TCC DH 2008 - MARCELO MALIZIA CABRAL
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TCC DH 2008 - MARCELO MALIZIA CABRAL
0 UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL ESCOLA SUPERIOR DO MINISTÉRIO PÚBLICO DA UNIÃO CURSO DE ESPECIALIZAÇÃO DIREITOS HUMANOS MARCELO MALIZIA CABRAL CONCRETIZAÇÃO DE DIREITOS HUMANOS: CAMINHO NECESSÁRIO À REDUÇÃO DE CRIMINALIDADE E REINCIDÊNCIA Porto Alegre, abril de 2008 1 UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL ESCOLA SUPERIOR DO MINISTÉRIO PÚBLICO DA UNIÃO CURSO DE ESPECIALIZAÇÃO DIREITOS HUMANOS MARCELO MALIZIA CABRAL CONCRETIZAÇÃO DE DIREITOS HUMANOS: CAMINHO NECESSÁRIO À REDUÇÃO DE CRIMINALIDADE E REINCIDÊNCIA Monografia apresentada como requisito parcial para a obtenção do título de especialista no Curso de Especialização em Direitos Humanos pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Orientadora: Maria Palma Wolff Porto Alegre, abril de 2008 2 UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL ESCOLA SUPERIOR DO MINISTÉRIO PÚBLICO DA UNIÃO CURSO DE ESPECIALIZAÇÃO DIREITOS HUMANOS MARCELO MALIZIA CABRAL CONCRETIZAÇÃO DE DIREITOS HUMANOS: CAMINHO NECESSÁRIO À REDUÇÃO DE CRIMINALIDADE E REINCIDÊNCIA Porto Alegre, abril de 2008 3 À minha esposa, Angélica, pelo incentivo, pela compreensão, pelo companheirismo, pela luz que coloca em minha trajetória, dedico este trabalho. 4 Minha gratidão à coordenação e aos professores do curso, à minha orientadora, Maria Palma Wolff, aos membros da Cooperativa João-de-Barro. 5 “O problema fundamental em relação aos direitos do homem, hoje, não é tanto o de justificá-los, mas o de protegê-los.” (Norberto Bobbio1). 1 A era dos direitos. Tradução de Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Campus, 1992, p. 24. 6 Resumo: Examinam-se as causas da criminalidade e da reincidência no Brasil, elencando-se os fatores preponderantes para o crescimento desses fenômenos. Traça-se um perfil da desigualdade social e do sistema prisional, relacionando-se esses temas com os direitos humanos. Estudam-se as conseqüências da nãoasseguração de garantias fundamentais a grandes parcelas da população, alertando-se para a perversidade do tratamento penal da pobreza. Registra-se a falência do sistema prisional e sua incapacidade de atingir os objetivos declarados de prevenção de crimes e de dignificação do preso. Aponta-se a inexistência de políticas de garantia de direitos ao egresso do sistema prisional. Proclama-se a necessidade de concretização de direitos humanos como forma de se reduzir criminalidade e reincidência, pontuando-se a relevância dos movimentos sociais, das ações afirmativas e das políticas públicas nesse panorama. Apresentam-se, ao fim, algumas experiências que resultaram em redução de criminalidade e reincidência por meio de práticas que privilegiam a concretização de garantias fundamentais ao ser humano. Palavras-Chave: sistema prisional; criminalidade; reincidência; direitos humanos. Abstract: The causes of criminality and recidivism in Brazil are analysed, listing the preponderant factors that contribute for the increase of these phenomena. A profile of the economic inequality and prison system is built, associating these subjects with human rights. The consequences of not giving fundamental guarantees for most of population are studied, calling attention to the perversity on dealing with the poor. The prison system’s failure and its incapacity of reaching the stated goals of crime prevention and respect to the convicts are expressed, and the non-existence of rights guarantees policies for those who come out of prison are registered. It is proclaimed the necessity of concretizing human rights as a way of decrease criminality and recidivism, citing the importance of social movements, affirmative actions and public policies on this context. Finally, some experiences which have resulted in the decrease of criminality and recidivism through practices that favour the concretization of fundamental guarantees to the human being are showed. Keywords: prison system; criminality; recidivism; human rights. 7 SUMÁRIO INTRODUÇÃO ............................................................................................ 09 1 DIREITOS HUMANOS, CRIMINALIDADE E SISTEMA PRISIONAL ....... 12 1.1 Conteúdo e significação dos direitos humanos.................................. 12 1.2 A consagração dos direitos humanos prestacionais na ordem constitucional ......................................................................... 13 1.3 Direitos humanos e desigualdade social........................................... 15 1.4 Fatores preponderantes da criminalidade no Brasil.......................... 17 1.5. Radiografia do sistema prisional brasileiro........................................ 23 2 A NECESSÁRIA RELAÇÃO ENTRE DIREITOS HUMANOS, CRIMINALIDADE E SISTEMA PRISIONAL .......................................... 27 2.1 O desafio da concretização dos direitos humanos ............................ 27 2.2 A não-concretização de direitos humanos como causa da criminalidade perseguida e da reincidência ..................................... 29 2.3 O tratamento penal da pobreza ......................................................... 32 2.4 A perversidade do encarceramento decorrente da dívida social ....... 33 3 A PRIVAÇÃO DE LIBERDADE ............................................................... 36 3.1 Finalidades declaradas ...................................................................... 36 3.2 A realidade da privação de liberdade no Brasil.................................. 37 3.3 Privação de liberdade e direitos humanos ......................................... 41 4 O RETORNO À SOCIEDADE LIVRE ...................................................... 44 4.1 O egresso do sistema prisional e os direitos humanos ...................... 44 5 CONCRETIZAÇÃO DE DIREITOS HUMANOS: CAMINHO NECESSÁRIO À REDUÇÃO DE CRIMINALIDADE E REINCIDÊNCIA. 49 5.1 Generalidades .................................................................................... 49 5.2 O papel dos movimentos sociais...................................................... 51 5.3 A necessidade de ações afirmativas e de políticas públicas............. 53 5.4 Algumas experiências ....................................................................... 55 5.4.1 A Cooperativa João-de-Barro................................................... 56 5.4.2 A Fundação de Amparo ao Egresso do Sistema Penitenciário ............................................................................. 59 8 5.4.3 As Associações de Proteção e Assistência aos Condenados . 61 5.4.4 O Modelo de Segurança Cidadã de Bogotá............................. 62 REFLEXÕES FINAIS ................................................................................... 64 REFERÊNCIAS............................................................................................ 66 ANEXOS ...................................................................................................... 69 9 INTRODUÇÃO O horror e o medo causados pela criminalidade assolam diariamente a sociedade brasileira. 2 A quantidade de crimes que ocorrem no quotidiano, muitos deles praticados com extremada violência, assusta a todos.3 A agravar esta situação, a circunstância de que o número de delitos havidos no meio social cresce a cada dia.4 E as soluções apregoadas pela sociedade, no mais das vezes, estão ligadas ao aumento do tempo e da gravidade das penas e ao incremento da repressão ao crime. Essa é a radiografia do senso comum da população brasileira: a criminalidade cresce vertiginosamente e o estancamento dessa ascensão depende, invariavelmente, da expansão da repressão penal à pratica delitiva. Dever-se-ia, então, de acordo com essa lógica, proceder à elevação das hipóteses de adoção da pena privativa de liberdade, elevar seu período de duração, aumentar o rigor no cumprimento da reprimenda e agravar o apenamento aos reincidentes.5 2 “As crescentes violência e criminalidade verificadas no Brasil e na América Latina nas últimas décadas têm preocupado as sociedades locais e ameaçado a consolidação do processo democrático conduzido na região. A criminalidade, antes restrita a espaços delimitados, hoje, com o processo de globalização em curso, por meio da atuação de organizações criminosas, espalha-se pelo mundo com reflexos regionais e intercontinentais.” (CARÁMBULA, Marcelo. Por uma Segurança Cidadã no Brasil e América Latina. In Novas Direções na Governança da Justiça e da Segurança. Brasília-DF: Ministério da Justiça, 2006, p. 857). 3 “Violência é a maior preocupação dos jovens, diz pesquisa do IBGE. 14h32 - 02/05/2004. Dos 34,1 milhões de jovens brasileiros, mais da metade se preocupa com a falta de segurança no país. O primeiro Perfil da Juventude Brasileira, com idade entre 15 e 24 anos, aponta a violência como o problema mais sério para 55% dos jovens. De acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), os jovens representam 20,1% da população brasileira.” Disponível em: <http://noticias.uol.com.br/uol/2004/05/02/ult261u1542.jhtm>. Acesso em 3.5.2008. 4 “Segundo o estudo dos pesquisadores do Ipea, desde o início dos anos 1980, a violência e a criminalidade apresentam taxas crescentes no Brasil. As mortes por causas externas evoluíram a uma taxa anual de 2,4%. Entre 1980 e 2004, o número de homicídios cresceu 5,6% ao ano, fazendo com que representassem 37,9% do total de 127 mil por causas não naturais registrado em 2004.” Disponível em: <http://desafios2.ipea.gov.br/003/00301009.jsp?ttCD_CHAVE=2518>. Acesso em 3.5.2008. 5 “Sociedade quer punições mais severas. O crime passou a fazer parte da vida dos brasileiros, que reagem a essa realidade de insegurança exigindo do Congresso Nacional a aprovação de mudanças legislativas que tornem mais rigorosas as punições. É o que conclui pesquisa realizada pelo DataSenado, realizada com 1.068 cidadãos maiores de 16 anos, em 130 municípios do país. Segundo os dados do estudo, anunciados na semana passada pelo presidente do Senado, Renan Calheiros, a população é a favor de uma maioridade penal inferior a 18 anos, de um teto maior que 30 10 Não são poucas as vozes que proclamam a necessidade da adoção de 6 prisão perpétua ou até mesmo da pena capital , assim a imperatividade de se reduzir a idade de imputabilidade penal, tudo como forma de se atingir a tão almejada redução de crimes no meio social. O questionamento desse consenso social, constitui, exatamente, o objeto deste estudo. Examinar-se-ão, primeiramente, quais os fatores que, preponderantemente, motivam o indivíduo à prática de crimes e questionar-se-á a existência de relação entre a concretização de direitos fundamentais ao ser humano e a prática delitiva. A realidade do sistema prisional também será objeto de análise, perquirindo-se sobre os propósitos declarados para a privação de liberdade e os efeitos que a pena carcerária tem produzido nos indivíduos a ela submetidos, investigando-se, em especial, a existência de relação entre a eficácia da privação de liberdade e a garantia de direitos humanos. Realizada essa observação sobre a realidade do sistema prisional, investigar-se-á a existência de políticas públicas de asseguração de direitos ao egresso e estudar-se-á a repercussão da concretização de garantias fundamentais a esses indivíduos quando de seu retorno à sociedade livre. A concretização de direitos humanos como forma de redução de criminalidade e reincidência será analisada em capítulo próprio, pontuando-se a anos para permanência de um condenado nos presídios e até da adoção da prisão perpétua. Assim, em um Brasil onde 86% acreditam que a violência hoje é maior do que era no ano passado, nada mais natural, informa o DataSenado, que esmagadoras maiorias defendam a prisão perpétua como uma das opções válidas no combate ao crime (75%), o aumento da pena máxima de 30 anos (69%), o cumprimento integral das penas pela prática de crimes hediondos (93%) e, o mais polêmico entre todos os temas, que menores infratores recebam as mesmas punições destinadas a adultos (87%) previstas no Código Penal. [...] A pesquisa de opinião pública nacional realizada pelo DataSenado entre março e abril de 2007 [...]” Disponível em: <http://www.brasilsemgrades.org.br/noticias.asp?assunto_cod=510>. Acesso em 3.5.2008. 6 “07/04/2007 - 22h53. Aumenta apoio à pena de morte entre os brasileiros, diz Datafolha da Folha Online. Pesquisa Datafolha publicada na edição deste domingo Folha de S.Paulo revela que aumentou o apoio da população à adoção da pena de morte no Brasil. Segundo o levantamento, 55% dos entrevistados são favoráveis à pena de morte e 40% são contra. Na pesquisa anterior, feita em agosto do ano passado, 51% dos entrevistados disseram sim à adoção da pena de morte e 42%, não. O levantamento atual mostra que o apoio à pena de morte voltou ao maior índice histórico favorável à prática, registrado em 1993, desde que o Datafolha começou a fazer pesquisas sobre o tema, em 1991. O levantamento ouviu 5.700 pessoas em 25 estados entre os dias 19 e 20 de março. A margem de erro é de dois pontos percentuais.” Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/folha/brasil/ult96u90987.shtml>. Acesso em 3.5.2008. 11 relevância dos movimentos sociais, das ações afirmativas e das políticas públicas nesse panorama. Ao lado da abordagem das considerações doutrinárias e das pesquisas científicas sobre essa problemática, apresentar-se-ão algumas experiências de privilegiamento da concretização de direitos humanos na execução da pena privativa de liberdade e no acolhimento do egresso do sistema prisional, focalizando-se a repercussão dessas práticas nos índices de criminalidade e reincidência. Ao fim desse caminho, retornar-se-á à verificação da validade do paradigma social apresentado, avaliando-se a repercussão do incremento das garantias fundamentais e de seu aviltamento nos fenômenos da criminalidade e da reincidência. 12 1 DIREITOS HUMANOS, CRIMINALIDADE E SISTEMA PRISIONAL 1.1 Conteúdo e significação dos direitos humanos Direitos humanos podem ser definidos como “o conjunto institucionalizado de direitos e garantias do ser humano que tem por finalidade básica o respeito a sua dignidade, por meio de sua proteção contra o arbítrio do poder estatal, e o estabelecimento de condições mínimas de vida e desenvolvimento da personalidade humana.”7 Na doutrina de Pérez Luño, direitos fundamentais do homem constituem “um conjunto de faculdades e instituições que, em cada momento histórico, concretizam as exigências da dignidade, da liberdade e da igualdade humanas, as quais podem ser reconhecidas positivamente pelos ordenamentos jurídicos em nível nacional e internacional.” 8 Para José Castan Tobeña, direitos humanos são “aqueles direitos fundamentais da pessoa humana – considerada tanto em seu aspecto individual como comunitário – que correspondem a esta em razão de sua própria natureza (de essência ao mesmo tempo corpórea, espiritual e social) e que devem ser reconhecidos e respeitados por todo o poder e autoridade, inclusive as normas jurídicas positivas, cedendo, não obstante seu exercício, ante as exigências do bem comum.”9 Designado de variadas formas, dentre as quais direitos humanos, direitos humanos fundamentais, direitos fundamentais do homem, direitos da pessoa humana, direitos naturais, direitos do homem, liberdades fundamentais, liberdades públicas, importa referir-se que este conjunto de direitos “relaciona-se diretamente com a garantia de não-ingerência do Estado na esfera individual e com a consagração da dignidade humana, tendo um universal reconhecimento por parte 7 MORAES, Alexandre. Direitos Humanos Fundamentais. 6ª ed. São Paulo: Editora Atlas S.A., 2005, p. 21. 8 CASTRO, J.L. Cascajo, Luño. Antonio-Enrique Pérez, CID, B. Castro, TORRES, C. Gómes. Los derechos humanos: significación, estatuto jurídico y sistema. Sevilla: Universidad de Sevilla, 1979, p. 43, apud MORAES, Alexandre. Direitos Humanos Fundamentais. 6ª ed. São Paulo: Editora Atlas S.A., 2005, p. 22. 13 da maioria dos Estados, seja em nível constitucional, infraconstitucional, seja em nível de direito consuetudinário ou mesmo por tratados e convenção 10 internacionais.” Delimitado o objeto dos direitos humanos, de relevo referir-se que considerada a função que exercem, eles reclamam prestações negativas ou positivas do Estado. Os primeiros são chamados de direitos de não-lesão, direitos civis e políticos, direitos de liberdade ou direitos de defesa, e reclamam uma abstenção do Estado à sua asseguração. Os últimos exigem prestações positivas do Estado, identificados, ainda, como direitos sociais, econômicos e culturais, constituindo-se, pois, em direitos prestacionais.11 Sobre estes é que incidirão as reflexões propostas neste estudo acerca da concretização de direitos humanos. 1.2 A consagração dos direitos humanos prestacionais na ordem constitucional Os direitos humanos, nos quais se inserem os direitos prestacionais, identificados, ainda, como direitos sociais12, econômicos e culturais, aqueles que 9 MORAES, Alexandre, op. cit., p. 22. Ibidem, p. 23. 11 “A classificação dos direitos fundamentais segundo a função que exercem reconhece a existência de direitos fundamentais a ações negativas (omissão), que correspondem a direitos de defesa, e de direitos a ações positivas do Estado, que correspondem aos direitos a prestações do Estado. Os direitos de defesa fundamentam pretensões de omissão do Estado e, caso suceda a intervenção, pretensão de eliminação da intervenção. [...] Os direitos a ações positivas podem ser qualificados como direitos a prestações em sentido amplo. Os direitos fundamenais à prestação em sentido amplo, por sua vez, classificam-se em direitos à proteção, direitos à organização e procedimento e direitos prestacionais em sentido estrito ou direitos fundamentais sociais.” (LEIVAS, Paulo Gilberto Cogo. Teoria dos Direitos Fundamentais Sociais. Porto Alegre: Editora Livraria do Advogado, 2006, p. 8485). 12 “A primeira das características dos direitos fundamentais sociais que vem à tona é a de serem direitos a ações positivas. Como já referido, uma ação positiva representa uma mudança causal de situações ou processos de realidade, enquanto a omissão significa uma não-mudança de situações ou processos na realidade, embora fosse possível a mudança.” (Ibidem, p. 87). 10 14 13 reclamam ações positivas do Estado , cresceram de importância na vigente ordem constitucional. Para Flávia Piovesan, “o texto de 1988 ainda inova, ao alargar a dimensão dos direitos e garantias, incluindo no catálogo de direitos fundamentais não apenas os direitos civil e políticos, mas também os direitos sociais (ver capítulo II do título II da Carta de 1988). Trata-se da primeira Constituição brasileira a integrar, na declaração de direitos, os direitos sociais, tendo em vista que nas Constituições anteriores as normas relativas a estes direitos encontravam-se dispersas no âmbito da ordem econômica e social, não constando do título dedicado aos direitos e garantias.”14 O avanço da Carta Política brasileira, no que se refere à consagração dos direitos prestacionais, também mereceu o registro de Rogério Gesta Leal: Pode-se afirmar que, como referencial jurídico, a Carta de 1988 alargou significativamente a abrangência dos direitos e garantias fundamentais, e, desde o seu preâmbulo, prevê a edificação de um Estado Democrático de Direito no país, com o objetivo de assegurar o exercício dos direito socais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça, como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos. Nos seus artigos introdutórios, a Constituição estabelece um conjunto de princípios que delimitam os fundamentos e os objetivos da república. Dentre estes, destacam-se a cidadania e a dignidade da pessoa humana.15 Merece apontamento, ainda, a circunstância de que o estabelecimento da dignidade da pessoa humana como fundamento da República Federativa do Brasil – art. 1.° – orienta toda a ação da sociedade na busc a do atingimento desse valor. 16 13 “Em uma apreciação preliminar, pode-se dizer que direitos de defesa exigem uma omissão do Estado, e os direitos prestacionais, uma ação positiva. Porém, ocasionalmente, direitos de defesa exigem ações positivas do Estado – v.g., uma autorização para uma reunião –, e os direitos prestacionais exigem ações negativas – v.g., uma pretensão de não-revogação de lei que regulamenta direitos fundamentais sociais. Isso conduz a uma diferenciação material e formal entre ambos. Uma diferenciação material entre direitos a ações positivas e ações negativas depende da fundamentação do direito, independentemente de ocasionalmente surgir uma pretensão a uma ação positiva ou negativa como meio para se alcançar a realização do direito no sentido material.” (Ibidem, p. 83). 14 PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional. 3ª ed. São Paulo: Editora Max Limonad, 1997, p. 61. 15 LEAL, Rogério Gesta. Direitos Humanos no Brasil: desafios à democracia. Porto Alegre: Editora Livraria do Advogado, 1997, p. 130-131. 16 “Dignidade da pessoa humana é um valor supremo que atrai o conteúdo de todos os direitos fundamentais. Concebida como referência constitucional unificadora de todos os direitos fundamentais, observam Gomes Canotilho e Vital Moreira, o conceito de dignidade da pessoa humana obriga a uma densificação valorativa que tenha em conta o seu amplo sentido normativo- 15 1.3 Direitos humanos e desigualdade social A asseguração de garantias fundamentais, especialmente dos direitos humanos prestacionais, constitui caminho seguro para a redução das desigualdades sociais. A perseguição efetiva do combate à pobreza e à exclusão social repercute em todas as dimensões da pessoa, constituindo imperativo ético da sociedade. Essa obrigação reflete-se nos sistemas jurídicos que trazem positivados como obrigação jurídica deveres de inclusão social e de erradicação das causas geradoras da desigualdade. A leitura do art. 3.° da Constituição Federal promo ve a igualdade, em várias de suas manifestações, como objetivo fundamental da República. Tanto que os quatro incisos desse artigo são explícitos em determinar os aspectos que devem constituir a prioridade da atuação pública e privada para a consolidação do Estado Democrático de Direito. Art. 3º. Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: I - construir uma sociedade livre, justa e solidária; II garantir o desenvolvimento nacional; III - erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; IV promover o bem de todos, sem preconceito de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação. Constituem, deste modo, esses valores, a razão de ser do Estado brasileiro, as cláusulas do pacto social, para o qual os direitos fundamentais são os meios para sua consecução e o sistema jurídico, em sua inteireza, garante os modos para o seu necessário atingimento. Não se cuida, assim, de meras normas programáticas, destinadas simplesmente a pacificar o conflito social pela positivação. constitucional e não uma qualquer idéia apriorística do homem, não podendo reduzir-se o sentido da dignidade humana à defesa dos direitos pessoais tradicionais, esquecendo-a nos casos de direitos sociais, ou invocá-la para construir “teoria do núcleo da personalidade” individual, ignorando-a quando se trate de direitos econômicos, sociais e culturais.” (SILVA, José Afonso. Curso de Direito Constitucional Positivo. 6ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1990, p. 93). 16 Ao reverso, esses objetivos fundamentais da República constituem obrigações de resultado que o poder público e a sociedade devem conjuntamente buscar. Com vistas à construção de uma sociedade livre, justa e solidária, princípio dos quais os demais relacionados no artigo 3.º são corolários diretos, a Constituição estabelece os direitos à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, em todas as suas formas e meios descritos no artigo 5.º. No mesmo caminho, são proclamados os direitos sociais, como à educação, ao trabalho, ao lazer, à segurança, à previdência social, à proteção à maternidade e à infância, à assistência aos desamparados, na forma dos artigos 6.º a 9.º e 193 a 222. A Constituição Federal também impõe aos agentes econômicos a obrigatoriedade de operar conforme os objetivos fundamentais mencionados (art. 170, incisos III, VII e VIII). Quanto ao Poder Público, a Constituição explicitamente atribui, no artigo 23, inciso X, competência comum à União, Estados, Distrito Federal e aos Municípios “combater as causas da pobreza e os fatores de marginalização, promovendo a integração social dos setores desfavorecidos”. No âmbito internacional, a Declaração Universal dos Direitos Humanos estabelece que os direitos econômicos, sociais e culturais são indispensáveis à dignidade da pessoa e ao livre desenvolvimento da personalidade e que sua realização constitui direito de cada membro da sociedade (art. XXII). O trabalho, destaque-se, é erigido à condição de meio de proteção social. 17 17 “Artigo 23. I) Todo o homem tem direito ao trabalho, à livre escolha de emprego, a condições justas e favoráveis de trabalho e à proteção contra o desemprego. II) Todo o homem, sem qualquer distinção, tem direito a igual remuneração por igual trabalho. III) Todo o homem que trabalha tem direito a uma remuneração justa e satisfatória, que lhe assegure, assim como a sua família, uma existência compatível com a dignidade humana, e a que se acrescentarão, se necessário, outros meios de proteção social. IV) Todo o homem tem direito a organizar sindicatos e a neles ingressar para proteção de seus interesses. [...] Artigo 25. I) Todo o homem tem direito a um padrão de vida capaz de assegurar a si e a sua família saúde e bem estar, inclusive alimentação, vestuário, habitação, cuidados médicos e os serviços sociais indispensáveis, e direito à segurança em caso de desemprego, doença, invalidez, viuvez, velhice ou outros casos de perda de meios de subsistência em circunstâncias fora de seu controle. II) A maternidade e a infância tem direito a cuidados e assistência especiais. Todas as crianças, nascidas dentro ou fora do matrimônio, gozarão da mesma proteção social.” Disponível em: < http://www.dhnet.org.br/direitos/deconu/textos/integra.htm>. Acesso em 3.5.2008. 17 O Pacto Internacional dos Direitos Econômicos Sociais e Culturais e o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos explicitam, em preâmbulo de idêntica redação, a relação entre a privação no âmbito econômico e o gozo dos direitos econômicos, sociais e culturais, ao dispor que os Estados-Partes reconhecem “que, em conformidade com a Declaração Universal dos Direitos Humanos, o ideal do ser humano livre, liberto do temor e da miséria, não pode ser realizado a menos que se criem condições que permitam a cada um gozar de seus direitos econômicos, sociais e culturais, assim como de seus direitos civis e políticos.”18 A redação dessas normas internacionais de regulamentação de direitos humanos não deixa margem para dúvidas quanto à impossibilidade de se conceber o pleno exercício dos direitos civis e políticos se os direitos econômicos, sociais e culturais não estiverem garantidos e efetivados e vice-versa. Merece registro, então, a circunstância de que a desigualdade econômica grave cerceia o acesso material aos direitos fundamentais da pessoa humana. A situação de pobreza viola, a um só tempo, os direitos civis e políticos, assim como os econômicos, sociais e culturais. A pessoa destituída de recursos, que se encontra além do estado de vulnerabilidade ou de precariedade não tem elementos próprios e meios para dar início ao exercício de seus direitos fundamentais e, muitas vezes, sequer sabe de sua existência. 1.4 Fatores preponderantes da criminalidade no Brasil A criminalidade é um dos fatores que mais mobiliza a sociedade brasileira, dado seu recrudescimento quotidiano. Os estudos científicos apontam para uma diversidade de fatores que colaboram para a essa produção extraordinária de crimes na sociedade brasileira. 18 Disponível em: < http://www.direitoshumanos.usp.br/counter/Onu/Sist_glob_trat/texto/texto_2. html>. Aceso em 4.5.2008. 18 A moderna criminologia, ao se ocupar da perquirição das evidências que impulsionam o ser humano à pratica de crimes, aponta três linhas de motivação para a realização dessas condutas: biológicas, psicológicas e sociológicas. Para os defensores das teorias biológicas, a prática do delito decorre de alguma patologia, transtorno, disfunção ou anormalidade de que o ser humano é portador e que o determina ao cometimento do crime. O enfoque biológico recebe atenção importante na criminologia científica em razão de que os substratos biológico e genético do indivíduo representam um relevante referencial na existência humana. As investigações sobre a influência da formação biológica do indivíduo na prática de crimes possuem esforços concentrados nas áreas da antropometria, da antropologia, da biotipologia, da neurofisiologia, da endocrinologia, da bioquímica e da genética. A teorias psicológicas “buscam a explicação do comportamento delitivo no mundo anímico do homem, nos processos psíquicos anormais (psicopatologia) ou nas vivências subconscientes que têm sua origem no passado remoto do indivíduo e que só podem ser captadas por meio de introspecção (psicanálise).”19 O exame dos aspectos sociais, culturais e econômicos em que inserido o indivíduo, valorizando, assim, o ambiente e a forma como vive, constitui o elemento de estudo das teorias sociológicas sobre a motivação criminógena no ser humano. Elas adentram em formulações macrossociológicas, morais, políticas, étnicas, valorizando os aspectos relativos à composição da sociedade, sua dinâmica e conflitos. Hodiernamente, os modelos sociológicos são os mais valorizados para o entendimento das questões relativas à criminalidade. Eles apresentam a natureza social das circunstâncias motivadoras do crime, assim a pluralidade de fatores que relacionam o indivíduo e o meio em que vive e sua atuação na determinação da ação ilícita. As observações sociológicas também são capazes de determinar a incidência de variáveis espaciais e ambientais no fenômeno da criminalidade, 19 GARCIA-Pablos de Molina, Antonio. Criminologia. 3ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2000, p. 203. 19 traçando um perfil próprio do crime na zona urbana e nos grandes centros, por exemplo. 20 [...] mostram ainda o impacto das contradições estruturais e do conflito e a mudança social na dinâmica delitiva, o funcionamento dos processos de socialização em função da aprendizagem e identificação do indivíduo com modelos e técnicas criminais, assim como a transmissão e vivências de referidas pautas de conduta no seio das respectivas subculturas; mostram, por fim, o componente “definitorial” do delito e a ação seletiva discriminatória do controle social no recrutamento da população reclusa etc.21 O conceituado demógrafo e especialista em violência urbana Jean Claude Chesnais, em pesquisa realizada no Brasil, traçou um importante estudo sobre a criminalidade no país. Cinco ordens causais foram elencadas por ele como responsáveis pela atual situação: a) fatores sócio-econômicos, relacionados à pobreza, ao agravamento das desigualdades sociais e da não-concretização de direitos humanos a uma significativa parcela da sociedade; b) fatores institucionais, ligados à insuficiência do Estado e à crise do modelo familiar; c) fatores culturais, concernentes a problemas de integração racial e à desordem moral da sociedade; d) aspectos referentes à demografia urbana e à produção de gerações provenientes do período da explosão da taxa de natalidade chegando à vida adulta, assim como o surgimento de metrópoles e, e) a colaboração da mídia, com seu poder, para a apologia da violência.22 Ao abordar os fatores de ordem social, destaca a pobreza e a fome, esclarecendo que a subsistência é precária para grandes parcelas da população e que um grande número de crimes são cometidos para a satisfação de necessidades vitais. Nesse ponto, importante o registro de que havia, no Brasil, no ano de 1998, 50 milhões de pessoas em situação de pobreza.23 20 Ibidem, fl. 268. Ibidem, p. 268. 22 CHESNAIS, Jean Claude. A violência no Brasil. Causas e recomendações políticas para a sua prevenção. Disponível em: <http://www.scielosp.org/scielo.php?pid=S141381231999000100005&script=sci_arttext >. Acesso em 27.4.2008. 21 23 “Ao longo das últimas duas décadas, como observamos na tabela, a intensidade da pobreza manteve um comportamento de relativa estabilidade, com apenas duas pequenas contrações, concentradas nos momentos de implantação dos planos Cruzado e Real. Este comportamento estável, com a porcentagem de pobres oscilando entre 40% e 45% da população, apresenta flutuações associadas, sobretudo, à instável dinâmica macroeconômica do período. O grau de pobreza atingiu seus valores máximos durante a recessão do início dos anos 80, em 1983 e 1984, 20 O pesquisador ainda refere o quase desaparecimento dessa espécie de delitos na Europa, registrando que a miséria conduz aos crimes patrimoniais e à prostituição, citando o exemplo de Fortaleza, onde a taxa de emprego não acompanhou o crescimento demográfico, restando aquela comunidade “contaminada pela prostituição infantil e pelo turismo sexual”.24 Em seqüência, Chesnais pontua que a desigualdade, de modo mais importante que a pobreza, impulsiona a criminalidade no Brasil, esclarecendo que a mídia exacerba ainda mais a desigualdade, apontando-a diariamente e valorizando objetos simbólicos que exaltam o consumismo. Essas coisas estão, freqüentemente, fora de alcance, o que provoca uma frustração crescente, insuportável numa sociedade polarizada pela coexistência de uma oligarquia riquíssima (São Paulo é, depois de Nova Iorque, a cidade com maior número de jatos particulares) e de massas miseráveis. A sociedade brasileira é uma das mais desiguais, uma das mais estratificadas que existem. Aqui se encontra a mais extrema pobreza ao lado da mais fabulosa riqueza. Continua sendo o país dos privilégios pois a recessão econômica diminuiu a mobilidade social. O excesso de riqueza ostentada é vivido por muitos como uma provocação, daí a tentação do roubo e do dinheiro fácil.25 quando a porcentagem de pobres ultrapassou a barreira dos 50%. As maiores quedas resultaram, como dissemos, dos impactos dos planos Cruzado e Real, fazendo a porcentagem de pobres cair abaixo dos 30% e 35%, respectivamente. Considerando o período como um todo, constatamos que a porcentagem de pobres declinou de cerca de 39% em 1977 para cerca de 33% em 1998. Este valor ao final da série histórica analisada, apesar de ainda ser extremamente alto, aparenta representar um novo patamar do nível de pobreza nacional. A intensidade da queda na magnitude da pobreza ocorrida entre 1993 e 1995 foi menor do que em 1986. No entanto, a queda de 1986 não gerou resultados sustentados, com o valor da pobreza retornando no ano seguinte ao patamar vigente antes do Plano Cruzado. Entre 1995 e 1998 a porcentagem de pobres permaneceu estável em torno do patamar de 34%, indicando a manutenção dos impactos do Plano Real. Apesar da pequena queda observada no grau de pobreza, o número de pobres no Brasil, em decorrência do processo de crescimento populacional, aumentou em cerca de 10 milhões, passando de 40 milhões em 1977 para 50 milhões em 1998. A combinação entre as flutuações macroeconômicas e o crescimento populacional fez com que o número de pobres chegasse a quase 64 milhões na crise de 1984 e a menos de 38 milhões em 1986. No final dos anos 80 registra-se uma aceleração no contingente da população pobre e, no período recente, após a implantação do Plano Real, cerca de 10 milhões de brasileiros deixaram de ser pobres. Os atuais 50 milhões de pessoas pobres, por sua vez, encontramse heterogeneamente distribuídos abaixo da linha de pobreza e sua renda média encontra-se cerca de 55% abaixo do valor da linha de pobreza. Os 21 milhões de pessoas indigentes, que correspondem a um subconjunto da população pobre, estão igualmente distribuídos de forma heterogênea e encontram-se mais próximos de seu valor de referência, com sua renda média mantendo-se cerca de 60% abaixo da linha de indigência.” (BARROS, Ricardo Paes de; HENRIQUES, Ricardo; MENDONÇA, Rosane. Desigualdade e Pobreza no Brasil: retrato de uma estabilidade inaceitável. In Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 15, n. 42, São Paulo, 2000. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-69092000000 100009>. Acesso em 3.5.2008). 24 25 CHESNAIS, Jean Claude, op. cit. Ibidem. 21 Importante o registro de que a unanimidade dos estudos sobre criminalidade no Brasil e na América Latina aponta para a absoluta preponderância das causas de origem sociológica na determinação do individuo para a prática delitiva. 26 Não menos relevante o assentamento de ocupar o Brasil posição privilegiada no ranking mundial da desigualdade social, perdendo apenas para a África do Sul e Malawi. Afora o fato de estar dentre os quatro países de maior desigualdade social do mundo, o que mais impressiona é a constatação científica da ausência de qualquer registro de tendência à involução dessa desigualdade se examinados os indicadores sociais das últimas décadas.27 26 “Em primeiro lugar, por um conjunto de razões ligadas à sua história [...] a sociedade brasileira continua caracterizada pelas disparidades sociais vertiginosas e pela pobreza de massa que, ao se combinarem, alimentam o crescimento inexorável da violência criminal, transformada em principal flagelo das grandes cidades. [...] Na ausência de qualquer rede de proteção social, é certo que a juventude dos bairros populares esmagados pelo peso do desemprego e do subemprego crônicos continuará a buscar “no capitalismo de pilhagem” da rua (como diria Max Weber) os meios de sobreviver e realizar os valores do código de honra masculino, já que não consegue escapar da miséria do cotidiano.” (WACQUANT,Loïc. As prisões da miséria. Tradução: André Telles. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2001, p. 8). 27 “O Brasil e o mundo: uma comparação da estrutura da desigualdade. [...] O coeficiente de Gini do Brasil, com valor próximo de 0,60, representa, no conjunto de 92 países com informações disponíveis, um padrão alcançado apenas pelos quatro países com maior grau de desigualdade: Guatemala, Brasil, África do Sul e Malawi. [...] O Gráfico 5 apresenta a razão entre a renda média dos 10% mais ricos e a renda média dos 40% mais pobres para cerca de 50 países. Devemos lembrar que quanto menor for a razão entre essas rendas médias, mais eqüânime será a estrutura distributiva, com os mais ricos retendo uma renda média de valor relativamente próximo à dos mais pobres. Esta medida da estrutura de concentração da renda revela, para a grande maioria dos países, uma razão com valor inferior a 10, sendo que somente em seis países essa razão é superior a 20. De fato, podemos identificar um certo padrão na distribuição internacional, com alguns países, como os Estados Unidos, gravitando em torno do valor 5, outros, como a Argentina, em torno de 10 e, finalmente, alguns, como a Colômbia, em torno do valor 15. O Brasil, por sua vez, é o país com o maior grau de desigualdade dentre os que dispomos de informações, com a renda média dos 10% mais ricos representando 28 vezes a renda média dos 40% mais pobres. Um valor que coloca o Brasil como um país distante de qualquer padrão reconhecível, no cenário internacional, como razoável em termos de justiça distributiva. O Gráfico 6 apresenta a razão entre a renda média dos 20% mais ricos e os 20% mais pobres para cerca de 45 países, confirmando o diagnóstico do indicador anterior. Na grande maioria dos países essa razão é inferior a 10 e em apenas cinco países essa razão é superior a 20. O Brasil, novamente, é o país com o maior grau de desigualdade segundo as informações presentes no Relatório de desenvolvimento humano de 1999, o único dos países analisados em que a razão entre a renda média dos 20% mais ricos da população e a renda média dos 20% mais pobres supera o dilatado valor de 30. Os valores contundentes reportados nesta seção não deixam dúvidas quanto à posição singular do Brasil, com o seu grau de desigualdade figurando entre os mais elevados do mundo. [...] Evolução da desigualdade: a decepção de uma regularidade. A análise da evolução da desigualdade de renda no Brasil ao longo das duas últimas décadas é desenvolvida a partir das mesmas medidas de desigualdade descritas anteriormente. Todos indicadores selecionados, conforme observamos nas Tabelas 4 e 5, revelam um elevado grau de desigualdade, sem qualquer tendência ao declínio. O grau de desigualdade observado em 1998 é bastante similar ao do início da série, no final da década de 70.” (BARROS, Ricardo Paes de; HENRIQUES, Ricardo; MENDONÇA, Rosane. Desigualdade e Pobreza no Brasil: retrato de uma estabilidade inaceitável. In Revista 22 Além de sublinhar a contribuição fundamental dos aspectos sociais, os pesquisadores têm destacado o crescimento incessante da criminalidade no Brasil e na América Latina nas últimas décadas. E o aumento da incidência de crimes nessa região deve-se, segundo Marcelo Carámbula, fundamentalmente, ao crescimento da adoção de modelos econômicos que privilegiam os aspectos financeiros em detrimento do papel social do Estado na garantia da dignidade do ser humano, causando desorganização social e aumento de conflitos individuais e coletivos: Não por simples acaso, a população carcerária brasileira saltou de aproximadamente 120.000 detentos, em 1990, para cerca de meio milhão, em 2002, coincidindo com o período de adoção de políticas neoliberais no país, durante as gestões Fernando Collor e Fernando Henrique Cardoso/Itamar Franco (1995-2002). Essa conjuntura social, econômica e política se verifica, via de regra, em toda América Latina. [...] o processo de estagnação e de aprofundamento das desigualdades sociais tem sérias implicações na segurança pública [...] ”28 Ainda no sentido de apontar o papel fundamental da desigualdade social na criminalidade, Giancarlo Corsi destacou, com precisão, a prevalência das causas de origem social sobre as individuais na determinação da prática de crimes, chegando a questionar a exigibilidade de conduta não-criminosa a um excluído. Ou seja, é de se perguntar que alternativas pode ter um excluído a não ser fazer o que faz. Este não é um problema apenas da América Latina ou da África, ou de outras zonas pobres; são problemas que começam a existir e que se percebem também na Europa. [...] Em geral, tenho a impressão de que se dê como certo, sobretudo no âmbito político e jurídico, que, se não existissem desigualdades e injustiças, provavelmente sequer teríamos a criminalidade, pelo menos desta forma.29 A pesquisa econômica também aponta a desigualdade como o fator que mais impulsiona o crime, destacando que os delitos patrimoniais respondem mais intensamente a essa variável e representam um quarto da criminalidade verificada Brasileira de Ciências Sociais, v. 15, n. 42, São Paulo, 2000. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-69092000000 100009>. Acesso em 3.5.2008). 28 CARÁMBULA, Marcelo. Por uma Segurança Cidadã no Brasil e América Latina. In Novas Direções na Governança da Justiça e da Segurança. Brasília-DF: Ministério da Justiça, 2006, p. 858. 29 Globalização, Sistema Penal e Ameaças ao Estado Democrático de Direito. Org. Maria Lúcia Karam. Rio da Janeiro: Lumen Juris Editora, 2005, p. 68-69. 23 nos grandes centros brasileiros, “o que torna difícil negar que a crescente onda de violência urbana no Brasil é mais um efeito perverso deste crime social secular brasileiro chamado desigualdade de renda.”30 1.5 Radiografia do sistema prisional brasileiro O primeiro atestado do estado de calamidade do sistema prisional brasileiro pode ser percebido em razão da ausência de dados oficiais suficientes a seu respeito. Muito embora na década de 90 houvesse a cultura de se proceder, periodicamente, a uma radiografia qualitativa e quantitativa dos indicadores relativos às pessoas privadas de liberdade pelo Estado, a vergonha traduzida pelos números apresentados, com certeza, demoveu o poder público de pesquisar e divulgar os dados estatísticos do sistema prisional, decisão que tem tão-somente o condão de agravar esta já preocupante realidade. Isso porque a inexistência de diagnóstico serve apenas para esconder a real situação do sistema, que deve ser demonstrada para o fim de impulsionar as reformas que ele necessita. Anote-se, por oportuno, que a precariedade dos dados oficiais e até mesmo a indisponibilidade de estatísticas pretéritas, impõe que se apresente o diagnóstico do sistema prisional de modo histórico e a partir de informações prestadas por investigadores que tiveram acesso a esses elementos quando ainda disponíveis. Nesse passo, segundo Lúcio Ronaldo Pereira Ribeiro, Com base em dados fornecidos pelo Departamento de Assuntos Penitenciários, (DEPEN), da Secretaria dos Direitos da Cidadania e Justiça, do Ministério da Justiça para 1993 podemos constatar estatisticamente a falência do sistema penitenciário brasileiro, o qual serve apenas, na prática, para enjaular uma parte considerável das camadas menos favorecidas econômica e socialmente. Dos 126 mil presos existentes no país, quase todos homens (97%). Destes 48% cumprem pena irregularmente nas carceragens das delegacias. [...] Há, em média, um milhão de crimes por ano, sendo 72% casos de 30 RESENDE, João Paulo. Crime Social, Castigo Social. Disponível <http://www.diarioaponte.com/crime-social-castigo-social/>. Acesso em 28.4.2008. em: 24 roubo ou furto, e 28% de homicídio, lesão corporal, aborto, estupro, corrupção, tráfico, e porte de drogas. 68% das pessoas presas têm menos de 25 anos de idade, sendo que 2/3 são negros e mulatos; 89% são presos sem atividade produtiva ou trabalho fixo; 76% são analfabetos ou semi-analfabetos; 95% são pobres; 98% não podem 31 contratar advogado; 85% cometem reincidência. Danielle Magnabosco, esclarecendo haver extraído dados de matéria publicada na revista Veja, de 23.10.1996, registra: O país tem hoje 150.000 presos, 15% a mais do que em 1994, data em que fora realizada a última pesquisa. A massa carcerária cresce ao ritmo de um preso a cada trinta minutos. A AIDS prolifera entre os detentos com a rapidez de uma peste. Cerca de 10% a 20% dos presos estão contaminados. Um número tão assustador que o governo evita divulgá-lo para não provocar rebeliões. [...] Uma pesquisa realizada em 1994, demonstra-nos que 90% dos exdetentos pesquisados procuram trabalho nos 02 primeiros meses, após a conquista da liberdade. Depois de encontrarem fechadas todas as portas, voltam a praticar novos delitos. Estudos mostram que, em média, 70% daqueles que saem das cadeias, reincidem no crime.32 Adiciona-se a esse estado de calamidade, a circunstância de que há um déficit de 110 mil vagas no sistema prisional brasileiro33, o que vai de encontro às Recomendações Mínimas para Tratamento de Prisioneiros da Organização das Nações Unidas.34 Ao lado desses números, que demonstram a precariedade do sistema prisional brasileiro35, a instituição da prisão, ainda que operasse em situação ideal, 31 RIBEIRO, Lúcio Ronaldo Pereira. O pacto social e a pedagogia do preso-condenado. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/Doutrina/texto.asp?id=1015>. Acesso em 28.4.2008. 32 Sistema penitenciário brasileiro: aspectos sociológicos. Disponível em <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=1010>. Acesso em 28.4.2008. 33 Disponível em: < http://www.folhadoamapa.com.br/classica/diario_comments.php?id=39750_4_0>. Acesso em 3.5.2008. 34 “9. 1. As celas ou quartos destinados ao isolamento noturno não deverão ser ocupadas por mais de um preso. Se, por razões especiais, tais como excesso temporário da população carcerária, for indispensável que a administração penitenciária central faça exceções a esta regra, deverá evitar-se que dois reclusos sejam alojados numa mesma cela ou quarto individual.” (Regras Mínimas para o Tratamento de Prisioneiros. Adotadas pelo 1º Congresso das Nações Unidas sobre Prevenção do Crime e Tratamento de Delinqüentes, realizado em Genebra, em 1955, e aprovadas pelo Conselho Econômico e Social da ONU através da sua resolução 663 C I (XXIV), de 31 de julho de 1957, aditada pela resolução 2076 (LXII) de 13 de maio de 1977. Anexo A.). Disponível em: <http://www.dhnet.org.br/direitos/sip/onu/fpena/lex52.htm>. Acesso em 3.5.2008. 35 Até mesmo no Rio Grande do Sul, Estado havido como possuidor de um dos sistemas prisionais mais organizados do país, a situação encontra-se precária, como bem se pode ver do editorial do jornal Zero Hora, de 3.6.2006, p. 14: “A condição atingida pelo Presídio Central de Porto Alegre de o mais populoso no país é por si só reveladora do colapso do sistema carcerário. O fato de a instituição ter alcançado o maior número de detentos concentrados em apenas uma unidade, sob uma única 25 produz, por sua própria natureza, efeitos nefastos no indivíduo, porquanto gera uma sociedade, isolada por muros e grades, dentro de outra, formando uma série de princípios e realidades próprias e prejudiciais à preparação do ser humano à vida livre. 36 A complexidade da vida em uma prisão é apontada pela unanimidade dos estudiosos do tema, que anotam a existência de um objetivo primordial do cárcere: a segregação do indivíduo, gerando uma série e conflitos entre funcionários da prisão e presos, um ambiente de desconfiança, esperteza e desonestidade.37 Dentro da prisão, o indivíduo submete-se a um processo de adaptação denominado prisonização, definido como a “adoção em maior ou menor grau do modo de pensar, dos costumes, dos hábitos – da cultura geral da penitenciária.”38 De acordo com João Farias Júnior, “os presos recebem uma espécie de transfusão de influxos deletérios, que tem o poder de transformá-los para pior. Em geral, vão se desadaptando dos condicionamentos sociais extramuros na medida em que vão se adaptando aos condicionamentos sociais intramuros.”39 Ao descrever sua observação do universo prisional, Odete Maria de Oliveira ainda aponta algumas das privações por que passam as pessoas aprisionadas no Brasil: administração, evidencia, de um lado, a carência de instalações adequadas. [...] Um dos aspectos chocantes do diagnóstico sobre o Presídio Central é que nem mesmo o verdadeiro empilhamento de detentos em condições subumanas sensibiliza a sociedade a buscar alternativas.[...] As dificuldades enfrentadas pelo Central são comuns à maioria dos presídios no Estado, que enfrentam um déficit carcerário de mais de 7 mil vagas. [...] O triste recorde do Presídio Central não poderia expressar de forma mais crua, simultaneamente, até onde pode levar o descaso em relação à questão e também o tamanho do desafio que o poder público tem pela frente.” 36 “60. 1.O regime do estabelecimento prisional deve tentar reduzir as diferenças existentes entre a vida na prisão e a vida livre quando tais diferenças contribuirem para debilitar o sentido de responsabilidade do preso ou o respeito à dignidade da sua pessoa. 2. É conveniente que, antes do término do cumprimento de uma pena ou medida, sejam tomadas as providências necessárias para assegurar ao preso um retorno progressivo à vida em sociedade. Este propósito pode ser alcançado, de acordo com o caso, com a adoção de um regime preparatório para a liberação, organizado dentro do mesmo estabelecimento prisional ou em outra instituição apropriada, ou mediante libertação condicional sob vigilância não confiada à polícia, compreendendo uma assistência social eficaz.” (Regras Mínimas para o Tratamento de Prisioneiros. Adotadas pelo 1º Congresso das Nações Unidas sobre Prevenção do Crime e Tratamento de Delinqüentes, realizado em Genebra, em 1955, e aprovadas pelo Conselho Econômico e Social da ONU através da sua resolução 663 C I (XXIV), de 31 de julho de 1957, aditada pela resolução 2076 (LXII) de 13 de maio de 1977. Anexo A.). Disponível em: <http://www.dhnet.org.br/direitos/sip/onu/fpena/lex52.htm>. Acesso em 3.5.2008. 37 OLIVEIRA, Odete Maria de. Prisão: um paradoxo social. 3ª edição. Florianópolis: Editora da UFSC, 2003, p. 76. 38 Ibidem, p. 77. 39 Ibidem, p. 77. 26 Sofrem o primeiro impacto com a ruptura brusca em seu status, pela pura e simples subordinação anônima a um grupo de pessoas prisioneiras. Passam a trajar as mesmas roupas, a usar o mesmo linguajar e a adquirirem novos hábitos relativos a comer, dormir, vestir, trabalhar, e obediência permanente. Aprendem a jogar, ou nova maneira de fazê-lo, desconfiam de todos, adquirem comportamento sexual anormal, sentem rancor de tudo e de todos. “A prisionização leva à desorganização da personalidade, à deformação do caráter, à degradação do comportamento e ao 40 abandono dos padrões de vida extramuros.” Na mesma senda, o relatório da Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara dos Deputados, aponta para a inexistência de tratamento digno aos indivíduos privados de liberdade no país: A idéia de "dignidade", por exemplo, haverá de perturbar o visitante que a possua. O que vemos no interior dos presídios, particularmente nas atuais condições de encarceramento, é uma afronta permanente a este e a muitos outros valores fundamentais para a condição humana. É impossível dar conta desse estranhamento a partir de uma visão formatada desde o exterior dos presídios. Alguém que experimente as condições de vida em sociedade nesse final de século vive, necessariamente, em coordenadas espaço-temporais que não guardam qualquer relação com aquelas vividas realmente pelos encarcerados.41 40 Ibidem, p. 77-78. Relatório da II Caravana Nacional da Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara dos Deputados. Anexo B. Disponível em: <http://hsw.uol.com.br/framed.htm?parent=prisoes.htm&url= http://www2.camara.gov.br/comissoes/cdhm>. Acesso em 3.5.2008. 41 27 2 A NECESSÁRIA RELAÇÃO ENTRE DIREITOS HUMANOS, CRIMINALIDADE SISTEMA PRISIONAL 2.1 O desafio da concretização dos direitos humanos Muito embora de fundamental importância, a proclamação constitucional dos direitos humanos não se afigura suficiente à sua realização na realidade fática da vida das pessoas. Há um longo caminho a ser percorrido entre o reconhecimento formal de direitos humanos pelas mais diversas ordens jurídicas e sua concretização, especialmente quando se faz necessária a atuação positiva do Estado, como na hipótese de concretização de direitos humanos prestacionais ou sociais. Examinando os direitos do homem na sociedade atual, Silvia Maria Solci destaca a distância verificada em todo o mundo entre os direitos proclamados pela ordem jurídica e aqueles efetivamente concretizados e adverte: Apesar de se contemplar a “era dos direitos”, segundo Bobbio (1992), na realidade concreta vive-se profundo desrespeito aos direitos humanos. A luta pelo reconhecimento dos direitos não é recente. Há longo tempo o homem se dedica a reivindicá-los; uma vez conquistados deve fazer com que sejam realizados e não violados. O direito não se faz sem lutas, as quais assumem diferentes formas, tal como a denúncia, o debate, o protesto, a resistência. Em conseqüência, o direito vai sendo construído em determinado contexto social fruto das transformações da sociedade, podendo significar não só avanços mas retrocessos. 42 Adverte a autora, após, que “a formação e o crescimento da consciência do estado de sofrimento, de indigência, de penúria, de miséria, ou, mais geralmente, de infelicidade, em que se encontra o homem no mundo (Bobbio, 1992, p. 54), força-o a empenhar-se na superação de tal estado fazendo surgir ‘zonas de luz’ as quais considera indícios de progresso da humanidade, tal como os amplos debates internacionais sobre os direitos do homem que hoje ocorrem.” 43 42 SOLCI, Silvia Maria. Os Direitos do homem na sociedade <http://www.ssrevista.uel.br/c_v2n1_direitos.htm>. Acesso em: 17.9.2007. 43 Ibidem. atual. Disponível em: 28 Com este mesmo dilema se depara a humanidade relativamente aos direitos humanos dos indivíduos no cumprimento de penas privativas de liberdade e aos egressos do sistema prisional: muito embora não se duvide de seu status constitucional e de sua relevância social, em realidade ainda se está muito distante de conferir às pessoas que se encontram nestas situações aquelas garantias fundamentais. Ilustrativas, a esse respeito, as observações apresentadas pelos pesquisadores Carmem Silveira Oliveira, Maria Palma Wolff, Marta Conte e Ronaldo César Henn, ao relacionar a asseguração de direitos humanos com o cumprimento das penas privativas de liberdade: A dificuldade de acesso ao emprego, a fragilidade e a precarização das relações de trabalho representam também a fragilidade na efetivação dos direitos sociais, historicamente vinculados ao processo de trabalho. [...] No momento em que o trabalho é definido como o principal critério de inclusão numa sociedade que produz cada vez mais desempregados, o destino dos sobrantes e dos não inseridos só pode ser a exclusão, a eliminação (Castel, 1998; Bauman, 1999). E os presos, por sua história de vida, caracterizada por dificuldades de acesso à saúde, educação, habitação, formação profissional e consumos de bens culturais, podem ser efetivamente considerados como sobrantes.44 Importante, outrossim, o registro da existência de Regras Mínimas para Tratamento de Prisioneiros, editadas pela Organização das Nações Unidas, proclamando, justamente, a necessidade de que o mundo observe, ao menos, requisitos mínimos de dignidade aos seres humanos aprisionados. Do teor do documento, relevante assinalar-se a recomendação constante do “Procedimento 4”, passo inicial e fundamental à viabilização da voz e da necessária ação dos aprisionados na concretização de seus direitos. 45 44 OLIVEIRA, C. S. ; WOLFF, Maria Palma ; CONTE, Marta ; HENN, Ronaldo C . Direitos sociais: repercussões no cumprimento de penas privativas de liberdade. Revista Serviço Social e Sociedade, v. 26, n. 81. São Paulo: Editora Cortez, p. 110-111. 45 A íntegra dessa norma está no Anexo A. Dela, extraem-se as seguintes recomendações para que se dê, efetivamente, sua concretização: “Procedimentos para a aplicação efetiva das Regras Mínimas para o Tratamento de Prisioneiros. Procedimento 1. Todos os Estados cujas normas de proteção a todas as pessoas submetidas a qualquer forma de detenção ou prisão não estiverem à altura das Regras Mínimas para o Tratamento de Prisioneiros, adotarão essas regras mínimas. [...] Procedimento 2. Adaptadas, se necessário, às leis e à cultura existentes, mas sem distanciar-se do seu espírito e do seu objetivo, as Regras Mínimas serão incorporadas à legislação nacional e demais regulamentos. [...] Procedimento 3. As Regras Mínimas serão postas à disposição de todas as pessoas interessadas, em particular dos funcionários responsáveis pela aplicação da lei e do pessoal penitenciário, a fim de permitir sua aplicação e execução dentro do sistema de justiça penal. Comentário: Este procedimento lembra que as Regras Mínimas, assim como as leis e os regulamentos nacionais relativos à sua aplicação, devem ser colocados à disposição de todas as 29 A redução desta distância entre a norma e a realidade, assim as ações necessárias à concretização de direitos humanos à cidadania, ao preso e ao egresso do sistema prisional, integrarão as reflexões constantes dos próximos capítulos deste estudo. 2.2 A não-concretização de direitos humanos como causa da criminalidade perseguida e da reincidência Do exame dos fatores motivadores da criminalidade no Brasil, resultou inequívoca a preponderância dos fatores de ordem sociológica, especialmente daqueles relacionados à não-concretização de direitos humanos a uma expressiva parcela da sociedade brasileira. Além de empurrar milhares de indivíduos excluídos para longe da possibilidade de ter acesso aos bens sociais que haveriam de ser universais e aos meios de obtenção de recursos à aquisição de bens, o absoluto descaso do poder público e da sociedade com o sistema prisional – fato já delineado no capítulo pessoas que participem na sua aplicação, em especial dos funcionários responsáveis pela aplicação da lei e do pessoal penitenciário. É possível que a aplicação das Regras exija, ademais, que o organismo administrativo central encarregado dos aspectos correcionais organize cursos de capacitação. A difusão dos presentes procedimentos é examinada nos procedimentos 7 a 9. Procedimento 4. As Regras Mínimas, na forma em que se incorporaram à legislação e demais regulamentos nacionais, também serão colocadas à disposição de todos os presos e de todas as pessoas detidas ao ingressarem em instituições penitenciárias e durante sua reclusão. Comentário: Para se alcançar o objetivo das Regras Mínimas, é necessário que as Regras, assim como as leis e as regulamentações nacionais destinadas a dar-lhes aplicação, sejam postas à disposição dos presos e de todas as pessoas detidas (regra 95), a fim de que todos eles saibam que as Regras representam as condições mínimas aceitas pelas Nações Unidas. Assim, este procedimento complementa o disposto no procedimento 3. Um requisito análogo - que as Regras sejam colocadas à disposição das pessoas para cuja proteção foram elaboradas - figura já nos quatro Convênios de Genebra, de 12 de agosto de 1949, cujos artigos 47 do primeiro Convênio, 48 do segundo, 127 do terceiro e 144 do quarto contêm a mesma disposição: "As Altas Partes contratantes comprometem-se a difundir, o mais amplamente possível, em tempo de paz e em tempo de guerra, o texto do presente Convênio em seus respectivos países, e especialmente a incorporar seu estudo aos programas de instrução militar e, em sendo possível, também civil, de modo que seus princípios sejam conhecidos pelo conjunto da população, particularmente das forças armadas combatentes, do pessoal da saúde e dos capelães." (Regras Mínimas para o Tratamento de Prisioneiros. Adotadas pelo 1º Congresso das Nações Unidas sobre Prevenção do Crime e Tratamento de Delinqüentes, realizado em Genebra, em 1955, e aprovadas pelo Conselho Econômico e Social da ONU através da sua resolução 663 C I (XXIV), de 31 de julho de 1957, aditada pela resolução 2076 (LXII) de 13 de maio de 1977. Anexo A.). Disponível em: <http://www.dhnet.org.br/direitos/sip/onu/fpena/lex52.htm>. Acesso em 3.5.2008. 30 anterior –, alia-se à gênese perversa das prisões, recrudescendo a humanidade encarcerada e colaborando para que o sistema se alimente de seu próprio produto. A análise da hipossuficiência social da população carcerária demonstra a forte contribuição da não-asseguração de direitos humanos aos indivíduos antes, durante e após o encarceramento, para a manutenção do ciclo de criminalidade e violência. Dessa realidade, pode inferir-se que “a marginalização carcerária é para a maior parte dos presos um processo secundário de marginalização que intervém depois de um processo primário” (Baratta, 1991:140). Telles conceitua questão social como uma aporia que se refere “à disjunção entre esperanças de um mundo que valha a pena ser vivido, inscritas nas reivindicações por direitos e o bloqueio de expectativas de futuro para maiorias atingidas por uma modernização selvagem” (2001:115). Neste sentido, são constituídas formas de vida cuja vulnerabilidade e precariedade são cristalizadas como o único destino possível. A questão social se expressa, portanto, na história de vida dos apenados, que certamente vai se reproduzir durante o cumprimento da pena e nas limitações na saída da prisão. É a constatação de que vivemos uma grande desigualdade, uma diferença produzida pela divisão de classes sociais.46 A desproteção social forma legiões de pessoas privadas dos bens materiais e imateriais prometidos pela ordem jurídica a todo o ser humano, os indivíduos marginalizados.47 Essas pessoas que, no Brasil, constituem cifra importante da população, acumulam, “em ritmo crescente, sofrimentos e conflitos de natureza psicológica, redundando num quadro psicossocial agravado pelas condições hostis de existência vigentes no meio em que vivem.” 48 Daí surgir o desapreço a certos conceitos axiológicos essenciais, como a auto-estima. Ao perder o respeito por si mesmo, o marginalizado volta as costas para o mundo em que vegeta, não vive. [...] Alguns, ao tentarem escapar dessa malha perversa, acabam descambando para a criminalidade [...] É sem dúvida, da 46 OLIVEIRA, C. S. ; WOLFF, Maria Palma ; CONTE, Marta ; HENN, Ronaldo C . Direitos sociais: repercussões no cumprimento de penas privativas de liberdade. Revista Serviço Social e Sociedade, v. 26, n. 81. São Paulo: Editora Cortez, p. 111. 47 “Neste sentido, entendemos ser marginal um indivíduo caracterizado pela fragilidade de seus próprios meios de subsistência, tendo em vista sua limitadíssima inserção no mercado de trabalho e, como via de conseqüência, impossibilitado de satisfazer suas necessidades mínimas e essenciais, alijado que está de produzir sua auto-sustentação.” (FALCONI, Romeu. Sistema Presidial: Reinserção Social? São Paulo: Ícone, 1998, p. 35). 48 Ibidem, p. 36. 31 marginalidade – maioria das vezes – que sai o produto acabado da criminalidade: o criminoso, já que os que vivem nesse gueto nada, ou quase nada, têm a perder, senão a sua liberdade, que pouco ou nada vale diante de tal quadro.49 Exatamente sobre essa população que busca a satisfação de suas necessidades básicas e a obtenção daqueles direitos fundamentais que lhe foram negados é que recai o direito penal, o que se chama de controle penal do subproduto social ou de criminalização da pobreza. Loïc Wacquant, após destacar o tratamento penal conferido pelo Brasil aos distúrbios urbanos, refere que as prisões do país “... se parecem mais com campos de concentração para pobres, ou com empresas públicas de depósito industrial dos dejetos sociais, do que com instituições judiciárias servindo para alguma função penalógica – dissuasão, neutralização ou reinserção.”50 Com efeito, aqueles indivíduos que tiveram suas garantias constitucionais atendidas, ocupantes, de regra, das classes dominantes praticam, igualmente, condutas lesivas ao meio social. Todavia, pena de autofagia, a classe que domina não cria tipos penais para incidir sobre as condutas que pratica.51 A agravar essa situação, a circunstância de que os “crimes de colarinho branco” contrariam, no mais das vezes, interesses coletivos, lesando os cofres públicos e desviando aquelas cifras que haveriam de garantir a concretização de direitos humanos.52 Assim, então, o sistema de controle social garante sua estabilidade. 49 Ibidem, p. 36-37. As prisões da miséria. Traduzido por André Telles. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2001, p. 11. 51 “Os mecanismos reguladores da seleção da população criminosa são complexos [...] Mas se partimos de um ponto de vista mais geral, e observamos a seleção da população criminosa dentro da perspectiva macrossociológica da interação e das relações de poder entre os grupos sociais, reencontramos, por detrás do fenômeno, os mesmos mecanismos de interação, de antagonismo e de poder que dão conta, em uma estrutura social, da desigual distribuição de bens e de oportunidades entre os indivíduos. Só partindo deste ponto de vista pode-se reconhecer o verdadeiro significado do fato de que a população carcerária, nos países da área do capitalismo avançado, em sua enorme maioria, seja recrutada entre a classe operária e as classes economicamente mais débeis. Realmente, só do interior desta perspectiva tal significado pode subtrair-se ao álibi teórico que, ainda em nossos dias, é generosamente oferecido pelas interpretações ‘patológicas’ da criminalidade.” (BARATTA, Alessandro. Criminologia Crítica e Crítica do Direito Penal. 2ª ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1999, p. 106-107). 52 Alessandro Baratta, após sublinhar ser a criminalidade definida e escolhida pela classe dominante, provoca: “A pergunta que Sutherland havia formulado em 1945: ‘é criminalidade a criminalidade do colarinho branco?’, revela ainda toda a sua força.” (ob. cit., p. 109). 50 32 2.3 O tratamento penal da pobreza A incrementação da criminalidade e sua constante alimentação, como se examinou, estão associadas de modo mais direto à deficiência do Estado e da sociedade na distribuição equânime de suas riquezas, incluído aquele acervo de caráter não-patrimonial do ser humano. Então, a superação ou até mesmo a minimização desta realidade estão relacionadas ao crescimento do Estado social. Deste modo, não se devendo a criminalidade, modo mais importante, à insuficiência da repressão penal, não haverá de ser seu incremento o responsável por uma reversão daquele quadro. Exatamente por esse motivo, a penalidade neoliberal – também, nominada “tratamento penal da pobreza” – apresenta o seguinte paradoxo: “pretende remediar com um mais Estado policial e penitenciário o menos Estado econômico e social que é a própria causa da escalada generalizada da insegurança objetiva e subjetiva em todos os países, tanto do Primeiro, como do Segundo Mundo.”53 Wacquant prossegue, assinalando que a “penalidade neoliberal ainda é mais sedutora e mais funesta quando aplicada em países ao mesmo tempo atingidos por fortes desigualdades de condições e de oportunidades de vida e desprovidos de tradição democrática e de instituições capazes de amortecer os choques causados pela mutação do trabalho e do indivíduo no limiar do novo século.” 54 Logo a seguir, arremata: Isto é dizer que a alternativa entre o tratamento social da miséria e seus correlatos – ancorado numa visão de longo prazo guiada pelos valores de justiça social e de solidariedade – e seu tratamento penal – que visa as parcelas mais refratárias do subproletariado e se concentra no curto prazo dos ciclos eleitorais e dos pânicos orquestrados por uma máquina midiática fora de controle –, diante da qual a Europa se vê atualmente na esteira dos Estados Unidos, coloca-se em termos particularmente cruciais nos países 53 WACQUANT, Loïc. As prisões da miséria. Traduzido por André Telles. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2001, p. 7. 54 Ibidem, p. 7-8. 33 recentemente industrializados na América do Sul, tais como o Brasil e seus principais vizinhos, Argentina, Chile, Paraguai e Peru. 55 Baratta, após esclarecer que a população carcerária dos países capitalistas decorre, majoritariamente, das classes proletárias e, portanto, “das zonas sociais já socialmente marginalizadas como exército de reserva pelo sistema de produção capitalista”, adverte de 80% dos delitos perseguidos nesses países são contra a propriedade. 56 Atuar-se contra essas evidências, hipertrofiando-se o Estado penal em detrimento do aprimoramento das estratégias para a asseguração de direitos sociais aos indivíduos, “aumentando os meios, a amplitude e a intensidade da intervenção do aparelho policial e judiciário, esquivale a (r)estabelecer uma verdadeira ditadura sobre os pobres.” 57 Em verdade, o que está em jogo é a escolha “entre a edificação, por mais lenta e difícil que seja, de um Estado social, e a escalada, sem freios nem limites, uma vez que se auto-alimentam, da réplica penal”, ou seja, o Brasil e a América Latina hão de escolher se pretendem construir no futuro “uma sociedade aberta e ecumênica, animada por um espírito de concórdia, ou um arquipélago de ilhotas de opulência e de privilégios perdidas no meio de um oceano frio de miséria, medo e desprezo pelo outro.” 58 2.4 A perversidade do encarceramento decorrente da dívida social A comprovação da impertinência do agigantamento do Estado penal decorre na análise de diversas experiências no mundo a demonstrar que não existe nenhuma correlação entre nível de crime e nível de encarceramento.59 Após desmistificar a política de adoção da expansão do Estado penal adotada pelos Estados Unidos – regras de direito penal máximo e de tolerância zero –, o que lhe garante o recorde de população carcerária no mundo, o pesquisador 55 Ibidem, p. 7-8. Ob. cit., p. 198. 57 WACQUANT, Loïc. As prisões da miséria. Traduzido por André Telles. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2001, p. 10. 58 Ibidem, p. 13. 56 34 Loïc Wacquant assinala a construção de um fosso de desconfiança e medo entre os americanos. 60 Assenta, após, com precisão científica, a existência de cerca de quarenta estudos empíricos, em uma dezena de sociedades capitalistas, a demonstrar “que existe no nível societário uma estreita e positiva correlação entre a deterioração do mercado de trabalho e o aumento dos efetivos presos – ao passo que não existe vínculo algum encarceramento. comprovado entre índice de criminalidade e índice de 61 O Brasil experimentou essa mesma realidade ao ver sucumbida a promessa de redução da criminalidade mais violenta com a promulgação da Lei dos Crimes Hediondos, em 1990. Referida norma agravou fortemente o tempo e o regime de cumprimento das penas privativas de liberdade relativamente a uma série da crimes cuja incidência, invariavelmente, aumentou de lá para cá.62 Comentando situações análogas a essa, o Ministro Eugenio Raúl Zaffaroni, em conferência realizada no Brasil, após pontuar o risco experimentado pela democracia mundial em razão do desinteresse da sociedade pela política, voltando-se, a seguir, à esfera penal, não poupou seu arsenal crítico: Uma coisa é fazer a crítica das atitudes dos políticos, outra coisa diferente é desprezar diretamente a atividade política. Ou acreditar que esta artificiosidade atual da atividade política é uma característica de sua natureza. Não é uma característica de sua natureza. É um erro dos protagonistas da política, que acham que estão num palco, quando na realidade estão no mundo. Mas, o que está acontecendo no nosso âmbito ou nas nossas legislações penais? Esses políticos desnorteados, preocupados fundamentalmente com a imagem, esses políticos têm de simular que estão providenciando soluções para os grandes problemas sociais. Têm de projetar essa imagem. É uma necessidade para eles. É uma necessidade da lógica teatral enviar essa mensagem. E 59 Ibidem, p. 12. “Uma pesquisa recente revela que a esmagadora maioria dos negros da cidade de Nova York considera a polícia uma força hostil e violenta que representa para eles um perigo: 72% julgam que os policiais fazem um uso abusivo da força e 66% que suas brutalidades para com as pessoas de cor são comuns e habituais (contra apenas 33 e 24% dos brancos). Dois terços pensam que a política de Guiliani agravou essas brutalidades e apenas um terço diz ter a sensação de se sentir mais seguro atualmente na cidade, mesmo assim morando nos bairros em que a queda da violência criminal é estatisticamente mais nítida. Já os nova-iorquinos brancos são respectivamente 50% e 87% a declarar o contrário: elogiam a prefeitura por sua intolerância com respeito ao crime e sentem-se unanimimente menos ameaçados em sua cidade.” (Ibidem, p. 37). 61 Ibidem, p. 106. 62 CHOUKR, Fauzi Hassan. Processo Penal de Emergência. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2002, p. 143-144. 60 35 acharam que a maneira mais simples de enviar essa mensagem é a lei penal. Todo o problema social vira problema penal: a droga, a violência, a psiquiatria, tudo vira penal, tudo. Nada acontece sem que algum deputado, algum senador não faça um projeto de lei penal. [...] A lei penal não custa. E o sujeito tem cinco minutos na televisão. Para a vida e para a presença de um político isso é 63 imprescindível. Enfim, o tratamento penal da miséria tem demonstrado pelo mundo sua incapacidade de reduzir criminalidade, provocando o aprisionamento de milhares de seres humanos punidos, por assim dizer, por sua condição de excluídos, gerando, com seus efeitos deletérios, mais exclusão, violência e criminalidade. A perversidade, pois, da escolha do modelo de Estado penal, decorre da penalização decorrente da não-concretização de direitos fundamentais. Opção, aliás, além de perversa, contraproducente, porque a penalização da pobreza gera mais exclusão e alimenta a criminalidade perseguida. Perversidade que se dirige ao indivíduo, que suporta tamanha injustiça, assim ao patrimônio ético da sociedade, que faz letra morta o fundamento da República Federativa do Brasil de promover a dignidade do ser humano.64 “A gestão penal da insegurança social alimenta-se assim de seu próprio fracasso programado.” 65 63 GLOBALIZAÇÃO, Sistema Penal e Ameaças ao Estado Democrático de Direito. Org. Maria Lúcia Karam. Rio da Janeiro: Lumen Juris Editora, 2005, p. 24-25. 64 Art. 1.° da Constituição Federal do Brasil. 65 WACQUANT,Loïc. As prisões da miséria. Traduzido por André Telles. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2001, p. 145. 36 3 A PRIVAÇÃO DE LIBERDADE A privação de liberdade apresenta-se como a sanção aplicada às penalidades havidas por mais graves pelo legislador pátrio. Seu cumprimento não pode ultrapassar o lapso de trinta anos, podendo ser cumprida em regimes diferenciados – aberto, semi-aberto e fechado. O regime inicial de cumprimento da pena recebe regramento na sentença, o que varia de acordo com o tempo e a natureza da pena – detenção ou reclusão –, assim considerada a circunstância de ser o indivíduo reincidente ou não. Nessas circunstâncias, existiam no Brasil, em junho de 2007, 419.551 pessoas detidas em penitenciárias ou delegacias, número que lhe conferia o título de oitava maior população carcerária do mundo. Em 1995, eram 148.760 mil presos no país. A proporção era de 95 presos para cada 100 mil habitantes. Hoje, esse número é de 227 presos para cada 100 mil habitantes, de acordo com dados do Departamento Penitenciário Nacional. 66 3.1 Finalidades declaradas A privação de liberdade motiva estudos há vários séculos, adotando, na atualidade, o ordenamento jurídico brasileiro, a teoria mista67, que declara serem 66 Disponível em: <http://www.onorte.com.br/noticias/?69226>. Acesso em 29.4.2008. “Segundo o diretor-geral do Depen, Maurício Kuehne, o número de presos aumentou consideravelmente nos últimos 12 anos. Isso dificultou que a criação de vagas acompanhasse o ritmo de crescimento da população carcerária. [...] Kuehne diz que, para acabar com o déficit de cerca de 200 mil vagas do sistema penitenciário nacional seriam necessários R$ 6 bilhões.” 67 “Pena é a sanção aflitiva imposta pelo Estado, mediante ação penal, ao autor de uma infração (penal), como retribuição de seu ato ilícito, consistente na diminuição de um bem jurídico, e cujo fim é evitar novos delitos. Apresenta a característica de retribuição, de ameaça de um mal contra o autor da infração penal. Tem finalidade preventiva, no sentido de evitar a prática de novas infrações. A prevenção é: a) geral; b) especial. Na prevenção geral o fim intimidativo da pena dirige-se a todos os destinatários da norma penal, visando a impedir que os membros da sociedade pratiquem crimes. Na prevenção especial, a pena visa o autor do delito, retirando-o do meio social, impedindo-o de delinqüir e procurando corrigi-lo.” (JESUS, Damásio Evangelista. Direito Penal. 16ª ed. São Paulo: Saraiva, 1992, v. 1, p. 457). 37 intenções da punição a) o castigo ao ofensor pelo mal causado, b) assim a prevenção da prática novos crimes, seja por meio do temor incutido nas demais pessoas – prevenção geral –, seja em razão da ação educativa sobre o autor do crime – prevenção especial. Esse modelo decorre da reunião das teorias a) absoluta – a sanção visa, unicamente, à retribuição pelo mal causado – e b) relativa – a punição busca prevenir o crime por intermédio da reeducação do indivíduo. Concilia, então, a ordem jurídica brasileira, o caráter de castigo à finalidade restauradora da pena. Pune-se porque pecou e para que não peque. Segundo José M. Rico, todas estas teorias têm correspondência com a evolução geral da concepção da pena. Ao período primitivo da vingança privada, embasado na repressão e na composição, sucedem os períodos teleológicos e políticos, inspirados na expiação e na intimidação; o período humanitário, por sua vez, sucede àqueles cujas bases são a expiação, a emenda ou a correção do culpado e, finalmente, o período contemporâneo ou científico, que segue insistindo no poder intimidante da pena, levando, porém, cada vez mais em consideração a ressocialização do delinqüente.68 Aponte-se, outrossim, por oportuno, vir de Cesare Beccaria a recomendação de que a punição ocasione o mínimo sofrimento ao condenado: Da simples consideração das verdades até aqui expostas, resulta evidente que o fim das penas não é atormentar e afligir um ser sensível, nem desfazer um delito já cometido. [...] O fim, pois, é apenas impedir que o réu cause novos danos aos seus concidadãos e dissuadir os outros a fazer o mesmo. É, pois, necessário escolher penas e modos de infligi-las, que, guardadas as proporções, causem a impressão mais eficaz e duradoura nos espíritos dos homens, e a menos penosa ao corpo do réu.69 3.2 A realidade da privação de liberdade no Brasil A conceituação da realidade carcerária do Brasil constitui uma unanimidade: calamitosa. 68 OLIVEIRA, Odete Maria de. Prisão: um paradoxo social. 3ª edição. Florianópolis: Editora da UFSC, 2003, p. 70-71. 69 BECCARIA, Cesare. Dos Delitos e das Penas. Tradução de Lucia Guidicini e Alessandro Berti Contessa. São Paulo: Martins Fontes, 1997, p. 62. 38 70 Essa é a voz que parte dos presos , passa pelos agentes penitenciários, perpassa toda a classe política do país. 71 e encontra eco na mais alta autoridade judiciária 72 A agravar esse painel, a falta de esclarecimento oficial preciso acerca da situação quantitativa e qualitativa da população aprisionada, faz com que os dados empíricos sobre esta realidade possuam grande número de divergências. Muito embora não se tenha consenso quanto aos números, a descrição do que se passa no interior das prisões brasileiras é muito semelhante: desrespeito a direitos fundamentais73. 70 “A prisão é como um cemitério, onde está enterrado o corpo e o espírito do preso. Fisicamente e psicologicamente retrai a pessoa, entra-se num mundo muito pequeno e a pessoa sente um impacto. A penitenciária precisa preprarar a volta do interno à sociedade para que ele não retorne a reincidir, mas está muito atrasada nesse sentido...” (De um preso da penitenciária de Florianópolis).” Ibidem, p. 99. 71 “Os deputados que integram a Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) sobre o sistema carcerário brasileiro estão percorrendo os estados para avaliar a situação dos presídios do país e em todos os estados já visitados até agora a conclusão é a mesma: a superlotação dos presídios é assustadora. A deputada Cida Diogo (PT - Rio de Janeiro) participou das visitas e disse que a situação nos presídios é de "caos". Cida é sub-relatora para a Situação de Mulheres Encarceradas da CPI e embora tenha constatado que a situação das mulheres é um pouco melhor que a dos homens, ela revela que o Sistema Carcerário brasileiro não se preparou para receber mulheres. Em uma das prisões visitadas no interior do Ceará, a deputada encontrou uma mulher grávida de 8 meses. Ela ficou grávida na prisão, após ter tido relações com um preso da cela ao lado. Essa é uma realidade que se estende por todo o país. Na falta de espaços específicos para as mulheres, há uma improvisação e muitas vezes as mulheres têm, até mesmo, que dividir a cela com homens.” Disponível em: < http://www.adital.com.br/site/noticia.asp?lang=PT&cod=31905>. Acesso em 29.4.2008. 72 Veja-se o que a Agência Nacional de Notícias do Brasil divulgou sobre o dircurso de posse do Ministro Presidente do Conselho Nacional de Justiça, que tomaria posse, dias após, como Presidente do Supremo Tribunal Federal, ambas ocorridas no ano de 2008: “Gilmar Mendes classificou de ‘vergonha nacional’ a situação da população carcerária brasileira. ‘Nós precisamos saber com precisão em que condição a população carcerária está presa para que nós não tenhamos que enfrentar, toda hora, essas crises, como a menor de 14 anos presa com adultos e todo esse quadro de vergonha nacional. É preciso que nós avancemos em relação a isso’, defendeu o ministro, que tomará posse como presidente do STF no dia 23 de abril. No discurso de hoje, Mendes afirmou que uma das dificuldades é identificar as ‘efetivas condições jurídicas’ dos presos e que, por isso, ‘o conselho, com sua capacidade de análise e de crítica, atuará em parceria com os demais órgãos públicos responsáveis, de forma a mudar de vez essa triste realidade’. Questionado sobre como se dará esse processo, o ministro disse que é preciso haver ‘discussões sérias’ sobre a questão e destacou que ‘o Judiciário é responsável pela execução criminal e deve dar a resposta adequada aqui’. Disponível em: <http://www.agenciabrasil.gov.br/noticias/2008/03/26/materia.2008-0326.0054331402/view>. Acesso em 29.4.2008. 73 “Em novembro de 2007, diretamente da sede da Organização das Nações Unidas (ONU), ouviu-se mais uma vez uma denúncia recorrente sobre a realidade brasileira: a da existência, segundo a própria ONU, de ‘tortura generalizada e sistemática’ para milhares de detentos do país. Baseadas na visita de especialistas em 2005, as alegações fazem parte de um amplo relatório, ainda não 2totalmente divulgado, que enfatiza também aspectos discriminatórios da violação, que atinge principalmente os afrodescendentes. Há sete anos, a noção de ‘tortura sistemática’ já estava presente em outro estudo da ONU, produzido a partir de inspeções realizadas no ano 2000. O documento descreve nada menos que 348 alegações concretas de tortura, ocorridas em 18 estados ao longo da década de 1990. Chama a atenção também para um extenso rol de omissões e irregularidades, que tornam a prática dessa violência um ato de responsabilidade partilhada entre altos escalões e a figura do carrasco. Assim como as denúncias, também não são novidade políticas federais para o problema. 39 Tanto que Odete Maria de Oliveira dedicou um capítulo inteiro de sua obra, “Prisão: um paradoxo social”, para descrever as privações por que passam as pessoas aprisionadas.74 Pode-se, então, perceber, que ao lado do sofrimento decorrente da privação de liberdade75, autorizada pelo ordenamento jurídico, os seres humanos aprisionados experimentam diversas outras, decorrentes da inobservância aos seus direitos constitucionais. 76 A pesquisadora denuncia as privações a) de bens, pois o indivíduo não pode dispor de objetos pessoas no ambiente prisional, b) de autonomia, já que não se mostra possível expressar opiniões perante a Administração, c) de segurança, pois a insuficiência do Estado permite a redenção da violência e da brutalidade,77 d) de relacionamentos heterossexuais, e) de possibilidade de manutenção de seu Ainda em 2001, nasceu o SOS Tortura, um disque-denúncia extinto pelo governo Lula menos de três anos depois. No mesmo ano surgiu o Plano Nacional de Combate à Tortura – que, no entendimento da gestão atual, apresentou resultados insatisfatórios por focar-se excessivamente na punição, em vez de buscar mudanças de procedimentos e práticas. Tais transformações são o objetivo do Plano de Ações Integradas para Prevenção e Controle da Tortura, apresentado em dezembro de 2005. Última aposta do governo federal, ele se baseia em articulações com os estados para alcançar resultados efetivos. Passados mais de dois anos, no entanto, a iniciativa esbarra num velho problema: falta de compromisso de amplos setores da segurança pública e do sistema de Justiça. Em diversas instâncias, prevalece o silêncio sobre o assunto. As causas. Entre outubro de 2001 e julho de 2003, mais de 25 mil ligações foram atendidas pelo SOS Tortura. Elas deram origem, após filtragem, a 2,2 mil denúncias encaminhadas às autoridades competentes. Em nada menos do que 85,8% dos casos, os acusados eram agentes públicos. Entre eles, a Polícia Civil responde por 31,4% das alegações, a Polícia Militar por 30,6% e os agentes penitenciários por 14%. E por que o Estado tortura? Para Luciano Mariz Maia, procurador regional da República na 5ª Região, permanece ainda uma forte noção do uso da violência como forma de punição. ‘A idéia de castigar é tão presente que, muitas vezes, a polícia nem tem indícios concretos, mas percebe alguém em ‘situação suspeita’ e dá o bote. A pessoa, assustada, tenta correr, mas é alcançada, e a polícia começa a bater sem nem saber exatamente o porquê’, descreve.” Disponível em: <http://www.arp.org.br/noticias.php?i=63>. Acesso em 30.4.2008. 74 OLIVEIRA, Odete Maria de. Prisão: um paradoxo social. 3ª edição. Florianópolis: Editora da UFSC, 2003, p. 78-100. 75 “Não é por descer os últimos degraus que se fica um robô, porque aqui não se consegue fazer planos. É uma vida de mentira. Daria meu braço. Queria ficar aleijado, mas ter minha liberdade. Só para quem sente na carne, é como uma faca espetada em você, não se consegue nem conversar. É um preço muito alto.” (De um preso da penitenciária de Florianópolis).”Ibidem, p. 72. 76 “57. A prisão e outras medidas cujo efeito é separar um delinqüente do mundo exterior são dolorosas pelo próprio fato de retirarem do indivíduo o direito à auto-determinação, privando-o da sua liberdade. Logo, o sistema prisional não deverá, exceto por razões justificáveis de segregação ou para a manutenção da disciplina, agravar o sofrimento inerente a tal situação.” (Regras Mínimas para o Tratamento de Prisioneiros. Adotadas pelo 1º Congresso das Nações Unidas sobre Prevenção do Crime e Tratamento de Delinqüentes, realizado em Genebra, em 1955, e aprovadas pelo Conselho Econômico e Social da ONU através da sua resolução 663 C I (XXIV), de 31 de julho de 1957, aditada pela resolução 2076 (LXII) de 13 de maio de 1977. Anexo A.). Disponível em: <http://www.dhnet.org.br/direitos/sip/onu/fpena/lex52.htm>. Acesso em 3.5.2008. 77 “31. Serão absolutamente proibidos como punições por faltas disciplinares os castigos corporais, a detenção em cela escura e todas as penas cruéis, desumanas ou degradantes.” Ibidem. 40 sustento, tendo em vista a precariedade de oferta de trabalho remunerado, 79 80 81 condições de higiene , assistência médica , odontológica, social 82 83 78 f) de e jurídica, e g) 84 85 à educação , à cultura , ao lazer . 78 “65. O tratamento dos condenados a uma punição ou medida privativa de liberdade deve ter por objetivo, enquanto a duração da pena o permitir, inspirar-lhes a vontade de viver conforme a lei, manter-se com o produto do seu trabalho e criar neles a aptidão para fazê-lo. Tal tratamento estará direcionado a fomentar-lhes o respeito por si mesmos e a desenvolver seu senso de responsabilidade. 66. 1. Para lograr tal fim, deverá se recorrer, em particular, à assistência religiosa, nos países em que ela seja possível, à instrução, à orientação e à formação profissionais, aos métodos de assistência social individual, ao assessoramento relativo ao emprego, ao desenvolvimento físico e à educação do caráter moral, em conformidade com as necessidades individuais de cada preso. Deverá ser levado em conta seu passado social e criminal, sua capacidade e aptidão físicas e mentais, suas disposições pessoais, a duração de sua condenação e as perspectivas depois da sua libertação.” Ibidem. 79 “10. Todos os locais destinados aos presos, especialmente aqueles que se destinam ao alojamento dos presos durante a noite, deverão satisfazer as exigências da higiene, levando-se em conta o clima, especialmente no que concerne ao volume de ar, espaço mínimo, iluminação, aquecimento e ventilação. 11. Em todos os locais onde os presos devam viver ou trabalhar: a. As janelas deverão ser suficientemente grandes para que os presos possam ler e trabalhar com luz natural, e deverão estar dispostas de modo a permitir a entrada de ar fresco, haja ou não ventilação artificial. b. A luz artificial deverá ser suficiente para os presos poderem ler ou trabalhar sem prejudicar a visão. 12. As instalações sanitárias deverão ser adequadas para que os presos possam satisfazer suas necessidades naturais no momento oportuno, de um modo limpo e decente. 13. As instalações de banho deverão ser adequadas para que cada preso possa tomar banho a uma temperatura adaptada ao clima, tão freqüentemente quanto necessário à higiene geral, de acordo com a estação do ano e a região geográfica, mas pelo menos uma vez por semana em um clima temperado.14. Todos os locais de um estabelecimento penitenciário freqüentados regularmente pelos presos deverão ser mantidos e conservados escrupulosamente limpos.” Ibidem. 80 “22. 1. Cada estabelecimento penitenciário terá à sua disposição os serviços de pelo menos um médico qualificado, que deverá ter certos conhecimentos de psiquiatria. Os serviços médicos deverão ser organizados em estreita ligação com a administração geral de saúde da comunidade ou nação. Deverão incluir um serviço de psiquiatria para o diagnóstico, e em casos específicos, para o tratamento de estados de anomalia. [...] 52. 1. Nos estabelecimentos prisionais cuja importância exija o serviço contínuo de um ou vários médicos, pelo menos um deles residirá no estabelecimento ou nas suas proximidades. 2.Nos demais estabelecimentos, o médico visitará diariamente os presos e residirá próximo o bastante doestabelecimento para acudir sem demora toda vez que se apresente um caso urgente.” Ibidem. 81 “49 [...] 2. Os serviços dos assistentes sociais, dos professores e instrutores técnicos deverão ser mantidos permanentemente, sem que isto exclua os serviços de auxiliares a tempo parcial ou voluntários.” Ibidem. 82 “77. 1. Serão tomadas medidas para melhorar a educação de todos os presos em condições de aproveitá-la, incluindo instrução religiosa nos países em que isso for possível. A educação de analfabetos e presos jovens será obrigatória, prestando-lhe a administração especial atenção. 2.Tanto quanto possível, a educação dos presos estará integrada ao sistema educacional do país, para que depois dasua libertação possam continuar, sem dificuldades, a sua educação.” Ibidem. 83 “78. Atividades de recreio e culturais serão proporcionadas em todos os estabelecimentos prisionais em benefício da saúdefísica e mental dos presos.” Ibidem. 84 “58. O fim e a justificação de uma pena de prisão ou de qualquer medida privativa de liberdade é, em última instância, proteger a sociedade contra o crime. Este fim somente pode ser atingido se o tempo de prisão for aproveitado para assegurar, tanto quanto possível, que depois do seu regresso à sociedade o delinqüente não apenas queira respeitar a lei e se auto-sustentar, mas também que seja capaz de fazê-lo. 59. Para alcançar esse propósito, o sistema penitenciário deve empregar, tratando de aplicá-los conforme as necessidades do tratamento individual dos delinqüentes, todos os meios curativos, educativos, morais, espirituais e de outra natureza, etodas as formas de assistência de que pode dispor.” Ibidem. 85 OLIVEIRA, Odete Maria de. Prisão: um paradoxo social. 3ª edição. Florianópolis: Editora da UFSC, 2003, p. 76-97. 41 O advogado Lúcio Ronaldo Pereira Ribeiro, estudando as prisões do Estado do Rio de Janeiro na década de 90, refere que deveriam constituir fontes de experiências positivas ao aprisionado, a fim de aprimorar e moldar sua conduta. 86 Adverte que “se o fim da prisão, modernamente, é a ressocialização do preso-condenado, se a ressocialização implica uma socialização dos valores do condenado, se a experiência é que possibilita a modificação e o desenvolvimento dos valores, seria imprescindível que as prisões fossem ambientes, laboratórios, que proporcionassem ao condenado uma gama de experiências que lhe incutissem, ou que lhe permitissem desenvolver valores benéficos à sociedade.”87 Todavia, segundo o pesquisador, a situação estudada oferta retrato bastante diverso: as prisões no mundo e, mormente no Brasil, não proporcionam ao condenado preso a sua recuperação. São ambientes tensos, em péssimas condições humanas. A superlotação é comum. Os direitos previstos na Lei de Execuções Penais não são aplicados na prática. Há violência contra os condenados, praticadas por aqueles que têm a incumbência de custodiá-los e mesmo por outros presos. Enfim, nós sabemos que o ambiente de uma unidade prisional no Brasil, em regra, é muito mais propício para o desenvolvimento de valores nocivos à sociedade, do que ao desenvolvimento de valores e condutas benéficas. Assim é que a prisão fabrica sua própria clientela, que retornará futuramente, em grande escala, basta verificarmos os altos índices de reincidência, foram ainda os casos de presos não reincidentes, mas que já tiveram passagens anteriores pelo sistema prisional.88 3.3 Privação de liberdade e direitos humanos A história da privação de liberdade no Brasil repete, no que se refere à concretização de garantias fundamentais, o histórico dos indivíduos a ela submetidos: violação a direitos humanos, absoluta e reiterada. E o mais preocupante é o silêncio da sociedade para essa cruel realidade. 86 Disponível em: <http://www.direitoufba.net/mensagem/josebarroso/cr-opresocondenado.doc.>. Acesso em 30.4.2008. 87 Ibidem. 88 Ibidem. 42 Ao contrário, percebe-se até mesmo a defesa dessa situação de parte de uma considerável parcela do grupo social. A asseguração de direitos humanos nas prisões brasileiras mereceu extensa investigação da Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara de Deputados. Do trabalho, resultou Relatório do qual se pode constatar toda a sorte de violações a direitos humanos nas casas de aprisionamento do país. 89 De seu teor, extrai-se: Os presídios talvez sejam o outro lado da moeda, a face obscura que nos recusamos a ver de nós mesmos. [...] As pessoas que se encontram encarceradas possuem entre si pouco em comum além do fato de serem invariavelmente pobres, jovens e semialfabetizadas. [...] O que vemos no interior dos presídios, particularmente nas atuais condições de encarceramento, é uma afronta permanente a este e a muitos outros valores fundamentais para a condição humana. [...] A sensação que temos, ao final dos nossos trabalhos, é a de que conhecemos um sistema absolutamente "fora da lei". Os imperativos definidos pela Lei de Execução Penal (LEP) são solenemente ignorados em todos os estados. Realidade do arbítrio, os presídios brasileiros são uma reinvenção do inferno. A resultante, entretanto, não é uma construção metafísica ou uma especulação religiosa. Aqui, os demônios tem pernas e visitam os presos a cada momento. Deputado Marcos Rolim. Presidente da Comissão de Direitos Humanos.90 No mesmo sentido, o relatório anual de direitos humanos da organização não-governamental Human Rights Watch, apontando precariedades no sistema prisional comprometedoras até mesmo da vida dos indivíduos a ele submetidos: As críticas se baseiam em dados do Departamento Penitenciário Nacional (Depen) do Ministério da Justiça. De acordo com esses números, as penitenciárias e cadeias brasileiras tinham sob sua custódia, em junho de 2007, 419.551 detentos - 200 mil pessoas a mais do que a capacidade do sistema. A ONG ainda destaca o levantamento da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) Carcerária, que apurou a morte de 651 presos, apenas nos primeiros quatro meses de 2007. A comissão foi criada no Congresso em agosto de 2007, depois que 25 detentos morreram queimados durante motim em uma cadeia pública de Ponte Nova (MG). O relatório destaca como exemplo negativo as condições da penitenciária feminina de Sant’Ana, em São Paulo, onde morreram cinco mulheres entre dezembro de 2006 e julho de 2007. 89 A íntegra do Relatório encontra-se no Anexo B deste trabalho. Disponível em: <http://hsw.uol.com.br/framed.htm?parent=prisoes.htm&url=http://www2.camara.gov.br/comissoes/cdh m.> Acesso em 30.4.2008. 90 Ibidem. 43 “Superlotação, a presença de ratos e pombos infectados, a má qualidade da água e a falta de medicação estavam entre os problemas relatados pela Defensoria Pública do Estado de São Paulo”, revela o documento.91 Esse panorama, assim as vicissitudes próprias do sistema prisional, constituem os ingredientes necessários e suficientes ao mais absoluto fracasso do aprisionamento no Brasil, que serve apenas para afastar do grupo social aqueles que contra si atentam – respondendo ao atentado consistente na não-concretização de direitos humanos – abandonando-os à própria sorte, o que produz um contingente fantástico de seres humanos violados, humilhados, embrutecidos, que nutrirão – e não haveria como constituir-se realidade diversa – o perverso ciclo da criminalidade. A não-asseguração dos mais vitais direitos à humanidade – livre ou aprisionada – aliada ao tratamento penal da miséria, não poderiam levar a outro destino. 91 Disponível em: <http://www.agenciabrasil.gov.br/noticias/2008/01/31/materia.2008-0131.3170152862/view.> Acesso em 30.4.2008. 44 4 O RETORNO À SOCIEDADE LIVRE A restrição da liberdade constitui uma das muitas privações por que passa o indivíduo aprisionado. Entretanto, ultrapassado este obstáculo – ultimado o cumprimento da pena –, uma nova sorte de privações espera o egresso do sistema prisional no mundo livre. Recuperada a liberdade, resta-lhe, agora, a reaquisição da auto-estima, da dignidade, da convivência comunitária, caminho espinhoso como o trilhado até então. Em verdade, a sociedade recebe o egresso do sistema prisional de costas. Não bastasse toda a sorte de violação a direitos sofrida pelo indivíduo, recebe, agora, o rótulo de ex-presidiário, título que lhe impõe a convivência com o estigma e o preconceito. Prossegue e agrava-se, então, o ciclo da exclusão que o levara ao cárcere. A busca de dignidade – o que depende, invariavelmente, da concretização de direitos fundamentais –, objetivo perseguido e nunca alcançado por milhões de seres humanos, permanece, caminho que agora recebe as mais variadas nomenclaturas: reintegração ou reinserção social, reeducação, emancipação, socialização, ressocialização, etc. Independentemente no modo como se queira nominar o fenômeno, o importante é o registro de que a busca pela dignidade não conhecida persiste, afigurando-se, a essa altura, horizonte de atingimento mais espinhoso. 4.1 O egresso do sistema prisional e os direitos humanos A saída do cárcere constitui para o indivíduo um novo marco para a busca da asseguração de direitos fundamentais. 45 Um novo caminhar se inaugura na persecução da tão distante dignidade humana. Todavia, a exclusão e, por conseqüência, as dificuldades, se mostram agravadas. 92 Os próprios presos mencionam a inexistência de políticas de preparação para a liberdade. Parece que à pena de prisão discricionariamente se impõem outras punições, como maior dificuldade de acesso às políticas e aos direitos sociais, constitucionalmente estabelecidos. Cumpre-se a lei, mesmo que para cumpri-las outras leis sejam negadas [...] Esses aportes demonstram a importância de que a prisão seja pensada para fora de seus domínios. A punição não é apenas uma questão legal, pois reflete e expressa uma perspectiva política e ideológica assumida pelo Estado e pela sociedade. O não-cumprimento de direitos não afeta somente os presidiários, mas diz respeito a todos os cidadãos.93 À deficiência do sistema prisional na concretização de direitos humanos – à educação, à profissionalização, ao trabalho, por exemplo –, alia-se a precariedade das políticas públicas para o fim de promover a dignidade desses indivíduos, recém retornados à sociedade livre. 94 Então, mais uma vez o Estado viola suas obrigações humanitárias, porquanto a asseguração das condições necessárias a que os seres humanos aprisionados adquiram ou readquiram dignidade no mundo livre constitui obrigação de todos os povos, segundo as Regras Mínimas para Tratamento de Prisioneiros, 92 “Michel Foucault mostrou, de maneira especialmente clara, que certas instituições que sempre foram pensadas com fins de exclusão – prisões, hospitais, manicômios -, em um determinado ponto, se transformaram, não tanto no que acontece dentro delas, mas na sua função, ou seja, se tornaram instituições que, em um determinado ponto, se colocaram o problema de como incluir aqueles que transitavam dentro delas.” (CORSI, Giancarlo. In Globalização, Sistema Penal e Ameaças ao Estado Democrático de Direito. Org. Maria Lúcia Karam. Rio da Janeiro: Lumen Juris Editora, 2005, p. 70-71). 93 OLIVEIRA, C. S. ; WOLFF, Maria Palma ; CONTE, Marta ; HENN, Ronaldo C . Direitos sociais: repercussões no cumprimento de penas privativas de liberdade. Revista Serviço Social e Sociedade. São Paulo, v. 26, n. 81, p. 114-115. 94 “Muitos detentos, além de ex-presos ou os próprios detentos, ressaltaram um aspecto: uma vez saídos do cárcere, os contatos sociais, as capacidades de ter a ver com os outros e a própria imagem de si mesmos desabam. [...] Ora, na discussão com os próprios operadores que se ocupam do momento de passagem do interior para o exterior, o que se notou foi que não é tanto uma questão de construir uma dimensão subjetiva, pessoal, desses indivíduos que estão para sair do cárcere; o verdadeiro problema está em perceber as poucas possibilidades de escolha que têm quando saem da prisão. Antes de tudo, naturalmente, seria preciso ter uma grande coordenação a nível organizacional, o que absolutamente não existe. E o resultado é que estas pessoas, quando saem, não sabem ou sabem mal aquilo que podem fazer. Talvez já tenham perdido os contatos sociais ou familiares. E, diante da total indeterminação que lhes acolhe fora do cárcere, só vêem as alternativas que já conhecem, tipicamente, furto, violência, droga, etc. – e se recomeça.” (CORSI, Giancarlo. In Globalização, Sistema Penal e Ameaças ao Estado Democrático de Direito. Org. Maria Lúcia Karam. Rio da Janeiro: Lumen Juris Editora, 2005, p. 71-72). 46 aprovadas pela Organização das Nações Unidas e referendadas pelo Brasil, com força cogente, pois, na ordem jurídica interna. Com efeito, deste documento verifica-se, por exemplo, que “a prisão e outras medidas cujo efeito é separar um delinqüente do mundo exterior são dolorosas pelo próprio fato de retirarem do indivíduo o direito à auto-determinação, privando-o da sua liberdade. Logo, o sistema prisional não deverá, exceto por razões justificáveis de segregação ou para a manutenção da disciplina, agravar o sofrimento inerente a tal situação.”95 Igualmente a norma assenta que “o fim e a justificação de uma pena de prisão ou de qualquer medida privativa de liberdade é, em última instância, proteger a sociedade contra o crime. Este fim somente pode ser atingido se o tempo de prisão for aproveitado para assegurar, tanto quanto possível, que depois do seu regresso à sociedade o delinqüente não apenas queira respeitar a lei e se auto-sustentar, mas também que seja capaz de fazê-lo.”96 O diploma prossegue, destacando que “para alcançar esse propósito, o sistema penitenciário deve empregar, tratando de aplicá-los conforme as necessidades do tratamento individual dos delinqüentes, todos os meios curativos, educativos, morais, espirituais e de outra natureza, e todas as formas de assistência de que pode dispor.”97 A obrigação estatal é claramente delineada, quando a norma ordena que “o regime do estabelecimento prisional deve tentar reduzir as diferenças existentes entre a vida na prisão e a vida livre quando tais diferenças contribuirem para debilitar o sentido de responsabilidade do preso ou o respeito à dignidade da 95 Recomendação 57 das Regras Mínimas para o Tratamento de Prisioneiros. Adotadas pelo 1º Congresso das Nações Unidas sobre Prevenção do Crime e Tratamento de Delinqüentes, realizado em Genebra, em 1955, e aprovadas pelo Conselho Econômico e Social da ONU através da sua resolução 663 C I (XXIV), de 31 de julho de 1957, aditada pela resolução 2076 (LXII) de 13 de maio de 1977. (Anexo A). Disponível em: <http://www.dhnet.org.br/direitos/sip/onu/fpena/lex52.htm>. Acesso em 3.5.2008. 96 Recomendação 58 das Regras Mínimas para o Tratamento de Prisioneiros. Adotadas pelo 1º Congresso das Nações Unidas sobre Prevenção do Crime e Tratamento de Delinqüentes, realizado em Genebra, em 1955, e aprovadas pelo Conselho Econômico e Social da ONU através da sua resolução 663 C I (XXIV), de 31 de julho de 1957, aditada pela resolução 2076 (LXII) de 13 de maio de 1977. (Anexo A). Disponível em: <http://www.dhnet.org.br/direitos/sip/onu/fpena/lex52.htm>. Acesso em 3.5.2008. 97 Recomendação 59 das Regras Mínimas para o Tratamento de Prisioneiros. Adotadas pelo 1º Congresso das Nações Unidas sobre Prevenção do Crime e Tratamento de Delinqüentes, realizado em Genebra, em 1955, e aprovadas pelo Conselho Econômico e Social da ONU através da sua resolução 663 C I (XXIV), de 31 de julho de 1957, aditada pela resolução 2076 (LXII) de 13 de maio de 1977. (Anexo A). Disponível em: <http://www.dhnet.org.br/direitos/sip/onu/fpena/lex52.htm>. Acesso em 3.5.2008. 47 sua pessoa”, acrescendo ser “conveniente que, antes do término do cumprimento de uma pena ou medida, sejam tomadas as providências necessárias para assegurar ao preso um retorno progressivo à vida em sociedade. Este propósito pode ser alcançado, de acordo com o caso, com a adoção de um regime preparatório para a liberação, organizado dentro do mesmo estabelecimento prisional ou em outra instituição apropriada, ou mediante libertação condicional sob 98 vigilância não confiada à polícia, compreendendo uma assistência social eficaz.” E a série de mandamentos relativos à preparação do indivíduo preso para o retorno à liberdade recomenda, ainda, ações de acolhimento ao egresso do sistema prisional: No tratamento, não deverá ser enfatizada a exclusão dos presos da sociedade, mas, ao contrário, o fato de que continuam a fazer parte dela. Com esse objetivo deve-se recorrer, na medida ao possível, à cooperação de organismos comunitários que ajudem o pessoal do estabelecimento prisional na sua tarefa de reabilitar socialmente os presos. Cada estabelecimento penitenciário deverá contar com a colaboração de assistentes sociais encarregados de manter e melhorar as relações dos presos com suas famílias e com os organismos sociais que possam lhes ser úteis. Também deverão ser feitas gestões visando proteger, desde que compatível com a lei e com a pena imposta, os direitos relativos aos interesses civis, os benefícios dos direitos da previdência social e outros benefícios sociais dos presos.99 Todavia, a concretização desses direitos encontra resistência, mais uma vez. Apresenta-se, assim, novamente, a dificuldade de se concretizar garantias fundamentais aos egressos do sistema prisional. Inequívoca, deste modo, a necessidade de implementação de políticas públicas para a facilitação do alcance da dignidade de parte dessas pessoas que, no mais das vezes, carregam consigo uma longa história de exclusão. 98 Recomendação 60 das Regras Mínimas para o Tratamento de Prisioneiros. Adotadas pelo 1º Congresso das Nações Unidas sobre Prevenção do Crime e Tratamento de Delinqüentes, realizado em Genebra, em 1955, e aprovadas pelo Conselho Econômico e Social da ONU através da sua resolução 663 C I (XXIV), de 31 de julho de 1957, aditada pela resolução 2076 (LXII) de 13 de maio de 1977. (Anexo A). Disponível em: <http://www.dhnet.org.br/direitos/sip/onu/fpena/lex52.htm>. Acesso em 3.5.2008. 99 Recomendação 60 das Regras Mínimas para o Tratamento de Prisioneiros. Adotadas pelo 1º Congresso das Nações Unidas sobre Prevenção do Crime e Tratamento de Delinqüentes, realizado em Genebra, em 1955, e aprovadas pelo Conselho Econômico e Social da ONU através da sua resolução 663 C I (XXIV), de 31 de julho de 1957, aditada pela resolução 2076 (LXII) de 13 de maio de 1977. (Anexo A). Disponível em: <http://www.dhnet.org.br/direitos/sip/onu/fpena/lex52.htm>. Acesso em 3.5.2008. 48 Com efeito, o alcance da dignidade humana “passa, necessariamente, pelo aprimoramento sociocultural do condenado, enquanto naquela condição. Ali, deverá receber tratamento para as eventuais doenças psicossomáticas, treinamento profissional e condicionamentos elementares à vida em uma sociedade aberta. Quando libertado, deverá ter à sua disposição ampla e eficaz infra-estrutura para que, materialmente, se realize tudo aquilo que, formalmente, lhe foi transmitido.”100 Exatamente a reflexão sobre esse caminho constitui o objeto de discussão do próximo capítulo. 100 FALCONI, Romeu. Sistema Presidial: Reinserção Social? São Paulo: Ícone, 1998, p. 163. 49 5 CONCRETIZAÇÃO DE DIREITOS HUMANOS: CAMINHO NECESSÁRIO À REDUÇÃO DE CRIMINALIDADE E REINCIDÊNCIA 5.1 Generalidades Pontua Norberto Bobbio, com extremo acerto, a importância e as dificuldades apresentadas à materialização ou concretização dos direitos proclamados pelos povos: O problema fundamental em relação aos direitos do homem, hoje, não é tanto o de justificá-los, mas o de protegê-los. Trata-se de um problema não filosófico, mas político. [...] Com efeito, o problema que temos diante de nós não é filosófico, mas jurídico e, nem sentido mais amplo, político. Não se trata de saber quais e quantos são esses direitos, qual é sua natureza e seu fundamento, se são direitos naturais ou históricos, absolutos ou relativos, mas sim qual é o modo mais seguro para garanti-los, para impedir que, apesar das solenes declarações, eles sejam continuamente violados. [...] O problema real que temos de enfrentar, contudo, é o das medidas imaginadas e imagináveis para a efetiva proteção desses direitos.101 Nessa senda, assentada a relação direta e de causa e efeito entre a insuficiência do Estado na concretização de direitos humanos e a incidência de criminalidade e reincidência, resta a supressão ou contenção das causas à minimização dos deletérios efeitos apontados. Cuida-se de se implementar ação nominada pela criminologia “prevenção 102 primária” , tarefa fundamental, muito embora de difícil realização, como adverte a doutrina: 101 BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Tradução de Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Campus, 1992, p. 24-25 e 37. 102 “Conforme tal classificação, os programas de prevenção primária orientam-se às mesmas causas, à raiz do conflito criminal, para neutralizá-lo antes que o problema se manifeste. Tratam, pois, de criar os pressupostos necessários ou de resolver as situações carenciais criminógenas, procurando uma socialização proveitosa de acordo com os objetivos sociais. Educação e socialização, casa, trabalho, bem-estar social e qualidade de vida são âmbitos essenciais para uma prevenção primária, 8que opera sempre a longo e médio prazos e se dirige a todos os cidadãos. As exigências de prevenção primária correspondem a estratégias de política cultural, econômica e social, cujo objetivo último é dotar os cidadãos, consoante as palavras de Lüderssen, de capacidade social para superar de forma produtiva eventuais conflitos” (GARCIA-Pablos de Molina, Antonio. Criminologia. 3ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2000, p. 335). 50 A prevenção primária é sem dúvida nenhuma a mais eficaz, a genuína prevenção, posto que opera etiologicamente. Mas ela atua a médio e longo prazos e reclama prestações sociais, intervenção comunitária e não mera dissuasão. Disso advém suas limitações práticas. Porque a sociedade sempre procura e reclama por soluções a curto prazo e costuma lamentavelmente identificá-las com fórmulas drásticas e repressivas. [...] Uma ambiciosa e progressiva política social se converte, então, no melhor instrumento preventivo da criminalidade, já que – sob o ponto de vista etiológico – pode intervir positivamente nas causas últimas do problema, do qual o crime é um mero sintoma ou indicador.103 Noutras palavras, verificada a preponderância das causas sociais à edificação dos índices e criminalidade e reincidência, somente ações de concretização de direitos humanos, com redução de pobreza e desigualdade social, têm o condão de traduzir resultados positivos àqueles índices. A investigação criminológica mundial apresentada por Loïc Wacquant comprova o asserto. 104 Afirmando possuir a Inglaterra o mais alto índice de encarceramento da União Européia, refere decorrer esta realidade do mercado trabalho “desregulamentado”, das desigualdades mais profundas da região e de um intricado sistema de proteção social.105 Também afirma não constituir coincidência o fato de que “os paíes escandinavos, que melhor resistiram às pressões internas e externas visando desmantelar o Estado social e onde as instituições de redistribuição e de divisão dos riscos coletivos são as mais solidamente enraizadas, serem também aqueles que menos aprisionam e onde o tratamento punitivo da inseguraça social ainda permanece como um último recurso, mais que um primeiro reflexo, conforme o atesta o aumento moderado dos efetivos de presos na Suécia, sua quase estagnação da Noruega e na Dinamarca, e sua queda espetacular na Finlândia (que marca assim seu realinhamento ao bloco social-democrata da área ocidental).” 106 E conclui: Enfim, se os países latinos, Espanha, Portugal, Itália, também viram sua população penitenciária crescer brutalmente nesses últimos 103 Ibidem, p. 335 e 360. As prisões da miséria. Traduzido por André Telles. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2001, p. 141-142. 105 Ibidem. 106 Ibidem. 104 51 anos, foi porque só recentemente ajustaram seus programas de ajuda social, já relativamene restritivos, e “modernizaram” seu mercado de trabalho, isto é, flexibilizaram a demissão e ampliaram as condições de exploração da mão-de-obra ao copiar o modelo britânico (por conseguinte, indiretamente, americano).107 Logo após assentar a relação de causa e efeito entre proteção social e criminalidade, o pesquisador trata de desmistificar a relação desta com os índices de encarceramento, esclarecendo que “segundo um estudo comparativo envolvendo Inglaterra, País de Gales, França, Alemanha, Holanda, Suécia e Nova Zelândia, as diferenças internacionais nos índices de encarceramento e sua evolução não se explicam pelas defasagens entre os índices de criminalidade exibidos por esses países, mas pelas diferenças entre suas políticas sociais e penas e pelo grau de desigualdade socioeconômica que exibem.”108 5.2 O papel dos movimentos sociais A concretização dos direitos humanos proclamados pelos povos possui fundamental importância na construção do Estado Democrático de Direito e a consecução desse ideal constitui a principal tarefa dos movimentos sociais na atualidade. Como já se pontuou, a efetivação de garantias fundamentais apresenta-se como caminho necessário à ruptura dos números crescentes de criminalidade, aprisionamento de pessoas e reincidência. Deste modo, a articulação e a organização comunitárias apresentam-se como estratégias necessárias à sua consagração. Justamente por este motivo, os movimentos sociais foram historicamente utilizados pelas populações oprimidas como instrumento de pressão a que os organismos estatais materializem os direitos que lhe são prometidos, consagrados no ordenamento jurídico. Nessa linha, no dizer que Gohn, movimentos sociais, 107 108 Ibidem. Ibidem, p. 142. 52 são ações coletivas de caráter sociopolítico, construídas por atores sociais pertencentes a diferentes classes e camadas sociais. Eles politizam suas demandas e criam um campo político de força social na sociedade civil. Suas ações estruturam-se a partir de repertórios criados sobre temas e problemas em situações de conflitos, litígios e disputas. As ações desenvolvem um processo social e políticocultural que cria uma identidade coletiva ao movimento, a partir de interesses em comum. Esta identidade decorre da força do princípio da solidariedade e é construída a partir da base referencial de 109 valores culturais e políticos compartilhados pelo grupo. A ressignificação desses movimentos, responsáveis pela asseguração das liberdades públicas e pelo reconhecimento dos direitos sociais de parte das nações, traduz, na atualidade, a necessidade de luta pela concretização dessas promessas. Na análise de Solon Eduardo Annes Viola, a insuficiência da garantia dos direitos humanos remete-os aos movimentos sociais, esclarecendo que “não efetivados, mesmo que reconhecidos e proclamados, transformaram-se em aspirações políticas e sociais, em anseios efetivos de emancipação das vítimas de todo o tipo de opressão.” 110 Com esta amplitude os movimentos sociais em defesa dos Direitos Humanos demonstram seu caráter coletivo e universal. Suas ações assumem a defesa dos oprimidos, ora políticos – perseguidos por diferentes tipos de governo – ora sociais, colocados em condições precárias de vida por diferentes modelos econômicos concentradores de riquezas e oportunidades. O acréscimo que a defesa dos Direitos Humanos traz para os movimentos sociais, além do seu caráter universal, é a ampliação do espaço político, para além do mais imediato e efêmero. Trata-se de produzir uma nova ética capaz de ampliar o significado da participação como o exercício de novas modalidades de cidadania.111 No caso brasileiro, todavia, não se verifica a existência significativa de organizações sociais trabalhando no sentido de perseguir a asseguração e a ampliação de direitos humanos ao preso e ao egresso do sistema prisional. 109 GOHN, Maria da Glória. Movimentos e lutas sociais na história do Brasil. São Paulo: Loyola, 1995, p. 44. 110 Disponível em: <http://www.dhnet.org.br/direitos/militantes/solonviola/movimento.html>. Acesso em 30.4.2008. 111 Ibidem. 53 Talvez a falta de consciência da dimensão e da importância desses direitos constitua um dos óbices à organização popular, 112 contramão da história desenhada pela nova cidadania nacional. postura, aliás, na 113 Imperioso, assim, que a organização popular se desenvolva, dialogando com o poder público a que garanta materialmente os direitos humanos já proclamados à população, aos presos e aos egressos do sistema prisional.114 5.3 112 A necessidade de ações afirmativas e de políticas públicas “Os movimentos se constituem a partir de dois elementos motrizes: a carência e o trabalho desenvolvido pela organização dos moradores. Entre ambos, existe um elemento articulador, constituído por um conjunto de mecanismos internos ao movimento que permite a passagem da necessidade à reivindicação, mediada pela afirmação de um direito. Isto configura o que Durham caracteriza como “um amplo processo de revisão e redefinição do espaço de cidadania”. [...] Não existe, entretanto, uma relação mecânica e espontânea entre carência e reivindicação. O elemento de conscientização se manifesta em ações sociais diferenciadas, porém dentro de uma perspectiva do que alguns autores têm denominado de modelo comunitário (Durham, 1984; Evers, 1984).” (JACOBI, Pedro. Movimentos Sociais e Políticas Públicas. São Paulo: Cortez, 1993, p. 151). 113 “Um primeiro elemento constitutivo dessa concepção de cidadania se refere à noção mesma de direitos. A nova cidadania assume uma redefinição da idéia de direitos, cujo ponto de partida é a concepção de um direito a ter direitos. [...] Ela inclui a invenção/criação de novos direitos, que surgem de lutas específicas e de suas práticas concretas. Nesse sentido, a própria determinação do significado de ‘direito’ e a afirmação de algum valor ou ideal como um direito são, em si mesmas, objetos de luta política. [...] A nova cidadania requer - é inclusive pensada como consistindo nesse processo – a constituição de sujeitos sociais ativos (agentes políticos), definindo o que consideram ser seus direitos e lutando para seu reconhecimento enquanto tais. Nesse sentido, é uma estratégia dos não-cidadãos, dos excluídos, uma cidadania ‘desde baixo’. Um terceiro ponto é a idéia de que a nova cidadania transcende uma referência central no conceito liberal: a reivindicação ao acesso, inclusão, participação e pertencimento a um sistema político já dado. O que está em jogo, de fato, é o direito de participar na própria definição desse sistema, para definir de que queremos ser membros, isto é, a invenção de uma nova sociedade.” (DAGNINO, Evelina. Sociedade civil, participação e cidadania: do que estamos falando?). Disponível em: <http://bibliotecavirtual.clacso.org.ar/ar/libros/ venezuela/ faces/mato/Dagnino.pdf> Acesso em 30.4.2008. 114 Sobre a necessidade de que aconteça o protagonismo dos excluídos nos movimentos sociais, assentou Raúl Eugenio Zaffaroni: “Acredito que isso tem que ser feito pelos excluídos; não por nós. Eu só observo uma dinâmica. E acho que essa é a dinâmica de voltar a criar uma dialética de incluído e excluído. E enquanto isso não acontece, o que acontece conosco, modestos penalistas? Acho que esta saída tem de ser facilitada e para facilitar a saída temos de conter, até onde seja possível, o poder punitivo do Estado. Nesse momento, é muito importante – importantíssimo, básico – compreender a natureza de nossa função. Especialmente nos nossos países. Se pudermos conter esse poder punitivo que está avançando, vamos garantir um maior espaço para a dinâmica que levará ao restabelecimento da dialética na sociedade.” (GLOBALIZAÇÃO, Sistema Penal e Ameaças ao Estado Democrático de Direito. Org. Maria Lúcia Karam. Rio da Janeiro: Lumen Juris Editora, 2005, p. 29-30). 54 Como se sublinhou quando do exame dos fatores que motivam a criminalidade no Brasil, lideram os relacionados à não-asseguração de direitos fundamentais à humanidade, aos presos e aos egressos do sistema prisional. Estas circunstâncias, decorrentes da deficitária distribuição de renda e, também, da ineficiência das políticas públicas necessárias à asseguração de dignidade ao ser humano, originam uma cidadania de segunda classe, formada pelos sem-nome, sem-abrigo, sem-alimentação, sem-saúde, sem-dentes, semprofissão, sem-liberdade, sem-esperança. Este outro Brasil, em verdade, é composto de dezenas de milhões de seres humanos, aos quais há se garantir os direitos proclamados pela Carta Política, o que se impõe, da mesma forma, a que se alcance a efetivação do princípio da igualdade material.115 A concretização de direitos humanos também a essas comunidades excluídas apresenta-se, assim, como imperativo ético do Estado Democrático de Direito. Destarte, não por motivações de caridade ou de benevolência, mas por imposição constitucional e ética, hão de se efetivar ações afirmativas e desenvolver políticas públicas para a concretização da promessa democrática de igualdade material. Com efeito, a definição objetiva e racional da desigualdade dos desiguais, histórica e culturalmente discriminados, é concebida como uma forma para se promover a igualdade daqueles que foram e são marginalizados por preconceitos encravados na cultura dominante na sociedade. Por esta desigualação positiva promove-se a igualação jurídica efetiva; por ela afirma-se uma fórmula jurídica para se provocar uma efetiva igualação social, política, econômica no e segundo o Direito, tal como assegurado formal e materialmente no sistema constitucional democrático. A ação afirmativa é, então, uma 115 “A concepção de uma igualdade puramente formal, assente no princípio geral da igualdade perante a lei, começou a ser questionada quando se constatou que a igualdade de direitos não era, por si só, suficiente para tornar acessíveis a quem era socialmente desfavorecido as oportunidades de que gozavam os indivíduos socialmente privilegiados. Importaria, pois, colocar os primeiros ao mesmo nível de partida. Em vez de igualdade de oportunidades, importava falar em igualdade de condições. Assim, sob esse novo aspecto, a tradicional posição de neutralidade do Estado foi sendo abandonada, dando lugar a uma posição ativa na busca da concretização da igualdade positivada nos textos constitucionais. Diante desta nova perspectiva, foram surgindo as denominadas Ações Afirmativas, que nada mais são do que tentativas de concretização da igualdade substancial ou material.” (FARIA, Anderson Peixoto de. O acesso à justiça e as ações afirmativas. In QUEIROZ, Raphael Augusto Sofiati de (Org.). Acesso à Justiça. Rio de Janeiro: Editora Lúmen Júris, 2002, p. 15). 55 forma jurídica para se superar o isolamento ou a diminuição social a que se acham sujeitas as minorias.116 Há, assim, à redução dos ciclos de criminalidade e reincidência, de se implementar políticas públicas e se desenvolver ações afirmativas no sentido da superação dos fatores que os ensejam. A seguir, apresentar-se-ão algumas ações, justamente no caminho da consecução desse paradigma. 5.4 Algumas experiências A garantia de direitos humanos redunda, inequivocamente, em redução de criminalidade e reincidência. A assertiva pode ser constatada empiricamente dos trabalhos que serão apresentados a seguir. Principiar-se-á pela experiência da Cooperativa João-de-Barro, desenvolvida em Pedro Osório, RS, onde egressos do sistema prisional organizaram-se e criaram uma cooperativa de trabalho, de onde retiram renda e assim estão adquirindo a dignidade perdida ou nunca alcançada. A FAESP – Fundação de Amparo ao Egresso do Sistema Penitenciário, sediada em Porto Alegre, RS, presta auxílio àqueles que deixam o cárcere, promovendo assistência social e buscando a obtenção de postos trabalho. As APACs – Associações de Proteção e Assistência aos Condenados – ofertam aos aprisionados, desde o princípio do cumprimento da pena, assistência espiritual, à saúde, à família, profissionalizando esses indivíduos e facilitando sua integração comunitária. A experiência de Bogotá, capital da República da Colômbia, que encerrará a apresentação das iniciativas selecionadas, consistiu na adoção de uma série de políticas públicas de asseguração de direitos fundamentais a grupos vulneráveis, aliada ao fortalecimento das instituições de polícia comunitária e de 116 Ibidem, p. 15-16. 56 justiça, resultando na diminuição significativa dos índices de criminalidade naquela cidade. 5.4.1 A Cooperativa João-de-Barro A mobilização da comunidade na busca de alternativas de trabalho aos egressos do sistema prisional, originou, em Pedro Osório, RS, uma cooperativa de trabalho e de produtos. Do teor da publicação do trabalho, verifica-se que “o maior desafio foi o de se iniciar o processo produtivo sem recursos financeiros. Foi através do trabalho, que os egressos arregimentaram renda suficiente para a produção de tijolos através do arrendamento de uma olaria. Formou-se, em paralelo, equipe técnica, constituída por voluntários, para assessorar no trato de toda a atividade burocrática da empresa que recém nascera. A partir de então, com uma carência para que principiasse o pagamento do arrendamento, os egressos começaram a comercializar os tijolos produzidos.” 117 Percebe-se, igualmente, a simplicidade da dinâmica da atividade: Após retirado o valor necessário ao pagamento dos insumos necessários ao processo produtivo, os cooperados separam, ainda, 20% do resultado financeiro da atividade para formar o capital da Cooperativa – para o pagamento de tributos, investimentos, etc. – e o restante do valor é dividido igualmente entre os envolvidos no trabalho. Com o evoluir dos trabalhos, o contrato de arrendamento transmudou-se em compromisso de compra e hoje a olaria já foi adquirida pela Cooperativa João-de-Barro. Atualmente, além da produção de tijolos, há egressos envolvidos na limpeza de vias públicas, serviço contratado pelas Prefeituras dos Municípios que integram a Comarca; há, também, contratos de prestação de serviços com outros órgãos públicos. A Cootrajoba ainda adquiriu uma fábrica de telas em arame e formou-se um grupo com cônjuges e familiares daqueles que hoje estão segregados, pessoas que trabalham na produção de tanques, pias e sanitários em cimento, além de embalagens para presentes.118 117 ASSOCIAÇÃO DOS JUÍZES DO RIO GRANDE DO SUL. Revista Multijuris: Primeiro Grau em Ação. Porto Alegre, v.1, 2006, p. 8-12. Disponível em: <http://www.ajuris.org.br/revista/multijuris1. pdf>. Acesso em 2.5.2008. 118 Ibidem. 57 Percebe-se, assim, que os egressos do sistema prisional daquele município estão buscando, por meios próprios, o alcance da dignidade por intermédio da concretização do direito humano ao trabalho. São os próprios envolvidos que estão construindo seu meio de subsistência, em uma espécie de organização popular que se forma à superação do preconceito e da dicriminação existentes em relação aos egressos do sistema prisional. 119 Cuida-se, desta forma, de uma proposta não assistencialista, que estimula a inclusão social e a reflexão crítica dos envolvidos sobre sua condição.120 Este protagonismo dos egressos se mostra bastante evidente nos relatos apresentados pelos próprios cooperados, o que se pode extrair da pesquisa realizada pelo Instituto de Acesso à Justiça do Rio Grande do Sul, coordenada por Maria Palma Wolff: 119 A esse respeito, vale a transcrição de uma passagem do rap “Conselho de Irmão”, composto por um grupo de cooperados: “É com orgulho que eu te falo que eu estou numa boa. Graças a Deus parei com as drogas, sou outra pessoa. E a minha vida também tá começando a mudar e esse ano ainda eu volto a estudar. Porque meu sonho agora é conseguir me formar, porque da vida do crime nada se pode esperá. Então as armas, as drogas, eu vou aposentá. Já tô cansado di vê minha coroa chorá porque tá com a cabeça cheia de preocupação, com medo que alguém me mate ou eu volte pra prisão. E essa vida é uma droga, tu sabe meu irmão. Roubá rádio de carro, invadi mansão, fazê 157 ameaçando inocente. Intão é certo que um dia a gente roda, sangue bom. E se não é pro inferno a gente vai é pra prisão. Eu já tive o privilégio meu irmão e lá dentro do xis a vida não é fácil, não. Refrão: Periferia é periferia. Cooperativa é só paz e alegria. Periferia é periferia. João-de-Barro é só harmonia.” (Ibidem). 120 Nesse particular, interessante registrar-se o relato de pesquisadores que estudaram o trabalho: “A Cooperativa também remete à possibilidade de construir ou produzir algo socialmente útil e aceitável, de sobreviver através do trabalho e de ser reconhecido por isto. Ser visto como alguém capaz, inclusive de contribuir com a coletividade, e não mais ser considerado um problema ou uma ameaça para a sociedade, não ser reconhecido como alguém que só traz problemas e por isto necessita ser excluído, é um acontecimento extremamente significativo para estas pessoas. Descobrir-se como uma pessoa produtiva e ver que a comunidade também o reconhece desta forma, é um mérito atribuído à própria cooperativa: Porque na verdade cada dia que passa aparece dons, dons diferentes né, e que se muita gente antes tivesse apostado nesses dons... (...) E hoje nós estamos conseguindo mostrar os dons que a gente tem, as idéias que a gente tem, dentro da Cooperativa. A gente quer mostrar, fazer coisas que a sociedade vai vendo. Hoje mesmo os guri tem, eles trabalham na capina da prefeitura de Pedro Osório e Cerrito. A prefeitura de Cerrito demorava três, quatro mês para fazer uma limpeza numa rua pública, e enquanto os guris pegavam, em sete oito dias, faziam uma limpa que as pessoas saiam pra rua, olhavam e se apavoravam. (Grupo focal – 31.08.05). [...] Um aspecto que chama a atenção neste processo, é que a Cooperativa constitui-se, para seus membros, como uma forma de trabalho e sobrevivência, mas também como uma forma de pertencer a um grupo socialmente aceito e reconhecido. Exemplo disto é o fato da Cooperativa ter sido convidada oficialmente, neste ano, para participar das solenidades da semana da pátria no município. Mesmo que ainda esteja presente o preconceito, relatado principalmente através de abordagens policiais, de forma geral a comunidade já reconhece estas pessoas como cidadãos, e até como consumidores no comércio local e não mais como ameaça.” (INSTITUTO DE ACESSO À JUSTIÇA. Relatório de Pesquisa: Políticas de Atenção ao Egresso no Rio Grande do Sul. Coordenação: Maria Palma Wolff. Porto Alegre: 2005, p. 66-67. Disponível em: <www.mj.gov.br/senasp>. Acesso em 2.5.2008.). 58 E hoje a verba se chama suor, suor de todos, que eles produziram tijolo e eles pagaram a Olaria e hoje a Olaria é da Cooperativa: é dos próprios ex-apenados. Não tem nem uma verba de nenhum lado, a verba acaba sendo chamada de suor. [...] Então nós vamos enfrentando as barreiras. Aí vamos tocando, porque quem sabe lá no futuro ela vai tá melhor. Mas se o cara tivesse uma ajuda seria bem melhor, entende? Mas o jeito que ela já ta, pra nós, pelo menos, já ta bom, a gente sente bem nela. Se não se sentisse bem a gente não ia tá há dois anos, e nós queremos três, quatro, cinco, quanto mais tiver melhor ainda. É uma esperança que eu tenho é assim ó, que fosse menos cadeia e mais serviço. O tempo e o dinheiro que eles gastam para fazer cadeia, devia fazer olaria, gastar em olaria, ninguém ia mais rouba, ia trabalhá. Podia ser outros projetos também. Mas eles só gastam dinheiro em cadeia. (Grupo focal – 31.08.05).121 Adiante, prossegue a narrativa dos egressos: [...] A cooperativa é toda nossa, ela é toda dos ex-apenados. Dentro nenhum é empregado de nenhum, todos são sócios, todos são donos. Ela funciona assim através de uma produção da Olaria mesmo, ela produz 70, 80 mil tijolos e acaba vendendo. Aí se tira 20% pra pagar e manter o caixa, pra pagar carrinho que estragou, paga uma máquina que estragou e todo o resto. Tem uma parte que a gente paga a luz, paga as areias as caçambas e o resto a gente separa e divide igualmente pra todos que estão na Olaria de igual pra igual. E tem fora isto aí, as capinas, com seis que trabalham para a Prefeitura. [...] quando tem um troço feio mesmo, a gente tem que resolver, a gente resolve entre todo o mundo, aí faz uma assembléia geral, uma extraordinária e discute. (...) Se o grupo não aprovar algo ninguém aprova; quem aprova é os próprios sócios da cooperativa, os ex-apenados. (Grupo focal – 31.08.05).122 Desta forma, com garantia de trabalho e com um grupo social estruturado na acolhida pós-cárcere, o índice de reincidência para os participantes da cooperativa apresentou redução importante: Há significativos exemplos de egressos que, através da possibilidade de inclusão, estão desenvolvendo trabalho lícito e readquirindo dignidade. Aumentam, de outro lado, as adesões ao Projeto. Para aqueles que aderiram à proposta da João-de-Barro, os índices de retorno à privação de liberdade não alcançam a casa dos 10%. Muitos egressos, após trabalharem algum tempo na Cootrajoba, readquirem a auto-estima e a confiança da comunidade, passando ao trabalho junto à iniciativa privada.123 121 INSTITUTO DE ACESSO À JUSTIÇA. Relatório de Pesquisa: Políticas de Atenção ao Egresso no Rio Grande do Sul. Coordenação: Maria Palma Wolff. Porto Alegre: 2005, p. 66-70. Disponível em: <www.mj.gov.br/senasp>. Acesso em 2.5.2008. 122 Ibidem. 123 ASSOCIAÇÃO DOS JUÍZES DO RIO GRANDE DO SUL. Revista Multijuris: Primeiro Grau em Ação. Porto Alegre, v.1, 2006, p. 8-12. Disponível em: <http://www.ajuris.org.br/revista/multijuris1. pdf>. Acesso em 2.5.2008. 59 Sublinhe-se, por fim, que a possibilidade de replicação da prática em pequenos grupos de indivíduos e com custos reduzidos, também se apresenta como aspecto significativo. 124 5.4.2 A Fundação de Amparo ao Egresso do Sistema Penitenciário A entidade filantrópica, sediada em Porto Alegre, RS, tem por objetivos “promover a integração dos egressos do sistema penitenciário do RS ao mercado de trabalho, priorizando os carentes; realizar encontros e debates visando a discussão e a busca de alternativas comunitárias aos problemas dos egressos do sistema penitenciário do RS; desenvolver estudos científicos destinados a examinar as 124 A confirmar a afirmação, a notícia que se transcreve: “26/03/2007 - 15h46. Cooperativa João-deBarro, de Pedro Osório, serve de modelo à Cooperativa Esperança, criada no município de São Sepé. A experiência do projeto Cooperativa João-de-Barro, coordenado pelo Foro de Pedro Osório, rendeu mais um fruto à sociedade, agora no Município de São Sepé, RS. Trata-se da Cooperativa Esperança, formada por apenados, familiares e egressos do sistema prisional daquele Município. A solenidade e a assembléia de constituição da Cooperativa ocorreram concomitantemente, na última sexta-feira (23/3), a partir das 14 horas, no Centro Cultural do Município. Representando Pedro Osório, prestigiaram a solenidade o presidente da Cooperativa João-de-Barro, André Luiz de Souza Mendes, o sócio-voluntário Adão Gerald e o Juiz de Direito Diretor do Foro e coordenador do projeto, Marcelo Malizia Cabral. Também participaram da solenidade o Juiz-Corregedor Luciano André Losekann, coordenador do Projeto Trabalho para a Vida, a Magistrada coordenadora da ação em São Sepé, Carmen Lúcia Santos da Fontoura, assim representantes dos Poderes Executivo e Legislativo, do Ministério Público, autoridades e membros da comunidade. A Magistrada anfitriã, ao fazer uso da palavra, registrou que a inspiração daquele trabalho surgiu da experiência da Cooperativa João-deBarro, agradecendo o apoio emprestado por seus membros e pelo coordenador do projeto para a constituição da Esperança. Após ser presenteado pelo presidente da João-de-Barro com uma camiseta e com o escrito ‘Lição de um Cooperativado’, de sua autoria, o recém empossado dirigente da Cooperativa Esperança, Osório Portela, agradeceu a homenagem e emocionado, falou sobre o significado daquele momento para os membros da nova Cooperativa: “A palavra Esperança, na Bíblia, é citada em vários versículos, mas o que mais me chamava a atenção estava no livro de Oséias, no capítulo 2, versículo 15, que diz assim: ‘Eu transformarei o vale da desgraça em uma porta de esperança’”, resumiu ele, comparando o sistema prisional ao primeiro e a cooperativa à última. Cooperativa João-de-Barro – Criada no ano de 2003, em Pedro Osório, RS, integra o Projeto Trabalho para a Vida, da Corregedoria-Geral da Justiça. Garante trabalho e renda para egressos do sistema prisional, adolescentes egressos do cumprimento de medidas com privação de liberdade, e familiares de presos, que trabalham na produção de tijolos, telas em arame, tanques, pias, sanitários e na prestação de serviços de pintura, limpeza e jardinagem. Verificam-se reduzidos índices de reincidência quanto àqueles que a ela aderem. A ação ganhou o Prêmio Direitos Humanos 2005, na categoria Defesa dos Direitos Humanos, uma promoção da Assembléia Legislativa do Rio Grande do Sul, em parceria com a Fundação Maurício Sirotsky Sobrinho e com a Unesco. Cooperativa Esperança – Fundada em 23.3.2007, é composta por cerca de 20 presos e egressos do sistema prisional do Município de São Sepé. Opera com a produção de telas em arame, prestação de serviços e exploração de unidade rural. Tem a coordenação do Poder Judiciário daquela Comarca e conta com 60 causas da violência e efeitos da criminalidade, bem como definir o perfil do egresso e a classificação de suas necessidades; apresentar sugestões para a criação de novas e modernas técnicas de tratamento carcerário e de readaptação dos egressos à sua comunidade; sensibilizar a sociedade para aceitá-los e ajudá-los em sua reintegração; manter a "Casa do Egresso" para o cumprimento de suas finalidades, objetivos e metas da FAESP; acolher, orientar e promover a integração ao mercado de trabalho carentes.” dos egressos do sistema penitenciário do RS, priorizando os 125 Promove socialmente os egressos do sistema prisional, propiciando-lhe profissionalização e inserção no mercado de trabalho. De acordo com pesquisa realizada pelo Instituto de Acesso à Justiça, A FAESP foi criada em 1997, buscando dar assistência ao egresso do sistema penitenciário, principalmente em três áreas: educação, trabalho e saúde. Também auxilia em questões mais emergenciais como alimentação, roupas, documentação e passagens intermunicipais. Quem procura a FAESP, inicialmente passa por uma recepção e em seguida pelo plantão de atendimento, onde é aberto um prontuário que servirá para o acompanhamento dos casos. Caso haja necessidade, também é prestado atendimento aos familiares. Os egressos recebem vale-transporte quando comparecem aos atendimentos. [...] As principais parcerias da FAESP são a VEC, VEPMA, técnicos de algumas das casas prisionais. É através dos parceiros que se dá a informação/encaminhamento a FAESP. A FAESP mantém uma cooperativa de trabalho, a LABORSUL, cooperativa social, também fornece trabalho aos egressos, através de um convênio com a Metalúrgica Jackwall, na montagem de pequenas peças para serem utilizadas em fogareiro. [...] Atualmente a FAESP passa por um processo de aprofundamento da sua intervenção, entendendo que a inserção no mundo do trabalho é apenas parte do processo de inclusão social. A ampliação desta intervenção na perspectiva de refletir sobre outros dispositivos que estão presentes no processo de inclusão.126 o apoio do Ministério Público, Ocergs e poderes constituídos locais.” Disponível em: <http://www.pedroosorio.net/index.php?area=noticias¬icia_id=185>. Acesso em 2.5.2008. 125 Disponível em: < http://www.via-rs.net/pessoais/faesp/#quemsomos>. Acesso em 2.5.2008. 126 INSTITUTO DE ACESSO À JUSTIÇA. Relatório de Pesquisa: Políticas de Atenção ao Egresso no Rio Grande do Sul. Coordenação: Maria Palma Wolff. Porto Alegre: 2005, p. 56-58. Disponível em: <www.mj.gov.br/senasp>. Acesso em 2.5.2008. 61 5.4.3 As Associações de Proteção e Assistência aos Condenados As APACs – Associações de Proteção e Assistência aos Condenados – consistem em organizações da sociedade civil que concretizam direitos humanos a pessoas que cumprem penas privativas de liberdade, garantindo-lhes acompanhamento social durante todas as fases da execução – regimes fechado, semi-aberto e aberto – e até mesmo quando do retorno à sociedade livre. Em outras palavras, essas associações, que já somam dezenas pelo Brasil e outros países do mundo, garantem aos indivíduos que se encontram aprisionados os direitos que lhe são proclamados pela legislação que regula o cumprimento da pena. Suprem a omissão do Estado na concretização de direitos fundamentais ao preso e ao egresso. Sua metodologia de trabalho encontra-se assentada nos seguintes fundamentos: a) participação da comunidade, b) auxílio do recuperando para com os demais recuperandos, c) investimento no trabalho e na religião, d) oferta de atendimento jurídico e à saúde, e) valorização do ser humano e da família e f) priorização do trabalho voluntário.127 Os resultados do trabalho são surpreendentes128 e asseguram constituir a concretização de direitos humanos o meio mais eficaz de redução de criminalidade e reincidência, como relata Romeu Falconi: Diz-nos a APAC que atualmente mais de um milhar de ex-reclusos trabalham nas empresas da cidade [...] Como conseqüência natural 127 Disponível em: <http://www.fbac.com.br/fbac/index.php?option=com_content&task=category& sectionid=6&id=20&Itemid=50>. Acesso em 2.5.2008. 128 “Apresentando índices de reincidência inferior a 8,0%, o método socializador empregado pela APAC, tem alcançado grande repercussão no Brasil e no exterior. Em 1986, a APAC filiou-se à PFIPrison Fellowship International, Órgão Consultivo da ONU para assuntos penitenciários. Desde então, o Método passou a ser divulgado para mais de 100 países através de congressos e seminários internacionais, e as APAC,s do Brasil começaram a receber representantes e delegações de todo o mundo para conhecer e estudar o Método APAC. Entre tantas personalidades ilustres, visitaram a APAC o fundador da PFI, Charles Colson, que ao visitar a APAC de São José dos Campos afirmou: “Este é o único presídio do mundo do qual eu não tive vontade de sair”. No ano de 1990, a APAC de São José dos Campos, sediou a Conferência Latino-Americana com representantes de 21 países para conhecer e estudar o Método. Um ano depois, foi publicado nos EUA, um relatório afirmando que o Método APAC, podia ser aplicado com sucesso em qualquer lugar do mundo. Enquanto isso, a BBC de Londres, após um mês de trabalhos e estreita convivência com os recuperandos da APAC de São José dos Campos, lançou uma fita de vídeo posteriormente divulgada em diversos países do mundo, especialmente Europa e Ásia.” (Disponível em: <http://www.fbac.com.br/fbac/index.php? option=com_content&task=category§ionid=6&id=20&Itemid=50>. Acesso em 2.5.2008.). 62 de um trabalho realmente admirável, dizem que a reincidência caiu do altíssimo percentual de 75% (setenta e cinco por cento) para a minúscula cifra de 5% (cinco por cento) [...] Com efeito, em 23 anos de existência, o sistema implantado pela APAC, unidade de São José dos Campos, cuidou de 1.614 (um mil seiscentos e quatorze) recuperandos. Desse total, apenas 74 (setenta e quatro) reincidiram, o que equivale a 4,58% (quatro vírgula cinqüenta e oito por cento). Os números demonstram o absoluto sucesso em que se constitui a nova instituição posta à disposição do Estado. É só ter vontade política e adotar como órgão institucional oficial o que ali se pratica.129 5.4.4 O Modelo de Segurança Cidadã de Bogotá A explosão demográfica registrada em Bogotá, capital da República da Colômbia, fez com que se transformasse em pouco tempo em uma megametrópole de 7 milhões de habitantes, com índices muito elevados de criminalidade.130 Em face desse quadro “em 1995 iniciou-se a implantação de uma série de programas e projetos baseados em políticas integrais de segurança e convivência, apoiados basicamente em dos eixos: no fortalecimento das instituições de polícia e justiça e em programas de prevenção à violência e à criminalidade, por meio da atenção especial a grupos vulneráveis.”131 Pesquisas científicas procuraram identificar as causas das práticas criminosas e políticas públicas para a supressão daquelas foram assumidas pelo Estado. Dentre essas políticas públicas de asseguração de direitos humanos, destacam-se os seguintes programas: Promoção da Cultura Cidadã: tem por propósito desencadear e coordenar ações públicas e privadas que incidam diretamente sobre a maneira como os cidadãos percebem, reconhecem e usam os entornos sociais e urbanos [...] SUIVD: é um sistema unificado de 129 Sistema Presidial: Reinserção Social? São Paulo: Ícone, 1998, p. 184 e 186. “Em meados da década de 1990, a cidade registrava os mais altos índices de mortes violentas, com taxas de 80 homicídios e 25 mortes em acidentes de trânsito por 100.000 habitantes, e se considerava que a sociedade colombiana se caracterizava pelo afastamento entre a lei, a moral e a cultura, manifestada pela violência interpessoal gratuita, a corrupção, a descrença nas instituições do Estado, etc.” (CARÁMBULA, Marcelo. Por uma Segurança Cidadã no Brasil e América Latina. In Novas Direções na Governança da Justiça e da Segurança. Brasília-DF: Ministério da Justiça, 2006, p. 859). 131 Ibidem, p. 859. 130 63 informações de violência e criminalidade que integra dados dos órgãos policiais e de saúde [...] Unidades de Conciliação e Mediação: [...] Delegacias de Família: [...] Centros de Desenvolvimento Comunitário: projetados nas regiões mais carentes da cidade, abrigam serviços de posto de saúde, com ênfase no atendimento pré e pós-natal, creche, escola-modelo de ensino fundamental e médio e centro de esporte e lazer. [...] Cadeia Distrital de Bogotá: [...] No estabelecimento são desenvolvidos diversos programas, entre os quais se destaca o sistema de “oficinas de pavilhão”, em que os detentos desenvolvem atividades laborais nos próprios locais em que passam a maior parte do dia [...] 132 Esse modelo de segurança cidadã considera “de forma holística o fenômeno da violência e criminalidade, baseando-se em políticas integrais de segurança que têm relação direta com a proteção e promoção da vida, das liberdades individuais, dos bens e valores pessoais e coletivos, enfim, da cidadania, objetivando fundamentalmente a integração das ações de segurança pública, de caráter mais repressivo, com outras de cunho social e estruturantes, que buscam a diminuição da incidência de fatores motivadores da violência e delinqüência, visando sua prevenção.”133 O resultado de uma década de adoção desses princípios e do forte investimento em políticas públicas para a materialização de direitos, foi a redução nos índices de violência e criminalidade, no período de 1995 a 2003, em 70%, com destaque para os homicídios, de 86 por 100 mil habitantes em 1994 para 23,6 por 100 mil habitantes em 2003.134 132 133 Ibidem, p. 860-861. Ibidem, p. 862. 64 REFLEXÕES FINAIS A insuficiência do Estado social tem sido apontada como a circunstância que, de modo mais importante, determina os altos índices de criminalidade e reincidência suportados pelo Brasil. A conseqüência da não-concretização de direitos humanos a milhões de brasileiros é a formação de contingentes de miseráveis e excluídos que buscam a dignidade por meio de condutas erigidas à condição de crime. Deste modo, o único caminho seguro à redução da criminalidade e da reincidência é aquele que efetiva garantias fundamentais aos seres humanos. Há se garantir acesso a direitos naturais aos indivíduos – alimentação, saúde, educação, trabalho, lazer, cultura, dignidade. Há se humanizar as prisões, reservando-se-as a situações de excepcionalidade, potencializando-se a assistência social ao encarcerado e a seus familiares. Há se ofertar ao egresso do sistema prisional possibilidade de obter dignidade ao sair do cárcere, cercando-o da proteção necessária à concretização de seus direitos. O tratamento penal da miséria, experiência instalada nos mais diversos grupos sociais do mundo, somente tem contribuído para a geração de mais exclusão e de mais violação a direitos humanos. Inexistem indicativos seguros de que o aumento do índice de encarceramento ocasione diminuição de criminalidade. Do mesmo modo, a seletividade do sistema penal, privilegiando a perseguição de pobres e excluídos, em nada contribui à minimização do ciclo de criminalidade e reincidência. Somente o fortalecimento das políticas públicas de concretização de direitos humanos e das ações afirmativas redutoras de desigualdades terá o condão de reverter esta realidade e para tanto se faz necessária a organização popular e a denúncia dos movimentos sociais. 134 Ibidem, p. 859. 65 Igualmente imperativo o redirecionamento do aparelho penal do Estado para a macrocriminalidade, realidade que lhe retira diariamente importantes cifras que deveriam servir àqueles propósitos. O controle da criminalidade e da reincidência encontra-se intimamente ligado à concretização de direitos humanos e à redução de desigualdades sociais. Há, pois, se concretizar direitos humanos à construção de uma sociedade mais igual, onde a dignidade sobreponha-se à criminalidade e à reincidência. 66 REFERÊNCIAS ASSOCIAÇÃO DOS JUÍZES DO RIO GRANDE DO SUL. Revista Multijuris: Primeiro Grau em Ação. Porto Alegre, v.1, 2006. Disponível em: <http://www.ajuris.org.br/revista/multijuris1.pdf>. Acesso em 2.5.2008. 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É evidente que devido a grande variedade de condições jurídicas, sociais, econômicas e geográficas existentes no mundo, todas estas regras não podem ser aplicadas indistintamente em todas as partes e a todo tempo. Devem, contudo, servir para estimular o esforço constante com vistas à superação das dificuldades práticas que se opõem a sua aplicação, na certeza de que representam, em seu conjunto, as condições mínimas admitidas pelas Nações Unidas. 3. Por outro lado, os critérios que se aplicam às matérias referidas nestas regras evoluem constantemente e, portanto, não tendem a excluir a possibilidade de experiências e práticas, sempre que as mesmas se ajustem aos princípios e propósitos que emanam do texto das regras. De acordo com esse espírito, a administração penitenciária central sempre poderá autorizar qualquer exceção às regras. 4. 1. A primeira parte das regras trata das matérias relativas à administração geral dos estabelecimentos penitenciários e é aplicável a todas as categorias de prisioneiros, 135 Regras Mínimas para o Tratamento de Prisioneiros. Adotadas pelo 1º Congresso das Nações Unidas sobre Prevenção do Crime e Tratamento de Delinqüentes, realizado em Genebra, em 1955, e aprovadas pelo Conselho Econômico e Social da ONU através da sua resolução 663 C I (XXIV), de 31 de julho de 1957, aditada pela resolução 2076 (LXII) de 13 de maio de 1977. Disponível em: <http://www.dhnet.org.br/direitos/sip/onu/fpena/lex52.htm>. Acesso em 3.5.2008. 71 criminais ou civis, em regime de prisão preventiva ou já condenados, incluindo aqueles que tenham sido objeto de medida de segurança ou de medida de reeducação ordenada por um juiz. 2. A segunda parte contém as regras que são aplicáveis somente às categorias de prisioneiros a que se refere cada seção. Entretanto, as regras da seção A, aplicáveis aos presos condenados, serão igualmente aplicáveis às categorias de presos a que se referem as seções B, C e D, sempre que não sejam contraditórias com as regras específicas dessas seções e sob a condição de que sejam proveitosas para tais prisioneiros. 5. 1. Estas regras não estão destinadas a determinar a organização dos estabelecimentos para delinquentes juvenis (estabelecimentos Borstal, instituições de reeducação etc.). Todavia, de um modo geral, pode-se considerar que a primeira parte destas regras mínimas também é aplicável a esses estabelecimentos. 2. A categoria de prisioneiros juvenis deve compreender, em qualquer caso, os menores sujeitos à jurisdição de menores. Como norma geral, os delinquentes juvenis não deveriam ser condenados a penas de prisão. PARTE I Regras de aplicação geral Princípio Fundamental 6. 1. As regras que se seguem deverão ser aplicadas imparcialmente. Não haverá discriminação alguma baseada em raça, cor, sexo, língua, religião, opinião política ou qualquer outra opinião, origem nacional ou social, fortuna, nascimento ou em qualquer outra situação. 72 2. Ao contrário, é necessário respeitar as crenças religiosas e os preceitos morais do grupo a que pertença o preso. Registro 7. 1. Em todos os lugares em que haja pessoas detidas, deverá existir um livro oficial de registro, atualizado, contendopáginas numeradas, no qual serão anotados, relativamente a cada preso: a. A informação referente a sua identidade; b. As razões da sua detenção e a autoridade competente que a ordenou; c. O dia e a hora da sua entrada e da sua saída. 2. Nenhuma pessoa deverá ser admitida em um estabelecimento prisional sem uma ordem de detenção válida, cujos dados serão previamente lançados no livro de registro. Separação de categorias 8. As diferentes categorias de presos deverão ser mantidas em estabelecimentos prisionais separados ou em diferentes zonas de um mesmo estabelecimento prisional, levando-se em consideração seu sexo e idade, seus antecedentes, as razões da detenção e o tratamento que lhes deve ser aplicado. Assim é que: a. Quando for possível, homens e mulheres deverão ficar detidos em estabelecimentos separados; em estabelecimentos que recebam homens e mulheres, o conjunto dos locais destinados às mulheres deverá estar completamente separado; b. As pessoas presas preventivamente deverão ser mantidas separadas dos presos condenados; c.Pessoas presas por dívidas ou por outras questões de natureza civil deverão ser mantidas separadas das pessoas presas por infração penal; 73 d. Os presos jovens deverão ser mantidos separados dos presos adultos. Locais destinados aos presos 9. 1. As celas ou quartos destinados ao isolamento noturno não deverão ser ocupadas por mais de um preso. Se, por razões especiais, tais como excesso temporário da população carcerária, for indispensável que a administração penitenciária central faça exceções a esta regra, deverá evitar-se que dois reclusos sejam alojados numa mesma cela ou quarto individual. 2. Quando se recorra à utilização de dormitórios, estes deverão ser ocupados por presos cuidadosamente escolhidos e reconhecidos como sendo capazes de serem alojados nessas condições. Durante a noite, deverão estar sujeitos a uma vigilância regular, adaptada ao tipo de estabelecimento prisional em que se encontram detidos. 10. Todas os locais destinados aos presos, especialmente aqueles que se destinam ao alojamento dos presos durante a noite, deverão satisfazer as exigências da higiêne, levando-se em conta o clima, especialmente no que concerne ao volume de ar, espaço mínimo, iluminação, aquecimento e ventilação. 11. Em todos os locais onde os presos devam viver ou trabalhar: a. As janelas deverão ser suficientemente grandes para que os presos possam ler e trabalhar com luz natural, e deverão estar dispostas de modo a permitir a entrada de ar fresco, haja ou não ventilação artificial. b. A luz artificial deverá ser suficiente para os presos poderem ler ou trabalhar sem prejudicar a visão. 12. As instalações sanitárias deverão ser adequadas para que os presos possam satisfazer suas necessidades naturais no momento oportuno, de um modo limpo e 74 decente. 13. As instalações de banho deverão ser adequadas para que cada preso possa tomar banho a uma temperatura adaptada ao clima, tão freqüentemente quanto necessário à higiene geral, de acordo com a estação do ano e a região geográfica, mas pelo menos uma vez por semana em um clima temperado. 14. Todos os locais de um estabelecimento penitenciário freqüentados regularmente pelos presos deverão ser mantidos e conservados escrupulosamente limpos. Higiene pessoal 15. Será exigido que todos os presos mantenham-se limpos; para este fim, ser-lhesão fornecidos água e os artigos de higiene necessários à sua saúde e limpeza. 16. Serão postos à disposição dos presos meios para cuidarem do cabelo e da barba, a fim de que possam se apresentar corretamente e conservem o respeito por si mesmos; os homens deverão poder barbear-se com regularidade. Roupas de vestir, camas e roupas de cama 17. 1. Todo preso a quem não seja permitido vestir suas próprias roupas, deverá receber as apropriadas ao clima e em quantidade suficiente para manter-se em boa saúde. Ditas roupas não poderão ser, de forma alguma, degradantes ou humilhantes. 2. Todas as roupas deverão estar limpas e mantidas em bom estado. A roupa de baixo será trocada e lavada com a frequência necessária à manutenção da higiêne. 3. Em circunstâncias excepcionais, quando o preso necessitar afastar-se do 75 estabelecimento penitenciário para fins autorizados, ele poderá usar suas próprias roupas, que não chamem atenção sobre si. 18. Quando um preso for autorizado a vestir suas próprias roupas, deverão ser tomadas medidas para se assegurar que, quando do seu ingresso no estabelecimento penitenciário, as mesmas estão limpas e são utilizáveis. 19. Cada preso disporá, de acordo com os costumes locais ou nacionais, de uma cama individual e de roupa de cama suficiente e própria, mantida em bom estado de conservação e trocada com uma freqüência capaz de garantir sua limpeza. Alimentação 20. 1. A administração fornecerá a cada preso, em horas determinadas, uma alimentação de boa qualidade, bem preparada e servida, cujo valor nutritivo seja suficiente para a manutenção da sua saúde e das suas forças. 2. Todo preso deverá ter a possibilidade de dispor de água potável quando dela necessitar. Exercícios físicos 21. 1. O preso que não trabalhar ao ar livre deverá ter, se o tempo permitir, pelo menos uma hora por dia para fazer exercícios apropriados ao ar livre. 2. Os presos jovens e outros cuja idade e condição física o permitam, receberão durante o período reservado ao exercício uma educação física e recreativa. Para este fim, serão colocados à disposição instalações e os equipamentos necessários. dos presos o espaço, as 76 Serviços médicos 22. 1. Cada estabelecimento penitenciário terá à sua disposição os serviços de pelo menos um médico qualificado, que deverá ter certos conhecimentos de psiquiatria. Os serviços médicos deverão ser organizados em estreita ligação com a administração geral de saúde da comunidade ou nação. Deverão incluir um serviço de psiquiatria para o diagnóstico, e em casos específicos, para o tratamento de estados de anomalia. 2. Os presos doentes que necessitem tratamento especializado deverão ser transferidos para estabelecimentos especializados ou para hospitais civis. Quando existam facilidades hospitalares em um estabelecimento prisional, o respectivo equipamento, mobiliário e produtos farmacêuticos serão adequados para o tratamento médico dos presos doentes, e deverá haver pessoal devidamente qualificado. 3. Cada preso poderá servir-se dos trabalhos de um dentista qualificado. 23. 1. Nos estabelecimentos prisionais para mulheres devem existir instalações especiais para o tratamento de presas grávidas, das que tenham acabado de dar à luz e das convalescentes. Desde que seja possível, deverão ser tomadas medidas para que o parto ocorra em um hospital civil. Se a criança nascer num estabelecimento prisional, tal fato não deverá constar no seu registro de nascimento. 2. Quando for permitido às mães presas conservar as respectivas crianças, deverão ser tomadas medidas para organizar uma creche, dotada de pessoal qualificado, onde as crianças possam permanecer quando não estejam ao cuidado das mães. 24. O médico deverá ver e examinar cada preso o mais depressa possível após a sua admissão no estabelecimento prisional e depois, quando necessário, com o objetivo de detectar doenças físicas ou mentais e de tomar todas as medidas 77 necessárias para o respectivo tratamento; de separar presos suspeitos de doenças infecciosas ou contagiosas; de anotar deformidades físicas ou mentais que possam constituir obstáculos à reabilitação dos presos, e de determinar a capacidade de trabalho de cada preso. 25. 1. O médico deverá tratar da saúde física e mental dos presos e deverá diariamente observar todos os presos doentes e os que se queixam de dores ou mal-estar, e qualquer preso para o qual a sua atenção for chamada. 2. O médico deverá informar o diretor quando considerar que a saúde física ou mental de um preso tenha sido ou venha a ser seriamente afetada pelo prolongamento da situação de detenção ou por qualquer condição específica dessa situação de detenção. 26. 1. O médico deverá regularmente inspecionar e aconselhar o diretor sobre: a. A b. A c. As quantidade, higiene e condições qualidade, limpeza preparação do sanitárias, e estabelecimento aquecimento, serviço da prisional iluminação alimentação; e e dos presos; ventilação estabelecimento do prisional; d. A adequação e limpeza da roupa de vestir e de cama dos presos; e. A observância das regras concernentes à educação física e aos desportos, quando não houver pessoal técnico encarregado destas atividades. 2. O diretor levará em consideração os relatórios e os pareceres que o médico lhe apresentar, de acordo com as regras 25(2) e 26, e no caso de concordar com as recomendações apresentadas tomará imediatamente medidas no sentido de pôr em prática essas recomendações; se as mesmas não estiverem no âmbito da sua competência, ou caso não concorde com elas, deverá imediatamente enviar o seu próprio relatório e o parecer do médico a uma autoridade superior. Disciplina e sanções 78 27. A disciplina e a ordem serão mantidas com firmeza, mas sem impor mais restrições do que as necessárias à manutenção da segurança e da boa organização da vida comunitária. 28. 1. Nenhum preso pode ser utilizado em serviços que lhe sejam atribuídos em consequência de medidas disciplinares. 2. Esta regra, contudo, não impedirá o conveniente funcionamento de sistemas baseados na autogestão, nos quais atividades ou responsabilidades sociais, educacionais ou esportivas específicas podem ser confiadas, sob adequada supervisão, a presos reunidos em grupos com objetivos terapêuticos. 29. A lei ou regulamentação emanada da autoridade administrativa competente determinará, para cada caso: a. O comportamento que constitua falta disciplinar; b. O s tipos e a duração da punição a aplicar; c. A autoridade competente para impor tal punição. 30. 1. Nenhum preso será punido senão de acordo com a lei ou regulamento, e nunca duas vezes pelo mesmo crime. 2. Nenhum preso será punido a não ser que tenha sido informado do crime de que é acusado e lhe seja dada uma oportunidade adequada para apresentar defesa. A autoridade competente examinará o caso exaustivamente. 3. Quando necessário e possível, o preso será autorizado a defender-se por meio de um intérprete. 31. Serão absolutamente proibidos como punições por faltas disciplinares os castigos corporais, a detenção em cela escura e todas as penas cruéis, desumanas ou degradantes. 79 32. a. As penas de isolamento e de redução de alimentação não deverão nunca ser aplicadas, a menos que o médico tenha examinado o preso e certificado por escrito que ele está apto para as suportar. b.O mesmo se aplicará a qualquer outra punição que possa ser prejudicial à saúde física ou mental de um preso. Em nenhum caso deverá tal punição contrariar ou divergir do princípio estabelecido na regra 31. c. O médico visitará diariamente os presos sujeitos a tais punições e aconselhará o diretor caso considere necessário terminar ou alterar a punição por razões de saúde física ou mental. Instrumentos de coação 33. A sujeição a instrumentos tais como algemas, correntes, ferros e coletes de força nunca deve ser aplicada como punição. Correntes e ferros também não serão usados como instrumentos de coação. Quaisquer outros instrumentos de coação não serão usados, exceto nas seguintes circunstâncias: a. Como precaução contra fuga durante uma transferência, desde que sejam retirados quando o preso comparecer perante uma autoridade judicial ou administrativa; b. Por razões médicas e sob a supervisão do médico; c. Por ordem do diretor, se outros métodos de controle falharem, a fim de evitar que o preso se moleste a si mesmo, aoutros ou cause estragos materiais; nestas circunstâncias, o diretor consultará imediatamente o médico e informará à autoridade administrativa superior. 34. As normas e o modo de utilização dos instrumentos de coação serão decididos pela administração prisional central. Tais instrumentos não devem ser impostos senão pelo tempo estritamente necessário. Informação e direito de queixa dos presos 80 35. 1. Quando for admitido, cada preso receberá informação escrita sobre o regime prisional para a sua categoria, sobre os regulamentos disciplinares do estabelecimento e os métodos autorizados para obter informações e para formular queixas; e qualquer outra informação necessária para conhecer os seus direitos e obrigações, e para se adaptar à vida do estabelecimento. 2. Se o preso for analfabeto, tais informações ser-lhe-ão comunicadas oralmente. 36. 1. Todo preso terá, em cada dia de trabalho, a oportunidade de apresentar pedidos ou queixas ao diretor do estabelecimento ou ao funcionário autorizado a representálo. 2. As petições ou queixas poderão ser apresentadas ao inspetor de prisões durante sua inspeção. O preso poderá falar com o inspetor ou com qualquer outro funcionário encarregado da inspeção sem que o diretor ou qualquer outro membro do estabelecimento se faça presente. 3. Todo preso deve ter autorização para encaminhar, pelas vias prescritas, sem censura quanto às questões de mérito mas na devida forma, uma petição ou queixa à administração penitenciária central, à autoridade judicial ou a qualquer outra autoridade competente. 4. A menos que uma solicitação ou queixa seja evidentemente temerária ou desprovida de fundamento, a mesma deverá ser examinada sem demora, dando-se uma resposta ao preso no seu devido tempo. Contatos com o mundo exterior 37. Os presos serão autorizados, sob a necessária supervisão, a comunicar-se periodicamente com as suas famílias e com amigos de boa reputação, quer por correspondência quer através de visitas. 38. 1. Aos presos de nacionalidade estrangeira, serão concedidas facilidades razoáveis 81 para se comunicarem com os representantes diplomáticos e consulares do Estado a que pertencem. 2. A presos de nacionalidade de Estados sem representação diplomática ou consular no país, e a refugiados ou apátridas, serão concedidas facilidades semelhantes para comunicarem-se com os representantes diplomáticos do Estado encarregado de zelar pelos seus interesses ou com qualquer entidade nacional ou internacional que tenha como tarefa a proteção de tais indivíduos. 39. Os presos serão mantidos regularmente informados das notícias mais importantes através da leitura de jornais, periódicos ou publicações especiais do estabelecimento prisional, através de transmissões de rádio, conferências ou quaisquer outros meios semelhantes, autorizados ou controlados pela administração. Biblioteca 40. Cada estabelecimento prisional terá uma biblioteca para o uso de todas as categorias de presos, devidamente provida com livros de recreio e de instrução, e os presos serão estimulados a utilizá-la. Religião 41. 1. Se o estabelecimento reunir um número suficiente de presos da mesma religião, um representante qualificado dessa religião será nomeado ou admitido. Se o número de presos o justificar e as condições o permitirem, tal serviço será na base de tempo completo. 2. Um representante qualificado, nomeado ou admitido nos termos do parágrafo 1, será autorizado a celebrar serviços religiosos regulares e a fazer visitas pastorais particulares a presos da sua religião, em ocasiões apropriadas. 3. Não será recusado o acesso de qualquer preso a um representante qualificado de qualquer religião. Por outro lado, se qualquer preso levantar objeções à visita de qualquer representante religioso, sua posição será inteiramente respeitada. 82 42. Tanto quanto possível, cada preso será autorizado a satisfazer as necessidades de sua vida religiosa, assistindo aos serviços ministrados no estabelecimento ou tendo em sua posse livros de rito e prática religiosa da sua crença. Depósitos de objetos pertencentes aos presos 43. 1. Quando o preso ingressa no estabelecimento prisional, o dinheiro, os objetos de valor, roupas e outros bens que lhe pertençam, mas que não possam permanecer em seu poder por força do regulamento, serão guardados em um lugar seguro, levantando-se um inventário de todos eles, que deverá ser assinado pelo preso. Serão tomadas as medidas necessárias para que tais objetos se conservem em bom estado. 2. Os objetos e o dinheiro pertencentes ao preso ser-lhe-ão devolvidos quando da sua liberação, com exceção do dinheiro que ele foi autorizado a gastar, dos objetos que tenham sido remetidos para o exterior do estabelecimento, com a devida autorização, e das roupas cuja destruição haja sido decidida por questões higiênicas. O preso assinará um recibo dos objetos e do dinheiro que lhe forem restituídos. 3. Os valores e objetos enviados ao preso do exterior do estabelecimento prisional serão submetidos às mesmas regras. 4. Se o preso estiver na posse de medicamentos ou de entorpecentes no momento do seu ingresso no estabelecimento prisional, o médico decidirá que uso será dado a eles. Notificação de morte, doenças e transferências 44. 1. No caso de morte, doença ou acidente grave, ou da transferência do preso para um estabelecimento para doentes mentais, o diretor informará imediatamente o 83 cônjuge, se o preso for casado, ou o parente mais próximo, e informará, em qualquer caso, a pessoa previamente designada pelo preso. 2. Um preso será informado imediatamente da morte ou doença grave de qualquer parente próximo. No caso de doença grave de um parente próximo, o preso será autorizado, quando as circunstâncias o permitirem, a visitá-lo, escoltado ou não. 3. Cada preso terá o direito de informar imediatamente à sua família sobre sua prisão ou transferência para outro estabelecimento prisional. Transferência de presos 45. 1. Quando os presos estiverem sendo transferidos para outro estabelecimento prisional, deverão ser vistos o menos possível pelo público, e medidas apropriadas serão adotadas para protegê-los contra qualquer forma de insultos, curiosidade e publicidade. 2. Será proibido o traslado de presos em transportes com ventiliação ou iluminação deficientes, ou que de qualquer outro modo possam submetê-los a sacrifícios desnecessários. 3. O transporte de presos será efetuado às expensas da administração, em condições iguais para todos eles. Pessoal penitenciário 46. 1. A administração penitenciária escolherá cuidadosamente o pessoal de todas as categorias, posto que, da integridade, humanidade, aptidão pessoal e capacidade profissional desse pessoal, dependerá a boa direção dos estabelecimentos penitenciários. 2. A administração penitenciária esforçar-se-á constantemente por despertar e manter no espírito do pessoal e na opinião pública a convicção de que a função 84 penitenciária constitui um serviço social de grande importância e, sendo assim, utilizará todos os meios apropriados para ilustrar o público. 3. Para lograr tais fins, será necessário que os membros trabalhem com exclusivadade como funcionários penitenciários profissionais, tenham a condição de funcionários públicos e, portanto, a segurança de que a estabilidade em seu emprego dependerá unicamente da sua boa conduta, da eficácia do seu trabalho e de sua aptidão física. A remuneração do pessoal deverá ser adequada, a fim de se obter e conservar os serviços de homens e mulheres capazes. Determinar-se-á os benefícios da carreira e as condições do serviço tendo em conta o caráter penoso de suas funções. 47. 1. Os membros do pessoal deverão possuir um nível intelectual satisfatório. 2. Os membros do pessoal deverão fazer, antes de ingressarem no serviço, um curso de formação geral e especial, e passar satisfatoriamente pelas provas teóricas e práticas. 3. Após seu ingresso no serviço e durante a carreira, os membros do pessoal deverão manter e melhorar seus conhecimentos e sua capacidade profissionais fazendo cursos de aperfeiçoamento, que se organizarão periodicamente. 48. Todos os membros do pessoal deverão conduzir-se e cumprir suas funções, em qualquer circunstância, de modo a que seu exemplo inspire respeito e exerça uma influência benéfica sobre os presos. 49. 1. Na medida do possível dever-se-á agregar ao pessoal um número suficiente de especialistas, tais como psiquiatras, psicólogos, assistentes sociais, professores e instrutores técnicos. 2. Os serviços dos assistentes sociais, dos professores e instrutores técnicos deverão ser mantidos permanentemente, sem que isto exclua os serviços de auxiliares a tempo parcial ou voluntários. 85 50. 1. O diretor do estabelecimento prisional deverá estar devidamente qualificado para sua função por seu caráter, sua capacidade administrativa, uma formação adequada e por sua experiência na matéria. 2. O diretor deverá consagrar todo o seu tempo à sua função oficial, que não poderá ser desempenhada com restrição de horário. 3. O diretor deverá residir no estabelecimento prisional ou perto dele. 4. Quando dois ou mais estabelecimentos estejam sob a autoridade de um único diretor, este os visitará com freqüência. Cada um desses estabelecimentos estará dirigido por um funcionário responsável residente no local. 51. 1. O diretor, o subdiretor e a maioria do pessoal do estabelecimento prisional deverão falar a língua da maior parte dos reclusos ou uma língua compreendida pela maior parte deles. 2. Recorrer-se-á aos serviços de um intérprete toda vez que seja necessário. 52. 1. Nos estabelecimentos prisionais cuja importância exija o serviço contínuo de um ou vários médicos, pelo menos um deles residirá no estabelecimento ou nas suas proximidades. 2. Nos demais estabelecimentos, o médico visitará diariamente os presos e residirá próximo o bastante do estabelecimento para acudir sem demora toda vez que se apresente um caso urgente. 53. 1.Nos estabelecimentos mistos, a seção das mulheres estará sob a direção de um funcionário responsável do sexo feminino, a qual manterá sob sua guarda todas as chaves de tal seção. 2. Nenhum funcionário do sexo masculino ingressará na seção feminina desacompanhado de um membro feminino do pessoal. 86 3. A vigilância das presas será exercida exclusivamente por funcionários do sexo feminino. Contudo, isto não excluirá que funcionários do sexo masculino, especialmente os médicos e o pessoal de ensino, desempenhem suas funções profissionais em estabelecimentos ou seções reservadas às mulheres. 54. 1. Os funcionários dos estabelecimentos prisionais não usarão, nas suas relações com os presos, de força, exceto em legítima defesa ou em casos de tentativa de fuga, ou de resistência física ativa ou passiva a uma ordem fundamentada na lei ou nos regulamentos. Os funcionários que tenham que recorrer à força, não devem usar senão a estritamente necessária, e devem informar imediatamente o incidente ao diretor do estabelecimento prisional. 2. Será dado aos guardas da prisão treinamento físico especial, a fim de habilitá-los a dominarem presos agressivos. 3. Exceto em circunstâncias especiais, os funcionários, no cumprimento de funções que impliquem contato direto com os presos, não deverão andar armados. Além disso, não será fornecida arma a nenhum funcionário sem que o mesmo tenha sido previamente adestrado no seu manejo. Inspeção 55. Haverá uma inspeção regular dos estabelecimentos e serviços prisionais por inspetores qualificados e experientes, nomeados por uma autoridade competente. É seu dever assegurar que estes estabelecimentos estão sendo administrados de acordo com as leis e regulamentos vigentes, para prosseguimento dos objetivos dos serviços prisionais e correcionais. PARTE II Regras aplicáveis a categorias especiais A. Presos condenados 87 Princípios mestres 56. Os princípios mestres enumerados a seguir têm por objetivo definir o espírito segundo o qual devem ser administrados os sistemas penitenciários e os objetivos a serem buscados, de acordo com a declaração constante no ítem 1 das Observações preliminares das presentes regras. 57. A prisão e outras medidas cujo efeito é separar um delinqüente do mundo exterior são dolorosas pelo próprio fato de retirarem do indivíduo o direito à autodeterminação, privando-o da sua liberdade. Logo, o sistema prisional não deverá, exceto por razões justificáveis de segregação ou para a manutenção da disciplina, agravar o sofrimento inerente a tal situação. 58. O fim e a justificação de uma pena de prisão ou de qualquer medida privativa de liberdade é, em última instância, proteger a sociedade contra o crime. Este fim somente pode ser atingido se o tempo de prisão for aproveitado para assegurar, tanto quanto possível, que depois do seu regresso à sociedade o delinqüente não apenas queira respeitar a lei e se auto-sustentar, mas também que seja capaz de fazê-lo. 59. Para alcançar esse propósito, o sistema penitenciário deve empregar, tratando de aplicá-los conforme as necessidadesdo tratamento individual dos delinqüentes, todos os meios curativos, educativos, morais, espirituais e de outra natureza, e todas as formas de assistência de que pode dispor. 60. 1. O regime do estabelecimento prisional deve tentar reduzir as diferenças existentes entre a vida na prisão e a vida livre quando tais diferenças contribuirem para debilitar o sentido de responsabilidade do preso ou o respeito à dignidade da sua pessoa. 2. É conveniente que, antes do término do cumprimento de uma pena ou medida, sejam tomadas as providências necessárias para assegurar ao preso um retorno 88 progressivo à vida em sociedade. Este propósito pode ser alcançado, de acordo com o caso, com a adoção de um regime preparatório para a liberação, organizado dentro do mesmo estabelecimento prisional ou em outra instituição apropriada, ou mediante libertação condicional sobvigilância não confiada à polícia, compreendendo uma assistência social eficaz. 61. No tratamento, não deverá ser enfatizada a exclusão dos presos da sociedade, mas, ao contrário, o fato de que continuam a fazer parte dela. Com esse objetivo deve-se recorrer, na medida ao possível, à cooperação de organismos comunitários que ajudem o pessoal do estabelecimento prisional na sua tarefa de reabilitar socialmente os presos. Cada estabelecimento penitenciário deverá contar com a colaboração de assistentes sociais encarregados de manter e melhorar as relações dos presos com suas famílias e com os organismos sociais que possam lhes ser úteIs. Também deverão ser feitas gestões visando proteger, desde que compatível com a lei e com a pena imposta, os direitos relativos aos interesses civis, os benefícios dos direitos da previdência social e outros benefícios sociais dos presos. 62. Os serviços médicos do estabelecimento prisional se esforçarão para descobrir e deverão tratar todas as deficiências ou enfermidades físicas ou mentais que constituam um obstáculo à readaptação do preso. Com vistas a esse fim, deverá ser realizado todo tratamento médico, cirúrgico e psiquiátrico que for julgado necessário. 63. 1. Estes princípios exigem a individualização do tratamento que, por sua vez, requer um sistema flexível de classificação dos presos em grupos. Portanto, convém que os grupos sejam distribuidos em estabelecimentos distintos, onde cada um deles possa receber o tratamento necessário. 2. Ditos estabelecimentos não devem adotar as mesmas medidas de segurança com relação a todos os grupos. É conveniente estabelecer diversos graus de segurança conforme a que seja necessária para cada um dos diferentes grupos. Os estabelecimentos abertos - nos quais inexistem meios de segurança física contra a fuga e se confia na autodisciplina dos presos - proporcionam, a presos cuidadosamente escolhidos, as condições mais favoráveis para a sua readaptação. 89 3. É conveniente evitar que nos estabelecimentos fechados o número de presos seja tão elevado que constitua um obstáculo à individualização do tratamento. Em alguns países, estima-se que o número de presos em tais estabelecimentos não deve passar de quinhentos. Nos estabelecimentos abertos, o número de presos deve ser o mais reduzido possível. 4. Ao contrário, também não convém manter estabelecimentos demasiadamente pequenos para que se possa organizar neles um regime apropriado. 64. O dever da sociedade não termina com a libertação do preso. Deve-se dispor, por conseguinte, dos serviços de organismos governamentais ou privados capazes de prestar à pessoa solta uma ajuda pós-penitenciária eficaz, que tenda a diminuir os preconceitos para com ela e permitam sua readaptação à comunidade. Tratamento 65. O tratamento dos condenados a uma punição ou medida privativa de liberdade deve ter por objetivo, enquanto a duração da pena o permitir, inspirar-lhes a vontade de viver conforme a lei, manter-se com o produto do seu trabalho e criar neles a aptidão para fazê-lo. Tal tratamento estará direcionado a fomentar-lhes o respeito por si mesmos e a desenvolver seu senso de responsabilidade. 66. 1. Para lograr tal fim, deverá se recorrer, em particular, à assistência religiosa, nos países em que ela seja possível, à instrução, à orientação e à formação profissionais, aos métodos de assistência social individual, ao assessoramento relativo ao emprego, ao desenvolvimento físico e à educação do caráter moral, em conformidade com as necessidades individuais de cada preso. Deverá ser levado em conta seu passado social e criminal, sua capacidade e aptidão físicas e mentais, suas disposições pessoais, a duração de sua condenação e as perspectivas depois da sua libertação. 2. Em relação a cada preso condenado a uma pena ou medida de certa duração, que ingresse no estabelecimento prisional, será remetida ao diretor, o quanto antes, um informe completo relativo aos aspectos mencionados no parágrafo anterior. Este 90 informe será acompanhado por o de um médico, se possível especializado em psiquiatria, sobre o estado físico e mental do preso. 3. Os informes e demais documentos pertinentes formarão um arquivo individual. Estes arquivos serão mantidos atualizados e serão classificados de modo que o pessoal responsável possa consultá-los sempre que seja necessário. Classificação e individualização 67. Os objetivos da classificação deverão ser: a. Separar os presos que, por seu passado criminal ou sua má disposição, exerceriam uma influência nociva sobre os companheiros de detenção; b. Repartir os presos em grupos, a fim de facilitar o tratamento destinado à sua readaptação social. 68. Haverá, se possível, estabelecimentos prisionais separados ou seções separadas dentro dos estabelecimentos para os distintos grupos de presos. 69. Tão logo uma pessoa condenada a uma pena ou medida de certa duração ingresse em um estabelecimento prisional, e depois de um estudo da sua personalidade, será criado um programa de tratamento individual, tendo em vista os dados obtidos sobre suas necessidades individuais, sua capacidade e suas inclinações. Privilégios 70. Em cada estabelecimento prisional será instituído um sistema de privilégios adaptado aos diferentes grupos de presos e aos diferentes métodos de tratamento, a fim de estimular a boa conduta, desenvolver o sentido de responsabilidade e promover o interesse e a cooperação dos presos no que diz respeito ao seu tratamento. Trabalho 91 71. 1. O trabalho na prisão não deve ser penoso. 2. Todos os presos condenados deverão trabalhar, em conformidade com as suas aptidões física e mental, de acordo com a determinação do médico. 3. Trabalho suficiente de natureza útil será dado aos presos de modo a conservá-los ativos durante um dia normal de trabalho. 4. Tanto quanto possível, o trabalho proporcionado será de natureza que mantenha ou aumente as capacidades dos presos para ganharem honestamente a vida depois de libertados. 5. Será proporcionado treinamento profissional em profissões úteis aos presos que dele tirarem proveito, especialmente aos presos jovens. 6. Dentros dos limites compatíveis com uma seleção profissional apropriada e com as exigências da administração e disciplina prisionais, os presos poderão escolher o tipo de trabalho que querem fazer. 72. 1. A organização e os métodos de trabalho penitenciário deverão se assemelhar o mais possível aos que se aplicam a um trabalho similar fora do estabelecimento prisional, a fim de que os presos sejam preparados para as condições normais de trabalho livre. 2. Contudo, o interesse dos presos e de sua formação profissional não deverão ficar subordinados ao desejo de se auferir benefícios pecuniários de uma indústria penitenciária. 73. 1. As indústrias e granjas penitenciárias deverão ser dirigidas preferencialmente pela administração e não por empreiteiros privados. 2. Os presos que se empregarem em algum trabalho não fiscalizado pela administração estarão sempre sob a vigilância do pessoal penitenciário. A menos que o trabalho seja feito para outros setores do governo, as pessoas por ele beneficiadas pagarão à administração o salário normalmente exigido para tal trabalho, levando-se em conta o rendimento do preso. 92 74. 1. Nos estabelecimentos penitenciários, serão tomadas as mesmas precauções prescritas para a proteção, segurança e saúde dos trabalhadores livres. 2. Serão tomadas medidas visando indenizar os presos que sofrerem acidentes de trabalho e enfermidades profissionais em condições similares às que a lei dispõe para os trabalhadores livres. 75. 1. As horas diárias e semanais máximas de trabalho dos presos serão fixadas por lei ou por regulamento administrativo, tendo em consideração regras ou costumes locais concernentes ao trabalho das pessoas livres. 2. As horas serão fixadas de modo a deixar um dia de descanso semanal e tempo suficiente para a educação e para outras atividades necessárias ao tratamento e reabilitação dos presos. 76. 1. O trabalho dos reclusos deverá ser remunerado de uma maneira eqüitativa. 2. O regulamento permitirá aos reclusos que utilizem pelo menos uma parte da sua remuneração para adquirir objetos destinados a seu uso pessoal e que enviem a outra parte à sua família. 3. O regulamento deverá, igualmente, prever que a administração reservará uma parte da remuneração para a constituição de um fundo, que será entregue ao preso quando ele for posto em liberdade. Educação e recreio 77. 1. Serão tomadas medidas para melhorar a educação de todos os presos em condições de aproveitá-la, incluindo instrução religiosa nos países em que isso for possível. A educação de analfabetos e presos jovens será obrigatória, prestando-lhe a administração especial atenção. 93 2. Tanto quanto possível, a educação dos presos estará integrada ao sistema educacional do país, para que depois da sua libertação possam continuar, sem dificuldades, a sua educação. 78. Atividades de recreio e culturais serão proporcionadas em todos os estabelecimentos prisionais em benefício da saúde física e mental dos presos. Relações sociais e assistência pós-prisional 79. Será prestada especial atenção à manutenção e melhora das relações entre o preso e sua família, que se mostrem de maior vantagem para ambos. 80. Desde o início do cumprimento da pena de um preso, ter-se-á em conta o seu futuro depois de libertado, devendo ser estimulado e auxiliado a manter ou estabelecer relações com pessoas ou organizações externas, aptas a promover os melhores interesses da sua família e da sua própria reabilitação social. 81. 1. Serviços ou organizações, governamentais ou não, que prestam assistência a presos libertados, ajudando-os a reingressarem na sociedade, assegurarão, na medida do possível e do necessário, que sejam fornecidos aos presos libertados documentos de identificação apropriados, casas adequadas e trabalho, que estejam conveniente e adequadamente vestidos, tendo em conta o clima e a estação do ano, e que tenham meios materiais suficientes para chegar ao seu destino e para se manter no período imediatamente seguinte ao da sua libertação. 2. Os representantes oficiais dessas organizações terão todo o acesso necessário ao estabelecimento prisional e aos presos, sendo consultados sobre o futuro do preso desde o início do cumprimento da pena. 3. É recomendável que as atividades dessas organizações estejam centralizadas ou sejam coordenadas, tanto quanto possível, a fim de garantir a melhor utilização dos seus esforços. 94 B. Presos dementes e mentalmente enfermos 82. 1. Os presos considerados dementes não deverão ficar detidos em prisões. Devem ser tomadas medidas para transferí-los, o mais rapidamente possível, para instituições destinadas a enfermos mentais. 2. Os presos que sofrem de outras doenças ou anomalias mentais deverão ser examinados e tratados em instituições especializadas sob vigilância médica. 3. Durante sua estada na prisão, tais presos deverão ser postos sob a supervisão Especial de um médico. 4. O serviço médico ou psiquiátrico dos estabelecimentos prisionais proporcionará tratamento psiquiátrico a todos os presos que necessitam de tal tratamento. 83. Será conveniente a adoção de disposições, de acordo com os organismos competentes, para que, caso necessário, otratamento psiquiátrico prossiga depois da libertação do preso, assegurando-se uma assistência social pós-penitenciária de caráter psiquiátrico. C. Pessoas detidas ou em prisão preventiva 84. 1. As pessoas detidas ou presas em virtude de acusações criminais pendentes, que estejam sob custódia policial ou em uma prisão, mas que ainda não foram submetidas a julgamento e condenadas, serão designados por "presos não julgados" nestas regras. 2. Os presos não julgados presumem-se inocentes e como tal devem ser tratados. 3. Sem prejuízo das normas legais sobre a proteção da liberdade individual ou que prescrevem os trâmites a serem observados em relação a presos não julgados, estes deverão ser beneficiados por um regime especial, regra que se segue apenas nos seus requisitos essenciais. delineado na 95 85. 1. Os presos não julgados serão mantidos separados dos presos condenados. 2. Os presos jovens não julgados serão mantidos separados dos adultos e deverão estar, a princípio, detidos em estabelecimentos prisionais separados. 86. Os presos não julgados dormirão sós, em quartos separados. 87. Dentro dos limites compatíveis com a boa ordem do estabelecimento prisional, os presos não julgados podem, se assim o desejarem, mandar vir alimentação do exterior às expensas próprias, quer através da administração, quer através da sua família ou amigos. Caso contrário, a administração fornecer-lhes-á alimentação. 88. 1. O preso não julgado será autorizado a usar a sua própria roupa de vestir, se estiver limpa e for adequada. 2. Se usar roupa da prisão, esta será diferente da fornecida aos presos condenados. 89. Será sempre dada ao preso não julgado oportunidade para trabalhar, mas não lhe será exigido trabalhar. Se optar por trabalhar, será pago. 90. O preso não julgado será autorizado a adquirir, às expensas próprias ou às expensas de terceiros, livros, jornais, material para escrever e outros meios de ocupação compatíveis com os interesses da administração da justiça e a segurança e a boa ordem do estabelecimento prisional. 91. O preso não julgado será autorizado a receber a visita e ser tratado por seu médico ou dentista pessoal, desde que haja motivo razoável para tal pedido e que ele possa suportar os gastos daí decorrentes. 92. O preso não julgado será autorizado a informar imediatamente à sua família sobre sua detenção, e ser-lhe-ão dadas todas as facilidades razoáveis para comunicar-se com sua família e amigos e para receber as visitas deles, sujeito apenas às restrições e supervisão necessárias aos interesses da administração da justiça e à segurança e boa ordem do estabelecimento prisional. 96 93. O preso não julgado será autorizado a requerer assistência legal gratuita, onde tal assistência exista, e a receber visitas do seu advogado para tratar da sua defesa, preparando e entregando-lhe instruções confidenciais. Para esse fim ser-lhe-á fornecido, se ele assim o desejar, material para escrever. As conferências entre o preso não julgado e o seu advogado podem ser vigiadas visualmente por um policial ou por um funcionário do estabelecimento prisional, mas a conversação entre eles não poderá ser ouvida. D. Pessoas condenadas por dívidas ou à prisão civil 94. Nos países em que a legislação prevê a possibilidade de prisão por dívidas ou outras formas de prisão civil, as pessoas assim condenadas não serão submetidas a maiores restrições nem a tratamentos mais severos que os necessários à segurança e à manutenção da ordem. O tratamento dado a elas não será, em nenhum caso, mais rígido do que aquele reservado às pessoas acusadas, ressalvada, contudo, a eventual obrigação de trabalhar. E. Pessoas presas, detidas ou encarceradas sem acusação 95. Sem prejuízo das regras contidas no artigo 9 do Pacto de Direitos Civis e Políticos, será dada às pessoas detidas ou presas sem acusação a mesma proteção concedida nos termos da Parte I e da seção C da Parte II. As regras da seção A da Parte II serão do mesmo modo aplicáveis sempre que beneficiarem este grupo especial de indivíduos sob detenção; todavia, medida alguma será tomada se considerado que a reeducação ou a reabilitação são, por qualquer forma, inapropriadas a indivíduos não condenados por qualquer crime. ANEXO 97 Procedimentos para a aplicação efetiva das Regras Mínimas para o Tratamento de Prisioneiros Procedimento 1 Todos os Estados cujas normas de proteção a todas as pessoas submetidas a qualquer forma de detenção ou prisão não estiverem à altura das Regras Mínimas para o Tratamento de Prisioneiros, adotarão essas regras mínimas. Comentário: A Assembléia Geral, em sua Resolução 2.858 (XXVI), de 20 de dezembro de 1971, chamou a atenção dos Estados membros para as Regras Mínimas e recomendou que eles as aplicassem na administração das instituições penais e correcionais e que considerassem favoravelmente a possibilidade de incorporá-las em sua legislação nacional. É possível que alguns Estados tenham normas mais avançadas que as Regras e, portanto, não se pede aos mesmos que as adotem. Quando os Estados considerarem que as Regras necessitam ser harmonizadas com seus sistemas jurídicos e adaptadas à sua cultura, devem ressaltar a intenção e não a letra fria das Regras. Procedimento 2 Adaptadas, se necessário, às leis e à cultura existentes, mas sem distanciar-se do seu espírito e do seu objetivo, as Regras Mínimas serão incorporadas à legislação nacional e demais regulamentos. Comentário: Este procedimento ressalta a necessidade de se incorporar as Regras Mínimas à legislação e aos regulamentos nacionais, com o que se abrange também alguns aspectos do procedimento 1. Procedimento 3 As Regras Mínimas serão postas à disposição de todas as pessoas interessadas, em particular dos funcionários responsáveis pela aplicação da lei e do pessoal penitenciário, a fim de permitir sua aplicação e execução dentro do sistema de justiça penal. 98 Comentário: Este procedimento lembra que as Regras Mínimas, assim como as leis e os regulamentos nacionais relativos à sua aplicação, devem ser colocados à disposição de todas as pessoas que participem na sua aplicação, em especial dos funcionários responsáveis pela aplicação da lei e do pessoal penitenciário. É possível que a aplicação das Regras exija, ademais, que o organismo administrativo central encarregado dos aspectos correcionais organize cursos de capacitação. A difusão dos presentes procedimentos é examinada nos procedimentos 7 a 9. Procedimento 4 As Regras Mínimas, na forma em que se incorporaram à legislação e demais regulamentos nacionais, também serão colocadas à disposição de todos os presos e de todas as pessoas detidas ao ingressarem em instituições penitenciárias e durante sua reclusão. Comentário: Para se alcançar o objetivo das Regras Mínimas, é necessário que as Regras, assim como as leis e as regulamentações nacionais destinadas a dar-lhes aplicação, sejam postas à disposição dos presos e de todas as pessoas detidas (regra 95), a fim de que todos eles saibam que as Regras representam as condições mínimas aceitas pelas Nações Unidas. Assim, este procedimento complementa o disposto no procedimento 3. Um requisito análogo - que as Regras sejam colocadas à disposição das pessoas para cuja proteção foram elaboradas - figura já nos quatro Convênios de Genebra, de 12 de agosto de 1949, cujos artigos 47 do primeiro Convênio, 48 do segundo, 127 do terceiro e 144 do quarto contêm a mesma disposição: "As Altas Partes contratantes comprometem-se a difundir, o mais amplamente possível, em tempo de paz e em tempo de guerra, o texto do presente Convênio em seus respectivos países, e especialmente a incorporar seu estudo aos programas de instrução militar e, em sendo possível, também civil, de modo que seus princípios sejam conhecidos pelo conjunto da população, particularmente das forças armadas combatentes, do pessoal da saúde e dos capelães." Procedimento 5 99 Os Estados informarão a cada cinco anos, ao Secretário-Geral das Nações Unidas, em que medida cumpriram as Regras Mínimas e os progressos que se realizaram em sua aplicação, assim como os fatores e inconvenientes, se existirem, que afetam sua aplicação, respondendo a questionário do Secretário Geral. Tal questionário, que se baseará em um programa específico, deveria ser seletivo e limitar-se a perguntas concretas visando permitir o estudo e o exame aprofundado dos problemas selecionados. O Secretário-Geral, levando em conta os informes dos governos, assim como todas as demais informações pertinentes, disponíveis dentro do sistema das Nações Unidas, preparará um informe periódico independente sobre os progressos realizados na aplicação das Regras Mínimas. Na preparação desses informes, o Secretário-Geral também poderá obter a cooperação de organismos especializados das organizações intergovernamentais e não- governamentais competentes, reconhecidas pelo Conselho Econômico e Social como entidades consultivas. O Secretário-Geral apresentará os informes ao Comitê de Prevenção do Delito e Luta contra a Delinqüência para sua consideração e para a adoção de novas medidas, se for o caso. Comentário: Como se recorda, o Conselho Econômico e Social, em sua Resolução 663 C (XXIV), e 31 de julho de 1957, recomendou que o Secretário-Geral fosse informado, a cada período de cinco anos, sobre os progressos alcançados na aplicação das Regras Mínimas, e autorizou o Secretário-Geral a tomar as providências cabíveis para a publicação, quando fosse o caso, da informação recebida e para que solicitasse, se necessário, informações complementares. É prática generalizada nas Nações Unidas rogar a cooperação dos organismos especializados e das organizações intergovernamentais e não-governamentais competentes. Na preparação do seu informe independente sobre os progressos realizados em relação à apliicação das Regras Mínimas, o Secretário-Geral levará em conta, dentre outras coisas, a informação de que dispõem os órgãos das Nações Unidas dedicados aos direitos humanos, incluindo a Comissão de Direitos Humanos, a Subcomissão de Prevenção de Discriminações e Proteção às Minorias, o Comitê de Direitos Humanos criado em virtude do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos e o Comitê para a Eliminação da Discriminação Racial. Também poderia ser considerado o trabalho de aplicação relacionado com a futura convenção contra a tortura, bem como toda a 100 informação que possa ser reunida com referência ao conjunto de princípios para a proteção das pessoas presas e detidas que está sendo atualmente preparado pela Assembléia Geral. Procedimento 6 Como parte da informação mencionada no procedimento 5, os Estados fornecerão ao Secretário-Geral: a) cópias ou resumos de todas as leis, regulamentos e disposições administrativas relativas a aplicação das Regras Mínimas a pessoas detidas e aos lugares e programas de detenção; b) quaisquer dados e materiais descritivos sobre os programas de tratamento, o pessoal e o número de pessoas detidas, qualquer que seja o tipo de detenção, assim como estatísticas, se dispuserem delas; c) qualquer outra informação pertinente à aplicação das Regras, assim como informação sobre as possíveis dificuldades em sua aplicação. Comentário: Este requisito tem origem na Resolução 663 C (XXIV) do Conselho Econômico e Social e nas recomendações dos congressos das Nações Unidas sobre a prevenção do crime e o tratamento do delinqüente. Embora os elementos de informação solicitados neste procedimento não estejam expressamente previstos, parece factível recolher tal informação com o objetivo de auxiliar os Estados membros a superar as dificuldades mediante o intercâmbio de experiências. Além disso, um pedido de informação dessa natureza tem como predecessor o sistema existente de apresentação periódica de informações sobre direitos humanos, estabelecida pelo Conselho Econômico e Social em sua Resolução 624 B (XXII), de 1º de agosto de 1956. Procedimento 7 O Secretário-Geral divulgará as Regras Mínimas e os presentes procedimentos de aplicação no maior número possível de idiomas e se colocará a disposição de todos os Estados e organizações intergovernamentais e não-governamentais interessadas, a fim de lograr que as Regras Mínimas e os procedimentos de aplicação recebam a maior difusão possível. 101 Comentário: É evidente a necessidade de dar-se uma maior divulgação possível às Regras Mínimas. É importante estabelecer uma íntima relação com todas as organizações intergovernamentais e não-governamentais competentes para se lograr uma difusão e aplicação mais eficazes das Regras. A Secretaria deverá, para tanto, manter estreitos contatos com tais organizações e colocar à sua disposição a informação e os dados pertinentes. Deverá, também, incentivá-las a difundir informação sobre as Regras Mínimas e os procedimentos de aplicação. Procedimento 8 O Secretário-Geral divulgará seus informes sobre a aplicação das Regras Mínimas, incluídos os resumos analíticos dos estudos periódicos, os informes do Comitê de Prevenção do Delito e Luta contra a Delinqüência, os informes preparados pelos congressos das Nações Unidas sobre a prevenção do crime e o tratamento dos delinqüentes, assim como os informes desses congressos, as publicações científicas e demais documentação pertinente se necessário naquele momento para promover a aplicação das Regras Mínimas. Comentário: Este procedimento reflete a prática atual de divulgar os informes de referência como parte da documentação dos órgãos competentes das Nações Unidas ou como artigos no Anuário de Direitos Humanos, na Revista Internacional de Política Criminal, no Boletim de Prevenção do Delito e Justiça Penal e em outras publicações pertinentes. Procedimento 9 O Secretário-Geral zelará para que, em todos os programas pertinentes das Nações Unidas, incluídas as atividades de cooperação técnica, se mencione e se utilize da forma mais ampla possível o texto das Regras Mínimas. Comentário: Deveria se garantir que todos os órgãos pertinentes das Nações Unidas incluíssem 102 as Regras e os procedimentos de aplicação, ou fizessem referência a eles, contribuindo desse modo para uma maior difusão e um maior conhecimento, entre os organismos especializados, os órgãos governamentais, intergovernamentais e não-governamentais e o público em geral, das Regras e do empenho do Conselho Econômico e Social e da Assembléia Geral em assegurar sua aplicação. À medida em que as Regras têm efeitos práticos nas instâncias correcionais depende consideravelmente da forma como se incorporam às práticas legislativas e administrativas locais. É indispensável que uma ampla gama de profissionais e de não profissionais em todo o mundo conheça e compreenda estas Regras. Por conseguinte, é sumamente importante dar-lhes a maior publicidade possível, objetivo esse que também pode ser alcançado mediante freqüentes referências às Regras campanhas de informação pública. Procedimento 10 Como parte de seus programas de cooperação técnica e desenvolvimento, as Nações Unidas: a.ajudarão os governos, quando estes solicitarem, a criar e consolidar sistemas correcionais amplos e humanitários; b.colocarão os serviços de peritos e de assessores regionais e inter-regionais em matéria de prevenção de delito e justiça penal à disposição dos governos que os solicitarem; c.promoverão a celebração de seminários nacionais e regionais e outras reuniões de nível profissional e não profissional para fomentar a difusão das Regras Mínimas e dos presentes procedimentos de aplicação; d.reforçarão o apoio que se presta aos institutos regionais de investigação e capacitação em matéria de prevenção de delito e justiça penal associados as Nações Unidas. Os institutos regionais de investigação e capacitação em Matéria de prevenção de delito e justiça penal das Nações Unidas deverão elaborar, em cooperação com as instituições nacionais, planos de estudo e material instrutivo, baseados nas Regras Mínimas e nos presentes procedimentos de aplicação, adequados para seu uso em programas educativos sobre justiça penal em todos os níveis, assim como em cursos especializados em direitos humanos e outros temas conexos. Comentário: O objetivo deste procedimento é conseguir que os programas de assistência técnica das Nações Unidas e as atividades de capacitação dos institutos regionais das 103 Nações Unidas sejam utilizados como instrumentos indiretos para a aplicação das Regras Mínimas e dos presentes procedimentos de aplicação. Afora os cursos ordinários de capacitação para o pessoal penitenciário, os manuais de instrução e outros textos similares, se deveria dispor do necessário - particularmente a nível da elaboração de políticas e da tomada de decisões - para que se pudesse contar com o assessoramento de expertos em relação às questões apresentadas pelos Estados membros, incluindo um sistema de remissão aos expertos à disposição dos Estados interessados. Tudo indica que tal sistema seja necessário sobretudo ara garantir a aplicação das Regras de acordo com o seu espírito e levando em consideração a estrutura sócio-econômica dos países que solicitam dita assistência. Procedimento 11 O Comitê das Nações Unidas de Prevenção do Delito e Luta contra a Delinqüência: a.examinará regularmente as Regras Mínimas visando a elaboração de novas regras, normas e procedimentos aplicáveis ao tratamento das pessoas privadas de sua liberdade; b.observará os presentes procedimentos de aplicação, incluída a apresentação periódica de informes prevista no procedimento 5, supra. Comentário: Considerando-se que uma boa parte da informação reunida nas consultas periódicas e por ocasião das missões de assistência técnica será transmitida ao Comitê de Prevenção do Delito e Luta contra a Delinqüência, a tarefa de garantir a eficácia das Regras em relação à melhoria das práticas correcionais é responsabilidade do Comitê, cujas recomendações determinarão a orientação futura da aplicação das Regras, juntamente com os procedimentos de aplicação. Em conseqüência, o Comitê deverá individualizar claramente as fendas na aplicação das Regras ou os motivos pelos quais elas não são aplicadas por outros meios, estabelecendo contatos com os juízes e com os ministérios de Justiça dos países interessados com vistas a sugerir medidas corretivas adequadas. Procedimento 12 O Comitê de Prevenção do Delito e Luta contra a Delinqüência ajudará a Assembléia Geral, o Conselho Econômico e Social e todos os demais órgãos das Nações Unidas que se ocupam dos direitos humanos, segundo corresponda, 104 formulando recomendações relativas aos informes das comissões especiais de estudo, no que disser respeito a questões relacionadas com a aplicação e com a implementação prática das Regras Mínimas. Comentário: Já que o Comitê de Prevenção do Delito e Luta contra a Delinqüência é o órgão competente para examinar a aplicação das Regras Mínimas, também deveria prestar assistência aos órgãos antes mencionados. Procedimento 13 Nenhuma das disposições previstas nestes procedimentos será interpretada no sentido de excluir a utilização de quaisquer outros meios ou recursos disponíveis, de acordo com o direito internacional ou estabelecidos por outros órgãos e organismos das Nações Unidas, para a reparação de violações dos direitos humanos, inclusive o procedimento relativo aos quadros persistentes de manifestas violações dos direitos humanos, conforme a Resolução 1503 (XLVIII) do Conselho Econômico e Social, de 27 de maio de 1970; o procedimento de comunicação previsto no Protocolo Facultativo do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, e o procedimento de comunicação previsto na Convenção Internacional sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação Racial. Comentário: Levando em consideração que as Regras Mínimas só se referem em parte a temas Específicos de direitos humanos, estes procedimentos não devem excluir nenhuma via para a reparação de qualquer violação de tais direitos, de conformidade com os critérios e normas internacionais ou regionais existentes. 105 Anexo B – Relatório da II Caravana Nacional da Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara dos Deputados 136 Relatórios e Publicações II Caravana - Sistema Prisional Brasileiro Comissão de Direitos Humanos Câmara dos Deputados Relatório da II Caravana Nacional de Direitos Humanos Sistema prisional brasileiro Brasília, setembro de 2000 In memoriam Dedicamos este trabalho ao Padre Chico "Já me tiraram a comida e o sol, já levei chute e bofetada. Abriram as pernas da minha mulher, arrancaram a roupa de minha mãe. Não tem mais o que tirar de mim, só ódio." J. M. E. 136 Relatório da II Caravana Nacional da Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara dos Deputados. Anexo B. Disponível em: <http://hsw.uol.com.br/framed.htm?parent=prisoes.htm&url= http://www2.camara.gov.br/comissoes/cdhm>. Acesso em 3.5.2008. 106 31 anos, preso no Rio de Janeiro. Apresentação Os presídios talvez sejam o outro lado da moeda, a face obscura que nos recusamos a ver de nós mesmos. É difícil penetrar no interior dessas instituições totais e resistir à estranha lógica produzida nos seus limites. Falamos de um mundo à parte que, não obstante, é uma expressão desse mundo. Sua mais completa e traiçoeira tradução. As reações daqueles que, em nome da sociedade, entram em contato com o sistema prisional são, por certo, bem variadas. Há os que revelam a inacreditável capacidade de transitar pelos corredores desses labirintos modernos sem descobrir neles o indefinido mal estar que costumamos sentir diante do implacável. Para esses, tudo se passa como se a instituição da própria sociedade nos fosse legada em termos irrecorríveis. Os presídios, afirmam, são um mal necessário. Assim, se há necessidade no mal, importa aceitá-lo e, ato contínuo, identificar como mal inaceitável as pretensões críticas que o contestam. Se a maldade cumpre, dessa forma, função legítima entre nós, então os que a sustentam são funcionários do mal. De outra parte, há os que, diante do horror construído pelo fenômeno moderno da privação da liberdade, encontram sua própria identidade e se reconhecem humanamente no sofrimento de internos e condenados. Não se trata, por óbvio, de uma escolha, mas de uma imposição ditada por um determinado senso moral. A solidariedade é uma conduta tanto mais urgente e evidente quanto maiores forem as privações e a dor dos seres humanos que, quando conhecidas, passam a ser compartilhadas por nós. A solidariedade devida aos encarcerados, entretanto, é rarefeita em sociedades como a nossa e é superada largamente pela indiferença, quando não pela noção medieval de vingança. Naturalmente, o senso comum produz a redução de todos os seres humanos que cumprem a pena privativa de liberdade à condição de "delinqüentes" ou, como prefere a cultura policial no Brasil, à classificação de "vagabundos". Não há, entretanto, qualquer ontologia do crime ou uma "essência"a definir o "criminoso". As pessoas que se encontram encarceradas possuem entre si pouco em comum além do fato de serem invariavelmente pobres, jovens e semi-alfabetizadas. O que as distingue não é, 107 comumente, mais nem menos do que aquilo que nos faz diferentes. Nesse sentido, a instituição prisional é produtora de uma identidade criminosa além de ser, concretamente, um dos fatores criminogênicos mais importantes. O fato é que as chamadas "instituições totais" organizam de tal forma as privações e distribuem com tanta radicalidade o mal que, imediatamente, nos vemos confrontados em nossa condição humana pela própria desumanidade da instituição. Quando falamos em presídios - como de resto de qualquer outro fenômeno social - há, então, antes mesmo da fala, uma posição preliminar que seleciona nossa atenção, que hierarquiza nossos sentimentos, que fixa ou desvia nosso olhar. A depender da posição da qual falamos, teremos chances distintas de compreender o que se passa e captar o real em suas dimensões mais significativas. Digo "posição", mas poderia dizer "predisposição". Ocorre que não me refiro a um conjunto mais ou menos coerente de noções político-ideológicas que estariam, necessariamente, informando a atitude dos sujeitos. Antes disso, quero me referir a uma determinada escala de valores que portamos e que, ao mesmo tempo, nos suporta. A idéia de "dignidade", por exemplo, haverá de perturbar o visitante que a possua. O que vemos no interior dos presídios, particularmente nas atuais condições de encarceramento, é uma afronta permanente a este e a muitos outros valores fundamentais para a condição humana. É impossível dar conta desse estranhamento a partir de uma visão formatada desde o exterior dos presídios. Alguém que experimente as condições de vida em sociedade nesse final de século vive, necessariamente, em coordenadas espaço-temporais que não guardam qualquer relação com aquelas vividas realmente pelos encarcerados. Os seres humanos dessa época são, também, aqueles que descobrem-se progressivamente em um mundo onde as distâncias diminuem. Por conta disso, pode-se afirmar que nossos espaços são infinitamente maiores do que já foram. Pela mesma razão, nosso tempo é cada vez menor. Se disséssemos, então, que nossa época nos oferece cada vez mais espaço e cada vez menos tempo estaríamos sintetizando uma das mais importantes características da vida moderna. Os encarcerados, por contraste, são aqueles para os quais não há qualquer espaço e que dispõem de todo o tempo. "Todo o tempo" é o tempo infinito. Mas o sofrimento diante do tempo infinito é, também, um sofrimento infinito. É preciso compreender isso para que possamos situar verdadeiramente o primeiro pressuposto da experiência prisional. 108 A II Caravana Nacional de Direitos Humanos, que teve como tema a realidade prisional brasileira, esteve em 6 estados: Ceará, Pernambuco, Rio de Janeiro, São Paulo, Rio Grande do Sul e Paraná. Ao todo, entre presídios, penitenciárias e delegacias, foram 17 instituições visitadas. O conjunto de estabelecimentos inspecionados reuniu cerca de 15 mil presos, o que nos confere uma amostra bastante significativa. Foram 9 dias de trabalho ininterrupto, com visitas que se estenderam, muitas vezes, noite a dentro. A Caravana foi organizada em uma relação estreita de colaboração com muitas pessoas e entidades. Deve-se destacar, não obstante, o papel desempenhado em todas suas fases pela Pastoral Carcerária da CNBB. O trabalho anônimo e a dedicação de seus integrantes no cotidiano da vida prisional escreve uma das páginas mais honrosas da militância pelos Direitos Humanos no Brasil. Nossas inspeções se realizaram, todas, sem prévio aviso, o que garantiu a possibilidade de inúmeros flagrantes de situações irregulares e procedimentos ilegais. A sensação que temos, ao final dos nossos trabalhos, é a de que conhecemos um sistema absolutamente "fora da lei". Os imperativos definidos pela Lei de Execução Penal (LEP) são solenemente ignorados em todos os estados. Realidade do arbítrio, os presídios brasileiros são uma reinvenção do inferno. A resultante, entretanto, não é uma construção metafísica ou uma especulação religiosa. Aqui, os demônios tem pernas e visitam os presos a cada momento. Deputado Marcos Rolim Presidente da Comissão de Direitos Humanos I - CEARÁ Iniciamos nossos trabalhos no Ceará, em 28 de agosto de 2000. A Comissão de Direitos Humanos vinha acompanhando com preocupação as notícias sobre a crise aguda enfrentada no Instituto Penal Paulo Sarasate (IPPS) de Fortaleza. Ali, sabía-se pela imprensa, havia um estado já prolongado de descontrole marcado por cenas de violência e troca de tiros entre policiais e internos. Essa crise nos fez escolher o Ceará para o início da Caravana. Do aereoporto, a comitiva integrada pelo Deputado Marcos Rolim (PT/RS), presidente da Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados 109 (CDH), pelo Deputado Dr. Rosinha (PT/PR) e pelas assessoras da CDH Janete Lemos e Marilda Campolino, nos dirigimos à Assembléia Legislativa para uma reunião na Comissão de Direitos Humanos, presidida pelo Deputado estadual João Alfredo (PT). Participaram dessa reunião o Deputado Federal José Pimentel (PT/CE) os senhores Deodato Ramalho Júnior, presidente da Comissão de Direitos Humanos da seção estadual da OAB, e Murilo Rocha Lima, vice-presidente; os representantes da Pastoral Carcerária do Ceará, Padre Marcos Passerini; e a Sra. Velma Lima Verde; a advogada Roberta Lia Sampaio Araújo, do Escritório Frei Tito e Najuc; a psicóloga Núbia Dias Costa, do Fórum da Luta Antimanicomial; Lúcia de Fátima Nogueira Holanda, representando a Anistia Internacional e o Conselho Regional de Psicologia; além de acadêmicos de direito e representantes do Sindicato dos Agentes Penitenciários. Durante duas horas, ouvimos as opiniões dos presentes sobre a situação penitenciária do estado, recolhendo informações que nos ofereceram uma idéia aproximada do contexto da crise vivida pelo sistema penitenciário cearense. O sistema penitenciário cearense é integrado por 140 estabelecimentos. Desse total, 135 são cadeias públicas, 3 presídios (IPPS com cerca de 1.200 detentos, Instituto Penal Paulo Olavo Oliveira — IPPOO - com mais de 400 internos, e Instituto Penal Feminino Desembargadora Auri Moura Costa, com 112 detentas) além de 2 Colônias Penais Agrícolas. No total, o complexo abriga aproximadamente 5.200 presos e dispõe de uma capacidade de encarceramento para, no máximo, 3.600 vagas. Não se tem notícia de iniciativas concretas desenvolvidas pelo Ministério Público Estadual que tenham obrigado o Estado a qualquer ação que resgate suas obrigações legais para com a população carcerária. As condições de execução penal são, de resto, agravadas pela conduta no geral omissa e distante de vários magistrados. Por inacreditável que pareça, em que pese a situação já insuportável de superlotação de todos os estabelecimentos penais no Ceará e o histórico de violência em algumas dessas instituições onde, nos últimos dois anos, morreram 23 presos, o Juiz da Vara de Execuções Criminais de Fortaleza, Sr. Cláudio de Paula Pessôa, oficiou, em 21de junho do corrente, ao Presidente da Comissão de Direitos Humanos da Assembléia Legislativa do Estado do Ceará, Deputado João Alfredo, comunicando a impossibilidade de estagiários do curso de direito do Centro de 110 Assessoria Jurídica Universitária (CAJU/UFC) terem acesso aos processos dos apenados para a prestação de assistência jurídica devida aos mesmos que lhes é negada objetivamente pela omissão do Estado. O ilustre magistrado, fundamentando-se na "inexistência do devido instrumento ou mandado" considerou a pretensão de tão relevante projeto "prejudicada". Como o advogado encarregado de coordenar o projeto com os acadêmicos não pode, pessoalmente, ter acesso a todos os presos, nem saber de antemão quais aqueles que encontrar-se-íam em condições de receber algum dos benefícios previstos na LEP, a decisão judicial concorre objetivamente para que os direitos dos apenados sejam solenemente desconsiderados. Tudo, é claro, em nome da "Lei"; possivelmente a "lei da selva" que impera nos presídios sob a sua jurisdição. Outro destacado magistrado cearense, certamente motivado pelo mesmo espírito público e sensibilidade social do Sr. Cláudio de Paula Pessôa, Juiz do Município de Boa Viagem, Sr. Pedro Pia de Freitas, proibiu a TV para os presos sob a psicótica alegação de que "ela é coisa do demônio". O sindicato dos agentes penitenciários do Ceará estima em 800 profissionais a carência de funcionários no sistema. Recentemente, por conta das péssimas condições de trabalho e defasagem salarial, a categoria realizou uma greve com duração de 12 dias. Em resposta ao movimento, o governo do estado contratou os serviços de 60 vigilantes em uma empresa privada; providência sem qualquer amparo legal. Esses vigilantes, mesmo após o retorno ao trabalho dos agentes, continuam prestando serviços e estão hoje responsáveis pela custódia de centenas de presos. Cerca de 80% dos presos cearenses são analfabetos ou semialfabetizados e percentual ainda maior não dispõe de advogado ou defensor. Vivem na mais absoluta ociosidade. Do total de presos no estado, cerca de 200, apenas, desenvolvem alguma atividade laborativa, via de regra em tarefas de manutenção e cozinha. Enquanto isso, no IPPS há um galpão industrial onde poderiam estar trabalhando em um mesmo turno 600 presos. Além de maquinaria e recursos produtivos ociosos, o estabelecimento dispõe de 3 tanques para piscicultura, também abandonados. Se eles funcionassem, poderiam estar produzindo alimentos para toda a população carcerária do IPPS com excedentes para a comunidade. Os 111 detentos comem com as mãos e os alimentos, via de regra comida estragada, lhes são oferecidos acondicionados em sacos plásticos. Há casos de presos mortos, alvejados por policiais, quando empreendiam tentativa de fuga. A praxe de permitir ou tolerar que agentes públicos encarregados de fazer cumprir a lei disparem contra presos quando todas as circunstâncias típicas dessas ocorrências demonstram à exaustão a inexistência de risco ou ameaça à vida de alguém , caracteriza frontal violação dos princípios da resolução 169/80 da ONU, subscrita pelo Brasil, que introduziu no Direito Internacional o "Código de Conduta para os Funcionários Encarregados de Fazer Cumprir a Lei". Por esse instrumento jurídico, ainda hoje desconhecido por muitos dos próprios operadores do direito, só há uma circunstância que pode legitimar o disparo de armas de fogo: quando esta for uma necessidade incontornável para salvar a vida de alguém, incluindo-se aí a do próprio agente que pode estar ameaçado. Atirar em presos, normalmente desarmados e pelas costas, passou a ser no Brasil um ato da rotina e expressão do "estrito cumprimento do dever legal". Em casos do tipo, inexistindo ameaça iminente à vida do agente, a providência que se exige da guarda externa é a captura. O emprego de balas de borracha, em cirunstâncias também especiais, seria admissível nestes casos. Nossa tradição, entretanto, é outra. Urge alterá-la em nome da tutela do bem maior: a proteção da vida, incluída, bem entendido, a do preso que intenta a fuga. Terminada a reunião, mantivemos contato telefônico com a Sra. Sandra Dond, Secretária de Justiça do Estado, para solicitar a oportunidade de sermos recebidos em audiência para tratarmos, particularmente, da situação do IPPS. Era nossa intenção efetuarmos uma visita à instituição no dia seguinte. Sabedores da crise vivida naquele estabelecimento penitenciário, queríamos combinar procedimentos para a visita e estabelecer as condições adequadas de segurança para tanto. De início, a sra. Sandra mostrou-se absolutamente contrária à idéia da visita. Seu argumento básico era que as condições de segurança seriam inexistentes, o que impediria nossa entrada. Na conversa mantida com o Deputado Marcos Rolim, a Secretária acrescentou que as pessoas que estariam nos acompanhando, particularmente o Padre Marcos, o Deputado João Alfredo e o Dr. Deodato - por serem conhecidos dos presos - poderiam acrescentar elementos de instabilidade à instituição. O Deputado Rolim ponderou, então, que, quanto à 112 segurança da comitiva, seria possível combinar procedimentos e que uma eventual decisão do governo contrária à nossa visita seria comunicada à imprensa o que, por certo e contra a nossa vontade, haveria de acrescentar elementos de instabilidade à situação de crise. A Sra. Secretária afirmou, então, que examinaria nossa solicitação e que, mais tarde, nos daria o retorno. Em contato posterior, a secretária confimou a possibilidade da visita, ficando acertado que seríamos recebido no IPPS na manhã do dia 29, às 10 horas. O "DISTRITO MODELO" Ainda na noite do dia 28, realizamos nossa primeira inspeção, visitando de surpresa o II Distrito Policial, situado no coração da Aldeota, bairro privilegiado de Fortaleza. Esse distrito localiza-se a cerca de 500 metros da Secretaria de Segurança Pública do Estado do Ceará, à qual está subordinado administrativamente. No Distrito, nomeado pelo marketing político local de "Distrito Modelo", há um prédio destacado dos demais onde situam-se três celas para custódia de pessoas com prisão preventiva. Nas três celas estavam amontoados 28 presos. Alguns há vários meses. Um dos presos com quem nos entrevistamos, Joubert Messias Santos Figuiredo, encontrava-se ali há exatos seis meses, respondendo processo penal por tentativa de furto de um toca fitas (!). Antes de descrever a situação dramática imposta àqueles seres humanos, jovens pobres envolvidos, em geral, em delitos contra o patrimônio, é preciso descrever o local que habitam: as celas são imundas. De tal forma que o odor fétido que exalam pode ser sentido ainda no pátio interno do distrito policial. Todas elas são escuras e sem ventilação. Ao alto, em uma das paredes, há uma pequena abertura gradeada com não mais que 15 centímetros de largura. No chão, em meio à sujeira e ao lixo, transitavam com desenvoltura dezenas de baratas. Nas paredes laterais das celas, inscrições firmadas com o sangue dos seus autores nos oferecem a sugestão de sofrimentos passados. Também nas paredes, outras mensagens gravadas com o auxílio de cascas de banana complementam a sujeira toda. Ao alto, no teto desses cárceres, centenas de pequenos aviõezinhos de papel, confeccionados pelos internos, encontram-se grudados pelo "bico", como se ali se depositasse simbolicamente uma compreensível vontade de "voar". A visão geral é deprimente. 113 Todos esses presos estão obrigados a dormir no chão, sobre a lage, sem que lhes seja oferecido sequer um colchão ou uma manta. Disputam, assim, espaço com os insetos. A nenhum deles é permitido que tenham acesso, mesmo que restrito, a qualquer área aberta. Não tomam sol, não caminham nem se exercitam. A longa permanência naquele lugar nojento lhes provoca crises nervosas, acessos de choro e doenças as mais variadas, destacadamente as doenças de pele e as bronco-pulmonares. Lhes assegura, também, uma coloração especial, algo assim como um tom esmaecido entre o branco e o amarelo pelo que é possível lembrar, alternadamente, as imagens de hepáticos que perambulassem ou de cadáveres que insistissem em viver. Se é possível imaginar, ainda, condições agravantes a essas, não seria demais relatar que nenhum daqueles presos que sequer foram sentenciados - pelo que presume-se, como o assegura a Constituição Federal, suas inocências recebem do Estado a alimentação que lhes é devida por lei. Repetimos: não recebem qualquer alimentação do Estado. Sobrevivem às custas de parcos mantimentos que lhes são entregues por familiares quando das visitas. Assim, famílias miseráveis que já se deslocam com dificuldade ao Distrito, descobrem-se na obrigação de evitar que seus filhos morram de inanição. Assinale-se que a maior parte das pessoas detidas naquela pocilga não recebem visitas de familiares. Assim, os mantimentos recebidos devem ser escrupulosamente divididos. Em muitos momentos, os policiais que ali trabalham oferecem os restos de suas refeições aos internos. Como se tudo isso não bastasse, os presos relataram com detalhes procedimentos usuais de espancamentos e maus tratos oferecidos por dois policiais. Entre essas iniciativas, encontra-se, por exemplo, o sofrimento imposto a um dos internos a quem se fez algemar em uma das celas, na grade, por uma noite inteira. Assim trata-se, "modelarmente", os presos no Ceará. Por conta das circunstâncias descritas sumariamente aqui, o Deputado Marcos Rolim, o Deputado João Alfredo, o representante da OAB, Dr. Deodato Ramalho, o representante da Pastoral Carcerária, Padre Marcos, e a advogada Roberta Lia Araújo, subscreveram representação ao Ministério Público Estadual, protocolada na tarde do dia 29, na qual solicitam, com base no que dispõem os Tratados Internacionais, a Lei de Execução Penal e a Lei contra a Tortura, que o órgão fiscalizador da Lei determine a imediata interdição das celas do II Distrito 114 Policial de Fortaleza e que DENUNCIE OS RESPONSÁVEIS PELA MANUTENÇÃO DAQUELES PRESOS PROVISÓRIOS NAS CIRCUNSTÂNCIAS DESCRITAS COMO RESPONSÁVEIS PELA PRÁTICA DO CRIME DE TORTURA. INSTITUTO PENAL PAULO SARASATE - a visita que não houve No dia 29 de agosto, pela manhã, conforme o combinado, estivemos no Instituto Penal Paulo Sarazate. Fomos recebidos por integrantes da Polícia Militar e encaminhados à sala da Guarda, situada logo à entrada do estabelecimento. Não foi permitido o acesso da imprensa. Ninguém, em nome do Instituto Penal, nos recebeu. Entramos em contato telefônico com o Sr. Bento Laurindo, coordenador do Sistema Penitenciário do Ceará, que encontrava-se na sala da direção do IPPS. Fomos informados que a direção do estabelecimento havia "selecionado" 20 apenados com quem poderíamos manter conversação. Afirmamos que não iríamos conversar com presos escolhidos pela direção e que poderíamos indicar presos com quem gostaríamos de manter entrevista. Em sucessivos contatos telefônicos, iniciamos uma negociação em torno dos procedimentos a serem adotados tendo em vista a argumentação sustentada pelo Sr. Bento Laurindo, de que não havia condições de segurança para uma visita como a que desejávamos. Em certo momento das tratativas, o Sr. Laurindo concordou que o Deputado Marcos Rolim e o Padre Marcos subissem até a sala onde ele se encontrava; vetava, entretanto, a presença do Deputado João Alfredo. Tal postura nos pareceu inaceitável. O deputado João Alfredo é o presidente da Comissão de Direitos Humanos da AL/CE. Não havia qualquer argumento relevante que fundamentasse tal exclusão. Além do mais, nos era negada qualquer inspeção às instalações do IPPS e mantinha-se a impossibilidade de qualquer contato com a massa carcerária. Avaliando conjuntamente com as demais pessoas que integravam a comitiva, consideramos que a posição sustentada pelo Sr. Bento Laurindo significava, concretamente, a impossibilidade de uma inspeção séria. Assim, os Deputados integrantes da Caravana e as entidades ali representadas tomamos a decisão de nos retirarmos do estabelecimento, registrando nosso protesto junto aos órgãos de imprensa que aguardavam na parte externa. Posteriormente, a versão produzida pelas autoridades locais a respeito do que ocorreu construiu a fantasia de que os presos 115 planejavam um "sequestro" dos Deputados; as dificuldades impostas ao trabalho parlamentar, então, teriam sido motivadas apenas pela preocupação com a nossa segurança. CADEIA PÚBLICA DE MARACANAÚ - a liberdade é uma rua Frustrada a visita ao IPPS, nos deslocamos ao município vizinho de Maracanaú, para inspeção de sua Cadeia Pública. Trata-se de um pequeno estabelecimento penal com apenas 5 celas. Sua lotação máxima, admitindo-se 4 presos por cela, seria de 20 internos. Na manhã em que lá estivemos, havia 74 presos encarcerados; uma media de 15 por cela (!) A cadeia não possui diretor. Fomos recebidos pelo agente Francisco Eliano Ferreira da Silva, que prestou as informações solicitadas e nos acompanhou à galeria. Segundo o levantamento do próprio estabelecimento (algumas folhas de papel com apontamentos a lápis), cerca de metade dos presos cumprem pena por delitos contra o patrimônio. Encontramos três pessoas detidas com base no artigo 16 do Código Penal (consumo de drogas) e 15 com base no artigo 12 (tráfico de drogas). Assim, praticamente ¼ dos presos dessa cadeia pública estão detidos por suas relações com as drogas ilícitas. Examinando mais detidamente essas situações, percebe-se aquilo que parece ser uma constante no sistema penitenciário brasileiro: em nosso país, mandamos para a cadeia, na condição de traficantes, alguns milhares de jovens pobres responsáveis pela venda de pequenas quantidades de maconha ou cocaína. Em se tratando do crime de tráfico, esses condenados são enquadrados na tristemente célebre "Lei dos Crimes Hediondos" devendo cumprir suas penas integralmente no regime fechado. Perdem, assim, o direito à progressão de regime e superlotam os presídios. Este tipo de prisão, por óbvio, não oferece qualquer embaraço aos verdadeiros traficantes que, imediatamente, substituem a "mão de obra" aprisionada. Nas periferias de qualquer cidade brasileira, há milhares de jovens pobres "na fila", aguardando uma vaga como prestadores de serviço nesse negócio - o mais lucrativo do mundo - cujos donos não costumam frequentar a prisão. 116 Na cadeia pública de Maracanaú trabalham 3 policiais militares, um agente penitenciário e dois vigilantes. Não há médicos ou dentistas, nem assistentes sociais ou psicólogos. A cadeia não dispõe, também, de farmácia; logo, não há remédios disponíveis. Entre os presos, entretanto, muitos estão doentes. Encontramos casos de tubercolose e um dos detentos possuía hanseníase. Há, pelo menos, um caso de doença mental entre os internos. Os presos recebem visita de familiares duas vezes por semana e têm acesso a um pequeno pátio interno. Os familiares são desnudados quando da revista. Os internos mantém relações sexuais com suas mulheres quando das visitas organizando o acesso às celas em rodízio. Não há no estabelecimento qualquer programa de prevenção a DST-AIDS e os presos não recebem preservativos. A comida é ruim. Nenhum preso estuda, posto que o estabelecimento não oferece aulas. Os que sabem ler não podem fazê-lo porque não há biblioteca. Do total de internos, apenas 6 trabalhavam em serviços de manutenção e na cozinha. O Juiz responsável pela execução penal, Geraldo Bizerra de Souza, visita o estabelecimento duas ou três vezes ao ano. Segundo dispõe a LEP, deveria fazê-lo pelo menos uma vez ao mês. A cadeia não oferece assessoria jurídica aos presos e o único Defensor Público que aparecia por lá encontra-se de licença. Os presos possuem um acesso restrito aos meios de comunicação, o que é considerado uma "regalia". O entendimento permite que rádio ou TV sejam retirados das celas como punição disciplinar. A correspondência dos presos é violada, em flagrante atentado ao que dispõe a Constituição Brasileira. Estamos no sistema prisonal brasileiro, um sistema "fora da lei". Os presos com quem conversamos almejam acima de tudo a liberdade. Por enquanto, para eles, ela continuará sendo apenas o nome da rua onde se situa a Cadeia de Maracanaú. Ficha Técnica: Cadeia Pública de Maracanaú - fone 371.3063 Rua da Liberdade s/n, Maracanaú - CE Capacidade - 20 presos Lotação- 74 presos Revista íntima - Sim 117 Violação do sigilo de correspondência - Sim Trabalho prisional - inexistente Atenção à saúde - inexistente Educação dos presos - inexistente Assistência Jurídica - inexistente Acesso ao pátio - sim, diariamente Visitas - sim Visita íntima - sim Comida - ruim Estrutura dupla de alimentação para funcionários - sim Acesso aos meios de comunicação - restrito Cela de isolamento - não Denúncias de espancamento - não Denúncias de corrupção - não Armas no interior do presídio - não INSTITUTO PENAL FEMININO DESEMBARGADORA AURI MOURA COSTA - Um labirinto em Fortaleza À tardinha, após termos encaminhado representação ao Ministério Público local por conta das condições da carceragem do Distrito Modelo e terminada coletiva à imprensa na Assembléia Legislativa, onde alertamos sobre os riscos de uma tragédia de maiores proporções no Intituto Penal Paulo Sarazate, nos dirigimos ao Instituto Penal Feminino, onde fomos recebidos pela vice-diretora, Dra. Solange. 118 O estabelecimento é um prédio que impressiona por sua inadequação. Antigo convento em Fortaleza, o prédio encontra-se em estado bastante precário. O governo do estado está concluindo as obras do novo presídio feminino, que deverá ser inaugurado até o final do ano. Por hora, as presas cearenses estão recolhidas no Instituto Penal, que lembra a figura mitológica do labirinto. Aqui, entretanto, o Minotauro não é uma figura imaginária, metade homem, metade fera. Ele parece estar configurado nas próprias regras da administração e no arbítrio reinante. Segundo a vice-diretora, o estabelecimento poderia receber uma lotação máxima de 50 detentas. No dia de nossa visita, não obstante, lá estavam 112 apenadas. A maioria das presas estão reclusas em alojamentos - quartos grandes que fazem lembrar uma enfermaria. As únicas celas existentes são aquelas usadas para isolamento disciplinar ou por motivo de incompatibilidade ao convívio com a massa carcerária. Essas celas de isolamento estão entre as piores que vimos em toda a Caravana. São três pequenos cubículos escuros e úmidos aos quais se tem acesso após uma serpentina de corredores e portas chaveadas. Em um deles, uma das internas recolhidas nos mostrou a situação dramática do isolamento levantando o colchão onde dormia por sobre uma espécie de estrado. Em baixo, havia um buraco no concreto, uma verdadeira cloaca onde habitavam inúmeras baratas. As presas nesse isolamento relataram que é norma da casa encaminhar diretamente ao castigo as presas reincidentes. Assim, sem qualquer amparo legal, o Instituto oferece às presas reincidentes uma condenação extra-judicial. Quando de nossa visita, uma das detentas estava em isolamento precisamente por esse "motivo". Descobrimos que os castigos disciplinares são impostos sem que haja o devido processo legal, prática que foi sustentada perante os integrantes da Caravana pelo agente penitenciário chefe da segurança do Instituto sem qualquer constrangimento. Muitas das presas com quem nos entrevistamos acusam esse mesmo agente, um antigo trabalhador do sistema, como o principal responsável pelos maus tratos que recebem. Constatada a irregularidade do isolamento, cuja essência era apenas o arbítrio, o Deputado Marcos Rolim solicitou à vice-diretora que determinasse a imediata abertura das celas e o encaminhamento das detentas para seus alojamentos de origem. Após consulta telefônica à diretora, a responsável assentiu determinando o retorno de todas as presas em isolamento, menos uma cujo convívio com a massa carcerária poderia colocar sua vida em risco. 119 O presídio pratica a revista com desnudamento, mas não viola a correspondência das internas. Há duas professoras com turmas na Casa e há oferta de telecurso para um grupo pequeno de internas. A comida servida é boa e todos — internas, funcionários e integrantes da direção, servem-se dela. Cerca de 60% das presas aqui foram condenadas com base no artigo 12 do Código Penal (tráfico de drogas). O percentual de condenações por tráfico é a esmagadora maioria dos casos de prisões de mulheres no Brasil. De todas as presas com quem conversamos nesse instituto, entretanto, apenas uma delas havia "caído" com uma quantidade significativa de droga ilícita. Algumas foram presas quando tentavam levar pequenas quantidades de drogas aos seus maridos na prisão. Mas todas são consideradas pela Lei brasileira como "traficantes". A ironia é que dentro desse instituto penal, é bem possível que as usuárias de maconha, por exemplo, tenham acesso a quantidades bem maiores da droga do que teriam se estivessem em liberdade. Aqui, a droga é vendida por funcionários e fuma-se sem o risco de um flagrante. As presas recebem visitas e podem manter relacionamento sexual com seus namorados e/ou companheiros. Nos alojamentos, invariavelmente limpos e decorados, as detentas constróem os "Venustérios" , nome dado aos espaços reservados - demarcados com lençóis e cobertores - onde se exercitarão na arte do amor. De alguma forma, a humanidade se afirma ali em meio ao arbítrio e às ameaças. Ela está presente em cada fita, em cada laço, nos espelhos, nas rendas, nos batons, na vaidade daquelas mulheres, mães, amantes, prisioneiras. As presas denunciaram que a direção da Casa não tolera as relações homossexuais. Assim, por exemplo, uma detenta que tenha recebido um alvará de soltura não poderá mais visitar uma eventual companheira que permaneça presa. A interdição, obviamente, não possui base legal e só pode ser compreendida como expressão de um preconceito bastante funcional à crueldade. Ficha Técnica: Instituto Penal Feminino Desembargadora Auri Moura Costa Av. Sargento Hermírio S/N Fortaleza, CE Diretora - Eloísa Ribeira 120 F: 281.2554 Capacidade - 50 presas Lotação - 112 presas Revista íntima - Sim Violação do sigilo de correspondência — Não Trabalho prisional - Precário Atenção à saúde - Precária Educação das presas - Precária Assistência Jurídica - Precária Acesso ao pátio - Sim Visitas - Sim Visita íntima - Sim Comida - Boa Estrutura dupla de alimentação para funcionários - Nâo Acesso aos meios de comunicação - Sim Cela de isolamento - Sim Denúncias de espancamento - Sim Denúncias de corrupção - Sim Armas no interior do presídio - Não II - PERNAMBUCO Em Pernambuco, a Caravana contou, além dos Deputados Marcos Rolim e Doutor Rosinha, com a presença do Deputado Federal Marcos de Jesus (PSDB/PE). A comitiva foi completada com a presença dos Promotores de Justiça Dr. Marco Aurélio Farias da Silva e Dra. Patrícia Carneiro, com a psicóloga Esther 121 Correia, as Assistentes Sociais Maria Conceição Delgado e Muirá Belém; com o Deputado Estadual João Paulo (PT); com os integrantes da Pastoral Carcerária Lenílson Batista Freitas, Padre Marcos J. de Lima, Luiz Gonzaga, Dra. Renê Patriota e Arnaldo Martins de Miramoa; do integrante do Gajop, Jayme Benvenuto Lima Jr.; de Shella Carneiro de Souza, da Comissão de Familiares de Presos; de Marileide Araújo Sena, da Comissão de Defesa da Cidadania da AL/PE; de Erivam Araújo, da Comissão Penitenciária de Pernambuco; de Andréa Pessoa, da Assessoria do Deputado João Paulo; e de Janaína Negreiros, da Assessoria de Imprensa do Ministério Público do Estado; além de inúmeros jornalistas da imprensa de Pernambuco. PRESÍDIO PROFESSOR BARRETO CAMPELO - reclusão em convivência Nossa primeira visita em Pernambuco deu-se na ilha de Itamaracá, vizinha de Recife. Quando da Primeira Caravana Nacional de Direitos Humanos, em junho, estivemos nessa cidade visitando o Manicômio Judiciário do Estado, um dos piores do país. A expectativa que tínhamos, então, era a de encontrar um presídio em péssimas condições. Em que pesem os graves problemas enfrentados, entretanto, o estabelecimento apresenta algumas características que permitem que as condições gerais de execução penal sejam ao menos suportáveis. Fomos recebidos pelo Vice-diretor, senhor Alexandre Ferraz, que respondeu a todas as perguntas da comitiva e assegurou que a inspeção se realizasse sem qualquer constrangimento. O presídio encontra-se superlotado. Sua capacidade máxima é de 370 internos. A lotação quando da visita, porém, alcançava 1.032 presos. A média é de 9 presos por cela, o que, além do sofrimento, proporciona um próspero mercado de compra de camas. Por R$ 100,00 um detento pode comprar um lugar mais adequado para dormir. Estas condições de celas superlotadas, entretanto, é amenizada pela determinação da direção do presídio em permitir que todos os presos convivam durante o dia nos pátios internos. Por uma medida de bom senso, assegurou-se no Barreto Campelo uma condição muito rara de convivência entre os presos. O acesso às cantinas que existem no estabelecimento - administradas sempre por um preso que paga uma taxa de R$ 60,00 à administração - mais as 122 possibilidades, ainda que restritas, de esporte e permanência às quartas e domingos com os familiares, fazem do Barreto Campelo um lugar mais humano do que a média dos presídios brasileiros. Logo na entrada, uma primeira boa surpresa: o presídio não realiza revista íntima sobre os familiares. Todos são obrigados a passar por um detector de metais que funciona bastante bem. Assim, preserva-se a segurança do estabelecimento sem submeter os familiares à humilhação do desnudamento. De todos os presídios visitados pela Caravana, esse foi o único a não adotar o desnudamento das visitas como praxe de revista. As instalações são precárias e apresentam problemas graves de higiene. No lugar onde a comida é servida aos presos, há vazamentos no esgoto, o que oferece riscos à saúde de todos. Lixo acumulado no lado externo do edifício exala mal cheiro e reúne grande quantidade de insetos. A chamada enfermaria é uma sala onde ficam alojados os doentes., a maioria deles com tuberculose. O local é inadequado, as paredes são de pintura simples, desgastada, o que impossibilita a boa higiene. A parte hidráulica é precária. Os presos relatam dificuldades extraordinárias para atendimento médico e reclamam da falta de medicamentos. Há uma farmácia cujo estoque, conforme certificou o Deputado e médico Dr. Rosinha, é precário. Não há programa de prevenção a DST-AIDS e os presos não recebem preservativos. Os soropositivos, entretanto, recebem medicação adequada. Do total de internos, 183 trabalham em serviços de manutenção e cozinha, percebendo R$ 90,00 por mês. Não há oficinas de profissionalização, nem convênios com a iniciativa privada para trabalho prisional. Há aulas regulares no presídio mas apenas 53 presos estudam, o que perfaz pouco mais de 5% do total; 82% dos internos são analfabetos. Numa situação assim, percebe-se o quanto seria adequado que os Juízes concedessem remição por dias de estudo. O presídio conta com os serviços de l médico e 1 dentista, ambos com 20h semanais. Dispõe, ainda, dos serviços de uma terapeuta ocupacional e de uma enfermeira. A comida é de baixa qualidade e o estabelecimento não dispõe de nutricionista. O presídio oferece assessoria jurídica aos presos com 3 advogados que, entretanto, não dão conta da demanda em função da superlotação. Os juízes de execução, Dr. Cícero Bitencourt e Adeíldo Nunes, tanto quanto os promotores Paulo la Pedra e Marco Aurélio, visitam regularmente o estabelecimento. O estado de Pernambuco, por uma portaria do 123 Poder Judiciário, estabeleceu pioneiramente o direito de visitas homossexuais nos presídios. No Bruno Barreto há um pavilhão para ospresos homossexuais. Ali convivem em uma comunidade e recebem suas visitas. Os funcionários - 74 ao todo - são agentes penitenciários. Oitenta por cento deles possuem formação superior e seu salário médio fica em torno de 650,00. Admite-se que os agentes portem armas dentro do presídio. Os presos têm acesso aos meios de comunicação e não se admite puni-los subtraindo esse direito. Não há mecanismos de representação prisional formais. Os "chaveiros" - presos que portam chaves e auxiliam na administração - fazem o "meio de campo" entre a direção e a massa carcerária. Os detentos queixaram-se, basicamente, da falta de assistência jurídica. Há, ao que tudo indica, casos de violência. Presos queixaram-se de que um outro interno - expolicial - estaria acostumado a bater em internos impunemente. Afirmaram, também, que alguns detentos tiveram seu cabelo raspado à força à guiza de punição disciplinar. A própria direção informou que há um caso grave de violência perpetrada por agente contra preso, que encontra-se em investigação. Encontramos um preso Ivanildo Clementino de Oliveira - que é portador de sério problema de saúde mental. Ele estava em uma cela de isolamento na companhia de outros três detentos. Um censo penitenciário realizado no Presídio em 1998 nos oferece um conjunto de dados que, muito provavelmente, traçam um perfil aproximado da realidade carcerária atual no Barreto Campelo. Segundo aquele censo, para um total de 978 presos, existirtiam 23,1% de condenados por tráfico; 39,8% condenados por homicídio; 15, 8% condenados por furto; 40,7% condenados por roubo e 7,8% condenados por estupro. As penas acima de 20 anos alcançariam 33% dos presos; entre 13 e 20 anos, 25,6%; entre 09 e 13 anos, 13,5%; de 5 a 8 anos, 17,6%; de 2 a 5 anos, 9,5% do total; sendo 0,2% o percentual de presos provisórios. 40,3% dos presos eram brancos; 8,5% negros e 51,2% mestiços. Os reincidentes perfaziam 25,4% contra 74,6% de presos primários. Quanto à progressão de regime, 72,7% deles jamais haviam obtido esse direito e 93% nunca obtivram livramento condicional. Os analfabetos perfaziam 36,5% do total. 52% não haviam completado o primeiro grau; 7,6% tinham o primeiro grau completo; 2,1% o segundo grau incompleto; 1,4% o segundo grau completo e apenas 0,4% dos presos possuiam formação superior. 124 O presídio costumava, quando de nossa visita, violar o sigilo de correspondência dos apenados. Por solicitação do Deputado Marcos Rolim, o Sr. Promotor Marco Aurélio Farias da Silva, ainda no interior do Presídio, determinou ao sr. Vice Diretor que sustasse esse procedimento imediatamente. Aqui, como em todos os presídios que visitamos, a miséria confunde-se com a delinqüência. Há exemplos impressionantes que o confirmam de maneira eloqüente: Genílson Lima da Silva tem apenas 20 anos. Foi condenado, por conta de um assalto, a 4 anos de prisão em regime semi-aberto. Já cumpriu quase a metade da pena em regime fechado e poderia alcançar sua liberdade se tivesse um advogado. Genílson, no entanto, deseja ser transferido para a penitenciária agrícola porque lá terá certamente trabalho e com o que deverá receber do sistema poderá ajudar sua família. "Se eu for solto, diz ele, não vou arrumar emprego e aí, como é que vou viver?" Ficha Técnica: Presídio Professor Barreto Campelo Itamaracá, Pernambuco Rua Engenho Macaxeira s/n Ilha de Itamaracá F: 548.0326 Diretor - Cel. Elias Augusto Siqueira Capacidade - 370 presos Lotação - 1.032 presos Revista Íntima - Não Violação do sigilo da correspondência - Sim Trabalho prisional - precário Atenção à saúde - precária Educação dos presos - precária 125 Assistência Jurídica - precária Acesso ao pátio - sim Visitas - sim Visitas íntimas - sim Comida - ruim Estrutura dupla de alimentação de funcionários - sim Acesso aos meios de comunicação - sim Celas de isolamento - sim Denúncias de espancamento - sim Denúncias de corrupção - não Armas no interior do presídio - sim PRESÍDIO PROFESSOR ANÍBAL BRUNO - violência e arbítrio Um dos piores presídios do país, atualmente, o Aníbal Bruno, de Recife, talvez seja um dos recordistas mundiais em superlotação. Para uma capacidade de 524 presos, o estabelecimento contava com 2.988 internos no dia 30 de agosto, quando de nossa visita, ou seja: quase 6 vezes a sua lotação máxima. Fomos recebidos pelo Oficial da PM Evandro Carvalho Moura e Silva, diretor do estabelecimento. O presídio conta com uma estrutura administrativa caótica, com policiais militares e agentes penitenciários dividindo funções no contato diário com os presos. Pelo que pudemos perceber, cabe aos PMs que trabalham dentro do estabelecimento a manutenção da disciplina, o que é feito com uma dose de violência absolutamente despropositada e com uma série de castigos arbitrários e ilegais. Em uma cela de castigo havia 28 presos "isolados" por infração disciplinar. A Caravana solicitou ao diretor do estabelecimento a oportunidade de se entrevistar reservadamente com esses presos. Essa providência é a única capaz de garantir que os presos falem abertamente sem quaisquer constrangimentos. A entrevista nos 126 foi negada peremptoriamente. Mesmo assim, 14 dos presos amontoados nessa cela falaram abertamente dos motivos irrelevantes pelos quais foram encaminhados ao castigo, tudo isso na presença do diretor e de vários PMs fortemente armados. Um dos presos nessa cela estava há 76 dias em isolamento, o que é simplesmente inadmissível. O presídio possui histórico de motins e fugas. Quando os presos chegam ao presídio são encaminhados a uma cela de triagem e ali permanecem por uma média de 8 dias. Muitos relataram casos de espancamento nesse período. Há também casos de morte violenta em seu interior. Nem seria de se esperar coisa diversa. Na cela de segurança número 4, Luciano Batista Silva - o "Biba"- foi "isolado" juntamente com 7 outros presos há pouco mais de um mês. Nesse espaço minúsculo, escuro e sem ventilação, os presos são apartados dos demais, sendo obrigados a conviver com as ratazanas e a defecar em um saco plástico posto que não há instalações sanitárias. Luciano já havia sido ferido à faca por um outro preso, conhecido como "Pé de Burro". Ocorre que "Pé de Burro" foi também encaminhado para isolamento e alojado na mesma cela que Luciano. "Pé de Burro" foi assassinado na mesma noite. Os responsáveis pela decisão de colocar em uma cela de isolamento dois presos com uma ocorrência recente de agressão por certo desejavam o desfecho e, objetivamente, concorreram para ele. Encontramos outro preso, de nome Eronildes Ferreira da Silva, paciente psiquiátrico que, por conta de sua incapacidade mental, transformou-se em alvo fácil para os presos que o curraram várias vezes. Muitos presos estão doentes — HIV, tuberculose, osteomilite ,etc.. sem atendimento médico. Geralmente são os próprios presos que dispensam cuidados de saúde aos mais debilitados. Trabalham no presídio 17 agentes penitenciários e 34 policiais militares. Outros 33 PMs fazem a guarda externa. Há, ainda, 4 auxiliares de enfermagem, 1 enfermeiro, 2 médicos, 1 dentista, 2 psicólogos, 2 assistentes sociais e 1 agente administrativo. As carências funcionais são absolutamente evidentes. O estabelecimento realiza revista íntima. As visitações ocorrem as quartas feiras, aos domingos, havendo a possibilidade de pernoite a cada 15 dias para os presos habilitados. Trezentos e dezesseis presos trabalham recebendo pouco menos que um salário mínimo mensal. O presídio mantém aulas para 140 presos. Há programa de prevenção para DST-AIDS e os presos recebem preservativos. A Assessoria 127 Jurídica é precariamente realizada por 4 advogados. Há várias denúncias de espancamentos. As correspondências dos internos são sistematicamente violadas. Os PMs transitam pelo estabelecimento fortemente armados. Ao final da inspeção, de volta à sala do diretor, o Deputado Marcos Rolim inquiriu o diretor sobre os procedimentos utilizados para as punições disciplinares. Em sua resposta, o diretor assumiu que naquele presídio, o Conselho Disciplinar "só existe no papel". Dito de outra forma, o diretor confessou que todas as punições ali vigentes são ilegais. Diante disso, o Promotor Marco Aurélio determinou que o diretor revogasse imediatamente todas as punições disciplinares impostas arbitrariamente aos presos, anunciando que iria lhe oficiar na manhã seguinte. Da mesma maneira, determinou que a correspondência dos apenados parasse de ser violada. Ficha Técnica: Presídio Professor Aníbal Bruno Recife, Pernambuco Avenida Liberdade s/n F - 215.0552 e 455.6959 Diretor - Evandro Carvalho Moura e Silva Capacidade - 524 presos Lotação - 2.988 presos Revista íntima - sim Violação do sigilo de correspondência - sim Trabalho prisional - precário Atenção à saúde - precária Educação dos presos - precária Assistência jurídica - precária 128 Visitas - sim Visita íntima - sim Comida - ruim Estrutura dupla para alimentação dos funcionários - sim Acesso aos meios de comunicação - sim celas de isolamento - sim Denúncias de espancamento - sim Denúncias de corrupção - não Armas no interior do presídio - sim III - RIO DE JANEIRO Chegamos ao Rio de Janeiro na noite de 30 de agosto. As visitas começaram na manhã seguinte. Participaram da Caravana, além dos Deputados Marcos Rolim e Dr. Rosinha, e da Assessoria da CDH, o Deputado Fernando Gabeira (PV), o Padre Bruno Trombeta, da Pastoral Carcerária, as Promotoras de Justiça Lauizelane Ribeiro Godinho, Rita de Cássia Araújo Faria, Márcia Vieira Piatgorsky e Ana Cíntia Lazary Serour; a Procuradora de Justiça Ligia Porter Santos, a médica legista Tânia Donati Paes Rios e Renato Pinos, fotógrafo do Ministério Público do RJ. BANGU - I - presídio de "ociosidade máxima" A Penitenciária Laércio da Costa Pellegrino, mais conhecida como "Bangu I", é um estabelecimento de segurança máxima do complexo penitenciário de Bangu, no Rio. Trata-se de um presídio pequeno, para 48 presos, dividido em 4 galerias, cada uma com 12 celas individuais. O critério empregado para a divisão dos presos nessas galerias é o mesmo do conjunto das cadeias brasileiras: o pertencimento a grupos de afinidade ou quadrilhas organizadas. Em Bangu I, as galerias abrigam condenados vinculados ao "Comando Vermelho", "Terceiro 129 Comando" , "Amigos dos Amigos" e "Independentes". Concebido para receber os presos mais perigosos do estado, Bangu I recolhe hoje, na verdade, alguns dos mais famosos chefes do tráfico de drogas dos morros cariocas como "Marcinho VP", "Marcinho Nepomuceno", "Uê", "Dênis da Rocinha", entre outros. Pelas suas características especiais, Bangu I não encontra-se superlotado. O estabelecimento não possui histórico de fugas ou motins. Trata-se de uma instituição calma. Calma demais. Os presos permanecem todo o tempo contidos dentro de suas galerias recebendo, em regra, apenas uma hora de sol por semana. A exceção de 4 internos que realizam serviços de faxina, nenhum dos demais presos trabalha ou estuda. Segundo podemos constatar, não se lhes oferece trabalho ou estudo porque se imagina que isto possa representar riscos à segurança. Conversamos com vários presos e a reclamação maior delas envolve, precisamente, a ociosidade a qual estão obrigados. Um deles, que fala vários idiomas, nos relatou que já há meses vem solicitando à direção da casa um quadro negro e giz para que possa dar aulas aos seus colegas de galeria. Inquirida a respeito, a diretora nos respondeu que a solicitação estava sendo examinada de acordo com as "preocupações com a segurança". Faz-se revista íntima nos familiares; crianças e adolescentes também são desnudados quando da entrada no estabelecimento. No presídio de segurança máxima do Rio não se usa detectores de metal. As correspondências dos presos são violadas. O atendimento à saúde é precário e depende de requisição de médico junto ao sistema. Há cerca de 3 anos, uma visitante faleceu dentro do presídio, sem que tivesse a chance de socorro médico. Nos últimos 12 meses, há registro de uma morte de preso, por enforcamento. Os presos recebem visitas semanalmente e podem privar com suas companheiras nas celas. Quando o estabelecimento dispõe, oferece aos internos preservativos. Não há regras disciplinares impressas a que os internos tenham acesso: as visitas também não recebem uma cartilha onde estejam fixadas regras e procedimentos. Nosso acesso aos presos foi limitado. Tivemos apenas condições de conversar com alguns deles na grade que dá acesso às galerias. Um dos presos, Marcinho VP, expressou o sentimento de todos os demais dizendo: "Uma semana tem 168 horas. Ficamos 167 delas aqui dentro da galeria. É assim que pretendem nos recuperar?" Fomos recebidos em Bangu I pela agente que então ocupava o posto de Diretora da Penitenciária, Sidnéia de Jesus. Ela nos relatou o caso de uma 130 funcionária que, há alguns anos, havia sido assassinada na rua em circunstâncias que lhe pareciam caracterizar um crime "de encomenda". Quatro dias depois, quando a Caravana encontrava-se já em Porto Alegre, recebemos a notícia de seu assassinato. Sidnéia foi fuzilada na porta de sua casa em um crime "de encomenda". Ficha Técnica: Penitenciária Laércio da Costa Pellegrino - Bangu I Complexo Penitenciário de Bangu, RJ Fones - 3995810 / 3326456 Capacidade - 48 presos Lotação - 48 presos Revista Íntima - Sim Violação do sigilo da correspondência - Sim Trabalho prisional - Inexistente Atenção à saúde - Precária Educação dos presos - Inexistente Assistência jurídica — Todos os presos possuem advogado particular Acesso ao pátio - 1 hora por semana Visitas - Sim Visita Íntima - Sim Comida - Boa Estrutura dupla de alimentação para funcionários - Sim Acesso aos meios de Comunicação - Sim Cela de isolamento - Não 131 Denúncias de espancamento - Não Denúncias de corrupção - Não Armas no interior do presídio - Não PRESÍDIO ARI FRANCO - a porta do inferno No bairro de Água Santa, visitamos o presídio que é a porta de entrada do sistema penitenciário do Rio, o Ari Franco. O que nos chamou a atenção, inicialmente, foi a arquitetura totalmente inadequada do prédio, marcada por corredores e escadas que se multiplicam de forma indescritível. O presídio encontrava-se superlotado, com uma média de 16 presos por cela. Não se sabe, exatamente, qual a capacidade do estabelecimento que abrigava no dia de nossa visita 1.030 internos. Trabalham no local 89 agentes e 12 técnicos. A grande maioria dos presos está condenada a penas entre 4 e 8 anos. Aparentemente, as condenações com base no artigo 12 são as mais frequentes. Encontramos, também, presos com prisão provisória. As celas lembram jaulas de um zoológico e são atravessadas por uma rede de fios e cordas através das quais os presos se comunicam por bilhetes. O sistema de comunicação por essa complexa e engenhosa rede de fios é conhecido como "Internet". A queixa mais frequente é a ausência de assistência jurídica. Os presos, rigorosamente, desconhecem sua situação jurídica. Aqui, como em todos os estabelecimentos prisionais brasileiros, percebe-se que a faixa etária da massa carcerária é muito baixa. No Ari Franco, os presos ficam, em média, 2 a 4 meses. São, então, encaminhados a outros presídios. Durante o seu período de permanência lá não possuem o direito de visitas íntimas ou conjugais por inexistência de espaço. Contornam essa dificuldade, entretanto, revezando-se na área coberta, nos dias de visita, para a ocupação rápida de um pequeno banheiro onde transam de pé com suas companheiras. Chamam esse sistema de "ratão". As visitas, mulheres e crianças, são desnudadas quando da revista. O Ari Franco não dispõe de detector de metal. Aqui ninguém estuda e, do total de presos, há 140 que trabalham na faxina. Segundo relato do diretor, não há a prática de isolamento disciplinar, nem cela para tanto. As correspondências não são violadas. Recolhemos inúmeras denúncias de presos a respeito de um espaço 132 conhecido como "Maracanã" - uma sala grande, sem janelas, com um buraco usado como sanitário ("boi") - onde seria comum a prática de espancamentos. Essa sala é utilizada, segundo o diretor, para triagem. Em uma das celas, os presos relataram que a TV que possuíam havia sido retirada do grupo em represália ao fato de ter sido encontrada uma pequena quantidade de maconha sob um dos colchões. O fato constitui sanção coletiva o que é vedado explicitamente pela LEP. O deputado Fernando Gabeira solicitou ao diretor que determinasse o retorno do aparelho à cela uma vez que não se poderia punir todos os seus integrantes pelo fato cuja autoria não havia sido identificada. O diretor consentiu. O fato tornou evidente um método arbitrário de punições disciplinares que parece imperar ali. Ficha Técnica: Presídio Ari Franco Rua Violeta, 15 - Ágra Santa , RJ Diretor - Dilson Valente F - 596 9328 Capacidade Lotação - 1.030 Revista Íntima - Sim Violação sigilo correspondência - Não Trabalho prisional - Precário Atenção à saúde - Inexistente Educação dos presos - Inexistente Assistência Jurídica - Inexistente Acesso ao pátio - Não há pátio. Visitas - Sim Visita íntima - Não 133 Comida — nâo foi possível constatar sua qualidade Estrutura dupla para alimentação de funcionários - Não Acesso aos meios de comunicação - Sim Cela de isolamento - Não Denúncias de espancamento - Sim Armas no interior do presídio - Não PRESÍDIO EVARISTO DE MORAES - das pessoas, dos ratos e dos pombos Imaginem um enorme ginásio, velho e abandonado. Um espaço grande mesmo que pudesse servir como garagem para caminhões, com um pé direito de mais de 20 metros e uma cobertura em telhas de Brasilit. Imagine, agora, que nesse espaço se resolveu construir um "presídio" e que ali foram encarcerados 1.500 pessoas, cuja média de idade é 20 anos. Faça um novo esforço e imagine que as "celas" não possuem teto uma vez que as suas paredes possuem dois metros de altura e a cobertura efetiva é a do próprio ginásio. Agora, povoem a cobertura do ginásio com centenas de pombos que defecam 24 horas por dia na cabeça dos presos. Por decorrência, imaginem que esses presos tenham erguido com ao panos que dispõe - trapos, lençóis velhos, mantas puídas - uma proteção contra essa chuva de merda, de forma que suas celas lembrem tendas miseráveis enegrecidas pelos dejetos que aparam. Muito bem, você está entrando no Presídio Evaristo de Moraes no Rio. Aqui as celas abrigam uma média de 52 presos. No dia de nossa visita eram 1.552 pessoas nesses alojamentos fétidos e insalubres. Segundo os números que nos foram apresentados pelo diretor, o estabelecimento teria ainda vagas a oferecer ao sistema. Fossem só os pombos, mas há os ratos. Muitos. Os presos nos relataram um caso de morte recente por leptospirose. O diretor afirmou que desconhecia o caso. O Deputado Dr. Rosinha solicitou, então, acesso às fichas clínicas dos presos e à documentação legal daqueles que haviam falecido. Comprovou, então, o caso 134 relatado pelos presos. Mais: descobriu que outro preso, com sintomas compatíveis com a leptospirose, aguardava por internação hospitalar já há vários dias solicitada com urgência pelo médico que o havia atendido. Segundo o diretor, não havia viatura para remover o preso. Constatado o problema pela Caravana, a viatura "apareceu" e o preso foi internado. No Evaristo de Moraes, há várias celas de isolamento utilizadas tanto para punição disciplinar quanto para a separação de presos com incompatibilidade de convívio com a massa carcerária. Essas celas, as únicas com teto, são cubículos escuros e sem aeração, com 6 metros quadrados mais um pequeno espaço onde funciona o "boi". Aí dentro, chegamos a encontrar 16 presos. (!) Um deles dormia sobre a água que inundava o "banheiro". O calor ali dentro e o cheiro - que de tão forte impregna a roupa - tornam a permanência naquelas celas, ainda que por alguns minutos, um sofrimento. Nessa mesma ala do isolamento, encontramos o preso Cláudio dos Santos, que havia sido espancado por um agente penitenciário. Seu rosto estava, ainda, marcado por vários hematomas e, em suas costas, eram bem nítidas as marcas de ferimentos produzidos com algum tipo de fio. A água servida aos presos é turva. Seus familiares são desnudados quando da revista e apenas 126 do total de internos possuem o direito de receberem suas companheiras em visita íntima. O presídio conta com 7 quartos utilizados especificamente para esse fim. O diretor argumenta que o número reduzido de presos com acesso à visita íntima deve-se ao fato de a casa não dispor de mais espaços. Perguntado sobre as razões pelas quais não organiza, então, um rodízio dos presos aos quartos, de tal forma que mais internos pudessem privar com suas companheiras, não ofereceu qualquer resposta compreensível. Os presos, por seu turno, oferecem uma explicação: segundo inúmeros relatos, têm acesso à visita íntima os presos que pagam por isso. Aliás, segundo eles, tudo no Evaristo de Moraes é pago. Coversando com presos alojados em espaços diferentes, checamos os preços da "tabela" em vigor no estabelecimento: visita íntima — R$ 100,00; troca de cela — R$ 30,00; exame criminológico — R$ 50,00; informações do computador sobre a execução penal — R$ 10,00; saída ao pátio para jogar futebol — R$ 10,00, etc... Há uma cela específica onde estão alojados os presos homossexuais. Eles relatam que, à noite, são visitados e, muitas vezes, obrigados por outros presos a lhes prestar favores sexuais; se resistem, são currados e feridos por pontaços de estoque. Assinale-se que 15% dos presos no Evaristo de Moraes são portadores do vírus HIV. Em verdade, para além do drama vivido pelos presos homossexuais, a 135 integridade física dos presos não é assegurada no estabelecimento e nem será. Segundo nos foi relatado pelos presos, é comum que policiais militares encarregados da guarda externa efetuem disparos contra as galerias. Os detentos nos passaram cartuchos que o confirmam. De tudo o que pudemos ver e ouvir, há apenas um fato positivo: O presídio mantém aulas regulares - com 12 salas - onde estão matriculados mais de 600 internos. Fora isto, o estabelecimento é, sem qualquer dúvida, um dos piores do mundo. Ficha Técnica: Presídio Evaristo de Moraes Rua Bartolomeu de Gusmão, 1100, Rio de Janeiro 569.5744 Diretor- Manoel Pedro da Silva Capacidade - 1.650 ( esse número, absolutamente irreal) Lotação - 1.552 Revista íntima - Sim Violação do sigilo de correspondência - Não Trabalho prisional - Precário Educação dos presos - Boa Atenção à saúde - Precária Assistência jurídica - Inexistente Acesso ao pátio - Restrito Visitas - Sim Visita íntima - Restrita oferecido pelo diretor, é 136 Comida - Ruim Estrutura dupla de alimentação para funcionários - Sim Acesso aos meios de comunicação - Restrito Cela de isolamento - Sim Denúncias de espancamento - Sim Denúncias de corrupção - Sim Armas no interior do presídio - Não IV - SÃO PAULO Em São Paulo, a Caravana contou com a participação, além dos Deputados Marcos Rolim, Dr. Rosinha e suas Assessorias, com o Dr. Carlos Cardoso de Oliveira Júnior, Promotor de Justiça e Assessor de Direitos Humanos do Ministério Público Estadual; com o Promotor de Justiça Criminal da Capital Dr. Gabriel Cesar Zaccaria de Inellas; o Dr. Airton Grazzioli, Promotor de Justiça da Promotoria de Justiça e Execuções Criminais da Capital; o Padre Gunther Zgubic e Daniela Cecília Silva, ambos da Pastoral Carcerária, com Francisco Carvalho do Movimento Nacional de Direitos Humanos; com Isabel Peres da ACAT-Brasil e com Ariel de Castro Alves, da ONG Justiça Global. A Idade Média em São Paulo. Iniciamos o trabalho em São Paulo na manhã do dia 02 de setembro, sábado, com uma inspeção na Delegacia especializada no combate aos crimes contra o patrimônio na capital, a Depatri. Lá, o Delegado de Plantão, Antônio Álvaro Sá de Toledo, ao nos acompanhar à carceragem da delegacia afirmou: -"vocês irão conhecer uma masmorra medieval". De fato. Naquela manhã, havia quase 200 pessoas detidas na delegacia. O número exato não pôde ser apurado. Aqui há dois carcereiros por turno e as visitas dos familiares ocorrem às quintas-feiras, em horários escalonados. Os presos não possuem direito à visita íntima. Naturalmente, não há oportunidades de trabalho ou estudo aos internos. Os presos não dispõem de assistência médica; não há remédios disponíveis, sequer para os soropositivos. Como não há pátio na Depatri, os presos não possuem qualquer atividade externa, nem têm acesso a banho de 137 sol. Os presos têm acesso aos meios de comunicação. As celas da carceragem são escuras e sem ventilação. Em um espaço em torno de 25 metros quadrados, cada uma delas abriga em torno de 50 presos (!) No dia em que visitamos a Depatri, fazia frio em São Paulo. No calabouço, entretanto, fazia calor; muito calor. Nessa Delegacia, as dificuldades vividas pelos presos conformam um próspero mercado para os policiais corruptos, acostumados a cobrar dos internos R$ 10,.00 para a compra de uma lâmpada; R$ 10,00 a R$ 20,00 por um telefonema ou R$ 40,00 por um chuveiro, por exemplo. Ocorrências de abuso de autoridade e práticas de espancamento de presos parecem ser bastante comuns. Colhemos inúmeros relatos que descreveram com detalhes cenas de violência e tortura, inclusive com o emprego de choques elétricos. Por esses relatos, os presos indicaram uma sala, na parte térrea da delegacia, onde alguns deles teriam sido torturados. Nos indicaram que a máquina utilizadas para o suplício dos choques elétricos, aplicada normalmente sobre os testículos das vítimas - prática que se faria acompanhar de frases como "isso é para você não botar mais bicho ruim no mundo" - estaria na sala indicada dentro de um armário. De posse dessas informações, solicitamos ao Delegado de plantão que nos fosse franqueado o acesso à referida sala. Fomos informados de que isto não seria possível pois as chaves encontravam-se com outro Delegado. Solicitamos, então, que o referido delegado titular fosse localizado e convocado a se fazer presente para a abertura da sala. Aguardamos por quase duas horas a chegada do Delegado que, finalmente, abriu a sala. Dentro dela, havia vários armários. Todos fechados com cadeados. Solicitamos, então, que os armários fossem abertos. Fomos informados de que isso seria impossível pois as chaves estariam com cada um dos "donos" dos armários, policiais de folga ao final de semana. O espaço público de uma Delegacia de Polícia, assim, é tratado como se fosse de domínio privado. Na ausência de um mandado de busca e apreensão não havia mais o que fazer. De qualquer modo, durante o longo período de espera, descobrimos uma outra sala - também no andar térreo - onde há uma pequena cela, utilizada, segundo as autoridades policiais presentes, para triagem de presos. Na porta, há um cartaz onde se proíbe terminantemente a presença de familiares ou de visitas aos encarcerados nesse espaço, o que sugere uma permanência maior do que a 138 requerida para uma "triagem". No interior da pequena cela, gradeada e recoberta por uma tela, encontramos uma cadeira estofada e duas câmaras de pneus. A presença desses objetos, absolutamente injustificáveis naquele espaço, nos chamou a atenção. Em uma sala próxima, encontramos outros objetos estranhos e de nenhuma serventia para a investigação policial como várias cordas e uma forca. PENITENCIÁRIA DO ESTADO - a disciplina como sujeição Na tarde de sábado, visitamos, no complexo do Carandiru, a Penitenciária do Estado. O prédio, antigo e imponente, foi delineado a partir de um projeto arquitetônico concebido com gosto, requinte e funcionalidade. A área do estabelecimento comporta não apenas as galerias e pequenos pátios internos, mas um campo de futebol de dimensões oficiais, espaços significativos para oficinas profissionalizantes, além de boas áreas de circulação. A penitenciária encontra-se superlotada. Para uma lotação máxima de 1.250 presos, estava quando de nossa visita com 2.400 internos. Neste estabelecimento, trabalham 480 funcionários, entre agentes penitenciários e técnicos. A maioria das condenações aqui é por crimes cometidos contra o patrimônio. As visitas ocorrem aos domingos, entre as 7h30 e às 15h30. O que, por óbvio, conforma um espaço bastante estreito de contato dos apenados com seus familiares. As visitas são desnudadas através do procedimento de revista íntima e o estabelecimento não dispõe de detectores de metal. A visita íntima é admitida. Cerca de 1.100 presos trabalham, seja em tarefas de manutenção, seja por convênios vigentes com a iniciativa privada. Dentro da penitenciária, há oportunidades de trabalho em tipografia, confecção de vassouras, material elétrico e bolas de futebol. Há aulas regulares onde estudam 220 presos. (menos de 10% do total de internos). A penitenciária dispõe, também, de uma ala onde funciona, com certa precariedade, uma pequena enfermaria. São dezenas de homens depositados ali, abandonados em regra, baleados, doentes. Alguns literalmente apodrecem. Sem atendimento, sem medicamentos, morrem no esquecimento e no silêncio da prisão. Há 10 médicos e dois dentistas trabalhando na Penitenciária. O "atendimento dentário", não obstante, só realiza extrações e os médicos, pelo que pôde constatar o Deputado Dr. Rosinha, examinando os prontuários, não parecem cumprir sua carga horária nem acompanhar efetivamente 139 seus pacientes. Há vários presos com problemas sérios de saúde mental. O estabelecimento não dispõe de programas de prevenção a DST-AIDS, mas os internos recebem preservativos. A comida é feita no próprio estabelecimento e há uma estrutura dupla para a refeição oferecida aos funcionários. Viola-se a correspondência dos apenados. A assistência jurídica é oferecida, de forma bastante precária, pela FUNAP com 8 profissionais. ( média de 1 advogado para cada 300 presos) Em uma primeira cela de isolamento que visitamos, no andar térreo, estavam 4 presos separados dos demais por problemas de convivência com a massa carcerária. O espaço é pequeno, as condições de iluminação, aeração e higiene precárias. Esses detentos, por conta da sua circunstância de insegurança, não desfrutam de saídas ao pátio o que poderia ser resolvido com um mínimo de boa vontade. Um deles, entretanto, Gilberto Dias Galvão, teria sido espancado pelo atual diretor da Penitenciária Aniceto Fernandez Lopes em ocorrência que vem sendo apurada por procedimento administrativo. Há outras celas para isolamento por motivos de segurança, localizadas também no andar térreo na extremidade oposta à galeria que dá acesso ao hospital. Essas celas - conhecidas pelos presos como "cofrinho" - situam-se para além de uma porta compacta que dá acesso ao corredor. Com elas, configura-se a dupla estrutura de encarceramento: celas dentro de celas. Conversamos com os presos que estavam ali em situação bastante similar aos primeiros. A diferença é que a maioria deles não se imaginavam "seguros" . Alguns temiam ser assassinados a qualquer momento, pelo que solicitamos ao Ministério Público que avaliasse junto ao Juiz competente a possibilidade de transferência. No quinto andar da galeria "C", estão as celas de isolamento por motivo disciplinar. Essas são idênticas às celas normais e estão, no geral, dentro dos parâmetros mínimos definidos por lei. O que chama a atenção aqui é o fato de grande parte dos punidos por infração disciplinar terem sido flagrados em situações banais logo interpretadas como "faltas graves" e punidas com 30 dias de isolamento. Assim, por exemplo, o preso Losamar Francisco da Silva, encontrava-se há 14 dias em isolamento pelo fato de ter sido apanhado com uma pequena quantidade da aguardente produzida clandestinamente nos presídios a partir da fermentação de frutas ou cereais. Pelo mesmo motivo, o preso Antônio Almeida encontrava-se há 23 dias isolado dos 140 demais. Ora, partindo-se do pressuposto de que os presos nomeados não praticaram qualquer ato atentatório aos demais internos ou a quem quer que seja; admitindo-se que sequer embriagados estavam; considerando-se que não corromperam funcionários nem induziram familiares a burlar a vigilância, etc., não parece admissível que o descumprimento da regra interna que veda o consumo de bebidas alcoólicas possa ser interpretado como "falta grave". Se produzir, transportar ou beber aguardente no interior de uma penitenciária é uma "falta grave", que natureza de falta comete aquele que organiza um motim, que porta uma arma ou que viola sexualmente outro interno? A situação geral da Penitenciária Estadual de São Paulo é, do ponto de vista da estrutura física oferecida aos internos, bastante razoável. Os problemas mais sérios aqui parecem residir em uma determinada noção de "disciplina" com a qual administra-se a instituição com um rigor absolutamente denecessário. As condições de execução da pena, então, submetem-se a um tensionamento permanente que degrada o convívio entre os presos e constrói distâncias cada vez maiores entre a direção e o corpo de funcionários, por um lado e os internos, por outro. Esse "estranhamento" poderia ser evitado com normas mais flexíveis e com uma participação efetiva dos internos, junto à direção, na conquisa das soluções para problemas concretos. Ficha Técnica: Penitenciária Estadual de São Paulo Av. Ataliba Leonel, Capital Diretor - Aniceto Fernandez Lopes Capacidade - 1.250 presos Lotação - 2.400 Revista Íntima - Sim Violação do Sigilo de Correspondência - Sim Trabalho prisional - Sim 141 Atenção à saúde - Precária Educação dos presos - Precária Assistência jurídica - Precária Acesso ao pátio - Sim Visita íntima - Sim Comida — Não foi possível constatar sua qualidade estrutrura dupla de alimentação para os funcionários - Sim Acesso aos meios de comunicação - Sim Cela de isolamento - Sim Denúncias de espancamento - Sim Denúncias de corrupção - Não Armas no interior do presídio - Não PRESÍDIO DE MULHERES - onde o amor é um aceno No domingo pela manhã, voltamos ao complexo do Carandiru. Dessa vez para visitar a Penitenciária Estadual de São Paulo, Presídio de Mulheres. Havíamos tomado a decisão de não visitar a Casa de Detenção por dois motivos: primeiro porque uma inspeção do tipo das que estávamos fazendo envolveria vários dias em uma Penitenciária com mais de 8 mil internos; segundo porque a Casa de Detenção tem sido mais frequentemente visitada e acompanhada por autoridades e voluntários de ONGs. Escolhemos, então, o Presídio de Mulheres onde, no dia anterior, uma tentativa de fuga havia sido registrada. O presídio, concebido para uma lotação de 256 internas, estava com 456. As visitas ocorrem somente aos domingos, entre 12h30 e 16h, o que significa, para muitos familiares - descontada a longa espera para a entrada, mais o tempo necessário para a revista - o período de alguns minutos apenas de contato com as 142 presas. As visitas são desnudadas, inclusive crianças e adolescentes, embora o estabelecimento disponha de detector de metais. Os familiares podem trazer o "jumbo" - gêneros alimentícios ou outros produtos de consumo. Aqueles que moram em São Paulo, não obstante, só o podem fazer às quartas-feiras, o que lhes causa extraordinário transtorno. Muitos são obrigados a faltar ao serviço para entregar esses mantimentos. Esse tipo de problema poderia ser facilmente superado, permitindo que todos os visitantes deixassem seus produtos aos domingos, mesmo que para revista e entrega nos dias posteriores. Aqui, 244 presas trabalham em oficinas e 56 em serviços de manutenção - o que perfaz 65% do total. Oitenta presidiárias estudam - cerca de 17% do total. Há uma relativa liberdade de circulação das detentas dentro de suas alas e um acesso facilitado ao pátio. Cinco médicos trabalham no estabelecimento. As regras disciplinares efetivas comportam o arbítrio e punições ilegais. Em uma cela de isolamento, encontramos a detenta Rosângela Nonato de Jesus punida porque solicitou socorro a uma companheira que estava com sangramento no ouvido. Como o socorro tardou, ela bateu nas grades de sua cela até ser atendida. A pessoa que prestou socorro declarou, ao chegar, que não entendia porque tanto alarido por conta de uma "dorzinha de ouvido". Foi, então, acusada pela detenta de ser "folgada". Por esse motivo Rosângela foi encaminhada ao isolamento. Assinale-se que o relato feito pela presa, exatamente nesses termos, foi corroborado pelo registro da ocorrência no procedimento disciplinar específico, conferido pelo deputado Marcos Rolim. A cena não deixa de ser significativa do conteúdo emprestado pelos incompetentes à noção de "disciplina" dentro do sistema prisional brasileiro. Imaginemos - apenas para efeito argumentativo - que estivéssemos diante de uma situação ilegal, mas de sentido oposto: com base na ocorrência, a funcionária é encaminhada para o isolamento e Rosângela é encarregada de zelar pela saúde das presas. Nessa hipótese, seguramente, estaríamos mais próximos da justiça. Presas denunciaram procedimentos de abuso no chamado "trânsito", prática pela qual detentas seriam encaminhadas, por castigo, durante 120 dias em 4 presídios femininos permanecendo isoladas por 30 dias em cada um deles. Muitas presas relataram que são obrigadas a pagar o conserto de objetos que quebram ou 143 se deterioram em suas galerias; que lhes é cobrado, indevidamente, pela prestação de serviços e que encomendas solicitadas por elas para a aquisição de produtos de higiene pessoal ou limpeza são entregues mediante "ágio". A diretora afirmou desconhecer essas práticas. Há problemas de saúde, também. A presa Aida Assad, por exemplo, sofre de uma grave dermatose. Há um ano e meio solicita ser atendida por um dermatologista, sem resultados. A presa Jucimar Martins Trigo é, provavelmente, portadora de hanseníase e não recebe os cuidados médicos devidos. Os problemas mais sérios enfrentados no Presídio de Mulheres, entretanto, dizem respeito às inaceitáveis vedações de ordem moral impostas pela diretora, Sra. Maria da Penha Risola Dias, uma antiga funcionária do sistema. Por conta das suas concepções, as presas estão impedidas de receberem seus maridos ou companheiros em visitas íntimas. A diretora argumenta que não há espaços para que as relações sexuais ocorram. Ora, em todos os presídios masculinos há a mesma limitação. Em 99% deles, não obstante, permite-se aos presos que, nos dias de visita, organizem a ocupação escalonada de suas celas para que privem com suas companheiras. O que assegura-se aos homens presos, nega-se, em São Paulo, às presidiárias. Tal vedação só pode ser compreendida em um quadro discriminatório em si mesmo revoltante. Na opinião da diretora, se a mesma sistemática de visitas conjugais empregadas nos presídios masculinos fosse aceita ali, correríamos o risco de presenciar cenas de "prostituição masculina". Ou seja: a diretora teme que os homens, autorizados a frequentar as galerias, pudessem ser requisitados por outras mulheres que não as suas companheiras. A hipótese denota desconhecimento do significado das visitas em um presídio e revela uma insensibilidade que beira a paranóia. Para dona Maria da Penha o entorno do seu estabelecimento - um presídio, convém lembrar, e não um convento - é um mundo fálico que importa saber evitar a qualquer custo. No Presídio de Mulheres, viola-se o sigilo de correspondências das detentas. Mais do que isso: segundo nos relatou a própria diretora, as cartas recebidas ou enviadas pelas presas são lidas também com a preocupação de garantir que elas empreguem expressões condizentes com a "moral e os bons costumes". (sic) Assim, por exemplo, em uma carta de amor há que se moderar a linguagem e em hipótese alguma produzir ou receber desenhos insinuantes, provocativos, obscenos. Revistas pornográficas, nem pensar. Elas são 144 proibidas e apreendidas embora se tratem de publicações legais, vendidas livremente no país. Dona Maria da Penha não se contenta em proibir o sexo no estabelecimento que dirige; procura proibir, também, a fantasia sexual. Perguntada sobre sua postura se informada da existência de relações homossexuais entre as detentas, respondeu que as presas nessa situação "são advertidas e separadas". Dona Maria da Penha pode ter os valores de moral sexual que bem entender. Pode até mesmo firmar voto de castidade. O que ela não pode é obrigar mulheres adultas, muitas delas mães e esposas, a uma privação dessa natureza, o que configura sentença extra-judicial, imposição de sofrimento, abuso de autoridade. Causa espécie, ainda, que o governo de São Paulo seja conivente com a interdição da sexualidade das suas mulheres presas. No Presídio de Mulheres, as detentas, entretanto, resistem e, a seu jeito, namoram. Inventaram a "pedalada", prática que consiste em abanar através das grades das janelas com pedaços de pano colorido para os presos da Penitenciária Estadual vizinha, cujos últimos pavilhões distam cerca de 100 metros dos fundos do Presídio de Mulheres. Cada presa que namora com a "pedalada" é identificada pelo interlocutor pela cor do pano que usa e vice-versa. Criaram, então, uma forma de comunicação em que as letras equivalem a seu número na ordem alfabética. Dessa forma, "falam" com seus pretendentes, trocam carícias, juras de amor e até planejam casamentos. Em toda a parte os seres humanos resistem, é o que nos dizem as detentas desse presídio onde o amor confunde-se com um aceno. Ficha Técnica: Penitenciária do estado de SP - Presídio de Mulheres Av. Takinarcki, capital F: 622.11379 Diretora - Maria da Penha Risola Dias Capacidade - 256 presas Lotação - 456 presas Revista íntima - Sim 145 Violação do Sigilo de Correspondência - Sim Trabalho Prisional - Sim Atenção à saúde - Precária Educação dos Presos - Precária Assistência Jurídica - Inexistente Acesso ao pátio - Sim Visitas - Restritas Visita Íntima - Não Comida — Boa Estrutura dupla de alimentação para funcionários - Não Acesso aos meios de comunicação - Sim Denúncias de espancamento - Não Denúncias de corrupção - Sim Armas dentro do presídio - Não PENITENCIÁRIA FEMININA DO BUTANTAN (Doutora Maria Marigo Cardoso de Oliveira) - quando o Estado espanca e estupra Detentas do Presídio de Mulheres nos relataram uma situação de horror que estaria acontecendo na Penitenciária Feminina do Butantan. Segundo esses relatos, casos de espancamento e de violência sexual contra as presas seriam corriqueiros. De posse dessas informações, tomamos a decisão de inspecionar o referido estabelecimento. Desafortunadamente, os relatos eram verdadeiros. Quando de nossa chegada, fomos recebidos por uma funcionária que exerce funções subalternas na penitenciária. A diretora não estava. A funcionária não dispunha de qualquer informação relevante, nem de dados a respeito da 146 execução penal ali praticada. Frustrada a intenção de recolher informações oficiais, nos dirigimos imediatamente à inspeção, começando, como de costume, pelas celas de isolamento. No Butantan elas são especialmente temidas. Conhecidas pelas iniciais C. I. , essas celas repetem a estrutura de duplo encarceramento (celas dentro de uma cela) e se localizam na parte inferior do prédio. Ali, encontramos uma presa que nos relatou ter sido violentamente espancada por um agente. Fomos, então, diretamente ao pátio interno onde as presas estavam, muitas ainda recebendo suas visitas. A reação delas ao saberem que estávamos realizando uma inspeção em nome da Comissão de Direitos Humanos foi algo impressonante. Um estado de euforia tomou conta de todas. Algumas exclamavam: "foi Deus que enviou vocês aqui!" Outras diziam: "até que enfim alguém se lembrou de nós!" As presas simplesmente não se continham e falavam todas ao mesmo tempo. Cada uma tinha uma denúncia grave a fazer. Casos de espancamento e de violência sexual foram descritos. Segundo as presas, uma interna teria engravidado em estupro praticado por agente, cujo nome já sabíamos. A vítima dessa agressão, todavia, não foi identificada. Entrevistamos uma detenta que relatou ter sido pisoteada pelo mesmo agente no interior da C.I. Seus dedos e especialmente suas unhas ainda estavam fortemente marcados. Nesse presídio, as detentas condenadas a regime semi-aberto recebem uma calça de cor verde e as condenadas em regime fechado, calças marrons. Também aqui as presas não recebem visitas íntimas. Também aqui suas cartas são violadas. Sobre elas, há uma particularidade: o Deputado Marcos Rolim resolveu inspecionar o lixo do presídio. Abriu vários dos sacos plásticos até encontrar um onde inúmeras cartas e requisições encaminhadas pelas detentas à diretora estavam depositados. Do que se conclui que a diretora tem por hábito jogar no lixo requisições e cartas escritas por detentas. O saco foi fechado e entregue ao representante do Ministério Público que nos acompanhava. A Caravana constatou e documentou a existência de uma tabela de preços para a compra de vários produtos necessários às internas e que são normalmente encomendados por elas à direção. Percebe-se, claramente, a existência de ágio nos preços praticados. Segundo pelo menos um funcionário com quem conversamos, há no estabelecimento a prática reiterada de desvio de alimentos, especialmente de carne. 147 V - RIO GRANDE DO SUL A Caravana iniciou seus trabalhos no Rio Grande do Sul na manhã de segunda-feira, 4 de setembro. Além dos Deputados Marcos Rolim e Dr. Rosinha e da Assessoria da CDH, a Caravana contou com o reforço do Deputado Fernando Gabeira. Integraram o grupo de trabalho o Superintendente dos Serviços Penitenciários do Estado do Rio Grande do Sul, Dr. Aírton Michels; o Comandante da Força Tarefa da Brigada Militar, Major Cléber José dos Santos Gonçalves; a Promotora de Justiça da Vara de Execuções Criminais de Porto Alegre, Dra. Ana Rita Nascimento Schinestsck; a assessora da Comissão de Cidadania e Direitos Humanos da Assembléia Legislativa do Estado, Cristina Gross Villanova; a assessora do Deputado Marcos Rolim, Aline Borges; e a Sra. Sandra Regina Trindade, esposa de um presidiário e integrante do projeto das "Promotoras Prisionais". PENITENCIÁRIA ESTADUAL DO JACUÍ - a humilhação da revista íntima Em um micro-ônibus, nos deslocamos para o município vizinho de Charqueadas onde há 4 presídios e duas colônias penais. No Rio Grande do Sul, mais de 40% dos presos estão detidos no complexo penitenciário de Porto Alegre e Charqueadas. Os presídios mais importantes do estado situam-se nessa região e 4 deles estão sob a administração da Força Tarefa da Brigada Militar. A Força Tarefa é um destacamento da PM gaúcha, formado há 5 anos, após uma sucessão de motins e graves ocorrências nos maiores presídios do estado. Ao todo, o Estado é responsável pela tutela de 13 mil presos. Não há presos em delegacias de polícia. A Caravana incluiu o RS em seu roteiro para que pudéssemos checar o modelo apontado por muitos como o "melhor do país". Ao final, saímos todos, com a convicção de que também o RS precisa alterar, e rapidamente, seu modelo prisional. Escolhemos a Penitenciária Estadual do Jacuí (PEJ) como nossa primeira visita. Trata-se de uma Penitenciária com histórico de motins e fugas. Em número de presos é a segunda do estado. No dia de nossa visita havia 1.241 presos na PEJ, para uma lotação máxima de 1.109. Do total de internos, 35 presos estão no regime semi-aberto e cumprem suas penas em alojamento separado, sem contato com os demais. Há 196 funcionários - entre civis e militares - trabalhando no 148 estabelecimento. As visitas ocorrem às quartas e domingos, das 7h30 às 16h30. Há a prática de desnudamento dos familiares de presos, com a exigência de flexões e arregaçamento da vagina e do ânus. Os procedimentos humilhantes, vexatórios e ilegais das revistas íntimas ocorrem no RS com mais rigor do que na média dos demais estados e vêm sendo fortemente denunciados há anos pela Comissão de Cidadania e Direitos Humanos da AL/RS, até a presente data sem resultados conclusivos. O atual governo, contudo, comprometeu-se na própria Caravana — por meio da palavra do Superintendente da SUSEPE - a eliminar essa prática, editando uma portaria ainda no mês de setembro. As visitas homossexuais são admitidas na PEJ. Seiscentos presos trabalham e 104 estudam. No Estado, os Juizes concedem remição por dias de estudo, nos mesmos termos mencionados pela lei para os dias de trabalho, o que configura um forte estímulo aos internos. Há 5 médicos e um dentista trabalhando na PEJ; a PEJ foi o único presídio visitado onde verificamos a presença de um pneumologista. Há programas para prevenção de DST-AIDS e os presos recebem preservativos. Há estrutura dupla para a alimentação dos funcionários. A assistência jurídica, precaríssima, é mantida por um único Defensor Público. Os presos saem duas horas por dia ao pátio, possuem acesso aos meios de comunicação e contam com uma biblioteca de acervo pobre. O RS terminou com a violação do sigilo de correspondência dos presos há um ano, através de portaria da SUSEPE. Não se verificou nenhuma alteração na segurança dos estabelecimentos além da disponibilidade maior de funcionários antes ocupados com a tarefa de violar a Constituição Brasileira. Pela portaria, sempre que houver a suspeita de que determinado envelope de correspondência possa estar sendo utilizado para transporte de objeto ilícito, o destinatário da correspondência é chamado, o envelope é aberto na sua presença e seu conteúdo examinado sem que, por qualquer hipótese, a carta seja lida. Preserva-se assim a o direito assegurado aos cidadãos e a segurança do estabelecimento. Essa portaria oferece um testemunho eloqüente da diferença que o simples bom senso pode fazer em uma administração prisional. Também aqui, a grande maioria dos presos é jovem, pobre e iletrada. Do total de presos na PEJ, 61% deles possuem menos de 30 anos; 12% do total são analfabetos; 9,3% não possuem escolarização, mas sabem ler e escrever; 73% dos presos possuem escolarização primária incompleta e apenas 5% do total chegou a freqüentar alguma série do segundo grau. Quase 1/3 dos presos da PEJ foram condenados por assaltos e 16% do total praticaram homicídio. Há 9% 149 de presos condenados por furto, 12% por tráfico e 6% por estupro. A direção do estabelecimento realizou, também, um levantamento sobre a situação econômica e social dos detentos com 991 internos. Descobriu que 988 deles eram miseráveis e que 3 integravam as camadas médias da sociedade. Na PEJ não há um preso rico sequer. Iniciamos a inspeção pelas celas de isolamento, utilizadas alternadamente para punição disciplinar e para proteção de presos ameaçados. As celas são escuras, não possuem ventilação adequada e encontram-se totalmente fora dos marcos legais. As punições disciplinares são impostas por motivos algumas vezes irrelevantes. As celas são trancadas com parafusos, o que exige uma chave especial para abri-las. O procedimento é de alto risco e totalmente desnecessário. No caso de uma ocorrência grave - incêndio, necessidade de socorrer um preso, etc., a existência do parafuso retardaria qualquer providências urgentes. Após conversar com os presos que ali estavam, inspecionamos as galerias e conversamos com presos nas grades que dão acesso a elas. As reclamações mais insistentes relacionavam-se com as humilhações impostas quando da revista aos seus familiares. Muitos presos relataram que suas esposas já entram no presídio chorando após tudo o que sofrem nas revistas com desnudamento. Isto os revolta sobremaneira. Reclamaram, também, da falta de assistência jurídica. Na PEJ, as diversas galerias possuem representantes informais, escolhidos pelos próprios presos. Solicitamos, então, à direção que nos facultasse uma reunião com os representantes de galerias o que nos permitiria uma visão mais abrangente dos seus problemas. A reunião ocorreu dentro da sala de aula onde, inexplicavelmente, o espaço onde fica o professor é separado do espaço reservado aos alunos por uma grade. Os deputados ultrapassaram essa barreira e se reuniram com os presos para além da grade, reservadamente, sem qualquer problema. Depois, conversaram, ainda, com os presos do regime semi-aberto. No final, mantiveram uma produtiva reunião com o diretor da unidade, quando solicitaram o fim da revista íntima, a não utilização dos parafusos nas celas, a interdição das celas de isolamento, entre outras medidas urgentes. Observa-se na PEJ a presença ostensiva de policiais militares em todas as áreas internas da Penitenciária. As galerias continuam sendo, por conta da superlotação, um espaço administrado pelos internos. A incidência da direção da PEJ observa-se até a entrada das 150 galerias onde os internos estão trancafiados coletivamente. A presença de armas com os PMs que trabalham na PEJ é uma ameaça constante aos presos, aos próprios PMs e à segurança do estabelecimento. Se há uma regra consensual em todo o mundo a respeito de segurança prisional essa regra é: armas, fora. No RS, entretanto, autoriza-se já há muitos anos que agentes e PMs andem armados no interior dos presídios. Desde a criação da Força Tarefa, o problema se tornou mais agudo, pois até metralhadoras passaram a ser utilizadas em área de circulação interna e no manejo com presos. Ficha Técnica: Penitenciária Estadual do Jacuí Charqueadas , RS Diretor - Major Jari Ineu Scherer F: 658.1882 Revista íntima - Sim Violação do sigilo de correspondência - Não Trabalho prisional - Sim Atenção à saúde - Precária Educação dos presos - Precária Assistência Jurídica - Inexistente Acesso ao pátio- Sim Visitas - Sim Visita íntima - Sim Comida - ruim Estrutura dupla de alimentação para os funcionários - Sim Acesso aos meios de comunicação - Sim 151 Denúncias de espancamento - Não Denúncias de corrupção – Não Armas no interior do presídio – Sim PRESÍDIO CENTRAL - ordem unida e armas Nossa segunda visita ocorreu no Presídio Central de Porto Alegre, o maior e mais problemático do estado. Construído originalmente como cadeia pública e capaz, hoje, de receber, no máximo, 600 presos, encontra-se superolotado com 2.100 detentos. O estabelecimento também realiza as revistas com a prática do desnudamento. Igualmente sob a responsabilidade da Força Tarefa da Brigada Militar, o presídio dispõe de infraestrutura deficiente em todas as dimensões imagináveis. As instalações hidráulicas estão comprometidas, há vazamentos dos esgotos e condições insalubres nas galerias. O superintendente da SUSEPE anunciou investimentos significativos para uma reforma do Presídio Central ainda este ano. Os presos, enquanto isso, estão amontoados. A direção do estabelecimento mantém procedimentos rigorosos de disciplina e observa-se nitidamente uma tendência à militarização das condutas exigidas dos próprios internos. Como se fosse possível e desejável tratá-los nos termos de ordem unida. Utiliza-se, dentro do estabelecimento, armamentos de grosso calibre. Os deputados constataram o emprego de cães por alguns policiais nas áreas de circulação. Quando caminhávamos pelos corredores, presos que estavam se deslocando em um estreito espaço delimitado por uma tela interrompiam automaticamente seu trajeto e se mantinham com o rosto virado para a parede. Trata-se de procedimento inédito e inaceitável esse pelo qual se obriga os presos a não olharem os visitantes ou as autoridades que circulam pelo estabelecimento. Há 184 Policiais Militares e 23 funcionários da Susepe trabalhando no estabelecimento. 7% dos internos são analfabetos; 11% embora sem escolarização são alfabetizados; 52% possuem o primeiro grau incompleto e apenas 6% possuem o primeiro grau completo. 14% dos presos foram condenado por roubo e 15%, por 152 furto. Os crimes sexuais respondem por 15% das condenações; o mesmo percentual, respectivamente, para condenados por homicídio , por tráfico de drogas e por lesões corporais. Os condenados por estelionato são 11% do total da massa carcerária. 480 presos trabalham, a maioria deles em tarefas de manutenção. Os internos recebem preservativos e há programas de prevenção a DST-AIDS para presos e funcionários. Dois defensores e 4 bacharéis prestam, com precariedade, assistência jurídica no estabelecimento. Fomos às celas de isolamento onde vários presos são apartados dos demais. Os locais são insalubres e úmidos. Alguns presos estavam já há dias em um espaço gradeado que sequer cela é, sem direito a banho, dormindo no chão, sem colchões ou mantas. Estabeleceu-se no presídio, mais recentemente, uma divisão entre os internos: alguns são vinculados a um detento conhecido como "Brasa" , outros não. Pelo que foi possível perceber, "Brasa" dispõe, efetivamente, de poderes dentro da instituição e goza de privilégios. A situação de saúde dos presos é precária. Muitos estão doentes e sem o devido atendimento médico. O Hospital Penitenciário, que funciona em uma das alas do Presídio Central, encontra-se sucateado e não dispõe de profissionais em número suficiente. Em regra, os presos encontram-se abandonados e sem assistência jurídica. Pelas queixas recebidas, percebe-se que os Juizes da Vara de Execução Criminal de Porto Alegre não têm realizado visitas freqüentes aos presídios, nem agilizado os processos. No Presídio Central de Porto Alegre, há dezenas de presos sem o enquadramento criminal. Na inspeção realizada, chegamos a um conjunto de outras celas também utilizadas para isolamento. Essas celas não possuem ventilação, são escuras e insalubres. Ali encontramos presos sem direito a banho de sol ou visitas. Em uma delas, encontramos detentos que relataram terem sido torturados por policiais civis de uma cidade do interior. Ficha Técnica : Presídio Central Av. Roccio, 1100 - Porto Alegre 153 f: 288.4441 diretor: Maj. Eduardo Passos Mereb Capacidade - 600 presos Lotação - 2.100 presos Revista íntima - Sim Violação do sigilo de correspondência - Não Trabalho prisional - Precário Atenção à saúde - Precária Educação dos presos - Precária Assistência jurídica - Precária Acesso ao pátio- Sim Visitas - Sim Visita íntima - Sim Comida - Ruim Estrutura dupla para alimentação dos funcionários - Sim Acesso aos meios de comunicação - Sim Celas de isolamento - Sim Denúncias de espancamento - Não Denúncias de corrupção - Não Armas dentro do presídio - Sim VI - PARANÁ As últimas visitas da Caravana ocorreram no Paraná, com a presença, além dos deputados Marcos Rolim e Dr. Rosinha, de Dirleo Sanches e Padre Aires, 154 integrantes da Pastoral Carcerária; do Dr. Luis do Nascimento, advogado da Pastoral Carcerária; e do Dr. Dartanhan Abilhoa, Procurador de Justiça e Coordenador de Execuções Penais do Estado. PRESÍDIO CENTRAL DE PIRAQUARA - um lugar para o esquecimento Vizinha a Curitiba, a pequena cidade de Piraquara possui o maior cárcere do Paraná. Superlotado, o Presídio Central estava com 1.450 detentos na manhã de 5 de setembro, quando de nossa visita. Sua lotação máxima seria de 550 presos. Há 280 funcionários trabalhando no estabelecimento, 40 por escala, com plantões de 24 por 72 horas. O Presídio Central de Piraquara enfrentou uma grande rebelião no início de junho deste ano. Como resultado, muitas de suas instalações, especialmente as áreas destinadas às oficinas de trabalho, foram completamente destruídas. Mais de 50% dos presos aqui cumprem pena por delitos contra o patrimônio. As visitas ocorrem aos domingos, das 8 às 16 horas. Pratica-se, também, as revistas com desnudamento. Recebemos denúncias de familiares de presos segundo as quais a rebelião de junho teria tido como fato detonador um caso de abuso sexual cometido por funcionário contra uma mulher de preso. Quando da rebelião, um agente foi seriamente ferido e teve ruptura de medula. Segundo informações que obtivemos, esse funcionário encontra-se totalmente desamparado pelo Estado. Perecebe-se, então, em cenas do tipo, que o Estado viola também os Direitos Humanos dos agentes penitenciários. O presídio não dispõe de detector de metais. Do total da massa carcerária, 280 presos trabalham em tarefas de manutenção, recebendo R$ 21,00 por mês. Não há, no momento, salas de aula funcionando. O estabelecimento dispõe dos serviços de um médico, duas enfermeiras e uma farmacêutica. Há programa de prevenção a DST-AIDS e os presos recebem preservativos. A assessoria jurídica é precária e essa deficiência conforma a principal queixa dos presos. Os funcionários do estabelecimento são agentes penitenciários cujo salário médio é R$ 800,00. Os presos possuem acesso aos meios de comunicação e admitie-se puni-los com a subtração desse direito. As correspondências dos presos são violadas. Não se admite que os funcionários portem armas dentro do presídio. 155 Iniciamos a visitação pelas celas de isolamento, usadas tanto para punição disciplinar quanto para segurança de presos. Há dois espaços: um fora do presídio; outro dentro, na quinta galeria. As celas de isolamento externas, em número de 19, encontram-se totalmente fora da lei. São celas escuras, sem ventilação, onde presos são amontoados e esquecidos. O cheiro é horrível. Os presos nesse isolamento não saem para o pátio, embora exista uma área reservada, totalmente gradeada e coberta por tela, onde seria perfeitamente possível oportunizar o acesso deles à ensolação e à atividade física. Em visita às galerias, os deputados Marcos Rolim e Dr. Rosinha solicitaram a oportunidade de conversar com os presos em um dos pátios internos. Dispensaram a presença dos agentes e mantiveram com os internos uma conversa reservada, sem qualquer problema de segurança. Identificaram casos de presos condenados com base no artigo 16 do Código Penal (consumo de drogas ilícitas); constataram que os preços praticados na cantina do presídio são maiores que no mercado e receberam a principal demanda que é a garantia dos benefícios assegurados por lei, especialmente progressão de regime e livramento condicional. As celas de isolamento internas são ainda piores, com a diferença que abrigam, como regra, apenas um detento. Todas as portas das celas nesse presídio são compactas, com uma pequena janela retangular que permanece fechada e só pode ser aberta por fora. Na galeria 5 há um grande número de celas utilizadas para o isolamento. Conversamos com todos os presos que ali estavam. Graças a esse procedimento, descobrimos o detento de nome Valdir José Chamoskovisk, conhecido no presídio por "general". Quando o Deputado Marcos Rolim se dirigiu a ele perguntando-lhe a quanto tempo estava ali, não acreditou no que ouviu. "General" lhe contou que estava naquela cela de isolamento há 5 anos e que, nesse período, nunca tinha tomado um banho de sol. Em uma ou outra oportunidade havia sido retirado dali para ser levado ao médico e mais nada. O presidente da Comissão de Direitos Humanos da Câmara solicitou, então, aos agentes penitenciários, que abrissem a cela e convidou Valdir José a caminhar com ele pelos corredores. O preso atendeu ao chamado e se dispôs, também, a caminhar com o Deputado em uma área lateral onde funciona uma horta. Durante alguns minutos permaneceu naquela área externa, respondendo as perguntas dos integrantes da Caravana e tão logo pôde, solicitou que fosse conduzido novamente a sua cela. A solicitação expõe 156 a gravidade dos problemas de saúde mental enfrentados pelo preso, problemas originados ou agravados pelo longo tempo de isolamento. Perguntado sobre se sabia quem era o Presidente da República, respondeu que deveria se João Batista Figueiredo. Valdir José está preso há 18 anos. Foi condenado por vários assaltos e pela morte de um general, durante um arrombamento, nos anos 70. Por conta disso, ganhou o apelido pelo qual é conhecido na cadeia. Foi sentenciado a mais de 70 anos de prisão. Checando essas informações com os registros do presídio, descobrimos que Valdir José enganara-se quando afirmara estar há 5 anos naquela cela de isolamento. Na verdade, ele encontrava-se lá há 7 anos (!) Nesse período nunca recebeu uma visita. Em sua cela não há rádio ou TV. Ele foi simplesmente esquecido. Não é o único caso. Mantivemos contato com outro preso, com problemas evidentes de saúde mental, que encontra-se há 3 anos dentro de sua cela de isolamento; outro a um ano e meio. Seguramente há outros casos que não tomamos conhecimento. No Presídio Central de Piraquara é assim. Aqui as pessoas são esquecidas. Ficha Técnica: Presídio Central de Piraquara f: 673.2663 Diretor - Cezinando Paredes Capacidade - 550 Lotação - 1.450 Revista íntima - Sim Violação do sigilo de correspondência - Sim Trabalho prisional - Precário Atenção à saúde - Precária Educação dos presos - Não Assistência jurídica - Inexistente 157 Acesso ao pátio - Sim Visitas - Sim Visita íntima - Sim Comida - razoável Estrutura dupla de alimentação para os funcionários - Sim Acesso aos meios de comunicação - Sim Celas de isolamento - Sim Denúncias de espancamento - Não Denúncias de corrupção - Sim Armas no interior do presídio - Não DELEGACIA DE FURTOS E ROUBOS - tortura e corrupção À tarde, estivemos na Delegacia de Furtos e Roubos de Curitiba, onde encontramos 96 presos apinhados na carceragem. Cerca de 50% deles condenados. Fomos recebidos pela Delegada Adjunta Márcia R.V. Marcondes Braga, que nos franqueou o acesso às dependências da Delegacia. A carceragem é divida em alas que não se comunicam entre si e que encontram-se para além de portas compactas. Verifica-se aqui a estrutura já referida tipo "cofre", com celas dentro de celas. Dentro de cada galeria há uma câmera que monitora os presos em circuito fechado de televisão, 24 horas por dia. O equipamento é de propriedade de um Delegado e foi cedido por ele. As celas são fechadas com parafusos. Um incêndio aqui e todos os presos serão carbonizados antes que alguém consiga abrir a porta que dá acesso à galeria. É curioso o contraste: nos quadrantes das galerias uma câmera de TV; nas celas, parafusos. É que se trata de pensar "primeiro na segurança", afirmou a Delegada. Sim, pelo que descobre-se que a segurança dos seres humanos sob sua guarda e tutela não conta para o seu conceito de "segurança". 158 Por óbvio, não cabe à Polícia Civil cuidar de presos; nem se admite que policiais se transformem em carcereiros. A responsabilidade pela presença desses presos aqui, em condições sub-humanas, é inteiramente do governo estadual e não da polícia. OOs Os presos não saem ao pátio porque não há pátio na delegacia. A única possibilidade que possuem para se exercitar é dentro da própria galeria - nos quadrantes - quando suas celas são abertas, o que nunca ocorre aos finais de semana. Passam, então, a maior parte do tempo trancados, dividindo espaços minúsculos para que possam dormir no chão, onde der. A comida que recebem é de péssima qualidade e, muitas vezes, é servida já deteriorada. Os presos recebem visitas, eventualmente, mas não podem sequer tocá-las. Há dois pequenos parlatórios onde os presos podem se entrevistar por alguns minutos com suas esposas ou filhos, através de uma tela. Vários deles denunciaram que tem acesso aos familiares aqueles presos que pagam para tanto. Segundo seu relato, outros procedimentos ou compras por eles solicitadas são encaminhadas pelos policiais civis mediante ágio. Denunciaram também casos reiterados de espancamento e emprego de pau-de-arara no banheiro da carceragem. Segundo o relato feito por vários presos, há, no banheiro, um buraco na parede por onde seria introduzida uma barra de ferro que, apoiada em um cavalete, permite a suspensão de uma pessoa. Assim, vários presos teriam sido torturados. O Deputado Marcos Rolim foi ao local indicado pelos presos e constatou a existência do buraco. Perguntou à Delegada qual sua serventia. Ela respondeu que, provavelmente, tratava-se de uma abertura para a introdução de uma mangueira. Rolim demonstrou à Delegada, que havia vestígios de ferro na abertura e que mangueiras são feitas de borracha. A Delegada afirmou, então, que iria mandar fechar o buraco. As visitas às Delegacias que fizemos na Caravana, infelizmente e para o constrangimento dos bons policiais, ressaltaram aquelas que parecem ser duas características em processo de afirmação na Polícia Civil no Brasil atualmente: a covardia e a desonestidade. RECOMENDAÇÕES I - Ao Governo Federal: a) Que o Ministério da Justiça elabore um elenco de GARANTIAS E REGRAS MÍNIMAS PARA A VIDA PRISIONAL condicionando a liberação aos 159 estados de recursos do Fundo Penitenciário Nacional e do Fundo Nacional de Segurança Pública à estrita observância dos seus ítens. b) Que estas GARANTIAS E REGRAS MÍNIMAS contemplem: -1) Fim imediato da prática das "revistas íntimas" sobre os familiares, compreendida como tal toda e qualquer exigência de desnudamento. -2) Fim imediato da prática de violação do sigilo de correspondência dos internos e condenados. b -3) Garantia da visita conjugal para toda a população carcerária, homens e mulheres, sem qualquer exclusão e sem exigências burocráticas destinadas a comprovação de relação estável. b -4) Interdição de todas as celas escuras e sem ventilação. b-5) Proibição do uso de celas com vedação acústica, também conhecidas como "cofre" (celas dentro de uma cela) e de lacre de celas com parafusos. b-6) Apresentação de cronograma para a tranferência de todos os presos condenados que estejam cumprindo pena em carceragens de delegacias policiais. b -7) Fim de todas as estruturas duplas de cozinha ou de diferença de alimentação oferecida pelo Estado a presos e funcionários. b -8) Proibição do uso de qualquer tipo de armamento por parte de funcionários ou policiais no interior dos estabelecimentos prisionais. b -9) Garantia de acesso ao pátio externo para exercício e banho de sol a todos os presos por pelo menos uma hora ao dia. b-10) Apresentação de cronograma para a garantia de assistência jurídica aos internos e condenados, na razão de, pelo menos, um advogado ou defensor público para cada 200 presos. C) Que parte das verbas do Fundo Nacional de Segurança Pública possam ser empregadas pelos estados na construção de estabelecimentos penais para cumprimento de condenações em regime fechado e semi-aberto - para a 160 construção das Casas do Egresso previstas pela LEP e para a reforma penitenciária. D) Que o Ministério da Justiça desenvolva um programa específico para um mutirão nacional de atualização dos processos de execução penal envolvendo os governos estaduais, o Poder Judiciário em cada um dos estados, o Ministério Público, as Defensorias e as Universidades. E) Que o Ministério da Saúde, através da Vigilância Sanitária, determine a realização de inspeções em todas as penitenciárias brasileiras. II - Ao Congresso Nacional A) Que a reforma do Código Penal seja incluída na agenda das prioridades das duas Casas legislativas e que se assegure o mais amplo envolvimento da sociedade civil em toda a tramitação dos projetos que tratam do tema. B) Que os projetos de lei em tramitação que tratam da reforma da Lei de Execução Penal sejam apreciados com urgência. C) Que na parte especial do Código Penal seja introduzida uma alteração no artigo 12 que tipifica o crime de tráfico de drogas estabelecendo-se penas diferenciadas de acordo com o tipo e quantidade de droga apreendida. D) Que o consumo de drogas não seja considerado, em qualquer hipótese, ilícito penal. E) Que se alargue, tanto quanto possível, a possibilidade de aplicação das penas alternativas à prisão. F) Que não se aprove qualquer proposição legislativa tendente a agravar as exigências objetivas e/ou subjetivas para a progressão de regime prisional. III - Ao Poder Judiciário: A) Que os Tribunais de Justiça Estaduais, os Juizes das Varas de Execução Criminal e os membros do Ministério Público nos estados uniformizem o 161 entendimento favorável à remição de pena por dias de estudo, a exemplo do que já ocorre em alguns estados como o RS e o PR. B) Que os Tribunais de Justiça Estaduais, os Juizes das Varas de Execução Criminal e os membros do Ministério Público nos estados uniformizem o entendimento favorável à concessão de remição ficta quando o Estado, de forma omissiva, não oferecer oportunidades de trabalho prisional. C) Que os Juízes das Varas de Execução Criminal realizem inspeções nos estabelecimentos prisionais sob sua jurisdição, sem prévio aviso, pelo menos uma vez por mês, nos termos da LEP. D) Que os Juizes das Varas de Execução Criminal assegurem a instalação e o bom funcionamento dos Conselhos da Comunidade nos termos da LEP. E) Que os Tribunais de Justiça dos estados coordenem programas específicos voltados à promoção das penas alternativas à prisão. F) Que os Tribunais Regionais Eleitorais assegurem as providências administrativas necessárias à garantia do direito de voto dos presos provisórios. IV - Aos Governos Estaduais: A) Que os governos estaduais assegurem o fim da "reserva de mercado" para as funções de direção de estabelecimentos prisionais aos funcionários de carreira. B) Que os governos estaduais assegurem a criação de mecanismos de controle público sobre os estabelecimentos prisionais, credeciando representantes da sociedade civil e de ONGs comprometidas com a luta pelos Direitos Humanos para tarefas rotineiras de inspeção e acesso a qualquer dependência prisional sem prévio aviso. Que seja assegurado a esses representantes a oportunidade de contatos reservados com internos e condenados. C) Que os governos estaduais elaborem programas específicos para a qualificação de agentes penitenciários, com ênfase para a formação em Direitos Humanos. 162 D) Que os governos estaduais implementem uma política salarial e um plano de carreira que valorizem a função pública desempenhada pelos agentes penitenciários. E) Que os governos estaduais introduzam em todos os estabelecimentos prisionais detectores de metais para a revista sobre os visitantes e funcionários. F) Que os governos estaduais desenvolvam projetos específicos de prevenção em DST-AIDS no interior dos estabelecimentos prisionais. G) Que os governos estaduais elaborem projeto específico para a educação prisional visando, prioritariamente, a alfabetização de internos e condenados. H) Que os governos estaduais introduzam em suas propostas orçamentárias destinação própria para a construção de Hospitais Penitenciários ou para a reforma e aparelhamento dos já existentes. I) Que os governos estaduais introduzam em suas propostas orçamentárias destinação própria para a construção da Casa do Egresso. V - Às Assembléias Legislativas a) Que as Assembléias Legislativas assegurem no âmbito das Comissões Parlamentares de Direitos Humanos a formação de grupos especiais de trabalho ou subcomissões destinadas a acompanhar a vida prisional, receber denúncias e realizar inspeções. b) Que sejam elaborados projetos legislativos voltados à definição de regras e procedimentos básicos a serem observados pelas administrações prisionais com ênfase nas garantias necessárias ao exercício da cidadania de internos e condenados. Que as definições complementares à LEP - faltas leves e médias, sobre segurança prisional e normas disciplinares internas - sejam definidas por lei estadual e não por atos administrativos. OBSERVAÇÕES METODOLÓGICAS 163 O critério de seleção dos estados a serem visitados atenderam a três requisitoss básicos: 1) gravidade dos problemas enfrentados; 2) distribuição regional das realidades prisionais e 3) busca de modelos diferenciados de execução penal. Por certo, que um levantamento mais amplo se faz necessário. A região norte e centro-oeste, por exemplo, não foram visitadas. A amostragem que apresentamos, não obstante, é muito significativa. Nas 17 instituições que visitamos, entre penitenciárias e delegacias de 6 estados brasileiros, estão mais de 15 mil presos. As visitas foram feitas, todas, sem prévio aviso. Adotamos o procedimento de definir os locais a serem visitados alguns minutos antes do deslocamento de forma que se evitasse, inclusive, a possibilidade de vazamento de informações. Em nossas inspeções, realizamos um levantamento tão abrangente quanto possível seguindo a aplicação de um roteiro básico de informações a serem recolhidas (cópia em anexo). Em geral, os presídios não dispõe de dados relevantes e levantamentos estatísticos sobre as condições de execução das penas e sobre o perfil dos detentos, o que dificultou enormemente o trabalho. Via de regra, mantínhamos um contato, logo na chegada ao estabelecimento, com alguém responsável pela direção colhendo as primeiras informações. Ato contínuo, iniciávamos a inspeção privilegiando as celas de isolamento. Todas as instalações dos presídios foram inspecionadas. Os contatos com os presos foram feitos de forma a se preservar o caráter reservado das conversas. Com exceção do Presídio Aníbal Bruno em PE e do Instituto Penal Paulo Sarasate no CE, nos foi possível, sempre, recolher informações sem qualquer constrangimento. A Caravana foi documentada fotograficamente e uma parte desse material é aqui anexada. Em cada Estado, a Caravana era composta, além dos deputados e assessoria, por integrantes da Pastoral Carcerária, por ONGs de Direitos Humanos , por integrantes do Ministério Público e por representações das comissões parlamentares de Direitos Humanos das Assembléias Legislativas. 164 Ao final de cada visita, retomávamos os contatos com a direção dos estabelecimentos procurando resolver problemas urgentes detectados e solicitando providências para os casos mais graves identificados. Em alguns presídios, nossas solicitações foram imediatamente atendidas; em outros, não obtivemos qualquer resposta positiva. Questionário Básico Estabelecimento prisional-____________________________________ Estado-____ Cidade- ________________________________________ Endereço- _________________________________________________ Telefone- _________________________________________________ Diretor (a) -________________________________________________ Data da visita - __________ Duração __________________ Dados Gerais: Número de internos - ___________ Lotação Máxima -____________ Homens - _____ Mulheres - __________ regime fechado - _______ regime semi-aberto - __________ Há alojamentos para presos em semi-aberto? ______ Média de presos por cela - _____ Há adolescentes presos? _____ Em caso positivo, quantos? ___ Há doentes mentais presos? _____ Em caso positivo, quantos? ____ Número de funcionários lotados no estabelecimento- _____ Perfil dos detentos: Condenados por homicídio _____ Condenados por latrocínio______ 165 Condenados por roubo _____ Condenados por furto ______ Condenados por tráfico _____ Condenados por consumo de drogas _____ Condenados por estupro ___ Condenados por atent. viol. ao pudor _____ Condenados por crimes do colarinho branco ____ Outras condenações _____ Idade média dos internos ______ Escolarização: analfabetos ____ primária ____ secundária ____ superior ____ Etnia: brancos ___ negros ____ pardos/mulatos ____ índios ___ outros ___ Reincidência criminal _______ Ocorrências relevantes: Há histórico de motins? ___ Em caso positivo, quantos em 12 meses? ____ Há histórico de fugas? ____ Em caso positivo, quantas em 12 meses? ____ Morbidade no presídio - presos mortos nos últimos 12 meses ___ funcionários mortos nos últimos 12 meses ___ desse total, quantas mortes violentas? ____ Há denúncias de maus tratos? ____ tipo ___________________________________________________________________ ___________________________________________________________________ 166 ___________________________________________________________________ ___________________________________________ Há casos de tortura? ___________________________________________________________________ tipo________________________________________________________________ ___________________________________________________________________ ___________________________________________________________________ ___________________________________________________________________ Há denúncias de corrupção? ___________________________________________________________________ tipo________________________________________________________________ ___________________________________________________________________ ___________________________________________________________________ ___________________________________________________________________ O estabelecimento possui regras disciplinares impressas? ___ O material é distribuído aos detentos ? ____ O estebelecimento possui cartilha com instruções e/normas para os visitantes? ____ O material é distribuídio aos visitantes?____ solicitar cópia. Dados dobre visitação: Dias de visitação ____________________________ horários ___________________ Quem pode visitar os presos _________________________ Há visita íntima (para contato sexual) _______ Em caso positivo, frequência _____ duração ______ 167 Critérios para que os presos habilitem-se à revista íntima ___________ Admite-se visita íntima homossexual? _______ As visitas são revistadas? _____ Há desnudamento nas revistas? _____ Adolescentes e crianças são revistados? _____ Há desnudamento de criançcas e adolescentes? ____ Utiliza-se detector de metais nas revistas? _____ Número de funcionários utilizados para revista por dia de visitação___ Os funcionários são revistados? ____ advogados, juizes, promotores e/ou autoridades são revistados? ____ Em caso positivo, qual o procedimento adotado? ____ Dados sobre trabalho prisional: Quantos presos trabalham? ____ Há convêniuos com empresas para trabalho em regime fechado? ___ tipo-_________________ Os presos recebem pelo trabalho? _____ quanto por mês ____ Há oficinas de profissionalização? tipo- ________________ Quantos presos participam dessas oficinas? ______ Principais queixas dos presos: ___________________________________________________________ ___________________________________________________________________ ___________________________________________________________________ ___________________________________________________________________ 168 ___________________________________________________________________ ___________________________________________________________________ ___________________________________________________________________ Dados sobre educação prisional: Há aulas regulares no presídio? ___ Quantos presos estudam? ____ Os dias de estudo contam para efeito de remição? ____ Principais queixas dos presos: ___________________________________________________________ ___________________________________________________________________ ___________________________________________________________________ ___________________________________________________ Dados sobre a saúde prisional? Há médicos trabalhando no estabelecimento? ___ Em caso positivo, quantos? _____ Carga horária ____ Há dentistas trabalhando no estabelecimento? ___ Em caso positivo, quantos? ____ Carga horária____ O atendimento dentário oprtuniza: extrações ___ restaurações _____ ortodontia ____ Situação dos medicamentos disponíveis: inexistente ___ precária ___ razoável____ boa _____ ótima ____ Há programa de prevenção a DST-AIDS ? _____ Os presos recebem preservativos? ____ 169 Os soropositivos recebem medicação e tratamento adequados? ____ Principais queixas dos presos: ___________________________________________________________ ___________________________________________________________________ ___________________________________________________________________ ___________________________________________________________________ Dados sobre alimentação: Há nutricionista trabalhando no presídio? ______ A comida é feita no estabelecimento? ____ É terceirizada? ____ Há refeitório para presos? _____ Há refeitório para funcionários? ____ A comida servida aos presos é a mesma dos funcionários? ____ Principais queixas dos presos ___________________________________________________________ ___________________________________________________________________ ___________________________________________________________________ ___________________________________________________________________ Dados sobre execução penal: Nome do (a) Juiz (a) da VEC _____________________________ Nome do Promotor (a) da VEC _____________________________ O juiz titular da VEC visita regularmente o presídio? _______ Quantas vezes nos últimos 12 meses? ___ Concede audiências aos presos em suas visitas? _____ O presídio oferece assessoria jurídica aos presos? ___ Há defensor (a) público atuando no presídio? ___ Quantos? ___ 170 Há convênio com Universidade para assessoria jurídica? ___ Há convênio com Universidade para assistência à saúde? ___ Os funcionários do presídio são: ( ) agentes penitenciários ( ) policiais civis ( ) policiais militares Grau de escolaridade exigido dos funcionários __________ Percentual de funcionários com inst. superior completa _________ Salário médio dos funcionários _______ Dados sobre estrututra prisional: As celas obedecem ao padrão legal? _____ Ospresos possuem horário regular para movimentação em área adequada? ____ Há biblioteca? _____ Em caso positivo, qual sua situação? ____ Os presos possuem acesso aos meios de comunicação? ____ Em caso positivo, admitie-se puni-los subtraindo esse acesso? ___ Há cantina operando dentro do estabelecimento? ____ Os preços praticados na cantina são superiores aos de mercado? ____ As correspondências dos presos são violadas? _____ Admite-se que funcionários portem armas dentro do presídio? ___ Há depósito de armas/munições dentro do presídio? ____ Quem faz a guarda externa do presídio? ____ Que tipo de armamento utiliza? _____ Há algum tipo de mecanismo interno de representação prisional? ___ Observações gerais: 171 ___________________________________________________________ ___________________________________________________________________ ___________________________________________________________________ ___________________________________________________________________ ___________________________________________________________________ ___________________________________________________________________ ___________________________ AGRADECIMENTOS Deputado Michel Temer Presidente da Câmara dos Deputados Cristina de Fátima Nunes Queiroz- Chefe de Gabinete da Presidência da Câmara dos Deputados Jucélio Roberto dos Santos- Apoio Administrativo da Diretoria Geral da Câmara dos Deputados José Messias Castro Silva - assessor do Serviço de Administração do Depto. De Comissões da Câmara dos Deputados Ivone Duarte, Janete Lemos e Marilda Campolina — Assessoras da Comissão de Direitos Humanos da Câmara Ana Beatriz Magno - enviada especial à Caravana pelo Correio Brasiliense Clarissa Lina - enviada especial à Caravana pela Gazeta do Povo-PR Pe.Bernardino Avelar Azamendia- Coordenador Nacional da Pastoral Carcerária Daniela Cecília Silva - Coordenação da Pastoral Carcerária do Estado de São Paulo 172 Armando Tambelli - Coordenação da Pastoral Carcerária do Estado de São Paulo Pe. Bruno Trombeta Pastoral Carcerária do Rio de Janeiro Pe. Marcos Passerini- Pastoral Cacerária do Ceará Dr. Luiz Lima - Pastoral Carcerária do Paraná Lenilson - Pastoral Carcerária de Pernambuco Ariel de Castro- Justiça Global Sandra de Carvalho- Assessora da Comissão de Direitos Humanos da Assembléia Legislativa do Estado de São Paulo Isabel Peres - Ação Cristã pela Abolição da Tortura Dra. Esther Correia Ministério Público do Estado de Pernambuco Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro Ministério Público do Estado de São Paulo Ministério Público do Estado do Paraná Ministério Público do Estado do Rio Grande do Sul Comissão de Direitos Humanos da AL do Ceará Comissão de Direitos Humanos da AL de Pernambuco Comissão de Direitos Humanos da AL do Rio Grande do Sul.
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