TCC DH 2008 - MARCELO MALIZIA CABRAL

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TCC DH 2008 - MARCELO MALIZIA CABRAL
0
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL
ESCOLA SUPERIOR DO MINISTÉRIO PÚBLICO DA UNIÃO
CURSO DE ESPECIALIZAÇÃO DIREITOS HUMANOS
MARCELO MALIZIA CABRAL
CONCRETIZAÇÃO DE DIREITOS HUMANOS: CAMINHO
NECESSÁRIO À REDUÇÃO DE CRIMINALIDADE E REINCIDÊNCIA
Porto Alegre, abril de 2008
1
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL
ESCOLA SUPERIOR DO MINISTÉRIO PÚBLICO DA UNIÃO
CURSO DE ESPECIALIZAÇÃO DIREITOS HUMANOS
MARCELO MALIZIA CABRAL
CONCRETIZAÇÃO DE DIREITOS HUMANOS: CAMINHO
NECESSÁRIO À REDUÇÃO DE CRIMINALIDADE E REINCIDÊNCIA
Monografia apresentada como requisito parcial
para a obtenção do título de especialista no
Curso de Especialização em Direitos Humanos
pela Universidade Federal do Rio Grande do
Sul.
Orientadora: Maria Palma Wolff
Porto Alegre, abril de 2008
2
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL
ESCOLA SUPERIOR DO MINISTÉRIO PÚBLICO DA UNIÃO
CURSO DE ESPECIALIZAÇÃO DIREITOS HUMANOS
MARCELO MALIZIA CABRAL
CONCRETIZAÇÃO DE DIREITOS HUMANOS: CAMINHO
NECESSÁRIO À REDUÇÃO DE CRIMINALIDADE E REINCIDÊNCIA
Porto Alegre, abril de 2008
3
À minha esposa, Angélica,
pelo incentivo, pela compreensão, pelo companheirismo,
pela luz que coloca em minha trajetória,
dedico este trabalho.
4
Minha gratidão
à coordenação e aos professores do curso,
à minha orientadora, Maria Palma Wolff,
aos membros da Cooperativa João-de-Barro.
5
“O problema fundamental em relação aos direitos do homem, hoje,
não é tanto o de justificá-los, mas o de protegê-los.”
(Norberto Bobbio1).
1
A era dos direitos. Tradução de Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Campus, 1992, p. 24.
6
Resumo: Examinam-se as causas da criminalidade e da reincidência no Brasil,
elencando-se os fatores preponderantes para o crescimento desses fenômenos.
Traça-se um perfil da desigualdade social e do sistema prisional, relacionando-se
esses temas com os direitos humanos. Estudam-se as conseqüências da nãoasseguração de garantias fundamentais a grandes parcelas da população,
alertando-se para a perversidade do tratamento penal da pobreza. Registra-se a
falência do sistema prisional e sua incapacidade de atingir os objetivos declarados
de prevenção de crimes e de dignificação do preso. Aponta-se a inexistência de
políticas de garantia de direitos ao egresso do sistema prisional. Proclama-se a
necessidade de concretização de direitos humanos como forma de se reduzir
criminalidade e reincidência, pontuando-se a relevância dos movimentos sociais,
das ações afirmativas e das políticas públicas nesse panorama. Apresentam-se, ao
fim, algumas experiências que resultaram em redução de criminalidade e
reincidência por meio de práticas que privilegiam a concretização de garantias
fundamentais ao ser humano.
Palavras-Chave: sistema prisional; criminalidade; reincidência; direitos humanos.
Abstract: The causes of criminality and recidivism in Brazil are analysed, listing the
preponderant factors that contribute for the increase of these phenomena. A profile
of the economic inequality and prison system is built, associating these subjects with
human rights. The consequences of not giving fundamental guarantees for most of
population are studied, calling attention to the perversity on dealing with the poor.
The prison system’s failure and its incapacity of reaching the stated goals of crime
prevention and respect to the convicts are expressed, and the non-existence of
rights guarantees policies for those who come out of prison are registered. It is
proclaimed the necessity of concretizing human rights as a way of decrease
criminality and recidivism, citing the importance of social movements, affirmative
actions and public policies on this context. Finally, some experiences which have
resulted in the decrease of criminality and recidivism through practices that favour
the concretization of fundamental guarantees to the human being are showed.
Keywords: prison system; criminality; recidivism; human rights.
7
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ............................................................................................ 09
1 DIREITOS HUMANOS, CRIMINALIDADE E SISTEMA PRISIONAL ....... 12
1.1 Conteúdo e significação dos direitos humanos.................................. 12
1.2 A consagração dos direitos
humanos
prestacionais
na
ordem constitucional ......................................................................... 13
1.3 Direitos humanos e desigualdade social........................................... 15
1.4 Fatores preponderantes da criminalidade no Brasil.......................... 17
1.5. Radiografia do sistema prisional brasileiro........................................ 23
2
A
NECESSÁRIA
RELAÇÃO
ENTRE
DIREITOS
HUMANOS,
CRIMINALIDADE E SISTEMA PRISIONAL .......................................... 27
2.1 O desafio da concretização dos direitos humanos ............................ 27
2.2 A não-concretização
de
direitos
humanos
como causa da
criminalidade perseguida e da reincidência ..................................... 29
2.3 O tratamento penal da pobreza ......................................................... 32
2.4 A perversidade do encarceramento decorrente da dívida social ....... 33
3 A PRIVAÇÃO DE LIBERDADE ............................................................... 36
3.1 Finalidades declaradas ...................................................................... 36
3.2 A realidade da privação de liberdade no Brasil.................................. 37
3.3 Privação de liberdade e direitos humanos ......................................... 41
4 O RETORNO À SOCIEDADE LIVRE ...................................................... 44
4.1 O egresso do sistema prisional e os direitos humanos ...................... 44
5 CONCRETIZAÇÃO
DE
DIREITOS
HUMANOS:
CAMINHO
NECESSÁRIO À REDUÇÃO DE CRIMINALIDADE E REINCIDÊNCIA. 49
5.1 Generalidades .................................................................................... 49
5.2 O papel dos movimentos sociais...................................................... 51
5.3 A necessidade de ações afirmativas e de políticas públicas............. 53
5.4 Algumas experiências ....................................................................... 55
5.4.1 A Cooperativa João-de-Barro................................................... 56
5.4.2 A Fundação
de Amparo
ao
Egresso
do Sistema
Penitenciário ............................................................................. 59
8
5.4.3 As Associações de Proteção e Assistência aos Condenados . 61
5.4.4 O Modelo de Segurança Cidadã de Bogotá............................. 62
REFLEXÕES FINAIS ................................................................................... 64
REFERÊNCIAS............................................................................................ 66
ANEXOS ...................................................................................................... 69
9
INTRODUÇÃO
O horror e o medo causados pela criminalidade assolam diariamente a
sociedade brasileira.
2
A quantidade de crimes que ocorrem no quotidiano, muitos deles
praticados com extremada violência, assusta a todos.3
A agravar esta situação, a circunstância de que o número de delitos
havidos no meio social cresce a cada dia.4
E as soluções apregoadas pela sociedade, no mais das vezes, estão
ligadas ao aumento do tempo e da gravidade das penas e ao incremento da
repressão ao crime.
Essa é a radiografia do senso comum da população brasileira: a
criminalidade cresce vertiginosamente e o estancamento dessa ascensão depende,
invariavelmente, da expansão da repressão penal à pratica delitiva.
Dever-se-ia, então, de acordo com essa lógica, proceder à elevação das
hipóteses de adoção da pena privativa de liberdade, elevar seu período de duração,
aumentar o rigor no cumprimento da reprimenda e agravar o apenamento aos
reincidentes.5
2
“As crescentes violência e criminalidade verificadas no Brasil e na América Latina nas últimas
décadas têm preocupado as sociedades locais e ameaçado a consolidação do processo democrático
conduzido na região. A criminalidade, antes restrita a espaços delimitados, hoje, com o processo de
globalização em curso, por meio da atuação de organizações criminosas, espalha-se pelo mundo com
reflexos regionais e intercontinentais.” (CARÁMBULA, Marcelo. Por uma Segurança Cidadã no Brasil
e América Latina. In Novas Direções na Governança da Justiça e da Segurança. Brasília-DF:
Ministério da Justiça, 2006, p. 857).
3
“Violência é a maior preocupação dos jovens, diz pesquisa do IBGE. 14h32 - 02/05/2004. Dos 34,1
milhões de jovens brasileiros, mais da metade se preocupa com a falta de segurança no país. O
primeiro Perfil da Juventude Brasileira, com idade entre 15 e 24 anos, aponta a violência como o
problema mais sério para 55% dos jovens. De acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatística (IBGE), os jovens representam 20,1% da população brasileira.” Disponível em:
<http://noticias.uol.com.br/uol/2004/05/02/ult261u1542.jhtm>. Acesso em 3.5.2008.
4
“Segundo o estudo dos pesquisadores do Ipea, desde o início dos anos 1980, a violência e a
criminalidade apresentam taxas crescentes no Brasil. As mortes por causas externas evoluíram a
uma taxa anual de 2,4%. Entre 1980 e 2004, o número de homicídios cresceu 5,6% ao ano, fazendo
com que representassem 37,9% do total de 127 mil por causas não naturais registrado em 2004.”
Disponível em: <http://desafios2.ipea.gov.br/003/00301009.jsp?ttCD_CHAVE=2518>. Acesso em
3.5.2008.
5
“Sociedade quer punições mais severas. O crime passou a fazer parte da vida dos brasileiros, que
reagem a essa realidade de insegurança exigindo do Congresso Nacional a aprovação de mudanças
legislativas que tornem mais rigorosas as punições. É o que conclui pesquisa realizada pelo
DataSenado, realizada com 1.068 cidadãos maiores de 16 anos, em 130 municípios do país.
Segundo os dados do estudo, anunciados na semana passada pelo presidente do Senado, Renan
Calheiros, a população é a favor de uma maioridade penal inferior a 18 anos, de um teto maior que 30
10
Não são poucas as vozes que proclamam a necessidade da adoção de
6
prisão perpétua ou até mesmo da pena capital , assim a imperatividade de se
reduzir a idade de imputabilidade penal, tudo como forma de se atingir a tão
almejada redução de crimes no meio social.
O questionamento desse consenso social, constitui, exatamente, o objeto
deste estudo.
Examinar-se-ão,
primeiramente,
quais
os
fatores
que,
preponderantemente, motivam o indivíduo à prática de crimes e questionar-se-á a
existência de relação entre a concretização de direitos fundamentais ao ser humano
e a prática delitiva.
A realidade do sistema prisional também será objeto de análise,
perquirindo-se sobre os propósitos declarados para a privação de liberdade e os
efeitos que a pena carcerária tem produzido nos indivíduos a ela submetidos,
investigando-se, em especial, a existência de relação entre a eficácia da privação de
liberdade e a garantia de direitos humanos.
Realizada essa observação sobre a realidade do sistema prisional,
investigar-se-á a existência de políticas públicas de asseguração de direitos ao
egresso e estudar-se-á a repercussão da concretização de garantias fundamentais a
esses indivíduos quando de seu retorno à sociedade livre.
A concretização de direitos humanos como forma de redução de
criminalidade e reincidência será analisada em capítulo próprio, pontuando-se a
anos para permanência de um condenado nos presídios e até da adoção da prisão perpétua. Assim,
em um Brasil onde 86% acreditam que a violência hoje é maior do que era no ano passado, nada
mais natural, informa o DataSenado, que esmagadoras maiorias defendam a prisão perpétua como
uma das opções válidas no combate ao crime (75%), o aumento da pena máxima de 30 anos (69%),
o cumprimento integral das penas pela prática de crimes hediondos (93%) e, o mais polêmico entre
todos os temas, que menores infratores recebam as mesmas punições destinadas a adultos (87%)
previstas no Código Penal. [...] A pesquisa de opinião pública nacional realizada pelo DataSenado
entre
março
e
abril
de
2007
[...]”
Disponível
em:
<http://www.brasilsemgrades.org.br/noticias.asp?assunto_cod=510>. Acesso em 3.5.2008.
6
“07/04/2007 - 22h53. Aumenta apoio à pena de morte entre os brasileiros, diz Datafolha da Folha
Online. Pesquisa Datafolha publicada na edição deste domingo Folha de S.Paulo revela que
aumentou o apoio da população à adoção da pena de morte no Brasil. Segundo o levantamento, 55%
dos entrevistados são favoráveis à pena de morte e 40% são contra. Na pesquisa anterior, feita em
agosto do ano passado, 51% dos entrevistados disseram sim à adoção da pena de morte e 42%, não.
O levantamento atual mostra que o apoio à pena de morte voltou ao maior índice histórico favorável à
prática, registrado em 1993, desde que o Datafolha começou a fazer pesquisas sobre o tema, em
1991. O levantamento ouviu 5.700 pessoas em 25 estados entre os dias 19 e 20 de março. A margem
de
erro
é
de
dois
pontos
percentuais.”
Disponível
em:
<http://www1.folha.uol.com.br/folha/brasil/ult96u90987.shtml>. Acesso em 3.5.2008.
11
relevância dos movimentos sociais, das ações afirmativas e das políticas públicas
nesse panorama.
Ao lado da abordagem das considerações doutrinárias e das pesquisas
científicas sobre essa problemática, apresentar-se-ão algumas experiências de
privilegiamento da concretização de direitos humanos na execução da pena privativa
de liberdade e no acolhimento do egresso do sistema prisional, focalizando-se a
repercussão dessas práticas nos índices de criminalidade e reincidência.
Ao fim desse caminho, retornar-se-á à verificação da validade do
paradigma social apresentado, avaliando-se a repercussão do incremento das
garantias fundamentais e de seu aviltamento nos fenômenos da criminalidade e da
reincidência.
12
1
DIREITOS HUMANOS, CRIMINALIDADE E SISTEMA PRISIONAL
1.1 Conteúdo e significação dos direitos humanos
Direitos humanos podem ser definidos como “o conjunto institucionalizado
de direitos e garantias do ser humano que tem por finalidade básica o respeito a sua
dignidade, por meio de sua proteção contra o arbítrio do poder estatal, e o
estabelecimento de condições mínimas de vida e desenvolvimento da personalidade
humana.”7
Na doutrina de Pérez Luño, direitos fundamentais do homem constituem
“um conjunto de faculdades e instituições que, em cada momento histórico,
concretizam as exigências da dignidade, da liberdade e da igualdade humanas, as
quais podem ser reconhecidas positivamente pelos ordenamentos jurídicos em nível
nacional e internacional.” 8
Para José Castan Tobeña, direitos humanos são “aqueles direitos
fundamentais da pessoa humana – considerada tanto em seu aspecto individual
como comunitário – que correspondem a esta em razão de sua própria natureza (de
essência ao mesmo tempo corpórea, espiritual e social) e que devem ser
reconhecidos e respeitados por todo o poder e autoridade, inclusive as normas
jurídicas positivas, cedendo, não obstante seu exercício, ante as exigências do bem
comum.”9
Designado de variadas formas, dentre as quais direitos humanos, direitos
humanos fundamentais, direitos fundamentais do homem, direitos da pessoa
humana, direitos naturais, direitos do homem, liberdades fundamentais, liberdades
públicas, importa referir-se que este conjunto de direitos “relaciona-se diretamente
com a garantia de não-ingerência do Estado na esfera individual e com a
consagração da dignidade humana, tendo um universal reconhecimento por parte
7
MORAES, Alexandre. Direitos Humanos Fundamentais. 6ª ed. São Paulo: Editora Atlas S.A., 2005,
p. 21.
8
CASTRO, J.L. Cascajo, Luño. Antonio-Enrique Pérez, CID, B. Castro, TORRES, C. Gómes. Los
derechos humanos: significación, estatuto jurídico y sistema. Sevilla: Universidad de Sevilla, 1979, p.
43, apud MORAES, Alexandre. Direitos Humanos Fundamentais. 6ª ed. São Paulo: Editora Atlas S.A.,
2005, p. 22.
13
da maioria dos Estados, seja em nível constitucional, infraconstitucional, seja em
nível
de
direito
consuetudinário
ou
mesmo
por
tratados
e
convenção
10
internacionais.”
Delimitado o objeto dos direitos humanos, de relevo referir-se que
considerada a função que exercem, eles reclamam prestações negativas ou
positivas do Estado.
Os primeiros são chamados de direitos de não-lesão, direitos civis e
políticos, direitos de liberdade ou direitos de defesa, e reclamam uma abstenção do
Estado à sua asseguração.
Os últimos exigem prestações positivas do Estado, identificados, ainda,
como direitos sociais, econômicos e culturais, constituindo-se, pois, em direitos
prestacionais.11
Sobre estes é que incidirão as reflexões propostas neste estudo acerca
da concretização de direitos humanos.
1.2
A
consagração
dos
direitos
humanos
prestacionais
na
ordem
constitucional
Os direitos humanos, nos quais se inserem os direitos prestacionais,
identificados, ainda, como direitos sociais12, econômicos e culturais, aqueles que
9
MORAES, Alexandre, op. cit., p. 22.
Ibidem, p. 23.
11
“A classificação dos direitos fundamentais segundo a função que exercem reconhece a existência
de direitos fundamentais a ações negativas (omissão), que correspondem a direitos de defesa, e de
direitos a ações positivas do Estado, que correspondem aos direitos a prestações do Estado. Os
direitos de defesa fundamentam pretensões de omissão do Estado e, caso suceda a intervenção,
pretensão de eliminação da intervenção. [...] Os direitos a ações positivas podem ser qualificados
como direitos a prestações em sentido amplo. Os direitos fundamenais à prestação em sentido amplo,
por sua vez, classificam-se em direitos à proteção, direitos à organização e procedimento e direitos
prestacionais em sentido estrito ou direitos fundamentais sociais.” (LEIVAS, Paulo Gilberto Cogo.
Teoria dos Direitos Fundamentais Sociais. Porto Alegre: Editora Livraria do Advogado, 2006, p. 8485).
12
“A primeira das características dos direitos fundamentais sociais que vem à tona é a de serem
direitos a ações positivas. Como já referido, uma ação positiva representa uma mudança causal de
situações ou processos de realidade, enquanto a omissão significa uma não-mudança de situações
ou processos na realidade, embora fosse possível a mudança.” (Ibidem, p. 87).
10
14
13
reclamam ações positivas do Estado , cresceram de importância na vigente ordem
constitucional.
Para Flávia Piovesan, “o texto de 1988 ainda inova, ao alargar a
dimensão dos direitos e garantias, incluindo no catálogo de direitos fundamentais
não apenas os direitos civil e políticos, mas também os direitos sociais (ver capítulo
II do título II da
Carta de 1988). Trata-se da primeira Constituição brasileira a
integrar, na declaração de direitos, os direitos sociais, tendo em vista que nas
Constituições anteriores as normas relativas a estes direitos encontravam-se
dispersas no âmbito da ordem econômica e social, não constando do título dedicado
aos direitos e garantias.”14
O avanço da Carta Política brasileira, no que se refere à consagração dos
direitos prestacionais, também mereceu o registro de Rogério Gesta Leal:
Pode-se afirmar que, como referencial jurídico, a Carta de 1988
alargou significativamente a abrangência dos direitos e garantias
fundamentais, e, desde o seu preâmbulo, prevê a edificação de um
Estado Democrático de Direito no país, com o objetivo de assegurar
o exercício dos direito socais e individuais, a liberdade, a segurança,
o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça, como
valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem
preconceitos. Nos seus artigos introdutórios, a Constituição
estabelece um conjunto de princípios que delimitam os fundamentos
e os objetivos da república. Dentre estes, destacam-se a cidadania e
a dignidade da pessoa humana.15
Merece apontamento, ainda, a circunstância de que o estabelecimento da
dignidade da pessoa humana como fundamento da República Federativa do Brasil –
art. 1.° – orienta toda a ação da sociedade na busc a do atingimento desse valor. 16
13
“Em uma apreciação preliminar, pode-se dizer que direitos de defesa exigem uma omissão do
Estado, e os direitos prestacionais, uma ação positiva. Porém, ocasionalmente, direitos de defesa
exigem ações positivas do Estado – v.g., uma autorização para uma reunião –, e os direitos
prestacionais exigem ações negativas – v.g., uma pretensão de não-revogação de lei que
regulamenta direitos fundamentais sociais. Isso conduz a uma diferenciação material e formal entre
ambos. Uma diferenciação material entre direitos a ações positivas e ações negativas depende da
fundamentação do direito, independentemente de ocasionalmente surgir uma pretensão a uma ação
positiva ou negativa como meio para se alcançar a realização do direito no sentido material.” (Ibidem,
p. 83).
14
PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional. 3ª ed. São Paulo:
Editora Max Limonad, 1997, p. 61.
15
LEAL, Rogério Gesta. Direitos Humanos no Brasil: desafios à democracia. Porto Alegre: Editora
Livraria do Advogado, 1997, p. 130-131.
16
“Dignidade da pessoa humana é um valor supremo que atrai o conteúdo de todos os direitos
fundamentais. Concebida como referência constitucional unificadora de todos os direitos
fundamentais, observam Gomes Canotilho e Vital Moreira, o conceito de dignidade da pessoa
humana obriga a uma densificação valorativa que tenha em conta o seu amplo sentido normativo-
15
1.3 Direitos humanos e desigualdade social
A asseguração de garantias fundamentais, especialmente dos direitos
humanos prestacionais, constitui caminho seguro para a redução das desigualdades
sociais.
A perseguição efetiva do combate à pobreza e à exclusão social
repercute em todas as dimensões da pessoa, constituindo imperativo ético da
sociedade.
Essa obrigação reflete-se nos sistemas jurídicos que trazem positivados
como obrigação jurídica deveres de inclusão social e de erradicação das causas
geradoras da desigualdade.
A leitura do art. 3.° da Constituição Federal promo ve a igualdade, em
várias de suas manifestações, como objetivo fundamental da República.
Tanto que os quatro incisos desse artigo são explícitos em determinar os
aspectos que devem constituir a prioridade da atuação pública e privada para a
consolidação do Estado Democrático de Direito.
Art. 3º. Constituem objetivos fundamentais da República Federativa
do Brasil: I - construir uma sociedade livre, justa e solidária; II garantir o desenvolvimento nacional; III - erradicar a pobreza e a
marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; IV promover o bem de todos, sem preconceito de origem, raça, sexo,
cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.
Constituem, deste modo, esses valores, a razão de ser do Estado
brasileiro, as cláusulas do pacto social, para o qual os direitos fundamentais são os
meios para sua consecução e o sistema jurídico, em sua inteireza, garante os
modos para o seu necessário atingimento.
Não se cuida, assim, de meras normas programáticas, destinadas
simplesmente a pacificar o conflito social pela positivação.
constitucional e não uma qualquer idéia apriorística do homem, não podendo reduzir-se o sentido da
dignidade humana à defesa dos direitos pessoais tradicionais, esquecendo-a nos casos de direitos
sociais, ou invocá-la para construir “teoria do núcleo da personalidade” individual, ignorando-a quando
se trate de direitos econômicos, sociais e culturais.” (SILVA, José Afonso. Curso de Direito
Constitucional Positivo. 6ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1990, p. 93).
16
Ao reverso, esses objetivos fundamentais da República constituem
obrigações de resultado que o poder público e a sociedade devem conjuntamente
buscar.
Com vistas à construção de uma sociedade livre, justa e solidária,
princípio dos quais os demais relacionados no artigo 3.º são corolários diretos, a
Constituição estabelece os direitos à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à
propriedade, em todas as suas formas e meios descritos no artigo 5.º.
No mesmo caminho, são proclamados os direitos sociais, como à
educação, ao trabalho, ao lazer, à segurança, à previdência social, à proteção à
maternidade e à infância, à assistência aos desamparados, na forma dos artigos 6.º
a 9.º e 193 a 222.
A Constituição Federal também impõe aos agentes econômicos a
obrigatoriedade de operar conforme os objetivos fundamentais mencionados (art.
170, incisos III, VII e VIII).
Quanto ao Poder Público, a Constituição explicitamente atribui, no artigo
23, inciso X, competência comum à União, Estados, Distrito Federal e aos
Municípios “combater as causas da pobreza e os fatores de marginalização,
promovendo a integração social dos setores desfavorecidos”.
No âmbito internacional, a Declaração Universal dos Direitos Humanos
estabelece que os direitos econômicos, sociais e culturais são indispensáveis à
dignidade da pessoa e ao livre desenvolvimento da personalidade e que sua
realização constitui direito de cada membro da sociedade (art. XXII).
O trabalho, destaque-se, é erigido à condição de meio de proteção
social.
17
17
“Artigo 23. I) Todo o homem tem direito ao trabalho, à livre escolha de emprego, a condições justas
e favoráveis de trabalho e à proteção contra o desemprego. II) Todo o homem, sem qualquer
distinção, tem direito a igual remuneração por igual trabalho. III) Todo o homem que trabalha tem
direito a uma remuneração justa e satisfatória, que lhe assegure, assim como a sua família, uma
existência compatível com a dignidade humana, e a que se acrescentarão, se necessário, outros
meios de proteção social. IV) Todo o homem tem direito a organizar sindicatos e a neles ingressar
para proteção de seus interesses. [...] Artigo 25. I) Todo o homem tem direito a um padrão de vida
capaz de assegurar a si e a sua família saúde e bem estar, inclusive alimentação, vestuário,
habitação, cuidados médicos e os serviços sociais indispensáveis, e direito à segurança em caso de
desemprego, doença, invalidez, viuvez, velhice ou outros casos de perda de meios de subsistência
em circunstâncias fora de seu controle. II) A maternidade e a infância tem direito a cuidados e
assistência especiais. Todas as crianças, nascidas dentro ou fora do matrimônio, gozarão da mesma
proteção social.” Disponível em: < http://www.dhnet.org.br/direitos/deconu/textos/integra.htm>. Acesso
em 3.5.2008.
17
O Pacto Internacional dos Direitos Econômicos Sociais e Culturais e o
Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos explicitam, em preâmbulo de
idêntica redação, a relação entre a privação no âmbito econômico e o gozo dos
direitos econômicos, sociais e culturais, ao dispor que os Estados-Partes
reconhecem “que, em conformidade com a Declaração Universal dos Direitos
Humanos, o ideal do ser humano livre, liberto do temor e da miséria, não pode ser
realizado a menos que se criem condições que permitam a cada um gozar de seus
direitos econômicos, sociais e culturais, assim como de seus direitos civis e
políticos.”18
A redação dessas normas internacionais de regulamentação de direitos
humanos não deixa margem para dúvidas quanto à impossibilidade de se conceber
o pleno exercício dos direitos civis e políticos se os direitos econômicos, sociais e
culturais não estiverem garantidos e efetivados e vice-versa.
Merece registro, então, a circunstância de que a desigualdade econômica
grave cerceia o acesso material aos direitos fundamentais da pessoa humana.
A situação de pobreza viola, a um só tempo, os direitos civis e políticos,
assim como os econômicos, sociais e culturais.
A pessoa destituída de recursos, que se encontra além do estado de
vulnerabilidade ou de precariedade não tem elementos próprios e meios para dar
início ao exercício de seus direitos fundamentais e, muitas vezes, sequer sabe de
sua existência.
1.4 Fatores preponderantes da criminalidade no Brasil
A criminalidade é um dos fatores que mais mobiliza a sociedade
brasileira, dado seu recrudescimento quotidiano.
Os estudos científicos apontam para uma diversidade de fatores que
colaboram para a essa produção extraordinária de crimes na sociedade brasileira.
18
Disponível em:
< http://www.direitoshumanos.usp.br/counter/Onu/Sist_glob_trat/texto/texto_2.
html>. Aceso em 4.5.2008.
18
A moderna criminologia, ao se ocupar da perquirição das evidências que
impulsionam o ser humano à pratica de crimes, aponta três linhas de motivação
para a realização dessas condutas: biológicas, psicológicas e sociológicas.
Para os defensores das teorias biológicas, a prática do delito decorre de
alguma patologia, transtorno, disfunção ou anormalidade de que o ser humano é
portador e que o determina ao cometimento do crime.
O enfoque biológico recebe atenção importante na criminologia científica
em razão de que os substratos biológico e genético do indivíduo representam um
relevante referencial na existência humana.
As investigações sobre a influência da formação biológica do indivíduo na
prática de crimes possuem esforços concentrados nas áreas da antropometria, da
antropologia, da biotipologia, da neurofisiologia, da endocrinologia, da bioquímica e
da genética.
A teorias psicológicas “buscam a explicação do comportamento delitivo
no mundo anímico do homem, nos processos psíquicos anormais (psicopatologia)
ou nas vivências subconscientes que têm sua origem no passado remoto do
indivíduo e que só podem ser captadas por meio de introspecção (psicanálise).”19
O exame dos aspectos sociais, culturais e econômicos em que inserido o
indivíduo, valorizando, assim, o ambiente e a forma como vive, constitui o elemento
de estudo das teorias sociológicas sobre a motivação criminógena no ser humano.
Elas adentram em formulações macrossociológicas, morais, políticas,
étnicas, valorizando os aspectos relativos à composição da sociedade, sua dinâmica
e conflitos.
Hodiernamente, os modelos sociológicos são os mais valorizados para o
entendimento das questões relativas à criminalidade.
Eles apresentam a natureza social das circunstâncias motivadoras do
crime, assim a pluralidade de fatores que relacionam o indivíduo e o meio em que
vive e sua atuação na determinação da ação ilícita.
As observações sociológicas também são capazes de determinar a
incidência de variáveis espaciais e ambientais no fenômeno da criminalidade,
19
GARCIA-Pablos de Molina, Antonio. Criminologia. 3ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais,
2000, p. 203.
19
traçando um perfil próprio do crime na zona urbana e nos grandes centros, por
exemplo.
20
[...] mostram ainda o impacto das contradições estruturais e do
conflito e a mudança social na dinâmica delitiva, o funcionamento
dos processos de socialização em função da aprendizagem e
identificação do indivíduo com modelos e técnicas criminais, assim
como a transmissão e vivências de referidas pautas de conduta no
seio das respectivas subculturas; mostram, por fim, o componente
“definitorial” do delito e a ação seletiva discriminatória do controle
social no recrutamento da população reclusa etc.21
O conceituado demógrafo e especialista em violência urbana Jean
Claude Chesnais, em pesquisa realizada no Brasil, traçou um importante estudo
sobre a criminalidade no país.
Cinco ordens causais foram elencadas por ele como responsáveis pela
atual
situação:
a)
fatores
sócio-econômicos,
relacionados
à
pobreza,
ao
agravamento das desigualdades sociais e da não-concretização de direitos
humanos a uma significativa parcela da sociedade; b) fatores institucionais, ligados
à insuficiência do Estado e à crise do modelo familiar; c) fatores culturais,
concernentes a problemas de integração racial e à desordem moral da sociedade; d)
aspectos referentes à demografia urbana e à produção de gerações provenientes do
período da explosão da taxa de natalidade chegando à vida adulta, assim como o
surgimento de metrópoles e, e) a colaboração da mídia, com seu poder, para a
apologia da violência.22
Ao abordar os fatores de ordem social, destaca a pobreza e a fome,
esclarecendo que a subsistência é precária para grandes parcelas da população e
que um grande número de crimes são cometidos para a satisfação de necessidades
vitais.
Nesse ponto, importante o registro de que havia, no Brasil, no ano de
1998, 50 milhões de pessoas em situação de pobreza.23
20
Ibidem, fl. 268.
Ibidem, p. 268.
22
CHESNAIS, Jean Claude. A violência no Brasil. Causas e recomendações políticas para a sua
prevenção.
Disponível
em:
<http://www.scielosp.org/scielo.php?pid=S141381231999000100005&script=sci_arttext >. Acesso em 27.4.2008.
21
23
“Ao longo das últimas duas décadas, como observamos na tabela, a intensidade da pobreza
manteve um comportamento de relativa estabilidade, com apenas duas pequenas contrações,
concentradas nos momentos de implantação dos planos Cruzado e Real. Este comportamento
estável, com a porcentagem de pobres oscilando entre 40% e 45% da população, apresenta
flutuações associadas, sobretudo, à instável dinâmica macroeconômica do período. O grau de
pobreza atingiu seus valores máximos durante a recessão do início dos anos 80, em 1983 e 1984,
20
O pesquisador ainda refere o quase desaparecimento dessa espécie de
delitos na Europa, registrando que a miséria conduz aos crimes patrimoniais e à
prostituição, citando o exemplo de Fortaleza, onde a taxa de emprego não
acompanhou
o
crescimento
demográfico,
restando
aquela
comunidade
“contaminada pela prostituição infantil e pelo turismo sexual”.24
Em seqüência, Chesnais pontua que a desigualdade, de modo mais
importante que a pobreza, impulsiona a criminalidade no Brasil, esclarecendo que a
mídia exacerba ainda mais a desigualdade, apontando-a diariamente e valorizando
objetos simbólicos que exaltam o consumismo.
Essas coisas estão, freqüentemente, fora de alcance, o que provoca
uma frustração crescente, insuportável numa sociedade polarizada
pela coexistência de uma oligarquia riquíssima (São Paulo é, depois
de Nova Iorque, a cidade com maior número de jatos particulares) e
de massas miseráveis. A sociedade brasileira é uma das mais
desiguais, uma das mais estratificadas que existem. Aqui se
encontra a mais extrema pobreza ao lado da mais fabulosa riqueza.
Continua sendo o país dos privilégios pois a recessão econômica
diminuiu a mobilidade social. O excesso de riqueza ostentada é
vivido por muitos como uma provocação, daí a tentação do roubo e
do dinheiro fácil.25
quando a porcentagem de pobres ultrapassou a barreira dos 50%. As maiores quedas resultaram,
como dissemos, dos impactos dos planos Cruzado e Real, fazendo a porcentagem de pobres cair
abaixo dos 30% e 35%, respectivamente. Considerando o período como um todo, constatamos que a
porcentagem de pobres declinou de cerca de 39% em 1977 para cerca de 33% em 1998. Este valor
ao final da série histórica analisada, apesar de ainda ser extremamente alto, aparenta representar um
novo patamar do nível de pobreza nacional. A intensidade da queda na magnitude da pobreza
ocorrida entre 1993 e 1995 foi menor do que em 1986. No entanto, a queda de 1986 não gerou
resultados sustentados, com o valor da pobreza retornando no ano seguinte ao patamar vigente antes
do Plano Cruzado. Entre 1995 e 1998 a porcentagem de pobres permaneceu estável em torno do
patamar de 34%, indicando a manutenção dos impactos do Plano Real. Apesar da pequena queda
observada no grau de pobreza, o número de pobres no Brasil, em decorrência do processo de
crescimento populacional, aumentou em cerca de 10 milhões, passando de 40 milhões em 1977 para
50 milhões em 1998. A combinação entre as flutuações macroeconômicas e o crescimento
populacional fez com que o número de pobres chegasse a quase 64 milhões na crise de 1984 e a
menos de 38 milhões em 1986. No final dos anos 80 registra-se uma aceleração no contingente da
população pobre e, no período recente, após a implantação do Plano Real, cerca de 10 milhões de
brasileiros deixaram de ser pobres. Os atuais 50 milhões de pessoas pobres, por sua vez, encontramse heterogeneamente distribuídos abaixo da linha de pobreza e sua renda média encontra-se cerca
de 55% abaixo do valor da linha de pobreza. Os 21 milhões de pessoas indigentes, que correspondem
a um subconjunto da população pobre, estão igualmente distribuídos de forma heterogênea e
encontram-se mais próximos de seu valor de referência, com sua renda média mantendo-se cerca de
60% abaixo da linha de indigência.” (BARROS, Ricardo Paes de; HENRIQUES, Ricardo;
MENDONÇA, Rosane. Desigualdade e Pobreza no Brasil: retrato de uma estabilidade inaceitável. In
Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 15, n. 42, São Paulo, 2000. Disponível em:
<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-69092000000 100009>. Acesso em
3.5.2008).
24
25
CHESNAIS, Jean Claude, op. cit.
Ibidem.
21
Importante o registro de que a unanimidade dos estudos sobre
criminalidade no Brasil e na América Latina aponta para a absoluta preponderância
das causas de origem sociológica na determinação do individuo para a prática
delitiva.
26
Não menos relevante o assentamento de ocupar o Brasil posição
privilegiada no ranking mundial da desigualdade social, perdendo apenas para a
África do Sul e Malawi.
Afora o fato de estar dentre os quatro países de maior desigualdade
social do mundo, o que mais impressiona é a constatação científica da ausência de
qualquer registro de tendência à involução dessa desigualdade se examinados os
indicadores sociais das últimas décadas.27
26
“Em primeiro lugar, por um conjunto de razões ligadas à sua história [...] a sociedade brasileira
continua caracterizada pelas disparidades sociais vertiginosas e pela pobreza de massa que, ao se
combinarem, alimentam o crescimento inexorável da violência criminal, transformada em principal
flagelo das grandes cidades. [...] Na ausência de qualquer rede de proteção social, é certo que a
juventude dos bairros populares esmagados pelo peso do desemprego e do subemprego crônicos
continuará a buscar “no capitalismo de pilhagem” da rua (como diria Max Weber) os meios de
sobreviver e realizar os valores do código de honra masculino, já que não consegue escapar da
miséria do cotidiano.” (WACQUANT,Loïc. As prisões da miséria. Tradução: André Telles. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2001, p. 8).
27
“O Brasil e o mundo: uma comparação da estrutura da desigualdade. [...] O coeficiente de Gini do
Brasil, com valor próximo de 0,60, representa, no conjunto de 92 países com informações disponíveis,
um padrão alcançado apenas pelos quatro países com maior grau de desigualdade: Guatemala,
Brasil, África do Sul e Malawi. [...] O Gráfico 5 apresenta a razão entre a renda média dos 10% mais
ricos e a renda média dos 40% mais pobres para cerca de 50 países. Devemos lembrar que quanto
menor for a razão entre essas rendas médias, mais eqüânime será a estrutura distributiva, com os
mais ricos retendo uma renda média de valor relativamente próximo à dos mais pobres. Esta medida
da estrutura de concentração da renda revela, para a grande maioria dos países, uma razão com
valor inferior a 10, sendo que somente em seis países essa razão é superior a 20. De fato, podemos
identificar um certo padrão na distribuição internacional, com alguns países, como os Estados Unidos,
gravitando em torno do valor 5, outros, como a Argentina, em torno de 10 e, finalmente, alguns, como
a Colômbia, em torno do valor 15. O Brasil, por sua vez, é o país com o maior grau de desigualdade
dentre os que dispomos de informações, com a renda média dos 10% mais ricos representando 28
vezes a renda média dos 40% mais pobres. Um valor que coloca o Brasil como um país distante de
qualquer padrão reconhecível, no cenário internacional, como razoável em termos de justiça
distributiva. O Gráfico 6 apresenta a razão entre a renda média dos 20% mais ricos e os 20% mais
pobres para cerca de 45 países, confirmando o diagnóstico do indicador anterior. Na grande maioria
dos países essa razão é inferior a 10 e em apenas cinco países essa razão é superior a 20. O Brasil,
novamente, é o país com o maior grau de desigualdade segundo as informações presentes no
Relatório de desenvolvimento humano de 1999, o único dos países analisados em que a razão entre a
renda média dos 20% mais ricos da população e a renda média dos 20% mais pobres supera o
dilatado valor de 30. Os valores contundentes reportados nesta seção não deixam dúvidas quanto à
posição singular do Brasil, com o seu grau de desigualdade figurando entre os mais elevados do
mundo. [...] Evolução da desigualdade: a decepção de uma regularidade. A análise da evolução da
desigualdade de renda no Brasil ao longo das duas últimas décadas é desenvolvida a partir das
mesmas medidas de desigualdade descritas anteriormente. Todos indicadores selecionados,
conforme observamos nas Tabelas 4 e 5, revelam um elevado grau de desigualdade, sem qualquer
tendência ao declínio. O grau de desigualdade observado em 1998 é bastante similar ao do início da
série, no final da década de 70.” (BARROS, Ricardo Paes de; HENRIQUES, Ricardo; MENDONÇA,
Rosane. Desigualdade e Pobreza no Brasil: retrato de uma estabilidade inaceitável. In Revista
22
Além de sublinhar a contribuição fundamental dos aspectos sociais, os
pesquisadores têm destacado o crescimento incessante da criminalidade no Brasil e
na América Latina nas últimas décadas.
E o aumento da incidência de crimes nessa região deve-se, segundo
Marcelo Carámbula, fundamentalmente, ao crescimento da adoção de modelos
econômicos que privilegiam os aspectos financeiros em detrimento do papel social
do Estado na garantia da dignidade do ser humano, causando desorganização
social e aumento de conflitos individuais e coletivos:
Não por simples acaso, a população carcerária brasileira saltou de
aproximadamente 120.000 detentos, em 1990, para cerca de meio
milhão, em 2002, coincidindo com o período de adoção de políticas
neoliberais no país, durante as gestões Fernando Collor e Fernando
Henrique Cardoso/Itamar Franco (1995-2002). Essa conjuntura
social, econômica e política se verifica, via de regra, em toda
América Latina. [...] o processo de estagnação e de aprofundamento
das desigualdades sociais tem sérias implicações na segurança
pública [...] ”28
Ainda no sentido de apontar o papel fundamental da desigualdade social
na criminalidade, Giancarlo Corsi destacou, com precisão, a prevalência das causas
de origem social sobre as individuais na determinação da prática de crimes,
chegando a questionar a exigibilidade de conduta não-criminosa a um excluído.
Ou seja, é de se perguntar que alternativas pode ter um excluído a
não ser fazer o que faz. Este não é um problema apenas da América
Latina ou da África, ou de outras zonas pobres; são problemas que
começam a existir e que se percebem também na Europa. [...] Em
geral, tenho a impressão de que se dê como certo, sobretudo no
âmbito político e jurídico, que, se não existissem desigualdades e
injustiças, provavelmente sequer teríamos a criminalidade, pelo
menos desta forma.29
A pesquisa econômica também aponta a desigualdade como o fator que
mais impulsiona o crime, destacando que os delitos patrimoniais respondem mais
intensamente a essa variável e representam um quarto da criminalidade verificada
Brasileira de Ciências Sociais, v. 15, n. 42, São Paulo, 2000. Disponível em:
<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-69092000000 100009>. Acesso em
3.5.2008).
28
CARÁMBULA, Marcelo. Por uma Segurança Cidadã no Brasil e América Latina. In Novas Direções
na Governança da Justiça e da Segurança. Brasília-DF: Ministério da Justiça, 2006, p. 858.
29
Globalização, Sistema Penal e Ameaças ao Estado Democrático de Direito. Org. Maria Lúcia
Karam. Rio da Janeiro: Lumen Juris Editora, 2005, p. 68-69.
23
nos grandes centros brasileiros, “o que torna difícil negar que a crescente onda de
violência urbana no Brasil é mais um efeito perverso deste crime social secular
brasileiro chamado desigualdade de renda.”30
1.5 Radiografia do sistema prisional brasileiro
O primeiro atestado do estado de calamidade do sistema prisional
brasileiro pode ser percebido em razão da ausência de dados oficiais suficientes a
seu respeito.
Muito embora na década de 90 houvesse a cultura de se proceder,
periodicamente, a uma radiografia qualitativa e quantitativa dos indicadores relativos
às pessoas privadas de liberdade pelo Estado, a vergonha traduzida pelos números
apresentados, com certeza, demoveu o poder público de pesquisar e divulgar os
dados estatísticos do sistema prisional, decisão que tem tão-somente o condão de
agravar esta já preocupante realidade.
Isso porque a inexistência de diagnóstico serve apenas para esconder a
real situação do sistema, que deve ser demonstrada para o fim de impulsionar as
reformas que ele necessita.
Anote-se, por oportuno, que a precariedade dos dados oficiais e até
mesmo a indisponibilidade de estatísticas pretéritas, impõe que se apresente o
diagnóstico do sistema prisional de modo histórico e a partir de informações
prestadas por investigadores que tiveram acesso a esses elementos quando ainda
disponíveis.
Nesse passo, segundo Lúcio Ronaldo Pereira Ribeiro,
Com base em dados fornecidos pelo Departamento de Assuntos
Penitenciários, (DEPEN), da Secretaria dos Direitos da Cidadania e
Justiça, do Ministério da Justiça para 1993 podemos constatar
estatisticamente a falência do sistema penitenciário brasileiro, o qual
serve apenas, na prática, para enjaular uma parte considerável das
camadas menos favorecidas econômica e socialmente. Dos 126 mil
presos existentes no país, quase todos homens (97%). Destes 48%
cumprem pena irregularmente nas carceragens das delegacias. [...]
Há, em média, um milhão de crimes por ano, sendo 72% casos de
30
RESENDE,
João
Paulo.
Crime
Social,
Castigo
Social.
Disponível
<http://www.diarioaponte.com/crime-social-castigo-social/>. Acesso em 28.4.2008.
em:
24
roubo ou furto, e 28% de homicídio, lesão corporal, aborto, estupro,
corrupção, tráfico, e porte de drogas. 68% das pessoas presas têm
menos de 25 anos de idade, sendo que 2/3 são negros e mulatos;
89% são presos sem atividade produtiva ou trabalho fixo; 76% são
analfabetos ou semi-analfabetos; 95% são pobres; 98% não podem
31
contratar advogado; 85% cometem reincidência.
Danielle Magnabosco, esclarecendo haver extraído dados de matéria
publicada na revista Veja, de 23.10.1996, registra:
O país tem hoje 150.000 presos, 15% a mais do que em 1994, data
em que fora realizada a última pesquisa. A massa carcerária cresce
ao ritmo de um preso a cada trinta minutos. A AIDS prolifera entre os
detentos com a rapidez de uma peste. Cerca de 10% a 20% dos
presos estão contaminados. Um número tão assustador que o
governo evita divulgá-lo para não provocar rebeliões. [...] Uma
pesquisa realizada em 1994, demonstra-nos que 90% dos exdetentos pesquisados procuram trabalho nos 02 primeiros meses,
após a conquista da liberdade. Depois de encontrarem fechadas
todas as portas, voltam a praticar novos delitos. Estudos mostram
que, em média, 70% daqueles que saem das cadeias, reincidem no
crime.32
Adiciona-se a esse estado de calamidade, a circunstância de que há um
déficit de 110 mil vagas no sistema prisional brasileiro33, o que vai de encontro às
Recomendações Mínimas para Tratamento de Prisioneiros da Organização das
Nações Unidas.34
Ao lado desses números, que demonstram a precariedade do sistema
prisional brasileiro35, a instituição da prisão, ainda que operasse em situação ideal,
31
RIBEIRO, Lúcio Ronaldo Pereira. O pacto social e a pedagogia do preso-condenado. Disponível
em: <http://jus2.uol.com.br/Doutrina/texto.asp?id=1015>. Acesso em 28.4.2008.
32
Sistema
penitenciário
brasileiro:
aspectos
sociológicos.
Disponível
em
<http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=1010>. Acesso em 28.4.2008.
33
Disponível em: < http://www.folhadoamapa.com.br/classica/diario_comments.php?id=39750_4_0>.
Acesso em 3.5.2008.
34
“9. 1. As celas ou quartos destinados ao isolamento noturno não deverão ser ocupadas por mais de
um preso. Se, por razões especiais, tais como excesso temporário da população carcerária, for
indispensável que a administração penitenciária central faça exceções a esta regra, deverá evitar-se
que dois reclusos sejam alojados numa mesma cela ou quarto individual.” (Regras Mínimas para o
Tratamento de Prisioneiros. Adotadas pelo 1º Congresso das Nações Unidas sobre Prevenção do
Crime e Tratamento de Delinqüentes, realizado em Genebra, em 1955, e aprovadas pelo Conselho
Econômico e Social da ONU através da sua resolução 663 C I (XXIV), de 31 de julho de 1957, aditada
pela resolução 2076 (LXII) de 13 de maio de 1977. Anexo A.). Disponível em:
<http://www.dhnet.org.br/direitos/sip/onu/fpena/lex52.htm>. Acesso em 3.5.2008.
35
Até mesmo no Rio Grande do Sul, Estado havido como possuidor de um dos sistemas prisionais
mais organizados do país, a situação encontra-se precária, como bem se pode ver do editorial do
jornal Zero Hora, de 3.6.2006, p. 14: “A condição atingida pelo Presídio Central de Porto Alegre de o
mais populoso no país é por si só reveladora do colapso do sistema carcerário. O fato de a instituição
ter alcançado o maior número de detentos concentrados em apenas uma unidade, sob uma única
25
produz, por sua própria natureza, efeitos nefastos no indivíduo, porquanto gera uma
sociedade, isolada por muros e grades, dentro de outra, formando uma série de
princípios e realidades próprias e prejudiciais à preparação do ser humano à vida
livre.
36
A complexidade da vida em uma prisão é apontada pela unanimidade dos
estudiosos do tema, que anotam a existência de um objetivo primordial do cárcere: a
segregação do indivíduo, gerando uma série e conflitos entre funcionários da prisão
e presos, um ambiente de desconfiança, esperteza e desonestidade.37
Dentro da prisão, o indivíduo submete-se a um processo de adaptação
denominado prisonização, definido como a “adoção em maior ou menor grau do
modo de pensar, dos costumes, dos hábitos – da cultura geral da penitenciária.”38
De acordo com João Farias Júnior, “os presos recebem uma espécie de
transfusão de influxos deletérios, que tem o poder de transformá-los para pior. Em
geral, vão se desadaptando dos condicionamentos sociais extramuros na medida
em que vão se adaptando aos condicionamentos sociais intramuros.”39
Ao descrever sua observação do universo prisional, Odete Maria de
Oliveira ainda aponta algumas das privações por que passam as pessoas
aprisionadas no Brasil:
administração, evidencia, de um lado, a carência de instalações adequadas. [...] Um dos aspectos
chocantes do diagnóstico sobre o Presídio Central é que nem mesmo o verdadeiro empilhamento de
detentos em condições subumanas sensibiliza a sociedade a buscar alternativas.[...] As dificuldades
enfrentadas pelo Central são comuns à maioria dos presídios no Estado, que enfrentam um déficit
carcerário de mais de 7 mil vagas. [...] O triste recorde do Presídio Central não poderia expressar de
forma mais crua, simultaneamente, até onde pode levar o descaso em relação à questão e também o
tamanho do desafio que o poder público tem pela frente.”
36
“60. 1.O regime do estabelecimento prisional deve tentar reduzir as diferenças existentes entre a
vida na prisão e a vida livre quando tais diferenças contribuirem para debilitar o sentido de
responsabilidade do preso ou o respeito à dignidade da sua pessoa. 2. É conveniente que, antes do
término do cumprimento de uma pena ou medida, sejam tomadas as providências
necessárias para assegurar ao preso um retorno progressivo à vida em sociedade. Este propósito
pode ser alcançado, de acordo com o caso, com a adoção de um regime preparatório para a
liberação, organizado dentro do mesmo estabelecimento prisional ou em outra instituição apropriada,
ou mediante libertação condicional sob vigilância não confiada à polícia, compreendendo uma
assistência social eficaz.” (Regras Mínimas para o Tratamento de Prisioneiros. Adotadas pelo 1º
Congresso das Nações Unidas sobre Prevenção do Crime e Tratamento de Delinqüentes, realizado
em Genebra, em 1955, e aprovadas pelo Conselho Econômico e Social da ONU através da sua
resolução 663 C I (XXIV), de 31 de julho de 1957, aditada pela resolução 2076 (LXII) de 13 de maio
de 1977. Anexo A.). Disponível em: <http://www.dhnet.org.br/direitos/sip/onu/fpena/lex52.htm>.
Acesso em 3.5.2008.
37
OLIVEIRA, Odete Maria de. Prisão: um paradoxo social. 3ª edição. Florianópolis: Editora da UFSC,
2003, p. 76.
38
Ibidem, p. 77.
39
Ibidem, p. 77.
26
Sofrem o primeiro impacto com a ruptura brusca em seu status, pela
pura e simples subordinação anônima a um grupo de pessoas
prisioneiras. Passam a trajar as mesmas roupas, a usar o mesmo
linguajar e a adquirirem novos hábitos relativos a comer, dormir,
vestir, trabalhar, e obediência permanente. Aprendem a jogar, ou
nova maneira de fazê-lo, desconfiam de todos, adquirem
comportamento sexual anormal, sentem rancor de tudo e de todos.
“A prisionização leva à desorganização da personalidade, à
deformação do caráter, à degradação do comportamento e ao
40
abandono dos padrões de vida extramuros.”
Na mesma senda, o relatório da Comissão de Direitos Humanos e
Minorias da Câmara dos Deputados, aponta para a inexistência de tratamento digno
aos indivíduos privados de liberdade no país:
A idéia de "dignidade", por exemplo, haverá de perturbar o visitante
que a possua. O que vemos no interior dos presídios,
particularmente nas atuais condições de encarceramento, é uma
afronta permanente a este e a muitos outros valores fundamentais
para a condição humana. É impossível dar conta desse
estranhamento a partir de uma visão formatada desde o exterior dos
presídios. Alguém que experimente as condições de vida em
sociedade nesse final de século vive, necessariamente, em
coordenadas espaço-temporais que não guardam qualquer relação
com aquelas vividas realmente pelos encarcerados.41
40
Ibidem, p. 77-78.
Relatório da II Caravana Nacional da Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara dos
Deputados. Anexo B. Disponível em: <http://hsw.uol.com.br/framed.htm?parent=prisoes.htm&url=
http://www2.camara.gov.br/comissoes/cdhm>. Acesso em 3.5.2008.
41
27
2
A NECESSÁRIA RELAÇÃO ENTRE DIREITOS HUMANOS, CRIMINALIDADE
SISTEMA PRISIONAL
2.1
O desafio da concretização dos direitos humanos
Muito embora de fundamental importância, a proclamação constitucional
dos direitos humanos não se afigura suficiente à sua realização na realidade fática
da vida das pessoas.
Há um longo caminho a ser percorrido entre o reconhecimento formal de
direitos humanos pelas mais diversas ordens jurídicas e sua concretização,
especialmente quando se faz necessária a atuação positiva do Estado, como na
hipótese de concretização de direitos humanos prestacionais ou sociais.
Examinando os direitos do homem na sociedade atual, Silvia Maria Solci
destaca a distância verificada em todo o mundo entre os direitos proclamados pela
ordem jurídica e aqueles efetivamente concretizados e adverte:
Apesar de se contemplar a “era dos direitos”, segundo Bobbio
(1992), na realidade concreta vive-se profundo desrespeito aos
direitos humanos. A luta pelo reconhecimento dos direitos não é
recente. Há longo tempo o homem se dedica a reivindicá-los; uma
vez conquistados deve fazer com que sejam realizados e não
violados. O direito não se faz sem lutas, as quais assumem
diferentes formas, tal como a denúncia, o debate, o protesto, a
resistência. Em conseqüência, o direito vai sendo construído em
determinado contexto social fruto das transformações da sociedade,
podendo significar não só avanços mas retrocessos. 42
Adverte a autora, após, que “a formação e o crescimento da consciência
do estado de sofrimento, de indigência, de penúria, de miséria, ou, mais geralmente,
de infelicidade, em que se encontra o homem no mundo (Bobbio, 1992, p. 54),
força-o a empenhar-se na superação de tal estado fazendo surgir ‘zonas de luz’ as
quais considera indícios de progresso da humanidade, tal como os amplos debates
internacionais sobre os direitos do homem que hoje ocorrem.” 43
42
SOLCI, Silvia Maria. Os Direitos do homem na sociedade
<http://www.ssrevista.uel.br/c_v2n1_direitos.htm>. Acesso em: 17.9.2007.
43
Ibidem.
atual.
Disponível
em:
28
Com este mesmo dilema se depara a humanidade relativamente aos
direitos humanos dos indivíduos no cumprimento de penas privativas de liberdade e
aos egressos do sistema prisional: muito embora não se duvide de seu status
constitucional e de sua relevância social, em realidade ainda se está muito distante
de conferir às pessoas que se encontram nestas situações aquelas garantias
fundamentais.
Ilustrativas, a esse respeito, as observações apresentadas pelos
pesquisadores Carmem Silveira Oliveira, Maria Palma Wolff, Marta Conte e Ronaldo
César Henn, ao relacionar a asseguração de direitos humanos com o cumprimento
das penas privativas de liberdade:
A dificuldade de acesso ao emprego, a fragilidade e a precarização
das relações de trabalho representam também a fragilidade na
efetivação dos direitos sociais, historicamente vinculados ao
processo de trabalho. [...] No momento em que o trabalho é definido
como o principal critério de inclusão numa sociedade que produz
cada vez mais desempregados, o destino dos sobrantes e dos não
inseridos só pode ser a exclusão, a eliminação (Castel, 1998;
Bauman, 1999). E os presos, por sua história de vida, caracterizada
por dificuldades de acesso à saúde, educação, habitação, formação
profissional e consumos de bens culturais, podem ser efetivamente
considerados como sobrantes.44
Importante, outrossim, o registro da existência de Regras Mínimas para
Tratamento de Prisioneiros, editadas pela Organização das Nações Unidas,
proclamando, justamente, a necessidade de que o mundo observe, ao menos,
requisitos mínimos de dignidade aos seres humanos aprisionados.
Do teor do documento, relevante assinalar-se a recomendação constante
do “Procedimento 4”, passo inicial e fundamental à viabilização da voz e da
necessária ação dos aprisionados na concretização de seus direitos. 45
44
OLIVEIRA, C. S. ; WOLFF, Maria Palma ; CONTE, Marta ; HENN, Ronaldo C . Direitos sociais:
repercussões no cumprimento de penas privativas de liberdade. Revista Serviço Social e Sociedade,
v. 26, n. 81. São Paulo: Editora Cortez, p. 110-111.
45
A íntegra dessa norma está no Anexo A. Dela, extraem-se as seguintes recomendações para que
se dê, efetivamente, sua concretização: “Procedimentos para a aplicação efetiva das Regras Mínimas
para o Tratamento de Prisioneiros. Procedimento 1. Todos os Estados cujas normas de proteção a
todas as pessoas submetidas a qualquer forma de detenção ou prisão não
estiverem à altura das Regras Mínimas para o Tratamento de Prisioneiros, adotarão essas regras
mínimas. [...] Procedimento 2. Adaptadas, se necessário, às leis e à cultura existentes, mas sem
distanciar-se do seu espírito e do seu objetivo, as Regras Mínimas serão incorporadas à legislação
nacional e demais regulamentos. [...] Procedimento 3. As Regras Mínimas serão postas à disposição
de todas as pessoas interessadas, em particular dos funcionários responsáveis pela aplicação da lei e
do pessoal penitenciário, a fim de permitir sua aplicação e execução dentro do sistema de justiça
penal. Comentário: Este procedimento lembra que as Regras Mínimas, assim como as leis e os
regulamentos nacionais relativos à sua aplicação, devem ser colocados à disposição de todas as
29
A redução desta distância entre a norma e a realidade, assim as ações
necessárias à concretização de direitos humanos à cidadania, ao preso e ao
egresso do sistema prisional, integrarão as reflexões constantes dos próximos
capítulos deste estudo.
2.2 A não-concretização de direitos humanos como causa da criminalidade
perseguida e da reincidência
Do exame dos fatores motivadores da criminalidade no Brasil, resultou
inequívoca a preponderância dos fatores de ordem sociológica, especialmente
daqueles relacionados à não-concretização de direitos humanos a uma expressiva
parcela da sociedade brasileira.
Além de empurrar milhares de indivíduos excluídos para longe da
possibilidade de ter acesso aos bens sociais que haveriam de ser universais e aos
meios de obtenção de recursos à aquisição de bens, o absoluto descaso do poder
público e da sociedade com o sistema prisional – fato já delineado no capítulo
pessoas que participem na sua aplicação, em especial dos funcionários responsáveis pela aplicação
da lei e do pessoal penitenciário. É possível que a aplicação das Regras exija, ademais, que o
organismo administrativo central encarregado dos aspectos correcionais organize cursos de
capacitação. A difusão dos presentes procedimentos é examinada nos procedimentos 7 a 9.
Procedimento 4. As Regras Mínimas, na forma em que se incorporaram à legislação e demais
regulamentos nacionais, também serão colocadas à disposição de todos os presos e de todas as
pessoas detidas ao ingressarem em instituições penitenciárias e durante sua reclusão. Comentário:
Para se alcançar o objetivo das Regras Mínimas, é necessário que as Regras, assim como as leis e
as regulamentações nacionais destinadas a dar-lhes aplicação, sejam postas à disposição dos presos
e de todas as pessoas detidas (regra 95), a fim de que todos eles saibam que as Regras representam
as condições mínimas aceitas pelas Nações Unidas. Assim, este procedimento complementa o
disposto no procedimento 3. Um requisito análogo - que as Regras sejam colocadas à
disposição das pessoas para cuja proteção foram elaboradas - figura já nos quatro Convênios de
Genebra, de 12 de agosto de 1949, cujos artigos 47 do primeiro Convênio, 48 do segundo, 127 do
terceiro e 144 do quarto contêm a mesma disposição: "As Altas Partes contratantes comprometem-se
a difundir, o mais amplamente possível, em tempo de paz e em tempo de guerra, o texto do presente
Convênio em seus respectivos países, e especialmente a incorporar seu estudo aos
programas de instrução militar e, em sendo possível, também civil, de modo que seus princípios
sejam conhecidos pelo conjunto da população, particularmente das forças armadas combatentes, do
pessoal da saúde e dos capelães." (Regras Mínimas para o Tratamento de Prisioneiros. Adotadas
pelo 1º Congresso das Nações Unidas sobre Prevenção do Crime e Tratamento de Delinqüentes,
realizado em Genebra, em 1955, e aprovadas pelo Conselho Econômico e Social da ONU através da
sua resolução 663 C I (XXIV), de 31 de julho de 1957, aditada pela resolução 2076 (LXII) de 13 de
maio de 1977. Anexo A.). Disponível em: <http://www.dhnet.org.br/direitos/sip/onu/fpena/lex52.htm>.
Acesso em 3.5.2008.
30
anterior –, alia-se à gênese perversa das prisões, recrudescendo a humanidade
encarcerada e colaborando para que o sistema se alimente de seu próprio produto.
A análise da hipossuficiência social da população carcerária demonstra a
forte contribuição da não-asseguração de direitos humanos aos indivíduos antes,
durante e após o encarceramento, para a manutenção do ciclo de criminalidade e
violência.
Dessa realidade,
pode inferir-se que “a marginalização carcerária é para a maior parte
dos presos um processo secundário de marginalização que intervém
depois de um processo primário” (Baratta, 1991:140). Telles
conceitua questão social como uma aporia que se refere “à
disjunção entre esperanças de um mundo que valha a pena ser
vivido, inscritas nas reivindicações por direitos e o bloqueio de
expectativas de futuro para maiorias atingidas por uma
modernização selvagem” (2001:115). Neste sentido, são constituídas
formas de vida cuja vulnerabilidade e precariedade são cristalizadas
como o único destino possível. A questão social se expressa,
portanto, na história de vida dos apenados, que certamente vai se
reproduzir durante o cumprimento da pena e nas limitações na saída
da prisão. É a constatação de que vivemos uma grande
desigualdade, uma diferença produzida pela divisão de classes
sociais.46
A desproteção social forma legiões de pessoas privadas dos bens
materiais e imateriais prometidos pela ordem jurídica a todo o ser humano, os
indivíduos marginalizados.47
Essas pessoas que, no Brasil, constituem cifra importante da população,
acumulam, “em ritmo crescente, sofrimentos e conflitos de natureza psicológica,
redundando num quadro psicossocial agravado pelas condições hostis de existência
vigentes no meio em que vivem.” 48
Daí surgir o desapreço a certos conceitos axiológicos essenciais,
como a auto-estima. Ao perder o respeito por si mesmo, o
marginalizado volta as costas para o mundo em que vegeta, não
vive. [...] Alguns, ao tentarem escapar dessa malha perversa,
acabam descambando para a criminalidade [...] É sem dúvida, da
46
OLIVEIRA, C. S. ; WOLFF, Maria Palma ; CONTE, Marta ; HENN, Ronaldo C . Direitos sociais:
repercussões no cumprimento de penas privativas de liberdade. Revista Serviço Social e Sociedade,
v. 26, n. 81. São Paulo: Editora Cortez, p. 111.
47
“Neste sentido, entendemos ser marginal um indivíduo caracterizado pela fragilidade de seus
próprios meios de subsistência, tendo em vista sua limitadíssima inserção no mercado de trabalho e,
como via de conseqüência, impossibilitado de satisfazer suas necessidades mínimas e essenciais,
alijado que está de produzir sua auto-sustentação.” (FALCONI, Romeu. Sistema Presidial: Reinserção
Social? São Paulo: Ícone, 1998, p. 35).
48
Ibidem, p. 36.
31
marginalidade – maioria das vezes – que sai o produto acabado da
criminalidade: o criminoso, já que os que vivem nesse gueto nada,
ou quase nada, têm a perder, senão a sua liberdade, que pouco ou
nada vale diante de tal quadro.49
Exatamente sobre essa população que busca a satisfação de suas
necessidades básicas e a obtenção daqueles direitos fundamentais que lhe foram
negados é que recai o direito penal, o que se chama de controle penal do
subproduto social ou de criminalização da pobreza.
Loïc Wacquant, após destacar o tratamento penal conferido pelo Brasil
aos distúrbios urbanos, refere que as prisões do país “... se parecem mais com
campos de concentração para pobres, ou com empresas públicas de depósito
industrial dos dejetos sociais, do que com instituições judiciárias servindo para
alguma função penalógica – dissuasão, neutralização ou reinserção.”50
Com efeito, aqueles indivíduos que tiveram suas garantias constitucionais
atendidas, ocupantes, de regra, das classes dominantes praticam, igualmente,
condutas lesivas ao meio social.
Todavia, pena de autofagia, a classe que domina não cria tipos penais
para incidir sobre as condutas que pratica.51
A agravar essa situação, a circunstância de que os “crimes de colarinho
branco” contrariam, no mais das vezes, interesses coletivos, lesando os cofres
públicos e desviando aquelas cifras que haveriam de garantir a concretização de
direitos humanos.52
Assim, então, o sistema de controle social garante sua estabilidade.
49
Ibidem, p. 36-37.
As prisões da miséria. Traduzido por André Telles. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2001, p. 11.
51
“Os mecanismos reguladores da seleção da população criminosa são complexos [...] Mas se
partimos de um ponto de vista mais geral, e observamos a seleção da população criminosa dentro da
perspectiva macrossociológica da interação e das relações de poder entre os grupos sociais,
reencontramos, por detrás do fenômeno, os mesmos mecanismos de interação, de antagonismo e de
poder que dão conta, em uma estrutura social, da desigual distribuição de bens e de oportunidades
entre os indivíduos. Só partindo deste ponto de vista pode-se reconhecer o verdadeiro significado do
fato de que a população carcerária, nos países da área do capitalismo avançado, em sua enorme
maioria, seja recrutada entre a classe operária e as classes economicamente mais débeis.
Realmente, só do interior desta perspectiva tal significado pode subtrair-se ao álibi teórico que, ainda
em nossos dias, é generosamente oferecido pelas interpretações ‘patológicas’ da criminalidade.”
(BARATTA, Alessandro. Criminologia Crítica e Crítica do Direito Penal. 2ª ed. Rio de Janeiro: Freitas
Bastos, 1999, p. 106-107).
52
Alessandro Baratta, após sublinhar ser a criminalidade definida e escolhida pela classe dominante,
provoca: “A pergunta que Sutherland havia formulado em 1945: ‘é criminalidade a criminalidade do
colarinho branco?’, revela ainda toda a sua força.” (ob. cit., p. 109).
50
32
2.3 O tratamento penal da pobreza
A incrementação da criminalidade e sua constante alimentação, como se
examinou, estão associadas de modo mais direto à deficiência do Estado e da
sociedade na distribuição equânime de suas riquezas, incluído aquele acervo de
caráter não-patrimonial do ser humano.
Então, a superação ou até mesmo a minimização desta realidade estão
relacionadas ao crescimento do Estado social.
Deste modo, não se devendo a criminalidade, modo mais importante, à
insuficiência da repressão penal, não haverá de ser seu incremento o responsável
por uma reversão daquele quadro.
Exatamente por esse motivo, a penalidade neoliberal – também,
nominada “tratamento penal da pobreza” – apresenta o seguinte paradoxo:
“pretende remediar com um mais Estado policial e penitenciário o menos Estado
econômico e social que é a própria causa da escalada generalizada da insegurança
objetiva e subjetiva em todos os países, tanto do Primeiro, como do Segundo
Mundo.”53
Wacquant prossegue, assinalando que a “penalidade neoliberal ainda é
mais sedutora e mais funesta quando aplicada em países ao mesmo tempo
atingidos por fortes desigualdades de condições e de oportunidades de vida e
desprovidos de tradição democrática e de instituições capazes de amortecer os
choques causados pela mutação do trabalho e do indivíduo no limiar do novo
século.” 54
Logo a seguir, arremata:
Isto é dizer que a alternativa entre o tratamento social da miséria e
seus correlatos – ancorado numa visão de longo prazo guiada pelos
valores de justiça social e de solidariedade – e seu tratamento penal
– que visa as parcelas mais refratárias do subproletariado e se
concentra no curto prazo dos ciclos eleitorais e dos pânicos
orquestrados por uma máquina midiática fora de controle –, diante
da qual a Europa se vê atualmente na esteira dos Estados Unidos,
coloca-se em termos particularmente cruciais nos países
53
WACQUANT, Loïc. As prisões da miséria. Traduzido por André Telles. Rio de Janeiro: Jorge Zahar
Editor, 2001, p. 7.
54
Ibidem, p. 7-8.
33
recentemente industrializados na América do Sul, tais como o Brasil
e seus principais vizinhos, Argentina, Chile, Paraguai e Peru. 55
Baratta, após esclarecer que a população carcerária dos países
capitalistas decorre, majoritariamente, das classes proletárias e, portanto, “das
zonas sociais já socialmente marginalizadas como exército de reserva pelo sistema
de produção capitalista”, adverte de 80% dos delitos perseguidos nesses países são
contra a propriedade.
56
Atuar-se contra essas evidências, hipertrofiando-se o Estado penal em
detrimento do aprimoramento das estratégias para a asseguração de direitos sociais
aos indivíduos, “aumentando os meios, a amplitude e a intensidade da intervenção
do aparelho policial e judiciário, esquivale a (r)estabelecer uma verdadeira ditadura
sobre os pobres.” 57
Em verdade, o que está em jogo é a escolha “entre a edificação, por mais
lenta e difícil que seja, de um Estado social, e a escalada, sem freios nem limites,
uma vez que se auto-alimentam, da réplica penal”, ou seja, o Brasil e a América
Latina hão de escolher se pretendem construir no futuro “uma sociedade aberta e
ecumênica, animada por um espírito de concórdia, ou um arquipélago de ilhotas de
opulência e de privilégios perdidas no meio de um oceano frio de miséria, medo e
desprezo pelo outro.” 58
2.4 A perversidade do encarceramento decorrente da dívida social
A comprovação da impertinência do agigantamento do Estado penal
decorre na análise de diversas experiências no mundo a demonstrar que não existe
nenhuma correlação entre nível de crime e nível de encarceramento.59
Após desmistificar a política de adoção da expansão do Estado penal
adotada pelos Estados Unidos – regras de direito penal máximo e de tolerância zero
–, o que lhe garante o recorde de população carcerária no mundo, o pesquisador
55
Ibidem, p. 7-8.
Ob. cit., p. 198.
57
WACQUANT, Loïc. As prisões da miséria. Traduzido por André Telles. Rio de Janeiro: Jorge Zahar
Editor, 2001, p. 10.
58
Ibidem, p. 13.
56
34
Loïc Wacquant assinala a construção de um fosso de desconfiança e medo entre os
americanos.
60
Assenta, após, com precisão científica, a existência de cerca de quarenta
estudos empíricos, em uma dezena de sociedades capitalistas, a demonstrar “que
existe no nível societário uma estreita e positiva correlação entre a deterioração do
mercado de trabalho e o aumento dos efetivos presos – ao passo que não existe
vínculo
algum
encarceramento.
comprovado
entre
índice
de
criminalidade
e
índice
de
61
O Brasil experimentou essa mesma realidade ao ver sucumbida a
promessa de redução da criminalidade mais violenta com a promulgação da Lei dos
Crimes Hediondos, em 1990.
Referida norma agravou fortemente o tempo e o regime de cumprimento
das penas privativas de liberdade relativamente a uma série da crimes cuja
incidência, invariavelmente, aumentou de lá para cá.62
Comentando situações análogas a essa, o Ministro Eugenio Raúl
Zaffaroni, em conferência realizada no Brasil, após pontuar o risco experimentado
pela democracia mundial em razão do desinteresse da sociedade pela política,
voltando-se, a seguir, à esfera penal, não poupou seu arsenal crítico:
Uma coisa é fazer a crítica das atitudes dos políticos, outra coisa
diferente é desprezar diretamente a atividade política. Ou acreditar
que esta artificiosidade atual da atividade política é uma
característica de sua natureza. Não é uma característica de sua
natureza. É um erro dos protagonistas da política, que acham que
estão num palco, quando na realidade estão no mundo. Mas, o que
está acontecendo no nosso âmbito ou nas nossas legislações
penais?
Esses
políticos
desnorteados,
preocupados
fundamentalmente com a imagem, esses políticos têm de simular
que estão providenciando soluções para os grandes problemas
sociais. Têm de projetar essa imagem. É uma necessidade para
eles. É uma necessidade da lógica teatral enviar essa mensagem. E
59
Ibidem, p. 12.
“Uma pesquisa recente revela que a esmagadora maioria dos negros da cidade de Nova York
considera a polícia uma força hostil e violenta que representa para eles um perigo: 72% julgam que os
policiais fazem um uso abusivo da força e 66% que suas brutalidades para com as pessoas de cor
são comuns e habituais (contra apenas 33 e 24% dos brancos). Dois terços pensam que a política de
Guiliani agravou essas brutalidades e apenas um terço diz ter a sensação de se sentir mais seguro
atualmente na cidade, mesmo assim morando nos bairros em que a queda da violência criminal é
estatisticamente mais nítida. Já os nova-iorquinos brancos são respectivamente 50% e 87% a
declarar o contrário: elogiam a prefeitura por sua intolerância com respeito ao crime e sentem-se
unanimimente menos ameaçados em sua cidade.” (Ibidem, p. 37).
61
Ibidem, p. 106.
62
CHOUKR, Fauzi Hassan. Processo Penal de Emergência. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris,
2002, p. 143-144.
60
35
acharam que a maneira mais simples de enviar essa mensagem é a
lei penal. Todo o problema social vira problema penal: a droga, a
violência, a psiquiatria, tudo vira penal, tudo. Nada acontece sem
que algum deputado, algum senador não faça um projeto de lei
penal. [...] A lei penal não custa. E o sujeito tem cinco minutos na
televisão. Para a vida e para a presença de um político isso é
63
imprescindível.
Enfim, o tratamento penal da miséria tem demonstrado pelo mundo sua
incapacidade de reduzir criminalidade, provocando o aprisionamento de milhares de
seres humanos punidos, por assim dizer, por sua condição de excluídos, gerando,
com seus efeitos deletérios, mais exclusão, violência e criminalidade.
A perversidade, pois, da escolha do modelo de Estado penal, decorre da
penalização decorrente da não-concretização de direitos fundamentais.
Opção, aliás, além de perversa, contraproducente, porque a penalização
da pobreza gera mais exclusão e alimenta a criminalidade perseguida.
Perversidade que se dirige ao indivíduo, que suporta tamanha injustiça,
assim ao patrimônio ético da sociedade, que faz letra morta o fundamento da
República Federativa do Brasil de promover a dignidade do ser humano.64
“A gestão penal da insegurança social alimenta-se assim de seu próprio
fracasso programado.” 65
63
GLOBALIZAÇÃO, Sistema Penal e Ameaças ao Estado Democrático de Direito. Org. Maria Lúcia
Karam. Rio da Janeiro: Lumen Juris Editora, 2005, p. 24-25.
64
Art. 1.° da Constituição Federal do Brasil.
65
WACQUANT,Loïc. As prisões da miséria. Traduzido por André Telles. Rio de Janeiro: Jorge Zahar
Editor, 2001, p. 145.
36
3 A PRIVAÇÃO DE LIBERDADE
A privação de liberdade apresenta-se como a sanção aplicada às
penalidades havidas por mais graves pelo legislador pátrio.
Seu cumprimento não pode ultrapassar o lapso de trinta anos, podendo
ser cumprida em regimes diferenciados – aberto, semi-aberto e fechado.
O regime inicial de cumprimento da pena recebe regramento na
sentença, o que varia de acordo com o tempo e a natureza da pena – detenção
ou reclusão –, assim considerada a circunstância de ser o indivíduo reincidente ou
não.
Nessas circunstâncias, existiam no Brasil, em junho de 2007, 419.551
pessoas detidas em penitenciárias ou delegacias, número que lhe conferia o título
de oitava maior população carcerária do mundo.
Em 1995, eram 148.760 mil presos no país.
A proporção era de 95 presos para cada 100 mil habitantes.
Hoje, esse número é de 227 presos para cada 100 mil habitantes, de
acordo com dados do Departamento Penitenciário Nacional. 66
3.1 Finalidades declaradas
A privação de liberdade motiva estudos há vários séculos, adotando, na
atualidade, o ordenamento jurídico brasileiro, a teoria mista67, que declara serem
66
Disponível em: <http://www.onorte.com.br/noticias/?69226>. Acesso em 29.4.2008. “Segundo o
diretor-geral do Depen, Maurício Kuehne, o número de presos aumentou consideravelmente nos
últimos 12 anos. Isso dificultou que a criação de vagas acompanhasse o ritmo de crescimento da
população carcerária. [...] Kuehne diz que, para acabar com o déficit de cerca de 200 mil vagas do
sistema penitenciário nacional seriam necessários R$ 6 bilhões.”
67
“Pena é a sanção aflitiva imposta pelo Estado, mediante ação penal, ao autor de uma infração
(penal), como retribuição de seu ato ilícito, consistente na diminuição de um bem jurídico, e cujo fim é
evitar novos delitos. Apresenta a característica de retribuição, de ameaça de um mal contra o autor da
infração penal. Tem finalidade preventiva, no sentido de evitar a prática de novas infrações. A
prevenção é: a) geral; b) especial. Na prevenção geral o fim intimidativo da pena dirige-se a todos os
destinatários da norma penal, visando a impedir que os membros da sociedade pratiquem crimes. Na
prevenção especial, a pena visa o autor do delito, retirando-o do meio social, impedindo-o de delinqüir
e procurando corrigi-lo.” (JESUS, Damásio Evangelista. Direito Penal. 16ª ed. São Paulo: Saraiva,
1992, v. 1, p. 457).
37
intenções da punição a) o castigo ao ofensor pelo mal causado, b) assim a
prevenção da prática novos crimes, seja por meio do temor incutido nas demais
pessoas – prevenção geral –, seja em razão da ação educativa sobre o autor do
crime – prevenção especial.
Esse modelo decorre da reunião das teorias a) absoluta – a sanção visa,
unicamente, à retribuição pelo mal causado – e b) relativa – a punição busca
prevenir o crime por intermédio da reeducação do indivíduo.
Concilia, então, a ordem jurídica brasileira, o caráter de castigo à
finalidade restauradora da pena.
Pune-se porque pecou e para que não peque. Segundo José M.
Rico, todas estas teorias têm correspondência com a evolução geral
da concepção da pena. Ao período primitivo da vingança privada,
embasado na repressão e na composição, sucedem os períodos
teleológicos e políticos, inspirados na expiação e na intimidação; o
período humanitário, por sua vez, sucede àqueles cujas bases são a
expiação, a emenda ou a correção do culpado e, finalmente, o
período contemporâneo ou científico, que segue insistindo no poder
intimidante da pena, levando, porém, cada vez mais em
consideração a ressocialização do delinqüente.68
Aponte-se, outrossim, por oportuno, vir de Cesare Beccaria a
recomendação de que a punição ocasione o mínimo sofrimento ao condenado:
Da simples consideração das verdades até aqui expostas, resulta
evidente que o fim das penas não é atormentar e afligir um ser
sensível, nem desfazer um delito já cometido. [...] O fim, pois, é
apenas impedir que o réu cause novos danos aos seus concidadãos
e dissuadir os outros a fazer o mesmo. É, pois, necessário escolher
penas e modos de infligi-las, que, guardadas as proporções, causem
a impressão mais eficaz e duradoura nos espíritos dos homens, e a
menos penosa ao corpo do réu.69
3.2 A realidade da privação de liberdade no Brasil
A conceituação da realidade carcerária do Brasil constitui uma
unanimidade: calamitosa.
68
OLIVEIRA, Odete Maria de. Prisão: um paradoxo social. 3ª edição. Florianópolis: Editora da UFSC,
2003, p. 70-71.
69
BECCARIA, Cesare. Dos Delitos e das Penas. Tradução de Lucia Guidicini e Alessandro Berti
Contessa. São Paulo: Martins Fontes, 1997, p. 62.
38
70
Essa é a voz que parte dos presos , passa pelos agentes penitenciários,
perpassa toda a classe política
do país.
71
e encontra eco na mais alta autoridade judiciária
72
A agravar esse painel, a falta de esclarecimento oficial preciso acerca da
situação quantitativa e qualitativa da população aprisionada, faz com que os dados
empíricos sobre esta realidade possuam grande número de divergências.
Muito embora não se tenha consenso quanto aos números, a descrição
do que se passa no interior das prisões brasileiras é muito semelhante: desrespeito
a direitos fundamentais73.
70
“A prisão é como um cemitério, onde está enterrado o corpo e o espírito do preso. Fisicamente e
psicologicamente retrai a pessoa, entra-se num mundo muito pequeno e a pessoa sente um impacto.
A penitenciária precisa preprarar a volta do interno à sociedade para que ele não retorne a reincidir,
mas está muito atrasada nesse sentido...” (De um preso da penitenciária de Florianópolis).” Ibidem, p.
99.
71
“Os deputados que integram a Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) sobre o sistema carcerário
brasileiro estão percorrendo os estados para avaliar a situação dos presídios do país e em todos os
estados já visitados até agora a conclusão é a mesma: a superlotação dos presídios é assustadora. A
deputada Cida Diogo (PT - Rio de Janeiro) participou das visitas e disse que a situação nos presídios
é de "caos". Cida é sub-relatora para a Situação de Mulheres Encarceradas da CPI e embora tenha
constatado que a situação das mulheres é um pouco melhor que a dos homens, ela revela que o
Sistema Carcerário brasileiro não se preparou para receber mulheres. Em uma das prisões visitadas
no interior do Ceará, a deputada encontrou uma mulher grávida de 8 meses. Ela ficou grávida na
prisão, após ter tido relações com um preso da cela ao lado. Essa é uma realidade que se estende
por todo o país. Na falta de espaços específicos para as mulheres, há uma improvisação e muitas
vezes as mulheres têm, até mesmo, que dividir a cela com homens.” Disponível em: <
http://www.adital.com.br/site/noticia.asp?lang=PT&cod=31905>. Acesso em 29.4.2008.
72
Veja-se o que a Agência Nacional de Notícias do Brasil divulgou sobre o dircurso de posse do
Ministro Presidente do Conselho Nacional de Justiça, que tomaria posse, dias após, como Presidente
do Supremo Tribunal Federal, ambas ocorridas no ano de 2008: “Gilmar Mendes classificou de
‘vergonha nacional’ a situação da população carcerária brasileira. ‘Nós precisamos saber com
precisão em que condição a população carcerária está presa para que nós não tenhamos que
enfrentar, toda hora, essas crises, como a menor de 14 anos presa com adultos e todo esse quadro
de vergonha nacional. É preciso que nós avancemos em relação a isso’, defendeu o ministro, que
tomará posse como presidente do STF no dia 23 de abril. No discurso de hoje, Mendes afirmou que
uma das dificuldades é identificar as ‘efetivas condições jurídicas’ dos presos e que, por isso, ‘o
conselho, com sua capacidade de análise e de crítica, atuará em parceria com os demais órgãos
públicos responsáveis, de forma a mudar de vez essa triste realidade’. Questionado sobre como se
dará esse processo, o ministro disse que é preciso haver ‘discussões sérias’ sobre a questão e
destacou que ‘o Judiciário é responsável pela execução criminal e deve dar a resposta adequada
aqui’.
Disponível
em:
<http://www.agenciabrasil.gov.br/noticias/2008/03/26/materia.2008-0326.0054331402/view>. Acesso em 29.4.2008.
73
“Em novembro de 2007, diretamente da sede da Organização das Nações Unidas (ONU), ouviu-se
mais uma vez uma denúncia recorrente sobre a realidade brasileira: a da existência, segundo a
própria ONU, de ‘tortura generalizada e sistemática’ para milhares de detentos do país. Baseadas na
visita de especialistas em 2005, as alegações fazem parte de um amplo relatório, ainda não
2totalmente divulgado, que enfatiza também aspectos discriminatórios da violação, que atinge
principalmente os afrodescendentes. Há sete anos, a noção de ‘tortura sistemática’ já estava presente
em outro estudo da ONU, produzido a partir de inspeções realizadas no ano 2000. O documento
descreve nada menos que 348 alegações concretas de tortura, ocorridas em 18 estados ao longo da
década de 1990. Chama a atenção também para um extenso rol de omissões e irregularidades, que
tornam a prática dessa violência um ato de responsabilidade partilhada entre altos escalões e a figura
do carrasco. Assim como as denúncias, também não são novidade políticas federais para o problema.
39
Tanto que Odete Maria de Oliveira dedicou um capítulo inteiro de sua
obra, “Prisão: um paradoxo social”, para descrever as privações por que passam as
pessoas aprisionadas.74
Pode-se, então, perceber, que ao lado do sofrimento decorrente da
privação de liberdade75, autorizada pelo ordenamento jurídico, os seres humanos
aprisionados experimentam diversas outras, decorrentes da inobservância aos seus
direitos constitucionais.
76
A pesquisadora denuncia as privações a) de bens, pois o indivíduo não
pode dispor de objetos pessoas no ambiente prisional, b) de autonomia, já que não
se mostra possível expressar opiniões perante a Administração, c) de segurança,
pois a insuficiência do Estado permite a redenção da violência e da brutalidade,77 d)
de relacionamentos heterossexuais, e) de possibilidade de manutenção de seu
Ainda em 2001, nasceu o SOS Tortura, um disque-denúncia extinto pelo governo Lula menos de três
anos depois. No mesmo ano surgiu o Plano Nacional de Combate à Tortura – que, no entendimento
da gestão atual, apresentou resultados insatisfatórios por focar-se excessivamente na punição, em
vez de buscar mudanças de procedimentos e práticas. Tais transformações são o objetivo do Plano
de Ações Integradas para Prevenção e Controle da Tortura, apresentado em dezembro de 2005.
Última aposta do governo federal, ele se baseia em articulações com os estados para alcançar
resultados efetivos. Passados mais de dois anos, no entanto, a iniciativa esbarra num velho problema:
falta de compromisso de amplos setores da segurança pública e do sistema de Justiça. Em diversas
instâncias, prevalece o silêncio sobre o assunto. As causas. Entre outubro de 2001 e julho de 2003,
mais de 25 mil ligações foram atendidas pelo SOS Tortura. Elas deram origem, após filtragem, a 2,2
mil denúncias encaminhadas às autoridades competentes. Em nada menos do que 85,8% dos casos,
os acusados eram agentes públicos. Entre eles, a Polícia Civil responde por 31,4% das alegações, a
Polícia Militar por 30,6% e os agentes penitenciários por 14%. E por que o Estado tortura? Para
Luciano Mariz Maia, procurador regional da República na 5ª Região, permanece ainda uma forte
noção do uso da violência como forma de punição. ‘A idéia de castigar é tão presente que, muitas
vezes, a polícia nem tem indícios concretos, mas percebe alguém em ‘situação suspeita’ e dá o bote.
A pessoa, assustada, tenta correr, mas é alcançada, e a polícia começa a bater sem nem saber
exatamente o porquê’, descreve.” Disponível em: <http://www.arp.org.br/noticias.php?i=63>. Acesso
em 30.4.2008.
74
OLIVEIRA, Odete Maria de. Prisão: um paradoxo social. 3ª edição. Florianópolis: Editora da UFSC,
2003, p. 78-100.
75
“Não é por descer os últimos degraus que se fica um robô, porque aqui não se consegue fazer
planos. É uma vida de mentira. Daria meu braço. Queria ficar aleijado, mas ter minha liberdade. Só
para quem sente na carne, é como uma faca espetada em você, não se consegue nem conversar. É
um preço muito alto.” (De um preso da penitenciária de Florianópolis).”Ibidem, p. 72.
76
“57. A prisão e outras medidas cujo efeito é separar um delinqüente do mundo exterior são
dolorosas pelo próprio fato de retirarem do indivíduo o direito à auto-determinação, privando-o da sua
liberdade. Logo, o sistema prisional não deverá, exceto por razões justificáveis de segregação ou para
a manutenção da disciplina, agravar o sofrimento inerente a tal situação.” (Regras Mínimas para o
Tratamento de Prisioneiros. Adotadas pelo 1º Congresso das Nações Unidas sobre Prevenção do
Crime e Tratamento de Delinqüentes, realizado em Genebra, em 1955, e aprovadas pelo Conselho
Econômico e Social da ONU através da sua resolução 663 C I (XXIV), de 31 de julho de 1957, aditada
pela resolução 2076 (LXII) de 13 de maio de 1977. Anexo A.). Disponível em:
<http://www.dhnet.org.br/direitos/sip/onu/fpena/lex52.htm>. Acesso em 3.5.2008.
77
“31. Serão absolutamente proibidos como punições por faltas disciplinares os castigos corporais, a
detenção em cela escura e todas as penas cruéis, desumanas ou degradantes.” Ibidem.
40
sustento, tendo em vista a precariedade de oferta de trabalho remunerado,
79
80
81
condições de higiene , assistência médica , odontológica, social
82
83
78
f) de
e jurídica, e g)
84 85
à educação , à cultura , ao lazer .
78
“65. O tratamento dos condenados a uma punição ou medida privativa de liberdade deve ter por
objetivo, enquanto a duração da pena o permitir, inspirar-lhes a vontade de viver conforme a lei,
manter-se com o produto do seu trabalho e criar neles a aptidão para fazê-lo. Tal tratamento estará
direcionado a fomentar-lhes o respeito por si mesmos e a desenvolver seu senso de responsabilidade.
66. 1. Para lograr tal fim, deverá se recorrer, em particular, à assistência religiosa, nos países em que
ela seja possível, à instrução, à orientação e à formação profissionais, aos métodos de assistência
social individual, ao assessoramento relativo ao emprego, ao desenvolvimento físico e à educação do
caráter moral, em conformidade com as necessidades individuais de cada preso. Deverá ser levado
em conta seu passado social e criminal, sua capacidade e aptidão físicas e mentais, suas
disposições pessoais, a duração de sua condenação e as perspectivas depois da sua libertação.”
Ibidem.
79
“10. Todos os locais destinados aos presos, especialmente aqueles que se destinam ao alojamento
dos presos durante a noite, deverão satisfazer as exigências da higiene, levando-se em conta o clima,
especialmente no que concerne ao volume de ar, espaço mínimo, iluminação, aquecimento e
ventilação. 11. Em todos os locais onde os presos devam viver ou trabalhar: a. As janelas deverão ser
suficientemente grandes para que os presos possam ler e trabalhar com luz natural, e deverão estar
dispostas de modo a permitir a entrada de ar fresco, haja ou não ventilação artificial. b. A luz artificial
deverá ser suficiente para os presos poderem ler ou trabalhar sem prejudicar a visão. 12. As
instalações sanitárias deverão ser adequadas para que os presos possam satisfazer suas
necessidades naturais no momento oportuno, de um modo limpo e decente. 13. As instalações de
banho deverão ser adequadas para que cada preso possa tomar banho a uma temperatura adaptada
ao clima, tão freqüentemente quanto necessário à higiene geral, de acordo com a estação do ano e a
região geográfica, mas pelo menos uma vez por semana em um clima temperado.14. Todos os locais
de um estabelecimento penitenciário freqüentados regularmente pelos presos deverão ser mantidos e
conservados escrupulosamente limpos.” Ibidem.
80
“22. 1. Cada estabelecimento penitenciário terá à sua disposição os serviços de pelo menos um
médico qualificado, que deverá ter certos conhecimentos de psiquiatria. Os serviços médicos deverão
ser organizados em estreita ligação com a administração geral de saúde da comunidade ou nação.
Deverão incluir um serviço de psiquiatria para o diagnóstico, e em casos específicos, para o
tratamento de estados de anomalia. [...] 52. 1. Nos estabelecimentos prisionais cuja importância exija
o serviço contínuo de um ou vários médicos, pelo menos um deles residirá no estabelecimento ou nas
suas proximidades. 2.Nos demais estabelecimentos, o médico visitará diariamente os presos e
residirá próximo o bastante doestabelecimento para acudir sem demora toda vez que se apresente
um caso urgente.” Ibidem.
81
“49 [...] 2. Os serviços dos assistentes sociais, dos professores e instrutores técnicos deverão ser
mantidos permanentemente, sem que isto exclua os serviços de auxiliares a tempo parcial ou
voluntários.” Ibidem.
82
“77. 1. Serão tomadas medidas para melhorar a educação de todos os presos em condições de
aproveitá-la, incluindo instrução religiosa nos países em que isso for possível. A educação de
analfabetos e presos jovens será obrigatória, prestando-lhe a administração especial atenção.
2.Tanto quanto possível, a educação dos presos estará integrada ao sistema educacional do país,
para que depois dasua libertação possam continuar, sem dificuldades, a sua educação.” Ibidem.
83
“78. Atividades de recreio e culturais serão proporcionadas em todos os estabelecimentos prisionais
em benefício da saúdefísica e mental dos presos.” Ibidem.
84
“58. O fim e a justificação de uma pena de prisão ou de qualquer medida privativa de liberdade é,
em última instância, proteger a sociedade contra o crime. Este fim somente pode ser atingido se o
tempo de prisão for aproveitado para assegurar, tanto quanto possível, que depois do seu regresso à
sociedade o delinqüente não apenas queira respeitar a lei e se auto-sustentar, mas também que seja
capaz de fazê-lo. 59. Para alcançar esse propósito, o sistema penitenciário deve empregar, tratando
de aplicá-los conforme as necessidades do tratamento individual dos delinqüentes, todos os meios
curativos, educativos, morais, espirituais e de outra natureza, etodas as formas de assistência de que
pode dispor.” Ibidem.
85
OLIVEIRA, Odete Maria de. Prisão: um paradoxo social. 3ª edição. Florianópolis: Editora da UFSC,
2003, p. 76-97.
41
O advogado Lúcio Ronaldo Pereira Ribeiro, estudando as prisões do
Estado do Rio de Janeiro na década de 90, refere que deveriam constituir fontes de
experiências positivas ao aprisionado, a fim de aprimorar e moldar sua conduta. 86
Adverte que “se o fim da prisão, modernamente, é a ressocialização do
preso-condenado, se a ressocialização implica uma socialização dos valores do
condenado, se a experiência é que possibilita a modificação e o desenvolvimento
dos valores, seria imprescindível que as prisões fossem ambientes, laboratórios, que
proporcionassem ao condenado uma gama de experiências que lhe incutissem, ou
que lhe permitissem desenvolver valores benéficos à sociedade.”87
Todavia, segundo o pesquisador, a situação estudada oferta retrato
bastante diverso:
as prisões no mundo e, mormente no Brasil, não proporcionam ao
condenado preso a sua recuperação. São ambientes tensos, em
péssimas condições humanas. A superlotação é comum. Os direitos
previstos na Lei de Execuções Penais não são aplicados na prática.
Há violência contra os condenados, praticadas por aqueles que têm
a incumbência de custodiá-los e mesmo por outros presos. Enfim,
nós sabemos que o ambiente de uma unidade prisional no Brasil, em
regra, é muito mais propício para o desenvolvimento de valores
nocivos à sociedade, do que ao desenvolvimento de valores e
condutas benéficas. Assim é que a prisão fabrica sua própria
clientela, que retornará futuramente, em grande escala, basta
verificarmos os altos índices de reincidência, foram ainda os casos
de presos não reincidentes, mas que já tiveram passagens
anteriores pelo sistema prisional.88
3.3 Privação de liberdade e direitos humanos
A história da privação de liberdade no Brasil repete, no que se refere à
concretização de garantias fundamentais, o histórico dos indivíduos a ela
submetidos: violação a direitos humanos, absoluta e reiterada.
E o mais preocupante é o silêncio da sociedade para essa cruel
realidade.
86
Disponível em: <http://www.direitoufba.net/mensagem/josebarroso/cr-opresocondenado.doc.>.
Acesso em 30.4.2008.
87
Ibidem.
88
Ibidem.
42
Ao contrário, percebe-se até mesmo a defesa dessa situação de parte de
uma considerável parcela do grupo social.
A asseguração de direitos humanos nas prisões brasileiras mereceu
extensa investigação da Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara de
Deputados.
Do trabalho, resultou Relatório do qual se pode constatar toda a sorte de
violações a direitos humanos nas casas de aprisionamento do país.
89
De seu teor, extrai-se:
Os presídios talvez sejam o outro lado da moeda, a face obscura que
nos recusamos a ver de nós mesmos. [...] As pessoas que se
encontram encarceradas possuem entre si pouco em comum além
do fato de serem invariavelmente pobres, jovens e semialfabetizadas. [...] O que vemos no interior dos presídios,
particularmente nas atuais condições de encarceramento, é uma
afronta permanente a este e a muitos outros valores fundamentais
para a condição humana. [...] A sensação que temos, ao final dos
nossos trabalhos, é a de que conhecemos um sistema
absolutamente "fora da lei". Os imperativos definidos pela Lei de
Execução Penal (LEP) são solenemente ignorados em todos os
estados. Realidade do arbítrio, os presídios brasileiros são uma
reinvenção do inferno. A resultante, entretanto, não é uma
construção metafísica ou uma especulação religiosa. Aqui, os
demônios tem pernas e visitam os presos a cada momento.
Deputado Marcos Rolim. Presidente da Comissão de Direitos
Humanos.90
No mesmo sentido, o relatório anual de direitos humanos da organização
não-governamental Human Rights Watch, apontando precariedades no sistema
prisional comprometedoras até mesmo da vida dos indivíduos a ele submetidos:
As críticas se baseiam em dados do Departamento Penitenciário
Nacional (Depen) do Ministério da Justiça. De acordo com esses
números, as penitenciárias e cadeias brasileiras tinham sob sua
custódia, em junho de 2007, 419.551 detentos - 200 mil pessoas a
mais do que a capacidade do sistema. A ONG ainda destaca o
levantamento da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI)
Carcerária, que apurou a morte de 651 presos, apenas nos primeiros
quatro meses de 2007. A comissão foi criada no Congresso em
agosto de 2007, depois que 25 detentos morreram queimados
durante motim em uma cadeia pública de Ponte Nova (MG). O
relatório destaca como exemplo negativo as condições da
penitenciária feminina de Sant’Ana, em São Paulo, onde morreram
cinco mulheres entre dezembro de 2006 e julho de 2007.
89
A íntegra do Relatório encontra-se no Anexo B deste trabalho. Disponível em:
<http://hsw.uol.com.br/framed.htm?parent=prisoes.htm&url=http://www2.camara.gov.br/comissoes/cdh
m.> Acesso em 30.4.2008.
90
Ibidem.
43
“Superlotação, a presença de ratos e pombos infectados, a má
qualidade da água e a falta de medicação estavam entre os
problemas relatados pela Defensoria Pública do Estado de São
Paulo”, revela o documento.91
Esse panorama, assim as vicissitudes próprias do sistema prisional,
constituem os ingredientes necessários e suficientes ao mais absoluto fracasso do
aprisionamento no Brasil, que serve apenas para afastar do grupo social aqueles
que contra si atentam – respondendo ao atentado consistente na não-concretização
de direitos humanos – abandonando-os à própria sorte, o que produz um
contingente fantástico de seres humanos violados, humilhados, embrutecidos, que
nutrirão – e não haveria como constituir-se realidade diversa – o perverso ciclo da
criminalidade.
A não-asseguração dos mais vitais direitos à humanidade – livre ou
aprisionada – aliada ao tratamento penal da miséria, não poderiam levar a outro
destino.
91
Disponível
em:
<http://www.agenciabrasil.gov.br/noticias/2008/01/31/materia.2008-0131.3170152862/view.> Acesso em 30.4.2008.
44
4 O RETORNO À SOCIEDADE LIVRE
A restrição da liberdade constitui uma das muitas privações por que
passa o indivíduo aprisionado.
Entretanto, ultrapassado este obstáculo – ultimado o cumprimento da
pena –, uma nova sorte de privações espera o egresso do sistema prisional no
mundo livre.
Recuperada a liberdade, resta-lhe, agora, a reaquisição da auto-estima,
da dignidade, da convivência comunitária, caminho espinhoso como o trilhado até
então.
Em verdade, a sociedade recebe o egresso do sistema prisional de
costas.
Não bastasse toda a sorte de violação a direitos sofrida pelo indivíduo,
recebe, agora, o rótulo de ex-presidiário, título que lhe impõe a convivência com o
estigma e o preconceito.
Prossegue e agrava-se, então, o ciclo da exclusão que o levara ao
cárcere.
A busca de dignidade – o que depende, invariavelmente, da
concretização de direitos fundamentais –, objetivo perseguido e nunca alcançado
por milhões de seres humanos, permanece, caminho que agora recebe as mais
variadas
nomenclaturas:
reintegração
ou
reinserção
social,
reeducação,
emancipação, socialização, ressocialização, etc.
Independentemente no modo como se queira nominar o fenômeno, o
importante é o registro de que a busca pela dignidade não conhecida persiste,
afigurando-se, a essa altura, horizonte de atingimento mais espinhoso.
4.1 O egresso do sistema prisional e os direitos humanos
A saída do cárcere constitui para o indivíduo um novo marco para a
busca da asseguração de direitos fundamentais.
45
Um novo caminhar se inaugura na persecução da tão distante dignidade
humana.
Todavia, a exclusão e, por conseqüência, as dificuldades, se mostram
agravadas.
92
Os próprios presos mencionam a inexistência de políticas de
preparação para a liberdade. Parece que à pena de prisão
discricionariamente se impõem outras punições, como maior
dificuldade de acesso às políticas e aos direitos sociais,
constitucionalmente estabelecidos. Cumpre-se a lei, mesmo que
para cumpri-las outras leis sejam negadas [...] Esses aportes
demonstram a importância de que a prisão seja pensada para fora
de seus domínios. A punição não é apenas uma questão legal, pois
reflete e expressa uma perspectiva política e ideológica assumida
pelo Estado e pela sociedade. O não-cumprimento de direitos não
afeta somente os presidiários, mas diz respeito a todos os
cidadãos.93
À deficiência do sistema prisional na concretização de direitos humanos
– à educação, à profissionalização, ao trabalho, por exemplo –, alia-se a
precariedade das políticas públicas para o fim de promover a dignidade desses
indivíduos, recém retornados à sociedade livre.
94
Então, mais uma vez o Estado viola suas obrigações humanitárias,
porquanto a asseguração das condições necessárias a que os seres humanos
aprisionados adquiram ou readquiram dignidade no mundo livre constitui obrigação
de todos os povos, segundo as Regras Mínimas para Tratamento de Prisioneiros,
92
“Michel Foucault mostrou, de maneira especialmente clara, que certas instituições que sempre
foram pensadas com fins de exclusão – prisões, hospitais, manicômios -, em um determinado ponto,
se transformaram, não tanto no que acontece dentro delas, mas na sua função, ou seja, se tornaram
instituições que, em um determinado ponto, se colocaram o problema de como incluir aqueles que
transitavam dentro delas.” (CORSI, Giancarlo. In Globalização, Sistema Penal e Ameaças ao Estado
Democrático de Direito. Org. Maria Lúcia Karam. Rio da Janeiro: Lumen Juris Editora, 2005, p. 70-71).
93
OLIVEIRA, C. S. ; WOLFF, Maria Palma ; CONTE, Marta ; HENN, Ronaldo C . Direitos sociais:
repercussões no cumprimento de penas privativas de liberdade. Revista Serviço Social e Sociedade.
São Paulo, v. 26, n. 81, p. 114-115.
94
“Muitos detentos, além de ex-presos ou os próprios detentos, ressaltaram um aspecto: uma vez
saídos do cárcere, os contatos sociais, as capacidades de ter a ver com os outros e a própria imagem
de si mesmos desabam. [...] Ora, na discussão com os próprios operadores que se ocupam do
momento de passagem do interior para o exterior, o que se notou foi que não é tanto uma questão de
construir uma dimensão subjetiva, pessoal, desses indivíduos que estão para sair do cárcere; o
verdadeiro problema está em perceber as poucas possibilidades de escolha que têm quando saem da
prisão. Antes de tudo, naturalmente, seria preciso ter uma grande coordenação a nível organizacional,
o que absolutamente não existe. E o resultado é que estas pessoas, quando saem, não sabem ou
sabem mal aquilo que podem fazer. Talvez já tenham perdido os contatos sociais ou familiares. E,
diante da total indeterminação que lhes acolhe fora do cárcere, só vêem as alternativas que já
conhecem, tipicamente, furto, violência, droga, etc. – e se recomeça.” (CORSI, Giancarlo. In
Globalização, Sistema Penal e Ameaças ao Estado Democrático de Direito. Org. Maria Lúcia Karam.
Rio da Janeiro: Lumen Juris Editora, 2005, p. 71-72).
46
aprovadas pela Organização das Nações Unidas e referendadas pelo Brasil, com
força cogente, pois, na ordem jurídica interna.
Com efeito, deste documento verifica-se, por exemplo, que “a prisão e
outras medidas cujo efeito é separar um delinqüente do mundo exterior são
dolorosas pelo próprio fato de retirarem do indivíduo o direito à auto-determinação,
privando-o da sua liberdade. Logo, o sistema prisional não deverá, exceto por
razões justificáveis de segregação ou para a manutenção da disciplina, agravar o
sofrimento inerente a tal situação.”95
Igualmente a norma assenta que “o fim e a justificação de uma pena de
prisão ou de qualquer medida privativa de liberdade é, em última instância, proteger
a sociedade contra o crime. Este fim somente pode ser atingido se o tempo de
prisão for aproveitado para assegurar, tanto quanto possível, que depois do seu
regresso à sociedade o delinqüente não apenas queira respeitar a lei e
se auto-sustentar, mas também que seja capaz de fazê-lo.”96
O diploma prossegue, destacando que “para alcançar esse propósito, o
sistema penitenciário deve empregar, tratando de aplicá-los conforme as
necessidades do tratamento individual dos delinqüentes, todos os meios curativos,
educativos, morais, espirituais e de outra natureza, e todas as formas de assistência
de que pode dispor.”97
A obrigação estatal é claramente delineada, quando a norma ordena que
“o regime do estabelecimento prisional deve tentar reduzir as diferenças existentes
entre a vida na prisão e a vida livre quando tais diferenças contribuirem para
debilitar o sentido de responsabilidade do preso ou o respeito à dignidade da
95
Recomendação 57 das Regras Mínimas para o Tratamento de Prisioneiros. Adotadas pelo 1º
Congresso das Nações Unidas sobre Prevenção do Crime e Tratamento de Delinqüentes, realizado
em Genebra, em 1955, e aprovadas pelo Conselho Econômico e Social da ONU através da sua
resolução 663 C I (XXIV), de 31 de julho de 1957, aditada pela resolução 2076 (LXII) de 13 de maio
de 1977. (Anexo A). Disponível em: <http://www.dhnet.org.br/direitos/sip/onu/fpena/lex52.htm>.
Acesso em 3.5.2008.
96
Recomendação 58 das Regras Mínimas para o Tratamento de Prisioneiros. Adotadas pelo 1º
Congresso das Nações Unidas sobre Prevenção do Crime e Tratamento de Delinqüentes, realizado
em Genebra, em 1955, e aprovadas pelo Conselho Econômico e Social da ONU através da sua
resolução 663 C I (XXIV), de 31 de julho de 1957, aditada pela resolução 2076 (LXII) de 13 de maio
de 1977. (Anexo A). Disponível em: <http://www.dhnet.org.br/direitos/sip/onu/fpena/lex52.htm>.
Acesso em 3.5.2008.
97
Recomendação 59 das Regras Mínimas para o Tratamento de Prisioneiros. Adotadas pelo 1º
Congresso das Nações Unidas sobre Prevenção do Crime e Tratamento de Delinqüentes, realizado
em Genebra, em 1955, e aprovadas pelo Conselho Econômico e Social da ONU através da sua
resolução 663 C I (XXIV), de 31 de julho de 1957, aditada pela resolução 2076 (LXII) de 13 de maio
de 1977. (Anexo A). Disponível em: <http://www.dhnet.org.br/direitos/sip/onu/fpena/lex52.htm>.
Acesso em 3.5.2008.
47
sua pessoa”, acrescendo ser “conveniente que, antes do término do cumprimento de
uma pena ou medida, sejam tomadas as providências necessárias para assegurar
ao preso um retorno progressivo à vida em sociedade. Este propósito pode ser
alcançado, de acordo com o caso, com a adoção de um regime preparatório para a
liberação, organizado dentro do mesmo estabelecimento prisional ou em outra
instituição
apropriada,
ou
mediante
libertação
condicional
sob
98
vigilância não confiada à polícia, compreendendo uma assistência social eficaz.”
E a série de mandamentos relativos à preparação do indivíduo preso para
o retorno à liberdade recomenda, ainda, ações de acolhimento ao egresso do
sistema prisional:
No tratamento, não deverá ser enfatizada a exclusão dos presos da
sociedade, mas, ao contrário, o fato de que continuam a fazer parte
dela. Com esse objetivo deve-se recorrer, na medida ao possível, à
cooperação de organismos comunitários que ajudem o pessoal do
estabelecimento prisional na sua tarefa de reabilitar socialmente os
presos. Cada estabelecimento penitenciário deverá contar com a
colaboração de assistentes sociais encarregados de manter e
melhorar as relações dos presos com suas famílias e com os
organismos sociais que possam lhes ser úteis. Também deverão ser
feitas gestões visando proteger, desde que compatível com a lei e
com a pena imposta, os direitos relativos aos interesses civis, os
benefícios dos direitos da previdência social e outros benefícios
sociais dos presos.99
Todavia, a concretização desses direitos encontra resistência, mais uma
vez.
Apresenta-se, assim, novamente, a dificuldade de se concretizar
garantias fundamentais aos egressos do sistema prisional.
Inequívoca, deste modo, a necessidade de implementação de políticas
públicas para a facilitação do alcance da dignidade de parte dessas pessoas que,
no mais das vezes, carregam consigo uma longa história de exclusão.
98
Recomendação 60 das Regras Mínimas para o Tratamento de Prisioneiros. Adotadas pelo 1º
Congresso das Nações Unidas sobre Prevenção do Crime e Tratamento de Delinqüentes, realizado
em Genebra, em 1955, e aprovadas pelo Conselho Econômico e Social da ONU através da sua
resolução 663 C I (XXIV), de 31 de julho de 1957, aditada pela resolução 2076 (LXII) de 13 de maio
de 1977. (Anexo A). Disponível em: <http://www.dhnet.org.br/direitos/sip/onu/fpena/lex52.htm>.
Acesso em 3.5.2008.
99
Recomendação 60 das Regras Mínimas para o Tratamento de Prisioneiros. Adotadas pelo 1º
Congresso das Nações Unidas sobre Prevenção do Crime e Tratamento de Delinqüentes, realizado
em Genebra, em 1955, e aprovadas pelo Conselho Econômico e Social da ONU através da sua
resolução 663 C I (XXIV), de 31 de julho de 1957, aditada pela resolução 2076 (LXII) de 13 de maio
de 1977. (Anexo A). Disponível em: <http://www.dhnet.org.br/direitos/sip/onu/fpena/lex52.htm>.
Acesso em 3.5.2008.
48
Com efeito, o alcance da dignidade humana “passa, necessariamente,
pelo aprimoramento sociocultural do condenado, enquanto naquela condição. Ali,
deverá receber tratamento para as eventuais doenças psicossomáticas, treinamento
profissional e condicionamentos elementares à vida em uma sociedade aberta.
Quando libertado, deverá ter à sua disposição ampla e eficaz infra-estrutura para
que, materialmente, se realize tudo aquilo que, formalmente, lhe foi transmitido.”100
Exatamente a reflexão sobre esse caminho constitui o objeto de
discussão do próximo capítulo.
100
FALCONI, Romeu. Sistema Presidial: Reinserção Social? São Paulo: Ícone, 1998, p. 163.
49
5
CONCRETIZAÇÃO DE DIREITOS HUMANOS: CAMINHO NECESSÁRIO À
REDUÇÃO DE CRIMINALIDADE E REINCIDÊNCIA
5.1 Generalidades
Pontua Norberto Bobbio, com extremo acerto, a importância e as
dificuldades
apresentadas
à
materialização
ou
concretização
dos
direitos
proclamados pelos povos:
O problema fundamental em relação aos direitos do homem, hoje,
não é tanto o de justificá-los, mas o de protegê-los. Trata-se de um
problema não filosófico, mas político. [...] Com efeito, o problema que
temos diante de nós não é filosófico, mas jurídico e, nem sentido
mais amplo, político. Não se trata de saber quais e quantos são
esses direitos, qual é sua natureza e seu fundamento, se são direitos
naturais ou históricos, absolutos ou relativos, mas sim qual é o modo
mais seguro para garanti-los, para impedir que, apesar das solenes
declarações, eles sejam continuamente violados. [...] O problema
real que temos de enfrentar, contudo, é o das medidas imaginadas e
imagináveis para a efetiva proteção desses direitos.101
Nessa senda, assentada a relação direta e de causa e efeito entre a
insuficiência do Estado na concretização de direitos humanos e a incidência de
criminalidade e reincidência, resta a supressão ou contenção das causas à
minimização dos deletérios efeitos apontados.
Cuida-se de se implementar ação nominada pela criminologia “prevenção
102
primária”
, tarefa fundamental, muito embora de difícil realização, como adverte a
doutrina:
101
BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Tradução de Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro:
Campus, 1992, p. 24-25 e 37.
102
“Conforme tal classificação, os programas de prevenção primária orientam-se às mesmas causas,
à raiz do conflito criminal, para neutralizá-lo antes que o problema se manifeste. Tratam, pois, de criar
os pressupostos necessários ou de resolver as situações carenciais criminógenas, procurando uma
socialização proveitosa de acordo com os objetivos sociais. Educação e socialização, casa, trabalho,
bem-estar social e qualidade de vida são âmbitos essenciais para uma prevenção primária, 8que
opera sempre a longo e médio prazos e se dirige a todos os cidadãos. As exigências de prevenção
primária correspondem a estratégias de política cultural, econômica e social, cujo objetivo último é
dotar os cidadãos, consoante as palavras de Lüderssen, de capacidade social para superar de forma
produtiva eventuais conflitos” (GARCIA-Pablos de Molina, Antonio. Criminologia. 3ª ed. São Paulo:
Editora Revista dos Tribunais, 2000, p. 335).
50
A prevenção primária é sem dúvida nenhuma a mais eficaz, a
genuína prevenção, posto que opera etiologicamente. Mas ela atua a
médio e longo prazos e reclama prestações sociais, intervenção
comunitária e não mera dissuasão. Disso advém suas limitações
práticas. Porque a sociedade sempre procura e reclama por
soluções a curto prazo e costuma lamentavelmente identificá-las
com fórmulas drásticas e repressivas. [...] Uma ambiciosa e
progressiva política social se converte, então, no melhor instrumento
preventivo da criminalidade, já que – sob o ponto de vista etiológico
– pode intervir positivamente nas causas últimas do problema, do
qual o crime é um mero sintoma ou indicador.103
Noutras palavras, verificada a preponderância das causas sociais à
edificação dos índices e criminalidade e reincidência, somente ações de
concretização de direitos humanos, com redução de pobreza e desigualdade social,
têm o condão de traduzir resultados positivos àqueles índices.
A investigação criminológica mundial apresentada por Loïc Wacquant
comprova o asserto. 104
Afirmando possuir a Inglaterra o mais alto índice de encarceramento da
União
Européia,
refere
decorrer
esta
realidade
do
mercado
trabalho
“desregulamentado”, das desigualdades mais profundas da região e de um intricado
sistema de proteção social.105
Também afirma não constituir coincidência o fato de que “os paíes
escandinavos, que melhor resistiram às pressões internas e externas visando
desmantelar o Estado social e onde as instituições de redistribuição e de divisão dos
riscos coletivos são as mais solidamente enraizadas, serem também aqueles que
menos aprisionam e onde o tratamento punitivo da inseguraça social ainda
permanece como um último recurso, mais que um primeiro reflexo, conforme o
atesta o aumento moderado dos efetivos de presos na Suécia, sua quase
estagnação
da
Noruega
e
na Dinamarca,
e
sua
queda
espetacular na
Finlândia (que marca assim seu realinhamento ao bloco social-democrata da
área ocidental).” 106
E conclui:
Enfim, se os países latinos, Espanha, Portugal, Itália, também viram
sua população penitenciária crescer brutalmente nesses últimos
103
Ibidem, p. 335 e 360.
As prisões da miséria. Traduzido por André Telles. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2001, p.
141-142.
105
Ibidem.
106
Ibidem.
104
51
anos, foi porque só recentemente ajustaram seus programas de
ajuda social, já relativamene restritivos, e “modernizaram” seu
mercado de trabalho, isto é, flexibilizaram a demissão e ampliaram
as condições de exploração da mão-de-obra ao copiar o modelo
britânico (por conseguinte, indiretamente, americano).107
Logo após assentar a relação de causa e efeito entre proteção social e
criminalidade, o pesquisador trata de desmistificar a relação desta com os índices
de encarceramento, esclarecendo que “segundo um estudo comparativo envolvendo
Inglaterra, País de Gales, França, Alemanha, Holanda, Suécia e Nova Zelândia, as
diferenças internacionais nos índices de encarceramento e sua evolução não se
explicam pelas defasagens entre os índices de criminalidade exibidos por esses
países, mas pelas diferenças entre suas políticas sociais e penas e pelo grau de
desigualdade socioeconômica que exibem.”108
5.2 O papel dos movimentos sociais
A concretização dos direitos humanos proclamados pelos povos possui
fundamental importância na construção do Estado Democrático de Direito e a
consecução desse ideal constitui a principal tarefa dos movimentos sociais na
atualidade.
Como já se pontuou, a
efetivação
de
garantias
fundamentais
apresenta-se como caminho necessário à ruptura dos números crescentes de
criminalidade, aprisionamento de pessoas e reincidência.
Deste modo, a articulação e a organização comunitárias apresentam-se
como estratégias necessárias à sua consagração.
Justamente por este motivo, os movimentos sociais foram historicamente
utilizados pelas populações oprimidas como instrumento de pressão a que os
organismos estatais materializem os direitos que lhe são prometidos, consagrados
no ordenamento jurídico.
Nessa linha, no dizer que Gohn, movimentos sociais,
107
108
Ibidem.
Ibidem, p. 142.
52
são ações coletivas de caráter sociopolítico, construídas por atores
sociais pertencentes a diferentes classes e camadas sociais. Eles
politizam suas demandas e criam um campo político de força social
na sociedade civil. Suas ações estruturam-se a partir de repertórios
criados sobre temas e problemas em situações de conflitos, litígios e
disputas. As ações desenvolvem um processo social e políticocultural que cria uma identidade coletiva ao movimento, a partir de
interesses em comum. Esta identidade decorre da força do princípio
da solidariedade e é construída a partir da base referencial de
109
valores culturais e políticos compartilhados pelo grupo.
A ressignificação desses movimentos, responsáveis pela asseguração
das liberdades públicas e pelo reconhecimento dos direitos sociais de parte das
nações, traduz, na atualidade, a necessidade de luta pela concretização dessas
promessas.
Na análise de Solon Eduardo Annes Viola, a insuficiência da garantia dos
direitos humanos remete-os aos movimentos sociais, esclarecendo que “não
efetivados, mesmo que reconhecidos e proclamados, transformaram-se em
aspirações políticas e sociais, em anseios efetivos de emancipação das vítimas de
todo o tipo de opressão.” 110
Com esta amplitude os movimentos sociais em defesa dos Direitos
Humanos demonstram seu caráter coletivo e universal. Suas ações
assumem a defesa dos oprimidos, ora políticos – perseguidos por
diferentes tipos de governo – ora sociais, colocados em condições
precárias de vida por diferentes modelos econômicos
concentradores de riquezas e oportunidades. O acréscimo que a
defesa dos Direitos Humanos traz para os movimentos sociais, além
do seu caráter universal, é a ampliação do espaço político, para além
do mais imediato e efêmero. Trata-se de produzir uma nova ética
capaz de ampliar o significado da participação como o exercício de
novas modalidades de cidadania.111
No caso brasileiro, todavia, não se verifica a existência significativa de
organizações sociais trabalhando no sentido de perseguir a asseguração e a
ampliação de direitos humanos ao preso e ao egresso do sistema prisional.
109
GOHN, Maria da Glória. Movimentos e lutas sociais na história do Brasil. São Paulo: Loyola, 1995,
p. 44.
110
Disponível em: <http://www.dhnet.org.br/direitos/militantes/solonviola/movimento.html>. Acesso em
30.4.2008.
111
Ibidem.
53
Talvez a falta de consciência da dimensão e da importância desses
direitos constitua um dos óbices à organização popular,
112
contramão da história desenhada pela nova cidadania nacional.
postura, aliás, na
113
Imperioso, assim, que a organização popular se desenvolva, dialogando
com o poder público a que garanta materialmente os direitos humanos já
proclamados à população, aos presos e aos egressos do sistema prisional.114
5.3
112
A necessidade de ações afirmativas e de políticas públicas
“Os movimentos se constituem a partir de dois elementos motrizes: a carência e o trabalho
desenvolvido pela organização dos moradores. Entre ambos, existe um elemento articulador,
constituído por um conjunto de mecanismos internos ao movimento que permite a passagem da
necessidade à reivindicação, mediada pela afirmação de um direito. Isto configura o que Durham
caracteriza como “um amplo processo de revisão e redefinição do espaço de cidadania”. [...] Não
existe, entretanto, uma relação mecânica e espontânea entre carência e reivindicação. O elemento de
conscientização se manifesta em ações sociais diferenciadas, porém dentro de uma perspectiva do
que alguns autores têm denominado de modelo comunitário (Durham, 1984; Evers, 1984).” (JACOBI,
Pedro. Movimentos Sociais e Políticas Públicas. São Paulo: Cortez, 1993, p. 151).
113
“Um primeiro elemento constitutivo dessa concepção de cidadania se refere à noção mesma de
direitos. A nova cidadania assume uma redefinição da idéia de direitos, cujo ponto de partida é a
concepção de um direito a ter direitos. [...] Ela inclui a invenção/criação de novos direitos, que surgem
de lutas específicas e de suas práticas concretas. Nesse sentido, a própria determinação do
significado de ‘direito’ e a afirmação de algum valor ou ideal como um direito são, em si mesmas,
objetos de luta política. [...] A nova cidadania requer - é inclusive pensada como consistindo nesse
processo – a constituição de sujeitos sociais ativos (agentes políticos), definindo o que consideram
ser seus direitos e lutando para seu reconhecimento enquanto tais. Nesse sentido, é uma estratégia
dos não-cidadãos, dos excluídos, uma cidadania ‘desde baixo’. Um terceiro ponto é a idéia de que a
nova cidadania transcende uma referência central no conceito liberal: a reivindicação ao acesso,
inclusão, participação e pertencimento a um sistema político já dado. O que está em jogo, de fato, é o
direito de participar na própria definição desse sistema, para definir de que queremos ser membros,
isto é, a invenção de uma nova sociedade.” (DAGNINO, Evelina. Sociedade civil, participação e
cidadania: do que estamos falando?). Disponível em: <http://bibliotecavirtual.clacso.org.ar/ar/libros/
venezuela/ faces/mato/Dagnino.pdf> Acesso em 30.4.2008.
114
Sobre a necessidade de que aconteça o protagonismo dos excluídos nos movimentos sociais,
assentou Raúl Eugenio Zaffaroni: “Acredito que isso tem que ser feito pelos excluídos; não por nós.
Eu só observo uma dinâmica. E acho que essa é a dinâmica de voltar a criar uma dialética de incluído
e excluído. E enquanto isso não acontece, o que acontece conosco, modestos penalistas? Acho que
esta saída tem de ser facilitada e para facilitar a saída temos de conter, até onde seja possível, o
poder punitivo do Estado. Nesse momento, é muito importante – importantíssimo, básico –
compreender a natureza de nossa função. Especialmente nos nossos países. Se pudermos conter
esse poder punitivo que está avançando, vamos garantir um maior espaço para a dinâmica que levará
ao restabelecimento da dialética na sociedade.” (GLOBALIZAÇÃO, Sistema Penal e Ameaças ao
Estado Democrático de Direito. Org. Maria Lúcia Karam. Rio da Janeiro: Lumen Juris Editora, 2005, p.
29-30).
54
Como se sublinhou quando do exame dos fatores que motivam a
criminalidade no Brasil, lideram os relacionados à não-asseguração de direitos
fundamentais à humanidade, aos presos e aos egressos do sistema prisional.
Estas circunstâncias, decorrentes da deficitária distribuição de renda e,
também, da ineficiência das políticas públicas necessárias à asseguração de
dignidade ao ser humano, originam uma cidadania de segunda classe, formada
pelos sem-nome, sem-abrigo, sem-alimentação, sem-saúde, sem-dentes, semprofissão, sem-liberdade, sem-esperança.
Este outro Brasil, em verdade, é composto de dezenas de milhões de
seres humanos, aos quais há se garantir os direitos proclamados pela Carta Política,
o que se impõe, da mesma forma, a que se alcance a efetivação do princípio da
igualdade material.115
A concretização de direitos humanos também a essas comunidades
excluídas apresenta-se, assim, como imperativo ético do Estado Democrático de
Direito.
Destarte, não por motivações de caridade ou de benevolência, mas por
imposição constitucional e ética, hão de se efetivar ações afirmativas e desenvolver
políticas públicas para a concretização da promessa democrática de igualdade
material.
Com efeito,
a definição objetiva e racional da desigualdade dos desiguais,
histórica e culturalmente discriminados, é concebida como uma
forma para se promover a igualdade daqueles que foram e são
marginalizados por preconceitos encravados na cultura dominante
na sociedade. Por esta desigualação positiva promove-se a
igualação jurídica efetiva; por ela afirma-se uma fórmula jurídica para
se provocar uma efetiva igualação social, política, econômica no e
segundo o Direito, tal como assegurado formal e materialmente no
sistema constitucional democrático. A ação afirmativa é, então, uma
115
“A concepção de uma igualdade puramente formal, assente no princípio geral da igualdade perante
a lei, começou a ser questionada quando se constatou que a igualdade de direitos não era, por si só,
suficiente para tornar acessíveis a quem era socialmente desfavorecido as oportunidades de que
gozavam os indivíduos socialmente privilegiados. Importaria, pois, colocar os primeiros ao mesmo
nível de partida. Em vez de igualdade de oportunidades, importava falar em igualdade de condições.
Assim, sob esse novo aspecto, a tradicional posição de neutralidade do Estado foi sendo abandonada,
dando lugar a uma posição ativa na busca da concretização da igualdade positivada nos textos
constitucionais. Diante desta nova perspectiva, foram surgindo as denominadas Ações Afirmativas,
que nada mais são do que tentativas de concretização da igualdade substancial ou material.” (FARIA,
Anderson Peixoto de. O acesso à justiça e as ações afirmativas. In QUEIROZ, Raphael Augusto
Sofiati de (Org.). Acesso à Justiça. Rio de Janeiro: Editora Lúmen Júris, 2002, p. 15).
55
forma jurídica para se superar o isolamento ou a diminuição social a
que se acham sujeitas as minorias.116
Há, assim, à redução dos ciclos de criminalidade e reincidência, de se
implementar políticas públicas e se desenvolver ações afirmativas no sentido da
superação dos fatores que os ensejam.
A seguir, apresentar-se-ão algumas ações, justamente no caminho da
consecução desse paradigma.
5.4 Algumas experiências
A garantia de direitos humanos redunda, inequivocamente, em redução
de criminalidade e reincidência.
A assertiva pode ser constatada empiricamente dos trabalhos que serão
apresentados a seguir.
Principiar-se-á
pela
experiência
da
Cooperativa
João-de-Barro,
desenvolvida em Pedro Osório, RS, onde egressos do sistema prisional
organizaram-se e criaram uma cooperativa de trabalho, de onde retiram renda e
assim estão adquirindo a dignidade perdida ou nunca alcançada.
A FAESP – Fundação de Amparo ao Egresso do Sistema Penitenciário,
sediada em Porto Alegre, RS, presta auxílio àqueles que deixam o cárcere,
promovendo assistência social e buscando a obtenção de postos trabalho.
As APACs – Associações de Proteção e Assistência aos Condenados –
ofertam aos aprisionados, desde o princípio do cumprimento da pena, assistência
espiritual, à saúde, à família, profissionalizando esses indivíduos e facilitando sua
integração comunitária.
A experiência de Bogotá, capital da República da Colômbia, que
encerrará a apresentação das iniciativas selecionadas, consistiu na adoção de uma
série de políticas públicas de asseguração de direitos fundamentais a grupos
vulneráveis, aliada ao fortalecimento das instituições de polícia comunitária e de
116
Ibidem, p. 15-16.
56
justiça, resultando na diminuição significativa dos índices de criminalidade naquela
cidade.
5.4.1 A Cooperativa João-de-Barro
A mobilização da comunidade na busca de alternativas de trabalho aos
egressos do sistema prisional, originou, em Pedro Osório, RS, uma cooperativa de
trabalho e de produtos.
Do teor da publicação do trabalho, verifica-se que “o maior desafio foi o
de se iniciar o processo produtivo sem recursos financeiros. Foi através do trabalho,
que os egressos arregimentaram renda suficiente para a produção de tijolos através
do arrendamento de uma olaria. Formou-se, em paralelo, equipe técnica, constituída
por voluntários, para assessorar no trato de toda a atividade burocrática da empresa
que recém nascera. A partir de então, com uma carência para que principiasse o
pagamento do arrendamento, os egressos começaram a comercializar os tijolos
produzidos.” 117
Percebe-se, igualmente, a simplicidade da dinâmica da atividade:
Após retirado o valor necessário ao pagamento dos insumos
necessários ao processo produtivo, os cooperados separam, ainda,
20% do resultado financeiro da atividade para formar o capital da
Cooperativa – para o pagamento de tributos, investimentos, etc. – e
o restante do valor é dividido igualmente entre os envolvidos no
trabalho. Com o evoluir dos trabalhos, o contrato de arrendamento
transmudou-se em compromisso de compra e hoje a olaria já foi
adquirida pela Cooperativa João-de-Barro. Atualmente, além da
produção de tijolos, há egressos envolvidos na limpeza de vias
públicas, serviço contratado pelas Prefeituras dos Municípios que
integram a Comarca; há, também, contratos de prestação de
serviços com outros órgãos públicos. A Cootrajoba ainda adquiriu
uma fábrica de telas em arame e formou-se um grupo com cônjuges
e familiares daqueles que hoje estão segregados, pessoas que
trabalham na produção de tanques, pias e sanitários em cimento,
além de embalagens para presentes.118
117
ASSOCIAÇÃO DOS JUÍZES DO RIO GRANDE DO SUL. Revista Multijuris: Primeiro Grau em
Ação. Porto Alegre, v.1, 2006, p. 8-12. Disponível em: <http://www.ajuris.org.br/revista/multijuris1.
pdf>. Acesso em 2.5.2008.
118
Ibidem.
57
Percebe-se, assim, que os egressos do sistema prisional daquele
município estão buscando, por meios próprios, o alcance da dignidade por
intermédio da concretização do direito humano ao trabalho.
São os próprios envolvidos que estão construindo seu meio de
subsistência, em uma espécie de organização popular que se forma à superação do
preconceito e da dicriminação existentes em relação aos egressos do sistema
prisional.
119
Cuida-se, desta forma, de uma proposta não assistencialista, que
estimula a inclusão social e a reflexão crítica dos envolvidos sobre sua condição.120
Este protagonismo dos egressos se mostra bastante evidente nos relatos
apresentados pelos próprios cooperados, o que se pode extrair da pesquisa
realizada pelo Instituto de Acesso à Justiça do Rio Grande do Sul, coordenada por
Maria Palma Wolff:
119
A esse respeito, vale a transcrição de uma passagem do rap “Conselho de Irmão”, composto por
um grupo de cooperados: “É com orgulho que eu te falo que eu estou numa boa. Graças a Deus parei
com as drogas, sou outra pessoa. E a minha vida também tá começando a mudar e esse ano ainda
eu volto a estudar. Porque meu sonho agora é conseguir me formar, porque da vida do crime nada se
pode esperá. Então as armas, as drogas, eu vou aposentá. Já tô cansado di vê minha coroa chorá
porque tá com a cabeça cheia de preocupação, com medo que alguém me mate ou eu volte pra
prisão. E essa vida é uma droga, tu sabe meu irmão. Roubá rádio de carro, invadi mansão, fazê 157
ameaçando inocente. Intão é certo que um dia a gente roda, sangue bom. E se não é pro inferno a
gente vai é pra prisão. Eu já tive o privilégio meu irmão e lá dentro do xis a vida não é fácil, não.
Refrão: Periferia é periferia. Cooperativa é só paz e alegria. Periferia é periferia. João-de-Barro é só
harmonia.” (Ibidem).
120
Nesse particular, interessante registrar-se o relato de pesquisadores que estudaram o trabalho: “A
Cooperativa também remete à possibilidade de construir ou produzir algo socialmente útil e aceitável,
de sobreviver através do trabalho e de ser reconhecido por isto. Ser visto como alguém capaz,
inclusive de contribuir com a coletividade, e não mais ser considerado um problema ou uma ameaça
para a sociedade, não ser reconhecido como alguém que só traz problemas e por isto necessita ser
excluído, é um acontecimento extremamente significativo para estas pessoas. Descobrir-se como
uma pessoa produtiva e ver que a comunidade também o reconhece desta forma, é um mérito
atribuído à própria cooperativa: Porque na verdade cada dia que passa aparece dons, dons diferentes
né, e que se muita gente antes tivesse apostado nesses dons... (...) E hoje nós estamos conseguindo
mostrar os dons que a gente tem, as idéias que a gente tem, dentro da Cooperativa. A gente quer
mostrar, fazer coisas que a sociedade vai vendo. Hoje mesmo os guri tem, eles trabalham na capina
da prefeitura de Pedro Osório e Cerrito. A prefeitura de Cerrito demorava três, quatro mês para fazer
uma limpeza numa rua pública, e enquanto os guris pegavam, em sete oito dias, faziam uma limpa
que as pessoas saiam pra rua, olhavam e se apavoravam. (Grupo focal – 31.08.05). [...] Um aspecto
que chama a atenção neste processo, é que a Cooperativa constitui-se, para seus membros, como
uma forma de trabalho e sobrevivência, mas também como uma forma de pertencer a um grupo
socialmente aceito e reconhecido. Exemplo disto é o fato da Cooperativa ter sido convidada
oficialmente, neste ano, para participar das solenidades da semana da pátria no município. Mesmo
que ainda esteja presente o preconceito, relatado principalmente através de abordagens policiais, de
forma geral a comunidade já reconhece estas pessoas como cidadãos, e até como consumidores no
comércio local e não mais como ameaça.” (INSTITUTO DE ACESSO À JUSTIÇA. Relatório de
Pesquisa: Políticas de Atenção ao Egresso no Rio Grande do Sul. Coordenação: Maria Palma Wolff.
Porto Alegre: 2005, p. 66-67. Disponível em: <www.mj.gov.br/senasp>. Acesso em 2.5.2008.).
58
E hoje a verba se chama suor, suor de todos, que eles produziram
tijolo e eles pagaram a Olaria e hoje a Olaria é da Cooperativa: é dos
próprios ex-apenados. Não tem nem uma verba de nenhum lado, a
verba acaba sendo chamada de suor. [...] Então nós vamos
enfrentando as barreiras. Aí vamos tocando, porque quem sabe lá
no futuro ela vai tá melhor. Mas se o cara tivesse uma ajuda seria
bem melhor, entende? Mas o jeito que ela já ta, pra nós, pelo menos,
já ta bom, a gente sente bem nela. Se não se sentisse bem a gente
não ia tá há dois anos, e nós queremos três, quatro, cinco, quanto
mais tiver melhor ainda. É uma esperança que eu tenho é assim ó,
que fosse menos cadeia e mais serviço. O tempo e o dinheiro que
eles gastam para fazer cadeia, devia fazer olaria, gastar em olaria,
ninguém ia mais rouba, ia trabalhá. Podia ser outros projetos
também. Mas eles só gastam dinheiro em cadeia. (Grupo focal –
31.08.05).121
Adiante, prossegue a narrativa dos egressos:
[...] A cooperativa é toda nossa, ela é toda dos ex-apenados. Dentro
nenhum é empregado de nenhum, todos são sócios, todos são
donos. Ela funciona assim através de uma produção da Olaria
mesmo, ela produz 70, 80 mil tijolos e acaba vendendo. Aí se tira
20% pra pagar e manter o caixa, pra pagar carrinho que estragou,
paga uma máquina que estragou e todo o resto. Tem uma parte que
a gente paga a luz, paga as areias as caçambas e o resto a gente
separa e divide igualmente pra todos que estão na Olaria de igual
pra igual. E tem fora isto aí, as capinas, com seis que trabalham para
a Prefeitura. [...] quando tem um troço feio mesmo, a gente tem que
resolver, a gente resolve entre todo o mundo, aí faz uma assembléia
geral, uma extraordinária e discute. (...) Se o grupo não aprovar algo
ninguém aprova; quem aprova é os próprios sócios da cooperativa,
os ex-apenados. (Grupo focal – 31.08.05).122
Desta forma, com garantia de trabalho e com um grupo social estruturado
na acolhida pós-cárcere, o índice de reincidência para os participantes da
cooperativa apresentou redução importante:
Há significativos exemplos de egressos que, através da possibilidade
de inclusão, estão desenvolvendo trabalho lícito e readquirindo
dignidade. Aumentam, de outro lado, as adesões ao Projeto. Para
aqueles que aderiram à proposta da João-de-Barro, os índices de
retorno à privação de liberdade não alcançam a casa dos 10%.
Muitos egressos, após trabalharem algum tempo na Cootrajoba,
readquirem a auto-estima e a confiança da comunidade, passando
ao trabalho junto à iniciativa privada.123
121
INSTITUTO DE ACESSO À JUSTIÇA. Relatório de Pesquisa: Políticas de Atenção ao Egresso no
Rio Grande do Sul. Coordenação: Maria Palma Wolff. Porto Alegre: 2005, p. 66-70. Disponível em:
<www.mj.gov.br/senasp>. Acesso em 2.5.2008.
122
Ibidem.
123
ASSOCIAÇÃO DOS JUÍZES DO RIO GRANDE DO SUL. Revista Multijuris: Primeiro Grau em
Ação. Porto Alegre, v.1, 2006, p. 8-12. Disponível em: <http://www.ajuris.org.br/revista/multijuris1.
pdf>. Acesso em 2.5.2008.
59
Sublinhe-se, por fim, que a possibilidade de replicação da prática em
pequenos grupos de indivíduos e com custos reduzidos, também se apresenta como
aspecto significativo.
124
5.4.2 A Fundação de Amparo ao Egresso do Sistema Penitenciário
A entidade filantrópica, sediada em Porto Alegre, RS, tem por objetivos
“promover a integração dos egressos do sistema penitenciário do RS ao mercado de
trabalho, priorizando os carentes; realizar encontros e debates visando a discussão
e a busca de alternativas comunitárias aos problemas dos egressos do sistema
penitenciário do RS; desenvolver estudos científicos destinados a examinar as
124
A confirmar a afirmação, a notícia que se transcreve: “26/03/2007 - 15h46. Cooperativa João-deBarro, de Pedro Osório, serve de modelo à Cooperativa Esperança, criada no município de São Sepé.
A experiência do projeto Cooperativa João-de-Barro, coordenado pelo Foro de Pedro Osório, rendeu
mais um fruto à sociedade, agora no Município de São Sepé, RS. Trata-se da Cooperativa Esperança,
formada por apenados, familiares e egressos do sistema prisional daquele Município. A solenidade e
a assembléia de constituição da Cooperativa ocorreram concomitantemente, na última sexta-feira
(23/3), a partir das 14 horas, no Centro Cultural do Município. Representando Pedro Osório,
prestigiaram a solenidade o presidente da Cooperativa João-de-Barro, André Luiz de Souza Mendes,
o sócio-voluntário Adão Gerald e o Juiz de Direito Diretor do Foro e coordenador do projeto, Marcelo
Malizia Cabral. Também participaram da solenidade o Juiz-Corregedor Luciano André Losekann,
coordenador do Projeto Trabalho para a Vida, a Magistrada coordenadora da ação em São Sepé,
Carmen Lúcia Santos da Fontoura, assim representantes dos Poderes Executivo e Legislativo, do
Ministério Público, autoridades e membros da comunidade. A Magistrada anfitriã, ao fazer uso da
palavra, registrou que a inspiração daquele trabalho surgiu da experiência da Cooperativa João-deBarro, agradecendo o apoio emprestado por seus membros e pelo coordenador do projeto para a
constituição da Esperança. Após ser presenteado pelo presidente da João-de-Barro com uma
camiseta e com o escrito ‘Lição de um Cooperativado’, de sua autoria, o recém empossado dirigente
da Cooperativa Esperança, Osório Portela, agradeceu a homenagem e emocionado, falou sobre o
significado daquele momento para os membros da nova Cooperativa: “A palavra Esperança, na Bíblia,
é citada em vários versículos, mas o que mais me chamava a atenção estava no livro de Oséias, no
capítulo 2, versículo 15, que diz assim: ‘Eu transformarei o vale da desgraça em uma porta de
esperança’”, resumiu ele, comparando o sistema prisional ao primeiro e a cooperativa à última.
Cooperativa João-de-Barro – Criada no ano de 2003, em Pedro Osório, RS, integra o Projeto Trabalho
para a Vida, da Corregedoria-Geral da Justiça. Garante trabalho e renda para egressos do sistema
prisional, adolescentes egressos do cumprimento de medidas com privação de liberdade, e familiares
de presos, que trabalham na produção de tijolos, telas em arame, tanques, pias, sanitários e na
prestação de serviços de pintura, limpeza e jardinagem. Verificam-se reduzidos índices de
reincidência quanto àqueles que a ela aderem. A ação ganhou o Prêmio Direitos Humanos 2005, na
categoria Defesa dos Direitos Humanos, uma promoção da Assembléia Legislativa do Rio Grande do
Sul, em parceria com a Fundação Maurício Sirotsky Sobrinho e com a Unesco. Cooperativa
Esperança – Fundada em 23.3.2007, é composta por cerca de 20 presos e egressos do sistema
prisional do Município de São Sepé. Opera com a produção de telas em arame, prestação de serviços
e exploração de unidade rural. Tem a coordenação do Poder Judiciário daquela Comarca e conta com
60
causas da violência e efeitos da criminalidade, bem como definir o perfil do egresso
e a classificação de suas necessidades; apresentar sugestões para a criação de
novas e modernas técnicas de tratamento carcerário e de readaptação dos egressos
à sua comunidade; sensibilizar a sociedade para aceitá-los e ajudá-los em sua
reintegração; manter a "Casa do Egresso" para o cumprimento de suas finalidades,
objetivos e metas da FAESP; acolher, orientar e promover a integração ao mercado
de trabalho
carentes.”
dos egressos do
sistema penitenciário do RS, priorizando os
125
Promove socialmente os egressos do sistema prisional, propiciando-lhe
profissionalização e inserção no mercado de trabalho.
De acordo com pesquisa realizada pelo Instituto de Acesso à Justiça,
A FAESP foi criada em 1997, buscando dar assistência ao egresso
do sistema penitenciário, principalmente em três áreas: educação,
trabalho e saúde. Também auxilia em questões mais emergenciais
como alimentação, roupas, documentação e passagens
intermunicipais. Quem procura a FAESP, inicialmente passa por uma
recepção e em seguida pelo plantão de atendimento, onde é aberto
um prontuário que servirá para o acompanhamento dos casos. Caso
haja necessidade, também é prestado atendimento aos familiares.
Os egressos recebem vale-transporte quando comparecem aos
atendimentos. [...] As principais parcerias da FAESP são a VEC,
VEPMA, técnicos de algumas das casas prisionais. É através dos
parceiros que se dá a informação/encaminhamento a FAESP. A
FAESP mantém uma cooperativa de trabalho, a LABORSUL,
cooperativa social, também fornece trabalho aos egressos, através
de um convênio com a Metalúrgica Jackwall, na montagem de
pequenas peças para serem
utilizadas em fogareiro. [...] Atualmente a FAESP passa por um
processo de aprofundamento da sua intervenção, entendendo que a
inserção no mundo do trabalho é apenas parte do processo de
inclusão social. A ampliação desta intervenção na perspectiva de
refletir sobre outros dispositivos que estão presentes no processo de
inclusão.126
o apoio do Ministério Público, Ocergs e poderes constituídos locais.” Disponível em:
<http://www.pedroosorio.net/index.php?area=noticias&noticia_id=185>. Acesso em 2.5.2008.
125
Disponível em: < http://www.via-rs.net/pessoais/faesp/#quemsomos>. Acesso em 2.5.2008.
126
INSTITUTO DE ACESSO À JUSTIÇA. Relatório de Pesquisa: Políticas de Atenção ao Egresso no
Rio Grande do Sul. Coordenação: Maria Palma Wolff. Porto Alegre: 2005, p. 56-58. Disponível em:
<www.mj.gov.br/senasp>. Acesso em 2.5.2008.
61
5.4.3 As Associações de Proteção e Assistência aos Condenados
As APACs – Associações de Proteção e Assistência aos Condenados –
consistem em organizações da sociedade civil que concretizam direitos humanos a
pessoas
que
cumprem
penas
privativas
de
liberdade,
garantindo-lhes
acompanhamento social durante todas as fases da execução – regimes fechado,
semi-aberto e aberto – e até mesmo quando do retorno à sociedade livre.
Em outras palavras, essas associações, que já somam dezenas pelo
Brasil e outros países do mundo, garantem aos indivíduos que se encontram
aprisionados os direitos que lhe são proclamados pela legislação que regula o
cumprimento da pena.
Suprem a omissão do Estado na concretização de direitos fundamentais
ao preso e ao egresso.
Sua metodologia de trabalho encontra-se assentada nos seguintes
fundamentos: a) participação da comunidade, b) auxílio do recuperando para com
os demais recuperandos, c) investimento no trabalho e na religião, d) oferta de
atendimento jurídico e à saúde, e) valorização do ser humano e da família e f)
priorização do trabalho voluntário.127
Os resultados do trabalho são surpreendentes128 e asseguram constituir a
concretização de direitos humanos o meio mais eficaz de redução de criminalidade
e reincidência, como relata Romeu Falconi:
Diz-nos a APAC que atualmente mais de um milhar de ex-reclusos
trabalham nas empresas da cidade [...] Como conseqüência natural
127
Disponível em:
<http://www.fbac.com.br/fbac/index.php?option=com_content&task=category&
sectionid=6&id=20&Itemid=50>. Acesso em 2.5.2008.
128
“Apresentando índices de reincidência inferior a 8,0%, o método socializador empregado pela
APAC, tem alcançado grande repercussão no Brasil e no exterior. Em 1986, a APAC filiou-se à PFIPrison Fellowship International, Órgão Consultivo da ONU para assuntos penitenciários. Desde então,
o Método passou a ser divulgado para mais de 100 países através de congressos e seminários
internacionais, e as APAC,s do Brasil começaram a receber representantes e delegações de todo o
mundo para conhecer e estudar o Método APAC. Entre tantas personalidades ilustres, visitaram a
APAC o fundador da PFI, Charles Colson, que ao visitar a APAC de São José dos Campos afirmou:
“Este é o único presídio do mundo do qual eu não tive vontade de sair”. No ano de 1990, a APAC de
São José dos Campos, sediou a Conferência Latino-Americana com representantes de 21 países
para conhecer e estudar o Método. Um ano depois, foi publicado nos EUA, um relatório afirmando que
o Método APAC, podia ser aplicado com sucesso em qualquer lugar do mundo. Enquanto isso, a BBC
de Londres, após um mês de trabalhos e estreita convivência com os recuperandos da APAC de São
José dos Campos, lançou uma fita de vídeo posteriormente divulgada em diversos países do mundo,
especialmente Europa e Ásia.” (Disponível em:
<http://www.fbac.com.br/fbac/index.php?
option=com_content&task=category&sectionid=6&id=20&Itemid=50>. Acesso em 2.5.2008.).
62
de um trabalho realmente admirável, dizem que a reincidência caiu
do altíssimo percentual de 75% (setenta e cinco por cento) para a
minúscula cifra de 5% (cinco por cento) [...] Com efeito, em 23 anos
de existência, o sistema implantado pela APAC, unidade de São
José dos Campos, cuidou de 1.614 (um mil seiscentos e quatorze)
recuperandos. Desse total, apenas 74 (setenta e quatro) reincidiram,
o que equivale a 4,58% (quatro vírgula cinqüenta e oito por cento).
Os números demonstram o absoluto sucesso em que se constitui a
nova instituição posta à disposição do Estado. É só ter vontade
política e adotar como órgão institucional oficial o que ali se
pratica.129
5.4.4 O Modelo de Segurança Cidadã de Bogotá
A explosão demográfica registrada em Bogotá, capital da República da
Colômbia, fez com que se transformasse em pouco tempo em uma megametrópole
de 7 milhões de habitantes, com índices muito elevados de criminalidade.130
Em face desse quadro “em 1995 iniciou-se a implantação de uma série
de programas e projetos baseados em políticas integrais de segurança e
convivência, apoiados basicamente em dos eixos: no fortalecimento das instituições
de polícia e justiça e em programas de prevenção à violência e à criminalidade, por
meio da atenção especial a grupos vulneráveis.”131
Pesquisas científicas procuraram identificar as causas das práticas
criminosas e políticas públicas para a supressão daquelas foram assumidas pelo
Estado.
Dentre essas políticas públicas de asseguração de direitos humanos,
destacam-se os seguintes programas:
Promoção da Cultura Cidadã: tem por propósito desencadear e
coordenar ações públicas e privadas que incidam diretamente sobre
a maneira como os cidadãos percebem, reconhecem e usam os
entornos sociais e urbanos [...] SUIVD: é um sistema unificado de
129
Sistema Presidial: Reinserção Social? São Paulo: Ícone, 1998, p. 184 e 186.
“Em meados da década de 1990, a cidade registrava os mais altos índices de mortes violentas,
com taxas de 80 homicídios e 25 mortes em acidentes de trânsito por 100.000 habitantes, e se
considerava que a sociedade colombiana se caracterizava pelo afastamento entre a lei, a moral e a
cultura, manifestada pela violência interpessoal gratuita, a corrupção, a descrença nas instituições do
Estado, etc.” (CARÁMBULA, Marcelo. Por uma Segurança Cidadã no Brasil e América Latina. In
Novas Direções na Governança da Justiça e da Segurança. Brasília-DF: Ministério da Justiça, 2006,
p. 859).
131
Ibidem, p. 859.
130
63
informações de violência e criminalidade que integra dados dos
órgãos policiais e de saúde [...] Unidades de Conciliação e Mediação:
[...] Delegacias de Família: [...] Centros de Desenvolvimento
Comunitário: projetados nas regiões mais carentes da cidade,
abrigam serviços de posto de saúde, com ênfase no atendimento pré
e pós-natal, creche, escola-modelo de ensino fundamental e médio e
centro de esporte e lazer. [...] Cadeia Distrital de Bogotá: [...] No
estabelecimento são desenvolvidos diversos programas, entre os
quais se destaca o sistema de “oficinas de pavilhão”, em que os
detentos desenvolvem atividades laborais nos próprios locais em
que passam a maior parte do dia [...] 132
Esse modelo de segurança cidadã considera “de forma holística o
fenômeno da violência e criminalidade, baseando-se em políticas integrais de
segurança que têm relação direta com a proteção e promoção da vida, das
liberdades individuais, dos bens e valores pessoais e coletivos, enfim, da cidadania,
objetivando fundamentalmente a integração das ações de segurança pública, de
caráter mais repressivo, com outras de cunho social e estruturantes, que buscam a
diminuição da incidência de fatores motivadores da violência e delinqüência, visando
sua prevenção.”133
O resultado de uma década de adoção desses princípios e do forte
investimento em políticas públicas para a materialização de direitos, foi a redução
nos índices de violência e criminalidade, no período de 1995 a 2003, em 70%, com
destaque para os homicídios, de 86 por 100 mil habitantes em 1994 para 23,6 por
100 mil habitantes em 2003.134
132
133
Ibidem, p. 860-861.
Ibidem, p. 862.
64
REFLEXÕES FINAIS
A insuficiência do Estado social tem sido apontada como a circunstância
que, de modo mais importante, determina os altos índices de criminalidade e
reincidência suportados pelo Brasil.
A conseqüência da não-concretização de direitos humanos a milhões de
brasileiros é a formação de contingentes de miseráveis e excluídos que buscam a
dignidade por meio de condutas erigidas à condição de crime.
Deste modo, o único caminho seguro à redução da criminalidade e da
reincidência é aquele que efetiva garantias fundamentais aos seres humanos.
Há se garantir acesso a direitos naturais aos indivíduos – alimentação,
saúde, educação, trabalho, lazer, cultura, dignidade.
Há se humanizar as prisões, reservando-se-as a situações de
excepcionalidade, potencializando-se a assistência social ao encarcerado e a seus
familiares.
Há se ofertar ao egresso do sistema prisional possibilidade de obter
dignidade ao sair do cárcere, cercando-o da proteção necessária à concretização de
seus direitos.
O tratamento penal da miséria, experiência instalada nos mais diversos
grupos sociais do mundo, somente tem contribuído para a geração de mais
exclusão e de mais violação a direitos humanos.
Inexistem indicativos seguros de que o aumento do índice de
encarceramento ocasione diminuição de criminalidade.
Do mesmo modo, a seletividade do sistema penal, privilegiando a
perseguição de pobres e excluídos, em nada contribui à minimização do ciclo de
criminalidade e reincidência.
Somente o fortalecimento das políticas públicas de concretização de
direitos humanos e das ações afirmativas redutoras de desigualdades terá o condão
de reverter esta realidade e para tanto se faz necessária a organização popular e a
denúncia dos movimentos sociais.
134
Ibidem, p. 859.
65
Igualmente imperativo o redirecionamento do aparelho penal do Estado
para a macrocriminalidade, realidade que lhe retira diariamente importantes cifras
que deveriam servir àqueles propósitos.
O controle da criminalidade e da reincidência encontra-se intimamente
ligado à concretização de direitos humanos e à redução de desigualdades sociais.
Há, pois, se concretizar direitos humanos à construção de uma sociedade
mais igual, onde a dignidade sobreponha-se à criminalidade e à reincidência.
66
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WACQUANT,Loïc. As prisões da miséria. Traduzido por André Telles. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2001.
69
ANEXOS
70
Anexo A – Regras Mínimas para Tratamento de Prisioneiros da Organização
das Nações Unidas
135
Observações preliminares
1. O objetivo das presentes regras não é descrever detalhadamente um sistema
penitenciário modelo, mas apenas estabelecer - inspirando-se em conceitos
geralmente admitidos em nossos tempos e nos elementos essenciais dos
sistemas contemporâneos mais adequados - os princípios e as regras de uma boa
organização penitenciária e da prática relativa ao tratamento de prisioneiros.
2. É evidente que devido a grande variedade de condições jurídicas, sociais,
econômicas e geográficas existentes no mundo, todas estas regras não podem ser
aplicadas indistintamente em todas as partes e a todo tempo. Devem, contudo,
servir para estimular o esforço constante com vistas à superação das dificuldades
práticas que se opõem a sua aplicação, na certeza de que representam, em seu
conjunto, as condições mínimas admitidas pelas Nações Unidas.
3. Por outro lado, os critérios que se aplicam às matérias referidas nestas regras
evoluem constantemente e, portanto, não tendem a excluir a possibilidade de
experiências e práticas, sempre que as mesmas se ajustem aos princípios e
propósitos que emanam do texto das regras. De acordo com esse espírito, a
administração penitenciária central sempre poderá autorizar qualquer exceção às
regras.
4.
1. A primeira parte das regras trata das matérias relativas à administração geral dos
estabelecimentos penitenciários e é aplicável a todas as categorias de prisioneiros,
135
Regras Mínimas para o Tratamento de Prisioneiros. Adotadas pelo 1º Congresso das Nações
Unidas sobre Prevenção do Crime e Tratamento de Delinqüentes, realizado em Genebra, em 1955, e
aprovadas pelo Conselho Econômico e Social da ONU através da sua resolução 663 C I (XXIV), de 31
de julho de 1957, aditada pela resolução 2076 (LXII) de 13 de maio de 1977. Disponível em:
<http://www.dhnet.org.br/direitos/sip/onu/fpena/lex52.htm>. Acesso em 3.5.2008.
71
criminais
ou
civis,
em
regime de prisão preventiva ou já condenados,
incluindo aqueles que tenham sido objeto de medida de segurança ou de medida de
reeducação ordenada por um juiz.
2. A segunda parte contém as regras que são aplicáveis somente às categorias de
prisioneiros a que se refere cada seção. Entretanto, as regras da seção A, aplicáveis
aos
presos
condenados,
serão
igualmente
aplicáveis
às
categorias de presos a que se referem as seções B, C e D, sempre que não sejam
contraditórias com as regras específicas dessas seções e sob a condição de que
sejam proveitosas para tais prisioneiros.
5.
1. Estas regras não estão destinadas a determinar a organização dos
estabelecimentos para delinquentes juvenis (estabelecimentos Borstal, instituições
de reeducação etc.). Todavia, de um modo geral, pode-se considerar que a
primeira parte destas regras mínimas também é aplicável a esses estabelecimentos.
2. A categoria de prisioneiros juvenis deve compreender, em qualquer caso, os
menores sujeitos à jurisdição de menores. Como norma geral, os delinquentes
juvenis não deveriam ser condenados a penas de prisão.
PARTE I
Regras de aplicação geral
Princípio Fundamental
6.
1. As regras que se seguem deverão ser aplicadas imparcialmente. Não haverá
discriminação alguma baseada em raça, cor, sexo, língua, religião, opinião política
ou qualquer outra opinião, origem nacional ou social, fortuna, nascimento
ou em qualquer outra situação.
72
2. Ao contrário, é necessário respeitar as crenças religiosas e os preceitos morais
do grupo a que pertença o preso.
Registro
7.
1. Em todos os lugares em que haja pessoas detidas, deverá existir um livro oficial
de registro, atualizado, contendopáginas numeradas, no qual serão anotados,
relativamente a cada preso:
a. A informação referente a sua identidade;
b. As razões da sua detenção e a autoridade competente que a ordenou;
c. O dia e a hora da sua entrada e da sua saída.
2. Nenhuma pessoa deverá ser admitida em um estabelecimento prisional sem uma
ordem de detenção válida, cujos dados serão previamente lançados no livro de
registro.
Separação de categorias
8. As diferentes categorias de presos deverão ser mantidas em estabelecimentos
prisionais separados ou em diferentes zonas de um mesmo estabelecimento
prisional, levando-se em consideração seu sexo e idade, seus antecedentes, as
razões da detenção e o tratamento que lhes deve ser aplicado. Assim é que:
a. Quando for possível, homens e mulheres deverão ficar detidos em
estabelecimentos separados; em estabelecimentos que recebam homens e
mulheres,
o
conjunto
dos
locais
destinados
às
mulheres
deverá
estar
completamente separado;
b. As pessoas presas preventivamente deverão ser mantidas separadas dos presos
condenados;
c.Pessoas presas por dívidas ou por outras questões de natureza civil deverão ser
mantidas
separadas
das
pessoas
presas
por
infração
penal;
73
d. Os presos jovens deverão ser mantidos separados dos presos adultos.
Locais destinados aos presos
9.
1. As celas ou quartos destinados ao isolamento noturno não deverão ser ocupadas
por mais de um preso. Se, por razões especiais, tais como excesso temporário da
população carcerária, for indispensável que a administração penitenciária central
faça exceções a esta regra, deverá evitar-se que dois reclusos sejam alojados numa
mesma cela ou quarto individual.
2. Quando se recorra à utilização de dormitórios, estes deverão ser ocupados por
presos cuidadosamente escolhidos e reconhecidos como sendo capazes de serem
alojados
nessas
condições.
Durante
a
noite,
deverão
estar
sujeitos
a
uma vigilância regular, adaptada ao tipo de estabelecimento prisional em que se
encontram detidos.
10. Todas os locais destinados aos presos, especialmente aqueles que se destinam
ao alojamento dos presos durante a noite, deverão satisfazer as exigências da
higiêne, levando-se em conta o clima, especialmente no que concerne ao volume
de ar, espaço mínimo, iluminação, aquecimento e ventilação.
11. Em todos os locais onde os presos devam viver ou trabalhar:
a. As janelas deverão ser suficientemente grandes para que os presos possam ler e
trabalhar com luz natural, e deverão estar dispostas de modo a permitir a entrada de
ar fresco, haja ou não ventilação artificial.
b. A luz artificial deverá ser suficiente para os presos poderem ler ou trabalhar sem
prejudicar a visão.
12. As instalações sanitárias deverão ser adequadas para que os presos possam
satisfazer suas necessidades naturais no momento oportuno, de um modo limpo e
74
decente.
13. As instalações de banho deverão ser adequadas para que cada preso possa
tomar banho a uma temperatura adaptada ao clima, tão freqüentemente quanto
necessário à higiene geral, de acordo com a estação do ano e a região geográfica,
mas pelo menos uma vez por semana em um clima temperado.
14. Todos os locais de um estabelecimento penitenciário freqüentados regularmente
pelos presos deverão ser mantidos e conservados escrupulosamente limpos.
Higiene pessoal
15. Será exigido que todos os presos mantenham-se limpos; para este fim, ser-lhesão fornecidos água e os artigos de higiene necessários à sua saúde e limpeza.
16. Serão postos à disposição dos presos meios para cuidarem do cabelo e da
barba, a fim de que possam se apresentar corretamente e conservem o respeito por
si mesmos; os homens deverão poder barbear-se com regularidade.
Roupas de vestir, camas e roupas de cama
17.
1. Todo preso a quem não seja permitido vestir suas próprias roupas, deverá
receber as apropriadas ao clima e em quantidade suficiente para manter-se em boa
saúde. Ditas roupas não poderão ser, de forma alguma, degradantes ou
humilhantes.
2. Todas as roupas deverão estar limpas e mantidas em bom estado. A roupa de
baixo será trocada e lavada com a frequência necessária à manutenção da higiêne.
3. Em circunstâncias excepcionais, quando o preso necessitar afastar-se do
75
estabelecimento penitenciário para fins autorizados, ele poderá usar suas próprias
roupas, que não chamem atenção sobre si.
18. Quando um preso for autorizado a vestir suas próprias roupas, deverão ser
tomadas medidas para se assegurar que, quando do seu ingresso no
estabelecimento penitenciário, as mesmas estão limpas e são utilizáveis.
19. Cada preso disporá, de acordo com os costumes locais ou nacionais, de uma
cama individual e de roupa de cama suficiente e própria, mantida em bom estado de
conservação e trocada com uma freqüência capaz de garantir sua limpeza.
Alimentação
20.
1. A administração fornecerá a cada preso, em horas determinadas, uma
alimentação de boa qualidade, bem preparada e servida, cujo valor nutritivo seja
suficiente
para
a
manutenção
da
sua
saúde
e
das
suas
forças.
2. Todo preso deverá ter a possibilidade de dispor de água potável quando dela
necessitar.
Exercícios físicos
21.
1. O preso que não trabalhar ao ar livre deverá ter, se o tempo permitir, pelo menos
uma
hora
por
dia
para
fazer
exercícios
apropriados
ao
ar
livre.
2. Os presos jovens e outros cuja idade e condição física o permitam, receberão
durante o período reservado ao exercício uma educação física e recreativa. Para
este
fim,
serão
colocados
à
disposição
instalações e os equipamentos necessários.
dos
presos
o
espaço,
as
76
Serviços médicos
22.
1. Cada estabelecimento penitenciário terá à sua disposição os serviços de pelo
menos um médico qualificado, que deverá ter certos conhecimentos de psiquiatria.
Os serviços médicos deverão ser organizados em estreita ligação com a
administração geral de saúde da comunidade ou nação. Deverão incluir um serviço
de psiquiatria para o diagnóstico, e em casos específicos, para o tratamento de
estados de anomalia.
2. Os presos doentes que necessitem tratamento especializado deverão ser
transferidos para estabelecimentos especializados ou para hospitais civis. Quando
existam facilidades hospitalares em um estabelecimento prisional, o respectivo
equipamento, mobiliário e produtos farmacêuticos serão adequados para o
tratamento médico dos presos doentes, e deverá haver pessoal devidamente
qualificado.
3. Cada preso poderá servir-se dos trabalhos de um dentista qualificado.
23.
1. Nos estabelecimentos prisionais para mulheres devem existir instalações
especiais para o tratamento de presas grávidas, das que tenham acabado de dar à
luz e das convalescentes. Desde que seja possível, deverão ser tomadas
medidas para que o parto ocorra em um hospital civil. Se a criança nascer num
estabelecimento prisional, tal fato não deverá constar no seu registro de nascimento.
2. Quando for permitido às mães presas conservar as respectivas crianças, deverão
ser tomadas medidas para organizar uma creche, dotada de pessoal qualificado,
onde as crianças possam permanecer quando não estejam ao cuidado das mães.
24. O médico deverá ver e examinar cada preso o mais depressa possível após a
sua admissão no estabelecimento prisional e depois, quando necessário, com o
objetivo de detectar doenças físicas ou mentais e de tomar todas as medidas
77
necessárias para o respectivo tratamento; de separar presos suspeitos de doenças
infecciosas ou contagiosas; de anotar deformidades físicas ou mentais que possam
constituir obstáculos à reabilitação dos presos, e de determinar a capacidade
de trabalho de cada preso.
25.
1. O médico deverá tratar da saúde física e mental dos presos e deverá diariamente
observar todos os presos doentes e os que se queixam de dores ou mal-estar, e
qualquer preso para o qual a sua atenção for chamada.
2. O médico deverá informar o diretor quando considerar que a saúde física ou
mental de um preso tenha sido ou venha a ser seriamente afetada pelo
prolongamento da situação de detenção ou por qualquer condição específica dessa
situação de detenção.
26.
1. O médico deverá regularmente inspecionar e aconselhar o diretor sobre:
a.
A
b.
A
c.
As
quantidade,
higiene
e
condições
qualidade,
limpeza
preparação
do
sanitárias,
e
estabelecimento
aquecimento,
serviço
da
prisional
iluminação
alimentação;
e
e
dos
presos;
ventilação
estabelecimento
do
prisional;
d. A adequação e limpeza da roupa de vestir e de cama dos presos;
e. A observância das regras concernentes à educação física e aos desportos,
quando
não
houver
pessoal
técnico
encarregado
destas
atividades.
2. O diretor levará em consideração os relatórios e os pareceres que o médico lhe
apresentar, de acordo com as regras 25(2) e 26, e no caso de concordar com as
recomendações
apresentadas
tomará
imediatamente
medidas
no
sentido
de pôr em prática essas recomendações; se as mesmas não estiverem no âmbito
da sua competência, ou caso não concorde com elas, deverá imediatamente enviar
o seu próprio relatório e o parecer do médico a uma autoridade superior.
Disciplina e sanções
78
27.
A disciplina e a ordem serão mantidas com firmeza, mas sem impor mais restrições
do que as necessárias à manutenção da segurança e da boa organização da vida
comunitária.
28.
1. Nenhum preso pode ser utilizado em serviços que lhe sejam atribuídos em
consequência de medidas disciplinares.
2. Esta regra, contudo, não impedirá o conveniente funcionamento de sistemas
baseados na autogestão, nos quais atividades ou responsabilidades sociais,
educacionais ou esportivas específicas podem ser confiadas, sob adequada
supervisão,
a
presos
reunidos
em
grupos
com
objetivos
terapêuticos.
29. A lei ou regulamentação emanada da autoridade administrativa competente
determinará, para cada caso:
a. O comportamento que constitua falta disciplinar;
b. O s tipos e a duração da punição a aplicar;
c. A autoridade competente para impor tal punição.
30.
1. Nenhum preso será punido senão de acordo com a lei ou regulamento, e nunca
duas vezes pelo mesmo crime.
2. Nenhum preso será punido a não ser que tenha sido informado do crime de que é
acusado e lhe seja dada uma oportunidade adequada para apresentar defesa. A
autoridade competente examinará o caso exaustivamente.
3. Quando necessário e possível, o preso será autorizado a defender-se por meio de
um intérprete.
31. Serão absolutamente proibidos como punições por faltas disciplinares os
castigos corporais, a detenção em cela escura e todas as penas cruéis, desumanas
ou degradantes.
79
32.
a. As penas de isolamento e de redução de alimentação não deverão nunca ser
aplicadas, a menos que o médico tenha examinado o preso e certificado por escrito
que ele está apto para as suportar.
b.O mesmo se aplicará a qualquer outra punição que possa ser prejudicial à saúde
física ou mental de um preso. Em nenhum caso deverá tal punição contrariar ou
divergir do princípio estabelecido na regra 31.
c. O médico visitará diariamente os presos sujeitos a tais punições e aconselhará o
diretor caso considere necessário terminar ou alterar a punição por razões de saúde
física ou mental.
Instrumentos de coação
33. A sujeição a instrumentos tais como algemas, correntes, ferros e coletes de
força nunca deve ser aplicada como punição. Correntes e ferros também não serão
usados como instrumentos de coação. Quaisquer outros instrumentos de
coação não serão usados, exceto nas seguintes circunstâncias:
a. Como precaução contra fuga durante uma transferência, desde que sejam
retirados quando o preso comparecer perante uma autoridade judicial ou
administrativa;
b. Por razões médicas e sob a supervisão do médico;
c. Por ordem do diretor, se outros métodos de controle falharem, a fim de evitar que
o preso se moleste a si mesmo, aoutros ou cause estragos materiais; nestas
circunstâncias,
o diretor consultará imediatamente o médico e informará
à autoridade administrativa superior.
34. As normas e o modo de utilização dos instrumentos de coação serão decididos
pela administração prisional central. Tais instrumentos não devem ser impostos
senão pelo tempo estritamente necessário.
Informação e direito de queixa dos presos
80
35.
1. Quando for admitido, cada preso receberá informação escrita sobre o regime
prisional
para
a
sua
categoria,
sobre
os
regulamentos
disciplinares
do
estabelecimento e os métodos autorizados para obter informações e para formular
queixas; e qualquer outra informação necessária para conhecer os seus direitos e
obrigações, e para se adaptar à vida do estabelecimento.
2. Se o preso for analfabeto, tais informações ser-lhe-ão comunicadas oralmente.
36.
1. Todo preso terá, em cada dia de trabalho, a oportunidade de apresentar pedidos
ou queixas ao diretor do estabelecimento ou ao funcionário autorizado a representálo.
2. As petições ou queixas poderão ser apresentadas ao inspetor de prisões durante
sua inspeção. O preso poderá falar com o inspetor ou com qualquer outro
funcionário encarregado da inspeção sem que o diretor ou qualquer outro
membro do estabelecimento se faça presente.
3. Todo preso deve ter autorização para encaminhar, pelas vias prescritas, sem
censura quanto às questões de mérito mas na devida forma, uma petição ou queixa
à administração penitenciária central, à autoridade judicial ou a qualquer
outra autoridade competente.
4. A menos que uma solicitação ou queixa seja evidentemente temerária ou
desprovida de fundamento, a mesma deverá ser examinada sem demora, dando-se
uma resposta ao preso no seu devido tempo.
Contatos com o mundo exterior
37. Os presos serão autorizados, sob a necessária supervisão, a comunicar-se
periodicamente com as suas famílias e com amigos de boa reputação, quer por
correspondência quer através de visitas.
38.
1. Aos presos de nacionalidade estrangeira, serão concedidas facilidades razoáveis
81
para se comunicarem com os representantes diplomáticos e consulares do Estado a
que pertencem.
2. A presos de nacionalidade de Estados sem representação diplomática ou
consular no país, e a refugiados ou apátridas, serão concedidas facilidades
semelhantes para comunicarem-se com os representantes diplomáticos do
Estado encarregado de zelar pelos seus interesses ou com qualquer entidade
nacional ou internacional que tenha como tarefa a proteção de tais indivíduos.
39. Os presos serão mantidos regularmente informados das notícias mais
importantes através da leitura de jornais, periódicos ou publicações especiais do
estabelecimento prisional, através de transmissões de rádio, conferências ou
quaisquer
outros
meios
semelhantes,
autorizados
ou
controlados
pela
administração.
Biblioteca
40. Cada estabelecimento prisional terá uma biblioteca para o uso de todas as
categorias de presos, devidamente provida com livros de recreio e de instrução, e os
presos serão estimulados a utilizá-la.
Religião
41.
1. Se o estabelecimento reunir um número suficiente de presos da mesma religião,
um representante qualificado dessa religião será nomeado ou admitido. Se o
número de presos o justificar e as condições o permitirem, tal serviço será na base
de tempo completo.
2. Um representante qualificado, nomeado ou admitido nos termos do parágrafo 1,
será autorizado a celebrar serviços religiosos regulares e a fazer visitas pastorais
particulares
a
presos
da
sua
religião,
em
ocasiões
apropriadas.
3. Não será recusado o acesso de qualquer preso a um representante qualificado de
qualquer religião. Por outro lado, se qualquer preso levantar objeções à visita de
qualquer representante religioso, sua posição será inteiramente respeitada.
82
42. Tanto quanto possível, cada preso será autorizado a satisfazer as necessidades
de sua vida religiosa, assistindo aos serviços ministrados no estabelecimento ou
tendo em sua posse livros de rito e prática religiosa da sua crença.
Depósitos de objetos pertencentes aos presos
43.
1. Quando o preso ingressa no estabelecimento prisional, o dinheiro, os objetos de
valor, roupas e outros bens que lhe pertençam, mas que não possam permanecer
em seu poder por força do regulamento, serão guardados em um lugar
seguro, levantando-se um inventário de todos eles, que deverá ser assinado pelo
preso. Serão tomadas as medidas necessárias para que tais objetos se conservem
em bom estado.
2. Os objetos e o dinheiro pertencentes ao preso ser-lhe-ão devolvidos quando da
sua liberação, com exceção do dinheiro que ele foi autorizado a gastar, dos objetos
que tenham sido remetidos para o exterior do estabelecimento, com a devida
autorização, e das roupas cuja destruição haja sido decidida por questões
higiênicas. O preso assinará um recibo dos objetos e do dinheiro que lhe forem
restituídos.
3. Os valores e objetos enviados ao preso do exterior do estabelecimento prisional
serão submetidos às mesmas regras.
4. Se o preso estiver na posse de medicamentos ou de entorpecentes no momento
do seu ingresso no estabelecimento prisional, o médico decidirá que uso será dado
a eles.
Notificação de morte, doenças e transferências
44.
1. No caso de morte, doença ou acidente grave, ou da transferência do preso para
um estabelecimento para doentes mentais, o diretor informará imediatamente o
83
cônjuge, se o preso for casado, ou o parente mais próximo, e informará,
em qualquer caso, a pessoa previamente designada pelo preso.
2. Um preso será informado imediatamente da morte ou doença grave de qualquer
parente próximo. No caso de doença grave de um parente próximo, o preso será
autorizado,
quando
as
circunstâncias
o
permitirem,
a visitá-lo, escoltado
ou não.
3. Cada preso terá o direito de informar imediatamente à sua família sobre sua
prisão ou transferência para outro estabelecimento prisional.
Transferência de presos
45.
1. Quando os presos estiverem sendo transferidos para outro estabelecimento
prisional, deverão ser vistos o menos possível pelo público, e medidas apropriadas
serão
adotadas
para
protegê-los
contra
qualquer
forma
de
insultos,
curiosidade e publicidade.
2. Será proibido o traslado de presos em transportes com ventiliação ou iluminação
deficientes, ou que de qualquer outro modo possam submetê-los a sacrifícios
desnecessários.
3. O transporte de presos será efetuado às expensas da administração, em
condições iguais para todos eles.
Pessoal penitenciário
46.
1. A administração penitenciária escolherá cuidadosamente o pessoal de todas as
categorias, posto que, da integridade, humanidade, aptidão pessoal e capacidade
profissional desse pessoal, dependerá a boa direção dos estabelecimentos
penitenciários.
2. A administração penitenciária esforçar-se-á constantemente por despertar e
manter no espírito do pessoal e na opinião pública a convicção de que a função
84
penitenciária constitui um serviço social de grande importância e, sendo
assim,
utilizará
todos
os
meios
apropriados
para
ilustrar
o
público.
3. Para lograr tais fins, será necessário que os membros trabalhem com
exclusivadade como funcionários penitenciários profissionais, tenham a condição de
funcionários públicos e, portanto, a segurança de que a estabilidade em seu
emprego dependerá unicamente da sua boa conduta, da eficácia do seu trabalho e
de sua aptidão física. A remuneração do pessoal deverá ser adequada, a fim de se
obter e conservar os serviços de homens e mulheres capazes. Determinar-se-á os
benefícios da carreira e as condições do serviço tendo em conta o caráter
penoso de suas funções.
47.
1. Os membros do pessoal deverão possuir um nível intelectual satisfatório.
2. Os membros do pessoal deverão fazer, antes de ingressarem no serviço, um
curso de formação geral e especial, e passar satisfatoriamente pelas provas teóricas
e práticas.
3. Após seu ingresso no serviço e durante a carreira, os membros do pessoal
deverão manter e melhorar seus conhecimentos e sua capacidade profissionais
fazendo
cursos
de
aperfeiçoamento,
que
se
organizarão
periodicamente.
48.
Todos os membros do pessoal deverão conduzir-se e cumprir suas funções, em
qualquer circunstância, de modo a que seu exemplo inspire respeito e exerça uma
influência benéfica sobre os presos.
49.
1. Na medida do possível dever-se-á agregar ao pessoal um número suficiente de
especialistas, tais como psiquiatras, psicólogos, assistentes sociais, professores e
instrutores técnicos.
2. Os serviços dos assistentes sociais, dos professores e instrutores técnicos
deverão ser mantidos permanentemente, sem que isto exclua os serviços de
auxiliares a tempo parcial ou voluntários.
85
50.
1. O diretor do estabelecimento prisional deverá estar devidamente qualificado para
sua função por seu caráter, sua capacidade administrativa, uma formação adequada
e por sua experiência na matéria.
2. O diretor deverá consagrar todo o seu tempo à sua função oficial, que não poderá
ser desempenhada com restrição de horário.
3. O diretor deverá residir no estabelecimento prisional ou perto dele.
4. Quando dois ou mais estabelecimentos estejam sob a autoridade de um único
diretor, este os visitará com freqüência. Cada um desses estabelecimentos estará
dirigido por um funcionário responsável residente no local.
51.
1. O diretor, o subdiretor e a maioria do pessoal do estabelecimento prisional
deverão falar a língua da maior parte dos reclusos ou uma língua compreendida
pela maior parte deles.
2. Recorrer-se-á aos serviços de um intérprete toda vez que seja necessário.
52.
1. Nos estabelecimentos prisionais cuja importância exija o serviço contínuo de um
ou vários médicos, pelo menos um deles residirá no estabelecimento ou nas suas
proximidades.
2. Nos demais estabelecimentos, o médico visitará diariamente os presos e residirá
próximo o bastante do estabelecimento para acudir sem demora toda vez que se
apresente um caso urgente.
53.
1.Nos estabelecimentos mistos, a seção das mulheres estará sob a direção de um
funcionário responsável do sexo feminino, a qual manterá sob sua guarda todas as
chaves de tal seção.
2. Nenhum funcionário do sexo masculino ingressará na seção feminina
desacompanhado de um membro feminino do pessoal.
86
3. A vigilância das presas será exercida exclusivamente por funcionários do sexo
feminino. Contudo, isto não excluirá que funcionários do sexo masculino,
especialmente os médicos e o pessoal de ensino, desempenhem suas funções
profissionais
em
estabelecimentos
ou
seções
reservadas
às
mulheres.
54.
1. Os funcionários dos estabelecimentos prisionais não usarão, nas suas relações
com os presos, de força, exceto em legítima defesa ou em casos de tentativa de
fuga,
ou
de
resistência
física
ativa
ou
passiva
a
uma
ordem
fundamentada na lei ou nos regulamentos. Os funcionários que tenham que recorrer
à força, não devem usar senão a estritamente necessária, e devem informar
imediatamente
o
incidente
ao
diretor
do
estabelecimento
prisional.
2. Será dado aos guardas da prisão treinamento físico especial, a fim de habilitá-los
a dominarem presos agressivos.
3. Exceto em circunstâncias especiais, os funcionários, no cumprimento de funções
que impliquem contato direto com os presos, não deverão andar armados. Além
disso, não será fornecida arma a nenhum funcionário sem que o mesmo tenha sido
previamente adestrado no seu manejo.
Inspeção
55.
Haverá uma inspeção regular dos estabelecimentos e serviços prisionais por
inspetores qualificados e experientes, nomeados por uma autoridade competente. É
seu dever assegurar que estes estabelecimentos estão sendo administrados
de acordo com as leis e regulamentos vigentes, para prosseguimento dos objetivos
dos serviços prisionais e correcionais.
PARTE II
Regras aplicáveis a categorias especiais
A. Presos condenados
87
Princípios mestres
56. Os princípios mestres enumerados a seguir têm por objetivo definir o espírito
segundo o qual devem ser administrados os sistemas penitenciários e os objetivos a
serem buscados, de acordo com a declaração constante no ítem 1 das
Observações preliminares das presentes regras.
57. A prisão e outras medidas cujo efeito é separar um delinqüente do mundo
exterior são dolorosas pelo próprio fato de retirarem do indivíduo o direito à autodeterminação, privando-o da sua liberdade. Logo, o sistema prisional não deverá,
exceto por razões justificáveis de segregação ou para a manutenção da disciplina,
agravar o sofrimento inerente a tal situação.
58. O fim e a justificação de uma pena de prisão ou de qualquer medida privativa de
liberdade é, em última instância, proteger a sociedade contra o crime. Este fim
somente pode ser atingido se o tempo de prisão for aproveitado para
assegurar, tanto quanto possível, que depois do seu regresso à sociedade o
delinqüente não apenas queira respeitar a lei e se auto-sustentar, mas também que
seja capaz de fazê-lo.
59. Para alcançar esse propósito, o sistema penitenciário deve empregar, tratando
de aplicá-los conforme as necessidadesdo tratamento individual dos delinqüentes,
todos os meios curativos, educativos, morais, espirituais e de outra natureza, e
todas as formas de assistência de que pode dispor.
60.
1. O regime do estabelecimento prisional deve tentar reduzir as diferenças
existentes entre a vida na prisão e a vida livre quando tais diferenças contribuirem
para debilitar o sentido de responsabilidade do preso ou o respeito à dignidade da
sua pessoa.
2. É conveniente que, antes do término do cumprimento de uma pena ou medida,
sejam tomadas as providências necessárias para assegurar ao preso um retorno
88
progressivo à vida em sociedade. Este propósito pode ser alcançado, de acordo
com o caso, com a adoção de um regime preparatório para a liberação, organizado
dentro do mesmo estabelecimento prisional ou em outra instituição apropriada, ou
mediante
libertação
condicional
sobvigilância
não
confiada
à
polícia,
compreendendo uma assistência social eficaz.
61. No tratamento, não deverá ser enfatizada a exclusão dos presos da sociedade,
mas, ao contrário, o fato de que continuam a fazer parte dela. Com esse objetivo
deve-se recorrer, na medida ao possível, à cooperação de organismos comunitários
que ajudem o pessoal do estabelecimento prisional na sua tarefa de reabilitar
socialmente os presos. Cada estabelecimento penitenciário deverá contar com a
colaboração
de
assistentes
sociais
encarregados
de
manter
e
melhorar
as relações dos presos com suas famílias e com os organismos sociais que possam
lhes ser úteIs. Também deverão ser feitas gestões visando proteger, desde que
compatível com a lei e com a pena imposta, os direitos relativos aos interesses
civis, os benefícios dos direitos da previdência social e outros benefícios sociais dos
presos.
62. Os serviços médicos do estabelecimento prisional se esforçarão para descobrir
e deverão tratar todas as deficiências ou enfermidades físicas ou mentais que
constituam um obstáculo à readaptação do preso. Com vistas a esse fim, deverá ser
realizado todo tratamento médico, cirúrgico e psiquiátrico que for julgado necessário.
63.
1. Estes princípios exigem a individualização do tratamento que, por sua vez, requer
um sistema flexível de classificação dos presos em grupos. Portanto, convém que
os grupos sejam distribuidos em estabelecimentos distintos, onde cada um deles
possa receber o tratamento necessário.
2. Ditos estabelecimentos não devem adotar as mesmas medidas de segurança
com relação a todos os grupos. É conveniente estabelecer diversos graus de
segurança conforme a que seja necessária para cada um dos diferentes grupos. Os
estabelecimentos abertos - nos quais inexistem meios de segurança física contra a
fuga e se confia na autodisciplina dos presos - proporcionam, a presos
cuidadosamente escolhidos, as condições mais favoráveis para a sua readaptação.
89
3. É conveniente evitar que nos estabelecimentos fechados o número de presos
seja tão elevado que constitua um obstáculo à individualização do tratamento. Em
alguns países, estima-se que o número de presos em tais estabelecimentos não
deve passar de quinhentos. Nos estabelecimentos abertos, o número de presos
deve ser o mais reduzido possível.
4. Ao contrário, também não convém manter estabelecimentos demasiadamente
pequenos para que se possa organizar neles um regime apropriado.
64. O dever da sociedade não termina com a libertação do preso. Deve-se dispor,
por conseguinte, dos serviços de organismos governamentais ou privados capazes
de prestar à pessoa solta uma ajuda pós-penitenciária eficaz, que tenda a
diminuir os preconceitos para com ela e permitam sua readaptação à comunidade.
Tratamento
65. O tratamento dos condenados a uma punição ou medida privativa de liberdade
deve ter por objetivo, enquanto a duração da pena o permitir, inspirar-lhes a vontade
de viver conforme a lei, manter-se com o produto do seu trabalho e criar neles a
aptidão para fazê-lo. Tal tratamento estará direcionado a fomentar-lhes o respeito
por
si
mesmos
e
a
desenvolver
seu
senso
de
responsabilidade.
66.
1. Para lograr tal fim, deverá se recorrer, em particular, à assistência religiosa, nos
países em que ela seja possível, à instrução, à orientação e à formação
profissionais, aos métodos de assistência social individual, ao assessoramento
relativo ao emprego, ao desenvolvimento físico e à educação do caráter moral, em
conformidade com as necessidades individuais de cada preso. Deverá ser levado
em conta seu passado social e criminal, sua capacidade e aptidão físicas e mentais,
suas disposições pessoais, a duração de sua condenação e as perspectivas depois
da sua libertação.
2. Em relação a cada preso condenado a uma pena ou medida de certa duração,
que ingresse no estabelecimento prisional, será remetida ao diretor, o quanto antes,
um informe completo relativo aos aspectos mencionados no parágrafo anterior. Este
90
informe será acompanhado por o de um médico, se possível especializado em
psiquiatria, sobre o estado físico e mental do preso.
3. Os informes e demais documentos pertinentes formarão um arquivo individual.
Estes arquivos serão mantidos atualizados e serão classificados de modo que o
pessoal
responsável
possa
consultá-los
sempre
que
seja
necessário.
Classificação e individualização
67. Os objetivos da classificação deverão ser:
a. Separar os presos que, por seu passado criminal ou sua má disposição,
exerceriam
uma
influência
nociva
sobre
os
companheiros
de
detenção;
b. Repartir os presos em grupos, a fim de facilitar o tratamento destinado à sua
readaptação social.
68. Haverá, se possível, estabelecimentos prisionais separados ou seções
separadas dentro dos estabelecimentos para os distintos grupos de presos.
69. Tão logo uma pessoa condenada a uma pena ou medida de certa duração
ingresse em um estabelecimento prisional, e depois de um estudo da sua
personalidade, será criado um programa de tratamento individual, tendo em vista os
dados obtidos sobre suas necessidades individuais, sua capacidade e suas
inclinações.
Privilégios
70. Em cada estabelecimento prisional será instituído um sistema de privilégios
adaptado aos diferentes grupos de presos e aos diferentes métodos de tratamento,
a fim de estimular a boa conduta, desenvolver o sentido de responsabilidade e
promover o interesse e a cooperação dos presos no que diz respeito ao seu
tratamento.
Trabalho
91
71.
1. O trabalho na prisão não deve ser penoso.
2. Todos os presos condenados deverão trabalhar, em conformidade com as suas
aptidões
física
e
mental,
de
acordo
com
a
determinação
do
médico.
3. Trabalho suficiente de natureza útil será dado aos presos de modo a conservá-los
ativos durante um dia normal de trabalho.
4. Tanto quanto possível, o trabalho proporcionado será de natureza que mantenha
ou aumente as capacidades dos presos para ganharem honestamente a vida depois
de libertados.
5. Será proporcionado treinamento profissional em profissões úteis aos presos que
dele tirarem proveito, especialmente aos presos jovens.
6. Dentros dos limites compatíveis com uma seleção profissional apropriada e com
as exigências da administração e disciplina prisionais, os presos poderão escolher o
tipo de trabalho que querem fazer.
72.
1. A organização e os métodos de trabalho penitenciário deverão se assemelhar o
mais possível aos que se aplicam a um trabalho similar fora do estabelecimento
prisional, a fim de que os presos sejam preparados para as condições
normais de trabalho livre.
2. Contudo, o interesse dos presos e de sua formação profissional não deverão ficar
subordinados ao desejo de se auferir benefícios pecuniários de uma indústria
penitenciária.
73.
1. As indústrias e granjas penitenciárias deverão ser dirigidas preferencialmente
pela administração e não por empreiteiros privados.
2. Os presos que se empregarem em algum trabalho não fiscalizado pela
administração estarão sempre sob a vigilância do pessoal penitenciário. A menos
que o trabalho seja feito para outros setores do governo, as pessoas por ele
beneficiadas pagarão à administração o salário normalmente exigido para tal
trabalho, levando-se em conta o rendimento do preso.
92
74.
1. Nos estabelecimentos penitenciários, serão tomadas as mesmas precauções
prescritas para a proteção, segurança e saúde dos trabalhadores livres.
2. Serão tomadas medidas visando indenizar os presos que sofrerem acidentes de
trabalho e enfermidades profissionais em condições similares às que a lei dispõe
para os trabalhadores livres.
75.
1. As horas diárias e semanais máximas de trabalho dos presos serão fixadas por lei
ou por regulamento administrativo, tendo em consideração regras ou costumes
locais concernentes ao trabalho das pessoas livres.
2. As horas serão fixadas de modo a deixar um dia de descanso semanal e tempo
suficiente para a educação e para outras atividades necessárias ao tratamento e
reabilitação dos presos.
76.
1. O trabalho dos reclusos deverá ser remunerado de uma maneira eqüitativa.
2. O regulamento permitirá aos reclusos que utilizem pelo menos uma parte da sua
remuneração para adquirir objetos destinados a seu uso pessoal e que enviem a
outra parte à sua família.
3. O regulamento deverá, igualmente, prever que a administração reservará uma
parte da remuneração para a constituição de um fundo, que será entregue ao preso
quando ele for posto em liberdade.
Educação e recreio
77.
1. Serão tomadas medidas para melhorar a educação de todos os presos em
condições de aproveitá-la, incluindo instrução religiosa nos países em que isso for
possível. A educação de analfabetos e presos jovens será obrigatória, prestando-lhe
a administração especial atenção.
93
2. Tanto quanto possível, a educação dos presos estará integrada ao sistema
educacional do país, para que depois da sua libertação possam continuar, sem
dificuldades, a sua educação.
78. Atividades de recreio e culturais serão proporcionadas em todos os
estabelecimentos prisionais em benefício da saúde física e mental dos presos.
Relações sociais e assistência pós-prisional
79. Será prestada especial atenção à manutenção e melhora das relações entre o
preso e sua família, que se mostrem de maior vantagem para ambos.
80. Desde o início do cumprimento da pena de um preso, ter-se-á em conta o seu
futuro depois de libertado, devendo ser estimulado e auxiliado a manter ou
estabelecer relações com pessoas ou organizações externas, aptas a promover os
melhores interesses da sua família e da sua própria reabilitação social.
81.
1. Serviços ou organizações, governamentais ou não, que prestam assistência a
presos libertados, ajudando-os a reingressarem na sociedade, assegurarão, na
medida do possível e do necessário, que sejam fornecidos aos presos
libertados documentos de identificação apropriados, casas adequadas e trabalho,
que estejam conveniente e adequadamente vestidos, tendo em conta o clima e a
estação
do
ano,
e
que
tenham
meios
materiais
suficientes
para
chegar ao seu destino e para se manter no período imediatamente seguinte ao da
sua libertação.
2. Os representantes oficiais dessas organizações terão todo o acesso necessário
ao estabelecimento prisional e aos presos, sendo consultados sobre o futuro do
preso desde o início do cumprimento da pena.
3. É recomendável que as atividades dessas organizações estejam centralizadas ou
sejam coordenadas, tanto quanto possível, a fim de garantir a melhor utilização dos
seus esforços.
94
B. Presos dementes e mentalmente enfermos
82.
1. Os presos considerados dementes não deverão ficar detidos em prisões. Devem
ser tomadas medidas para transferí-los, o mais rapidamente possível, para
instituições destinadas a enfermos mentais.
2. Os presos que sofrem de outras doenças ou anomalias mentais deverão ser
examinados e tratados em instituições especializadas sob vigilância médica.
3. Durante sua estada na prisão, tais presos deverão ser postos sob a supervisão
Especial de um médico.
4. O serviço médico ou psiquiátrico dos estabelecimentos prisionais proporcionará
tratamento psiquiátrico a todos os presos que necessitam de tal tratamento.
83. Será conveniente a adoção de disposições, de acordo com os organismos
competentes, para que, caso necessário, otratamento psiquiátrico prossiga depois
da libertação do preso, assegurando-se uma assistência social pós-penitenciária de
caráter psiquiátrico.
C. Pessoas detidas ou em prisão preventiva
84.
1. As pessoas detidas ou presas em virtude de acusações criminais pendentes, que
estejam sob custódia policial ou em uma prisão, mas que ainda não foram
submetidas a julgamento e condenadas, serão designados por "presos não
julgados" nestas regras.
2. Os presos não julgados presumem-se inocentes e como tal devem ser tratados.
3. Sem prejuízo das normas legais sobre a proteção da liberdade individual ou que
prescrevem os trâmites a serem observados em relação a presos não julgados,
estes
deverão
ser
beneficiados
por
um
regime
especial,
regra que se segue apenas nos seus requisitos essenciais.
delineado
na
95
85.
1. Os presos não julgados serão mantidos separados dos presos condenados.
2. Os presos jovens não julgados serão mantidos separados dos adultos e deverão
estar,
a
princípio,
detidos
em
estabelecimentos
prisionais
separados.
86. Os presos não julgados dormirão sós, em quartos separados.
87. Dentro dos limites compatíveis com a boa ordem do estabelecimento prisional,
os presos não julgados podem, se assim o desejarem, mandar vir alimentação do
exterior às expensas próprias, quer através da administração, quer através da sua
família ou amigos. Caso contrário, a administração fornecer-lhes-á alimentação.
88.
1. O preso não julgado será autorizado a usar a sua própria roupa de vestir, se
estiver limpa e for adequada.
2. Se usar roupa da prisão, esta será diferente da fornecida aos presos condenados.
89. Será sempre dada ao preso não julgado oportunidade para trabalhar, mas não
lhe será exigido trabalhar. Se optar por trabalhar, será pago.
90. O preso não julgado será autorizado a adquirir, às expensas próprias ou às
expensas de terceiros, livros, jornais, material para escrever e outros meios de
ocupação compatíveis com os interesses da administração da justiça e a
segurança e a boa ordem do estabelecimento prisional.
91. O preso não julgado será autorizado a receber a visita e ser tratado por seu
médico ou dentista pessoal, desde que haja motivo razoável para tal pedido e que
ele possa suportar os gastos daí decorrentes.
92. O preso não julgado será autorizado a informar imediatamente à sua família
sobre sua detenção, e ser-lhe-ão dadas todas as facilidades razoáveis para
comunicar-se com sua família e amigos e para receber as visitas deles, sujeito
apenas às restrições e supervisão necessárias aos interesses da administração da
justiça
e
à
segurança
e
boa
ordem
do
estabelecimento
prisional.
96
93. O preso não julgado será autorizado a requerer assistência legal gratuita, onde
tal assistência exista, e a receber visitas do seu advogado para tratar da sua defesa,
preparando e entregando-lhe instruções confidenciais. Para esse fim ser-lhe-á
fornecido, se ele assim o desejar, material para escrever. As conferências entre o
preso não julgado e o seu advogado podem ser vigiadas visualmente por um policial
ou por um funcionário do estabelecimento prisional, mas a conversação
entre eles não poderá ser ouvida.
D. Pessoas condenadas por dívidas ou à prisão civil
94. Nos países em que a legislação prevê a possibilidade de prisão por dívidas ou
outras formas de prisão civil, as pessoas assim condenadas não serão submetidas a
maiores restrições nem a tratamentos mais severos que os necessários à
segurança e à manutenção da ordem. O tratamento dado a elas não será, em
nenhum caso, mais rígido do que aquele reservado às pessoas acusadas,
ressalvada, contudo, a eventual obrigação de trabalhar.
E. Pessoas presas, detidas ou encarceradas sem acusação
95. Sem prejuízo das regras contidas no artigo 9 do Pacto de Direitos Civis e
Políticos, será dada às pessoas detidas ou presas sem acusação a mesma proteção
concedida nos termos da Parte I e da seção C da Parte II. As regras da seção A
da Parte II serão do mesmo modo aplicáveis sempre que beneficiarem este grupo
especial de indivíduos sob detenção; todavia, medida alguma será tomada se
considerado que a reeducação ou a reabilitação são, por qualquer forma,
inapropriadas a indivíduos não condenados por qualquer crime.
ANEXO
97
Procedimentos para a aplicação efetiva das Regras Mínimas para o Tratamento de
Prisioneiros
Procedimento 1
Todos os Estados cujas normas de proteção a todas as pessoas submetidas a
qualquer forma de detenção ou prisão não estiverem à altura das Regras Mínimas
para
o
Tratamento
de
Prisioneiros,
adotarão
essas
regras
mínimas.
Comentário:
A Assembléia Geral, em sua Resolução 2.858 (XXVI), de 20 de dezembro de 1971,
chamou a atenção dos Estados membros para as Regras Mínimas e recomendou
que
eles
as
aplicassem
na
administração
das
instituições
penais
e
correcionais e que considerassem favoravelmente a possibilidade de incorporá-las
em sua legislação nacional. É possível que alguns Estados tenham normas mais
avançadas que as Regras e, portanto, não se pede aos mesmos que as adotem.
Quando os Estados considerarem que as Regras necessitam ser harmonizadas com
seus sistemas jurídicos e adaptadas à sua cultura, devem ressaltar a intenção e não
a letra fria das Regras.
Procedimento 2
Adaptadas, se necessário, às leis e à cultura existentes, mas sem distanciar-se do
seu espírito e do seu objetivo, as Regras Mínimas serão incorporadas à legislação
nacional e demais regulamentos.
Comentário:
Este procedimento ressalta a necessidade de se incorporar as Regras Mínimas à
legislação e aos regulamentos nacionais, com o que se abrange também alguns
aspectos do procedimento 1.
Procedimento 3
As Regras Mínimas serão postas à disposição de todas as pessoas interessadas,
em particular dos funcionários responsáveis pela aplicação da lei e do pessoal
penitenciário, a fim de permitir sua aplicação e execução dentro do sistema
de justiça penal.
98
Comentário:
Este procedimento lembra que as Regras Mínimas, assim como as leis e os
regulamentos nacionais relativos à sua aplicação, devem ser colocados à disposição
de todas as pessoas que participem na sua aplicação, em especial dos
funcionários responsáveis pela aplicação da lei e do pessoal penitenciário. É
possível que a aplicação das Regras exija, ademais, que o organismo administrativo
central encarregado dos aspectos correcionais organize cursos de capacitação. A
difusão dos presentes procedimentos é examinada nos procedimentos 7 a 9.
Procedimento 4
As Regras Mínimas, na forma em que se incorporaram à legislação e demais
regulamentos nacionais, também serão colocadas à disposição de todos os presos
e de todas as pessoas detidas ao ingressarem em instituições penitenciárias e
durante sua reclusão.
Comentário:
Para se alcançar o objetivo das Regras Mínimas, é necessário que as Regras, assim
como as leis e as regulamentações nacionais destinadas a dar-lhes aplicação,
sejam postas à disposição dos presos e de todas as pessoas detidas (regra 95), a
fim de que todos eles saibam que as Regras representam as condições mínimas
aceitas pelas Nações Unidas. Assim, este procedimento complementa o disposto no
procedimento 3. Um requisito análogo - que as Regras sejam colocadas à
disposição das pessoas para cuja proteção foram elaboradas - figura já nos quatro
Convênios de Genebra, de 12 de agosto de 1949, cujos artigos 47 do primeiro
Convênio, 48 do segundo, 127 do terceiro e 144 do quarto contêm a mesma
disposição: "As Altas Partes contratantes comprometem-se a difundir, o mais
amplamente possível, em tempo de paz e em tempo de guerra, o texto do presente
Convênio em seus respectivos países, e especialmente a incorporar seu estudo aos
programas de instrução militar e, em sendo possível, também civil, de modo que
seus princípios sejam conhecidos pelo conjunto da população, particularmente das
forças armadas combatentes, do pessoal da saúde e dos capelães."
Procedimento 5
99
Os Estados informarão a cada cinco anos, ao Secretário-Geral das Nações Unidas,
em que medida cumpriram as Regras Mínimas e os progressos que se realizaram
em sua aplicação, assim como os fatores e inconvenientes, se existirem, que
afetam sua aplicação, respondendo a questionário do Secretário Geral. Tal
questionário, que se baseará em um programa específico, deveria ser seletivo e
limitar-se a perguntas concretas visando permitir o estudo e o exame aprofundado
dos problemas selecionados. O Secretário-Geral, levando em conta os informes dos
governos, assim como todas as demais informações pertinentes, disponíveis dentro
do sistema das Nações Unidas, preparará um informe periódico independente
sobre os progressos realizados na aplicação das Regras Mínimas. Na preparação
desses informes, o Secretário-Geral também poderá obter a cooperação de
organismos
especializados
das
organizações
intergovernamentais
e
não-
governamentais competentes, reconhecidas pelo Conselho Econômico e Social
como entidades consultivas. O Secretário-Geral apresentará os informes ao Comitê
de Prevenção do Delito e Luta contra a Delinqüência para sua consideração e para
a adoção de novas medidas, se for o caso.
Comentário:
Como se recorda, o Conselho Econômico e Social, em sua Resolução 663 C (XXIV),
e 31 de julho de 1957, recomendou que o Secretário-Geral fosse informado, a cada
período de cinco anos, sobre os progressos alcançados na aplicação das Regras
Mínimas, e autorizou o Secretário-Geral a tomar as providências cabíveis para a
publicação, quando fosse o caso, da informação recebida e para que solicitasse, se
necessário, informações complementares. É prática generalizada nas Nações
Unidas rogar a cooperação dos organismos especializados e das organizações
intergovernamentais e não-governamentais competentes. Na preparação do seu
informe independente sobre os progressos realizados em relação à apliicação das
Regras Mínimas, o Secretário-Geral levará em conta, dentre outras coisas, a
informação de que dispõem os órgãos das Nações Unidas dedicados aos direitos
humanos, incluindo a Comissão de Direitos Humanos, a Subcomissão de Prevenção
de Discriminações e Proteção às Minorias, o Comitê de Direitos Humanos criado em
virtude do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos e o Comitê para a
Eliminação da Discriminação Racial. Também poderia ser considerado o trabalho de
aplicação relacionado com a futura convenção contra a tortura, bem como toda a
100
informação que possa ser reunida com referência ao conjunto de princípios para a
proteção das pessoas presas e detidas que está sendo atualmente preparado pela
Assembléia Geral.
Procedimento 6
Como parte da informação mencionada no procedimento 5, os Estados fornecerão
ao Secretário-Geral: a) cópias ou resumos de todas as leis, regulamentos e
disposições administrativas relativas a aplicação das Regras Mínimas a pessoas
detidas e aos lugares e programas de detenção; b) quaisquer dados e materiais
descritivos sobre os programas de tratamento, o pessoal e o número de pessoas
detidas, qualquer que seja o tipo de detenção, assim como estatísticas, se
dispuserem delas; c) qualquer outra informação pertinente à aplicação das Regras,
assim como informação sobre as possíveis dificuldades em sua aplicação.
Comentário:
Este requisito tem origem na Resolução 663 C (XXIV) do Conselho Econômico e
Social e nas recomendações dos congressos das Nações Unidas sobre a prevenção
do
crime
e
o
tratamento
do
delinqüente.
Embora
os
elementos
de
informação solicitados neste procedimento não estejam expressamente previstos,
parece factível recolher tal informação com o objetivo de auxiliar os Estados
membros a superar as dificuldades mediante o intercâmbio de experiências. Além
disso, um pedido de informação dessa natureza tem como predecessor o sistema
existente de apresentação periódica de informações sobre direitos humanos,
estabelecida pelo Conselho Econômico e Social em sua Resolução 624 B (XXII), de
1º de agosto de 1956.
Procedimento 7
O Secretário-Geral divulgará as Regras Mínimas e os presentes procedimentos de
aplicação no maior número possível de idiomas e se colocará a disposição de todos
os
Estados
e
organizações
intergovernamentais
e
não-governamentais
interessadas, a fim de lograr que as Regras Mínimas e os procedimentos de
aplicação recebam a maior difusão possível.
101
Comentário:
É evidente a necessidade de dar-se uma maior divulgação possível às Regras
Mínimas. É importante estabelecer uma íntima relação com todas as organizações
intergovernamentais e não-governamentais competentes para se lograr uma
difusão e aplicação mais eficazes das Regras. A Secretaria deverá, para tanto,
manter estreitos contatos com tais organizações e colocar à sua disposição a
informação e os dados pertinentes. Deverá, também, incentivá-las a difundir
informação sobre as Regras Mínimas e os procedimentos de aplicação.
Procedimento 8
O Secretário-Geral divulgará seus informes sobre a aplicação das Regras Mínimas,
incluídos os resumos analíticos dos estudos periódicos, os informes do Comitê de
Prevenção do Delito e Luta contra a Delinqüência, os informes preparados
pelos congressos das Nações Unidas sobre a prevenção do crime e o tratamento
dos delinqüentes, assim como os informes desses congressos, as publicações
científicas
e
demais
documentação
pertinente
se
necessário
naquele
momento para promover a aplicação das Regras Mínimas.
Comentário:
Este procedimento reflete a prática atual de divulgar os informes de referência como
parte da documentação dos órgãos competentes das Nações Unidas ou como
artigos no Anuário de Direitos Humanos, na Revista Internacional de Política
Criminal, no Boletim de Prevenção do Delito e Justiça Penal e em outras
publicações pertinentes.
Procedimento 9
O Secretário-Geral zelará para que, em todos os programas pertinentes das Nações
Unidas, incluídas as atividades de cooperação técnica, se mencione e se utilize da
forma mais ampla possível o texto das Regras Mínimas.
Comentário:
Deveria se garantir que todos os órgãos pertinentes das Nações Unidas incluíssem
102
as Regras e os procedimentos de aplicação, ou fizessem referência a eles,
contribuindo desse modo para uma maior difusão e um maior conhecimento, entre
os organismos especializados, os órgãos governamentais, intergovernamentais e
não-governamentais e o público em geral, das Regras e do empenho do Conselho
Econômico e Social e da Assembléia Geral em assegurar sua aplicação. À medida
em que as Regras têm efeitos práticos nas instâncias correcionais depende
consideravelmente da forma como se incorporam às práticas legislativas e
administrativas locais. É indispensável que uma ampla gama de profissionais e de
não profissionais em todo o mundo conheça e compreenda estas Regras. Por
conseguinte, é sumamente importante dar-lhes a maior publicidade possível,
objetivo esse que também pode ser alcançado mediante freqüentes referências às
Regras campanhas de informação pública.
Procedimento 10
Como parte de seus programas de cooperação técnica e desenvolvimento, as
Nações Unidas: a.ajudarão os governos, quando estes solicitarem, a criar e
consolidar sistemas correcionais amplos e humanitários; b.colocarão os serviços de
peritos e de assessores regionais e inter-regionais em matéria de prevenção de
delito
e
justiça
penal
à
disposição
dos
governos
que
os
solicitarem;
c.promoverão a celebração de seminários nacionais e regionais e outras reuniões
de nível profissional e não profissional para fomentar a difusão das Regras Mínimas
e dos presentes procedimentos de aplicação; d.reforçarão o apoio que se presta aos
institutos regionais de investigação e capacitação em matéria de prevenção de
delito e justiça penal associados as Nações Unidas. Os institutos regionais de
investigação e capacitação em Matéria de prevenção de delito e justiça penal das
Nações Unidas deverão elaborar, em cooperação com as instituições nacionais,
planos de estudo e material instrutivo, baseados nas Regras Mínimas e nos
presentes procedimentos de aplicação, adequados para seu uso em programas
educativos sobre justiça penal em todos os níveis, assim como em cursos
especializados em direitos humanos e outros temas conexos.
Comentário:
O objetivo deste procedimento é conseguir que os programas de assistência técnica
das Nações Unidas e as atividades de capacitação dos institutos regionais das
103
Nações Unidas sejam utilizados como instrumentos indiretos para a aplicação das
Regras Mínimas e dos presentes procedimentos de aplicação. Afora os cursos
ordinários de capacitação para o pessoal penitenciário, os manuais de instrução e
outros textos similares, se deveria dispor do necessário - particularmente a nível da
elaboração de políticas e da tomada de decisões - para que se pudesse contar com
o assessoramento de expertos em relação às questões apresentadas pelos Estados
membros, incluindo um sistema de remissão aos expertos à disposição
dos Estados interessados. Tudo indica que tal sistema seja necessário sobretudo
ara garantir a aplicação das Regras de acordo com o seu espírito e levando em
consideração a estrutura sócio-econômica dos países que solicitam dita assistência.
Procedimento 11
O Comitê das Nações Unidas de Prevenção do Delito e Luta contra a Delinqüência:
a.examinará regularmente as Regras Mínimas visando a elaboração de novas
regras, normas e procedimentos aplicáveis ao tratamento das pessoas privadas de
sua liberdade; b.observará os presentes procedimentos de aplicação, incluída a
apresentação
periódica
de
informes
prevista
no
procedimento
5,
supra.
Comentário:
Considerando-se que uma boa parte da informação reunida nas consultas
periódicas e por ocasião das missões de assistência técnica será transmitida ao
Comitê de Prevenção do Delito e Luta contra a Delinqüência, a tarefa de garantir a
eficácia das Regras em relação à melhoria das práticas correcionais é
responsabilidade do Comitê, cujas recomendações determinarão a orientação futura
da aplicação das Regras, juntamente com os procedimentos de aplicação. Em
conseqüência, o Comitê deverá individualizar claramente as fendas na aplicação
das Regras ou os motivos pelos quais elas não são aplicadas por outros meios,
estabelecendo contatos com os juízes e com os ministérios de Justiça dos países
interessados
com
vistas
a
sugerir
medidas
corretivas
adequadas.
Procedimento 12
O Comitê de Prevenção do Delito e Luta contra a Delinqüência ajudará a
Assembléia Geral, o Conselho Econômico e Social e todos os demais órgãos das
Nações Unidas que se ocupam dos direitos humanos, segundo corresponda,
104
formulando recomendações relativas aos informes das comissões especiais de
estudo, no que disser respeito a questões relacionadas com a aplicação e com a
implementação prática das Regras Mínimas.
Comentário:
Já que o Comitê de Prevenção do Delito e Luta contra a Delinqüência é o órgão
competente para examinar a aplicação das Regras Mínimas, também deveria
prestar assistência aos órgãos antes mencionados.
Procedimento 13
Nenhuma das disposições previstas nestes procedimentos será interpretada no
sentido de excluir a utilização de quaisquer outros meios ou recursos disponíveis, de
acordo com o direito internacional ou estabelecidos por outros órgãos e organismos
das Nações Unidas, para a reparação de violações dos direitos humanos, inclusive
o procedimento relativo aos quadros persistentes de manifestas violações dos
direitos humanos, conforme a Resolução 1503 (XLVIII) do Conselho Econômico e
Social, de 27 de maio de 1970; o procedimento de comunicação previsto no
Protocolo Facultativo do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, e o
procedimento de comunicação previsto na Convenção Internacional sobre a
Eliminação de todas as Formas de Discriminação Racial.
Comentário:
Levando em consideração que as Regras Mínimas só se referem em parte a temas
Específicos de direitos humanos, estes procedimentos não devem excluir nenhuma
via para a reparação de qualquer violação de tais direitos, de conformidade com
os critérios e normas internacionais ou regionais existentes.
105
Anexo B – Relatório da II Caravana Nacional da Comissão de Direitos Humanos
e Minorias da Câmara dos Deputados
136
Relatórios e Publicações
II Caravana - Sistema Prisional Brasileiro
Comissão de Direitos Humanos
Câmara dos Deputados
Relatório da II Caravana Nacional
de Direitos Humanos
Sistema prisional brasileiro
Brasília, setembro de 2000
In memoriam
Dedicamos este trabalho ao Padre Chico
"Já me tiraram a comida e o sol,
já levei chute e bofetada.
Abriram as pernas da minha mulher,
arrancaram a roupa de minha mãe.
Não tem mais o que tirar de mim,
só ódio."
J. M. E.
136
Relatório da II Caravana Nacional da Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara dos
Deputados. Anexo B. Disponível em: <http://hsw.uol.com.br/framed.htm?parent=prisoes.htm&url=
http://www2.camara.gov.br/comissoes/cdhm>. Acesso em 3.5.2008.
106
31 anos, preso no Rio de Janeiro.
Apresentação
Os presídios talvez sejam o outro lado da moeda, a face obscura que nos
recusamos a ver de nós mesmos. É difícil penetrar no interior dessas instituições
totais e resistir à estranha lógica produzida nos seus limites. Falamos de um mundo
à parte que, não obstante, é uma expressão desse mundo. Sua mais completa e
traiçoeira tradução. As reações daqueles que, em nome da sociedade, entram em
contato com o sistema prisional são, por certo, bem variadas. Há os que revelam a
inacreditável capacidade de transitar pelos corredores desses labirintos modernos
sem descobrir neles o indefinido mal estar que costumamos sentir diante do
implacável. Para esses, tudo se passa como se a instituição da própria sociedade
nos fosse legada em termos irrecorríveis. Os presídios, afirmam, são um mal
necessário. Assim, se há necessidade no mal, importa aceitá-lo e, ato contínuo,
identificar como mal inaceitável as pretensões críticas que o contestam. Se a
maldade cumpre, dessa forma, função legítima entre nós, então os que a sustentam
são funcionários do mal.
De outra parte, há os que, diante do horror construído pelo fenômeno
moderno da privação da liberdade, encontram sua própria identidade e se
reconhecem humanamente no sofrimento de internos e condenados. Não se trata,
por óbvio, de uma escolha, mas de uma imposição ditada por um determinado
senso moral. A solidariedade é uma conduta tanto mais urgente e evidente quanto
maiores forem as privações e a dor dos seres humanos que, quando conhecidas,
passam a ser compartilhadas por nós. A solidariedade devida aos encarcerados,
entretanto, é rarefeita em sociedades como a nossa e é superada largamente pela
indiferença, quando não pela noção medieval de vingança. Naturalmente, o senso
comum produz a redução de todos os seres humanos que cumprem a pena privativa
de liberdade à condição de "delinqüentes" ou, como prefere a cultura policial no
Brasil, à classificação de "vagabundos". Não há, entretanto, qualquer ontologia do
crime ou uma "essência"a definir o "criminoso". As pessoas que se encontram
encarceradas possuem entre si pouco em comum além do fato de serem
invariavelmente pobres, jovens e semi-alfabetizadas. O que as distingue não é,
107
comumente, mais nem menos do que aquilo que nos faz diferentes. Nesse sentido,
a instituição prisional é produtora de uma identidade criminosa além de ser,
concretamente, um dos fatores criminogênicos mais importantes. O fato é que as
chamadas "instituições totais" organizam de tal forma as privações e distribuem com
tanta radicalidade o mal que, imediatamente, nos vemos confrontados em nossa
condição humana pela própria desumanidade da instituição.
Quando falamos em presídios - como de resto de qualquer outro
fenômeno social - há, então, antes mesmo da fala, uma posição preliminar que
seleciona nossa atenção, que hierarquiza nossos sentimentos, que fixa ou desvia
nosso olhar. A depender da posição da qual falamos, teremos chances distintas de
compreender o que se passa e captar o real em suas dimensões mais significativas.
Digo "posição", mas poderia dizer "predisposição". Ocorre que não me refiro a um
conjunto mais ou menos coerente de noções político-ideológicas que estariam,
necessariamente, informando a atitude dos sujeitos. Antes disso, quero me referir a
uma determinada escala de valores que portamos e que, ao mesmo tempo, nos
suporta. A idéia de "dignidade", por exemplo, haverá de perturbar o visitante que a
possua. O que vemos no interior dos presídios, particularmente nas atuais
condições de encarceramento, é uma afronta permanente a este e a muitos outros
valores fundamentais para a condição humana. É impossível dar conta desse
estranhamento a partir de uma visão formatada desde o exterior dos presídios.
Alguém que experimente as condições de vida em sociedade nesse final de século
vive, necessariamente, em coordenadas espaço-temporais que não guardam
qualquer relação com aquelas vividas realmente pelos encarcerados. Os seres
humanos dessa época são, também, aqueles que descobrem-se progressivamente
em um mundo onde as distâncias diminuem. Por conta disso, pode-se afirmar que
nossos espaços são infinitamente maiores do que já foram. Pela mesma razão,
nosso tempo é cada vez menor. Se disséssemos, então, que nossa época nos
oferece cada vez mais espaço e cada vez menos tempo estaríamos sintetizando
uma das mais importantes características da vida moderna. Os encarcerados, por
contraste, são aqueles para os quais não há qualquer espaço e que dispõem de
todo o tempo. "Todo o tempo" é o tempo infinito. Mas o sofrimento diante do tempo
infinito é, também, um sofrimento infinito. É preciso compreender isso para que
possamos situar verdadeiramente o primeiro pressuposto da experiência prisional.
108
A II Caravana Nacional de Direitos Humanos, que teve como tema a
realidade prisional brasileira, esteve em 6 estados: Ceará, Pernambuco, Rio de
Janeiro, São Paulo, Rio Grande do Sul e Paraná. Ao todo, entre presídios,
penitenciárias e delegacias, foram 17 instituições visitadas. O conjunto de
estabelecimentos inspecionados reuniu cerca de 15 mil presos, o que nos confere
uma amostra bastante significativa. Foram 9 dias de trabalho ininterrupto, com
visitas que se estenderam, muitas vezes, noite a dentro. A Caravana foi organizada
em uma relação estreita de colaboração com muitas pessoas e entidades. Deve-se
destacar, não obstante, o papel desempenhado em todas suas fases pela Pastoral
Carcerária da CNBB. O trabalho anônimo e a dedicação de seus integrantes no
cotidiano da vida prisional escreve uma das páginas mais honrosas da militância
pelos Direitos Humanos no Brasil. Nossas inspeções se realizaram, todas, sem
prévio aviso, o que garantiu a possibilidade de inúmeros flagrantes de situações
irregulares e procedimentos ilegais. A sensação que temos, ao final dos nossos
trabalhos, é a de que conhecemos um sistema absolutamente "fora da lei". Os
imperativos definidos pela Lei de Execução Penal (LEP) são solenemente ignorados
em todos os estados. Realidade do arbítrio, os presídios brasileiros são uma reinvenção do inferno. A resultante, entretanto, não é uma construção metafísica ou
uma especulação religiosa. Aqui, os demônios tem pernas e visitam os presos a
cada momento.
Deputado Marcos Rolim
Presidente da Comissão de Direitos Humanos
I - CEARÁ
Iniciamos nossos trabalhos no Ceará, em 28 de agosto de 2000. A
Comissão de Direitos Humanos vinha acompanhando com preocupação as notícias
sobre a crise aguda enfrentada no Instituto Penal Paulo Sarasate (IPPS) de
Fortaleza. Ali, sabía-se pela imprensa, havia um estado já prolongado de
descontrole marcado por cenas de violência e troca de tiros entre policiais e
internos. Essa crise nos fez escolher o Ceará para o início da Caravana.
Do aereoporto, a comitiva integrada pelo Deputado Marcos Rolim
(PT/RS), presidente da Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados
109
(CDH), pelo Deputado Dr. Rosinha (PT/PR) e pelas assessoras da CDH Janete
Lemos e Marilda Campolino, nos dirigimos à Assembléia Legislativa para uma
reunião na Comissão de Direitos Humanos, presidida pelo Deputado estadual João
Alfredo (PT). Participaram dessa reunião o Deputado Federal José Pimentel
(PT/CE) os senhores Deodato Ramalho Júnior, presidente da Comissão de Direitos
Humanos da seção estadual da OAB, e Murilo Rocha Lima, vice-presidente; os
representantes da Pastoral Carcerária do Ceará, Padre Marcos Passerini; e a Sra.
Velma Lima Verde; a advogada Roberta Lia Sampaio Araújo, do Escritório Frei Tito
e Najuc; a psicóloga Núbia Dias Costa, do Fórum da Luta Antimanicomial; Lúcia de
Fátima Nogueira Holanda, representando a Anistia Internacional e o Conselho
Regional de Psicologia; além de acadêmicos de direito e representantes do
Sindicato dos Agentes Penitenciários. Durante duas horas, ouvimos as opiniões dos
presentes sobre a situação penitenciária do estado, recolhendo informações que
nos ofereceram uma idéia aproximada do contexto da crise vivida pelo sistema
penitenciário cearense.
O sistema penitenciário cearense é integrado por 140 estabelecimentos.
Desse total, 135 são cadeias públicas, 3 presídios (IPPS com cerca de 1.200
detentos, Instituto Penal Paulo Olavo Oliveira — IPPOO - com mais de 400 internos,
e Instituto Penal Feminino Desembargadora Auri Moura Costa, com 112 detentas)
além de 2 Colônias Penais Agrícolas. No total, o complexo abriga aproximadamente
5.200 presos e dispõe de uma capacidade de encarceramento para, no máximo,
3.600 vagas.
Não se tem notícia de iniciativas concretas desenvolvidas pelo Ministério
Público Estadual que tenham obrigado o Estado a qualquer ação que resgate suas
obrigações legais para com a população carcerária. As condições de execução
penal são, de resto, agravadas pela conduta no geral omissa e distante de vários
magistrados. Por inacreditável que pareça, em que pese a situação já insuportável
de superlotação de todos os estabelecimentos penais no Ceará e o histórico de
violência em algumas dessas instituições onde, nos últimos dois anos, morreram 23
presos, o Juiz da Vara de Execuções Criminais de Fortaleza, Sr. Cláudio de Paula
Pessôa, oficiou, em 21de junho do corrente, ao Presidente da Comissão de Direitos
Humanos da Assembléia Legislativa do Estado do Ceará, Deputado João Alfredo,
comunicando a impossibilidade de estagiários do curso de direito do Centro de
110
Assessoria Jurídica Universitária (CAJU/UFC) terem acesso aos processos dos
apenados para a prestação de assistência jurídica devida aos mesmos que lhes é
negada
objetivamente
pela
omissão
do
Estado.
O
ilustre
magistrado,
fundamentando-se na "inexistência do devido instrumento ou mandado" considerou
a pretensão de tão relevante projeto "prejudicada". Como o advogado encarregado
de coordenar o projeto com os acadêmicos não pode, pessoalmente, ter acesso a
todos os presos, nem saber de antemão quais aqueles que encontrar-se-íam em
condições de receber algum dos benefícios previstos na LEP, a decisão judicial
concorre objetivamente para que os direitos dos apenados sejam solenemente
desconsiderados. Tudo, é claro, em nome da "Lei"; possivelmente a "lei da selva"
que impera nos presídios sob a sua jurisdição. Outro destacado magistrado
cearense, certamente motivado pelo mesmo espírito público e sensibilidade social
do Sr. Cláudio de Paula Pessôa, Juiz do Município de Boa Viagem, Sr. Pedro Pia de
Freitas, proibiu a TV para os presos sob a psicótica alegação de que "ela é coisa do
demônio".
O sindicato dos agentes penitenciários do Ceará estima em 800
profissionais a carência de funcionários no sistema. Recentemente, por conta das
péssimas condições de trabalho e defasagem salarial, a categoria realizou uma
greve com duração de 12 dias. Em resposta ao movimento, o governo do estado
contratou os serviços de 60 vigilantes em uma empresa privada; providência sem
qualquer amparo legal. Esses vigilantes, mesmo após o retorno ao trabalho dos
agentes, continuam prestando serviços e estão hoje responsáveis pela custódia de
centenas de presos.
Cerca de 80% dos presos cearenses são analfabetos ou semialfabetizados e percentual ainda maior não dispõe de advogado ou defensor. Vivem
na mais absoluta ociosidade. Do total de presos no estado, cerca de 200, apenas,
desenvolvem alguma atividade laborativa, via de regra em tarefas de manutenção e
cozinha. Enquanto isso, no IPPS há um galpão industrial onde poderiam estar
trabalhando em um mesmo turno 600 presos. Além de maquinaria e recursos
produtivos ociosos, o estabelecimento dispõe de 3 tanques para piscicultura,
também abandonados. Se eles funcionassem, poderiam estar produzindo alimentos
para toda a população carcerária do IPPS com excedentes para a comunidade. Os
111
detentos comem com as mãos e os alimentos, via de regra comida estragada, lhes
são oferecidos acondicionados em sacos plásticos.
Há casos de presos mortos, alvejados por policiais, quando empreendiam
tentativa de fuga. A praxe de permitir ou tolerar que agentes públicos encarregados
de fazer cumprir a lei disparem contra presos quando todas as circunstâncias típicas
dessas ocorrências demonstram à exaustão a inexistência de risco ou ameaça à
vida de alguém , caracteriza frontal violação dos princípios da resolução 169/80 da
ONU, subscrita pelo Brasil, que introduziu no Direito Internacional o "Código de
Conduta para os Funcionários Encarregados de Fazer Cumprir a Lei". Por esse
instrumento jurídico, ainda hoje desconhecido por muitos dos próprios operadores
do direito, só há uma circunstância que pode legitimar o disparo de armas de fogo:
quando esta for uma necessidade incontornável para salvar a vida de alguém,
incluindo-se aí a do próprio agente que pode estar ameaçado. Atirar em presos,
normalmente desarmados e pelas costas, passou a ser no Brasil um ato da rotina e
expressão do "estrito cumprimento do dever legal". Em casos do tipo, inexistindo
ameaça iminente à vida do agente, a providência que se exige da guarda externa é
a captura. O emprego de balas de borracha, em cirunstâncias também especiais,
seria admissível nestes casos. Nossa tradição, entretanto, é outra. Urge alterá-la em
nome da tutela do bem maior: a proteção da vida, incluída, bem entendido, a do
preso que intenta a fuga.
Terminada a reunião, mantivemos contato telefônico com a Sra. Sandra
Dond, Secretária de Justiça do Estado, para solicitar a oportunidade de sermos
recebidos em audiência para tratarmos, particularmente, da situação do IPPS. Era
nossa intenção efetuarmos uma visita à instituição no dia seguinte. Sabedores da
crise
vivida
naquele
estabelecimento
penitenciário,
queríamos
combinar
procedimentos para a visita e estabelecer as condições adequadas de segurança
para tanto. De início, a sra. Sandra mostrou-se absolutamente contrária à idéia da
visita. Seu argumento básico era que as condições de segurança seriam
inexistentes, o que impediria nossa entrada. Na conversa mantida com o Deputado
Marcos Rolim, a Secretária acrescentou que as pessoas que estariam nos
acompanhando, particularmente o Padre Marcos, o Deputado João Alfredo e o Dr.
Deodato - por serem conhecidos dos presos - poderiam acrescentar elementos de
instabilidade à instituição. O Deputado Rolim ponderou, então, que, quanto à
112
segurança da comitiva, seria possível combinar procedimentos e que uma eventual
decisão do governo contrária à nossa visita seria comunicada à imprensa o que, por
certo e contra a nossa vontade, haveria de acrescentar elementos de instabilidade à
situação de crise. A Sra. Secretária afirmou, então, que examinaria nossa solicitação
e que, mais tarde, nos daria o retorno. Em contato posterior, a secretária confimou a
possibilidade da visita, ficando acertado que seríamos recebido no IPPS na manhã
do dia 29, às 10 horas.
O "DISTRITO MODELO"
Ainda na noite do dia 28, realizamos nossa primeira inspeção, visitando
de surpresa o II Distrito Policial, situado no coração da Aldeota, bairro privilegiado
de Fortaleza. Esse distrito localiza-se a cerca de 500 metros da Secretaria de
Segurança
Pública
do
Estado
do
Ceará,
à
qual
está
subordinado
administrativamente. No Distrito, nomeado pelo marketing político local de "Distrito
Modelo", há um prédio destacado dos demais onde situam-se três celas para
custódia de pessoas com prisão preventiva. Nas três celas estavam amontoados 28
presos. Alguns há vários meses. Um dos presos com quem nos entrevistamos,
Joubert Messias Santos Figuiredo, encontrava-se ali há exatos seis meses,
respondendo processo penal por tentativa de furto de um toca fitas (!). Antes de
descrever a situação dramática imposta àqueles seres humanos, jovens pobres
envolvidos, em geral, em delitos contra o patrimônio, é preciso descrever o local que
habitam: as celas são imundas. De tal forma que o odor fétido que exalam pode ser
sentido ainda no pátio interno do distrito policial. Todas elas são escuras e sem
ventilação. Ao alto, em uma das paredes, há uma pequena abertura gradeada com
não mais que 15 centímetros de largura. No chão, em meio à sujeira e ao lixo,
transitavam com desenvoltura dezenas de baratas. Nas paredes laterais das celas,
inscrições firmadas com o sangue dos seus autores nos oferecem a sugestão de
sofrimentos passados. Também nas paredes, outras mensagens gravadas com o
auxílio de cascas de banana complementam a sujeira toda. Ao alto, no teto desses
cárceres, centenas de pequenos aviõezinhos de papel, confeccionados pelos
internos, encontram-se grudados pelo "bico", como se ali se depositasse
simbolicamente uma compreensível vontade de "voar". A visão geral é deprimente.
113
Todos esses presos estão obrigados a dormir no chão, sobre a lage, sem
que lhes seja oferecido sequer um colchão ou uma manta. Disputam, assim, espaço
com os insetos. A nenhum deles é permitido que tenham acesso, mesmo que
restrito, a qualquer área aberta. Não tomam sol, não caminham nem se exercitam. A
longa permanência naquele lugar nojento lhes provoca crises nervosas, acessos de
choro e doenças as mais variadas, destacadamente as doenças de pele e as
bronco-pulmonares. Lhes assegura, também, uma coloração especial, algo assim
como um tom esmaecido entre o branco e o amarelo pelo que é possível lembrar,
alternadamente, as imagens de hepáticos que perambulassem ou de cadáveres que
insistissem em viver.
Se é possível imaginar, ainda, condições agravantes a essas, não seria
demais relatar que nenhum daqueles presos que sequer foram sentenciados - pelo
que presume-se, como o assegura a Constituição Federal, suas inocências recebem do Estado a alimentação que lhes é devida por lei. Repetimos: não
recebem qualquer alimentação do Estado. Sobrevivem às custas de parcos
mantimentos que lhes são entregues por familiares quando das visitas. Assim,
famílias miseráveis que já se deslocam com dificuldade ao Distrito, descobrem-se
na obrigação de evitar que seus filhos morram de inanição. Assinale-se que a maior
parte das pessoas detidas naquela pocilga não recebem visitas de familiares. Assim,
os mantimentos recebidos devem ser escrupulosamente divididos. Em muitos
momentos, os policiais que ali trabalham oferecem os restos de suas refeições aos
internos. Como se tudo isso não bastasse, os presos relataram com detalhes
procedimentos usuais de espancamentos e maus tratos oferecidos por dois
policiais. Entre essas iniciativas, encontra-se, por exemplo, o sofrimento imposto a
um dos internos a quem se fez algemar em uma das celas, na grade, por uma noite
inteira. Assim trata-se, "modelarmente", os presos no Ceará.
Por conta das circunstâncias descritas sumariamente aqui, o Deputado
Marcos Rolim, o Deputado João Alfredo, o representante da OAB, Dr. Deodato
Ramalho, o representante da Pastoral Carcerária, Padre Marcos, e a advogada
Roberta Lia Araújo, subscreveram representação ao Ministério Público Estadual,
protocolada na tarde do dia 29, na qual solicitam, com base no que dispõem os
Tratados Internacionais, a Lei de Execução Penal e a Lei contra a Tortura, que o
órgão fiscalizador da Lei determine a imediata interdição das celas do II Distrito
114
Policial de Fortaleza e que DENUNCIE OS RESPONSÁVEIS PELA MANUTENÇÃO
DAQUELES PRESOS PROVISÓRIOS NAS CIRCUNSTÂNCIAS DESCRITAS
COMO RESPONSÁVEIS PELA PRÁTICA DO CRIME DE TORTURA.
INSTITUTO PENAL PAULO SARASATE
- a visita que não houve
No dia 29 de agosto, pela manhã, conforme o combinado, estivemos no
Instituto Penal Paulo Sarazate. Fomos recebidos por integrantes da Polícia Militar e
encaminhados à sala da Guarda, situada logo à entrada do estabelecimento. Não foi
permitido o acesso da imprensa. Ninguém, em nome do Instituto Penal, nos
recebeu. Entramos em contato telefônico com o Sr. Bento Laurindo, coordenador do
Sistema Penitenciário do Ceará, que encontrava-se na sala da direção do IPPS.
Fomos informados que a direção do estabelecimento havia "selecionado" 20
apenados com quem poderíamos manter conversação. Afirmamos que não iríamos
conversar com presos escolhidos pela direção e que poderíamos indicar presos com
quem gostaríamos de manter entrevista. Em sucessivos contatos telefônicos,
iniciamos uma negociação em torno dos procedimentos a serem adotados tendo em
vista a argumentação sustentada pelo Sr. Bento Laurindo, de que não havia
condições de segurança para uma visita como a que desejávamos. Em certo
momento das tratativas, o Sr. Laurindo concordou que o Deputado Marcos Rolim e o
Padre Marcos subissem até a sala onde ele se encontrava; vetava, entretanto, a
presença do Deputado João Alfredo. Tal postura nos pareceu inaceitável. O
deputado João Alfredo é o presidente da Comissão de Direitos Humanos da AL/CE.
Não havia qualquer argumento relevante que fundamentasse tal exclusão. Além do
mais, nos era negada qualquer inspeção às instalações do IPPS e mantinha-se a
impossibilidade
de
qualquer
contato
com
a
massa
carcerária.
Avaliando
conjuntamente com as demais pessoas que integravam a comitiva, consideramos
que a posição sustentada pelo Sr. Bento Laurindo significava, concretamente, a
impossibilidade de uma inspeção séria. Assim, os Deputados integrantes da
Caravana e as entidades ali representadas tomamos a decisão de nos retirarmos do
estabelecimento, registrando nosso protesto junto aos órgãos de imprensa que
aguardavam na parte externa. Posteriormente, a versão produzida pelas
autoridades locais a respeito do que ocorreu construiu a fantasia de que os presos
115
planejavam um "sequestro" dos Deputados; as dificuldades impostas ao trabalho
parlamentar, então, teriam sido motivadas apenas pela preocupação com a nossa
segurança.
CADEIA PÚBLICA DE MARACANAÚ
- a liberdade é uma rua
Frustrada a visita ao IPPS, nos deslocamos ao município vizinho de
Maracanaú, para inspeção de sua Cadeia Pública. Trata-se de um pequeno
estabelecimento penal com apenas 5 celas. Sua lotação máxima, admitindo-se 4
presos por cela, seria de 20 internos. Na manhã em que lá estivemos, havia 74
presos encarcerados; uma media de 15 por cela (!) A cadeia não possui diretor.
Fomos recebidos pelo agente Francisco Eliano Ferreira da Silva, que prestou as
informações solicitadas e nos acompanhou à galeria.
Segundo o levantamento do próprio estabelecimento (algumas folhas de
papel com apontamentos a lápis), cerca de metade dos presos cumprem pena por
delitos contra o patrimônio. Encontramos três pessoas detidas com base no artigo
16 do Código Penal (consumo de drogas) e 15 com base no artigo 12 (tráfico de
drogas). Assim, praticamente ¼ dos presos dessa cadeia pública estão detidos por
suas relações com as drogas ilícitas. Examinando mais detidamente essas
situações, percebe-se aquilo que parece ser uma constante no sistema penitenciário
brasileiro: em nosso país, mandamos para a cadeia, na condição de traficantes,
alguns milhares de jovens pobres responsáveis pela venda de pequenas
quantidades de maconha ou cocaína. Em se tratando do crime de tráfico, esses
condenados são enquadrados na tristemente célebre "Lei dos Crimes Hediondos"
devendo cumprir suas penas integralmente no regime fechado. Perdem, assim, o
direito à progressão de regime e superlotam os presídios. Este tipo de prisão, por
óbvio,
não
oferece
qualquer
embaraço
aos
verdadeiros
traficantes
que,
imediatamente, substituem a "mão de obra" aprisionada. Nas periferias de qualquer
cidade brasileira, há milhares de jovens pobres "na fila", aguardando uma vaga
como prestadores de serviço nesse negócio - o mais lucrativo do mundo - cujos
donos não costumam frequentar a prisão.
116
Na cadeia pública de Maracanaú trabalham 3 policiais militares, um
agente penitenciário e dois vigilantes. Não há médicos ou dentistas, nem assistentes
sociais ou psicólogos. A cadeia não dispõe, também, de farmácia; logo, não há
remédios disponíveis. Entre os presos, entretanto, muitos estão doentes.
Encontramos casos de tubercolose e um dos detentos possuía hanseníase. Há,
pelo menos, um caso de doença mental entre os internos. Os presos recebem visita
de familiares duas vezes por semana e têm acesso a um pequeno pátio interno. Os
familiares são desnudados quando da revista. Os internos mantém relações sexuais
com suas mulheres quando das visitas organizando o acesso às celas em rodízio.
Não há no estabelecimento qualquer programa de prevenção a DST-AIDS e os
presos não recebem preservativos. A comida é ruim. Nenhum preso estuda, posto
que o estabelecimento não oferece aulas. Os que sabem ler não podem fazê-lo
porque não há biblioteca. Do total de internos, apenas 6 trabalhavam em serviços de
manutenção e na cozinha. O Juiz responsável pela execução penal, Geraldo Bizerra
de Souza, visita o estabelecimento duas ou três vezes ao ano. Segundo dispõe a
LEP, deveria fazê-lo pelo menos uma vez ao mês. A cadeia não oferece assessoria
jurídica aos presos e o único Defensor Público que aparecia por lá encontra-se de
licença. Os presos possuem um acesso restrito aos meios de comunicação, o que é
considerado uma "regalia". O entendimento permite que rádio ou TV sejam retirados
das celas como punição disciplinar. A correspondência dos presos é violada, em
flagrante atentado ao que dispõe a Constituição Brasileira. Estamos no sistema
prisonal brasileiro, um sistema "fora da lei". Os presos com quem conversamos
almejam acima de tudo a liberdade. Por enquanto, para eles, ela continuará sendo
apenas o nome da rua onde se situa a Cadeia de Maracanaú.
Ficha Técnica:
Cadeia Pública de Maracanaú - fone 371.3063
Rua da Liberdade s/n, Maracanaú - CE
Capacidade - 20 presos
Lotação- 74 presos
Revista íntima - Sim
117
Violação do sigilo de correspondência - Sim
Trabalho prisional - inexistente
Atenção à saúde - inexistente
Educação dos presos - inexistente
Assistência Jurídica - inexistente
Acesso ao pátio - sim, diariamente
Visitas - sim
Visita íntima - sim
Comida - ruim
Estrutura dupla de alimentação para funcionários - sim
Acesso aos meios de comunicação - restrito
Cela de isolamento - não
Denúncias de espancamento - não
Denúncias de corrupção - não
Armas no interior do presídio - não
INSTITUTO PENAL FEMININO
DESEMBARGADORA AURI MOURA COSTA
- Um labirinto em Fortaleza
À tardinha, após termos encaminhado representação ao Ministério
Público local por conta das condições da carceragem do Distrito Modelo e terminada
coletiva à imprensa na Assembléia Legislativa, onde alertamos sobre os riscos de
uma tragédia de maiores proporções no Intituto Penal Paulo Sarazate, nos dirigimos
ao Instituto Penal Feminino, onde fomos recebidos pela vice-diretora, Dra. Solange.
118
O estabelecimento é um prédio que impressiona por sua inadequação.
Antigo convento em Fortaleza, o prédio encontra-se em estado bastante precário. O
governo do estado está concluindo as obras do novo presídio feminino, que deverá
ser inaugurado até o final do ano. Por hora, as presas cearenses estão recolhidas
no Instituto Penal, que lembra a figura mitológica do labirinto. Aqui, entretanto, o
Minotauro não é uma figura imaginária, metade homem, metade fera. Ele parece
estar configurado nas próprias regras da administração e no arbítrio reinante.
Segundo a vice-diretora, o estabelecimento poderia receber uma lotação máxima de
50 detentas. No dia de nossa visita, não obstante, lá estavam 112 apenadas. A
maioria das presas estão reclusas em alojamentos - quartos grandes que fazem
lembrar uma enfermaria. As únicas celas existentes são aquelas usadas para
isolamento disciplinar ou por motivo de incompatibilidade ao convívio com a massa
carcerária. Essas celas de isolamento estão entre as piores que vimos em toda a
Caravana. São três pequenos cubículos escuros e úmidos aos quais se tem acesso
após uma serpentina de corredores e portas chaveadas. Em um deles, uma das
internas recolhidas nos mostrou a situação dramática do isolamento levantando o
colchão onde dormia por sobre uma espécie de estrado. Em baixo, havia um buraco
no concreto, uma verdadeira cloaca onde habitavam inúmeras baratas. As presas
nesse isolamento relataram que é norma da casa encaminhar diretamente ao
castigo as presas reincidentes. Assim, sem qualquer amparo legal, o Instituto
oferece às presas reincidentes uma condenação extra-judicial. Quando de nossa
visita, uma das detentas estava em isolamento precisamente por esse "motivo".
Descobrimos que os castigos disciplinares são impostos sem que haja o devido
processo legal, prática que foi sustentada perante os integrantes da Caravana pelo
agente penitenciário chefe da segurança do Instituto sem qualquer constrangimento.
Muitas das presas com quem nos entrevistamos acusam esse mesmo agente, um
antigo trabalhador do sistema, como o principal responsável pelos maus tratos que
recebem. Constatada a irregularidade do isolamento, cuja essência era apenas o
arbítrio, o Deputado Marcos Rolim solicitou à vice-diretora que determinasse a
imediata abertura das celas e o encaminhamento das detentas para seus
alojamentos de origem. Após consulta telefônica à diretora, a responsável assentiu
determinando o retorno de todas as presas em isolamento, menos uma cujo
convívio com a massa carcerária poderia colocar sua vida em risco.
119
O presídio pratica a revista com desnudamento, mas não viola a
correspondência das internas. Há duas professoras com turmas na Casa e há oferta
de telecurso para um grupo pequeno de internas. A comida servida é boa e todos —
internas, funcionários e integrantes da direção, servem-se dela. Cerca de 60% das
presas aqui foram condenadas com base no artigo 12 do Código Penal (tráfico de
drogas). O percentual de condenações por tráfico é a esmagadora maioria dos
casos de prisões de mulheres no Brasil. De todas as presas com quem
conversamos nesse instituto, entretanto, apenas uma delas havia "caído" com uma
quantidade significativa de droga ilícita. Algumas foram presas quando tentavam
levar pequenas quantidades de drogas aos seus maridos na prisão. Mas todas são
consideradas pela Lei brasileira como "traficantes". A ironia é que dentro desse
instituto penal, é bem possível que as usuárias de maconha, por exemplo, tenham
acesso a quantidades bem maiores da droga do que teriam se estivessem em
liberdade. Aqui, a droga é vendida por funcionários e fuma-se sem o risco de um
flagrante.
As presas recebem visitas e podem manter relacionamento sexual com
seus namorados e/ou companheiros. Nos alojamentos, invariavelmente limpos e
decorados, as detentas constróem os "Venustérios" , nome dado aos espaços
reservados - demarcados com lençóis e cobertores - onde se exercitarão na arte do
amor. De alguma forma, a humanidade se afirma ali em meio ao arbítrio e às
ameaças. Ela está presente em cada fita, em cada laço, nos espelhos, nas rendas,
nos batons, na vaidade daquelas mulheres, mães, amantes, prisioneiras.
As presas denunciaram que a direção da Casa não tolera as relações
homossexuais. Assim, por exemplo, uma detenta que tenha recebido um alvará de
soltura não poderá mais visitar uma eventual companheira que permaneça presa. A
interdição, obviamente, não possui base legal e só pode ser compreendida como
expressão de um preconceito bastante funcional à crueldade.
Ficha Técnica:
Instituto Penal Feminino Desembargadora Auri Moura Costa
Av. Sargento Hermírio S/N Fortaleza, CE
Diretora - Eloísa Ribeira
120
F: 281.2554
Capacidade - 50 presas
Lotação - 112 presas
Revista íntima - Sim
Violação do sigilo de correspondência — Não
Trabalho prisional - Precário
Atenção à saúde - Precária
Educação das presas - Precária
Assistência Jurídica - Precária
Acesso ao pátio - Sim
Visitas - Sim
Visita íntima - Sim
Comida - Boa
Estrutura dupla de alimentação para funcionários - Nâo
Acesso aos meios de comunicação - Sim
Cela de isolamento - Sim
Denúncias de espancamento - Sim
Denúncias de corrupção - Sim
Armas no interior do presídio - Não
II - PERNAMBUCO
Em Pernambuco, a Caravana contou, além dos Deputados Marcos Rolim
e Doutor Rosinha, com a presença do Deputado Federal Marcos de Jesus
(PSDB/PE). A comitiva foi completada com a presença dos Promotores de Justiça
Dr. Marco Aurélio Farias da Silva e Dra. Patrícia Carneiro, com a psicóloga Esther
121
Correia, as Assistentes Sociais Maria Conceição Delgado e Muirá Belém; com o
Deputado Estadual João Paulo (PT); com os integrantes da Pastoral Carcerária
Lenílson Batista Freitas, Padre Marcos J. de Lima, Luiz Gonzaga, Dra. Renê Patriota
e Arnaldo Martins de Miramoa; do integrante do Gajop, Jayme Benvenuto Lima Jr.;
de Shella Carneiro de Souza, da Comissão de Familiares de Presos; de Marileide
Araújo Sena, da Comissão de Defesa da Cidadania da AL/PE; de Erivam Araújo, da
Comissão Penitenciária de Pernambuco; de Andréa Pessoa, da Assessoria do
Deputado João Paulo; e de Janaína Negreiros, da Assessoria de Imprensa do
Ministério Público do Estado; além de inúmeros jornalistas da imprensa de
Pernambuco.
PRESÍDIO PROFESSOR BARRETO CAMPELO
- reclusão em convivência
Nossa primeira visita em Pernambuco deu-se na ilha de Itamaracá,
vizinha de Recife. Quando da Primeira Caravana Nacional de Direitos Humanos, em
junho, estivemos nessa cidade visitando o Manicômio Judiciário do Estado, um dos
piores do país. A expectativa que tínhamos, então, era a de encontrar um presídio
em péssimas condições. Em que pesem os graves problemas enfrentados,
entretanto, o estabelecimento apresenta algumas características que permitem que
as condições gerais de execução penal sejam ao menos suportáveis. Fomos
recebidos pelo Vice-diretor, senhor Alexandre Ferraz, que respondeu a todas as
perguntas da comitiva e assegurou que a inspeção se realizasse sem qualquer
constrangimento.
O presídio encontra-se superlotado. Sua capacidade máxima é de 370
internos. A lotação quando da visita, porém, alcançava 1.032 presos. A média é de 9
presos por cela, o que, além do sofrimento, proporciona um próspero mercado de
compra de camas. Por R$ 100,00 um detento pode comprar um lugar mais
adequado para dormir. Estas condições de celas superlotadas, entretanto, é
amenizada pela determinação da direção do presídio em permitir que todos os
presos convivam durante o dia nos pátios internos. Por uma medida de bom senso,
assegurou-se no Barreto Campelo uma condição muito rara de convivência entre os
presos. O acesso às cantinas que existem no estabelecimento - administradas
sempre por um preso que paga uma taxa de R$ 60,00 à administração - mais as
122
possibilidades, ainda que restritas, de esporte e permanência às quartas e domingos
com os familiares, fazem do Barreto Campelo um lugar mais humano do que a
média dos presídios brasileiros.
Logo na entrada, uma primeira boa surpresa: o presídio não realiza
revista íntima sobre os familiares. Todos são obrigados a passar por um detector de
metais que funciona bastante bem. Assim, preserva-se a segurança do
estabelecimento sem submeter os familiares à humilhação do desnudamento. De
todos os presídios visitados pela Caravana, esse foi o único a não adotar o
desnudamento das visitas como praxe de revista.
As instalações são precárias e apresentam problemas graves de higiene.
No lugar onde a comida é servida aos presos, há vazamentos no esgoto, o que
oferece riscos à saúde de todos. Lixo acumulado no lado externo do edifício exala
mal cheiro e reúne grande quantidade de insetos. A chamada enfermaria é uma sala
onde ficam alojados os doentes., a maioria deles com tuberculose. O local é
inadequado, as paredes são de pintura simples, desgastada, o que impossibilita a
boa higiene. A parte hidráulica é precária. Os presos relatam dificuldades
extraordinárias para atendimento médico e reclamam da falta de medicamentos. Há
uma farmácia cujo estoque, conforme certificou o Deputado e médico Dr. Rosinha, é
precário. Não há programa de prevenção a DST-AIDS e os presos não recebem
preservativos. Os soropositivos, entretanto, recebem medicação adequada. Do total
de internos, 183 trabalham em serviços de manutenção e cozinha, percebendo R$
90,00 por mês. Não há oficinas de profissionalização, nem convênios com a
iniciativa privada para trabalho prisional. Há aulas regulares no presídio mas apenas
53 presos estudam, o que perfaz pouco mais de 5% do total; 82% dos internos são
analfabetos. Numa situação assim, percebe-se o quanto seria adequado que os
Juízes concedessem remição por dias de estudo. O presídio conta com os serviços
de l médico e 1 dentista, ambos com 20h semanais. Dispõe, ainda, dos serviços de
uma terapeuta ocupacional e de uma enfermeira. A comida é de baixa qualidade e o
estabelecimento não dispõe de nutricionista. O presídio oferece assessoria jurídica
aos presos com 3 advogados que, entretanto, não dão conta da demanda em
função da superlotação. Os juízes de execução, Dr. Cícero Bitencourt e Adeíldo
Nunes, tanto quanto os promotores Paulo la Pedra e Marco Aurélio, visitam
regularmente o estabelecimento. O estado de Pernambuco, por uma portaria do
123
Poder Judiciário, estabeleceu pioneiramente o direito de visitas homossexuais nos
presídios. No Bruno Barreto há um pavilhão para ospresos homossexuais. Ali
convivem em uma comunidade e recebem suas visitas. Os funcionários - 74 ao todo
- são agentes penitenciários. Oitenta por cento deles possuem formação superior e
seu salário médio fica em torno de 650,00. Admite-se que os agentes portem armas
dentro do presídio. Os presos têm acesso aos meios de comunicação e não se
admite puni-los subtraindo esse direito. Não há mecanismos de representação
prisional formais. Os "chaveiros" - presos que portam chaves e auxiliam na
administração - fazem o "meio de campo" entre a direção e a massa carcerária. Os
detentos queixaram-se, basicamente, da falta de assistência jurídica. Há, ao que
tudo indica, casos de violência. Presos queixaram-se de que um outro interno - expolicial - estaria acostumado a bater em internos impunemente. Afirmaram, também,
que alguns detentos tiveram seu cabelo raspado à força à guiza de punição
disciplinar. A própria direção informou que há um caso grave de violência perpetrada
por agente contra preso, que encontra-se em investigação. Encontramos um preso Ivanildo Clementino de Oliveira - que é portador de sério problema de saúde mental.
Ele estava em uma cela de isolamento na companhia de outros três detentos.
Um censo penitenciário realizado no Presídio em 1998 nos oferece um
conjunto de dados que, muito provavelmente, traçam um perfil aproximado da
realidade carcerária atual no Barreto Campelo. Segundo aquele censo, para um
total de 978 presos, existirtiam 23,1% de condenados por tráfico; 39,8%
condenados por homicídio; 15, 8% condenados por furto; 40,7% condenados por
roubo e 7,8% condenados por estupro. As penas acima de 20 anos alcançariam
33% dos presos; entre 13 e 20 anos, 25,6%; entre 09 e 13 anos, 13,5%; de 5 a 8
anos, 17,6%; de 2 a 5 anos, 9,5% do total; sendo 0,2% o percentual de presos
provisórios. 40,3% dos presos eram brancos; 8,5% negros e 51,2% mestiços. Os
reincidentes perfaziam 25,4% contra 74,6% de presos primários. Quanto à
progressão de regime, 72,7% deles jamais haviam obtido esse direito e 93% nunca
obtivram livramento condicional. Os analfabetos perfaziam 36,5% do total. 52% não
haviam completado o primeiro grau; 7,6% tinham o primeiro grau completo; 2,1% o
segundo grau incompleto; 1,4% o segundo grau completo e apenas 0,4% dos
presos possuiam formação superior.
124
O presídio costumava, quando de nossa visita, violar o sigilo de
correspondência dos apenados. Por solicitação do Deputado Marcos Rolim, o Sr.
Promotor Marco Aurélio Farias da Silva, ainda no interior do Presídio, determinou ao
sr. Vice Diretor que sustasse esse procedimento imediatamente.
Aqui, como em todos os presídios que visitamos, a miséria confunde-se
com a delinqüência. Há exemplos impressionantes que o confirmam de maneira
eloqüente: Genílson Lima da Silva tem apenas 20 anos. Foi condenado, por conta
de um assalto, a 4 anos de prisão em regime semi-aberto. Já cumpriu quase a
metade da pena em regime fechado e poderia alcançar sua liberdade se tivesse um
advogado. Genílson, no entanto, deseja ser transferido para a penitenciária agrícola
porque lá terá certamente trabalho e com o que deverá receber do sistema poderá
ajudar sua família. "Se eu for solto, diz ele, não vou arrumar emprego e aí, como é
que vou viver?"
Ficha Técnica:
Presídio Professor Barreto Campelo
Itamaracá, Pernambuco
Rua Engenho Macaxeira s/n Ilha de Itamaracá
F: 548.0326
Diretor - Cel. Elias Augusto Siqueira
Capacidade - 370 presos
Lotação - 1.032 presos
Revista Íntima - Não
Violação do sigilo da correspondência - Sim
Trabalho prisional - precário
Atenção à saúde - precária
Educação dos presos - precária
125
Assistência Jurídica - precária
Acesso ao pátio - sim
Visitas - sim
Visitas íntimas - sim
Comida - ruim
Estrutura dupla de alimentação de funcionários - sim
Acesso aos meios de comunicação - sim
Celas de isolamento - sim
Denúncias de espancamento - sim
Denúncias de corrupção - não
Armas no interior do presídio - sim
PRESÍDIO PROFESSOR ANÍBAL BRUNO
- violência e arbítrio
Um dos piores presídios do país, atualmente, o Aníbal Bruno, de Recife,
talvez seja um dos recordistas mundiais em superlotação. Para uma capacidade de
524 presos, o estabelecimento contava com 2.988 internos no dia 30 de agosto,
quando de nossa visita, ou seja: quase 6 vezes a sua lotação máxima. Fomos
recebidos pelo Oficial da PM Evandro Carvalho Moura e Silva, diretor do
estabelecimento. O presídio conta com uma estrutura administrativa caótica, com
policiais militares e agentes penitenciários dividindo funções no contato diário com
os presos. Pelo que pudemos perceber, cabe aos PMs que trabalham dentro do
estabelecimento a manutenção da disciplina, o que é feito com uma dose de
violência absolutamente despropositada e com uma série de castigos arbitrários e
ilegais. Em uma cela de castigo havia 28 presos "isolados" por infração disciplinar. A
Caravana solicitou ao diretor do estabelecimento a oportunidade de se entrevistar
reservadamente com esses presos. Essa providência é a única capaz de garantir
que os presos falem abertamente sem quaisquer constrangimentos. A entrevista nos
126
foi negada peremptoriamente. Mesmo assim, 14 dos presos amontoados nessa cela
falaram abertamente dos motivos irrelevantes pelos quais foram encaminhados ao
castigo, tudo isso na presença do diretor e de vários PMs fortemente armados. Um
dos presos nessa cela estava há 76 dias em isolamento, o que é simplesmente
inadmissível.
O presídio possui histórico de motins e fugas. Quando os presos chegam
ao presídio são encaminhados a uma cela de triagem e ali permanecem por uma
média de 8 dias. Muitos relataram casos de espancamento nesse período. Há
também casos de morte violenta em seu interior. Nem seria de se esperar coisa
diversa. Na cela de segurança número 4, Luciano Batista Silva - o "Biba"- foi
"isolado" juntamente com 7 outros presos há pouco mais de um mês. Nesse espaço
minúsculo, escuro e sem ventilação, os presos são apartados dos demais, sendo
obrigados a conviver com as ratazanas e a defecar em um saco plástico posto que
não há instalações sanitárias. Luciano já havia sido ferido à faca por um outro preso,
conhecido como "Pé de Burro". Ocorre que "Pé de Burro" foi também encaminhado
para isolamento e alojado na mesma cela que Luciano. "Pé de Burro" foi
assassinado na mesma noite. Os responsáveis pela decisão de colocar em uma
cela de isolamento dois presos com uma ocorrência recente de agressão por certo
desejavam o desfecho e, objetivamente, concorreram para ele. Encontramos outro
preso, de nome Eronildes Ferreira da Silva, paciente psiquiátrico que, por conta de
sua incapacidade mental, transformou-se em alvo fácil para os presos que o
curraram várias vezes. Muitos presos estão doentes — HIV, tuberculose, osteomilite
,etc.. sem atendimento médico. Geralmente são os próprios presos que dispensam
cuidados de saúde aos mais debilitados.
Trabalham no presídio 17 agentes penitenciários e 34 policiais militares.
Outros 33 PMs fazem a guarda externa. Há, ainda, 4 auxiliares de enfermagem, 1
enfermeiro, 2 médicos, 1 dentista, 2 psicólogos, 2 assistentes sociais e 1 agente
administrativo.
As
carências
funcionais
são
absolutamente
evidentes.
O
estabelecimento realiza revista íntima. As visitações ocorrem as quartas feiras, aos
domingos, havendo a possibilidade de pernoite a cada 15 dias para os presos
habilitados. Trezentos e dezesseis presos trabalham recebendo pouco menos que
um salário mínimo mensal. O presídio mantém aulas para 140 presos. Há programa
de prevenção para DST-AIDS e os presos recebem preservativos. A Assessoria
127
Jurídica é precariamente realizada por 4 advogados. Há várias denúncias de
espancamentos. As correspondências dos internos são sistematicamente violadas.
Os PMs transitam pelo estabelecimento fortemente armados.
Ao final da inspeção, de volta à sala do diretor, o Deputado Marcos Rolim
inquiriu o diretor sobre os procedimentos utilizados para as punições disciplinares.
Em sua resposta, o diretor assumiu que naquele presídio, o Conselho Disciplinar "só
existe no papel". Dito de outra forma, o diretor confessou que todas as punições ali
vigentes são ilegais. Diante disso, o Promotor Marco Aurélio determinou que o
diretor revogasse imediatamente todas as punições disciplinares impostas
arbitrariamente aos presos, anunciando que iria lhe oficiar na manhã seguinte. Da
mesma maneira, determinou que a correspondência dos apenados parasse de ser
violada.
Ficha Técnica:
Presídio Professor Aníbal Bruno
Recife, Pernambuco
Avenida Liberdade s/n
F - 215.0552 e 455.6959
Diretor - Evandro Carvalho Moura e Silva
Capacidade - 524 presos
Lotação - 2.988 presos
Revista íntima - sim
Violação do sigilo de correspondência - sim
Trabalho prisional - precário
Atenção à saúde - precária
Educação dos presos - precária
Assistência jurídica - precária
128
Visitas - sim
Visita íntima - sim
Comida - ruim
Estrutura dupla para alimentação dos funcionários - sim
Acesso aos meios de comunicação - sim
celas de isolamento - sim
Denúncias de espancamento - sim
Denúncias de corrupção - não
Armas no interior do presídio - sim
III - RIO DE JANEIRO
Chegamos ao Rio de Janeiro na noite de 30 de agosto. As visitas
começaram na manhã seguinte. Participaram da Caravana, além dos Deputados
Marcos Rolim e Dr. Rosinha, e da Assessoria da CDH, o Deputado Fernando
Gabeira (PV), o Padre Bruno Trombeta, da Pastoral Carcerária, as Promotoras de
Justiça Lauizelane Ribeiro Godinho, Rita de Cássia Araújo Faria, Márcia Vieira
Piatgorsky e Ana Cíntia Lazary Serour; a Procuradora de Justiça Ligia Porter
Santos, a médica legista Tânia Donati Paes Rios e Renato Pinos, fotógrafo do
Ministério Público do RJ.
BANGU - I
- presídio de "ociosidade máxima"
A Penitenciária Laércio da Costa Pellegrino, mais conhecida como
"Bangu I", é um estabelecimento de segurança máxima do complexo penitenciário
de Bangu, no Rio. Trata-se de um presídio pequeno, para 48 presos, dividido em 4
galerias, cada uma com 12 celas individuais. O critério empregado para a divisão
dos presos nessas galerias é o mesmo do conjunto das cadeias brasileiras: o
pertencimento a grupos de afinidade ou quadrilhas organizadas. Em Bangu I, as
galerias abrigam condenados vinculados ao "Comando Vermelho", "Terceiro
129
Comando" , "Amigos dos Amigos" e "Independentes". Concebido para receber os
presos mais perigosos do estado, Bangu I recolhe hoje, na verdade, alguns dos
mais famosos chefes do tráfico de drogas dos morros cariocas como "Marcinho VP",
"Marcinho Nepomuceno", "Uê", "Dênis da Rocinha", entre outros. Pelas suas
características especiais, Bangu I não encontra-se superlotado. O estabelecimento
não possui histórico de fugas ou motins. Trata-se de uma instituição calma. Calma
demais. Os presos permanecem todo o tempo contidos dentro de suas galerias
recebendo, em regra, apenas uma hora de sol por semana. A exceção de 4 internos
que realizam serviços de faxina, nenhum dos demais presos trabalha ou estuda.
Segundo podemos constatar, não se lhes oferece trabalho ou estudo porque se
imagina que isto possa representar riscos à segurança. Conversamos com vários
presos e a reclamação maior delas envolve, precisamente, a ociosidade a qual
estão obrigados. Um deles, que fala vários idiomas, nos relatou que já há meses
vem solicitando à direção da casa um quadro negro e giz para que possa dar aulas
aos seus colegas de galeria. Inquirida a respeito, a diretora nos respondeu que a
solicitação estava sendo examinada de acordo com as "preocupações com a
segurança". Faz-se revista íntima nos familiares; crianças e adolescentes também
são desnudados quando da entrada no estabelecimento. No presídio de segurança
máxima do Rio não se usa detectores de metal. As correspondências dos presos
são violadas. O atendimento à saúde é precário e depende de requisição de médico
junto ao sistema. Há cerca de 3 anos, uma visitante faleceu dentro do presídio, sem
que tivesse a chance de socorro médico. Nos últimos 12 meses, há registro de uma
morte de preso, por enforcamento. Os presos recebem visitas semanalmente e
podem privar com suas companheiras nas celas. Quando o estabelecimento dispõe,
oferece aos internos preservativos. Não há regras disciplinares impressas a que os
internos tenham acesso: as visitas também não recebem uma cartilha onde estejam
fixadas regras e procedimentos. Nosso acesso aos presos foi limitado. Tivemos
apenas condições de conversar com alguns deles na grade que dá acesso às
galerias. Um dos presos, Marcinho VP, expressou o sentimento de todos os demais
dizendo: "Uma semana tem 168 horas. Ficamos 167 delas aqui dentro da galeria. É
assim que pretendem nos recuperar?"
Fomos recebidos em Bangu I pela agente que então ocupava o posto de
Diretora da Penitenciária, Sidnéia de Jesus. Ela nos relatou o caso de uma
130
funcionária que, há alguns anos, havia sido assassinada na rua em circunstâncias
que lhe pareciam caracterizar um crime "de encomenda". Quatro dias depois,
quando a Caravana encontrava-se já em Porto Alegre, recebemos a notícia de seu
assassinato. Sidnéia foi fuzilada na porta de sua casa em um crime "de
encomenda".
Ficha Técnica:
Penitenciária Laércio da Costa Pellegrino - Bangu I
Complexo Penitenciário de Bangu, RJ
Fones - 3995810 / 3326456
Capacidade - 48 presos
Lotação - 48 presos
Revista Íntima - Sim
Violação do sigilo da correspondência - Sim
Trabalho prisional - Inexistente
Atenção à saúde - Precária
Educação dos presos - Inexistente
Assistência jurídica — Todos os presos possuem advogado particular
Acesso ao pátio - 1 hora por semana
Visitas - Sim
Visita Íntima - Sim
Comida - Boa
Estrutura dupla de alimentação para funcionários - Sim
Acesso aos meios de Comunicação - Sim
Cela de isolamento - Não
131
Denúncias de espancamento - Não
Denúncias de corrupção - Não
Armas no interior do presídio - Não
PRESÍDIO ARI FRANCO
- a porta do inferno
No bairro de Água Santa, visitamos o presídio que é a porta de entrada
do sistema penitenciário do Rio, o Ari Franco. O que nos chamou a atenção,
inicialmente, foi a arquitetura totalmente inadequada do prédio, marcada por
corredores e escadas que se multiplicam de forma indescritível. O presídio
encontrava-se superlotado, com uma média de 16 presos por cela. Não se sabe,
exatamente, qual a capacidade do estabelecimento que abrigava no dia de nossa
visita 1.030 internos. Trabalham no local 89 agentes e 12 técnicos. A grande maioria
dos presos está condenada a penas entre 4 e 8 anos. Aparentemente, as
condenações com base no artigo 12 são as mais frequentes. Encontramos,
também, presos com prisão provisória. As celas lembram jaulas de um zoológico e
são atravessadas por uma rede de fios e cordas através das quais os presos se
comunicam por bilhetes. O sistema de comunicação por essa complexa e
engenhosa rede de fios é conhecido como "Internet". A queixa mais frequente é a
ausência de assistência jurídica. Os presos, rigorosamente, desconhecem sua
situação jurídica. Aqui, como em todos os estabelecimentos prisionais brasileiros,
percebe-se que a faixa etária da massa carcerária é muito baixa. No Ari Franco, os
presos ficam, em média, 2 a 4 meses. São, então, encaminhados a outros presídios.
Durante o seu período de permanência lá não possuem o direito de visitas íntimas
ou conjugais por inexistência de espaço. Contornam essa dificuldade, entretanto,
revezando-se na área coberta, nos dias de visita, para a ocupação rápida de um
pequeno banheiro onde transam de pé com suas companheiras. Chamam esse
sistema de "ratão". As visitas, mulheres e crianças, são desnudadas quando da
revista. O Ari Franco não dispõe de detector de metal. Aqui ninguém estuda e, do
total de presos, há 140 que trabalham na faxina. Segundo relato do diretor, não há a
prática de isolamento disciplinar, nem cela para tanto. As correspondências não são
violadas. Recolhemos inúmeras denúncias de presos a respeito de um espaço
132
conhecido como "Maracanã" - uma sala grande, sem janelas, com um buraco usado
como sanitário ("boi") - onde seria comum a prática de espancamentos. Essa sala é
utilizada, segundo o diretor, para triagem. Em uma das celas, os presos relataram
que a TV que possuíam havia sido retirada do grupo em represália ao fato de ter
sido encontrada uma pequena quantidade de maconha sob um dos colchões. O fato
constitui sanção coletiva o que é vedado explicitamente pela LEP. O deputado
Fernando Gabeira solicitou ao diretor que determinasse o retorno do aparelho à cela
uma vez que não se poderia punir todos os seus integrantes pelo fato cuja autoria
não havia sido identificada. O diretor consentiu. O fato tornou evidente um método
arbitrário de punições disciplinares que parece imperar ali.
Ficha Técnica:
Presídio Ari Franco
Rua Violeta, 15 - Ágra Santa , RJ
Diretor - Dilson Valente
F - 596 9328
Capacidade Lotação - 1.030
Revista Íntima - Sim
Violação sigilo correspondência - Não
Trabalho prisional - Precário
Atenção à saúde - Inexistente
Educação dos presos - Inexistente
Assistência Jurídica - Inexistente
Acesso ao pátio - Não há pátio.
Visitas - Sim
Visita íntima - Não
133
Comida — nâo foi possível constatar sua qualidade
Estrutura dupla para alimentação de funcionários - Não
Acesso aos meios de comunicação - Sim
Cela de isolamento - Não
Denúncias de espancamento - Sim
Armas no interior do presídio - Não
PRESÍDIO EVARISTO DE MORAES
- das pessoas, dos ratos e dos pombos
Imaginem um enorme ginásio, velho e abandonado. Um espaço grande
mesmo que pudesse servir como garagem para caminhões, com um pé direito de
mais de 20 metros e uma cobertura em telhas de Brasilit. Imagine, agora, que nesse
espaço se resolveu construir um "presídio" e que ali foram encarcerados 1.500
pessoas, cuja média de idade é 20 anos. Faça um novo esforço e imagine que as
"celas" não possuem teto uma vez que as suas paredes possuem dois metros de
altura e a cobertura efetiva é a do próprio ginásio. Agora, povoem a cobertura do
ginásio com centenas de pombos que defecam 24 horas por dia na cabeça dos
presos. Por decorrência, imaginem que esses presos tenham erguido com ao panos
que dispõe - trapos, lençóis velhos, mantas puídas - uma proteção contra essa
chuva de merda, de forma que suas celas lembrem tendas miseráveis enegrecidas
pelos dejetos que aparam. Muito bem, você está entrando no Presídio Evaristo de
Moraes no Rio.
Aqui as celas abrigam uma média de 52 presos. No dia de nossa visita
eram 1.552 pessoas nesses alojamentos fétidos e insalubres. Segundo os números
que nos foram apresentados pelo diretor, o estabelecimento teria ainda vagas a
oferecer ao sistema.
Fossem só os pombos, mas há os ratos. Muitos. Os presos nos relataram
um caso de morte recente por leptospirose. O diretor afirmou que desconhecia o
caso. O Deputado Dr. Rosinha solicitou, então, acesso às fichas clínicas dos presos
e à documentação legal daqueles que haviam falecido. Comprovou, então, o caso
134
relatado pelos presos. Mais: descobriu que outro preso, com sintomas compatíveis
com a leptospirose, aguardava por internação hospitalar já há vários dias solicitada
com urgência pelo médico que o havia atendido. Segundo o diretor, não havia
viatura para remover o preso. Constatado o problema pela Caravana, a viatura
"apareceu" e o preso foi internado. No Evaristo de Moraes, há várias celas de
isolamento utilizadas tanto para punição disciplinar quanto para a separação de
presos com incompatibilidade de convívio com a massa carcerária. Essas celas, as
únicas com teto, são cubículos escuros e sem aeração, com 6 metros quadrados
mais um pequeno espaço onde funciona o "boi". Aí dentro, chegamos a encontrar
16 presos. (!) Um deles dormia sobre a água que inundava o "banheiro". O calor ali
dentro e o cheiro - que de tão forte impregna a roupa - tornam a permanência
naquelas celas, ainda que por alguns minutos, um sofrimento. Nessa mesma ala do
isolamento, encontramos o preso Cláudio dos Santos, que havia sido espancado por
um agente penitenciário. Seu rosto estava, ainda, marcado por vários hematomas e,
em suas costas, eram bem nítidas as marcas de ferimentos produzidos com algum
tipo de fio. A água servida aos presos é turva. Seus familiares são desnudados
quando da revista e apenas 126 do total de internos possuem o direito de
receberem suas companheiras em visita íntima. O presídio conta com 7 quartos
utilizados especificamente para esse fim. O diretor argumenta que o número
reduzido de presos com acesso à visita íntima deve-se ao fato de a casa não dispor
de mais espaços. Perguntado sobre as razões pelas quais não organiza, então, um
rodízio dos presos aos quartos, de tal forma que mais internos pudessem privar com
suas companheiras, não ofereceu qualquer resposta compreensível. Os presos, por
seu turno, oferecem uma explicação: segundo inúmeros relatos, têm acesso à visita
íntima os presos que pagam por isso. Aliás, segundo eles, tudo no Evaristo de
Moraes é pago. Coversando com presos alojados em espaços diferentes, checamos
os preços da "tabela" em vigor no estabelecimento: visita íntima — R$ 100,00; troca
de cela — R$ 30,00; exame criminológico — R$ 50,00; informações do computador
sobre a execução penal — R$ 10,00; saída ao pátio para jogar futebol — R$ 10,00,
etc... Há uma cela específica onde estão alojados os presos homossexuais. Eles
relatam que, à noite, são visitados e, muitas vezes, obrigados por outros presos a
lhes prestar favores sexuais; se resistem, são currados e feridos por pontaços de
estoque. Assinale-se que 15% dos presos no Evaristo de Moraes são portadores do
vírus HIV. Em verdade, para além do drama vivido pelos presos homossexuais, a
135
integridade física dos presos não é assegurada no estabelecimento e nem será.
Segundo nos foi relatado pelos presos, é comum que policiais militares
encarregados da guarda externa efetuem disparos contra as galerias. Os detentos
nos passaram cartuchos que o confirmam.
De tudo o que pudemos ver e ouvir, há apenas um fato positivo: O
presídio mantém aulas regulares - com 12 salas - onde estão matriculados mais de
600 internos. Fora isto, o estabelecimento é, sem qualquer dúvida, um dos piores do
mundo.
Ficha Técnica:
Presídio Evaristo de Moraes
Rua Bartolomeu de Gusmão, 1100, Rio de Janeiro
569.5744
Diretor- Manoel Pedro da Silva
Capacidade
- 1.650
( esse
número,
absolutamente irreal)
Lotação - 1.552
Revista íntima - Sim
Violação do sigilo de correspondência - Não
Trabalho prisional - Precário
Educação dos presos - Boa
Atenção à saúde - Precária
Assistência jurídica - Inexistente
Acesso ao pátio - Restrito
Visitas - Sim
Visita íntima - Restrita
oferecido
pelo
diretor,
é
136
Comida - Ruim
Estrutura dupla de alimentação para funcionários - Sim
Acesso aos meios de comunicação - Restrito
Cela de isolamento - Sim
Denúncias de espancamento - Sim
Denúncias de corrupção - Sim
Armas no interior do presídio - Não
IV - SÃO PAULO
Em São Paulo, a Caravana contou com a participação, além dos
Deputados Marcos Rolim, Dr. Rosinha e suas Assessorias, com o Dr. Carlos
Cardoso de Oliveira Júnior, Promotor de Justiça e Assessor de Direitos Humanos do
Ministério Público Estadual; com o Promotor de Justiça Criminal da Capital Dr.
Gabriel Cesar Zaccaria de Inellas; o Dr. Airton Grazzioli, Promotor de Justiça da
Promotoria de Justiça e Execuções Criminais da Capital; o Padre Gunther Zgubic e
Daniela Cecília Silva, ambos da Pastoral Carcerária, com Francisco Carvalho do
Movimento Nacional de Direitos Humanos; com Isabel Peres da ACAT-Brasil e com
Ariel de Castro Alves, da ONG Justiça Global.
A Idade Média em São Paulo. Iniciamos o trabalho em São Paulo na
manhã do dia 02 de setembro, sábado, com uma inspeção na Delegacia
especializada no combate aos crimes contra o patrimônio na capital, a Depatri. Lá, o
Delegado de Plantão, Antônio Álvaro Sá de Toledo, ao nos acompanhar à
carceragem da delegacia afirmou: -"vocês irão conhecer uma masmorra medieval".
De fato. Naquela manhã, havia quase 200 pessoas detidas na delegacia. O número
exato não pôde ser apurado. Aqui há dois carcereiros por turno e as visitas dos
familiares ocorrem às quintas-feiras, em horários escalonados. Os presos não
possuem direito à visita íntima. Naturalmente, não há oportunidades de trabalho ou
estudo aos internos. Os presos não dispõem de assistência médica; não há
remédios disponíveis, sequer para os soropositivos. Como não há pátio na Depatri,
os presos não possuem qualquer atividade externa, nem têm acesso a banho de
137
sol. Os presos têm acesso aos meios de comunicação. As celas da carceragem são
escuras e sem ventilação. Em um espaço em torno de 25 metros quadrados, cada
uma delas abriga em torno de 50 presos (!) No dia em que visitamos a Depatri, fazia
frio em São Paulo. No calabouço, entretanto, fazia calor; muito calor. Nessa
Delegacia, as dificuldades vividas pelos presos conformam um próspero mercado
para os policiais corruptos, acostumados a cobrar dos internos R$ 10,.00 para a
compra de uma lâmpada; R$ 10,00 a R$ 20,00 por um telefonema ou R$ 40,00 por
um chuveiro, por exemplo.
Ocorrências de abuso de autoridade e práticas de espancamento de
presos parecem ser bastante comuns. Colhemos inúmeros relatos que descreveram
com detalhes cenas de violência e tortura, inclusive com o emprego de choques
elétricos. Por esses relatos, os presos indicaram uma sala, na parte térrea da
delegacia, onde alguns deles teriam sido torturados. Nos indicaram que a máquina
utilizadas para o suplício dos choques elétricos, aplicada normalmente sobre os
testículos das vítimas - prática que se faria acompanhar de frases como "isso é para
você não botar mais bicho ruim no mundo" - estaria na sala indicada dentro de um
armário.
De posse dessas informações, solicitamos ao Delegado de plantão que
nos fosse franqueado o acesso à referida sala. Fomos informados de que isto não
seria possível pois as chaves encontravam-se com outro Delegado. Solicitamos,
então, que o referido delegado titular fosse localizado e convocado a se fazer
presente para a abertura da sala. Aguardamos por quase duas horas a chegada do
Delegado que, finalmente, abriu a sala. Dentro dela, havia vários armários. Todos
fechados com cadeados. Solicitamos, então, que os armários fossem abertos.
Fomos informados de que isso seria impossível pois as chaves estariam com cada
um dos "donos" dos armários, policiais de folga ao final de semana. O espaço
público de uma Delegacia de Polícia, assim, é tratado como se fosse de domínio
privado. Na ausência de um mandado de busca e apreensão não havia mais o que
fazer. De qualquer modo, durante o longo período de espera, descobrimos uma
outra sala - também no andar térreo - onde há uma pequena cela, utilizada,
segundo as autoridades policiais presentes, para triagem de presos. Na porta, há
um cartaz onde se proíbe terminantemente a presença de familiares ou de visitas
aos encarcerados nesse espaço, o que sugere uma permanência maior do que a
138
requerida para uma "triagem". No interior da pequena cela, gradeada e recoberta
por uma tela, encontramos uma cadeira estofada e duas câmaras de pneus. A
presença desses objetos, absolutamente injustificáveis naquele espaço, nos
chamou a atenção. Em uma sala próxima, encontramos outros objetos estranhos e
de nenhuma serventia para a investigação policial como várias cordas e uma forca.
PENITENCIÁRIA DO ESTADO
- a disciplina como sujeição
Na tarde de sábado, visitamos, no complexo do Carandiru, a
Penitenciária do Estado. O prédio, antigo e imponente, foi delineado a partir de um
projeto arquitetônico concebido com gosto, requinte e funcionalidade. A área do
estabelecimento comporta não apenas as galerias e pequenos pátios internos, mas
um campo de futebol de dimensões oficiais, espaços significativos para oficinas
profissionalizantes, além de boas áreas de circulação. A penitenciária encontra-se
superlotada. Para uma lotação máxima de 1.250 presos, estava quando de nossa
visita com 2.400 internos. Neste estabelecimento, trabalham 480 funcionários, entre
agentes penitenciários e técnicos. A maioria das condenações aqui é por crimes
cometidos contra o patrimônio. As visitas ocorrem aos domingos, entre as 7h30 e às
15h30. O que, por óbvio, conforma um espaço bastante estreito de contato dos
apenados com seus familiares. As visitas são desnudadas através do procedimento
de revista íntima e o estabelecimento não dispõe de detectores de metal. A visita
íntima é admitida. Cerca de 1.100 presos trabalham, seja em tarefas de
manutenção, seja por convênios vigentes com a iniciativa privada. Dentro da
penitenciária, há oportunidades de trabalho em tipografia, confecção de vassouras,
material elétrico e bolas de futebol. Há aulas regulares onde estudam 220 presos.
(menos de 10% do total de internos). A penitenciária dispõe, também, de uma ala
onde funciona, com certa precariedade, uma pequena enfermaria. São dezenas de
homens depositados ali, abandonados em regra, baleados, doentes. Alguns
literalmente apodrecem. Sem atendimento, sem medicamentos, morrem no
esquecimento e no silêncio da prisão. Há 10 médicos e dois dentistas trabalhando
na Penitenciária. O "atendimento dentário", não obstante, só realiza extrações e os
médicos, pelo que pôde constatar o Deputado Dr. Rosinha, examinando os
prontuários, não parecem cumprir sua carga horária nem acompanhar efetivamente
139
seus pacientes. Há vários presos com problemas sérios de saúde mental. O
estabelecimento não dispõe de programas de prevenção a DST-AIDS, mas os
internos recebem preservativos. A comida é feita no próprio estabelecimento e há
uma estrutura dupla para a refeição oferecida aos funcionários. Viola-se a
correspondência dos apenados. A assistência jurídica é oferecida, de forma
bastante precária, pela FUNAP com 8 profissionais. ( média de 1 advogado para
cada 300 presos)
Em uma primeira cela de isolamento que visitamos, no andar térreo,
estavam 4 presos separados dos demais por problemas de convivência com a
massa carcerária. O espaço é pequeno, as condições de iluminação, aeração e
higiene precárias. Esses detentos, por conta da sua circunstância de insegurança,
não desfrutam de saídas ao pátio o que poderia ser resolvido com um mínimo de
boa vontade. Um deles, entretanto, Gilberto Dias Galvão, teria sido espancado pelo
atual diretor da Penitenciária Aniceto Fernandez Lopes em ocorrência que vem
sendo apurada por procedimento administrativo.
Há outras celas para isolamento por motivos de segurança, localizadas
também no andar térreo na extremidade oposta à galeria que dá acesso ao hospital.
Essas celas - conhecidas pelos presos como "cofrinho" - situam-se para além de
uma porta compacta que dá acesso ao corredor. Com elas, configura-se a dupla
estrutura de encarceramento: celas dentro de celas. Conversamos com os presos
que estavam ali em situação bastante similar aos primeiros. A diferença é que a
maioria deles não se imaginavam "seguros" . Alguns temiam ser assassinados a
qualquer momento, pelo que solicitamos ao Ministério Público que avaliasse junto
ao Juiz competente a possibilidade de transferência. No quinto andar da galeria "C",
estão as celas de isolamento por motivo disciplinar. Essas são idênticas às celas
normais e estão, no geral, dentro dos parâmetros mínimos definidos por lei. O que
chama a atenção aqui é o fato de grande parte dos punidos por infração disciplinar
terem sido flagrados em situações banais logo interpretadas como "faltas graves" e
punidas com 30 dias de isolamento. Assim, por exemplo, o preso Losamar
Francisco da Silva, encontrava-se há 14 dias em isolamento pelo fato de ter sido
apanhado
com
uma
pequena
quantidade
da
aguardente
produzida
clandestinamente nos presídios a partir da fermentação de frutas ou cereais. Pelo
mesmo motivo, o preso Antônio Almeida encontrava-se há 23 dias isolado dos
140
demais. Ora, partindo-se do pressuposto de que os presos nomeados não
praticaram qualquer ato atentatório aos demais internos ou a quem quer que seja;
admitindo-se que sequer embriagados estavam; considerando-se que não
corromperam funcionários nem induziram familiares a burlar a vigilância, etc., não
parece admissível que o descumprimento da regra interna que veda o consumo de
bebidas alcoólicas possa ser interpretado como "falta grave". Se produzir,
transportar ou beber aguardente no interior de uma penitenciária é uma "falta
grave", que natureza de falta comete aquele que organiza um motim, que porta uma
arma ou que viola sexualmente outro interno?
A situação geral da Penitenciária Estadual de São Paulo é, do ponto de
vista da estrutura física oferecida aos internos, bastante razoável. Os problemas
mais sérios aqui parecem residir em uma determinada noção de "disciplina" com a
qual administra-se a instituição com um rigor absolutamente denecessário. As
condições de execução da pena, então, submetem-se a um tensionamento
permanente que degrada o convívio entre os presos e constrói distâncias cada vez
maiores entre a direção e o corpo de funcionários, por um lado e os internos, por
outro. Esse "estranhamento" poderia ser evitado com normas mais flexíveis e com
uma participação efetiva dos internos, junto à direção, na conquisa das soluções
para problemas concretos.
Ficha Técnica:
Penitenciária Estadual de São Paulo
Av. Ataliba Leonel, Capital
Diretor - Aniceto Fernandez Lopes
Capacidade - 1.250 presos
Lotação - 2.400
Revista Íntima - Sim
Violação do Sigilo de Correspondência - Sim
Trabalho prisional - Sim
141
Atenção à saúde - Precária
Educação dos presos - Precária
Assistência jurídica - Precária
Acesso ao pátio - Sim
Visita íntima - Sim
Comida — Não foi possível constatar sua qualidade
estrutrura dupla de alimentação para os funcionários - Sim
Acesso aos meios de comunicação - Sim
Cela de isolamento - Sim
Denúncias de espancamento - Sim
Denúncias de corrupção - Não
Armas no interior do presídio - Não
PRESÍDIO DE MULHERES
- onde o amor é um aceno
No domingo pela manhã, voltamos ao complexo do Carandiru. Dessa vez
para visitar a Penitenciária Estadual de São Paulo, Presídio de Mulheres. Havíamos
tomado a decisão de não visitar a Casa de Detenção por dois motivos: primeiro
porque uma inspeção do tipo das que estávamos fazendo envolveria vários dias em
uma Penitenciária com mais de 8 mil internos; segundo porque a Casa de Detenção
tem sido mais frequentemente visitada e acompanhada por autoridades e
voluntários de ONGs. Escolhemos, então, o Presídio de Mulheres onde, no dia
anterior, uma tentativa de fuga havia sido registrada.
O presídio, concebido para uma lotação de 256 internas, estava com 456.
As visitas ocorrem somente aos domingos, entre 12h30 e 16h, o que significa, para
muitos familiares - descontada a longa espera para a entrada, mais o tempo
necessário para a revista - o período de alguns minutos apenas de contato com as
142
presas. As visitas são desnudadas, inclusive crianças e adolescentes, embora o
estabelecimento disponha de detector de metais. Os familiares podem trazer o
"jumbo" - gêneros alimentícios ou outros produtos de consumo. Aqueles que moram
em São Paulo, não obstante, só o podem fazer às quartas-feiras, o que lhes causa
extraordinário transtorno. Muitos são obrigados a faltar ao serviço para entregar
esses mantimentos. Esse tipo de problema poderia ser facilmente superado,
permitindo que todos os visitantes deixassem seus produtos aos domingos, mesmo
que para revista e entrega nos dias posteriores.
Aqui, 244 presas trabalham em oficinas e 56 em serviços de manutenção
- o que perfaz 65% do total. Oitenta presidiárias estudam - cerca de 17% do total.
Há uma relativa liberdade de circulação das detentas dentro de suas alas e um
acesso facilitado ao pátio. Cinco médicos trabalham no estabelecimento.
As regras disciplinares efetivas comportam o arbítrio e punições ilegais.
Em uma cela de isolamento, encontramos a detenta Rosângela Nonato de Jesus
punida porque solicitou socorro a uma companheira que estava com sangramento
no ouvido. Como o socorro tardou, ela bateu nas grades de sua cela até ser
atendida. A pessoa que prestou socorro declarou, ao chegar, que não entendia
porque tanto alarido por conta de uma "dorzinha de ouvido". Foi, então, acusada
pela detenta de ser "folgada". Por esse motivo Rosângela foi encaminhada ao
isolamento. Assinale-se que o relato feito pela presa, exatamente nesses termos, foi
corroborado pelo registro da ocorrência no procedimento disciplinar específico,
conferido pelo deputado Marcos Rolim. A cena não deixa de ser significativa do
conteúdo emprestado pelos incompetentes à noção de "disciplina" dentro do
sistema prisional brasileiro. Imaginemos - apenas para efeito argumentativo - que
estivéssemos diante de uma situação ilegal, mas de sentido oposto: com base na
ocorrência, a funcionária é encaminhada para o isolamento e Rosângela é
encarregada de zelar pela saúde das presas. Nessa hipótese, seguramente,
estaríamos mais próximos da justiça.
Presas denunciaram procedimentos de abuso no chamado "trânsito",
prática pela qual detentas seriam encaminhadas, por castigo, durante 120 dias em 4
presídios femininos permanecendo isoladas por 30 dias em cada um deles. Muitas
presas relataram que são obrigadas a pagar o conserto de objetos que quebram ou
143
se deterioram em suas galerias; que lhes é cobrado, indevidamente, pela prestação
de serviços e que encomendas solicitadas por elas para a aquisição de produtos de
higiene pessoal ou limpeza são entregues mediante "ágio". A diretora afirmou
desconhecer essas práticas. Há problemas de saúde, também. A presa Aida Assad,
por exemplo, sofre de uma grave dermatose. Há um ano e meio solicita ser atendida
por um dermatologista, sem resultados. A presa Jucimar Martins Trigo é,
provavelmente, portadora de hanseníase e não recebe os cuidados médicos
devidos.
Os problemas mais sérios enfrentados no Presídio de Mulheres,
entretanto, dizem respeito às inaceitáveis vedações de ordem moral impostas pela
diretora, Sra. Maria da Penha Risola Dias, uma antiga funcionária do sistema. Por
conta das suas concepções, as presas estão impedidas de receberem seus maridos
ou companheiros em visitas íntimas. A diretora argumenta que não há espaços para
que as relações sexuais ocorram. Ora, em todos os presídios masculinos há a
mesma limitação. Em 99% deles, não obstante, permite-se aos presos que, nos dias
de visita, organizem a ocupação escalonada de suas celas para que privem com
suas companheiras. O que assegura-se aos homens presos, nega-se, em São
Paulo, às presidiárias. Tal vedação só pode ser compreendida em um quadro
discriminatório em si mesmo revoltante. Na opinião da diretora, se a mesma
sistemática de visitas conjugais empregadas nos presídios masculinos fosse aceita
ali, correríamos o risco de presenciar cenas de "prostituição masculina". Ou seja: a
diretora teme que os homens, autorizados a frequentar as galerias, pudessem ser
requisitados por outras mulheres que não as suas companheiras. A hipótese denota
desconhecimento do significado das visitas em um presídio e revela uma
insensibilidade que beira a paranóia. Para dona Maria da Penha o entorno do seu
estabelecimento - um presídio, convém lembrar, e não um convento - é um mundo
fálico que importa saber evitar a qualquer custo. No Presídio de Mulheres, viola-se o
sigilo de correspondências das detentas. Mais do que isso: segundo nos relatou a
própria diretora, as cartas recebidas ou enviadas pelas presas são lidas também
com a preocupação de garantir que elas empreguem expressões condizentes com a
"moral e os bons costumes". (sic) Assim, por exemplo, em uma carta de amor há
que se moderar a linguagem e em hipótese alguma produzir ou receber desenhos
insinuantes, provocativos, obscenos. Revistas pornográficas, nem pensar. Elas são
144
proibidas e apreendidas embora se tratem de publicações legais, vendidas
livremente no país. Dona Maria da Penha não se contenta em proibir o sexo no
estabelecimento que dirige; procura proibir, também, a fantasia sexual. Perguntada
sobre sua postura se informada da existência de relações homossexuais entre as
detentas, respondeu que as presas nessa situação "são advertidas e separadas".
Dona Maria da Penha pode ter os valores de moral sexual que bem entender. Pode
até mesmo firmar voto de castidade. O que ela não pode é obrigar mulheres
adultas, muitas delas mães e esposas, a uma privação dessa natureza, o que
configura sentença extra-judicial, imposição de sofrimento, abuso de autoridade.
Causa espécie, ainda, que o governo de São Paulo seja conivente com a interdição
da sexualidade das suas mulheres presas.
No Presídio de Mulheres, as detentas, entretanto, resistem e, a seu jeito,
namoram. Inventaram a "pedalada", prática que consiste em abanar através das
grades das janelas com pedaços de pano colorido para os presos da Penitenciária
Estadual vizinha, cujos últimos pavilhões distam cerca de 100 metros dos fundos do
Presídio de Mulheres. Cada presa que namora com a "pedalada" é identificada pelo
interlocutor pela cor do pano que usa e vice-versa. Criaram, então, uma forma de
comunicação em que as letras equivalem a seu número na ordem alfabética. Dessa
forma, "falam" com seus pretendentes, trocam carícias, juras de amor e até
planejam casamentos. Em toda a parte os seres humanos resistem, é o que nos
dizem as detentas desse presídio onde o amor confunde-se com um aceno.
Ficha Técnica:
Penitenciária do estado de SP - Presídio de Mulheres
Av. Takinarcki, capital
F: 622.11379
Diretora - Maria da Penha Risola Dias
Capacidade - 256 presas
Lotação - 456 presas
Revista íntima - Sim
145
Violação do Sigilo de Correspondência - Sim
Trabalho Prisional - Sim
Atenção à saúde - Precária
Educação dos Presos - Precária
Assistência Jurídica - Inexistente
Acesso ao pátio - Sim
Visitas - Restritas
Visita Íntima - Não
Comida — Boa
Estrutura dupla de alimentação para funcionários - Não
Acesso aos meios de comunicação - Sim
Denúncias de espancamento - Não
Denúncias de corrupção - Sim
Armas dentro do presídio - Não
PENITENCIÁRIA FEMININA DO BUTANTAN
(Doutora Maria Marigo Cardoso de Oliveira)
- quando o Estado espanca e estupra
Detentas do Presídio de Mulheres nos relataram uma situação de horror
que estaria acontecendo na Penitenciária Feminina do Butantan. Segundo esses
relatos, casos de espancamento e de violência sexual contra as presas seriam
corriqueiros. De posse dessas informações, tomamos a decisão de inspecionar o
referido estabelecimento. Desafortunadamente, os relatos eram verdadeiros.
Quando de nossa chegada, fomos recebidos por uma funcionária que
exerce funções subalternas na penitenciária. A diretora não estava. A funcionária
não dispunha de qualquer informação relevante, nem de dados a respeito da
146
execução penal ali praticada. Frustrada a intenção de recolher informações oficiais,
nos dirigimos imediatamente à inspeção, começando, como de costume, pelas celas
de isolamento. No Butantan elas são especialmente temidas. Conhecidas pelas
iniciais C. I. , essas celas repetem a estrutura de duplo encarceramento (celas
dentro de uma cela) e se localizam na parte inferior do prédio. Ali, encontramos uma
presa que nos relatou ter sido violentamente espancada por um agente.
Fomos, então, diretamente ao pátio interno onde as presas estavam,
muitas ainda recebendo suas visitas. A reação delas ao saberem que estávamos
realizando uma inspeção em nome da Comissão de Direitos Humanos foi algo
impressonante. Um estado de euforia tomou conta de todas. Algumas exclamavam:
"foi Deus que enviou vocês aqui!" Outras diziam: "até que enfim alguém se lembrou
de nós!" As presas simplesmente não se continham e falavam todas ao mesmo
tempo. Cada uma tinha uma denúncia grave a fazer. Casos de espancamento e de
violência sexual foram descritos. Segundo as presas, uma interna teria engravidado
em estupro praticado por agente, cujo nome já sabíamos. A vítima dessa agressão,
todavia, não foi identificada. Entrevistamos uma detenta que relatou ter sido
pisoteada pelo mesmo agente no interior da C.I. Seus dedos e especialmente suas
unhas ainda estavam fortemente marcados. Nesse presídio, as detentas
condenadas a regime semi-aberto recebem uma calça de cor verde e as
condenadas em regime fechado, calças marrons. Também aqui as presas não
recebem visitas íntimas. Também aqui suas cartas são violadas. Sobre elas, há uma
particularidade: o Deputado Marcos Rolim resolveu inspecionar o lixo do presídio.
Abriu vários dos sacos plásticos até encontrar um onde inúmeras cartas e
requisições encaminhadas pelas detentas à diretora estavam depositados. Do que
se conclui que a diretora tem por hábito jogar no lixo requisições e cartas escritas
por detentas. O saco foi fechado e entregue ao representante do Ministério Público
que nos acompanhava. A Caravana constatou e documentou a existência de uma
tabela de preços para a compra de vários produtos necessários às internas e que
são normalmente encomendados por elas à direção. Percebe-se, claramente, a
existência de ágio nos preços praticados. Segundo pelo menos um funcionário com
quem conversamos, há no estabelecimento a prática reiterada de desvio de
alimentos, especialmente de carne.
147
V - RIO GRANDE DO SUL
A Caravana iniciou seus trabalhos no Rio Grande do Sul na manhã de
segunda-feira, 4 de setembro. Além dos Deputados Marcos Rolim e Dr. Rosinha e
da Assessoria da CDH, a Caravana contou com o reforço do Deputado Fernando
Gabeira. Integraram o grupo de trabalho o Superintendente dos Serviços
Penitenciários do Estado do Rio Grande do Sul, Dr. Aírton Michels; o Comandante
da Força Tarefa da Brigada Militar, Major Cléber José dos Santos Gonçalves; a
Promotora de Justiça da Vara de Execuções Criminais de Porto Alegre, Dra. Ana
Rita Nascimento Schinestsck; a assessora da Comissão de Cidadania e Direitos
Humanos da Assembléia Legislativa do Estado, Cristina Gross Villanova; a
assessora do Deputado Marcos Rolim, Aline Borges; e a Sra. Sandra Regina
Trindade, esposa de um presidiário e integrante do projeto das "Promotoras
Prisionais".
PENITENCIÁRIA ESTADUAL DO JACUÍ
- a humilhação da revista íntima
Em um micro-ônibus, nos deslocamos para o município vizinho de
Charqueadas onde há 4 presídios e duas colônias penais. No Rio Grande do Sul,
mais de 40% dos presos estão detidos no complexo penitenciário de Porto Alegre e
Charqueadas. Os presídios mais importantes do estado situam-se nessa região e 4
deles estão sob a administração da Força Tarefa da Brigada Militar. A Força Tarefa
é um destacamento da PM gaúcha, formado há 5 anos, após uma sucessão de
motins e graves ocorrências nos maiores presídios do estado. Ao todo, o Estado é
responsável pela tutela de 13 mil presos. Não há presos em delegacias de polícia. A
Caravana incluiu o RS em seu roteiro para que pudéssemos checar o modelo
apontado por muitos como o "melhor do país". Ao final, saímos todos, com a
convicção de que também o RS precisa alterar, e rapidamente, seu modelo
prisional. Escolhemos a Penitenciária Estadual do Jacuí (PEJ) como nossa primeira
visita. Trata-se de uma Penitenciária com histórico de motins e fugas. Em número
de presos é a segunda do estado. No dia de nossa visita havia 1.241 presos na
PEJ, para uma lotação máxima de 1.109. Do total de internos, 35 presos estão no
regime semi-aberto e cumprem suas penas em alojamento separado, sem contato
com os demais. Há 196 funcionários - entre civis e militares - trabalhando no
148
estabelecimento. As visitas ocorrem às quartas e domingos, das 7h30 às 16h30. Há
a prática de desnudamento dos familiares de presos, com a exigência de flexões e
arregaçamento da vagina e do ânus. Os procedimentos humilhantes, vexatórios e
ilegais das revistas íntimas ocorrem no RS com mais rigor do que na média dos
demais estados e vêm sendo fortemente denunciados há anos pela Comissão de
Cidadania e Direitos Humanos da AL/RS, até a presente data sem resultados
conclusivos. O atual governo, contudo, comprometeu-se na própria Caravana — por
meio da palavra do Superintendente da SUSEPE - a eliminar essa prática, editando
uma portaria ainda no mês de setembro. As visitas homossexuais são admitidas na
PEJ. Seiscentos presos trabalham e 104 estudam. No Estado, os Juizes concedem
remição por dias de estudo, nos mesmos termos mencionados pela lei para os dias
de trabalho, o que configura um forte estímulo aos internos. Há 5 médicos e um
dentista trabalhando na PEJ; a PEJ foi o único presídio visitado onde verificamos a
presença de um pneumologista. Há programas para prevenção de DST-AIDS e os
presos recebem preservativos. Há estrutura dupla para a alimentação dos
funcionários. A assistência jurídica, precaríssima, é mantida por um único Defensor
Público. Os presos saem duas horas por dia ao pátio, possuem acesso aos meios
de comunicação e contam com uma biblioteca de acervo pobre. O RS terminou com
a violação do sigilo de correspondência dos presos há um ano, através de portaria
da
SUSEPE.
Não
se
verificou
nenhuma
alteração
na
segurança
dos
estabelecimentos além da disponibilidade maior de funcionários antes ocupados
com a tarefa de violar a Constituição Brasileira. Pela portaria, sempre que houver a
suspeita de que determinado envelope de correspondência possa estar sendo
utilizado para transporte de objeto ilícito, o destinatário da correspondência é
chamado, o envelope é aberto na sua presença e seu conteúdo examinado sem
que, por qualquer hipótese, a carta seja lida. Preserva-se assim a o direito
assegurado aos cidadãos e a segurança do estabelecimento. Essa portaria oferece
um testemunho eloqüente da diferença que o simples bom senso pode fazer em
uma administração prisional. Também aqui, a grande maioria dos presos é jovem,
pobre e iletrada. Do total de presos na PEJ, 61% deles possuem menos de 30 anos;
12% do total são analfabetos; 9,3% não possuem escolarização, mas sabem ler e
escrever; 73% dos presos possuem escolarização primária incompleta e apenas 5%
do total chegou a freqüentar alguma série do segundo grau. Quase 1/3 dos presos
da PEJ foram condenados por assaltos e 16% do total praticaram homicídio. Há 9%
149
de presos condenados por furto, 12% por tráfico e 6% por estupro. A direção do
estabelecimento realizou, também, um levantamento sobre a situação econômica e
social dos detentos com 991 internos. Descobriu que 988 deles eram miseráveis e
que 3 integravam as camadas médias da sociedade. Na PEJ não há um preso rico
sequer.
Iniciamos
a
inspeção
pelas
celas
de
isolamento,
utilizadas
alternadamente para punição disciplinar e para proteção de presos ameaçados. As
celas são escuras, não possuem ventilação adequada e encontram-se totalmente
fora dos marcos legais. As punições disciplinares são impostas por motivos algumas
vezes irrelevantes. As celas são trancadas com parafusos, o que exige uma chave
especial para abri-las. O procedimento é de alto risco e totalmente desnecessário.
No caso de uma ocorrência grave - incêndio, necessidade de socorrer um preso,
etc., a existência do parafuso retardaria qualquer providências urgentes. Após
conversar com os presos que ali estavam, inspecionamos as galerias e
conversamos com presos nas grades que dão acesso a elas. As reclamações mais
insistentes relacionavam-se com as humilhações impostas quando da revista aos
seus familiares. Muitos presos relataram que suas esposas já entram no presídio
chorando após tudo o que sofrem nas revistas com desnudamento. Isto os revolta
sobremaneira. Reclamaram, também, da falta de assistência jurídica. Na PEJ, as
diversas galerias possuem representantes informais, escolhidos pelos próprios
presos. Solicitamos, então, à direção que nos facultasse uma reunião com os
representantes de galerias o que nos permitiria uma visão mais abrangente dos
seus problemas. A reunião ocorreu dentro da sala de aula onde, inexplicavelmente,
o espaço onde fica o professor é separado do espaço reservado aos alunos por
uma grade. Os deputados ultrapassaram essa barreira e se reuniram com os presos
para
além
da
grade,
reservadamente,
sem
qualquer
problema.
Depois,
conversaram, ainda, com os presos do regime semi-aberto. No final, mantiveram
uma produtiva reunião com o diretor da unidade, quando solicitaram o fim da revista
íntima, a não utilização dos parafusos nas celas, a interdição das celas de
isolamento, entre outras medidas urgentes. Observa-se na PEJ a presença
ostensiva de policiais militares em todas as áreas internas da Penitenciária. As
galerias continuam sendo, por conta da superlotação, um espaço administrado
pelos internos. A incidência da direção da PEJ observa-se até a entrada das
150
galerias onde os internos estão trancafiados coletivamente. A presença de armas
com os PMs que trabalham na PEJ é uma ameaça constante aos presos, aos
próprios PMs e à segurança do estabelecimento. Se há uma regra consensual em
todo o mundo a respeito de segurança prisional essa regra é: armas, fora. No RS,
entretanto, autoriza-se já há muitos anos que agentes e PMs andem armados no
interior dos presídios. Desde a criação da Força Tarefa, o problema se tornou mais
agudo, pois até metralhadoras passaram a ser utilizadas em área de circulação
interna e no manejo com presos.
Ficha Técnica:
Penitenciária Estadual do Jacuí
Charqueadas , RS
Diretor - Major Jari Ineu Scherer
F: 658.1882
Revista íntima - Sim
Violação do sigilo de correspondência - Não
Trabalho prisional - Sim
Atenção à saúde - Precária
Educação dos presos - Precária
Assistência Jurídica - Inexistente
Acesso ao pátio- Sim
Visitas - Sim
Visita íntima - Sim
Comida - ruim
Estrutura dupla de alimentação para os funcionários - Sim
Acesso aos meios de comunicação - Sim
151
Denúncias de espancamento - Não
Denúncias de corrupção – Não
Armas no interior do presídio – Sim
PRESÍDIO CENTRAL
- ordem unida e armas
Nossa segunda visita ocorreu no Presídio Central de Porto Alegre, o
maior e mais problemático do estado. Construído originalmente como cadeia pública
e capaz, hoje, de receber, no máximo, 600 presos, encontra-se superolotado com
2.100 detentos. O estabelecimento também realiza as revistas com a prática do
desnudamento. Igualmente sob a responsabilidade da Força Tarefa da Brigada
Militar, o presídio dispõe de infraestrutura deficiente em todas as dimensões
imagináveis. As instalações hidráulicas estão comprometidas, há vazamentos dos
esgotos e condições insalubres nas galerias. O superintendente da SUSEPE
anunciou investimentos significativos para uma reforma do Presídio Central ainda
este ano. Os presos, enquanto isso, estão amontoados. A direção do
estabelecimento mantém procedimentos rigorosos de disciplina e observa-se
nitidamente uma tendência à militarização das condutas exigidas dos próprios
internos. Como se fosse possível e desejável tratá-los nos termos de ordem unida.
Utiliza-se, dentro do estabelecimento, armamentos de grosso calibre. Os deputados
constataram o emprego de cães por alguns policiais nas áreas de circulação.
Quando caminhávamos pelos corredores, presos que estavam se deslocando em
um estreito espaço delimitado por uma tela interrompiam automaticamente seu
trajeto e se mantinham com o rosto virado para a parede. Trata-se de procedimento
inédito e inaceitável esse pelo qual se obriga os presos a não olharem os visitantes
ou as autoridades que circulam pelo estabelecimento.
Há 184 Policiais Militares e 23 funcionários da Susepe trabalhando no
estabelecimento. 7% dos internos são analfabetos; 11% embora sem escolarização
são alfabetizados; 52% possuem o primeiro grau incompleto e apenas 6% possuem
o primeiro grau completo. 14% dos presos foram condenado por roubo e 15%, por
152
furto. Os crimes sexuais respondem por 15% das condenações; o mesmo
percentual, respectivamente, para condenados por homicídio , por tráfico de drogas
e por lesões corporais. Os condenados por estelionato são 11% do total da massa
carcerária. 480 presos trabalham, a maioria deles em tarefas de manutenção. Os
internos recebem preservativos e há programas de prevenção a DST-AIDS para
presos e funcionários. Dois defensores e 4 bacharéis prestam, com precariedade,
assistência jurídica no estabelecimento.
Fomos às celas de isolamento onde vários presos são apartados dos
demais. Os locais são insalubres e úmidos. Alguns presos estavam já há dias em
um espaço gradeado que sequer cela é, sem direito a banho, dormindo no chão,
sem colchões ou mantas.
Estabeleceu-se no presídio, mais recentemente, uma divisão entre os
internos: alguns são vinculados a um detento conhecido como "Brasa" , outros não.
Pelo que foi possível perceber, "Brasa" dispõe, efetivamente, de poderes dentro da
instituição e goza de privilégios. A situação de saúde dos presos é precária. Muitos
estão doentes e sem o devido atendimento médico. O Hospital Penitenciário, que
funciona em uma das alas do Presídio Central, encontra-se sucateado e não dispõe
de profissionais em número suficiente. Em regra, os presos encontram-se
abandonados e sem assistência jurídica. Pelas queixas recebidas, percebe-se que
os Juizes da Vara de Execução Criminal de Porto Alegre não têm realizado visitas
freqüentes aos presídios, nem agilizado os processos. No Presídio Central de Porto
Alegre, há dezenas de presos sem o enquadramento criminal.
Na inspeção realizada, chegamos a um conjunto de outras celas também
utilizadas para isolamento. Essas celas não possuem ventilação, são escuras e
insalubres. Ali encontramos presos sem direito a banho de sol ou visitas. Em uma
delas, encontramos detentos que relataram terem sido torturados por policiais civis
de uma cidade do interior.
Ficha Técnica :
Presídio Central
Av. Roccio, 1100 - Porto Alegre
153
f: 288.4441
diretor: Maj. Eduardo Passos Mereb
Capacidade - 600 presos
Lotação - 2.100 presos
Revista íntima - Sim
Violação do sigilo de correspondência - Não
Trabalho prisional - Precário
Atenção à saúde - Precária
Educação dos presos - Precária
Assistência jurídica - Precária
Acesso ao pátio- Sim
Visitas - Sim
Visita íntima - Sim
Comida - Ruim
Estrutura dupla para alimentação dos funcionários - Sim
Acesso aos meios de comunicação - Sim
Celas de isolamento - Sim
Denúncias de espancamento - Não
Denúncias de corrupção - Não
Armas dentro do presídio - Sim
VI - PARANÁ
As últimas visitas da Caravana ocorreram no Paraná, com a presença,
além dos deputados Marcos Rolim e Dr. Rosinha, de Dirleo Sanches e Padre Aires,
154
integrantes da Pastoral Carcerária; do Dr. Luis do Nascimento, advogado da
Pastoral Carcerária; e do Dr. Dartanhan Abilhoa, Procurador de Justiça e
Coordenador de Execuções Penais do Estado.
PRESÍDIO CENTRAL DE PIRAQUARA
- um lugar para o esquecimento
Vizinha a Curitiba, a pequena cidade de Piraquara possui o maior cárcere
do Paraná. Superlotado, o Presídio Central estava com 1.450 detentos na manhã de
5 de setembro, quando de nossa visita. Sua lotação máxima seria de 550 presos.
Há 280 funcionários trabalhando no estabelecimento, 40 por escala, com plantões
de 24 por 72 horas. O Presídio Central de Piraquara enfrentou uma grande rebelião
no início de junho deste ano. Como resultado, muitas de suas instalações,
especialmente as áreas destinadas às oficinas de trabalho, foram completamente
destruídas. Mais de 50% dos presos aqui cumprem pena por delitos contra o
patrimônio. As visitas ocorrem aos domingos, das 8 às 16 horas. Pratica-se,
também, as revistas com desnudamento. Recebemos denúncias de familiares de
presos segundo as quais a rebelião de junho teria tido como fato detonador um caso
de abuso sexual cometido por funcionário contra uma mulher de preso. Quando da
rebelião, um agente foi seriamente ferido e teve ruptura de medula. Segundo
informações que obtivemos, esse funcionário encontra-se totalmente desamparado
pelo Estado. Perecebe-se, então, em cenas do tipo, que o Estado viola também os
Direitos Humanos dos agentes penitenciários. O presídio não dispõe de detector de
metais. Do total da massa carcerária, 280 presos trabalham em tarefas de
manutenção, recebendo R$ 21,00 por mês. Não há, no momento, salas de aula
funcionando. O estabelecimento dispõe dos serviços de um médico, duas
enfermeiras e uma farmacêutica. Há programa de prevenção a DST-AIDS e os
presos recebem preservativos. A assessoria jurídica é precária e essa deficiência
conforma a principal queixa dos presos. Os funcionários do estabelecimento são
agentes penitenciários cujo salário médio é R$ 800,00. Os presos possuem acesso
aos meios de comunicação e admitie-se puni-los com a subtração desse direito. As
correspondências dos presos são violadas. Não se admite que os funcionários
portem armas dentro do presídio.
155
Iniciamos a visitação pelas celas de isolamento, usadas tanto para
punição disciplinar quanto para segurança de presos. Há dois espaços: um fora do
presídio; outro dentro, na quinta galeria. As celas de isolamento externas, em
número de 19, encontram-se totalmente fora da lei. São celas escuras, sem
ventilação, onde presos são amontoados e esquecidos. O cheiro é horrível. Os
presos nesse isolamento não saem para o pátio, embora exista uma área reservada,
totalmente gradeada e coberta por tela, onde seria perfeitamente possível
oportunizar o acesso deles à ensolação e à atividade física.
Em visita às galerias, os deputados Marcos Rolim e Dr. Rosinha
solicitaram a oportunidade de conversar com os presos em um dos pátios internos.
Dispensaram a presença dos agentes e mantiveram com os internos uma conversa
reservada, sem qualquer problema de segurança. Identificaram casos de presos
condenados com base no artigo 16 do Código Penal (consumo de drogas ilícitas);
constataram que os preços praticados na cantina do presídio são maiores que no
mercado e receberam a principal demanda que é a garantia dos benefícios
assegurados por lei, especialmente progressão de regime e livramento condicional.
As celas de isolamento internas são ainda piores, com a diferença que
abrigam, como regra, apenas um detento. Todas as portas das celas nesse presídio
são compactas, com uma pequena janela retangular que permanece fechada e só
pode ser aberta por fora. Na galeria 5 há um grande número de celas utilizadas para
o isolamento. Conversamos com todos os presos que ali estavam. Graças a esse
procedimento, descobrimos o detento de nome Valdir José Chamoskovisk,
conhecido no presídio por "general". Quando o Deputado Marcos Rolim se dirigiu a
ele perguntando-lhe a quanto tempo estava ali, não acreditou no que ouviu.
"General" lhe contou que estava naquela cela de isolamento há 5 anos e que, nesse
período, nunca tinha tomado um banho de sol. Em uma ou outra oportunidade havia
sido retirado dali para ser levado ao médico e mais nada. O presidente da Comissão
de Direitos Humanos da Câmara solicitou, então, aos agentes penitenciários, que
abrissem a cela e convidou Valdir José a caminhar com ele pelos corredores. O
preso atendeu ao chamado e se dispôs, também, a caminhar com o Deputado em
uma área lateral onde funciona uma horta. Durante alguns minutos permaneceu
naquela área externa, respondendo as perguntas dos integrantes da Caravana e tão
logo pôde, solicitou que fosse conduzido novamente a sua cela. A solicitação expõe
156
a gravidade dos problemas de saúde mental enfrentados pelo preso, problemas
originados ou agravados pelo longo tempo de isolamento. Perguntado sobre se
sabia quem era o Presidente da República, respondeu que deveria se João Batista
Figueiredo. Valdir José está preso há 18 anos. Foi condenado por vários assaltos e
pela morte de um general, durante um arrombamento, nos anos 70. Por conta disso,
ganhou o apelido pelo qual é conhecido na cadeia. Foi sentenciado a mais de 70
anos de prisão. Checando essas informações com os registros do presídio,
descobrimos que Valdir José enganara-se quando afirmara estar há 5 anos naquela
cela de isolamento. Na verdade, ele encontrava-se lá há 7 anos (!) Nesse período
nunca recebeu uma visita. Em sua cela não há rádio ou TV. Ele foi simplesmente
esquecido. Não é o único caso. Mantivemos contato com outro preso, com
problemas evidentes de saúde mental, que encontra-se há 3 anos dentro de sua
cela de isolamento; outro a um ano e meio. Seguramente há outros casos que não
tomamos conhecimento. No Presídio Central de Piraquara é assim. Aqui as pessoas
são esquecidas.
Ficha Técnica:
Presídio Central de Piraquara
f: 673.2663
Diretor - Cezinando Paredes
Capacidade - 550
Lotação - 1.450
Revista íntima - Sim
Violação do sigilo de correspondência - Sim
Trabalho prisional - Precário
Atenção à saúde - Precária
Educação dos presos - Não
Assistência jurídica - Inexistente
157
Acesso ao pátio - Sim
Visitas - Sim
Visita íntima - Sim
Comida - razoável
Estrutura dupla de alimentação para os funcionários - Sim
Acesso aos meios de comunicação - Sim
Celas de isolamento - Sim
Denúncias de espancamento - Não
Denúncias de corrupção - Sim
Armas no interior do presídio - Não
DELEGACIA DE FURTOS E ROUBOS
- tortura e corrupção
À tarde, estivemos na Delegacia de Furtos e Roubos de Curitiba, onde
encontramos 96 presos apinhados na carceragem. Cerca de 50% deles
condenados. Fomos recebidos pela Delegada Adjunta Márcia R.V. Marcondes
Braga, que nos franqueou o acesso às dependências da Delegacia.
A carceragem é divida em alas que não se comunicam entre si e que
encontram-se para além de portas compactas. Verifica-se aqui a estrutura já referida
tipo "cofre", com celas dentro de celas. Dentro de cada galeria há uma câmera que
monitora os presos em circuito fechado de televisão, 24 horas por dia. O
equipamento é de propriedade de um Delegado e foi cedido por ele. As celas são
fechadas com parafusos. Um incêndio aqui e todos os presos serão carbonizados
antes que alguém consiga abrir a porta que dá acesso à galeria. É curioso o
contraste: nos quadrantes das galerias uma câmera de TV; nas celas, parafusos. É
que se trata de pensar "primeiro na segurança", afirmou a Delegada. Sim, pelo que
descobre-se que a segurança dos seres humanos sob sua guarda e tutela não conta
para o seu conceito de "segurança".
158
Por óbvio, não cabe à Polícia Civil cuidar de presos; nem se admite que
policiais se transformem em carcereiros. A responsabilidade pela presença desses
presos aqui, em condições sub-humanas, é inteiramente do governo estadual e não
da polícia. OOs Os presos não saem ao pátio porque não há pátio na delegacia. A
única possibilidade que possuem para se exercitar é dentro da própria galeria - nos
quadrantes - quando suas celas são abertas, o que nunca ocorre aos finais de
semana. Passam, então, a maior parte do tempo trancados, dividindo espaços
minúsculos para que possam dormir no chão, onde der. A comida que recebem é de
péssima qualidade e, muitas vezes, é servida já deteriorada. Os presos recebem
visitas, eventualmente, mas não podem sequer tocá-las. Há dois pequenos
parlatórios onde os presos podem se entrevistar por alguns minutos com suas
esposas ou filhos, através de uma tela. Vários deles denunciaram que tem acesso
aos familiares aqueles presos que pagam para tanto. Segundo seu relato, outros
procedimentos ou compras por eles solicitadas são encaminhadas pelos policiais
civis mediante ágio. Denunciaram também casos reiterados de espancamento e
emprego de pau-de-arara no banheiro da carceragem. Segundo o relato feito por
vários presos, há, no banheiro, um buraco na parede por onde seria introduzida uma
barra de ferro que, apoiada em um cavalete, permite a suspensão de uma pessoa.
Assim, vários presos teriam sido torturados. O Deputado Marcos Rolim foi ao local
indicado pelos presos e constatou a existência do buraco. Perguntou à Delegada
qual sua serventia. Ela respondeu que, provavelmente, tratava-se de uma abertura
para a introdução de uma mangueira. Rolim demonstrou à Delegada, que havia
vestígios de ferro na abertura e que mangueiras são feitas de borracha. A Delegada
afirmou, então, que iria mandar fechar o buraco.
As visitas às Delegacias que fizemos na Caravana, infelizmente e para o
constrangimento dos bons policiais, ressaltaram aquelas que parecem ser duas
características em processo de afirmação na Polícia Civil no Brasil atualmente: a
covardia e a desonestidade.
RECOMENDAÇÕES
I - Ao Governo Federal:
a) Que o Ministério da Justiça elabore um elenco de GARANTIAS E
REGRAS MÍNIMAS PARA A VIDA PRISIONAL condicionando a liberação aos
159
estados de recursos do Fundo Penitenciário Nacional e do Fundo Nacional de
Segurança Pública à estrita observância dos seus ítens.
b) Que estas GARANTIAS E REGRAS MÍNIMAS contemplem: -1) Fim
imediato da prática das "revistas íntimas" sobre os familiares, compreendida como
tal
toda
e
qualquer
exigência
de
desnudamento.
-2) Fim imediato da prática de violação do sigilo de correspondência dos internos e
condenados.
b -3) Garantia da visita conjugal para toda a população carcerária,
homens e mulheres, sem qualquer exclusão e sem exigências burocráticas
destinadas a comprovação de relação estável.
b -4) Interdição de todas as celas escuras e sem ventilação.
b-5) Proibição do uso de celas com vedação acústica, também
conhecidas como "cofre" (celas dentro de uma cela) e de lacre de celas com
parafusos.
b-6) Apresentação de cronograma para a tranferência de todos os presos
condenados que estejam cumprindo pena em carceragens de delegacias policiais.
b -7) Fim de todas as estruturas duplas de cozinha ou de diferença de
alimentação oferecida pelo Estado a presos e funcionários.
b -8) Proibição do uso de qualquer tipo de armamento por parte de
funcionários ou policiais no interior dos estabelecimentos prisionais.
b -9) Garantia de acesso ao pátio externo para exercício e banho de sol a
todos os presos por pelo menos uma hora ao dia.
b-10) Apresentação de cronograma para a garantia de assistência jurídica
aos internos e condenados, na razão de, pelo menos, um advogado ou defensor
público para cada 200 presos.
C) Que parte das verbas do Fundo Nacional de Segurança Pública
possam ser empregadas pelos estados na construção de estabelecimentos penais para cumprimento de condenações em regime fechado e semi-aberto - para a
160
construção das Casas do Egresso previstas pela LEP e para a reforma
penitenciária.
D) Que o Ministério da Justiça desenvolva um programa específico para
um mutirão nacional de atualização dos processos de execução penal envolvendo
os governos estaduais, o Poder Judiciário em cada um dos estados, o Ministério
Público, as Defensorias e as Universidades.
E) Que o Ministério da Saúde, através da Vigilância Sanitária, determine
a realização de inspeções em todas as penitenciárias brasileiras.
II - Ao Congresso Nacional
A) Que a reforma do Código Penal seja incluída na agenda das
prioridades das duas Casas legislativas e que se assegure o mais amplo
envolvimento da sociedade civil em toda a tramitação dos projetos que tratam do
tema.
B) Que os projetos de lei em tramitação que tratam da reforma da Lei de
Execução Penal sejam apreciados com urgência.
C) Que na parte especial do Código Penal seja introduzida uma alteração
no artigo 12 que tipifica o crime de tráfico de drogas estabelecendo-se penas
diferenciadas de acordo com o tipo e quantidade de droga apreendida.
D) Que o consumo de drogas não seja considerado, em qualquer
hipótese, ilícito penal.
E) Que se alargue, tanto quanto possível, a possibilidade de aplicação
das penas alternativas à prisão.
F) Que não se aprove qualquer proposição legislativa tendente a agravar
as exigências objetivas e/ou subjetivas para a progressão de regime prisional.
III - Ao Poder Judiciário:
A) Que os Tribunais de Justiça Estaduais, os Juizes das Varas de
Execução Criminal e os membros do Ministério Público nos estados uniformizem o
161
entendimento favorável à remição de pena por dias de estudo, a exemplo do que já
ocorre em alguns estados como o RS e o PR.
B) Que os Tribunais de Justiça Estaduais, os Juizes das Varas de
Execução Criminal e os membros do Ministério Público nos estados uniformizem o
entendimento favorável à concessão de remição ficta quando o Estado, de forma
omissiva, não oferecer oportunidades de trabalho prisional.
C) Que os Juízes das Varas de Execução Criminal realizem inspeções
nos estabelecimentos prisionais sob sua jurisdição, sem prévio aviso, pelo menos
uma vez por mês, nos termos da LEP.
D) Que os Juizes das Varas de Execução Criminal assegurem a
instalação e o bom funcionamento dos Conselhos da Comunidade nos termos da
LEP.
E) Que os Tribunais de Justiça dos estados coordenem programas
específicos voltados à promoção das penas alternativas à prisão.
F) Que os Tribunais Regionais Eleitorais assegurem as providências
administrativas necessárias à garantia do direito de voto dos presos provisórios.
IV - Aos Governos Estaduais:
A) Que os governos estaduais assegurem o fim da "reserva de mercado"
para as funções de direção de estabelecimentos prisionais aos funcionários de
carreira.
B) Que os governos estaduais assegurem a criação de mecanismos de
controle público sobre os estabelecimentos prisionais, credeciando representantes
da sociedade civil e de ONGs comprometidas com a luta pelos Direitos Humanos
para tarefas rotineiras de inspeção e acesso a qualquer dependência prisional sem
prévio aviso. Que seja assegurado a esses representantes a oportunidade de
contatos reservados com internos e condenados.
C) Que os governos estaduais elaborem programas específicos para a
qualificação de agentes penitenciários, com ênfase para a formação em Direitos
Humanos.
162
D) Que os governos estaduais implementem uma política salarial e um
plano de carreira que valorizem a função pública desempenhada pelos agentes
penitenciários.
E) Que os governos estaduais introduzam em todos os estabelecimentos
prisionais detectores de metais para a revista sobre os visitantes e funcionários.
F) Que os governos estaduais desenvolvam projetos específicos de
prevenção em DST-AIDS no interior dos estabelecimentos prisionais.
G) Que os governos estaduais elaborem projeto específico para a
educação prisional visando, prioritariamente, a alfabetização de internos e
condenados.
H) Que os governos estaduais introduzam em suas propostas
orçamentárias destinação própria para a construção de Hospitais Penitenciários ou
para a reforma e aparelhamento dos já existentes.
I)
Que
os
governos
estaduais
introduzam
em
suas
propostas
orçamentárias destinação própria para a construção da Casa do Egresso.
V - Às Assembléias Legislativas
a) Que as Assembléias Legislativas assegurem no âmbito das Comissões
Parlamentares de Direitos Humanos a formação de grupos especiais de trabalho ou
subcomissões destinadas a acompanhar a vida prisional, receber denúncias e
realizar inspeções.
b) Que sejam elaborados projetos legislativos voltados à definição de
regras e procedimentos básicos a serem observados pelas administrações
prisionais com ênfase nas garantias necessárias ao exercício da cidadania de
internos e condenados. Que as definições complementares à LEP - faltas leves e
médias, sobre segurança prisional e normas disciplinares internas - sejam definidas
por lei estadual e não por atos administrativos.
OBSERVAÇÕES METODOLÓGICAS
163
O critério de seleção dos estados a serem visitados atenderam a três
requisitoss básicos: 1) gravidade dos problemas enfrentados; 2) distribuição regional
das realidades prisionais e 3) busca de modelos diferenciados de execução penal.
Por certo, que um levantamento mais amplo se faz necessário. A região
norte e centro-oeste, por exemplo, não foram visitadas. A amostragem que
apresentamos, não obstante, é muito significativa. Nas 17 instituições que visitamos,
entre penitenciárias e delegacias de 6 estados brasileiros, estão mais de 15 mil
presos.
As visitas foram feitas, todas, sem prévio aviso. Adotamos o
procedimento de definir os locais a serem visitados alguns minutos antes do
deslocamento de forma que se evitasse, inclusive, a possibilidade de vazamento de
informações.
Em nossas inspeções, realizamos um levantamento tão abrangente
quanto possível seguindo a aplicação de um roteiro básico de informações a serem
recolhidas (cópia em anexo). Em geral, os presídios não dispõe de dados relevantes
e levantamentos estatísticos sobre as condições de execução das penas e sobre o
perfil dos detentos, o que dificultou enormemente o trabalho. Via de regra,
mantínhamos um contato, logo na chegada ao estabelecimento, com alguém
responsável pela direção colhendo as primeiras informações. Ato contínuo,
iniciávamos a inspeção privilegiando as celas de isolamento. Todas as instalações
dos presídios foram inspecionadas.
Os contatos com os presos foram feitos de forma a se preservar o caráter
reservado das conversas. Com exceção do Presídio Aníbal Bruno em PE e do
Instituto Penal Paulo Sarasate no CE, nos foi possível, sempre, recolher
informações sem qualquer constrangimento.
A Caravana foi documentada fotograficamente e uma parte desse
material é aqui anexada.
Em cada Estado, a Caravana era composta, além dos deputados e
assessoria, por integrantes da Pastoral Carcerária, por ONGs de Direitos Humanos ,
por integrantes do Ministério Público e por representações das comissões
parlamentares de Direitos Humanos das Assembléias Legislativas.
164
Ao final de cada visita, retomávamos os contatos com a direção dos
estabelecimentos procurando resolver problemas urgentes detectados e solicitando
providências para os casos mais graves identificados. Em alguns presídios, nossas
solicitações foram imediatamente atendidas; em outros, não obtivemos qualquer
resposta positiva.
Questionário Básico
Estabelecimento prisional-____________________________________
Estado-____ Cidade- ________________________________________
Endereço- _________________________________________________
Telefone- _________________________________________________
Diretor (a) -________________________________________________
Data da visita - __________ Duração __________________
Dados Gerais:
Número de internos - ___________ Lotação Máxima -____________
Homens - _____ Mulheres - __________
regime fechado - _______
regime semi-aberto - __________
Há alojamentos para presos em semi-aberto? ______
Média de presos por cela - _____
Há adolescentes presos? _____ Em caso positivo, quantos? ___
Há doentes mentais presos? _____ Em caso positivo, quantos? ____
Número de funcionários lotados no estabelecimento- _____
Perfil dos detentos:
Condenados por homicídio _____ Condenados por latrocínio______
165
Condenados por roubo _____ Condenados por furto ______
Condenados por tráfico _____ Condenados por consumo de drogas
_____
Condenados por estupro ___ Condenados por atent. viol. ao pudor _____
Condenados por crimes do colarinho branco ____
Outras condenações _____
Idade média dos internos ______
Escolarização:
analfabetos ____ primária ____ secundária ____ superior ____
Etnia:
brancos ___ negros ____ pardos/mulatos ____ índios ___ outros ___
Reincidência criminal _______
Ocorrências relevantes:
Há histórico de motins? ___ Em caso positivo, quantos em 12 meses?
____
Há histórico de fugas? ____ Em caso positivo, quantas em 12 meses?
____
Morbidade no presídio - presos mortos nos últimos 12 meses ___
funcionários mortos nos últimos 12 meses ___
desse total, quantas mortes violentas? ____
Há denúncias de maus tratos? ____
tipo
___________________________________________________________________
___________________________________________________________________
166
___________________________________________________________________
___________________________________________
Há
casos
de
tortura?
___________________________________________________________________
tipo________________________________________________________________
___________________________________________________________________
___________________________________________________________________
___________________________________________________________________
Há
denúncias
de
corrupção?
___________________________________________________________________
tipo________________________________________________________________
___________________________________________________________________
___________________________________________________________________
___________________________________________________________________
O estabelecimento possui regras disciplinares impressas? ___
O material é distribuído aos detentos ? ____
O estebelecimento possui cartilha com instruções e/normas para os
visitantes? ____
O material é distribuídio aos visitantes?____
solicitar cópia.
Dados dobre visitação:
Dias de visitação ____________________________
horários ___________________
Quem pode visitar os presos _________________________
Há visita íntima (para contato sexual) _______
Em caso positivo, frequência _____ duração ______
167
Critérios para que os presos habilitem-se à revista íntima ___________
Admite-se visita íntima homossexual? _______
As visitas são revistadas? _____
Há desnudamento nas revistas? _____
Adolescentes e crianças são revistados? _____
Há desnudamento de criançcas e adolescentes? ____
Utiliza-se detector de metais nas revistas? _____
Número de funcionários utilizados para revista por dia de visitação___
Os funcionários são revistados? ____
advogados, juizes, promotores e/ou autoridades são revistados? ____
Em caso positivo, qual o procedimento adotado? ____
Dados sobre trabalho prisional:
Quantos presos trabalham? ____
Há convêniuos com empresas para trabalho em regime fechado? ___
tipo-_________________
Os presos recebem pelo trabalho? _____ quanto por mês ____
Há oficinas de profissionalização?
tipo- ________________
Quantos presos participam dessas oficinas? ______
Principais queixas dos presos:
___________________________________________________________
___________________________________________________________________
___________________________________________________________________
___________________________________________________________________
168
___________________________________________________________________
___________________________________________________________________
___________________________________________________________________
Dados sobre educação prisional:
Há aulas regulares no presídio? ___
Quantos presos estudam? ____
Os dias de estudo contam para efeito de remição? ____
Principais queixas dos presos:
___________________________________________________________
___________________________________________________________________
___________________________________________________________________
___________________________________________________
Dados sobre a saúde prisional?
Há médicos trabalhando no estabelecimento? ___
Em caso positivo, quantos? _____ Carga horária ____
Há dentistas trabalhando no estabelecimento? ___
Em caso positivo, quantos? ____ Carga horária____
O atendimento dentário oprtuniza:
extrações ___ restaurações _____ ortodontia ____
Situação dos medicamentos disponíveis:
inexistente ___ precária ___ razoável____ boa _____ ótima ____
Há programa de prevenção a DST-AIDS ? _____
Os presos recebem preservativos? ____
169
Os soropositivos recebem medicação e tratamento adequados? ____
Principais queixas dos presos:
___________________________________________________________
___________________________________________________________________
___________________________________________________________________
___________________________________________________________________
Dados sobre alimentação:
Há nutricionista trabalhando no presídio? ______
A comida é feita no estabelecimento? ____ É terceirizada? ____
Há refeitório para presos? _____
Há refeitório para funcionários? ____
A comida servida aos presos é a mesma dos funcionários? ____
Principais queixas dos presos
___________________________________________________________
___________________________________________________________________
___________________________________________________________________
___________________________________________________________________
Dados sobre execução penal:
Nome do (a) Juiz (a) da VEC _____________________________
Nome do Promotor (a) da VEC _____________________________
O juiz titular da VEC visita regularmente o presídio? _______
Quantas vezes nos últimos 12 meses? ___
Concede audiências aos presos em suas visitas? _____
O presídio oferece assessoria jurídica aos presos? ___
Há defensor (a) público atuando no presídio? ___ Quantos? ___
170
Há convênio com Universidade para assessoria jurídica? ___
Há convênio com Universidade para assistência à saúde? ___
Os funcionários do presídio são:
( ) agentes penitenciários ( ) policiais civis ( ) policiais militares
Grau de escolaridade exigido dos funcionários __________
Percentual de funcionários com inst. superior completa _________
Salário médio dos funcionários _______
Dados sobre estrututra prisional:
As celas obedecem ao padrão legal? _____
Ospresos possuem horário regular para movimentação em área
adequada? ____
Há biblioteca? _____ Em caso positivo, qual sua situação? ____
Os presos possuem acesso aos meios de comunicação? ____
Em caso positivo, admitie-se puni-los subtraindo esse acesso? ___
Há cantina operando dentro do estabelecimento? ____
Os preços praticados na cantina são superiores aos de mercado? ____
As correspondências dos presos são violadas? _____
Admite-se que funcionários portem armas dentro do presídio? ___
Há depósito de armas/munições dentro do presídio? ____
Quem faz a guarda externa do presídio? ____
Que tipo de armamento utiliza? _____
Há algum tipo de mecanismo interno de representação prisional? ___
Observações gerais:
171
___________________________________________________________
___________________________________________________________________
___________________________________________________________________
___________________________________________________________________
___________________________________________________________________
___________________________________________________________________
___________________________
AGRADECIMENTOS
Deputado Michel Temer
Presidente da Câmara dos Deputados
Cristina de Fátima Nunes Queiroz- Chefe de Gabinete da Presidência da
Câmara dos Deputados
Jucélio Roberto dos Santos- Apoio Administrativo da Diretoria Geral da
Câmara dos Deputados
José Messias Castro Silva - assessor do Serviço de Administração do
Depto. De Comissões da Câmara dos Deputados
Ivone Duarte, Janete Lemos e Marilda Campolina — Assessoras da
Comissão de Direitos Humanos da Câmara
Ana Beatriz Magno - enviada especial à Caravana pelo Correio
Brasiliense
Clarissa Lina - enviada especial à Caravana pela Gazeta do Povo-PR
Pe.Bernardino Avelar Azamendia- Coordenador Nacional da Pastoral
Carcerária
Daniela Cecília Silva - Coordenação da Pastoral Carcerária do Estado de
São Paulo
172
Armando Tambelli - Coordenação da Pastoral Carcerária do Estado de
São Paulo
Pe. Bruno Trombeta
Pastoral Carcerária do Rio de Janeiro
Pe. Marcos Passerini- Pastoral Cacerária do Ceará
Dr. Luiz Lima - Pastoral Carcerária do Paraná
Lenilson - Pastoral Carcerária de Pernambuco
Ariel de Castro- Justiça Global
Sandra de Carvalho- Assessora da Comissão de Direitos Humanos da
Assembléia Legislativa do Estado de São Paulo
Isabel Peres - Ação Cristã pela Abolição da Tortura
Dra. Esther Correia
Ministério Público do Estado de Pernambuco
Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro
Ministério Público do Estado de São Paulo
Ministério Público do Estado do Paraná
Ministério Público do Estado do Rio Grande do Sul
Comissão de Direitos Humanos da AL do Ceará
Comissão de Direitos Humanos da AL de Pernambuco
Comissão de Direitos Humanos da AL do Rio Grande do Sul.

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