Entre fissuras e escritas: Adriana Varejão e o devir mosca

Transcrição

Entre fissuras e escritas: Adriana Varejão e o devir mosca
ENTRE FISSURAS E ESCRITAS: ADRIANA VAREJÃO E O DEVIR MOSCA.
Antonio Almeida da Silva (UNICAMP/UEFS) e Waldirene de Jesus (UNICAMP)
Buscamos produzir uma escrita atravessada pelos encontros com a filosofia de Gilles
Deleuze e Felix Guattari (2012), especialmente o conceito de “devir”, com o trabalho da
artista plástica, Adriana Varejão, intitulado “Carnes e mares” (2009). Nosso procedimento de
escrita se faz pelo contágio, produzimos pensamentos e atravessamentos pelo encontro com a
experimentação com as obras, em constante exercício de não classificar, escapando de
qualquer armadilha que nos capture e nos prenda à representação ou enfatize o conceito.
Para Deleuze (1997, p.20) “(…) Devir é um verbo tendo toda sua consistência; ele não se
reduz, ele não se conduz a parecer, nem ser, nem equivaler, nem produzir”, o devir é ação
infinita, afecto ou intensidades vibratórias, que permite a composição no plano molecular,
pigmentos ou partículas de qualquer espécie.
“Às relações que compõem um indivíduo, que o decompõem ou o modificam,
correspondem intensidades que o afetam, aumentando ou diminuindo sua potência de agir,
vindo das partes exteriores ou de suas próprias partes. Os afectos são devires. ” (DELEUZE E
GUATTARI, 2012, p.42)
Adriana Varejão ao pintar e experimentar múltiplas materialidades e linguagens rasga sua
própria história, coexiste com a varejeira em um bloco de devir, cava a água, o sangue, o tubo
de tinta e o calcário, não se torna mosca e não se mantêm Adriana, entre a Adriana e a mosca
habitam uma multiplicidade de gente, uma multiplicidade que está sempre na espreita, tal
como uma mosca varejadora de histórias, mestiça animal-gente que pinta com pigmentos,
dimensões, geometrias que tomam o seu corpo através da obra.
Corpos, órgãos, peças, caças e presuntos encenam e dramatizam nos florais azuis dos
azulejos. O mar também quer estar na carne, desterritorializar-se para compor outros códigos.
Mares e carnes quase inseparáveis. O que tem de mar? O que tem de carne nas obras de
Adriana Varejão?
Adriana mergulha, especialmente, entre as carnes e mares, cria um novo verbo: Varejar.
Tal como uma mosca varejeira que não desassossega nunca ao observar um pedaço de carne,
ALEGRAR - nº16 - Dez/2015 - ISSN 18085148
www.alegrar.com.br
encontrando no azul do mar sua insanidade, paz, brisa, tranquilidade e criação. Adriana varre
estes símbolos para outro lugar. Aqui carne e mar não se opõem, mas se complementam.
Há certa escrita do/com corpo nas obras de Varejão. Apesar desse laboratório de
experimentação ser híbrido e polifônico há um elemento que atravessa toda sua obra: o corpo,
esteja ele disposto em pedaços, rasgado, borrado, dissolvido, esquartejado, desfigurado,
metamorfoseando em telas, paredes, azulejos, pessoas e objetos. Varejão encena uma
linguagem com o corpo. Um corpo do passado – corpo barroco, que se atualiza-se, virtualizase dando outros contornos.
A carne brota da sua pintura como uma ferida aberta, deixa vazar algo que estava cravado
e reprimido na tela, como se a pintura revelasse seus segredos e mistérios mais ocultos. A
pintura talvez quisesse dizer do que ela é feita, ou mostrar sua violência, sua agressividade.
Num desejo agonizante, periclitante de extirpar seus males e seus desejos.
Uma pintura – sempre em devir - que se releva por um desejo de ser um banquete de
vísceras, carnes expostas numa parede ou numa mesa de açougue. Vísceras saltam quase que
esbugalhadas numa vontade do contágio, na força de escapar-se de qualquer representação, e
se fazer outro corpo, se fazer fora do corpo, sem as algemas que aprisionam um corpo sem
órgão, sem moldura.
A obra de Adriana Varejão está quase toda contaminada pela carne. Carne, excrementos,
vísceras e sangue jorram em espasmos por todos os lados, drenam pela tela, e transbordam
pela pele. Carnes carnívoras (Dionea, Drosera e Nepenthes) com suas enzimas digestivas, elas
devoram e são devoradas pelo gesto.
Carnes exposta em um varal, carnes expostas nos azulejos, carne abatida, carnes contidas,
dobradas, penduradas, salgadas, secas, estorricadas pelo sol. Carnes embalsamadas para
permanecer frescas, numa aposta pela permanência e pela duração.
A tela varejada pode ser consumida e mostra seus “interiores inesperados”, novos
territórios, espaços i-lógicos, a-históricos e im-possíveis, uma superfície que anseia pelo
oxigênio, algo que esburaque, torne-a mais porosa e molecular, um vento.... “O próprio vento,
afinal como um afeto.” (PELBART, 2013, p.329)
ALEGRAR - nº16 - Dez/2015 - ISSN 18085148
www.alegrar.com.br
Nas suas obras não tem nada dado, nada revelado. Torna preciso desvendá-la, assim, a
artista nos dá apenas alguns elementos para que cada espectador possa construir a sua própria
história.
Arte e vida como ofícios, ofício de mosca e de artista, devir-varejar, interagenciamentos
como mar-Adriana ou sangue-mosca, inseparáveis no bloco mosca-artista-mar-carne-sangue,
um animal-máquina-de pintar que traz subversões da história tatuadas no seu próprio corpo.
Aqui o azulejo não é somente uma matéria para construir, projetar e compor uma
instalação, é muito mais do que isso. O azulejo aqui é pura linguagem, compõe um corpo,
estabelece uma relação, sem fixá-la, eterniza um destino, este que o presente escondia.
Em “carnes e mares” Adriana varejão abre seu laboratório da experimentação, artista
experimenta com o tempo, com a ilusão, cria um movimento contra histórico, resgatando
histórias marginais, ocultas, esquecidas, negligenciadas pela história tradicional.
Compondo com Varejão...
Para varejar entre palavras e permitir que nasça o desejo, que se estabeleçam devires,
rascunhamos esse texto, um cortar, deletar, recortar, reescrever e uma sobreposição de
palavras à quatro mãos e à todo resto do corpo...
Para permitir que se nasça o desejo é preciso ferver a água e perfurar a barriga!
Prepara-se a água numa temperatura de 36° C, prepara-se as macas, tesouras, bisturi, pinça
fórceps, emplastos, entre outros objetos cirúrgicos, ceda-se, anestesia-se, assepsia-se, contudo,
antes tem que se gorar e curetar o mal e dar lugar à imanência. A vida espera por esse
procedimento.
Perfura-se a barriga precisamente, 8 cm a 10 cm, com o bisturi em busca de suas vísceras,
de barriga aberta, invade-se o calo dos órgãos. Agora podemos explorar um pouco mais a sua
agonia. Acessamos não só as vísceras, mas corpos mutilados, musas, heróis e espécimes de
flora. Órgãos enfermos esperando por um corpo de afectos.
O que vejo é sangue? Vejo sangue! Vejo é sangue... É pele, órgãos, tintas, feridas,
cicatrizes e azulejos que sangram. Sangues jorram violentamente, transbordam e se deixam
vazar, jorram em espasmos para além da pele e para além da tela. O sangue reprimido e
contido pelo corpo deseja ser superfície e encenar a força da vida.
ALEGRAR - nº16 - Dez/2015 - ISSN 18085148
www.alegrar.com.br
Trava-se uma batalha entre tons e semitons de vermelho para azul, ambivalência,
desencontro, tudo é superado pelo desejo de experimentar violentamente com o corpo. A
violência arrebata a tela e deixa transbordar e vazar os limites da moldura. Não se pode mais
conter, a carne está viva! A carne adentra-se na parede? Ou a parede acasala a carne? Está
contido ou é conteúdo? Já não sabemos que come quem.
Nessa composição com os outros, carne- tela, sangue-tinta, se experimentam, produzindo
formas variadas, a depender mais ou menos das afecções estabelecidas, podendo ser duradora
ou fugaz. “As multiplicidades não param, portanto, de se transformar umas nas outras, de
passar umas pelas outras.” (DELEUZE e GUATTARI, 2012, p.33) Vísceras, corpos e seus
fragmentos se compõem em multiplicidades, mudando de natureza, escapando de certa
unificação ou compreensão.
“Como as variações de suas dimensões lhe são imanentes, dá no mesmo dizer que cada
multiplicidade já é composta de termos heterogêneos em simbiose, ou que ela não para de se
transformar em outras multiplicidades.” (DELEUZE e GUATTARI, 2012, p.33)
Sub-vertendo escritas, colocamos no final o problema que inspira esse texto, como quem
troca a cabeça de lugar, a estilo Varejão, um outro afeto, um outro respiro... Um vento calmo,
por favor!
Que tipo de escrita “carnes e mares” inventam e experimentam? Podem essa escrita
promover algum combate para esse tempo onde às coisas parecem que já estão
predeterminadas? O que pode as pinturas, fotografias, desenhos, esculturas e instalações de
Adriana Varejão diante da repetição, da representação, da homogeneização?
A obra de Adriana Varejão tenciona forças que nos convidam a pensar nas diferentes
possibilidades de compor narrativas experimentando múltiplas materialidades e linguagens.
Inventa outros sentidos e extrai outras composições, que estão sempre abertas, em busca de se
completar no encontro com o outro.
Carnes e mares ficam servidos à mesa como caldo, desafiando sempre o modelo racional e
a previsibilidade, nos dão elementos para o evisceramento da própria escrita, da extirpação
dos presentes que a sufocam, pré/pós-determinando passados e futuros. É preciso ter
estômago para que o peristaltismo inicie a digestão de nossos próprios limites, medos e
preconceitos.
ALEGRAR - nº16 - Dez/2015 - ISSN 18085148
www.alegrar.com.br
Referências
DELEUZE, Gilles. Mil platôs - capitalismo e esquizofrenia, vol. 4. São Paulo: Ed. 54, 2012.
PELBART, Peter P. O Avesso do niilismo: cartografias do esgotamento. São Paulo: n-1
edições, 2013.
VAREJÃO, Adriana. Entre carnes e mares. Between flesh and oceans. Rio de Janeiro:
Editora de Livros Cobogó Ltda, 2009.
ALEGRAR - nº16 - Dez/2015 - ISSN 18085148
www.alegrar.com.br