Revista Ciências Humanas.

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Revista Ciências Humanas.
ISSN: 1984-2864
ESTÁCIO DE SÁ
CIÊNCIAS HUMANAS
REVISTA DA FACULDADE ESTÁCIO DE SÁ DE GOÂNIA
SESES - GO
VOL. 02, N. 10, FEV./JUL. 2014
FICHA CATALOGRÁFICA DA REVISTA
DADOS INTERNACIONAIS DE CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO (CPI)
FACULDADE DE GOIÁS
CATALOGAÇÃO NA FONTE / BIBLIOTECA FAGO
JAQUELINE R. YOSHIDA – BIBLIOTECÁRIA – CRB 1901
LOPES, Edmar Aparecido de Barra e (org.).
Revista de Ciências Humanas da Faculdade Estácio de Sá de Goiás-FESGO. Goiânia, GO,
v. 02, nº 10, Fev./Jan. 2014.
ISSN 1984-2864
Nota: Revista da Faculdade Estácio de Sá de Goiás – FESGO.
I. Ciências Humanas. II. Título: Revista de Ciências Humanas. III. Publicações Científicas.
CDD 300
ESTÁCIO DE SÁ
CIÊNCIAS HUMANAS
FACULDADE ESTÁCIO DE SÁ GOIÁS – FESGO
VOLUME 02, n. 10, Fev. / Jan. 2014
PERIODICIDADE: SEMESTRAL
ISSN: 1984-2864
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SUMÁRIO
ARTIGOS
08-15
A PRECARIZAÇÃO DAS CONDIÇÕES E RELAÇÕES DE TRABALHO
DOCENTE NAS IES E O CRESCIMENTO DE VELHAS E NOVAS
FORMAS DE MAL-ESTAR, SOFRIMENTO E ADOECIMENTO EM
AMBIENTE DE TRABALHO
EDMAR APARECIDO DE BARRA E LOPES
16-24
25-35
AS HISTÓRIAS EM QUADRINHOS COMO FORMA DE ARTE
NILDO VIANA
REESTRUTURAÇÃO PRODUTIVA E TRABALHO:
O MITO DA FLEXIBILIZAÇÃO
FELIPE MATEUS DE ALMEIDA
DOSSIÊ
37-50
A GÊNESE SOCIAL DO NATURALISMO BRASILEIRO
EINSTEIN AUGUSTO DA SILVA
NILDO VIANA
RENATO DIAS DE SOUZA
51-65
MUNDO MODERNO: LUGAR DE RUPTURA E ESFACELAMENTO –
APROXIMAÇÕES ENTRE SIMMEL E NELSON RODRIGUES
ROSANO FREIRE
66-81
AS IDEIAS DE MACHADO DE ASSIS E O PROJETO DE LITERATURA
NO BRASIL
MARCELO BRICE ASSIS NORONHA
82-97
GUERRA É PAZ, LIBERDADE É ESCRAVIDÃO, IGNORÂNCIA É
FORÇA: UMA ANÁLISE CRÍTICA DA OBRA DE GEORGE ORWELL 1984
VERÔNICA MARTINS MOREIRA
98-108
OS CONTOS E A SOCIOLOGIA – A CONTRIBUIÇÃO DE MACHADO
DE ASSIS PARA UMA COMPREENSÃO DO CONTEXTO SOCIALHISTÓRICO DO BRASILEIRO
ANA CECÍLIA SOARES CARVALHO
DANILO CORREIA DA SILVA SANTANA
109-121
OS MOVIMENTOS DA CÂMERA DE PAULO PRADO PARA A
FORMAÇÃO DO RETRATO DO BRASIL
LUCIÉLE BERNARDI DE SOUZA
122-134
A OBRA SENHORA DE JOSÉ DE ALENCAR E SEUS ASPECTOS DE
VEROSSIMILHANÇA NAS VESTIMENTAS
SHIRLEY ELIAS VILELA
135-145
ALFRED SCHÜTZ E A SOCIOLOGIA DA ARTE E DA LITERATURA
FRANCISCO CHAGAS E. RABELO
DENISE MASCARENHAS
_________________________
ARTIGOS
8 LOPES, Edmar Aparecido de Barra e. A precarização das condições e relações de trabalho docente nas
IES e o crescimento de velhas e novas formas de mal-estar, sofrimento e adoecimento em ambiente de
trabalho. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Revista da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES-Go. Vol.
02, nº 10, 08-15, Fev./Jul. 2014.
A PRECARIZAÇÃO DAS CONDIÇÕES E RELAÇÕES DE TRABALHO DOCENTE NAS
IES E O CRESCIMENTO DE VELHAS E NOVAS FORMAS DE MAL-ESTAR,
SOFRIMENTO E ADOECIMENTO EM AMBIENTE DE TRABALHO
Edmar Aparecido de Barra e Lopes1
RESUMO
ABSTRACT
As mudanças no mundo do trabalho, ocorridas sob a
reestruturacão produtiva sistêmica no pós década de
1990, afinadas com a consolidação do Estado
Neoliberal,
implicaram
numa
expressiva
reconfiguração das tradicionais formas de
organização e gestão do trabalho docente nas
Instituiçōes
de
Ensino
Superior
IES
(particularmente as publicas) no país e que - de
forma geral - podem ser expressas através de um
amplo conjunto de processos que tem como
denominador comum: o aprofundamento da
precarização das relações e condições de trabalho de
professores e professores nestas IES. Neste sentido,
o artigo ora proposto procura refletir sobre o modo
como o referido novo modelo de gestão e
organização do trabalho docente (homens e
mulheres), neste novo contexto histórico, resultante
da flexibilização e reestruturação organizacional
pós-fordista, reforça e aprofunda determinantemente
as incertezas e o medo difuso entre estes sujeitos,
configurando um ambiente de trabalho favorável ao
crescimento de tradicionais e novas formas de
experiências
de
mal-estar,
sofrimento
e
adoecimento.
The changes in the working world, occurred in the
systemic production restructuring in the post 1990s,
attuned to the consolidation of the liberal State,
resulted in a significant reconfiguration of traditional
forms of organization and management of teaching
in higher education institutions - HEIs (particularly
the public) in the country and - in general - can be
expressed through a broad set of processes whose
common denominator: the deepening of relations
and precarious working conditions of teachers and
teachers in these HEIs. In this sense, the article now
proposed a reflection on the way that new
management model and the teaching environment
(men and women), this new historical context,
resulting from the flexibility and post-Fordist
organizational restructuring, strengthened and
deepened decisively the uncertainties and diffuse
fear among these subjects, setting a work
environment conducive to the growth of traditional
and new forms of malaise experiences, suffering and
illness.
Palavras-chave: flexibilização;
superior; docência; adoecimento.
1
gestão;
Keywords:
fexibility;
management;
education; teaching; illness.
higher
ensino
Pós Doutor em Ciências Políticas pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP-SP). Doutor em Ciências
Sociais pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP-SP). Mestre em História Social pela Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP).
9 LOPES, Edmar Aparecido de Barra e. A precarização das condições e relações de trabalho docente nas
IES e o crescimento de velhas e novas formas de mal-estar, sofrimento e adoecimento em ambiente de
trabalho. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Revista da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES-Go. Vol.
02, nº 10, 08-15, Fev./Jul. 2014.
A partir do início da década de 1970 um conjunto de mudanças: econômicas e políticas,
sociais e tecnológicas, culturais e etc., tem marcado cada vez mais intensamente, embora de forma
desigual e combinada, o desenvolvimento de um novo modelo de globalização que se convencionou
chamar de neoliberal.
No Brasil, estas mudanças decorrentes da implantação do chamado estado neoliberal, se
consolidaram, sobretudo, a partir do final dos anos de 1980 e início dos anos de 1990, com os
processos de precarização e flexibilização, informalização e des-regulamentação da economia.
As mudanças no mercado de trabalho no Brasil, neste contexto, orientado pela
globalização neoliberal e reestruturação produtiva, implicaram em fortes mudanças em âmbito
nacional. Neste sentido, Antunes (1999, p. 35), ressalta que:
O entendimento dos elementos constitutivos dessa crise é de grande complexidade já que
no mesmo período ocorreram transformações intensas (econômicas, sociais, políticas,
culturais, ideológicas) com fortes repercussões na constituição da classe-que-vive-dotrabalho.
Um olhar sobre a literatura especializada permite-nos perceber que, particularmente a
partir dos anos 90, um intenso processo de reestruturação técnica, organizacional e patrimonial tem
reorientado no país a rota da indústria moderna local em direção a ajustes que cortaram empregos e
benefícios em seu cerne, subvertendo regras de negociação de interesses, inclusive direitos
constituídos.
Nesse processo, os empregos escassearam em um movimento depredador também dos
postos protegidos de trabalho. Autores têm denominado a esse conjunto de mudanças pelo
qualificativo de “reestruturação sistêmica”2 (Fleury, 1990; Cardoso, Caruso e Castro, 1997; Comin e
Guimarães, 2002; Guimarães, 2004).
A mudança do paradigma de emprego (fordista) implicou na desregulamentação e
deterioração brutal das condições de vida da “classe que vive do trabalho”, um dos principais
denominadores comuns dos híbridos regimes de produção pós-fordista. De outro modo, o novo
paradigma de produção em curso tem transformado, de forma diversa, vários elos das cadeias
produtivas e, nestes, o perfil e as atividades de distintos grupos de trabalhadores (Leite, 1997; Rizek
e Leite, 1998; Abreu et. al., 1998).
2
Esses autores se referem ao caráter sistêmico da reestruturação que ocorre nos anos 90 como forma de distingui-la das
mudanças que tiveram lugar nos anos 80. Assim, estas teriam um caráter mais conservador e circunscrito, uma face de
simples atualização tecnológica, sendo, por isso mesmo, apenas potencialmente disruptivas, enquanto aquelas
importaram em intensa reestruturação tecnológica e organizacional.
10 LOPES, Edmar Aparecido de Barra e. A precarização das condições e relações de trabalho docente nas
IES e o crescimento de velhas e novas formas de mal-estar, sofrimento e adoecimento em ambiente de
trabalho. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Revista da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES-Go. Vol.
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Assim, nos anos 70 e, sobretudo, a partir dos 80 e 90, com a incorporação maciça de
novas tecnologias aos processos produtivos, operou-se uma mudança na correlação de forças entre
as classes sociais (Ferrer, 1998). Essas transformações no mundo do trabalho, analisadas por
Antunes (1997), Nunes e Sorria (1996) como crise do fordismo, resultam na consolidação de novas
tendências no mundo do trabalho, caracterizadas por processos de redução do número de
trabalhadores industriais tradicionais, aumento da terceirização, heterogeneização crescente com a
ampliação do número de mulheres operárias e subproletarização, caracterizada pelas novas
modalidades contratuais que implicam em empregos precários e em tempo parcial.
De modo geral, a literatura especializada tem apontado para o fato de que as
transformações na esfera produtiva têm afetado a composição da força de trabalho, a organização
dos requisitos empregatícios e a especialização, o volume de emprego, bem como as políticas de
gerenciamento para remuneração, rotatividade e relações e condições de trabalho (Dupas, 2000;
Carvalho, 2007; Abramo, 1988; Gitahy, 1994-a e 1994-b; Leite, 1994; Bresciani, 1997; Lombardi,
1997; Carrion, 1997; Carrion e Garay, 1997; Castro, 1998). A reestruturação produtiva impactou a
dinâmica do mercado de trabalho e, por conseguinte, o cotidiano de vida da “classe que vive do
trabalho”, em geral. Particularmente, o “trabalho protegido” (Guimarães, 2004).
Estes fenômenos que fazem parte da mudança do paradigma do emprego no Brasil na
pós-abertura dos anos 90, caracterizam um contexto marcado por mudanças orientadas pelo novo
modelo de Estado em tela, no qual constata-se também um conjunto de processos que transformam
progressivamente as instituições de ensino superior no país.
Nos referimos, de modo geral, ao: a) crescimento quantitativo do ensino superior no
país (orientado por uma dimensão claramente mercadológica); b) ao novos desafios qualitativos
colocados por este crescimento; c) ao crescente processo de hibridização e heterogeneização dos
princípios e processos de gestão de IES públicas e privadas. (Lopes, 2013; Severino, 2014;
Severino, 2006; Catani e Oliveira; Oliveira, 2000; Silva Jr. e Sguissard, 2001).
Este conjunto de mudanças em tela, tem implicado num processo de reconfiguração
administrativa, institucional e organizacional das IES (em ambas as esferas, ou seja, privada e
pública) e em desfavor dos docentes, que vivenciam várias formas de consequências negativas - em
seus respectivos cotidianos de trabalho - associadas a tais mudanças, algumas tradicionais e
reforçadas no contexto atual e outras emergentes.
Neste quadro, denominado de crise do mundo trabalho, em especial a crise do trabalho
docente nas IES publicas, se manifesta em varias dimensões, tais como no que diz respeito: 1) a
organização dos trabalhadores; 2) a des-regulamentação das relações de trabalho (especialmente
11 LOPES, Edmar Aparecido de Barra e. A precarização das condições e relações de trabalho docente nas
IES e o crescimento de velhas e novas formas de mal-estar, sofrimento e adoecimento em ambiente de
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marcada por perdas de direitos trabalhistas, historicamente conquistados); 3) a crise do movimento
sindical clássico representativo dos mesmos; 4) a precarização das relações e condições de trabalho
e, particularmente; 5) crescimento quantitativo de velhas e novas modalidades de sofrimento e
adoecimento em ambiente de trabalho; etc.
Estas transformações implicaram em novos desafios e consequências para a saúde dos
trabalhadores/as em geral e, em particular, dos/as docentes em das referidas instituições. De outro
modo, novas relações sociais de trabalho se estabelecem neste novo contexto histórico, diretamente
caracterizado pelo gerencialismo pós-fordista e pelo produtivismo, acadêmicos. Trata-se de um
contexto fortemente marcado: pelas incertezas e imediatismo, por valores e relações liquidas, pelo
individualismo extremado e fragmentação do cotidiano de trabalho, pelo isolamento e sentimento
de medo generalizado (Bauman, 2001). Entre outras mudanças que constituem o pano de fundo de
processos e experiências de mal-estar/sofrimento e adoecimento dos docentes em tela.
Neste momento histórico, assim caracterizado, as ameaças vem de todos os lados, do
mundo externo e do nosso próprio corpo e tendemos a nos tornar vulneráveis. Neste quadro, a saúde
dos docentes em questão (considerando especialmente suas diferenças de gênero), dá sinais de crise
e pede socorro. Contribui, para tanto, especialmente as novas condições e relações sociais de
trabalho no cotidiano docente e os novos paradigmas de gestão do mesmo, sob o Estado Neoliberal.
Em virtude destas, tem ocorrido diversas mudanças no ambiente de trabalho dos docentes (homens
e mulheres) no ensino superior em geral e particularmente, nestas instituições que constituem o foco
desta pesquisa.
Neste novo contexto histórico e de gestão das IES públicas no país, nos chama atenção,
em especial, a precarização das relações e condições de trabalho dos docentes referidos das IES. Tal
processo participa de forma determinante no crescimento de tradicionais e novas formas de malestar, sofrimento e adoecimento de professores e professoras nestas instituições e os modos como
estes experimentam cotidianamente estas.
O referido crescimento de formas de mal-estar, sofrimento e adoecimento, de tais
sujeitos, não é algo novo, mas certamente se constitui em fenômeno histórico intensificado e
reconfigurado pela forma como o gerencialismo acadêmico pós-fordista participa nesse processo
favorecendo: a) a obediência e o conformismo; b) as sempre renovadas tentativas de imposição
burocrático-centralizadoras do medo difuso, através do referido novo paradigma de gestão das IES
públicas no pós década de 1990. E as características sociais e econômicas, políticas e ideológicas,
organizacionais e culturais, deste contexto, nas quais estão inseridos os docentes (homens e
mulheres) das referidas IES e que reforçam e aprofundam as incertezas e o medo difuso entre estes
12 LOPES, Edmar Aparecido de Barra e. A precarização das condições e relações de trabalho docente nas
IES e o crescimento de velhas e novas formas de mal-estar, sofrimento e adoecimento em ambiente de
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sujeitos, contribuindo para o aumento entre estes de tradicionais e novas formas de experiências de
mal-estar/sofrimento e de adoecimento.
Souza (2012), ressalta que já no século XIX, Marx em ‘O Capital’, chamava a atenção
paras as articulações entre: organização capitalista do trabalho, condições de trabalho e saúde do
trabalhador, ao destacar na sua análise da dinâmica da sociedade capitalista que a produção da
mais-valia no sistema capitalista implica em relações sociais de trabalho fundadas, entre outras
coisas: em longas jornadas de trabalho, associadas a baixos salários e ambiente insalubre. Destaca
ainda que, ao apanhar criticamente a lógica do funcionamento do sistema capitalista, através do
materialismo histórico e dialético, Marx também lançou as bases para análises contemporâneas, de
forma igualmente critica, das articulações de tal dinâmica sistêmica (centrada nas condições e
relações sociais de trabalho) com o processo de alienação no mesmo e com o crescimento de formas
de mal-estar, sofrimento e adoecimento (Souza, 2012).
A partir desta autora, ganha centralidade a contribuição de Dejours (1992), que a partir
de pesquisas sobre o adoecimento de trabalhadores sob o taylorismo, ressalta que este através da
administração cientifica do trabalho (separação do trabalho manual em relação ao trabalho
intelectual), fez com que o corpo se tornasse dócil e disciplinado, na medida em que ficou privado
de “seu protetor natural”, o aparelho mental. Assim, segundo o autor, crescem mais e mais as
chances do corpo se tornar doente.
Mesmo autor (Dejours, 1992), que ao procurar compreender
criticamente as causas do mal-estar, sofrimento e adoecimento bem como do crescimento dos
mesmos, em decorrência de condições e relações de trabalho, no capitalismo contemporâneo,
ressalta: 1) o distanciamento do sujeito do processo com o processo como um todo de trabalho; 2) a
fragmentação dos laços de solidariedade entre os trabalhadores; 3) a intensificação das formas de
competição entre os trabalhadores; 4) o crescimento de formas de trabalhado realizadas sem sentido
para o(a) trabalhador(a); 5) a tendência de reconfiguração das formas de organização e gestão das
relações e condições de trabalho.
Nesta linha, (Dejours, 1992; Souza, 2012), podemos considerar que as condições do
trabalho docente nas referidas IES, neste contexto, apesar de avanços na legislação no que tange às
relações entre trabalho docente e saúde, ainda é caracterizada pela predominância de um papel
muito marginal conferido, do ponto de vista da gestão, às relações humanas na organização
cotidiana do ambiente de trabalho destes sujeitos (homens e mulheres) nas IES em questão, o que
tem contribuído não só para causar, mas também agravar as condições estressoras que colocam em
risco a produtividade e a saúde destes trabalhadores/as. Trata-se de um modelo de gestão
13 LOPES, Edmar Aparecido de Barra e. A precarização das condições e relações de trabalho docente nas
IES e o crescimento de velhas e novas formas de mal-estar, sofrimento e adoecimento em ambiente de
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(paradigma da flexibilização produtiva) que se apresenta como uma das principais causas do
crescimento de mal-estar/sofrimento e adoecimento de docentes nestas IES.
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Revista da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES-Go. Vol. 02, nº 10, 16-24, Fev./Jul. 2014.
AS HISTÓRIAS EM QUADRINHOS COMO FORMA DE ARTE
Nildo Viana1
RESUMO
ABSTRACT
O presente artigo aborda as histórias em quadrinhos
como forma de arte. A partir de uma concepção nãoelitista de arte e de uma discussão teórico e
conceitual sobre o significa da arte, entendida como
expressão figurativa da realidade, o autor demonstra
que as histórias em quadrinhos possuem o mesmo
caráter que as demais produções artísticas, o que se
revela em seu universo ficcional, bem como discute
questões derivadas. A conclusão final é a de que as
histórias em quadrinhos são uma forma de arte
específica e que somente numa concepção elitista o
seu caráter artístico seria questionado.
This article discusses the comics as an art form.
From a non-elitist conception of art and a theoretical
and conceptual discussion about the meaning of art,
understood as figurative expression of reality, the
author demonstrates that the comics have the same
character as other artistic productions, which reveals
itself in its fictional universe, as well as discuss
matters arising. The final conclusion is that comics
are a specific form of art and that only an elitist
conception its artistic character would be
questioned.
Keywords: art; comics; art form; fictional universe;
Palavras-chave: arte; histórias em quadrinhos; figurative expression of reality.
forma de arte; universo ficcional; expressão
figurativa da realidade.
A arte é compreendida por muitos como algo “sublime”, como expressão da beleza, da
criatividade, entre outras possibilidades interpretativas. As grandes obras de arte seriam produtos de
gênios, como Mozart, Leonardo Da Vinci, Bertolt Brecht, Balzac, entre outros. Nesse sentido, o que
é considerado “arte” é algo raro, distinto das capacidades comuns ou medianas da maioria dos
indivíduos. Essa concepção revela um caráter elitista e problemático que passa a classificar como
arte apenas algumas manifestações culturais, excluindo outras, seja por sua forma ou pelo seu
conteúdo.
É isso que explica que o cinema e as histórias em quadrinhos foram consideradas, por
muito tempo e isso ainda encontra defensores até hoje, como não sendo arte, bem como também
1
Sociólogo e filósofo; Professor da Faculdade de Ciências Sociais e Programa de Pós-Graduação em Sociologia da
Universidade Federal de Goiás; Doutor em Sociologia pela Universidade de Brasília; Pós-Doutorando em Saúde
Coletiva pela Universidade de São Paulo.
17 VIANA, Nildo. As histórias em quadrinhos como forma de arte. Estácio de Sá – Ciências Humanas.
Revista da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES-Go. Vol. 02, nº 10, 16-24, Fev./Jul. 2014.
elucida a desclassificação como arte de determinadas manifestações musicais (as músicas “bregas”,
por exemplo), entre outros exemplos. O nosso objetivo aqui é justamente apresentar uma concepção
distinta de arte e, por conseguinte, oposta a respeito do caráter das histórias em quadrinhos (e do
cinema), defendendo a tese de que elas são uma forma de arte, o que nos leva a discutir o conceito
de arte e forma de arte, entre outros aspectos, para demonstrar as razões pelas quais defendemos
essa ideia.
Arte e Esfera Artística
O que é a arte? Essa é uma pergunta difícil de ser respondida, sendo que muitos não
conseguiram encontrar uma resposta e alguns tentaram, com maior ou menor sucesso. Não
apresentaremos as diversas concepções de arte existentes, pois isso não seria muito proveitoso.
Apenas destacamos que as representações ilusórias sobre a arte, concebendo-a como algo
“sublime”, “superior” ou como um mundo fechado em si mesmo, são problemáticas e elitistas. No
fundo, revelam o fetichismo da arte já criticado pelo sociólogo Bourdieu (1996) e por outros
(VIANA, 2007a).
A arte é uma produção humana e, portanto, é algo bastante comum, prosaico, um
produto histórico e social. Não tem nada de sublime ou superior, podendo ser bastante pobre e
inferior. Obviamente que a concepção elitista da arte reconhece como tal apenas as grandes obras e
por isso afirmar que ela pode ser pobre e inferior pode parecer estranho. No entanto, mesmo as
grandes obras podem ser bem “pequenas” e medíocres, pois sua grandiosidade não é algo dado e
acima dos interesses, valores, concepções, daqueles que assim as avaliam.
A resolução desse problema só pode ocorrer através de uma definição do que é arte.
Obviamente que podemos partir das grandes obras de arte, tal como um quadro de Picasso, uma
música de Beethoven, uma peça de Moliére, para realizar tal definição. Contudo, porque tais obras
seriam “grandes”? E por qual motivo um conto do Zé da Silva não poderia ser considerado
“grande”? A própria ideia de “grandes obras” já é problemática em si e ao colocá-las como
“grande” significa que existe o “pequeno” e que a diferença não é de substância e sim de forma,
grau ou quantidade. Essas distinções revelam valores. Estes valores são ligados a uma concepção
elitista de arte. São os valores dominantes, seja da esfera artística ou dos setores intelectualizados da
sociedade. Estes valores reproduzem as relações sociais existentes e, portanto são manifestações
axiológicas (VIANA, 2007b). Desta forma, a definição de arte deve englobar tanto o que se
considera “grande” como o que se considera “pequeno”, tanto o bom quanto o ruim.
18 VIANA, Nildo. As histórias em quadrinhos como forma de arte. Estácio de Sá – Ciências Humanas.
Revista da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES-Go. Vol. 02, nº 10, 16-24, Fev./Jul. 2014.
A arte é expressão figurativa da realidade (VIANA, 2007a), ou seja, uma criação fictícia
de uma realidade paralela ao mundo realmente existente. Essa concepção de arte engloba tanto as
grandes como as pequenas obras de arte, desde que expressem figurativamente a realidade. E essa
realidade que é expressa nas obras de arte é a sociedade em seu conjunto, aspectos dela, ou a
realidade dos sentimentos, desejos, valores, do indivíduo, mesmo sua intimidade e inconsciente, que
a produz. Sendo assim, qualquer poesia, peça teatral, conto, música, pintura, entre outras
manifestações artísticas, são obras de arte.
A diferença entre as diversas músicas, peças teatrais, obras literárias, entre outras
manifestações artísticas, são entendidas não com uma divisão entre “arte” e “não arte” e sim entre
arte de qualidade ou sem qualidade, sendo que isto remete a diversas outras questões, inclusive de
valores (VIANA, 2007b). Nesse sentido, os livros de literatura de Paulo Coelho são obras de arte,
da mesma forma que os livros de Lima Barreto, Kafka, Flaubert, entre milhares de outros, bem
como as poesias de autodidatas, como as de Enes da Cunha Teles. O que pode distingui-las é a
avaliação das mesmas, que são marcadas por valores, alguns supervalorando as formas, outros o
conteúdo, outros integrandos ambos os elementos.
No fundo a recusa em considerar arte aquilo que não é produzido pelos especialistas na
produção artística, os indivíduos da esfera artística, os artistas, é um primeiro equívoco a ser
superado. A esfera artística, que segundo Marx e outros (MARX e ENGELS, 1986; VIANA, 2007a;
BOURDIEU, 1996), surgiu na sociedade capitalista, graças à expansão da divisão social do
trabalho, coloca uma oposição entre iniciados e leigos, que busca se afirmar através do monopólio
da produção artística, o que é algo sem sentido ou com sentido apenas para os indivíduos desta
esfera, de acordo com seus valores, interesses, concepções. Para produzir arte não precisa ser artista
profissional, os artistas amadores produzem arte e muitas vezes de alta qualidade, enquanto que
muitos profissionais produzem arte, muitas vezes, de baixa qualidade.
Outra diferença gerada pela constituição da esfera artística é expressa nas divisões
internas, nas quais os que são hegemônicos buscam desqualificar os não hegemônicos, por um lado,
e também pela hierarquia constituída no seu interior. Mas aqui nos interessa uma outra divisão no
interior da esfera artística. Trata-se da divisão existente entre as subesferas, sendo que cada uma
delas manifesta distintas formas de arte2.
2
Essa divisão é expressa por Galvano Della Volpe (1980) como “linguagens artísticas”. Contudo, a concepção de que
existem diversas “linguagens artísticas” acaba sendo ideológica, no sentido de que cai num formalismo que se
autonomiza, criando um fetichismo que inverte a realidade. A ideia de formas de arte mantém a percepção da unidade,
são formas de algo concreto, que possuem sua especificidade e ao mesmo tempo elementos que perpassam todas elas e
que não possuem autonomia absoluta ou uma lógica própria imanente e a diferenciação ocorre dentro de uma unidade.
Isso vale tanto para os produtos culturais quanto para as relações sociais entre aqueles que realizam sua produção, isto é,
tanto para a subesfera quanto para a forma de arte.
19 VIANA, Nildo. As histórias em quadrinhos como forma de arte. Estácio de Sá – Ciências Humanas.
Revista da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES-Go. Vol. 02, nº 10, 16-24, Fev./Jul. 2014.
Assim, a esfera artística possui diversas subesferas, entre as quais a subesfera musical,
teatral, literária, etc., que é expressa, na produção artística, pelas formas de arte (música, teatro,
literatura, etc.) e, que, obviamente, também possuem subdivisões internas, algo comum na
sociedade capitalista. Cada subesfera busca se autovalorar e colocar-se como acima das demais
subesferas3. Esse processo de autovaloração é acompanhado pela desvaloração das demais formas
de arte, que são a manifestação de outras subesferas4.
Isso significa que a arte é algo comum e que qualquer ser humano é capaz de produzir,
basta usar sua imaginação, sua criatividade. O resultado, a obra de arte concreta, pode ser de alta
qualidade ou de baixa qualidade, mas isso depende de diversas determinações e a sua avaliação está
ligada a determinados valores, sendo que o tecnicismo e formalismo são dominantes nos agentes da
esfera artística, mas não em outros setores da população. Nesse sentido, ao entender que a essência
da arte está em expressar de forma figurativa a realidade, não somente temos uma definição e
delimitação, como também podemos distinguir as formas de arte, que realizam tal expressão de
forma diferenciada e que, na sociedade capitalista, são produtos de indivíduos especializados de
uma subesfera social.
Nesse sentido, todo produto cultural que realiza uma expressão figurativa da realidade é
arte. A questão da qualidade é outra discussão e remete para uma avaliação das obras de arte em
cada caso concreto e com base em determinadas concepções e valores. Não é nosso objetivo discutir
a questão da qualidade das obras de arte aqui e em todas as formas de arte é possível encontrar
diferenças qualitativas.
As histórias em quadrinhos como forma de arte
A partir dessa concepção de arte não há nenhuma dúvida que as histórias em quadrinhos
são uma das formas de arte. As histórias em quadrinhos realizam uma expressão figurativa da
realidade, usando os diversos recursos que possui, tal como as imagens, diálogos, balões, quadros,
onomatopeias, etc., e criam um universo ficcional. Ou seja, tal como qualquer outra obra de arte,
cria uma realidade paralela, ficcional, expressando figurativamente a realidade. A forma como faz
3
Aqui, quando colocamos “a esfera” ou “a subesfera”, não estamos caindo numa concepção fetichista e sim colocando
que os indivíduos reais e concretos, que agem e produzem representações e concepções, é que realizam isso, segundo a
perspectiva do grupo e posição de que partem, não existindo nenhuma entidade abstrata e acima dos seres humanos de
carne e osso.
4
O mesmo ocorre no caso da esfera científica e isso é amplamente reconhecido, pois as subesferas geram valores,
interesses, etc. no interior de uma sociedade competitiva e é por isso que há uma disputa entre as subesferas científicas e
que cada uma busca ser considerada a mais importante e superior às demais, gerando inclusive os determinismos e
“imperialismo”, tal como a sociologia, por exemplo, é acusada (BOTTOMORE, 1970; VIANA, 2000).
20 VIANA, Nildo. As histórias em quadrinhos como forma de arte. Estácio de Sá – Ciências Humanas.
Revista da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES-Go. Vol. 02, nº 10, 16-24, Fev./Jul. 2014.
isso a distingue de outras formas de arte, mas realizar tal expressão figurativa é algo que ela
compartilha com todas as demais e a caracteriza como produção artística.
Esses universos ficcionais podem ser mais simples ou mais complexos. A turma da
Mônica, em sua versão infantil, é simples, enquanto que Tio Patinhas é mais complexo um pouco e
os super-heróis da Marvel são ainda mais complexos e assim podemos observar diversas formas de
manifestação de histórias em quadrinhos, desde as tiras de jornais até os álbuns de luxo, desde
histórias curtas e infantis até complexas histórias envolvendo diversos personagens e exigindo uma
reflexão para seu entendimento mais adequado. Uma tira de jornal com quatro quadros não se
compara a um algum de luxo de duzentas páginas, pois a diferença não só quantitativa como
também na extensão e complexidade do universo ficcional é mais que visível. Nesse processo, há
diferenciações também por gênero, público-alvo, valores dos produtores, posições políticas, estilo,
entre inúmeras outras. A diferença por gênero aponta para a existência de uma grande diversidade,
como o da aventura, superaventura, humor, terror, etc. Existem histórias em quadrinhos para o
público infantil, adulto, entre outros. Esses exemplos apenas mostram algumas das variedades na
produção quadrinística.
O universo ficcional criado pelas histórias em quadrinhos possuem elementos comuns
com outras formas de arte e, inclusive, existem adaptações e influências recíprocas. Em alguns
casos existe maior dificuldade de adaptação, tal como os super-heróis das histórias em quadrinhos
que em suas primeiras tentativas de adaptação cinematográfica deixaram muito a desejar pela
dificuldade de produzir algo semelhante ao que era visível nas revistas em quadrinhos, o que só foi
superado com o desenvolvimento tecnológico que permitiu reproduzir ambientes, cenas e ações
com maior proximidade com a versão original. O universo ficcional das histórias em quadrinhos são
produtos culturais como os demais e por ser uma expressão figurativa da realidade, é uma forma de
manifestação artística.
Esses universos ficcionais são os mais variados e cada criador ou equipe de
criação/reprodução criam uma realidade paralela, um outro mundo, ao lado do nosso mundo social,
natural e concreto, que, no entanto, o reproduz. Ao ver o fantástico mundo dos super-heróis da
Marvel Comics, com a existência não somente do planeta terra em sua face visível e que
conhecemos, alterado com a inserção de seres superpoderosos que aqui passam a habitar (Capitão
América, Homem-Aranha, Homem de Ferro, Demolidor, e inúmeros outros, sem esquecer os
supervilões), mas milhares de outros mundos, como Asgard, do Poderoso Thor; Atlântida, o mundo
submarino do príncipe Namor; o mundo subterrâneo do vilão O Toupeira; o Olimpo dos deuses
gregos, diversos planetas e dimensões, incluindo o Planeta Vivo; ou mesmo o mundo microcósmico
onde, por exemplo, o Incrível Hulk teve aventuras.
21 VIANA, Nildo. As histórias em quadrinhos como forma de arte. Estácio de Sá – Ciências Humanas.
Revista da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES-Go. Vol. 02, nº 10, 16-24, Fev./Jul. 2014.
Esses exemplos mostram a complexidade e riqueza do chamado “universo Marvel”, mas
é apenas um entre os diversos universos ficcionais produzidos nas histórias em quadrinhos. Essas
realidades paralelas, por mais fantásticas que sejam, estão expressando a nova realidade, seja dos
desejos, intenções, sentimentos, inconsciente, dos seres humanos que as produzem, seja da
sociedade ou de aspectos dela, ou da natureza. As histórias em quadrinhos, como toda obra de arte,
é uma expressão da realidade, que não a retrata, mas através da figuração a recria. Esse recriar é um
processo característico de toda produção artística, manifestação da criatividade, onde se recria o
mundo gerando outro mundo, através da figuração, da ficção. Esse processo de criação é recriação,
no qual dois mundos se encontram, o real e o ficcional, sendo o primeiro gerador do segundo e este
reprodutor do primeiro. São distintos e, ao mesmo tempo, iguais.
Vigostky (2014) afirma que a imaginação trabalha com a realidade para criar um mundo
imaginário, pois ela é sua matéria-prima. Um indivíduo só pode imaginar um centauro por existirem
seres humanos e cavalos e assim ele pode uni-los, em sua imaginação, os dois formando uma
terceira imagem: o corpo de um cavalo com o pescoço e o rosto de um homem. O Hulk só foi
criado por que existiu milhares de seres reais e outros seres fictícios anteriores (como Frankenstein),
que inspiraram Stan Lee quando este o criou. O real, no entanto, não está presente apenas como
matéria-prima e fonte de inspiração, pois também se manifesta sob outras formas no conjunto da
produção ficcional. O Hulk expressa a realidade da preocupação com o ser humano num mundo
científico-tecnológico, dominado pela ciência e sua possível desumanização, além de diversas
outras coisas. Da mesma forma, o Capitão América só foi criado por existir os Estados Unidos, a
bandeira deste país, a Segunda Guerra Mundial, a necessidade de heróis, entre outros aspectos da
época de sua criação (VIANA, 2005), bem como os valores, sentimentos, concepções e
representações dos envolvidos em sua criação (Joe Simon e Jack Kirby). A história dos super-heróis
comprova justamente esse seu caráter intimamente ligado à realidade social na qual emergem
(VIANA, 2011).
Essa forma de arte possui não somente características próprias que expressam a maneira
como expressam a realidade figurativamente, como também, como produto social e histórico do
capitalismo, também acaba sendo um produto do trabalho artístico especializado, criando a
subesfera quadrinística. Ela também acaba criando uma hierarquia entre os produtores, os
hegemônicos, bem como outros setores que vão se desenvolvendo. Tal como o cinema, a produção
quadrinística tende a ser uma produção coletiva e marcada por uma divisão interna do trabalho.
Contudo, diferentemente do cinema, é possível com muito mais facilidade a produção individual.
Sem dúvida, as produções dominadas pelo capital editorial, as grandes revistas em quadrinhos de
circulação internacional (e em grande parte as de circulação nacional) são produzidas por equipes e
22 VIANA, Nildo. As histórias em quadrinhos como forma de arte. Estácio de Sá – Ciências Humanas.
Revista da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES-Go. Vol. 02, nº 10, 16-24, Fev./Jul. 2014.
não por um indivíduo. O desenvolvimento capitalista dificulta a existência da produção individual e
um autor de histórias em quadrinhos pode, numa evolução posterior, usar uma equipe e ter o seu
nome como o grande produtor, apesar da produção ser coletiva, como é o caso de Maurício de
Souza, no Brasil, e Al Capp, nos Estados Unidos5. Mas, tanto em um caso quanto em outro, trata-se
de obras de arte, cuja qualidade varia, mas nem por isso deixa de ser algo artístico.
É preciso, no entanto, distinguir forma e conteúdo. O conteúdo das histórias em
quadrinhos são expressões figurativas da realidade, cuja forma mantém uma unidade, que é o uso
do desenho e diversos outros recursos derivados e complementares. No entanto, é possível separar
esta forma do conteúdo. Assim, os quadrinhos, como forma, se separa das histórias, do conteúdo. É
como ocorre no caso de propagandas e outros usos, não-ficcionais, dos mesmos recursos formais
das histórias em quadrinhos. Isso também ocorre em outras formas de arte, como a música ou o
cinema. Na música, os jingles de campanhas eleitorais não tem nada de ficcional, é mera
propaganda. Da mesma forma, o documentário usa os recursos cinematográficos, mas não produz
ficcao.
Desta forma, quando utilizamos o termo “quadrinhos”, ele significa o uso dos recursos
formais das histórias em quadrinhos sem a produção de uma expressão figurativa da realidade, não
sendo, pois, obras de arte. Por isso é necessário distinguir quadrinhos e histórias em quadrinhos,
sendo que os primeiros são cópias do segundo, mas apenas no nível formal, e o segundo é obra de
arte, ou seja, unidade entre forma e conteúdo6. Existem também formas mistas, que usam também a
ficção para se tornar mais atrativo ao público, mas podemos considerar como formas degeneradas
de arte, pois o conteúdo está corrompido (e geralmente empobrecido) pela intenção de propaganda
ou outra qualquer que vincula a interesses financeiros e políticos diretamente.
Assim, as histórias em quadrinhos são uma forma de arte que compartilha o elemento
essencial de toda obra artística, ser uma expressão figurativa da realidade, e possui uma
especificidade que se encontra na forma como realiza isso, através de um “enredo organizado de
forma sequencial e utilizando diversos recursos, sendo que o desenho (imagens) é o aspecto formal
fundamental e os demais são complementares” (VIANA, 2013, p. 46). Sem o enredo, que o
caracteriza como forma específica de universo ficcional, não se trata de histórias em quadrinhos,
podendo ser uma charge, quadrinhos (no sentido acima delimitado), caricatura, etc. É uma forma de
arte como as demais e somente numa concepção elitista se poderia querer questionar seu caráter
5
Al Capp iniciou sua carreira como colaborador, sem receber os créditos, de outro quadrinista (Ham Fischer, criador de
Joe Paloka) e o acusou de usá-lo como “desenhista-fantasma” (o que depois gerou polêmica, falsificação e suicídio de
Fischer). Depois iniciou sua carreira autônoma e após alguns anos e sucesso, passou a ter trabalhos produzidos
coletivamente e foi acusado também de usar desenhistas-fantasma (VIANA, 2013).
6
Essa distinção passou desapercebida ao escrever o livro “Quadrinhos e Crítica Social” (VIANA, 2013), cujo título
correto seria: Histórias em Quadrinhos e Crítica Social, o que será feito em futuras edições.
23 VIANA, Nildo. As histórias em quadrinhos como forma de arte. Estácio de Sá – Ciências Humanas.
Revista da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES-Go. Vol. 02, nº 10, 16-24, Fev./Jul. 2014.
artístico ou então a partir de outras definições de arte, que podem ser tão problemáticas quando o
elitismo defendido por outros.
Considerações Finais
Logo, ao contrário das concepções elitistas de arte, as histórias em quadrinhos não
podem ser excluídas do mundo artístico. Obviamente que a competição entre as subesferas podem
gerar concepções que irão considerá-las não-arte ou “arte inferior”, mas isto apenas expressa
algumas das características da esfera artística, a sua subdivisão e competição interna.
As histórias em quadrinhos seriam uma forma de arte “inferior”? A resposta só pode ser
negativa, pois os valores por detrás dessa concepção são evidentes. Sem dúvida, existem histórias
em quadrinhos de má qualidade, assim como existem obras musicais, cinematográficas, literárias,
etc. que padecem do mesmo mal. Contudo, existem histórias em quadrinhos de alta qualidade (e
isso partindo de várias concepções de qualidade), algumas são excelentes no aspecto formal, outras
em seu conteúdo (tanto que pode ter um caráter crítico quanto apenas por complexidade). O
personagem Ferdinando, de Al Capp, por exemplo, demonstra uma qualidade em seu universo
ficcional que pode ser percebido não só na construção dos personagens e complexidade das estórias
(não de todas, obviamente), quanto na crítica social efetivada através das mesmas (VIANA, 2013).
Os Super-Heróis da Image Comics demonstram traços que formalmente são muito superiores às de
outras produções, em que pese em seu conteúdo deixe a desejar em comparação com a Marvel ou a
DC Comics.
Em síntese, as histórias em quadrinhos são uma forma de arte e possui sua
especificidade e ao mesmo tempo compartilha o caráter artístico com as demais formas artísticas,
não tendo nada de inferior. Isso não significa que as pessoas devam, necessariamente, gostar e
admirar as histórias em quadrinhos, assim como qualquer forma de arte, pois considerá-las forma de
arte não significa cair no fetichismo da arte, são produtos culturais, históricos, sociais, cuja
valoração ou desvaloração, o gosto, as preferências, não tem nada de natural ou imanente.
As histórias em quadrinhos podem ser de alta ou baixa qualidade, pode ser um produto
que contribui com a emancipação humana ou para a reprodução de um mundo desumano. Isso não é
algo da essência dos quadrinhos e sim expressão de suas várias formas de manifestação concreta e
por isso somente analisando casos concretos é que se pode fazer tal avaliação. Independente da
qualidade, as histórias em quadrinhos são uma forma de arte, assim com a pior música não deixa de
ser música e, portanto, obra de arte.
24 VIANA, Nildo. As histórias em quadrinhos como forma de arte. Estácio de Sá – Ciências Humanas.
Revista da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES-Go. Vol. 02, nº 10, 16-24, Fev./Jul. 2014.
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25 ALMEIDA, Felipe Mateus de. Reestruturação produtiva e trabalho: o mito da flexibilização. Estácio de
Sá – Ciências Humanas. Revista da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES-Go. Vol. 02, nº 10, 25-35,
Fev./Jul. 2014.
REESTRUTURAÇÃO PRODUTIVA E TRABALHO:
O MITO DA FLEXIBILIZAÇÃO
Felipe Mateus de Almeida1
RESUMO
ABSTRACT
O presente trabalho tem como objetivo apresentar
uma discussão sobre o processo de reestruturação
produtiva e o mito da flexibilização, o artigo traz um
breve histórico sobre as mudanças no mundo do
trabalho e o processo de reestruturação produtiva
chamando a atenção para a questão do processo de
flexibilização da jornada de trabalho e das novas
táticas dos capitalistas para aumentar o processo de
extração de mais-valor.
The present work aims to present a discussion of the
productive restructuring process and the myth of
flexibilization. The article presents a brief history
about changes in the world of work and the the
productive restructuring process by drawing
attention to the issue of process flexibilization in
working hours and new tactics of the capitalists to
increase the extraction process more- value.
Keywords:
productive
Palavras-chave: reestruturação produtiva; trabalho; flexibilization.
flexibilização.
restructuring;
work;
Introdução
A crescente racionalização e reestruturação do modo de produção capitalista ocorrida
com o surgimento do regime de acumulação toyotista e o enfraquecimento do regime de
acumulação fordista e sua rigidez no processo de produção de mercadorias e nas demais estruturas
existentes no capitalismo, trouxeram mudanças significativas. Uma dessas mudanças foi o processo
de flexibilização das jornadas de trabalho e, consequentemente, a criação de novas formas de
extração de mais-valor dos trabalhadores.
Nesse sentido, o presente artigo pretende apresentar uma discussão sobre o processo de
reestruturação produtiva e o mito da flexibilização. O termo “mito” é utilizado porque ao contrário
do que diz o discurso dominante – de que houve um relaxamento na jornada do trabalho, um
relaxamento nos horários do trabalhador fazendo com que ele tenha opções de escolha etc.- o que se
tem um aumento do processo de mais-valor relativo e um aumento do processo de exploração dos
1
Mestrando em Sociologia pela Universidade Federal de Goiás e vinculado a linha de pesquisa “Trabalho, Emprego e
Sindicatos”. É membro do Núcleo de Estudos Sobre o Trabalho – NEST.
26 ALMEIDA, Felipe Mateus de. Reestruturação produtiva e trabalho: o mito da flexibilização. Estácio de
Sá – Ciências Humanas. Revista da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES-Go. Vol. 02, nº 10, 25-35,
Fev./Jul. 2014.
trabalhadores. Antes de abordarmos essa questão, é preciso que se deixe claro o que
compreendemos por trabalho e, por conta disso, a análise de Karl Marx sobre esse tema faz-se
necessária.
O conceito de trabalho em Karl Marx
Karl Marx nunca se preocupou em criar uma ciência da sociedade, ele era um autor com
uma abordagem que abarcava várias áreas do conhecimento e, acima de tudo, uma abordagem
crítica que fazia um ataque ferrenho ao modo de produção capitalista e todas as suas instituições e
relações sociais. Nesse sentido, Marx foi o responsável pela criação do materialismo histórico –
dialético. Um método que rompe com o idealismo e prega a ideia da práxis, ou seja, a junção da
teoria e da prática como ação transformadora da realidade:
[...] na produção social de sua existência, os homens estabelecem relações determinadas,
necessárias, independentes de sua vontade, relações de produção que correspondem a um
determinado grau de desenvolvimento das forças produtivas materiais. [...] o modo de
produção da vida material condiciona o desenvolvimento da vida social, política e
intelectual em geral. Não é a consciência dos homens que determina o seu ser; é o seu ser
social que, inversamente, determina a sua consciência (MARX, 2003[1859], p. 5).
Partindo desses pressupostos que fazem uma crítica à filosofia idealista, Marx cria o seu
método de análise da realidade: o materialismo histórico–dialético. O materialismo históricodialético parte de pressupostos reais, criados por homens que vivem em sociedade devido ao nível
de desenvolvimento das forças produtivas. A teoria marxista parte do pressuposto de que as ideias,
a consciência e as relações sociais existentes em uma determinada sociedade civil, dependem de
determinadas formas de organização do consumo, do comércio e da produção. O materialismo
histórico – dialético é uma teoria que afirma que não são as ideias e a consciência que controlam o
homem, mas o homem é quem determina e constrói suas ideias e sua consciência na produção de
sua existência. É a partir do materialismo histórico-dialético que Marx faz o seu estudo sobre o
capitalismo que leva em consideração as categorias do trabalho, da alienação, da mercadoria, do
fetichismo e da extração da mais-valia.
Na teoria marxiana, o trabalho deve ser compreendido como
[...] um processo entre o homem e a natureza, processo este em que o homem, por sua
própria ação, medeia, regula e controla seu metabolismo com a natureza. Ele se confronta
com a matéria natural como com uma potência natural [Naturnacht]. A fim de se apropriar
da matéria natural de uma forma útil para sua própria vida, ele põe em movimento as forças
naturais pertencentes a sua corporeidade: seus braços e pernas, cabeça e mãos. Agindo
sobre a natureza externa e modificando-a por meio desse movimento, ele modifica, ao
mesmo tempo, sua própria natureza (MARX, 2013 [1867], p. 255).
27 ALMEIDA, Felipe Mateus de. Reestruturação produtiva e trabalho: o mito da flexibilização. Estácio de
Sá – Ciências Humanas. Revista da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES-Go. Vol. 02, nº 10, 25-35,
Fev./Jul. 2014.
O trabalho para Marx deve ser compreendido então como a relação consciente entre o
homem e a natureza na qual o home faz uso de todas as suas forças naturais que se encontram
presentes no seu corpo e isso faz com que ele também transforme aquilo que está ao seu redor.
Porém, a partir do materialismo histórico-dialético, Marx descobre que o modo de
produção capitalista juntamente com o surgimento da divisão social do trabalho e as relações sociais
advindas dele, são permeadas pela contradição e pela luta de classes onde uma classe detentora dos
meios de produção compra a força de trabalho de uma classe que não possui nada a não ser a sua
força de trabalho.
Para Marx, quanto mais riqueza o trabalhador produz, mais pobre ele fica. Em uma
sociedade capitalista, o trabalhador se torna uma mercadoria barata que vende a sua força de
trabalho apenas para a sua subsistência. Esse processo ocorre porque as coisas, ou melhor dizendo,
os objetos passam a ter mais valor do que os homens, ou seja, quanto mais a mercadoria se valoriza,
mais o homem se torna desvalorizado e desacreditado. É a partir dessas constatações que Marx
formula o seu conceito de alienação. Para ele:
quanto mais o trabalhador produz, tanto menos tem de consumir; quanto mais valores cria,
tanto mais sem valor e mais indigno se torna; quanto mais refinado o seu produto, tanto
mais deformado o trabalhador; quanto mais civilizado o produto tanto mais bárbaro o
trabalhador; quanto mais poderoso o trabalho, tanto mais impotente se torna o trabalhador;
quanto mais brilhante e pleno de inteligência o trabalho, tanto mais o trabalhador diminue
em inteligência e se torna servo da natureza. [...] o trabalho produz maravilhas para os
ricos, mas produz a privação para o trabalhador (1963[1844], p. 161).
Com base nessa citação, podemos perceber que a alienação do trabalhador é um
processo que se reproduz de três formas. A primeira forma de reprodução da alienação ocorre em
sua relação com os frutos de seu trabalho, ou seja, a mercadoria que é produzida pelo trabalhador
não é mais reconhecida por ele; o trabalhador não sabe qual a finalidade daquela mercadoria e nem
quem vai utilizá-la, a única coisa que ele sabe é que ele não poderá possuí-la devido ao seu alto
custo. A segunda forma de reprodução da alienação ocorre no processo de produção de
mercadorias. O trabalhador não se reconhece eu seu trabalho; ele se torna infeliz e não se afirma no
seu ambiente de trabalho. O trabalho se torna uma prisão para o trabalhador fazendo com que ele se
sinta cansado e desmotivado. O trabalhado deixa de ser uma atividade realizadora e transformadora
do ser social e passa a ser uma atividade obrigatória, forçada, um sacrifício. A terceira forma de
reprodução da alienação ocorre porque no modo de produção capitalista o trabalhador transforma o
seu trabalho apenas em um meio de sua existência, ou seja, o trabalho não é mais uma atividade
vital que transforma o ser genérico, mas apenas uma atividade que supre as necessidades vitais do
trabalhador – comer, beber, comprar roupas etc.
28 ALMEIDA, Felipe Mateus de. Reestruturação produtiva e trabalho: o mito da flexibilização. Estácio de
Sá – Ciências Humanas. Revista da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES-Go. Vol. 02, nº 10, 25-35,
Fev./Jul. 2014.
Outra reflexão interessante no pensamento de Marx e que deve ser incluída nesse artigo
que trata sobre os estudos do trabalho nos clássicos da sociologia, se refere aos estudos sobre a
mercadoria. . Para esse autor “a riqueza das sociedades em que domina o modo de produção
capitalista aparece como uma “imensa coleção de mercadorias”, e a mercadoria individual como sua
forma elementar” (MARX, 1983[1867], p. 45).
Em uma sociedade onde o modo de produção capitalista está em vigência, à mercadoria
perde o seu valor de uso2 e passa a ter valor de troca, ou seja, para que se produzam mercadorias é
preciso que essa mercadoria seja transferida para alguém que queira utilizá-la. Pra que isso seja
possível, é necessário que se tenha uma divisão social do trabalho. Segundo Marx:
Numa sociedade cujos produtos assumem, genericamente, a forma de mercadoria, isto é,
numa sociedade de produtores de mercadorias, desenvolve-se essa diferença qualitativa dos
trabalhos úteis, executados independentemente uns dos outros, como negócios privados de
produtores autônomos, num sistema complexo, numa divisão social do trabalho (op. cit.,
p.50).
Nesse sentido, no capitalismo, as mercadorias passam a ter um valor ou uma forma de
troca comum, que acaba com as diferenças existentes entre as variadas formas de valor de uso e
valor de troca. Assim nasce o dinheiro:
Ao desaparecer o caráter útil dos produtos do trabalho, desaparece o caráter útil dos
trabalhos neles representados, e desaparecem também, portanto, as diferentes formas
concretas desses trabalhos, que deixam de diferenciar-se um do outro para reduzir-se em
sua totalidade a igual trabalho humano, a trabalho humano abstrato (MARX, op. cit., p.47).
A partir dessa citação, podemos compreender a relação que existe entre a mercadoria e
o trabalho alienado. A mercadoria que deve ser compreendida como a materialização e objetificação
do trabalho em uma sociedade capitalista através da criação dos valores de troca e do dinheiro reduz
o caráter útil dos produtos do trabalho à quase zero. Isso faz com que os trabalhadores percam a
noção da utilidade do seu trabalho e vejam a mercadoria como algo que está longe dele, como algo
que parece estar vivo. Isso leva então, ao chamado fetichismo da mercadoria que Marx (op. cit.,
p.70) conceitua como algo que “além de se pôr com os pés no chão, ela se põe sobre a cabeça
perante todas as outras mercadorias e desenvolve de sua cabeça de madeira cismas muito mais
estranhas do que se ela começasse a dançar por sua própria iniciativa”.
Nesse sentido para Marx o trabalho deve ser compreendido como a relação entre o
homem e a natureza, porém, com o surgimento do modo de produção capitalista e da divisão social
2
“A utilidade de uma coisa faz dela um valor de uso” (MARX, op. cit., p.45). Em outras épocas onde o modo de
produção vigente não era o sistema capitalista, as mercadorias eram produzidas apenas para a satisfação pessoal , ou
seja, possuíam valor de uso e não valor de troca. No modo de produção capitalista, as mercadorias não perdem o seu
valor de uso, porém, o que prevalece é o seu valor de troca.
29 ALMEIDA, Felipe Mateus de. Reestruturação produtiva e trabalho: o mito da flexibilização. Estácio de
Sá – Ciências Humanas. Revista da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES-Go. Vol. 02, nº 10, 25-35,
Fev./Jul. 2014.
do trabalho, ele adquire um caráter negativo que se torna sinônimo de antagonismo de classes e de
reprodução das desigualdades sociais. Ao trabalhador, nada mais resta do que a venda da sua força
de trabalho. Ele não se reconhece e nem se sente feliz com o produto e com o ambiente de seu
trabalho. O trabalhador se torna cada vez mais pobre enquanto produz muitas riquezas que ficam
nas mãos da classe dominante. Para Marx, o trabalho na sociedade capitalista é sinônimo de poder e
dominação.
Portanto, o trabalho está sendo compreendido nesse artigo como algo que se torna
negativo no modo de produção capitalista por conta das reproduções do poder e da dominação de
uma classe diante de outra classe que nada mais resta do que a venda de sua força de trabalho. O
trabalho deixa de ser um meio e se torna um fim; ele se torna alienado, doloroso, infeliz, um fardo
nas costas do trabalhador.
O processo de reestruturação produtiva e o mito da flexibilização
O fordismo, o taylorismo e o toyotismo foram as três etapas do desenvolvimento
capitalista que antecederam a revolução informacional de nossos tempos. Segundo Viana:
Taylor se preocupou com o tempo de trabalho e seu aproveitamento máximo. Surge assim a
racionalização do processo de trabalho, e sua vigilância se torna mais profunda. O método
elaborado por Taylor apresentava um controle do tempo de trabalho, que passa a ser
cronometrado. Sem dúvida, o objetivo de Taylor é aumentar a produtividade do trabalho (o
que é equivalente, na maioria dos casos, ao aumento de extração de mais-valor relativo)
através de diversos artifícios, entre os quais o controle rígido do processo de trabalho, o uso
do cronômetro, os prêmios por produtividade individual, o parcelamento das tarefas, a
formação de especialistas em gerência, a divisão entre trabalho de elaboração e de execução
etc. (VIANA, 2009, p. 65- 66).
O taylorismo possuía como características um regime rígido que priorizava a vigilância
profunda nos ambientes de trabalho; a racionalização dos trabalhadores e dos ambientes de
trabalho; possuía um caráter burocrático devido à criação dos cargos de gerentes científicos e, além
disso, tinha uma produção centralizada e baseada no sistema Just In Case (JIC). O taylorismo foi o
primeiro regime que se preocupou com a questão da extração do mais-valor relativo 3 e com a
aplicação do processo científico a produção através do saber-fazer dos operários e dos especialistas
encarregados, ou seja, havia uma hierarquia e uma burocracia nesse regime de acumulação.
Acerca do fordismo, o sociólogo Ricardo Antunes nos traz uma definição interessante:
[...]entendemos o fordismo fundamentalmente como a forma pela qual a indústria e o
processo de trabalho consolidaram-se ao longo deste século, cujos elementos constitutivos
básicos eram dados pela produção em massa, através da linha de montagem e de produtos
3
Podemos entender o mais-valor relativo como a ampliação da produtvidade física do trabalho por meio da
mecanização.
30 ALMEIDA, Felipe Mateus de. Reestruturação produtiva e trabalho: o mito da flexibilização. Estácio de
Sá – Ciências Humanas. Revista da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES-Go. Vol. 02, nº 10, 25-35,
Fev./Jul. 2014.
mais homogêneos; através do controle dos tempos e movimentos pelo cronômetro taylorista
e da produção em série fordista; pela existência do trabalho parcelar e pela fragmentação
das funções; pela separação entre elaboração e execução no processo de trabalho; pela
existência de unidades fabris concentradas e verticalizadas e pela constituição/consolidação
do operário-mas-sa, do trabalhador coletivo fabril, entre outras dimensões. Menos do que
um modelo de organização societal, que abrangeria igualmente esferas ampliadas da
sociedade, compreendemos o fordismo como o processo de trabalho que, junto com o
taylorismo, predominou na grande indústria capitalista ao longo deste século (ANTUNES,
2008, p. 24-25, grifos dele).
O fordismo deve ser entendido como um processo onde a produção era feita em massa,
o tempo era cronometrado, existia divisão entre a elaboração e a execução, as fábricas eram
centralizadas e verticalizas e existia um perfil de trabalhador coletivo fabril.
Associadas a essas determinadas formas de produção que foram colocadas acima é
preciso que se compreenda que elas se encontravam presentes em um determinado modelo de
Estado e de políticas sociais:
A obra de Taylor e a “administração científica do trabalho” são a resposta do capital, já
esboçada de forma não-sistemática antes do surgimento do taylorismo, a este recuo na
extração de mais-valor absoluto. Assim se institui um novo regime de acumulação,
complementado por uma nova forma estatal, o estado liberal-democrático. [...] o estado
liberal-democrático significou uma concessão ao movimento operário, ao regularizar
partidos, sindicatos etc., ampliar a legislação trabalhista [...] No entanto, o estado liberaldemocrático, ao mesmo tempo em que realizou estas concessões, buscou integrá-las em sua
lógica de reprodução, anulando o caráter potencialmente subversivo destas mudanças
(VIANA, 2003, p. 85).
O taylorismo e o fordismo – que nascem em 1911 e 1914, respectivamente - vigoraram
em uma época onde as políticas keynesianas e o Estado de Bem Estar Social ou Estado liberaldemocrático aplicavam as condições necessárias para o funcionamento e a regulação do modo de
produção capitalista. Por mais que fossem uma tática de manutenção e legitimação do capitalismo,
os trabalhadores possuíam alguns direitos como uma jornada de trabalho estabelecida, o direito a
educação, o auxílio desemprego e a garantia de uma renda mínima, ou seja, fordismo e taylorismo
estiveram presentes como regimes de acumulação fundamentais no processo de produção do
capitalismo em uma época onde o Estado ainda era responsável por regular a economia e
determinar alguns direitos fundamentais a população através do conceito e da aplicação da
cidadania. O sindicalismo estava em constante processo de luta com as empresas devido à rigidez
imposta dentro do ambiente fabril e a organização dos trabalhadores era mais coletiva porque se
encontravam em ambientes centralizados e não fragmentados.
Desde o final dos anos 60 até o começo da década de 70, várias tentativas com o
objetivo de deixar o espaço fabril mais atraente foram feitas para que os operários se interessassem
mais pelo trabalho nas fábricas. Tais tentativas tinham como meta evitar o absenteísmo e os demais
31 ALMEIDA, Felipe Mateus de. Reestruturação produtiva e trabalho: o mito da flexibilização. Estácio de
Sá – Ciências Humanas. Revista da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES-Go. Vol. 02, nº 10, 25-35,
Fev./Jul. 2014.
descontentamentos dos trabalhadores com o regime e o modo de regulação fordista do trabalho.
Além disso, segundo Heloani (2003, p.105) “a cisão dogmática entre elaboração e execução, a
fragmentação e consequente especialização exagerada (gerando insatisfação e alienação)”, fizeram
com que se pensasse em uma mudança no modo de regulamentação e no regime de acumulação que
vigorava no modo de produção capitalista.
Com a crise do pós-guerra instaurada no período entre 1960 e 1970 e o processo de
reestruturação produtiva e de globalização e internacionalização da economia, as políticas sociais
keynesianas e o Estado liberal-democrático entram em decadência e, como consequência desse
processo, o taylorismo e o fordismo também sofrem sua crise e passam por um processo de
mudança radical que dará origem a um novo regime de acumulação dentro do modo de produção
capitalista:
[...] é necessário ter presente que os processos de globalização e reestruturação produtiva,
os quais tiveram lugar a partir da crise do modelo de acumulação anterior, devem ser
entendidos como um novo rearranjo social – que pôs fim ao pacto fordista dos trinta anos
gloriosos do pós-guerra – e que representam muito mais do que uma acomodação do
modelo de acumulação ao desenvolvimento tecnológico, ou uma adequação do mercado
financeiro e produtivo ao caráter flexível das novas tecnologias. [...] é nesse sentido que se
pode entender a crise das políticas keynesianas do Estado de Bem Estar Social, as
mudanças no caráter do Estado e o advento das políticas neoliberais que [...] terão um
profundo impacto sobre o trabalho; é também a partir desse quadro que se pode
compreender as tendências de terceirização das empresas e de flexibilização do emprego e
do trabalho, que mais do que uma adequação do mercado de trabalho ao caráter flexível das
novas tecnologias, consistem em estratégias empresariais de acumulação e de fragmentação
do trabalho organizado (LEITE, 2009, p. 68).
É nesse contexto de crise do pós-guerra, de enfraquecimento das políticas sociais de
cunho keynesiano e do Estado liberal-democrático que surge na década de 1980 o regime de
acumulação toyotista. Segundo Heloani o toyotismo pode ser definido como:
[...] inovadora forma de produção, no lugar de gigantescas organizações verticalizadas, que
produzem desde a matéria-prima até seus produtos finais, ocorre a descentralização do
processo produtivo. Uma enorme rede constituída por pequenas empresas responsabiliza-se
pelo fornecimento de peças e outros elementos para serem utilizados por núcleos centrais
que dispõem da visão do conjunto e que geralmente possuem tecnologia avançada e grande
poder de barganha com seus fornecedores (HELOANI, op.cit., p. 119).
Nesse sentido, o toyotismo deve ser compreendido como um modo de regulamentação e
organização da produção, das fábricas e do trabalho que possui como características a
descentralização; a tecnologia avançada; o sistema Just In Time (JIT) e a flexibilização e integração
das subjetividades dos trabalhadores, ou seja, ao contrário do taylorismo que tinha como base o
32 ALMEIDA, Felipe Mateus de. Reestruturação produtiva e trabalho: o mito da flexibilização. Estácio de
Sá – Ciências Humanas. Revista da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES-Go. Vol. 02, nº 10, 25-35,
Fev./Jul. 2014.
sistema Just In Case (JIC)4, o toyotismo trabalha com o sistema Just In Time(JIT); é um modelo
onde a produção não é mais produzida em massa mas é produzida através da demanda por produto.
Porém, o que diferenciou de maneira mais visível o taylorismo do toyotismo foi a
questão da flexibilização e da integração das subjetividades dos trabalhadores (Harvey, 2003;
Heloani, 2003). Enquanto no taylorismo o modo de regulamentação do trabalho era mais rígido e
fundamentado em ordens, hierarquia e burocracia, no toyotismo substituíram-se as ordens pelas
regras, ou seja, foi disseminada uma ideologia que fazia o trabalhador pensar que era parte
importante da empresa; que era um ser detentor de um poder de avaliar e concordar ou discordar
das opiniões de seus superiores, de seus subordinados ou de seus companheiros de função. O
trabalhador passou a acreditar em um discurso no qual a empresa era vista como uma matriarca que
deveria sempre ser defendida e idolatrada ele ainda continuava a ser manipulado e vigiado, e além
da parte racional (meios tecnológicos e informáticos), agora ele também era vítima de uma
ideologia5.
É preciso que se compreenda que o toyotismo foi responsável por um processo de
“flexibilização das jornadas de trabalho; flexibilização dos processos de trabalho com integração de
diferentes parcelas do trabalho [...] e, sobretudo, flexibilização dos vínculos de emprego” (LEITE,
op. cit., p.69). Tal flexibilização não é no sentido de facilitar a vida do trabalhador, mas sim no
sentido de se criar novas políticas econômicas capazes de fomentar e apoiar os fenômenos da
terceirização, da precarização e da perca dos direitos conquistados pelos trabalhadores graças ao
novo modelo de estado e as novas políticas adotadas que são consequências do novo regime de
acumulação.
No toyotismo, tem-se o surgimento do Estado neoliberal que entre suas características
principais defende a intervenção mínima do estado na economia, a privatização, o predomínio do
mercado e o corte dos gastos públicos. O Estado Neoliberal “[...] permite o desdobramento das
novas relações internacionais e da re-estruturação produtiva, criando as condições legais,
institucionais, políticas e estruturais para a sua realização” (VIANA, op.cit., p. 87). Associado a
esse processo o sindicalismo perde a sua força graças ao processo de descentralização das empresas
e as novas formas de subcontratação e subemprego associadas às políticas neoliberais de
relaxamento e flexibilização do emprego e do desemprego. Os sindicatos tornam-se sindicatoempresa no sentido de que agora são legitimados e tem poder para negociar com seus patrões e,
como bem se sabe, tudo já é estipulado entre o líder do sindicato e o dono da empresa. Partindo
4
No sistema Just In Case a produção era em massa.
O conceito de Ideologia que está sendo utilizado aqui é o mesmo conceito utilizado por Marx, ou seja, Ideologia como
falsa consciência sistematizada.
5
33 ALMEIDA, Felipe Mateus de. Reestruturação produtiva e trabalho: o mito da flexibilização. Estácio de
Sá – Ciências Humanas. Revista da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES-Go. Vol. 02, nº 10, 25-35,
Fev./Jul. 2014.
dessas colocações, podemos fazer uma crítica a ideia de acumulação flexível. Para Harvey (2003, p.
140) a acumulação flexível deve ser entendida como,
[...] um confronto direto com a rigidez do fordismo. Ela se apoia na flexibilidade dos
processos de trabalho, dos mercados de trabalho, dos produtos e padrões de consumo.
Caracteriza-se pelo surgimento de setores de produção inteiramente novos, novas maneiras
de fornecimento de serviços financeiros, novos mercados e, sobretudo, taxas altamente
intensificadas de inovação comercial, tecnológica e organizacional.
A acumulação flexível pode ser compreendida então como um regime que cria uma
flexibilização nos processos de trabalho criando novas maneiras de se fornecer os serviços
financeiros e como uma acumulação que é responsável por uma nova inovação comercial,
tecnológica e organizacional que transformou radicalmente as relações sociais de produção.
Discordando desse conceito, Nildo Viana vai dizer que:
Ao se falar de “acumulação flexível”, “especialização flexível”, “flexibilização dos
trabalhadores” e “aparato produtivo, vê-se que a palavra é utilizada em sentidos diferentes e
inexatos. (...)não existe “flexibilização” do aparato produtivo e muito menos dos
trabalhadores, o que existe é uma “inflexibilidade”, pois tanto o aparato produtivo quanto
os trabalhadores são submetidos “inexoravelmente” e “implacavelmente” ao objetivo de
aumentar a extração de mais-valor relativo(VIANA,op. cit., p. 69-70).
Viana defende a ideia de que existe um regime de acumulação integral que provoca uma
extensão no processo de mercantilização das relações sociais e da busca de ampliação do mercado
consumidor.
É possível se afirmar que - assim como é colocado por Viana -, essa ideia de
acumulação flexível é bastante equivocada. É um termo que deve ser superado e, por isso, também
utilizaremos o termo acumulação integral (VIANA, op. cit, p. 70). Não existe flexibilização dos
processos de trabalho e nem um relaxamento na disciplina fabril dos trabalhadores; o termo flexível
é apenas mais uma tentativa da burguesia e de suas classes auxiliares de esconder o verdadeiro
sentido do processo de superexploração sofrido pelo proletariado. O que se tem hoje é um processo
muito maior e mais bem articulado de extração de mais-valor relativo dos trabalhadores, ou seja,
um conjunto de discursos, ideias, equipamentos, materiais, leis e códigos que propiciam a burguesia
uma grande facilidade para exercerem o processo de exploração dos trabalhadores. A acumulação
integral invade todas as esferas da vida social do trabalhador, ela não ocorre só e apenas no
ambiente fabril, ela está em suas casas, nos seus ambientes de lazer, nos seus programas de TV, nas
suas rodas de conversa, em suas escolas e universidades e, para polemizar um pouco mais, até
dentro das igrejas que ainda são um “braço invisível” do estado capitalista burguês. A acumulação
integral engloba a esfera política, econômica e social do trabalhador, ela toma conta da cultura e se
coloca a serviço dos interesses do capital.
34 ALMEIDA, Felipe Mateus de. Reestruturação produtiva e trabalho: o mito da flexibilização. Estácio de
Sá – Ciências Humanas. Revista da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES-Go. Vol. 02, nº 10, 25-35,
Fev./Jul. 2014.
Outro processo que é resultante do mito da flexibilização do trabalho no toyotismo é o
fenômeno da intensificação. Segundo Dal Rosso (2008, p.70), com o advento do toyotismo têm-se o
surgimento de um tipo de mais-valor relativo graças às “mudanças tecnológicas junto com
transformações na organização do trabalho”. Nesse sentido, a intensificação do trabalho deve ser
compreendida como,
Os processos de quaisquer naturezas que resultam em um maior dispêndio das capacidades
físicas, cognitivas e emotivas do trabalhador como o objetivo de elevar quantitativamente
ou melhorar qualitativamente os resultados. Em síntese, mais trabalho (DAL ROSSO, op.
cit., p. 23).
Diferentemente da precarização, a intensificação do trabalho não está associada apenas
aos aspectos legais das relações trabalhistas – carteira assinada; seguridade social; décimo terceiro
salário e férias remuneradas. Compreender o trabalho através da intensificação é ir além desses
aspectos – que continuam sendo de suma importância para compreender as relações sociais de
trabalho no capitalismo – associando-os a incorporação e exploração das faculdades subjetivas e das
capacidades físicas, cognitivas e psicológicas dos trabalhadores pelos detentores dos meios de
produção.
O fenômeno da intensificação pode ser identificado através dos seguintes aspectos: o
alongamento da jornada de trabalho, o ritmo e a velocidade, o acúmulo de atividades, a
polivalência, versatilidade e flexibilidade e a gestão por resultados (DAL ROSSO, op. cit.). Os
exemplos desse processo de intensificação do trabalho podem ser visto nas mais diversas
bibliografias acerca da sociologia do trabalho e nos mais diversos ambientes de trabalho: no
Shopping Center, nos bancos, Call Centers, etc.
Portanto, o discurso da flexibilização do trabalho nada mais é do que um discurso que
esconde a sua verdadeira intenção: o aumento da extração de mais-valia relativa e a criação de
novos mecanismos de controle e manipulação dos trabalhadores por parte dos detentores dos meios
de produção. A aparência da flexibilização é uma coisa, porém, a sua essência é totalmente
diferente.
Conclusão
O presente artigo teve como objetivo apresentar uma discussão sobre o fenômeno da
flexibilização do trabalho e o discurso dominante que acoberta o processo de extração de mais-valia
relativa por trás desse fenômeno. Mostrou-se ainda como a flexibilização é capaz de criar novas
políticas que contribuem com os processos de privatização e de relaxamento das leis e dos direitos
dos trabalhadores. É interessante ressaltar ainda que tal análise foi possível graças as contribuições
35 ALMEIDA, Felipe Mateus de. Reestruturação produtiva e trabalho: o mito da flexibilização. Estácio de
Sá – Ciências Humanas. Revista da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES-Go. Vol. 02, nº 10, 25-35,
Fev./Jul. 2014.
do pensamento de Karl Marx e seus estudos sobre o modo de produção capitalista. Tal contribuição
serve para mostrar a necessidade de se voltar aos clássicos da sociologia para que se compreenda
como o processo de trabalho e muitas outras questões que são debatidas pelos sociólogos da
contemporaneidade, têm suas raízes nas discussões feitas pelos clássicos da sociologia.
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__________
DOSSIÊ
(ORGS.):
NILDO VIANA
FRANCISCO CHAGAS RABELO
EDMAR APARECIDO DE BARRA E LOPES
37 SILVA, Einstein Augusto da; VIANA, Nildo; SOUZA, Renato Dias de. A gênese social do naturalismo
brasileiro. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Revista da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES-Go. Vol.
02, nº 10, 37-50, Fev./Jul. 2014.
A GÊNESE SOCIAL DO NATURALISMO BRASILEIRO
Einstein Augusto da Silva1; Nildo Viana2; Renato Dias de Souza3
RESUMO
ABSTRACT
O presente artigo tematiza a história social do
naturalismo brasileiro com o objetivo de reconstituir
o processo de formação social deste movimento
literário, o que nos remeteu ao estudo de seu
surgimento na Europa e seu contexto, e,
posteriormente, a sua reprodução no Brasil, com sua
especificidade nacional. Para efetivar a pesquisa
realizamos uma revisão bibliográfica referente ao
estudo sobre a relação literatura e sociedade, e
colocamos a indissociabilidade entre história da
sociedade e história da literatura. Posteriormente,
analisamos o processo histórico de engendramento
do naturalismo na Europa, através da percepção dos
processos de mudança social que fizeram emergir
este movimento literário. Após isto, abordamos
brevemente o contexto social em que houve a
emergência do naturalismo brasileiro, analisando o
seu processo social de gestação e suas
características, em comparação com o naturalismo
europeu, visando descobrir a especificidade do
naturalismo brasileiro a partir de suas diferenças
com o naturalismo europeu. O processo de
colonização cultural de nosso país forneceu a chave
explicativa para compreender a especificidade do
naturalismo brasileiro.
This article studies the social history of Brazilian
naturalism in order to reconstruct the process of
social formation of this literary movement, which
sent us to study its emergence in Europe and its
context, and subsequently, their reproduction in
Brazil, with their national specificity. To narrow the
search to perform a literature review covering the
study of literature and society relationship, and put
the inseparability of history of society and history of
literature. Subsequently, we analyze the historical
process of engendering of naturalism in Europe,
through the perception of social change processes
that did emerge this literary movement. After this,
we discuss briefly the social context in which there
was the emergence of Brazilian naturalism,
analyzing their social process of pregnancy and their
characteristics, compared with the European
naturalism aimed at discovering the specificity of
Brazilian naturalism from his differences with
naturalism European. The process of cultural
colonization of our country provided the explanatory
key to understanding the specificity of Brazilian
naturalism.
Palavras-chave:
individualismo.
1
naturalismo;
Keywords: naturalismo; literature; individualism.
literatura;
Graduado em História pela UEG – Universidade Estadual de Goiás e Mestre em História pela UFG – Universidade
Federal de Goiás.
2
Professor da Faculdade de Ciências Sociais e do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal
de Goiás; Doutor em Sociologia/UnB; Pós-Doutorando em Sáude Coletiva/USP.
3
Professor da Universidade Estadual de Goiás; Graduado em História/UEG; Mestre em História/UFG; Doutorando em
Sociologia/UFG.
38 SILVA, Einstein Augusto da; VIANA, Nildo; SOUZA, Renato Dias de. A gênese social do naturalismo
brasileiro. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Revista da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES-Go. Vol.
02, nº 10, 37-50, Fev./Jul. 2014.
O objeto de estudo em nossa pesquisa é o naturalismo no Brasil. Este movimento
literário já foi abordado por alguns pesquisadores e historiadores (TINHORÃO, 1966; WERNECK
SODRÉ, 1965), mas de forma não sistemática e limitada. O pequeno livro de Tinhorão tem a
maioria de suas páginas dedicada ao contexto histórico e poucas páginas dedicadas ao naturalismo
em si mesmo, além de sua concepção mecanicista, que empobrece a análise. Já o livro de Werneck
Sodré aborda principalmente o naturalismo na Europa e apenas no final do livro, no último capítulo,
trata do naturalismo no Brasil. Isto sem colocar que sua abordagem também padece do problema do
mecanicismo. Os livros de História da Literatura raramente realizam uma história social da
literatura, buscando compreender a gênese social dos movimentos literários e isso não foi diferente
no caso do naturalismo brasileiro.
O naturalismo nasce na Europa e logo chega à sociedade brasileira. Para alguns autores,
Zola é o grande representante do naturalismo europeu e juntamente com Eça de Queiroz, em
Portugal, vão garantir um espaço no mundo literário e promover uma forte influência no movimento
naturalista no Brasil (WERNECK SODRÉ, 1965). É no Estado do Ceará que este movimento vai se
desenvolver com maior força, mas também terá presença marcante no Maranhão e em outros
estados. Um dos seus principais representantes no Brasil será Aluísio Azevedo.
Literatura, classes e mentalidade
O naturalismo representou um dos capítulos mais importantes da literatura brasileira e
uma análise fundada na sociologia da literatura e outras contribuições tem o papel de resgatar sua
importância e parte da história da cultura brasileira. Nesse sentido, uma ampla bibliografia sobre
arte e literatura pode ser consultada, incluindo as contribuições de sociólogos e historiadores e
especialistas de outras áreas (DUVIGNAUD, 1970; CANCLINI, 1979; BASTIDE, 1979;
FRANCASTEL, 1982; HAUSER, 1984; LUKÁCS, 1970; VÁZQUEZ, 1978; LUKÁCS, 1968;
PRÉVOST, 1976; GOLDMANN, 1976; LEFEBVRE, 1978; JAMESON, 1985; BARBU, 1975;
EAGLETON, 1997), sendo ponto de partida para uma reflexão teórica a respeito das relações entre
literatura e sociedade. A relação entre literatura e sociedade nos remete para diversas questões, tal
como a questão das classes sociais, da mentalidade, da cultura (BARBU, 1975), bem como o
contexto histórico-social implícito nos elementos referidos. A literatura é constituída socialmente,
seus temas, problemas, concepções, etc., são produtos sociais, veiculadas através do autor, que
expressa uma consciência individual que é, ao mesmo tempo, social e que é constituída no conjunto
das relações sociais travadas pelo indivíduo. A história da literatura só pode ser compreendida no
interior da história da sociedade (VIANA, 1997).
39 SILVA, Einstein Augusto da; VIANA, Nildo; SOUZA, Renato Dias de. A gênese social do naturalismo
brasileiro. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Revista da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES-Go. Vol.
02, nº 10, 37-50, Fev./Jul. 2014.
Nesse sentido, uma determinada produção literária é inseparável da sociedade que lhe
produz e que tal inseparabilidade se manifesta em alguns aspectos fundamentais, a saber: A) as
obras literárias são produzidas socialmente, em determinada época e sociedade, o que é um truísmo;
B) as mensagens (valores, representações, concepções, sentimentos, etc.) manifestas numa obra
literária são também constituídas socialmente; C) essa reprodução do social na obra literária
significa que ela manifesta o social, a partir da perspectiva de quem a produziu, sendo, pois uma
expressão do real que sempre expressa alguém e sua situação na sociedade – classes, indivíduos,
etc.; D) as obras literárias, uma vez produzidas, podem exercer influência ou servir de inspiração
para novas as pessoas e por isso atuam também sobre a sociedade, fortalecendo uma ou outra
tendência no seu interior. Para os propósitos do presente trabalho, esse último aspecto não nos
interesse, pois nosso objetivo é apresentar uma história social da gênese do naturalismo brasileiro e
não de seu impacto sobre a sociedade brasileira.
O primeiro ponto é confirmado por uma ampla bibliografia tanto da sociologia quanto
de outras áreas (DUVIGNAUD, 1970; CANCLINI, 1979; BASTIDE, 1979; FRANCASTEL, 1982;
HAUSER, 1984; LUKÁCS, 1970; VÁZQUEZ, 1978; LUKÁCS, 1968; PRÉVOST, 1976;
GOLDMANN, 1976; LEFEBVRE, 1978; JAMESON, 1985; BARBU, 1975; EAGLETON, 1997).
A questão é que a afirmação genérica aponta para isso, mas a forma como concebe isso varia, ou
seja, as obras literárias são produtos sociais, mas como isso ocorre é apontado sob formas
diferentes. Para alguns, existem “estruturas homólogas” (GOLDMANN, 1976) entre romance e
sociedade, bem como para outros, sob inspiração leninista, a obra literária é “reflexo da realidade”
(LUKÁCS, 1970). Essas e outras posições não são as mais adequadas, já que padecem de diversos
problemas, entre eles uma má compreensão do materialismo histórico-dialético (VIANA, 1997).
Sem dúvida, a sociedade como um todo, com suas relações sociais predominantes e generalizadas,
com a hegemonia cultural de determinada época e lugar, entre outros elementos, são determinantes
na produção literária. Porém, ao lado dessas determinações mais gerais e seu reconhecimento, é
preciso entender que a sociedade capitalista, como é o caso aqui analisado, não é um todo
homogêneo e sim uma sociedade dividida em classes, com suas subdivisões, bem como com
diferenças culturais, nacionais, etc., que são suas peculiaridades, além das individuais, e cada
literato é um indivíduo com sua singularidade psíquica (VIANA, 2006). Assim, uma obra literária
expressa a realidade social de determinada época e lugar, mas a partir de quem realiza tal expressão,
o que significa que é preciso especificar as outras determinações que atuam sobre o indivíduo, que é
a forma concreta como ocorre a sua produção social.
40 SILVA, Einstein Augusto da; VIANA, Nildo; SOUZA, Renato Dias de. A gênese social do naturalismo
brasileiro. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Revista da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES-Go. Vol.
02, nº 10, 37-50, Fev./Jul. 2014.
Um destes elementos é a classe social do literato, tanto a classe de origem quanto a de
quando produziu, bem como outras divisões e posições que o indivíduo possui na sociedade e
deixam suas marcas nele. O autor manifesta sua classe social de pertencimento, conscientemente ou
não, pois além de determinado modo de vida que compartilhou ou compartilha, bem como
costumes, valores, predisposições mentais determinadas, ou seja, um conjunto amplo que engloba a
mentalidade do indivíduo (seu universo psíquico) como também os costumes, hábitos, formas de
comportamento, que herdou da classe que pertence e/ou pertenceu (embora mesmo mudando de
classe, o indivíduo ainda mantém, por mínimo que seja, algumas características oriundas de sua
classe de origem).
A classe social ou a consciência de classe de um grupo de pessoas expressa-se, portanto,
não apenas nos personagens retratados em uma obra de arte, mas também em uma série de
traços formais e estilísticos, assim como em uma série de outros traços referentes à
concepção geral e estilo de vida sugeridos por tal obra (BARBU, 1975, p. 19).
Assim, temos uma determinação mais geral, da sociedade e época em seu conjunto,
através da hegemonia cultural, modo de vida dominante, etc., e também uma determinação de classe
social. Se recordarmos que uma classe social se divide em diversas frações de classes (VIANA,
2012), então isso se complexifica bastante. Além disso, um indivíduo pode pertencer a uma classe
social e se identificar com outra4, tal como no caso de pessoas marxistas que pertencem à classe
intelectual e buscam expressar a perspectiva do proletariado, ou aqueles que se identificam com a
classe burguesa. Por isso, ao contrário do que pensa Lucien Goldmann (1976) e sua abstração das
estruturas homólogas, que pensa apensa em termos de sociedade e visões de mundo das classes
sociais, é necessário analisar o indivíduo e sua inserção na sociedade, não apenas abstratamente ou
derivando mecanicamente de seu pertencimento de classe, mas observando as demais
determinações, tanto as relacionadas com a classe quanto outras (sexo, raça, etc.), bem como sua
história de vida, o que faz a biografia ter importância nesse processo.
Dentre essas outras determinações, a mentalidade do indivíduo e sua configuração
singular, são fundamentais. Obviamente a mentalidade do individuo é constituída socialmente e por
isso levar em consideração a mentalidade individual significa compreender a mentalidade coletiva e
4
“A psicologia social contemporânea produziu dados empíricos suficientes para provar que o comportamento e a
personalidade do indivíduo são em larga medida influenciados por sua classe social. Mas estabelecer a classe social de
um artista não é um assunto tão fácil como escritores de orientação marxista, como Lukács e Goldmann, gostariam que
acreditássemos. Para começar, é necessário distinguir a origem de classe da identificação de classe do artista, isto é, a
classe social na qual ele foi criado e à qual em certo aspecto ainda pode pertencer, da classe social com a qual ele se
identifica em seus pensamentos, sentimentos e aspirações” (BARBU, 1975, p. 19). O autor aqui confunde
pertencimento de classe e seus efeitos na produção literária com outra determinação, que sua mentalidade e vínculo
consciente com outra classe, que também atua sobre sua produção.
41 SILVA, Einstein Augusto da; VIANA, Nildo; SOUZA, Renato Dias de. A gênese social do naturalismo
brasileiro. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Revista da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES-Go. Vol.
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sua constituição social. Barbu apresenta uma reflexão sobre isso, usando o termo “personalidade”, e
seu uso na pesquisa sociológica:
[...] ninguém entenderá adequadamente a diferença entre o teatro de Ésquilo e Eurípedes
sem levar em conta a diferença entre suas personalidades; com efeito, mesmo quando eles
lidam com os mesmos assuntos – guerra, por exemplo – percebem-nos, avaliam-nos e
dramatizam-nos de um modo completamente diferente. Mas a questão é que o sociólogo
dificilmente poderia ficar aí. Embora ele admitisse e registrasse a diferença em suas
estruturas de personalidade, estaria inclinado a dar conta dessa diferença, ou pelo menos de
parte dela, em termos sociais. Assim, ele enfatizaria o fato de que os dois artistas, embora
sendo ambos atenienses, pertencem a classes sociais diferentes – o primeiro às classes altas,
o segundo às baixas. Essa diferença de classe pode dar conta do fato de que, embora quase
contemporâneos, os dois escritores identificavam-se com duas gerações separadas não tanto
por idade, mas por orientações culturais e políticas. Eurípedes pertencia, ou pelo menos
simpatizava com a juventude rebelde de seu tempo. Em conclusão, o sociólogo estaria
inclinado a interpretar a diferença entre suas concepções de teatro em termos de seus climas
5
culturais específicos (BARBU, 1975, p. 26) .
A singularidade psíquica é a forma singular como o indivíduo desenvolve sua
mentalidade individual, expressão específica da mentalidade coletiva. Essa singularidade psíquica
do indivíduo é ela mesma constituída socialmente, mas não é analisando as relações sociais gerais, a
sociabilidade dominante, a hegemonia cultural, que se pode descobrir e entender isso e sim através
do seu processo histórico de vida, marcado por uma história de relações sociais e processos vividos
apenas por este indivíduo, envolvendo múltiplas determinações. Nesse sentido, desde a infância,
passando por toda sua vida, todas suas relações sociais (afetivas, familiares, profissionais,
comunicativas, etc.), desde as fundamentais e mais marcantes, até as menos importantes. Inclusive o
que vai ser percebido como mais marcante, a partir de um certo momento da história do indivíduo, é
definido diferentemente por pessoas com diferenças em sua singularidade psíquica a este respeito.
Por exemplo, um indivíduo ganhar um carro ao completar dezoito anos pode ser algo inesquecível e
valoroso para determinado indivíduo (gerando gratidão, etc. em relação a quem deu o mesmo) e
para outro apenas algo interessante e útil, pois nessa idade o indivíduo em questão já desenvolveu
um conjunto de valores, sentimentos, interesses, concepções, que pode gerar formas distintas de
perceber tal acontecimento, apesar da tendência geral apontar para uma certa homogeneidade em
tais casos, e o diferencial mostra, no mínimo, que o indivíduo divergente tem uma singularidade
5
Claro que não concordamos com a totalidade de suas afirmações. Em primeiro lugar, as expressões “classes altas” e
“baixas” são não-marxistas e só teria sentido ao colocar que um pertence a uma das classes privilegiadas e outro às
classes desprivilegiadas, de difícil identificação devido poucas informações biográficas a respeito de ambos. Outro
elemento é derivar a estrutura de personalidade, ou a mentalidade individual, do “clima cultural específico”, que revela
outra coisa (a influência da sociedade em geral ou da classe social específica), pois ela é derivada dessas determinações
e outras que só são compreensíveis a nível da história de vida do indivíduo em questão. Sem dúvida, a recusa de Barbu
nesse aspecto é derivada de sua opção por opção por uma análise especialista e disciplinar, apenas sociológica,
deixando de lado a questão da totalidade (KORSCH, 1977; LUKÁCS, 1989), jogando para fora da análise o que foge da
especialização disciplinar, criando um mundo de pseudoconcreticidade (KOSIK, 1986).
42 SILVA, Einstein Augusto da; VIANA, Nildo; SOUZA, Renato Dias de. A gênese social do naturalismo
brasileiro. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Revista da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES-Go. Vol.
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psíquica que aponta para maior autonomia individual diante da hegemonia cultural. Mesmo antes,
como no caso de uma criança cuja família considera que ir ao parque de diversões é algo normal,
necessário e que deixará a mesma contente, e isso não ocorre, pois sua formação psíquica singular
não coloca isso como algo desejável6.
Esses processos sociais constituem a constituição da obra literária e, por conseguinte,
manifesta valores, representações, concepções, sentimentos, etc., de quem a produz, a partir de sua
posição na sociedade, sua inserção na divisão social do trabalho, etc. Desta forma, a obra literária é
produzida socialmente e que ela reproduz o social em seu interior através de suas mensagens. O
social manifesto na obra literária, contudo, apresenta elementos que remetem à sociedade em seu
conjunto e também a inserção do seu produtor na mesma, o que significa uma grande complexidade
marcada por uma multiplicidade de determinações. Nesse sentido, não é possível entender que a
mensagem ou o conteúdo de uma obra literária manifeste a realidade, sendo mero reflexo dela, mas
sim que ela expressa a realidade sob a forma específica derivada daquele que é seu produtor. Por
conseguinte, a literatura é um produto social e histórico, que manifesta representações, valores,
concepções, etc., que podem ser hegemônicos ou não em determinada sociedade e época, pois isso
depende da obra literária e de quem a produz.
O naturalismo brasileiro
Após essas reflexões teóricas, podemos encaminhar a análise do naturalismo brasileiro.
A leitura das principais obras naturalistas é um elemento fundamental para compreender a relação
entre este movimento literário e a sociedade brasileira da época de sua vigência, pois o seu estilo,
temas, conteúdo, valores expressos, são fundamentais para analisar sua relação com o processo
social e suas relações com a sociedade da época. O nome de Aluísio de Azevedo se destaca, bem
como suas obras O Mulato, O Cortiço e Casa de Pensão. Outros autores e obras se destacam: A
Normalista, de Adolfo Caminha; A Carne, de Júlio Ribeiro, entre outras, são representativas deste
movimento. Neles podemos observar uma forma literária peculiar ligada às mudanças sociais na
sociedade brasileira e no mundo, reconhecendo a influência cultural europeia, principalmente
francesa e portuguesa. No entanto, escolhemos apenas uma obra para focalizar e realizar a análise
6
Isso não significa que a singularidade psíquica e autonomia individual seja algo bom ou mau. A singularidade psíquica
pode ser tanto num sentido benéfico ou maléfico. O psicopata, por exemplo, possui uma determinada singularidade
psíquica, voltado para a necrofilia e por determinado processo histórico de vida voltado para um sentimento destrutivo
em relação a tipos específicos de pessoas, enquanto que um grande artista rebelde preocupado com a emancipação
humana também possui sua singularidade psíquica, sendo que um é prejudicial para os outros e a si mesmo e o outro
benéfico para os demais e para si. Numa sociedade radicalmente diferente, marcada pela igualdade e liberdade, a
singularidade psíquica e autonomia individual se desenvolvem (VIANA, 2013) e se tornam benéficas devido a base
social ser distinta da existente na sociedade capitalista (exploração e dominação e tudo que é derivado daí, inclusive os
desequilíbrios psíquicos).
43 SILVA, Einstein Augusto da; VIANA, Nildo; SOUZA, Renato Dias de. A gênese social do naturalismo
brasileiro. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Revista da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES-Go. Vol.
02, nº 10, 37-50, Fev./Jul. 2014.
mais profunda, O Mulato, pois a consideramos uma das mais representativas obras do movimento
naturalista no Brasil. Isso coincide com a percepção de vários pesquisadores que também tomam
esta obra como a mais significativa do naturalismo brasileiro. Outros discordam parcialmente,
através de julgamentos sobre o valor de tal obra em si, o seu grau de pureza “naturalista”. Alguns
(PEREIRA, 1973; WERNECK SODRÉ, 1965) afirmam a forte influência do romantismo na
mesma, sendo mais uma mistura dos dois gêneros. Isso, no entanto, é posteriormente repetido a
respeito das demais obras e referente a todo o naturalismo brasileiro e que, portanto, não
compromete tal obra e sim a insere dentro da especificidade nacional desta forma de manifestação
do movimento naturalista.
Assim, através da análise dessa obra literária, poderemos observar as semelhanças e
diferenças entre o naturalismo brasileiro e o europeu e, por conseguinte, analisar a distinção no
processo de formação de ambos, sendo que nosso foco é o primeiro e só em termos comparativos
abordaremos o segundo. De forma secundária apresentaremos outras obras naturalistas produzidas
no Brasil no sentido de reforçar o processo analítico ao mostrar que não é apenas uma obra que
realiza tal manifestação.
A época do surgimento do naturalismo é o século 19. Esta fase da sociedade capitalista
é marcada por várias mudanças. Até 1840 temos determinada situação de extensas jornadas de
trabalho, de participação política restrita das classes sociais desprivilegiadas, através da democracia
censitária (VIANA, 2003), mas que realizam suas lutas e promovem uma crise e isso gera, por parte
da classe dominante, a tentativa de solução da crise durante os anos 40 até 50, quando emerge uma
nova e forte onda de lutas operárias, que culminam com a Comuna de Paris. Este processo mostra a
crise do regime de acumulação extensivo e passagem para o regime de acumulação intensivo
(VIANA, 2003; VIANA, 2009).
Estas mudanças no âmbito socioeconômico possuem ressonâncias em outras instâncias
da sociedade. Na instância cultural, há mudanças tanto nas relações sociais concretas quanto em
suas expressões intelectuais. É nesse contexto que a esfera artística (bem como a subesfera
literária7) avança em seu processo de formação, bem como as ideias de progresso e de ciência,
acabam se tornando hegemônicas e dominantes. Isto vai gerar não somente novas formas de
produção literária como também novas ideias e concepções no seu interior. No processo de
produção literária, emergem determinados movimentos artísticos inseridos no processo de mudança
7
Bourdieu retratou isso em sua obra As Regras da Arte, denominando, no entanto, como “campo literário”
(BOURDIEU, 1996). A ideia de “campo”, no entanto, está inserida num conjunto ideológico do qual discordamos e,
por conseguinte, consideramos mais adequado o termo “subesfera literária”, uma subdivisão da esfera artística
(VIANA, 2014).
44 SILVA, Einstein Augusto da; VIANA, Nildo; SOUZA, Renato Dias de. A gênese social do naturalismo
brasileiro. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Revista da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES-Go. Vol.
02, nº 10, 37-50, Fev./Jul. 2014.
social geral, tal como o naturalismo. Zola diria que “vivemos na era do trem de ferro, do telefone
elétrico e outras maravilhas mecânicas” (apud. WERNECK SODRÉ, 1965, p. 19). Zola foi o grande
nome do naturalismo e foi justamente neste período que a sua obra se destacou, de 1867 a 1893. Ele
busca se inspirar no pensamento científico e na medicina de Claude Bernard 8 para enfatizar a
observação, a experimentação, em sua visão determinista da realidade (MARIN, 1991). Em
Portugal surgirá outro grande nome do naturalismo: Eça de Queiroz, um dos fundadores do
naturalismo em Portugal aparece a partir de sua obra O Crime do Padre Amaro (1877).
O naturalismo no Brasil nasce a partir da influência da literatura europeia,
especialmente destes dois literatos naturalistas. A época de surgimento do naturalismo no Brasil é
marcada pela transição do escravismo colonial para o capitalismo. O Brasil passou da situação
colonial para a situação neocolonial, ficando inserido na estrutura do capitalismo mundial de forma
subordinada, o que gerou (na verdade, manteve, mas agora saindo da hegemonia portuguesa para a
inglesa e europeia, no caso da literatura, francesa) também a subordinação cultural. Neste contexto,
as ideias europeias exerciam (e continuam exercendo, mas agora com concorrentes poderosos
oriundos de outros países imperialistas, tal como Japão e principalmente Estados Unidos) grande
influência na sociedade brasileira, tal como o positivismo e, no plano literário, o naturalismo. Neste
contexto também ocorre uma expansão das profissões liberais e dos intelectuais enquanto “camada
social” (TINHORÃO, 1966), ou, para ser mais exato, sua formação como classe social. A ortodoxia
do naturalismo brasileiro, segundo Werneck Sodré, se prendeu fundamentalmente aos “aspectos
mórbidos” e ele cita como exemplos Fome (Rodolfo Teófilo); A Luta (Carmem Dolores); Alma em
Delírio (Canto e Melo); Morbus (Faria Neves Sobrinho); O Homem (Aluísio Azevedo); A
Normalista (Adolfo Caminha), entre outras obras.
Assim, notamos que o naturalismo possui uma origem social e histórica delimitada e
que isto produz uma determinada produção literária. Embora seguindo o naturalismo europeu, por
não possuir as mesmas bases sociais, acabava promovendo uma determinada produção que se
diferenciava da versão europeia. Devido à questão de espaço, teremos que selecionar uma obra, O
Mulato, de Aluísio Azevedo, para fazermos uma análise mais pormenorizada.
O primeiro elemento a destacar é o domínio temático de O Mulato. Ora, o tema
reproduz uma questão que é típica da sociedade brasileira, especialmente as relações raciais que se
vê não somente na escravidão como na opressão sexual da escrava e do destino de um filho de uma
escrava, um “mulato”, fruto da miscigenação racial. No interior do tema ainda temos a tragédia – os
assassinatos, o enlouquecimento, etc. – e a decadência civilizatória expressa no clero. Aqui temos
8
Assim como o sociólogo Durkheim (1974).
45 SILVA, Einstein Augusto da; VIANA, Nildo; SOUZA, Renato Dias de. A gênese social do naturalismo
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não somente o procedimento naturalista de optar pelo mórbido e por situações trágicas e
decadentes, como este procedimento aplicado à realidade brasileira. A diferença com o naturalismo
europeu reside não somente na realidade que é pano de fundo da narração, embora isso tenha,
obviamente, ressonância no resto, mas também no foco no aspecto individual ao invés do coletivo.
Enquanto Zola retratava os mineiros e camponeses, isto é, classes sociais ou frações de classes,
Aluísio Azevedo retratou um indivíduo, um mulato. A precariedade da situação social de um grupo
social é substituída pela precariedade moral de alguns indivíduos.
Daqui podemos extrair vários aspectos da relação entre o naturalismo brasileiro e a
sociedade da época. Sem dúvida, o período em que tais obras são produzidas é marcado pela pósabolição, o fim da classe social dos escravos e o enfraquecimento da classe senhorial que vai se
metamorfoseando em classe latifundiária. Os ex-escravos se inserem na nova realidade sob forma
marginal, se incluindo nas novas classes emergentes e nas mais empobrecidas (lumpemproletariado,
campesinato, proletariado, artesanato, etc.). No entanto, as novas classes vão surgindo
paulatinamente no interior da sociedade brasileira, sendo que o proletariado, elemento vital para a
criação literária europeia, emerge aqui tardiamente, tendo o final do século 19 como a época de
implantação das primeiras indústrias no país. Essa é uma das determinações da narrativa naturalista
no Brasil focalizar os indivíduos e não grupos e classes sociais. Sem dúvida, a classe operária
brasileira somente terá uma expansão quantitativa e aparecer na cena política no início do século 20,
porém, Zola abordou outros grupos sociais, como os camponeses e no Brasil existiam diversos
outras classes e grupos sociais que poderiam ter sido transpostos para obras literárias naturalistas.
Obviamente que existiam e era possível fazer isso e por isso não é a única determinação.
A formação de uma subesfera literária no Brasil é muito precária, sendo que enquanto no caso
europeu já há a profissionalização e autonomização da classe intelectual, incluindo os artistas em
geral e os literatos em particular, no caso brasileiro o que se tem é o fenômeno típico de importação
cultural modernizadora com subdesenvolvimento da base social. Ou seja, no caso dos países
capitalistas subordinados, as ideias, concepções, ideologias, dos países capitalistas imperialistas são
importados, mas as relações sociais concretas dos mesmos são mais desenvolvidas no sentido
capitalista e por isso há uma discrepância, já observada por inúmeros autores, entre relações sociais
concretas e cultura importada. A difusão de ideias e ideologias é mais veloz do que a concretização
de mudanças sociais reais e por isso foi possível a existência de uma influência marxista em países
no qual o proletariado era uma ínfima minoria da população (Rússia, China, etc.), estando em
formação, bem como diversos outros casos concretos.
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Isso gera, obviamente, a necessidade de adaptação. O processo de adaptação significa a
produção de uma cultura subordinada, que é uma versão da cultura importada adequada à realidade
social brasileira (no caso aqui abordado), o que significa que mantém similaridades com a versão
original e algumas especificidades, devido ao novo solo em que brota ter também suas
peculiaridades. Dentre essas peculiaridades do solo brasileiro, além do processo de transição para o
capitalismo não concretizado e que significa classes sociais em formação, inclusive a classe
intelectual e suas subdivisões, tal como a subesfera literária, em uma fase de nascimento. O
desenvolvimento da imprensa, a expansão dos jornais como principal meio de comunicação, foi um
elemento propulsor, embora através da mescla entre atividade literária e jornalística (PIRES, 2014;
SCHERER, 2014). É nesse processo de formação da subesfera literária, que vai avançando
paulatinamente, tal como com a criação da Academia Brasileira de Letras, em 1897, por Machado
de Assis, apesar de sua precariedade, entre outras mudanças na produção da época, que explica
algumas características da produção literária da época, sendo uma das peculiaridades nacionais9.
Outro elemento que se observa na narração é o determinismo característico do
naturalismo. Um filho de uma escrava acaba sofrendo um destino que é tão trágico quanto o da
mãe. A narrativa é de caráter mórbido, tal como se vê no trecho abaixo:
A Praça da Alegria apresentava um ar fúnebre. De um casebre miserável, de porta e janela,
ouviam-se gemer os armadores enferrujados de uma rede e uma voz tísica e aflautada de
mulher, cantar em falsete a ‘gentil Carolina era bela’, doutro lado da praça, uma preta
velha, vergada por imenso tabuleiro de madeira, sujo, seboso, cheio de sangue e coberto por
uma nuvem de moscas, apregoava em tom muito arrastado e melancólico: ‘fígado, rins e
coração!’ Era uma vendedeira de fatos e boi (AZEVEDO, 2004, p. 5).
Este trecho deixa entrever as preferências narrativas do autor. As descrições detalhadas da
miséria, da sujeira, da tristeza, da imoralidade, permeiam esta obra. Isto é notado e feito sob
diversas formas, tal como quando o autor narra o episódio no qual o tio de Raimundo conta sua
história de vida e sua origem, o que lhe fez compreender a forma como foi recebido pela população
da cidade de São Luís. Ele era um mulato e isto explicava o afastamento de uns, o medo de outros,
o preconceito de mais uns tantos. Assim, o mulato Raimundo era desprezado e também desprezava,
num círculo de reprodução da maldade humana. O indivíduo é o foco e não grupos sociais, mas ele
é vítima de uma situação social, onde se manifesta o determinismo. A justificativa disso se encontra
nas relações sociais.
9
Ao lado da profissionalização ocorre uma crescente tendência ao conservadorismo. Tinhorão mostra como, no caso
cearense, ocorre um processo de crescente conservadorismo, tal como no caso da Padaria Espiritual e sua metamorfose
(TINHORÃO, 1966).
47 SILVA, Einstein Augusto da; VIANA, Nildo; SOUZA, Renato Dias de. A gênese social do naturalismo
brasileiro. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Revista da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES-Go. Vol.
02, nº 10, 37-50, Fev./Jul. 2014.
A explicação da gênese do naturalismo europeu encontra-se nas mudanças sociais da
Europa, formando as bases do processo de engendramento de uma nova fase do capitalismo
europeu, a instauração do capitalismo oligopolista (regime de acumulação intensivo), no qual o
romantismo é substituído pelo realismo e, pouco depois, pelo naturalismo. O naturalismo brasileiro,
por sua vez, pode ser explicado pela subordinação cultural, que provoca uma transposição sem que
as bases sociais sejam as mesmas, gerando a diferença adaptativa, tal como já colocamos. A
emergência, no Brasil, de um grupo de literatos acompanhando o processo de urbanização e
formação das academias, tal como no Ceará e Maranhão, fornece a frágil base social desse
processo. A questão é que os literatos europeus se encontravam diante de um processo social
marcado pelo conflito de classes entre burguesia e proletariado, enquanto que no Brasil o conflito se
dava entre classe escravocrata e classe escrava num processo de abolição da escravidão marcada
não por revoluções violentas, mas pela tentativa de parte da classe dominante em “doar” a liberdade
aos escravos e surgimento de novas classes e conflitos de classes10. Assim, as classes sociais no
Brasil, estavam num momento de transição do escravismo para o capitalismo, o que significava
destruição de algumas classes e emergência de outras, bem como ampliação da divisão social do
trabalho (criando várias subdivisões dentro de cada classe emergente). A debilidade da classe
dominante brasileira diante da burguesia dos países europeus, formava uma base social no qual os
literatos não conseguiam identificar classes ou grupos sociais protagonistas e por isso se dedicavam
ao indivíduo, submetido a um determinismo ainda mais cruel do que o encontrado no naturalismo
europeu.
A compreensão do naturalismo no Brasil passa pela percepção da subordinação cultural,
marcada pela produção de “ideias fora do lugar” (SCHWARZ, 1988). Desta forma, emerge um
naturalismo subordinado, cuja característica consiste em não retratar classes sociais e sim
indivíduos que, no entanto, podem ser considerados representativos de uma nação colonizada que
quer autonomia, reconhecimento, tal como se pode observar no trecho em que Aluísio Azevedo
descreve Raimundo: “tipo acabado de brasileiro”, sendo expressão da miscigenação racial, tendo
boa aparência e elegância, amante da arte, ciência e literatura, mas “bem educado”, “despido de
pretensão”, o que coloca simultaneamente a questão da beleza e da cultura convivendo
simultaneamente com a humildade. Aqui se revela o misto de orgulho e sentimento de inferioridade
de um indivíduo, que, no fundo, representa uma nação. A origem oculta é a outra face da
10
O que não quer dizer que tenha sido assim que efetivamente ocorreu, pois as lutas dos escravos pela libertação foram
constantes e ganhou bastante radicalidade no seu período final, além da pressão da Inglaterra, ou seja, foi um processo
com múltiplas determinações. No entanto, a classe dominante local, busca evitar a percepção do seu desgaste e possível
derrota e por isso aparenta aceitar a abolição e toma iniciativa jurídica nesse processo.
48 SILVA, Einstein Augusto da; VIANA, Nildo; SOUZA, Renato Dias de. A gênese social do naturalismo
brasileiro. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Revista da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES-Go. Vol.
02, nº 10, 37-50, Fev./Jul. 2014.
miscigenação racial, pois o Brasil nasce como colônia portuguesa, mas tem na África uma fonte de
parte de seus habitantes. Este sentimento de inferioridade e humildade de Raimundo, que é ao
mesmo tempo endinheirado e possuindo outras qualidades, mostra bem os valores dos literatos
brasileiros emergentes, colocando eles enquanto os representantes da nação, pois dotados de
cultura, beleza, educação, embora vistos com preconceito e carregando em si um sentimento de
inferioridade. Tal sentimento, embora não fosse exclusividade da intelectualidade, repercutia sob a
forma intelectual e literária sobre esta fração de classe social em formação. E também retratava a
posição da sociedade brasileira, com seu capitalismo subordinado em formação e sua cultura
subordinada em desenvolvimento.
Outra peculiaridade do naturalismo brasileira era os resquícios de romantismo. Isso é
perceptível em O Mulato, mas também em diversas outras obras naturalistas. Esse hibridismo
estaria em Casa de Pensão, Filomena Borges, O Curuja, O Homem, e fortaleceria sua tendência
romancista com seu declínio (WERNECK SODRÉ, 1965). Como explicar esse suposto hibridismo
marcado pela influência do romantismo? Dois elementos são importantes para tal explicação. Um
deles é a base social na qual emerge o naturalismo brasileiro, pois aqui não só o cientificismo era
mais discurso do que desenvolvimento real da ciência e da esfera científica, como também sua
popularização, além do que sua base real, uma sociedade moderna, era apenas uma promessa, que
avançava mais apenas nas relações de distribuição (mercado) e na cultura. Daí que o discurso
naturalista aqui, apesar de reproduzir ideias importadas como os estudos sobre histeria feminina,
faltava a realidade concreta de tais manifestações e a descrição da realidade brasileira mostrava uma
sociedade ainda demasiadamente rural e sem a frieza da sociabilidade capitalista, na qual as
relações idílicas são substituídas pelo “pagamento à vista” (MARX e ENGELS, 1988). Nesse
sentido, além da herança literária do romantismo, as relações sociais concretas não permitiam um
naturalismo tão inspirado no cientificismo e por isso sua reprodução de elementos de romantismo.
Considerações Finais
O naturalismo brasileiro se insere no contexto social da sociedade brasileira de sua
época e daí advém suas especificidades nacionais. A cultura subordinada brasileira num contexto
histórico e realidade social específica, tenta se adaptar e consegue um público relativo para suas
produções, bem como avançar a produção literária e o desenvolvimento da subesfera literária.
Nesse contexto, a obra O Mulato é inaugural do movimento naturalista no Brasil e é seguido por
diversas outras produções literárias no interior de uma concepção inspirada no naturalismo.
49 SILVA, Einstein Augusto da; VIANA, Nildo; SOUZA, Renato Dias de. A gênese social do naturalismo
brasileiro. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Revista da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES-Go. Vol.
02, nº 10, 37-50, Fev./Jul. 2014.
Sem dúvida, o naturalismo brasileiro expressa, sob certa forma, a realidade brasileira a
partir de uma forma literária importada, o naturalismo, e, ao mesmo tempo, a ânsia e necessidade de
jovens literatos de desenvolver espaços culturas e institucionais para a subesfera literária. Esse
conjunto de determinações, aliado a outras determinações menos significativas, incluindo as
individuais que são parte das diferentes produções naturalistas, acabam permitindo uma
manifestação literária original e específica, que é parte da realidade brasileira e ajuda a
compreender não só a história da literatura em nosso país, mas é mais uma forma de expressão do
modo de fazer literatura (e produção cultural em geral) no Brasil, sob o signo da subordinação ao
capitalismo imperialista e subordinação cultural.
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Nelson Rodrigues. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Revista da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESESGo. Vol. 02, nº 10, 51-65, Fev./Jul. 2014.
MUNDO MODERNO: LUGAR DE RUPTURA E ESFACELAMENTO –
APROXIMAÇÕES ENTRE SIMMEL E NELSON RODRIGUES
Rosano Freire1
RESUMO
ABSTRACT
O presente artigo tenta elucidar a possível presença
de temas e preocupações (a respeito das
características do mundo moderno) semelhantes em
autores separados não só pelo tempo e espaço como
também pela área de atuação – Nelson Rodrigues e
Georg Simmel, respectivamente, na literatura e na
sociologia. Desta forma, este estudo se inscreve nas
interfaces das ciências sociais e da literatura, e
busca, sem obliterar as diferenças, salientar as
aproximações.
This article attempts to elucidate the possible
presence of themes and concerns (about the
characteristics of the modern world) in similar
authors separated not only by time and space but
also the area - Nelson Rodrigues and Georg Simmel,
respectively, in the literature and sociology. Thus,
this study falls within the interfaces of the social
sciences and literature, and search without
obliterating the differences, stress approximations.
Keywords: Nelson Rodrigues; Georg Simmel;
Palavras-chave: Nelson Rodrigues; Georg Simmel; modern world; sociology; literature.
mundo moderno; sociologia; literatura.
Introdução
A literatura brasileira, quando de sua constituição e consolidação, foi “mais do que a
filosofia e as ciências humanas, o fenômeno central da vida do espírito” (CANDIDO, 2006, p. 137).
Em outros termos, o que Candido deseja salientar é o fato de que na ausência de universidades e
outros centros de saber institucionalizados, era a literatura quem fazia as vezes de pensar o nacional.
De fato, como já dito, isso se refere ao período de formação da nossa literatura, que
Candido identifica no movimento romântico. Portanto, guarda uma distância com o momento que
neste trabalho será matizado. No entanto, e é isso que o referido autor ainda sustenta, essa vai ser
uma marca do nosso pensamento social: teremos, de um lado, uma tradição sociológica
genuinamente brasileira, de caráter ensaístico, que vai ficar a meio termo de um trabalho literário e
1
Mestrando no Programa de Pós-graduação em Sociologia da UFPE. Desenvolve pesquisas sobre teoria e método na
sociologia da arte/literatura e sobre as relações entre arte e política. Email: [email protected]
52 FREIRE, Rosano. Mundo moderno: lugar de ruptura e esfacelamento – aproximações entre Simmel e
Nelson Rodrigues. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Revista da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESESGo. Vol. 02, nº 10, 51-65, Fev./Jul. 2014.
um estudo científico por si, e, de outro, uma literatura “acostumada” a tratar de questões pertinentes
à sociedade brasileira, desde a nossa peculiaridade enquanto povo até a nossa identidade nacional.
Se tomarmos por conta que a coluna de “A vida como ela é”, quando de sua publicação,
foi um enorme sucesso junto ao público; e que ela logrou êxito ao ser compilada em livro – apesar
de não ser vista com bons olhos por especialistas em literatura mais ortodoxos, por ter sido escrita
no calor das redações de jornal – e que, na década de 1990, foi adaptada para a televisão, sob a
direção de Daniel Filho e Denise Saraceni, se tornando mais uma vez um grande sucesso de público,
pode-se dizer, então, que, de certa forma, essa obra, que passa do periódico para o literário, e deste
para o teledramatúrgico, tem uma íntima relação com o público brasileiro – conseguindo vencer o
esquecimento durante décadas –, e isso pode sugerir que ela guarda fortes vínculos com as
representações mais triviais da sociedade brasileira sobre amor, casamento, família, comportamento,
etc. Portanto, pode-se sustentar que, em certa medida, “A vida como ela é” se inscreve naquela
tradição, ao tratar, num período de grandes transformações sociais na sociedade brasileira, do que se
pode chamar de modernização invisível, aquela que se dá no âmbito dos valores (FIGUEIRA, 1989).
– levando questões do tipo: como reage o sujeito quando entra em contato com uma nova ordem
normatizadora, a do mundo moderno/vida urbana?
E é justamente neste ponto que acreditamos que a aproximação com Georg Simmel sai
do campo das escolhas aleatórias e ganha plausibilidade. Sabe-se que o surgimento da sociologia
ocorre paralelamente ao advento da concepção de indivíduo moderna, e que esta nova concepção
postula um novo tipo relacionamento, novo tipo de vínculo, entre o indivíduo e a sociedade. Esta
questão, portanto, não sai do horizonte das análises dos maiores estudiosos desta disciplina
(MARTUCELLI, 2007).
Até mesmo Émile Durkheim, um autor que dedica especial atenção à coesão social e à
coletividade, reconhece, em Da Divisão do Trabalho Social, que as sociedades modernas, em
oposição às tradicionais, têm como base moral principal um forte culto ao indivíduo, fator este que
daria o tom da solidariedade de tipo orgânica que a caracteriza. Mas é com Simmel que esta que
esta questão vai se tornar o cerne do debate e vai ganhar maior sistematização, sendo ele o autor que
influenciaria, mais tarde, o que se convencionou chamar de “sociologia do indivíduo”
(MARTUCELLI & SINGLY, 2012).
Para alcançar os objetivos a que nossa pesquisa se propõe, demasiado importantes serão
as considerações de Simmel sobre como o aumento dos espaços sociais fornece um ponto sobre o
qual a individualidade e a liberdade podem se desenvolver e se alargar. Amplos espaços sociais
53 FREIRE, Rosano. Mundo moderno: lugar de ruptura e esfacelamento – aproximações entre Simmel e
Nelson Rodrigues. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Revista da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESESGo. Vol. 02, nº 10, 51-65, Fev./Jul. 2014.
propiciam ao indivíduo uma maior margem de manobra, de liberdade por assim dizer, e abrem a
possibilidade de criação de uma individualidade particular (SIMMEL, 2005a).
O presente trabalho tentará revelar como, em Nelson Rodrigues, por trás de suas já
conhecidas visões acerca do comportamento, há uma profunda percepção de como a diferenciação
dos espaços sociais, num Brasil em franco período de mudança, abre possibilidades de realização
individual, demostrando que a instituição família, se não perdeu de vez, está perdendo o controle
sobre o destino social de seus membros.
É nesta chave que tem de ser estendido este artigo: estudar um sociólogo e um literato a
partir de preocupações semelhantes, mas sem desatentar para os prováveis distanciamentos,
colocando-os num paralelismo profícuo, permite um diálogo que evita tanto que uma obra de arte,
um objeto literário, seja subsumida a uma perspectiva teórica, o que acabaria desprezando suas
características formais, prática tão recorrente num sociologismo mais vulgar, quanto que a própria
obra seja autonomizada em demasia e só suas características internas sejam levadas em conta, o que
muitas vezes fazem os estetas e puristas, rejeitando elementos, fatores e informações que não
aqueles contidos no texto literário.
Este é, portanto, um estudo indicativo e explanatório, que visa escavar caminhos para
uma sociologia da literatura que, informada pelos debates dominantes na área, não se prenda nem a
um lado nem outro, alcançando assim tratamento adequado ao objeto literário ora em apreço.
Nelson Rodrigues e Simmel: percepções argutas sobre mundo moderno e vida urbana
No estudo que ora desenvolvo em nível de mestrado, tentarei demonstrar que Nelson
Rodrigues (1912 – 1980) era um literato com uma visão profundamente negativa do mundo
moderno. Outros trabalhos já apontaram isso de alguma forma (FACINA 2004; GODOY 2012),
mas todos eles enfatizam muito mais o dramaturgo que o escritor. Eu, pelo contrário, terei como
objeto de estudo as crônicas de “A vida como ela é...”.
O percurso de minha pesquisa me mostrou como o Rio de Janeiro é sempre um
contraponto importante e constante em “A vida como ela é...” e nas tragédias cariocas e como seu
diálogo com o dito mundo moderno está sempre em referência à vida urbana da referida cidade. A
partir disto, tive o interesse em explorar como temas correlatos se manifestam na literatura e na
sociologia, com vistas a buscar um suporte teórico para análise que busco desenvolver na
dissertação.
54 FREIRE, Rosano. Mundo moderno: lugar de ruptura e esfacelamento – aproximações entre Simmel e
Nelson Rodrigues. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Revista da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESESGo. Vol. 02, nº 10, 51-65, Fev./Jul. 2014.
A meu ver, a escolha se torna rica porque as histórias de “A vida como ela é....” foram
publicadas, no jornal Última Hora, durante toda a década de 1950, no período que vai de 51 até 61,
e coincide, exatamente, com o momento mais forte de modernização da sociedade brasileira.
É sabido que esta “modernização” sofrida pelo Brasil veio, principalmente, sob a forma
de um novo padrão de produção, espelhado no dos países capitalistas desenvolvidos. Em outros
termos: foi levado a cabo, aqui, um violento processo de industrialização. Como lembra Skidmore
(2010): “a base para o progresso foi uma extraordinária expansão da produção industrial”.
Pode-se enumerar os setores da indústria que surgiram e cresceram neste período: aço,
petroquímica, hidroelétrica, cimento, vidro, papel; indústria de calçados, confecções, têxtil, móveis;
fabricação de aviões e navio de carga; indústria do automóvel, eletrodomésticos, alimentação, entre
outros (MELLO & NOVAES, 1998).
Contudo, o que quero salientar vai um pouco além das transformações que se sucederam
na economia do Brasil da época. Quero, antes, trazer à tona as mudanças que vieram a reboque e/ou
aconteceram simultaneamente a este progresso econômico.
Mello & Novaes, por exemplo, pontuam a gigantesca imigração que ocorreu naquele
momento:
Matutos, caipiras, jecas: certamente era com esses olhos que, em 1950, os 10 milhões de
citadinos viam os outros 41 milhões de brasileiro que moravam no campo, nos vilarejos e
cidadezinhas de menos de 20 mil habitantes. Olhos, portanto, de gente moderna, “superior”,
que enxerga gente atrasada, “inferior”. A vida na cidade atrai e fixa porque oferece
melhores oportunidades e acena um futuro de progresso individual, mas, também, porque é
considerada uma forma superior de existência. A vida no campo, ao contrário, repele e
expulsa. (MELLO & NOVAES, 1998, 574)
É partir desta época que a população brasileira passa a ocupar maciçamente as grandes
cidades. Deixávamos de ser uma população rural. Marly Rodrigues (2010) afirma que em 1950 a
percentagem da população que vivia nas grandes cidades era de 36%; dez anos depois, em 1960,
este percentual saltou para 45% - valor que corresponde, em números absolutos, a 38,5 milhões de
pessoas.
Ainda segundo Marly Rodrigues (2010), a década de 1950 é como um prelúdio do giro
comportamental que se concretizaria na década seguinte: a crescente participação das mulheres no
mercado de trabalho (que saiu de 14% para 16,5% em pouco tempo) e a emancipação sexual trazida
pela pílula anticoncepcional – inventada em 1954 – mexeram com as relações familiares, iniciando
uma mudança nos parâmetros comportamentais.
A imprensa brasileira também passou por drásticas transformações, para acompanhar o
crescente ritmo da vida social urbana da época. A influência da imprensa estadunidense trouxe para
55 FREIRE, Rosano. Mundo moderno: lugar de ruptura e esfacelamento – aproximações entre Simmel e
Nelson Rodrigues. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Revista da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESESGo. Vol. 02, nº 10, 51-65, Fev./Jul. 2014.
nossas redações a uniformização e a busca de maior objetividade e clareza dos textos, através das
técnicas do copy-desk e do lead.
A televisão foi introduzida no Brasil por Assis Chateaubriand, dono do conglomerado
de comunicação Diários Associados, em setembro de 1950. Não chegava a concorrer ainda com o
rádio ou com cinema – pois tinha pequeno alcance -, mas aos poucos ganhava espaço e mudava os
hábitos dos brasileiros: “A imagem, com sua mágica e linguagem próprias, começara a invadir os
lares, vendendo produtos, divulgando modismos, “levando” cultura e encurtando as conversas da
família após o jantar.” (RODRIGUES, 2010, p. 34).
No caso das cidades, aqui entendidas como os espaços urbanos, também se verificou
mudanças profundas. Não me refiro apenas ao “inchaço” urbano e ao surgimento dos bairros de
periferia; essas, consequências previsíveis da imigração acelerada. A questão é que o
recrudescimento da economia fomentou a diferenciação dos espaços sociais:
À medida que as cidades cresciam e desenvolviam-se redes de sociabilidade, independentes
do controle real direto, aumentaram os locais onde estranhos podiam regularmente se
encontrar. Foi a época da construção de enormes espaços urbanos, das primeiras tentativas
de se abrir ruas adequadas à finalidade precípua de passeio de pedestres, como uma forma
de lazer. (SENNETT, 1998, 32)
O que muda, de fato, é a lógica de enxergar os espaços: existe um espaço privado e um
espaço público, este último que, ainda segundo Sennett (1998), passou a ser entendido como
distante e dissociado da vida íntima com a chegada da burguesia ao poder e de seu modus operandi.
Sabe-se que todas essas mudanças alteraram o consumo e o comportamento no Brasil
daquele momento. Não totalmente, mas pelos menos para a parte da população que habitava os
grandes centros urbanos – esta que cresceu significativamente com o rápido processo de
urbanização e industrialização (MELLO & NOVAES, 1998).
Pode-se falar, em suma, na estabilização de uma sociedade urbano-industrial, amparada
por uma política nacional-desenvolvimentista que se aguçou com o desenrolar da década de 1950,
que tinha um estilo de vida novo – inspirado no way of life estadunidense - calcado no consumo de
uma variedade de produtos manufaturados, e que era difundido pelos diversos meios de
comunicação de massa, à época em expansão, como o cinema e a televisão.
Salientei todas essas transformações, e que mais não seja para evitar que o leitor se
canse, para sustentar que a “modernização” que se deu Brasil naquele período, embora tenha se
iniciado no âmbito econômico, o superou em grande medida, e jogou o Brasil no, chamemo-lo
assim, mundo moderno - no sentido mais amplo que pode ter este termo.
Vale assinalar ainda todos estes fatores sociais, o laço existente entre a obra e o seu
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Nelson Rodrigues. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Revista da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESESGo. Vol. 02, nº 10, 51-65, Fev./Jul. 2014.
ambiente, está e deve ser conjugado ao estudo estético da obra literária, pois para fins de análise de
um objeto artístico o conteúdo vira forma e vice-versa. Como disse Candido (2006), é interessante
que se vá do texto ao contexto, e do contexto ao texto, num movimento dialético.
Nesta abordagem, ao invés de encarar o social como determinante para a obra literária,
se tentará enxergar como os fatores sociais atuam em sua formação (e como, posteriormente,
quando já concluída e divulgada, a obra atua sobre o meio); ou seja, o social não é apenas matériaprima, objeto de que trata a obra, mas que atua intimamente na sua constituição, com ela se
confunde.
Para Candido:
Quando fazemos uma análise desse tipo, podemos dizer que levamos em conta o elemento
social, não exteriormente, como referência que permite identificar, na matéria do livro, a
expressão de uma certa época ou de uma sociedade determinada; nem como enquadramento,
que permite situá-lo historicamente; mas como fator da própria construção artística,
estudado no nível explicativo e não ilustrativo (CANDIDO, 2006, p. 16 e 17)
No nosso caso específico, os elementos sociais acima indicados entram não apenas
como recorte histórico, mas como enquadramento sociológico que suscita uma situação cultural,
dentro da qual emergem as noções do nosso Autor. E é justamente neste ponto que a visão de
Nelson Rodrigues como um todo, e, no meu caso, contida em “A como ela é...”, ganha corpo. Pois
Nelson, como já disse, tinha uma visão muito crítica acerca do mundo moderno, e isso aparece de
forma latente e constante nas suas obras. A esse respeito, uma estudiosa sua aponta:
nota-se que, tanto nas crônicas quanto no teatro, existe uma matriz romântica que percebe o
mundo moderno como um momento histórico em que algo se rompeu, que vê o conflito
como expressão do ódio e não como fruto da desigualdade. (FACINA, 2004, 84) [grifos
nossos]
Ou seja, para Nelson Rodrigues, a modernização traz um quê de algo nefasto e
destruidor em seu bojo. É neste sentido que se pode dizer que há, em Nelson Rodrigues, certa
nostalgia pelo tempo em que as relações sociais eram mais bem dispostas (aqui entendidas como
tradicionais) e as hierarquias sociais eram mais rígidas.
Quero sugerir, então, que Nelson Rodrigues mantinha uma postura reflexiva em relação
à modernização, não àquela que ocorreu no campo econômico, mas, sim, aos seus efeitos práticos,
palpáveis, ou, melhor ainda, humanos. E isso, a meu ver, se torna muito importante, na medida em
que ele questiona o tipo de relacionamento que os homens estabelecem, entre si e com seus valores,
dentro das grandes cidades.
Neste ponto, acredito que as contribuições do sociólogo alemão Georg Simmel (1858 1918), para o entendimento da vida nas metrópoles, são de grande ajuda. Em seu ensaio “A
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metrópole e a vida mental”, ele anotou que os problemas mais graves que advém da vida moderna
têm a ver com o desejo do indivíduo de conservar sua autonomia e sua individualidade; uma tarefa
muito difícil, que termina esbarrando nas gigantescas forças externas (sociais, históricas, etc).
Segundo ele, uma investigação que intente captar o sentido profundo dessa vida deve
responder à questão de como a personalidade dialoga com estas forças externas, ou, ainda, de como
a personalidade se ajusta a elas. E, nesta empreitada, Simmel acaba por afirmar que o tipo
metropolitano de indivíduo tem uma base psicológica, qual a seja a da intensificação dos estímulos
nervosos.
Nas metrópoles, o indivíduo é acometido fortemente por uma série rápida de imagens
em mudança, descontínuas, que aparecem e desaparecem de forma abruta. Todas estas impressões
“gastam” muita consciência do indivíduo, que tenta, de alguma maneira, se proteger delas. Nesta
tentativa de se resguardar, o indivíduo metropolitano reage muito menos com o coração e mais com
a cabeça, pois, para Simmel, é o intelecto, que se situa nas camadas mais altas e transparentes de
nossa pisque, a parte mais adaptável de nossas forças interiores.
O contrário acontece nas cidades pequenas, onde as impressões assumem um ritmo
regular e contínuo, exigindo, dessa maneira, muito pouco da consciência do indivíduo. Sobre essa
analogia, Simmel constata:
Na medida em que a cidade grande cria precisamente estas condições psicológicas — a
cada saída à rua, com a velocidade e as variedades da vida econômica, profissional e social
—, ela propicia, já nos fundamentos sensíveis da vida anímica, no quantum da consciência
que ela nos exige em virtude de nossa organização enquanto seres que operam distinções,
uma oposição profunda com relação à cidade pequena e à vida no campo, com ritmo mais
lento e mais habitual, que corre mais uniformemente de sua imagem sensível-espiritual de
vida. (SIMMEL, 2005a, 578)
Uma clara separação geográfico-afetiva se verifica na obra de Nelson Rodrigues, no que
tange ao Rio de Janeiro, lugar de ambientação de muitas suas obras, e, especificamente, dos contos
de “A vida como ela é...”: a Zona Norte, arcaica, era o lugar do lar e do valor moral; a Zona Sul, por
sua vez, já com alguns resquícios de modernização, era permissiva e onde se praticavam os
adultérios (CASTRO, 1992). Como afirmou Angela Maria Dias:
No caso específico de Nelson, mesmo nas histórias curtas de A vida como ela é, durante os
anos 1950, os percursos de seus personagens propiciam uma espécie de metalinguagem
espacial, conotando valores e comportamentos no amplo espectro de possibilidades da Zona
Norte à Zona Sul. (DIAS, 2005, p. 102)
Facina (2004) lembra que, para Nelson Rodrigues, o subúrbio (Zona Norte) do Rio de
Janeiro – um Rio das reminiscências da infância de Nelson ou que, muitas vezes, ele só conheceu
58 FREIRE, Rosano. Mundo moderno: lugar de ruptura e esfacelamento – aproximações entre Simmel e
Nelson Rodrigues. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Revista da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESESGo. Vol. 02, nº 10, 51-65, Fev./Jul. 2014.
através de livros – era o lugar que ainda não tinha sido tocado pelo ritmo frenético do mundo
moderno, e que, por isso, era o espaço por excelência da sobrevivência de determinados valores 2.
Sendo assim, sustentar que existia um espaço próprio à moradia e residência (Zona Norte) e outro
para a “prevaricação” e o “pecado” (Zona Sul), não seja absurdo, já que isso indica modos de vida
concernentes aos lugares da cidade:
de qualquer ponto na superfície da existência [da grande cidade], por mais que ele pareça
brotar apenas nessa superfície e a partir dela, se pode sondar a profundidade da alma, que
todas as exterioridades, mesmo as mais banais, estão ligadas, por fim, mediante linhas de
direção, com as decisões últimas sobre o sentido e o estilo da vida. (SIMMEL, 2005a, p.
580)
São os efeitos totais da cidade, que superam o seu imediatismo. Talvez sejam esses
efeitos, quero crer, que Nelson Rodrigues apreende e transpassa para os seus escritos. Contudo, isso
não era feito de modo isento: Nelson Rodrigues sempre deixava claro sua tomada de posição e
punha sempre um sinal negativo ao lado de suas percepções sobre a modernização da sociedade
brasileira.
Apesar de a espacialidade proposta por Nelson Rodrigues, em suas obras ambientadas
no Rio de Janeiro, já denotarem algo de sua visão acerca da modernização no Brasil, acredito que se
pode penetrar no sentido mais profundo de suas percepções se atentarmos para a perspectiva que ele
adota, no espectro público/privado, em seus escritos.
Neste sentido, a aproximação entre a obra de Nelson Rodrigues e o pensamento do
sociólogo brasileiro Gilberto Freyre é esclarecedora. Facina (2004) foi a primeira a atentar para essa
estreiteza, apontando que os dois voltam seus olhares para o processo de modernização da
sociedade brasileira e a consequente desestruturação da família (ou, para ser mais exato, o
esfacelamento do modelo patriarcal).
Henrique Buarque de Gusmão (2008), numa comparação mais aprofundada a respeito
dos dois autores, salienta que tanto em Casa-Grande & Senzala quanto no teatro rodrigueano, a
família aparece como uma estrutura dentro da qual os personagens estão presos, que busca ditar
alguns padrões de conduta, e dentro da qual estouram rivalidades e tensões. Ele ainda salienta que
a família possui a função de criar o principal laço de solidariedade entre os personagens,
demonstrando uma clara vitória e hipertrofia do nível privado sobre o nível público. Em
2
Embora, até certo ponto, assemelhar o subúrbio do Rio de Janeiro à vida de uma cidade pequena, ou até mesmo
campesina, seja um exagero da parte de Nelson Rodrigues, há de se lembrar dois fatores: primeiro, que ele cresceu num
Rio do início do século, quando a cidade era muito menos desenvolvida do que passou a ser a partir da década de 1950,
e, segundo, que ele adota o discurso de um sentimento comum aos moradores suburbanos cariocas – a esse respeito,
basta verificar o depoimento de José Carlos, no documentário “Edifício Master” (2002), de Eduardo Coutinho, que
comenta as diferenças de se residir na Zona Norte e Sul da cidade, e isso já nos anos 2000.
59 FREIRE, Rosano. Mundo moderno: lugar de ruptura e esfacelamento – aproximações entre Simmel e
Nelson Rodrigues. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Revista da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESESGo. Vol. 02, nº 10, 51-65, Fev./Jul. 2014.
diversos momentos de tensão, a solução encontrada pelos personagens é se enclausurar em
algum ambiente privado e resolver as questões pessoalmente, "homem a homem". Ou seja,
as relações entre os personagens dificilmente são intermediadas por instituições públicas
(que exercem pouco papel nas peças e aparecem muito ridicularizadas) ou valores
claramente públicos. Há uma clara pessoalização dessas relações, o que também está
relacionado aos ambientes sociais construídos por Freyre. (GUSMÃO, 2008, p. 90) [grifo
meu]
Pecebe-se, então, qual ponto de vista adotado por Nelson Rodrigues em sua obra. Sua
perspectiva parte (para usar termos damattianos) da casa para rua, ou, ainda, do privado para o
público. E o primeiro se sobrepõe ao segundo, porque, para Nelson, a família (ou o âmbito privado)
é a pedra de toque das relações sociais. E a sua crítica se torna latente quando se identificam
elementos do âmbito público interferindo (sempre de maneira negativa) no âmbito privado3.
Ora, não à toa os dois autores, cada um no seu campo, são fontes inesgotáveis de
estudos quando se almeja penetrar em questões sensíveis da sociedade brasileira, pois são eles que
erigem muitas das imagens mais consistentes sobre o Brasil do século XX. Simmel (1996) já
afirmava que:
Só ao homem é dado, diante da natureza, associar e dissociar, segundo o modo e a
intensiddade em especial em que um supõe saber sobre o outro. Extraindo dois objetos
naturais do seu lugar para dizer que estão “separados”, nós já os referimos um ao outro na
nossa consciência, nós os destacamos juntos do que se intercalava entre eles. (SIMMEL,
1996, p. 10)
E ainda completa afirmando que “Num sentido imediato assim como simbólico,
corporal e espiritual, a cada instante somos nós que separamos o que está ligado ou voltamos a unir
o que está separado” (SIMMEL, 1996). Ou seja, apenas o homem tem a faculdade de, através da
sua percepção e do seu olhar, separar e unir determinadas coisas, não estando elas naturalmente
dadas. Quero sugerir, então, que Nelson Rodrigues constrói uma conexão peculiar entre as áreas
pública e privada da vida brasileira - mas num nível simbólico e artístico, é importante frizar.
E uma ação, na visão de Simmel, que condensa toda essa vontade humana de juntar
espaços é o da construção de uma ponte, que é a metáfora das noções humanas de “separação”, que
existe, pois não faria sentido ligar duas margens se, antes, não as concebêssemos como separadas. E
atitude de uni-las atráves de uma ponte vem de nossas necessidades e imaginação (SIMMEL, 1996).
Contudo, enquanto que na relação dupla divisão/reunião, a ponte salienta muito mais o
segundo termo que o primeiro, a porta nos mostra que separar e aproximar são, em última instância,
duas faces da mesma moeda, ou, sendo o mais literal possível, duas feições que um mesmo ato
engendra (SIMMEL, 1996).
3
As suas peças Álbum de Família e Sete Gatinhos ou os romances Engraçadinha: seus amores e seus pecados e O
Casamento, exemplificam isto.
60 FREIRE, Rosano. Mundo moderno: lugar de ruptura e esfacelamento – aproximações entre Simmel e
Nelson Rodrigues. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Revista da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESESGo. Vol. 02, nº 10, 51-65, Fev./Jul. 2014.
E mais: a porta é o elo que une o espaço do homem, o interior, e tudo aquilo que se
encontra fora; e que, dessa forma, ela suprime a distância exterior/interior, pois é por ela que entram
as pressões externas e é por ela, também, que saem as aspirações do homem. Pode-se dizer, portanto,
que a porta fala, ao passo que parede é muda, porque não permite esta comunicação (SIMMEL,
1996).
Ora, é a porta simmeliana que fala nos escritos de Nelson Rodrigues e que permite que
ele constate um tempo em que o senso de pertecimento, os valores e as relações tradicionais estão
seriamente ameaçadas pela alienção e fragmentação – ecos do mundo exterior, que chegam cada
vez com mais força no espaço interior.
E o modo pelo qual Nelson Rodrigues faz a sua espécie de “denúncia social” é
mergulhando no âmbito privado (como já foi dito, há uma nítida supervalorização deste em
detrimento do espaço exterior) e mostrando que as relações pessoalizadas estão se correoendo. E é
por isso que, tanto no teatro quanto na literatura de Nelson, são recorrentes cenas de conflitos
intrafamiliares, como entre a mulher adúltera e o marido; entre o pai e a filha que se encontra num
prostíbulo; entre o sogro e a nora que se desejam sexualmente, etc (GUSMÃO, 2008).
E eu creio ser muito importante salientar essa perspectiva assumida por Nelson porque o
sentido adotado revela muito de seu olhar particular sobre os processos de modernização. Simmel
(1996) lembra que a direção, no que tange à porta, é muito importante:
Se, na ponte, os fatores de dissociação e de religamento se cruzam de tal maneira que o
primeiro mais parece coisa da natureza, o segundo parece coisa do homem, um e outro,
com a porta se concentram de modo mais igual enquanto prestação humana. Aí está o
sentido mais rico e mais vivo da porta comparada à ponte, sentido que se revela logo pelo
fato de que é indiferente atravessar a ponte numa direção ou na outra enquanto a porta
indica ao contrário uma total diferença de intenção a depender se se entra ou se se sai.
(SIMMEL, 1996, p. 13)
Neste sentido, poderia lembrar Alexandre Pianelli Godoy (2012) que chega mesmo a
afirmar que Nelson Rodrigues expõe o fracasso do moderno no Brasil através das críticas, feitas no
âmbito privado, ao discurso ideológico dominante, próprio do âmibto público.
Se se analisar o conto intitulado O Pediatra, ver-se-á que Nelson Rodrigues aponta
criticamente para o caráter homgenizador e rebaixador do dinheiro, que uniformiza e reduz todas as
coisas a um equivalente comum. Neste texto, o autor narra as vicissitudes amorosas de Menezes,
que passa um bom tempo tentando um encontro com Ieda, até que finalmente consegue, mas desata
a chorar quando descobre que era prática comum dela cobrar um valor específico por encontros
com homens, e tudo isto com a anuência do seu marido, um pediatra.
61 FREIRE, Rosano. Mundo moderno: lugar de ruptura e esfacelamento – aproximações entre Simmel e
Nelson Rodrigues. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Revista da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESESGo. Vol. 02, nº 10, 51-65, Fev./Jul. 2014.
Simmel (2005b) já constatava que o dinheiro é o principal determinante das relações
sociais na era moderna. É ele quem media, quem liga o indivíduo ao grupo. Contudo, este último
vai ser um todo abstrato, e o indivídudo, nesta relação, vai ser despersonalizado, perder sua
especificidade, por assim dizer:
Na medida em que o dinheiro compensa de modo igual toda a pluralidade das coisas;
exprime todas as distinções qualitativas entre elas mediante distinções do quanto; na
medida em que o dinheiro, com sua ausência de cor e indiferença, se alça a denominador
comum de todos os valores, ele se torna o mais terrível nivelador, ele corrói
irremediavelmente o núcleo das coisas, sua peculiaridade, seu valor específico, sua
incomparabilidade. Todas elas nadam, com o mesmo peso específico, na corrente constante
e movimentada do dinheiro; todas repousam no mesmo plano e distinguem-se entre si
apenas pela grandeza das peças com as quais se deixam cobrir. (SIMMEL, 2005a, 581)
Ainda quero, neste ponto, para salientar, uma vez mais, as percepções de Nelson
Rodrigues sobre o mundo moderno, me valer de mais um exemplo: no conto intitulado Terezinha,
Nelson narra as vicissitudes amorosas da personagem homônima: Terezinha gosta do tipo malandro
Xavier, mas sua madrasta, Dona Jandira, a pressiona para casar com Seu Elias, um homem muito
rico. O desfecho da história se dá da seguinte maneira: Terezinha se mata para não efetivar o
casamento, previamente marcado por sua madrasta, com Seu Elias; este, por sua vez, toma de volta
a geladeira que havia dado a Dona Jandira como presente por ela ter conseguido costurar o seu
matrimônio com Terezinha. E, no final das contas, Dona Jandira se abate mais com a perda da
geladeira do que com o enterro da afilhada.
Quero crer que o Nelson Rodrigues deseja é muito mais do que fazer uma mera crítica
aos novos padrões de consumo da classe média. Na verdade, ele almeja tornar claras as
contradições de um mundo, que ao inverter determinados valores, dá aos objetos uma autonomia
grande demais, injustificada, ao passo que os indíviduos são esquecidos, para não dizer desprezados.
Simmel também já indicava para o fato de que um dos problemas da vida moderna é a
separação entre o “porduto cultural e o seu criador” (CARVALHO, 2004, p. 149). Ou seja, ele
aponta para o processo de autonomização das produções culturais do homem (aparelhos, meios de
transporte, produtos da ciência, da técnica e da arte), que embora tenham sido inicialmente
concebidas para servi-lo, acabam se objetivando, e, dessa forma, se desvirtuando de seu sentido
primeiro (SIMMEL, 2005c). Em outros termos:
Quanto mais separado um produto está em relação à espiritualidade e subjetivade seus
criadores, mais ele passa a ser integrado dentro de uma ordem exclusivamente objetiva.
Ocorre, então, uma inversão das relações entre sujeito eobjeto. O cultivo dos conteúdos
objetivos reverte a ordem do processo cultural real dos homens, já que afinalidade última da
ação humana, a dimensão subjetiva e o uso que o elemento psíquico faz dos bens formais,
passa a se tornar refém dos objetos que ela mesma cria. Assim, Simmel afirma que mesmo
não existindo cultura subjetiva sem cultura objetiva, já que o processo cultural e o
62 FREIRE, Rosano. Mundo moderno: lugar de ruptura e esfacelamento – aproximações entre Simmel e
Nelson Rodrigues. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Revista da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESESGo. Vol. 02, nº 10, 51-65, Fev./Jul. 2014.
desenvolvimento do sujeito passam, necessariamente, pela incorporação de objetos
cultivados, a cultura objetiva pode se tomar independente. (CARVALHO, 2004, p. 149)
É neste sentido que se intaura, para Simmel, a “tragédia da cultura”: um crescente
apartamento entra a cultura subjetiva, a dos indivíduos, e a cultura objetiva, que indica uma
autocontradição das forças do mundo moderno, na medida em que aquilo que é maléfico ao
indivíduo foi produzido por ele próprio:
Ao contrário de indicar um destino triste ou desconsolador em sentido genérico, o destino
trágico, na significação que nos interessa, aponta para o fato peculiar de que as forças
destruidoras mobilizadas contra um ser foram produzidas pelas tendências mais profundas
deste mesmo ser. Assim, foi a própria lógica interna do ser humano uma consequência da
dinâmica da sua própria estrutura, que constituiu um “destino” – posto que percebido pelos
contemporâneos como uma fatalidade sem autor – destrutivo, repressor, estranho, produtor
de infelicidade e mal-estar. (SOUZA, 2005, p. 10)
Por fim, quero salientar que o esforço de aproximar as percepções de Nelson Rodrigues
das investigações sociológicas de Simmel têm, claro, seus limites. O primeiro é obviamente espacial
e temporal. As visões de Nelson Rodrigues que trouxe para este trabalho estão circunscritas ao
Brasil do século XX, aqui mais precisamente da metade para diante. E Simmel está no coração de
uma Berlim em plena expansão na virada do século XIX para o século XX.
Outra contigência reside no fato de que Nelson Rodrigues está muito mais voltado para
uma discussão sobre a família e padrões comportamentais dentro dela – sendo-me necessário, no
estudo que pretenderei desenvolver, recorrer ao trabalho de Sérvulo Figueira intitulado “Uma Nova
Família?” (1986), que discute justamente subjetividade e a lógica de modernização dos valores no
âmbito familiar.
Simmel, por outro lado, estava centrado nos indivíduos em interrelação e como a unidade social pode realizar-se através deles, ou seja, pela própria ação dos elemenstos constituidores da
sociedade, sem a necessidade da ação coercitiva e externa, que opera num nível mental sob o indivíduo, de um sujeito que lhe é estranho.
Entretanto, ainda considero que as aproximações salientadas são coerentes. Ferreira
(2000) lembra que “Simmel é uma referência sociológica decisiva na elaboração de uma análise da
cultura moderna como cultura de ruptura.” (FERREIRA, 2000, p. 106) [grifo do autor]. Na sua crítica da modernidade, Simmel constata que os indivíduos que vivem nas metrópoles estão em um
processo constante de autoisolamento porque estão buscando, a todo momento, se proteger do ritmo
acelerado da vida nela e, ao mesmo, tempo buscan sua especifidade.
Nelson Rodrigues parte de uma perspectiva diferente, precisamente do ponto de vista,
até certo ponto conservador, de que o desmoronamento de certos valores tradicionais eram nocivos
63 FREIRE, Rosano. Mundo moderno: lugar de ruptura e esfacelamento – aproximações entre Simmel e
Nelson Rodrigues. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Revista da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESESGo. Vol. 02, nº 10, 51-65, Fev./Jul. 2014.
a uma “essência” humana, que se poderia ser canalizada rumo à felicidade através do amor e da
solidariedade. Mas, no fim, o que os dois constatam é um processo de enfraquecimento dos laços
comunitários da vida no mundo moderno e nas grandes cidades. E isso, a meu ver, confere pertinência aos levantamentos feitos neste curto trabalho.
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AS IDEIAS DE MACHADO DE ASSIS E O
PROJETO DE LITERATURA NO BRASIL
Marcelo Brice Assis Noronha1
RESUMO
ABSTRACT
Saber, em relação à obra de Machado de Assis, o
quanto há de romantismo, de realismo, de localismo,
de estrangeirismo, de universalismo, de psiquismo,
de política, de gênio, de bruxo, de conservador, de
subversor, enfim, de uma miríade de denominações,
tem sido objeto constante de investigação. É nosso
interesse dialogar com essa tradição, o quanto
possível, a partir, fundamentalmente, dos elementos
que emergem do próprio texto crítico machadiano.
Para isso nos apoiaremos em um ensaio seu:
“Notícia da atual literatura brasileira – Instinto de
nacionalidade”, de março de 1873, veiculado na
publicação chamada O novo mundo, editada em
Nova Iorque. O texto serve como apresentação de
certos papéis mobilizadas no debate a respeito da
modernidade brasileira, à época, empenhado em
discutir nossa situação histórica e nossa arte.
Related to Machado de Assis’s works, know how
much there is of romance, realism, localism, of
foreignness, of universalism, of psyche, politics,
genie, warlock, a conservative, subversive, finally, a
myriad of denominations, has been the constant
object of research. It is our interest to dialogue with
this tradition, as far as possible, from basically the
elements that emerge from the own critical
machadian text. For this, we will be supported in an
essay his "News of the current Brazilian literature Instinct nationality", March 1873, broadcast on
publication called The New World, published in
New York. The text serves as a presentation of
certain roles mobilized in the debate about the
Brazilian modernity, at the time, committed to
discuss our historical situation and our art.
Keywords: ideas about Brazil; identity; literary
Palavras-chave: ideias sobre o Brasil; identidade; training.
formação literária.
Parece ser de conhecimento geral consolidado a imbricação cada vez mais íntima entre
fenômenos sociais e realizações estéticas. Pode-se, com isso, se dizer mais: a percepção
contemporânea forte dos fenômenos sociais sendo estética. As sondagens mais complexas da
matéria se tornando forma, do contexto social e das ocupações que as obras artísticas fazem se
ressaltar em seus meandros são questões de nosso interesse. Essa vinculação ganhou significado
corrente, no âmbito da sociologia, com os escritos de Georg Lukács e os frankfurtianos2. Sempre
1
Professor de Sociologia na Universidade Federal do Tocantins (UFT) e doutorando em Sociologia na Universidade
Federal de Goiás (UFG), com pesquisa sobre História, estilo e realismo na obra de Machado de Assis, sob orientação
do Prof. Dr. Francisco Chagas Evangelista Rabelo.
2
Aqui nos referimos aos pensadores da chamada “Escola de Frankfurt”, de orientação heterodoxa, em diálogo intenso
com o marxismo e suas formulações, que não merecem um enquadramento tão generalizante, mas para o nosso objetivo
67 NORONHA, Marcelo Brice Assis. As ideias de Machado de Assis e o projeto de literatura no Brasil.
Estácio de Sá – Ciências Humanas. Revista da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES-Go. Vol. 02, nº 10,
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houve na história do pensamento uma preocupação teórica em saber o quanto de sociedade há nas
obras artísticas3. Algo nesse sentido teve maior destaque em meados do século XIX, com
orientações do realismo escola, que não foge desse objetivo, até o exagera. Lukács entende que daí
sai o grande realismo europeu, de cunho efetivamente libertador; os frankfurtianos na esteira desse
debate e em franco diálogo observam alguns matizes de obras artísticas que não teriam uma
finalidade social propriamente dita, mas expressam questões profundamente inquietantes ao serem
confrontadas com seu tempo.
No Brasil, para além dos debates do fim do século XIX, de modo mais abrangente sobre
a formação da nação, ou de sua ideia, pela literatura e seu papel de afirmação da identidade
nacional, como apontam Antonio Candido, em Literatura e Sociedade (2000b), e Alfredo Bosi, em
Dialética da colonização (2001), os contornos ficam mais metodologicamente instruídos com a
obra crítica e teórica de Antonio Candido. Ao apontar a apreensão e inspiração do que Georg
Lukács, Walter Benjamin e Lucien Goldmann formulavam na primeira metade do século XX,
Candido insere o teor sociológico na abordagem sobre literatura, corroborando suas leituras sobre
função, já antecipada em Os parceiros do Rio Bonito (2010), alertando para como os elementos
sociais podem ser percebidos nas escolhas da obra e sobre a obra. Combina-se isso ao viés de crítica
literária que estava presente em Formação da literatura brasileira (2000a) com o que ocorre no
marco desses estudos em Literatura e Sociedade (2000b), ao dizer o que se pode fazer, que se
queria fazer e a mostrar como se faz. Amiúde, será essa uma seara de investigação dos estudos
sociais e literários no Brasil. Candido é um marco, mas não é tudo, pois haverá segmentos distintos
a respeito do vínculo temático e metodológico. É a respeito disso, enquanto ocorrência de
interpretações sobre o modo como Machado de Assis vai formular seu desejo e realizar seu projeto
de literatura, que o problema será localizado neste artigo.
O debate sobre o enfrentamento entre a realidade social brasileira, a noção do
nacional/local e a fisionomia do universal, está presente na expressão machadiana. Os modos de
apresentação desse debate passam pela formação de uma ideia de representação, pela importância
da situação histórica, pelo diálogo com outras tradições e, também, pelo que se entende como
extrapolamento do que tomamos como referência imediata.
pode ser adequado, na medida em que estamos delimitando quanto às considerações sobre estética e sociedade e suas
perspectivas de crítica aos modelos de abordagem da elaboração social de uma realização estética.
3
Nosso objetivo é percorrer o argumento de Machado de Assis em um texto em específico, para ressoar nas
atualizações da sua obra literária e do projeto de literatura no Brasil, também institucional e político, nos atendo ao que
remonta ao trabalho estético das obras literárias, não como uma teoria, mas demonstrando suas ideias, que certamente
estavam profundamente ligadas aos seus interesses como nome a ser lembrado na literatura brasileira.
68 NORONHA, Marcelo Brice Assis. As ideias de Machado de Assis e o projeto de literatura no Brasil.
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Observam-se, na tradição crítica que se formou em torno da figura de Machado de Assis
e sua obra literária, certos destaques relevantes para a compreensão do que ambos representam.
Saber o quanto há de romantismo, de realismo, de localismo, de estrangeirismo, de universalismo,
de psiquismo, de política, de gênio, de bruxo, de conservador, de subversor, enfim, de uma miríade
de denominações, tem sido objeto constante de investigação. É nosso interesse dialogar com essa
tradição, o quanto possível, a partir, fundamentalmente, dos elementos que emergem do próprio
texto machadiano. Para isso nos apoiaremos em um ensaio seu: “Notícia da atual literatura
brasileira – Instinto de nacionalidade”, datado de março de 1873, veiculado em uma publicação
chamada O novo mundo, editada em Nova Iorque. O contexto da publicação é significativo, pois
nada mais pertinente para a discussão sobre o caráter nacional de uma literatura do que apresentá-la
a um estrangeiro, também ele integrante de um novo mundo. Os dilemas que os recuos e avanços do
texto declaram mostram muito do que significava tomar posição nos problemas da época e das
ideias sobre literatura. A preocupação com a formação da modernidade brasileira remonta aos
debates em que Machado e seus contemporâneos se empenharam. Como um procedimento
histórico, a vida social fica em voga quando se dedica aos marcos de definição de nossa identidade.
Já no começo do ensaio há essa referência. Ela vai ser permeada pela afirmação de uma nova
metáfora, a de instinto de nacionalidade, discussão amplamente tratada pelo crítico português Abel
Barros Baptista (2003b) em seu A formação do nome: duas interrogações sobre Machado de Assis,
ao dedicar a primeira parte do seu estudo ao referido ensaio, bastante citado, mas pouco estudado,
ao menos sistematicamente, pela crítica machadiana.
A atuação crítica do próprio Machado nos permite indicar alguns caminhos para a
compreensão de suas ideias e de como o escritor leva a cabo sua visão de mundo. A construção
dessa visão de mundo está associada a um direcionamento a respeito do que se passava e de como a
situação daquela atualidade histórica fazia valer motivações cruciais para a afetação da vida social
como um todo, e, principalmente, da vida artística moderna que estava se configurando. A busca
por uma responsabilização maior dos destinos dessa vida artística moderna nacional é
acompanhada, por lhe ser integrada, ao forte desejo dessa afirmação. Há, apesar do teor crítico, uma
esperança galante, austera, porém contida, nas formulações machadianas em relação ao destino da
literatura brasileira. Se lido atentamente, percebemos que Machado começa o ensaio com o
delineamento desse projeto. Vejamos:
Quem examina a atual literatura brasileira reconhece-lhe logo, como primeiro traço, certo
instinto de nacionalidade. Poesia, romance, todas as formas literárias do pensamento
buscam vestir-se com as cores do país, e não há negar que semelhante preocupação é
sintoma de vitalidade e abono de futuro (MACHADO, 1938, p. 133).
69 NORONHA, Marcelo Brice Assis. As ideias de Machado de Assis e o projeto de literatura no Brasil.
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Portanto, a convicção em relação ao futuro forma, necessariamente, um campo de
leitura sobre nossos parâmetros e modelos, se assim pode ser dito. Contamos com a constituição de
um espaço discursivo acerca dos limites definidores da identidade literária, que receberá destaque
no texto crítico de Machado, mas não como considerações efetivas sobre seus temas e assertivas, e
sim como uma avaliação a ser feita da cultura nacional e seu diálogo com o que ultrapassa as
épocas. A afirmação de Machado a respeito do instinto de nacionalidade, que se configuraria como
um sintoma de vitalidade, conduz a um risco fundante na análise das ideias machadianas, que, nesse
sentido, nos serve para pensar o escritor como um formador de ideias, ao produzir sistematicamente
um núcleo reflexivo peculiar, o que talvez faça, inclusive, Machado ser ainda tão estudado e
possibilitar, como uma espécie de intelectual4, alguns parâmetros analíticos; porém, esses
condicionamentos só podem ser vistos na esfera em que ele se entendia e se realizava como um
sujeito reflexivo, em que se colocava na posição de um escritor, ou melhor, na posição de alguém
que pensa os destinos da cultura e atua sobre eles. No que se refere ao risco antevisto, é interessante
notar a maneira como ele se vincula ao problema sobre o nacional. A princípio, parece haver uma
ode à sua peculiaridade, não sustentada ao longo do ensaio, o qual segue primordialmente com uma
modulação das peculiaridades como interesses da nossa cultura e do que nos estimula a produzir
expressão artística, mais até, do que nos motiva no deslocamento desses planos; por isso, é
relevante estar a par do debate sobre Machado de Assis.
Os passos dados por Machado de Assis em pleno Segundo Império (1840-1889), nesse
ensaio, nos ajudam a vislumbrar algumas questões orientadoras para a cultura brasileira.
Exatamente porque coloca o problema medido e feito em outras diretrizes que as até então vigentes.
Pode parecer estranho ou mesmo injusto situar, nesse momento, o nascimento sistemático da cultura
nacional como a conhecemos hoje, não afirmando os demais; mas engrandecemos a leitura na
medida em que localizamos o espaço de afirmação dos discursos nos instantes elevados de suas
expressões mais robustas. É cara ao nosso trabalho a ideia de Machado de Assis como singular, mas
não simplesmente como o único. Ao conformar conexões novas, só possíveis em função das
novidades da nossa modernidade, Machado indica caminhos que ele próprio percorrerá, mas que
tampouco saberemos de imediato, e isso pode ser visto no cabedal crítico sobre sua obra. É também
interessante ressaltar que o ensaio em pauta é anterior à maior parte de suas obras tidas como
referência para a interpretação da nação, da vida artística, da sua peculiaridade expressiva. A
medida calculada por Machado problematiza traços da cultura que estavam a ser pensados, o que
4
As considerações de Gramsci (1995) em relação ao lugar de disputa ideológica formulado entre intelectuais orgânicos
e tradicionais podem ser interessantes para a investigação das definições postuladas no debate sobre Machado de Assis.
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traz implicações profundas às nossas tentativas expressivas. É feita, também, pelo elemento político
a reordenação dos planos reflexivos.
Interrogando a vida brasileira e a natureza americana, prosadores e poetas acharão ali farto
manancial de inspiração e irão dando fisionomia própria ao pensamento nacional. Esta
outra independência não tem sete de Setembro nem canto do Ipiranga; não se fará num dia,
mas pausadamente, para sair mais duradoura; não será obra de uma geração nem duas;
muitas trabalharão para ela até perfaze-la de todo (MACHADO, 1938, p. 134).
Nesse trecho se condensam grandes expectativas em relação ao debate que se anuncia: a
fonte, a fisionomia própria, o processo de formulação de um pensamento nacional, os investimentos
políticos, a noção de história que daí se retira. Em 1879 Machado publica outro ensaio, sob o título
de “A Nova Geração”, que de algum modo avalia as consequências do que se fez como resposta ao
projeto romântico, afirmando um entendimento sobre o naturalismo/realismo pensado de maneira
ácida e elegante pela pena de Machado. Ao ter noção de onde se empreende o projeto e a atuação da
expressão machadiana, é possível verificar como os problemas da nossa cultura vão se encaixando
em seu esforço intelectual, a partir tanto de sua ficção como de sua obra crítica, ou melhor, a
situação gerada por suas interferências no plano expressivo, modificando a produção daqueles que
estavam com ele em debate e, principalmente, pelo seu próprio legado, do que ele parecia ter grande
consciência.
Coloca-se no horizonte de preocupação, ainda no começo do ensaio de 1873, como
haveria de se pensar e de se firmar uma soberania da nacionalidade, como um caminho da história e
da cultura. Não é nada estranho perceber uma matriz epistemológica alemã, que reflete
numerosamente o enfretamento com o processo histórico e seus modos de definição e apreensão,
determinantes para a resolução filosófica que se aponta, percebida, por exemplo, no pensamento de
Schopenhauer, que sabidamente é fonte machadiana5, em confronto com a filosofia hegeliana nas
destinações racionais sobre a cultura.
A extensão do problema da independência política – situação histórica relacionada ao
modo de lidarmos com uma cultura imprecisa e um tanto quanto fictícia –, repercutida na
consolidação dos marcos presentes da história política das nossas ideias, é postulada nesse trecho
inicial, o que nos dá outra monta de manifestações conformadoras das interpretações sobre o Brasil.
Atento aos campos em confrontação, Machado vai aqui abrir um direcionamento que se
percebe na crítica ao falseamento da consolidação das ideias, fundamentalmente quando tomadas de
modo imperativo por seus representantes, e que se revelam pouco sólidas, porque pouco
5
Cf. A biblioteca de Machado de Assis, organizada por José Luíz Jobim, de grande relevância para a localização da
obras de sustentação das referências do universo de erudição machadiano.
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dialogáveis. Isso quer dizer exatamente de onde e como recebemos essas ideias. Nesse sentido, até
mesmo a indefinição é objeto central para o entendimento de nossa cultura e da cultura como
fenômeno humano. A certificação de uma espécie de regra opinativa, naqueles que formam e
representam a cultura, cria nossa especificidade. Por isso Machado aponta um déficit: “Sente-se
aquele instinto até nas manifestações de opinião, aliás mal formada, ainda, restrita em extremo,
pouco solicita, e ainda menos apaixonada nestas questões de poesia e literatura” (MACHADO,
1938, p. 134). Algo quase da natureza da opinião, como sabemos desde os gregos pela distinção
entre doxa e episteme, e depois retomadas por Machado (2002) em sua “Teoria do Medalhão”,
conto exemplar acerca do formato a que se submetem os espíritos oportunistas, aprendizes, da
adequação interessada para benéfico próprio.
É como se nossa brasilidade sofresse de um mal. Porque não dialoga, porque não busca.
E é aqui que começa o reconhecimento de um embate imprescindível sobre as cores do país como
fundamento da cultura nacional. O afastamento de Machado em relação aos modelos de indicação
do nacional não é só de tom, mas de perspectiva, de apontamento, o que faculta ao discurso uma
desmontagem da estrutura apriorística. Afirma Machado (1938, p. 134) sobre a opinião: “Ha nela
um instinto que leva a aplaudir principalmente as obras que trazem os toques nacionais”. Não há,
portanto, reflexão ou criação, mas opiniões que se certificam de certos pontos e os laureiam, como
defasagem para um entendimento total6. Nesse sentido, Machado de Assis vai refazendo o percurso
para imputar uma nova responsabilidade sobre o espírito da cultura, aponta equívocos e os reavalia
quando esses exigem da Arcardia uma brasilidade.
Não me parece, todavia, justa a censura aos nossos poetas coloniais, iscados daquele mal;
nem igualmente justa a de não haverem trabalhado para independência literária, quando a
independência política jazia ainda no ventre do futuro, e, mais que tudo, quando entre
metrópole e a colônia criara a história a homogeneidade das tradições, dos costumes e da
educação (MACHADO, 1938, p. 135).
Imediatamente depois, Machado situa esse universo de problemas no quantum de
condições históricas para nossa formação cultural. “Reconhecido o instinto de nacionalidade que se
manifesta nas obras destes últimos tempos, conviria examinar se possuímos todas as condições e
motivos históricos de uma nacionalidade literária [...]” (MACHADO, 1938, p. 135). Se esse ponto
não é pacífico – e quanto a isso temos certeza –, a questão é pensar como, a partir daí, se tornam
possíveis, nessa medida e empreendido o debate, o desvencilhamento de uma pequenez das formas
6
Caberiam algumas notas e discussões a respeito da validade e força da tradição estética marxista, encontrada em
Lukács e em outros, quanto ao debate sobre o encontro da situação histórica com obra artística total, o que permitiria
reaver sua ambição mimética. Como não é essa nossa preocupação neste momento, deixamos como aceno para
interesses futuros.
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e dos temas, consubstanciando o futuro no pensamento, na vida artística. Nesse momento Machado
esclarece a tarefa que ele se impõe na circunstância do ensaio: “Meu principal objeto é atestar o
facto atual; ora o facto é o instinto que falei, o geral desejo de criar uma literatura independente”
(1938, p. 135). Por si só, esse aspecto já nos permitiria antever traços de seu programa literário. A
literatura independente, como desejo que se firmaria para um plano de enriquecimento da
compreensão, não seria reduzida aos toques nacionais, tampouco feita de modelos importados.
Pensar com uma exatidão maior a totalidade do tempo é exatamente percorrer esse desejo que
consegue estar para além de si, como uma outra metafísica. O diálogo com Schopenhauer e sua
vontade de representação, com Nietzsche e sua vontade de potência e, por agora, com Foucault e
sua vontade de verdade interessa amplamente como uma rede de apontamentos na fundamentação
da sociologia da literatura em seu projeto de intersecção dos caminhos; porém, entendemos esse
lugar firmando seus traços, em uma luta, como a imagem a que Machado parece recorrer
frequentemente em sua obra literária.
A busca pelo estabelecimento da origem de nossa cultura marca o romantismo e,
inevitavelmente, a literatura brasileira, em função disso é também inevitável recorrer à épica
brasileira para poder pensar a situação da cultura e de seu destino. Machado, no ensaio de 1873,
mostra como Gonçalves Dias e outros reacendem essa mitologia. Não é nosso interesse rever
minuciosamente esses casos emblemáticos e definidores, mas é ao considerar o elemento indianista
que a saída começa a ser formulada, principalmente pela condição formal que a expressão artística
representa. E nesse sentido Machado renega os extremos.
É certo que a civilização brasileira não está ligada ao elemento indiano, nem dele recebeu
influxo algum; e isto basta para não ir buscar entre as tribos vencidas os títulos de nossa
personalidade literária. Mas, se isto é verdade, não é menos certo que tudo é matéria de
poesia, uma vez que traga as condições do belo ou os elementos de que ele se compõe
(MACHADO, 1938, p. 136).
Enquanto formulação do humano, os temas e sua apreensão devem constituir uma
condição do fazer artístico, conformando na cultura uma força de atuação do espírito; por isso, o
problema parece ser bem outro. “[...] não é licito arredar o elemento indiano da nossa aplicação
intelectual. Erro seria constituí-lo um exclusivo patrimônio da literatura brasileira; erro igual fora
certamente sua absoluta exclusão” (MACHADO, 1938, p. 137). Seria possível avançar nas leis da
arte, da história, da vida social, do pensamento, ao extrapolar essas restrições através da
imaginação. O elogio que José de Alencar recebe nessa notícia refere-se exatamente a uma
singularidade encontrada na criação de uma situação expressiva.
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A aplicação desse trajeto fica a cargo de se pensar o nacional e o universal, questão
tratada pela tradição crítica machadiana e que adiante será exposta com mais vigor.
Esses apontamentos parecem já nos indicar caminhos interpretativos relevantes. Roberto
Schwarz (2009), no artigo “Martinha VS. Lucrecia”, coloca em confronto a noção de local e de
universal a serviço dessa reflexão. Ele escolhe a crônica “O punhal de Martinha” de Machado de
Assis, em que o escritor pontua dois acontecimentos da história: um sobre Lucrecia, outro sobre
Martinha, ambos envolvendo tais personagens e os seus punhais. Lucrecia é figura de interesse
maior por ser personagem da História romana de Tito Lívio, onde se narram mitologias e
documentos da formação romana, em que Lucrecia se mata com o referido punhal. Já a história de
Martinha, que destina seu punhal a João Limeira por sua persistência inoportuna, é noticiada em um
jornal do interior da Bahia. A partir dessa situação, Schwarz abre espaço para o interesse ou não dos
leitores estrangeiros de Machado pela história brasileira. Ao encaminhar o questionamento do
crítico Micheal Wood – se importa saber ou querer saber do Brasil para gostar de Machado –, o
qual já é uma questão comum na atualidade, Schwarz o transforma em um ponto que agrega outra
compreensão, que aqui nos parece próxima ou, mesmo, mais fiel ao espírito criativo da crítica,
demonstrando sua filiação profunda ao pensamento de Antonio Candido. Afirma que
[...] o leitor cativado pela ficção machadiana, mas desinteressado do Brasil – da experiência
histórica chamada Brasil –, talvez não seja uma figura inteiramente real, embora verossímil.
Sua falta de apetite para as particularidades do país pode não ser tão verdadeira quanto
parece, uma vez que as notícias relevantes no caso estão tramadas na ficção e têm parte no
interesse que ela desperta. Espero não ser especioso dizendo que o leitor imaginado ou
registrado por Wood se interessa pelo Brasil sem o saber (2009, p. 19).
A partir dessa diretriz é possível colocar em pauta o que faz efetivamente a expressão
artística ser significativa ou não. Os passos dados até aqui facilitam o encaixe produtivo da tessitura
da qualidade artística, nesse caso, nacional.
Seria até ofensivo tratar o elemento local como irrelevante para uma melhor leitura de
Machado. Não simplesmente porque ele é um escritor brasileiro, nascido aqui, vivido nos embates
culturais e políticos, nos ideais da nação; mesmo já sendo pressuposto, o que engrandece a
discussão é o que se faz com esse “manancial”. Do contrário, ele não seria objeto de
questionamento para o próprio Machado que, ademais e principalmente, o entende como avalista do
processo criador ou de imaginação sobre a vida. O debate quanto às referências imediatas ou não e
as considerações se dão em tom e em procedimento pouco absolutizante, pois lapidam os
problemas. A não aceitação dos pressupostos é um recurso para os apontamentos, o que Machado
leva a cabo no seu ensaio de 1873. Ele chama de errônea a opinião “que só reconhece espírito
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nacional nas obras que tratam de assumpto local, doutrina que, a ser exata, limitaria muito os
cabedais da nossa literatura” (1938, p. 138). Enquanto o argumento é desenvolvido vamos sendo
amparados pelos exemplos literários que marcam o projeto.
Não há duvida que uma literatura, sobretudo uma literatura nascente, deve principalmente
alimentar-se dos assuntos que lhe oferece a sua região; mas não estabeleçamos doutrinas
tão absolutas que a empobreçam. O que se deve exigir do escritor, antes de tudo, é certo
sentimento íntimo, que torne o homem de seu tempo e do seu país, ainda quando se trate de
assumptos remotos no tempo e no espaço (p. 139-140).
A apresentação se dá em duas frentes que por fim acabam sendo uma só, com a
literatura extrapolando o nacional ao expressar exatamente a internalização afortunada 7 do que lhe é
profundo. A negação à pobreza frutifica o debate, já que intervém sobre a construção dos limites de
sustentação da nossa expressividade. “Machado irá reivindicar a heterogeneidade através do
argumento de riqueza ou da necessidade de prevenir a pobreza. Aqui, o sentido da sua
argumentação, no fundamental, já passa pela recusa de uma tradição literária homogênea”
(BAPTISTA, 2003b, p. 71). Essa é uma condição para o que se pensa sobre arte contemporânea,
permitindo à nossa análise vislumbrar em Machado uma quantidade de razões para a afirmação de
uma peculiaridade não só em sua época, mas a constituição de um pensamento que arremata
dimensões da vida que ainda hoje tentam resistir à provocação.
O programa é moderno. Inclusive no que incide sobre os impedimentos desse projeto de
nacionalidade que está se delineando em seu ensaio. Antes de passar para as formas romance,
teatro, poesia e questões sobre a língua, há a exposição de uma falta que estaria condicionada ao
acanhamento dos limites do pensamento criador: a crítica. Ao tentar traçar esses pontos, Machado
afirma:
Estes e outros pontos cumpria á critica estabelecê-los, se tivessem uma crítica doutrinaria,
ampla, elevada, correspondente ao que Ella é em outros países. Não a temos. [...] A falta de
uma crítica assim é um dos maiores males de que padece a nossa literatura; é mister que a
análise8 corrija ou anime a invenção, que os pontos de doutrina e de história se investiguem,
que as belezas se estudem, que os senões se apontem, que o gosto se apure e eduque, para
que a literatura saia mais forte e viçosa, e se desenvolva e caminhe aos altos destinos que a
esperam (MACHADO, 1938, p. 140).
Os apontamentos intelectuais traçados aqui reforçam nosso entendimento de que há um
interesse responsável pelos destinos que empreendemos como nação. Uma nacionalidade total. E é
7
Esse termo nos lembra o famoso texto de Afrânio Coutinho, A tradição afortunada.
É interessante notar os usos feitos do termo análise por Machado no artigo, marcando o lugar para a crítica que anima
a expressão artística, inclusive através da sua capacidade reparadora, como também outro uso, relacionado ao
acompanhamento, executado pelo escritor, dos elementos internos definidores para a feitura e entendimento das
relações que obra literária encerra, pontuando suas configurações.
8
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também nesse ideário que podemos identificar um tipo de conservadorismo, extremamente
justificável naquele momento, pois formador de um espaço de dinamização do pensamento social
estetizante, mas que nos tempos de agora ficariam a cargo de “vigilantes da arte”, um tipo de
distorção que a crítica não cessou de fazer com relação à sua natureza. Machado (1938), no ensaio
homônimo sobre O Primo Basílio de Eça de Queiroz, coloca em prática a animação que ele
reclama, pois ao mostrar deslizes e um empobrecimento expressivo a que se serve o romance, o
escritor brasileiro destila uma força que constrange a figuração inocente do realismo enquanto
escola. Fazer crítica, portanto, não é uma tarefa fácil. Por isso a reclamação situa outro espaço para
a arte.
Acabam por serem compatíveis na análise os destaques que flexionam o lugar da
criação. Ao investigar a invenção do romance como forma tipicamente moderna, nos vemos numa
situação que nos faria respirar um ar de dilema. Nossa pouca habilidade crítica e reflexiva abre
outro caminho.
Não faltam a alguns de nossos romancistas qualidades de observação e de análise, e um
estrangeiro não familiar com os nossos costumes achará muita página instrutiva. De
romance puramente de análise, raríssimo exemplar temos, ou porque a nossa índole não nos
chame para aí, ou porque seja esta casta de obras ainda incompatível com a nossa
adolescência literária (1938, p.142).
É nesse sentido que as questões formais da expressão artística integram-se aos tópicos
de configuração da mentalidade social. As manifestações com que se ocupa o romance nacional nos
legam a demonstração de nossas fontes, vistas aqui como uma redução quando não estão a serviço
de uma empresa criadora. Os recursos que veiculam essas notas procuram impactos que não se
realizam. É o que Machado afirma quando das páginas que solidificam a descrição na sua feitura.
“Ha boas páginas, como digo, e creio até que um grande amor a este recurso da descrição,
excelente, sem dúvida, mas (como dizem os mestres) de mediano efeito, se não avultam no escritor
outras qualidades essenciais” (1938, p.143). O acompanhamento dessa problemática por parte
daqueles ocupados em pensar a vida social torna necessário imprimir o cruzamento de uma
perspectiva de análise moldada na fisionomia da estrutura que alcança seus participantes. É
interessante perceber a demarcação da inserção do leitor como complementação desse plano9.
A assimilação e os reparos em relação aos modelos de escritura se inscrevem no
condensado jogo em que Machado está envolvido. O entendimento da sua noção de análise
corresponde ao preenchimento de uma fresta aberta pela estrutura, sua descrição, a criação de
9
A respeito desse debate o texto “Narrar ou descrever”, de Georg Lukács, é contribuição notória sobre como o narrar
garante a produção de situações enquanto o descrever está a serviço de uma conformação social, inclusive das formas.
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situações, o comentário delas, o ponto de vista em que eles se encerram, a reflexividade imposta
àquele em contato com o texto e com a realidade, deixando, portanto, um lastro para a atuação de
suas personagens, seus narradores, suas mitologias e conclusões, percebidas ao longo de sua
trajetória ficcional. O realismo radicado nesses moldes parece ser fruto dessa noção de análise. Seu
impulso crítico fomenta a expansão daquilo que se entende como suficiente, inflamando no campo
criativo uma fuga ao já circunscrito. O tratamento vai se tornando mais delicado.
Pelo que respeita à análise de paixões e caracteres são muito menos comuns os exemplos
que podem satisfazer à crítica; alguns há, porém, de merecimento incontestável. Esta é, na
verdade, uma das partes mais difíceis do romance, e ao mesmo tempo das mais superiores.
Naturalmente exige da parte do escritor dotes não vulgares de observação, que, ainda em
literatura mais adiantada, não andam a rodo nem são a partilha de maior numero (1938, p.
143).
O raro êxito conseguido com os procedimentos de análise parece indicar alguma coisa.
Não é a busca pelo gênio, nem uma elitização suprema, na medida em que suas ideias vão ser
colocadas à prova em sua própria literatura, ao transformar os acontecimentos discursivos em
emblemáticos episódios da nação, como um depositário vivo de perturbações, frequentemente
percorridos pela crítica de cunho mais historiográfico. Obviamente a questão do realismo ainda não
está dada por Machado, apesar de já apontada em suas motivações, fazendo da aproximação
investigativa uma proposta.
Massaud Moisés (2001), em um artigo sobre o realismo em Machado, sob o título de
“Machado de Assis e a estética realista”, encontra em um realismo interior10 a chave para a
compreensão do que está sob a égide daquilo que a obra machadiana informa. No seu clássico “O
microrealismo de Machado de Assis”, Eugenio Gomes percorre exemplos nas obras da dita 2ª fase
machadiana dessa feição psicológica dada por efeito da hipérbole por excesso e da hipérbole por
diminuição, noção retirada da pregação de Padre Antonio Vieira e que configura a sede de Machado
pelas coisas miúdas, como um recurso mesmo de análise daquilo que está por trás da superfície, o
que garante a força moral da confecção dos problemas na arte de Machado, interesse apontado pelo
artigo de Astrojildo Pereira, “Instinto e consciência de nacionalidade”, ao começar suas
considerações sobre os destinos do povo pela situação gerada a partir da deflagração da abolição do
tráfico negreiro no Brasil.
10
Nesse mesmo texto Massaud Moisés recorre à Bergson para localização da força da idéia de instinto, que encontra
identidades no interior das coisas, noção também utilizada por Abel Barros Baptista em seu já citado A formação do
nome.
77 NORONHA, Marcelo Brice Assis. As ideias de Machado de Assis e o projeto de literatura no Brasil.
Estácio de Sá – Ciências Humanas. Revista da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES-Go. Vol. 02, nº 10,
66-81, Fev./Jul. 2014.
Em decorrência dos aspectos ressaltados, além do programa nacional que tudo
apreende, há a consolidação de indicativos ao entendimento sinuoso dos limites da expressão
artística, que faça dessa experiência uma conversa sem exageros “porque o sublime é simples”
(MACHADO, 1938, p. 148) e seu jogo de referências são orientações para a conduta circunscrita à
tentação de totalidade da obra literária, o que já é extremamente válido e tido até como regra, a não
ser para aqueles que fazem das regras outras, mas esses são poucos e, segundo Machado (1938, p.
149), “é porque se chamam Shakespeare, Dante, Goethe, Camões”. Certos traços irônicos – uso
constante e genioso em sua obra – serão dados aqui como o reconhecimento do espaço reduzido que
os homens têm em relação à história, por isso uma necessária visualização da situação que nos
motiva. Por vez pueril; humana. O entendimento do tipo de figuração buscada pela expressão
artística deve estar a par dos laços construídos pelo pensamento que formam uma concepção sobre a
relação entre homem e arte, objeto de materialidade da crítica machadiana.
A movimentação da pena e da figura de Machado estará a serviço de uma maioridade
guardiã do abono de futuro anunciado no começo de suas notícias. A liberdade do pensamento
garante visibilidade na reivindicação de uma conexão do homem com o seu tempo, dialogando com
uma tradição de cunho inventivo. Só o homem consciente de seu tempo pode tocar o sublime,
mesmo e unicamente, em seu mínimo. “Ha intenção de igualar as criações do espirito com as da
matéria, como se elas fossem neste caso conciliáveis. Faça muito embora um homem a volta do
mundo em oitenta dias; para uma obra prima do espirito são precisos alguns mais” (MACHADO,
1938, p. 153). Machado confere ao discurso de riqueza o reconhecimento da imaginação que é
traçada pelo conhecimento das regras que lhes dão força.
No momento de seu ensaio em que as considerações sobre a língua formam um
entendimento sobre a nação e sua potencialidade, há uma tentativa em resguardar suas garantias na
movimentação que compõe a expressão artística e sua apreensão pelos que se dedicam como
apreciadores e como formadores de um pensamento sobre a sociedade. É nesse sentido que a língua
acaba por ser a matriz da nação e Machado se preocupa profundamente com a comunicação que se
processa por meio dela. Sua consciência sobre a língua preserva nessa crítica a movimentação e a
manipulação de seus destinos, substancial para o desenho da nação na sua modernidade em
definição. “Não há duvida que as línguas se aumentam e alteram com o tempo e as necessidades dos
usos e costumes” (MACHADO, 1938, p. 152). As intervenções que a língua sofre, seus percursos,
trajetos e terminações, ficam a cargo do povo que a pratica. “A este respeito a influência do povo é
decisiva” (MACHADO, 1938, p. 152). O andamento dessas inovações representa mais um espaço
78 NORONHA, Marcelo Brice Assis. As ideias de Machado de Assis e o projeto de literatura no Brasil.
Estácio de Sá – Ciências Humanas. Revista da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES-Go. Vol. 02, nº 10,
66-81, Fev./Jul. 2014.
de disputa pelos limites de determinação da cultura. Machado tem demonstrado que tipo de
ocupação ele entende como necessária ao projeto ampliado, mas também circunscrito de nação.
Vejamos uma passagem indicativa:
Ha, portanto, certos modos de dizer, locuções novas, que de força entram no domínio do
estilo e ganham direito de cidade. [...] Mas se isto é um facto incontestável, se é verdadeiro
o princípio que dele se deduz, não me parece aceitável a opinião que admite todas as
alterações da linguagem, ainda aquelas que destroem as leis da sintaxe e a essencial pureza
do idioma. A influência popular tem um limite; e o escritor não está obrigado a receber e
dar curso a tudo o que o abuso, o capricho e a moda inventam e fazem correr. Pelo
contrário, ele exerce também uma grande parte de influencia a este respeito, depurando a
linguagem do povo e aperfeiçoando-lhe a razão (MACHADO, 1938, p. 152 – 153).
A visão do escritor como aquele que abre caminho, por ter visto atrás de si e também
adiante, resulta, inclusive, no lugar que Machado consolida já em seu tempo, para a literatura
brasileira, fazendo da fundação da Academia Brasileira de Letras uma espécie de garantia da cultura
sabedora de si. O problema, além de vincular-se à crítica, está antes na conta que se faz do mal para
a cultura que é a não leitura no geral e, fundamentalmente, dos clássicos. Essas caracterizações
ditam um conjunto de situações criadoras de caminhos, feito através de Machado e de tantos outros.
O amparo que traz os fundamentos do nacional para a exposição do humano não se
exige a partir de interpretações determinantes, senão não perceberíamos o jogo entre referências e
suas transformações. Schwarz, no artigo a que nos referimos acima, reconhece o poder das
representações discursivas como pátria, nação, Brasil, como presenças ausentes, o que confere ao
universo machadiano uma singularidade definidora das lacunas imperativas em relação aos
parâmetros das artes e do pensamento social que nos respalda e incentiva. A combinação entre os
elementos de interesse para a formação de uma cultura livre, enquanto entendimento direcionado à
criação de problemas em função das lacunas, é o que potencializa a capacidade mimética na
empresa machadiana11. É um impasse que ajuda na compreensão da obra de Machado e das
questões modernas universais e também afeitas à brasilidade.
Existe um diálogo quanto às questões que se fazem na atualidade das vertentes críticas
que pensam a obra de Machado.
[...] para Machado – que inventava a situação narrativa –, o trio formado por a) a região
relegada do universo; b) o repertório clássico que desmerece as realidades locais; e c) o
cronista culto, portador de um despeito histórico-mundial, é ele próprio a solução: uma vez
articulada no jogo literário, essa verdadeira célula social-histórica imprime à cena algumas
linhas inconfessadas de atualidade (SCHWARZ, 2009, p. 27).
11
Leopoldo Waizbort (2007) trata frequentemente disso que ele chama de fraturas da realidade e das formas literárias
que a constituem em seu A passagem do três ao um – trabalho rico para os trajetos e questões realistas na obra e na
tradição crítica machadiana.
79 NORONHA, Marcelo Brice Assis. As ideias de Machado de Assis e o projeto de literatura no Brasil.
Estácio de Sá – Ciências Humanas. Revista da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES-Go. Vol. 02, nº 10,
66-81, Fev./Jul. 2014.
No caso analisado por Schwarz há um constrangimento formal e interessado quando
Machado usa uma linguagem empolada, dando sentido aos seus anseios sobre a língua e os
escritores, por estarem cientes e sendo responsáveis por situações-problemas, que parecem
desnivelar o texto, mas que o levam à outra dimensão. Aqui há uma história consciente. O
seguimento dessas alterações sabedoras de si nos faz ver o projeto literário a que Machado se
submete, esclarecendo suas contradições no seu fazer artístico, aproximando suas considerações ao
que se espera a partir do século XX dos intelectuais interessados pela cultura.
Em suma, universalismo e localismo são ideologias ou chavões ou timbres, de que
Machado se vale como pré-fabricados passíveis de uso satírico. A parafernália da retórica e
do Humanismo, universal por excelência, lhe serve, desde que faça figura imprópria, nada
universal, com cacoetes de classe historicamente marcados (SCHWARZ, 2009, p. 29).
As observações dos formatos, dos temas e dos usos feitos a partir das fontes, ganham
contornos mais explícitos quando da atuação da crítica. Por isso a leitura de Schwarz é valiosa no
enfrentamento da relação direta que Machado estabelece com a realidade cultural que produzimos e
nos impomos como ideias para o futuro. Recalcular – para usarmos um termo que desnivela as
ideias – a sociologia da literatura e a apreensão da obra no geral, e da machadiana em particular,
força nossos limites interpretativos. “As ressonâncias não programadas dos registros universalista e
localista são o que eles têm de mais verdadeiro” (SCHWARZ, 2009, p. 29). Podemos reparar aqui
uma postura que resulta desse debate sobre os desdobramentos do realismo machadiano.
O componente essencialmente mimético encontra-se não somente na representação do
real, como também nas lacunas que ele deixa entrever no quadro atual de cada época, fazendo disso
um tipo de incongruência necessária para a produção de um efeito criativo no leitor. A obra
machadiana é repleta desses exemplos12. Esse tipo de anacronismo recorrente causa um
estranhamento rico em preenchimentos interpretativos. Um destoar interessado no seu tempo
computa ao plano exposto uma condição fecunda. A experiência da leitura torna a realidade
reformada em outras dimensões, expandindo o real e reafirmando nossa relação com ele.
Enquanto Schwarz dá um passo adiante nas resoluções sobre a nacionalidade de
Machado, Abel Barros Baptista destina um esforço para o deslocamento desse problema. É
interessante como esses caminhos quebram, continuam, ampliam o problema. O suposto diálogo
que nos interessa entre esses percursos críticos formula saídas aos impasses para se pensar a nação.
O crítico português tenta distanciar a realidade imediata exatamente como uma maneira de
12
Não é de nosso interesse neste momento a análise particular de algum momento da obra de Machado de Assis,
podendo ser objeto de uma especificidade no estudo que nos prejudicaria na afirmação dos diálogos já disponíveis por
agora.
80 NORONHA, Marcelo Brice Assis. As ideias de Machado de Assis e o projeto de literatura no Brasil.
Estácio de Sá – Ciências Humanas. Revista da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES-Go. Vol. 02, nº 10,
66-81, Fev./Jul. 2014.
completar a universalidade de Machado. Schwarz talvez dissesse que isso não é necessário. Baptista
reconhece as fontes que se encaminham em Machado, algo que inclusive lhe motivou a escrita de
outro livro13; seu destaque conforma uma expectativa interpretativa vinculada à noção de um
Machado enquanto figura heterogênea. Nossa tentativa é em ressaltar os planos dessa definição.
O assunto de Machado, o problema em que incide o seu esclarecimento, é a construção da
literatura brasileira encarada fora de qualquer referência a um Brasil que dela fosse
fundamento e a garantia de novidade, de originalidade, enfim, de nacionalidade. E a
respeito dos “precursores”, vemos que o esforço principal vai no sentido de sublinhar a
novidade radical do projeto nacional, desse “geral desejo de criar uma literatura mais
independente”, com duas conseqüências decisivas: os precursores são uma criação do
presente, resultado da projeção no passado de um problema que não existia antes do
projeto nacional; não existe qualquer critério seguro para delimitar uma tradição literária
brasileira antes do projeto que estipula a necessidade dessa tradição. Assim, tendo em conta
que não parte da afirmação da novidade radical do “instinto de nacionalidade” para a
rejeição de toda a literatura do período colonial, a posição de Machado é precisamente a
contrária, e é isso que o move: em nome de uma assimilação mais rica, combater rejeições
fundadas em critérios inadequados (BAPTISTA, 2003, p. 71).
Faz sentido reter desse trecho toda uma orientação para o afastamento das situações que
emergiram dessa religação de Machado com a história da cultura.
A aparente desarmonia da crítica ou a harmonia estetizada da obra machadiana
acompanha o legado que o torna grandioso: repõe as estratégias de constrangimentos no jogo de
fidelidade supostamente desencontrada da realidade. Machado de Assis destrona a realidade
imediata, impedindo a hierarquização das abordagens, amplificando uma multiplicidade de
perspectivas.
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meios de vida. São Paulo: Ouro Azul, 2010.
13
Cf. Baptista, Abel Barros. Autobibliografias (2003a).
81 NORONHA, Marcelo Brice Assis. As ideias de Machado de Assis e o projeto de literatura no Brasil.
Estácio de Sá – Ciências Humanas. Revista da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES-Go. Vol. 02, nº 10,
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82 MOREIRA, Verônica Martins. Guerra é paz, liberdade é escravidão, ignorância é força: uma análise
crítica da obra de George Orwell - 1984. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Revista da Faculdade Estácio
de Sá. Goiânia SESES-Go. Vol. 02, nº 10, 82-97, Fev./Jul. 2014.
GUERRA É PAZ, LIBERDADE É ESCRAVIDÃO, IGNORÂNCIA É FORÇA:
UMA ANÁLISE CRÍTICA DA OBRA DE GEORGE ORWELL - 1984
Verônica Martins Moreira1
RESUMO
ABSTRACT
O principal alvo de análise na obra de George
Orwell envereda-se por caminhos que nos levam
muitas vezes a crer que o bem é o mal e o mal é o
bem. A obra se passa em uma Londres longínqua
pós-revolução, marcada pelo poder totalitário e
tendo como pano de fundo um romance. Pautado
nos Slogans: Guerra é Paz, Liberdade é Escravidão e
Ignorância é Força, George Orwell nos convida a
vislumbrar uma sociedade pós-revolucionária, em
que vigora a destruição e a desmoralização do
homem enquanto ser humano. Em sua obra vibrante
e delatora das atrocidades impostas pelo modelo
soviético, 1984 se mantem atual em uma perspectiva
contemporânea, não somente o modelo soviético,
mas, sobretudo das atrocidades e irracionalidades do
sistema capitalista. Partindo desse pressuposto, este
artigo intenta por buscar um paralelo entre os
slogans do partido já mencionados e retratados na
obra 1984 com a dinâmica da sociedade capitalista.
Todos os slogans tem o sentido inverso do que
apresentam, demonstrando uma inversão da
realidade; a sociedade sonhada pelo partido que
havia libertado os proletas da opressão capitalista se
tornara uma nova ditadura, agora exercida por
membros diferentes, mas com os mesmos objetivos
de aquisição de poder.
Palavras-chave: Guerra, Partido, Capitalismo.
The main target of analysis in the work of George
Orwell sets course for paths that lead us to believe
that often the good is evil and evil is good. The work
takes place in a far-off London, marked by postrevolution totalitarian power and against the
backdrop of a novel. Based on Slogans: war is
peace, freedom is slavery, and Ignorance is strength,
George Orwell invites us to envision a postrevolutionary society, in which there is destruction
and demoralization of the man as a human being. In
his work vibrant and snitch atrocities imposed by
Soviet model, 1984 keeps current in a contemporary
perspective, not only the Soviet model, but above all
of the atrocities and irrationalities of the capitalist
system. Starting from this assumption, this article
attempts to seek a parallel between the slogans of
the party already mentioned and pictured in 1984
with the dynamics of capitalist society. All slogans
has the opposite direction than present,
demonstrating an inversion of reality; the dream
society by the party who had released the proletas of
capitalist oppression had become a new dictatorship,
now exercised by different members, but with the
same goals of purchasing power.
Keywords: War, Party, Capitalism.
Introdução
Mil Novecentos e Oitenta e Quatro (título original Nineteen Eighty-Four) é o romance
escrito por Eric Arthur Blair sob o pseudônimo de George Orwell e publicado em 8 de Junho de
1948 que retrata o cotidiano de uma sociedade essencialmente totalitária. A inspiração para o título
1
Professora especialista da rede estadual de educação do estado de Goiás. Mestranda em Educação Linguagem e
Tecnologias – MIELT (UEG) Anápolis – Goiás. [email protected]
83 MOREIRA, Verônica Martins. Guerra é paz, liberdade é escravidão, ignorância é força: uma análise
crítica da obra de George Orwell - 1984. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Revista da Faculdade Estácio
de Sá. Goiânia SESES-Go. Vol. 02, nº 10, 82-97, Fev./Jul. 2014.
vem da inversão dos dois últimos dígitos do ano em que o livro foi escrito, 1948. O presente artigo
científico trata-se de uma análise da obra literária de George Orwell "1984" e a partir dela pretendese discutir a inversão de valores nas expressões “guerra é paz”, “liberdade é escravidão” e
“ignorância é força” presentes no livro. O romance é considerado uma das mais atuais obras
literárias visto que em suas páginas é denunciada uma sociedade onde o Estado é onipresente, com
a capacidade de alterar a história e o idioma, de oprimir e torturar o povo e de travar uma guerra
sem fim, com o objetivo de manter a sua estrutura inabalada. O escritor inglês também critica
frontalmente os campos de concentração nazistas, - onde a principal tortura é a eliminação da
individualidade e o aniquilamento de qualquer resquício de dignidade - mostrando-os como um
projeto terrível de sociedade moderna e para tal inspira-se claramente nos grandes déspotas do
nosso tempo: Hitler e Stálin. Impossível não comparar o enredo da obra com os tempos atuais.
Guerra é Paz
O primeiro slogan do partido ao qual iniciaremos nossa análise substancializa-se na
dialética: Guerra é Paz. Esta legenda – por mais que seja essencialmente dúbia – demonstra um
estado de guerra constante. Embora contínua, o embate atual não representa o embate de antes, não
se trata da mesma guerra: são conflitos de caráter ininterrupto, contudo com inimigos que se
revezam.
O inimigo do momento sempre personifica-se no mal absoluto na consolidação da
tirania e uma maneira bastante eficaz e grandemente utilizada com o intuito de sempre fomentar a
animosidade se constituía na realização de um evento semanal intitulado: “Semana do Ódio”. Toda
a ferocidade e animalidade presentes na personalidade humana até mesmo nas crianças eram
orientadas contra os inimigos do Estado. Quem eram os inimigos? Aqueles que não se encaixavam
no modelo estabelecido, possuíam pensamentos perigosos – subversivos - ou mesmo aqueles que
praticassem ações contra o Partido2. Na obra de Orwell, Goldstein, tido como o inimigo do povo e
consequentemente do Partido, está sempre à espreita, sempre alerta produzindo medo e ira:
Goldstein atacava o Grande Irmão, denunciava a ditadura do partido, exigia a imediata
celebração da paz com a Eurásia, defendia a liberdade de expressão, a liberdade de
imprensa, a liberdade de reunião, a liberdade de pensamento, gritava freneticamente que a
revolução fora traída. (ORWELL, 2009, p. 23).
Isto posto, o antagonismo se faz perene na obra 1984. Por mais que o discurso do
“inimigo” do povo esteja falando de direitos sociais, sua fala ganha um novo viés: ela é reformulada
2
Segundo Rodrigues (1987) a instituição central do leninismo. (Ver: O Partido, o Estado e a Burocracia, p. 84).
84 MOREIRA, Verônica Martins. Guerra é paz, liberdade é escravidão, ignorância é força: uma análise
crítica da obra de George Orwell - 1984. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Revista da Faculdade Estácio
de Sá. Goiânia SESES-Go. Vol. 02, nº 10, 82-97, Fev./Jul. 2014.
e reorientada para atender os interesses do Partido em que liberdade3 é vista como um direito
errôneo, maléfico, tal como a revolução como um mal necessário e não como a conscientização que
leva à emancipação. E por mais que existisse meios eficazes que agiam com o objetivo de se evitar
a aceitação frente as ideias do inimigo “[...] sempre haviam ‘trouxas’ seduzidos por ele” (p. 24).
Este trecho ilustra uma clara inversão de valores, pois, deve-se subjugar não a opressão, mas,
sobretudo todos os mecanismos que possam conduzir à destruição dela. Desta feita, este estado de
alienação4 torna-se essencialmente necessário para manter os interesses do Partido, ou seja, da
classe que está no poder.
Manter um estado de medo constante é necessário tanto para os governantes da Oceânia
quanto para as sociedades fundamentadas no modelo capitalista, por que de certa forma estreitam os
laços de dependência e animam a crença da proteção de tudo o que pode representar o “mal” diante
de um governo forte defensor da liberdade. “Era bem provável que as bombas-foguetes que caiam
diariamente sobre a cidade fossem disparadas pelo próprio governo da Oceânia só para manter a
população amedrontada” (ORWELL, 2009, p. 183).
A guerra é uma luta de objetivos limitados entre combatentes que não tem como destruir-se
uns aos outros (...) não estão divididos por nenhuma diferença ideológica genuína, não
significa que a prática concreta da guerra ou a atitude predominante em relação a ela tenha
se tornado menos sanguinária ou mais cavalheiresca. (ORWELL, 2009, p. 221).
Neste contexto, Viana (2009) assevera que em vista das agudas transformações nas
relações entre os países, dita “globalização”, “mundialização”, etc, alguns países com Estados
Unidos tem na indústria bélica um dos motores da economia:
Uma crise na indústria bélica provocaria um colapso na economia norte-americana, e tal
indústria funciona como qualquer outra empresa capitalista: visa o lucro e aumenta
constantemente a produção para aumentar a massa de lucro. O problema é que não existe
mercado consumidor para armas, e o Estado norte-americano, mesmo através do
endividamento estatal para evitar a crise da economia norte-americana, é o principal
comprador. Devido a isso precisa produzir guerras e destruir armas, para renovar o
consumo e a produção de armamentos, bem como justificar e legitimar os investimentos
nesta esfera. (p. 86 e 87).
De acordo com a obra 1984 a guerra é definida como uma escassez contínua de bens de
consumo sendo impossível que ela seja decisiva, pois não existe, no sentido material, nada pelo qual
combater; trata-se de uma guerra por força de trabalho, reduzidos à condição de escravos – não
3
A liberdade no presente artigo trata-se de uma existência autônoma e auto-abrangente. “Marx desejava humanizar a
sociedade, organizar o mundo real de forma a que o homem pudesse experimentar-se, a si mesmo, como homem (livre e
autônomo em sua atividade humana e produtiva)”. (HORTON, p. 83, 2008).
4
Seguiremos a analise utilizando o conceito de alienação marxista, sendo “[...] a própria ação do homem se torna para
este um poder alheio e oposto que o subjuga, em vez de ser ele a dominá-la”. (MARX, 2002, p. 39).
85 MOREIRA, Verônica Martins. Guerra é paz, liberdade é escravidão, ignorância é força: uma análise
crítica da obra de George Orwell - 1984. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Revista da Faculdade Estácio
de Sá. Goiânia SESES-Go. Vol. 02, nº 10, 82-97, Fev./Jul. 2014.
mais explorados pelos capitalistas, essa força de trabalho agora sucumbe a outro opressor: o Partido
que assumiu o poder após a revolução. O estado de guerra, não obstante representa um estado de
perigo, mas somente para a população da Oceânia, pois para os países envolvidos no conflito tal
situação tão só mantêm as relações políticas e econômicas já existentes; Segundo Orwell (2009)
seria uma imbecilidade para os países intentarem um conflito tão dispendioso quanto uma guerra,
pois poderia rachar a estrutura social consolidada em tais nações: “as condições de vida nos três
superestados são quase as mesmas” (p.233). O constante estado de guerra - guerra, porém, que não
existe de fato, existe somente para fomentar o medo e garantir a existência do Grande Irmão, como
conciliador e pacificador, interessado no bem geral – serve mais para equilibrar os interesses das
nações envolvidas no conflito do que para efetivar disputas entre elas. Uma vez em relação à
sociedade contemporânea Hobsbawn (1995) observa que nunca houve na história da humanidade
contendas tão sangrentas quanto as que houveram durante todo o século XX. Para o autor:
[...] sem dúvida ele foi o século mais assassino de que temos registro, tanto na escala,
frequência e extensão da guerra que o preencheu, mal cessando por um momento na década
de 1920, como também pelo volume único das catástrofes humanas que produziu, desde as
maiores fomes da história até o genocídio sistemático”. (p. 22).
Partindo desse pressuposto, os conflitos travados pela Oceânia representam uma fábula.
Recorremos então a uma visão maniqueísta que opera na dualidade entre o bem e o mal, o sagrado e
o profano, o herói e o bandido para assim analisarmos uma das guerras mais recentes, ocorrida na
última década do século XX: a guerra do Iraque. De acordo com o vídeo intitulado: “Soldado
americano conta a verdade sobre a farsa da guerra do Iraque”, são óbvios os motivos que levaram
uma superpotência como os Estados Unidos da América a intentarem uma guerra contra o
“terrorismo”, quando na verdade este país do Oriente Médio detêm uma das maiores reservas de
petróleo do planeta. Voltemos assim às origens da história norte-americana para compreender essa
falácia da urgência da guerra para se garantir a paz.
Os meios e os produtos que fomentaram a instrumentalização do mito de homem
americano provêm essencialmente das teorias criadas e sustentadas pela sociedade burguesa
capitalista em ascensão, tidas como ideologia do Destino Manifesto e do novo Adão, ambas
vangloriando a identidade norte-americana. Tais teorias defendem que é cabível, somente à nação
norte-americana a missão concebida pela divina providência de levar à “civilização” até os povos
bárbaros antes ameríndios e agora desprovidos de “liberdade”, como uma adaptação à ideologia
europeia do “fardo do homem branco" em voga na Europa e criada com o intuito de legitimar a
conquista/exploração de outros povos cultura, econômica e socialmente diferentes. A ideologia do
destino manifesto fez-se brotar na história estadunidense no momento do constante avanço da
86 MOREIRA, Verônica Martins. Guerra é paz, liberdade é escravidão, ignorância é força: uma análise
crítica da obra de George Orwell - 1984. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Revista da Faculdade Estácio
de Sá. Goiânia SESES-Go. Vol. 02, nº 10, 82-97, Fev./Jul. 2014.
colonização para o Oeste que para Voltaire (2002), foi determinante para que esta se fortalecesse
enquanto expressão de um dogma de autoconfiança e ambição ímpares: “... a ideia de incorporação
aos Estados Unidos de todas as regiões adjacentes constituía a realização virtualmente inevitável de
uma missão moral assinalada à nação pela própria Providência”. (p. 21).
Infelizmente para os civis e soldados mortos e felizmente para a economia norteamericana, a guerra do Iraque também simboliza uma fábula, não no sentido material, mas
corporificada pela desfiguração dos fatos e a indignidade de deturpar tal como na obra 1984 a
humanidade do significado da palavra liberdade.
Em Londres, a III cidade mais populosa das províncias da Oceânia o estado geral de
escassez servia tão somente para reforçar a importância de pequenos privilégios e assim tornar mais
marcada as diferenças materiais entre um grupo e outro. O progresso tecnológico neste contexto só
passa a ser interessante quando se verifica que alguns produtos podem ser utilizados em prol da
diminuição da liberdade humana, ou seja, a preocupação não é garantir a liberdade plena, mas,
sobretudo, extirpá-la de tal modo que esta não exista mais, principalmente na consciência do
indivíduo.
O cenário das cidades era composto por prédios precários quase se decompondo
preenchidos por seres humanos em condições sub-humanas de existência; não havia roupas, trens,
escolas, etc., distante da opulência e riqueza presente nos bairros dos integrantes mais importantes
do Partido. Orwell assevera que “uma sociedade hierárquica só era possível em um mundo de
pobreza e de ignorância”. No entanto, é importante salientar que a conservação da pobreza e,
sobretudo a manutenção de uma sociedade fragmentária é de suma importância, não somente como
ferramenta para a legitimação do Partido, mas, sobretudo, à sobrevivência do capitalismo, enquanto
meio de exploração.
No desenvolvimento das forças produtivas atinge-se um estágio no qual se produzem forças
de produção e meios de intercâmbio que, sob as relações vigentes, só causam desgraça, que
já não são forças de produção, mas forças de destruição (maquinaria e dinheiro) – e, em
conexão com isto, é produzida uma classe que tem de suportar todos os fardos da sociedade
sem gozar das vantagens desta. (MARX, 2002, p. 46).
De acordo com Orwell (2009), todos os governantes de todos os tempos tentaram impor
uma falsa visão do mundo a seus seguidores. Para o autor, “a guerra devora o excedente de bens e
contribui para preservar uma atmosfera mental que convêm a uma sociedade hierárquica, para tal
reforça: “...uma paz que fosse de fato permanente seria idêntica a uma guerra permanente” (p. 235 e
236). Haja vista, o objetivo é manter intacta a estrutura social.
87 MOREIRA, Verônica Martins. Guerra é paz, liberdade é escravidão, ignorância é força: uma análise
crítica da obra de George Orwell - 1984. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Revista da Faculdade Estácio
de Sá. Goiânia SESES-Go. Vol. 02, nº 10, 82-97, Fev./Jul. 2014.
Dentro do contexto da obra, os habitantes da Oceânia simplesmente desapareciam, pois
não havia julgamentos, tampouco registros de prisão. Eram constantes os enforcamentos em praça
pública que logo se transformavam em espetáculos muito populares com um número expressivo de
expectadores. A falsificação do passado consistia em algo fundamental para a operacionalidade do
Partido, ocorrendo de modo muito eficaz. Ao longo da obra, Orwell (2009), sempre faz referência a
essa arma do Partido, chegando a enumerar que “quem controla o passado controla o futuro, quem
controla o presente controla o passado” (p.47). O autor então enfatiza o quão é perigoso a
falsificação do passado mediante as alterações nos documentos históricos. Essa prática não difere
muito quando aplicada às sociedades burguesas, ao contrário, é bastante comum recorrerem com
frequência a este mecanismo; apropriando-se deste alguns personagens da história já se
beneficiaram logrando, por exemplo, um passado glorioso para auto vangloriarem-se.
A destruição do passado – ou melhor, dos mecanismos sociais que vinculam nossa
experiência pessoal à das gerações passadas – é um dos fenômenos mais característicos e
lúgubres do final do século XX. Quase todos os jovens de hoje crescem numa espécie de
presente contínuo, sem qualquer relação orgânica com o passado público da época em que
vivem. (HOBSBAWM, 1995, p. 13).
Essa tendência contemporânea de desinteresse em relação aos fatos históricos de um
grupo, etnia ou mesmo de uma determinada nação apenas reforça o estado precário dos processos
educativos atuais, pois, se não há espaço para a crítica e a discussão5, as gerações atuais não se
sentem comprometidas e, tampouco participantes das permanências e rupturas presentes na
dinâmica histórica. É importante salientar o caráter transformador da disciplina História, uma vez
que “a representação do passado e do que consideramos importante representar é um processo
constante de mudança”. (KARNAL, 2005, p.08).
“Agora havia medo, ódio e dor, mas não dignidade na emoção, não tristezas profundas
ou complexas”. Esse é o mundo no qual Winston faz parte. Todos os sentimentos são mecanizados
e seguem certos comandos, o Partido - e é isso que causa a maior revolta em Winston – os
solidificou, não há mais espaço para o humano. “O que o Partido fizera de terrível fora convencer as
pessoas de que meros impulsos, meros sentimentos, não servem para nada, destituindo-as, ao
mesmo tempo, de todo e qualquer poder sobre o mundo material” (ORWELL, 2009, p. 197). Para
ele, no entanto, ainda havia uma esperança: os proletas; eles ainda não tinham se corrompido,
possuíam algumas das características que os conservava humanos. Para Marx, somente o
5
Refiro-me especificamente à disciplina História ministrada nas instituições de ensino durante o período concernente a
educação básica. [N.A.]
88 MOREIRA, Verônica Martins. Guerra é paz, liberdade é escravidão, ignorância é força: uma análise
crítica da obra de George Orwell - 1984. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Revista da Faculdade Estácio
de Sá. Goiânia SESES-Go. Vol. 02, nº 10, 82-97, Fev./Jul. 2014.
proletariado6, enquanto trabalhadores assalariados produtivos podem emancipar-se e uma vez
emancipada a classe trabalhadora emancipa a humanidade.
Engessado numa personalidade petrificada – até as feições são rigorosamente treinadas
para que não possam denunciar nenhum gesto emotivo, seja de satisfação, alegria, etc; o medo e o
ódio devem imperar -, nosso protagonista sente uma gigantesca dificuldade para lidar com
sentimentos nobres como o amor, na verdade não sabe lidar por que não o conhece, não era
familiarizado com ele. Desta forma, a violência7 sofrida era um tipo de violência que o tempo todo
manifestava uma espécie de protesto, uma sensação de mentira de ter sido privado de alguma coisa
que tinha o direito de possuir. A família também era como uma extensão da Polícia das Ideias,
criada para investigar delitos de qualquer membro. Embora esteja imerso por esse universo de
opressão, Winston percebe que coexistem instâncias com as quais o poder totalitário do Partido
perde força, ou mesmo nem é passível de existir. Sugere que a verdadeira liberdade está presente
dentro e somente dentro das entranhas humanas, onde a consciência e o pensamento são soberanos:
“Não conseguem entrar em você. Se você conseguir sentir que vale a pena continuar humano,
mesmo que isso não tenha a menor utilidade, você os venceu”. (ORWELL, 2009, p.199). No
decorrer da obra verá que estava errado.
Segundo Orwell (2009), o protagonista Winston sente total aversão pelas mulheres,
sobretudo as jovens e bonitas: “percebeu que odiava a garota por que ela era jovem, bela e
assexuada, queria ir para a cama com ela e nunca o faria”. (p.26). A atividade sexual visando
somente o prazer era proibida, pois, o objetivo do Partido era eliminar todo o prazer do ato sexual e
até os casamentos tinham que ser aprovados por uma comissão; o sexo só é necessário quando
orientado para o fornecimento de novos membros para trabalharem pelo Grande Irmão: “Nosso
dever para como partido: gerar filhos”. Esse sentimento causa certa repulsa em Winston quando se
refere à castidade, porque dentro de uma realidade invertida, nosso protagonista quase se perde em
distinguir o que considera bom ou ruim: “Detesto a pureza, odeio a bondade. Não quero a virtude
em lugar nenhum. Quero que todo mundo seja devasso até os ossos”. (p.152). O mais importante
para o Partido era que a privação sexual levasse à histeria, desejável por que poderia ser
transformada em fervor guerreiro e veneração ao líder, o que explica também a conexão entre
6
O termo “proletas” utilizado no decorrer da obra 1984 não deixa de ser uma alusão ao termo “proletariado”
solidificado nas inúmeras obras de Karl Marx. [N.T.]
7
O Conceito de violência trabalhado no presente artigo é de Hannah Arendt. Segundo esta autora, a violência
caracteriza-se por sua instrumentalidade, distinguindo-se do poder, do vigor, da força e, mesmo, da autoridade. A
política constitui-se o horizonte de interpretação da violência, que não é nem natural, pessoal ou irracional. A violência
contrapõe-se ao poder: de forma que onde domina um absolutamente, o outro está ausente. (OLIVEIRA e
GUIMARÃES)
89 MOREIRA, Verônica Martins. Guerra é paz, liberdade é escravidão, ignorância é força: uma análise
crítica da obra de George Orwell - 1984. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Revista da Faculdade Estácio
de Sá. Goiânia SESES-Go. Vol. 02, nº 10, 82-97, Fev./Jul. 2014.
castidade e ortodoxia política, pois a pulsão sexual era perigosa para o Partido, e este a utilizava em
interesse próprio.
Liberdade é escravidão
Seguindo com a análise dos slogans utilizados pelo Partido, temos aquele que se refere à
Liberdade como escravidão. Orwell (2009) nos apresenta um protagonista imerso em uma
sociedade marcada pela opressão, o conceito de liberdade não existe em sua plenitude e tudo o que
o cerca é marcado pelo controle que o Partido exerce sobre seus integrantes menos influentes. De
fato que existe uma hierarquia social. A sociedade londrina pertencente à Oceânia divide-se entre
aqueles que possuem cargos de chefia, os integrantes do partido que trabalham nos ministérios, ou
seja, produzem as bases para a sua própria exploração e por fim, os proletas – a população pobre -,
cerca de 85% da população considerados ignorantes demais para se darem conta de sua condição de
explorados.
Como já foi mencionado anteriormente o conceito de alienação no presente trabalho
condiz na substituição da ação de seus próprios atos não ao individuo em si, mas em uma força
estranha, situada acima dele e contra ele, na qual não possui nenhum controle. Essa falsa noção de
liberdade vai ao encontro não só aos ditames do modelo soviético, mas, sobretudo no que condiz
com os ditames da sociedade capitalista. Debord (1997) apresenta-nos que em um primeiro
momento a consolidação do capital8 sobre a substância humana levou a uma anulação da mesma
(ilusoriamente docilizado e amansado o trabalhador foi transformado em consumidor). Esse estado
de letargia como observa o autor, conserva a manutenção de uma inconsciência amorfa que é
interessante aos meios burgueses de dominação e manipulação.
Para Weber (2004), é incontestável que a sociedade capitalista se tornou uma sociedade
calcada na óptica do lucro exacerbado, lucro que ao configurar-se como consumo ultrapassa a real
necessidade sobre aquilo que é produzido, estabelecendo assim uma relação de dependência não
entre o produto e o produtor, mas sim entre o produtor e seu produto.
É fato que na sociedade moderna houve uma inversão de papeis no que tange à verdadeira
necessidade daquilo que é produzido, sobrepondo-se à necessidade a parece como algo
irracional, [...] o ser humano em função do ganho como finalidade da vida, não mais o
8
“[...] O capital não é uma coisa, mas determinada relação de produção, social, pertencente a determinada formação
sócio-histórica que se representa numa coisa e dá um caráter especificamente social a essa coisa. O capital não é a soma
dos meios de produção materiais e produzidos. O capital são os meios de produção transformados em capital, que, em
si, são tão pouco capital quanto ouro ou prata são, em si, dinheiro”. Ver o livro: O Capital: crítica da economia política
(MARX, 1983, p.269)
90 MOREIRA, Verônica Martins. Guerra é paz, liberdade é escravidão, ignorância é força: uma análise
crítica da obra de George Orwell - 1984. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Revista da Faculdade Estácio
de Sá. Goiânia SESES-Go. Vol. 02, nº 10, 82-97, Fev./Jul. 2014.
ganho em função do ser humano como meio destinado a satisfazer suas necessidades
materiais. (WEBER, 2004. p. 46).
Para Winston Smith, 39 anos algo que causa renitente dor está corporificada em uma
úlcera localizada logo acima do tornozelo. Esta úlcera durante todo o decorrer da obra lhe confere
dores torturantes que persistentemente se fazem notar, não permitindo que Winston as esqueça; o
mesmo acontece com o Partido. Por meio de uma analogia, a úlcera, tal como o Partido não deixa
de incomodar e lhe causar sofrimento. Nosso protagonista possui um corpo frágil, miúdo e uma pele
áspera, usando por vezes de subterfúgios para tornar sua realidade mais aprazível e
consequentemente suportável; imerso nessa realidade sufocante percebe que tem algo que o
incomoda, mas, no entanto, não sabe identificar o que seja: “Pensou que as únicas características
indiscutíveis da vida moderna não eram sua crueldade e falta de segurança, mas simplesmente sua
precariedade, sua indignidade, sua indiferença”. (ORWELL, 2009, p.93)
Somente através da bebida – gim – a realidade passa a ser mais tolerável. É
fundamentalmente necessário buscar outras formas de prazer e satisfação que possam atenuar a
realidade imposta, desta feita apreendemos que existe no protagonista um desejo irrefutável de fuga
frente às mazelas sociais que vivencia, a realidade social com suas enfermidades para ele torna-se
intolerável. Partindo desse pressuposto, o trabalho torna-se o maior prazer da vida de Winston, suas
tarefas compunham uma rotina majoritariamente enfadonha e repetitiva, mas mantinham uma falsa
sensação de utilidade. Arendt (2007) observa que através do trabalho, os seres humanos passam a
estabelecer uma relação íntima entre o que realizam e a sua própria existência.
A condição humana compreende algo mais que as condições nas quais a vida foi dada ao
homem.
Os
homens
são
seres
condicionados:
tudo
aquilo
com o qual eles entram em contato torna-se imediatamente uma condição de sua existência.
(ARENDT, 2007, p. 17).
Já Mills (2008) lembra que uma vez massificado o individuo passa a viver de forma
inerte, passiva. “Não tem consciência exata de sua experiência diária e de seus padrões reais: vaga,
realiza atos habituais, comporta-se segundo uma mistura sem planos de padrões confusos e de
experiências não-criticadas” ( p. 274). Esta falsa ideia de satisfação e a própria noção de
anulação/alienação, ainda de acordo com Debord (1997), é e só foi possível dentro da sociedade
capitalista com a preeminência dos valores9 da classe dominante sobre os demais. A economia
9
Para assinalar valores, podemos defini-los como um conjunto de escolhas relevantes para seus pares que são
compartilhadas por um grupo ou por determinada classe social; somando-se a elas as qualificações – que denotam certa
preferência - sejam individuais ou coletivas também podem ser incluídas em tal definição. “[...] Os valores não são
atributos naturais dos seres, pois são atributos fornecidos a eles pelos seres humanos e o fato de não haver consenso
91 MOREIRA, Verônica Martins. Guerra é paz, liberdade é escravidão, ignorância é força: uma análise
crítica da obra de George Orwell - 1984. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Revista da Faculdade Estácio
de Sá. Goiânia SESES-Go. Vol. 02, nº 10, 82-97, Fev./Jul. 2014.
capitalista pautada no lucro, nas relações de exploração, etc, criou uma falsa noção de liberdade e
de escolha. O poder de comprar, de votar para presidente, de optar por um determinado produto
dentre vários outros nos transforma em sujeitos e nos oferece uma inebriante sensação de
protagonistas de nossas próprias vidas. O que não é perceptível – e isso acontece da forma mais
sutil possível – é a transformação desses mesmos consumidores em indivíduos nulos. Debord
(1997) assevera que “[...] Logo, a satisfação, já é problemática, que é considerada como pertencente
ao consumo do conjunto é desde logo falsificada pelo fato de o consumidor real só poder tocar
diretamente numa sequência de fragmentos dessa felicidade mercantil”. (p.44). Nesse ínterim,
Weber (2004) nos apresenta que o grande feito do capitalismo moderno foi ter-se transformado em
um fenômeno de massa, rompendo integralmente com a tradição.
Atualmente, a ordem econômica capitalista é um imenso cosmos em que o indivíduo já
nasce dentro da qual tem que viver. Esse cosmos impõe ao indivíduo, preso nas redes do
mercado, as normas de ação econômica. (WEBER, 2004, p. 48).
A Teletela – instrumento distribuído por toda a cidade tem a finalidade de filmar e
gravar tudo a sua volta - registrava tudo a sua frente, além de também ouvir sons e batimentos
cardíacos. “Todo o som produzido por Winston que ultrapassasse o nível de um sussurro era
captado pela teletela”. Era terrivelmente perigoso deixar os pensamentos à solta num lugar público
qualquer ou na esfera de visão de uma teletela. Nesse contexto, ninguém mais tinha amigos, só
camaradas, não havia espaço para a amizade, tampouco para sentimentos nobres nenhuma emoção
era pura, pois tudo estava misturado ao medo e ao ódio. Inspirado na obra de Orwell, o programa
televisivo intitulado "Big Brother Brasil" se tornou um programa de entretenimento. Transmitido no
horário nobre de uma importante emissora de TV, este reproduz o controle total de algumas pessoas
confinadas em uma casa vigiadas 24 horas por dia. Bernardo (2009) lembra que “a simples
existência do programa é um sintoma claro de que o nazismo não foi completamente derrotado e de
que a previsão apocalíptica de Orwell vem se realizando ao menos em parte, e em parte importante:
na televisão que invade todos os lares”.
Ignorância é força
O pôster do Grande Irmão disposto com feições agradáveis sempre grande e colorido
exercia uma espécie de hipnose ou mesmo fascínio, pois tal como a Monalisa encarava-lhe com os
olhos seguindo sempre que se movia. Indiscutivelmente representando uma imagem de forte apelo
entre estes demonstra isto. No entanto, as valorações que os seres humanos fornecem às coisas não são consensuais
devido à divisão social”. (VIANA, 2007, p.21).
92 MOREIRA, Verônica Martins. Guerra é paz, liberdade é escravidão, ignorância é força: uma análise
crítica da obra de George Orwell - 1984. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Revista da Faculdade Estácio
de Sá. Goiânia SESES-Go. Vol. 02, nº 10, 82-97, Fev./Jul. 2014.
emocional, a face do Grande Irmão simbolizava um governante rígido, severo e ao mesmo tempo
um protetor destemido, paciente e compreensivo, a fim de “consertar” aqueles que porventura
vierem a se desviar do caminho correto. “O Grande Irmão está de olho em você, até nas moedas os
olhos perseguem você”. (ORWELL, 2009, p. 12). O Grande irmão está em toda parte, tal como o
Deus cristão que está em todos os lugares, sabe de tudo o que se passa e possui uma força
imensurável, embora jamais alguém tenha visto o Grande Irmão. A sociedade oceânica repousa, em
última análise, na crença de que o Grande Irmão é onipotente e o Partido infalível. Tal aspecto é
demonstrado sob a óptica do par romântico de Winston, Júlia uma jovem de 26 anos que morava em
uma pensão com trinta outras garotas; concebia o partido como algo inalterável como o céu, algo
que sempre existiu e sempre irá existir, da mesma forma que muitas pessoas entendem o sistema
capitalista, não levando em conta seu caráter histórico e, portanto transitório.
“Com exceção dos poucos centímetros que cada um possuía dentro do crânio, ninguém
tinha nada de seu”. (ORWELL, 2009, p. 39). De acordo com a obra, o Partido não representa uma
classe, no antigo sentido do termo. A essência da regra oligárquica não é a hereditariedade de pai
para filho, mas a persistência de determinada visão de mundo. Para Orwell (2009), “não importa
quem exerce o poder, contanto que a estrutura hierárquica permaneça imutável”. (p.247); segundo o
autor, a abolição da propriedade privada, na verdade significara concentração da propriedade em
um número muito menor de mãos, ou seja, ela continua existindo, mas agora sob a efígie da
revolução socialista. A igualdade humana representa um perigo a ser evitado, uma vez que ameaça
a legitimidade do status quo. Ao se tratar do sistema regido pela lógica do capital sequer houve
abolição da propriedade privada, ao contrário, ela serve para reforçá-lo e lhe dar sustentabilidade.
Orwell (2009), quando discursa a respeito da transformação social iniciada pelos proletas demonstra
um certo desalento, no entanto, Marx (2004), já enfatizava que a classe trabalhadora massificada
luta por interesses comuns, interesses de classe, mas, não significa que assumindo o poder esta se
tornaria tão tirana quanto a anterior, haverá sim a libertação da classe trabalhadora mediante a
abolição de toda e qualquer classe.
“As massas nunca se revoltam por iniciativa própria, e nunca se revoltaram não só por
que são oprimidas - elas nunca chegarão a dar-se conta do que são oprimidas”. (p. 244). Nessa
perspectiva, Orwell (2009), enfatiza que as massas são incapazes de se auto gerir, necessitando de
uma vanguarda revolucionária – intelectuais – para fazê-lo. O partido não deseja o poder em
beneficio da maioria. As massas são compostas de pessoas frágeis que não aguentam a liberdade,
não conseguem encarar a verdade e precisam ser governadas e iludidas sistematicamente por outras
pessoas mais fortes do que elas. É exatamente nesse ponto que as ideias de Karl Marx interpretadas
93 MOREIRA, Verônica Martins. Guerra é paz, liberdade é escravidão, ignorância é força: uma análise
crítica da obra de George Orwell - 1984. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Revista da Faculdade Estácio
de Sá. Goiânia SESES-Go. Vol. 02, nº 10, 82-97, Fev./Jul. 2014.
por Lênin, líder da revolução bolchevique na Rússia, são enquadradas em uma nova perspectiva
teórica intitulada marxismo-leninismo:
Não se trata de frases ou de reflexões isoladas, fruto do desespero. Toda a concepção do
socialismo de Lenin identifica-se com a necessidade de concentração dos poderes, nas
fábricas, nas mãos dos técnicos, dos que tem um saber e uma cultura burguesa, aos quais os
operários submetidos à uma disciplina férrea, deveriam prestar obediência incondicional.
(RODRIGUES, 1987, p.94).
Os proletas só teriam como tornar-se mais perigosos se recebessem mais educação: “As
massas só podem desfrutar de liberdade intelectual por que carecem de intelecto” (p. 248), pois não
era desejável que os proletas tivessem ideias políticas sólidas. No contexto capitalista, isso fato se
explicaria por que:
A educação reproduz os anseios da sociedade e para tal, a sociedade capitalista
redimensionou o processo de produção de conhecimento para os grandes interesses
econômicos. O neoliberalismo concebe a educação como uma mercadoria, reduzindo
nossas identidades às de meros consumidores, desprezando o espaço público e a dimensão
humanista da educação. (GADOTTI, 2007, pg. 96).
Não é mais possível na contemporaneidade desvincular educação e política neoliberal;
ambos se entrelaçam mantendo uma relação íntima de interesses. Nesse contexto, a escola passa a
ser vista como uma empresa, o discente como cliente e a educação como política eleitoreira e não
como política pública. De acordo com Bianchetti (1996), a ideologia neoliberal não apresenta outra
lógica senão a lógica do mercado. Uma vez, que o sistema capitalista é sustentado por violentas
formas de exclusão, o neoliberalismo apresenta-se como indiscutivelmente competente para uma
sociedade em que poucos são privilegiados e muitos excluídos, sendo esta sua lei soberana: a
exclusão da maioria. “No desenvolvimento das sociedades capitalistas podem ser encontradas
estratégias de promoção de políticas sociais que mantêm uma estreita ligação com as necessidades
de acumulação de capital”. (p. 89). 85% da população da Oceânia era composta por proletas: eram
os únicos capazes de destruir o partido, pois bastava se conscientizarem da força que possuíam.
Força esta que passa essencialmente pela educação, por que “enquanto eles não se conscientizarem
não serão rebeldes autênticos e, enquanto não se rebelarem, não tem como se conscientizar”. O
partido se vangloriava de tê-los libertado da escravidão, por que no passado eram oprimidos pelos
capitalistas.
Dessa forma, é pertinente considerar que Engels (1986) em sua obra A Situação da
Classe Operária da Inglaterra, assinala que devido as condições de trabalho insalubres e
inadequadas para homens, mulheres e crianças durante a eclosão da Primeira Revolução Industrial,
a emergência de uma luta reivindicatória se fazia presente. O autor salienta ainda a necessidade de
94 MOREIRA, Verônica Martins. Guerra é paz, liberdade é escravidão, ignorância é força: uma análise
crítica da obra de George Orwell - 1984. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Revista da Faculdade Estácio
de Sá. Goiânia SESES-Go. Vol. 02, nº 10, 82-97, Fev./Jul. 2014.
se renunciar a uma esperança de uma solução pacífica do problema social, visto que a única saída
que resta é somente uma revolução violenta que, segundo ele, não tardaria. Em seu discurso Engels,
lembra da necessidade de se renunciar a uma esperança de uma solução pacífica do problema social,
visto que a única saída que resta é somente uma revolução violenta que, segundo ele, não tardará.
Tais elucubrações demonstram que os indivíduos que compõem a classe que está no poder não
aceitariam uma transformação pacificamente e, logo, a revolução encontraria uma oposição que,
inevitavelmente, provocaria uma luta armada. No entanto, é importante assinalar que não se trata
de práticas repressivas e violentas praticadas de forma intencional e constante.
Não é recente, em se tratando de história, a “fabricação” de eventos e personagens
populares que de certa forma evocam um passado glorioso cheio de simbolismo e magia, como
fortes elementos de identidade e unidade nacional. Em seu artigo São Tiradentes, a autora Jeanne
Callegari (2007) enfoca a imagem “fabricada” por Décio Villares do herói nacional com cabelos
longos, barba por fazer, expressão ausente e roupas, que certamente lembram Jesus Cristo no
calvário, no entanto, esta imagem que ainda hoje é vinculada a Tiradentes, como observa a
historiadora Maria Alice Milliet em Tiradentes: corpo do herói: “fundamental para o
estabelecimento do mito” não é verídica uma vez que ainda não se sabe quais são os verdadeiros
traços do herói. O caso de Ernesto Guevara também não foge a regra. De acordo com Gomes
(2006):
O momento de sua morte aparentando um estereótipo emagrecido e ressequido pelas
intempéries da guerrilha, seu rosto fez o mundo relembrar o início do cristianismo e os
santos martirizados, sendo visto atualmente como um ‘Dom Quixote moderno’. (p. 36).
A invenção do Camarada Ogilvy, criado tão somente para engessar na sociedade
oceânica um passado glorioso na idealização de heróis, ilustra a necessidade de fabricação destes,
tanto em uma sociedade pós-revolução quanto em uma sociedade orientada pelos ditames do
capital. Nesse sentido retomamos a análise de que a ascensão e a derrocada dos heróis representam
uma linha muito tênue nas sociedades ditas socialistas ou mesmo capitalistas que elegem e
mortificam os indivíduos – meros fantoches do sistema - de forma muito rápida. Se, no entanto, em
um dado momento faz-se necessário um discurso mais virtuoso enfatizando os pontos positivos,
este então é defendido como verdade universal; se em outro momento a tendência é demonizar, esta
também se faz como verdade universal. Barthes (1989) observa que a história possui um papel
ímpar nesse processo de estruturação e consolidação do mito; transformando o real, moldando-o de
acordo com os meandros da linguagem mítica, a história redimensiona sua validade, evidenciando
que não existe nenhuma rigidez de conceitos míticos: podendo construir-se, alterar-se, desfazer-se
95 MOREIRA, Verônica Martins. Guerra é paz, liberdade é escravidão, ignorância é força: uma análise
crítica da obra de George Orwell - 1984. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Revista da Faculdade Estácio
de Sá. Goiânia SESES-Go. Vol. 02, nº 10, 82-97, Fev./Jul. 2014.
ou mesmo desaparecer completamente. Nesse sentido, é precisamente pelo fato de serem históricos,
que a história pode facilmente suprimi-los.
Como forma de inviabilizar todas as outras formas de pensamento, na medida em que os
pensamentos precisam de palavras para serem formulados, um novo sistema de comunicação foi
desenvolvido na Oceânia: A NOVAFALA10 – idioma oficial da Oceânia (atendia as necessidades
do Socing – Socialismo Inglês). Esse inovador sistema de comunicação foi criado com o objetivo de
substituir a “Velhafala”, ou o inglês padrão. Elaborado de modo a conferir expressão exata (criação
de novos vocábulos e eliminação dos vocábulos indesejáveis), a novafala foi concebida não para
ampliar e sim restringir os limites do pensamento com o intuito de estabelecer um controle ainda
maior do Partido sobre os proletas.
Considerações finais
Já se foi dito que “ainda nos encontraremos no lugar onde não há escuridão”. Dentro
das salas de tortura em que muitos passaram dias, meses, anos... não haveria como saber quando era
dia ou noite. As salas que compunham o Ministério do Amor, Winston se lembrara, eram muito
bem iluminadas e a escuridão que existia era somente aquela alimentada dentro dos seus algozes. A
Confissão era uma mera formalidade, embora a tortura fosse real, confessava-se crimes reais e
imaginários. “O propósito daquilo tudo era apenas humilhá-lo. É impossível ver a realidade se não
for pelos olhos do Partido”. (ORWELL, 2009, p. 292), pois tratava-se simplesmente de aprender a
pensar como eles pensavam, enxergar o mundo da forma com que “eles” enxergavam. Embora 1984
tenha sido publicado no ano de 1949, vários aspectos dessa sociedade denunciada no livro não
tratam-se de ficção; sua face de terror convive diariamente conosco, sob nova nomenclatura é claro,
mas chamado agora de capitalismo. Pinto (2013) observa que George Orwell, “mostra-nos o perigo
das revoltas populares, dos resultados que nos levam de um extremo ao outro, de passar da opressão
para uma suposta liberdade onde tudo é permitido e vice-versa...”.
A existência dos inúmeros campos de concentração ou Gulags corporificava o horror da
revolução. Hobsbawn (1995) salienta que em consequência da experiência socialista na União
Soviética: “Stalin, que presidiu a resultante era de ferro da URSS, era um autocrata de ferocidade,
crueldade e falta de escrúpulos excepcionais, alguns poderiam dizer únicas. Poucos homens
manipularam o terror em escala mais universal”. (p. 371). Essa era a face do regime soviético
calcada no culto à personalidade, à burocracia, à corrupção e a economia ineficiente.
10
Outras traduções da obra 1984 ilustram a expressão “novilíngua”, sendo esta mais conhecida. [N.A].
96 MOREIRA, Verônica Martins. Guerra é paz, liberdade é escravidão, ignorância é força: uma análise
crítica da obra de George Orwell - 1984. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Revista da Faculdade Estácio
de Sá. Goiânia SESES-Go. Vol. 02, nº 10, 82-97, Fev./Jul. 2014.
Winston sentia uma necessidade pujante de escrever um diário. Não para seus pares, ou
para aquela sociedade corrompida, mas sim para o futuro, os não nascidos. Havia um latente desejo
de mudança através de diversos núcleos de resistência que a grande maioria das pessoas ousavam
cogitar. O que as pessoas sabiam que existia de fato era o desconhecimento da existência uma das
outras, isoladas por muros de ódio e mentiras e, todavia permaneciam praticamente iguais; para ele
opor-se às atrocidades cometidas pela história do poder totalitário era uma maneira de sentir-se
humano. Nenhuma emoção era pura e em consequência disso para ele “Matar não a vida, mas a
condição de ser humano de amar e ser amado”. (p. 319) representava a maior das torturas.
Para Winston havia um mal-estar latente em lidar com aquela úlcera logo acima dos
tornozelos. Uma dor que sempre incomodava e tornara-se torturante, tal como o universo no qual
estava submetido. A promessa de mudança e transformação representara um logro, uma mentira.
“Não se estabelece uma ditadura para proteger uma revolução. Faz-se a revolução para instalar a
ditadura” (ORWELL, 2009, p. 309). Não havia liberdade, tampouco promessa dela; a opressão
permanecera intacta, houvera apenas uma nova nomenclatura para o opressor: antes o capitalista,
agora o Partido. Saturno engolira seus filhos. Winston amava o Grande Irmão (p. 346).
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98 CARVALHO, Ana Cecília Soares de Carvalho; SANTANA, Danilo Correia da Silva. Os contos e a
sociologia – a contribuição de Machado de Assis para uma compreensão do contexto social-histórico
brasileiro. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Revista da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES-Go. Vol.
02, nº 10, 98-108, Fev./Jul. 2014.
OS CONTOS E A SOCIOLOGIA - A CONTRIBUIÇÃO DE MACHADO DE ASSIS PARA
UMA COMPREENSÃO DO CONTEXTO SOCIAL-HISTÓRICO BRASILEIRO
Ana Cecília Soares Carvalho1; Danilo Correia da Silva Santana2
RESUMO
ABSTRACT
Considerando a importância da literatura brasileira
para conhecermos e analisarmos a organização
social do Brasil, realizamos neste trabalho
articulações e reflexões sociológicas dos Contos de
Machado de Assis. Este escritor considerado
realista, evidencia em sua literatura as relações e
práticas sociais. Sua arte literária permite ao leitor
reflexões sobre as relações humanas. Elencamos,
portanto, aspectos teóricos marxistas que
fundamentam o olhar sociológico da literatura de
Machado de Assis.
Considering the importance of Brazilian literature to
know and analyze the social organization of Brazil,
did this work joints and sociological reflections tales
of Machado de Assis. This writer considered
realistic, in their literature demonstrates the social
relations. His literary art allows the reader to make
reflections about human relationships. Therefore, we
list Marxist theoretical aspects underling the
sociological look at literature of Machado de Assis.
Keywords: Literature. Realism. Sociology.
Palavras-chave: Literatura. Realismo. Sociologia.
Considerações iniciais
Este trabalho objetiva elencar aspectos da arte literária do escritor brasileiro: Machado
de Assis, que nos oferece através da literatura, conhecimentos e elementos de interpretação que
contribuem para uma reflexão sociológica do Brasil do século XIX. É válido ressaltar que, ao
considerar a arte literária realista enquanto componente colaborador para interpretações do contexto
social, não implica na desconsideração da literatura enquanto forma e expressão de arte. Entretanto,
este trabalho se pauta em análise social, e não literária.
Para tal reflexão, faz-se necessário ponderar as ideias de Bakhtin (2006) sobre os
signos, palavras e significações, em que "o que faz da palavra uma palavra é sua significação" (p.
48). Neste trabalho serão expostos alguns aspectos das obras de Machado de Assis, considerado um
1
2
Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal de Goiás.
Mestrando no Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal de Goiás.
99 CARVALHO, Ana Cecília Soares de Carvalho; SANTANA, Danilo Correia da Silva. Os contos e a
sociologia – a contribuição de Machado de Assis para uma compreensão do contexto social-histórico
brasileiro. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Revista da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES-Go. Vol.
02, nº 10, 98-108, Fev./Jul. 2014.
escritor realista, que nos mostra em seus contos, através das palavras, o contexto social brasileiro
(segunda metade do Século XIX). Ao escrever sobre as relações sociais em algumas de suas obras,
debruçava sobre temas como: escravidão, escola, relações de trabalho, entre outros. E de que
maneira a literatura realista pode contribuir para uma compreensão da sociedade?
As intenções realistas, mescladas a esse caráter interessado, em sua maioria sempre foram a ainda são - miméticas e documentais, revelando-se como possibilidade não apenas da
representação estética, mas também de intervenção ética e política do mundo real.
(PELLEGRINI, 2012, p. 11)
Tentaremos então, apontar reflexões teórico-sociológicas, analisando elementos
contextuais sociais que estão nas entranhas das palavras, na escrita, no discurso inconsciente ou
consciente; vinculando posteriormente a contribuição das teorias marxistas de análise social,
"quanto mais esses escritores penetram em profundidade no conhecimento da realidade social, tanto
mais os problemas centrais passam ao primeiro plano de seus interesses, ideológicos ou literários"
(LUCKÁCS, 2010, p. 75).
A literatura e o contexto social
De acordo com Antônio Cândido uma literatura, um livro:
possui certas dimensões sociais evidentes, cuja indicação faz parte de qualquer estudo,
histórico ou crítico: referência a lugares, modas, usos; manifestações de atitudes de grupo
ou de classe; expressão de um conceito de vida entre o burguês e patriarcal. (CÂNDIDO,
2006, p. 16)
Partindo deste princípio, é possível considerar que há contribuição de uma obra literária
para a observação e/ou interpretação das relações sociais. Uma ação ampla que através da arte,
proporciona uma reflexão do contexto histórico e social.
Não é de estranhar que a literatura também reflita essa preferência de temas e de conteúdos
que nos devolvem uma experiência de leitura em contato com a realidade social, cultural e
histórica e seu estudo forma parte de uma compreensão do lugar da produção literária nos
circuitos culturais, educacionais e midiáticos em um sentido amplo que não contemple sua
especificidade literária (SHOLLHAMMER, 2012, p. 129)
Segundo Antônio Cândido (2006), a literatura, construída por palavras são "ao mesmo
tempo, forma e conteúdo", vinculando de maneira inseparável a linguística e a estética. No entanto,
o modo como a literatura interage, influencia, expressa a sociedade se dá por meio de três fatores
considerados por Candido (2006) como fundamentais: 1) o autor, 2) a obra e 3) o público. Ele
100 CARVALHO, Ana Cecília Soares de Carvalho; SANTANA, Danilo Correia da Silva. Os contos e a
sociologia – a contribuição de Machado de Assis para uma compreensão do contexto social-histórico
brasileiro. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Revista da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES-Go. Vol.
02, nº 10, 98-108, Fev./Jul. 2014.
evidencia que para uma obra ser elaborada é preciso, obviamente de um artista, e consequentemente
de suas condições e posições sociais.
O autor, enquanto um ser que está inserido em um determinado contexto histórico da
sociedade é influenciado pela estrutura social que "atribui um papel específico ao criador da arte"
(CÂNDIDO, 2006, p. 34). Já a obra, que depende de um artista para "nascer", também é
consequentemente determinada pelo contexto histórico, pelas condições materiais de existência do
artista em sua época histórica, e posição social do autor perante o contexto e formas de existência da
sociedade em que este vive. O público, enfim, é o ser receptor dessa arte literária que interage,
interpreta e pode ser influenciado pelos valores e expectativas que são exprimidas nas obras
artísticas. Reforçando que a literatura é forma e expressão artística, lembremo-nos que:
a arte é social nos dois sentidos: depende da ação de fatores do meio, que se exprimem na
obra em graus diversos de sublimação; e produz sobre os indivíduos um efeito prático,
modificando a sua conduta e concepção do mundo, ou reforçando neles o sentido dos
valores sociais (CÂNDIDO, 2006, p. 30)
Partiremos de um ponto primordial para o entendimento da representação do real na
literatura realista, em que Marx e Engels ao debater contra os jovens hegelianos e contra Feuerbach
em sua obra “A ideologia alemã”, sobre a não concepção do real como atividade prático-sensível do
ser humano, destacaram, que “o principal defeito de todo o materialismo histórico existente até
agora (o de Feuerbach incluído) é que o objeto, a realidade, o sensível, só é apreendido na forma do
objeto ou da contemplação, mas não como atividade humana sensível, como prática; não
subjetivamente” (MARX, 2007, p. 533). É a partir deste ponto que observamos e analisamos a
literatura realista. Considerando que a apreensão da realidade pelos indivíduos, a apreensão
“humana sensível” dos atores sociais em seu contexto histórico - ou a representação destes - é a
representação do sensível expresso na realidade como prática real sensível, como consciência de um
ser consciente, ou seja:
A produção das ideias e representações, da consciência, aparece a princípio diretamente
entrelaçada à atividade material e ao intercâmbio material dos homens, como a linguagem
da vida real. As representações, o modo de pensar, a comunicação espiritual entre os
homens se apresentam aqui, ainda, como emanação direta da sua relação material, tal como
se manifesta na linguagem política, das leis, da moral, da religião, da metafísica etc. de um
povo. Os homens são o produto de suas representações, de suas ideias etc. – mas se trata de
homens reais e ativos, condicionados por um determinado desenvolvimento das suas forças
produtivas e pelo intercâmbio a ele correspondente, inclusive suas formas mais
desenvolvidas. A consciência não pode ser nunca outra coisa que o ser consciente e o ser
dos homens é o processo real de sua vida (MARX; ENGELS, 2010, p. 98).
101 CARVALHO, Ana Cecília Soares de Carvalho; SANTANA, Danilo Correia da Silva. Os contos e a
sociologia – a contribuição de Machado de Assis para uma compreensão do contexto social-histórico
brasileiro. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Revista da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES-Go. Vol.
02, nº 10, 98-108, Fev./Jul. 2014.
Neste sentido, as representações presentes no realismo de Machado de Assis expressam
a realidade social de um contexto histórico feito de maneira crítica. Trazendo à tona, em sua
literatura, as relações/práticas de dominação e exclusão da sociedade brasileira na segunda metade
do século XIX (remetendo por vezes, outras épocas históricas). Desta forma, destacamos que “a
literatura é, do ponto de vista imediato, a representação de homens singulares e de vivências
singulares” (LUKÁCS, 2010, p. 74).
Contos para análise - Machado de Assis
Utilizaremos como base para a análise sociológica, dois contos de Machado de Assis
que explicitam através da arte literária, algumas representações da relações sociais. A partir de uma
breve exposição dos contos, serão feitos "recortes" para possíveis reflexões e conexões com a teoria
marxista, e o que consideramos das obras de Marx e Engels que corroboram para a interpretação da
realidade objetiva.
"Pai contra Mãe": escravidão e relações de trabalho
Neste conto intitulado "Pai contra Mãe", Machado descreve sobre a época de regime
escravocrata de forma irônica e por vezes sarcástica, não excluindo pois, o tom triste e doloroso da
realidade social. No entanto, a sociedade é também assim caracterizada, como diz o próprio autor:
"mas a ordem social e humana nem sempre se alcança sem o grotesco, e alguma vez o cruel"
(MACHADO DE ASSIS, 1995, p. 35). A história é sobre Cândido Neves, um moço pobre e que
"não aguentava emprego nem ofício". Até que viu uma oportunidade de ganhar a vida e dinheiro,
capturando escravos fugidos e resgatando a recompensa. "Quem perdia um escravo por fuga dava
algum dinheiro a quem lho levasse [...] Ora, pegar escravos fugidos era o ofício do tempo" (p. 35).
Eis que um dia,
os lucros entraram a escassear. Os escravos fugidos não vinham já, como dantes, meter-se
nas mãos de Cândido Neves. Havia novas mãos e hábeis. Como o negócio crescesse, mais
de um desempregado pegou em si e numa corda, foi aos jornais, copiou os anúncios e
deitou-se à calçada (MACHADO DE ASSIS, 1995, p. 38).
Cândido Neves casou-se com uma moça também pobre, sem nenhum recurso, e que
logo engravidou. Tiveram que morar com a tia da moça, também humilde. A tia era preocupada
102 CARVALHO, Ana Cecília Soares de Carvalho; SANTANA, Danilo Correia da Silva. Os contos e a
sociologia – a contribuição de Machado de Assis para uma compreensão do contexto social-histórico
brasileiro. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Revista da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES-Go. Vol.
02, nº 10, 98-108, Fev./Jul. 2014.
com o futuro da sobrinha e sempre reclamava à Cândido, que procurasse outro emprego, fixo e
seguro. Até que,
Cândido quisera efetivamente fazer outra coisa, não pela razão do conselho, mas por
simples gosto de trocar de ofício; seria um modo de mudar de pele ou de pessoa. O pior é
que não achava à mão negócio que aprendesse depressa (MACHADO DE ASSIS, 1995, p.
38).
Capturar escravos estava cada vez mais difícil, conseguir um emprego também já não
era simples, pois dependia de alguma habilidade de ofício e Cândido não tinha. A dificuldade era
tamanha que sua esposa (e filho) passava fome. Cândido ficava cada vez mais preocupado. Foi
então que apareceu um anúncio de uma escrava jovem fugida. A recompensa era grande e Cândido
se preparou para capturá-la. Seu filho nasceu e nada de comida para sua esposa e o bebê. A tristeza
e pobreza só aumentavam, não conseguiam pagar nem mais o aluguel. "A situação era aguda. Não
achavam casa, nem contavam com pessoa que lhes emprestasse alguma; era ir para a rua"
(MACHADO DE ASSIS, 1995, p. 39).
A tia, vivendo e vendo a deplorável situação, aconselhou Cândido e a sobrinha a
deixarem o bebê na "Roda dos enjeitados", uma espécie de orfanato para crianças abandonadas nas
portas dos conventos. Foi doloroso tomar a decisão, mas os pais da criança decidiram abandoná-la.
"Cogitou mil modos de ficar com o filho; nenhum prestava" (ASSIS, 1995, p. 40). Cândido pediu
para levar o menino, pois no caminho iria se despedindo. Foi então, que avistou na rua a escrava
fugida. Era a solução para ganhar dinheiro e ficar com o filho. Entrou na farmácia e pediu para o
dono olhar o bebê, que estava todo agasalhado e dormindo. Foi atrás da escrava. Pegou-a. Ela
implorava, chorava, relutava às lágrimas para que não a entregasse, pois estava grávida e seu patrão
iria maltratá-la por demais.
O dilema de Cândido, seu sofrimento, a vontade de criar o filho, fez com que seu
coração não escutasse a moça. Entregou-a e recebeu o dinheiro. Pôde ficar com seu bebê. A
escrava, de tantos maus tratos, violência, sofreu aborto. Todavia, como finaliza Machado, "nem
todas as crianças vingam" (MACHADO DE ASSIS, 1995, p. 42).
Podemos destacar e ressaltar elementos para reflexões sociológicas que este conto
proporciona, como por exemplo: por que esse conto não termina com um "final feliz"? A
escravidão, a pobreza, o aborto, são elementos sociais sinônimos de alegria? Pretendia Machado,
talvez, instigar o leitor à este desconforto? As dificuldades da vida social de uma família pobre, que
103 CARVALHO, Ana Cecília Soares de Carvalho; SANTANA, Danilo Correia da Silva. Os contos e a
sociologia – a contribuição de Machado de Assis para uma compreensão do contexto social-histórico
brasileiro. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Revista da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES-Go. Vol.
02, nº 10, 98-108, Fev./Jul. 2014.
precisa abandonar o próprio filho para sobreviver, e dar a ele uma oportunidade de vida melhor
comovem as pessoas que lêem o conto?
O próprio Cândido Neves, teve que endurecer seus sentimentos e valores para que sua
vida pessoal não fosse tão mais trágica (quanto já era) sendo colocado numa posição de extremo
dilema. Não seria esse o retrato de nossas relações sociais? Como relatava Marx em O Capital,
muitos pais trabalhadores "vendiam" seus filhos para o uso da força de trabalho infantil (MARX,
2013). Por que isso ocorria? Eram os pais tão cruéis assim, pura e simplesmente pelo desamor? Ou
foram as extremas condições de necessidades das famílias trabalhadores que impulsionaram tal
prática?
Pensando nas relações sociais da época relatada no conto, e relacionando-as com uma
forma realista de observar a sociedade, algumas questões podem ser respondidas tal qual colocamos
acima sobre os pensamentos de Marx.
As categorias, que aqui são entendidas como formas de ser, determinação da existência
(MARX, 2013), nos possibilita pensar que naquela sociedade a relação com o outro, o diferente, no
caso o escravo fugidio, era uma relação de submissão do indivíduo como mercadoria. O escravo, à
época, era considerado como propriedade de outrem e como tal tinha um valor quando capturado.
Este valor do escravo, que em forma de recompensa para o "não escravo" (homem livre) - mas que
encontrava-se em situação miserável - era de grande importância e por vezes determinante para a
sobrevivência da família.
Esta é um dos aspectos da grandeza da literatura realista de Machado de Assis, ele
“desnudava” as relações sociais, e com isso mostrava o contraste que havia em uma sociedade em
regime de escravidão, que se dividia em três tipos distintos: 1) o senhor de escravos, que detinha o
domínio social e econômico na sociedade da época; 2) o “capitão do mato”, que não era escravo e
dependia do senhor para manter a si e sua família; e 3) o escravo, que era propriedade do senhor. É
esta relação tríade que é revelada no conto. Machado de Assis nos mostra o contraste que há entre
dois tipos "miseráveis" da época, e apesar dos dois viverem nas "mesmas" condições, estes se viam
como diferentes e não se reconheciam ambos como escravos. Um era escravo de sua condição de
miséria e o outro escravo por ser propriedade de do senhor. Machado de Assis fazia com este conto,
nos remete à questão de uma sociedade brasileira já caracterizada por contradições.
Mas pensamos que o realismo de Machado de Assis vai muito mais além de definições
e relações de época, até mesmo porque, já passados quase duzentos anos dos escritos de Machado
de Assis, ainda encontramos nas relações sociais este "não conhecimento" e o não reconhecimento
104 CARVALHO, Ana Cecília Soares de Carvalho; SANTANA, Danilo Correia da Silva. Os contos e a
sociologia – a contribuição de Machado de Assis para uma compreensão do contexto social-histórico
brasileiro. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Revista da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES-Go. Vol.
02, nº 10, 98-108, Fev./Jul. 2014.
do outro. Temos ainda o preconceito na sociedade brasileira. Encontramos formas de exclusão e de
organização social atualmente, que fazem os indivíduos buscarem (ainda) sua sobrevivência.
Entretanto, ao invés de capturar escravos, exercem outras atividades similares dentro de um país
democrático e "livre", porém com hierarquias e valores morais de outrora.
perceber a forma particular que essa hierarquia moral assume significa compreender,
também, o modo peculiar como os indivíduos e grupos sociais de uma sociedade concreta
se percebem e se julgam mutuamente. A importância existencial, social e política desse tipo
de construção simbólica é, portanto, fundamental” (SOUZA, 2009, p. 31)
"O Enfermeiro": Relações de trabalho entre patrão e empregado
Um homem chamado Procópio José, com os seus quarenta e dois anos, aceitou "servir
de enfermeiro" a um coronel chamado Felisberto. Ao conversar para conhecer tal coronel a quem
iria trabalhar, Procópio descobriu e exclamou:
[...] tive más notícias do coronel. Era homem insuportável, estúrdio, exigente, ninguém o
aturava, nem os próprios amigos. Gastava mais enfermeiros que remédios. A dois deles
quebrou a cara. Respondi que não tinha medo de gente sã, menos ainda de doentes
(MACHADO DE ASSIS, 1995, p. 43).
Ele aceitou o emprego mesmo assim, e foi trabalhar para cuidar do velho doente. Em
poucos dias convivendo com o coronel, e servindo-lhe, relatou o enfermeiro:
No oitavo dia, entrei na vida dos meus predecessores, uma vida de cão, não dormir, não
pensar em mais nada, recolher injúrias e, às vezes, rir delas com um ar de resignação e
conformidade; reparei que era um modo de lhe fazer corte. Tudo impertinências da moléstia
e do temperamento. A moléstia era um rosário delas, padecia de aneurisma, de reumatismo
e de três ou quatro afecções menores. Tinha perto de sessenta anos, e desde os cinco toda a
gente lhe fazia a vontade. Se fosse só rabugento, vá; mas ele era também mau, deleitava-se
com a dor e a humilhação dos outros. No fim de três meses estava farto de o aturar;
determinei vir embora; só esperei a ocasião (MACHADO DE ASSIS, 1995, p. 44)
Num dia, quando apanhou de bengala do velho coronel, decidiu ir embora e foi arrumar
as malas. O coronel foi atrás e insistiu para ficar, justificando que não era relevante "zangar por uma
rabugice de velho". Procópio aceitou. "Eu, com o tempo, fui calejando, e não dava mais por nada;
era burro, camelo, pedaço d'asno, idiota, moleirão, era tudo." (MACHADO DE ASSIS, 1995, p.
44).
Os resmungos, ofensas e maus tratos estavam intensificando. Numa noite de agosto, "o
coronel teve um acesso de raiva, atropelou-me, disse-me muito nome cru, ameaçou-me de um tiro, e
105 CARVALHO, Ana Cecília Soares de Carvalho; SANTANA, Danilo Correia da Silva. Os contos e a
sociologia – a contribuição de Machado de Assis para uma compreensão do contexto social-histórico
brasileiro. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Revista da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES-Go. Vol.
02, nº 10, 98-108, Fev./Jul. 2014.
acabou atirando-me um prato de mingau" (MACHADO DE ASSIS, 1995, p. 45). Depois
adormeceu, e quando acordou continuou a brigar, até que pegou a moringa que estava ao lado dele e
lançou na direção de Procópio. "Não tive tempo de desviar-me; a moringa bateu-me na face
esquerda, e tal foi a dor que não vi mais nada; atirei-me ao doente, pus-lhe as mãos no pescoço,
lutamos, e esganei-o” (MACHADO DE ASSIS, 1995, p. 45).
O velho coronel faleceu. Ninguém ouviu o ocorrido, e ninguém nunca desconfiou. Era
muito doente e para os médicos já estava prestes a morrer. O enfermeiro remoeu o dilema: crime ou
luta? Procópio refletia, "defendi-me". Mas não contou a quem quer que fosse. No velório, "estava
atordoado. Toda a gente me elogiava a dedicação e a paciência" (MACHADO DE ASSIS, 1995, p.
48).
Na hora de ver o testamento, Procópio era o herdeiro universal dos bens do rabugento
coronel. Pensou em contar todo o ocorrido, mas desistiu. Aceitou a herança e transformou-a em
títulos e dinheiro. Ao passar dos anos, "a memória tornou-se cinzenta e desmaiada". Interessante
mesmo foi o epitáfio que Procópio mandou escrever em mármore: "Bem-aventurados os que
possuem, porque eles serão consolados". (MACHADO DE ASSIS, 1995, p. 48).
Este conto nos ressalta as formas de relação entre os indivíduos, relatadas por Machado
de Assis de forma realista e irônica. Realista pelo fato dele narrar uma história, que provavelmente
deveria ser comum à época. Um velho que, possivelmente, fora filho de coronel e como tal via
todas as interações e relações com os outros, como uma relação de poder dele sobre os indivíduos.
Isto chegou ao ponto de chegar à velhice e ninguém o suportar.
A ironia presente no conto, é a virada na história dada por Machado de Assis
representada pela frase na lápide do idoso, “bem-aventurados os que possuem, porque eles serão
consolados”. Irônico porque, para o velho que tinha posses, o dinheiro não trazia felicidade; os
amigos e nem ninguém o suportava. Tal qual se costuma dizer atualmente: “o dinheiro não traz
felicidade”. O velho vivia apenas com um enfermeiro e ainda deixou toda a herança à ele. E se o
dinheiro não traz felicidade, ao menos traz consolo. Apesar do fato de Procópio ter assassinado o
idoso, ele se sentira ao mínimo consolado com a fortuna que recebeste. Ninguém nunca soube o
ocorrido, e além do dinheiro, ficou como um herói pelo fato de ter suportado o idoso até a sua
morte.
Mas, e as nuanças das relações de trabalho que aparecem no conto?
O conto nos mostra uma relação complexa entre um patrão muito rico e um empregado
que mesmo sabendo das dificuldades do trabalho, aceitou as condições. Queria Machado, retratar a
106 CARVALHO, Ana Cecília Soares de Carvalho; SANTANA, Danilo Correia da Silva. Os contos e a
sociologia – a contribuição de Machado de Assis para uma compreensão do contexto social-histórico
brasileiro. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Revista da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES-Go. Vol.
02, nº 10, 98-108, Fev./Jul. 2014.
figura dos que estão no poder e suas ações e relações grosseiras e, por vezes, "violenta" com seus
empregados (prestadores de serviço)? O fato de Procópio ter relevado os insultos e pontapés do
patrão, podem ser vinculadas com as relações de trabalho na sociedade capitalista? Em que nos
submetemos às condições "violentas" de um sistema para podermos sobreviver, e por isso
aprendemos a considerar as injustiças como "normais"?
O trabalhador se torna uma mercadoria tão mais barata quanto mais mercadorias cria. Com
a valorização do mundo das coisas (Sachenwelt) aumenta em proporção direta a
desvalorização do mundo dos homens (Menschenwelt). (MARX, 2008, p. 80)
Diante disto, acreditamos que a leitura de Machado de Assis nos possibilita interpretar a
sociedade brasileira em algumas práticas e relações sociais, mostrando alguns aspectos das
condições sociais dos indivíduos de um determinado contexto histórico. E tal qual o pensamento de
Marx, as forças econômicas/produtivas e as relações de trabalho, constituem um indivíduo cada vez
mais "desvalorizado" enquanto ser humano, na medida em que valoriza-se as riquezas e produções
materiais. Assim como demonstrado no conto, em que a história desenvolve-se em torno de
interesses de bens, posses, e na relação de poder entre um indivíduo e outro, designado pela
diferenciação de "status" e dinheiro.
São, pois, alguns apontamentos e possíveis questionamentos que podem instigar o
leitor, nas interpretações das histórias (contos) vinculando elementos das relações sociais. Sendo
esta uma das características da literatura realista, e como expressão de uma realidade, tem muito a
nos mostrar como pesquisadores sociais, pois:
Na produção social de sua existência, os homens estabelecem relações determinadas,
necessárias, independentes da sua vontade, relações de produção que correspondem a um
determinado grau de desenvolvimento das forças produtiva materiais. O conjunto destas
relações, a base concreta sobre a qual se eleva uma superestrutura jurídica e política e à
qual correspondem determinadas formas de consciência social. O modo de produção da
vida matéria condiciona o desenvolvimento da vida social, política e intelectual em geral.
Não é a consciência dos homens que determinam o seu ser; é o seu ser social que,
inversamente, determina a sua consciência. (MARX, 2013, p. 5)
Considerações finais
Ao fazer os apontamentos e questionamentos - quiçá devaneios- fica perceptível o
quanto a teoria sociológica pode ainda ser explorada em conjunto com a literatura. Existem diversas
maneiras de se observar e interpretar um mesmo objeto. Entretanto, o que este trabalho objetivou,
107 CARVALHO, Ana Cecília Soares de Carvalho; SANTANA, Danilo Correia da Silva. Os contos e a
sociologia – a contribuição de Machado de Assis para uma compreensão do contexto social-histórico
brasileiro. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Revista da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES-Go. Vol.
02, nº 10, 98-108, Fev./Jul. 2014.
foi a apresentação de apontamentos possíveis de interpretação social da sociedade brasileira, a partir
da contribuição da literatura de Machado de Assis.
Não há pretensão, aqui, de enquadrar e/ou "engessar" as formas de análise dos contos do
autor citado. Porém, ao expor uma forma de interpretação e de articulações teóricas, fica
demonstrado algumas possibilidades de correlações entre a sociologia e a literatura. Sendo este
trabalho, não o ponto final; mas sim, mais um ponto de partida para novas outras interpretações.
Os contos dois contos explorados, foram escolhidos como fonte de análise das relações
de trabalho e relações de "poder" que existem nas sociedades, que pela literatura de Machado de
Assis ficam demonstradas as formas e práticas da sociedade brasileira. Quando consideramos que
"toda sociedade tem de decompor-se nas duas classes dos proprietários e dos trabalhadores sem
propriedade." (MARX, 2008, p. 79), podemos ver a ilustração dessa organização social nos contos
aqui citados. E foi a partir desses enlaces teóricos, de uma visão e interpretação da sociedade, que
elencamos o autor Machado de Assis como apresentação de uma possibilidade de aproximação dos
conhecimentos sociológicos e a literatura.
Eis então que, a apresentação destes contos e as possíveis interpretações expostas, nos
mostram que apesar de estarmos em um momento histórico/temporal diferente, ainda carregamos
traços daquele contexto social desvendado por Machado de Assis. Diante disso, entendemos que é
preciso refletir sobre nossos hábitos, costumes, práticas e organizações trabalhistas, que herdamos
de uma histórica brasileira, a qual fazemos parte. A literatura, portanto, e todas as formas de arte,
movimentos sociais, pesquisas, contribuem para uma compreensão e análise, contribuindo até
mesmo, talvez, para uma transformação das relações sociais.
Referências
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BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e a filosofia da linguagem. 12ª Edição. São Paulo, Editora Hucitec,
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MARX, Karl. Manuscritos econômicos-filosóficos. São Paulo. Boitempo, 2008.
___________. O capital: critica da economia política. São Paulo: Boitempo Editorial, 2013.
108 CARVALHO, Ana Cecília Soares de Carvalho; SANTANA, Danilo Correia da Silva. Os contos e a
sociologia – a contribuição de Machado de Assis para uma compreensão do contexto social-histórico
brasileiro. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Revista da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES-Go. Vol.
02, nº 10, 98-108, Fev./Jul. 2014.
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___________. Cultura, arte e literatura: textos escolhidos. São Paulo: Expressão Popular, 2010.
PELLEGRINI, Tânia. Realismo: modos de usar. Estudos de literatura brasileira contemporânea,
Brasília, n. 39: 11-17. jan/ jun de 2012.
SCHOLLHAMMER, Karl Erik. Realismo afetivo: evocar realismo além da representação. Estudos
de literatura brasileira contemporânea, Brasília, n. 39: 129-148. jan/ jun de 2012.
SOUZA, Jessé. A ralé brasileira: quem é e como vive. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2009.
109 SOUZA, Luciéle Bernardi de. Os movimentos da câmera de Paulo Prado para a formação do
retrato do Brasil. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Revista da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia
SESES-Go. Vol. 02, nº 10, 109-121, Fev./Jul. 2014.
OS MOVIMENTOS DA CÂMERA DE PAULO PRADO PARA
A FORMAÇÃO DO RETRATO DO BRASIL
Luciéle Bernardi de Souza1
RESUMO
ABSTRACT
Em Retrato do Brasil (1928) Paulo Prado reconstroi
os últimos cem anos da história de nosso país. Para
isso ele lança mão da literatura, esta considerada em
seu estatuto de, ora documento, ora obra de arte, mas
principalmente encarada como “manifestação da
mentalidade de um povo”. Buscamos compreender a
estreita linha que separa a literatura do documento
histórico-sociológico, e quando a literatura assume
um estatuto híbrido em seus sentidos. Esta
intersecção do olhar histórico-sociológico e do
literário foi corroborada por discussões entre
teóricos como Afrânio Coutinho e Antonio Candido.
In Retrato do Brasil (1928) Paulo Prado reconstructs
the last hundred years of the history of our country.
For this, he makes use of literature, considered this
in his status, sometimes paper, sometimes artwork,
but mostly seen as "manifestation of the mentality of
a people." We seek to understand the fine line that
separates literature of historical-sociological
document, and when the literature assumes a hybrid
status in their senses. This intersection of the
historical-sociological view of literary and here was
supported by discussions between theorists like
Afrânio Coutinho and Antonio Candido.
Palavras-chave: Pensamento social
Paulo Prado; Historiografia Literária.
brasileiro; Keywords: Brazilian social thought; Paulo Prado;
Literary historiography.
Introdução: os bastidores do retrato
Para que um retrato seja realmente efetuado com sucesso são necessários alguns
elementos técnicos, além de um olhar agudo e sensível para captação da realidade. Paulo Prado
conseguiu captar de forma ímpar a reconstrução dos últimos cem anos de nosso país, e será
rastreando o retratar deste singular percurso que tentaremos descrever o trajeto realizado e as
múltiplas (e importantes) paisagens, realidades captadas.
O Retrato do Brasil (1928) resulta de um passeio do intelectual Paulo Prado por parte
da história de nosso país. É um livro em que é narrada a formação do povo brasileiro, mais
especificamente a formação de uma mentalidade brasileira, o que o torna parte integrante das
narrativas de construção da nação. Dentre as narrativas posteriores que seguiram a mesma linha de
Paulo Prado com o intuito de reconstruírem os primeiros anos de colonização, buscando traços do
1
Graduada em Ciências Sociais Bacharelado e Aluna do curso de Letras Português Licenciatura da Universidade
Federal de Santa Maria. E-mail: [email protected].
110 SOUZA, Luciéle Bernardi de. Os movimentos da câmera de Paulo Prado para a formação do
retrato do Brasil. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Revista da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia
SESES-Go. Vol. 02, nº 10, 109-121, Fev./Jul. 2014.
caráter e mentalidade do nosso povo, e tendo por influência esta grande obra do pensamento social
brasileiro, podemos citar Casa grande & senzala de Gilberto Freyre e Raízes do Brasil de Sérgio
Buarque de Holanda.
O pensamento social brasileiro sempre teve uma estreita relação, principalmente nos seu
primeiro e segundo momento2, com a literatura produzida anteriormente ao século XX. Ainda não
consolidada enquanto literatura nacional, de acordo com alguns teóricos3, ela retratava com um
olhar deveras “realista”, compromissado com o descrever a partir da observação do povo brasileiro,
seus valores, crenças, identidade nacional e caracteres singulares que estavam em processo de
formação em nosso país, bem como a própria constituição do mesmo enquanto nação neste
momento histórico pontual. Mais do que literatura, tais escritos eram vistos como um instrumento
de compreensão, documentação e descrição. Eram utilizados para posteriores olhares de intelectuais
sobre a realidade e, por conseguinte, sobre nosso momento histórico-cultural.
Na obra Retrato do Brasil (1928) não seria diferente a relação da tradição do
Pensamento Social Brasileiro com a literatura, pois há uma evidente mescla entre o que é história e
o que é utilizado como documento histórico (ou seja, a literatura). O aspecto estético da literatura
(Informativa, Barroca, e especialmente Romântica) é relegado a uma segunda ordem de
importância, pois é utilizada primeiramente como documento e fonte de verdade. Isso pode ter sido
ocasionado pela falta de consciência sobre a literatura (em relação a sua literariedade) que se
consolidou apenas em meado do século XIX. Tal argumento se sustenta na noção de sistema
literário proposta por Antonio Candido (1971), pois este afirma que é necessária uma interação
entre autor-obra-público para podermos afirmar a existência de uma literatura nacional.
É sobre o lugar da literatura no Pensamento Social Brasileiro, e em especial na obra de
Paulo Prado, que este artigo irá discorrer na tentativa de capturar o trajeto realizado por ele para a
concretização de tal retrato, fundamental para pensarmos, até mesmo nos dias de hoje, a
importância de uma figura singular e de uma obra ímpar.
Apresentação do Retrato: entre a literatura e a história
Paulo Prado, paulista nascido em 1869, híbrido de bon vivant, dândi, milionário
socialista, empresário, historiador, mecenas e intelectual engajado, dentre outras tentativas de
2
Artigo sobre os momentos do Pensamento social brasileiro: Três Momentos do Pensamento social brasileiro
(1822-1929): raça, cultura e nação. De Mauro José do Nascimento Pitanga. Disponível em
http://www.overmundo.com.br/banco/tres-momentos-do-pensamento-social-brasileiro-1822-1929-raca-cultura-e-nacao;
3
Discussão que será travada no decorrer deste artigo ao contrapor os pensamentos de Antonio Candido e
Afrânio Coutinho.
111 SOUZA, Luciéle Bernardi de. Os movimentos da câmera de Paulo Prado para a formação do
retrato do Brasil. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Revista da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia
SESES-Go. Vol. 02, nº 10, 109-121, Fev./Jul. 2014.
definições – que não faltam dos poucos que se lembram dele. Com formação acadêmica em Direito,
mas um apaixonado pela História, seu flerte com a academia sempre ocorreu de modo um pouco
contido e motivado por interesses muito pessoais.
Atuou como um verdadeiro “relações pública” dentre os modernistas brasileiros, ele que
viveu e estudou fora do país por muito tempo, foi ter uma importância crucial para a concretização
da Semana da Arte Moderna. Exímio passeante do campo artístico ao empresarial foi uma grande
figura em ambos os mundos. No campo artístico não como artista, mas como mecenas,
patrocinador, editor, propositor, e no empresarial, mais como empresário/cafeicultor do que
enquanto acadêmico.
É na maturidade dos seus 50 anos, e só após estes, que lança sua primeira obra, -a
primeira de duas- uma compilação de artigos publicados no jornal O estado de São Paulo, intitulada
Paulística (1927) em que constavam pequenos artigos, ensaios sobre o desenvolvimento histórico
do estado de São Paulo, com a pretensão de mostrar a importância de São Paulo para a formação de
uma nova raça, o mameluco, sem deixar de exaltar o bandeirante.
Sua segunda -e polêmica- obra intitulada Retrato do Brasil foi escrita de 1925-1927 e
publicada em 1928, esta obra pretendia uma espécie de tese sobre a formação do caráter brasileiro, e
mais que o caráter, nas palavras do próprio Paulo Prado, da mentalidade brasileira, esta que teria
como traços principais a cobiça, a luxúria e a tristeza. Sendo incluída nas narrativas sobre a
construção da nação, reconstruindo o passado para indagar o presente -que para ele nunca foi um
feliz presente- e escandalosamente afirmando tais traços do homem deste país instável, esta obra foi
altamente criticada, positiva e negativamente, em sua recepção.
Considerado por muitos como uma tese arbitrária sobre a tristeza brasileira, este ensaio
de Paulo Prado é composto por quatro capítulos (Luxúria, Cobiça, Tristeza e Romantismo) e um
post-scriptum, todos devidamente estruturados em torno de uma tese central que permeia cada
capítulo e une a todos: a tristeza como elemento fundador da “essência” brasileira.
Como já antecipamos anteriormente, um dos principais elementos formadores da obra
em questão é a literatura brasileira, que na maioria das vezes perde em sua dimensão estética e é
utilizada enfaticamente como verdade, documento para ilustrar as hipóteses do autor. Ela tem um
destaque especial nesta obra enquanto discurso, o que nos faz pensarmos na relevância da mesma
também esteticamente, enquanto obra de arte, capaz de representar nosso país, a “mentalidade
brasileira” e o “novo homem”.
Bem sabemos que no período colonial, literatura e documento passam a ter igual
importância, pois, é através de ambos escritos que puderam os vários pensadores e historiadores em
112 SOUZA, Luciéle Bernardi de. Os movimentos da câmera de Paulo Prado para a formação do
retrato do Brasil. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Revista da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia
SESES-Go. Vol. 02, nº 10, 109-121, Fev./Jul. 2014.
geral, e podemos hoje mais de cinco séculos depois, conhecer o visto e o vivido desde mil e
quinhentos. Temos noção, de acordo com a visão imperialista, de como eram os índios, o
desbravamento de nossas matas, a geografia, a fauna e a flora de nosso país.
O primeiro e mais clássico exemplo que por vezes é estudado enquanto literatura, e por
vezes estritamente como documento historiográfico de nosso país é A Carta de Pero Vaz de
Caminha, escrita no ano de 1500, e só divulgada em 18174. Nesta “carta”, considerada o primeiro
texto ficcional da literatura de nosso país, podemos constatar que vários dos aspectos anteriormente
comentados são contemplados, da fauna à flora, constando sempre a visão imperialista dos
portugueses.
Os significados dos conceitos relativos ao termo “literatura” são variáveis5 de acordo
com o momento histórico e o uso dos mesmos. O que podemos afirmar é que, dificilmente mude o
atrelamento do conceito da mesma com relação à categoria aristotélica de mimesis conectada a ela e
a toda arte de forma geral. Mimesis é um termo referente ao domínio do ficcionalizar, do representar
a realidade ou uma parcela dela, representação sem compromisso algum com a verdade, esta que
somente deve pertencer à narrativa histórica, à História.
Apesar desta importante diferença, é relevante considerarmos um possível aporte da
literatura para as narrativas históricas como instrumento de propagação e afirmação de outros
valores que ultrapassem o estético, como políticos, morais, filosóficos, dentre outros. Podemos
também evidenciar momentos em que a literatura é considerada uma narrativa histórica, ou seja, são
dois fenômenos que devem ter um espaço dentro da reflexão sobre o Pensamento Social Brasileiro.
É válido, portanto, pensarmos em uma rua de mão dupla sobre a contribuição literária na obra
Retrato do Brasil (1928) de Paulo Prado, no tocante a representação do povo brasileiro e a
influência da mesma para a formação do caráter do mesmo. Deste modo faremos um passeio pelos
quatro capítulos da obra, rastreando olhares e verificando enquadramentos para entendermos o
melhor ângulo para a captura do retrato.
4
Dado retirado da obra A Carta de Pero Vaz de Caminha: O Descobrimento do Brasil, de Silvio Castro (2003).
Porque o conceito é mutante: “(...) uma obra pode ser considerada como filosofia num século, e como
literatura no século seguinte, ou vice-versa, também pode variar o conceito do público sobre o tipo de escrita
considerado como digno de valor”. (EAGLETON, 2006, p. 17).
5
113 SOUZA, Luciéle Bernardi de. Os movimentos da câmera de Paulo Prado para a formação do
retrato do Brasil. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Revista da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia
SESES-Go. Vol. 02, nº 10, 109-121, Fev./Jul. 2014.
Remontando o retrato-puzzle: intersecção da literatura e da história em cada capítulo
Neste trabalho a obra de arte é entendida como parte da realidade social e também
produção desta, não é vista somente em seu aspecto estético6, mas sobretudo social. Como um
elemento que faz parte da estrutura social, expressão da subjetividade e objetividade próprias do ser
humano. Como portadora de elementos linguísticos, temáticos, ideológicos que, à maneira
bakhtiniana7, devem ser considerados na totalidade da obra artística, enquanto uma relação de
elementos externos e internos que em nada se relacionam com o condicionamento social da mesma.
Há na obra de Paulo Prado uma constante referência à literatura, que a todo momento é
usada como elemento de representação de uma verdade, é elevada ao estatuto de testemunho, de
documento testemunhal de uma realidade. Este caráter testemunhal, de acordo com o filósofo
marxista Karel Kosik (1967), pertence à todas as obras de arte. Ele crê que as mesmas -e todas as
criações culturais- só são obras por sobreviverem “en cuanto testimonio de su tempo”, embora “Una
creación cultural en la que la humanidad vea exclusivamente um testimonio no es propiamente una
obra” (ibidem, p.157). Esta afirmação é trazida para reafirmarmos o estatuto artístico em sua
dimensão social8, que é o que irá marcar a presença da literatura no livro Retrato do Brasil.
Como vamos reafirmando no decorrer deste trabalho, a importância sociológica da obra
de Paulo Prado reside no fato da mesma retratar através de uma tese, a da tristeza brasileira
enquanto formadora do caráter do homem brasileiro, o Brasil do século XV até meados do século
XVIII, e através deste prisma proporcionar aos estudiosos muito antes da Sociologia Brasileira estar
consolidada academicamente, um valioso material que irá inspirar Gilberto Freyre e Sérgio Buarque
de Holanda.
No primeiro capítulo de Retrato do Brasil, intitulado Luxúria, podemos, enquanto
leitores, ter uma noção das funções designadas pelo autor em relação à literatura, além de uma
prévia dos outros recursos que ele lança mão para compor uma estrutura coerente de pensamento
reconstitutivo de cem anos da nossa história, bem como angariar argumentos que justifiquem sua
tese. São relatos de fatos, atos, documentos históricos –além da própria literatura- que nos levam a
6
Refiro-me ao New criticism, uma escola metodológica do começo do século XX que portava uma atitude em
que a literatura só poderia ser vista e estudada em sua estética, de acordo com a sua “literariedade”, jamais a
considerando como um documento, histórico, social, biográfico.
7
Para o teórico Mikhail Bakhtin o signo liguístico vai além da comunicação, ele porta em si uma visão de
mundo, uma ideologia.
8
Afastando qualquer indício de uma literatura condicionada, este trecho de Afrânio Coutinho reafirma a
posição dialética da literatura em nossa sociedade: “A literatura está para os outros fenômenos da vida em posição de
relação, não de dependência ou submissão. Não é um epifenômeno da economia ou da vida social. Está para eles em
relação de equidistâncias, tendo o mesmo valor que as demais expressões da atividade humana” (COUTINHO, 1976,
p.18).
114 SOUZA, Luciéle Bernardi de. Os movimentos da câmera de Paulo Prado para a formação do
retrato do Brasil. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Revista da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia
SESES-Go. Vol. 02, nº 10, 109-121, Fev./Jul. 2014.
crer na luxúria como um dos principais elementos formadores de uma mentalidade brasileira. Os
elementos que corroborariam para a fomentação do desejo desenfreado por prazer relacionado à
carne, ao prazer carnal, sexual, são entendidos por nós tanto em sua conceituação específica que
acabamos de dimensionar e que Paulo Prado destaca em sua obra, como também na dimensão plural
de desejo passional por qualquer ato exagerado e que tenha uma dimensão carnal.
Dentre os vários “impulsos” que Paulo Prado elenca para organizar uma lógica que de
fato fizesse sentido e levasse todos a crerem realmente na luxúria como um traço fundamental de
uma mentalidade, destacam-se: o clima, a mocidade dos imigrantes, a sensualidade livre, o contato
do homem nativo com o jovem europeu que logo adquiriu o espírito de moralidade e costumes
destes nativos. Tudo isso contribuiu para a formação de um novo homem, o homem brasileiro,
singular em sua mistura. O autor usou documentos que registrassem o retrato de sodomias, incestos,
pecado sexual dos mais diversos advindos cristãos e padres, relatos que se tornaram frequentes e
intensos, cometidos principalmente por padres, cristão e este “novo homem” que aqui chegou e logo
se viu envolto de outra mentalidade, outra moralidade:
Ao primeiro contato com o ambiente físico e social do seu exílio, novas influências, das
mais variadas espécies, dele se apoderariam e o transformariam num ente novo, nem igual
nem diferente do que partira da mãe-pátria (PRADO, 1997, p.139).
O homem novo9, fruto da Renascença, do paganismo, da ambição, da busca de
liberdade em todos os campos, de todas as formas, foi também o germe de um homem que levou as
caravelas portuguesas a chegarem até aqui. Este homem, do qual nos fala Afrânio Coutinho,
provavelmente seja já o homem que escreveu a nossa primeira literatura, a Carta de Caminha, que
relata “o primeiro hino consagrado ao esplendor, à força, ao mistério da natureza brasileira”
(PRADO, 1997, p.57).
Este documento-obra, híbrido de verdade e ficção, pode e é utilizado de diferentes
formas, estudado de diferentes maneiras, em diferentes contextos. Não conseguimos acreditar na
imparcialidade de Caminha em seus escritos, o que nos leva a acreditar em um tom de
ficcionalização do visto e do vivido, porém, também, não podemos negar o caráter testemunhalinformativo sobre a terra aqui encontrada. Sabe-se que o índio, por exemplo, foi descrito em um
tom muitíssimo mais amistoso do que verdadeiramente era, o que nos leva a duvidar do tom
realmente -e somente- informativo da mesma. De acordo com Paulo Prado, o homem estrangeiro, a
9
Este homem novo aparece na obra de Afrânio Coutinho quando, ao dissertar sobre a consciência literária
nacional, afirma que a independência literária é muito anterior a independência política do país. “A literatura assumiu
fisionomia diferente desde o instante em que se formou um novo homem na América” (COUTINHO, 1976, p.42).
Coutinho faz referência ao pensamento de Ortega y Gasset, que em uma conferência afirmou que o colonizador, no
exato momento em que pisou em solo brasileiro e viu o que viu, se tornou um homem novo, remodelado.
115 SOUZA, Luciéle Bernardi de. Os movimentos da câmera de Paulo Prado para a formação do
retrato do Brasil. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Revista da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia
SESES-Go. Vol. 02, nº 10, 109-121, Fev./Jul. 2014.
natureza propícia, o clima envolvente, acrescido das belas nativas em toda a sua mocidade e nudez,
não se faria resulto em outra coisa a não ser a demonstração da prática de uma sensualidade e
exaltação do prazer carnal que beiraria ao patológico.
Como podemos verificar, o autor de Retrato do Brasil descreve muito bem esta situação
patológica apoiando-se em argumentos advindos do uso da literatura e documentos (cartas,
documentos pessoais, relatos, diários, etc.):
O clima, o homem livre na solidão, o índio sensual, encorajavam e multiplicavam as uniões
de pura animalidade. A impressão edênica que assaltava a imaginação dos recém-chegados
exaltava-se pelo encanto da nudez total das mulheres indígenas. A própria carta de
Caminha diz bem a surpresa que causou aos navegadores o aspecto inesperado das
graciosas figuras que animavam a paisagem. (PRADO, 1997, p.72)
Neste mesmo capítulo sobre a luxúria, o autor traz abundantes citações da Carta de
Pero Vaz de Caminha. Embora boa parte da historiografia literária brasileira não a mencione como
especificamente uma obra literária brasileira, há registros de seu enquadramento como literatura
informativa/documental do século XVI, sendo que no mais tardar é com o Barroco e mais
especificamente com o Padre José de Anchieta que haverá, de acordo com Afrânio Coutinho, uma
verdadeira linguagem brasileira: “Anchieta foi o iniciador da literatura brasileira e sua obra literária
é o símbolo do sincretismo lingüístico e cultural brasileiro” (COUTINHO,1983, p.19), o que é
reafirmado com o abrasileiramento do português.
Os escritos do Padre José de Anchieta são citados em muitas passagens deste capítulo
com o intuito de ratificar os escritos de Paulo Prado, comprovando assim o estatuto da literatura
como uma espécie de documento comprobatório, um relato de causa verídico, como podemos
também constatar em comentário do autor sobre a entrega dos homens:
Uma delas foi a lascívia do branco solto no paraíso da terra estranha. Tudo favorecia a
exaltação do seu prazer: os impulsos da raça, a malícia do ambiente físico, a continua
primavera, a ligeireza do vestuário, a cumplicidade do deserto e, sobretudo, a submissão
fácil e admirativa da mulher indígena, mais sensual do que o homem como em todos os
povos primitivos, e que em seus amores dava preferência ao europeu, talvez por
considerações priápicas, insinua o severo Varnhagen. Procurava e importunava os brancos
nas redes em que dormiam, escrevia Anchieta (PRADO, 1997, p.89).
O segundo capítulo da obra é introduzido pelo poema I-Juca Pirama de Gonçalves Dias
(1851), versos em que é exposta a cobiça do português, e o índio é pintado enquanto um herói aos
moldes do herói europeu, uma ótima escolha do autor que faz referência ao título do capítulo
Cobiça. Com a escolha e utilização desta epígrafe podemos encarar a atitude de Paulo Prado por
dois vieses: além do testemunhal/documental, podemos considerar aqui uma explícita valorização
do elemento estético presente no poema.
116 SOUZA, Luciéle Bernardi de. Os movimentos da câmera de Paulo Prado para a formação do
retrato do Brasil. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Revista da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia
SESES-Go. Vol. 02, nº 10, 109-121, Fev./Jul. 2014.
A cobiça é tratada como um sentimento que, juntamente com a luxúria, dominou a
formação da mentalidade brasileira. O desejo do poder desenfreado dos colonizadores portugueses
sobre tudo o que aqui encontraram, e as estratégias –religião, tratados, contratos- utilizadas pelos
mesmos para a exploração mesquinha do ouro, da vida dos indígenas, e mais especificamente da
escravização dos mesmos como a maior riqueza. Esta exploração é descrita com trechos diretos da
literatura feita por Padre Antônio Vieira e transcritas por Paulo Prado:
“Estas, Senhor”, escrevia o padre Vieira, “são as minas certas deste estado, que afama das
de ouro e prata sempre foi pretexto como que de aqui se iam buscar as outras minas, que se
acham nas veias dos índios, e nunca ouve nas da terra. (PRADO, 1997, p. 100)
A cobiça encontra alvo na mata, nas especiarias, no couro, nos animais e tudo o mais
que pudesse ser levado para o velho mundo, em especial no ouro10 e a escravização dos nativos. O
ouro sempre fora para os portugueses uma obsessão, e Paulo Prado realiza todo o percurso histórico
desta busca obsedada, do início até a formação das vilas e recôncavos mineiros. Realiza também um
percurso pelas áreas desbravadas, do litoral ao sertão, exaltando sempre o homem bandeirante e sua
coragem.
Com contínuo do uso da literatura como documento, além de trechos de cartas e relatos,
o seguinte capítulo da obra de Paulo Prado seguirá fazendo uso da obra literária das mais diversas
formas e de maneira ainda mais intensiva e determinante para este retrato da mentalidade do povo
brasileiro.
Intitulado Tristeza, neste capítulo o autor busca nas raízes do homem português e em
especial na situação trazida pelo imigrante, elementos que justifiquem a diferença entre a formação
do homem colonizado na América do norte pelos ingleses e na América do sul pelos portugueses.
Realiza-se nestas páginas uma retrospectiva da situação político-social da metrópole portuguesa que
se encontrava em franca decadência, com seus homens egoístas e mergulhados em uma grande
pobreza, o verdadeiro “germe da decadência”. Além disso, este homem possuiu ao chegar aqui duas
paixões desenfreadas, a luxúria e a cobiça, ou nas palavras de Paulo Prado “sensualismo e paixão do
ouro” (ibidem, p.139), já comentadas anteriormente. Destas duas paixões, a tristeza nasceria como
uma espécie de síntese, analisada até mesmo em seu aspecto biológico:
Por sua vez, a tristeza, pelo retardamento das funções vitais, traz o enfraquecimento e
altera a oxidação das células vitais, produzindo a nova agravação do mal com seu cortejo de
agitações, lamuria e convulsões violentas (PRADO, 1997, p.142).
10
Mesmo com o acesso restrito as ainda não descobertas “Minas Gerais”, pois “escondia-se traiçoeiro na trama
impenetrável das matas do deserto”, PRADO, 1997, p. 144),
117 SOUZA, Luciéle Bernardi de. Os movimentos da câmera de Paulo Prado para a formação do
retrato do Brasil. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Revista da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia
SESES-Go. Vol. 02, nº 10, 109-121, Fev./Jul. 2014.
A tristeza seria um traço do caráter do brasileiro que ao priorizar o sensualismo e o
ouro, e mais especificamente, ao entregar-se a luxúria exacerbada, sofreu perturbações somáticas e
também psíquicas, quase uma psicopatia, geradora de uma fadiga física e, por conseguinte, uma
tristeza e melancolia. Tudo isso era potencializado pela idéia sempre fixa do ouro e atingia não só as
funções sensoriais do homem, mas também o aspecto cognitivo e sentimental do homem em
formação. Esta relação entre os excessos da vida carnal e a tristeza são muito bem especificados e
explicados:
Os fenômenos de esgotamento não se limitam as funções sensoriais e vegetativas;
estendem-se ate o do mínio da inteligência e dos sentimentos. Produzem no organismo
perturbações somáticas e psíquicas, acompanhadas de uma profunda fadiga, que facilmente
toma aspectos patológicos, indo do nojo até o ódio. (...) Na luta entre esses apetites- sem
outro ideal, nem religioso, nem estético, sem nenhuma preocupação política, intelectual ou
artística –criava-se pelo decurso dos séculos uma raça triste. A melancolia dos abusos
venéreos e a melancolia dos que vivem na ideia fixa do enriquecimento (...) (PRADO,
1997, p.139-140).
O Romantismo é o quarto capítulo da obra de Paulo Prado. Ele admite a complexidade
do termo Romantismo, conceito de uma polissemia intrínseca, mas se deterá em duas vertentes do
mesmo: a primeira tomando seu aspecto de manifestação de uma espécie de estilo de vida,
comportamental, elemento gerador de uma patologia social; e a segunda por um viés discursivo,
enquanto manifesto de discurso individual, coletivo e sobretudo literário (este presente na escola
literária intitulada de Romantismo e em sua caracterização e desenvolvimento em nosso país).
Considerado como uma doença fatídica que se espalhou por nosso país de maneira
deformadora, podemos entender a posição de Paulo Prado na acidez das palavras germinais do
capítulo: “Nesse organismo precocemente depauperado, exposto as mais variadas influências
micológicas e étnicas, ao começar o século da independência, manifestou-se, como uma doença, o
mal romântico.”(PRADO, 1997, p.164). O autor de maneira alguma é imparcial em suas críticas, e
ao escrever sobre o romantismo lançou mão de experiências pessoais para criticar minuciosamente
o mesmo enquanto estilo de vida e visão de mundo, visão esta, “deformadora, que constitui a
essência do movimento romântico” (ibidem, p.164-165).
Movimento e escola literária, o romantismo foi o responsável pela formação de uma
retórica política -desde a revolução francesa- onde todos se embriagariam pela palavra, o que
também iria ocorrer em nosso país, que desta forma nascia sob os “discursos e belas palavras”. Isso
acirraria ainda mais o desequilíbrio entre o racional e o sentimental, geraria uma hipertrofia do
sujeito como centro do mundo e a realidade seria distorcida, uma realidade construída de acordo
com os moldes de desobediência às normas sociais e de um idealismo ingênuo que desvinculava o
118 SOUZA, Luciéle Bernardi de. Os movimentos da câmera de Paulo Prado para a formação do
retrato do Brasil. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Revista da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia
SESES-Go. Vol. 02, nº 10, 109-121, Fev./Jul. 2014.
sujeito de sua realidade social. Enfim, o romantismo intelectual e político seria um potencializador
da desobediência e instabilidade de uma sociedade caótica como a brasileira, onde a aventura e a
paixão tomam o lugar da ordem.
Embora ele também cite fatos mais políticos relacionados a estes inúmeros indivíduos
que eram “românticos” ao “organizarem em Minas uma resistência à imposição da derrama pra a
cobrança dos impostos do ouro – mera tentativa de sublevação que não chegou a ter início”
(PRADO, 1997, p.168).
A literatura pertencente à escola romântica teve início em meio à pobreza literária de
nosso país, em 1836 com a obra Suspiros poéticos e saudades de Gonçalves de Magalhães, uma
péssima obra, afirma Paulo Prado. Embora seja permeada de mediocridade, ela
Corresponde a um estado de espírito em evolução, a uma nova sensibilidade latente e de
que já havia traços na política nacional e na poesia do nosso pré-romantismo desde certas
tendências da escola mineira (PRADO, 1997, p.173).
Neste trecho, já fica evidente a importante relação entre elementos do romantismo com
a formação de uma mentalidade do povo brasileiro, fazendo parte de um “estado de espírito” que
continha traços que deixariam sua marca indelével na sensibilidade de nosso povo.
A cidade de São Paulo sempre com um lugar especial na obra do autor de Retrato do
Brasil, é retratada como o centro do romantismo devido a sua geografia propícia, isolada entre
serras, melancólica em toda sua poesia e descrição. Romântica também por seus jovens, sua vida
noturna tipicamente acadêmica, onde ao estilo byroniano de endeusamento e culto à loucura, à
morte, e à noite “se bebia cachaça em crânios humanos, coroados de rosas. Era a Noite na Taverna”
(ibidem, p.176).
O romantismo como doença composta por elementos patológicos: “hipertrofia da
imaginação e exaltação da sensibilidade” (ibidem, p.197) e constituidor da mentalidade do povo
brasileiro, é ratificado nas atitudes dos poetas do romantismo, que
Levavam a loucura aos mais incríveis extremos. Ceavam e embriagavam-se como
morféticos acampados nas imediações da cidade. Um poeta apanhou a terrível moléstia
nessas saturnais do byronismo. Outros se perderam no alcoolismo barato, que sempre foi de
moda na velha academia paulistana, ou devorados pela sífilis das cafuzas e sararás, que
pululavam à noite nas ruas escuras da Paulicéia, comparsas repugnantes nos ponches das
vendas ou nos “banquetes negros” dos cemitérios (PRADO, 1997, p.177).
A literatura foi componente modificador da realidade, fez parte do homem deste
período, pois ao mesmo tempo em que ele a criava, retratava o comportamento de tais jovens
escritores, como Álvares de Azevedo. Este retrato do romantismo ocorreu sob a forma, aponta
119 SOUZA, Luciéle Bernardi de. Os movimentos da câmera de Paulo Prado para a formação do
retrato do Brasil. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Revista da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia
SESES-Go. Vol. 02, nº 10, 109-121, Fev./Jul. 2014.
Paulo Prado, de disfarces de inteligências brilhantes que deveriam ser substituídas pelo
entendimento, o real estudo e pensamentos concretamente elaborados, e não incoerentes e
disfarçados de uma aparente profundidade e erudição como os presentes na literatura romântica.
Como esta escola ganha tanto destaque na obra de Paulo Prado, achamos pertinente o
debate de críticos literários como Afrânio Coutinho (1976) e Antonio Candido (1981) e seus
divergentes pontos de vista sobre a literatura brasileira, em específico, o conceito de literatura
brasileira e seu início em nosso país.
O teórico Antonio Candido (1981) ao tentar reconstituir uma historiográfica literária da
formação da literatura brasileira aponta seus momentos decisivos e dá ênfase ao Romantismo, em
que a literatura tem seu foco na busca de peculiaridades locais 11. A literatura brasileira só pode ser
levada a este estatuto, para o autor, se formar e pertencer a um sistema. O sistema seria um número
que obras interligadas que portariam características em comum:
(...) além das características internas (língua, temas, imagens), certos elementos de natureza
social e psíquica, embora literariamente organizados, que se manifestam historicamente e
fazem da literatura aspecto orgânico da civilização. Entre eles se distinguem: a existência
de um conjunto de produtores literários, mais ou menos conscientes do seu papel; um
conjunto de receptores, fornecendo os diferentes tipos de público, sem os quais a obra não
vive; um mecanismo transmissor (de modo geral, uma linguagem, traduzida em estilos) que
liga uns a outros. O conjunto dos três elementos dá lugar a um tipo de comunicação interhumana, a literatura, que aparece, sob este ângulo como sistema simbólico (...)
(CANDIDO, 1971, p. 23).
De acordo com estas características, a literatura feita no país até o século XIX não
era capaz de formar um sistema literário, e desta forma, não era considerada uma manifestação
literária brasileira. Autores tão citados como o Padre Antonio Vieira, Gregório de Matos e até
mesmo Pero Vaz de Caminha, por esta óptica, não produziriam uma literatura nacional por não
possuírem as características básicas apontadas anteriormente. Além disso, a caracterização da
literatura brasileira enquanto um sistema, de acordo com Antonio Candido, levaria à constituição de
uma tradição, à “transmissão de algo entre os homens” (CANDIDO, 1971, p.24) que daria
continuidade à literatura enquanto um “fenômeno de civilização” (ibidem, p.24).
Contrariando o pensamento de Antonio Candido, Afrânio Coutinho com sua tese do
homem novo afirma que a literatura brasileira
11
Dentre outras peculiaridades, destacam-se: 1) O Brasil precisa ter uma literatura independente; 2) esta
literatura recebe suas características do meio, das raças e dos costumes próprios do país; 3) os índios são os brasileiros
mais lídimos, devendo-se investigar as suas características poéticas e tomá-las como tema; 4) além do índio, são
critérios de identificação nacional a descrição da natureza e dos costumes; 5) a religião não é característica nacional,
mas é elemento indispensável da nossa literatura; 6) é preciso reconhecer a existência de uma literatura brasileira no
passado e determinar quais os escritores que anunciaram as correntes atuais (CANDIDO, 1971, p. 329-30).
120 SOUZA, Luciéle Bernardi de. Os movimentos da câmera de Paulo Prado para a formação do
retrato do Brasil. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Revista da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia
SESES-Go. Vol. 02, nº 10, 109-121, Fev./Jul. 2014.
não começou no movimento arcádico romântico. Vem de antes, partiu do instante em que o
primeiro homem europeu aqui pôs os pés, aqui se instalou, iniciando uma nova realidade
histórica, criando novas vivências, que traduziu em cantos e contos populares, germinando
uma nova literatura. Naquele instante, criou-se um homem novo, ‘obnubilando’, como
queria Araripe Júnior, o homem antigo, o europeu. Foi o homem brasileiro [...]. E com ele
se ‘formou’ a literatura brasileira (COUTINHO, 1980, p. 37-8).
Para Coutinho, portanto, a literatura brasileira e a autonomia literária12 iniciaram-se com
o Barroco e suas preocupações de cunho nativista, “pela mão dos jesuítas”, e não com o
Romantismo, embora afirme que foi com o Romantismo que ocorreram suas consolidações. No
círculo vicioso de “versos tristes, homens tristes”, fica evidenciada a relação entre o produto do
homem (os versos) e o comportamento derivado desta doença chamada romantismo, incluindo-se a
tristeza e a melancolia dos poetas brasileiros, mas também a existência de um movimento positivo
na construção da literatura nacional.
Como
podemos
constatar
após
esta
explanação
advinda
de
uma
sociologia/historiografia da literatura, Paulo Prado realiza uma mescla das posições dos autores sem
se deter em nenhuma. Utiliza a literatura como documento, produto deste homem novo -enfatizado
por Coutinho-, mas também vale-se de seu status estético em todos os períodos literários até o
Romantismo, sem questionar se havia ou não uma literatura nacional, o que também vai ao encontro
das palavras de Afrânio Coutinho. Já a ênfase ao Romantismo é dada por Paulo Prado assim como
faz Antonio Candido, destacando sua importância para a literatura nacional, além de enfatizar a
todo o momento que o autor, bem com o a obra literária, é um produto social.
Literatura no Pensamento social brasileiro: o revelar do Retrato do Brasil
Dentre os diversos “retratos do Brasil”, rastreamos neste trabalho a importância da
literatura no discurso de reconstrução do passado, passado este que para Paulo Prado serve para
indagar o presente, pois o Brasil de quinhentos anos atrás, em suas mazelas, não pode ser repetido,
anseia por ruptura.
Enfatizamos principalmente a escola literária romântica que demonstrou durante sua
constituição afinidades com o contexto local, demonstrando que o ambiente brasileiro era propício
para uma não racionalidade e objetividade do homem. Tal homem, seduzido por discursos que
esvaziariam a realidade do mundo.
12
“No que concerne à literatura, não foi a independência política de 1822 que determinou a autonomia literária.
Esta já se vinha desenvolvendo desde os primeiros tempos (...). Mesmo numa fase quase incaracterística , como a das
duas primeiras décadas do século XIX, encerra tendências nacionalistas pré-românticos, em vários autores, embora a
marca neoclássica se fizesse sentir forte.” (COUTINHO, 1983, p.29)
121 SOUZA, Luciéle Bernardi de. Os movimentos da câmera de Paulo Prado para a formação do
retrato do Brasil. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Revista da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia
SESES-Go. Vol. 02, nº 10, 109-121, Fev./Jul. 2014.
No entremeio entre a verdade e a ficção destacamos que o social faz parte do estético, e
este o transforma em material literário, o que torna difícil desvincular a obra de seu contexto de
produção, principalmente a literatura feita até o século XVIII em nosso país. Vimos também que
este trabalho de aproximação entre a história e a literatura pode ser feito se contextualizarmos os
limites entre o que é cada uma, viabilizando assim o romance para o estudo de um determinado
momento histórico, sem negar que uma faz parte da outra.
Por fim expomos nossa compreensão sobre a literatura e seu uso na obra de Paulo
Prado, lembrando que sempre houve uso da literatura, esta pertencente à bibliografia do pensamento
social brasileiro e onde a mesma, não totalmente desvinculada de seu aspecto estético, é usada
como um documento e nos amparou na compreensão da tese “pradiana” sobre a tristeza brasileira.
Tal uso só se faz possível por acreditarmos que, embora a literatura não tenha um verdadeiro
comprometimento com a realidade, tal realidade está plasmada na obra como uma imagem e não
um reflexo, uma imago mundi.
Referências
CANDIDO, A. A formação da literatura brasileira: momentos decisivos. 4. ed. São Paulo: Martins,
1971. 1 v.
CASTRO, Silvio. A Carta de Pero Vaz de Caminha: O Descobrimento do Brasil. Porto Alegre:
L&PM, 2003.
COUTINHO, A. Conceito de literatura brasileira. Petrópolis: Vozes, 1981.
________.O processo da descolonização literária. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1983.
EAGLETON, T. Teoria da literatura: uma introdução. São Paulo: Martins Fontes, 2006.
KOSIK, Karel. Dialética de el concreto: Estudio sobre los problemas del hombre y del mundo Ed.
Grijalbo, México 1967.
PRADO, Paulo. (1928) 1997. Retrato do Brasil: ensaio sobre a tristeza brasileira.
Letras, São Paulo.
Companhia das
122 VILELA, Shirley Elias. A obra Senhora de José de Alencar e seus aspectos de verossimilhança nas
vestimentas. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Revista da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES-Go.
Vol. 02, nº 10, 122-134, Fev./Jul. 2014.
A OBRA SENHORA DE JOSÉ DE ALENCAR
E SEUS ASPECTOS DE VEROSSIMILHANÇA NAS VESTIMENTAS
Shirley Elias Vilela1
RESUMO
ABSTRACT
Um dos aspectos da narrativa é a verossimilhança.
Esta diz respeito à qualidade da semelhança à
verdade ou à provável verdade que poderá ser
representada. Não necessariamente deve-se ao que é
real e verdadeiro, porém da possibilidade de
verdade. Partindo deste princípio, analisaremos o
livro Senhora de José de Alencar, sendo que Aurélia
personagem principal se apossa de muito dinheiro e
este lhe compra além de um marido, luxuosas
vestimentas. A forma como se vestia na obra reflete
as vestimentas cariocas da segunda metade do
século XIX? Moda e modernidade pareciam andar
juntas no Rio de Janeiro deste período, este fato teria
influenciado José de Alencar e sua obra “Senhora”?
One aspect of the narrative is the likelihood, this
concerns the quality of the similarity to the truth or
probable truth that may be represented. Not
necessarily due to what is real and true, but the
possibility of truth. Based on this principle, we will
reflect the book Lady of José de Alencar, and
Aurelia main character gets hold of a lot of money
and it buys him besides a husband, costly apparel.
The way she dressed in work attire reflects the
Cariocas the second half of the nineteenth century?
Fashion and modernity seemed to go together in Rio
de Janeiro this period, this fact would have
influenced José de Alencar and his "Lady"?
Keywords: Likelihood, literature, fashion, behavior.
Palavras-chave: Verossimilhança, literatura, moda,
comportamento.
A narrativa e seus aspectos gerais
A narrativa é uma história contada por meio de um narrador. Poderá ser real ou
ficcional. Narração desemboca no enredo da narrativa e é o modo de organizar a história, em geral
tem divisões que caracterizam uma introdução (que não precisa respeitar necessariamente a
linearidade), um desenvolvimento e um desfecho ou situação final. O enredo explanado por
narração é composto por personagens. Especialmente dentro dos aspectos teóricos da narrativa, a
descrição e sua ligação com a verossimilhança é o aspecto que mais permeia as ciências sociais. A
descrição compõe um aspecto interessante de uma trama, pois o narrador poderá se utilizar dela
para produzir um efeito de convencimento e de verossimilhança interna e externa de uma obra
1
Graduada em História, Design de Moda e Educação artística. Especialista em EaD e mestre em Cultura Visual
FAV/UFG.
123 VILELA, Shirley Elias. A obra Senhora de José de Alencar e seus aspectos de verossimilhança nas
vestimentas. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Revista da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES-Go.
Vol. 02, nº 10, 122-134, Fev./Jul. 2014.
literária. Ela poderá ser informativa, contornando amplamente as personagens, o espaço geográfico
e o social, e em nosso caso, estudo específico das vestimentas e indumentárias. A descrição
colabora para que a diegese torne-se verossímil. Muitas vezes torna-se necessário que aspectos da
realidade sejam consolidados em uma obra, pois desta forma possibilita uma maior imersão do
leitor na obra.
(...) não é nem o verdadeiro e nem o possível, mas o verossímil; tende-se, porém, a
identificar cada vez mais nitidamente o verossímil com o devendo ser. Esta identificação e
a oposição entre verossimilhança e verdade são anunciadas com a mesma inspiração, entre
termos nitidamente platônicos, por P. Rapin: ” A verdade só faz as coisas tais como são, e a
verossimilhança as faz como devem ser. A verdade é quase sempre defeituosa, pela mistura
das condições singulares que a compõem. Não nasce nada no mundo que não se afaste da
perfeição de sua idéia, nele nascendo. É preciso procurar os originais e os modelos na
verossimilhança e nos princípios universais das coisas: onde não entre nada de material e de
singular que os corrompa”. (GENET, 2002, p. 09).
Verossimilhança diz respeito à qualidade da semelhança, à verdade ou à provável
verdade que poderá ser representada. Não necessariamente deve-se ao que é real e verdadeiro,
porém da possibilidade de verdade que norteia a trajetória histórica. A verossimilhança poderá
estruturar-se na modalidade interna e na externa de uma obra. A primeira versa acerca da própria
estrutura da escrita, ou seja, expõe componentes que compõe coesão interna em relação ao enredo
da trama estudada, sendo cuidadosamente encaixada na narrativa literária.
O que se deve ser entendido é que a literatura trabalha com verdades possíveis de existir, ou
seja, com a verossimilhança narrativa interna, que é um fator intrínseco ao texto e que não
deve ser confundido com a verdade exterior, que é um fator da realidade vivenciada pelos
seres reais, seres humanos. (NOGUEIRA, 2007, p.79).
A externa discute a estrutura da narrativa e suas relações com o que existe de real na
sociedade, cultura, política do mundo humano que possivelmente poderia influenciar a obra. O
autor de uma narrativa literária existe em alguma sociedade e em algum tempo histórico e esta de
alguma forma o influencia. O olhar está carregado de conceitos e de uma cultura específica. O
escritor, culturalmente situado, constrói sua escrita influenciada pelo mundo e por si própria. Neste
ensejo da escrita culturalmente situada facilita a compreensão e aceitação da obra, uma vez que a
verificação é facilitada. Assim o escritor narra de forma representativa a trama ancorado em suas
relações possíveis internas da obra e daquilo que existe de real na sociedade, representando o que
poderia acontecer ligado a referências de tempo e espaço.
No livro Senhora de José de Alencar podemos identificar verossimilhança interna e
externa. Em especial discutiremos aqui a verossimilhança das vestimentas. Na obra, Aurélia,
personagem principal, se apossa de muito dinheiro e este lhe compra além de um marido, boa
124 VILELA, Shirley Elias. A obra Senhora de José de Alencar e seus aspectos de verossimilhança nas
vestimentas. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Revista da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES-Go.
Vol. 02, nº 10, 122-134, Fev./Jul. 2014.
aparência e luxuosas vestimentas que lhe ressaltam ainda mais sua beleza. A forma como Aurélia e
Fernando se vestiam refletem as vestimentas cariocas da segunda metade do século XIX. A moda
deste período e deste espaço conjeturava transformações sócio-culturais, hábitos, comportamentos,
posição social que poderiam influenciar no universo literário de Alencar. Vejamos mais detalhes da
obra.
O escritor e a obra
Podemos assim, partir do próprio autor, uma vez que a identidade do escritor e sua
trajetória influenciam profundamente em suas obras literárias. De acordo com o site da Academia
Brasileira de letras2, José de Alencar, nasceu José Martiniano de Alencar em Messejana na
província do Ceará, em primeiro de maio do ano de hum mil, oitocentos e vinte e nove. Era filho de
um ex-padre que se tornou senador e de sua prima Ana Josefina de Alencar. Mais tarde muda-se
com a família para o Rio de Janeiro onde o pai desenvolveria carreira política. Em 1844 vai para
São Paulo cursar o preparatório e posteriormente direito. Ao término de sua graduação passa atuar
como advogado no Rio De Janeiro exercendo também a função de escritor de folhetins para o
Jornal do Commercio, sua coluna foi intitulada “Ao correr da pena”. Tornou-se redator chefe do
Jornal do Rio de Janeiro, eleito deputado geral do Ceará, e também ministro da justiça. Algumas
decepções políticas o fizeram dedicar-se com profundo apresso a literatura. Suas obras foram e
ainda são apreciadas, pois marcam pela qualidade e inovação e estilos variados. Seus escritos
destacavam o indianismo, o psicológico, o regional, o urbano, o histórico.
Por hora nos concentraremos nos romances que abordam o cotidiano, também
conhecido como de costumes com forte eixo psicológico. Especificamente nos referimos ao
romance Senhora, que se passa na primeira metade do século XIX, período do segundo império
brasileiro, tem como ambiência o Rio de Janeiro capital com inúmeras descrições visuais de bairros,
casas, entre outros. A ambiência principalmente se passa em um Rio de Janeiro pobre, em bairro
humilde e em um oposto o rico, cosmopolita, refinado e com vestígios de cultura e almejos
europeus. O romance enfim, elenca um inusitado casamento burguês, baseado em interesse
financeiro. O tempo é um fator interessante e importante a ser destacado, uma vez que não se
prende a linearidade, pois na trama é possível conferir memórias passadas, como na passagem do
casamento de Aurélia e Fernando onde surte um corte de tempo, subterfúgio para retomar fatos já
acontecidos. Pude perceber destreza no uso das palavras, nas metáforas, exclamações e reticências,
2
http://www.academia.org.br/abl/cgi/cgilua.exe/sys/start.htm?infoid=889&sid=239
125 VILELA, Shirley Elias. A obra Senhora de José de Alencar e seus aspectos de verossimilhança nas
vestimentas. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Revista da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES-Go.
Vol. 02, nº 10, 122-134, Fev./Jul. 2014.
pontuação enfim, das quais favoreciam uma entonação e emotividade dos personagens. A narração
foi focada em terceira pessoa em onisciência e também intrusa3.
As personagens foram bem construídas observando-se uma inteligente justaposição
psicológica com o desenrolar da trama e não apenas extensão das representações sociais. Nesta
reflexão destacaremos apenas Aurélia Camargo. Ela enamora-se de um jovem, bem vestido,
estudado, inteligente e acima de tudo um apreciador do luxo e da boa aparência. Por ser um
gastador contumaz e presenciar as dificuldades familiares, sendo ele um arrimo de família,
acreditou que a única maneira de evitar o desmoronamento financeiro era fazer um casamento de
fortuna. Era ele comprometido com Aurélia, no entanto a abandona, por ser uma moça pobre.
Envolve-se posteriormente com outra moça abastada, no entanto recebe uma proposta irrecusável
(cem contos de réis) de um casamento com uma suposta moça misteriosa.
Aurélia Camargo apresenta-se na trama inicialmente como uma órfã rica e muito
inteligente, e apesar da pouca idade demonstra firmeza e maturidade. Anteriormente era uma moça
pobre e em função desta característica perde seu grande amor, Fernando. Por ser neta de um homem
abastado e arrependido, pois no passado, não permitiu a união de seus pais, recebe uma opulenta
herança. A decepção amorosa a transforma em uma jovem fria, vingativa, porém dividida entre o
amor que ainda sente por Fernando e sua sede de vingança. Em boa parte do romance Aurélia
humilha e reduz Seixas.
A obra divide-se nas seguintes partes: O PREÇO, narrado em tempo presente,
destacando o conchavo que faz com seu tio a fim de oferecer dinheiro a Seixas por seu enlace.
QUITAÇÃO oportuniza um retrocesso e narra o passado de Aurélia e Fernando dando sentido à
vingança tramada. Em POSSE acontece o início da fase de convivência de falsas aparências
conjugal. Finalmente em RESGATE intensificam-se os caprichos, pressões e contradições de
Aurélia. Em alguns momentos a personagem mostra-se irônica, ácida, imponderada e em outros,
doce, apaixonada e consciente da negociata que fez. Fernando, entretanto também amadurece e aos
poucos de forma disfarçada, recusa a vida de riqueza que Aurélia lhe impõe. Usa trajes bem
diferentes dos usados antes do casamento, trabalha com assiduidade em uma humilde função
pública. Ao final negocia o seu resgate, devolvendo-lhe os iniciais vinte contos de réis pagos como
sinal e o cheque de oitenta contos do Banco do Brasil como pagamento restante, pagos na noite de
núpcias. Após a separação Aurélia mostra-lhe um testamento do qual lhe destinou toda sua fortuna e
todo seu amor. O livro termina com a personagem pedindo indulto e se humilhando a Fernando. Os
dois finalizam a trama juntos em um relacionamento sério e real.
3
Narrador onisciente é o que tudo sabe sobre os personagens da trama. Narrador intruso interfere.
126 VILELA, Shirley Elias. A obra Senhora de José de Alencar e seus aspectos de verossimilhança nas
vestimentas. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Revista da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES-Go.
Vol. 02, nº 10, 122-134, Fev./Jul. 2014.
Sociologia do vestuário e literatura
Ao longo do século XIX, a moda se democratiza com produção em série atingindo um
maior número de pessoas e cidades brasileiras, que passam a ter acesso facilitado a novidades
vindas dos grandes centros da moda. A vinda da família real ao Brasil desperta o olha e o sentido
de imitação dos trajos europeus com o intuito de tornar-se civilizado e desapegar-se do “atraso
colonialista”. Além disto, o avanço da segunda revolução industrial facilita a aquisição de roupas e
adornos, seja pelo preço mais acessível, seja pela abertura dos meios de comunicação e divulgação
ou mesmo pelo transporte ampliado de mercadorias.
No Rio de Janeiro, as transformações no espaço urbano, a “europeização” dos costumes, o
incremento do comércio e a intensidade da vida social são elementos que servem de pano
de fundo para a difusão da moda. Especialmente na segunda metade do século XIX, já
elevada ao status de insígnia de classe, a moda passa a fazer parte das preocupações da “boa
sociedade” da corte, que precisava exibir-se no espaço público das ruas, dos bailes, do
teatro e nos demais acontecimentos da vida social, usando o que havia de mais parecido
com as novidades de Paris. (RAINHO, 2002, p.14).
As necessidades das classes abastadas brasileiras adotaram o hábito vestimentário
europeu no intuito de igualar-se ao mundo considerado “civilizado” na época, espelhando-se na
família real recém-chegada da Europa, fugitiva das guerras e da invasão napoleônica. Vestirem-se
como os europeus, em especial aos franceses, ingleses e portugueses, representava um ato
civilizatório e moderno que caracterizava aceitação e visibilidade no Rio de Janeiro do século XIX.
Ao encontro deste ensejo, as facilidades de aquisição dos trajes contribuíam para uma cultura da
moda e modos de acompanhá-la.
Este comportamento e acompanhamento da moda eram
reforçados pelo aprimoramento dos meios de comunicação característico da segunda revolução
industrial, jornais, revistas e manuais de moda, etiqueta e civilidade ditavam (normatizava) rumos e
comportamento. A imitação da moda européia e a ênfase na modernidade indumentária promoviam
visibilidade e respeito para quem a praticasse.
Entre os membros da “boa sociedade”, a moda aparecia como um sinal distinto. Por meio
dela, revelavam a sua vontade de singularizar-se, de distinguir-se, de dar nas vistas, mesmo
tempo que demonstrava uma igualdade no vestuário tanto com os europeus como com os
outros membros da camada a que pertenciam. (RAINHO, 2002, p.46).
A moda no século XIX era assunto freqüente nas rodas de amigos e em diversas
comunidades, discutiam-se os bailes e o que lá se usava, festas na corte, as revistas e se um estava
compatível com o outro. Riqueza e modernidade pareciam andar juntas no Rio de Janeiro da
segunda metade do século XIX, exercendo influência na obra Senhora de José de Alencar. Os
127 VILELA, Shirley Elias. A obra Senhora de José de Alencar e seus aspectos de verossimilhança nas
vestimentas. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Revista da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES-Go.
Vol. 02, nº 10, 122-134, Fev./Jul. 2014.
romances alencarianos têm características urbanas e suas personagens também. As personagens
principais desta citada obra, têm características peculiares, foram cuidadosamente descritas em suas
aparências físicas e adornos. A construção vestimentária, de Aurélia a enquadrava em uma posição
de domínio social e pompa, uma vez que se impunham também pelos adornos, jóias e tecidos
importados, saias vastas que tomavam e marcavam muito espaço, preenchendo com sua presença.
Estas indumentárias eram representações e símbolos da modernidade, europeização e
aburguesamento que denotavam aceitação e prestígio.
Percebe-se na obra uma promoção da sedução relacionada à era do consumo. Seduzir
tem diversos caminhos e um deles é por meio da aparência que trafega pelo mundo da imagem e de
serviços que se apoiam no hedonismo, em ambientes de euforia e tentação. No capitalismo é
necessário multiplicar e diversificar, e esta linguagem diversificada tornam o eco da sedução.
Provavelmente Alencar para descrever tantos detalhes ornamentais, freqüentava rodas da elite,
observava as jovens senhoras, e vez ou outra passava os olhos nos manuais, jornais, revistas de
moda circulantes no período. Em sua citada obra é possível conferir verossimilhança externa no que
tange a questões culturais, luxo, consumo, representações simbólicas das hierarquias econômicas,
sociais e signos de pertencimentos em uma mentalidade coletiva.
Alencar analisa a mulher moderna calcada nesta imagem idealizada buscando a si
mesma, por meio de uma identidade que as insira no corpo-social recheado pelos conceitos de
beleza, que se confundem com os de bem-estar. O acesso a esse “corpo-social” é fornecido pelo
cultivo diário de uma aparência bela. Vejamos algumas das muitas passagens do livro Senhora que
narra a descrição das roupas e da indumentária da personagem principal.
As oito horas em ponto, com um fino binóculo de marfim na mão esquerda calçada por
macia luva de pelica cinzenta, e o elegante sobretudo no braço, subia as escadas ao lado do
mar (...) Envolvia-se desde a cabeça até os pés um finíssimo e amplo manto de alva
caxemira, que apenas cobria-lhe o fino rosto à sombra do capuz, e uma ola do vestido azul.
(ALENCAR, 2010, p. 59).
Ouviu-se um frolido de sedas, e Aurélia assomou-se na porta do salão. Trazia nesta noite
um vestido de nobreza opala, que assentava-lhe admiravelmente, debuxando como uma
luva o formoso busto. Com as rutilações da seda que ondeava ao reflexo das luzes,
tornavam-se ainda mais suaves as inflexões harmoniosas do talhe sedutor. (...). Seus
opulentos cabelos colhidos na nuca por um diadema de opalas (...). Cingia o braço
torneado, que a manga arregaçava descobria até a curva, uma pulseira também de opalas,
como eram o frouxo colar e os brincos de longos pingentes que tremulavam na ponta das
orelhas de nácar. (ALENCAR, 2010, p. 75-76).
A moça trajava um vestido de gorgorão azul entretecido de fios de prata, que dava à sua tez
pura tons suaves e diáfanos. O movimento com que, apoiando sutilmente a ponta da botina
no estribo, ergueu-se do chão para reclinar-se no acolchoado amarelo da carruagem,
lembrava o surto da borboleta, que agita as grandes asas e se aninha no cálice de uma flor.
O vestido de Aurélia encheu a carruagem e submergiu o marido; o que ainda lhe aparecia
128 VILELA, Shirley Elias. A obra Senhora de José de Alencar e seus aspectos de verossimilhança nas
vestimentas. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Revista da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES-Go.
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do semblante e do busto ficava inteiramente ofuscado pela beleza da moça. (...) pois,
precisava de ambas as mãos para nadar nesse dilúvio de sedas, rendas e jóias, que
atualmente o mundus da mulher. (ALENCAR, 2010, p. 206-207).
Para Pierre Bourdieu (1974) era necessário compreender como as classes sociais
respondem aos bens culturais e à cultura material em sociedades estratificadas, uma vez que as
estruturas sociais são sistemas complexos que agregam estilos culturais e de vida. O julgamento de
padrões de gosto e maneiras de vestir são alicerçadas em ideias de classe. Ele elenca que cada qual
parte da sua cultura da necessidade, característica de suas respectivas classes. Enfatiza aquisição de
hábito, costumes por meio também do sistema educacional. No caso específico de Aurélia, a
ascensão financeira, social e consequentemente do padrão de vida permitiu também acesso a
informação e profissionais da moda que a auxiliaram na proposta vestimentária que atenderia aos
ensejos da elite.
Moda é um dos pontos primordiais que oferecem pistas do status social do indivíduo.
Especialmente no século XIX as roupas eram o primeiro ponto de observação e identificação do
indivíduo no que tange ao espaço público, uma vez que ofereciam indícios que possivelmente
identificasse ocupação, identidade, classe social, por vezes religião. Tipos de tecidos, variação de
uso e quantidade de roupas, acabamento de chapéus e uso de joias eram os principais
identificadores sociais deste período. Em especial nas sociedades industriais e pós-industriais, a
sociedade de classes torna-se melhor definida em função de uma cultura da aparência distinta que as
diferencia. A cultura do vestuário assinalava modificações nos discursos visuais que os permeavam,
abalizando mudanças nas relações sociais e expressando-as em espaços públicos. Lembremos que o
vestuário antes da revolução era valioso e por isto eram deixados em testamento como bem
precioso. Eram caros e constituíam moeda de troca. Segundo Diane Crane (2006) as roupas ligadas
a profissão e ocupação específica tendem a diminuir e foram substituídas por vestuário
característico ao tipo de ocupação, como também por uniformes usados em momentos específicos
de atuação profissional. No entanto a industrialização das roupas tornou-as mais baratas
proporcionando uma
maior aquisição deste
bem,
supostamente
democratizando-a.
As
consequências desta suposta democratização foi reação das classes abastadas respondendo com
outros sinais de competição de status representado pelas vestimentas.
Para George Simmel (2008), a moda era lançada e adotada pela classe alta e
posteriormente imitada (mesmo que superficialmente) pelas classes baixas. Grupos de classes
considerados inferiores acreditavam obter mais aceitação ao copiar uma roupa avaliada como de
status. Este movimento tornava-se sucessivo impulsionando as classes abastadas a cada vez mais
conceber novos modelos, abarcando em suas vestimentas itens com preços elevados, com o claro
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vestimentas. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Revista da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES-Go.
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propósito de diferenciação. A imitação remete a ilusão de aceitação operando no âmbito coletivo de
um grupo. Neste processo percebia-se um almejo de romper limites das demarcações sociais.
Enfim, o processo caracterizava-se por um movimento imitativo advindo das camadas inferiores e
uma busca constante do novo (novas tendências de moda) nas superiores. A moda vista deste
ângulo funciona fortalecendo a identidade coletiva aproximando e afastando respectivos grupos.
Simmel (2008) reforçava que moda é sempre moda de classe. Aurélia neste sentido responde, por
meio da moda, a necessidade de inserção e aceitação da nova camada social da qual ingressava
buscando uma identidade coletiva. Na realidade a moda aproxima e reforça laços, como também
afasta e reforça diferenciação.
A verossimilhança versus história das vestimentas
Na parte II de “RESGATE” temos algumas pistas de um suposto corte de tempo na
obra. Foi possível identificar por meio da passagem “Já leram Diva?” (ALENCAR, 2010, p. 243).
Diva também é um romance de José de Alencar e foi publicado em 1864. Por esta data nos
nortearemos historicamente, cruzando informações acerca das vestimentas veiculadas na segunda
metade do século XIX e das encontradas na obra Senhora. Dentro deste confronto deliberaremos se
as roupas se enquadram no conceito de verossímil ou inverossímil.
O vestuário deste período elencado neste artigo (1850-1890) inicia-se pela crinolina4
encarnando a ostentação do regime imperial. Ressuscitou do vestido de cerimônia do século XVII,
porém seu feitio torna-se mais fácil e acessível uma vez que surgem máquinas de costura mecânica
que reduzem o tempo de feitio, podendo assim a costureira debruçar-se em detalhes e ornamentos.
Implantação de amplas vias de comunicação e transporte (estradas terrestres, canais de navegação,
ferrovias e navios a vapor) permite a Europa, compra de matérias primas de outros continentes e a
distribuição do material fabricado advindo destes.
A industrialização crescente deste referido continente leva-o a aumentar as importações
de seda e de algodão nos Estados Unidos. A maquinaria aumenta a produtividade, na tecelagem,
segundo Boucher (BOUCHER, 2010, p.354 ) o número de fusos por tear passa de 400 para 1.200.
O retorno da crinolina era uma forma de diferenciar as mulheres da nobreza e ascendente burguesia
das trabalhadoras, proletárias, uma vez que estas últimas necessitavam de mobilidade corporal para
4
Inicialmente era uma anágua rígida de tecido de crina em forma circular. Posteriormente faz uso de barbatanas ou
círculos metálicos. Para facilitar o andar, a frente se torna maleável e sem armação. Em 1867, a crinolina se transforma
em anágua com arcos em sua parte inferior formando um triangulo estreito. Posterior a esta data o indumento vai
perdendo a força de uso, o cós encurta e a silhueta mais comprimida. (BOUCHER, 2010).
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labuta.
Os corantes artificiais (Lembremos das cores fortes dos vestidos de Aurélia) são
efetivamente usados a partir de 1856. “Perkin descobre na Inglaterra, o primeiro corante sintético: a
malveína, que permite obter tons violáceos impossíveis de alcançar com corantes naturais. Por volta
da mesma época, Verguin, em Lyon, aprimora a fabricação da fucsina”. (BOUCHER, 2010, p. 354).
Tons parisienses encantavam os olhos como azul de luz, alfarroba, verde-pavão, lápislazúli, roxo-monsenhor, tangerina. Muitos vestidos exigiam no mínimo 14 metros de tecido e a
partir de 1868 a crinolina aos poucos vai sendo substituída por semianquinhas e jogada para trás
armado em pouf. Possíveis distinções de uso de roupas em função da hora e da circunstância como
jantares íntimos ou de cerimônia, baile, teatro entre outros, “sob pena” de falta de decoro. Alguns
tecidos e acessórios eram relegados apenas a senhoras como era o caso do cetim, pele, rendas, jóias
de valor ou xales de caxemira (Muito usado por Aurélia). Nesse sentido as instruções nos manuais
de civilidade eram bem claras.
Todas estas características descritas acima foram encontradas na obra Senhora de José
de Alencar caracterizando forte indício de representação social e aplicação da verossimilhança.
Abaixo roupas e indumentárias do corte histórico sugerido e que se assemelham com as descritas no
livro Senhora.
Vestido estampado de seda branca com brocado azul. Datado de 1850-1855.
(BOUCHER, 2010, p. 358).
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Tafetá cor-de-rosa com babados. Datado de 1854. (BOUCHER, 2010, p.358).
Estatueta de 1868. (BOUCHER, 2010, p.359).
Crinolina de 1862. (BOUCHER, 2010, p. 363).
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vestimentas. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Revista da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES-Go.
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Vestido informal de 1974. (BOUCHER, 2010, p. 376).
Gravura de moda, 1887. (BOUCHER, 2010, p.376).
Reflexões finais
O vestuário é um contador de histórias, revelador de um contexto social, identifica e dá
pistas de usos e conceitos proporcionando maior entendimento de uma época. A presente reflexão
tem sua validade no que diz respeito à compreensão das relações da literatura, verossimilhança,
vestimenta, pois nos dão pistas do processo histórico elencado. É necessária uma desmistificação de
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vestimentas. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Revista da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES-Go.
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que a vestimenta está pautada no vazio e na futilidade, as roupas são documentos históricos de
resgate e de desafio de uma historiografia vista por outro ângulo. Lembrando que a vestimenta é um
objeto cultural que em sua trajetória recebeu marcas do corpo e do tempo, é diferente de outros
documentos textuais.
Documentar roupas significa identificar materiais a elas pertinentes e fazer suas
devidas articulações. Neste caso específico se deslocaram do social para o literário proporcionando
comunicação, prazer e imersão, uma vez que havendo identificação. Neste sentido, existe uma
função simbólica envolvendo aspectos sociais partilhados em uma sociedade. Enfim, as roupas
reais/ históricas, abordam e dão pistas de aspectos geográficos, identificando regiões onde é
freqüentes clima quente (manchas de suor na cava da manga junto a axilas) ou frio (fios de lãs
grossos com poucas lavagens), culturais ressaltando cores e bordados específicos, ou econômicos
destacando o glamour de fios de ouro e austeridade de uma tecelagem de algodão cru. Daí o
vestuário ser também receptáculo de períodos históricos, representando certas práticas e costumes
de uma época. Mirian Mendonça nos ajuda nesta reflexão.
Os códigos da moda, uma reconhecida forma da comunicação não-verbal, tem a capacidade
de fornecer uma leitura imediata e precisa sobre outros pormenores, tais como sexo, faixa
etária ou sentimento dos indivíduos. Tais códigos constituem, além disso, expressivos
indicadores dos papéis assumidos pelo indivíduo dentro de um grupo e, por esse grupo, no
contexto social. Oferecem, assim, fartas informações sobre o trabalho, a origem, a
personalidade, a filosofia de vida, os gestos, os desejos, os impulsos sexuais e até mesmo as
variações de humor de alguém em determinado momento. (MENDONÇA, 2006, p.19).
Corpo e roupa tornam-se meio de expressão, subjetividade e revelação do eu. Na obra
destacada as roupas são consideradas verossímeis, pois o narrador se utilizou delas para produzir
efeito de convencimento e qualidade de semelhança à verdade ou à provável verdade. Não
necessariamente deve-se ao que é real e verdadeiro, porém da possibilidade de verdade que norteia
a trajetória histórica. As roupas de Aurélia, a Senhora, foram construídas para ela e dado efeito
literário, seguem uma ordem verossímil interna e externa, sobretudo, enquadradas na qualidade de
semelhança à existente historicamente.
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134 VILELA, Shirley Elias. A obra Senhora de José de Alencar e seus aspectos de verossimilhança nas
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WELLEK, René. WARREN, Austin. Teoria da literatura. Mira-Sintra, Publicações EuropaAmérica, 1976.
135 RABELO, Francisco Chagas E.; MASCARENHAS, Denise. Alfred Schütz e a sociologia da arte e da
literatura. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Revista da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES-Go. Vol.
02, nº 10, 135-145, Fev./Jul. 2014.
ALFRED SCHÜTZ E A SOCIOLOGIA DA ARTE E DA LITERATURA1
Francisco Chagas E. Rabelo2; Denise Mascarenhas3
RESUMO
ABSTRACT
O tema da arte e da literatura esteve presente em
várias correntes de pensamento que floresceram no
pensamento ocidental. Os fenomenólogos não se
fizeram de rogados. Como em outras dimensões do
pensamento de Alfred Schütz, a corte que faz da
sociologia por via da filosofia husserliana deixou um
rastro de análises e reflexões extremamente
relevantes para os que investigam estas áreas. O
construto de realidades múltiplas, que traz em seu
bojo a dialética da intersubjetividade propõe-se a
fornecer subsídios à compreensão da obra de arte,
enquanto constitutiva do mundo social, na medida
que permite a comunicação interpessoal.
The theme of art and literature was present in several
schools of thought that flourished in Western
thought. Phenomenologists, they did not made for
minus. As in other dimensions of thought of Alfred
Schütz, your courtship of sociology project by way
of Husserl's philosophy left a trail of analysis and
reflections extremely relevant for investigating these
areas. The construct of multiple realities, which
brings with it the dialectic of intersubjectivity
proposes to provide subsidies to understanding the
work of art as constitutive of the social world, to the
extent that enables interpersonal communication.
Key-words: Phenomenology, Alfred Schütz,
Palavras chaves: Fenomenologia, Alfred Schütz, Sociology of literature, Intersubjectivity, Social
Sociologia da literatura, intersubjetividade, mundo world.
social.
Introdução
A contribuição da fenomenologia aos estudos das artes em geral e da literatura em
específico é amplamente reconhecida. Para efeito de ilustração, limitar-nos-emos ao registro de dois
renomados pensadores vinculados ao pensamento fenomenológico Jean-Paul Sartre e Maurice
Merleau-Ponty, cujos livros O que é literatura? ([1947] 1993) e O homem e a comunicação - Prosa
do mundo (1974[1969]) influenciaram decisivamente análises e reflexões sobre a arte, e a literatura
especificamente, nos vários campos em que elas foram feitas na última metade do século XX.
Segundo Lefort (1974), trata-se de obras que se alimentam do debate silencioso que os dois
filósofos travam entre si. A visão da arte como produtora de sentido é certamente o mote que
orienta as respectivas obras, ainda que sustentadas por argumentos diversos, mas que compartilham
1
O presente texto é produto dos estudos e reflexões que se desenvolvem no interior do projeto de pesquisa Cultura e
sociedade: a modernidade da sociedade brasileira, que está sendo desenvolvido na linha de pesquisa do Programa de
Pós-graduação em Sociologia, Cultura e representações sociais.
2
Professor titular de sociologia da Faculdade de Ciências Sociais da Universidade Federal de Goiás, vinculado ao
Programa de Pós-graduação de Sociologia.
3
Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal de Goiás.
136 RABELO, Francisco Chagas E.; MASCARENHAS, Denise. Alfred Schütz e a sociologia da arte e da
literatura. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Revista da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES-Go. Vol.
02, nº 10, 135-145, Fev./Jul. 2014.
do mesmo fundamento, ou seja, que esse sentido não é dado a priori, mas se constitui no ato de sua
criação na e pela linguagem, pois é ela que não apenas torna possível a comunicação humana, mas
que possibilita a sua interpretação por parte de todos aqueles que compartilham do mesmo idioma.
A discussão tem tomado, nos últimos anos, uma estatura de especialidade, como bem
demonstra a coletânea organizada por Barber e Dreher (2014), resultante das apresentações de
vários estudiosos na Conferência Fenomenologia, ciências sociais e as artes, abrangendo vários
temas e pesquisadores de vários países, na Universidade de Constança, como parte das
comemorações dos cinquenta anos da morte Schütz, maio de 2009. As coordenadas que orientaram
as contribuições do simpósio, já conhecidas de todos que têm alguma afinidade com a
fenomenologia, isto é, que a análise da produção, assim como a percepção e interpretação da obra
de arte, precisa levar em consideração o ponto de vista subjetivo do artista, juntamente com o do
intérprete (BARBER e DREHER, 2014, p. 37).
Assim sendo, a transposição da discussão para um de seus mais renomados pensadores,
se não pela obra filosófica, mas fundamentalmente pela tentativa de estabelecer uma ponte entre as
reflexões gerais ou filosóficas e o mundo social, criando uma psicologia/sociologia4 do mundo
social, parece-nos necessária e pertinente. A abordagem da arte e da literatura por parte de Schütz
passa, a nosso ver, tanto pelos textos gerais, notadamente o texto sobre realidades múltiplas,
subitem de Símbolo, realidade e sociedade, tal como aparece no volume organizado por Maurice
Natanson, Collected Papers: I. The problem of social reality5, e, de forma concentrada, nos textos
em que discute a arte e a literatura especificamente. Em primeiro lugar, estão os dois manuscritos
sobre Johann Wolfgang Goethe, presentes em Collected Papers VI. Literary Reality and
Relationship, editado por Michael Barber (2013): Wilhelm Meister’s Lehrjahre and Wanderjare
(Wilhelm Meister’s Apprenticeship e Wilhelm Meister’s years of travel). Fazem parte desta
coletânea dois outros capítulos: Meaning structures of literary art forms e Meaning structures of
drama and opera. Em segundo, os textos mais conhecidos e citados Dom Quixote e o problema da
realidade social, A execução musical conjunta – estudos sobre as relações sociais e Mozart e os
filósofos, que fazem parte de Collected Papers: II. Studies in Social Theory de responsabilidade
editorial de Arvid Brodersen6.
4
Segundo Wagner (1979, p. 8), a Psicologia fenomenológica de Husserl, na medida em que ultrapassa a dimensão
empírico-psicológica, sugere, de fato, que se trata de sociologia, contemplando tanto a subjetividade quanto a
intersubjetividade.
5
As referências a esta obra serão feitas a partir da edição de Amorrortu Editores, 2008.
6
As referências a esta obra serão feitas a partir da edição de Amorrortu Editores, 2003.
137 RABELO, Francisco Chagas E.; MASCARENHAS, Denise. Alfred Schütz e a sociologia da arte e da
literatura. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Revista da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES-Go. Vol.
02, nº 10, 135-145, Fev./Jul. 2014.
O construto de realidades múltiplas e a experiência estética
O ponto de partida de Schütz é a ideia de que é o significado de nossas experiências e
não a estrutura ontológica dos objetos que constitui a realidade (1969, p. 248). Em vista disso, a
significação se dá não de forma geral, como aconteceria caso prevalecesse a estrutura ontológica,
mas dentro de províncias finitas, tendo cada uma delas seu estilo cognitivo. Elas, por sua vez, são
consistentes em si e compatíveis umas com as outras. E acrescenta ele:
Além disso, cada uma dessas províncias finitas de significado é, entre outras coisas,
caracterizada por uma tensão de consciência específica (desde o alerta total com relação à
realidade da vida cotidiana até o sono no mundo dos sonhos), por uma perspectiva de
tempo específica, por uma forma específica de se vivenciar a si próprio e, finalmente, por
uma forma específica de socialização (p. 249).
E, assim sendo, atribui-se o sentido de realidade, de mundo. Daí, segundo ele, “Todos
estes mundos, − o mundo dos sonhos, das imagens e fantasia (sobretudo o mundo da arte), o mundo
da experiência religiosa, o mundo da contemplação científica, o mundo dos jogos infantis e o
mundo da loucura – são âmbitos finitos de significado” (2008, p. 217). A identificação da arte como
um âmbito de sentido finito não esgota a discussão, ao contrário, exige que seja levada a bom
termo. Os textos Mozart e os filósofos, assim como A execução musical conjunta – estudos sobre as
relações sociais discutem, à luz da fenomenologia, as teses dominantes sobre a genialidade e a
determinação coletiva da obra de arte, embora seja sobre esse olhar que vamos nos deter.
Não há como desconhecer que as formulações de Schütz (2003) são tributárias, de um
lado, da tradição weberiana naquilo que tem sido reconhecido como sua grande contribuição para a
sociologia contemporânea, ou seja, discussão da ação social e da racionalidade. De outro, de uma
tradição irracionalista7 cujos expoentes foram Schopenhauer e Nietzsche. Tudo isto, no entanto,
pode parecer, à primeira vista, muito complicado. Em Weber (1995), o processo de racionalização,
tal como se manifesta na modernidade ocidental, ao atingir as artes, ainda que de maneira
diferenciada, desencadeia o seu processo de autonomização. Digamos que seria seu viés otimista.
Com ela, as artes se liberam das formas de mecenato que a promoveram ao longo da história.
Paralelamente, registra-se um viés pessimista, já que o artista, sem o apoio do clero e da nobreza,
passa a se subordinar às leis do mercado.
Mas a dimensão pessimista, embora presente em autores como Benjamin (1980),
Adorno e Arendt, não foi suficiente para impedir que pensadores, antes de Weber, diga-se de
7
Em Meaning Structures of Literary Art forms (2013, p. 152), vai afirmar que “(...) todo trabalho de arte
éessencialmente irracional”.
138 RABELO, Francisco Chagas E.; MASCARENHAS, Denise. Alfred Schütz e a sociologia da arte e da
literatura. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Revista da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES-Go. Vol.
02, nº 10, 135-145, Fev./Jul. 2014.
passagem, por exemplo, Schopenhauer e Nietzsche, proclamassem não apenas a autonomia, mas
também a sua soberania, na medida em que atribuíam às artes um papel emancipador (SIMMEL,
2001). Neste caso, arrisca-se a defender a ideia de que o processo de racionalização, que possa ter
afetado as artes se descola da experiência cotidiana para evidenciar o seu poder criador. De outro
modo, o processo de racionalização fica subsumido ao processo de criação. Segundo Schütz (2003,
p. 188), em O mundo como vontade e como representação, Schopenhauer (apud SCHÜTZ, 2003)
alude à célebre definição de Leibniz sobre a música: “Música é uma atividade aritmética oculta de
uma mente que não sabe que está contando”, o que sugere a ele uma paráfrase ajustada a seu
sistema de pensamento: “Música é uma atividade metafísica oculta de uma mente que não sabe que
está filosofando”. Da afirmação de Leibniz, pode-se pensar que a ideia da arte como uma atividade
sublimada, pura/perfeição, livre de todos os condicionamentos, permanece não mais como um
fervor religioso, mas por um arrebatamento racionalista. De um lado, a maior expressão da
racionalidade, de outra a maior expressão da subjetividade. Para além das modestas conclusões que
tentamos sugerir, seria importante não perder as que Schütz sugere, quando afirma: “Se
Schopenhauer está certo, como creio, então Mozart foi uma das maiores mentes filosóficas que
possam ter existido” (p. 188). Acrescentando:
Goethe, com sua perspicácia infalível, advertiu o gênio de Mozart, e o que disse a
Eckermann em sua carta de 11 de março de 1828 continua sendo o maior tributo que tenha
sido atribuído a ele: «Que outra coisa é o gênio se não a força produtiva que cria novas
realidades capazes de subsistir ante Deus e a natureza e que, por esta mesma razão, têm
consequências e perduram? Todas as obras de Mozart são deste tipo; contêm um poder
criador cuja eficácia perdurará no futuro de uma geração para outra, sem esgotar-se nem
consumir-se (idem).
Fica evidente, portanto, a tese central da fenomenologia da obra de arte como criadora
de sentido e expressão da subjetividade do artista. Enfim, parece sugerir que a mente que cria arte,
não sabe que está criando. Em vista disso, ela se coloca acima de seus condicionamentos, de outro
modo, como criação pura e, nesta medida mesma, autônoma e soberana. Também é preciso
sublinhar que talvez não seja gratuito que o possível diálogo entre Benjamin, Adorno e Arendt não
passe apenas pelas ideias um tanto abstratas de autonomia e soberania, mas pelo dado real e
concreto de sua eficácia duradoura, sem esgotar-se e consumir-se. Lembrem-se de Arendt, quando
afirma:
Talvez a principal diferença entre a sociedade e a sociedade de massas esteja em que a
sociedade sentia necessidade de cultura, valorizava e desvalorizava objetos culturais ao
transformá-los em mercadorias e usava e abusava deles em proveito de seus fins
mesquinhos, porém não os “consumia”. (p. 257/8).
139 RABELO, Francisco Chagas E.; MASCARENHAS, Denise. Alfred Schütz e a sociologia da arte e da
literatura. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Revista da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES-Go. Vol.
02, nº 10, 135-145, Fev./Jul. 2014.
Queremos trazer a contribuição de Schütz não apenas contemplando este aspecto mais
geral, no que diz respeito a autonomia e soberania da obra de arte, mas também a análise que faz da
experiência artística e, de forma mais restrita, da experiência musical. A ideia de experiência não
está aí colocada como uma habilidade, ou, pelo menos, como uma habilidade apenas. Experiência
como expressão subjetiva do fazer, do operar o cotidiano, inclusive da experiência estética do
indivíduo. Para ilustrar, tomemos a seguinte afirmação do autor:
Em termos mais gerais, o músico que vai executar uma peça musical
desconhecida, ele o faz a partir de uma situação determinada historicamente,
no caso dele, autobiograficamente─; determinada pelo acervo de
experiências musicais de que dispõe na medida em que são tipicamente
significativas para a nova experiência prevista que se abre para ele. Este
acervo de experiências refere-se indiretamente a todos os seus semelhantes,
passados e presentes, cujas ações ou pensamentos ajudaram a construir o seu
conhecimento. Isso inclui o que ele aprendeu com seus professores e
professoras, de seus familiares; o que tem tomado da execução de outros
músicos; e o que se apropriou de manifestações pensamento musical do
compositor. Assim, a maior parte do conhecimento musical ─ como do
conhecimento geral ─ é social na origem. E dentro desta compreensão de
conhecimento de origem social se destaca o conhecimento transmitido por
aqueles a quem têm sido atribuído o prestígio da autenticidade e autoridade,
ou seja, os grandes compositores e intérpretes reconhecidos de seu trabalho. O
conhecimento musical transmitido por eles não é apenas a origem social, mas
também socialmente aprovado, já que é considerado autêntico e, portanto, mais
que o conhecimento de outra origem (p. 161).
No texto, ficam evidentes, primeiro, que a visão de Schutz foi formulada em oposição a
uma visão objetivista da realidade social, cujo maior representante é Durkheim e sua escola,
representada pelas formulações de Maurice Halbwachs (1997). Nesta perspectiva objetivista,
defendia este autor que a estrutura social do processo social se assentava na memória coletiva.
Afirma Schutz:
É bem conhecida a posição básica de Halbwachs, que presuponha que todos os
tipos de memória são determinados por um contexto social, e que não é
possível conceber a memória individual sem tomar como certa a existência
de uma memória coletiva da qual deriva toda a lembrança individual. Este
princípio básico ─ de cuja crítica não nos ocuparemos ─ foi aplicado ao
problema da comunicação musical, porque o autor mencionado pensou que a
estrutura mesma da música ─seu desenvolvimento dentro do fluxo temporal,
seu estranhamento a respeito do que dura, sua realização por re-criação ─
oferece uma excelente oportunidade para mostrar que a única possibilidade
de preservar um conjunto de lembramças com todas os seus matizes e detalhes
residem na memória coletiva (p. 156).
140 RABELO, Francisco Chagas E.; MASCARENHAS, Denise. Alfred Schütz e a sociologia da arte e da
literatura. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Revista da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES-Go. Vol.
02, nº 10, 135-145, Fev./Jul. 2014.
E mais, acrescenta ele: “(...) Halbwachs concluiu que o que torna possível transmitir a
música é, antes de tudo, a possibilidade de traduzi-la a símbolos visuais, isto é, o sistema de notação
musical” (p. 156). Disso decorre que a cultura musical objetivada em símbolos visuais é relativa
àqueles que a cultivam e a
dominam, a sociedade dos músicos cultos. Enfim, trata-se do caráter
social da música, e acrescenta Schütz, «dos músicos», interpretando a afirmação de Halbwachs: “Il
n’y a pas que la musique des musiciens (1997, p. 32).
Diferentemente, Schütz centraliza sua abordagem na experiência intersubjetiva entre
o compositor, intérprete (músico) e ouvinte, que recorrem a seu acervo à mão, tal como na vida
cotidiana, para assegurar a experiência musical.
A pesquisa fenomenológica e a intersubjetividade nos romances de Goethe
Segundo Barber (2013), no verão de 1948, enquanto fazia o translado entre os Estados
Unidos e Europa, Schütz produziu dois manuscritos sobre os romances de Goethe, Os anos de
aprendizado de Wilhelm Meister e A viagem de Wilhelm Meister. Ambos permaneceram sem
publicação até recentemente e fazem parte do volume Collected Papers VI. Literary Reality and
Relationship, citado anteriormente. Segundo o autor da apresentação desta obra, estes manuscritos
dão ao leitor uma ideia exata da interpretação que Schütz faz das obras de Goethe, mostrando a
evolução de uma biografia através de várias etapas de aprendizagem, eventos inesperados que
mudam seu curso, perdas e renúncias que são inerentes ao processo vital e a coragem para superar
os ciclos depressivos (p. 314). É nesta direção, que Schütz inicia seu texto: “A chave para entender
Wilhelm Meister está na questão da necessidade e do acidental, do determinismo e do livre arbítrio,
que Goethe elege como central em sua poesia e pensamento” (p. 314), muito bem apreendida na
formulação de que em primeiro lugar se é livre e, em segundo, escravo (p. 120). Mas,
fundamentalmente, trata da relação dialética entre arte e vida que permanece sem resolução na obra.
Os vários planos da obra de Goethe se presta com muita facilidade à análise
fenomenológica e Schütz se utiliza muito bem disto, criando seus próprios planos ora comentando o
texto ora reproduzindo-o e, por fim, fazendo sua própria interpretação. Apropriando-se de aforismas
presentes na obra de Goethe sobre os impasses da experiência vivida, já apontados, conclui ele: “Se
esta teoria está correta, então Wilhelm Meister Apprenticeship não é um romance em sentido
estrito, graças a Deus. Contém o drama de Mariana, Mignon, do harpista, e muitos outros também.
Todavia, resumindo: “O herói não tem plano, mas o jogo é plenamente planejado’ (p. 330)”.
141 RABELO, Francisco Chagas E.; MASCARENHAS, Denise. Alfred Schütz e a sociologia da arte e da
literatura. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Revista da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES-Go. Vol.
02, nº 10, 135-145, Fev./Jul. 2014.
Ainda no final do primeiro texto, são feitos alguns comentários sobre Os anos de
viagem de Wilhelm Meister ou renúncias (2013). Aqui, a análise se volta para o drama e, diz
Schütz, para o próprio romance. Na inicial do texto, torna evidente o que havia dito anteriormente,
quando argumenta que ainda é a realidade concreta que está sendo problematizada, mas tudo que
acontece no mundo real torna-se signos, cifras com uma significação secreta. Esta interpolação de
planos sugere a ele a pertinência da pesquisa fenomenológica, isto é, do enfrentamento das
realidades múltiplas8. Comentário completamente dispensável, caso não ensejasse uma outra
questão, qual seja, que os planos que se cruzam não são externos ao romance, mas se constituem na
sua própria técnica de construção.
Mas qual o significado destes planos? Reduzindo a argumentação do autor a termos
muito simplificados, constatamos que não se trata da descrição da ordem do mundo, mas do
labirinto da convicção e destino humanos. Afirmava, então, que: “Isso serve, por enquanto, como
um exemplo para uma técnica encontrada repetidamente, totalmente consciente de omitir o factual
irrelevante. O conteúdo do romance não é o caminhar insólito no mundo real, mas o vaguear
metafórico na esfera simbólica e o motivo intimamente ligado da renúncia” (p.336), ou seja, a
viagem do autoconhecimento é também uma viagem religiosa, na qual está subsumida uma
experiência estética. Segundo Schütz (p. 336/7), o simbolismo desta experiência tem seus planos e
suas hierarquias. O que leva o autor a formular a doutrina das três reverências. A primeira
relaciona-se com o que está além de nós, ou seja, a experiência religiosa de cada povo, que é, ao
mesmo tempo, de todos os povos, expressa no ato de cruzar os braços sobre o peito. A segunda
remete ao que está abaixo de nós, ou seja, à nossa própria experiência com o mundo, expressa por
meio do gesto de colocar as mãos para trás e para baixo com o sentido de mostrar a relação
intrínseca do indivíduo com a terra, que proporciona a alimentação, divertimento, mas também
sofrimento. E a terceira acompanha a segunda, em que, num ato de coragem, se dirige aos seus
semelhantes, ligando-se a eles e, assim, posicionando-se diante do mundo. E, dessa forma, as
dimensões transcendental, natural e social são devidamente delineadas.
O nível de detalhe que alcança o ensaio de Schütz dificulta a apreensão dos traços
fundamentais de sua análise9, notadamente da dimensão intersubjetiva que permeia o romance.
Talvez, porque, ao acompanhar todo o desenrolar da narrativa, ela fale por si mesma. É a Barber
que atribuímos esta tarefa um tanto árdua:
8
A interpolação não se esgota nestes planos. Ela se manifesta também nas constantes remissões ao passado (passadopresente), ao narrador-leitor, ao particular-universal, à realidade ou experiência cotidiana e transcendência.
9
É consensual entre os comentadores de Schütz, que ele não teorizou sobre literatura, embora os textos que tomam a
literatura como objeto de reflexão e análise ilustram muito bem a leitura que faz.
142 RABELO, Francisco Chagas E.; MASCARENHAS, Denise. Alfred Schütz e a sociologia da arte e da
literatura. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Revista da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES-Go. Vol.
02, nº 10, 135-145, Fev./Jul. 2014.
A constituição de um romance é uma construção intersubjetiva maciça
desenvolvida por personagens, leitores e autor, todos em relacionamento uns
com os outros e ao longo do tempo. Por fim, a teoria da ação que Schütz
explicita, neste grande ensaio, apreende como obstáculos inesperados
impedem ações planejadas ou tornam possíveis resultados inesperados, e as
análises da literatura de Schutz, seja os romances de Goethe seja as tragédias
de Shakespeare, são muitas vezes baseadas apenas em tais ocorrências. Em
resumo, este primeiro ensaio extenso apresenta um retrato da natureza
fundamental da experiência humana, incluindo o relacionamento eu-tu, planos
plurais de experiência, a passagem do tempo, a interpretação em perspectiva, e
ação e seus impedimentos, os quais são ou temas centrais em literatura ou os
tipos de estruturas que a tornam possível (BARBER, 2013, p. 2).
A análise exemplar de Dom Quixote
A análise que Schütz faz de Dom Quixote é considerada exemplar da pesquisa
fenomenológica da literatura, em que se aplica a ideia das múltiplas esferas da realidade. É
sugestiva também a aplicação do modelo: autor, escritor/personagens, leitor, tal como havia feito
nos ensaios sobre os romances de Goethe já comentados neste trabalho. Há entre eles um curto
intervalo de tempo10, mas suficiente para tornar seus construtos mais delineados e operativos.
Fundamentalmente, a nosso ver, o papel do escritor, Cervantes no caso, adquire uma estatura que
não se nota nos textos de 1948, embora a importância de Goethe não seja, de maneira alguma,
subestimada. É o escritor, então, que opera a passagem de um plano significativo a outro como se
fosse um mágico ou, em termos mais próximos de suas intenções, um encantador, um artista. Assim
sendo, o que permite ao leitor compreender o mundo de Sancho Pança e o mundo de Dom Quixote,
em que o mesmo objeto é visto ora como uma bacia de barbeiro ora como um capacete, é o papel
criador do artista. Enfim, os planos de significação são fechados, como são definidos na teoria da
realidade múltiplas, mas que, ao defini-la nestes termos, não se proclama que sejam monolíticos ou
que os agentes sociais vivam em um mundo solipsista. O que desencadeia a questão central do
ensaio, qual seja, como é possível que um e outro continuem crendo na realidade do subuniverso
fechado que escolheu como refúgio, apesar das diversas erupções que os transcendem?
A resposta já foi adiantada, mas resta o trabalho da composição. O primeiro passo,
segundo Schütz, é o exame do mundo da cavalaria de Dom Quixote, isto é, como esse mundo se
constitui como realidade. Trata-se de uma narrativa e é deste recurso que o autor, Cervantes, lança
mão para fazer valer a existência do mundo da cavalaria descrito pelo personagem. Os relatos valem
como uma verdade certa e a questão que fica em suspenso é por que, na realidade de nossa atitude
natural, damos crédito a eventos históricos. O mundo da cavalaria é fechado em si mesmo. Os livros
10
Dom Quixote e o problema da realidade foi apresentado em seminário da New School for Social Research em
dezembro de 1952.
143 RABELO, Francisco Chagas E.; MASCARENHAS, Denise. Alfred Schütz e a sociologia da arte e da
literatura. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Revista da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES-Go. Vol.
02, nº 10, 135-145, Fev./Jul. 2014.
que discorrem sobre este subuniverso trazem o selo real, de cuja autoridade ninguém duvida, e são
respaldados por documentos, monumentos, testemunhos vários e uma tradição ininterrupta. O que,
para Schütz, significa que os argumentos de Dom Quixote seriam similares aos nossos. Opera-se,
assim, uma fusão do escritor e personagem e leitor. Ao afirmar que ele é fechado em si mesmo, ele
quer dizer que o mundo da cavalaria é autônomo, pois não apenas constitui um modo de vida, mas
também uma ciência, além de constituir um sistema legal e econômico. E dele, emerge um membro
completo de uma sociedade de cavalaria. A existência deste mundo também atende as categorias
básicas do pensamento em termos de tempo, espaço e causalidade. E por fim, afirma o autor:
Tudo isto é obra dos artistas, tanto protetores quanto inimigos, que no subuniverso de Dom
Quixote desempenham o papel de causalidade e motivação. Sua atividade é a categoria
básica da interpretação do mundo que faz Dom Quixote, e sua função é traduzir a ordem do
âmbito da fantasia aos âmbitos da experiência comum, transformar, por exemplo, os
gigantes reais, que são atacados por Dom Quixote, em moinhos de vento ilusórios (p. 137).
Em seguida, opera uma das sínteses mais completa do pensamento sociológico
contemporâneo, no que diz respeito ao papel dos artistas e do escritor em sentido estrito. Diz:
Assim, as atividades dos artistas têm como função garantir a coexistência e compatibilidade
dos vários subuniversos de sentido que se referem aos mesmos fatos, e assegurar o caráter
de realidade de qualquer um dos vários subuniversos. Não há nada que permaneça
inexplicável, paradoxal ou contraditório, enquanto se reconhece as atividades do artista
como um elemento constitutivo do mundo (p. 137).
A analogia com a experiência cotidiana vai sugerindo, ao longo do texto, outros passos
que exigem de Schütz um poder analítico não menos relevante que o primeiro. O mundo privado da
fantasia de Dom Quixote não é um mundo isolado e, ao entrar em contato como outros mundos
privados, os conflitos de interpretação são inevitáveis, mas não pode perder a dimensão de realidade
necessária enquanto mundo, que Cervantes assegura ao afirmar, e as palavras são de Schütz, que os
demais participantes decidem por lhe seguir o humor. A experiência subjetiva não se resume,
entretanto, às relações face a face. Cervantes faz intervir, no mundo relacional de Dom Quixote,
construído de maneira fictícia, o leitor que, por não poder assinalar um acento de realidade a
experiência de Dom Quixote, nos termos de Schütz, não vai constituir com ele um universo de
discurso, e mais, nem podem estabelecer com ele uma verdadeira relação social. Configura-se então
a tragédia de Dom Quixote, mas é também a tragédia da obra de arte, na medida que a dimensão de
realidade não se resolve. E não se resolve, pois se trata de um tipo distinto do que encontramos na
vida cotidiana, pois o público (espectadores, leitores, etc.) não pode nele intervir. E completa
Schütz: “(...) devemos sofrê-la ou gozá-la, mas não estamos em condições de nela intervir, de
144 RABELO, Francisco Chagas E.; MASCARENHAS, Denise. Alfred Schütz e a sociologia da arte e da
literatura. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Revista da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES-Go. Vol.
02, nº 10, 135-145, Fev./Jul. 2014.
modificá-la mediante nossas ações. Talvez seja esta uma das raízes da estrutura fenomenológica
singular da experiência estética (...)” (p. 146).
Considerações finais
A intenção original de analisar os textos, precisamente três, sobre arte e literatura, já
conhecidos, à luz dos construtos da fenomenologia e, especificamente, de um deles, isto é,
realidades múltiplas, compondo, portanto, um quarto texto, em vista de acompanhar o trabalho
interpretativo de Schütz. O contato com os Collected Papers VI. Literary Reality and Relationship,
editado por Michael Barber (2013), nos permitiu conhecer uma discussão que já se estendeu para
muito além desses textos11. A incorporação dos termos da discussão foi modesta. Situamos os dois
textos de Goethe da coletânea, mas o aprofundamento foi reduzido, ficando dois outros, Meaning
structures of literary art forms e Meaning structures of drama and opera, sem o devido tratamento
que o pensamento de Schütz merece. O que nos obriga a empreender um novo estudo, tão logo este
seja encaminhado para a publicação.
Se o resultado desta primeira aproximação sugere uma definição em suspenso, este é o
sentido do uso do termo talvez (Talvez seja esta uma das raízes da estrutura fenomenológica
singular da experiência estética), mais do que propriamente a dúvida por parte de Schütz, a
discussão por nós desenvolvida pode não ser assim tão rudimentar, na medida que constata que sob
a égide das realidades múltiplas subjaz a dialética da intersubjetividade que as identifica como
realidade, permitindo aos sujeitos vê-las como naturais e, assim, constituir a experiência cotidiana.
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11
A referência à coletânea de Michael Barber e Jochen Dreher, The interrelation of phenomenology, social sciences and
the art (2014), que apresenta os resultados da Conferência de Constança, já citada, é também ilustrativa do esforço
acadêmico neste sentido.
145 RABELO, Francisco Chagas E.; MASCARENHAS, Denise. Alfred Schütz e a sociologia da arte e da
literatura. Estácio de Sá – Ciências Humanas. Revista da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES-Go. Vol.
02, nº 10, 135-145, Fev./Jul. 2014.
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(ADORNO, 1968) ou o ano serão identificados por uma letra depois da data. Ex.: (PARSONS,
1967ª), (PARSONS, 1964b).
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data. Ex.: GIDDENS, Anthony. Novas regras do método sociológico. Rio de Janeiro, Zahar,
1978. Solicita-se observar rigorosamente a sequência e a pontuação.
b) No caso de coletânea: SOBRENOME, Nome. Título não sublinhado. In: SOBRENOME,
Nome, org. Título do livro sublinhado. Local de publicação, editora, data, p. ii-ii. Ex.:
FICHTNER, N. A escola como instituição de maltrato infância. In: KRINSKY, S., org. A
criança maltratada. São Paulo, Almeida, 1985. p. 87-93. Solicita-se observar rigorosamente
a sequência e a pontuação.
c) No caso de artigo: SOBRENOME, nome. Título do artigo. Título do Periódico
Sublinhado, local de publicação, número do periódico (número do fascículo): página inicialpágina final. Mês(es) e ano de publicação. Ex.: CLARK, D. A. Factors influencing the
retrieval and control of negative congnotions. Behavior and Therapy, Oxford, 24(2): 151-9.
1986. Solicita-se observar rigorosamente a sequência e a pontuação.
d) No caso de tese acadêmica: SOBRENOME, Nome. Título da tese sublinhado. Local,
data, número de páginas, dissertação (Mestrado) ou Tese (Doutorado). Instituição em que foi
defendida. (Faculdade e Universidade). Ex.: HIRANO, Sedi. Pré-capitalismo e capitalismo:
a formação do Brasil Colonial. São Paulo, 1986, 403 p. Tese (Doutorado). Faculdade de
Filosofia Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. Solicita-se observar
rigorosamente a sequência e a pontuação.
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