Untitled - Goodreads

Transcrição

Untitled - Goodreads
“Inverso”
L. C. Lavado
Para o Luís.
Obrigado por inundares a minha vida de amor e fantasia.
É sempre para ti que escrevo.
⌠2⌡
“Inverso”
L. C. Lavado
"The nature of men is always the same
It’s their habits that separate them."
Confucius
⌠3⌡
“Inverso”
L. C. Lavado
PRIMEIRA PARTE
“(…) e enquanto o nosso planeta, obedecendo à lei fixa da gravitação,
continua a girar na sua órbita, uma quantidade infinita de belas e admiráveis
formas, originadas de um começo tão simples, não cessou de se desenvolver e
desenvolve-se ainda.”
Teoria da evolução,
in “Origem das Espécies” de Charles Darwin, 1859
⌠4⌡
“Inverso”
L. C. Lavado
FUGA
Um relógio é apenas um relógio, mas os que vivem na parede de uma sala de àulas são temidos e odiados como
guardiões de mundos e carcereiros de liberdade.
Confinada entre a cadeira e a secretária, Ivana acompanhou com olhar hipnotizado de espera os últimos
movimentos do ponteiro dos segundos até que finalmente o toque estridente da campainha roubou o silêncio da sala
de aula.
Nos vários pavilhões da Escola Secundária dezenas de portas abriram-se em simultâneo libertando centenas de
alunos que fugiam da clausura da sala de aula para a liberdade do fim-de-semana.
No meio da peregrinação ondulada de vários tons de cabeças castanhas ao longo do corredor, o movimento de uns
cabelos ruivos rompia a monotonia de cor.
“Ivana! Ivana!” Chamou uma figura enérgica que rasgava sem cerimónia por entre a barreira humana que as
separava. “Desaparece da frente...” Resmungou Lia para a última pessoa entre elas dando-lhe um encontrão.
Ivana riu da constante rudez que a amiga fazia questão de tratar toda agente à sua volta. Para ela que a conhecia só
a tornava mais cómica.
“Odeio história!” Desabafou Lia passando as mãos no cabelo e desgrenhando ainda mais do apanhada antiquado
que usava.
“Estou a ver que não foi só para mim que correu bem.” Comentou com ironia.
“Ahhhh... pelo menos o último podia ter tido um final feliz...”
“Pelo menos é o último.” Corrigiu com um sorriso cansado. Depois do fracasso só queria ir para casa.
“Finalmente!” Celebrou Lia.
Ao chegarem ao portão juntaram as mãos dando os últimos passos juntas e com um leve aperto de despedida
continuaram em direcções opostas. Faziam-no desde sempre num gesto que era para elas o tradicional Adeus e
dispensava plavras.
O dia fora da sala de aulas era iluminado pela jovialidade do sol Junho, e apesar de o Verão ainda não ter
começado, o cheiro a maresia veraneante já invadia toda aquela pacata zona costeira do norte do país.
A confusão da saída da escola ficou para trás e Ivana seguiu o caminho de casa pela estrada deserta e na solidão
adolescente dos pensamentos que davam uma pausa ao longo dia. Mas mais depressa do que queria, viu-se no final
de uma curva familiar que dobrava a estrada e todos os seus sentidos ficaram alerta.
Ivana prendeu o olhar no horizonte e inspirou profundamente preparando a mente e todos os músculos do corpo
para o desafio que a esperava: um sprint de cem metros de fuga.
Em passo receoso, percorreu os últimos centímetros da curva fatídica ladeada pelo velho muro de tijolos laranja
recortados a musgo verde que antecedia a visão do acampamento dos ciganos. No instante em que se revelou a
paisagem caótica de tendas coloridas, arames carregados de roupas, fogueiras rodeadas de animais e pessoas
estranhas; sem hesitação, os seus pés lançaram-se numa corrida sôfrega convencidos pelo seu cérebro de que deles
e da sua velocidade, dependia a sua sobrevivência.
A luz forte do sol da tarde cegou-lhe a corrida mas Ivana não se importava porque conhecia aqueles metros de
caminho empedrado mesmo de olhos fechados; era obrigada a percorrê-los todos os dias quando vinha da escola e
muitas outras vezes durante a noite quando os seus sonhos a levavam de novo até lá e a faziam percorrê-los mesmo
enquanto dormia.
De olhos fechados pelo sol, naqueles segundos de corrida só sentia o vento no rosto transpirado e o calor a
queimar-lhe a pele avermelhada pelo esforço das pernas já doridas. «A mochila está muito pesada.» Lamentava-se
em silêncio enquanto ouvia os latidos dos cães a aproximarem-se mais do que seria suposto. «Malditos animais!»
⌠5⌡
“Inverso”
L. C. Lavado
Praguejou. «Devem ser os únicos cães no planeta que não gostam de mim e tinham logo de existir no meu caminho
para casa.»
A música que vinha do acampamento cigano envolvia o latido dos cães tornando-o ainda mais assustador. Tal
como uma orquestra, no momento seguinte, os gritos de várias de crianças sujas e de pés descalços juntaram-se a
eles incentivando a corrida dos cães numa claque desconcertante e entusiasmada que veio completar a cena atípica,
tornando-a na aventura diária da qual, involuntariamente, Ivana se tinha tornado protagonista.
Quando por fim conquistou a meta psicológica, os latidos começaram a diminuir de intensidade e a tornar-se mais
espaçados ao mesmo ritmo da diminuição da sua resistência.
Uma vez mais a heroína vencera contra todas as probabilidades.
Algumas dezenas de metros à frente, quase a desmaiar de exaustão permitiu-se parar. «Malditos animais!» Voltou a
praguejar ao olhar para trás e ver ao longe os quatro cães a voltarem calmamente para o acampamento cigano.
«Parece que com a prática estão a ficar mais rápidos!» E baixando o olhar para as suas pernas pálidas e nuas, tomou
nota em tom de conclusão. «A partir de hoje: proibido usar saias.»
‫۝‬
INFÂNCIA
Ao entrar em casa, Ivana agradeceu a todas as entidades Divinas, cujo nome lhe ocorreu, por aquele momento de
paz e frescura após a louca fuga. Entregou a mochila ao chão da sala e deixou-se cair no silencioso sofá castanho.
“Ainda não foi hoje que te apanharam, hã!?” Felicitou-a Fernando em tom de gozo ao ver a irmã gémea prostrada
no sofá com o rosto cor de tomate, cabelo completamente desalinhado e respiração ainda acelerada.
“Malditos cães, Malditos!” Repetiu ainda sem se conseguir mover um centímetro.
Sentando-se no sofá vago do lado oposto a ela, Fernando corrigiu. “Malditos cães não. Malditos ciganos!” Ivana
tentou interrompê-lo mas as palavras acabaram por se concretizar apenas num grunhido indecifrável e Fernando
continuou absorto nas próprias ideias como era usual. “Aqueles desgraçados nunca mais vão embora... ainda dizem
que são nómadas. O pai do Bernardo é que tem razão, temos de os pôr andar.”
“Sim… sim…” Concordou pouco interessada no assunto.
Uns segundos de silêncio ficaram pela sala até que Fernando começou a emitir um assobiozinho irritante que
traduzido significava que ele sabia algo que interessava à irmã e preparava-se para cobrar pela informação.
Sem resistência para continuar a aguentar aquele som por mais tempo, Ivana acabou por ceder. “Diz lá.” Desistiu
enquanto se esforçava por adoptar uma posição mais normal no sofá. “Qual é o preço?”
Sem demora, Fernando tossiu suavemente, clareou a garganta e pondo um ar solene de negociação lançou a
proposta. “Arrumas o meu quarto durante uma semana.”
Ivana abriu os olhos e olhou-o desconfiada. “Deves ter descoberto se foi o ovo ou a galinha quem nasceu primeiro,
com certeza. Não estou interessada...” Concluiu voltando a fechar os olhos.
“Eu tentei ajudar-te…” Disse o irmão em fingido tom de lamento. E deixando o sofá finalizou com ar triunfante.
“…depois não digas que ficas solteira.”
“Como!?” Ivana pôs-se de pé involuntariamente. Aquela era a deixa que lhe dizia que era algo sobre Bernardo, a
sua paixão platónica de infância que Fernando tinha descoberto poucos meses antes ao aproveitar-se de um
descuido com o diário. “Três dias.” Lançou ela de imediato a contraproposta.
“Aceito!” Concordou vencedor. “Ele deve estar a chegar, e… vai passar cá a noite.” Revelou com um piscar de
olho conspirador.
⌠6⌡
“Inverso”
L. C. Lavado
“O quê!?” «Banho!» Ordenou-se Ivana em pensamento ao ouvir as palavras do irmão. E sem perder tempo
desapareceu da sala correndo escadas acima como um cometa cuja cauda de fogo era formada pelos seus longos
cabelos ruivos.
«Hoje estes dois entendem-se.» Prometeu-se Fernando ao percorrer a sala com o olhar enquanto construia um plano
que se mostrasse eficaz. A sua natureza masculina não lhe facilitava a tarefa e o trabalho de Cupido que tinha
conseguido fazer nos últimos tempos não tinha primado pela eficácia!
§
Parada em frente ao espelho do seu pequeno quarto de águas furtadas, Ivana olhava-se dos pés à cabeça e começava
a desesperar. Era a quarta opção de roupa que experimentava e cada uma ficava-lhe sempre pior do que a anterior.
“Estás desgraçada!” Disse ao seu reflexo com um suspiro. “Mais vale desistires. Só vais fazer o rapaz perder tempo
de juventude.” Via o seu cabelo ruivo tão liso, tão comprido e de tom tão alaranjado que parecia que estava a usar
uma peruca; achava os seus olhos azuis bonitos mas demasiado pequenos para serem notados; os lábios pálidos e
finos; e as sardas mais numerosas do que nunca. «Não há nada a fazer por ti» Rendeu-se.
O som triunfante da campainha da porta preencheu-lhe os ouvidos anunciando a chegada do visitante tão guardado.
Num último esforço de beleza, ajeitou o vestido, passou os dedos pelo cabelo e simulou o seu melhor sorriso.
«Acalma-te e tudo vai correr… mais ou menos bem…»
Ao descer as escadas encontrou de imediato a voz de Bernardo e o seu coração disparou querendo adiantar-se ao
resto do corpo para alcançar aquele que o tinha encantado anos antes mas os seus passos tornaram-se mais lentos
pela hesitação dos pés. «Vá, coragem!» Incentivou-se.
Aos poucos a sala foi ficando visível e no segundo seguinte os seus olhos abriram-se em secreta curiosidade. Lá
estava ele. “É tão giro...” Sussurrou para si mesma.
Protegida pela sombra cúmplice da escada, deixou-se lá ficar a contemplá-lo.
Ainda se lembrava do dia em que se tinha apaixonado por Bernardo e do longo ano que tinha vivido.
۞
Com a inesperada morte da mãe de Ivana e Fernando num acidente de viação, Ângelo Rodrigues, pai e Engº
Agrónomo, aceitou uma proposta de trabalho que lhe iria permitir sair de Lisboa com os filhos, e segundo o
próprio, recomeçar a vida num sítio novo e mais saudável.
Embora ainda crianças de 8 anos, Ivana e Fernando não gostaram da nova ideia que lhes iria trazer ainda mais
mudanças indesejadas. Mas impotentes para alterar os planos do pai, fizeram as malas e viram em poucos meses as
suas vidas viradas do avesso. Deixaram a escola e os amigos de sempre para trás com destino a uma terra
desconhecida.
Na chegada, o choque da troca da capital por uma pequena vila no litoral norte do país deu energias redobradas aos
dois irmãos para retomar as súplicas ao pai que, numa das raras vezes na sua vida, se recusou a ceder às vontades
dos filhos. Ângelo estava convicto de que era o correcto a fazer; tinha perdido o amor da sua vida mas pelos filhos
era obrigado a reaprender a enfrentar os novos dias que o aguardavam e se continuasse em Lisboa tinha certeza de
que não o conseguira fazer.
O desconhecimento de todos os motivos do pai para os arrastar naquela mudança, e a partilha dos primeiros dias
naquela terra desconhecida, alterados entre tédio e revolta, levaram Ivana e Fernando a aproximarem-se como
nunca antes o tinham feito; de irmãos gémeos quase estranhos passaram a cúmplices.
A solidão e a dor presentes pela perda da mãe fizeram nascer entre uma amizade verdadeira.
Várias semanas passaram e o inevitável primeiro dia de aulas chegou. A nova escola era bem mais pequena do que
a que Ivana e Fernando tinham deixado para trás, mas nem por isso ela se tornava menos assustador naquele dia.
⌠7⌡
“Inverso”
L. C. Lavado
Parados em frente do portão de gradeamento verde, os irmãos olharam-se em silêncio procurando confirmar no
rosto do outro que o desalento que sentiam por aquela visão era mútuo, e de seguida desviaram em simultâneo o
olhar percorrendo o pátio em frente.
Dezenas de alunos de idade próxima à sua, corriam, gritavam, e jogavam jogos entre si, ignorantes das duas novas
figuras que os observavam. Foi então que sem aviso Ivana ficou presa por uns olhos escuros num rosto doce que a
observavam de volta camuflados pela confusão.
O rapaz de cabelo cor de caramelo estava sentado sob a sombra de um velho carvalho e com um livro suspenso nas
mãos esboçou-lhe um sorriso. Naquele preciso momento Ivana apaixonou-se por Bernardo.
۞
A recordação do inesquecível primeiro dia de aulas fez Ivana suspirar de nostalgia e amor infantil. Tinha 17 anos e
metade da sua vida tinha-a passado apaixonada por Bernardo, agora era a hora de finalmente fazer alguma coisa.
Ele estava ali mesmo na sala, a escassos metros dela e a sua voz suave e calma em conversa casual com Fernando
atraíram-na como um íman.
“Olá!” Cumprimentou Ivana juntando-se a eles na sala e oferecendo o seu melhor sorriso a Bernardo.
“Tudo bem?” Perguntou ele em tom de resposta.
Um silêncio constrangedor impôs-se e Ivana lançou um olhar de socorro ao irmão.
“Não vais poder mesmo ficar?” Perguntou Fernando a Bernardo desviando a atenção dele de volta para si.
Àquela pergunta, o coração de Ivana desacelerou. «Como não vai ficar!? Não há maneira de o vento soprar e a
minha sorte desencalhar deste porto...» Lamentou-se já em desalento.
“Não vai mesmo dar Fernando. O meu pai nem me quis ouvir. Nada é mais importante do que receber o Sr.
Deputado para jantar em nossa casa.” Justificou-se imitando desajeitadamente o pai. “Já imaginas o discurso.
Vamos ter de deixar o trabalho de História para o fim-de-semana.”
“Se tem de ser… tem de ser!” Concordou Fernando. Mas sabendo da desilusão que era para a irmã a inesperada
mudança de planos disse olhando-a discretamente e dando-lhe um sorriso. “Então voltas cá durante o fim-desemana.” Sugeriu em forma de convite.
«Pois.» Reforçou Ivana em silencioso entusiasmo. «Amanhã. Sábado é um dia tão bom como qualquer outro para
História.»
“Tinha pensado em ires tu lá a casa.” Sugeriu Bernardo desviando o olhar de Ivana para o amigo. “Nos últimos
tempos tenho sido sempre eu a vir aqui.” Justificou-se. Perante a hesitação de Fernando que nitidamente tentava
encontrar uma desculpa para não ir, Bernardo incentivou-o sorrindo. “Vá lá! Não sejas esquisito, eu prometo um
bom lanche.” E sem esperar resposta deu uma palmada no ombro do amigo em forma de despedida e sorriu a Ivana
“Portem-se bem!”
O som da porta da entrada a fechar deixou os dois irmãos a olharem-se em silêncio.
“Parabéns! Acabaste de ganhar o privilégio de continuar a arrumar o teu quarto!” Anunciou Ivana voltando as
costas ao irmão e subindo novamente as escadas. “És o pior alcoviteiro que alguma vez vi!”
۞
Filho único do Presidente da Câmara Rodolfo Corte Real, que há mais de 20 anos fazia da sua palavra lei por
aquelas terras, Bernardo Corte Real herdara do pai a beleza romântica mas o temperamento calmo e afável da mãe
Antónia que, graças à linhagem de várias gerações abastadas anteriores a si, dedicava os seus dias a ajudar quem
mais precisava com um sorriso missionário encantador e muitos Contos de Rei na carteira para distribuir que
quando transformados em Euros só se tornaram mais numerosos. Não era pois de surpreender, que os Corte Real
fossem a família mais respeitada da região.
⌠8⌡
“Inverso”
L. C. Lavado
Enquanto atravessava o jardim da casa dos Rodrigues, Bernardo colocou a mão ao bolso, pegou no telemóvel, e
começou a escrever uma mensagem. PRECISAMOS FALAR. No destinatário seleccionou IVANA. O som cadenciado
dos seus passos no chão ecoaram na estrada deserta alternando-se de forma sincronizada com os batimentos
acelerados do seu coração e por segundos foram tudo o que Bernardo ouvia.
Passados minutos, ele continuava a olhar o ecrã pixelizado em tons de verde do seu Nokia e com o dedo encostado
à tecla ENVIAR.
Tinha perdido a conta ao número de vezes que escrevera aquela frase, seleccionado o nome de Ivana para ao fim de
alguns segundos ou algumas horas acabar por o apagar. Aquele ritual repetia-se há meses.
A amizade com Fernando, a relação de proximidade entre as suas famílias e principalmente a possibilidade de não
ser correspondido e perder a amizade de Ivana, vinham-lhe desviando o dedo da tecla ENVIAR para a APAGAR.
No percurso de cerca de quinhentos metros que separa a casa dos Rodrigues dos Corte Real, Bernardo começou a
duvidar se algum dia ia finalmente enviar aquela mensagem. As hipóteses para o fazer estavam a diminuir a cada
dia. Dentro de poucas semanas acabariam as aulas e mesmo antes disso ele já estaria de malas prontas a caminho de
Paris para cumprir o sonho da mãe e ir estudar na Sorbonne. «Não posso ir embora sem falar com ela.» Repetia
para si próprio pela décima vez naquele dia. «Logo hoje é que havia de aparecer o gordo do Deputado!»
Fechou os olhos, suspirou, e pressionou APAGAR.
‫۝‬
UM CONVITE INESPERADO
O fim-de-semana correu célere como todos os fins-de-semana.
Fernando passou o sábado com Bernardo como combinado, e o domingo foi dedicado á sua mais recente conquista;
uma rapariguinha tímida e de compleição física frágil, que Ivana caracterizava como atraso de desenvolvimento
causado por anos de obstinação com as dietas.
Aproveitando a paz pela ausência do irmão, Ivana por sua vez passou o fim-de-semana a pôr o sono em dia, a ler, a
fazer pequenas investigações na net e a ver as suas séries de televisão preferidas sem ser interrompida ou ter de
lutar pela conquista do comando.
A manhã de segunda-feira começou movimentada como todas as manhãs.
“Não é justo!” Reclamava Fernando ainda na tentativa de cobrar à irmã o pagamento acordado no final da semana
anterior. “Depois do meu esforço para ele vir cá, vais-me obrigar a arrumar o quarto na mesma?”
“Pára de reclamar ou vamos chegar atrasados. Já sabes que não vou mudar de ideias.” Disse Ivana enquanto
prendia o cabelo com um travessão.
“Não tive culpa que aparecesse lá o importante do Deputado!” Justificou-se enquanto seguia a dança da irmã que
começava a recolher livros pelo chão do quarto. “Tu também podias facilitar um bocadinho as coisas; falares mais
com ele… um sorrisinho de vez em quando também não fazia mal nenhum.”
“Eu sorrio!” Contrariou ela deixando os livros e encarando-o.
“Sim. Mas mais parece um sorriso da família de lá tem de ser.” Criticou.
“Que engraçadinho. E eu que pensava que era o sorriso de o meu irmão é cá um incompetente!”
⌠9⌡
“Inverso”
L. C. Lavado
“Ivana!!!” Tentou chamá-la à razão. “Já te expliquei montes de vezes que os homens não se metem nas cenas do
“coração” uns dos outros; as mulheres é que fazem essas coisas.”
Os passos do pai ao longo do corredor seguraram a resposta que Ivana já tinha preparada para o irmão.
“Alguém quer boleia?” Perguntou Ângelo espreitando para dentro do quarto e dividindo o olhar entre os dois
filhos.
“Claro que sim.” Respondeu ela de imediato. “Qualquer oportunidade que me evite passar por aqueles cães
psicóticos é bem-vinda.”
“Ainda não pararam de correr atrás de ti?” Perguntou o pai com ar preocupado.
“Não… eu devo ter mesmo um ar mesmo apetecível.” Disse saindo do quarto.
Fernando seguiu-a. “Ou então sabem o quão engraçado é ver-te correr que nem uma lunática!” Descendo as
escadas, entregou-se às gargalhadas ao lembrar a cena. “A perspectiva deles ainda deve ser melhor!!!”
“Pára com a gracinha.” Pediu o pai que vinha atrás dos dois. “Hoje à tarde vou estar com o Rodolfo Corte Real e
vou falar-lhe sobre o assunto. Pode ser que com mais um facto consigamos fazer algo a respeito daqueles ciganos.”
Por fim Ângelo já falava para sim mesmo. A presença dos indesejados visitantes tinha trazido percalços
inesperados a um projecto que a empresa que dirigia trabalhava para implantar nas terras agora ocupadas. Desde
então ele e o Presidente da Câmara Rodolfo Corte Real preparavam com o maior cuidado um documento para
apresentar em tribunal pedindo a expulsão dos nómadas.
“Agradecia.” Suspirou Ivana parando no meio da escada. “Quando vou a pé é complicado não passar por lá.”
As badaladas do relógio da igreja lembraram aos Rodrigues da existência de horários para cumprir e acelerou-lhes
os passos para fora de casa. Ao entrarem no carro Angelo lembrou-se da visita do dia anterior em falta.
“Não deveríamos ter mais um no grupo hoje?” Perguntou ao filho. “Cinto de segurança.” Relembrou-os.
Enquanto cumpria a ordem do pai, Fernando justificou a ausência de Bernardo. “Era, mas como a visita do político
todo importante de Lisboa se prolongou o pai obrigou-o a ficar em casa.”
“Foi? Isso pode ser muito bom…” Especulou Ângelo ligando o carro e perdido nos próprios pensamentos.
“Duvido...” Murmurou Ivana pela inconveniência que a visita tinha trazido aos seus planos.
“Ele convidou-me para ir a casa dele outra vez no próximo fim-de-semana. Pode ser?” Perguntou Fernando.
«Vai ser outro fim-de-semana mesmo divertido para mim, está-se a ver!» Pensava Ivana precocemente invadida
pela má disposição.
“Claro.” Concordou o pai. “Vocês têm de aproveitar estas últimas semanas antes de ele ir embora.”
“O quê!?” Perguntaram os dois irmãos em coro.
“Ele vai embora?” Perguntou incrédulo Fernando. “Para onde?”
“Ele ainda não vos contou?” Perguntou Ângelo surpreendido. E perante o olhar de estátua dos filhos, partilhou a
novidade. “Ele foi aceite na Sorbonne. O Rodolfo ligou-me todo orgulhoso a dar a notícia há alguns dias.”
Ivana lançou um olhar de o que é que se passa a Fernando que lhe respondeu com um encolher de ombros de não
faço a mínima ideia.
Desesperada pela perspectiva de perder de vista a paixão da sua vida, Ivana decidiu que era a chegada a hora de
uma intervenção mais proactiva.
“Que bom!” Comentou entusiasmada. Àquela declaração, Fernando olhou atónito a irmã e começou a escrever
mentalmente o certificado de demência. Ignorando a expressão do irmão, Ivana continuou com o seu improvisado
plano. “Quem me dera a mim poder ir para a Sorbonne!”
“A sério!?” Perguntaram o pai e o irmão em simultâneo.
Estudando a filha pelo espelho retrovisor, Ângelo Rodrigues comentou confuso. “Mas sempre disseste que
detestavas Francês e quando Rodolfo me contou que estava a tratar dos papéis para o Bernardo eu até te falei
⌠ 10 ⌡
“Inverso”
L. C. Lavado
discretamente na possibilidade de ires, o que me deixaria com um orgulho enorme, mas tu disseste-me que que não
querias sair de Portugal...”
“Isso era antes.” Rectificou ela prontamente.
O silêncio e o som do motor do carro tomaram conta da conversa por alguns instantes. Ângelo Rodrigues
ponderava as palavras da filha e Fernando apercebia-se do plano incrivelmente estúpido e desesperado da irmã.
A chegada à entrada da escola deu vida às figuras dentro do carro e Ivana executou o golpe final do seu plano.
Depois de um beijo de despedida ao pai mais carinhoso do que era necessário, seguiu-se os olhinhos de menina órfã
e o derradeiro pedido em voz tímida.
“Papá… eu… também gostava de ir para a Sorbonne.”
Embora consciente de que estava a ser manipulado, Ângelo não fazia intenção de resistir ao charme da filha. “Vou
tentar saber mais sobre o assunto. Serve?”
“Sim.” Concordou com um sorriso rasgado seguido de um segundo beijo. Ao voltar-se para entrar na escola
Fernando já tinha desaparecido. «Aquele não é capaz de espera um bocadinho por ninguém!»
Juntando-se à multidão de mochilas que cruzavam o portão de entrada empurradas pelo segundo toque de chamada
para a primeira aula do dia, Ivana ponderava pela primeira vez sobre os prós e os contras do pedido que tinha
acabado de fazer ao pai. «O cenário não é bonito.» Acabou por concluir num suspiro desanimado.
“Bom dia.” Cumprimentou Bernardo juntando-se a ela.
“Eu vou para a Sorbonne!” Anunciou ela triunfante. “E estou super contente.” O último comentário era mais para si
própria do que para ele.
Bernardo soltou uma gargalhada mais entusiasmada do que pretendia demonstrar. A conjugação da notícia com a
forma inesperada como lhe tinha sido dada tinha-o apanhado desprevenido. E tentando corrigir-se logo de seguida,
obrigou-se a retomar o tom distante de conversa que utilizava com ela. “Que bom para ti.”
Caminharam juntos mais alguns metros, cada um deles com o olhar preso no chão e com o conhecido silêncio
como terceiro companheiro.
“Vou para o A.” Disse ele apontando para o pavilhão ao fundo e começando a afastar-se.
“OK, até logo.” Respondeu Ivana afastando-se no sentido contrário.
“A que horas sais hoje?” Perguntou ele. «Nem acredito que estou a perguntar isto.»
A pergunta parou Ivana e arrancou-lhe o olhar do chão; ela voltou-se e colou os olhos no rosto de Bernardo.
“Às cinco e meia.” Respondeu com um sorriso inevitável.
“Eu saio às quatro e meia, se quiseres posso esperar por ti e vamos juntos para casa.” Sugeriu timidamente. «Ou
podes dizer para eu ganhar juízo e ir à minha vidinha!»
“Claro!” Concordou tentando que os seus olhos não se transformassem em holofotes de fogo de artifício como
acontecia no mundo sincero dos desenhos animados.
“Está combinado.” Conclui Bernardo voltando as costas para esconder o sorriso e caminhado em passo apressado
para o pavilhão.
Ao vê-lo afastar-se, Ivana não cabia em si de felicidade. «O que quer que isto signifique é bom… é muito bom!!!!»
Pensava invadida pelo momento.
No entanto, três segundos depois, uma cena aterradora sobrepôs-se ao pensamento. O sonho do passeio idílico com
Bernardo no regresso a casa, durante o qual, até quem sabe, um tímido toque de mãos podia acontecer, foi
subitamente interrompido pelo aparecimento de uma matilha de cães sujos de língua de fora que corriam a toda a
velocidade em direcção a ela e a faziam começar a fugir que nem uma louca desgrenhada pela estrada fora.
«Malditas criaturas do demo que nasceram para me atormentar a vida!» O rosto de Ivana ficou pálido como cera
pelo pensamento, e tudo o que queria era que se abrisse um buraco no chão e a engolisse a ela ou aos malditos cães.
⌠ 11 ⌡
“Inverso”
L. C. Lavado
“Estás bem?” Perguntou Lia. “Parece que tiveste um encontro com umas das personagens da Anne Rice por volta
da hora do jantar.”
“Estou condenada.” Desabafou confortada por ver o rosto da melhor amiga. “A minha vida está a ser sabotada por
um bando de monte de pulgas.”
“Calma!” Sugeriu rindo. “Já te disse hoje que és demasiado dramática miúda?”
“Quando eu te contar…”
“Vamos por níveis.” Interrompeu Lia. “Primeiro nível é de importância real-prática e só depois vem a importância
subjectiva-sentimental. A professora de Inglês domina todo o primeiro nível pelo poder de influência que tem no
nosso futuro e como já estamos atrasadas para a aula sugiro que nos concentremos na locomoção. No intervalo
trataremos do outro nível. Sabes que eu arranjo solução para tudo!” E dando o braço a Ivana arrastou a amiga quase
inanimada para a aula.
§
A aula de Inglês começou e acabou e Ivana não ouviu uma palavra. Tinha uma possível catástrofe em mãos e não
sabia como evitá-la. Ansiosa por sugestões, escreveu um recado a Lia durante a aula a explicar detalhadamente
tudo o que tinha acontecido nessa manhã, começando pela Sorbonne e o convite de Bernardo e acabando com uma
descrição detalhada da perseguição canina que imaginava. Cada um dos temas era acompanhado por um ou dois
pontos de comentários pessoais e divagações.
“O que é que eu faço?” Perguntou de imediato à amiga logo que puseram o pé fora da sala.
“Não estou a ver solução…” Respondeu de imediato Lia. “…pelo menos não uma que vá de encontro aos teus
desejos.”
“Diz lá!” Incentivou Ivana em desespero. “Qualquer coisa menos os cães o Bernardo e eu no mesmo sítio!”
“Ouve até ao fim.” Ordenou já antecipando as interrupções de protesto. “Duas soluções. Primeira. Ligas ao teu pai,
dizes que não te sentes bem e pedes para te vir buscar. Segunda, menos boa mas igualmente eficiente. Ao final do
dia certificas-te do sítio onde o Bernardo está à tua espera e evitas que ele te veja, vais para casa sozinha e depois
dizes-lhe que se desencontraram.”
“Nenhum dos dois serve.” Contrariou Ivana. “O meu pai está no Porto e só vem à noite. Plano um falhado. Existem
telemóveis e eu tenho o número do Bernardo. Plano dois falhado.”
“Ficaste sem bateria, quando chegares a casa telefonas-lhe. Plano dois, activo!”
De braços cruzados e andando em círculos à volta de Lia, Ivana ponderava contrariada. Ir com Bernardo e cruzar-se
com os canídeos obstinados era bem mais catastrófico para o futuro da sua vida amorosa do que um pequeno
desencontro e um telemóvel sem bateria.
“É tudo uma questão de minimizar os danos.” Reforçou Lia ao perceber que, embora contrariada, Ivana já tinha
aceitado a sua proposta.
۞
Lia tinha sido a primeira amizade de Ivana depois de deixar Lisboa. Quando os gémeos entraram na escola pela
primeira vez, as suas características físicas pouco comuns foram inicialmente o centro das atenções e de todas as
conversas. Nos dias que se seguiram, as mesmas características, continuavam a ser motivo de resistência para a sua
convivência com as restantes crianças que se sentiam intimidadas pela cor de fogo dos cabelos dos irmãos, e pela
brancura extrema da sua pele decorada de sardas pouco comum em locais de praia. A todas estas razões juntava-se
ainda a falta de vontade dos dois em se integrarem naquele novo sítio.
Ao contrário dos restantes colegas, Lia, criança emancipada desde cedo, tinha ficado curiosa e não intimidada.
Logo na primeira oportunidade apresentou-se formalmente imitando o que via nos filmes de televisão pois entendia
que se os recém-chegados eram de Lisboa seria educado seguir os seus costumes.
⌠ 12 ⌡
“Inverso”
L. C. Lavado
A simpatia foi mútua e imediata naquele dia, e apesar de os anos terem passado e tudo se ter invertido na vida
social dos gémeos, a relação com Lia permaneceu intocável.
Hoje Ivana era a Rainha Social da escola e Fernando e Bernardo dividiam entre si o título de Rei. Todos os
admiravam, queriam conhecê-los e quando dirigiam a palavra a alguém era considerado um privilégio. O facto de
pertencerem às famílias mais ilustres e ricas daquela região, serem bonitos e entre eles vencerem todos os
concursos de conhecimento da escola justificavam os seus níveis de popularidade.
De memória curta, ninguém entendia o porquê de Lia estar entre eles. Apesar da pequena multidão de alpinistas
sociais que constantemente os rondava, nunca nenhum tinha conseguido tirar o título de Quarto Elemento a Lia,
talvez porque só para ela nada daquilo fazia sentido.
Filha única de um casal que de seu apenas a tinha a ela, Lia era a lógica em pessoa. Para ela tudo era analisável, e
nada lhe passava sem que tivesse uma explicação o que a tornou em pouco tempo a visitante mais assídua de todas
as bibliotecas geograficamente acessíveis pelos escassos transportes públicos.
Fazia questão de sorrir pouco desde que ouvira a expressão “Muito riso pouco siso” e após uma semana de análise
ponderada das variáveis inteligência e riso num conjunto heterogéneo de pessoas, tinha conseguido números que
comprovavam a veracidade do ditado.
Há anos que Ivana tentava demovê-la do comportamento e incentivá-la a mostrar mais vezes o seu sorriso perfeito
e a abandonar o penteado antiquíssimo que insistia em usar em homenagem a Virginia Woolf, mas sem sucesso.
Era a amizade sincera que nutriam uma pela outra que unia Lia e Ivana e as suas diferenças só a tornavam mais
colorida.
۞
Como sempre acontecia há hora de almoço, o jardim da escola funcionava como ponto de encontro entre alunos das
diferentes turmas. Fernando, especial apreciador da enorme utilidade do jardim pela capacidade de concentrar uma
amostra variada de exemplares do sexo feminino, fazia do momento o acontecimento do dia.
“Esta chica ainda me pára o coração…” Lamentava-se em tom de piropo ao ver passar Angélica, uma das poucas
raparigas do último ano com quem ainda não tinha namorado ou tido qualquer tipo de história amorosa.
“Desiste!” Aconselhou Bernardo sem levantar os olhos da revista que tinha nas mãos.
“Há mais raparigas na terra.” Sugeriu Bianca que secretamente aguardava o dia em que ele reparasse nela.
“Com certeza!” Concordou Fernando, e voltando a olhar Angélica do outro lado do jardim com um sorriso
ambicioso, acrescentou. “Mas deusa só há esta.”
“Quando é que vais crescer?” Perguntou Adriana com sorriso que demonstrava pouca esperança de que tal viesse
realmente a acontecer.
“Quando falas em crescer, queres dizer: ficar agarrado à mesma pessoa mais de cinco anos? Como tu e o teu
Martimzinho…” Zombou Fernando.
“Não me chamem para a vossa guerra.” Pediu de imediato Martim que já conhecia tão bem a namorada como o
amigo para saber que nenhum dos dois iria hesitar em o utilizar como ponto de argumentação e por fim júri.
“Tens toda a razão Adriana.” Apoiou Bianca. “Não passa de uma criança grande.”
“Que betinhas…” Resmungou Fernando em baixa voz, e sentando-se junto de Bernardo, cobrou em tom de
confidência. “Então vais para a Sorbonne e não dizes nada a ninguém?” Tinha esperado toda a manhã dando-lhe
oportunidade de lhe contar a novidade mas como o amigo não abria a boca ele decidiu dar um empurrão ao assunto.
Mas Bernardo limitou-se a sorrir em resposta. “Ainda nem lá chegaste e já estás todo snob!?”
“Deixa-te de coisas. Ainda me estou a habituar à ideia.” Justificou-se Bernardo.
“E pensavas contar-me quando? Depois de te ires embora? Por falar nisso, quando é que vais embora?”
“Três semanas.” Respondeu quase em sussurro.
⌠ 13 ⌡
“Inverso”
L. C. Lavado
“O quê!?” Perguntou atónito. «A Ivana vai ter um colapso.» “Então e as últimas duas semanas de aulas?”
“Os meu pais arranjaram uma solução com a direcção da escola… tenho de fazer uns trabalhos extra.”
“Tou parvo…” Desabafou Fernando ao saber que estava mais perto do que poderia imaginar de perder o seu melhor
amigo. Na indignação, esqueceu Angélica e perdeu o sorriso que ela lhe oferecia.
‫۝‬
PEQUENO CONTRATEMPO
O fim das aulas chegou mais uma vez lento e ansioso. Depois de seis intervalos e uma hora de almoço a evitar
encontrar Bernardo, Ivana preparou-se para o momento de pôr em prática o plano de Lia.
Escondida atrás da velha palmeira perto do portão principal, espreitava a saída da escola, e como antecipado,
encontrou lá Bernardo.
“Nem acredito que estou a fazer isto.” Lamentou-se com um suspiro. “Depois de mais de oito anos a sonhar com
este momento estou a fazer de tudo para me livrar dele.”
“Não há mal nenhum.” Disse Lia por cima do ombro da amiga. “Se ele gosta de ti hoje. Também vai gostar
amanhã.”
“Espero mesmo que seja assim…” Resmungou entre dentes. «Ou corres risco de vida Lia Sousa.»
Como se tivesse ouvido a ameaça, Lia afastou-se. “Eu vou lá então. Como combinado, digo-lhe que saíste mais
cedo porque não te sentias bem, e que já tentei ligar-te mas parece que estás sem bateria. O plano é perfeito. Ou não
seria meu.” Despediu-se com um sorriso provocador e caminhou em direcção a Bernardo.
Escondida pelo tronco gigante da árvore mais antiga que a própria escola, Ivana acompanhou a amiga com o olhar.
Quando a viu parar junto de Bernardo, sentiu o coração a apertar-se. «Era suposto ser eu…» Lamentou-se em
silêncio pela troca de papéis.
Depois de uma conversa surda aos ouvidos de Ivana mas da qual ela já conhecia cada palavra, Lia deixou-o com a
notícia e o desânimo de Bernardo era visível quando também ele deixou a escola.
A tarde estava ainda mais quente do que a anterior mas Ivana nem o notou. Desde que tinha saído da escola em
passo solitário só tinha conseguido olhar para o ecrã negro do telemóvel desligado e imaginar se era naquele
momento que Bernardo lhe estava a ligar ou se iria ser dali a dois, três, quatro segundos ou talvez nunca.
A curva dos seus pesadelos estava a acabar e como sempre os seus perseguidores caninos deveriam estar prontos
para mais uma corrida emocionante. Ivana começou os exercícios de respiração e guardou o telemóvel no bolso.
Nos segundos que se seguiam não haveria margem para erro ou distracção.
Mais uma vez, veio o inicio da contagem decrescente. Ao zero, disparou em corrida.
De olhos fechados, não demorou até que o som dos latidos anunciassem a Ivana que os seus perseguidores tinham
aceitado o desafio e entrado na corrida. «Corre, corre, corre.» Ordenava-se.
A emoção da corrida estava ao rubro. Os músculos das suas pernas trabalhavam a 100%, os cães recusavam-se
como sempre a desistir e ladravam como condenados; quando de repente o impensável acontece.
Ivana sentiu o telemóvel a saltar do seu bolso como se tivesse ganho vida própria. «Oh, não!» Um segundo de
distracção ao apanhar o telemóvel no ar foi o que bastou para lhe descoordenar o passo de corrida e a fazer
desequilibrar e cair desamparada contra o chão.
⌠ 14 ⌡
“Inverso”
L. C. Lavado
No impacto da queda viu-se rodeada de poeira levantada pela velocidade e o choque da cabeça no chão toldou-lhe
parcialmente a visão, mas não o suficiente para evitar que assistisse à aterradora aproximação dos cães que
impelidos pela excitação da possibilidade de finalmente a alcançarem corriam até ela. Em milésimos de segundo
que lhe pareceram minutos sem fim, sentiu os cães a morderem-lhe as calças, os ténis e a mochila.
De todo o lado haviam dentes a puxá-la. Não conseguia acreditar no que lhe estava a acontecer.
Uma voz que pareceu vinda do além começou a sobrepôr-se por entre os latidos e grunhidos. Ainda com a visão
desfocada, Ivana viu um vulto negro a aproximar-se que reconheceu como o enviado da morte com ordens para a
vir buscar. «Não acredito que vou morrer aos dezassete anos atacada por um monte de cães sem pedigree.» Pensava
incrédula com o fim mórbido que o destino lhe reservara. «Daqui a instantes chego ao céu e quando encontrar a
minha mãe vou ter de lhe dizer: “Mãe não vais acreditar no que me aconteceu..!” Eu mereço!»
A voz do vulto começou a tornar-se mais perceptível roubando Ivana dos devaneios apocalípticos.
“Saiam daqui!” Ordenava a voz. “O que é que vos deu!?”
Sentindo os ataques a cessar, tentou levantar-se de imediato para fora do alcance dos rafeiros que a abocanhavam
com toda a vontade e entusiasmo, mas ao pôr-se em pé o resultado foi uma queda quase tão violenta como a
primeira.
“Tem calma.” Pediu a voz nitidamente a tentar conter o riso. “Experimenta sentar-te primeiro.”
Contrariada, Ivana seguiu a sugestão enquanto tentava ajeitar o cabelo que era o que verdadeiramente a estava a
impedir de ver claramente. Depois de dar tempo aos seus olhos para se ajustarem à luminosidade do sol, reparou
com mais atenção na figura vestida de preto que a observava. Em pé estava um rapaz que deveria ser pouco mais
velho do que ela, de cabelos negros e lisos que lhe tocavam nos ombros, pele era morena, e uns olhos verdes
luminosos e sorriso branco que contrastavam com os seus tons escuros que o caracterizavam.
Ivana confirmou que não tinha sido impressão sua, ele estava realmente a rir-se dela, e por mais encantador que os
seus instintos femininos pudessem achar aquele sorriso, o orgulho soltou-lhe a cólera.
“Não percebo qual é a piada aqui.” Disse numa voz ríspida. “Não viu que eu quase morria!?”
“Tens razão, peço desculpa. Não sei o que deu nos cães, eles costumam ser muito meigos...”
“Costumam!?” Interrompeu Ivana indignada “Estes monstros caninos maquiavélicos são seus!?”
“Calma!” Pediu ele.
“Calma nada!” Devolveu furiosa e levantando-se continuou a praguejar. “Sabe quantos dias eu tive de correr que
nem uma condenada para fugir deles!?” Uma dor mais forte na perna obrigou Ivana a desacelerar o discurso.
“Se calhar gostam da tua cor de cabelo…” Sugeriu ele desajeitadamente.
“Acredito que sim. Todos os dias alguém me diz que pareço um salsichão…” E não aguentando mais a dor na
perna voltou a sentar-se no chão.
“Parece que te aleijaste a sério... deixa-me ver.”
A dor lancinante que sentia deixou Ivana vazia de qualquer energia ou vontade de contrariar o inesperado
companheiro que ao desviar as calças encontrou um golpe profundo na canela.
“Isto não está bonito aqui em baixo.” Comentou. “Deves ter mesmo boa pontaria porque caíste em cima daquela
pedra.” Disse apontado para uma pedra que se destacava das restantes que cobriam o caminho, pela sua dimensão e
pela mancha vermelha de sangue que a cobria.
“Pois…” Murmurou ela. «Sangue, era só o que me faltava!»
“Onde é que moras? Eu levo-te lá.”
“Não é preciso. Consigo ir sozinha.” Garantiu. Mas ao começar a sentir os efeitos secundários que por tradição o
sangue tinha nela, Ivana achou prudente dar informação que sabia iria ser útil dali a poucos segundos. “É já ali à
frente, na casa com o jardim grande à frente.”
“Já estou a ver onde é.” Disse ele. “O meu nome é Gabriel...”
⌠ 15 ⌡
“Inverso”
L. C. Lavado
Ivana ainda tentou responder mas o mundo apagou-se.
۞
Sem a mínima ideia de quanto tempo tinha passado desde que, mais uma vez, o seu espírito tinha decidido vaguear
sem o corpo, Ivana sentiu-se lentamente a regressar à vida. Tonturas, olhos pesados, visão desfocada, boca mais
seca que papel de jornal, e por entre sons distorcidos que ouvia as últimas palavras do vulto negro eram o som mais
nitido que lhe ecoava na memória «“O meu nome é Gabriel… Gabriel… Gabriel…”» O eco era tão irritante quanto
o barulhento motor de automóvel que lhe fazia a cabeça explodir de dor.
“Au…” Queixou-se logo que consegui fazer algum ar passar-lhe na garganta.
“Tenta não te mexer. Estamos quase a chegar ao hospital.”
“Hospital!?” Á mera menção da palavra o cobarde do seu espírito tentou fugir mais uma vez. «Estou bem só com o
sangue, obrigado. Acho que consigo dispensar o hospital... e o éter...» Pensava já com pena de si mesma, mas a
ideia depressa foi interrompida. A voz, era a voz que ela reconheceria até no estado deplorável em que estava.
«Bernardo.» Ela queria dizer o nome dele, ou até pedir que não a deixasse. Se havia momento em que a sua
estranha relação com o sangue lhe daria alguma vantagem era ali no limbo da consciência e em que mais tarde tudo
poderia ser desculpado com delírio. Mas mais uma vez o plano não corria como era suposto e um curto suspiro
silêncioso foi o acto estrondoso de coragem que conseguiu. «O dia não está a ser dos melhores...»
Ao abrir os olhos não reconheceu o interior do carro e percebeu que estava deitada no banco de trás de um táxi. A
sua cabeça apoiada num colo, alguém lhe acariciava o cabelo, e ao desviar o olhar encontrou o de Bernardo que a
observava preocupado. «Talvez aqueles cães até saibam fazer as coisas...» Ela sorriu e ele sorriu-lhe de volta.
Mas a felicidade durou pouco.
Dois minutos depois, o carro parou em frente da porta das Urgências, o feitiço foi quebrado, e no momento em que
foi deixada confortavelmente numa maca, teve o privilégio de rever a sua ferida exposta sobre a luz brilhante da
sala de observações.
Ao lento aproximar do médico e com vista priveligiada para todos os brilhantes utensílios de trabalho nas pequenas
mesas metálicas em redor, Ivana dedicou-se a uma gritaria de qualidade inesperada cujos decibéis deixariam
qualquer bebé com vergonha.
Depois de longos minutos de sofrimento e uma embaraçosa luta com médicos e enfermeiros recheada de
descoordenados movimentos de defesa que em outro scenário seriam cómicos, foi finalmente deixada num quarto a
recuperar e a usufruir das sensações maravilhosas que o cocktail de drogas lhe oferecia a interválos regulares.
‫۝‬
VISITAS
A noite já tinha recebido a madrugada quando Ivana abriu os olhos.
«Devo estar mesmo mal para ter de passar aqui a noite» Lamentou-se ao olhar o tecto branco do quarto da
enfermaria.
“Estava a pensar que nunca mais acordavas” Disse uma voz protegida pela sombra no fundo do quarto.
Surpresa com a presença inesperada de uma visita àquela hora silenciosa, Ivana sentou-se na cama com um
movimento brusco que lhe pôs de novo a cabeça a andar à roda e a fez encolher-se de dor.
“Au…” Queixou-se levando a mão à cabeça. “Pelo amor de Deus, desde que entrou na minha vida que os escassos
instantes de consciência que tenho são acompanhados de dor!”
⌠ 16 ⌡
“Inverso”
L. C. Lavado
Sorrindo divertido, Gabriel levantou-se da cadeira que ocupava e aproximou-se da cama. “Vamos ter de fazer
alguma coisa para mudar isso.” Disse por fim. “E para começar, podes tratar-me por tu, não sou assim tão velho.”
“Sendo assim, então tu podes dizer-me como é que te deixaram entrar aqui. Não és com certeza da família, muito
menos amigo, nem sequer conhecido… quanto muito alguém com um sentido de humor completamente
destorcido… macabro até!”
“Estás a melhorar.” Comentou mantendo o sorriso. “Digamos que tenho os conhecimentos certos para poder estar
aqui.” Esclareceu.
“Porque é que eu tenho a sensação de que essa é apenas uma versão abreviada?”
“Só queria certificar-me de que estavas bem.” Concluiu. “Quando te deixei em casa não estavas na tua melhor
forma.” E esticando o sorriso acrescentou. “E para além disso, nunca me chegaste a dizer o teu nome.”
“Ivana”. Apresentou-se oferecendo a mão para um cumprimento formal. “Mas já deves ter visto na minha ficha,
não é?”
Gabriel segurou-lhe na mão sem parecer com pressa para a largar. “Não. Eu não gosto de invadir a privacidade dos
outros.” Gracejou com um leve deslizar de dedos que poderia ou não ser uma carícia.
Ao soltar-lhe a mão uma rosa surgiu do nada e veio ocupar o sitio que a mão dele tinha ocupado na dela.
A visão inesperada apanhou Ivana completamente desprevenida, os seus olhos permaneceram tão abertos quanto
era possivel, congelados pela confusão de uma imagem que não conseguiam fazer sentido até que a rosa conseguiu
arrancar-lhe o sorriso que só a magia consegue criar.
“Como é que…?”
“Para além de conhecer algumas pessoas também conheço… outras coisas.” Esclareceu Gabriel com um sorriso
que se revelou perigosamente encantador e a obrigou a voltar a chamar a razão.
“Compreendo... és uma pessoa que não gosta de invadir a privacidade dos outros e foi por isso que te escondeste
aqui enquanto eu estava a dormir. Tem lógica.”
“Foi um privilégio conhecer-te Ivana.” Disse em despedida. “Espero que as coisas te corram melhor daqui para a
frente.”
Ainda surpresa pela rosa que segurava e à espera de resposta ao comentário provocador Ivana viu-o simplesmente a
voltar-se e ir embora em silêncio. «Mas o que é raio aconteceu aqui!?» Pensou dando um olhar em redor do quarto
vazio e parando na rosa que permanecia na mão.
Com o cérebro a trabalhar nos pormenores daquele estranho encontro, a medicação arrastou Ivana de volta para a
almofada e ela adormeceu com os olhos presos à porta por onde Gabriel tinha desaparecido.
۞
A notícia do acidente com a filha do Sr. Engº junto ao acampamento cigano, correu à velocidade que só as más
notícias numa pequena Vila conseguem correr. No boca a boca e em cada mensagem de telemóvel que propagava
os acontecimentos, era acrescentado o inevitável comentário pessoal, que logo se tornava em verdade. Numa das
últimas versões dos acontecimentos contava-se que “A filha do Sr. Engº tinha sido atacada por um cigano no
caminho de volta da escola, e agora estava no hospital às portas da morte. Pobre criança.”
Politico astuto e atento ás oportunidades, Rodolfo Corte Real tratou de imediato de incentivar os eleitores a
manifestarem o seu descontentamento e preocupação com a permanência dos ciganos na sua vila perfeita.
Já tinha escurecido quando a estrada de terra batida ficou preenchida por dezenas de populares revoltados com o
acontecido e unidos em vigília em frente do acampamento.
“O que é que eu perdi?” Perguntou Lia ao encontrar Adriana e Martim.
“Aparentemente nada.” Respondeu ele.
⌠ 17 ⌡
“Inverso”
L. C. Lavado
“Está tudo assim em silêncio e de vela na mão desde que chegamos cá.” Acrescentou Adriana. “Há uma hora
atrás!”
“O povinho está cá em peso!” Observou Lia ao olhar em volta.
“A Bianca está lá para a frente na primeira linha.” Disse Adriana rindo.” Quando se junta um monte de velhos e
velas é infalível, lá está ela!”
“Isto realmente mais me parece o inicio de uma procissão do que um levantamento popular.” Lamentou-se Lia
visivelmente desiludida com a pacificidade da cena. “Vou ver se consigo saber mais alguma coisa senão ainda
acabo por adormecer em pé.”
Depois de percorrer a pequena multidão por alguns minutos, Lia reparou num velho encostado a um muro de tijolos
antigo do lado oposto da estrada. Ele resmungava entre dentes como se alguém estivesse ao seu lado para ouvir os
lamentos. «Parece-me a pessoa ideal para partilhar ideias.»
“Isto está muito calmo.” Comentou Lia iniciando conversa com o velho.
“É uma vergonha! O povo parece que perdeu a força que tinha antigamente.” Veio de imediato o protesto.
Lia assentiu em concordância com um aceno de cabeça compreensivo. «É óbvio que o homem precisa desabafar
com alguém.» E provocando-o a continuar, acrescentou com um sorriso. “Confesso que esperava um bocado mais
de entusiasmo.”
“E até teve no início mas apareceu para aí um loirinho, que nem lhe vi muito bem a cara, que disse que não tinha
acontecido nada do que o povo pensava. Acho que era o filho do Presidente. Agora tá tudo assim nesta
parvalheira!”
“Ahh…” Disse Lia sabendo que só o loirinho só poderia ser Bernardo. “E agora ficamos cá todos a olhar uns para
os outros?” Perguntou impaciente.
“A menina até pode ficar, mas eu cá vou-me embora!” Anunciou separando-se do muro.
“Isto tudo foi para nada?” Perguntou mais desiludida do que nunca.
“Pelo menos ficamos com uma data para nos livrarmos deles e daquelas festas barulhentas pela noite fora.”
“Eles disseram quando vão embora?”
“Sim.” Confirmou o velho olhando o Presidente da Câmara que sorria ao longe em conversa com Ângelo
Rodrigues. “Eles garantiram que no final de Agosto levantam acampamento.”
O velho afastou-se em passos vagaorosos e Lia permaneceu imóvel junto do muro, a apreciar a dimensão dos
estragos que o seu simples plano para Ivana tinha causado. «Acho que estou a descobrir o meu talento natural para
destabilizar.» Pensou sem evitar o sorriso que lhe tocava os lábios pelo cenário à sua frente. «Um dia ainda posso
fazer vida disto...”
۞
O acordar não foi tão pacífico como o adormecer. O barulho dos passos em corridinha de entra e sai do quarto e o
murmurinho de conversas cruzadas arrancou Ivana do sono pacífico.
Os redondos olhos de Lia foram a imagem que a recebeu.
“Uou… uma pessoa já nem tem privacidade para acordar!” Reclamou secretamente feliz por ver a amiga.
“Que susto que me deste.” Desabafou Lia. “Nunca tinha levado a sério quando falavas dos cães, pensava que era
mais um episódio que o teu cérebro projectava tantas vezes até ter tamanho suficiente para se tornar realmente
importante.”
“Vê como um sinal dos céus a dizer que tens de me levar mais a sério.” Sugeriu sem esperanças.
“Já estás a dramatizar outra vez...” Avisou Lia num suspiro que se rendia à personalidade trágica da amiga.
⌠ 18 ⌡
“Inverso”
L. C. Lavado
“Onde estão os outros?” Perguntou ao ver que as caras em volta eram as enfermeiras em conversa com a senhora da
limpeza.
“Estão lá fora.” Respondeu passando de seguida para um sussurro apressado. “Tenta falar o menos possível sobre
ontem. Diz que ainda estás tonta… que não te lembras muito bem.” O olhar confuso de Ivana pedia mais
explicações. “O nosso plano conjugado com o teu pequeno… imprevisto deu cá uma confusão que envolve polícia,
governo municipal e milícias populares. Por isso, caladinha até estarmos a sós e...”
A atenção das duas voltou-se para a entrada do quarto pela chegada de Ângelo Rodrigues, seguido por Fernando e
Bernardo.
“Acordada.” Constatou Ângelo Rodrigues com satisfação. “Como te estás sentir?” Perguntou de imediato num tom
cauteloso.
“Melhor.” Descansou-o.
Fernando escondia-se atrás de um sorriso. “Pronta para ir para casa maninha?” O desespero do dia anterior quando
ao abrir a porta tinha encontrado um cigano com a irmã no colo inanimada e a sangrar, ainda lhe apertava o
estômago.
Ivana devolveu o sorriso com um aceno de cabeça. Ir para casa parecia-lhe a ideia perfeita.
“É bom ver-te.” Disse Bernardo em tom de comprimento e percorrendo-a da cabeça aos pés como se tivesse visão
raio-x e se estivesse a certificar de que tudo estava em ordem.
“Todos a sair para ela se vestir!” Ordenou Lia levantando-se e abrindo a porta para que não restassem dúvidas
sobre o convite.
Ivana sorriu quando o pai lhe deu um beijo na testa em despedida. “Esperamos por vocês lá fora.”
Fernando piscou-lhe o olho e Bernardo deixou-a com um leve aceno de mão.
Depois de eles terem saído, Lia sentou-se na berma da cama e preparou-se para a despejar as loucuras das últimas
horas. “Nem vais acreditar na confusão que tu e os teus arqui-inimigos cães arranjaram!”
“Conta lá.” Ivana riu pelo ar de conspiração e entusiasmo da amiga. “A única coisa que me lembro é de ser atacada
pelos cães, depois salva pelo dono dos cães, depois desmaiado, depois acordar no colo do Bernardo, desmaiado
outra vez, depois umas cenas infelizes que envolveram médicos e enfermeiras, desmaiado outra vez, depois
acordado à noite com a visita do dono dos cães e por fim adormecido normalmente… pacifico!”
“Ele esteve cá!?” Os olhos de Lia pareciam ainda mais enormes. “Tens a certeza que não deliraste?” Perguntou
olhando-a com desconfiança. “Eles encharcaram-te de drogas.” «E essa cabeça não é de fiar!»
“Claro que tenho a certeza! Ele disse que conhecia umas pessoas e que conseguiu entrar.”
“Ele é um cigano!” Contrapôs Lia. “Está a viver cá há provavelmente pouco mais de quatro meses, como é que isso
é possível? Eu até duvidava que ele conhecesse o caminho para o hospital quanto mais alguém que trabalhe aqui.”
“Pára com isso.” Pediu Ivana. “Não fales assim.”
“Estás a defendê-lo!?” Perguntou Lia mais desconfiada pelo tom que tinha na voz do que pelas palavras.
“Lia, pára com isso e conta-me de uma vez o que tens para contar.”
“Pois.” Concordou ordenando as ideias. “Parece que depois de eu falar com o Bernardo e ele ter tentado ligar-te
para ver como estavas, e não ter conseguido é claro, ele decidiu ir a tua casa para saber se estavas bem…”
“Que querido…” Suspirou Ivana.
“ … quando o teu querido chegou e contou a história ao Fernando ficaram logo os dois de antena no ar porque eu
disse que tinhas saído da escola há uma hora e tu ainda não tinhas chegado quase duas horas depois. Quando já
estavam para te ir procurar, toca a campainha e aparece o cigano contigo nos braços. Eu não estava lá para ver mas,
pelo que ouvi das conversas entre o teu irmão e o Bernardo, aquilo foi a loucura total com os dois prestes a matar o
cigano de porrada não fosses tu ainda continuares apagada nos braços dele.”
“Então era por isso que o Bernardo estava no táxi.” Ivana reconstituía a linha de acontecimentos.
⌠ 19 ⌡
“Inverso”
L. C. Lavado
“Exacto. O teu pai não estava e eles chamaram um táxi para te trazer para aqui. São mesmo homens, em vez de
chamar a ambulância chamam um táxi! Enfim, continuando. Sem saber muito bem como, porque estas coisas
nunca se sabem, a notícia espalhou-se pela vila e cada um foi acrescentando mais um bocadinho até que a versão
que chegou aos ouvidos da minha mãe no inicio da noite era que a filha do Sr. Engº tinha sido atacada pelos
ciganos e estava no hospital às portas da morte. Eu ia caindo da cadeira quando a minha mãe me contou mas
depois de falar com o teu irmão vi que era tudo história do Zé Povinho.” O espanto na expressão de Ivana fez Lia
parar e prepará-la para o que se seguia. “Agora vem a parte mesmo doida!” Com um sorriso pelo recordar da cena
insólita, Lia continuou. “Infelizmente nem todos puderam fazer o mesmo que eu e confirmar o que realmente tinha
acontecido. Depois do jantar, apareceu lá em casa umas vizinhas a convidar-nos para nos juntarmos ao
levantamento popular que ia acontecer em frente do acampamento cigano para exigir justiça. Nesta altura eu
comecei a ficar realmente preocupada. Como não havia mais nada que pudesse fazer, liguei outra vez para o
Fernando a pedir que se mexesse para fazer alguma coisa útil na vida e fosse lá para esclarecer aquela gente toda,
mas já sabes como é o parvinho do teu irmão, nem quis saber, acho que até ficou feliz com a notícia!”
“E o que é que aconteceu lá?” Ivana estava realmente preocupada pelas consequências que uma pequena mentira e
uma queda tinham tido. «Ele não me contou nada disto.» Pensava na visita da madrugada.
“Eu não consegui resistir em participar, não podia perder o primeiro levantamento popular da minha existência.”
Confessou com um sorriso mórbido. “Quando lá cheguei estava uma multidão em frente ao acampamento, coisa
digna de ser vista. Na minha inocência criativa, esperava ver umas enxadas e umas foices no ar, algo revolucionário
do género, bem comunista, mas foi tudo muito pacifico e a única coisa que empunhavam era umas velas, o que até
deu um efeito giro à coisa... muito Nossa Senhora de Fátima.” Ivana laçou-lhe um olhar reprovador mas Lia
continuou o discurso indiferente à desaprovação aos seus comentários. “Quando estava a estudar aquele evento
social, vi um velhote que parecia tão desiludido quanto eu pela pasmaceira daquele ajuntamento e então comecei
em amena conversa com ele e soube que alguém já tinha esclarecido o que te tinha acontecido, pela descrição do
velhote, tinha sido o Bernardo.”
“Sempre justo.” Observou orgulhosa. “E eles ficaram por lá na mesma?”
“A verdade é que toda a gente já queria expulsar os ciganos há muito tempo e tu só lhe fizeste o favor de dar a
desculpa.” Conclui Lia. “Ninguém ia perder a oportunidade.”
“Obrigaram-nos a ir embora?”
“Mais ou menos. O velhote contou-me que alguém tinha falado com o chefe, ou líder, ou lá o que seja dos ciganos
e que eles ficaram de ir embora lá para Agosto.”
“Estou parva.”
“Sim, sim…” Concordou Lia compreensiva. “E havias de ver a felicidade do Presidente da Câmara ao saber que
em dois meses se vai livrar da ciganada toda. Acho que o teu pai só não está tão feliz quanto eles porque estás
aqui.”
“Para mim já chega de histórias por hoje.” Anunciou Ivana levantando-se da cama para pegar nas roupas que lhe
tinham trazido. “Só quero voltar para casa para a minha vidinha normal.”
“Isso deve estar mesmo mal…” Comentou Lia ao estudar com atenção a perna da amiga. “Ligaram-te isso de uma
maneira que parece que tens metade da perna mumificada.” E com uma gargalhada concluiu. “Só te pouparam o pé
pela tua maravilhosa pedicura francesa.”
“Simpática como sempre.” Acusou Ivana sem conseguir evitar sorrir. «E louca.» Pensou feliz por ter a amiga ao
seu lado.
‫۝‬
ÁGUAS TURVAS
⌠ 20 ⌡
“Inverso”
L. C. Lavado
De regresso a casa e mais confortável pela ausência do cheiro a éter que sempre lhe expulsava a consciência e
desligava o cérebro, Ivana passou o resto da semana a recuperar entre a cama e o sofá. O repouso absoluto
recomendado pelos médicos foi investido a actualizar as páginas pessoais na Internet, carregar o blogue com mais
algumas crónicas de adolescente e retomar antigos contactos.
Apesar de todos os diagnósticos preverem que a sua recuperação iria ser dolorosa pelo facto de o ferimento na
perna ser bastante profundo, Ivana não sentia qualquer dor e inclusive tinha dispensado a medicação prescrita para
a dor.
Na primeira visita ao hospital para substituir a ligadura, o médico ficou surpreendido com os progressos de
cicatrização que classificou como “notáveis”; quando perguntou como andavam as dores e a paciente lhe confessou
que não sentia nada de especial, ele, obviamente não conhecendo a inexistente tolerância à dor de Ivana, deu os
parabéns ao pai pela filha corajosa que tinha.
Após várias tentativas falhadas de explicar que realmente não tinha dores, ela acabou por se render e aceitar a
recomendação de mais dois dias de descanso, na sua opinião desnecessário, mas que o médico insistia e o pai
apoiava.
A viver o quinto dia de descanso, a Internet já não se mostrava tão apelativa e uma ida às aulas nunca se tinha
apresentado como um plano tão emocionante como naquela altura. Ivana começou a acreditar que o excesso de
tempo livre estavam a fazê-la dedicar mais energia do que seria normal a pensar em coisas e pessoas que de outro
modo não teriam qualquer importância. O mesmo seria dizer, pensar em Gabriel, e todas as coisas mais ou menos
estranhas que aconteciam quando ele estava por perto, e que lhe davam de uma aura de mistério totalmente nova
para ela e por isso irresistível.
Ao contrário do que esperava quando saiu do hospital e se viu rodeada dos cuidados de Bernardo, ele não tinha
voltado para a visitar desde esse dia nem houve qualquer tipo de reaproximação depois do falhado encontro ao
portão da escola. Tinham trocado algumas mensagem rápidas onde ele se limitava a perguntar se estava tudo a
correr bem e não havia qualquer palavra para além do socialmente necessário. Tudo estava como sempre tinha sido.
Bernardo, o melhor amigo do irmão, e nada mais do que isso.
Mas naqueles cinco dias pelo menos uma coisa mudara, só que Ivana não sabia se era para melhor. O seu
conhecido sonho, onde tantas vezes fugia dos cães, foi alterado pela primeira vez em meses. Agora, continuava a
ouvir os latidos a perseguirem-na e a ver-se a correr com todas as suas forças, mas logo a seguir surgia a voz do
vulto negro que chamava os cães para junto de si e os latidos silenciavam-se de imediato. Quando ela olhava para
trás, para se certificar que já não era perseguiada, via Gabriel ao longe junto a uma árvore enorme e lindíssima,
com as suas roupas pretas, as mãos nos bolsos e uma expressão indecifrável. Pela distância não lhe consegui verlhe os olhos, mas sabia qual era o seu verde e que a observavam. Em redor dele estavam os cães que costumavam
persegui-la, só que sentados e disciplinados, com as cabeças ligeiramente inclinadas, como num gesto de
arrependimento.
Quase todas as noites nessa semana vivia o mesmo sonho e acordava ainda com a respiração ofegante da corrida.
Quando os seus olhos se adaptavam ao escuro parecia-lhe ver Gabriel sentado na cadeira do seu quarto, tal como o
tinha visto no hospital, imóvel a observá-la. De todas as vezes tinha acendido a luz do pequeno candeeiro, e a cada
noite num gesto mais rápido, como se fosse possível surpreendê-lo, como se fosse possível que ele estivesse lá,
como se fosse possível alguma vez a cadeira não estar vazia.
Sem se questionar porquê, na última noite quando acordara e instintivamente a mão tinha procurado o interruptor
do candeeiro, no último segundo decidiu não o ligar. Voltou ao aconchego dos lençóis e manteve o olhar no vulto
até se deixar adormecer mais uma vez.
Sobre o assunto, Ivana preferia aceitar a teoria de Lia quando lhe tinha contado sobre a mudança no sonho.
“Independentemente de tudo o resto, ele salvou-te.” Explicou Lia. “É normal que o teu cérebro o classifique como
algo de bom, é uma questão de sobrevivência, é essa a principal função do cérebro: manter-te viva. É isso que faz
com que ele te invada de sentimentos como calma, conforto, etc, sempre que tens associada a imagem do cigano.”
A explicação sobre as suas novas noites era racional e muito melhor do que procurar encontrar a verdadeira:
‫۝‬
⌠ 21 ⌡
“Inverso”
L. C. Lavado
ILUSÃO? NÃO.
Por fim chegou o dia de voltar às aulas. Era segunda-feira e, à excepção do ritmo ainda lento do passo de Ivana,
toda a casa dos Rodrigues vivia a agitação típico de uma manhã de início de semana. Ângelo Rodrigues encontrou
os filhos na cozinha a discutir sobre quem ficava com a última maçã para o lanche.
“Calma crianças.” Pediu ao entrar na cozinha. “Cheguem-se aqui um minuto para falarmos.”
“Já estamos atrasados.” Reclamou Fernando sempre pronto a arranjar uma desculpa para fugir das conversas
familiares.
“A tua irmã ainda está em recuperação. Tens uma boa desculpa para dares.”
“Ivana, quanto à Sorbonne já tenho notícias. Boas e más.” Depois de uma pausa propositada continuou. “A boa, é
que é perfeitamente possível ires para lá.” O sorriso da filha fê-lo continuar sem demoras. “As despesas são
suportáveis e pelo que soube as tuas notas estão mais do que ajustadas. Mas. Há a má notícia. Os prazos de
inscrição para novos alunos já terminou. Ou seja, vais ter de esperar pelo próximo ano.”
“O quê!?” Perguntou já derrotada pela novidade.
“Calma.” Pediu o pai. “Um ano passa num instante, e não devias estar contente por teres um ano de férias?”
“Que injustiça!” Praguejou. E sem vontade de continuar a falar no assunto começou a caminhar desajeitadamente
direcção ao carro com o apoio das muletas.
“Deixa pai, eu converso com ela.” Descansou-o Fernando.
A má disposição de Ivana permaneceu durante toda a manhã e não melhorou pela tarde.
O murmurinho geral de cochichos e segredinhos sobre o seu acidente, aguçados com o recente regresso às aulas,
alimentaram as conversas paralelas de corredor durante todo o dia, o que não ajudou na recuperação dos níveis de
boa disposição.
Enquanto esperava junto ao portão da escola pela boleia do pai, viu aproximarem-se Bernardo e Fernando.
“Pronto para te fazeres à minha boleia é?” Perguntou ao irmão logo que este estava ao alcance da sua voz.
“Estou a ver que ainda estamos de bom humor.” Devolveu ele.
“Primeiro dia de regresso às aulas, foi assim tão difícil?” Perguntou Bernardo.
“Não.” Esclareceu de imediato Fernando sendo de seguida fulminado pelo olhar da irmã. “Ela está em brasa
porque soube hoje que a inscrição dela na Sorbonne não chegou a tempo das inscrições para este ano.”
Procurando conter a vontade de lançar uma das suas muletas na direcção da cabeça do irmão, Ivana escondeu de
Bernardo a expressão de vingança que lhe enrrugou o rosto. Disfarçadamente olhou para o outro lado da rua onde
esperava ver aparecer a qualquer momento o carro preto do pai. «Com este Cupido imbecil estou condenada a ficar
para tia.» Lamentou-se resignada.
As palavras de Fernando empurraram o olhar de Bernardo para o chão. “Ter de esperar um ano?” Perguntou-se
num sussurro quase surdo que levava no tom desilusão.
Mas para felicidade de Ivana ela estava suficientemente perto para o conseguir ouvir.
Subitamente carregada de energia pelo significado das palavras de Bernardo naquela simples frase, ela abandonou
pela primeira vez a máscara de indiferença que sempre usava com ele, olhou-o sem vergonha e deixou o amor
infantil espelhar-se num sorriso.
⌠ 22 ⌡
“Inverso”
L. C. Lavado
Quando Bernardo levantou o olhar e encontrou o de Ivana, percebeu de imediato que os barulhos da rua não o
tinham escondido e que ela o tinha ouvido. O rosto que o observava não era o que ele conhecia e a felicidade de a
ver daquela maneira inesperada fê-lo sorrir de volta.
Indiferentes à mudança que acontecia na vida de Ivana e Bernardo, o burburinho das conversas de final de dia e a
confusão de entra e sai de mochilas no portão da escola continuaram; outros estudantes despediam-se sem pressa,
outros riam, corriam, outros seguiam o caminho de volta para casa, mas para aqueles dois ficava a promessa de que
nada seria como dantes.
Focado na conversa com a mais recente das suas conquistas, Fernando estava ignorante ao que se passava ao seu
lado e a atenção só foi desviada pela chegada do carro do pai.
“Tenho de ir chica.” Despediu-se da companheira pontual. E voltando-se para a irmã perguntou impaciente. “Então
não vens!? Isso agora é um bocado mais lento, tens de te ir pondo à frente. Faz-te à vida!” Ao aperceber-se
finalmente do estranho sorriso no rosto da irmã e do amigo, entendeu que algo se tinha passado. “O que é que eu
perdi?” Perguntou olhando os dois alternadamente.
“Nada.” Respondeu a irmã largando com sacrifício o olhar de Bernardo e lançando-lhe um sorriso de enfado. “Nós
é que estamos a disfrutar de uns segundos sem te ouvir.”
“Não tens piada nenhuma. Despacha-te mas é! Estou cá com uma larica.”
Rindo da constante obsessão de Fernando com a comida, Bernardo pegou na mochila de Ivana e tentou repôr a voz
ao tom mais normal possível naquele momento. “Eu ajudo-te.” Ofereceu-se.
O sorriso de agradecimento dela não se fez esperar.
“Tudo bem Bernardo?” Perguntou Ângelo Rodrigues. “Queres que te deixe em casa?”
“Obrigado. mas tenho de fazer umas coisas antes.”
“Tudo bem então.” E olhando para os filhos certificando-se que tinham o cinto de segurança. “Prontos?”
“Sim, bora lá.” Respondeu Fernando impaciente. “Até Bernardo!”
“Xau.” Respondeu ele levantando a mão mas sem conseguir desprender o olhar de Ivana.
Ao ver o carro afastar-se Bernardo levou a mão ao bolso, tirou o telemóvel e escreveu PRECISAMOS FALAR. No
destinatário seleccionou IVANA. E sem hesitação, seleccionou ENVIAR.
§
A paisagem do outro lado da janela era substituída à velocidade do carro mas Ivana não se apercebia. Com o olhar
preso no passado, revia vezes sem conta o rubor irresistível no rosto de Bernardo e o murmúrio quase indecifrável
das palavras no portão da escola.
O vibrar do telemóvel trouxe-a de volta à realidade. Ao ver que era uma mensagem de Bernardo os seus dedos
apreçaram-se a desvendar o conteúdo. PRECISAMOS FALAR leu num piscar de olhos. «Claro que precisamos!»
Concordou de imediato. «…mas sobre o quê?» Sabia que não ia conseguir sobreviver até ao dia seguinte com a
dúvida.
Escolheu RESPONDER. Enquanto escrevia os dedos tremiam ligeiramente. ESTAMOS BEM? Escreveu. Ainda revia a
sua pergunta quando seleccionou ENVIAR. As conversas usuais do pai e do irmão continuavam a correr no banco
da frente. Como era possível o mundo continuar igual quando para ela parcia explodir em fogo de artifico?
“O jogo foi uma vergonha! Do principio ao fim…” Protestava o irmão.
O telemóvel voltou a vibrar trazendo-lhe a resposta que tanto esperava e abafando as vozes. NUNCA ESTIVEMOS
MELHOR. Respondeu Bernardo.
Depois de ler e reler o pequeno texto e alguns segundos a acreditar na mensagem, Ivana soltou uma gargalhada.
Tudo estava prestes a acontecer e ela sentia-o.
O pai interrompeu-se olhando-a através do espelho retrovidor e o irmão voltou-se para trás.
⌠ 23 ⌡
“Inverso”
L. C. Lavado
“Não serves mesmo pa nada!” Disse entre risos.
Sem perceber nada do que ela estava a falar, Fernando olhava-a com as sobrancelhas pesadas.
“O que é que se passa com ela?” Perguntou o pai confuso mas começando a sorrir por contágio.
“Acho que temos de ver as doses da medicação...”
Ivana esticou o braço até ele e deu-lhe um cachaço.
“...deves estar com vontade que eu te atire para fora do carro ali à frente para os cães terem a oportunidade de
acabar com o trabalho.” Ameaçou Fernando coçando o pescoço. “Isso dói!”
“Ivana, senta-te direita e põe o cinto!” Pediu Ângelo Rodrigues que desde a morte da mulher era incapaz de ver
alguém sem cinto de segurança.
Ao endireitar-se para cumprir ordem do pai, o olhar de Ivana foi cativado pela realidade do outro lado do vidro e o
seu sorriso começou a esvanecer-se. Ela conseguia reconhecer o acampamento cigano ao longe mas tudo o que via
naquele momento não fazia qualquer sentido.
Embora o local fosse o mesmo, toda a disposição caótica das tendas, dos arames de roupa, do conjunto de lixo e
brinquedos dispersos, da multidão de adultos e crianças de cara suja, tudo tinha simplesmente desaparecido e sido
substituído por um cenário idílico a transbordar de cor.
Sobre um manto de relva verde que se perdia de vista num horizonte de céu azul havia um arco-íris de tendas de
materiais ricos e coloridos que fazias lembrar o cenário das Mil e Uma Noites, arames de roupa cuidadosamente
agrupados como se se tratasse de um anúncio de detergente em que não faltavam as criancinhas felizes a jogar entre
si à apanhada. Vários homens e mulheres andavam descalços e conversavam em grupos dispersos pelo tapete
relvado tal como nos velhos filmes hippies.
Era literalmente o céu na terra.
Ivana esfregou os olhos incrédula. Não podia acrediar no que via. Dizia-se que a felicidade mudava a forma como
se via o mundo mas ela dúvidava que fosse até aquele ponto, que fosse até ao que os olhos lhe mostravam naquele
instante.
“Estão a ver o acampamento dos ciganos?” Perguntou sem conseguir deixar de olhar pela janela e partilhando a
bizarra visão com o pai e o irmão.
“Sim, mas não vai ser por muito mais tempo.” Respondeu-lhe de imediato Fernando satisfeito.
“Não é…” Começou ela por dizer, mas ao aperceber-se que a conversa nos bancos da frente continuava imutável e
que nenhum dos dois parecia ver o mesmo, sentiu a garganta fechar-se não lhe permitindo continuar a falar.
Mais confusa do que assustada com aqueles últimos segundos, voltou a testar os seus olhos e devolveu-os à nova
paisagem.
O carro aproximou-se mais do acampamento e ele permanecia lá. Não voltou à forma que sempre lhe conhecera,
não perdeu as suas cores ou beleza, nem se desvaneceu em fumo como Ivana tinha chegado a esperar que
acontecesse.
E mesmo quando estava convencida de que nada poderia ser mais irreal do que aquilo que via, os seus olhos
voltaram a superar a barreira do inacreditável.
Tal como se tivesse adormecido sem se aperceber, assistiu a mais uma repetição do seu sonho das últimas noites.
Sob a árvore ancestral estava Gabriel, de mãos nos bolsos, expressão indecifrável, e junto a ele os cães. As roupas
pretas que usava contrastavam com o colorido do resto do acampamento e só ele e os cães pareciam reparar na
passagem do carro seguindo-o com o olhar.
«O que raio é que está a acontecer...?»
Era o murmurinho incompreensível da conversa entre o pai e o irmão que lhe garantiam que não estava dentro do
seu sonho nem sequer a delirar.
No segundo seguinte, o acampamento ficou para trás.
⌠ 24 ⌡
“Inverso”
L. C. Lavado
Nas poucas dezenas de metros que o carro percorreu até entrar na garagem de casa, o aperto na garganta que a tinha
impedido de falar desapareceu. Talvez tivesse sido apenas uma coicidência ter desaparecido no momento quem que
tinha decidido não falar sobre o acampamento, talvez tudo tivesse uma explicação racional e ela a ia encontrar se
algum dia o seu coração voltasse a bater normalmente, mas naqueles instantes tudo parecia errado.
‫۝‬
⌠ 25 ⌡

Documentos relacionados