estabilidade da moeda local (25,7%) ou a possibilidade de compatibilizar atividades de estudo e trabalho (33,3%) obtiveram baixa representatividade entre as respostas, comparativamente a alternativas de respostas. Além disso, a competição no mercado de trabalho local é tão acirrada que, precocemente, os estudantes procuram investir em atividades que possam enriquecer o currículo e as chances de competir por boas oportunidades de estágio e efetivação. Essa observação é reforçada ao indicarem aspectos que motivaram a realização do intercâmbio (Tabela 4): aperfeiçoar o conhecimento de uma segunda língua (76,6%); melhorar o currículo (45%), e desenvolver competências relacionadas à carreira profissional (30,7%). Ainda há o fato de a cidade abrigar empresas especializadas na organização de programas de intercâmbio que regularmente promovem produtos comercializados em colégios, faculdades e feiras, mobilizando estudantes interessados em obter informações. E ao fato de as supracitadas instituições de educação superior (ESPM, FAAP, FGV, PUC e Mackenzie) terem investido na criação de uma espécie de escritório dedicado à execução de sua política de internacionalização. E por isso mesmo já dispõem de acordos internacionais firmados com instituições, predominantemente localizadas na América do Norte e Europa Ocidental. 3. Motivações que justificam a participação no programa de intercâmbio Os dados processados revelam que entre os fatores que influenciaram a decisão de investir em um programa de intercâmbio internacional, o principal deles reside no interesse de aperfeiçoar o conhecimento de uma segunda língua (com média de 6,42) e no desejo de concretizar uma vivência pessoal de natureza internacional (com média de 6,29 – considerando uma escala que varia até sete pontos) (Tabela n.4). Tabela nº.4: Objetivos que motivaram o investimento do programa de intercâmbio Objetivos 1 (%) 2 (%) 3 (%) 4 (%) 5 (%) 6 (%) Aperfeiçoar o conhecimento de 2.6 2.6 1.3 2.6 2.6 11.7 língua estrangeira Vivência pessoal 1.3 2.6 1.3 1.3 10.3 20.5 Conhecer outra cultura 2.6 0.0 2.6 5.1 11.5 19.2 Conhecer outro país 2.7 2.7 4.0 4.0 8.0 17.3 Melhorar o currículo 2.6 3.9 3.9 7.8 22.1 14.3 Desenvolver competências 5.3 6.7 9.3 13.3 16.0 18.7 relacionadas à profissão Prospectar alternativa de estágio 20.0 14.7 16.0 14.7 8.0 9.3 internacional e remunerado Prospectar alternativas de pós23.0 18.9 13.5 14.9 10.8 8.1 graduação Fonte: Questionários aplicados via SurveyMonkey – Grupo Experimental (04/2009) 7 (%) Rating Average 76.6 6,42 62.8 59.0 61.3 45.5 6,29 6,17 6,09 5,68 30.7 5,07 17.3 3,73 10.8 3,39 Os números estão em harmonia com os dados divulgados pela BELTA (http://www.belta.org.br/revista.asp, consultado em maio de 2008): enquanto em 2004 os cursos de idioma representaram mais de 75% do total de intercâmbios realizados, em 2008 eles alcançaram 81,5%. Na maioria das vezes, estudantes e famílias preferiam cursos de curta duração, envolvendo de um a três meses, realizados no período de férias. Coerentes com o interesse de aperfeiçoar o inglês, as rotas mais procuradas para a realização dos referidos cursos foram o Canadá, a Inglaterra, a Austrália e os Estados Unidos. 189 | P á g i n a Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano (Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no10 Conhecer bem uma segunda língua permanece uma característica de distinção, particularmente em um país cujo acesso à educação superior está reservado a poucos – em 2006 (MEC-INEP), a taxa de escolarização líquida foi de 12,1% – e onde a maioria da população fala, lê e escreve mal a própria língua. Nas palavras de Ceres Leite Prado (2004, p. 69), “os intercâmbios representam [...] uma nova etapa na reconstituição incessante das desigualdades escolares, já que eles permitem [...] a aprendizagem da língua nos países onde ela é falada, com toda a carga de distinção que isso acarreta”. A preferência por programas de intercâmbio orientados para a realização de cursos de línguas, de curta duração, realizados nas férias, deve-se a múltiplos fatores: faixa etária prevalecente (a); formato melhor assimilável pelos estudantes e respectivas famílias (b), dificuldades de adaptação ao país (c), possibilidade de não comprometer o semestre escolar no Brasil (d); associação entre domínio de língua, inserção e ascensão no mercado de trabalho (e). Nogueira (2004) assegura que as escolhas referentes à língua estrangeira e ao país de destino dos potenciais intercambistas são fortemente influenciadas pela família, justamente o agente que viabilizará financeiramente a participação dos estudantes nos cursos. Os critérios utilizados refletem a formação socioeconômica da família e, via de regra, estão relacionadas a variáveis sócio-culturais (hierarquia das línguas) e econômico-financeiras (custo-benefício). Esta constatação vai ao encontro das idéias de Calvet (1999, apud PRADO, 2004, p. 67), quando o Autor argumenta que poucas línguas conferem mais valia no mercado lingüístico, conseqüentemente, quanto mais Governo e famílias atribuem valor comercial a algumas, maior é o número de falantes e maior é a sua importância política e econômica. A busca de uma experiência pessoal pode estar associada a aspectos individuais – mesmo por pouco tempo, se deslocar para outro país, perder os pontos de referência, enfrentar problemas novos, experimentar situações que exigem independência, maturidade e responsabilidade, sem a tutela da família - que representam desafios que podem elevar a autoestima, autoconfiança e a auto-aprendizagem dos jovens (SILVA; ROCHA, 2008; CICCHELLI, 2008). No texto de Vincenzo Cicchelli (2008, p. 154) há o resgate do pronunciamento de Guillaume – estudante francês que contabilizava quatro séjours internacionais (Grã-Bretanha, Alemanha, Suécia e Polônia) e finalizava o mestrado. “Guillaume parle alors d’une croissance de confiance en soi, d’un sentiment de supériorité à l’égard de ses camarades restés en France, de son irritation à l’égard de jugements superficiels émis à l’encontre des autres peuples”. Tanto quanto les grands tours, o intercâmbio internacional funciona como uma espécie de rito de passagem necessário para outras experiências que virão com a vida adulta e as exigências de uma economia em ritmo de globalização: estágio internacional, programas de expatriação e impatriação etc. A valorização da experiência é reforçada com a convergência do discurso proferido por colegas, empresas que estagiam, literatura que lêem – jornais e revistas de grande circulação, artigos e livros acadêmicos – à medida que todos reafirmam o que Ianni (2005, p. 97) nomeia de intelectuais orgânicos do cosmopolitismo. 4. Escolha da Língua e do País de Acolhimento Consoante ao que já foi tratado em partes anteriores do texto, o interesse dos intercambistas está concentrado na aprendizagem do inglês. Quais são os dados que permitem a inferência? Questionados sobre as razões que justificaram a escolha do país de destino (Tabela n.5), ter o inglês como língua oficial é a primeira opção com média de 5,25 de um total de 7,0. Coerentes com esta resposta, 91% dos respondentes escolheram países de língua 190 | P á g i n a Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano (Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no10 inglesa – entre os cinco destinos preferidos, quatro são países anglo-falantes. A Espanha foi o quinto destino na escolha dos respondentes e o único a não ter a língua inglesa como oficial. Curiosamente, 83,7% dos respondentes asseguram ter nível avançado de proficiência em inglês e isso ajuda a entender a escolha por cursos de curta duração, realizados durante as férias (45,9%). Na pesquisa realizada por Prado (2004, p. 69-70), a autora encontra situação semelhante: apesar de terem freqüentado cursos de inglês no Brasil, os estudantes justificavam o intercâmbio internacional realizado à determinação de aperfeiçoar o inglês. Por que isso acontece? Para Elisabeth Murphy-Lejeune (2000), enquanto um séjour no estrangeiro permite ao estudante a aprendizagem contextualizada da língua porque subordinada à prática social que envolve contatos dinâmicos e comunicação em tempo real, a aprendizagem em contexto escolar é limitada na medida em que o processo conduz o estudante a contatos superficiais e pouco autênticos com a língua. Billaud (2007, p. 27) chama atenção para o fato de aprender uma língua de forma vivenciada e contextualizada envolver não apenas questões lingüísticas, mas também aspectos interculturais – “acquérir des savoirs, savoirs-faire et savoirs-être sur la langue et la culture de l’Autre permet gérer la différence, de la considérer comme acceptable et enchissante”. Tabela n.5: Razões que motivaram a escolha do país de destino do intercâmbio Razões 1 (%) 20.0 6.8 2 (%) 2.7 5.4 3 (%) 1.3 9.5 4 (%) 5.3 16.2 5 (%) 4.0 16.2 6 (%) 12.0 8.1 Ter como língua oficial o inglês Boa infra-estrutura de acolhimento Oferta de atividades compatíveis com 16.2 8.1 14.9 13.5 13.5 12.2 nível intelectual dos estudantes Custos envolvidos 17.1 10.5 11.8 11.8 14.5 13.2 Instituições reconhecidas no mercado 15.1 12.3 17.8 11.0 8.2 15.1 de trabalho Facilidades de obtenção de visto 27.4 12.3 6.8% 6.8% 11.0 15.1 Indicação de amigos 25.0 13.9 11.1 9.7 12.5 9.7 Estabilidade da moeda local 25.7 14.9 10.8 12.2 9.5 12.2 Possibilidade de compatibilizar estudo 33.3 11.1 8.3 12.5 4.2 12.5 e trabalho Destino aprovado pelos pais 36.1 8.3 8.3 9.7 9.7 9.7 Indicação da agência 31.5 15.1 9.6 16.4 8.2 8.2 Proximidade geográfica com o Brasil 70.7 9.3 8.0 4.0 4.0 1.3 Fonte: Questionários aplicados via SurveyMonkey – Grupo Experimental (04/2009) 7 (%) 54.7 37.8 Rating Average 21.6 4,23 21.1 4,2 20.5 4,12 20.5 18.1 14.9 3,89 3,72 3,61 18.1 3,53 18.1 11.0 2.7 3,5 3,23 1,76 5,25 5,05 5. Percepção dos Principais Resultados do Programa de Intercâmbio Relacionando os objetivos que motivaram a realização do programa de intercâmbio (Tabela n.4) com a avaliação dos resultados alcançados (Tabela n.6), observa-se que a vivência pessoal ocupa lugar de destaque entre os respondentes: apesar de ter sido reconhecida como o segundo objetivo buscado com a realização do intercâmbio internacional, ela foi considerada o resultado mais significativo da experiência, uma vez que alcançou a média de 6,48, de um total de 7,0. Aqui, certamente a magia de conhecer outro país, outra cultura e, de algum modo, se auto-conhecer, são fatores que merecem destaque entre pessoas tão jovens (69,7% dos respondentes têm idade que varia entre 17 e 27 anos) e que ainda apresentam significativa dependência financeira e emocional vis-à-vis dos pais. 191 | P á g i n a Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano (Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no10 O principal objetivo – aperfeiçoar o conhecimento de uma segunda língua – obteve a segunda melhor média de resultado, com 6,44 (Tabela n.6), também acima da média dos objetivos iniciais (Tabela n.4). Os significados que complementam a experiência relacionada a aspectos pessoais e culturais são as oportunidades de conhecer outro país e outra cultura, ultrapassando um pouco a visão impressionista e estereotipada do turista, além de desenvolver conhecimentos que possibilitem diálogos com sociedades cada vez mais diversas, em termos culturais. Tabela nº.6: Significado/ Resultados do programa de intercâmbio Significado/ Resultados 1 2 3 4 5 6 Vivência pessoal 1.3 1.3 0.0 1.3 9.3 14.7 Aperfeiçoar uma segunda língua 1.3 4.0 1.3 0.0 6.7 9.3 Conhecer outra cultura 1.3 1.3 1.3 1.3 9.3 16.0 Conhecer outro país 1.3 1.3 2.6 2.6 10.5 11.8 Melhorar o currículo 2.7 5.3 2.7 4.0 10.7 21.3 Desenvolver competências 6.8 4.1 9.5 12.2 14.9 17.6 relacionadas à carreira profissional Prospectar alternativas de pós21.6 17.6 9.5 16.2 12.2 9.5 graduação Prospectar alternativa de estágio 16.9 19.7 16.9 12.7 12.7 7.0 internacional e remunerado Fonte: Questionários aplicados via SurveyMonkey – Grupo Experimental (04/2009) 7 Rating Average 72.0 77.3 69.3 69.7 53.3 6,48 6,44 6,41 6,34 5,92 35.1 5,18 13.5 3,62 14.1 3,62 Os aspectos relacionados não podem, no entanto, ser desconectados da própria possibilidade de melhoria de habilidades profissionais, pois esse também é um resultado desejado e percebido pelos respondentes, como consequência do desenvolvimento pessoal e da habilidade multilinguística. 6. Intercâmbio Cultural e Empregabilidade A relação entre intercâmbio e empregabilidade – já investigada por outros pesquisadores (DOUEK; ZYLBERSTAJN, 2007; PRADO, 2004; MURPHY-LEJEUNE, 2000) – é reafirmada em mais essa oportunidade: 82,8% asseguram que o domínio de língua estrangeira figura como um dos critérios de seleção adotados pelos empregadores (Tabela 7). Os resultados da pesquisa de Murphy-Lejeune (2000), tendo como alvo estudantes da Suécia, concluem que os empregadores preferem recrutar jovens que tiveram alguma experiência internacional. Ao enumerar as justificativas apontadas pelos empregadores suecos – (a) aperfeiçoar competências linguísticas; (b) desenvolver sensibilidade intercultural; (c) elevar a capacidade de perceber o que ocorre sob diferentes ângulos; (d) melhorar a capacidade de adaptação às mudanças; (e) responder positivamente à necessidade de mobilidade internacional – se percebe curiosa proximidade com os aspectos salientados pelos respondentes brasileiros, ao serem questionados sobre as exigências do empregador ao adotar processos seletivos (Tabela 7). Tabela n.7: Exigências do empregador ao fazer a contratação Exigências Domínio de língua estrangeira Senso de responsabilidade Capacidade de resolver problemas Capacidade de iniciativa Percentual (%) 82.8 67.2 57.8 54.7 192 | P á g i n a Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano (Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no10 Capacidade de se adaptar em ambientes interculturais e multiculturais 50.0 Capacidade de diagnosticar problemas 43.8 Autonomia pessoal 31.3 Outra. 4.7 Fonte: Questionários aplicados via SurveyMonkey – Grupo Experimental (04/2009) Contudo, é impossível generalizar esta conclusão: ao divulgar os resultados de uma pesquisa que fez uso de análise comparativa entre estudantes originários de três países (Itália, França e Reino Unido), Ballatore e Blöss (2008) asseguram que enquanto para os italianos uma experiência de estudo fora do país de origem influi não apenas sobre a formação acadêmica, mas igualmente sobre as chances de inserção profissional; para os britânicos, um séjour internacional exerce pouca influência sobre seus resultados acadêmicos e sobre suas aspirações profissionais (BALLATORE; BLÖSS, 2008, p.29). Ou seja, a importância conferida ao programa de intercâmbio internacional é proporcional à qualidade do ensino percebida e às perspectivas de inserção profissional existentes no país de origem dos estudantes. Apesar de muito jovens, um pouco mais da metade (50,6%) ainda cursava a graduação no momento em que o questionário foi aplicado, a situação profissional dos respondentes se revela bastante promissora: 52,2% afirmam ter cargo efetivo em uma empresa; 22,2% trabalham em negócio próprio ou familiar; 21,1% são estagiários, e apenas 6,7% não trabalham. Entre aqueles que estão trabalhando, percebe-se que estão vinculados a organizações bem-estruturadas: 41,2% trabalham em empresas multinacionais; 23,5% em empresas nacionais; 23,5% em negócio próprio, e 11,8% em empresas nacionais com atividades fora do país. Os sinais de êxito profissional também podem ser medidos pelo fato de quase metade (42,9%) trabalhar há mais de dois anos na mesma organização. Os dados corroboram a leitura que Prado (2004) faz da questão quando a autora associa a aquisição de uma segunda língua à ideia de um futuro promissor no mercado de trabalho, assegurando ser esse o principal objetivo dos pais ao decidirem pelo envio dos filhos para um período fora do país. Isto reforça a ideia de que o consumo de produtos educacionais no exterior contribui para a legitimação das desigualdades sociais, particularmente em um país ainda carente de políticas de democratização do acesso à educação superior de qualidade. Considerações finais Apesar de a amostra ser predominantemente formada por jovens e apresentar clara paridade entre garotos e garotas, todos já tinham participado de algum programa de intercâmbio internacional e, para a maior parte deles, a experiência aconteceu durante a graduação. A totalidade dos respondentes optou pela graduação em Administração, parte expressiva esteve ou está vinculada a respeitadas instituições de educação superior, privadas, localizadas na cidade de São Paulo. Coincidentemente, no momento em que respondeu ao instrumento, a grande maioria estava efetivada em sólidas empresas nacionais e multinacionais. Revelando que, independentemente do sexo, as experiências internacionais acontecem cada vez mais cedo na vida de jovens oriundos de meios sociais favorecidos. Por isso mesmo os pais têm condições de financiar os custos envolvidos e de influir na escolha de alternativas capazes de ampliar as chances de os filhos ocuparem espaços profissionais privilegiados, no concorrido mercado de trabalho. Afinal, as melhores oportunidades de 193 | P á g i n a Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano (Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no10 trabalho são limitadas e o administrador concorre com colegas oriundos de diversas áreas de conhecimento: engenharia de produção, economia, contabilidade, psicologia, etc. Apesar de a grande maioria ter renda própria, continua residindo com os pais, fortalecendo uma tendência que se instalou recentemente entre as famílias brasileiras de renda elevada. Possivelmente isso tenha alguma relação com o papel exercido pelos pais nas decisões envolvidas com o planejamento do programa de intercâmbio: escolha do país de destino, da instituição de acolhimento, do tipo e formato da atividade, da extensão do programa de estudo, do tipo de alojamento, etc. Apesar de a grande maioria assegurar ter nível avançado de proficiência da língua inglesa, prefere as escolas de línguas, cursos de língua inglesa de curta duração, oferecidos no período de férias. Reforçando o conceito de férias produtivas, ou seja, dissociada da ideia de repouso, descanso e relaxamento e associada à realização de atividades úteis porque, de alguma forma, enriquecem o currículo. Com a evolução dos meios de transporte e das tecnologias de informação, a circulação de pessoas, mercadorias e capital forçou os membros de diversas culturas a conviverem e partilharem espaços geográficos, econômicos e políticos. Com a multipolaridade das esferas de poder, esse encontro de culturas não pode mais significar o silêncio de muitas e a supremacia de poucas. Então emerge a necessidade de as sociedades multiculturais inaugurarem efetivo diálogo intercultural. Neste contexto, o multilinguismo tem exercido importância vital, na medida em que permite a comunicação entre diferentes e o crescimento pela diferença. Contudo, o multilinguismo permanece limitado a poucos, uma vez que as políticas educacionais ainda não conseguem criar as condições que favoreceriam seu pleno desenvolvimento e isso requer o investimento privado das famílias que podem pagar pelo consumo de bens culturais fora do país. Sensíveis a essa questão, os jovens e suas respectivas famílias percebem a importância que o multilinguismo exerce tanto no plano individual – ampliação do capital intelectual, social e material – quanto no plano social, uma vez que as sociedades e as organizações ganham contornos cada vez mais multiculturais. Isso explica o interesse que os estudantes ou egressos do curso de Administração nutrem pela aprendizagem de línguas, particularmente a língua inglesa, a ponto de representar o fator que determina a decisão de realizar o programa de intercâmbio. Entre empregadores, famílias, egressos e estudantes do curso de Administração há explícita convicção de que o aprendizado do inglês amplia ou ampliará os conhecimentos, propicia ou propiciará o desenvolvimento de atitudes e de habilidades profissionais socialmente valorizadas. E, por isso mesmo, tem o poder de ampliar as perspectivas profissionais dos ex-intercambistas. Apesar de, historicamente, o aprendizado de línguas estrangeiras fazer parte da cultura geral dos indivíduos, nesse caso, ele reforça a hierarquia das línguas no mercado linguístico. Reforça também a hegemonia da língua inglesa, a hierarquização escolar (desvalorização da aprendizagem de uma língua estrangeira no país de origem do estudante e a valorização do aprendizado de uma língua estrangeira de forma vivenciada, entre a comunidade de falantes). Além de reforçar as desigualdades sociais decorrentes do uso de critérios de seleção cada vez mais excludentes, porque prestigiam fatores socioeconômicos em detrimento de fatores meritocráticos. Parece que o intercâmbio internacional de curta duração colabora mais para legitimar e perpetuar a desigualdade social do que para formar pessoas capazes de conviver com a diversidade cultural. Referências AGUIAR, Andréa. Estratégias educativas de internacionalização: uma revisão da literatura sociológica. Educação e Pesquisa, v.35, n.1, jan.abr. 2009, p.67-79. 194 | P á g i n a Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano (Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no10 ALMEIDA, Ana Maria F. Língua nacional, competência escolar e posição social. In: Almeida, Ana Maria F. et alli. 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O principal problema é com ao caráter normativo e elitista da Gramática que, desde a sua origem, procurou estabelecer as regras, consideradas as melhores, para a língua escrita, com base no uso que dela faziam os “grandes escritores” (Silvia Cardoso - A questão da referência, 1998, p. 23). RESUMO: A proposta é abordar alguns aspectos polêmicos dos discursos sobre ensino gramatical versus ensino de língua. Algumas questões norteiam este trabalho: o que é ensino? E o que é gramática? Considerando a aparente simplicidade e obviedade das duas perguntas, o ensino de língua é um lugar onde se defrontam gramáticos e linguistas, cada qual com suas posições ideológicas, às vezes discussões “apaixonadas”. Assim, os sentidos das concepções de gramática (ARNAULD; LANCELOT) enquanto língua inscreve-se na memória discursiva com certa tradição, sentido que disputa com o da Lingüística Contemporânea fundada por Saussure (XIX). É enquanto ciência da língua/linguagem que se opõe a cinco séculos de discursividade em que o estudo da língua é significado como estudo de gramática. Este sentido permeia não apenas o discurso da prática escolar e o do senso comum sobre ensino de língua, mas de forma significativa também o espaço acadêmico. Assim, o objetivo é abordar algumas questões desse “duelo” de significações e tensões em torno dos sentidos. Palavras-Chave: discurso; língua; gramática; ensino. ABSTRACT: The idea is to discuss some controversial aspects of the discourses on education versus teaching grammar of language. Some questions guide this work: what is education? And what is grammar? Given the apparent simplicity and obviousness of the two questions, the teaching of language is a place where they face grammarians and linguists, each with their ideological positions, sometimes passionate discussions. Thus, the meanings of the concepts of grammar (ARNAULD; LANCELOT) as a language is part of the discursive memory to one tradition, meaning that the dispute with the Contemporary Linguistics founded by Saussure (XIX). I t is a science of language / language that precludes the five centuries of discourse where language study is meant as a study of grammar. This sense pervades not only the discourse of school practice and common sense about language teaching, but also significantly the academic space. The objective is to address some issues that duel meanings and tensions surrounding the senses. Key words: speech; language; grammar; teaching. Introdução A proposta é abordar alguns aspectos polêmicos dos “discursos” (ORLANDI, 1999, p. 71) sobre o ensino gramatical versus ensino de língua. As reflexões apontam para 73 Coordenador do Grupo de Estudos NEAD (Núcleo de Estudos de Análise do Discurso), docente de Linguística no curso de Letras da Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul, campus de Campo Grande, e pesquisador colaborador da UNICAMP. Doutor em Linguística pela UNICAMP/IEL. 198 | P á g i n a Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano (Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no10 concepções e práticas divergentes. Não tenho como objetivo discutir nada de novo ou propor novas questões a esta “discursividade” (PÊCHEUX, 2002, p. 28), apenas revisitá-las. Dessa forma, três discursos específicos que norteiam este trabalho: o que é ensino? O que é gramática? O que é língua? Considerando os aparentes dos “sentidos” (PÊCHEUX, 1997, p. 160) das três perguntas, pode-se considerar que o ensino de língua é um lugar onde se defrontam os discursos dos gramáticos (o peso do sentido da tradição) e os discursos dos linguistas (o efeito do novo na demanda de sentidos desestabilizadores) – a partir de “práticas discursivas” (PÊCHEUX, 1997) declaradas ou de práticas implícitas -, cada qual com suas “posições sujeito” (idem), às vezes, tensa em torno do sentido. É importante ressaltar que o sentido de concepção de gramática – de língua (considerando como marco discursivo a gramática de Arnauld e Lancelot do século XVI), inscreve-se na “memória discursiva” (PÊCHEUX, 1997) com certa tradição. O discurso de tradição possui um “efeito de sentido” (idem) que confronta com o sentido da Lingüística contemporânea fundada por Ferdinand de Saussure (início do século XIX). A Linguística como ciência da língua/linguagem e ciência piloto das humanidades se opõe a cinco séculos de discursividade em que o estudo da língua foi e é significado como estudo da gramática. Para Arnauld e Lancelot (1992, p. 03), “a gramática é a arte de falar. Falar é explicitar seus pensamentos por meio de signos que os homens inventam para esse fim” e “os que apreciam obras de raciocínio, sem dúvida encontrarão nele alguma coisa que poderá satisfazê-los e não menosprezarão seu assunto, porque a palavra é uma grande vantagem para o homem” (ARNAULD e LANCELOT, 1992, p. 05). É possível destacar três “formações discursivas” (PÊCHEUX, 1997, p. 161) sobre a gramática. A primeira representada pelo seguinte enunciado – a gramática é a arte de falar – se refere ao domínio gramatical que não é necessariamente uma formação discursiva de normas e regras sistêmicas estratificadas social e historicamente, mas sim um espaço onde o domínio dela significa habilidades artísticas inscritas nos discursos sobre estética e suas práticas. A gramática nesse sentido se inscreve na formação discursiva artística marcada pelo “processo de subjetivação” (ORLANDI, 2001, p. 100) o que de certa forma explicaria o não domínio por parte dos sujeitos em suas posições ideológicas de forma geral. Considerando que um dos sentidos de arte está relacionado com o discurso de “dom, originalidade, individualidade, singularidade e dádiva de Deus” etc. dos sujeitos e não como “processo de subjetivação” (ORLANDI, 2001) inscrito socialmente nas culturas e por isso marcadas pela historicidade. A segunda - falar é explicitar seus pensamentos por meio de signos que os homens inventam para esse fim – o sentido diz respeito à função da gramática como língua na sua relação com o pensamento. Também diz respeito à função de instrumentalidades e à fisiologia para servir de canal, meio e suporte ao pensamento para se materializar. Assim criando condições para os homens estabelecer a comunicação entre si. O sentido de inventaram é significativo na medida em que obedece a certa lógica da necessidade, projeto lógico inscrito no discurso de necessidade, mecanicista e instrumental. Como o sujeito em sua trajetória histórica inventou objetos e coisas para atender às suas necessidades, ele também inventou a língua porque sentiu a necessidade de se comunicar de outra forma. No entanto, a linguagem é constitutiva do sujeito. Não existiu primeiro o sujeito para depois a linguagem ou vice-versa. A terceira formação discursiva representada pelo enunciado - os que apreciam obras de raciocínio – representa o discurso do tratado filosófico, da razão e da lógica que dá suporte à concepção de que há uma razão e uma lógica naturais para o funcionamento do mundo. Há algo que rege a existência das coisas e cabe ao homem compreender essa dinâmica e dela 199 | P á g i n a Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano (Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no10 abstrair sua razão enquanto atividade do sujeito de racionar e/ou pensar logicamente a partir da língua. O sentido da formação discursiva pertence à tradição grega, quando da falência do mito, o “homem” grego deslocou o seu olhar para compreender o funcionamento do seu universo e descobriu regularidades, formas, sistemas, funcionamentos, regras para pensar o seu estar no mundo, ou seja, sua posição sujeito deixou de ter o mito como referência. A este novo modo de se relacionar com o seu universo, o homem o nomeou discursivamente de razão e seu funcionamento de lógica, assim, razão e lógica pertencem ao domínio do pensamento. Já o pensamento se constitui a partir de certa capacidade do homem de olhar e apreender e significar o mundo. O sentido de gramática como arte e como instrumento é significado como objeto do mundo que possui uma razão de ser - explicar o pensamento dos homens - e uma lógica em forma de leis para explicitar o seu funcionamento e sua praticidade. De alguma forma, esses sentidos tensionam as práticas dos sujeitos na relação com a língua/linguagem. Assim, de acordo com Cardoso (1998, p. 11), os autores de Port-Royal partem da hipótese de que a natureza da linguagem é racional, porque os homens pensam conforme as mesmas leis e que a linguagem expressa esse pensamento, Port-Royal nos legou uma gramática que ao mesmo tempo consolida a tradição gramatical que se construiu desde Platão e se fundamenta no que havia de mais moderno na época: o cartesianismo filosófico do século XVII. É possível afirmar que este é um dos aspectos do legado discursivo de Arnauld e Lancelot para conceber a língua, legado que ainda produz sentidos nas práticas contemporâneas quer em sala de aula, quer nos cursos de Letras. É possível constatar tal embate entre o discurso da gramática e o da lingüística na fala Rajagopalan (2003, p. 11) creio que há uma necessidade urgente de aprender a lidar com os alunos de hoje, que tiveram uma formação diferente da nossa. Não estou dizendo com isso que devemos voltar a ensinar gramática tradicional; longe disso, estou dizendo que precisamos urgentemente pensar em novas estratégias de abordar a lingüística, já que a velha tática de apresentar a lingüística moderna discutindo as limitações da gramática tradicional não funciona mais. Já Saussure não apenas veio desestabilizar o sentido de língua enquanto gramática como também suas concepções foram importantes para as disciplinas de humanidades naquele momento histórico, pois as humanidades ainda não possuíam o estatuto de ciência. Elas procuravam se constituir enquanto ciência ao lado das áreas biológicas e exatas. O mestre genebrino reconhece a contribuição dos que o antecederam, no entanto, não se furta de tecer críticas em relação às concepções e práticas sobre o estudo da língua até então. Não é sem propósito que suas considerações abarcam inclusive outras disciplinas como a etnologia, a psicologia, a história, a fisiologia, a antropologia, a sociologia. Sua contribuição notável está, entre outras, na definição e descrição do objeto de estudo e na metodologia de análise como condição para qualquer disciplina se constituir enquanto campo autônomo do conhecimento. No entanto, o ponto central de suas teses, a meu ver, está na teoria do valor. A discursividade saussuriana depreendeu seu efeito de sentido para além do campo da língua/linguagem ao estabelecer o paradigma da disciplina autônoma. Efeito esse que ainda não cessou a sua discursividade. Para Cardoso (1999, p. 14) 200 | P á g i n a Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano (Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no10 o rompimento de Saussure com Port-Royal é sobretudo com o que havia de racional e lógico nessa concepção de linguagem enquanto representação, com a crença de que através de uma gramática universal é possível definir “a marcha necessária e natural do espírito”. É o rompimento com uma concepção de referência, de natureza reflexiva, que não é capaz de atribuir ao objeto do pensamento um traço específico capaz de torná-lo distinto do próprio pensamento, rompimento que reduz o que pensamos, o objeto da linguagem, naquilo em que pensamos. Assim, para “compreender” alguns aspectos das posições discursivas e das discursividades que as constituem, será feita uma brevidade histórica como ponto de partida para alguns dos sentidos de ensino de gramática. Sentidos: ensino e gramática A questão do que venha ser ensino ou o seu sentido é uma questão tensa na “ordem do discurso” (ORLANDI, 1999) uma vez que de acordo com a concepção de ensino, a prática de ensinar implica em tomadas de metodologia distintas. Se considerar que ensino significa como objeto “transmissão de conhecimento sistemático, treinamento, instrução, lição e metodologia” e ensinar significa como prática “dar aula de, ministrar conhecimento de, indicar, ser fonte de saber ou de conhecimento, treinar” (BORBA, 2004: 503). Esses sentidos embora dicionarizados vão depreender seus efeitos de forma diversa de acordo com a formação discursiva em que são materializados, por exemplo, se considerarmos ensino de línguas, ensino de matemática, ensino em colégio militar, ensino de escola de sistema de “apostila.” É importante ressaltar que o ensino enquanto objeto do discurso e ensinar como prática são construções históricas e não se deixar apreender com tanta facilidade nem o seu objeto e a sua prática. Assim, no rastro histórico, é possível de forma sintética comentar que nos povos antigos, o mito e as lendas organizavam o mundo, os anciões eram os portadores e guardiões do conhecimento e dos segredos da comunidade, e eles eram responsáveis pela prática de transmitir, ensinar e orientar aos mais jovens. Com o crescimento das comunidades, criou a necessidade de registrar não apenas os segredos e conhecimentos, mas também a própria história da comunidade, de uma forma ou de outra, sempre estavam próximos de outros. Com o desenvolvimento, tanto o objeto do ensino quanto a prática de ensinar foi gradativamente significando de forma distinta. O objeto e a prática ficaram restritos de acordo com a complexidade das comunidades, sendo que reis, nobres, religiosos e “poucos apadrinhados” ou escolhidos tinham acesso ao conhecimento. Na Grécia antiga, o ensino acontecia nos jardins da academia ao ar livre, o sistema era de internato e de acesso muito restrito, como a de Aristóteles. A exceção foi a dos sofistas que propunham uma educação popular, curiosamente o espaço físico dessa prática discursiva acontecia nos pórticos das cidades. Eles ensinavam o uso da argumentação e cobravam pelo trabalho, razão pela qual foram perseguidos. Popularizar o conhecimento era uma heresia. Durante muito tempo, ainda, foram considerados hereges e filósofos menores. Os romanos se utilizaram das escolas como objeto de dominação, a cada povo ou localidade conquistada, construíam escolas, uma vez que para a comunidade participar do comércio, órgãos públicos, se alistar nas tropas romanas era necessário possuir um certo domínio da língua latina. 201 | P á g i n a Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano (Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no10 Já no final do Império Romano e início da Idade Média, Santo Agostinho reclama das fugas dos alunos no final do mês quando tinham que pagar pelas aulas. Com o fim o Império, o ensino ficou bem mais restrito, uma vez que só havia escolas praticamente nos conventos e mosteiros. Com o Cisma Católico, os protestantes estimulavam o conhecimento, havia aulas nas praças públicas uma vez que todo crente deveria ter acesso direto à palavra de Deus. Nesse sentido, a motivação do ensino público foi religiosa. Com o fim da Idade Média, no início do Iluminismo - primado da razão -, o sentido de ensino deixou de ser para poucos privilegiados e passou a ser para todos como condição de libertação. Com o advento do capitalismo, início dos tempos modernos, o ensino se inscreveu discursivamente como fonte de libertação, de politização, como uma forma diferenciada de ver o mundo e agir sobre ele. Contemporaneamente o ensino e o que ensinar se constitui de elementos necessários, um imperativo para o sujeito “interagir” na sociedade em seus mais diversos segmentos e para se constituir enquanto “cidadão”. O ensino passou a significar direito de todos não por uma preocupação social, mas sim porque o sistema capitalista, no seu modo de produção e reprodução das forças de trabalho, necessita de mão-de-obra qualificada. Já o termo gramática, com o avanço teórico da linguística, passa a significar “conjunto de regras sistemáticas que governam o funcionamento de uma língua” (BORBA, 2004, p. 688) em contraposição do que significou ser o estudo da própria língua em Arnauld e Lancelot. É importante ressaltar que foi também uma construção histórica e lenta. Acrescentaria: funcionamento de uma língua enquanto variedade de prestígio social. Desde os povos mais antigos, a língua/linguagem foi objeto de curiosidade e tentativa de compreensão. Por motivações religiosas, os Hindus magistralmente deram os primeiros passos para o estudo e compreensão da língua. Perceberam que a totalidade da fala concretamente realizada ou enunciada poderia ser fragmentada em sintagmas, palavras e em sons distintos para em seguida processarem a categorização e as relações paradigmáticas e sintagmáticas. Elegeram a sua variante como norma padrão e as demais foram significadas como forma corrupta da língua. Inicia-se o registro e a prática do preconceito lingüístico. O processo de fragmentação foi a única forma que encontraram para estudar a língua ou “dar entrada” nos estudos lingüísticos. Ainda hoje para se descrever qualquer língua que não tenha a escrita, os procedimentos não variam muito. A esta forma foi dado o nome de gramática, no sentido de código de regras de uma determinada língua de uma determinada variante. Com o fim do mito grego, os estudos da língua/linguagem além de resultar em estudos contemplativos, os gregos descobriram diversas categorias: Platão pensou o discurso enquanto logus, entidade que revelaria a relação entre agentes e ação. Aristóteles por sua vez descobriu as categorias de artigo, pronome e categorias gerais de verbo e flexão nominal, além das partes dos discursos e a elaboração de um tratado de argumentação (Arte Poética e Arte Retórica). Os estóicos investigaram também as partes dos discursos e estudaram os verbos, as conjunções e o gênero. Estas descobertas em seu conjunto já pronunciavam a libertação da gramática do âmbito da filosofia (RODRIGUES, 2004). Com os romanos, em destaque Dionísio da Trácia e Apolônio, a gramática ganhou relativa independência da filosofia com a reflexão sobre a sintaxe, partindo das partes menores até o discurso. Prisciano se notabilizou pela descrição morfológica, descobriu oito acidentes ou categorias, entre elas a de gênero e a de grau. Varrão foi o primeiro gramático latino, preocupou-se com a etimologia, aspectos regulares e irregulares da linguagem, identificou as classes do nome, verbo, particípio, advérbio e conjunção. 202 | P á g i n a Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano (Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no10 Já na Idade Média, São Tomaz de Aquino estudou as classes gramaticais, “retoma vigorosamente a doutrina aristotélica e prisciana que propiciaram o estudo das classes e a noção de acidente” (RODRIGUES, 2004, p. 54). Arnauld e Lancelot (século XVII), reflete, sistematiza, organiza as categorias dando à gramática uma unidade e uma concepção da qual a contemporaneidade é herdeira. Ainda de acordo com Rodrigues (2004, p. 53): os estóicos, por sua vez, no afã de descreverem a simetria entre a estrutura do pensamento e da linguagem, terminaram por identificar algumas partes do discurso, com o verbo, a conjunção e o artigo. Se a contribuição de Aristóteles foi a de descrever a flexão nominal, os estóicos, em contrapartida, reconheceram a existência de três gêneros: o masculino, o feminino e o neutro, este último, que rigorosamente significa “nem um, nem outro” (oudétorom). A disciplina gramatical de criação helenística tinha por finalidade cultivar e sentir aquilo que o espírito havia criado e elaborado. Ela ganhou relativa independência com Dionísio da Trácia e com Apolônio. A gramática em sua caminhada teve a sintaxe como ponto de reflexão em Apolônio. Ele encadeou as unidades menores até as maiores de forma hierarquizada como partes do discurso. (...) Varrão, o primeiro gramático latino, preocupou-se com as questões etimológicas e aos aspectos regulares e irregulares da linguagem. Recentemente, Barbosa (1871) de influência iluminista concebe a língua como instrumento analítico do pensamento. Foi muito complexo em seu legado, motivo pelo qual não se deixou discípulos. No mesmo período, João Ribeiro e Júlio Ribeiro dedicaram seus estudos às palavras, assim reconheceram a disciplina lexicologia (RODRIGUES, 2004). Meados do século passado, por pedido do Governo Federal, a Academia Brasileira de Letras (Antenor Nascente, Clóvis Monteiro, Cândido Jucá (filho), Celso Cunha, Rocha Lima) elaborou a primeira gramática de língua portuguesa no Brasil, deu-se então o projeto de elaboração da Norma Gramatical Brasileira (NGB, 13/8/52). Posteriormente foi revisada em 1971. As definições e conceituação do Português Brasileiro desde o início do projeto não foi pacífica, de acordo com Bidermam (1978), vigorou muito mais o aspecto político sobre o científico nas decisões. Em janeiro de 2009 o projeto de Acordo Ortográfico entre os países que falam a Língua Portuguesa foi assinado. Assim, as considerações sobre ensino e a prática de ensinar são construções históricas para compreender alguns dos aspectos da disputa entre gramáticos e linguistas. Ensino de gramática O papel da escola é ensinar a língua padrão (POSSENTI, 2000) a partir da norma que o aluno já conhece ou traz de casa sem estigmatizá-la, no entanto, se o discurso sobre o ensino tanto quanto o que ensinar é revestido de polêmica, a situação se complica quando se pensa no sentido de gramática enquanto língua. É importante considerar que o sentido de gramática não recobre o sentido de língua enquanto o contrário é possível de se afirmar, pois o sentido de gramática está filiado à tradição de uma camada social de prestígio que sempre teve acesso ao conhecimento o que se define como norma padrão é uma construção histórica de uma determinada camada social que impõe sua norma como “verdadeira” ao estigmatizar as demais. É a política lingüística de quem detém uma posição social privilegiada historicamente. 203 | P á g i n a Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano (Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no10 Pode-se considerar que há um sentido sobre o que é ensinar gramática e isto possui o mesmo sentido de ensinar língua, uma vez que a gramática é significada como língua. O que os lingüistas denominam de língua é algo teórico e abstrato. Nesse sentido o ensino de gramática é significado como ensino de língua. O efeito do sentido de gramática procura recobrir o sentido de língua, assim, o discurso de resistência, considerando certa tradição de “prática discursiva” (PÊCHEUX, 1997) sobre o ensino de regras simples sedimenta o sentido de língua em detrimento do sentido de fatos lingüísticos. A prática discursiva sobre o ensino de regras encontra seu espaço de significação nos livros didáticos em meados dos anos 50 e vem se consolidando, mesmo reconhecendo que há uma certa depuração ou “higienização pedagógica” (PÊCHEUX, 2002) do conteúdo gramatical em decorrência das diversas teorias e áreas do conhecimento (sociolinguística, semântica, pragmática, fonética e fonologia, neurolinguística, psicolinguística, linguística textual, análise da conversação, análise do discurso) que de uma forma ou de outra possuem algo para dizer diante do fracasso de ensinar língua materna. Há uma discursividade curiosa sobre este ponto. Alguns discursos procuravam justificar os erros de forma pontual, de forma geral e esparsa, nos corredores das escolas circularam e circulam alguns discursos, tais como, o discurso de culpa pela falta de um material unificador, então surgiram os livros didáticos que no primeiro momento o aluno tinha que comprá-lo e nos anos oitenta o Governo Federal passou a distribuir para todas as escolas públicas. Esperava-se que com um livro didático haveria um aprendizado significativo. Não houve. O outro discurso cujo sentido se constitui pela culpa, aborda sobre a falta de metodologia e didática, nos anos setenta e oitenta, a proposta de marcar “xizinho” impregnou os livros e apostilas. Também não era o caso, não deu certo. Se não era a falta de livro didático e de metodologia, “entrou em cena” o discurso da culpabilidade do aluno, foi “mártir” por um bom tempo. No entanto, viu-se também que se poderia ver o problema por um outro olhar discursivo, foi a vez do professor ser “malhado”. Em “socorro” aos professores, os governos municipais e estaduais implementaram políticas de capacitações, semanas pedagógicas. Nas universidades e faculdades as especializações foram oferecidas e programas especiais de capacitação à distância. Esse contradiscurso, muito embora equivocado por não abordar alguns dos sentidos significativos, ainda não foi o insuficiente. Acontece que a cada período de propostas e de tentativas, novos desafios foram colocados para a escola. O Governo Federal desenvolveu algumas “políticas de apoio” ao professor com enviando livros para as bibliotecas, elaborou parâmetros curriculares nacionais, diretrizes curriculares para o ensino médio e fundamental. Comprou também mimeógrafo, videocassete, televisão e mais recentemente implantando laboratórios de informática. Podemos dizer que o discurso de crise ainda está longe do fim. Nos anos oitenta, a discursividade sobre os discursos de ensino e de ensino de língua materna foram significados por uma reviravolta sobre o que é ensinar e o que é necessariamente ensinar língua materna. Professores como Geraldi (1993; 2002), Possenti (2000) e outros desenvolveram reflexões ao analisar as práticas de ensino de língua materna. No deslocamento de sentido, ao invés de elaborar propostas outras, foram primeiramente analisar as práticas de até então, e nesse sentido, como resultado de reflexões, o papel da escola passa a ser o de ensinar a norma padrão, sem estigmatizar as demais normas. Assim, a aula de ensino de língua passa a privilegiar as aulas de leitura, produção de texto, estudo dos fatos lingüísticos como trabalho na/com a língua/linguagem. A gramática sofre o deslocamento de sentido e deixa de significar a própria língua. O ensino passa a ser uma construção interativa e não mais uma forma de transmissão pura de 204 | P á g i n a Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano (Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no10 conhecimento no formato de regras. No entanto, essa nova prática discursiva encontra resistência para estabilizar seus sentidos enquanto concepção de ensino de língua materna. Há nas aulas de gramática uma evidência empírica sobre o fracasso; sobre o método do “certo” e do “errado”, o ensino de regras e exceções. Normalmente, o olhar do professor se volta para o que o aluno não “acertou” em termos de norma padrão e ignora que o suposto “erro” pertence à norma coloquial ou variantes lingüísticas que o aluno possui de seu ambiente familiar e que é uma construção social, de acordo com Possenti (s/d, p. 09) há “uma gramática de erro”. Ignora, principalmente, que o suposto “erro” possui uma sistematicidade e regras que permitem sua materialização discursiva. Podemos considerar de alguma forma que é um tipo de reivindicação identitária e/ou “identificação” (ORLANDI, 2001) da norma coloquial e das variantes linguísticas sobre a escola que ainda não a compreende. É possível elencar algumas posições discursivas do senso comum sobre o ensino de língua: a Língua Portuguesa é difícil; na teoria é uma coisa, na prática é outra; linguística é difícil mesmo; os pais pedem que se ensinem gramática etc. No entanto, o contradiscurso de que todas as línguas possuem o mesmo grau de “dificuldade” para o falante nativo, que a teoria é constitutiva da prática e a linguística como qualquer área do conhecimento, apresenta certo de grau de abstração. Mesmo com a discursividade de que todas as línguas são históricas, multiformes, transformam-se no tempo e no espaço. As línguas são suficientes para os sujeitos em sua época, elas atendem às necessidades dos grupos (profissão, sexo, etnia, classe social, espaço geográfico, cultura). A língua é, pois, um sistema semi-autônomo em relação ao sujeito, sistema semi-aberto em relação a si mesma, realiza-se na interação social, realiza-se no “fluxo da linguagem” (BAKHTIN, 2003); sabemos mais regras do que pensamos. Nesse sentido, ensinar língua materna ao aluno se constitui em um trabalho de ler diversos gêneros discursivos e textuais, pois, um dos objetivos é tornar o aluno proficiente (texto científico, literário, jornalístico, dissertação, narração). Outro objetivo do ensino de língua materna é escrever (diversos gêneros), trabalho na/com a linguagem. Isto implica uma prática discursiva de levar o aluno a “pesquisar” sua própria língua, observar oralidade e escrita, elaborar hipóteses sobre as normas sociais de uso, refletir sobre as formas em “conflito”. É importante ressaltar que a língua sempre é suficiente para as práticas de linguagem e para a comunidade dos sujeitos em questão. Esse contra-discurso vem questionar a norma padrão como verdade absoluta em detrimento das outras. O gramático Evanildo Bechara74 (2002), um dos que estão mais próximos dos estudos lingüísticos, usa a metáfora do talher para explicar o lugar da gramática no ensino da língua: “para cada tipo de refeição devemos utilizar um talher específico, ao passo que devemos nos utilizar de uma norma específica para cada atividade e prática social.” A resistência ao discurso gramatical, enquanto ensino de língua, como foi visto anteriormente, possui uma memória discursiva de efeito de sentido consistente, pois, a gramática (herança helênica) foi e ainda resiste como arte, como técnica, como ciência. Esta concepção afeta o sentido de língua que passa a ser concebida como meio e instrumento que os sujeitos utilizam para representar o mundo como se bastasse recorrer a gramática para interagir com o mundo e as “coisas-a-saber” (PÊCHEUX, 2002). Não é sem propósito que no discurso do senso comum, alguns professores (que trabalham em outra perspectiva, a interacionista, por exemplo) são questionados pelos pais de alunos que a escola deveria ensinar gramática para o filho, para que ele possa aprender a “falar e a escrever bem”. É 74 Palestra no 8º. Encontro de Língua Portuguesa no Brasil – USP-SP. 205 | P á g i n a Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano (Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no10 importante ressaltar que até aqueles não são nem professores de língua e nem especialistas da área, se inscrevem nessa formação discursiva para reivindicar o peso da tradição: ensinar língua é ensinar gramática. O que subjaz a essa posição discursiva, entre outros aspectos, além do peso do sentido da tradição, é a “falta” de um projeto arrojado e efetivo de implantação do que venha ser o ensino de língua em primeira instância e a gramática normativa, quer para a posição sujeito do senso comum, quer para professores de língua. A gramática normativa nesse sentido é significada como conjunto de regras que devem ser seguidas, adotadas pelos livros didáticos, de alguma forma acredita-se que lendo e estudando as regras e internalizando-as, os alunos irão apreendê-las de forma competente. Cunha (1985, p. 46-7), já nos anos 70, concebia o seguinte: o que geralmente se tem por deficiência é a desorganização do dialeto, provocada pela interferência do poder repressivo do professor, que considera ilegítimas as suas normas. (...) aqueles que não dominam razoavelmente tal dialeto – melhor dizendo: a norma culta – sofrem restrições na progressão social. Daí ser de toda a conveniência que se propiciem condições ao educando para que ele se assenhoreie progressivamente do dialeto prestigioso sem que seja violentado com a desorganização ou a destruição do seu vernáculo, do qual continuará a servir-se nas situações mais íntimas. O discurso da linguística, nesse sentido, vem se colocar diante do discurso da tradição. Pode-se observar as marcas de discursividade da linguística nos livros didáticos (expressões como sintagma, morfema, dialeto). Os estudos linguísticos não estabelecem oposição ao discurso da norma padrão, como querem alguns discursos niilistas, pois, afirmam que com o advento da linguística não existe mais o estudo da gramática e “vale-tudo” em termos de linguagem, que o ensino estaria “a beira do caos”. A questão é muito pelo contrário. Trata-se de domínios diferentes. Nesse sentido podemos considerar o seguinte: a- língua: sistema de signos verbais semi-autônomo em relação ao sujeito e semiaberto em relação a si mesmo, pois a língua está inscrita discursivamente na cultura e na história; b- gramática normativa: conjunto de regras de uma variante social de prestígio, forma de expressão produzida por pessoas cultas, é a forma que funciona como modelo ideal, ela é uma tradição; c- gramáticas descritivas: orienta o trabalho do lingüista, a preocupação é descrever os fatos da língua nas mais variadas situações. O suposto erro ou desvio da norma acontece de forma organizada e às vezes se constituem em regras e normas. Para o gramático descritivista, a preocupação é explicar o fenômeno e não atribuir valor. Nenhuma expressão possui caráter valorativo; não há erro ou certo; o que existe é a variação e a regularidade (fatores sociais); no entanto, é importante considerar que o próprio fato de não atribuir valor já é uma atribuição de valor. Exemplo: formas que desapareceram, mas que continuam na gramática normativa: 2 a pessoa do plural (vós fostes/ vós iríeis). Uso: vocês foram/ vocês iriam. Posição dos pronomes em início de oração, caso me: me dê motivo/dai-me motivo; d- gramáticas internalizadas (POSSENTI, 1996): conhecimento que habilita o falante a produzir e interpretar frases, textos, discursos etc. O conhecimento está alicerçado em três pontos: no fonético/fonológico, no lexical e no sintático-semântico. O falante reconhece o som da própria língua e as diferencia das demais; lexical: o falante emprega palavras adequadas às situações; sintático-semântico: distribuição das palavras na sentença e o efeito de sentido que esta distribuição provoca. Exemplo: a raposa dizer algo para o corvo. Duas hipóteses: ou tem algo estranho na sentença ou faz sentido no mundo da fantasia, ficção, literatura. A hipótese para explicar a 206 | P á g i n a Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano (Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no10 gramática internalizada diz respeito à repetição (nós falamos o que falamos porque ouvimos); e- regras: como obrigação (gramática normativa): etiqueta, atribui valor social; como regularidade (não denota valor social), leis da natureza; e f- erro: para a gramática normativa é a expressão que foge ao uso da boa linguagem; para a gramática descritiva: formas de expressão que não fazem parte de forma sistemática, de nenhuma das variantes de uma língua. Exemplo: os casas eles da objetos pegaram / eles pegaram os objetos da casa. Erro lingüístico é a construção que não se enquadra. Assim, as práticas discursivas em relação às posições de lingüistas e de gramáticos marcam uma disputa pelo espaço de ensino com tudo que isso possa se configurar ideologicamente. Algumas Considerações Finais De acordo como Geraldi (1991, p. 35), Considero a produção do texto (orais e escritos) como ponto de partida (e de chegada) de todo o processo de ensino/aprendizagem da língua. E isto não é apenas por inspiração ideológica de devolução do direito à palavra às classes desprestigiadas, para delas ouvirmos a história, contida e não contada, da grande maioria que hoje ocupa os bancos escolares. Para Possenti (1996, p. 95): o ensino do português deixe de ser visto como transmissão de conteúdos prontos, e passe a ser uma tarefa de construção de conhecimentos por parte dos alunos, uma tarefa em que o professor deixe de ser a única fonte autorizada de informações, motivações e sanções. O ensino deveria ser subordinado à aprendizagem. Para Mendonça (2004, p. 261-162), o que há são as políticas de fechamento, tentativa de marcar a gramática normativa como ciência utilizando os termos da linguística, tais como: morfema, sintagma nominal e verbal e o discurso sobre ensino de língua, sobre língua, que adentra pela escola, também é heterogêneo, como se procurou mostrar (...) os formadores de opinião e suas políticas de fechamento; de outro, os lingüistas e os caminhos alternativos. Sem dúvida, são muitos os fios de galo que têm tecido nossas manhãs. Resta, agora, darmos a esse produto nosso toque de artesão. Assim, a passagem do ensino gramatical para o ensino de fatos da língua deve ser um processo, o professor de ensino fundamental e médio ainda tem a gramática como língua e objeto de língua, apesar do conhecimento da lingüística como ciência ou outras teorias que tratam do ensino-aprendizagem. Nesse sentido, considerando que o sentido de ensino de gramática não comporta necessariamente o sentido de ensino língua e o contrário é possível afirmar. Não se trata mais de estratégia discursiva de convencimento, mas sim de assumir que a discursividade do ensino de gramática versus ensino de língua deve ser significada como uma questão de “identidade/identificação” (ORLANDI, 2001). Pode-se afirmar que é uma disputa “ideológica” (PÊCHEUX, 1997) no sistema de ensino pela autoridade das práticas de ensino de língua. Talvez se possível elaborar ainda algumas indagações discursivas 207 | P á g i n a Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano (Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no10 provocadores: há a quem interessa o fracasso de ensino de língua materna? Seria possível conceber que estas posições de alguma forma se inscrevem no domínio mais sutil da luta de classe? Para finalizar, concordo com Cardoso (1999, p. 33): Fica à escola o desafio de oferecer condições para que também os alunos de classes menos favorecidas se tornem qualificados para o exercício de diferentes tipos de discurso: o da imprensa, o da propaganda e marketing, o literário, o científico, o político etc. Se assim não for, nossa escola continuará sendo um poderoso agente de reprodutor das desigualdades sociais deste país. Referência ARISTÓTELES. Arte Poética e Arte Retórica. Trad. Leonel Vallandro e Gerd Bornheim. São Paulo: Ediouro, 1973. ARNAULD, A.; LANCELOT, C. Gramática de Port-Royal. Trad. B.F. Basseto, H.G. Murachco. São Paulo: Martins Fontes, 1992. BAKHTIN, M. Estética da Criação Verbal. Trad. Paulo Bezerra. São Paulo: Martins Fontes, 2003. BIDERMAN, M. T. C. Teoria Lingüística: lingüística quantitativa e computacional. Rio de Janeiro: Livros Técnicos e Científicos, 1978. BORBA, F. S. (org.) Dicionário UNESP do Português Contemporâneo. São Paulo: Editora UNESP, 2004. CARDOSO, S. H. B. A questão da referência: das teorias clássicas à dispersão de discursos. Campinas: Autores Associados, 1998. ______. Discurso e ensino. Belo Horizonte: Autêntica, 1999. CUNHA, C. A questão da norma culta. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1985. LYONS, J. Introdução à Lingüística Teórica. Trad. Rosa Virgínia Mattos e Silva; Hélio Pimentel. São Paulo: Nacional, 1979. GERALDI, J. W. Portos de passagem. São Paulo: Martins Fontes, 1991. ______. (org.) O texto na sala de aula. São Paulo: Ática, 2001. ______. Linguagem e ensino. Campinas: ALB e Mercado das Letras, 2002. MENDONÇA, M. C. Língua e ensino: políticas de fechamento. In: Mussalin, F. e Bentes, A. C. Introdução à lingüística, domínios e fronteiras. V. 1. São Paulo: Cortez, 2001, p. 233-264. 208 | P á g i n a Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano (Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no10 NEVES, M. H. de M. Que gramática estudar na escola, norma e uso na língua portuguesa. São Paulo: Contexto, 2003. ______. A gramática. São Paulo: Editora da Unesp, 2002. ORLANDI, E. P. Discurso e Texto. Formulação e circulação dos sentidos. Campinas: Pontes, 2001. ______.Análise do Discurso. Princípios e Procedimentos. Campinas: Pontes, 1999. PÊCHEUX, M. Semântica e Discurso. Uma afirmação do óbvio. 3 ed. Trad. Eni P. Orlandi. Campinas: Editora da Unicamp, 1997. ______. Et al. Papel da Memória. Trad. de José H. Nunes. Campinas: Pontes, 1999. ______. O Discurso. Estrutura ou acontecimento. 3. ed. Trad. Eni P. OPrlandi. Campinas: Pontes, 2002. POSSENTI, S. Porque (não) ensinar gramática na escola. São Paulo: Mercado das Letras, 1996. ______.Gramática: os diversos contextos. Coleção Linguagens Códigos. São Paulo: Escolas Associadas, s/d. RAJAGOPALAN, K. Por uma lingüística crítica, linguagem, identidade e a questão ética. São Paulo: Parábola, 2003. RODRIGUES, M. L. Flexão Nominal: problemas de gênero e de grau, algumas considerações. Revista Avepalavra, UNEMAT, p. 52 – 70, no. 03, 2004. SAUSSURE, F. Curso de Lingüística Geral. 20 ed. Trad. Antônio Chelini et al. São Paulo: Cultrix, 1995. 209 | P á g i n a Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano (Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no10 UMA VISÃO LINGUÍSTICO-CULTURALISTA DO DISCURSO DA REVISTA PLAYBOY Glauciane Pontes Helena Franco (UNIJALES)75 Vânia Maria Lescano Guerra (UFMS/CPTL)76 É preciso dizer que se as mães colaboram para a conservação de um discurso sexista, as professoras, que ainda hoje são vistas como as mães na escola, sobretudo quando se trata do ensino fundamental, também o fazem (Maria José Coracini – A celebração do Outro, 2007, p. 92) RESUMO: Este trabalho vem problematizar os discursos que perpassam a nova configuração de homem e mulher, que estão inseridos numa sociedade cada vez mais fragmentada, dividida e dispersa que outrora supúnhamos ter unidade, ser fixa, coerente e estável. É possível constatar que há uma crise nas referências simbólicas que constituem tanto o homem quanto a mulher e a proposta de estudo deste trabalho justifica-se na medida em que se propõe a investigar essas dissonâncias. A análise dos textos produzidos pelo homem e para o homem, que expõe as formações discursivas a que está submetido, permite perceber como ele estabelece sua relação com a língua, com a história e com o mundo. Com essas considerações, este trabalho apresenta aspectos do discurso masculino, em busca das formas de representação masculina na mídia impressa, a partir do discurso proferido pelo homem na revista Playboy, publicação que circula no Brasil desde 1975, cujo destinatário específico é o próprio homem, visando à identificação de relações de poder que perpassam essas questões. Palavras-chave: masculino; feminino; relações de poder; identidades; mídia. ABSTRACT: This paper is due to question the discourses that underlie the new configuration of the man and woman, which are inserted in an increasingly fragmented society, divided and dispersed that once we supposed to have unity, be fixed, coherent and stable. It’s possible to find out there is a crisis in the symbolic references which constitute both man and woman and the proposal of this paper is justified as it proposes to investigate these discrepancies. The analyses of the texts produced by the man to the man that expose the discursive and ideological formations that are submitted allow us to see how it establishes its relationship with the language, with the history and the world. Based on these considerations, this paper presents aspects of the male discourse, in search of ways of male representation in the imprinted media, from the discourse made by the man in Playboy Magazine, a publication that circulates in Brazil since 1975, in which the man himself is the main target, aiming to identify the power relations that underlie these issues. Key-words: male, female, powers relations, identities, media. Palavras iniciais Numa perspectiva sociocultural, verifica-se que as profundas modificações nos papéis sociais do homem e da mulher, vivenciados, particularmente, no século XX, delinearam uma 75 Mestre em Letras da UFMS, Campus de Três Lagoas, área de Estudos Linguísticos. Docente no curso de Jornalismo e Assessora de Imprensa de UNIJALES - Centro Universitário de Jales (SP). 76 Docente do Programa de Mestrado em Letras da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), Campus de Três Lagoas (CPTL), doutora em Linguística pela UNESP de Araraquara e pesquisadora da UNDECT. [email protected]. Membro do NECC (Núcleo dos Estudos Culturais Comparados) na UFMS e do Grupo de Estudos “Vozes (in)fames; exclusão e resistência”, sob a coordenação da Profª. Maria José Coracini, no IEL/UNICAMP. 210 | P á g i n a Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano (Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no10 nova ordem social. E é na linguagem, entendida como processo marcado pela inscrição do sujeito, que tais mudanças se materializam. Esta pesquisa vem delinear aspectos do processo de construção da identidade do homem contemporâneo, pelo viés da sexualidade, investigando as formações discursivas e ideológicas que estão na ordem de seu discurso, o que possibilita verificar as significativas mudanças ocorridas no papel social do homem nos dias atuais. As reflexões versam sobre as relações de poder no discurso do homem contemporâneo, que são analisadas a partir do discurso masculino veiculado pela revista Playboy, na seção Caro Playboy, no período de maio de 2006 a fevereiro de 2007. Mais especificamente, o foco está no discurso do homemleitor, que registra suas impressões sobre a publicação na seção Caro Playboy. Os estudos do historiador e filósofo Michel Foucault e os Estudos Culturais embasam teoricamente nossas análises, uma vez que tomamos as relações de poder enquanto práticas sociais, que são legitimadas, na sociedade contemporânea, pelas práticas discursivas, a partir de uma visão cultural e histórica. A partir da materialidade linguística, observamos os mecanismos de referenciação, que são recorrentes nos enunciados dos leitores e utilizados como recursos estratégicos para retomada de elementos linguísticos e não-linguísticos. Parte-se das anáforas pronominais demonstrativas para apresentar uma análise das formações discursivas por que perpassam os discursos produzidos pelos leitores de Playboy, entendendo que a referência vai muito além de uma simples representação objetiva da realidade, pois se caracteriza como uma atividade discursiva (CARDOSO, 2003; NEVES, 2000). Diante da crise nas referências simbólicas que encontramos na sociedade contemporânea (SCHULER, 2006), as análises dos textos produzidos pelo homem e para o homem, que expõem as várias formações discursivas a que está submetido, justifica-se à medida que permite perceber como ele estabelece sua relação com a língua, com a história, com a cultura e com o mundo. Como pressuposto teórico, ancoramos nosso trabalho nos estudos do historiador e filósofo Michel Foucault (1979, 1988, 2004, 2005) e, mais especificamente, no campo da linguagem, à medida que o autor reconhece o discurso não como uma manifestação de um sujeito que pensa, mas sim como “um conjunto em que podem ser determinadas a dispersão do sujeito e sua descontinuidade em relação a si mesmo” (FOUCAULT, 2004, p. 61). Como para Foucault, o historiador do presente, não há uma regularidade na produção do discurso, o sujeito que enuncia está disperso e a sua função enquanto sujeito no enunciado, embora seja determinada, é vazia, podendo ser exercida por outros indivíduos ou por ele mesmo, que pode alternadamente ocupar uma série de enunciados, em diferentes posições, ou ainda assumir o papel de diferentes sujeitos. Ora, entender, pois, os enunciados em sua singularidade de acontecimento e expor que a descontinuidade não coincide com um acidente na geologia da história, mas já no simples fato do enunciado, é reconhecer que um discurso será sempre um acontecimento que nem a língua nem o sentido podem esgotar inteiramente: fazer aparecer, em sua pureza, o espaço em que se desenvolvem os acontecimentos discursivos é tornar-se livre para descrever, nele e fora dele, os jogos de relações (GUERRA; NICOLA, 2008, p. 34) A fragmentação do sujeito e das identidades caracteriza o momento do presente e da efemeridade dos posicionamentos discursivos, bem como pode estar associada à implantação de dispositivos de subjetivação de determinados grupos sociais, o que nos leva à investigação dos aspectos culturais ancorados na materialidade discursiva (GUERRA, 2006). Segundo Coracini (2007, p. 15), “assim como ocorre com o sujeito, é preciso penetrar na rede de seu discurso para daí apreender ou rastrear o que pensa Foucault a respeito da identidade”. No 211 | P á g i n a Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano (Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no10 Capítulo 5 da Parte III de Arqueologia do saber, foi possível perceber que, para falar de identidade, faz-se necessário recorrer ao que Foucault diz a respeito de arquivo e memória. Para Foucault (2004, p. 146), arquivo não é o conjunto de discursos que as instituições, numa dada sociedade, conservam, mas: Trata-se antes, e ao contrário, do que faz com que tantas coisas ditas por tantos homens, há tantos milênios, não tenham surgido apenas segundo as leis do pensamento, ou apenas segundo o jogo das circunstâncias, que não sejam simplesmente a sinalização, no nível das performances verbais, do que se pôde desenrolar na ordem do espírito ou na ordem das coisas. O arquivo é responsável pela materialização das práticas discursivas e, portanto, pelos discursos, sendo o discurso o lugar em que o poder se exerce, mas é também o lugar da resistência do sujeito a esse poder. É justamente porque constrói verdades que o poder se conserva e se dissemina na sociedade por meio dos discursos. Dos diferentes tipos de mídias, o nosso interesse temático diz respeito às revistas masculinas, que circulam no nosso cotidiano, por considerarmos que funcionam como lugares de memória constituídos por diferentes discursos sobre como os indivíduos se constituem como sujeitos na nossa sociedade. Para Foucault, a análise do arquivo comporta “uma região privilegiada” que esteja “ao mesmo tempo próxima de nós, mas diferente de nossa atualidade, trata-se da orla do tempo que cerca nosso presente, que o domina e que o indica em sua alteridade; é aquilo que, fora de nós, nos delimita” (2004, p.150). Dessa perspectiva, uma análise da produção discursiva da mídia que se baseia no conceito foucaultiano de enunciado deve considerar o exercício da função enunciativa de que os enunciados são portadores. “Essa função não confere às unidades diversas (frases, proposições, atos de fala, quadro de signos) um sujeito, mas um conjunto de posições subjetivas possíveis. Ela não lhes fixa um limite, pois as coloca em um campo associado, que possibilita a coexistência” (NAVARRO, 2006, p. 78). A função enunciativa não vem impor a identidade dessas unidades, mas o regime de seu calibre material, que propicia a repetição ou a transformação do enunciado. Partindo do pressuposto de que esses periódicos participam e fazem parte das práticas sociais e discursivas do cotidiano brasileiro desde o século XIX; que se ligam a uma rede de poder-saber que determina o que pode e deve ser dito ou silenciado sobre as formas e as práticas de si, mediante as quais os indivíduos devem se constituir como sujeito contemporâneo, pretendemos responder a algumas questões: Como se dá o processo de constituição do sujeito-leitor dessas revistas? Mediante quais formas e práticas os indivíduos se constituem como sujeito ou se subjetivam nas revistas? De que saberes-poderes tratam os periódicos? No item seguinte, articulamos uma parte da história da revista Playboy e contextualizamos a seção Caro Playboy, no intuito de considerarmos as condições de produção desse discurso midiático impresso para, enfim, analisarmos suas marcas discursivas e culturais, objeto de nossas reflexões sobre a construção identitária desse leitor. As condições de produção do discurso midiático impresso da Playboy Compreender o discurso atual dos homens na mídia impressa significa recuar no tempo e penetrar na memória discursiva onde o passado encontra o presente e prepara o 212 | P á g i n a Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano (Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no10 futuro (CORACINI, 2007, p. 80). Assim, remontamos, inicialmente, à década de 50, para, em seguida, tecer comentários sobre a constituição identitária da Playboy de nodosos dias. Até o início da década de 50, as revistas destinadas ao público masculino disponíveis no mercado americano tinham o conteúdo voltado para armas, caçadas e carros. Em 1953, o americano Hugh Hefner, diretor de circulação de algumas revistas da época, entendeu que o mercado seria receptivo à revista que exibisse modelos femininos em poses sensuais, além de tratar de assuntos de interesse do público masculino. Hugh Hefner pagou 500 dólares para uma empresa em Chicago pelo direito de utilização das fotos de um calendário que trazia Marilyn Monroe como modelo principal e criou a Stag Party, revista que tinha como símbolo um veado fumando à espera de uma companhia feminina. Na véspera do lançamento, porém, foi descoberto que já havia uma publicação com o mesmo nome. Hefner, então, optou por substituí-lo pelo nome Playboy, dentre outros como Top Hat, Bachelor e Gentlemen. Contratou o diretor de arte Arthur Paul para criar um logotipo mais adequado à nova marca que seria lançada. O atualmente famoso coelho com gravata borboleta foi criado e, desde então, utilizado em todas as publicações da revista. Em algumas edições, os objetos que compõem o cenário possuem o formato do coelho, assim como os acessórios utilizados pelas modelos ou até as próprias roupas. A revista Playboy dos dias atuais é publicada em 18 países (Brasil, Bulgária, Croácia, República Checa, Alemanha, França, Grécia, Hungria, Itália, Japão, México, Holanda, Polônia, Romênia, Rússia, Eslovênia, Espanha e Taiwan) e tem cerca de 18 milhões de leitores. É a revista mais vendida da categoria. Marca de tradição, a Playboy é líder no seu segmento, com um total de 2.858.000 leitores, sendo 85% homens com idade entre 18 e 39 anos77. Vários fatores contribuem para o seu sucesso, sendo o principal deles os ensaios sensuais de celebridades. Na revista Playboy, a seção Caro Playboy é condensada em duas páginas, em geral localizada no início da revista. Apesar de não ter páginas pré-determinadas, a partir de uma numeração previamente estabelecida, a seção está comumente publicada entre as páginas 10 e 16, variando de edição para edição. Se por um lado as páginas variam de lugar na revista, por outro, o formato da seção não muda. A disposição dos assuntos bem como as fotografias e os boxes estão sempre com a mesma distribuição nas páginas, mantendo a proporcionalidade. Trata-se de uma seção ilustrada por fotografias das edições anteriores, uma vez que contém comentários dos leitores da revista sobre o conteúdo das publicações passadas. Esse aspecto temporal é referenciado em um espaço localizado no canto esquerdo da primeira página da seção, onde aparece uma síntese da edição anterior com referência ao mês e alguns números que relatam a participação do leitor, como na edição de novembro de 2006 em que aparece o enunciado “34.378 era o número de membros da comunidade de Playboy no Orkut no dia 8”. No mesmo mês, há outros relatos também, como: “28 mulheres tiraram a roupa para os fotógrafos de Playboy (revista e site)”, ou “1 garota visitou a redação e quis tirar a roupa na frente de todos para mostrar que é bonita. Foi contida”. Convém ressaltar que se trata de um pequeno espaço na página, um boxe, e, por isso, apresenta um conteúdo condensado, resumido em poucas palavras. Nesse lugar, a revista publica fatos rotineiros, como o número de cartas recebidas pela redação, mas também traz chamadas mais “apimentadas”, com teor erótico, tal como o enunciado “sobrinha do Bandido da Luz Vermelha ofereceu-se para posar nua”, na edição de dezembro de 2006. 77 Fontes: Projeção Brasil de Leitores com base nos Estudos Marplan Consolidado 2007 e Estudos Marplan Consolidado 2008. 213 | P á g i n a Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano (Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no10 Logo abaixo desse quadro, há um outro boxe, menor, com o título “Procura-se coelhinho”. Como já dissemos, a revista Playboy possui como marca registrada o desenho da cabeça de um coelho estilizado, que utiliza em todas as suas publicações e que é oriunda da revista norte-americana, que foi a precursora no ramo de publicações com nu feminino. No boxe, a revista publica a resposta de algum leitor sobre a localização do desenho na capa anterior. Ele normalmente aparece na capa, escondido, perto da modelo. O texto do leitor é acompanhado por seu nome e cidade em que mora. Do lado direito da página, aparece uma fotografia da modelo da capa que foi publicada na edição anterior, com seu nome em evidência, na forma de manchete principal da página, e, logo abaixo, há um subtítulo, contendo algum comentário dos editores da revista sobre a mulher. Mais abaixo estão os comentários dos leitores sobre a modelo mencionada na fotografia. Há mais uma página dedicada às cartas dos leitores, que geralmente possuem título, com texto e assinatura dos leitores. Nessa segunda página, os assuntos são variados e os leitores comentam sobre as modelos fotografadas e também sobre matérias jornalísticas publicadas na edição anterior. No centro da página, aparece uma fotografia que foi publicada na edição passada, que nem sempre é de modelos ou mulheres. Também há um boxe com a publicação de recados que foram escritos por leitores, ao longo do mês, na página da comunidade da revista Playboy no Orkut, site de relacionamento da Internet, mantido pela revista, que se configura como uma comunidade virtual, criada pela empresa Google Inc., em 22 de janeiro de 2004 e hospedada no endereço eletrônico www.orkut.com. Todos os elementos descritos foram recorrentes em todas as edições analisadas neste trabalho, o que nos leva a crer que se trata de uma configuração permanente e uma estratégia para conferir familiaridade ao espaço, uma vez que o leitor assíduo já sabe o que irá encontrar. Como a revista reserva sempre duas páginas para a seção, observa-se que existe, pelo menos, um critério para a publicação das cartas, ou seja, o espaço limitado também leva os editores a definirem uma quantidade limitada de textos e, portanto, a selecionarem o que será publicado. Uma análise: em revista a perspectiva discursiva e cultural É possível reconhecer as configurações ideológicas que permeiam as práticas discursivas do homem que lê a Playboy mediante a análise da seção Caro Playboy e, assim, mostrar o que dá sustentação à construção de sua identidade, como homem contemporâneo. Neste trabalho, partimos dos estudos de Pêcheux (1988, p. 144): “as ideologias não são feitas de ‘idéias’, mas de práticas” e apesar de não estarem explícitas ou transparentes, tais ideologias aparecem na discursividade do sujeito. O leitor de Playboy traz em seu texto marcas dessa dispersão assim que inscreve seu discurso em práticas socialmente convencionalizadas como pertencentes ao universo masculino, demonstrando que seus modos de falar estão condicionados àquilo que a sociedade espera que ele diga, como, por exemplo, quando se refere ao corpo das mulheres fotografadas nuas, utilizando palavras com teor erótico como “tesão”, em julho de 2006; “bunda”, em agosto de 2006; ou “gostosa”, em novembro de 2006. Na figura 1, pode-se observar que a mulher fotografada é a modelo Luize Artenhofen. Ela teve seu ensaio fotográfico publicado na capa e da página 98 até a 123, da edição de outubro de 2006. 214 | P á g i n a Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano (Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no10 Figura 1 Os leitores da revista, na edição de novembro de 2006, fizeram vários comentários sobre suas fotografias. Dentre os que foram publicados, destacamos o seguinte: R 1 - A tatuagem nas proximidades da costela foi o ápice da edição. Deu um toque exótico, com pitada de erotismo. Esse foi o melhor presente de aniversário que eu poderia ter recebido – comemorei em 13 de outubro. O enunciado R1 revela um discurso inscrito em uma prática socialmente convencionalizada, ou seja, aquela que permite ao homem falar dos atributos físicos da mulher, relacionando-se com a formação discursiva do homem machista e, mais especificamente, com aquele discurso que concebe a mulher como um objeto. Do ponto de vista linguístico, o uso do pronome demonstrativo “esse” configura-se como uma anáfora pronominal que, segundo Neves (2000), manifesta-se por um pronome que aparece na posição de determinante, mas com o nome elíptico e anaforicamente, já que o elemento referido já apareceu em outra posição precedente do texto. Sabemos que a anáfora pronominal, no nível sintático, atua como um mecanismo de retomada textual de algum termo linguístico antecedente. Por esse princípio, poderíamos dizer que, no enunciado do leitor, o pronome “esse” retoma toda a construção “a tatuagem nas proximidades da costela foi o ápice da edição. Deu um toque exótico, com pitada de erotismo”. Porém, a análise discursiva entenderá que o pronome “esse” não só retomou todos os termos anteriores como também se relacionou com outros referentes que estão na discursividade, num espaço de interlocução. O leitor, por meio do uso da anáfora pronominal, referenciou não um objeto do mundo real, mas sim conceitos que são veiculados pela linguagem, uma vez que esta é repleta de significados. O leitor relacionou seu enunciado a um conjunto de formulações pressupostas, situadas no interior do discurso machista, em que a mulher é concebida como objeto de valor, cujas qualificações físicas sobressaem diante das demais. Pode-se dizer que o leitor inscreveu seu discurso na representação social do homem moderno que é constituída pelo sexo. Segundo Bourdieu (2005, p. 27), “o ato sexual é pensado em função do princípio do primado da masculinidade” e, dessa forma, é o homem que tem a preferência sobre esse ato, reforçando a noção de que sua identidade é formulada, também, a partir do ato sexual em si. Discursivamente, há, na contemporaneidade, estratégias sociais que normalizam o modo de viver do ser humano. E podemos dizer que uma dessas estratégias para o homem, na contemporaneidade, é poder falar sobre sexo, é colocá-lo em discurso. Verifica-se que o sexo, como aquilo que pode ser dito na sociedade contemporânea, está longe de ser reprimido ou intolerado. Foucault (1988, p. 30) afirma que “deve-se falar do sexo, e falar publicamente, de uma maneira que não seja ordenada em função da demarcação entre o lícito e o ilícito [...]”. 215 | P á g i n a Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano (Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no10 Conforme o autor, em vez da preocupação em esconder o sexo ou até mesmo em ter recato com a linguagem, é possível perceber hoje, nas práticas discursivas, a constante referenciação ao sexo: “a característica de nossos três últimos séculos é a variedade, a larga dispersão dos aparelhos inventados para dele falar, para fazê-lo falar, para obter que fale de si mesmo, para escutar, registrar, transcrever e redistribuir o que dele se diz” (FOUCAULT, 1988, p. 40). Encontramos, no entanto, pontos de resistência no enunciado do leitor. A análise preconiza o discurso como um lugar de confrontos, onde jamais encontraremos uma linearidade. Verificamos que o enunciado do leitor apresenta uma ruptura, um ponto de resistência, a partir de um outro efeito de sentido contraditório. De acordo com Guerra (2006, p. 207), os “sujeitos, pensando serem cada vez mais conscientes, lutam contra as forças que tentam reduzi-los a objetos, contra as múltiplas formas de dominação sempre criativas e renovadas”. O leitor, em seu enunciado, considerou o “ápice da edição” a tatuagem no corpo da mulher. Em vez de enaltecer as partes de seu corpo, como os seios, os glúteos, que são as partes corporais que se relacionam efetivamente com a prática sexual, ele valoriza a tatuagem, um desenho no corpo da modelo. Também na edição de junho de 2006, encontramos práticas discursivas do homem que ancoram sua discursividade numa subjetividade. Na figura 4 da página 98, a modelo Estela Pereira aparece segurando um piercing, que se localiza no seu mamilo. A fotografia recebeu vários comentários dos leitores, dentre os quais selecionamos o seguinte para análise: R 2 - O piercing no seio da monumental Estela Pereira é sensacional! Com uma inspiração dessas, o Brasil já pode se considerar hexa. Em R2, quando o leitor utiliza o pronome demonstrativo “dessas”, sintaticamente ele retoma, por anáfora, “o piercing no seio”. Na perspectiva sintático-semântica, o leitor compara o objeto (piercing), que se trata de um adorno, a uma “inspiração”. No entanto, o processo de referenciação que encontramos relaciona discursivamente o piercing ao exercício da sexualidade. Observamos que há um processo de interdição quando o leitor não fala explicitamente sobre a prática do sexo, marcando o que o adorno no corpo da mulher sugere: pode-se dizer que ele apresenta um ponto de resistência para a prática normatizadora na sociedade que permite falar abertamente sobre sexo, pois emprega palavras que neutralizam seu discurso. E, segundo Foucault (1988, p. 27), isso é recorrente, porém ele considera que “poderiam muito bem ser apenas dispositivos secundários com relação a essa grande sujeição: maneiras de torná-la moralmente aceitável e tecnicamente útil”. Ao comparar o piercing a uma inspiração, o enunciado estabelece um diálogo com o título da revista na edição anterior: “Pedala Brasil! Estela Pereira, a nossa Musa da Copa”, que se referia à Copa do Mundo, o Campeonato Mundial de Futebol. O exercício da sexualidade é discursivamente marcado como uma motivação, um estímulo para que o time de jogadores do Brasil vença o campeonato. Nesse sentido, o enunciado produz efeitos de sentido do sexo como poder, e sua discursividade traz marcas do dispositivo de sexualidade concebido por Foucault (1988), no qual os mecanismos de poder se dirigem ao corpo. Por meio das análises dos enunciados do leitor da revista, verificamos que o dispositivo de sexualidade funciona de acordo com as técnicas conjunturais de poder existentes na sociedade, que, por sua vez, estão ligadas à questão do corpo. No processo identitário do homem contemporâneo, existe uma associação permanente da masculinidade com o poder e, portanto, os valores mais altos do homem aparecem investidos na sua 216 | P á g i n a Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano (Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no10 virilidade. No entanto, o discurso do homem na Playboy desconstrói parte desse conceito. Para exemplificar, na edição de junho de 2006, ainda se referindo à figura 4, o leitor faz o seguinte comentário: R 3 - As fotos que mais causaram impacto foram as da página 98, onde a gata acaricia o mamilo que tem um piercing, e a da 94, com Estela puxando sua corrente de ouro até os pêlos pubianos. Essa gata causou um verdadeiro frisson! O uso do pronome demonstrativo “essa” retoma, sintaticamente, o sujeito Estela, ou seja, a mulher fotografada pela revista. O leitor utiliza a palavra “gata” para referenciá-la. Sabemos que esta palavra, enquanto substantivo feminino, apresenta em Ferreira (1986, p. 678) o sinônimo “a fêmea do gato” e nem um outro que se refira especificamente à mulher. No entanto, sabemos que, na memória discursiva, a expressão aparece como sinônimo de mulher bela ou com atributos físicos considerados belos. Novamente, temos o discurso do leitor inscrito numa formação discursiva que valoriza o aspecto físico da mulher. E nossa análise verifica que há um outro recurso linguístico que redimensiona tal prática e produz outros efeitos discursivos. No enunciado “essa gata causou um verdadeiro frisson”, o leitor não só valoriza os atributos físicos da jovem como enfatiza uma condição de superioridade da mulher por meio do uso do verbo “causar”. Esse verbo, segundo Neves (2000), é classificado como verbo causativo, que pode ser considerado um verbo implicativo simples, ou seja, que indica uma condição suficiente. Na forma de enunciado afirmativo com um desses predicados na oração principal, como é o caso analisado, o complemento é implicado como factual. Também podemos recorrer ao sinônimo registrado em Ferreira (1986, p. 299) “ser causa, ou motivo de; motivar; originar; produzir” para demonstrar a inversão social do poder que o leitor quer explicitar. Para ele, é a modelo que tem o poder de causar “um verdadeiro frisson”. Diante disso, o leitor da Playboy estabelece discursivamente uma ruptura com o discurso proeminente na sociedade, que vê o homem como detentor do poder e que a posse desse poder só é atrativo para as mulheres. Lipovetsky (2000) afirma que, por muitos anos, o poder foi objeto de sedução exclusivamente para as mulheres. Ao analisar a sedução na contemporaneidade, o autor argumenta que “a sedução sempre se apresentou como um teatro estruturado pela oposição binária do masculino e do feminino” (Lipovetsky, 2000, p.51) e isto implica a diferença que ambos apresentam ao conduzir a empresa sedutora: “no feminino, a sedução se apóia essencialmente na aparência e nas estratégias de valorização estética. No masculino, a paleta dos meios é muito mais ampla: a posição social, o poder, o dinheiro, o prestígio, a notoriedade, o humor podem funcionar como instrumentos de sedução” (id., p. 6364). No entanto, a condição de dominadora da mulher que vemos no discurso do homem na Playboy, ainda que atrelada à sua forma física, é uma forma de sedução para ele. Longe de ser uma atração exclusivamente para as mulheres, o leitor demonstra discursivamente que o poder exercido pela modelo também é atrativo para os homens. Encontramos também na discursividade do homem leitor da revista Playboy exemplos das práticas reguladoras que submetem o corpo. Na revista de junho de 2006, tomamos também o seguinte enunciado para análise: R 4 - A tatuagem e o piercing de Estela me deixaram louco. A Playboy deveria mostrar mais mulheres com esses adereços. O leitor, por meio do emprego do pronome demonstrativo “esses”, referencia dois elementos que estão no corpo da mulher, “a tatuagem e o piercing”, que ele chama de 217 | P á g i n a Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano (Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no10 “adereços”. O demonstrativo produz efeitos de sentido que estão num espaço enunciativo, numa memória discursiva, e o processo de referência se dá na relação com uma formação discursiva que veicula o discurso da moda. Entendemos que a moda contribui para a construção de uma linguagem que se manifesta no corpo e, na contemporaneidade, isso é feito por meio dos padrões de beleza que atuam como construtores da identidade do homem e da mulher, na forma de práticas reguladoras do discurso. Ao entender a beleza como uma qualidade do corpo, o discurso da moda manifesta valores e significações que passam a ser assimilados culturalmente. São concepções ideológicas nas quais a mídia tem importante participação, inclusive porque, enquanto indústria cultural, ela age pela motivação mercantilista. De acordo com Lipovetsky (2004, p. 69), “as imagens publicitárias, as fotos da moda e a imprensa feminina exemplificam bem essa penetração da mídia até no mais íntimo, especialmente o que diz respeito à aparência do corpo”. Como esta análise contempla, em um contexto mais amplo, o discurso midiático, consideramos o esforço que a mídia, de modo geral, faz para colocar em circulação as representações sociais e que acaba por endossar determinados estereótipos, especialmente relacionados ao corpo. Sabe-se que, no discurso da mídia, na maioria das vezes, prevalece o aspecto comercial: a notícia é entendida como entretenimento e, acima de tudo, como uma mercadoria que tem seu preço. A relação que se estabelece entre o leitor e a revista é, portanto, predominantemente concebida como uma transação de compra e venda. De acordo com Almeida (2006), os veículos de comunicação, à medida que almejam criar uma identificação com seu público, promovem muitas vezes o reforço dos estereótipos. Diante disso, retomamos o conceito de Pêcheux (1988) sobre a questão do sujeito e o que chamou de ilusão-esquecimento número dois, que se refere à ordem da enunciação ou, mais especificamente, à maneira como foi formulado o enunciado. O sujeito, ao falar, esquece que existem outras maneiras de expor linguisticamente uma mesma ideia, causando a impressão de que apenas a forma como ele produziu seu enunciado é válida. Por outro lado, de acordo com Cardoso (2003, p. 132), trata-se do esquecimento que contempla os estudos da referência. Como o sentido dos enunciados não existe por si mesmo, e sim pelas posições ideológicas colocadas na enunciação, “palavras, expressões, proposições mudam de sentido segundo as posições sustentadas por aqueles que as empregam, o que significa que elas tomam o seu sentido em referência a essas posições [...]”. Como o sujeito não tem consciência disso, ele acredita que o que está dizendo só pode ser uma forma objetiva de ver a realidade. Na forma como analisamos o texto do leitor R3 (cf. p. 95), é possível ver que sua objetividade é praticamente nula. Como exemplo, em seu enunciado ele explicita que tais objetos, um desenho e um adorno de pele, possuem aspectos “erotizados” e, dadas as circunstâncias em que estão mostrados pela modelo, permitem relacioná-los à sua sexualidade. Nesse caso, recorremos ao conceito de sexualidade, explorado por Foucault (1988, p. 139), enquanto “conjunto dos efeitos produzidos nos corpos, nos comportamentos, nas relações sociais, por um certo dispositivo pertencente a uma tecnologia política complexa (...)”. Tal concepção é pertinente à prática discursiva do leitor e é possível relacioná-la aos mecanismos de controle existentes na sociedade e referenciados por Foucault (1988). Uma vez que concebemos o discurso como uma veiculação e uma produção de poder, entendemos que tal enunciado é produtor de efeitos de poder que reforçam e integram práticas sociais de dominação e submissão, condições relativas aos papéis do homem e da mulher já mencionados anteriormente. 218 | P á g i n a Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano (Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no10 O leitor, em seu enunciado R3, relaciona também seu dizer ao ideário machista, à medida que ressalta sua virilidade: “A tatuagem e o piercing de Estela me deixaram louco”. Para tal discurso, ser viril é ter o controle da situação, é ser mais forte e, por isso, aquele que é licenciado para subjugar o outro, o mais frágil ou o menos forte, condições que se configuram, nesse caso, na mulher. Ele provoca, no entanto, ruptura na discursividade ao utilizar o adjetivo “louco” para qualificar sua motivação sexual. De acordo com Ferreira (1986, p. 853), a palavra “louco” pode ser sinônimo de “que perdeu a razão; alienado; doido; demente”, ou ainda “que está fora de si, contrário à razão ou ao bom senso”, sempre relacionando seu significado à questão da razão. O item lexical “louco”, utilizado pelo leitor, aciona signos construídos discursivamente pelo dispositivo da sexualidade e as relações de poder que estão presentes nessa formação discursiva. Ele provoca uma resistência à discursividade, que estabelece que o louco é um insano, uma pessoa sem razão, e produz efeitos de sentido do louco enquanto aquele que tem desejo sexual, que é viril. Segundo Foucault (2005, p. 79), “nas relações de poder, há forçosamente possibilidade de resistência – de resistência violenta, de fuga, de astúcia, de estratégias que revertam a situação [...]”. De modo geral, verifica-se que o leitor inscreve seu discurso numa formação discursiva do homem contemporâneo que concebe a beleza como uma forma de poder. De acordo com Lipovetsky (2000, p. 148), “a beleza é apresentada com freqüência como o poder específico do feminino. Um poder decretado imenso, uma vez que permite reinar sobre os homens, obter maiores homenagens, influenciar nos bastidores os grandes deste mundo”. Para o autor, o mito da beleza feminina e seu poder sobre os homens acabam por revelar ainda mais a sujeição da mulher perante os homens, tendo em vista sua efemeridade: “poder subalterno dependente dos homens, poder efêmero inelutavelmente destinado a desaparecer com a idade [...]” (LIPOVETSKY, 2000, p. 148). Assim, na formulação do leitor há um investimento no mito da beleza e seu poder, ainda que efêmero. Sua identidade, construída discursivamente, permite que ele assuma, como sujeito social, seu lugar no discurso elaborado e o qualifica a reproduzir as formações ideológicas que compõem sua formulação discursiva. Ao conceber o processo de construção da identidade como um movimento de continuidades e descontinuidades, manifesto no discurso, entendemos que o homem, leitor da Playboy, apresenta-se inquieto, porém consciente de todas as mudanças que estão em curso e está em busca de seu espaço nesse cenário de mudanças. Para Lipovetsky (2000, p. 59), “ainda que os referenciais da masculinidade tenham se tornado indistintos, a maior parte dos homens não sofre de mal-estar de identidade, mas, como as mulheres, de dificuldades relacionais ou profissionais”. Para exemplificar, na edição de julho de 2006, tomamos para análise o seguinte enunciado: R 8 - Me surpreendi com a edição de junho, que debatia, de maneira leve, a questão da Índia. Várias vezes pedi matérias que falassem sobre economia, política e sociedade. Fiquei bastante feliz em ver que fui atendido. Apesar do nome da revista, acredito que pouquíssimas pessoas no Brasil podem se dar ao luxo de só conversar sobre carros, tecnologia e bebidas. Inclusive passa a falsa impressão de que homem só pensa nisso. Só volto a pedir a volta do ranking das faculdades e universidades. Sempre esperava a edição de setembro com essa matéria. Nossas considerações partem do uso da anáfora pronominal demonstrativa “nisso”, que aparece num processo de contração da preposição “em” com o pronome demonstrativo invariável “isso”. Sintaticamente, o recurso utilizado pelo leitor retoma anaforicamente as palavras “carros”, “tecnologia” e “bebidas” do enunciado imediatamente anterior. Além desse 219 | P á g i n a Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano (Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no10 processo anafórico, atentamos também para a relação sintática estabelecida entre o verbo “pensar” e o advérbio “só”. Segundo Neves (2000, p. 240), tal advérbio é classificado como aquele que não opera sobre o valor de verdade da oração, por ser considerado um advérbio de “inclusão com exclusividade”, ou seja, embora não mude o valor de verdade da oração, o advérbio “só” aparece numa forma de inclusão que confere exclusividade ao verbo “pensar”. Discursivamente o enunciado “apesar do nome da revista, acredito que pouquíssimas pessoas no Brasil podem se dar ao luxo de só conversar sobre carros, tecnologia e bebidas. Inclusive passa a falsa impressão de que homem só pensa nisso” produz efeitos de sentido que revelam o posicionamento ideológico do leitor quanto à identidade de homem que ele procura para se representar. O pronome anafórico “nisso” não somente retoma as palavras sintaticamente organizadas no enunciado como também o inscreve numa memória discursiva que apresenta elementos da construção simbólica do homem concebido como materialista, ou seja, aquele homem que confere valor aos bens materiais, como carros, aparatos tecnológicos ou bebidas, e como capitalista, ou seja, aquele que, pela prática exacerbada do consumismo, acaba por conferir merecimento aos elementos da realidade considerados fúteis ou perecíveis. Nolasco (1995, p. 21) expõe que esta é uma das formas de representação masculina na cultura do Ocidente: “os padrões de comportamentos que os qualificam como homens se aproxima dos exigidos para máquinas”. O leitor procura desqualificar tal concepção de homem à medida que confere valor à matéria jornalística que abordou aspectos da cultura indiana: “fiquei bastante feliz em ver que fui atendido”, inscrevendo seu dizer numa formação discursiva que relaciona o homem à seriedade, conferindo-lhe inteireza de caráter e retidão, com predominância da racionalidade. Em seu enunciado, ele enumera quais são os assuntos que são de seu interesse, do ponto de vista do homem “sério”, que busca representação: “várias vezes pedi matérias que falassem sobre economia, política e sociedade”. Como o espaço discursivo não é linear nem estático, encontramos em seu dizer descontinuidades. O leitor, ao utilizar a expressão “acredito que pouquíssimas pessoas no Brasil podem se dar ao luxo (sic) de só conversar sobre carros, tecnologia e bebidas”, produz efeitos de sentido que revelam um ponto de vista valorativo sobre esse tipo de conversa, embora pretenda desqualificá-la. Para ele, conversar sobre carros, tecnologia e bebidas é um luxo que poucas pessoas têm no país. Em Ferreira (1986, p. 857), a expressão “dar-se ao luxo de” tem como sinônimos: “dar-se ao capricho, à fantasia, à extravagância de; permitir-se o luxo de”, o que revela uma posição receptiva à prática. Embora o leitor busque representar-se, discursivamente, na figura do homem sério e racionalista, ele também inscreve seu discurso numa formação ideológica que apresenta o homem como consumista e materialista. Entendemos que o caráter conflituoso de seu discurso revela uma intensa luta do sujeito homem em buscar sua representatividade num cenário social que apresenta formas de poder, estabelecidas discursivamente e que tentam reduzi-lo a um ser homogêneo, com um discurso uniformizado. Na revista Playboy, a partir das análises dos enunciados de seus leitores, encontramos um homem que provoca rupturas continuamente. Sobre isso, voltamos nossa atenção para o seguinte enunciado, publicado na edição de novembro de 2006. O leitor refere-se à modelo Luize Altenhofen, cujo ensaio saiu na revista de outubro de 2006: R 9 - Fiquei insatisfeito. O trabalho de Luis Crispino foi lamentável. Pela terceira vez, Playboy não explorou corretamente essa mulher fantástica. Faltou criatividade, sedução – que ela tem à flor da pele – e feeling. 220 | P á g i n a Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano (Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no10 A anáfora pronominal demonstrativa “essa” referencia, sintaticamente, a expressão “mulher fantástica”. Esta aparece completando o sentido do verbo “explorar”, que, por sua vez, está marcado pelo advérbio “corretamente”. O leitor refere-se à modelo fotografada na edição anterior, porém, discursivamente, é ao universo midiático que o pronome demonstrativo remete, à medida que analisamos os efeitos de sentidos que emergem do uso do adjetivo “fantástica” atribuído à mulher. Em Ferreira (1986, p. 611), dentre os sinônimos para a palavra “fantástico”, encontramos “incrível, extraordinário, prodigioso” e, ao relacionarmolos ao discurso midiático, recuperamos as marcas do processo de espetacularização pelo qual a mulher aparece na mídia, mediante os valores atribuídos a sua beleza. O leitor usa o adjetivo para evidenciar a beleza da mulher, que, segundo ele, não foi “corretamente explorada” pelo fotógrafo da revista, Luis Crispiano. Ele argumenta que a beleza da mulher não foi contemplada nas fotografias veiculadas nas páginas da revista, inscrevendo seu discurso na formação discursiva do homem machista, que elege a beleza física da mulher como principal recurso para qualificá-la. Para o leitor, o profissional da revista não soube fotografá-la e, ao utilizar o verbo “explorar”, que tem como sinônimo em Ferreira (1986, p. 600) “tirar partido ou proveito de”, produz efeitos de sentido que revelam as marcas do discurso machista. A análise de outro recurso linguístico no enunciado do leitor aponta, todavia, para uma descontinuidade discursiva em seu processo identitário, revelando o caráter clivado desse sujeito do discurso. O uso do advérbio de modo “corretamente” faz surgir efeitos de sentido que atribuem valores como exatidão ou isenção de erros ao ato de tirar fotografias que ele afirma que faltaram ao fotógrafo e, em seguida, enuncia os conceitos considerados como adequados para fotografar a modelo: criatividade, sedução e feeling. Ao atribuir valor a esses elementos da personalidade humana e relacioná-los ao ato de fotografar, o leitor revela suas convicções e crenças, de forma particularizada. Dessa maneira, o enunciado do leitor traz marcas de uma formação discursiva que, inserida na contemporaneidade, legitima o homem a sentir ou mostrar sentimentos que “pertencem” socialmente e discursivamente ao universo feminino. Se, em um primeiro momento, ao referir-se à mulher, ele inscreve seu discurso numa formação discursiva inserida numa concepção tradicionalista dos papéis do homem e da mulher, em que esta é tomada como objeto, a partir de sua beleza, e ao homem são atribuídos conceitos como virilidade e força, num segundo momento, emerge do enunciado do leitor uma outra forma de conceber tais papéis, a de que o homem também pode ser sentimental. Por outro lado, é pertinente mencionar que, apesar dos movimentos feministas, ainda integra o discurso da/sobre a mulher no Brasil, os valores masculinos, ou seja, “muitas mulheres continuam a aceitar que não compreendemos bem porque somos mulheres, que não somos boas motoristas porque somos mulheres, que somos tímidas, porque somos mulheres”, e que, portanto, fomos feitas apenas para o trabalho no espaço privado, educando nossos filhos e zelando pelo lar. Isso tudo acompanhado por um tom de voz baixo e doce. (CORACINI, 2007, p. 91) Segundo Nolasco (1995, p. 16), a representação masculina associada a comportamentos como virilidade, posse e força passa por uma relativização na sociedade contemporânea e é possível pensar numa forma de homem “feminino”. Para o autor, [...] alguns homens, ao reconhecerem suas necessidades afetivas, o fazem referindo-se ao seu lado feminino. Há, portanto, uma ‘autorização’ para que o indivíduo possa distanciar-se de um certo determinismo naturalista utilizado pelas ciências humanas e sociais, que definem o que são 221 | P á g i n a Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano (Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no10 comportamentos de homem de mulher, tomando para si o que socialmente está atribuído ao outro sexo (grifos do autor). O leitor espera do fotógrafo, que também é homem, comportamentos como criatividade e feeling para “explorar corretamente” a beleza da modelo fotografada. Além de serem considerados formas femininas de agir socialmente, tais comportamentos também distanciam o homem de sua representação tradicionalista, que contempla um papel social objetivo, racionalista e cético, longe da subjetividade que é valorizada pelo leitor no ato de fotografar do profissional. Para Nolasco (1995), o homem “feminino” deve ser concebido como uma virtualidade que aponta para uma transição e não para uma nova representação do masculino. Entendemos também que são novas práticas incorporadas ao discurso masculino. Diante disso, a análise da prática discursiva do leitor de Playboy mostra que não existe uniformidade na representação masculina. Para exemplificar, selecionamos mais um enunciado. O leitor F. V., na edição de fevereiro de 2007, afirma que: R 20 - A capa ficou ruim, mas o conteúdo da edição compensa. Só Playboy traz Jece Valadão, Stephen King, Allan Sieber e Alan Moore na mesma edição. Uma crítica: aquele depoimento da repórter que botou as aranhas para brigar pela primeira vez só pode ser pegadinha. A moça está tirando onda e aquilo não passa de um bom conto estilo Pulp Fiction. Se eu estiver errado, peço desculpas. (R20) O leitor começa enunciando valorativamente a revista, utilizando o recurso da adjetivação. Na figura 7, encontramos a fotografia veiculada na capa da revista, com a surfista Andréa Lopes, segurando uma prancha, publicada na edição de janeiro de 2007, que, segundo o leitor, “ficou ruim”. A partir da análise de R 20, verificamos que, com o recurso da conjunção “mas” e do verbo “compensar”, o enunciado produz efeitos de sentido de uma discursividade que valoriza mais o “conteúdo” da revista, que aparece no sentido de repleto de conhecimento, como erudição, instrução ou saber, contrapondo-se a uma possível superficialidade disseminada pelas fotografias que exploram o nu feminino. O discurso do leitor remete a uma memória discursiva que veicula a ideia de que as fotografias de mulheres nuas são consideradas superficiais e, por isso, não devem ser levadas a sério e também retoma uma discursividade, recorrente nos enunciados dos leitores, que entende a revista como um veículo de comunicação sério. O enunciado do leitor inscreve-se numa formação discursiva do homem contemporâneo à medida que valoriza o conhecimento enquanto erudição, conferindo status social e poder àquele que o detém. No entanto, seu discurso é perpassado por conceitos do homem machista e tradicionalista, revelando as marcas de uma ruptura ideológica em sua discursividade. Ao analisarmos o restante do enunciado, encontramos estabelecido um outro lugar de dizer tomado pelo leitor, por meio do uso das anáforas pronominais demonstrativas “aquele” e “aquilo”. Quando diz: “aquele depoimento da repórter que botou as aranhas para brigar pela primeira vez”, ele retoma a matéria jornalística “A primeira noite de uma mulher”, escrita por Louise Sottomaior, publicada na edição de janeiro de 2007, nas páginas 77, 78 e 79, que contém o relato da primeira experiência homossexual da jornalista. No texto, ela conta detalhadamente como foi a primeira vez que se relacionou sexualmente com outra mulher. A expressão “botou as aranhas para brigar” revela um processo de interdição, uma vez que o leitor refere-se especificamente à prática sexual ocorrida entre as mulheres, conforme relato da repórter. 222 | P á g i n a Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano (Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no10 O discurso do leitor apresenta pontos de resistência à discursividade do homem contemporâneo, à medida que contesta as relações sexuais entre pessoas do mesmo sexo, mostrando marcas de um discurso tradicionalista que concebe os papéis sociais do homem e da mulher, inclusive sexualmente, como determinados, ou seja, na concepção tradicionalista, o corpo biológico tem suas funções previamente determinadas. Quando ele diz que “a moça está tirando onda”, o recurso metafórico e irônico estabelece uma relação de semelhança com outra expressão, a de que a moça está “brincando” com o leitor ou que não está contando sua história com seriedade e os efeitos discursivos que encontramos são de objeção à prática relatada pela repórter. No estudo da materialidade discursiva, a análise do emprego da anáfora pronominal demonstrativa “aquilo”, também, revela que o discurso do leitor apresenta resistências ao discurso contemporâneo, que a revista veicula com a publicação do texto jornalístico sobre a prática homossexual. O pronome demonstrativo “aquilo” está fora de sua função dêitica ou anafórica, quando analisamos discursivamente os sentidos que emergem. Seu discurso incorpora vozes que interpretam a prática da homossexualidade como pervertida e indecorosa e que, por isso, não pode ser levada a sério. Sabemos que uma referenciação é bem sucedida quando o interlocutor consegue identificar o referente do discurso à medida que essa operação lhe é solicitada. Mostramos aqui que a acessibilidade a pessoas, objetos e abstrações, que é agenciada pela memória coletiva, instaura os objetos de discurso. Isso mobiliza estratégias discursivas que constroem efeitos de verdade (GUERRA, 2008), constituindo-se no momento da enunciação, do acontecimento discursivo, de modo que a linguagem irônica, metafórica não cria o discurso midiático, mas o constitui de uma determinada forma e num arranjo específico. O jogo de linguagem denuncia o uso não ordinário de determinadas expressões, denuncia o momento em que a teoria retira uma expressão de seu contexto, desloca seu significado e a re-insere nos contextos linguísticos produzindo sentidos truncados. Verificamos que a prática enunciativa não é exclusivamente linguística, pois lida com o discurso, a exterioridade do discurso não é a exterioridade do jogo, mas a exterioridade que indica que não existem discursos que sejam desconectados de outros discursos em teias complicadas de serem remontadas, ainda que possam ser refeitas parcialmente, por meio de determinadas opções feitas no arquivo. Para Foucault (2004), os fenômenos não se originam em algum lugar que seria como o lugar próprio da sua verdade e nem são reflexos dos atos de um único sujeito. O tempo é uma sucessão de descontinuidades, e é essa fragmentação da temporalidade da história que nos permite perceber a finitude do homem. Assim, o homem só existe por intermédio da história e o sujeito é um acontecimento histórico que obedece à lei do acaso, é apenas uma posição ocupada por quem enuncia algo em determinado lugar, sendo assim, ele é suscetível às transformações discursivas que possibilitam novas regras de enunciação. E tais transformações não dependem exclusivamente de um único sujeito. Embora os Estudos Culturais tenham mostrado que a fragmentação da identidade é uma realidade, que aquilo que constitui o sujeito contemporâneo é o descentramento e a fragmentação do eu, a mídia, a serviço de determinadas instituições que detêm o saber e o poder, se vale de um discurso que procura produzir um efeito de sentido de unidade sobre as identidades. Esse discurso tende tanto a apagar a fragmentação quanto a fixar um sentimento de unidade. Atendendo aos interesses econômicos da Revista Playboy, essas práticas parecem promover um movimento na contramão do que analisam os estudiosos já citados, pois necessitam de um sujeito possuidor não de várias identidades, mas de um núcleo unificado e estável. É somente sobre um sujeito assim constituído que se pode exercer o poder de induzir ao desejo de uma identidade, aquela eleita como única possível de circular na mídia. 223 | P á g i n a Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano (Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no10 Palavras finais O foco analítico deste trabalho teve como meta o estudo dos aspectos do discurso do homem, em busca das formas de representação masculina na mídia impressa. Verificamos que a construção de uma identidade masculina destaca a sexualidade, o que significa que ser homem é ser essencialmente sexual – ou parecer ser essencialmente sexual –, desfrutando de sua sexualidade, manifestando-a, alardeando-a, sentindo-se orgulhoso dela e fazendo que fique em evidência. Em um modelo em que a masculinidade se constrói por oposição à feminilidade, a masculinidade está ligada à sexualidade. Em seu discurso, o homem, leitor da revista Playboy, se aproveita de um mecanismo de poder instituído pela sociedade, o da sexualidade, para expor um discurso erótico, que aparece na ordem do discurso machista. Assim, falar sobre o corpo é tomado como um elemento instigador, que reflete sua necessidade de perpetuar a condição de dominação que sempre esteve atrelada à sua condição social. Os estudos sobre gênero – masculino e feminino – têm contribuído para a compreensão do ser humano e do mundo, uma vez que os valores e a ideologia das sociedades ocidentais materializam-se no discurso sexista divulgado pela mídia impressa da revista Playboy. É fundamental, para compreender o homem contemporâneo, acompanhá-lo nos espaços que frequenta. No cotidiano, os gestos, as palavras simples e os detalhes adquirem grande importância, expõem seu íntimo, seus desejos, sua face oculta – ou ocultada – aos olhos mais apressados. Respondendo às questões formuladas na introdução, afirmamos que a divisão de papéis sociais entre os gêneros ainda hoje é bastante acentuada. E, com relação à construção da identidade do sujeito, é claro que, para as camadas da sociedade que leem os textos midiáticos, as representações de gênero são fortemente sugeridas, ditando normas de comportamento “adequadas” aos homens atuais. O estudo da sexualidade constitui-se num campo privilegiado para a análise do social e do cultural, um microcosmo em que se atualizam identidades de gênero, pertencimentos de classe e trajetórias sociais. É, assim, uma forma de pensar e sentir, que se caracteriza por ter uma existência que está para além das consciências individuais; é um domínio da vida social em que o indivíduo é levado a agir de acordo com um conjunto de disposições previamente estabelecido e fundado nas representações sociais. As relações afetivas e sexuais dos homens são estruturadas e atualizadas por um sistema de significados, dado pela cultura, e, portanto, determinadas por padrões de gênero, diferenças de ordem sócio-econômica. É notório que quando homens e mulheres falam de sexo, não estão falando de sexo no mesmo sentido nem da mesma maneira. Enquanto os discursos femininos se centram na contextualização afetivo-romântica das suas relações, os discursos masculinos enfocam a capacidade técnica-corporal para o desempenho do ato sexual. No caso dos homens, a sexualidade aparece despida de expectativas românticas; a sexualidade masculina pertence ao domínio do corpo ou figura na representada subalternidade dos sentimentos aos desígnios e pulsões corporais – do sexo. O corpo masculino age de acordo com aquilo que é percebido como socialmente legítimo e constitutivo da própria identidade masculina. Exemplificando: enquanto o discurso feminino enfatiza a descrição do contexto afetivo, em que se dá a relação sexual, falando do relacionamento, do namoro, do afeto e do parceiro, o discurso masculino, por sua vez, entra em minúcias do ato. Isso porque, para os homens, o conhecimento acerca do que fazer com o corpo, no ato sexual, constitui um conhecimento técnico a ser adquirido. A partir dessas particularidades na forma de tratar o sexo, a concepção que está na base dessa construção relacional das práticas e identidades masculina e feminina é a de que os homens e as mulheres são, no fundo, de naturezas diferentes, isto é, trata-se de uma distinção 224 | P á g i n a Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano (Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no10 em termos de essência. Enquanto a força das mulheres está no plano moral, a força masculina reside na disposição sexual. Afirmamos aqui que a linguagem como discurso ou prática social e cultural constitui as identidades sociais: as identidades são construídas em processos linguísticos, culturais e sociais de natureza ideológica. Identidade, portanto, é uma questão discursiva. Ou seja, diferentemente do que o senso comum costuma acreditar, a identidade social não é algo dado, algo peculiar a um indivíduo ou grupo porque ele é naturalmente como é. Ao contrário, as construções de identidade são sempre realizadas como um trabalho simbólico dos indivíduos em sua cultura e com a sua cultura. Não existe uma relação direta entre atribuições de identidade e o mundo “real”. Entre um e outro existe uma mediação, constituída pelos processos de apreensão e elaboração simbólica, que inclui, em especial, estratégias de mediação linguístico-discursivas. Assim, as identidades sociais construídas pela mídia impressa assumem uma grande importância, pois condicionam e marcam o modo como os membros de uma determinada sociedade categorizam os sujeitos e como a sociedade em si é reproduzida ou modificada. As identidades construídas pela mídia permitem entrever fenômenos da subjetividade, resultantes de um empreendimento enunciativo no qual o sujeito exerce uma ação com e sobre a linguagem. Conferindo importância fulcral aos estudos de Michel Foucault, homologamos aqui que a construção discursiva da identidade gerou efeitos de verdade no discurso midiático analisado. A obra do pensador francês muito acresceu aos estudos discursivos e culturais nas últimas décadas, sendo possível afirmar que as contribuições do historiador do presente são de extrema relevância para pensarmos a instituição midiática, as relações de poder e a construção de efeitos de verdade nos mass media da contemporaneidade. Por fim, adotar uma abordagem teórico-metodológica que pressupõe a produção discursiva da cultura e de seus sujeitos implica a afirmação da existência material de pessoas, coisas e eventos. Implica sustentar que tais coisas só significam e se tornam verdadeiras dentro, ou pela articulação, de determinados discursos enraizados em contextos particulares e localizados. Nesse sentido, argumenta-se, então, que é o discurso, e não um indivíduo (leitor), ou uma instituição social isolada (mídia impressa) que o enuncia ou veicula, que produz aquilo que re-conhecemos, por exemplo, como modos adequados de viver o gênero e a sexualidade, em um dado momento e contexto. Indivíduos e instituições, sempre já sujeitos de determinados discursos, podem estar produzindo “textos particulares”, mas estão operando dentro dos regimes de verdade de uma época e cultura específicas, que tornam esses textos possíveis e necessários. Referências ALMEIDA, Ricardo Luiz Teixeira de. Mulheres de Antenas: Fotografia, legenda e projeção de identidades no jornalismo desportivo. In Cadernos de Semiótica Aplicada. Vol. 4 nº2. Araraquara: UNESP, 2006. 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Guavira no10 MILTON NASCIMENTO: UMA QUESTÃO DE GÊNERO COM CRIANÇAS NA ESCOLA Túlio Alberto Martins de Figueiredo (UFES/UNR-Arg)78 Alberto Carlos de Souza (UNR-Arg)79 Mary Del Priore (UNIVERSO)80 RESUMO: Oficina de gênero realizada com 27 crianças de 11 anos de idade, estudantes de uma escola pública municipal de Vitória – ES, e que teve como propósito celebrar o Dia Internacional da Mulher, em 8 de março. Toda a produção estética dessa oficina girou em torno da música “Maria, Maria”, de autoria de Milton Nascimento e Fernando Brant (1978) e constou de canto coral e elaboração de pictografias femininas (desenho com massa de modelar), a partir da questão norteadora: “Quem é essa mulher, de quem tanto fala a música?” Maria foi representada pelas crianças principalmente como figura parental (mãe, avó), trabalhadora (cantora, feirante, lavadeira e professora) ou ente religioso (santa). A oficina culminou com a apresentação de toda a produção estética (canto coral e projeção de imagens) para as mães daquelas crianças. Palavras Chave: Milton Nascimento; Gênero; Música Popular Brasileira; Crianças; Arte. ABSTRACT: A Gender workshop accomplished with 27 children of 11 years old, students of a public school in Vitória - in the state of Espirito Santo, celebrated the International Women's Day, on March 8th. All the aesthetic production of the workshop was focused on the song "Maria, Maria", by Milton Nascimento and Fernando Brant (1978) which was presented by a coral and female pictures were made, all the discussion was based on the question: "Who is the woman which the song talks about?" Maria was mainly represented by the children as a family caracter, like (mother, grandmother), worker (singer, merchant, laundress and teacher) or religious being (saint). The workshop was ended with a presentation of all the aesthetic production (coral and the projection of images) for the children's mothers. Keywords: Milton Nascimento; Gender; Brazilian Popular Music, Children, Art. Introdução Este estudo vem relatar as representações sociais que um grupo de 27 crianças de onze anos de idade, estudantes do 5º Ano da Escola Municipal de Ensino Fundamental (EMEF) Prof. Vercenílio da Silva Pascoal, no Município de Vitória / ES -, têm sobre a mulher. Tal estudo constituiu-se como a primeira parte de um projeto que teve como motivação criar um espaço estético para comemorar, em nossa escola, o Dia Internacional da Mulher, cuja data é reconhecida pela Organização das Nações Unidas (ONU), desde 1975, como o dia 8 de março. 78 Docente do Programa de Posgrado da Universidad Nacional de Rosário (Argentina) e da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES), com doutorado em Saúde Pública pela Universidade de São Paulo. 79 Doutorando em Humanidades y Artes do Programa de Posgrado da Universidad Nacional de Rosário (Argentina) e Mestre em História do Brasil pela Universidade Salgado de Oliveira (UNIVERSO), campus de Niterói (RJ). 80 Docente do Programa de Mestrado em História da Universidade Salgado de Oliveira (UNIVERSO), campus de Niterói (RJ) e Membro do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB). Doutora em História Social pela Universidade de São Paulo com Pós-Doutorado na Ecole des Hautes Etudes en Sciences Sociales. 228 | P á g i n a Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano (Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no10 Esta data em que se comemora o Dia Internacional da Mulher foi marcada há 152 anos por uma tragédia: um incêndio no dia 8 de março de 1857, na cidade de Nova Iorque, que causou a morte de 130 manifestantes, dentre as centenas de mulheres trabalhadoras das fábricas de vestuários e têxteis. Essas mulheres, em greve, protestavam contra os baixos salários, as péssimas condições de trabalho e a jornada estafante de 12 horas diárias de trabalho (BRITO, 2003, p.1). Dessa forma, ocupando cada vez mais os lugares de trabalho, a mulher se vê mais obrigada a construir um equilíbrio entre o público e o privado. Assim posto, Del Priore (2000) observa que, [...] são inúmeras as dificuldades e os sacrifícios da mulher quando ela quer conciliar seus papéis familiares e profissionais. Ela é obrigada a utilizar estratégias complicadas para dar conta do que os sociólogos chamam de “dobradinha infernal”. A carga mental em que se constituem as imbricações e sucessões de atividades profissionais, o trabalho doméstico e a educação dos filhos são mais pesados para ela do que o do homem. (...) muitas mulheres, menos afortunadas, são assim empurradas para uma pesadíssima jornada de trabalho ( DEL PRIORE, 2000, p. 12- 13). Sobre este relato, especificamente, tratou-se de um projeto implementado à luz dos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) – um documento editado pelo Ministério da Educação e que oferece as balizas para se construir uma referência curricular nacional para o ensino fundamental. Dentre as suas muitas recomendações estes parâmetros recomendam aos educadores que, [...] as crianças e os jovens deste país desenvolvam suas diferentes capacidades, enfatizando que a apropriação dos conhecimentos socialmente elaborados é a base para a construção da cidadania e da sua identidade, e que todos são capazes de aprender e mostrar que a escola deve proporcionar ambientes de construção dos seus conhecimentos e de desenvolvimento de suas Inteligências com suas múltiplas competências (BRASIL, 1998, p. 10-11). Tais PCN prescrevem também que os temas sociais urgentes – chamados Temas Transversais -, devam ser desenvolvidos de maneira interdisciplinar no ensino fundamental (BRASIL, 1998). De acordo com os referidos PCN, é necessário que os docentes atuem com a diversidade existente entre os alunos e que com os seus conhecimentos prévios sirvam como fonte de aprendizagem de convívio social e não apenas como um meio de aprendizagem de conteúdos específicos (BRASIL, 1998). Entendermos que as questões afeitas às relações de gênero – aqui incluídas a mulher e a sua relação com o trabalho -, constituem um tema social urgente. Como forma de celebrar o Dia Internacional da Mulher na escola, propusemos este projeto interdisciplinar de protagonismo das crianças, deixando emergir suas representações sobre a mulher. Conforme observam Schiele e Boucher (2001), as representações são construções simbólicas que norteiam as atividades. Tais representações são elaboradas coletiva e socialmente pelos atores sociais e servem para os mesmos nomearem, apreenderem e transformarem o seu meio ambiente. Essas representações circulam e transformam-se principalmente por meio das relações de comunicação desenvolvidas entre os atores sociais. Como podemos observar, nas décadas posteriores constituíram um palco de luta pela obrigatoriedade de direitos, e os mesmos, de idéias configuradas, provocando a repensar uma formação de relações sociais. Estou de acordo com Pinto e Sarmento (1999) que resguardam, 229 | P á g i n a Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano (Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no10 “ (...) a realidade social não se transforma por efeito direto de normas jurídicas, tampouco pela emergência de outros olhares e concepções da sociedade e dos sujeitos” (PINTO; SARMENTO, 1999, p. 14). Assim posto, Bakhtin (1988) observa que, [...] a consciência individual não só nada pode explicar, mas, ao contrário, deve ela própria ser explicada a partir do meio ideológico e social [...] a consciência adquire forma e existência nos signos criados por um grupo organizado no curso de suas relações sociais (BAKHTIN, 1988, p. 35). Sobre essas representações, a que nosso sistema perceptivo, cognitivo, pode ser colocado. Bower (1977) entende que, [...] No mundo feito por mãos humanas em que vivemos, a percepção das representações é tão importante como a percepção dos objetos reais. Por representação eu quero dizer um conjunto de estímulos feitos pelos homens, que têm a finalidade de servir como um substituto a um sinal ou som que não pode correr naturalmente. Algumas representações funcionam como substitutos de estímulos; elas produzem a mesma experiência que o mundo natural produziria (BOWER, 1977, p. 58). Sobre as representações sociais - uma forma de conhecimento prático que se insere muito bem entre as correntes que estudam o senso comum -, Moscovici (1978, p. 26) as definem como “uma modalidade de conhecimento particular que tem por função a elaboração de comportamentos e a comunicação entre os indivíduos”, visto que constituem “um corpus organizado de conhecimentos e uma das atividades psíquicas graças às quais os homens tornam inteligível a realidade física e social, inserem-se num grupo ou numa ligação cotidiana de trocas, liberando os poderes de sua imaginação” (MOSCOVICI, 1978, p. 28). Na elaboração do referido projeto, o nosso propósito foi o de deixar emergir as representações que as crianças – enquanto atores sociais cheios de conhecimentos prévios -, tinham sobre as mulheres. Para tal nos apropriamos da música “Maria, Maria”, de autoria de Nascimento e Brant (1978), como ponto de partida da nossa intervenção, por entendermos que esta letra é um hino de amor às mulheres (in)comuns brasileiras, que, assim como aquelas trabalhadoras norte-americanas de 1857, ainda lutam por fazer valer os seus direitos e participam da construção do nosso cotidiano social. Apoiados pela musicalidade da interpretação de “Maria, Maria”, na voz de Milton Nascimento, buscamos através do desenvolvimento da tensão psíquica das crianças, dar visibilidade às representações que as mesmas têm sobre a mulher. Utilizamos para tal a linguagem estética, compreendida pela sua dimensão plástica e musical. Sobre o conceito de tensão psíquica, tão essencial ao processo de criação, Ostrower (1987) observa que, [...] Criar não representa um relaxamento ou um esvaziamento pessoal, nem uma substituição imaginativa da realidade; criar representa uma intensificação do viver, um vivenciar-se no fazer; e, em vez de substituir a realidade, é a realidade; é uma realidade nova que adquire dimensões novas pelo fato de nos articularmos, em nós e perante nós mesmos, em níveis de consciência mais elevados e mais complexos. Somos, nós, a realidade nova. Daí o sentimento do essencial e necessário no criar, o sentimento de um crescimento interior, em que nos ampliamos em nossa abertura para a vida (OSTROWER, 1987, p. 27-28). 230 | P á g i n a Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano (Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no10 O ponto de partida do projeto foi o alcance do seguinte objetivo: conhecer as representações sociais que crianças têm sobre as mulheres, tendo como referência a música “Maria, Maria”, de Milton Nascimento e Fernando Brant. Metodologia Tratou-se de uma experimentação estética de caráter plástico, teatral e musical, enquanto intervenção de ensino-aprendizagem interdisciplinar (Arte – Educação Física), em uma escola de ensino fundamental de Vitória. A intervenção teve como cenário a Escola Municipal de Ensino Fundamental (EMEF) Prof. Vercenílio da Silva Pascoal, da Rede Municipal de Educação de Vitória / ES. O universo desta intervenção foi constituído pelos 27 estudantes da turma única do 5º ano do Ensino Fundamental da referida escola. Sob o ponto estratégico que aguça esse trabalho, a pesquisa pode ser tanto descritiva, quanto experimental. Suas diferenças fundamentais podem ser evidenciadas, pelo fato que a descritiva, o pesquisador procura conhecer e interpretar a realidade, sem na mesma, interferir para modificá-la. Enquanto na experimental, o pesquisador interfere deliberadamente em alguns aspectos da realidade, a fim de estudar seus efeitos. Essa forma se denomina experimento: pois, não existe pesquisa experimental sem experimento. Para tornar real uma pesquisa tanto descritiva ou experimental é necessário trabalhar com variáveis. Assim posto, Rudio (1986) entende que: “[...] Este termo- “variáveis”constantemente usado na ciência, tem sua origem no campo da matemática, onde serve para designar uma quantidade que pode tornar diversos valores, geralmente considerados em relação a outros valores” (RUDIO, 1986, p.69). O trabalho foi realizado através de atividades de laboratório e constou dos seguintes momentos: 1º) Leitura compreensiva da letra “Maria, Maria”, composta por Nascimento e Brant (1978); buscando esclarecer termos ou expressões desconhecidas pelas crianças; Maria, Maria É um dom, uma certa magia Uma força que nos alerta Uma mulher que merece Viver e amar Como outra qualquer Do planeta Maria, Maria É o som, é a cor, é o suor É a dose mais forte e lenta De uma gente que rí Quando deve chorar E não vive, apenas aguenta Mas é preciso ter força É preciso ter raça É preciso ter gana sempre Quem traz no corpo a marca Maria, Maria Mistura a dor e a alegria Mas é preciso ter manha É preciso ter graça 231 | P á g i n a Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano (Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no10 É preciso ter sonho sempre Quem traz na pele essa marca Possui a estranha mania De ter fé na vida.... Mas é preciso ter força É preciso ter raça É preciso ter gana sempre Quem traz no corpo a marca Maria, Maria Mistura a dor e a alegria... Mas é preciso ter manha É preciso ter graça É preciso ter sonho sempre Quem traz na pele essa marca Possui a estranha mania De ter fé na vida.... Ah! Hei! Ah! Hei! Ah! Hei! Ah! Hei! Ah! Hei! Ah! Hei!! Lá Lá Lá Lerererê Lerererê Lá Lá Lá Lerererê Lerererê Hei! Hei! Hei! Hei! Ah! Hei! Ah! Hei! Ah! Hei! Ah! Hei! Ah! Hei! Ah! Hei! Lá Lá Lá Lerererê Lerererê! Lá Lá Lá Lerererê Lerererê!... Mas é preciso ter força É preciso ter raça É preciso ter gana sempre Quem traz no corpo a marca Maria, Maria Mistura a dor e a alegria... Mas é preciso ter manha É preciso ter graça É preciso ter sonho, sempre Quem traz na pele essa marca Possui a estranha mania De ter fé na vida Ah! Hei! Ah! Hei! Ah! Hei! Ah! Hei! Ah! Hei! Ah! Hei!! Lá Lá Lá Lerererê Lerererê Lá Lá Lá Lerererê Lerererê Hei! Hei! Hei! Hei! Ah! Hei! Ah! Hei! Ah! Hei! Ah! Hei! Ah! Hei! Ah! Hei! Lá Lá Lá Lerererê Lerererê! Lá Lá Lá Lerererê Lerererê!... 2º) Audição silenciosa da música; 3º) Memorização da letra da música, através da escuta e canto simultâneo e, 4º) Representação da mulher, através da técnica de desenho com massa de modelar, a partir da seguinte questão norteadora: “Quem é essa mulher, de quem tanto fala a música?” 232 | P á g i n a Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano (Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no10 O trabalho foi implementado em uma oficina de arte na referida escola, utilizando-se como estratégia de ensino/aprendizagem a leitura, a audição, a memorização - da letra da música -, e a representação pictórica individual que os estudantes têm sobre a mulher - Maria, de que tanto fala a música. Na criação das pictografias adotamos a orientação de Klepsch e Logie (1984), que recomendam o processo de livre criação, pressupondo, pois, um mínimo de interferência do adulto sobre o processo de criação estética da criança. A análise de conteúdo (BARDIN, 2000) norteou o processo de categorização do material produzido pelos alunos. Para a elaboração do relatório desta experimentação estética tomamos como suporte a Análise de Conteúdo, entendida como, [...] um conjunto de técnicas de análise das comunicações visando obter, por procedimentos sistemáticos e objetivos de descrição de conteúdo das mensagens, indicadores (quantitativos ou não) que permitam interferência de conhecimentos relativos às condições de produção/ recepção (variáveis inferidas) dessas mensagens (BARDIN, 2000, p. 42). Maria, Marias... Nem todos os fenômenos sociais são formadores de Representações Sociais. Uma Representação Social surge onde houver perigo para uma identidade coletiva e traduz a relação de um grupo com um objeto socialmente valorizado. Assim, toda Representação Social é a representação de algo e/ou de alguém por alguém. Nossa opção por esse quadro teórico ficou assim justificada: a representação de alguém – a mulher –, por um grupo de crianças. Mas afinal, quem são essas crianças? São, conforme nos apresenta Del Priore (2006), crianças brasileiras como aquelas que estão em toda parte, com destinos variados e variados rostos: rostinhos mulatos, brancos, negros e mestiços. Algumas amadas e outras simplesmente usadas. A partir das cenas de produção estética elaboradas por aquelas crianças, através da técnica de desenho com massa de modelar em papel branco, construímos cinco categorias analíticas que nos deram conta de compreender que, para essas crianças, Maria faz-se representar, nesta ordem, principalmente como: 1) figura parental (mãe = 6 referências, avó = 3 referências); 2) trabalhadora (cantora = 2 referências, feirante = 3 referências, lavadeira = 3 referências e professora = 1 referência); 3) ente religioso (santa = 5 referências); 4) personagem (mutante de uma novela = 3 referências) e, por fim, 5) simplesmente como persona (mulher feliz = 1 referência). Podemos evidenciar que neste estudo, as representações de Maria como figura parental – mãe ou avó -, ou como trabalhadora, são as que mais se sobressaem, denotando a importância da família e do trabalho feminino na vida dessas crianças. Sobre a família, D’Inácio (2004) observa que foi a partir do século XIX, época marcada pelo início da urbanização brasileira, que a mulher ressignifica, pela primeira vez em nosso contexto histórico, o seu lugar nas relações da chamada família burguesa, fortemente valorizada pelos sentimentos de intimidade e maternidade. Dessa forma, a mulher passa a fazer parte de um sólido ambiente familiar, o lar acolhedor, tendo como função o cuidar dos “filhos educados e (ser) esposa dedicada ao marido, às crianças e desobrigadas de qualquer trabalho produtivo, representavam o ideal de retidão e probidade, um tesouro social imprescindível” (D’INACIO, 2004, p. 223). 233 | P á g i n a Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano (Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no10 Tal concepção de sociedade, reservando “ao homem, o universo do público, o trabalho remunerado, o papel de provedor econômico da família, a racionalidade, a fibra” (SOUZA, 1997, p. 182) e “à mulher, o universo do privado, o trabalho não remunerado do lar, o cuidado com os filhos, a sensibilidade, a fragilidade” (Op. Cit., p. 182) foi algo que perdurou ao longo dos séculos. Trata-se, no entanto, de uma visão burguesa da sociedade brasileira, pois nas camadas de baixo poder aquisitivo as mulheres, em todos os tempos sempre estiveram inseridas no mercado de trabalho. No presente estudo, as crianças referem Maria como uma trabalhadora – geralmente inserida em ocupações pertencentes ao setor de serviços: Maria é feirante, ou lavadeira, ou professora ou cantora. Em relação à inserção da mulher de classes menos favorecidas no trabalho, temos de considerar que historicamente as mesmas sempre foram pressionadas a obter remuneração “(...) As empregadas domesticas (...) existem desde o fim da escravatura. No campo, as mulheres sempre estiveram presentes na lavoura, basta ver qualquer ilustração de colheitas de café ou cana de açúcar para constatá-lo...” (SOUZA, 1997, p. 182). A finalização do projeto se deu através de um encontro de socialização do mesmo com as mães das crianças: as crianças receberam suas mães cantando em coro a canção “Maria, Maria”. Simultaneamente, as representações elaboradas foram apresentadas em uma tela. Considerações Finais O ponto de partida desta intervenção consistiu na exploração da musicalidade de Milton Nascimento, protagonista do “movimento” Clube da Esquina, que floresceu em Minas Gerais, a partir da década de 60, no auge de um dos períodos mais críticos da história contemporânea brasileira: a ditadura militar (BORGES, 1996). Dentre o seu conjunto da obra, nossa opção se deu pela música Maria, Maria. As representações sociais da mulher, aqui apresentadas, são entidades quase tangíveis que “circulam, cruzam-se e se cristalizam incessantemente através de uma fala, um gesto, um encontro” (MOSCOVICI, 1978, p. 41), no universo cotidiano dessas crianças. A partir de sua vivencia e de sua cultura local, as mesmas, foram convidadas a criarem suas representações sobre a mulher - Maria-, com imaginassem, procedendo, a seguir o desenho como massinha de modelar. Compareceram 27 pictografias que foram elaboradas pelos alunos. Por meio desses desenhos, o estudo evidenciou que, para essas crianças, Maria se faz representar como aquela mulher comum, representada por Milton Nascimento, em sua infância de menino negro, filho adotivo, criança traquina, tão igual a muitas das crianças que frequentam as nossas escolas de periferia: Maria é mãe, ou avó, ou trabalhadora, ou santa, ou – simplesmente -, uma mulher que é feliz! Referências BARDIN, L. Análise de conteúdo. Lisboa: Edições 70, 2000. BAKHTIN, M. Marxismo e filosofia da linguagem. 4. ed. Trad. Michel Lahud e Yara Frateschi Vieira. São Paulo: Hucitec, 1988. 234 | P á g i n a Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano (Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no10 BORGES, M. Os sonhos não envelhecem: histórias do Clube da Esquina. São Paulo: Geração Editorial, 1996. BRASIL. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros curriculares nacionais: terceiro e quarto ciclos do ensino fundamental: introdução aos parâmetros curriculares nacionais / Secretaria de Educação Fundamental. Brasília: MEC/SEF, 1998. BRITO, M. Dia Internacional da Mulher – história. In: Femenina comemora o dia da mulher na Fafi. Disponível em: www.vitoria.es.gov.br/secretarias/cultura/femenina2003.htm. Acesso em 8 fev. 2009. BOWER, T. The perceptual world of the child. Londres: Fontana, 1977. DEL PRIORE, M. 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Trata-se de escritor regionalista cujo nome e obra mostram-se de significativa produtividade para os Estudos Culturais e para a região da fronteira Brasil-Paraguai. Originariamente, essas reflexões são, ainda, resultados do nosso projeto de pesquisa institucional, intitulado “Regionalismos culturais: trocas e relações entre literaturas de fronteira”, em desenvolvimento, e fazem parte do livro Fronteiras do local: roteiro para uma leitura crítica do regional sul-mato-grossense (2008), de nossa autoria. Sob esta perspectiva, nossa reflexão volta-se para a revisão do Regionalismo como renovada categoria trans-histórica, cujo conceito operatório tornase validado, em sua análise, para explicar os atuais transladamentos culturais e ao que o discurso crítico latinoamericano denomina “transculturação narrativa”. Palavras-chave: Regionalismo; Hélio Serejo; Fronteira Brasil-Paraguai; Região sul-mato-grossense. ABSTRACT: This essay aims to publish a research concerning the work of Hélio Serejo, a regional writer from Mato Grosso do Sul. It refers of the works of a regionalist writer whose name and work are shown to present a significant productivity for the Cultural Studies and to the frontier of Brasil-Paraguai’s region. Originally, these reflections are, also, results of our Project of Institutional Research entitled “Cultural Regionalisms: changes and relations between the frontier literatures” (in development) and make part of the book Local Frontiers: itinerary to a critical reading of the sul-mato-grossense’s regional (2008), of our authorship. Under this perspective, our reflection goes back to the revision of the Regionalism as a renewed trans-historical category, whose operative concept is validated, in this analysis, to explain the current cultural translations and what Latin-American critical speech denominates “narrative transculturation.” Keywords: Regionalism; Hélio Serejo; Brasil-Paraguai’s frontier; Sul-mato-grossense’s region. Hélio Serejo – nenhuma dúvida – é o florão do regionalismo e do folclore do Estado de Mato Grosso do Sul. Ninguém o iguala nestes dois campos. É o “rei” que reina esplendorosamente e... gigantemente. (Elpídio Reis - Os 13 pontos de Hélio Serejo, 1980, p. 17). Na fronteira “sulestemagrossense” Iniciemos este artigo, que visa à abordagem do regionalismo na literatura hoje, com duas citações. A primeira sobre a obra de Hélio Serejo, o nosso regionalista sul-matogrossense, da fronteira Brasil–Paraguai, e a segunda sobre a do conhecido escritor baiano Jorge Amado, procurando extrair de ambas as citações o que elas põem em pauta, explicitamente ou como dado sugerido ao leitor arguto, e sobretudo no que as duas implicam 81 Doutor em Literatura Comparada, Pesquisador do CNPq, Professor de Teoria da Literatura e Literatura Comparada nos cursos de Graduação e Pós-Graduação da Universidade Federal da Grande Dourados. Autor de Nas malhas da rede: uma leitura crítico-comparativa de Julio Cortázar e Virginia Woolf (Editora UFMS, 1998); O outdoor Invisível: Crítica reunida (Editora UFMS, 2006) e de Fronteiras do Local: Roteiro para uma leitura crítica do regional sul-mato-grossense (Editora UFMS, 2008), entre outros. Membro do NECC (Núcleo de Estudos Culturais Comparados) na UFMS. 236 | P á g i n a Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano (Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no10 valoração da poética diferenciadores: de dois escritores situados num tempo-espaço relativamente Já comparado a Jorge Amado para as letras nacionais, é Lenine Póvoas, o historiador e crítico literário, quem destaca, em Hélio Serejo, o autor de temas regionais, “mais importante do que Jorge Amado, porque escreve sobre uma das regiões sociologicamente mais importantes do país: a do ‘Melting-pot’ da fronteira BrasilParaguai.” (Lins, Apud Silva; Santos, 2009, p.6). (grifo nosso). Aí justamente Jorge Amado revelou-se mestre incomparável. [...] essa extraordinária capacidade de renovação [...] se exerceu sempre sobre a sua base regional, o recôncavo baiano, [...]. Residia no acervo lendário e folclórico (às vezes sociológico) da região que o escritor ofereceu à literatura, fosse o naturalismo de Jubiabá ou a prodigiosa invenção de Gabriela. Por isso mesmo, Jorge Amado constitui o caso limite do regionalismo brasileiro. (CHAVES, 2006, p. 38). A primeira citação serve ao propósito tanto de Lenine Póvoas como meu, ao discorrer sobre o assunto, que é o de constituir um espaço e universo de discurso que, sem rivalizar com outras regiões e regionalismos, possa caracterizar um entorno comum ou locus de enunciação, a partir do qual a região “sulestemagrossense”, fronteira Brasil-Paraguai, seja fruto constitutivo de uma voz e dicção própria e, grosso modo, integrada as demais regiões e países do Cone-Sul. Sob esta perspectiva, daremos ênfase à ampla e copiosa, porem pouco conhecida e abordada, prosa regionalista de Hélio Serejo, elegendo-o, a despeito de tantos outros escritores sul-mato-grossenses, como, por exemplo, Manoel de Barros. Neste caso, a justificativa da seleção torna-se a própria “justificativa”, uma vez que tanto Manoel de Barros como Jorge Amado dispensariam, no panorama da literatura brasileira contemporânea, maiores apresentações. A língua crioja ou crioulismo de Hélio Serejo Hoje não mais lamentamos o fato de as obras de Hélio Serejo e sua vasta produção, que se achava dispersa em sessenta volumes e praticamente desconhecida dos pesquisadores, pois que toda sua produção literária foi recém-reunida e publicada, pelo Instituto Histórico e Geográfico do Mato Grosso do Sul, em edição especial, organizada por Hildebrando Campestrini: Obras completas de Hélio Serejo, em 9 (nove) volumes, num total de 2.800 páginas, incluindo todos os livros publicados pelo autor, em sistematização e revisão final do próprio Campestrini (Cf. SEREJO, 2008). Considerado o “nosso Catulo, o das paixões sul-mato-grossenses”, Hélio Serejo dedicou inumeráveis páginas à sua cidade de Ponta Porã/MS, fronteira seca com Pedro Juan Caballero/PY. Nascido em 1º de junho de 1912, na Fazenda São João, no Município de Nioaque, Hélio Serejo faleceu no dia 08 de outubro de 2007, em Campo Grande, aos 95 anos de idade. Cidade predestinada a sua, pois, segundo o abalizado escritor Elpidio Reis, se houvesse um concurso “para saber-se qual a cidade do mundo que mais livros tem sobre si 237 | P á g i n a Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano (Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no10 escritos, Ponta Porã – com as obras de Hélio Serejo – ganharia de corpo inteiro!” (LINS, 1996, p. 79). Não era sem tempo a atenção que sua vasta produção reclama: se em cada uma das regiões do Brasil encontra-se um relato constitutivo da região, aqui deparamos com a formidável narração de um escritor antes de tudo conhecedor dos mais variados estratos da gente, da formação étnica e do povoamento da região sul-mato-grossense. Em tudo e por tudo, a extensa obra de Helio Serejo – cujas composições literárias são lendas, contos, poesias, narrativas ervateiras e evocações de imagens do sertão –, é compêndio dos usos e costumes regionais e principalmente das tradições relacionadas com a atividade ervateira. É do próprio Hélio Serejo a caracterização mais adequada do locus de enunciação do que denominamos a sua variada produção de textos e o próprio lugar da cultura na qual se filiou, num emaranhamento resultante no contexto geral de sua prosa poética; em “Amor pelo crioulismo”, que abre o volume de Contos crioulos, lê-se no primeiro parágrafo: “Desde meninote fui assim: um enamorado, em grau muito elevado, das paisagens sertanejas, portanto, dos ‘mistérios’ das coisas charruas. Fui – sem nenhuma dúvida – um trilhador de caminhos, um observador incansável, um perguntador de muito fôlego.” Continua o narrador, falando da intensidade com que sorveu todos os momentos formadores de um “crioulismo embriagador”: Sorvi, com muita sofreguidão, o selvático, o descampado, os cômoros, os brejos infindáveis, as croas, o vargeado de moitas clorofiladas, os pára-tudos chamadores de raios, a solitária lagoa de água azulada, os trilheiros dos bichos-do mato, o vento sulino anunciando chuva, a sinfonia das taboas nos alagadiços, a algazarra ruidosa das ‘baitacas’ na roça de milho, as ‘canhadas’ onde as aves diversas buscam o farnel apetitoso, as árvores desgalhadas, no espigão de pouca sombra, o chirlar festivo da passarada, o urro da fera andeja que corta o despovoado sem rumo determinado, o barulho cantante da quebra d’água no coração das brenhas, e o luar que branqueja a vastidão. (SEREJO, 1998, p.35). Ademais, em toda a coletânea de Contos crioulos registram-se alusões e referências mil à virtude de permanecer entontecido com os amanheceres e a magia do sol-se-pondo. Também o relato “Das coisas crioulas” é emblemático, principalmente pela fixação do crioulismo e das experiências no mundo bruto da erva-mate, onde o crioulismo “impera, não só na vivência diuturna, mas também no falar, nas brejeiradas, nas manifestações de alegria, nas festanças e nas caminhadas exploradoras.”, pois que o crioulismo se manifesta em todo o labutar do ervateiro: O velho pilão, o catre mal trançado, o arreio cacareco, o gamelão, o maroto chapéu carandá, o poncho descolorido, soltando fiapos, a forma de rapadura, o ferro de brasa para passar roupa, a mariquinha, corote, o panelão de ferro desbeiçado, o porongo guardador de água, a caneca de latão, o resto de cobertor para se defender do frio, o sapatão de couro de anta e centenas de outros pertences são marcas indestrutíveis do crioulismo. (SEREJO, 1998, p.145). A presença do autor como narrador e/ou personagem é uma constante nos relatos de Hélio Serejo. Em muitos deles é a figura do próprio pai do escritor – o furador de sertão Don Chico Serejo –, que, em companhia do próprio Helio Serejo, tornam-se desbravadores e criadores dos “Ranchos”, espécie de parada, morada que abrigava o ervateiro, freqüentemente assentados em lugares tão ermos que eram batizados de “divisas com o inferno”, pois situados em região de dificílimo acesso onde a maleita não perdoava nenhum vivente. Atravessando as 238 | P á g i n a Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano (Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no10 lonjuras da linha fronteiriça e só conhecendo uma estrada boiadeira, por ali chegavam levas guaranis, paraguaios que sofriam, derramando o seu suor no mundo bruto e selvagem da ervamate, trazendo para os ervais da região sulina mato-grossense, muitas criaturas excêntricas, algumas de hábitos verdadeiramente anormais, e até denotadoras de demência – como relata em “Tipos excêntricos dos ervais”. Tipos pertencentes a um mundo de amarguras, misérias e desgraças, como a personagem Zico do conto homônimo, dono de uma filosofia crioula, que Serejo assim caracterizou: frangalho humano, açoitado rudemente pelo vento de todos os infortúnios, caladão e envelhecido, descrente e amargurado; e ainda como as personagens Palmira e seu filho, no relato de “O conto”, que tinham uma expressão de horror na face bexigosa e desenhados, nos próprios gestos vagos, o infortúnio e a dor. Tipos que concorrem e resultam da paisagem aberta, vazia e distante, formadora do variegado cipoal dos ervais; e de músicas que ressumam amores perdidos, desditas, abandono e infelicidade, num mundo sem fronteiras, sem lei nem rei, onde velhos peões e guapos borrachos trançam passos em falso sob o compasso de um porno-forró. Assim, a lida, a vida enfim, nos ervais, só era suportável para um peão do erval “guapo e calmo como o Janjão”, “se não era da erva, o que veio fazer ali?”. Num lance de olho se reconhecia o peão que não entendia nada de erval: “barbacuá, tirú, nangarekuara, topuitá, mbureo, caácaigue, mensu, guaino, capataz, rancho, sapêco e ataqueio.” (Op. cit., p. 81). Peão bom era o Janjão: “O que carregava no íntimo, dia e noite, era a sua vivência sertaneja: o cantar do galo, madrugadão, o aboio do gado, queimada de campo, leiteação, tropilha rumo à mangueira, carreta cortando o espigão, a passagem do ribeirão que a enxurrada esburacou e suas músicas tão do gosto dos moradores da região.” (Op. cit., p.56). A história da gente mato-grossense adensa-se nesses “contos crioulos”, nascendo daí as lendas da erva-mate e do urutau, um fabuloso registro folclórico e de glossários, além da sua capacidade inventiva de recriação da linguagem: Dia e noite, noite e dia, eu me irrito e xingo, vendo esses pingos, pingo a pingo, caírem na calçada lamacenta. Pinga, pingando, vai o chuvisco pingando, tamborilando no zinco, parece até que dizendo: um pingo, outro pingo: um pingo, outro pingo. E nesse pingar, de pingos pingalhados, o homem pingando pensamento, embarafusta-se no tédio e, sem ser pinguço, pensa na pinga. Pinga esquenta, encoraja, e traz pingo a pingo, pingaços de lembranças ao coração! (Op. cit., p.31). Ainda, em tudo e por tudo a prosa regionalista de Helio Serejo pode-se traduzir naquele excerto do Discurso do escritor, quando de seu ingresso na Academia Sul-mato-grossense de Letras, que eu reproduzi durante a sessão de “Homenagem a Helio Serejo”, promovida pela Academia Douradense de Letras, no dia 10 de abril de 2005, e que vale transcrever: Eu sou o homem desajeitado e de gestos xucros que veio de longe. Eu sou o fronteiriço que na infância atribulada recebeu nas faces sanguíneas os açoites dos ventos dessa região, vadios e haraganos, que, no afirmar da lenda avoenga, nascem nas terras incaicas, num recôncavo do mar, varrem o altiplano boliviano, penetram o imenso aberto do Chaco paraguaio, para depois, exaustos do bailado demoníaco, numa cólera e estrupício de tormenta, arrebentar, cortantes e gélidos, nesta querida cidade de Ponta porã, a Princesa da Fronteira, sentinela avançada das terrarias sul-matogrossenses. Eu vim dos ervais, meus irmãos, do fogo dos barbaquás, do canto triste e gemente dos urus, dos bailados divertidos, dos entreveros dos bailados das estradas, do mais hirsuto da paulama seca, do pôr-do-sol campineiro, dos dutos, das encruzilhadas e das distâncias perdidas. Eu sou filho da jungle, sou gaudério de todos os pagos, apaixonado das querências e cria de todos os galpões d aterra. Eu vim de longe, eu sou um misto da poeira da estrada, de fogo de queimada, de aboio de 239 | P á g i n a Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano (Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no10 vaqueiro, de passarada em sarabanda festiva no romper da madrugada, de lua andeja rendilhando os campos, as matas, as canhadas, o vargedo. Sou misto também de índio vago, cruza-campo e trota-mundo. (SEREJO, Apud SANTOS, 2006, p. 207-210). Seja no famoso “Discurso de posse” à Academia, seja em “Paisagem de erval”, ou ainda também em “Paisagem sertaneja”, vamos encontrar o continuum significativo da escrita e da temática de Hélio Serejo, que ele deixaria consagrado na seguinte passagem de “Paisagem sertaneja”: Dentro de mim, como bênção do Senhor, viverá para todo o sempre a fulgurante e evocadora paisagem sertaneja, formada pelo entardecer, raiar festivo das madrugadas, aboio comovedor do vaqueiro, tropel de xucros, fogo dos pousos, silêncio aterrador da tarde escaldante, vento sulão soprando desabridamente pelos campos e varjões, rechinar de carretas, cantiga de andariego, tropilha em marcha cadenciada, marcação, pega, roça granando, colheita, soca de monjolo, estralidar de galhos na tormenta, enxurrada, cantar melodioso do sabiaúna, vôo de seriema, cargueiros, fogo de galpão, queimada de roça, armadilha de caça sinuelo, junta de coice, pastorejo, festa de marcação, pega de baguais, floração campesina, redemunho de outubro, filigranas de luar, brilho das estrelas, vento bandoleiro balançando as folhas das árvores, o azul do céu imenso e cantaria de pouso ao anoitecer. [...]. Desejo, sinceramente, morrer como um xucro, com os olhos embaciados, voltados para essa paisagem. (SEREJO, 2008, p. 170-171). Como autor de Surrão crioulo – uma coleção de cinco livros –, que levava em seu próprio surrão (embornal), Serejo formatou a tradução da vivência de um povo, tornando-se ele mesmo uma espécie de mimetismo da cultura fronteiriça deste extremo Oeste do Brasil Meridional. Sua obra constitui manifestação literária das mais importantes da região, e que de forma mais completa se voltou para o registro da história e da vida na fronteira BrasilParaguai. Com longa história de vida dedicada à observação da cultura regional, a obra do escritor é imenso painel de análise de aspectos tão múltiplos quanto originais na abordagem das questões lingüísticas, literárias e culturais a partir da convivência com os ervateiros, à época gloriosa da extração da erva-mate. Alguns dos títulos do autor, Os heróis da erva (1987), Vivência ervateira (1991), No mundo bruto da erva-mate (1991), Fiapos de regionalismo (2004), Pelas orilhas da fronteira (1981), entre outros, hoje raros em edição original, felizmente recém-incluídos nas “obras completas”, ilustram a formação da região ervateira. Sua obra dá conta e constitui, por si só, o registro de uma das regiões culturais mais singulares do Brasil, ao abordar as origens e a fundação do povoamento e do desbravamento socioeconômico da nossa “hinterlândia” inóspita. Retrato de um período de grande empreendedorismo que reuniu a região fronteiriça do Brasil, no Sul de Mato Grosso com o Paraguai e a Argentina. Enfim, a obra serejiana constitui o mais completo relato de fundação desta “hinterlândia”: O recente documentário, “Caá, A Força da Erva” (direção de Lú Bigattão e roteiro de Rosiney Bigattão, 2005), filmado nas cidades da região de fronteira entre Brasil e Paraguai, é valioso documento que resgata o ciclo da erva-mate. Com sessenta minutos de duração, o documentário constitui-se do relato de mineiros, cancheadores, urus, gerentes, pequenos funcionários, que contam suas experiências com o empreendimento da erva-mate. Responsável pelo primeiro ciclo econômico do sul do Estado, a erva-mate, explorada pela Mate Laranjeira, não só foi responsável pela ocupação, como inúmeras cidades, entre elas Ponta Porã, Rio Brilhante, Caarapó, Porto Murtinho, Iguatemi e Tacuru, nasceram durante a sua extração. (O Progresso, 05/04/06). Ainda, é Hélio Serejo quem traz, como legado para a 240 | P á g i n a Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano (Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no10 literatura sul-mato-grossense, sua sensível percepção da história deste imenso caldo de cultura, de uma região de etnias diferentes, com a alma de uma época e de um povo numa região distante, registrando os modismos, regionalismos, crendices e expressões típicas da fronteira. Ao lado do relato de “Amor pelo crioulismo”, o conto “Isto também é crioulismo” constitui uma das manifestações literárias mais importantes no registro das peculiaridades da vida na fronteira Brasil-Paraguai. É um compêndio de história natural e de botânica, que resulta numa delicada observação da cultura regional; constitui um painel de análise de aspectos múltiplos e originais de questões linguísticas, literárias e culturais, provenientes da convivência do escritor com os ervateiros, à época gloriosa da extração da erva-mate. (SEREJO, 1998, p.163-166). Retomando, assim, o elo de intermediação desses relatos, faz-se necessário observar que, não só esses textos, mas também o expressivo conjunto que constitui hoje os “nove” volumes da edição Obras completas de Hélio Serejo (SEREJO, 2008), de Campestrini, incluindo os sessenta títulos, voltam-se explicitamente para a abordagem de dois universos, caros à poética do nosso escritor. De um lado, o registro microscópico, em efeito zoom, de quem vivenciou a extensíssima saga dos ervais, na região de fronteira Brasil-Paraguai – o “sulestematogrossense”, como bem subintitulou seu antológico livro, Selva trágica: a gesta ervateira no sulestematogrossense, de 1959, o escritor “desses fatos trágicos”, Hernani Donato; de outro lado, e a nos interessar de modo especial, os textos de Hélio Serejo atualizam as diversas e potentes vozes do “regionalismo” fronteiriço, o que nos leva a voltar a retomar o tema de nosso trabalho, sobretudo porque lemos agora, na prestigiosa Edição, os mais fulgurantes momentos de que a prosa serejiana foi capaz de elaborar num discurso genuinamente “crioulo”, constitutivo de um locus de enunciação específico. Em breve consulta sobre textos como “Paisagem de erval”, “Paisagem sertaneja”, “Boicará” e “Tereré” entre outros, o olhar mais arguto capta os loci dessa “vivência ervateira”, das “orilhas da fronteira”. Se, em “Boicará” (SEREJO, 2008, p.170-171) o folclorista genial dá vida a um boi que nasceu nas orilhas da fronteira, dando forma escrita a esta lenda do boi fronteiriço, que ”nasceu na orilha da fronteira. [...]. Boicará fronteiriço ainda anda por ai, varando os campos, os cerrados e os atoleiros. Carrega na barriga, no pescoço, na testa e nos quartos, aquelas manchas brancas pequeninas que, dizem, são as estrrelas que patrulham as fronteiras.”, em “Tereré” ele narra a história e os ritos envolvidos na prática comunitária em torno da roda de tereré: Disseram já, e é verdade, que o tereré, refrescante, é o abraço de quatro nações: Paraguai, o grande líder no uso, Uruguai, Argentina e Brasil. Afirmativa sem contestación. Esta bebida crioja, em qualquer um desses pagos, significa emotivamente: descanso, hora de meditação, amizade, troça, parceria para o trabalho, alegria e, algumas vezes... troca de ideia para a fuga temerária. (SEREJO, 2008, p.197). (grifo nosso). Sob esta perspectiva, o “tereré” como a língua guarani destacam-se na posa do escritor, principalmente na obra Fiapos de regionalismos, sobre a qual nos deteremos agora sobretudo pelo seu ineditismo, pois, só hoje publicada nas Obras completas (SEREJO, 2008, p.171246). O livro, inédito, revela talvez o ponto mais alto da prosa serejiana, a partir do título o leitor depara a matriz poética de um regionalismo bem formatado na região de fronteira entre Brasil e Paraguai. Já no início, o relato de “Peão paraguaio” prolonga magistralmente o topos 241 | P á g i n a Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano (Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no10 referido da língua guarani e sua amplidão a batizar com nomes a topografia e as “denominações dos acidentes geofísicos da República do Paraguai, parte da República Argentina e da República Federativa do Brasil” e revelando-se como sendo “a alma de uma geração insubstituível, é a própria natureza da América Latina.”. Na realidade, este relato traduz uma originalidade perspicaz, cuja ideia é nuclear quando se considera a capacidade plástica de um narrador não somente sensível, mas acima de tudo consciente do caráter representativo, simbólico, da linguagem para a caracterização de sua região, do regionalismo que se tematiza na obra como um todo: As historicidades manifestadas por esta língua continuam sendo as mesmas de antes. As descrições tecidas pelas suas construções idiomáticas continuam sendo as mais encantadoras narrações. Nesta língua encontramos ideias onomatopaicas, acentos melódicos dos pássaros, das árvores, dos animais silvestres, das cascatas, dos mansos córregos, dos majestosos rios, dos campos floridos, o sibilar dos ventos, o barulho ensurdecedor das tormentas, a magnificência do pôr-do-sol, a voz da natureza. (SEREJO. Op. cit., p. 178). Ao referir-se à região do estado de Mato Grosso do Sul, registra as denominações de nossos córregos, rios, cabeceiras, quedas, cerros, campestres, brejos, campos e matas, onde florescem em forma insubstituível os acentos guaranis: As regiões de Mato Grosso do Sul, com especialidade as do extremo sul, contam com as magníficas implantações literárias dos índios guaranis. E para uma justificação histórica, no município de Amambaí, no lugar denominado Pra-Jauy (água de peixe amarelo), ainda existem índios guaranis, naturalmente que com educação diferente. Eles têm aldeia. Falam a mesma língua. E sentem-se orgulhosos em poder afirmar que são índios guaranis. (SEREJO. Op. cit., p. 179). Ainda, em Fiapos de regionalismos, noutro pequeno texto que vale a sua reprodução inteira, Hélio Serejo assim descreve a “Chuva fronteiriça”: Tenho amor... amor grande pela chuva fronteiriça da minha terra. Chuva que cai devagarzinho que nem dá para assustar a pombinha-rola que caminha, aqui e ali, procurando o farnel que a chuvinha sossegada espantou do esconderijo para buscar o trilheiro dos bichos. A chuvinha fronteiriça rega a terra para que a semente da esperança brote e cresça livremente, produzindo fartura, fartura que traz alegrias e põe brilho de fé nos olhos do vivente... vivente que, de mãos postas, agradece a Deus, porque a chuva criadora choveu na hora certa, por vontade do Pai Eterno, que vela sempre pelo seus filhos amados. (SEREJO, Op. cit., p. 242-243). Um outro texto, digno de destaque, é “Apresentação”, assim intitulado, que abre a obra em análise, projetando-a no universo do discurso sobre o regionalismo sul-matogrossense e marcando o registro peculiar dessas narrativas, ao recobrir como um todo o livro Fiapos de regionalismos: Este livro te pode servir aos estudiosos do gênero em alguma coisa. O autor acredita que assim venha a acontecer. A realidade está nele espelhada. É vivência nua e crua. Não há enfeites bombásticos, nem imagens literárias para impressionar o leitor. Homens entendidos das coisas do mundo da erva-mate e do idioma guarani manusearam os originais. Incentivaram de maneira franca o despretensioso escritor dos ervais. Daí a publicação. (SEREJO, Op. cit., p. 177). 242 | P á g i n a Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano (Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no10 Transnacionalização e interculturalidade na região sul-mato-grossense Impõe-se ressaltar que o processo de colonização no Sul do estado de MS é resultante de uma heterogeneidade cultural, que, como observa o historiador Jérri Marin (2004), muito decorreu das uniões matrimoniais inter-raciais, cuja mestiçagem torna-se um conceito crítico adequado para a explicação do caldo de cultura que Lévi-Strauss atribuíra às “tradições brasileira, paraguaia, boliviana e argentina”, onde os elementos da indumentária eram de uso comum e alternado entre as diversas populações e etnias da região. Ainda, como zona de interculturalidade, de hibridismo cultural, a língua como elemento agregador era, na realidade, constitutiva de uma Babel linguística: [...] a língua predominante era o guarani, seguida pelo castelhano, tornando a região numa nova “Babel”. A língua portuguesa era pouco empregada. De ambos os lados da fronteira, após uma polca alegre, ouviam-se aplausos bilíngues, trilíngues. Nas corridas de cavalo, o juiz de partida gritava a ordem de largada em guarani e repetia logo após em português. (DONATO, Apud MARIN, 2004, p. 327-329). Neste sentido, o escritor regionalista douradense Brígido Ibanhes, em recente depoimento sobre seu livro Silvino Jacques, o último dos bandoleiros, lançado no dia 30 de maio de 1986, já em quinta edição, também observa que, [...] eu não queria um livro qualquer, mas um livro que fosse o retrato da região sudoeste do antigo Mato Grosso; registrasse o costume da época, as lendas da fronteira, a violência gerada pelos coronéis na luta pelo domínio das terras, mas, principalmente, o linguajar aguaranizado, típico do mestiço da fronteira [...]. Através das polcas paraguaias, da chipa, do puchero, do locro, do tererê, do tôro candil, etc, o Paraguai carimbou suas tradições no Estado. Em várias cidades, inclusive na Capital, Campo Grande, temos colônias paraguaias, organizadas em associações. Essa penetração paraguaia se perde nas brumas do passando, anterior à Grande Guerra. A influência boliviana é mais recente e mais discreta, mas ela existe. É comum, nas praças públicas, das nossas cidades, se ouvir a flauta andina tocando músicas de inspiração espiritual, como era a visão da existência mística dos povos das altas montanhas. A ocupação de grandes áreas pelos imigrantes sulistas, nordestinos, mineiros e paulistas, agregou também valores culturais ao universo onde anteriormente só se ouvia o “jeroky” (dança) e o “ñembo´ê” (reza) ritualísticos. À taquara “takuapú” sagrada, com cadência, batida no chão seco, enquanto mantras são pronunciados em voz grave ao chacoalhar do “mbaraká”, se contrapôs a batida dura da bota, o tilintar das esporas, na dança das lanças dos gaúchos. De Minas, a Folia dos Reis. São Paulo, a Festa do Divino. Do nordeste, o forró e a carne de sol. Os centros de tradições, tanto gaúchos como nordestinos, reforçam os laços com o Estado de origem, ao mesmo tempo em que, neste Estado, se implantam idiossincrasias regionalistas. (Cf. IBANHES, 2009). Há que sublinhar, também, a vitalidade do multiculturalismo na poesia do brasiguaio Douglas Diegues, como observa Kaimoti (2009) em “Douglas Diegues: ‘Las fronteras siguem incontrolábles”. Escrevendo num “portunhol salvage”, o poeta incorpora ao registro poético, na própria materialidade do texto, sua condição de hibridismo dos usos da língua na fronteira do brasileiro Mato Grosso do Sul com o Paraguai: De acordo com Diegues, o “portunhol selvagem”, seria uma espécie de “lengua poética”, que “...brota de las selvas de los kuerpos triplefronteros, se inventa por si mismo, acontece ou non...” (DIEGUES, 2009, 2008). Para além do costumeiro “portunhol” da fronteira de Mato Grosso do Sul com o Paraguai, que mistura de 243 | P á g i n a Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano (Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no10 maneiras variadas o português falado no Brasil com o espanhol paraguaio e o guarani dos índios da região e seus descendentes, Diegues afirma que sua versão dessa mistura resulta do acaso de encontros de diferentes identidades e discursos fronteiriços, considerando, nesse portunhol selvagem, que “...además del guaraní, posso enfiar numa frase palabras de mais de 20 lenguas ameríndias que existem em Paraguaylândia y el resto de las lenguas que existem en este mundo” (DIEGUES, 2009). Essa língua inventada remete à trajetória biográfica do poeta que o leva do centro à periferia e vice-versa: do Rio de Janeiro, onde nasceu, à Ponta Porã, em Mato Grosso do Sul, na divisa com o Paraguai, região original de sua mãe, filha de um imigrante espanhol e de uma paraguaia. (KAIMOTI, 2009). Com efeito, o escritor e poeta fronteiriço Douglas Diegues vem, desde Da gusto andar desnudos por estas selvas, de 2003, marcando compasso com a interculturalidade existente na fronteira entre Brasil e Paraguai, cuja proposta político-linguística deixa-se entrever no próprio formato de suas obras, como a “a cartonera”, resultante da coleta de cartões ou papelão, em material reciclável. (Cf. DIEGUES, 2009). Dentre as várias manifestações da cultura paraguaia na região de fronteira, incluindo a realização de Semanas da Cultura Paraguaia (Cf. Jornal “O Progresso”, 15, 16-17/05/09), um dos festejos tradicionais refere-se à homenagem a “Virgencita de Caacupé” [Caacupé: do vocábulo Caá – que significa erva, e Cupê – que significa atrás, a palavra Caacupé se traduz em “atrás da erva-mate”], cuja imagem remete a uma lenda indígena. Nesse contexto é que surge a manifestação do folguedo popular denominado “Toro Candil”, trazida ao Paraguai por espanhóis, na qual um boi, armado com estrutura de madeira e arame, tem seus chifres acesos com óleo diesel e passa a ser toureado por homens travestidos chamados “mascaritas”. (Cf. Revista ARCA, 1993). Segundo Sigrist (2006, p.78-79), trata-se, antes, de uma “brincadeira”, mais do que uma dança ou folguedo, feita com o touro (toro – em espanhol) e duas tochas acessas aos chifres do boi candeeiro (candil – em espanhol). A manifestação do “Toro Candil” concorre com a celebração da Virgem de Caacupé, no dia oito de dezembro: Fica evidente, nesse fato que, mantendo características do Paraguai, a brincadeira assume alegorias e identidade local, com base em um processo transculturativo e híbrido, podemos dizer que a brincadeira, por sua popularidade e disseminação no lado brasileiro, já não é somente paraguaia, mas é sul-mato-grossense também. (TEDESCO; NOLASCO, 2009). De resto, consequentemente, deve-se salientar que a percepção de transnacionalização da região, calcada sobretudo na urbanização das cidades do antigo sul de Mato Grosso do Sul, aspecto para o qual chama a atenção o historiador de Nas águas do prata (2009); observa o autor que: O movimento de populações no Cone Sul era uma via de mão dupla. Da mesma forma que paraguaios desciam o rio para trabalhar na Argentina e no Uruguai ou subiam para o Mato Grosso, também os brasileiros, os argentinos e os uruguaios se movimentavam em busca de melhores condições de vida e trabalho. (OLIVEIRA, 2009, p.57). Decorria deste fato a mescla da língua que, fertilizada pelos contatos interculturais, resultava na mistura do guarani com o castelhano carregada de “pitadas do regionalismo gaúcho”, despontando sobretudo devido à “exploração de madeira no Pantanal, nos ervais, nas fazendas de gado, entre outras atividades fronteiriças que utilizavam especialmente o trabalho compulsório de índios e paraguaios” (Op. cit.,56). Advém dessa ambiência fronteiriça o fato cultural que se traduz na tradição do “tereré”, o mate batido, com água fria 244 | P á g i n a Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano (Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no10 ou gelada, tem a denominação de tereré, como bebida compartilhada transnacionalmente, como bem observou Hélio Serejo, nosso regionalista maior, em citação já anteriormente referida (SEREJO, 2008, p. 197). Sob essa perspectiva, o relato “Tereré”, de Hélio Serejo, constitui viva manifestação e atualização das práticas interculturais no Cone Sul, e de modo especial em nossa região Centro-Sul do estado de MS, do que é ilustrativo a recente iniciativa do governo do Estado que requereu tombamento do tereré como novo bem patrimonial imaterial, atendendo um processo que fora deflagrado pela Prefeitura de Ponta Porã/MS. (Cf. Jornal “Correio do Estado”, 23/01/10). Considerações finais Bem ao encontro da ideia de Walter Mignolo, em seu Histórias locais / Projetos globais (2003), o percurso de nosso trabalho demonstra, ao traduzir aspectos de interculturalidade e “saberes subalternos”, o que o crítico latino-americano caracterizou em seu livro, intitulando-o “histórias locais”. Assim, nota-se desde a concepção guarani de família, que se firmara com tal força na sociedade paraguaia e também entre seus colonizadores, que, quando a reforma cristã quis impor os padrões europeus, o povo, españoles, mestizos, criollos e indios, reagiu prontamente as mudanças de seus costumes e história local. (Cf. GONZALEZ, 1948, p.218). À guisa de conclusão, salientamos o interessante estudo em antropologia social que a pesquisadora Marcia Sprandel realizou como trabalho de campo: “Brasiguaios: conflito e identidade em fronteiras internacionais”. O que releva destacar, aqui, é o precioso levantamento bibliográfico que a estudiosa empreende, através de livros antigos e em livrarias conhecidas como sebos, deparando ao final com uma significativa literatura regional, onde constam autores como o nosso Elpídio Reis, o já citado Brígido Ibanhes, Lécio Gomes de Souza, Otávio Gonçalves Gomes, Francisco Bernardes Ferreira e Albino Pereira da Rosa, entre outros, que contam cada um à sua maneira a história do Mato Grosso do Sul através de suas cidades. Como chamou a atenção da autora e a nossa também, o livro de Brígido Ibanhes, Che Ru – O pequeno brasiguaio, a integração de um povo, traz em sua Apresentação, intitulada “Como é bom ser brasiguaio”, por Elpídio Reis, palavras que vêm corroborar, concluindo nossa análise e abrindo espaço para a ampliação dessas reflexões, que se desdobram para outras vertentes de pesquisa: Os brasiguaios são em geral, mais felizes que os filhos de outras regiões. Em primeiro lugar porque são, de saída, internacionais... [...] É só atravessar a rua em Ponta Porã e já se está no Paraguai, ou no Brasil. [...] em segundo lugar porque os brasiguaios têm orgulho de dizer que nasceram numa fronteira onde os dois povos não têm consciência de que vivem em países diferentes. Para eles – fronteiriços – as duas nações são como se fossem uma só. [...] Os brasiguaios autênticos têm, pois, dupla razão para uma felicidade mais ampla. São duplamente felizes. Têm duas casas, duas pátrias. (IBANHES, Apud SPRANDEL, 1993, p.82). Concluindo, reportamo-nos àquelas duas citações inicias, a do historiador Lenine Póvoas e a do crítico Flavio Loureiro Chaves, reconhecendo originalidade e perspicácia na análise do primeiro, sobretudo ao comparar a profícua literatura de Hélio Serejo, escritor da fronteira Brasil-Paraguai, com a formidável escrita de Jorge Amado, que desenhara um vivíssimo painel do regionalismo nordestino evidenciando um matizado colorido da terra e gente da região da Bahia. Para o crítico literário, de certo que a fortuna de um escritor não 245 | P á g i n a Guavira Letras: Sociedade contemporânea: diversidade e multiculturalismo, Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, n. 10, Jan.-Jul. 2010. GUERRA, Vânia Maria Lescano (Org.). (Revista On-Line: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira; ISSN: 1980-1858). Guavira no10 resulta tão somente das condições que garantiram o sucesso e divulgação “universal” de suas obras, para uma justa valoração das obras e autores diferentes, mais nos interessa verificar aquilo que os tornam originais e o vate de um lugar, um espaço, de uma civilização; assim, no caso de nossa literatura brasileira, fazendo ver como as diversidades regionais se articulam com o todo nacional e o constroem – lembrando que, assim como a nação, a região é também uma tradição inventada. (Cf. SENA, 2003, p. 135). Interessa ainda ao crítico comparatista sublinhar que: a noção de região, considerada em seu processo de constituição e de acentuação de peculiaridades locais, aproxima-se à de nação, pois que adota idênticos procedimentos de construção e de afirmação. O regionalismo aparece na ficção, sublinhando as particularidades locais e mostrando as várias maneiras possíveis de ser brasileiro (CARVALHAL, 2003, p.144-145). (grifo nosso). Referências CARVALHAL, Tania Franco. 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