COMPOSIÇÃO VIVA

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COMPOSIÇÃO VIVA
COMPOSIÇÃO VIVA
DIMITRI CERVO – BRASIL E MINIMALISMO
Compositor e pianista, Dimitri Cervo participou dos cursos de composição (com Franco Donatoni) e
música para cinema (com Ennio Morricone) na Accademia Chigiana de Siena (Itália), e aprofundou seu
contato com a música minimalista em Seattle (EUA). A partir de 1997, começou a desenvolver uma estética
pessoal, fundindo elementos da música brasileira com feições do Minimalismo. Como resultado dessa fusão,
surgiu a sua série de obras intituladas "Série Brasil 2000". Em 2006, lançou com grande êxito seu CD
Toronubá, recebedor do prêmio Açorianos de melhor CD erudito. Suas obras já foram apresentadas em todos
os estados brasileiros, e em países como Estados Unidos, Argentina, Paraguai, Portugal, França, Alemanha,
Bulgária, Grécia, Suíça, Noruega, Israel e Sérvia.
Opus Dissonus - Comecemos pelo óbvio, qual ou quais os pontos atrativos do minimalismo em música na
sua opinião?
Dimitri Cervo - A possibilidade de se fazer música genuinamente moderna sem abdicar de um centro tonal
ou modal. A possibilidade de se fazer música de outra forma, passando bem longe dos condicionamentos
demasiado intelectualistas que conduziram boa parte da música de concerto do século XX ao pântano da
esterilidade. Outro ponto atrativo é a novidade estética e conceitual que o Minimalismo abriu, incorporando
princípios filosóficos e musicais de culturas musicais não ocidentais, especialmente da África, Indonésia e
Índia. Como disse Philip Glass em sua recente palestra em Porto Alegre (realizada em setembro de 2008),
desde Schoenberg e Stravinsky, nada realmente novo havia surgido na cena musical do século XX, até o
advento da música repetitiva. Eu concordo em grande parte com essa afirmação.
Opus Dissonus - Que obras e compositores você acha que melhor introduzem o ouvinte ao minimalismo?
Dimitri Cervo Steve Reich – Piano Phase, Music for 18 Musicians
Philip Glass – Music in Twelve Parts, Einstein on the Beach
Considerando um Minimalismo mais expandido podemos pensar também em compositores como Arvo Pärt,
John Adams e Michael Torke.
Opus Dissonus - Como se deu seu primeiro contato com a arte de compor?
Dimitri Cervo - Ali pelos 12 anos, através de improvisações ao piano, que gradualmente foram tomando
forma, anotadas na pauta, tornando-se as minhas primeiras composições.
Opus Dissonus - Como funciona seu processo de composição?
Dimitri Cervo - Existe uma chispa, uma idéia musical inicial, através da qual geralmente eu vislumbro toda a
obra. É como uma semente com excelentes possibilidades de desenvolvimento. Anoto essas idéias musicais
que considero promissoras em um caderno de esboços e depois trabalho sobre elas. A partir daí é como cuidar
e desenvolver essa semente para gerar uma bela árvore. Para isso é necessário trabalho, tempo e dedicação, e
também algo que advém da própria natureza. É como se o compositor guiasse o desenvolvimento da obra, que
tem quase vida própria e auto-regula o seu desenvolvimento. O compositor testemunha, coordena e se
maravilha com esse processo. Algumas obras eu escrevo em mergulhos profundos, dedicando-me oito ou
mais horas por dia, como Toronubá que compus em 15 dias. Já outras obras têm um processo de elaboração
mais lento, até de anos, como o Tema para Filme I, ou Canauê, por exemplo.
Opus Dissonus - Você trabalha em várias obras simultaneamente ou prefere acabar uma obra antes de
começar outra?
Dimitri Cervo - Por vezes me dedico a uma obra de cada vez, mas muitas vezes também trabalho em obras
diversas simultaneamente. Seja como for, sempre existe uma obra que está recebendo uma atenção exclusiva
ou maior em determinado momento.
Opus Dissonus - Você faz referência à influência dos rituais de candomblé na construção rítmica de sua
música, fale um pouco sobre como funciona essa rítmica aditiva africana.
Dimitri Cervo - No Ocidente pensamos em encaixar os valores rítmicos dentro de um compasso que é
dividido em 3 ou 4 tempos, etc. Na perspectiva aditiva, como encontrada nas tradições musicais da África e
da Índia, a estrutura rítmica é resultado de uma soma de unidades. Pense, por exemplo, em grupos de
3+4+3+3+2 gerando um ciclo de 15 pulsos. Esse pensamento de soma de unidades é a essência do ritmo
aditivo. Na música africana, muitas vezes não existe uma concordância entre os primeiros tempos de cada
linha. Existe um contraponto rítmico no qual as vozes são independentes e não estão sujeitas a um mesmo
“tempo forte.” Assim, podemos ter um ciclo de 15 pulsos em uma voz, juntamente com um ciclo de 11 pulsos
em outra voz, cada qual com acentuações diferentes. Esses ciclos com diferentes unidades e acentuações são
muitas vezes superpostos em várias vozes. Isso cria uma polifonia rítmica e uma riqueza de acentuações
incríveis.
Opus Dissonus - Na obra Toronubá há uma espécie de ritual, onde os intérpretes executam a obra descalços.
Por que? E existem alguns rituais, parecidos ou não, a serem cumpridos em outras das suas obras?
Dimitri Cervo - Toronubá é a mais ritualística das obras que escrevi, e ela é dedicada à memória dos índios
brasileiros que lutaram por sua sobrevivência após a invasão européia a partir de 1500. É uma obra que alude
metaforicamente a todos os tipos de resistência, por isso seu caráter heróico. Originalmente sugeri na partitura
que os percussionistas e o pianista tocassem de pés descalços (instrumentos de percussão, incluindo o piano,
representando o elemento indígena), para se oporem ao grupo de cordas (representando o homem
“civilizado”). Esses dois grupos em conflito e colaboração geram o drama, extremamente dialético e também
imponderável dessa obra. Fizemos de pés descalços a estréia no ano de 2001, no Theatro São Pedro em Porto
Alegre, e naquela noite foi tudo incrível, o teatro literalmente veio abaixo. A princípio a direção do teatro não
queria permitir que subíssemos ao palco com os pés descalços, pois era um concerto de música erudita com a
orquestra da casa, mas, uma vez explicado o seu significado, essa resistência foi vencida. Quando, mais tarde,
escrevi a versão para oito percussionistas e piano, sugeri que todos ficassem descalços, nesse caso, realmente,
apenas para fortalecer o aspecto ritualístico da peça, já que não existia o contraponto com o grupo de cordas.
Opus Dissonus - Você tem comentado que a Série Brasil 2000 é influenciada pelas Bachianas Brasileiras de
Villa-Lobos. No caso, a nona obra, Canauê, ela encerra a Série Brasil 2000 definitivamente? E há algum
outro projeto grande como esse sendo planejado para os próximos anos?
Dimitri Cervo - Sim, Canauê, finalizada em 2007, é a nona obra e encerra a Série Brasil 2000. Aconteceu
inesperadamente em 2008 de surgir Uguabê, para piano e cordas. Essa obra, inequivocamente, também
pertence à Série. Mas coloquei-a como sexta obra da Série, junto com Aiamguabê, pois é como se fossem
obras irmãs. Embora tenham sido compostas com seis anos de distância uma da outra, o parentesco musical
delas é indisfarçável.
Estou para começar outra série de obras, a Série Brasil 2010. A proposta estética será a mesma, mas
a característica principal dessa nova série será a instrumentação: serão obras para instrumentos solistas
acompanhados de orquestra de cordas, de câmara ou orquestra sinfônica. Essas obras terão mais de um
movimento, ao contrário das obras da Série Brasil 2000 que são todas em um movimento.
Opus Dissonus - A presença de influencias do que chamam “música popular” na sua obra parece ser visível,
você utiliza alguma divisão clara entre o que seria arte popular e arte erudita?
Dimitri Cervo - Na verdade eu tenho utilizado poucos elementos de origem folclórica ou popular em minhas
obras. Na verdade, o que existe é uma apropriação simbólica, raramente literal, de elementos que aludem ou
se parecem a algo desse tipo. Eu penso que a arte popular e erudita são os dois lados de uma mesma moeda.
Existem diferenças de face, mas o que as une é um todo mais forte.
Opus Dissonus - Qual função você atribui a música erudita na sociedade?
Dimitri Cervo - Eu penso que a música erudita sempre foi concebida por seus maiores criadores como um
instrumento de revelação, “uma revelação mais alta do que qualquer filosofia” como disse Beethoven. Então,
a chamada grande música esteve e está sempre atrelada a valores espirituais e de religare (no sentido original
da palavra). Essa música, produzida através de vibrações sattva, atua diretamente sobre os chakra superiores
do ser humano, de modo a despertar e desenvolver nele os ideais mais elevados do espírito humano.
Cada emanação musical tem uma qualidade vibratória específica. É claro que existe muita música
erudita de baixa qualidade vibratória, e que existem manifestações que não são de música erudita de alta
qualidade vibratória. Toda boa música tem o poder de trazer ao homem experiências significativas e
insubstituíveis, que podem inclusive nortear toda uma vida. Mas creio que se pegarmos o que de melhor foi
feito em termos de música erudita, nos daremos conta que a qualidade vibratória desse acervo como um todo
dificilmente poderá ser superada por qualquer outra manifestação musical no Ocidente.
Devemos ter cuidado com música de baixo ventre, de baixa qualidade vibratória, pois ao invés de
atingir e desenvolver os chakra superiores vai atingir os chakra inferiores, e apenas reforçar e atiçar os
impulsos mais basais e elementares do ser humano.
Opus Dissonus - Qual sua opinião sobre os limites da utilização de conceitos em uma obra, até onde ir?
Dimitri Cervo - Hoje em dia, quando a arte conceitual está no seu ápice, não creio que existam limites.
Opus Dissonus - Qual ou quais compositores exerceram maior influência em suas obras desde as primeiras
composições até hoje?
Dimitri Cervo - Eu poderia dizer quais os compositores que mais admiro, mas não sei até que ponto existe
uma influência direta da música deles sobre a minha. Mas posso citar compositores que muito admiro e me
tocam profundamente como Palestrina, Bach, Vivaldi, Beethoven, Scriabin, Stravinsky, Villa-Lobos, Steve
Reich, dentre muitos outros eruditos e não eruditos. Mas em termos de influência direta sobre minha música
não estou certo se é perceptível a influência de algum deles, excetuando os minimalistas.
Opus Dissonus - Algumas palavras aos aspirantes a compositor...?
Dimitri Cervo - Siga a sua intuição, uma intuição musical singular é a única coisa que um compositor
verdadeiramente possui. Procure a sua voz e não se preocupe com o que os outros vão pensar do que você fez.
Não se preocupe se o que está fazendo se parece ou não com algo que já tenha sido feito antes, apenas se
preocupe em se expressar de forma genuína, pois diversos compositores apoiaram-se na estética de outros
como ponto de partida, até alcançarem a sua voz própria. Escute e estude em profundidade as obras dos
grandes compositores, nada melhor do que as fontes diretas. Também procure oportunidades para ter suas
obras executadas, pois nesses momentos é quando mais se aprende. Quanto às dificuldades que possam surgir,
lembre-se de que muitos dos maiores compositores foram capazes de erguerem obras monumentais em
situações de grande adversidade.
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