Revista do STJ 226 - Superior Tribunal de Justiça

Transcrição

Revista do STJ 226 - Superior Tribunal de Justiça
PUBLICAÇÃO OFICIAL
Revista
SUPERIOR
TRIBUNAL
DE JUSTIÇA
Revista
VOLUME 226
ANO 24
ABRIL/MAIO/JUNHO 2012
SUPERIOR
TRIBUNAL
DE JUSTIÇA
SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
Gabinete do Ministro Diretor da Revista
Diretor
Ministro Francisco Falcão
Chefe de Gabinete
Marcos Perdigão Bernardes
Servidores
Andrea Dias de Castro Costa
Eloame Augusti
Gerson Prado da Silva
Jacqueline Neiva de Lima
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Técnico em Secretariado
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Mensageiro
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Superior Tribunal de Justiça
www.stj.jus.br, [email protected]
Gabinete do Ministro Diretor da Revista
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Telefone (61) 3319-8003, Fax (61) 3319-8992
Revista do Superior Tribunal de Justiça - n. 1 (set. 1989) -. Brasília : STJ, 1989 -.Periodicidade varia:
Mensal, do n. 1 (set. 1989) ao n. 202 (jun. 2006), Trimestral a partir do n. 203 (jul/ago/set. 2006).
Repositório Oficial da Jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça. Nome do editor varia:
Superior Tribunal de Justiça/Editora Brasília Jurídica, set. 1989 a dez. 1998; Superior Tribunal
de Justiça/Editora Consulex Ltda, jan. 1999 a dez. 2003; Superior Tribunal de Justiça/ Editora
Brasília Jurídica, jan. 2004 a jun. 2006; Superior Tribunal de Justiça, jul/ago/set 2006-.
Disponível também em versão eletrônica a partir de 2009:
https://ww2.stj.jus.br/web/revista/eletronica/publicacao/?aplicacao=revista.eletronica.
ISSN 0103-4286.
1. Direito, Brasil. 2. Jurisprudência, periódico, Brasil. I. Brasil. Superior Tribunal de Justiça (STJ).
II. Título.
CDU 340.142 (81) (05)
Revista
MINISTRO FRANCISCO FALCÃO
Diretor
SUPERIOR
TRIBUNAL
DE JUSTIÇA
SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
Plenário
Ministro Ari Pargendler (Presidente)
Ministro Felix Fischer (Vice-Presidente)
Ministro Francisco Cesar Asfor Rocha (Diretor-Geral da ENFAM)
Ministro Gilson Langaro Dipp
Ministra Eliana Calmon Alves (Corregedora Nacional de Justiça)
Ministro Francisco Cândido de Melo Falcão Neto (Diretor da Revista)
Ministra Fátima Nancy Andrighi
Ministra Laurita Hilário Vaz
Ministro João Otávio de Noronha (Corregedor-Geral da Justiça Federal)
Ministro Teori Albino Zavascki
Ministro José de Castro Meira
Ministro Arnaldo Esteves Lima
Ministro Massami Uyeda
Ministro Humberto Eustáquio Soares Martins
Ministra Maria Thereza Rocha de Assis Moura
Ministro Antonio Herman de Vasconcellos e Benjamin
Ministro Napoleão Nunes Maia Filho
Ministro Sidnei Agostinho Beneti
Ministro Jorge Mussi
Ministro Geraldo Og Nicéas Marques Fernandes
Ministro Luis Felipe Salomão
Ministro Mauro Luiz Campbell Marques
Ministro Benedito Gonçalves
Ministro Raul Araújo Filho
Ministro Paulo de Tarso Vieira Sanseverino
Ministra Maria Isabel Diniz Gallotti Rodrigues
Ministro Antonio Carlos Ferreira
Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva
Ministro Sebastião Alves dos Reis Júnior
Ministro Marco Aurélio Gastaldi Buzzi
Ministro Marco Aurélio Bellizze Oliveira
Resolução n. 19/1995-STJ, art. 3º.
RISTJ, arts. 21, III e VI; 22, § 1º, e 23.
CORTE ESPECIAL (Sessões às 1ª e 3ª quartas-feiras do mês)
Ministro Ari Pargendler (Presidente)
Ministro Felix Fischer (Vice-Presidente)
Ministro Cesar Asfor Rocha
Ministro Gilson Dipp
Ministra Eliana Calmon
Ministro Francisco Falcão
Ministra Nancy Andrighi
Ministra Laurita Vaz
Ministro João Otávio de Noronha
Ministro Teori Albino Zavascki
Ministro Castro Meira
Ministro Arnaldo Esteves Lima
Ministro Massami Uyeda
Ministro Humberto Martins
Ministra Maria Thereza de Assis Moura
PRIMEIRA SEÇÃO (Sessões às 2ª e 4ª quartas-feiras do mês)
Ministro Castro Meira (Presidente)
PRIMEIRA TURMA (Sessões às terças-feiras e 1ª e 3ª quintas-feiras do mês)
Ministro Arnaldo Esteves Lima (Presidente)
Ministro Francisco Falcão
Ministro Teori Albino Zavascki
Ministro Napoleão Nunes Maia Filho
Ministro Benedito Gonçalves
SEGUNDA TURMA (Sessões às terças-feiras e 1ª e 3ª quintas-feiras do mês)
Ministro Herman Benjamin (Presidente)
Ministro Cesar Asfor Rocha
Ministro Castro Meira
Ministro Humberto Martins
Ministro Mauro Campbell Marques
SEGUNDA SEÇÃO (Sessões às 2ª e 4ª quartas-feiras do mês)
Ministro Sidnei Beneti (Presidente)
TERCEIRA TURMA (Sessões às terças-feiras e 1ª e 3ª quintas-feiras do mês)
Ministro Paulo de Tarso Sanseverino (Presidente)
Ministra Nancy Andrighi
Ministro Massami Uyeda
Ministro Sidnei Beneti
Ministro Villas Bôas Cueva
QUARTA TURMA (Sessões às terças-feiras e 1ª e 3ª quintas-feiras do mês)
Ministro Luis Felipe Salomão (Presidente)
Ministro Raul Araújo
Ministra Isabel Gallotti
Ministro Antonio Carlos Ferreira
Ministro Marco Buzzi
TERCEIRA SEÇÃO (Sessões às 2ª e 4ª quartas-feiras do mês)
Ministra Maria Thereza de Assis Moura (Presidenta)
QUINTA TURMA (Sessões às terças-feiras e 1ª e 3ª quintas-feiras do mês)
Ministro Jorge Mussi (Presidente)
Ministro Gilson Dipp
Ministra Laurita Vaz
Ministro Marco Aurélio Bellizze
Ministro Adilson Macabu*
SEXTA TURMA (Sessões às terças-feiras e 1ª e 3ª quintas-feiras do mês)
Ministro Og Fernandes (Presidente)
Ministra Maria Thereza de Assis Moura
Ministro Sebastião Reis Júnior
Ministra Alderita Ramos de Oliveira**
Ministro Vasco Della Giustina***
* Desembargador convocado (TJ-RJ)
** Desembargadora convocada (TJ-PE)
*** Desembargador convocado (TJ-RS) - até 16.5.2012
COMISSÕES PERMANENTES
COMISSÃO DE COORDENAÇÃO
Ministro João Otávio de Noronha (Presidente)
Ministro Castro Meira
Ministro Massami Uyeda
Ministro Jorge Mussi (Suplente)
COMISSÃO DE DOCUMENTAÇÃO
Ministra Laurita Vaz (Presidenta)
Ministro Teori Albino Zavascki
Ministro Sidnei Beneti
Ministro Herman Benjamin (Suplente)
COMISSÃO DE REGIMENTO INTERNO
Ministra Nancy Andrighi (Presidenta)
Ministro Napoleão Nunes Maia Filho
Ministro Og Fernandes
Ministro Humberto Martins (Suplente)
COMISSÃO DE JURISPRUDÊNCIA
Ministro Cesar Asfor Rocha (Presidente)
Ministro Gilson Dipp
Ministro Francisco Falcão
Ministra Maria Thereza de Assis Moura
Ministro Luis Felipe Salomão
Ministro Raul Araújo
MEMBROS DO TRIBUNAL SUPERIOR ELEITORAL
Ministra Nancy Andrighi (Corregedora-Geral)
Ministro Gilson Dipp (Efetivo)
Ministra Laurita Vaz (1º Substituto)
Ministro Teori Albino Zavascki (2º Substituto)
CONSELHO DA JUSTIÇA FEDERAL (Sessão à 1ª sexta-feira do mês)
Ministro Ari Pargendler (Presidente)
Ministro Felix Fischer (Vice-Presidente)
Ministro João Otávio de Noronha (Corregedor-Geral da Justiça Federal)
Membros Efetivos
Ministro Teori Albino Zavascki
Ministro Castro Meira
Juiz Mário César Ribeiro (TRF 1ª Região)
Juíza Maria Helena Cisne (TRF 2ª Região)
Juiz Roberto Luiz Ribeiro Haddad (TRF 3ª Região)
Juíza Marga Inge Barth Tessler (TRF 4ª Região)
Juiz Paulo Roberto de Oliveira Lima (TRF 5ª Região)
Membros Suplentes
Ministro Arnaldo Esteves Lima
Ministro Massami Uyeda
Ministro Humberto Martins
Juiz Daniel Paes Ribeiro (TRF 1ª Região)
Juiz Raldênio Costa (TRF 2ª Região)
Juiz André Nabarrete Neto (TRF 3ª Região)
Juiz Luiz Carlos de Castro Lugon (TRF 4ª Região)
Juiz Rogério Meneses Fialho Moreira (TRF 5ª Região)
SUMÁRIO
JURISPRUDÊNCIA
Corte Especial .............................................................................................................17
Primeira Seção.............................................................................................................97
Primeira Turma .........................................................................................................147
Segunda Turma .........................................................................................................241
Segunda Seção ...........................................................................................................355
Terceira Turma ..........................................................................................................391
Quarta Turma ............................................................................................................507
Terceira Seção............................................................................................................655
Quinta Turma ............................................................................................................699
Sexta Turma...............................................................................................................801
SÚMULAS ............................................................................................................................................................. 861
ÍNDICE ANALÍTICO ........................................................................................................................................... 871
ÍNDICE SISTEMÁTICO ...................................................................................................................................... 897
SIGLAS E ABREVIATURAS ............................................................................................................................. 903
REPOSITÓRIOS AUTORIZADOS E CREDENCIADOS PELO
SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA ............................................................................................................ 909
Jurisprudência
Corte Especial
AÇÃO PENAL N. 634-RJ (2010/0084218-7)
Relator: Ministro Felix Fischer
Autor: R H F
Advogado: Tiago Lins e Silva e outro(s)
Réu: A C F de M
Advogado: Eduardo de Moraes e outro(s)
EMENTA
Penal e Processual Penal. Ação penal originária. Queixa. Injúria.
Transação penal. Ação penal privada. Possibilidade. Legitimidade do
querelante. Justa causa evidenciada. Recebimento da peça acusatória.
I - A transação penal, assim como a suspensão condicional do
processo, não se trata de direito público subjetivo do acusado, mas sim
de poder-dever do Ministério Público (Precedentes desta e. Corte e do c.
Supremo Tribunal Federal).
II - A jurisprudência dos Tribunais Superiores admite a aplicação
da transação penal às ações penais privadas. Nesse caso, a legitimidade
para formular a proposta é do ofendido, e o silêncio do querelante não
constitui óbice ao prosseguimento da ação penal.
III - Isso porque, a transação penal, quando aplicada nas ações
penais privadas, assenta-se nos princípios da disponibilidade e da
oportunidade, o que significa que o seu implemento requer o mútuo
consentimento das partes.
IV - Na injúria não se imputa fato determinado, mas se formulam
juízos de valor, exteriorizando-se qualidades negativas ou defeitos que
importem menoscabo, ultraje ou vilipêndio de alguém.
V - O exame das declarações proferidas pelo querelado na
reunião do Conselho Deliberativo evidenciam, em juízo de prelibação,
que houve, para além do mero animus criticandi, conduta que,
aparentemente, se amolda ao tipo inserto no art. 140 do Código Penal,
o que, por conseguinte, justifica o prosseguimento da ação penal.
Queixa recebida.
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos os autos em que são partes as acima indicadas,
acordam os Ministros da Corte Especial do Superior Tribunal de Justiça, por
unanimidade, receber a queixa-crime, nos termos do voto do Senhor Ministro
Relator. Vencida na preliminar a Sra. Ministra Maria Thereza de Assis Moura.
Quanta à preliminar, os Srs. Ministros Gilson Dipp, Francisco Falcão, Laurita
Vaz, Teori Albino Zavascki, Castro Meira, Massami Uyeda, Humberto Martins
e Cesar Asfor Rocha votaram com o Sr. Ministro Relator.
Quanto ao mérito, os Srs. Ministros Gilson Dipp, Francisco Falcão,
Laurita Vaz, Teori Albino Zavascki, Castro Meira, Massami Uyeda, Humberto
Martins, Maria Thereza de Assis Moura e Cesar Asfor Rocha votaram com o
Sr. Ministro Relator.
Ausentes, justificadamente, as Sras. Ministras Eliana Calmon e Nancy
Andrighi e os Srs. Ministros João Otávio de Noronha e Arnaldo Esteves Lima.
Sustentaram oralmente o Dr. Sérgio Guimarães Riera, pelo querelante, e o
Dr. Alexandre Lopes de Oliveira, pelo querelado.
Brasília (DF), 21 de março de 2012 (data do julgamento).
Ministro Ari Pargendler, Presidente
Ministro Felix Fischer, Relator
DJe 3.4.2012
RELATÓRIO
O Sr. Ministro Felix Fischer: Trata-se de queixa ofertada por Roberto
Horcades Figueira, Ailton Bernardo Ribeiro, Alcides Pereira Antunes Neto,
Carlos Henrique Ferreira, Daniel Mahon Bastos, Delso Martins Castello,
José Murta Ribeiro Neto, Luiz Emmanuel Novaes, Ricardo Cravo Albin,
Roberto Ferreira Guimarães, Sandro Pinheiro Lima e Tito Sauret Cavalcanti
de Albuquerque em face de Antonio Carlos Flores de Moraes, Conselheiro do
Tribunal de Contas do Município do Rio de Janeiro, na qual lhe é imputada a
prática do crime inserto no art. 140, c.c. art. 141, inciso III, do Código Penal.
Narra a exordial que no dia 30 de março de 2010, durante reunião
do Conselho Deliberativo do Fluminense Futebol Clube, na presença de
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Jurisprudência da CORTE ESPECIAL
aproximadamente 300 (trezentas) pessoas, “o Querelado, quiçá influenciado
pela rivalidade política e desejo de ver eleita sua chapa nas próximas eleições do
Clube, ao discursar da tribuna, disparou aleivosias contra os Presidentes e VicePresidentes dessa agremiação, não deixando dúvidas que sua ação teve o fito de
denegrir e ofender a honra dos Querelantes.” (Fl. 05).
Eis, na íntegra, as declarações do querelado, constantes na queixa:
(...) o que ocorreu de forma deplorável foi a prática da continuidade das contas
deficitárias dos dirigentes dissipadores.
Na minha experiência de vida, em mais de 30 anos na administração pública,
poderia enquadrar o atual Presidente, se fosse aqui Brasília - Governador Arruda
é um santo - em mais de 30 anos da administração poderia enquadrar o atual
Presidente em pelo menos 2 crimes, sejam:
- no crime de responsabilidade por desrespeitar o inciso 17 do artigo 1º do
Decreto-Lei n. 201 de 1967. Esse Decreto-Lei diz: “ordenar ou autorizar a abertura
de crédito em desacordo com os limites estabelecidos pelo Senado Federal, sem
fundamento na lei orçamentária ou na de crédito”.
- ou de crime contra finanças públicas por não atender o art. 359-D do Código
Penal, por ordenar despesas não autorizadas por lei, sujeitando à pena de reclusão
de um a quatro.
Observe-se que a situação de hoje do Fluminense Football Club seria motivo
de penalidades sérias se estivéssemos sob a égide das normas das finanças
públicas (fl. 06).
Consta, ainda, que as declarações proferidas na sessão do Conselho
Deliberativo foram reproduzidas em matéria publicada no jornal “Extra” que
circulou no dia 1º.4.2010 (cópia juntada).
O querelado, notificado, apresentou resposta no prazo legal na qual aduziu
a precipitação dos autores que, a seu ver, deveriam ter se valido, preliminarmente,
do mecanismo disposto no art. 144 do Código Penal (pedido de explicações) para
“dirimir dúvidas acerca do real significado dos vocábulos empregados” (fl. 64).
Apontou indevida ausência de formulação, pelos autores, de proposta de
transação penal, a qual consistiria em direito do acusado. Sustenta, nesse ponto,
que a falta da referida proposta ocasionou vício insanável do feito. Assevera que
os institutos despenalizadores previstos na Lei n. 9.099/1995 são aplicáveis aos
procedimentos penais originários.
Sustenta, ainda nesta senda, que “somente os Querelantes, por serem os
únicos e verdadeiros titulares da ação penal privada, poderiam, e deveriam,
RSTJ, a. 24, (226): 17-95, abril/junho 2012
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REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
propor, dentro do prazo decadencial, a transação penal e, em não assim
procedendo, patenteou-se a falta de interesse de agir, o que torna imperativa a
rejeição liminar da inicial acusatória” (fl. 67). Ressalta que o Parquet não teria
legitimidade para propor a transação penal em substituição aos querelantes.
Com relação a este tópico, pleiteia, ao final, seja declarada extinta
a sua punibilidade nos termos do art. 107, inciso IV, do Código Penal.
Subsidiariamente, requer seja designada audiência preliminar em que se busque
a conciliação ou a formulação de posposta de transação penal.
Consignou a ilegitimidade de todos os querelantes, à exceção do então
Presidente da agremiação, Roberto Horcades Figueira.
Quanto ao mérito, afirmou que “decidiu subir à tribuna, na reunião
realizada entre os conselheiros, para apresentação de suas críticas, meramente
técnicas, aproveitando de sua vasta experiência, dentro da Administração
Pública, ocupando funções quase sempre ligadas às finanças” (fl. 72).
Aduz a existência de falhas no balanço patrimonial e nas demonstrações
contábeis do Clube, ressaltando o agravamento da situação financeira no período
da gestão do querelante.
Obtempera que a utilização da palavra dissipador não teve o intuito de
ofender os querelantes, e que foi utilizada em razão da conduta da direção
financeira que esbanjava em seus gastos, ignorando o grave problema da falta de
capital de giro do Clube.
Ainda com relação às suas declarações, tidas pelos querelantes como
injuriosas, esclarece:
a) Ao afirmar, segundo constou na inicial, que “se fosse aqui Brasília Governador Arruda é um santo”, objetivava-se tecer comentário de conteúdo
ácido sobre como a sociedade brasileira condena um homem público, sem
julgamento;
b) De fato, naquela oportunidade, o que apenas estava provado em relação ao
então governador Arruda seria a falta de transparência de suas contas;
c) Em seguida, o Respondente cingiu-se a comparar a legislação de
contabilidade pública com a privada, concluindo: “observem que a situação
de hoje no FFC seria motivo de penalidades severas contra seu dirigente, se
estivéssemos sob à égide das normas de Finanças Públicas. No entanto, pela
simples razão de o FFC ser uma entidade de Direito Privado, não justifica por si
só o fato de este Conselho Deliberativo aceitar uma administração tão desastrosa
como a que estamos presenciando na atualidade. Deve-se refletir no presente e
em um futuro breve, sobre esse fato, assim, espero e desejo”.
22
Jurisprudência da CORTE ESPECIAL
Resta claro que o Respondente procurou, dessa maneira, prevenir e aconselhar
os dirigentes da Instituição sobre as boas práticas da administração, não se
justificando inexistirem leis tão rígidas na parte privada, como há na pública, em
se tratando de hipóteses em que o orçamento não é respeitado e a prestação de
contas não é satisfatória.
Eis a real intenção do Respondente; não pretendeu ofender “A”, “B” ou “C”, mas,
apenas, dizer, dentro do campo da liberdade de expressão, que a administração
não poderia ser esbanjadora.
Sobre “dissipadores” - expressão que teria ofendido os Querelantes o verdadeiro significado, que pretendeu conferir o Respondente, é o de que
seriam “esbanjadores”, como se colhe no Dicionário Contemporâneo da Língua
Portuguesa Caldas Aulete, 2ª edição, Editora Delta, p. 1.127 e no sítio eletrônico
http://priberam.pt/dlpo/default.aspx?pal=dissipador.
Aludir que alguém gastou em excesso não traduz ofensa à honra, mormente
considerando que o palco de discussão e de explanação se cingia a uma reunião
do Conselho Deliberativo de um Clube de futebol, sendo inequívoco o tom crítico
da fala do Respondente. Não se pode tolerar tamanha suscetibilidade daquele
que, no exercício de suas funções como administrador de uma entidade privada,
é adjetivado como esbanjador. (Fls. 73-75).
Assevera a razoabilidade de suas críticas - que reitera serem realizadas tão
somente para o bem da agremiação - ao apontar a rejeição das contas do Clube
referentes ao exercício de 2010.
E, ao final, arremata:
Em síntese, a ausência do elemento subjetivo do tipo penal imputado ao
Respondente, já nessa fase processual, desnuda-se manifesta. Criticar a gestão
de um Clube de futebol, em reunião, dentro da sede do próprio Clube, em que se
discutia a finança da Instituição, não é ofender, não é atingir a honra de alguém.
Falar que fulano, em determinado lapso da gestão, foi esbanjador, em nítido tom
de crítica, não é ofender. Comparar a administração privada com a pública, em
nítido tom de crítica, também não é ofender, como se demonstrou, mediante
precedentes jurisprudenciais. (Fls. 77-78).
A d. Subprocuradoria-Geral da República manifestou-se pelo
reconhecimento da ilegitimidade ativa de onze dos doze querelantes e, com
relação ao remanescente, Roberto Horcades Figueira, para que lhe seja facultada a
possibilidade de oferecer proposta de transação penal nos termos do art. 76 da Lei
n. 9.099/1995.
Acolhido o parecer da douta Subprocuradoria-Geral da República, declarei a
RSTJ, a. 24, (226): 17-95, abril/junho 2012
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REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
ilegitimidade ativa de todos os querelantes, à exceção do Presidente do Clube, Roberto
Horcades Figueira e, por conseguinte, determinei a sua intimação para que
formulasse, caso entendesse possível, proposta de transação penal.
Eis a decisão:
É pacífica a jurisprudência desta Corte quanto à possibilidade de formulação
de proposta de transação penal pelo querelante em sede de ação penal privada
(APn n. 566-BA, Corte Especial, Rel. Min. Hamilton Carvalhido, DJe de 26.11.2009,
HC n. 31.527-SP, 6ª Turma, Rel. Min. Paulo Gallotti, DJ de 28.3.2005 e EDcl no HC n.
33.929-SP, 5ª Turma, Rel. Min. Gilson Dipp, DJU de 29.11.2004).
Ademais, verifica-se que a pena máxima cominada ao crime (injúria praticada
na presença de várias pessoas) descrito na exordial se insere no conceito de delito
de menor potencial ofensivo.
Portanto, dúvida não há de que se faz necessário franquear o exame da
possibilidade de oferta do benefício em comento pelo legitimado a promover a
persecutio criminis in iudicio.
Contudo, o exame da inicial acusatória evidencia, de plano, a necessidade de
ajustamento do polo ativo da ação penal e, consequentemente, da definição do
titular a quem cabe examinar se seria o caso de ofertar-se, ou não, a proposta de
transação penal (razão pela qual a correção do polo ativo da ação penal se mostra
necessária neste momento embrionário do procedimento).
Ressalte-se, desde logo, que a presente decisão limitar-se-á ao exame da
legitimação ativa para a propositura da ação, o que, a toda evidência, não implicará
qualquer manifestação acerca do meritum causae.
Pois bem, o fato veiculado na queixa refere-se à manifestação do querelado
durante uma reunião do Conselho Deliberativo do Fluminense Football Club, nos
seguintes termos:
(...) o que ocorreu de forma deplorável foi a prática da continuidade das
contas deficitárias dos dirigentes dissipadores.
Na minha experiência de vida, em mais de 30 anos na administração
pública, poderia enquadrar o atual Presidente, se fosse aqui Brasília Governador Arruda é um santo - em mais de 30 anos na administração
poderia enquadrar o atual Presidente em pelo menos 2 crimes, sejam:
- no crime de responsabilidade por desrespeitar o inciso 17 do artigo
1º do Decreto-lei 201 de 67. Esse Decreto-lei diz: ‘ordenar ou autorizar
a abertura de crédito em desacordo com os limites estabelecidos pelo
Senado Federal, sem fundamento na lei orçamentária ou na de crédito’.
- ou de crime contra finanças públicas por não atender o art. 359-D do
Código Penal, por ordenar despesas não autorizadas por lei, sujeitando à
pena de reclusão de um ano a quatro.
24
Jurisprudência da CORTE ESPECIAL
Observe-se que a situação de hoje do Fluminense Football Club seria
motivo de penalidades sérias contra seus dirigentes se estivéssemos sob a
égide das normas das finanças públicas (fl. 06).
Depreende-se do excerto acima transcrito que as ofensas teriam sido irrogadas,
na ótica dos querelantes, ao Presidente do Clube, bem como a seus “dirigentes”.
Com efeito, como bem destacado pela eminente representante do Ministério
Público Federal, os dados declinados na exordial assim como os documentos
a ela juntados só permitem a identificação do primeiro (o então presidente da
agremiação, o Sr. Roberto Horcades Figueira). Os dirigentes referidos, por outro
lado, não são passíveis de identificação.
Assim, avulta dos autos que, para a identificação dos demais, seria necessário,
nesse contexto, que os outros querelantes tivessem comprovado a condição de
dirigentes, e, ainda, se utilizado do expediente previsto no art. 144 do Código
Penal, denominado pedido de explicações, para sanar qualquer dúvida quanto ao
alcance das afirmações proferidas pelo querelado.
Neste sentido, confira-se o seguinte precedente emanado desta Corte:
(...)
Impende asseverar, por outro lado, que o reconhecimento da ilegitimidade
ativa não decorre somente da ausência de indicação do nome dos querelantes
nas declarações do querelado, mas sim da falta de elementos que permitam
identificá-los como sendo os referidos dirigentes da mencionada agremiação
desportiva. (Fls. 101-104).
A decisão transitou em julgado. O querelante, por sua vez, quedou-se inerte
quanto à formulação de proposta de transação penal (fl.112).
Desse modo, os autos foram encaminhados ao Parquet que, por meio
do Procurador-Geral da República, opinou pela sua ilegitimidade para oferecer
proposta de transação penal em substituição ao querelante e, quanto ao mérito,
pelo recebimento da queixa em parecer assim ementado:
Queixa-Crime. Crime de injúria. Utilização de expressão ofensiva pelo
querelado contra o querelante, amoldando-se os fatos ao tipo penal. Infração
de menor potencial ofensivo. Artigo 76 da Lei n. 9.099/1995. Querelante que não
se manifesta sobre eventual oferecimento de proposta de transação penal, não
podendo o Ministério Público Federal atuar em seu lugar para tal fim. Satisfação
dos requisitos do artigo 41 do Código de Processo Penal. Presença da intenção
do querelado de ofender a honra do querelante. Parecer pelo recebimento da
queixa. (Fl. 123).
É o relatório.
RSTJ, a. 24, (226): 17-95, abril/junho 2012
25
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
VOTO
O Sr. Ministro Felix Fischer (Relator): Antes de adentrar o exame da
admissibilidade da acusação faz-se necessário enfrentar as preliminares levantadas
pela defesa.
Com relação à apontada ilegitimidade de alguns dos querelantes, conforme
ressaltado no relatório, a matéria já foi resolvida, ocasião em que se ajustou o polo
ativo da ação penal, nele mantendo-se somente Roberto Horcades Figueira, então
Presidente do Fluminense Futebol Clube. Dessa decisão, vale lembrar, não houve
qualquer recurso.
A preliminar remanescente trata da ausência de formulação de proposta de
transação penal por parte do querelante, que intimado, deixou transcorrer in albis
o prazo para sua manifestação (fl. 112).
Instado a se manifestar, o Procurador-Geral da República assentou que na
ação penal privada a proposta de transação compete tão somente ao querelante (fls.
123-126).
Muito se controverteu sobre a natureza jurídica da transação penal. De
acordo com a jurisprudência firmada no âmbito do c. Supremo Tribunal Federal
(RE n. 296.185, 2ª Turma, Rel. Min. Neri da Silveira, DJ de 22.2.2005 e HC n.
83.250-SP, 1ª Turma, Rel. Min. Joaquim Barbosa, v.g.), e também desta e. Corte
(HC n. 18.003-RS, 6ª Turma, Rel. Min. Paulo Gallotti, DJ de 25.5.2009, v.g.),
trata-se, assim como a suspensão condicional do processo inserta no art. 89 da Lei n.
9.099/1995, de um poder-dever do Ministério Público, em contrapartida à posição
minoritária, notadamente doutrinária, de que seria um direito público subjetivo
do acusado.
Nesse sentido, ilustrativamente:
Ementa: Habeas corpus. Crime de tentativa de homicídio qualiicado,
desclassificado para lesão corporal grave. Pretendido direito subjetivo à
suspensão condicional do processo (art. 89 da Lei n. 9.099/1995) ou à suspensão
da pena (art. 77 do CP). Ordem denegada.
O benefício da suspensão condicional do processo não traduz direito subjetivo
do acusado. Presentes os pressupostos objetivos da Lei n. 9.099/1995 (art. 89)
poderá o Ministério Público oferecer a proposta, que ainda passará pelo crivo do
magistrado processante. Em havendo discordância do juízo quanto à negativa do
Parquet, deve-se aplicar, por analogia, a norma do art. 28 do CPP, remetendo-se os
autos à Procuradoria-Geral de Justiça (Súmula n. 696-STF).
26
Jurisprudência da CORTE ESPECIAL
(...)
Ordem denegada.
(HC n. 84.342-RJ, 1ª Turma, Rel. Min. Ayres Britto, DJ de 23.6.2006) (grifos
aditados).
Ademais, tem-se a Sumula n. 696 editada pelo c. Pretório Excelso: “Reunidos
os pressupostos legais permissivos da suspensão condicional do processo, mas
se recusando o promotor de justiça a propô-la, o juiz, dissentindo, remeterá a
questão ao Procurador-Geral, aplicando-se por analogia o art. 28 do Código de
Processo Penal”.
Consagrou-se, então, o entendimento segundo o qual o Magistrado não
poderia se sobrepor à vontade do representante do Ministério Público e, assim, ele
mesmo, sem a participação do Parquet, formular a proposta de transação ou
de suspensão condicional do processo, a quem competiria a última palavra, na
pessoa do Procurador-Geral.
Referidos institutos - transação penal e o sursis processual - não custa
rememorar, foram criados pela Lei n. 9.099/1995 como medidas denominadas
despenalizadoras. Visam conferir tratamento diferenciado às infrações de
menor potencial ofensivo (no caso da transação penal), e aos delitos em que
a pena mínima cominada não ultrapassasse um ano (requisito específico
para a suspensão condicional do processo). Os mencionados institutos por
relativizarem o princípio da indisponibilidade da ação penal acarretaram diversas
polêmicas interpretativas.
A par das controvérsias aqui já referidas, insta destacar, também, a
celeuma instaurada em torno da possibilidade de aplicação das medidas acima
mencionadas às ações penais privadas. Quanto ao tema, esta Corte, em diversos
julgados (APn n. 566-BA, Corte Especial, Rel. Min. Hamilton Carvalhido, DJe
de 26.11.2009, HC n. 31.527-SP, 6ª Turma, Rel. Min. Paulo Gallotti, DJ de
28.3.2005 e EDcl no HC n. 33.929-SP, 5ª Turma, Rel. Min. Gilson Dipp, DJU
de 29.11.2004), manifestou-se pela possibilidade de aplicação, não obstante
o silêncio da Lei n. 9.099/1995, que somente as previu para as ações penais
públicas. Admitida a aplicação, surge, no entanto, outra questão, consistente em
saber a quem caberia, neste caso, a legitimidade para a proposta. Entendo que,
uma vez admitida a possibilidade, como o fez a jurisprudência deste Tribunal, a
competência, inquestionavelmente, deve recair sobre o ofendido.
Isso porque, se ele é o legitimado, na condição de substituto processual, para
ajuizar a ação penal e, assim, exercer o ius persequendi, nada mais lógico que se
RSTJ, a. 24, (226): 17-95, abril/junho 2012
27
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
lhe transfira o encargo que, nas ações penais públicas, pertence ao Ministério
Público com exclusividade. Neste caso (no âmbito da ação penal privada), aliás, o
Parquet funciona tão somente como fiscal da lei, e não como parte.
No caso em exame, feito o ajustamento do polo ativo da ação, não custa
rememorar, abriu-se vista ao querelante para que formulasse, se fosse o caso,
proposta de transação penal. Contudo, ela não foi formalizada. O ProcuradorGeral da República, instado a se manifestar, na linha do que aqui foi consignado,
entendeu que a legitimidade para propor a aplicação do benefício restringia-se ao
ofendido.
Esse o quadro, não vislumbro, ao contrário do que sustentado pela
combativa defesa, qualquer mácula no feito.
Segundo afirmado pelo Pretório Excelso, “a transação penal pressupõe
acordo entre as partes...” (RE n. 492.087-SP, 1ª Turma, Rel. Min. Ayres Britto).
Na mesma linha, pontificou o eminente Ministro Sepúlveda Pertence: “... a
transação penal - bem como a suspensão condicional do processo - pressupõe
o acordo entre as partes...” (RE n. 468.161-GO, 1ª Turma). Ou seja, não
se pode compelir o querelante a formular proposta se esse não é seu desiderato. O
eminente Ministro da Suprema Corte, Ayres Britto, em outro julgado, que
tratava de suspensão condicional do processo, e que pela natureza do instituto
pode ser aqui utilizado, advertiu que “não há que se falar em obrigatoriedade
do Ministério Público quanto ao oferecimento do benefício da suspensão
condicional do processo. Do contrário, o titular da ação penal seria compelido
a sacar de um instrumento de índole tipicamente transacional, como é o sursis
processual. O que desnaturaria o próprio instituto da suspensão, eis que não se
pode falar propriamente em transação quando a uma das partes (o órgão de
acusação, no caso) não é dado o poder de optar ou não por ela.” (HC n. 84.342RJ, 1ª Turma).
Esse raciocínio, a meu juízo, adquire maior propriedade e relevância se
transposto para a aplicação da transação penal na ação penal privada. É que nesta
vigoram os princípios da oportunidade e da disponibilidade, o que significa que o
ofendido pode optar entre propor ou não a ação penal, pode ainda renunciar
ao direito de queixa, perdoar o ofensor e, ainda, abandonar o feito, dando azo à
perempção, todas causas de extinção da punibilidade (ex vi do art. 107, incisos IV
e V do CP), faculdades de que não dispõe o Ministério Público no âmbito da ação
penal pública, justamente por aqui vigorar os princípios diametralmente opostos
da obrigatoriedade e da indisponibilidade.
28
Jurisprudência da CORTE ESPECIAL
Essa orientação - que justifica a possibilidade de não oferecimento de
proposta de transação penal na ação penal privada em decorrência dos princípios
da disponibilidade e oportunidade - encontra ressonância na doutrina. Confirase:
No tocante à vítima, porém, tratando-se de infrações de ação penal privada,
outros princípios vigoram. Imperam os princípios da discricionariedade e da
disponibilidade, daí por que, entendendo-se que a transação e a suspensão não
são direito público subjetivo do autor do fato e do acusado, a sua formulação fica
na estrita conveniência do ofendido, que, ao se recusar a formulá-las, inviabilazará
a transação e a suspensão. (André Estefam Araújo Lima e Luiz Antônio de
Souza, in Revista Magister de Direito Penal e Processual Penal, ano I - n. 4 - 2005,
Porto Alegre, p. 83).
Dessarte, se ao ofendido abrem-se tantas possibilidades, o que se dirá em
relação à formulação de proposta de transação penal que, repita-se, não constitui
direito subjetivo público do acusado. Com efeito, sublinhou o c. Pretório Excelso
que “admitida que seja, porém, a suspensão condicional do processo de ação
penal privada, a oposição do querelante é irremediável.” (HC n. 81.720-SP, 1ª
Turma, Rel. Min. Sepúlveda Pertence).
Em suma, quando a jurisprudência estendeu às ações penais privadas
a possibilidade de transação penal, o fez em razão de uma lacuna da lei, que
somente previa a aplicação do instituto para as ações penais públicas. A partir de
então admitiu-se o que antes não era permitido. Não se pretendeu e nem poderia,
todavia, que para seu âmbito fossem transportadas as regras que se aplicam ao
Ministério Público. Significa dizer, o ofendido pode, ou não, oferecer a proposta.
Confere-se, dessa forma, ao querelante, a opção pela formulação de
proposta de transação penal já que achou conveniente, anteriormente, ajuizar a
queixa. Contudo, não se pode forçá-lo a oferecê-la, ainda que sob o argumento de
preenchimento dos requisitos por parte do acusado, sob pena de desnaturar-se
o instituto que, importado para a ação privada, exige mútuo consentimento das
partes.
Bruno Calabrich, Procurador da República, em artigo específico sobre a
matéria formula a seguinte indagação:
o que ocorre quando o particular deixa de propor a transação, mesmo quando
preenchidos os requisitos pelo autor do fato?
RSTJ, a. 24, (226): 17-95, abril/junho 2012
29
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
Ao que, mais adiante, responde:
Percebe-se, destarte, que somente a parte está autorizada a transigir sobre
o direito que exclusivamente lhe compete - o direito de ação. Na ação penal
privada, o MP não pode substituir o particular e oferecer transação. Tampouco
pode fazê-lo o juiz. Assim agindo estariam maculando a natureza transacional
do instituto, que deixaria de ser negócio para transformar-se em imposição. (in
Revista Síntese de Direito Penal e Processual Penal, ano IV - n. 24 - Fev-Mar 2004,
Porto Alegre, p. 31-32).
Ainda no plano doutrinário:
(...) Não cabe aqui falar-se em direito subjetivo do querelado, diferentemente
da suspensão do processo, no caso, não se trata de direito subjetivo do acusado,
mas sim de opção das partes em transacionarem, tanto que o não cumprimento
da transação, por ser ato administrativo, não tem o condão de se transformar em
pena. Outro entendimento poria fim às ações penais privadas, não foi isso o que
fez a lei em questão (Alberto Silva Franco e Rui Stoco, in “Leis Penais Especiais
e sua interpretação jurisprudencial - Vol. 1”, Ed. RT, 7ª edição, revista atualizada e
ampliada, 2001, p. 1.911).
Assim, a ausência de manifestação por parte do querelante, por evidenciar
falta de interesse na transação, acarreta o prosseguimento do feito, com a
consequente deliberação sobre o recebimento da queixa. Por conseguinte, em
razão dos fundamentos expostos, não procede a tese da defesa de que teria
ocorrido a decadência.
Passo ao exame do mérito, e ao fazê-lo, verifico que a queixa preenche todos
os requisitos formais, estando apta a deflagrar a persecutio criminis in iudicio.
O crime imputado ao querelado é o inserto no art. 140, c.c. art. 141, inciso
III, do Código Penal:
Injuriar alguém, ofendendo-lhe a dignidade ou o decoro:
Pena - detenção, de 1 (um) a 6 (seis) meses, ou multa.
Além da honra objetiva, é dizer, a reputação, o valor social da pessoa,
o apreço que esta goza no meio social (Nelson Hungria e Heleno Cláudio
Fragoso, in “Comentários ao Código Penal - Volume VI - arts. 137 a 154”, Ed.
Forense, 5ª edição, 1980, p. 84), que podem ser ofendidos tanto pela calúnia
como pela difamação, tem a pessoa também o que a doutrina chama de honra
subjetiva, sendo essa a estima própria, o juízo que faz de si mesma, a sua dignidade
30
Jurisprudência da CORTE ESPECIAL
ou decoro, que podem ser ofendidos pela injúria (E. Magalhães Noronha, in
“Direito Penal - 2º Volume - Dos crimes contra a pessoa. Dos crimes contra
o patrimônio”, Editora Saraiva, 11ª edição, p. 123). Ao inverso do que sucede
na calúnia e na difamação, na injúria não se imputa fato determinado, mas se
formulam juízos de valor (Francisco Muñoz Conde, in “Derecho Penal - Parte
Especial”, Ed. Tirant lo Blanch, 8ª edição, 1990, p. 124), exteriorizando-se
qualidades negativas ou defeitos que importem menoscabo, ultraje ou vilipêndio
de alguém.
Conforme leciona Fragoso: “A injúria constitui ofensa menos grave porque
nela não há imputação de fatos, mas de vícios ou defeitos morais, que, como
em todos os crimes contra a honra, atinge a pretensão ao respeito inerente à
dignidade da pessoa” (in “Lições de Direito Penal - Parte Especial”, Volume I,
11ª Edição, Editora Forense, Rio de Janeiro, 1995, p. 138).
Como bem lembrado por Nélson Hungria, a injúria apenas traduz
uma opinião pessoal do agente, desacompanhada da menção de fatos concretos ou
precisos, bastando apenas a palavra insultuosa, o epíteto aviltante, o impropério
(“Comentários ao Código Penal - Volume VI - arts. 137 a 154”, Ed. Forense,
5ª edição, 1980, p. 91), ou seja, no exemplo de E. Magalhães Noronha “Se se
diz que fulano não paga suas dívidas, injuria-se; mas falar que ele não pagou a
quantia de tanto a beltrano, emprestada em condições angustiosas, é difamar”.
(“Direito Penal - 2º Volume - Dos crimes contra a pessoa. Dos crimes contra o
patrimônio”, Editora Saraiva, 11ª edição, p. 123).
Cumpre rememorar, neste instante, o teor das declarações do querelado
proferidas por ocasião da reunião do Conselho Deliberativo do Fluminense
Futebol Clube, verbis:
(...) o que ocorreu de forma deplorável foi a prática da continuidade das contas
deficitárias dos dirigentes dissipadores.
Na minha experiência de vida, em mais de 30 anos na administração pública,
poderia enquadrar o atual Presidente, se fosse aqui Brasília - Governador Arruda
é um santo - em mais de 30 anos da administração poderia enquadrar o atual
Presidente em pelo menos 2 crimes, sejam:
- no crime de responsabilidade por desrespeitar o inciso 17 do artigo 1º
do Decreto-Lei n. 201 de 1967. Esse Decreto-Lei diz: “ordenar ou autorizar
a abertura de crédito em desacordo com os limites estabelecidos pelo
Senado Federal, sem fundamento na lei orçamentária ou na de crédito”.
RSTJ, a. 24, (226): 17-95, abril/junho 2012
31
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
- ou de crime contra finanças públicas por não atender o art. 359-D do
Código Penal, por ordenar despesas não autorizadas por lei, sujeitando à
pena de reclusão de um a quatro.
Observe-se que a situação de hoje do Fluminense Football Club seria
motivo de penalidades sérias se estivéssemos sob a égide das normas das
finanças públicas. (fl. 06).
Em primeiro lugar, não se questiona o direito de criticar do querelado,
ainda mais se considerado o contexto em que realizada a ação: reunião do
Conselho Deliberativo, cujo objetivo é analisar as contas apresentadas pela
Diretoria de um clube de futebol de larga tradição no cenário nacional que,
certamente, abriga diversos grupos políticos. Assim, a atmosfera é propícia ao
debate acalorado, especialmente se considerado que essas questões ultrapassam
a simples fiscalização das contas por refletir uma relação afetiva dos sócios e
conselheiros com a agremiação desportiva - o futebol é, sem dúvida, um forte
traço da cultura brasileira. Dessarte, assegura-se ao querelado, na condição de
membro do Conselho Deliberativo que fiscalize e critique as contas que lhe
forem submetidas, notadamente se considerada a sua qualificação profissional.
Dessa forma, mencionar que o Presidente seria um dissipador (no sentido
de esbanjador), aliado as críticas proferidas quanto à forma de gestão do clube,
por si só, não evidenciaria o intuito de injuriar (animus injuriandi, que é o
elemento subjetivo adicional do tipo em foco). Até aí, haveria, como dito, o exercício
regular de um direito, qual seja, o de criticar.
Contudo, verifica-se neste juízo de prelibação que as declarações do querelado,
a primeira vista, extrapolaram o limite que tornaria a conduta legítima, no
instante em que foi feita alusão à pratica de delitos contra as finanças públicas,
associada a uma comparação com o ex-governador do Distrito Federal que, à
época, era o centro da atenções do país, em virtude das graves acusações contra
ele formuladas, que, a toda evidência, certo ou não, o desqualificavam e muito,
perante a opinião pública, tendo, inclusive, sido preso cautelarmente, fato
inédito na história da Capital Federal (a prisão foi decretada no dia 11.2.2010,
portanto, em data anterior às declarações do querelado).
Não há como, portanto, não vislumbrar, de forma indiciária, o animus
injuriandi na ação do querelado ao afirmar que: “Na minha experiência de
vida, em mais de 30 anos na administração pública, poderia enquadrar o atual
Presidente, se fosse aqui Brasília - Governador Arruda é um santo - em mais de
30 anos da administração poderia enquadrar o atual Presidente em pelo menos 2
crimes...”
32
Jurisprudência da CORTE ESPECIAL
Essa a razão pela qual entendo ser prescindível, no caso, ao contrário do
que sustentado pela defesa, que o querelante formulasse previamente pedido
de explicações, nos termos do art. 144 do Código Penal, pois conforme mansa
orientação firmada no âmbito do Supremo Tribunal Federal: “A notificação
prevista no Código Penal (art. 144) (...) traduz mera faculdade processual, sujeita
à discrição do ofendido. E só se justifica na hipótese de ofensas equívocas.” (RTJ
142/816, Rel. Min. Celso de Mello).
Em suma, ultrapassado o animus narrandi, bem como o animus criticandi
nas últimas declarações prestadas e acima destacadas pelo querelado, a queixa
se revela, neste juízo de recebimento e, portanto, não exaustivo, apta ao
prosseguimento da ação penal.
Ante o exposto, voto pelo recebimento da queixa.
VOTO
A Sra. Ministra Maria Thereza de Assis Moura: Acompanhando o debate
acerca do recebimento da denúncia, em ponto preliminar, tenho convicções
diversas das que externou o eminente relator.
Di-lo em relação à exigência da proposta de transação penal.
Sua Excelência bem dispôs que a Lei n. 9.099/1995 não trouxe norma
específica quanto à possibilidade da transação penal no rito da ação penal de
iniciativa privada. E mais: disse que a jurisprudência tem entendido ser cabível a
aplicação do instituto em tal situação.
Esse ponto parece ser incontroverso.
Contudo, defende o eminente Relator não ser obrigatório por parte do
querelante realizar a proposta de transação penal, não tendo qualquer influência o
fato de, conquanto intimado para realizá-la, deixar sem resposta a determinação;
assim como defende que o ministério público, enquanto órgão de fiscalização,
não teria legitimidade para, na ausência de indicação do autor da queixa, ultimar
a previsão do art. 76 da Lei n. 9.099/1995, que prevê:
Art. 76. Havendo representação ou tratando-se de crime de ação penal
pública incondicionada, não sendo caso de arquivamento, o Ministério Público
poderá propor a aplicação imediata de pena restritiva de direitos ou multas, a ser
especificada na proposta.
RSTJ, a. 24, (226): 17-95, abril/junho 2012
33
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
Pondero, inicialmente, que o instituto da transação penal, na mesma
medida que a suspensão condicional do processo, trouxe à tradicional conjuntura
do direito brasileiro uma nova forma de resolução do conflito penal, a que a
doutrina consagrada pontuou como a via alternativa entre a resposta da prisão,
no caso da ação penal pública, e a sua renúncia, no caso da ação penal de
iniciativa privada.
Isso se dá porque, como sabido, a ordem jurídica confia ao ministério
público a obrigatoriedade da ação penal pública e a proposta alternativa de
transação processual mitiga essa realidade da norma cogente.
Daí dizer-se que o princípio regente dessa nova forma de solução da
controvérsia penal é o da oportunidade ou discricionariedade regrada, pelo qual
o titular da ação pode dispor da persecução penal em favor de uma proposta
alternativa.
No entanto, afirme-se que o sentido da ordem legal, ao contrário do
que possa indicar a previsão do art. 76 da Lei n. 9.099/1995, quando usa a
expressão “poderá”, não é a de conferir ao Ministério Público uma faculdade
simplesmente, de modo a afastar o poder-dever de seu múnus público.
Na verdade, o parquet continua a ser influenciado pela imposição legal e
dentro de certos requisitos. Por sinal, a doutrina sempre ressaltou na função
ministerial como aquela que se pauta pela proteção da sociedade na medida
exata da previsão legal. Veja-se:
(...) É a lei, em última análise, que traça a atuação do Ministério Público. A
ordem jurídica, destarte, não só constitui objeto da sua atuação (CF, art.
127), senão também seu limite. É objeto da sua defesa e ao mesmo tempo
preside qualquer atuação sua. Todos os poderes públicos estão submetidos ao
império da legalidade, pois é isso que caracteriza o Estado de Direito; todavia,
primordialmente é o Ministério Público o órgão projetado constitucionalmente
para atuar em defesa da ordem jurídica. (Ada Pellegrini Grinover et al. Juizados
Especiais Criminais (Comentários à Lei 9.099, de 26.09.1995). 5ª Edição. São Paulo:
Editora Revista dos Tribunais, 2005, p. 260).
Por esse viés, se estamos por aplicar, analogicamente, a transação penal ao
rito da ação penal privada, é de ser ter por correto que o querelante deve utilizar
o mesmo poder na medida exata do grau de intensidade regrada efetivamente
destinado ao titular da ação penal pública.
De fato, a questão há de merecer melhor enquadramento em hipóteses
como as tais, porque expõe eventual violação ao princípio de isonomia entender,
34
Jurisprudência da CORTE ESPECIAL
como tem entendido a jurisprudência, que o ministério público deve realizar
a proposta de transação ou justificar a sua não proposição, cabendo, inclusive,
a utilização do art. 28 do CPP para o caso de recusa, e, noutro lado, por meio
do mesmo instituto que o obriga, entender que o querelante não tem a mesma
imposição.
No caso, a exigência de motivação é também constitucionalmente prevista
como regra do sistema, consoante os termos do art. 93, IX, na medida em que
o querelado tem o direito de saber os motivos pelos quais não se permite a
transação penal.
É certo que o querelante na ação penal privada é parte legítimada para dar
início à persecutio criminis e detém, inclusive, a discricionariedade de fazê-lo.
Ocorre que isso não lhe transfere o poder absoluto de, por ato unilateral, impedir
a realização da proposta de transação penal, que tem cunho despenalizante,
portanto, de política criminal.
A propósito, bem o disseram os professores da obra citada, verbis:
O princípio da oportunidade (regrada) instituído pela Lei n. 9.099/1995,
entretanto, não chega a permitir ao Ministério Público deixar de atuar pura
e simplesmente. Ele pode dispor da persecutio criminis projetada pela lei,
para adotar uma via alternativa. Mas não pode deixar de agir por razões de
oportunidade. Presentes os requisitos legais, tem que atuar em favor da via
alternativa eleita pelo legislador. Quem traçou a política criminal consensual,
portanto, foi o legislador. Não é o Ministério Público o detentor dessa política.
Ele a cumpre. Assim como a cumpre o juiz. A ratio legis, portanto, reside na
conquista de finalidades públicas supremas (desburocratização, despenalização,
reparação, ressocialização etc.), não no incremento de poderes para uma ou outra
instituição. (Obra citada, p. 261).
Por esse motivo, entendo que o querelante não pode manter-se
simplesmente silente diante da intimação para realizar a proposta de transação
penal, como, aliás, preconizou precedente desta Corte:
RHC. Juizados especiais criminais. Competência. Crime de difamação.
Ação penal de iniciativa privada. Proposta de transação. Ministério Público.
Possibilidade.
1 - A teor do disposto nos artigos 519 usque 523, do Código de Processo Penal,
o crime de difamação, do art. 139 do Código Penal, para o qual não está previsto
procedimento especial, submete-se à competência dos Juizados Especiais
Criminais.
RSTJ, a. 24, (226): 17-95, abril/junho 2012
35
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
2 - Na ação penal de iniciativa privada, desde que não haja formal oposição
do querelante, o Ministério Público poderá, validamente, formular proposta
de transação que, uma vez aceita pelo querelado e homologada pelo Juiz, é
definitiva e irretratável.
3 - Recurso improvido. (RHC n. 8.123-AP, Rel. Ministro Fernando Gonçalves,
Sexta Turma, julgado em 16.4.1999, DJ 21.6.1999, p. 202)
E, mesmo assim, persistindo a omissão, penso ser possível a legitimidade
do Ministério Público com base na previsão do art. 45 do CPP, que o autoriza a
aditar a queixa.
Em conclusão, preliminarmente, voto no sentido de intimar o Ministério
Público Federal para o fim de realizar a proposta de transação, ante a desídia do
querelante. E acaso não sendo este o entendimento da Corte, que se reconheça,
na hipótese, em face da desídia da parte, a perempção, consoante defendido da
tribuna pelo patrono do querelado.
Vencida quanto à preliminar, voto com o relator pelo recebimento da
denúncia.
AGRAVO REGIMENTAL NA SUSPENSÃO DE LIMINAR E DE
SENTENÇA N. 1.427-CE (2011/0185577-1)
Relator: Ministro Presidente do STJ
Agravante: Ministério Público Federal
Agravado: Empresa Brasileira de Infra-Estrutura Aeroportuária - Infraero
Advogado: Marcela Cavalcante Sampaio e outro(s)
Requerido: Desembargador Relator do Agravo de Instrumento n.
80999420114050000 do Tribunal Regional Federal da 5ª
Região
EMENTA
Pedido de suspensão de medida liminar. Interferência do Judiciário na
atividade administrativa. Flagrante ilegitimidade e lesão à ordem pública.
36
Jurisprudência da CORTE ESPECIAL
Ao Judiciário cabe o controle da legalidade dos atos da Administração.
O ativismo judicial pode legitimar-se para integrar a legislação onde
não exista norma escrita, recorrendo-se, então, à analogia, aos costumes
e aos princípios gerais de direito (CPC, art. 126). Mas a atividade
administrativa, propriamente tal, não pode ser pautada pelo Judiciário.
Na espécie, em última análise, o MM. Juiz Federal fez mais do que
a Administração poderia fazer, porque impôs o que esta só pode
autorizar, isto é, que alguém assuma a responsabilidade pela prestação
de serviço público. Agravo regimental não provido.
ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos os autos em que são partes as acima indicadas,
acordam os Ministros da Corte Especial do Superior Tribunal de Justiça, por
unanimidade, negar provimento ao agravo regimental nos termos do voto do
Senhor Ministro Relator. Os Srs. Ministros Cesar Asfor Rocha, Gilson Dipp,
Nancy Andrighi, Laurita Vaz, Teori Albino Zavascki, Castro Meira, Arnaldo
Esteves Lima, Massami Uyeda, Humberto Martins, Maria Thereza de Assis
Moura e Sebastião Reis Júnior votaram com o Sr. Ministro Relator. Ausentes,
justificadamente, os Srs. Ministros Eliana Calmon, Francisco Falcão e João
Otávio de Noronha. Convocado o Sr. Ministro Sebastião Reis Júnior para
compor quórum. Presidiu o julgamento o Sr. Ministro Felix Fischer.
Brasília (DF), 5 de dezembro de 2011 (data do julgamento).
Ministro Felix Fischer, Presidente
Ministro Ari Pargendler, Relator
DJe 29.2.2012
RELATÓRIO
O Sr. Ministro Ari Pargendler: O agravo regimental ataca a decisão de fl.
242-245, que deferiu o pedido de suspensão à base da seguinte fundamentação:
Na forma do art. 21, XII, da Constituição Federal, compete à União explorar
diretamente ou mediante autorização, concessão ou permissão, a navegação
aérea, aeroespacial e a infra-estrutura aeroportuária. Há uma empresa pública
federal dedicada a explorar os serviços de infra-estrutura aeroportuária, qual
RSTJ, a. 24, (226): 17-95, abril/junho 2012
37
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
seja, a Empresa Brasileira de Infra-Estrutura Aeroportuária - Infraero. Ao invés de
transferir-lhe essa exploração, o Estado do Ceará teve a primazia. Este, o Estado do
Ceará, foi quem subrogou a Empresa Brasileira de Infra-Estrutura Aeroportuária
- Infraero em alguns dos direitos e obrigações que havia ajustado com a União.
Portanto, se bem percebidos os fatos, o MM. Juiz Federal tornou letra morta a
relação entre a União e o Estado do Ceará para obrigar a Empresa Brasileira de
Infra-Estrutura Aeroportuária - Infraero a assumir a administração do aeroporto
de Juazeiro do Norte.
Ao Judiciário cabe o controle da legalidade dos atos da Administração. O
ativismo judicial pode legitimar-se para integrar a legislação onde não exista
norma escrita, recorrendo-se, então, à analogia, aos costumes e aos princípios
gerais de direito (CPC, art. 126). Mas a atividade administrativa, propriamente tal,
não pode ser pautada pelo Judiciário. Na espécie, em última análise, o MM. Juiz
Federal fez mais do que a Administração poderia fazer, porque impôs o que esta
só pode autorizar, isto é, que alguém assuma a responsabilidade pela prestação
de serviço público. Decidindo assim, incorreu em flagrante ilegitimidade e
afrontou a ordem administrativa (fl. 244-245).
A teor das razões, in verbis:
Percebe-se que o ilustre Presidente do Superior Tribunal de Justiça, Ministro
Ari Pargendler, salientou haver o MM. Juiz Federal, ao conceder a antecipação
de tutela suspensa, exorbitado de seus poderes ao transferir a administração do
Aeroporto de Juazeiro do Norte à União, incorrendo em “flagrante ilegitimidade”
e afronta à ordem administrativa, tornando “letra morta a relação entre a União e
o Estado do Ceará”.
Tal decisão, contudo, merece pronta reforma por estar dissociada da realidade
dos fatos que permeiam a ação civil pública proposta em face da União e
da ora requerente, conforme documentação juntada aos autos respectivos,
notadamente considerando haver o Estado do Ceará promovido a renúncia
unilateral do convênio celebrado junto à União.
De fato, o convênio em tela, celebrado em 07 de dezembro de 2000, através do
qual o Comando da Aeronáutica transferiu ao Estado do Ceará a administração,
manutenção, operação e exploração, entre outros, do Aeroporto de Juazeiro do
Norte, previu, em sua cláusula Décima Primeira, item 11.2, a possibilidade de
denúncia unilateral, a qual se efetiva após 90 (noventa) dias da comunicação
formal de qualquer das partes.
Ocorre que o Estado do Ceará, conforme o Ofício GC-n. 306/10, de 21 de
dezembro de 2010, promoveu a denúncia unilateral do citado convênio.
(...)
38
Jurisprudência da CORTE ESPECIAL
Promovida, dessa forma, a denúncia unilateral do convênio pelo Estado do
Ceará, não há que se falar, como sustentado pela requerente, no aguardo de
qualquer negociação entre a Empresa Brasileira de Infraestrutura Aeroportuária Infraero e o Estado do Ceará, já que o mesmo não mais mantém qualquer vínculo
com a União para esse fim.
Não se pode afirmar, portanto, tenha a decisão judicial combatida tornado
letra morta a relação entre a União e o Estado do Ceará, já que tal relação não
mais existe por força de ato de vontade unilateral e irrevogável do Estado, não
mais mantendo qualquer vínculo jurídico que o obrigue a administrar, direta ou
indiretamente, o Aeroporto de Juazeiro do Norte.
(...)
A manutenção da decisão ora combatida, por outro lado, se apresenta
suscetível a ensejar grave risco à continuidade na prestação do serviço
público de administração do Aeroporto de Juazeiro do Norte, posto que, ante
a desvinculação do Estado do Ceará, por força de ato unilateral de vontade,
cabe à União, diretamente ou através da Empresa Brasileira de Infraestrutura
Aeroportuária - Infraero, fazê-lo.
Estando as mesmas desobrigadas de fazê-lo, contudo, tem-se que no momento
não existe qualquer ente, público ou privado, juridicamente responsável pela
administração, manutenção, gestão e operação do Aeroporto de Juazeiro do
Norte, o que pode prejudicar a continuidade no seu funcionamento, causando
prejuízo a milhares de usuários dos serviços de transporte aéreo.
Em razão desses fatos, impende salientar que, não mais permanecendo
em vigor o convênio mantido entre o Comando da Aeronáutica e o Estado do
Ceará, não há como vigorar e se manter eficaz o instrumento de subcontratação
celebrado entre o Estado do Ceará e a Empresa Brasileira de Infraestrutura
Aeroportuária - Infraero.
(...)
Não podendo perdurar, como reconhecido na decisão do juízo monocrático,
a lacuna administrativa referente à gestão aeroportuária, sob pena de serem
encerradas e/ou paralisadas as atividades administrativas e operacionais do
Aeroporto de Juazeiro do Norte, cabe a reforma da decisão atacada, ante o
periculum in mora inverso.
Destaca-se, por fim, não haver a decisão proferida pelo juízo monocrático
determinado a realização de qualquer novo dispêndio de recursos por parte
da Empresa Brasileira de Infraestrutura Aeroportuária - Infraero, notadamente
considerando que as despesas referentes à instalação dos módulos operacionais
provisórios já se encontram contempladas em seu orçamento, razão pela qual
promoveu a licitação para adquiri-los.
RSTJ, a. 24, (226): 17-95, abril/junho 2012
39
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
Portanto, não configurada a grave lesão à ordem pública ou administrativa,
estando evidente, por outro lado, o periculum in mora inverso em detrimento
da sociedade, notadamente dos usuários dos serviços de transporte aéreo do
Aeroporto de Juazeiro do Norte, deve ser mantida a decisão de antecipação de
tutela determinada pelo Juízo de primeira instância (fl. 262-268).
VOTO
O Sr. Ministro Ari Pargendler (Relator): Conforme está dito na decisão
agravada, ao Judiciário cabe o controle da legalidade dos atos da Administração.
O ativismo judicial pode legitimar-se para integrar a legislação onde não exista
norma escrita, recorrendo-se, então, à analogia, aos costumes e aos princípios
gerais de direito (CPC, art. 126). Mas a atividade administrativa, propriamente
tal, não pode ser pautada pelo Judiciário. Na espécie, em última análise, o MM.
Juiz Federal fez mais do que a Administração poderia fazer, porque impôs
o que esta só pode autorizar, isto é, que alguém assuma a responsabilidade
pela prestação de serviço público. Decidindo assim, incorreu em flagrante
ilegitimidade e afrontou a ordem administrativa.
Nem mesmo a alegada denúncia do convênio pelo Estado do Ceará,
por meio do Ofício n. 306/10 de 21 de dezembro de 2010, autoriza o Poder
Judiciário a interferir na administração do Aeroporto de Juazeiro do Norte,
porque se de fato houve o distrato, cabe à União explorar, diretamente ou
mediante autorização, concessão ou permissão, o referido aeroporto.
Voto, por isso, no sentido de negar provimento ao agravo regimental.
AGRAVO REGIMENTAL NA SUSPENSÃO DE LIMINAR E DE
SENTENÇA N. 1.448-MA (2011/0246320-5)
Relator: Ministro Presidente do STJ
Agravante: Estado do Maranhão
Procuradores: Helena Maria Cavalcanti Haickel e outro(s)
Miguel Ribeiro Pereira e outro(s)
Roberto Benedito Lima Gomes e outro(s)
40
Jurisprudência da CORTE ESPECIAL
Agravado: Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais
Renováveis - Ibama
Procurador: Adriana Maia Venturini e outro(s)
Requerido: Desembargadora Relatora do Agravo de Instrumento n.
19491120114010000 do Tribunal Regional Federal da 1ª
Região
Interessado: Gusa Nordeste S/A e outros
Advogado: Sandra Cristina Pires Togneri e outro(s)
EMENTA
Pedido de suspensão de medida liminar. Suspensão de incentivos e
benefícios fiscais concedidos pelo Poder Público. A lesão de que trata a Lei
n. 8.437, de 1992 é aquela que resulta diretamente da decisão judicial.
Na espécie, quem, de fato, sofre imediatamente os efeitos da decisão
sub judice é empresa que não tem legitimidade para pedir a respectiva
suspensão. Agravo regimental não provido.
ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos os autos em que são partes as acima indicadas,
acordam os Ministros da Corte Especial do Superior Tribunal de Justiça, por
unanimidade, negar provimento ao agravo regimental nos termos do voto do
Senhor Ministro Relator. Os Srs. Ministros Cesar Asfor Rocha, Gilson Dipp,
Nancy Andrighi, Laurita Vaz, Teori Albino Zavascki, Castro Meira, Arnaldo
Esteves Lima, Massami Uyeda, Humberto Martins, Maria Thereza de Assis
Moura e Sebastião Reis Júnior votaram com o Sr. Ministro Relator. Ausentes,
justificadamente, os Srs. Ministros Eliana Calmon, Francisco Falcão e João
Otávio de Noronha. Convocado o Sr. Ministro Sebastião Reis Júnior para
compor quórum. Presidiu o julgamento o Sr. Ministro Felix Fischer.
Brasília (DF), 05 de dezembro de 2011 (data do julgamento).
Ministro Felix Fischer, Presidente
Ministro Ari Pargendler, Relator
DJe 29.2.2012
RSTJ, a. 24, (226): 17-95, abril/junho 2012
41
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
RELATÓRIO
O Sr. Ministro Ari Pargendler: O agravo regimental ataca a seguinte
decisão, in verbis:
1. Os autos dão conta de que, no ano de 2006, Gusa Nordeste S/A sofreu
autuação por parte do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos
Naturais Renováveis - Ibama por ter adquirido carvão vegetal sem origem legal
comprovada, sendo tal conduta considerada infração ambiental por força do
Decreto n. 3.179, de 1999. Ajuizou, então, no ano seguinte, ação anulatória,
objetivando a desconstituição da multa aplicada no auto de infração. O pedido foi
julgado procedente em primeira instância, seguindo-se apelação, ainda pendente
de julgamento.
Paralelamente, o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais
Renováveis - Ibama propôs ação civil pública contra Gusa Nordeste S/A, visando à
responsabilização da empresa pelos danos causados ao meio ambiente. Pediu o
deferimento de medida liminar para que fosse determinada a suspensão ou perda
de incentivos ou benefícios fiscais concedidos pelo Poder Público à empresa e
seus proprietários, bem assim a suspensão ou perda de acesso a linhas de crédito
concedidos com recursos públicos por instituições oficiais de crédito, até que
tenha início a efetiva recuperação do dano ambiental (fl. 19-49).
O MM. Juiz Federal da Vara Ambiental e Agrária da Seção Judiciária do
Maranhão deferiu a medida liminar, mas depois reconsiderou a decisão (fl. 63-71).
Sobreveio agravo de instrumento, a que a relatora, Desembargadora Federal
Selene Maria de Almeida, deferiu o efeito suspensivo, “determinando a suspensão
de incentivos e benefícios fiscais concedidos pelo Poder Público ao agravado” (fl. 75).
A decisão impugnada está assim fundamentada:
O art. 225, § 3º, da Constituição Federal dispõe que as condutas
e atividades consideradas lesivas ao meio ambiente sujeitarão os
infratores, pessoas físicas ou jurídicas, a sanções penais e administrativas,
independentemente da obrigação de reparar os danos causados.
Sendo assim, a atuação administrativa não impede o controle judicial
das condutas e atividades lesivas ao meio ambiente.
O artigo constitucional citado acima consagra, ainda, os princípios
do poluidor-pagador e da reparação integral. Tais princípios não visam
apenas a compensar os danos causados, mas, sim, procuram evitar o dano
ambiental.
O Supremo Tribunal Federal já decidiu no sentido de que a tutela contra
as atitudes lesivas ao meio ambiente não se esgota no fato já consumado,
mas se prolonga no sentido de evitar a intensificação de seus efeitos (...)
42
Jurisprudência da CORTE ESPECIAL
(...)
Assim, levando-se em consideração a dificuldade de constatação e
avaliação dos danos ambientais e que os efeitos de tais danos só aparecem
após vários anos ou, o que é pior, já em outra geração, entendo que as
provas colacionadas aos autos bastam para a comprovação da conduta
lesiva ao meio ambiente praticada pelo agravado.
Ora, o meio ambiente danificado não tem à disposição todo o tempo do
mundo para aguardar uma eventual condenação do devastador. Ademais,
o dano ambiental não pode, em circunstância alguma, valer a pena para o
devastador.
Há, portanto, que se impedir a continuidade da conduta lesiva ao meio
ambiente e possibilitar eventual condenação ao ressarcimento dos danos
causados (fl. 129).
É oportuno relembrar que, em questões ambientais, o exame de
qualquer pedido observa o princípio da precaução, pois de nada adianta
atuar após o estabelecimento do desmatamento ou da degradação,
afigurando-se desarrazoada, portanto, a decisão impugnada.
Não há justificativa para manter tal entendimento, sob pena de
inobservância ao princípio da precaução, possibilitando a ampliação de
eventual dano que já tinha sido causado.
Assim, é necessária a ampla averiguação dos danos provocados e de
suas conseqüências futuras, sendo importante a alteração da decisão
impugnada.
Entendo, portanto, que deve ser privilegiado o princípio da precaução,
especialmente, estando em jogo a incolumidade do meio ambiente, que
está sob o risco de danos irreversíveis à fauna e à flora. Ademais, não se
justifica a proteção a direito individual em detrimento de direito coletivo
(fl. 130).
Cumpre ressaltar que, ao aplicar o princípio da precaução, ‘os governos
encarregam-se de organizar a repartição da carga dos riscos tecnológicos,
tanto no espaço como no tempo. Numa sociedade moderna, o Estado será
julgado pela sua capacidade de gerir os riscos.
Em sede de matéria ambiental, portanto, não há lugar para intervenções
tardias, sob pena de se permitir que a degradação ambiental chegue a um
ponto no qual não há mais volta, tornando-se irreversível o dano.
Como bem observou o MM. Juiz a quo, em sua decisão de fl. 25-30,
que a documentação demonstra o contínuo descumprimento de normas
ambientais, nada mais justo que suspender os financiamentos e incentivos
fiscais ao agravante para que, amanhã ou depois, deduzir-se que o
indeferimento do pedido liminar formulado implicaria na continuação do
RSTJ, a. 24, (226): 17-95, abril/junho 2012
43
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
favorecimento, pelo Poder Público, do exercício de atividade contrária aos
ideais constitucionais de proteção ao meio ambiente e desenvolvimento
econômico sustentável (fl. 73-75).
2. O Estado do Maranhão pediu, então, a suspensão da decisão proferida no
Agravo de Instrumento n. 0001949-11.2011.4.01.0000-MA, alegando grave lesão à
ordem e economia públicas (fl. 01-18).
A teor da inicial:
(...) a manutenção da decisão proferida no referido agravo de instrumento
poderá causar grave lesão à ordem administrativa e à economia estadual,
com prejuízos econômicos incalculáveis, não só à população do município
de Açailândia-MA, onde está instalada a indústria, mas, na verdade, à ordem
administrativa e econômica de todo o Estado do Maranhão (fl. 04).
Na verdade, como bem observou o MM. Juiz a quo na decisão ora
agravada, “Na inicial não há nenhuma descrição de atividade nociva ao
meio ambiente pela empresa requerida no presente momento (...)” O
suposto dano ambiental (mera suposição baseada na alegada ausência de
comprovação da origem legal do carvão vegetal adquirido) teria ocorrido
entre 2001 e 2004.
Não há falar, pois, de “continuidade lesiva”, considerando que se
o suposto dano teria ocorrido isoladamente no período de 2001/2004,
cessando logo em seguida.
Além disso, é preciso observar que o auto de infração relativo à matéria
foi anulado já em 2007, por decisão judicial proferida em ação anulatória,
pendente de recurso. Ocorre na hipótese, assim, litispendência entre a ação
civil pública em que foi proferida a decisão agravada e a ação anulatória
que resultou na anulação do Auto de Infração n. 487094-D, que inviabiliza o
presente feito, a depender de solução definitiva naquela ação na qual foram
apresentadas provas da improcedência do auto de infração (fl.05).
A decisão liminar, pois, ora restabelecida, em parte, pela ilustre
Desembargadora Federal, ao deferir liminarmente no presente agravo
de instrumento atribuindo “efeito suspensivo ao recurso, determinando
a suspensão dos incentivos e benefícios fiscais concedidos pelo Poder
Público”, caracteriza, na verdade, periculum in mora inverso, eis que como
observa com lucidez o MM. Juiz a quo, “centenas de pessoas perderão
seus empregos diretos e outras tantas seus empregos indiretos, quando
a ação pode ser resolvida com indenização”, se for realmente o caso de
indenização, o que a Gusa Nordeste, ora agravada, contesta com base nas
provas apresentadas na Ação Anulatória n. 2007.37.00.002634-5 (fl. 06).
44
Jurisprudência da CORTE ESPECIAL
Em síntese, a perda, no tocante aos benefícios fiscais, corresponde a
R$ 89.767,00 (oitenta e nove milhões setecentos e sessenta e sete mil
quatrocentos e sete reais) e a perda de empregos direitos será de 2.631
(dois mil seiscentos e trinta e um) - fl. 06.
É evidente que, se o Estado do Maranhão concedeu benefícios e
incentivos fiscais para viabilizar o empreendimento - Gusa Nordeste S/A isso significa que há o absoluto interesse administrativo na consolidação
econômica da empresa.
Não poderia, assim, a medida liminar concedida, ou seja, o efeito
suspensivo atribuído ao agravo de instrumento proibir o Estado do
Maranhão de continuar a concessão dos citados benefícios e incentivos
fiscais, sob pena de interferir na sua ordem administrativa, o que legitima
o Estado do Maranhão para requerer a presente suspensão de segurança.
Se não fosse suficiente tal fundamento jurídico, acrescente-se a ele as
enormes repercussões negativas relativamente à ordem econômica do
Estado que ocorrerão, se mantida a liminar - provocando o periculum in
mora inverso para o Estado do Maranhão, trazendo como consequência o
desemprego de milhares de pessoas que trabalham para a própria Gusa
Nordeste e para as diversas empresas que trabalham na ampliação do
empreendimento, construção de uma aciaria, que perderão seus empregos
diretos e indiretos, como a consequente grande redução da arrecadação
projetada para os próximos quinze a vinte anos, por via direta e indireta, já
que tanto as empresas que lhe prestam serviços, quanto a Gusa Nordeste, e
os seus trabalhadores geram o pagamento de tributos quando consomem
produtos e serviços, movimentando a economia local e do Estado (fl. 1213).
3. Pedido idêntico foi articulado pelo Município de Açailândia, o qual deixou
de ser conhecido (SLS n. 1.441-MA).
Salvo melhor juízo, a lesão de que trata a Lei n. 8.437, de 1992 é aquela
que resulta diretamente da decisão judicial. Na espécie, esta pode, é verdade,
repercutir na economia do Estado do Maranhão, mas de modo indireto. Quem,
de fato, sofre imediatamente os efeitos da decisão sub judice é Gusa Nordeste S/A,
que não tem legitimidade para pedir a respectiva suspensão.
Não conheço, por isso, do pedido (fl. 88-92).
A teor das razões:
É evidente que a referida empresa não tem legitimidade processual para pedir
a suspensão de liminar, mas o requerente é o Estado do Maranhão e, portanto, o
pedido deve ser conhecido e ser examinado o respectivo mérito (fl. 99).
RSTJ, a. 24, (226): 17-95, abril/junho 2012
45
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
O risco de grave lesão à economia de todo o Estado do Maranhão, com
evidentes reflexos na ordem administrativa, resta claramente demonstrado com
as informações e os dados apontados e explicitados nos itens anteriores. A perda
de mais de dois mil empregos diretos representa grave lesão ao interesse público,
bem como a arrecadação tributária propiciada pelo referido empreendimento
visto que o referido empreendimento tem previsão de arrecadação de ICMS de R$
131.506.000,00 nos doze primeiros anos e R$ 225.544.000,00 nos anos seguintes
conforme informado pela Secretaria de Fazenda Estadual e devidamente instruído
no pedido de suspensão (fl. 112).
Finalmente, resta claramente demonstrado que a liminar (o efeito suspensivo
atribuído ao agravo de instrumento) não apenas interfere indevidamente na
política fiscal do Estado do Maranhão para atrair investimentos vitais para o seu
desenvolvimento econômico e social, mas também configura ameaça de grave
lesão à ordem administrativa e econômica estadual (fl. 128).
VOTO
O Sr. Ministro Ari Pargendler (Relator): A lesão de que trata a Lei
n. 8.437, de 1992 é aquela que resulta diretamente da decisão judicial. Na
espécie, a decisão que determinou a suspensão de incentivos e benefícios fiscais
concedidos pelo Poder Público à Gusa Nordeste S/A pode, é verdade, repercutir
na economia do Estado do Maranhão, mas de modo indireto.
Quem, de fato, sofre imediatamente os efeitos da decisão sub judice é Gusa
Nordeste S/A, que não tem legitimidade para pedir a respectiva suspensão.
O Estado do Maranhão não pode defender na via da suspensão o interesse
econômico de empresa privada.
O interesse público primário a ser protegido, na espécie, é aquele que foi
tutelado pela decisão judicial impugnada:
(...) a documentação demonstra o contínuo descumprimento de normas
ambientais, nada mais justo que suspender os financiamentos e incentivos fiscais
ao agravante para que, amanhã ou depois, deduzir-se que o indeferimento do
pedido liminar formulado implicaria na continuação do favorecimento, pelo
Poder Público, do exercício de atividade contrária aos ideais constitucionais de
proteção ao meio ambiente e desenvolvimento econômico sustentável (fl. 75).
Voto, por isso, no sentido de negar provimento ao agravo regimental.
46
Jurisprudência da CORTE ESPECIAL
AGRAVO REGIMENTAL NOS EMBARGOS DE DIVERGÊNCIA EM
RECURSO ESPECIAL N. 830.577-RJ (2011/0065741-6)
Relator: Ministro João Otávio de Noronha
Agravante: Sapucaia de Máquinas e Motores Ltda e outros
Advogados: Antônio de Oliveira Tavares Paes e outro(s)
Ronei Ribeiro dos Santos e outro(s)
Agravado: Norma Tamm Drumond
Advogados: Antonio Vilas Boas Teixeira de Carvalho
Fernando Setembrino Márquez de Almeida e outro(s)
Interessado: Roberto Ferreira Cordeiro de Melo
Advogado: Roberto F Cordeiro de Melo (em causa própria)
Interessado: Semenge S/A Engenharia e Empreendimentos
Advogados: Gabriel de Oliveira Ottoboni
Luís Eduardo Corrêa Ribeiro
EMENTA
Processual Civil. Agravo regimental. Embargos de
divergência. Recurso especial. Conhecimento. Aplicação de regra
técnica. Inviabilidade de discussão. Matéria de ordem pública.
Prequestionamento. Imprescindibilidade. Súmula n. 168-STJ.
1. Em sede de embargos de divergência, é inviável a discussão
acerca de regra técnica relativa ao conhecimento do recurso especial.
2. O Superior Tribunal de Justiça firmou jurisprudência de
que, na instância especial, a apreciação de ofício de matéria, mesmo
de ordem pública, não prescinde do indispensável requisito de
prequestionamento.
3. Incidência da Súmula n. 168-STJ.
4. Agravo regimental desprovido.
ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos os autos em que são partes as acima indicadas,
acordam os Ministros da Corte Especial do Superior Tribunal de Justiça, por
RSTJ, a. 24, (226): 17-95, abril/junho 2012
47
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
unanimidade, negar provimento ao agravo regimental, nos termos do voto do
Senhor Ministro Relator. Os Srs. Ministros Castro Meira, Massami Uyeda,
Humberto Martins, Cesar Asfor Rocha, Felix Fischer, Francisco Falcão, Nancy
Andrighi e Laurita Vaz votaram com o Sr. Ministro Relator.
Ausentes, justificadamente, os Srs. Ministros Gilson Dipp, Eliana Calmon,
Teori Albino Zavascki, Arnaldo Esteves Lima e Maria Thereza de Assis Moura.
Brasília (DF), 07 de maio de 2012 (data do julgamento).
Ministro Ari Pargendler, Presidente
Ministro João Otávio de Noronha, Relator
DJe 17.5.2012
RELATÓRIO
O Sr. Ministro João Otávio de Noronha: Sapucaia de Máquinas e Motores
Ltda. e outros interpõem agravo regimental contra decisão que, indeferindo
liminarmente os embargos de divergência (fls. 1.766-1.770), recebeu a ementa
abaixo:
Processual Civil. Duplos embargos de divergência. Primeiros embargos.
Intempestividade. Segundos embargos. Paradigmas originários de Turmas da
mesma Seção e de Seção diversa. Competência. Discussão acerca da aplicação de
regra técnica relativa ao conhecimento do recurso especial. Impossibilidade.
1. São intempestivos os embargos de divergência opostos após o décimo
quinto dia seguinte à publicação do acórdão embargado.
2. Quando suscitada a divergência entre paradigmas de Turmas da mesma
Seção e de Seção diversa daquela de que provém o aresto embargado, ocorre
a cisão do julgamento com primazia da Corte Especial, com posterior remessa à
Seção competente em relação aos demais paradigmas.
3. É inviável, em sede de embargos de divergência, discussão acerca da
admissibilidade do recurso especial.
4. Embargos de divergência indeferidos liminarmente.
Aduzem os recorrentes o seguinte:
A divergência, resumidamente, consistia no fato de que a Egr. 3ª Turma
entendeu que a ausência de prequestionamento a impedia de examinar alegação
de nulidade do processo (por ausência de litisconsorte necessário), mesmo tendo
48
Jurisprudência da CORTE ESPECIAL
a Egr. Turma conhecido do recurso; já nos acórdãos paradigmas, as demais Turmas
manifestaram diametralmente contrário, no sentido de que uma vez conhecido o
recurso, questões de nulidade conhecíveis ex officio não poderiam deixar de ser
conhecidas sob o pretexto da falta de prequestionamento da matéria.
A divergência é clara e suscita a indagação: como deve se posicionar o STJ,
em se tratando de um Tribunal uniformizador da jurisprudência nacional, sobre
a questão? É ou não exigível o prequestionamento para que o Tribunal conheça,
de ofício ou por provocação, de questões de ordem pública, mesmo tendo
conhecido o recurso especial?
[...]
Não se trata, portanto, de boa ou má aplicação de regra de conhecimento de
recurso, mas, sim, de se saber se essa regra pode, por analogia, impedir ou obstar
o exame de matéria de ordem pública, uma vez aberta a via do especial pelo
conhecimento do recurso.
Sustentam ainda que não se pretende questionar regra de conhecimento
do recurso, inclusive diante da especificidade da questão tratada nos autos, e que
é clara a dissonância entre a decisão embargada e os acórdãos paradigmas.
É o relatório.
VOTO
O Sr. Ministro João Otávio de Noronha (Relator): O recurso não reúne
condições de acolhimento.
Nada obstante o louvável esforço na defesa da tese ora deduzida, a parte
agravante não apresentou nenhum motivo apto a desconstituir a decisão
agravada, que deve ser mantida por seus próprios fundamentos, expressos nestes
termos:
A irresignação não ultrapassa o juízo de admissibilidade.
Os embargos de divergência visam discutir a falta de prequestionamento
da matéria tratada no especial e a aplicação da Súmula n. 7-STJ. Ocorre que a
jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça é pacífica quanto à impropriedade
de discussão, em sede de embargos de divergência, acerca da aplicação de regra
técnica relativa ao conhecimento do recurso especial.
Nesse sentido, cito os seguintes julgados:
Corte Especial: AgRg nos EREsp n. 793.725-SC, relator Ministro Fernando
Gonçalves, DJ de 11.10.2007; EREsp n. 650.209-PR, relator Ministro Castro Meira,
RSTJ, a. 24, (226): 17-95, abril/junho 2012
49
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
DJe de 13.3.2008; EREsp n. 415.671-SC, relator Ministro Hamilton Carvalhido, DJ
de 12.6.2006.
Primeira Seção: EREsp n. 743.223-RJ, relator Ministro Castro Meira, DJ de
3.4.2006; AgRg nos EREsp n. 616.719-GO, relator Ministro Luiz Fux, DJ de 20.3.2006;
e AgRg nos EREsp n. 724.577-SC, relator Ministro José Delgado, DJ de 20.2.2006.
Segunda Seção: AgRg nos EAg n. 668.164-RJ, relator Ministro Ari Pargendler,
DJ de 1º.8.2007.
De mais a mais, o Superior Tribunal de Justiça firmou jurisprudência
de que, na instância especial, a apreciação de oficio de matéria, mesmo de
ordem pública, não prescinde do indispensável requisito de prequestionamento,
segundo se depreende dos julgados da Corte Especial abaixo:
Processo Civil. Agravo regimental. Embargos de divergência. Fato novo.
Conhecimento. Impossibilidade. Matéria de ordem pública. Prequestionamento.
Necessidade. Recurso não provido.
1. No âmbito dos embargos de divergência, não é possível modificar a base
fática da controvérsia, sendo irrelevantes as alterações ocorridas posteriormente
ao julgamento do recurso especial. Matéria pacificada pela Corte Especial.
2. Segundo a firme jurisprudência do STJ, na instância extraordinária, as
questões de ordem pública apenas podem ser conhecidas, caso atendido o
requisito do prequestionamento. Aplica-se, no caso, o óbice da Súmula n. 168-STJ.
3. Agravo regimental não provido. (AgRg nos EREsp n. 999.342-SP, relator
Ministro Castro Meira, DJe de 1º.2.2012.)
Agravo regimental. Embargos de divergência. Prescrição. Falta de
prequestionamento.
- A jurisprudência do STJ é firme no sentido de que, na instância especial, é
vedado o exame ex officio de questão não debatida na origem, ainda que se trate
de matéria de ordem pública, como a prescrição.
Agravo regimental improvido. (AgRg nos EDcl nos EAg n. 1.127.013-SP, relator
Ministro Cesar Asfor Rocha, DJe de 23.11.2010.)
Agravo regimental em embargos de divergência. Similitude entre os acórdãos
embargado e paradigma. Inexistência. Pretensão de reexame do recurso especial.
Incabimento. Prequestionamento. Necessidade. Súmula n. 168-STJ.
1. Inexiste divergência jurisprudencial a ser dirimida quando o acórdão
paradigma decide que, conhecido o recurso especial, que possui efeito devolutivo,
deve a Corte aplicar o direito à espécie e apreciar a questão posta, desde que
tenha sido deduzida nas instâncias ordinárias, e o acórdão embargado nada
decide acerca do tema, recusando apreciação da alegada violação do parágrafo 1º
do artigo 103 da Lei n. 8.112/1990, à falta de prequestionamento.
50
Jurisprudência da CORTE ESPECIAL
2. O puro e simples reexame do recurso especial não se coaduna com a
natureza jurídica dos embargos de divergência, cuja finalidade é a uniformização
de teses jurídicas dissidentes.
3. Tal como decidido no acórdão embargado, o Superior Tribunal de Justiça
é firme em que, na instância especial, é vedado o exame de matéria, inclusive
de ordem pública, que não tenha sido objeto de discussão na origem, tendo
incidência, assim, o Enunciado n. 168 da Súmula deste Superior Tribunal de
Justiça, segundo o qual “Não cabem embargos de divergência, quando a
jurisprudência do Tribunal se firmou no mesmo sentido do acórdão embargado.”
4. Agravo regimental improvido. (AgRg nos EREsp n. 787.696-SC, relator
Ministro Hamilton Carvalhido, DJe de 20.10.2008.)
Nesse contexto, cabível a incidência da Súmula n. 168-STJ.
Importante também ressaltar que a finalidade dos embargos de divergência
é a uniformização da jurisprudência do Tribunal, não se prestando para discutir
o acerto ou desacerto do aresto embargado nem para corrigir eventual equívoco
que possa ter ocorrido no julgamento do recurso especial.
Ante o exposto, nego provimento ao agravo regimental.
É o voto.
EMBARGOS DE DECLARAÇÃO NO AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO
REGIMENTAL NOS EMBARGOS DE DIVERGÊNCIA EM RECURSO
ESPECIAL N. 884.083-PR (2009/0070499-7)
Relatora: Ministra Eliana Calmon
Embargante: Jocelito Canto
Advogado: Antônio Carlos de Andrade Vianna e outro(s)
Embargado: Ministério Público do Estado do Paraná
EMENTA
Processual Civil. Embargos de declaração. Violação do art. 535
do CPC não caracterizada. Inclusão do feito em pauta. Adiamento.
RSTJ, a. 24, (226): 17-95, abril/junho 2012
51
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
Julgamento realizado em tempo razoável. Omissão. Efeitos
infringentes.
1. A jurisprudência desta Corte consolidou-se no sentido de
que não se faz necessária nova publicação nos casos de adiamento de
processo de pauta, desde que o novo julgamento ocorra em tempo
razoável.
2. Restando nítido o propósito infringente do recurso de
embargos de declaração, não há como ele ser acolhido.
3. Embargos de declaração rejeitados.
ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos os autos em que são partes as acima indicadas,
acordam os Ministros da Corte Especial do Superior Tribunal de Justiça A
Corte Especial, por unanimidade, rejeitou os embargos de declaração, nos
termos do voto da Sra. Ministra Relatora. Os Srs. Ministros Laurita Vaz, Teori
Albino Zavascki, Castro Meira, Arnaldo Esteves Lima, Humberto Martins,
Maria Thereza de Assis Moura, Sidnei Beneti, Mauro Campbell Marques,
Cesar Asfor Rocha, Felix Fischer e Gilson Dipp votaram com a Sra. Ministra
Relatora.
Ausentes, justificadamente, o Sr. Ministro Francisco Falcão e a Sra.
Ministra Nancy Andrighi e, ocasionalmente, os Srs. Ministros João Otávio de
Noronha e Massami Uyeda.
Convocados os Srs. Ministros Sidnei Beneti e Mauro Campbell Marques
para compor quórum.
Brasília (DF), 09 de junho de 2011 (data do julgamento).
Ministro Ari Pargendler, Presidente
Ministra Eliana Calmon, Relatora
DJe 1º.8.2011
RELATÓRIO
A Sra. Ministra Eliana Calmon: Trata-se de embargos de declaração
opostos contra acórdão assim ementado:
52
Jurisprudência da CORTE ESPECIAL
Processual Civil. Agravo regimental. Embargos de divergência. Ausência de
pressupostos de admissibilidade.
1. Não se configura o dissídio jurisprudencial quando ausente similitude
jurídica entre os arestos confrontados.
2. Agravo regimental não provido.
Insurge-se o embargante, pugnando pela concessão de efeitos infringentes
aos declaratórios, sob o argumento de que houve nulidade no julgamento
impugnado, aduzindo, para tanto, que apesar do agravo regimental ter sido
incluído na pauta de 19.5.2010, o recurso somente foi julgado em 29.6.2010, fato
que causou prejuízo ao embargante que ficou impossibilitado de acompanhar a
sessão por intermédio de advogado, apresentar memoriais e eventualmente
suscitar questão de ordem naquela assentada.
Afirma que o julgamento do recurso deveria ter sido precedido de nova
inclusão em pauta com consequente intimação das partes.
Alega, ainda, que o aresto embargado restou omisso e violou os arts. 5º,
XXXV, LX e 93 da CF/1988, asseverando que:
a) o acórdão impugnado não examinou a viabilidade da inconstitucionalidade
de lei poder ser suscitada em sede de embargos declaratórios;
b) o aresto recorrido deixou de pronunciar-se quanto à possibilidade de
conceder ao embargante a oportunidade de realizar sustentação oral.
Ouvido, opinou o MPF pela rejeição dos declaratórios e aplicação da
multa prevista no art. 264, parágrafo único, do RISTJ.
É o relatório.
VOTO
A Sra. Ministra Eliana Calmon (Relatora): Rejeito a pretensão do
embargante de ver declarada a nulidade do julgado recorrido.
Verifica-se que o agravo regimental interposto pelo embargante foi julgado
pela Corte Especial em 29.6.2010, terceira sessão subsequente à de 19.5.2010,
para a qual as partes foram intimadas da inclusão do feito em pauta.
Observa-se, portanto, que não se fazia necessária nova inclusão do feito em
pauta com consequente intimação das partes, já que o julgamento ocorreu em
tempo razoável.
RSTJ, a. 24, (226): 17-95, abril/junho 2012
53
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
Nesse sentido, confira-se os seguintes precedentes deste Tribunal:
Processual Civil e Administrativo. Medida cautelar incidental para empresar
efeito suspensivo a recurso especial. Medida liminar deferida monocraticamente
e levada ao órgão colegiado para ser referendada. Interpretação do art. 26-C da
Lei Complementar n. 135/2010 (cognominada “Lei da Ficha Limpa”). Ação civil
pública por atos de improbidade administrativa. Supostas irregularidades na
aplicação de recursos provenientes do Fundo de Desenvolvimento do Ensino
Fundamental-Fundef. Questões formais que, em tese, evidenciam a possibilidade
de êxito do apelo nobre. Afronta ao devido processo legal. Prazo exíguo para
o Tribunal Regional Eleitoral definitivamente apreciar o pedido de registro de
candidatura e das respectivas impugnações. Presença do fumus boni iuris e do
periculum in mora.
(...)
4. O julgamento do recurso de apelação foi marcado para o dia 15 de abril de
2008 (fl. 1.416). Sucede que, por motivos desconhecidos, não houve a realização
desse ato na data aprazada, vindo tão somente a ocorrer em 1º de julho de
2008, todavia, sem a renovação da intimação dos patronos do requerente para
o comparecimento à sessão de julgamento. Diante disso, subjaz outra questão
formal que ostenta, em tese, a propriedade de contaminar o julgamento do
recurso de apelação, porquanto, à mingua de ampla defesa e de contraditório,
princípio do devido processual legal foi afrontado.
5. O entendimento assente no âmbito do STJ justamente preconiza que “O
adiamento de processo de pauta não exige nova publicação, desde que o novo
julgamento ocorra em tempo razoável (três sessões, no máximo, sob pena de violação
do princípio do due process) [...]” (REsp n. 736.610-DF, Relator Ministro Herman
Benjamin, Segunda Turma, DJ de 15 de dezembro de 2009). Dessarte, exsurge o
fumus boni iuris.
(...)
12. Mantida a decisão liminar que deferiu o efeito suspensivo ao recurso
especial interposto pelo ora requerente.
(MC n. 17.110-PE, Rel. Ministro Benedito Gonçalves, Primeira Turma, julgado
em 10.8.2010, DJe 20.9.2010)
Processual Civil. Julgamento de apelação. Processo retirado de pauta e incluído
mais de um ano depois. Necessidade de nova intimação da União.
(...)
4. O adiamento de processo de pauta não exige nova publicação, desde que o
novo julgamento ocorra em tempo razoável (três sessões, no máximo, sob pena de
violação do princípio do due process), o que não se verifica na hipótese, em que o
intervalo de tempo foi superior a um ano.
54
Jurisprudência da CORTE ESPECIAL
5. Recurso Especial da União provido. Recurso Especial do Ministério Público
Federal prejudicado.
(REsp n. 736.610-DF, Rel. Ministro Herman Benjamin, Segunda Turma, julgado
em 1º.9.2009, DJe 15.12.2009)
Embargos de declaração em reclamação. Processual Civil. Ausência de
publicação do feito em pauta. Nulidade do julgamento. Embargos de declaração
acolhidos, com efeitos infringentes.
1. O Superior Tribunal de Justiça formou a compreensão segundo a qual, na
hipótese de adiamento de processo de pauta, não se faz necessária nova publicação,
desde que o julgamento ocorra em razoável lapso temporal. (EREsp n. 474.475-SP, Rel.
Min. Humberto Martins, DJ de 14.3.2007).
2. No caso dos autos, tem-se que, entre a data em que estava previsto o
julgamento da presente reclamação e aquela em que ele efetivamente ocorreu,
transcorreu o lapso de, aproximadamente, um ano.
3. À luz das considerações acima, a hipótese em tela exige a aplicação do
entendimento consubstanciado nos precedentes desta Corte, consoante os
quais a nulidade do aresto se demonstra medida incontornável, afigurando-se
necessária a publicação da pauta.
4. Embargos de declaração acolhidos, com efeitos infringentes.
(EDcl na Rcl n. 1.215-DF, Rel. Ministro Og Fernandes, Terceira Seção, julgado em
24.6.2009, DJe 1º.7.2009)
Ação popular. Processo incluído em pauta. Adiamento do feito. Longo decurso
de prazo. Necessidade de nova publicação quando do efetivo julgamento.
1. Este Tribunal tem entendimento de que na hipótese de adiamento de processo
de pauta não se faz necessária nova publicação, desde que o novo julgamento ocorra
em razoável lapso temporal.
2. In casu, restou constatado o adiamento do feito inicialmente previsto para
julgamento em 20.5.2003. Contudo, o efetivo julgamento apenas realizou-se após
sete meses, sem nova publicação, de forma a cercear o direito dos recorrentes e
impedir, inclusive, a sustentação oral.
3. Evidenciado o prejuízo do recorrente, pela não-publicação da pauta de
julgamento em que se incluía o processo adiando, necessária a anulação do
julgamento, para que outro seja proferido, com respeito ao devido processo legal.
Embargos de divergência providos.
(EREsp n. 474.475-SP, Rel. Ministro Humberto Martins, Primeira Seção, julgado
em 14.3.2007, DJ 26.3.2007, p. 184)
RSTJ, a. 24, (226): 17-95, abril/junho 2012
55
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
Recurso especial. Processo Civil. Art. 552 do CPC. Adiamento automático.
Desnecessidade de nova publicação. Novo dia de julgamento. Prazo razoável.
1. O entendimento desta Corte Superior já se firmou pela desnecessidade
de nova publicação da pauta, quando de seu adiamento automático, como se
observa na espécie.
2. Realizado o julgamento na terceira sessão após aquela em que originariamente
deveria ter ocorrido, não se há falar, à luz do princípio da razoabilidade, em imposição
ao advogado de um dever de comparecer a todas as sessões a serem realizadas pelo
órgão julgador, mormente quando uma simples diligência junto ao Gabinete do
Desembargador-Relator já seria suficiente para afastar eventuais incertezas quanto à
data da apreciação do feito.
3. Recurso especial não conhecido.
(REsp n. 692.506-MT, Rel. Ministro Hélio Quaglia Barbosa, Quarta Turma,
julgado em 7.12.2006, DJ 5.2.2007, p. 243)
Consigno, ainda, que o fato do julgamento do agravo regimental ter sido
adiado para a sessão do dia 29.6.2010 não impediu o embargante de apresentar
memoriais, já que o recorrente foi intimado da inclusão do feito na pauta da
sessão do dia 19.5.2010.
Ademais, verifica-se da leitura do art. 159, caput, do Regimento Interno do
STJ, que não há previsão de sustentação oral em sede de regimental:
Art. 159. Não haverá sustentação oral no julgamento de agravo, embargos
declaratórios, argüição de suspeição e medida cautelar.
Quanto às omissões apontadas pelo embargante, entendo que pretende o
recorrente, na verdade, rediscutir questão já examinada pelo julgado recorrido,
finalidade incompatível com a estreita via dos embargos de declaração, quando
ausentes os requisitos do art. 535 do CPC, como na hipótese.
De fato, os embargos de declaração são instrumento integrativo da decisão
judicial e visam escoimá-la de vícios que prejudiquem a efetivação do comando
judicial, tais quais a obscuridade, a contradição e a omissão.
Diz-se omissa a sentença ou o acórdão que não aprecia a pretensão ou
parte dela ou que ainda não analisa a causa sob o prisma de questão relevante.
A relevância da questão surge da comprovação nos autos do fato jurídico
(AgRg no Ag n. 960.212-RS, Rel. Ministra Laurita Vaz, Quinta Turma, julgado
em 27.3.2008, DJe 28.4.2008) ou da correção da norma aplicável (EREsp
56
Jurisprudência da CORTE ESPECIAL
n. 739.036-PE, Rel. Ministro José Delgado, Rel. p/ Acórdão Ministra Eliana
Calmon, Primeira Seção, julgado em 23.8.2006, DJ 20.11.2006 p. 262). Por
se tratar de conceito aberto, é construído diuturnamente pela jurisprudência.
Nessa hipótese, poder-se-ia denominá-los embargos prequestionadores, ex vi da
Súmula n. 98-STJ.
A obscuridade é vício que afeta a compreensão do julgado (EDcl nos
EDcl no AgRg na MC n. 12.596-MT, Rel. Ministro Benedito Gonçalves,
Primeira Turma, julgado em 6.11.2008, DJe 13.11.2008). Embora sejam muito
tênues os limites entre a pretensão de expelir a obscuridade do acórdão e a
de lhe emprestar efeitos modificativos, são cabíveis os declaratórios sempre
que a decisão comportar interpretação dúbia, que deve ser suficientemente
demonstrada pela parte interessada.
Já a contradição, que deve ser interna, inerente ao julgado, entre suas partes
estruturais (EDcl no AgRg no AgRg no REsp n. 865.951-RS, Rel. Ministra
Eliana Calmon, Segunda Turma, julgado em 9.12.2008, DJe 27.2.2009), é a
utilização de premissas diversas das que levam ou levariam à conclusão adotada,
expressa na parte dispositiva da decisão.
O sistema admite ainda a correção do provimento judicial pelo
reconhecimento de erro material. Erro material é o equívoco manifesto na
decisão, resultante de inexatidões materiais (erro do nome da parte ou do
advogado (AgRg nos EDcl no Ag n. 1.058.521-RJ, Rel. Ministro Carlos
Fernando Mathias ( Juiz Federal convocado do TRF 1ª Região), Quarta Turma,
julgado em 17.2.2009, DJe 2.3.2009), erro na indicação de fls. do processo;
inclusão de índice de correção monetária reconhecidamente indevido ((EDcl
nos EDcl nos EDcl no AgRg nos EDcl no REsp n. 931.956-SP, Rel. Ministro
Benedito Gonçalves, Primeira Turma, julgado em 18.12.2008, DJe 11.2.2009),
etc.) e erros de cálculo (grafia incorreta do valor de R$ 2.000.000,00 quando o
correto seria R$ 2.000,00, etc).
Advirto que a eventual oposição de novos declaratórios com o objetivo de
rediscutir o juízo de admissibilidade do recurso dará ensejo à aplicação da multa
do art. 538, parágrafo único, do CPC.
Com essas considerações, rejeito os embargos declaratórios.
É o voto.
RSTJ, a. 24, (226): 17-95, abril/junho 2012
57
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
EMBARGOS DE DIVERGÊNCIA EM AGRAVO N. 1.186.352-DF
(2010/0069857-1)
Relator: Ministro Teori Albino Zavascki
Relator para o acórdão: Ministro Cesar Asfor Rocha
Embargante: Adélio Cláudio Basile Martins e outro
Advogados: Sandra Míriam de Azevedo Mello ECK
José Kleber Leite de Castro e outro(s)
Embargado: Ministério Público Federal
EMENTA
Embargos de divergência em agravo de instrumento. Enunciado
n. 315 da Súmula-STJ. Embargos não conhecidos.
– Nos termos do art. 546, incisos I e II, do Código de Processo
Civil e do art. 266 do RISTJ, cabem embargos de divergência,
apenas, contra acórdão proferido em recurso especial e em recurso
extraordinário.
– São cabíveis embargos de divergência, ainda, diante da exceção
criada pela jurisprudência da Corte, nas hipóteses em que se conhece
do agravo de instrumento previsto no art. 544, caput, do Código de
Processo Civil para dar provimento ao recurso especial na forma do
§ 3º do mesmo dispositivo. É que, nesse caso, embora dispensada a
reautuação do feito, o próprio recurso especial terá sido julgado.
– Inadmitido o recurso especial na origem e desprovidos o
agravo de instrumento (atual agravo em REsp) e o respectivo agravo
regimental nesta Corte, mesmo que adotada fundamentação que passe
pelo exame do mérito do apelo extremo, descabe a interposição de
embargos de divergência, incidindo a vedação contida no Enunciado
n. 315 da Súmula-STJ.
Embargos de divergência não conhecidos.
ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos os autos em que são partes as acima indicadas,
acordam os Ministros da Corte Especial do Superior Tribunal de Justiça,
58
Jurisprudência da CORTE ESPECIAL
na conformidade dos votos e das notas taquigráficas a seguir, prosseguindo
no julgamento, após o voto-vista do Sr. Ministro Humberto Martins não
conhecendo dos embargos de divergência, e as retificações de voto dos Srs
Ministros Massami Uyeda e Maria Thereza de Assis Moura, e os votos dos
Srs. Ministros Felix Fischer, Gilson Dipp e Laurita Vaz, a Corte Especial,
por maioria, não conhecer dos embargos de divergência, nos termos do voto
do Senhor Ministro Cesar Asfor Rocha. Vencidos os Srs. Ministros Relator e
Arnaldo Esteves Lima.
Lavrará o acórdão o Sr. Ministro Cesar Asfor Rocha. Votaram com o
Sr. Ministro Cesar Asfor Rocha os Srs. Ministros Felix Fischer, Gilson Dipp,
Laurita Vaz, Castro Meira, Massami Uyeda, Humberto Martins e Maria
Thereza de Assis Moura.
Ausentes, justificadamente, os Srs. Ministros Eliana Calmon, Francisco
Falcão, Nancy Andrighi, João Otávio de Noronha e Arnaldo Esteves Lima.
Brasília (DF), 21 de março de 2012 (data do julgamento).
Ministro Ari Pargendler, Presidente
Ministro Cesar Asfor Rocha, Relator p/ o acórdão
DJe 10.5.2012
RELATÓRIO
O Sr. Ministro Teori Albino Zavascki: Trata-se de embargos de divergência
opostos em face de acórdão da 2ª Turma que, ao negar provimento a agravo
regimental e, assim, manter o improvimento de agravo de instrumento, decidiu
que, “nos termos do art. 806 do CPC, o prazo para a propositura da ação
principal é contado do efetivo cumprimento da cautelar preparatória, ainda que
em liminar” (fl. 389), como tal considerado o “último ato de consumação do
cumprimento da medida” (fl. 431).
Sustentam os embargantes que o acórdão embargado diverge do
entendimento manifestado pela 3ª Turma (REsp n. 757.625-SC, Min. Nancy
Andrighi), segundo o qual, em se cuidando de medida liminar que deve ser
efetivada em partes, o prazo para o ajuizamento da ação principal inicia-se a
partir do cumprimento do primeiro ato, e não de sua execução integral.
Em impugnação (fls. 465-469), o MPF aduz, em preliminar, o não
RSTJ, a. 24, (226): 17-95, abril/junho 2012
59
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
conhecimento dos embargos, tendo em vista a Súmula n. 315-STJ. No mérito,
pleiteia a rejeição dos embargos, pois o acórdão impugnado está em consonância
com a orientação do Superior Tribunal de Justiça (REsp n. 669.353-AP e REsp
n. 1.053.818-MT).
É o relatório.
VOTO
Ementa: Processual Civil. Medida cautelar. Cumprimento por
partes. Indisponibilidade de bens. Início do prazo para o ajuizamento
da ação principal: primeiro ato constritivo. Art. 806 do CPC.
1. Ao estabelecer o prazo de trinta dias “contados da efetivação da
medida cautelar” como marco final do ajuizamento da ação principal,
o art. 806 do CPC tem o evidente propósito de resguardar a situação
do demandado, cujo patrimônio - material ou jurídico - não pode ficar
sujeito indefinidamente a constrição judicial, sem que a parte autora
deduza em juízo a correspondente demanda, que, além de dar suporte
e justificação à medida constritiva, ensejará oportunidade de defesa e
contraditório.
2. Assim, a interpretação teleológica e sistemática do art. 806 do
CPC conduz à conclusão de que, em se tratando de medida cautelar
que comporta efetivação por partes, o prazo para o ajuizamento da
ação principal inicia-se a partir do cumprimento do primeiro ato
constritivo do patrimônio do demandado, e não do último.
3. Embargos de divergência providos.
O Sr. Ministro Teori Albino Zavascki (Relator): 1. Ao julgar o agravo
regimental (fls. 387-392), mantendo decisão que negou provimento ao agravo de
instrumento (fls. 363-365), o acórdão embargado apreciou a matéria do próprio
recurso especial, aplicando-se, portanto, a Súmula n. 316-STJ, segundo a qual
“cabem embargos de divergência contra acórdão que, em agravo regimental,
decide recurso especial”.
2. Há identidade fática entre o acórdão embargado e o paradigma,
que versam sobre o início do prazo para a interposição da ação principal,
quando a medida cautelar deferida comporta cumprimento por partes. No
acórdão embargado, ficou reconhecido que tal prazo tem início com o efetivo
60
Jurisprudência da CORTE ESPECIAL
cumprimento da cautelar preparatória, ou seja, “do último ato de consumação do
cumprimento da medida” (fl. 431), ao passo que, no acórdão paradigma, decidiuse que o cômputo do referido prazo deve se dar a partir do cumprimento do
primeiro ato. Conheço, pois, dos embargos de divergência.
3. No mérito, dou-lhes provimento, confirmando o entendimento
assentado no acórdão paradigma - REsp n. 757.625-SC, de relatoria da Min.
Nancy Andrighi. Com efeito, ao estabelecer o prazo de trinta dias “contados
da efetivação da medida cautelar” como marco final do ajuizamento da ação
principal, o art. 806 do CPC tem o evidente propósito de resguardar a situação
do demandado, cujo patrimônio - material ou jurídico - não pode ficar sujeito
indefinidamente a constrição judicial, sem que a parte autora deduza em juízo
a correspondente demanda, que, além de dar suporte e justificação à medida
constritiva, ensejará oportunidade de defesa e contraditório. Tanto isso é verdade
que a conseqüência decorrente do não-atendimento do referido prazo é a
cessação da eficácia da medida cautelar, conforme faz certo o art. 808, I do CPC.
Não é por outra razão, aliás, que a observância do prazo previsto no citado art.
806 só é obrigatória em relação a medidas cautelares que acarretem invasão na
esfera jurídica ou patrimonial da parte contrária.
Assim, a interpretação teleológica e sistemática do art. 806 do CPC
conduz à convicção do acerto do acórdão paradigma, segundo o qual, em
se tratando de medida liminar que deve ser efetivada em partes, o prazo
para o ajuizamento da ação principal inicia-se a partir do cumprimento do
primeiro ato, e não de sua execução integral, cuja efetivação não tem prazo
determinado. Esse é, aliás, o entendimento predominante no STJ, como
se pode constatar, entre outros, no REsp n. 7.084-RS, 3ª Turma, DJ de
15.4.1991, de relatoria do Min. Eduardo Ribeiro, em cujo voto a matéria
ficou assim definida:
A concessão de cautelar - especificamente o seqüestro - importa seja afetada a
disponibilidade do bem, atingida, pois, a esfera jurídica do réu, sem que se possa
ainda afirmar tenha o autor razão. Isto só será definido após o trânsito em julgado
da sentença, no processo cuja eficácia a cautelar visa a garantir. Mister que ele
diligencie, desde logo, no sentido de obter provimento jurisdicional definitivo.
Ora, a restrição ao direito do réu ocorre no momento mesmo em que se verifica
um ato qualquer de constrição, obstando-lhe disponha do bem seqüestrado.
Não importa que a medida compreenda outros bens. Releva que já existe sério
embaraço ao exercício de direito pelo réu.
Admitir-se a tese aceita pelo acórdão conduzirá à possibilidade de o autor
providenciar no sentido da apreensão de alguns bens e desinteressar-se quanto
RSTJ, a. 24, (226): 17-95, abril/junho 2012
61
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
a outros, não fornecendo os meios a isso necessário, o que poderia alongar
indefinidamente o prazo de que dispõe.
Não se alegue que a medida há de ser executada em trinta dias, pena de
tornar-se ineficaz (art. 808, II). O entendimento corrente é de que tal prazo tem-se
como atendido, uma vez praticados os primeiros atos de apreensão, ainda que
não concluídos todos. O argumento, aliás, reforça a tese de que o prazo se conta
da lavratura do primeiro auto.
Tenho, pois, como exata a observação de HUMBERTO THEODORO JR ao
escrever:
Mas o prazo de ajuizamento da ação principal deve forçosamente ser
contado do primeiro ato de execução material da medida cautelar e não do
último da série, porque, desde o primeiro, já existira “efetivação da medida”
- Comentário ao C.P.C v. 5 p. 153 Forense 1978.
O outro argumento diz com a necessidade da ciência, ao autor, de que a
medida foi efetivada. Para tanto, seria mister a juntada do mandado aos autos.
Se o prazo só flui do momento em que se possa afirmar que o autor teve
conhecimento da realização do ato, não bastaria o ingresso do mandado nos
autos. Seria impositivo se procedesse a intimação. Tal exigência, entretanto, de
modo nenhum se encontra na lei. Esta é claríssima em mencionar que os trinta
dias serão contados “da data da efetivação da medida cautelar”.
Perfeitamente justificável que assim seja. A medida cautelar supõe urgência.
Se a providência requerida apresenta-se com esse caráter, é evidente que a parte
cuidará para que seja quanto antes executada e tomará conhecimento de que
o foi. O Código teve em conta essa realidade e dispôs em consonância com ela.
Distanciando-me, no ponto, da lição de GALENO LACERDA, tenho como exata a
advertência de CALMON DE PASSOS, quando assinala:
Da efetivação da medida não é intimado o autor. A ele se dá ciência
da concessão da media. Essa ciência, entretanto, não opera para efeito
de contagem do prazo de 30 dias. Destarte, cumpre ao autor estar atento
à efetivação da medida, porquanto desse ato ele não terá ciência e no
entretanto com ele se iniciará o curso do prazo que tem para ajuizar a ação
principal.
Comentário ao Código de Processo Civil – vol. X - tomo I – p. 213 - Rev.
dos Tribunais - 1984.
Ressalva, apenas, a hipótese de o autor não haver sido cientificado da decisão
concessiva da medida, questão não versada no caso em julgamento.
Por todo o exposto, conheço do recurso, pelas alíneas a e c, e dou-lhe
provimento, por entender que contrariado o disposto no artigo 806 do Código de
Processo Civil.
62
Jurisprudência da CORTE ESPECIAL
O Sr. Ministro Dias Trindade: Sr. Presidente, é possível entender que a efetivação
da medida cautelar se dá no primeiro ato de constrição. Assim, como foi
esclarecido da Tribuna, o ato pelo qual foi efetivado o seqüestro, foi aquele
em que o Oficial de Justiça chegou ao depósito e disse: “Está apreendida essa
mercadoria”, e lavrou o auto. O transporte dessa mercadoria para outro depósito,
para ficar à disposição do depositário, são atos subseqüentes, mas a contagem
deve ser daquele primeiro ato.
No mesmo sentido: REsp n. 1.115.370-SP, 1ª T., Min. Benedito Gonçalves,
DJe de 30.3.2010; e REsp n. 119.743-PR, 1ª T., Min. José Delgado, DJ de
6.4.1998.
Esse entendimento tem o amparo de boa doutrina, como demonstra
Alcidez Munhoz da Cunha (Comentários ao Código de Processo Civil - Do
processo cautelar. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2001, p. 716-717):
Razão assiste a CALMON DE PASSOS, quando diz que se deve considerar como
efetivada a medida a partir do ato que documenta, nos autos, o cumprimento
da decisão judicial. Deve tratar-se de documentação formal nos autos e essa
documentação deverá ser pertinente ao primeiro ato de execução e não ao
último da série, como adverte HUMBERTO THEODORO JÚNIOR, que nesse
passo contraria posição de OVÍDIO BAPTISTA DA SILVA. Assim, se a decisão é
de eficácia executiva lato sensu e seu cumprimento deve ser imediato, através
de atos materiais que não dependem do concurso da vontade do destinatário,
tal como se dá com ordem de busca, apreensão e depósito, considerar-se-á
efetivada a medida a partir do momento em que se documentar a efetivação da
diligência; se a decisão é de eficácia mandamental, considerar-se-á efetivada a
partir do momento em que se documenta nos autos que ocorreu a cientificação
do destinatário da medida que suspendeu um contrato, uma licitação ou que, de
qualquer modo, determinou um fazer ou não fazer ao destinatário (...).
4. Diante do exposto, dou provimento aos embargos de divergência. É o
voto.
VOTO-VENCIDO
O Sr. Ministro Arnaldo Esteves Lima: Sr. Presidente, embora o art. 806
diga que esse prazo de trinta dias para propor a ação principal conta-se da
data da efetivação da medida cautelar, creio que, realmente, se se trata de uma
medida que vai se efetivar por etapas, cumprida a primeira, a parte pode muito
RSTJ, a. 24, (226): 17-95, abril/junho 2012
63
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
bem ajuizar essa ação, e as demais serão cumpridas no curso, para não ficar essa
situação indefinida para a parte contrária.
Acompanho o voto do eminente Relator.
VOTO
O Sr. Ministro Massami Uyeda: Sr. Presidente, admito e acompanho
o voto do eminente Relator no sentido de dar provimento aos embargos de
divergência.
VOTO-VISTA
Ementa: Processual Civil. Indisponibilidade de bens. Prazo
decadencial. Termo a quo da efetivação da medida liminar. Voto em
concordância com o relator.
O Sr. Ministro Humberto Martins: Cuida-se de embargos de divergência
em agravo opostos por Adélio Cláudio Basile Martins e Outro em face de acórdão
de minha relatoria que negou provimento ao agravo de instrumento dos
agravantes, conforme ementa que segue:
Processual Civil. Indisponibilidade de bens. Liminar. Ação principal. Termo a
quo. Efetivação da liminar. Acórdão recorrido em consonância com jurisprudência
do STJ. Súmula n. 83-STJ.
1. A jurisprudência desta Corte é no sentido de que, nos termos do art. 806
do CPC, o prazo para a propositura da ação principal é contado do efetivo
cumprimento da cautelar preparatória, ainda que em liminar.
2. Verifica-se que o Tribunal a quo decidiu de acordo com jurisprudência desta
Corte. Incidência da Súmula n. 83-STJ, verbis: “Não se conhece do recurso especial
pela divergência, quando a orientação do Tribunal se firmou no mesmo sentido
da decisão recorrida”.
Agravo regimental improvido.
(AgRg no Ag n. 1.186.352-DF, Rel. Min. Humberto Martins, Segunda Turma,
julgado em 9.2.2010, DJe 22.2.2010.)
Voto proferido pelo Relator Ministro Teori Zavascki deu provimento aos
embargos, acolhendo a jurisprudência da 3ª Turma do Superior Tribunal de
Justiça, a saber:
64
Jurisprudência da CORTE ESPECIAL
Processo Civil. Recurso especial. Medida cautelar preparatória à ação
principal, cujo provimento só foi obtido em acórdão proferido no julgamento da
apelação de sentença de improcedência. Efetivação das providências deferidas
pelo acórdão. Interposição do recurso especial. Alegação de perda do prazo
de trinta dias para o ajuizamento da ação principal antes que fosse possível
verificar a concretização do provimento jurisdicional cautelar. Impossibilidade
de provimento ao recurso especial, para se declarar extinta a cautelar, em face da
juntada de documentos em fase posterior à interposição do recurso. Ausência de
prequestionamento. Deficiência de fundamentação. Violação ao art. 535 do CPC
afastada.
- Não se reconhece violação ao art. 535 do CPC quando ausentes omissão,
contradição ou obscuridade no acórdão.
- Nos termos da jurisprudência consolidada pela 2ª Seção do STJ, não basta o
fato de que a ação principal deixou de ser proposta em 30 dias após a concessão
da cautelar, pois é da efetivação do provimento concedido que se dá início à
contagem do prazo decadencial para a propositura da ação principal.
- Mais precisamente, nos termos da jurisprudência da 3ª Turma do STJ, para
hipóteses nas quais o provimento cautelar pode ser executado por partes,
como ocorre na presente hipótese, conta-se o prazo decadencial de 30 dias para
a propositura da ação principal a partir do primeiro ato de execução.
- Para delimitar com clareza o momento em que se iniciou o primeiro ato
restritivo na presente hipótese, contudo, seria necessário analisar fatos e provas
posteriores à propositura do próprio recurso especial, o que não se afigura
possível. Precedente.
- Apesar disso, deve-se consignar expressamente, para evitar prejuízo à ora
recorrente, que a ausência de propositura da ação principal, e a possível extinção
do processo cautelar em face dessa circunstância, são questões que permanecem
em aberto para exame nas instâncias ordinárias.
- Quanto à alegada ausência de fumus boni iuris e de periculum in mora, tais
questões estão vinculadas à matéria probatória, incidindo sobre a questão a
Súmula n. 7-STJ. Precedentes.
- Não se conhece de recurso especial quando ausente o prequestionamento
da matéria.
- Não se conhece de recurso especial na parte em que este se encontra
deficientemente fundamentado.
Recurso especial não conhecido.
(REsp n. 757.625-SC, Rel. Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em
19.10.2006, DJ 13.11.2006, p. 257 - grifei.)
RSTJ, a. 24, (226): 17-95, abril/junho 2012
65
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
Em judicioso voto, o Ministro Teori Zavascki propôs a seguinte ementa:
Processual Civil. Medida cautelar. Cumprimento por partes. Indisponibilidade
de bens. Início do prazo para o ajuizamento da ação principal. Primeiro ato
constritivo. Art. 806 do CPC.
1. Ao estabelecer o prazo de trinta dias “contados da efetivação da medida
cautelar” como marco final do ajuizamento da ação principal, o art. 806 do
CPC tem o evidente propósito de resguardar a situação do demandado, cujo
patrimônio - material ou jurídico - não pode ficar sujeito indefinidamente a
constrição judicial, sem que a parte autora deduza em juízo a correspondente
demanda, que, além de dar suporte e justificação à medida constritiva, ensejará
oportunidade de defesa e contraditório.
2. Assim, a interpretação teleológica e sistemática do art. 806 do CPC conduz
à conclusão de que, em se tratando de medida cautelar que comporta efetivação
por partes, o prazo para o ajuizamento da ação principal inicia-se a partir do
cumprimento do primeiro ato constritivo do patrimônio do demandado, e não
do último.
3. Embargos de divergência providos.
É, no essencial, o relatório.
Acompanho o voto do Relator Ministro Teori Zavascki.
O acórdão que relatei merece reforma, porque não está em sintonia com a
jurisprudência desta Corte Superior.
Com efeito, quando afirmei no julgado embargado que o prazo para a
propositura da ação principal é contado do efetivo cumprimento da cautelar
preparatória, ainda que em liminar, quis dizer que o prazo inicial é aquele do
cumprimento da decisão que deferiu a indisponibilidade dos bens. Não foi por
outro motivo que coloquei na decisão a expressão “ainda que em liminar”.
Por este motivo, observo que o fundamento do julgado da minha relatoria
está correto, mas não o resultado.
Com efeito, se entendo ser o efetivo cumprimento da cautelar ainda que
em liminar, evidentemente que o prazo decadencial para a propositura da ação
inicia-se da primeira execução que determinou a indisponibilidade dos bens.
Por este motivo, concordo com o voto apresentado pelo Ministro Teori
Zavascki, pois compartilho do entendimento de que “a interpretação teleológica
e sistemática do art. 806 do CPC conduz à conclusão de que, em se tratando de
medida cautelar que comporta efetivação por partes, o prazo para o ajuizamento
66
Jurisprudência da CORTE ESPECIAL
da ação principal inicia-se a partir do cumprimento do primeiro ato constritivo
do patrimônio do demandado, e não do último”.
Ante o exposto, acompanhando o Ministro Relator, dou provimento aos
embargos de divergência.
É como penso. É como voto.
VOTO-VISTA
O Sr. Ministro Cesar Asfor Rocha: Embargos de divergência opostos por
Adélio Cláudio Basile Martins e por Maria Marli dos Santos Martins contra
o acórdão de fls. 387-392, da Segunda Turma, da relatoria do em. Ministro
Humberto Martins, assim ementado:
Processual Civil. Indisponibilidade de bens. Liminar. Ação principal. Termo a
quo. Efetivação da liminar. Acórdão recorrido em consonância com jurisprudência
do STJ. Súmula n. 83-STJ.
1. A jurisprudência desta Corte é no sentido de que, nos termos do art. 806
do CPC, o prazo para a propositura da ação principal é contado do efetivo
cumprimento da cautelar preparatória, ainda que em liminar.
2. Verifica-se que o Tribunal a quo decidiu de acordo com jurisprudência desta
Corte. Incidência da Súmula n. 83-STJ, verbis: “Não se conhece do recurso especial
pela divergência, quando a orientação do Tribunal se firmou no mesmo sentido
da decisão recorrida”.
Agravo regimental improvido.
A Segunda Turma rejeitou, ainda, os declaratórios dos ora embargantes,
asseverando, também, que:
Com efeito, ainda que se considere a argumentação dos agravantes de que
ficou claro que se trata de execução de medida liminar por partes quando o
Tribunal de origem consignou que a medida liminar não foi totalmente efetivada,
a hodierna e pacífica jurisprudência desta Corte é no sentido de que o prazo
para a propositura da ação principal é contado do efetivo cumprimento da
medida cautelar, ainda que em liminar, ou seja, do último ato de consumação do
cumprimento da medida, consoante julgados acima colacionados (fl. 414).
Sobre o cabimento dos embargos, alegam os embargantes, preliminarmente,
que não incide no caso a vedação contida no Enunciado n. 315 da Súmula
desta Corte. Apesar de se cuidar de agravo de instrumento interposto contra
RSTJ, a. 24, (226): 17-95, abril/junho 2012
67
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
a inadmissibilidade de recurso especial, a Segunda Turma teria enfrentado
o mérito do referido apelo, relativamente ao prazo do art. 806 do Código
de Processo Civil. Ressaltam, ainda, que, na decisão que julgou o agravo de
instrumento, consta a referência ao art. 544, § 3º, primeira parte, do Código de
Processo Civil.
Sustentam, no mérito recursal, que a jurisprudência atual do Superior
Tribunal de Justiça tem entendido “que o prazo para a interposição da ação
principal começa a contar do cumprimento do primeiro ato, quando se tratar
de liminar que deva ser efetivada por partes” (fl. 429). Para comprovar o dissídio
jurisprudencial, trazem o seguinte precedente da Terceira Turma:
Processo Civil. Recurso especial. Medida cautelar preparatória à ação
principal, cujo provimento só foi obtido em acórdão proferido no julgamento da
apelação de sentença de improcedência. Efetivação das providências deferidas
pelo acórdão. Interposição do recurso especial. Alegação de perda do prazo
de trinta dias para o ajuizamento da ação principal antes que fosse possível
verificar a concretização do provimento jurisdicional cautelar. Impossibilidade
de provimento ao recurso especial, para se declarar extinta a cautelar, em face da
juntada de documentos em fase posterior à interposição do recurso. Ausência de
prequestionamento. Deficiência de fundamentação. Violação ao art. 535 do CPC
afastada.
[...]
- Nos termos da jurisprudência consolidada pela 2ª Seção do STJ, não basta o
fato de que a ação principal deixou de ser proposta em 30 dias após a concessão da
cautelar, pois é da efetivação do provimento concedido que se dá início à contagem
do prazo decadencial para a propositura da ação principal.
- Mais precisamente, nos termos da jurisprudência da 3ª Turma do STJ, para
hipóteses nas quais o provimento cautelar pode ser executado por partes, como
ocorre na presente hipótese, conta-se o prazo decadencial de 30 dias para a
propositura da ação principal a partir do primeiro ato de execução.
[...]
- Não se conhece de recurso especial na parte em que este se encontra
deficientemente fundamentado.
Recurso especial não conhecido (REsp n. 757.625-SC, Terceira Turma, Ministra
Nancy Andrighi, DJ de 13.11.2006).
O em. Ministro Teori Albino Zavascki admitiu os embargos de divergência
assim:
68
Jurisprudência da CORTE ESPECIAL
1. Trata-se de embargos de divergência opostos em face de acórdão da 2ª
Turma que, ao negar provimento ao agravo regimental e manter a negativa de
provimento do agravo de instrumento, afirmou “(...) nos termos do art. 806 do CPC,
o prazo para a propositura da ação principal é contado do efetivo cumprimento
da cautelar preparatória, ainda que em liminar” (fl. 389).
Sustentam os embargantes que o acórdão embargado diverge do
entendimento manifestado pela 3ª Turma (REsp n. 757.625-SC, Min. Nancy
Andrighi), segundo o qual, em se tratando de medida liminar que deve ser
efetivada em partes, o prazo para o ajuizamento da ação principal inicia-se a
partir do cumprimento do primeiro ato, e não de sua execução integral.
2. Diante do exposto, admito os presentes embargos de divergência, com vista
ao embargado para impugnação, nos termos do artigo 267 do Regimento Interno
do STJ. Intime-se (fl. 460).
O Dr. Aurélio Virgílio Veiga Rios, ilustrado Subprocurador-Geral da
República, apresentou contrarrazões arguindo, como preliminar, a incidência
do Enunciado n. 315 da Súmula desta Corte. No mérito, postula a rejeição dos
embargos, por entender que o prazo do art. 806 do Código de Processo Civil
corre a partir do efetivo cumprimento da cautelar preparatória (fls. 465-469).
O em. Ministro Teori Albino Zavascki, então, deu provimento aos
embargos de divergência. Preliminarmente, afirmou que, ao julgar o agravo
regimental, o acórdão embargado apreciou a matéria do próprio recurso especial,
aplicando-se, portanto, o Enunciado n. 316 da Súmula desta Corte, segundo o
qual “cabem embargos de divergência contra acórdão que, em agravo regimental,
decide recurso especial”.
No tocante ao mérito, acompanhou o entendimento do paradigma, tendo
em vista que a interpretação teleológica e sistemática do art. 806 do Código
de Processo Civil conduz à orientação de que o prazo para o ajuizamento da
ação principal inicia-se a partir do cumprimento do primeiro ato, e não de sua
execução integral, cuja efetivação não tem prazo determinado. Cita, ainda: REsp
n. 7.084-RS, REsp n. 1.115.370-SP e REsp n. 119.743-PR.
O em. Ministro Humberto Martins, em voto-vista, acompanhou o relator,
ressaltando que, quando afirmou no julgado embargado que o prazo para a
propositura da ação principal é contado do efetivo cumprimento da cautelar
preparatória, ainda que em liminar, quis dizer que o prazo inicial é aquele do
cumprimento da decisão que deferira a indisponibilidade dos bens. Assim, o
fundamento do acórdão embargado estaria correto, mas não o resultado.
RSTJ, a. 24, (226): 17-95, abril/junho 2012
69
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
Acompanharam, também, o relator os em. Ministros Castro Meira,
Arnaldo Esteves Lima, Massami Uyeda e Maria Thereza de Assis Moura.
Encerrado o relatório acima, passo a votar, entendendo, preliminarmente,
que os presentes embargos de divergência são incabíveis. Ressalto a importância
de que essa questão seja uniformizada definitivamente neste Tribunal.
Nos termos do art. 546, incisos I e II, do Código de Processo Civil e do
art. 266 do RISTJ, cabem embargos de divergência, apenas, contra acórdão
proferido em recurso especial e em recurso extraordinário. A jurisprudência
da Corte abriu exceção para a hipótese em que se conhece do agravo de
instrumento previsto no art. 544, caput, do Código de Processo Civil para dar
provimento ao recurso especial na forma do § 3º do mesmo dispositivo. É que,
nesse caso, embora dispensada a reautuação do feito, o próprio recurso especial
terá sido julgado.
No caso em debate, entretanto, inadmitido o recurso especial na origem, por
“contrariar a jurisprudência” desta Corte Superior – incidência do Enunciado n.
83 da Súmula-STJ (fl. 350) –, ao agravo de instrumento (atual agravo em REsp)
e ao respectivo agravo regimental se negou provimento com base no mesmo
enunciado (cf. fls. 364-365 e 387-392).
Para afastar qualquer dúvida e porque alegado nos embargos de divergência,
observo que a decisão monocrática do em. Ministro Humberto Martins de fls.
363-365, apesar de mencionar inicialmente o art. 544, § 3º, do Código de
Processo Civil e dizer que, “atendidos os pressupostos de admissibilidade do
agravo de instrumento” (fl. 364), passaria “ao exame do recurso especial” (fl.
364), julgou tão somente, na verdade, o agravo de instrumento, negando-lhe
provimento, volto a dizer, com base exclusivamente no enunciado n. 83 da
Súmula desta Corte. E nem poderia ser diferente, tendo em vista que a norma
do § 3º do art. 544 do Código de Processo Civil apenas permite o provimento
do recurso especial nos próprios autos do agravo de instrumento, sem necessidade
de reautuação do feito, quando “o acórdão recorrido estiver em confronto com
a súmula ou jurisprudência dominante do Superior Tribunal de Justiça”. Aqui,
como o em. relator do agravo invocou o enunciado n. 83 da Súmula desta Corte
para manter a negativa de seguimento do recurso especial, apenas seria possível
o simples desprovimento do mesmo agravo.
Com isso, certo ou errado, o recurso especial permaneceu não admitido,
sendo incabíveis os embargos de divergência, mesmo que se tenha passado pelo
tema de mérito do apelo extremo mediante o exame da jurisprudência predominante.
70
Jurisprudência da CORTE ESPECIAL
Incide a orientação do Enunciado n. 315 da Súmula desta Corte, com o
seguinte teor:
Não cabem embargos de divergência no âmbito do agravo de instrumento
que não admite recurso especial (Enunciado n. 315).
Entender de forma diversa, a meu ver, implica criar, sem amparo na lei ou
no regimento interno, mais uma hipótese recursal neste Tribunal, não bastassem
as tantas já existentes.
Para encerrar a análise desse ponto, quanto ao Enunciado n. 316 da
Súmula do STJ, invocado pelo em. Ministro Teori Albino Zavascki, data venia,
é de ver que não é aplicável ao caso em debate. O referido enunciado é expresso
ao dispor sobre o cabimento de embargos de divergência “contra acórdão que,
em agravo regimental, decide recurso especial”.
A necessidade de sumular esse entendimento surgiu com a edição da
Lei n. 9.756, de 17.12.1998, que, dando nova redação ao art. 557 do Código
de Processo Civil, passou a permitir, expressamente, ao relator que julgasse
monocraticamente, também, o recurso especial. A partir daí, passou-se a admitir
o cabimento de embargos de divergência contra acórdão proferido em agravo
regimental, desde que esse tenha sido interposto contra decisão monocrática de
relator que tenha julgado o recurso especial. Enfim, amenizou-se a orientação
do Supremo Tribunal Federal, representada no Enunciado n. 599 da SúmulaSTF, com o seguinte teor:
São incabíveis embargos de divergência de decisão da Turma, em agravo
regimental (grifo meu).
Aqui, portanto, não tendo sido julgado pelo em. Ministro Humberto
Martins, efetivamente, o recurso especial, mas o agravo de instrumento –
improvido –, não incide o enunciado n. 316 da Súmula desta Corte, sendo
irrelevante que se tenha feito menção à jurisprudência deste Tribunal Superior.
Para ilustrar, confiram-se os seguintes acórdãos desta Corte Especial
a respeito do descabimento dos embargos de divergência em agravo de
instrumento:
Revisão de renda mensal inicial de aposentadoria por invalidez. Reexame
necessário. Ausência de apelo fazendário. Recurso especial inadmitido na origem.
Preclusão lógica. Agravo de instrumento não provido. Embargos de divergência.
Descabimento. Precedentes. Súmula n. 315-STJ.
RSTJ, a. 24, (226): 17-95, abril/junho 2012
71
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
I - Os embargos de divergência em agravo de instrumento somente são
cabíveis quando o agravo é conhecido e o recurso especial provido, com base
no art. 544, § 3º, do CPC, sendo possível, no julgamento dos embargos, apenas
discussão sobre o mérito do apelo especial, jamais a revisão dos requisitos de
sua admissibilidade, nos temos da tranquila jurisprudência desta Corte Especial
e da Súmula n. 315-STJ. Precedentes: AgRg nos EAg n. 682.475-DF, Rel. Min. Aldir
Passarinho Junior, Corte Especial, DJe de 23.3.2009; AgRg nos EAg n. 865.381-SP,
Rel. Min. Mauro Campbell Marques, Primeira Seção, DJe de 21.8.2009; AgRg na Pet
n. 1.590-MG, Rel. Min. Hélio Quaglia Barbosa, Terceira Seção, DJ de 21.3.2005; AgRg
nos EAg n. 995.092-SP, Rel. Min. Luiz Fux, Corte Especial, DJe de 4.8.2009.
II - Agravo regimental improvido (AgRg nos EAg n. 1.193.812-MG, Ministro
Francisco Falcão, DJe de 29.8.2011).
Agravo regimental. Embargos de divergência em agravo. Recurso especial não
admitido na origem. Enunciado n. 315 da Súmula desta Corte. Divergência não
caracterizada.
– “Não cabem embargos de divergência no âmbito do agravo de instrumento
que não admite recurso especial” (Enunciado n. 315 da Súmula desta Corte).
– Descabimento dos embargos também porque não comprovada a
divergência. Enquanto o acórdão embargado negou provimento ao agravo
regimental diante da ausência dos requisitos necessários à admissibilidade do
recurso especial, os paradigmas enfrentaram o tema de mérito, relativo à URV.
– Paradigma do mesmo colegiado que proferiu o acórdão embargado não
serve para comprovar a divergência.
Agravo regimental improvido (AgRg nos EAg n. 1.349.632-MG, da minha
relatoria, DJe de 1º.7.2011).
Ante o exposto, preliminarmente, não conheço dos embargos de divergência.
VOTO-VISTA
O Sr. Ministro Castro Meira: Senhor Presidente, peço licença para
encampar o detalhado relatório elaborado pelo Sr. Min. César Asfor Rocha e,
assim, passar a tratar diretamente da questão processual em discussão que, como
bem destacado, exige, de uma vez por todas, um tratamento homogêneo por este
Superior Tribunal de Justiça – o cabimento dos embargos de divergência contra
acórdão tirado de agravo regimental em agravo de instrumento.
No caso vertente, os embargos de divergência foram apresentados contra
acórdão que, no âmbito de agravo regimental, confirmou a decisão singular que
72
Jurisprudência da CORTE ESPECIAL
deixou de prover agravo de instrumento em razão da incidência da Súmula n.
83-STJ, isto é, diante da harmonia entre o entendimento da instância ordinária
e a jurisprudência desta Corte Superior quanto à matéria de fundo da querela.
A meu sentir, essa é a situação perfeita para que sejam definidos os
estritos contornos do cabimento dos embargos de divergência em agravo de
instrumento, porquanto a espécie envolve os dois pontos que, combinados,
geram os mais acalorados debates acerca desse tópico, a saber, (i) a inadmissão
do próprio agravo, sem prévia ou concomitante convolação em recurso especial,
e (ii) o contato com o mérito da controvérsia através da análise da jurisprudência
majoritária.
Afinal, o que importa a determinar a admissibilidade dos embargos de
divergência? Aplicar a Súmula n. 83-STJ seria suficiente a autorizar o manejo
dos embargos, ainda que o aresto contestado tenha somente ratificado o
desacolhimento puro e simples do agravo de instrumento?
Após meditar sobre o tema e consultar comparativamente legislação,
doutrina e jurisprudência, tenho que a resposta é negativa, o que me leva a
acompanhar, assim, a divergência inaugurada pelo ilustre Min. César Asfor
Rocha, acrescentando aos precedentes já coligidos em seu voto-vista os seguintes
julgados da Corte Especial em igual sentido:
Processual Civil. Agravo regimental nos embargos de divergência em agravo
de instrumento. Súmula n. 315-STJ. Incidência. Agravo não provido.
1. “Não cabem embargos de divergência no âmbito do agravo de instrumento
que não admite recurso especial” (Súmula n. 315-STJ). O óbice em referência não
tem sido aplicado nos casos em que o agravo de instrumento é convertido em
recurso especial ou quando este é julgado diretamente, conforme autoriza o art.
544, § 3º, do CPC, havendo exame do próprio mérito. Precedentes do STJ.
2. Agravo regimental não provido (AgEAg n. 727.416-MG, Corte Especial, Rel.
Min. Arnaldo Esteves Lima, DJe 9.11.2010);
Processual Civil. Agravo regimental. Embargos de divergência. Decisão
proferida em agravo de instrumento. Descabimento. CPC, art. 546, I. RISTJ, art.
266. Súmula n. 315-STJ.
I. A orientação firmada pelo STJ é no sentido de apenas serem cabíveis
embargos de divergência contra decisão proferida no âmbito de recurso especial,
inadmissível o recurso em sede de agravo de instrumento, em face do preceituado
nos arts. 546, I, do CPC e 266 do Regimento Interno, salvo se, nos autos do agravo,
for decidido o mérito do recurso especial, nos termos do art. 544, parágrafo 3º, do
Código de Processo Civil, o que não ocorreu na hipótese.
RSTJ, a. 24, (226): 17-95, abril/junho 2012
73
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
II. “Não cabem embargos de divergência no âmbito do agravo de instrumento
que não admite recurso especial” - Súmula n. 315-STJ.
III. Agravo improvido (AgEAg n. 682.475-DF, Rel. Min. Aldir Passarinho Junior,
DJe 23.03.2009);
Processo Civil. Embargos de divergência. Cabimento. Agravo regimental.
Agravo do art. 544, CPC. Enunciado n. 599-STF. Aplicação. Precedentes do Tribunal.
Agravo regimental desprovido.
1. Na linha da jurisprudência deste Tribunal, após a edição da Lei n. 9.756, de
17.12.1998, o Enunciado n. 599-STF passou a ser interpretado com ressalvas, uma
vez autorizado o relator a decidir o próprio mérito do recurso, monocraticamente,
não sendo razoável, em conseqüência, vedar os embargos de divergência em tal
circunstância.
2. No caso dos autos, a decisão proferida no agravo interno se alicerçou no art.
544, § 2º, não se tratando, portanto, das hipóteses contempladas nos arts. 544, §
3º, 557, caput e 557, § 1-A, com a redação da referida Lei.
3. Em outras palavras, permanecem incabíveis embargos de divergência contra
acórdão em agravo interno manifestado contra decisão monocrática que examina
o agravo do art. 544, CPC, salvo se a decisão der provimento ao próprio recurso
especial, amparada no atual § 3º do art. 544.
4. Agravo regimental desprovido (AgEAg n. 542.031-MG, Corte Especial, Rel.
Min. Denise Arruda, DJU 2.8.2004).
De todas as Seções Especializadas colhem-se ainda:
Processual Civil. Embargos de divergência. Acórdão proferido em sede de
agravo de instrumento não provido. Súmula n. 315-STJ.
1. Consoante preconizam os arts. 546, I, do CPC, e 266 do RISTJ, o cabimento
dos embargos de divergência restringe-se aos julgados de Turma, proferidos em
sede de recurso especial.
2. Diante das alterações introduzidas pela Lei n. 9.756/1998, firmou-se nesta
Corte a orientação de que aquelas hipóteses de cabimento do recurso alcançam,
inclusive, os acórdãos proferidos em sede de agravo regimental interpostos de
decisão que conhece do agravo de instrumento para julgar o próprio mérito do
recurso especial, conforme previsão do art. 544, § 3º, do CPC, sendo, todavia,
inadmissíveis os embargos de divergência interpostos nos autos de agravo
de instrumento não conhecido ou não provido. Precedentes: AgRg nos EAg n.
979.805-MG, Primeira Seção, rel. Ministro Herman Benjamin DJe 4.5.2009; AgRg
nos EAg n. 682.475-DF, Corte Especial, Ministro Aldir Passarinho Junior, DJe
23.3.2009.
3. Agravo regimental não provido (AgEAg n. 865.381-SP, Primeira Seção, Rel.
Min. Mauro Campbell Marques, DJe 21.8.2009);
74
Jurisprudência da CORTE ESPECIAL
Agravo regimental na petição. Agravo de instrumento desprovido. Embargos
de divergência. Inadmissibilidade. Súmula n. 315-STJ. Não-impugnação do
fundamento da decisão agravada. Súmula n. 182-STJ. Recurso desprovido.
1 - O agravante deixou de infirmar especificamente o fundamento da r. decisão
agravada relativa à aplicação da Súmula n. 315-STJ, pelo que incidente, na espécie,
a Súmula n. 182 da Corte.
2 - Consoante entendimento cristalizado neste Tribunal, os Embargos de
Divergência, segundo previsão contida nos arts. 29 da Lei n. 8.038/1990, 546, I,
do CPC, e 266 do RISTJ, somente são cabíveis contra decisão colegiada proferida
por Turma em Recurso Especial ou em Agravo de Instrumento julgado conforme
o art. 544, § 3º, do CPC, e não contra decisão proferida em Agravo Regimental em
Agravo de Instrumento desprovido. Incidência da Súmula n. 315-STJ.
3 - Agravo Regimental desprovido (AgPet n. 4.648-RS, Segunda Seção, Rel. Min.
Jorge Scartezzini, DJU 5.6.2006);
Embargos de divergência. Agravo de instrumento improvido. Artigo 544, § 3º,
do CPC. Não incidência. Súmula n. 315-STJ.
1. Os embargos de divergência são cabíveis apenas contra decisões prolatadas
pelas Turmas deste Tribunal em sede de recurso especial. Inteligência dos artigos
546 do CPC e 266 do RISTJ e Súmula n. 315-STJ.
2. Como exceção à regra, admitem-se embargos de divergência quando o
relator conhecer do agravo de instrumento para dar provimento ao próprio
recurso especial, aplicando o disposto no art. 544, § 3º, do CPC. Precedente da
Corte Especial.
3. Agravo regimental improvido (AgEAg n. 1.108.281-SE, Terceira Seção, Rel.
Min. Jorge Mussi, DJe 11.9.2009).
Em comum, esses precedentes somente admitem os embargos de
divergência em sede de agravo de instrumento quando aplicado o art. 544, §
3º, do CPC na redação dada pela Lei n. 9.756/1998 – isto é, anteriormente
à substituição do instrumento pelo agravo nos próprios autos, em razão do
advento da Lei n. 12.322/2010 –, que assim preconizava: “Poderá o relator, se o
acórdão recorrido estiver em confronto com a súmula ou jurisprudência dominante do
Superior Tribunal de Justiça, conhecer do agravo para dar provimento ao próprio
recurso especial; poderá ainda, se o instrumento contiver os elementos necessários ao
julgamento do mérito, determinar sua conversão, observando-se, daí em diante, o
procedimento relativo ao recurso especial”.
Como se vê, esse dispositivo legal apenas permite o conhecimento do
agravo para o subsequente provimento do recurso especial ou sua convolação
RSTJ, a. 24, (226): 17-95, abril/junho 2012
75
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
no apelo nobre, não sendo admissível que, por analogia, seja criada mais uma
hipótese recursal, sob pena de ofensa ao estrito princípio da legalidade que
rege a matéria. Nesse diapasão, o Sr. Min. César Asfor Rocha assinalou com
propriedade que “entender de forma diversa, a meu ver, implica criar, sem amparo
na lei ou no regimento interno, mais uma hipótese recursal neste Tribunal, não
bastassem as tantas já existentes”.
A moderna doutrina processual sufraga também essa orientação, a exemplo
do que escrevem Fredie Didier Jr. e Leonardo José Carneiro da Cunha:
Como se sabe, é possível ao relator do agravo de instrumento, no STF ou no
STJ, se o acórdão recorrido estiver em conflito com a súmula ou jurisprudência
dominante do tribunal superior, conhecer do agravo para já dar provimento ao
próprio recurso extraordinário ou ao próprio recurso especial (CPC, art. 544, §§ 3º
e 4º). De igual modo, é possível ao relator, no recurso extraordinário ou no recurso
especial, já lhe dar provimento, quando a decisão recorrida estiver contrariando
súmula ou jurisprudência dominante do tribunal superior (CPC, art. 557, § 1º-A).
Em tais situações, a parte contrária poderá interpor o agravo interno (CPC, arts.
545 e 557, § 1º), daí se seguindo a decisão colegiada da turma. Caso esse acórdão
venha a manter a decisão do relator, serão cabíveis os embargos de divergência.
esse, aliás, tem sido o entendimento do Superior Tribunal de Justiça. O Supremo
Tribunal Federal também mantém esse entendimento, tendo, inclusive, cancelado
o enunciado n. 599 da súmula de sua jurisprudência predominante, em cujos
termos se estabelecia não serem cabíveis embargos de divergência de decisão de
turma em agravo regimental.
Nesse caso, provido, por decisão do relator, o recurso especial ou
extraordinário, vindo a parte contrária a interpor o agravo interno, se do
julgamento deste houver dissídio proferido por outro órgão do tribunal, cabem
os embargos de divergência. A decisão não foi proferida em recurso especial nem
em recurso extraordinário, mas em agravo interno no agravo de instrumento.
Sem embargo desse detalhe, o mérito do recurso especial ou extraordinário terá
sido examinado no julgamento do agravo, sendo cabíveis, segundo orientação
já firmada no âmbito do STF e do STJ, os embargos de divergência (Curso de
Direito Processual Civil - Volume 3. Salvador: Editora Jus Podivm, 7ª ed., 2009,
p. 355-356).
Por conseguinte, rogando vênia ao Sr. Min. Teori Albino Zavascki e aos
demais colegas que entendem de forma diversa, retifico o voto que proferi
na sessão do dia 1º de junho de 2011 para, acompanhando a divergência, não
conhecer dos embargos.
Na eventualidade de restar vencido nessa preliminar, devo manter o voto
anteriormente proferido. Com efeito, a jurisprudência desta Corte mostra-se
76
Jurisprudência da CORTE ESPECIAL
uníssona em reconhecer que o cumprimento do primeiro ato constritivo fixa
o termo a quo para o ajuizamento da ação principal, independentemente de
sua execução integral, na hipótese de múltiplos atos, nos termos do art. 806 do
CPC. Dessarte, seguindo a orientação traçada pelo Sr. Min. Relator, se superada
a preliminar, também dou provimento aos embargos de divergência.
É como voto.
VOTO-VISTA
O Sr. Ministro Humberto Martins: Cuida-se de embargos de divergência
em agravo, opostos por Adélio Cláudio Basile Martins e Outro, contra acórdão
de minha relatoria que negou provimento ao agravo de instrumento dos
embargantes, conforme a seguinte ementa:
Processual Civil. Indisponibilidade de bens. Liminar. Ação principal. Termo a
quo. Efetivação da liminar. Acórdão recorrido em consonância com jurisprudência
do STJ. Súmula n. 83-STJ.
1. A jurisprudência desta Corte é no sentido de que, nos termos do art. 806
do CPC, o prazo para a propositura da ação principal é contado do efetivo
cumprimento da cautelar preparatória, ainda que em liminar.
2. Verifica-se que o Tribunal a quo decidiu de acordo com jurisprudência desta
Corte. Incidência da Súmula n. 83-STJ, verbis: “Não se conhece do recurso especial
pela divergência, quando a orientação do Tribunal se firmou no mesmo sentido
da decisão recorrida”.
Agravo regimental improvido.
(AgRg no Ag n. 1.186.352-DF, Rel. Min. Humberto Martins, Segunda Turma,
julgado em 9.2.2010, DJe 22.2.2010.)
Voto proferido pelo Relator, Min. Teori Zavascki, deu provimento aos
embargos, acolhendo a jurisprudência da Terceira Turma do Superior Tribunal
de Justiça, a saber:
Processo Civil. Recurso especial. Medida cautelar preparatória à ação
principal, cujo provimento só foi obtido em acórdão proferido no julgamento da
apelação de sentença de improcedência. Efetivação das providências deferidas
pelo acórdão. Interposição do recurso especial. Alegação de perda do prazo
de trinta dias para o ajuizamento da ação principal antes que fosse possível
verificar a concretização do provimento jurisdicional cautelar. Impossibilidade
de provimento ao recurso especial, para se declarar extinta a cautelar, em face da
RSTJ, a. 24, (226): 17-95, abril/junho 2012
77
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
juntada de documentos em fase posterior à interposição do recurso. Ausência de
prequestionamento. Deficiência de fundamentação. Violação ao art. 535 do CPC
afastada.
- Não se reconhece violação ao art. 535 do CPC quando ausentes omissão,
contradição ou obscuridade no acórdão.
- Nos termos da jurisprudência consolidada pela 2ª Seção do STJ, não basta o
fato de que a ação principal deixou de ser proposta em 30 dias após a concessão
da cautelar, pois é da efetivação do provimento concedido que se dá início à
contagem do prazo decadencial para a propositura da ação principal.
- Mais precisamente, nos termos da jurisprudência da 3ª Turma do STJ, para
hipóteses nas quais o provimento cautelar pode ser executado por partes,
como ocorre na presente hipótese, conta-se o prazo decadencial de 30 dias para
a propositura da ação principal a partir do primeiro ato de execução.
- Para delimitar com clareza o momento em que se iniciou o primeiro ato
restritivo na presente hipótese, contudo, seria necessário analisar fatos e provas
posteriores à propositura do próprio recurso especial, o que não se afigura
possível. Precedente.
- Apesar disso, deve-se consignar expressamente, para evitar prejuízo à ora
recorrente, que a ausência de propositura da ação principal, e a possível extinção
do processo cautelar em face dessa circunstância, são questões que permanecem
em aberto para exame nas instâncias ordinárias.
- Quanto à alegada ausência de fumus boni iuris e de periculum in mora, tais
questões estão vinculadas à matéria probatória, incidindo sobre a questão a
Súmula n. 7-STJ. Precedentes.
- Não se conhece de recurso especial quando ausente o prequestionamento
da matéria.
- Não se conhece de recurso especial na parte em que este se encontra
deficientemente fundamentado.
Recurso especial não conhecido.
(REsp n. 757.625-SC, Rel. Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em
19.10.2006, DJ 13.11.2006, p. 257 - grifei.)
Em judicioso voto, o Min. Teori Zavascki propôs a seguinte ementa:
Processual Civil. Medida cautelar. Cumprimento por partes. Indisponibilidade
de bens. Início do prazo para o ajuizamento da ação principal. Primeiro ato
constritivo. Art. 806 do CPC.
1. Ao estabelecer o prazo de trinta dias “contados da efetivação da medida
cautelar” como marco final do ajuizamento da ação principal, o art. 806 do
CPC tem o evidente propósito de resguardar a situação do demandado, cujo
78
Jurisprudência da CORTE ESPECIAL
patrimônio - material ou jurídico - não pode ficar sujeito indefinidamente a
constrição judicial, sem que a parte autora deduza em juízo a correspondente
demanda, que, além de dar suporte e justificação à medida constritiva, ensejará
oportunidade de defesa e contraditório.
2. Assim, a interpretação teleológica e sistemática do art. 806 do CPC conduz
à conclusão de que, em se tratando de medida cautelar que comporta efetivação
por partes, o prazo para o ajuizamento da ação principal inicia-se a partir do
cumprimento do primeiro ato constritivo do patrimônio do demandado, e não
do último.
3. Embargos de divergência providos.
Na sessão do dia 1º.6.2011, após o voto proferido pelo Ministro Relator
dando provimento aos embargos de divergência, no que foi seguido pelos
Ministros Castro Meira, Arnaldo Esteves Lima e Massami Uyeda, pedi vista
dos autos para melhor análise.
Prosseguindo o julgamento, na sessão do dia 9.6.2011, proferi Voto-Vista
no sentido de acompanhar o Ministro Relator, o qual também, na ocasião, foi
acompanhado pela Ministra Maria Thereza de Assis Moura. Empós, pediu vista
o Ministro Cesar Asfor Rocha.
O Ministro Cesar Asfor Rocha, na sessão de 5.12.2011, apresentou VotoVista e, preliminarmente, não conheceu dos embargos de divergência. Por
sua vez, o Ministro Relator ratificou o seu voto no sentido de conhecer dos
embargos de divergência.
Pediu vista dos autos o Ministro Castro Meira.
O Ministro Castro Meira acompanhou a divergência instaurada pelo
Ministro Cesar Asfor Rocha, no sentido de não conhecer dos embargos de
divergência.
Pedi vista dos autos para avaliar a questão da admissibilidade do presente
recurso.
É, no essencial, o relatório.
Quanto ao cabimento dos embargos de divergência, o art. 546, I, do
Código de Processo Civil, bem como o art. 266 do RISTJ, estabelecem que é
embargável decisão de Turma que, em recurso especial, divergir do julgamento
de outra turma, da seção ou do órgão especial.
Na hipótese, o recurso especial foi inadmitido pela Corte de origem, em
razão do óbice da Súmula n. 83-STJ (e-STJ fl. 350). Por sua vez, em sede de
RSTJ, a. 24, (226): 17-95, abril/junho 2012
79
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
agravo de instrumento, este Ministro, relator do acórdão embargado, também
aplicou a referida Súmula na decisão monocrática (e-STJ fls. 364-365), no voto
condutor do agravo regimental (e-STJ 387-392), bem como nos embargos de
declaração (e-STJ fls. 410-416).
O debate cinge-se ao conhecimento ou não dos embargos de divergência
quando o acórdão embargado foi proferido no âmbito de agravo de instrumento,
no qual se aplicou a Súmula 83-STJ, verbis:
Não se conhece do recurso especial pela divergência, quando a orientação do
Tribunal se firmou no mesmo sentido da decisão recorrida.
É o caso de aplicação da Súmula n. 315-STJ, que assim dispõe: “Não cabem
embargos de divergência no âmbito do agravo de instrumento que não admite
recurso especial”?
Em meu sentir, a resposta é afirmativa.
Isso porque, a inteligência dos arts. 546 do CPC e 266 do RISTJ, bem
como da Súmula n. 315-STJ, somente excepcionaria o conhecimento dos
embargos de divergência quando o relator conhecer do agravo de instrumento para
dar provimento ao próprio recurso especial, aplicando o disposto no art. 544, § 3º,
do CPC.
Entendo por correta a posição adotada pelo Ministro César Asfor Rocha,
ao afirmar em seu Voto-Vista:
Nos termos do art. 546, incisos I e II, do Código de Processo Civil e do art. 266
do RISTJ, cabem embargos de divergência, apenas, contra acórdão proferido em
recurso especial e em recurso extraordinário. A jurisprudência da Corte abriu
exceção para a hipótese em que se conhece do agravo de instrumento previsto
no art. 544, caput, do Código de Processo Civil para dar provimento ao recurso
especial na forma do § 3º do mesmo dispositivo. É que, nesse caso, embora
dispensada a reautuação do feito, o próprio recurso especial terá sido julgado.
No caso em debate, entretanto, inadmitido o recurso especial na origem, por
“contrariar a jurisprudência” desta Corte Superior – incidência do Enunciado n.
83 da Súmula-STJ (fl. 350) –, ao agravo de instrumento e ao respectivo agravo
regimental se negou provimento com base no mesmo enunciado (cf. fls. 364-365
e 387-392).
[...]
Com isso, certo ou errado, o recurso especial permaneceu não admitido, sendo
incabíveis os embargos de divergência, mesmo que se tenha passado pelo tema
80
Jurisprudência da CORTE ESPECIAL
de mérito do apelo extremo mediante o exame da jurisprudência predominante. [...]
(grifo meu)
Nesse sentido, os precedentes já colacionados nos judiciosos votos
divergentes dos Ministros Cesar Asfor Rocha e do Ministro Castro Meira.
Acrescento, ainda, recente precedente da Corte Especial:
Revisão de renda mensal inicial de aposentadoria por invalidez. Reexame
necessário. Ausência de apelo fazendário. Recurso especial inadmitido na origem.
Preclusão lógica. Agravo de instrumento não provido. Embargos de divergência.
Descabimento. Precedentes. Súmula n. 315-STJ.
I - Os embargos de divergência em agravo de instrumento somente são
cabíveis quando o agravo é conhecido e o recurso especial provido, com base
no art. 544, § 3º, do CPC, sendo possível, no julgamento dos embargos, apenas
discussão sobre o mérito do apelo especial, jamais a revisão dos requisitos de
sua admissibilidade, nos temos da tranquila jurisprudência desta Corte Especial
e da Súmula n. 315-STJ. Precedentes: AgRg nos EAg n. 682.475-DF, Rel. Min. Aldir
Passarinho Junior, Corte Especial, DJe de 23.3.2009; AgRg nos EAg n. 865.381-SP,
Rel. Min. Mauro Campbell Marques, Primeira Seção, DJe de 21.8.2009; AgRg na Pet
n. 1.590-MG, Rel. Min. Hélio Quaglia Barbosa, Terceira Seção, DJ de 21.3.2005; AgRg
nos EAg n. 995.092-SP, Rel. Min. Luiz Fux, Corte Especial, DJe de 4.8.2009.
II - Agravo regimental improvido. (Grifo meu.)
(AgRg nos EAg n. 1.193.812-MG, Rel. Ministro Francisco Falcão, Corte Especial,
julgado em 1º.8.2011, DJe 29.8.2011.)
E ainda, como leciona Athos Gusmão Carneiro, “permanecem descabidos
embargos de divergência contra acórdão proferido no agravo interno que haja
sido manifestado contra decisão monocrática que simplesmente examina o
agravo do artigo 544, salvo se a decisão de provimento ao próprio recurso especial”
(Recuso Especial, Agravos e Agravo Interno. 6ª Edição. Rio de Janeiro: Forense,
2009, p. 158).
Assim, a decisão proferida no agravo (reafirmada em agravo regimental)
aplicou a Súmula n. 83-STJ, alicerçando-se no art. 544, § 2º, do Código de
Processo Civil (apesar de mencionar o § 3º), não se tratando, portanto, das
hipóteses contempladas no art. 544, § 3º, do CPC, verbis:
§ 3º Poderá o relator, se o acórdão recorrido estiver em conformidade com a
súmula ou jurisprudência dominante do Superior Tribunal de Justiça, conhecer
do agravo para dar provimento ao próprio ao próprio recurso especial; [...] (Redação
anterior à alteração introduzida pela Lei n. 12.322/2010, grifo meu).
RSTJ, a. 24, (226): 17-95, abril/junho 2012
81
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
Pertinente a ponderação do Ministro Castro Meira quando afirma sobre o
art. 544, § 3º do CPC:
Como se vê, esse dispositivo apenas permite o conhecimento do agravo para
o subsequente provimento do recurso especial, sob pena de ofensa ao estrito
princípio da legalidade que rege a matéria. (grifo meu)
Na hipótese, portanto, o recurso especial permaneceu inadmitido (em
razão da incidência da Súmula n. 83-STJ), o que inviabiliza o conhecimento dos
embargos de divergência.
Ante o exposto, com as devidas vênias ao Ministro Relator, retifico o meu
voto (apenas quanto ao conhecimento) e acompanho a divergência inaugurada
pelo Ministro Cesar Asfor Rocha, no sentido de não conhecer dos embargos de
divergência.
Caso vencido quanto à preliminar, mantenho o voto anteriormente
proferido e acompanho o Ministro Relator.
É como penso. É como voto.
SENTENÇA ESTRANGEIRA CONTESTADA N. 6.335-EX
(2011/0072243-3)
Relator: Ministro Felix Fischer
Requerente: L D C B S A
Advogados: João Berchmans Correia Serra e outro(s)
Frederico do Valle Abreu
Requerido: L V L de C
Advogado: Wagner Barbosa Pamplona e outro(s)
EMENTA
Homologação de sentença arbitral estrangeira contestada.
Competência do Superior Tribunal de Justiça (cf. Art. 105, I, i; Lei n.
9.307/1996, art. 35). Pedido adequadamente instruído. Deferimento.
82
Jurisprudência da CORTE ESPECIAL
I - A sentença estrangeira não terá eficácia no Brasil sem a
prévia homologação pelo e. Superior Tribunal de Justiça ou por seu
Presidente (Resolução n. 9-STJ, art. 4º).
II - A atuação jurisdicional do e. STJ no processo de homologação
de sentença arbitral estrangeira encontra balizas nos artigos 38 e 39
da Lei de Arbitragem (Lei n. 9.307/1996). Se não houver transgressão
aos bons costumes, à soberania nacional e à ordem pública, não se
discute a relação de direito material subjacente à sentença arbitral.
III - In casu, verifica-se a existência de contrato assinado pelas
partes com cláusula compromissória. Sem embargo, no âmbito de
processo de homologação de sentença arbitral estrangeira, é inviável a
análise da natureza do contrato a ela vinculado, para fins de caracterizálo como contrato de adesão. Precedente do e. STF.
IV - Não há inexistência de notificação e cerceamento de defesa
“ante a comprovação de que o requerido foi comunicado acerca
do início do procedimento de arbitragem, bem como dos atos ali
realizados, tanto por meio das empresas de serviços de courier, como
também, correio eletrônico e fax” (SEC n. 3.660-GB, Corte Especial,
Rel. Min. Arnaldo Esteves Lima, DJe de 25.6.2009)
V - “A propositura de ação, no Brasil, discutindo a validade de
cláusula arbitral porque inserida, sem destaque, em contrato de adesão,
não impede a homologação de sentença arbitral estrangeira que, em
procedimento instaurado de acordo com essa cláusula, reputou-a
válida” (AgRg na SEC n. 854-GB, Corte Especial, Rel. p./Acórdão
Minª. Nancy Andrighi, DJe de 14.4.2011).
VI - Constatada a presença dos requisitos indispensáveis à
homologação da sentença estrangeira (Resolução n. 9-STJ, arts. 5º e
6º), é de se deferir o pedido.
Sentença Arbitral homologada.
ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos os autos em que são partes as acima indicadas,
acordam os Ministros da Corte Especial do Superior Tribunal de Justiça, por
unanimidade, deferir o pedido de homologação, nos termos do voto do Senhor
RSTJ, a. 24, (226): 17-95, abril/junho 2012
83
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
Ministro Relator. Os Srs. Ministros Gilson Dipp, Laurita Vaz, Teori Albino
Zavascki, Castro Meira, Massami Uyeda, Humberto Martins, Maria Thereza de
Assis Moura e Cesar Asfor Rocha votaram com o Sr. Ministro Relator.
Ausentes, justificadamente, os Srs. Ministros Eliana Calmon, Francisco
Falcão, Nancy Andrighi, João Otávio de Noronha e Arnaldo Esteves Lima.
Brasília (DF), 21 de março de 2012 (data do julgamento).
Ministro Ari Pargendler, Presidente
Ministro Felix Fischer, Relator
DJe 12.4.2012
RELATÓRIO
O Sr. Ministro Felix Fischer: Louis Dreyfus Commodities Brasil S.A., pessoa
jurídica de direito privado, inscrita no CNPJ 47.067.525/0001-08, com sede
na Avenida Brigadeiro Faria Lima, n. 1.355, 12º ao 14º andares, em São
Paulo-SP, formula pedido de homologação de laudo arbitral estrangeiro proferido
por Tribunal Arbitral (International Cotton Associaion Limited) que condenou
Leandro Volter Laurindo de Castilhos ao pagamento de indenização pela quebra
do contrato de compra e venda futura de algodão bruto.
A empresa requerente narra na inicial que ela e o requerido são membros
da ICA - International Cotton Association - e, em 20.7.2005, firmaram contrato
de compra e venda futura de 2000 toneladas métricas de algodão bruto. Segundo
sustentado na inicial, o requerido (vendedor) deixou de adimplir sua parte
na negociação, qual seja, a entrega da mercadoria contratada, razão pela qual
Louis Dreyfus Commodities Brasil S.A.(compradora) iniciou procedimento de
arbitragem.
Em 3.10.2008, o laudo arbitral proferido resultou na condenação de
Leandro Volter Laurindo de Castilhos ao pagamento do valor de US$ 993.017,56
(novecentos e noventa e três mil e dezessete dólares americanos e cinquenta e
seis centavos - fls. 122), mais taxa de juros até a data do efetivo pagamento.
A requerente informa, ainda, que o laudo arbitral tornou-se definitivo
em 5.11.2008 e que, até a presente data, o requerido não cumpriu a obrigação
nele contida, motivo pelo qual teve seu nome incluído na lista existente no
âmbito da ICA (International cotton association), que registra os nomes dos
84
Jurisprudência da CORTE ESPECIAL
associados que deixam de cumprir voluntariamente os laudos arbitrais advindos
de procedimentos que correm sob sua administração.
Pede, ao final, a homologação do laudo arbitral em referência e, na hipótese
de impugnação deste pedido, a condenação do requerido ao pagamento das
custas e dos honorários de sucumbência (fls. 05).
Citado, o requerido contestou o pedido (fls. 253-269) e apresentou os
documentos de fls. 271-430.
Em sua defesa alegou, em síntese, a impossibilidade da homologação
da sentença arbitral estrangeira, em razão da: (i) invalidade da cláusula
compromissória dada a natureza do contrato de adesão firmado com a
requerente; (ii) ofensa ao artigo 5º, II da Resolução n. 9/2005 do e. STJ e ao Art.
6º da Lei de Arbitragem; (iii) ofensa à soberania nacional; (iv) competência da
Justiça brasileira para decidir sobre eventuais questões surgidas no âmbito do
contrato; (v) existência de ação, em trâmite na Justiça Estadual da Bahia, na
qual se discute a relação jurídica entre requerente e requerido.
Em nova manifestação (fls. 441-450), Louis Dreyfus Commodities Brasil S.A.
afasta as objeções levantadas pelo requerido e reitera o pedido de homologação
da sentença arbitral estrangeira.
O d. representante do Ministério Público Federal, por sua vez (fls.
454-455), opinou pelo deferimento do pedido, destacando, em síntese, que
a documentação apresentada satisfaz os pressupostos de homologabilidade
enunciados pelo art. 5º da Resolução n. 9 deste e. STJ.
É o relatório.
VOTO
O Sr. Ministro Felix Fischer (Relator): Louis Dreyfus Commodities Brasil
S.A. formula pedido de homologação de laudo arbitral proferido pelos “Sócios
da International Cotton Association Limited” (Procedimento de Arbitragem
n. A01/2008/16), que condenou o requerido, em razão do inadimplemento
contratual, ao pagamento da quantia de US$ 993.017,56 (novecentos e noventa
e três mil e dezessete dólares americanos e cinquenta e seis centavos - fls. 122),
mais os juros que especifica nos sub-itens (3) e (4) da fls. 122.
Assim, a homologação da referida decisão arbitral de fls. 115-122 da
International Cotton Association Limited é o objeto do presente procedimento.
RSTJ, a. 24, (226): 17-95, abril/junho 2012
85
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
Inicialmente, destaco que a Lei de Arbitragem brasileira (Lei n.
9.307/1996) prevê, em seu artigo 35, que “Para ser reconhecida ou executa no
Brasil, a sentença arbitral estrangeira está sujeita, unicamente, à homologação
do Supremo Tribunal Federal”.
Por sua vez, os arts. 38 e 39 da Lei n. 9.307/1996 estabelecem as hipóteses
em que a sentença arbitral estrangeira não poderá ser homologada. Eis o teor
desses dispositivos:
Art. 38. Somente poderá ser negada a homologação para o reconhecimento ou
execução de sentença arbitral estrangeira, quando o réu demonstrar que:
I - as partes na convenção de arbitragem eram incapazes;
II - a convenção de arbitragem não era válida segundo a lei à qual as partes a
submeteram, ou, na falta de indicação, em virtude da lei do país onde a sentença
arbitral foi proferida;
III - não foi notificado da designação do árbitro ou do procedimento de
arbitragem, ou tenha sido violado o princípio do contraditório, impossibilitando
a ampla defesa;
IV - a sentença arbitral foi proferida fora dos limites da convenção de
arbitragem, e não foi possível separar a parte excedente daquela submetida à
arbitragem;
V - a instituição da arbitragem não está de acordo com o compromisso arbitral
ou cláusula compromissória;
VI - a sentença arbitral não se tenha, ainda, tornado obrigatória para as partes,
tenha sido anulada, ou, ainda, tenha sido suspensa por órgão judicial do país
onde a sentença arbitral for prolatada.
Art. 39. Também será denegada a homologação para o reconhecimento
ou execução da sentença arbitral estrangeira, se o Supremo Tribunal Federal
constatar que:
I - segundo a lei brasileira, o objeto do litígio não é suscetível de ser resolvido
por arbitragem;
II - a decisão ofende a ordem pública nacional.
Assim, constata-se que o controle judicial da sentença arbitral estrangeira
está limitado a aspectos de ordem formal, não podendo ser apreciado o mérito do
arbitramento, razão pela qual a contestação ao pedido de homologação deve
restringir-se às hipóteses dos artigos transcritos.
De outro lado, é preciso verificar, também, se a pretensão homologatória
86
Jurisprudência da CORTE ESPECIAL
atende os requisitos preconizados pela Resolução n. 9/2005-STJ, mais
especificamente aos comandos dos artigos 5º e 6º, verbis:
Art. 5º Constituem requisitos indispensáveis à homologação de sentença
estrangeira:
I - haver sido proferida por autoridade competente;
II - terem sido as partes citadas ou haver-se legalmente verificado a revelia;
III - ter transitado em julgado; e
IV - estar autenticada pelo cônsul brasileiro e acompanhada de tradução por
tradutor oficial ou juramentado no Brasil.
Art. 6º Não será homologada sentença estrangeira ou concedido exequatur a
carta rogatória que ofendam a soberania ou a ordem pública.
Passo ao exame da questão.
Relembro, inicialmente, que, após o advento da EC n. 45/2004, a
competência para homologar as Sentenças Arbitrais Estrangeiras deixou de
ser atribuição do e. STF (de acordo com a previsão contida no art. 34 da Lei
n. 9.307 - editada em momento anterior ao do advento da EC n. 45/2004),
e passou para o rol de competências outorgadas a este e. Superior Tribunal de
Justiça (CF, art. 105, I, i).
Assentada a competência desta e. Corte para o julgamento do presente
pedido, verifico que a requerente observou o disposto no art. 37 da Lei de
Arbitragem e instruiu a petição inicial com os documentos nele exigidos
(sentença arbitral traduzida, às fls. 154-163 e 117-122; contrato firmado que
contém a convenção de arbitragem às fls. 207-208 e 145-146).
A defesa do requerido, por sua vez, ao contestar o pedido, alegou, em
síntese (i) a invalidade da cláusula compromissória dada a natureza do contrato
de adesão firmado com a requerente; (ii) ofensa ao artigo 5º, II da Resolução
n. 9/2005 do e. STJ e ao Art. 6º da Lei de Arbitragem; (iii) ofensa à soberania
nacional; (iv) a competência da Justiça brasileira para decidir sobre eventuais
questões surgidas no âmbito do contrato; (v) existência de ação, em trâmite na
Justiça Estadual da Bahia, na qual se discute a relação jurídica entre requerente
e requerido.
Analiso, inicialmente, as alegações formuladas na contestação.
A defesa do requerido alega a invalidade da cláusula compromissória, em
razão da ofensa ao disposto no § 2º, do art. 4º da Lei de Arbitragem, in verbis:
RSTJ, a. 24, (226): 17-95, abril/junho 2012
87
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
Art. 4º A cláusula compromissória é a convenção através da qual as partes em
um contrato comprometem-se a submeter à arbitragem os litígios que possam vir
a surgir, relativamente a tal contrato.
(...)
§ 2º Nos contratos de adesão, a cláusula compromissória só terá eficácia se o
aderente tomar a iniciativa de instituir a arbitragem ou concordar, expressamente,
com a sua instituição, desde que por escrito em documento anexo ou em negrito,
com a assinatura ou visto especialmente para essa cláusula.
Para justificar a ofensa ao dispositivo legal mencionado, alega que o
contrato de compra e venda por ele firmado com a requerente teria natureza de
contrato de adesão, razão pela qual a cláusula compromissória nele contida seria
ineficaz em face da inexistência de concordância expressa em documento anexo
ou em negrito.
Argumenta que esse tema já restou decidido por esta e. Corte Superior
quando do julgamento da SEC n. 967-GB, Rel. Min. José Delgado, DJ 20.3.2006
e da SEC n. 978-GB, Rel. Min. Hamilton Carvalhido, DJ 5.3.2009.
Entendo não assistir razão ao requerido.
Em primeiro lugar, é preciso ter presente que o contrato subjacente ao
laudo arbitral homologando (fls. 207-208; tradução fls. 145-146), foi assinado
por ambas as partes contratantes e previa que “este contrato está sujeito às regras
e estatutos da ICA - International Cotton Association Ltd - em vigor na data
deste contrato. Essas regras contêm, dentre outras coisas, disposições em relação
à cláusula de contrato e estabelecer a resolução de litígios por arbitragem” (fls.
146).
A parte requerida alega que, por se tratar de contrato de adesão, sua assinatura
deveria ter sido posta em documento anexo ou em negrito ou com visto
especialmente para essa cláusula.
Destaco que, no âmbito do procedimento de homologação de sentença
estrangeira, não se viabiliza a discussão acerca da natureza do instrumento
contratual subjacente à sentença que se pretende homologar, pois “o controle
judicial da homologação da sentença arbitral estrangeira está limitado aos
aspectos previstos nos artigos 38 e 39 da Lei n. 9.307/1996, não podendo ser
apreciado o mérito da relação de direito material afeto ao objeto da sentença
homologanda” (SEC n. 507-GB, Corte Especial, Rel. Min. Gilson Dipp, DJ de
13.11.2006).
88
Jurisprudência da CORTE ESPECIAL
Assim, em princípio, se a convenção de arbitragem era válida segundo a
lei à qual as partes a submeteram (art. 38, II, da Lei n. 9.307/1996), e foi aceita
pelos contratantes mediante a assinatura do contrato, não há espaço para, em
sede de homologação do laudo arbitral resultante desse acordo, questionar-se
aspectos específicos e intrínsecos à natureza contratual subjacente ao laudo
homologando.
Isso não significa dizer que a eventual ofensa ao disposto no art. 4º, §
2º, da Lei n. 9.307/1996 esteja alheia à possibilidade de controle jurisdicional,
especialmente se ofender a ordem pública (art. 6º, da Resolução n. 9-STJ). O
próprio e. STJ, por vislumbrar ofensa ao princípio da autonomia da vontade e à
ordem pública, já indeferiu pleitos homologatórios semelhantes ao aqui registrado
(SEC n. 978-GB, Corte Especial, Rel. Min. Hamilton Carvalhido; SEC n. 967-GB,
Corte Especial, Rel. Min. José Delgado, SEC n. 885-US, Corte Especial, Rel. Min.
Francisco Falcão, SEC n. 866-GB, Corte Especial, Rel. Min. Felix Fischer).
Na SEC n. 978-GB, esta c. Corte reconheceu, em razão da ausência da
assinatura contratual, faltar aos autos prova da manifesta declaração autônoma
de vontade em renunciar à jurisdição estatal em favor da arbitral. Nesse caso,
todavia, o laudo arbitral reconheceu a existência de vínculo contratual sem
que houvesse nem mesmo instrumento escrito. Lê-se, no corpo do voto, a
seguinte transcrição do laudo arbitral: “nem o princípio legal e nem a prática
comercial tornam as contra-assinaturas essenciais para o estabelecimento de
um relacionamento contratual válido, desde que uma oferta e aceitação válidas
possam ser estabelecidas. Neste caso, e levando em conta, particularmente,
o curso das negociações entre as partes e o então relacionamento comercial
contínuo existente entre eles, acho que a negação por parte dos Vendedores da
existência do contrato em questão contradiz a prova disponível”.
Na SEC n. 885-US, o pedido homologatório foi indeferido em razão da
ausência, nos autos, da prova de convenção de arbitragem.
Na SEC n. 967-GB, o pedido foi indeferido em razão da ausência
de aceitação da cláusula compromissória. O eminente Relator destacou,
naquela ocasião, que não havia identificado “na documentação apresentada
pela requerente a existência de cláusula compromissória aceita pela parte
requerida”. Salientou, ainda, na ocasião, que “o Tribunal de arbitragem aceitou
ser competente, afastando a exceção, sob o argumento de que, conforme as
leis inglesas, ‘cláusula de arbitragem dentro de um contrato produz efeito seja
assinada ou não pelas partes’”.
RSTJ, a. 24, (226): 17-95, abril/junho 2012
89
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
Nesses casos, é nítida a violação à autonomia da vontade das partes de
abdicar da jurisdição estatal em favor da arbitral.
Eu mesmo fui Relator de um caso (SEC n. 866-GB), no qual foi negado
o pedido de homologação do respectivo laudo arbitral, porque os contratos
foram negociados de forma verbal entre as partes. Na ocasião, destaquei que
a legislação brasileira exigia que a cláusula compromissória fosse estipulada
por escrito no contrato, ou, ainda, em outro documento apartado referente ao
contrato. Não seria aceitável, diante da regra contida na Lei de Arbitragem, a
renúncia não escrita à jurisdição estatal.
Nenhuma dessas situações transcritas, no entanto, socorre a parte ora
requerida, que busca anular a cláusula compromissória alegando que “não
há documentos anexos ou em negrito com assinatura ou visto especialmente
para essa cláusula” (fls. 257). A análise dos documentos produzidos nesta sede
processual revela que o contrato de número INT-584/05, assinado pelas partes,
previa a cláusula de arbitragem (fls. 145-146 – tradução e fls. 207-208 – original,
na qual, inclusive, nota-se a rubrica oposta pelos contratantes ao final da página,
junto à cláusula “Rules and Arbitration”- fls. 207).
De outro lado, também não ampara o ora requerido a alegação de que o
contrato assinado seria de adesão e que por isso deveria ter havido concordância
expressa com a cláusula compromissória. Pois, ainda que se considerasse que tal
alegação teria o condão de beneficiar uma das partes, não há como, em sede de
processo homologatório, analisar a natureza do contrato subjacente ao pedido
que se busca homologar, para fins de reconhecê-lo como contrato de adesão.
O e. STF, ao analisar questão idêntica à presente, recusou a possibilidade
de examinar, no âmbito de processo homologatório, a caracterização do contrato
como contrato de adesão para fins de incidência do art. 4º, § 2º, da Lei n.
9.307/1996.
Com efeito, ao julgar a SEC n. 5.847, sua Excelência, o saudoso
Ministro Maurício Corrêa, Relator do caso, destacou, em seu douto voto, que
a caracterização do contrato de adesão é questão “ínsita ao mérito, insuscetível
de apreciação em procedimento homologatório” (STF n. 5.847-GB, Pleno, DJ
17.12.1999).
Vale reafirmar, no ponto, que não há, neste juízo delibatório, próprio
do procedimento de homologação, discussão acerca da matéria de fundo da
sentença estrangeira ou mesmo do mérito da causa, porquanto estranho ao
próprio objeto da homologação, ressalvada a análise de aspectos relacionados à
90
Jurisprudência da CORTE ESPECIAL
ordem pública e soberania nacional, ao contraditório e ampla defesa e ao devido
processo legal.
O e. Supremo Tribunal Federal, Corte à qual competia a homologação
de sentença estrangeira até a edição da EC n. 45/2004, já se manifestou sobre
o juízo de delibação exercido quando do processo homologatório. Cito, nesse
sentido, precedente:
Sentença estrangeira. Homologação. Sistema de delibação. Limites do juízo
delibatório. Pressupostos de homologabilidade. Ausência de autenticação
consular da certidão de trânsito em julgado. Condenação da parte sucumbente a
verba honoraria. Possibilidade. Recusa de homologação por ausência de um de seus
requisitos. Extinção do processo sem julgamento do mérito.
- (...).
- O sistema de controle limitado que foi instituído pelo direito brasileiro em tema
de homologação de sentença estrangeira não permite que o Supremo Tribunal
Federal, atuando como Tribunal do Foro, proceda, no que se refere ao ato
sentencial formado no exterior, ao exame da matéria de fundo ou a apreciação
de questões pertinentes ao meritum causae, ressalvada, tão-somente,
para efeito do juízo de delibação que lhe compete, a analise dos aspectos
concernentes a soberania nacional, a ordem pública e aos bons costumes.
Não se discute, no processo de homologação, a relação de direito material
subjacente a sentença estrangeira homologanda.
- (...).
(SEC n. 4.738-EU, Tribunal Pleno, Rel. Min. Celso de Mello, DJ de 7.4.1995).
O entendimento jurisprudencial desta Corte Superior alinha-se ao
entendimento acima exposto (SEC n. 646-US, Corte Especial, Rel. Min. Luiz
Fux, DJe de 11.12.2008; EDcl na SEC n. 507-GB, Corte Especial, Rel. Min.
Gilson Dipp, DJ de 5.2.2007, v.g.).
Assim, a caracterização do contrato subjacente à sentença arbitral que se
pretende homologar como do tipo “contrato de adesão”, deve ser procedida no
juízo próprio, sendo vedada a discussão nesta sede homologatória.
Superada essa questão, analiso agora a alegada ofensa aos artigos 5º, II da
Resolução n. 9-STJ e ao art. 6º da Lei n. 9.307/1996. Sustenta o requerido, para
tanto, a inexistência de notificação (ciência inequívoca) para o início e demais
atos da arbitragem (fls. 259). Conclui que a ausência de citação/notificação
válida torna nulo o procedimento arbitral subjacente à presente demanda (fls.
263).
RSTJ, a. 24, (226): 17-95, abril/junho 2012
91
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
O art. 6º, da Lei n. 9.307/1996 dispõe:
Art. 6º - Não havendo acordo prévio sobre a forma de instituir a arbitragem,
a parte interessada manifestará à outra parte sua intenção de dar início à
arbitragem, por via postal ou por outro meio qualquer de comunicação, mediante
comprovação de recebimento, convocando-a para, em dia, hora e local certos,
firmar o compromisso arbitral.
Parágrafo único. Não comparecendo a parte convocada ou, comparecendo,
recusar-se a firmar o compromisso arbitral, poderá a outra parte propor a
demanda de que trata o art. 7º desta Lei, perante o órgão do Poder Judiciário a
que, originariamente, tocaria o julgamento da causa.
Por sua vez, o art. 5º, II, da Resolução n. 9-STJ prevê:
Art. 5º Constituem requisitos indispensáveis à homologação de sentença
estrangeira:
(...)
II- terem sido as partes citadas ou haver-se legalmente verificado a revelia;
Não vislumbro, no caso, o alegado desrespeito às regras legais mencionadas
pelo requerido. Conforme destacou o ilustre representante do Ministério Público
Federal, há nos autos cópias das notificações para o início do procedimento de
arbitragem entregues no endereço do requerido. Houve também notificação via
correio eletrônico (e-mail).
Destaco, no ponto, do douto parecer, a seguinte passagem: “não merece
acolhida a nulidade de citação no processo arbitral pleiteada pelo requerido. Os
recibos fornecidos pela empresa encarregada da postagem - Fedex - (fls. 169,
170, 175 – tradução fls. 133, 135 e 136) mostram-se suficientes para confirmar
a efetiva entrega dos documentos citatórios à parte requerida. A ausência de
assinatura da parte requerida não tem o condão de invalidar a confirmação da
entrega, que conforme documentação comprobatória, foi efetivamente entregue
no endereço do requerido. Ademais, há comprovação de que as notificações
foram também realizadas por e-mail (fls. 171-173, 178, 180-181, 184, 191, 194,
198 – tradução fls. 123-125, 127, 130-131, 134, 137-141). Logo, não há que se
falar em citação inválida ou cerceamento do direito de defesa” (fl. 454, verso).
Quanto a essa questão, vale ter presente que o e. Superior Tribunal de Justiça
decidiu que “Nos termos do art. 39, parágrafo único, da Lei de Arbitragem,
é descabida a alegação, in casu, de necessidade de citação por meio de carta
92
Jurisprudência da CORTE ESPECIAL
rogatória ou de ausência de citação, ante a comprovação de que o requerido foi
comunicado acerca do início do procedimento de arbitragem, bem como dos
atos ali realizados, tanto por meio das empresas de serviços de courier, como
também via correio eletrônico e fax.” (SEC n. 3.660-GB, Corte Especial, Rel.
Min. Arnaldo Esteves Lima).
Destacou-se, no referido julgamento, que “a jurisprudência do Supremo
Tribunal Federal entendia necessária a comprovação da citação por meio de
carta rogatória. Com o advento da Lei n. 9.307/1996 (Lei de Arbitragem), a
questão tomou novos contornos, ante o disposto no parágrafo único do art.
39: ‘Não será considerada ofensa à ordem pública nacional a efetivação da
citação da parte residente ou domiciliada no Brasil, nos moldes da convenção
de arbitragem ou da lei processual do país onde se realizou a arbitragem,
admitindo-se, inclusive, a citação postal com prova inequívoca de recebimento,
desde que assegure à parte brasileira tempo hábil para o exercício do direito de
defesa.’”
Assim, tenho por superada a questão da notificação do requerido.
Alega a parte requerida, ainda, que a existência de Cédula de Produto Rural
(CPR) emitida em favor da requerente (compradora) e atrelada aos contratos de
fornecimento do autor, inclusive o contrato que gerou o presente laudo arbitral
homologando, “atrai toda a relação jurídica estabelecida entre as partes para
o abrigo da legislação brasileira. Inclusive pelo fato de ser título de crédito
nacional e ser liquidado através da entrega de mercadoria neste País” (fl. 265).
Assim, ficaria “latente a inaplicabilidade da referida previsão de arbitragem,
uma vez que não pode ser afastada a jurisdição brasileira na discussão sobre
o inadimplemento da obrigação e entrega de algodão em território nacional,
tendo-se com base não só a LICC, como também o inciso II do artigo 88 do
Código de Processo Civil” (fls. 266-267).
Tenho para mim que essa argumentação não merece prosperar. Com a
celebração, entre as partes, do Contrato INT n. 584/05, criou-se relação jurídica
própria na qual restou acordada a submissão dos contratantes ao juízo arbitral.
Do inadimplemento dessa relação jurídica, a Corte Arbitral foi chamada para
compor o litígio, da forma como previamente pactuado.
Em princípio, não há impedimentos para que uma das partes leve a
matéria ao Judiciário pátrio, haja vista tratar-se de direito constitucionalmente
garantido. Ocorre que, nessa hipótese, a discussão do objeto contratual firmado
pelas partes ou mesmo a própria discussão a respeito do laudo arbitral em
RSTJ, a. 24, (226): 17-95, abril/junho 2012
93
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
referência, não tem o condão de tornar exclusiva a jurisdição pátria, eis que se
trata de questão adstrita ao âmbito da competência concorrente, sem que seja
configurada qualquer das hipóteses de jurisdição exclusiva previstas no art.
89 do CPC (Art. 89 - Compete à autoridade judiciária brasileira, com exclusão
de qualquer outra: I- conhecer de ações relativas a imóveis situados no Brasil; IIproceder a inventário e partilha de bens, situados no Brasil, ainda que o autor da
herança seja estrangeiro e tenha residido fora do território nacional).
Assim, a invocação, por parte do requerido, da regra inscrita no inciso II
do art. 88 do CPC, em nada interfere na competência arbitral previamente
pactuada.
Finalmente, é preciso destacar que “a prositura de ação, no Brasil,
discutindo a validade de cláusula arbitral porque inserida, sem destaque, em
contrato de adesão, não impede a homologação de sentença arbitral estrangeira
que, em procedimento instaurado de acordo com essa cláusula, reputou-a válida”
(SEC n. 854-AgR-GB, Corte Especial, Rel. p/ Acórdão Min. Nancy Andrighi,
DJe de 14.4.2011).
Assim, não prospera a pretensão do requerido para que seja indeferida
a homologação da presente sentença em face da pendência de ação proposta
na Justiça Brasileira “com a finalidade de discutir não só o contrato objeto do
presente pedido de homologação, e sim de toda a relação jurídica entre eles” (fls.
267).
Demais disso, e conforme bem destacou a douta Procuradoria-Geral
da República “é irrelevante a pendência da ação proposta pelo requerido na
Justiça brasileira: ‘o fato de ter-se, no Brasil, o curso de processo concernente a
conflito de interesses dirimido em sentença estrangeira transitada em julgado
não é óbice à homologação desta última (STF SEC n. 7.209/IT); ‘Sentença
estrangeira: não obsta à sua homologação a pendência, perante juiz brasileiro,
de ação entre as mesmas partes e sobre a mesma matéria’ (STF SEC n. 2.727
AgR). Merece destaque o fato de que a liminar concedida (fls. 421-424) pelo
Juízo de Direito titular da Terceira Vara Cível da Comarca de Barreiras-BA não
faz menção específica ao contrato, INT-584/05, objeto do presente pedido de
homologação, mas tão somente aos Contratos n. 2006-021,2006-012 e 200794, estranhos ao contrato-objeto da sentença homologanda” (fls. 455).
Sendo assim, por vislumbrar presentes os requisitos indispensáveis à
homologação do pedido (Resolução n. 9-STJ, art. 5º, I, II, III e IV ), e por
entender que a pretensão deduzida não ofende a soberania nacional, a ordem
94
Jurisprudência da CORTE ESPECIAL
pública, nem os bons costumes, voto no sentido de se homologar o presente
laudo arbitral.
No que concerne à fixação dos honorários advocatícios, destaco que o
processo de homologação da sentença estrangeira contestada está adstrito
à análise de seus requisitos formais, sendo inconfundível com a relação de
direito que lhe deu causa. Mais ainda, a fixação do valor da verba honorária
baseada na condenação imposta no laudo arbitral, acabaria por gerar grave
prejuízo ao requerido uma vez que o pleito homologatório não possui natureza
condenatória.
Sobre o tema, esta c. Corte Superior já decidiu que:
(...)
VI - O ato homologatório da sentença estrangeira limita-se à análise dos seus
requisitos formais. Isto significa dizer que o objeto da delibação na ação de
homologação de sentença estrangeira não se confunde com aquele do processo
que deu origem à decisão alienígena, não possuindo conteúdo econômico. É no
processo de execução, a ser instaurado após a extração da carta de sentença, que
poderá haver pretensão de cunho econômico.
VII - Em grande parte dos processos de homologação de sentença estrangeira
- mais especificamente aos que se referem a sentença arbitral - o valor atribuído
à causa corresponde ao conteúdo econômico da sentença arbitral, geralmente
de grande monta. Assim, quando for contestada a homologação, a eventual
fixação da verba honorária em percentual sobre o valor da causa pode mostrar-se
exacerbada.
VIII - Na hipótese de sentença estrangeira contestada, por não haver
condenação, a fixação da verba honorária deve ocorrer nos moldes do art. 20,
§ 4º do Código de Processo Civil, devendo ser observadas as alíneas do § 3º do
referido artigo. Ainda, consoante o entendimento desta Corte, neste caso, não
está o julgador adstrito ao percentual fixado no referido § 3º.
(SEC n. 507-ED, Corte Especial, Rel. Min. Gilson Dipp, DJ de 5.2.2007).
Assim, condeno o requerido ao pagamento das custas processuais e dos
honorários advocatícios, que fixo no montante de R$ 5.000,00 (cinco mil reais),
com fundamento no art. 20, § 3º, alíneas a, b e c e § 4º do CPC.
É o voto.
RSTJ, a. 24, (226): 17-95, abril/junho 2012
95
Primeira Seção
AGRAVO REGIMENTAL NA PETIÇÃO N. 8.872-RJ (2011/0285001-9)
Relator: Ministro Cesar Asfor Rocha
Agravante: Alfredo Luiz dos Santos
Advogado: Nadia Oliveira Pegado
Agravado: Fundação Nacional de Saúde - FNS
Procurador: Procuradoria-Geral Federal - PGF
EMENTA
Agravo regimental. Petição. Acórdão de Turma Recursal Federal.
Incidente de uniformização de jurisprudência. Alegação de divergência
com orientação do Superior Tribunal de Justiça. Incompetência desta
Corte.
– Conforme dispõe o art. 14, § 2º, da Lei n. 10.259/2001, “o
pedido fundado em divergência entre decisões de turmas de diferentes
regiões ou da proferida em contrariedade a súmula ou jurisprudência
dominante do STJ será julgado por Turma de Uniformização, integrada
por juízes de Turmas Recursais, sob a presidência do Coordenador da
Justiça Federal”.
– A competência do Superior Tribunal de Justiça para o incidente
de uniformização surgirá, apenas, “quando a orientação acolhida pela
Turma de Uniformização, em questões de direito material, contrariar
súmula ou jurisprudência dominante” desta Corte (art. 14, § 4º, da Lei
n. 10.259/2001).
– A eventual existência de julgados anteriores de Turmas
Recursais ou de Turmas de Uniformização, em demandas diversas,
contrários à orientação do Superior Tribunal de Justiça não impõem a
competência deste para julgar o presente feito.
Agravo regimental improvido.
ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos os autos em que são partes as acima indicadas,
acordam os Ministros da Primeira Seção do Superior Tribunal de Justiça, na
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
conformidade dos votos e das notas taquigráficas a seguir, por unanimidade,
negar provimento ao agravo regimental, nos termos do voto do Sr. Ministro
Relator. Os Srs. Ministros Francisco Falcão, Teori Albino Zavascki, Humberto
Martins, Herman Benjamin, Napoleão Nunes Maia Filho, Mauro Campbell
Marques e Benedito Gonçalves votaram com o Sr. Ministro Relator.
Licenciado o Sr. Ministro Arnaldo Esteves Lima.
Brasília (DF), 8 de fevereiro de 2012 (data do julgamento).
Ministro Cesar Asfor Rocha, Relator
DJe 15.2.2012
RELATÓRIO
O Sr. Ministro Cesar Asfor Rocha: Agravo regimental interposto por
Alfredo Luiz dos Santos contra a decisão de fl. 82, na qual neguei seguimento
ao presente incidente de uniformização de jurisprudência assim:
Cuida-se de “Incidente de Uniformização de Jurisprudência” ajuizado por
Alfredo Luiz dos Santos contra a Fundação Nacional de Saúde, insurgindo-se
contra “decisão da 1ª Turma Recursal dos Juizados Especiais Federais do Rio de
Janeiro - RJ”, a qual divergiria de julgados do Superior Tribunal de Justiça.
Decido.
Conforme dispõe o art. 14, § 2º, da Lei n. 10.259/2001, “o pedido fundado em
divergência entre decisões de turmas de diferentes regiões ou da proferida em
contrariedade a súmula ou jurisprudência dominante do STJ será julgado por
Turma de Uniformização, integrada por juízes de Turmas Recursais, sob a presidência
do Coordenador da Justiça Federal”.
Por outro lado, a competência do Superior Tribunal de Justiça para o
incidente referido surgirá, apenas, “quando a orientação acolhida pela Turma
de Uniformização, em questões de direito material, contrariar súmula ou
jurisprudência dominante” desta Corte (art. 14, § 4º, da Lei n. 10.259/2001).
No caso em debate, portanto, em que se impugna acórdão de Turma Recursal,
descabe o ajuizamento do incidente diretamente neste Tribunal Superior.
Ante o exposto, nego seguimento ao incidente de uniformização de
jurisprudência.
Publique-se.
100
Jurisprudência da PRIMEIRA SEÇÃO
Alega o agravante, para efeito de demonstrar a competência desta Corte,
que “a decisão proferida no processo” de origem “é o posicionamento unânime
das Turmas Recursais da Seção Judiciária do Rio de Janeiro - TRRJ e segue a
orientação da Súmula n. 40 da Turma Recursal da Seção Judiciária do Espírito
Santo - TRES e o entendimento da Súmula n. 9 da Turma de Uniformização
Regional dos Juizados Especiais Federais da Segunda Região - TRU” (fl. 89).
Com isso, “uma vez que os Tribunais ad quem da estrutura organizacional
dos Juizados Especiais Federais já se pronunciaram e em desacordo com a
jurisprudência do STJ entendemos estar incidindo, in casu, indubitavelmente o
disposto no art. 14, § 4º, da Lei n. 10.259/2001” (fl. 95).
É o relatório.
VOTO
O Sr. Ministro Cesar Asfor Rocha (Relator): O presente agravo
regimental não merece prosperar, sendo inafastável a incompetência desta Corte
Superior, no presente momento, para decidir o incidente de uniformização de
jurisprudência em debate.
Com efeito, nos termos do art. 14, § 2º, da Lei n. 10.259/2001, “o pedido
fundado em divergência entre decisões de turmas de diferentes regiões ou da
proferida em contrariedade a súmula ou jurisprudência dominante do STJ será
julgado por Turma de Uniformização, integrada por juízes de Turmas Recursais, sob
a presidência do Coordenador da Justiça Federal”.
Cumpre observar que a competência do Superior Tribunal de Justiça para
o mencionado incidente surgirá somente “quando a orientação acolhida pela
Turma de Uniformização, em questões de direito material, contrariar súmula
ou jurisprudência dominante” desta Corte (art. 14, § 4º, da Lei n. 10.259/2001).
Veja-se que, neste caso, em que se impugna acórdão de Turma Recursal,
descabe o ajuizamento do incidente diretamente nesta Corte. Ora, o fato de
haver julgados anteriores de Turmas Recursais ou de Turmas de Uniformização,
em demandas diversas, eventualmente contrários à orientação do Superior
Tribunal de Justiça não socorre o agravante.
Ante o exposto, nego provimento ao agravo regimental.
RSTJ, a. 24, (226): 97-146, abril/junho 2012
101
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
CONFLITO DE COMPETÊNCIA N. 120.435-SP (2011/0306769-8)
Relator: Ministro Teori Albino Zavascki
Suscitante: Juízo Federal do Juizado Especial Cível de Santos - SJ-SP
Suscitado: Juízo de Direito da 1ª Vara de Acidentes do Trabalho de Santos
- SP
Interessado: Edina Natan de Mendonça Souza
Interessado: Instituto Nacional do Seguro Social - INSS
EMENTA
Conflito de competência. Justiça Federal e Justiça Estadual. Ação
visando a obter pensão por morte decorrente de acidente de trabalho.
Alcance da expressão “causas decorrentes de acidente do trabalho”.
1. Nos termos do art. 109, I, da CF/1988, estão excluídas da
competência da Justiça Federal as causas decorrentes de acidente do
trabalho. Segundo a jurisprudência firmada pelo Supremo Tribunal
Federal e adotada pela Corte Especial do STJ, são causas dessa
natureza não apenas aquelas em que figuram como partes o empregado
acidentado e o órgão da Previdência Social, mas também as que
são promovidas pelo cônjuge, ou por herdeiros ou dependentes do
acidentado, para haver indenização por dano moral (da competência
da Justiça do Trabalho - CF, art. 114, VI), ou para haver benefício
previdenciário pensão por morte, ou sua revisão (da competência da
Justiça Estadual).
2. É com essa interpretação ampla que se deve compreender as
causas de acidente do trabalho, referidas no art. 109, I, bem como nas
Súmulas n. 15-STJ (“Compete à justiça estadual processar e julgar os
litígios decorrentes de acidente do trabalho”) e 501-STF (Compete
à justiça ordinária estadual o processo e o julgamento, em ambas as
instâncias, das causas de acidente do trabalho, ainda que promovidas
contra a união, suas autarquias, empresas públicas ou sociedades de
economia mista).
3. Conflito conhecido para declarar a competência da Justiça
Estadual.
102
Jurisprudência da PRIMEIRA SEÇÃO
ACÓRDÃO
Vistos e relatados estes autos em que são partes as acima indicadas, decide
a Egrégia Primeira Seção do Superior Tribunal de Justiça, por unanimidade,
conhecer do conflito e declarar competente o Juízo de Direito da 1ª Vara
de Acidentes do Trabalho de Santos, o suscitado, nos termos do voto do Sr.
Ministro Relator. Os Srs. Ministros Humberto Martins, Herman Benjamin,
Napoleão Nunes Maia Filho, Mauro Campbell Marques, Benedito Gonçalves,
Cesar Asfor Rocha e Francisco Falcão votaram com o Sr. Ministro Relator.
Licenciado o Sr. Ministro Arnaldo Esteves Lima.
Brasília (DF), 11 de abril de 2012 (data do julgamento).
Ministro Teori Albino Zavascki, Relator
DJe 16.4.2012
RELATÓRIO
O Sr. Ministro Teori Albino Zavascki: Trata-se de conflito negativo
de competência instaurado entre a Justiça Federal e a Justiça Estadual, em
ação visando à concessão de benefício previdenciário de pensão por morte,
esta decorrente de acidente de trabalho. O Juízo de Direito da 1ª Vara de
Acidentes do Trabalho de Santos-SP declinou da competência, ao argumento
de que “se trata de benefício eminentemente previdenciário independentemente
das circunstâncias que cercaram o falecimento do segurado” (fl. 35). O Juízo
Federal do Juizado Especial Cível de Santos - SJ - SP suscitou, por sua vez,
o presente conflito, pois (a) “a pensão por morte (...) tem nexo causal com a
atividade laboral outrora desempenhada pelo segurado falecido” (fl. 47), de
modo que “falece competência a esta Justiça Federal, eis que incompetente
para apreciar benefício acidentário, sob pena de usurpação da competência da
Justiça Estadual” (fl. 47); (b) com base no texto Magno, em seu art. 109, inciso I,
compete à Justiça estadual apreciar a ação” (fl. 48).
O Ministério Público Federal, em parecer de fls. 69-72, opina pela
declaração da competência da Justiça Federal.
VOTO
O Sr. Ministro Teori Albino Zavascki (Relator): 1. Segundo dispõe o art.
109, I, da CF/1988, compete aos juízes federais processar e julgar, entre outras,
RSTJ, a. 24, (226): 97-146, abril/junho 2012
103
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
“as causas em que a União, entidade autárquica ou empresa pública federal
forem interessadas na condição de autoras, rés, assistentes ou oponentes, exceto
as de falência, as de acidentes de trabalho e as sujeitas à Justiça Eleitoral e à
Justiça do Trabalho”. A questão central aqui posta está em saber o que significa,
para efeito do art. 109, I da CF, “causa de acidente do trabalho”.
2. A jurisprudência da 3ª Seção desta Corte inclina-se por uma
interpretação estrita dessa cláusula constitucional, para considerar como nela
abrangidas apenas as causas envolvendo diretamente o segurado acidentado.
Segundo esse entendimento, não estão entre as causas de acidente do trabalho
as que têm por objeto a obtenção de pensão por morte decorrente de acidente
do trabalho, eis que, nessa espécie de ação, a relação jurídica já não é entre o
segurado, acidentado, e o órgão da Previdência Social. Considera-se, nessa
linha de entendimento, que “a concessão e a revisão de pensão por morte,
independentemente das circunstâncias do falecimento do segurado, é de natureza
previdenciária, e não acidentária típica, o que torna competente a Justiça Federal
para o processamento e julgamento da presente ação, afastando-se a aplicação
da referida súmula (Súmula n. 15-STJ)”. Foi o que decidiu a 3ª Seção no CC n.
62.531-RJ, Min. Maria Thereza de Assis Moura, DJ de 26.3.2007. No mesmo
sentido: AgRg no CC n. 112.710-MS, Min. Og Fernandes, DJe de 7.10.2011;
AgRg no CC n. 107.796-SP, Min. Arnaldo Esteves Lima, DJe de 7.5.2010;
AgRg no CC n. 108.477-MS, Min. Maria Thereza de Assis Moura, DJe de
10.12.2010; AgRg no CC n. 106.431-SP, Min. Celso Limongi (Desembargador
convocado do TJ-SP), DJe de 4.5.2010. Esta foi a posição adotada pelo Juízo
suscitado.
3. Essa interpretação estrita do art. 109, I da CF, todavia, não é compatível
com a jurisprudência assentada na Corte Especial, com base na jurisprudência
do STF, que consideram como causa de acidente do trabalho qualquer causa que
tenha por origem essa espécie de acidente, sendo irrelevante, para esse efeito,
tenha sido proposta pelo próprio acidentado ou por seus herdeiros, por seu
cônjuge ou por seus dependentes.
Realmente, houve tempo em que, em situação análoga - competência
para julgamento de pedidos de indenização, fundados em acidente do trabalho,
formulado pelos sucessores do falecido - a jurisprudência do STJ entendia por
“causa oriunda de acidente do trabalho”, apta a configurar a competência da
Justiça do Trabalho (art. 114, VI, da CF/1988, com a redação dada pela EC n.
45/2004), apenas aquela decorrente diretamente do acidente, na qual fossem
104
Jurisprudência da PRIMEIRA SEÇÃO
demandadas prestações devidas ao próprio acidentado (excluídas, portanto,
aquelas cujos pedidos fossem formulados pelos sucessores do acidentado). Esse
entendimento chegou a ser sintetizado na Súmula n. 366-STJ: “Compete à
justiça estadual processar e julgar ação indenizatória proposta por viúva e filhos
de empregado falecido em acidente de trabalho”.
Entretanto, a partir do julgamento do CC n. 101.977-SP, de minha
relatoria, DJe de 5.10.2009, a Corte Especial alterou seu entendimento, para
considerar, na linha da jurisprudência do STF, que se inclui no conceito de
causa de acidente do trabalho “qualquer causa que tenha por origem essa espécie
de acidente, razão pela qual é ‘irrelevante para a definição da competência
jurisdicional da Justiça do Trabalho que a ação de indenização não tenha sido
proposta pelo empregado, mas por seus sucessores’”. Nessa ocasião, deliberou-se
pelo cancelamento da Súmula n. 366-STJ. Eis os fundamentos do acórdão:
1. Com as alterações do art. 114 da CF/1988, introduzidas pela Emenda
Constitucional n. 45/2004, à Justiça do Trabalho foi atribuída competência
para apreciar e julgar “as ações de indenização por dano moral ou patrimonial,
decorrentes da relação de trabalho” (inciso VI). Incluem-se nessa competência,
segundo a jurisprudência do STF, as demandas fundadas em acidente do trabalho
(CC n. 7.204-MG, Tribunal Pleno, Min. Carlos Britto, DJ de 9.12.2005).
2. O caso concreto, entretanto, tem uma peculiaridade: embora se trata de
demanda fundada em acidente do trabalho, ela foi proposta pela viúva do
empregado acidentado, visando a obter indenização de danos por ela sofridos. A
jurisprudência do STJ sumulou, a propósito, o seguinte entendimento: “Compete
à Justiça estadual processar e julgar ação indenizatória proposta por viúva e
filhos de empregado falecido em acidente de trabalho” (Súmula n. 366-STJ). Na
base desse entendimento está a compreensão de que, por causa decorrente de
acidente do trabalho, entende-se apenas aquela oriunda diretamente desse fato
e cujo objeto sejam prestações devidas ao próprio acidentado.
Ocorre que o STF tem entendimento no sentido de que é de acidente do
trabalho qualquer causa que tenha como origem essa espécie de acidente,
razão pela qual “é irrelevante para a definição da competência jurisdicional da
Justiça do Trabalho que a ação de indenização não tenha sido proposta pelo
empregado, mas por seus sucessores” (EDcl no RE n. 482.797-SP, 1ª T., Min. Ricardo
Lewandowski, DJe de 27.6.2008). Esse entendimento, estampado em reiteradas
decisões das turmas (EDcl no RE n. 541.755-SP, 2ª T., Min. Cezar Peluso, DJe
de 7.3.2008; EDcl no RE n. 509.353-SP, 1ª T., Min. Sepúlveda Pertence, DJe de
17.8.2007), foi confirmado pelo plenário do STF, no julgamento do CC n. 7.545-7,
em sessão de 3.6.2009, constando do voto do Min. Eros Grau, relator, o seguinte:
RSTJ, a. 24, (226): 97-146, abril/junho 2012
105
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
3. Este tribunal afirmou o entendimento de que após a edição da EC
n. 45/2004 é da Justiça do Trabalho a competência para julgar ações de
indenização por danos morais e materiais decorrentes de acidente de
trabalho:
Ementa: Agravo regimental no recurso extraordinário.
Competência da Justiça do Trabalho para julgar o feito. Precedentes
da Suprema Corte. 1. É da competência da Justiça do Trabalho o
julgamento das ações de indenização por danos morais ou materiais
decorrentes de acidente de trabalho, após a edição da EC n. 45/2004.
2. A nova sistemática alcança os processos em trâmite na Justiça
comum estadual, desde que não tenha sido proferida sentença
de mérito até a data da promulgação da mencionada emenda. 3.
Agravo regimental desprovido. [AgR-RE n. 509.352, Relator o Ministro
Menezes Direito, DJe de 1º.8.2008]
4. O ajuizamento da ação de indenização pelos sucessores não altera a
competência da Justiça especializada. A transferência do direito patrimonial
em decorrência do óbito do empregado é irrelevante. Nesse sentido, os
seguintes precedentes desta Corte:
Ementa: I. Embargos de declaração convertidos em agravo
regimental. II. Competência. Justiça do Trabalho. Ação de indenização
por danos resultantes de acidente do trabalho, proposta contra o
empregador perante a Justiça estadual, que pendia de julgamento
de mérito quando do advento da Emenda Constitucional n. 45/2004.
1. Ao julgar o CC n. 7.204, 29.6.2005, Britto, Inf. STF n. 394, o Supremo
Tribunal, revendo o entendimento anterior, assentou a competência
da Justiça do Trabalho para julgar as ações de indenização por danos,
morais ou materiais, decorrentes de acidente de trabalho, ajuizadas
após a EC n. 45/2004. 2. A nova orientação alcança os processos
em trâmite pela Justiça comum estadual, desde que pendentes
de julgamento de mérito (v.g. AI n. 506.325-AgR, 23.5.2006, 1ª T.,
Peluso; e RE n. 461.925-AgR, 4.4.2006, 2ª T., Celso), o que ocorre na
espécie. 3. Irrelevante para a questão da competência que se cuide
de ação proposta por viúvo de empregada das embargantes,
falecida em decorrência do acidente de trabalho: trata-se de direito
patrimonial, que, com a morte do trabalhador, se transmitiu aos
sucessores. 4. Agravo regimental desprovido. [ED-RE n. 509.353,
Relator o Ministro Sepúlveda Pertence, DJ de 17.8.2007, grifei].
Ementa: Constitucional. Embargos de declaração em recurso
extraordinário. Conversão em agravo regimental. Constitucional.
Competência para julgar ações de indenização decorrente de
106
Jurisprudência da PRIMEIRA SEÇÃO
acidente de trabalho proposta pelos sucessores. Competência da
Justiça Laboral. Agravo improvido. I - É irrelevante para definição
da competência jurisdicional da Justiça do Trabalho que a ação
de indenização não tenha sido proposta pelo empregado, mas por
seus sucessores. II - Embargos de declaração convertidos em agravo
regimental a que se nega provimento. [ED-RE n. 482.797, Relator o
Ministro Ricardo Lewandowski, DJe de 27.6.2008, grifei]
Ementa: Recurso. Embargos de declaração. Caráter infringente.
Embargos recebidos como agravo regimental. Acidente de trabalho.
Indenização. Competência. Ação proposta pelos sucessores.
Irrelevância. Decisão mantida. Justiça do Trabalho. Agravo regimental
não provido. É competente a Justiça do Trabalho para julgar ação
de indenização decorrente de acidente de trabalho, quando não
há sentença de mérito na lide anterior à promulgação da Emenda
Constitucional n. 45/2004. [ED-RE n. 541.755, Relator o Ministro Cézar
Peluso, DJ de 7.3.2008, grifei].
Orientação semelhante é adotada pelo Tribunal Superior do Trabalho (Ag em
RR n. 362/2007-205-08-41, 8ª T., Min. Dora Maria da Costa, DJ de 4.5.2009; RR n.
393/2006-102-18-00, 5ª T., Min. João Batista Brito Pereira, DJ de 17.4.2009; RR n.
800/2006-019-12-00, 4ª T., Min. Maria de Assis Calsing, DJ de 27.3.2009).
A divergência de entendimento entre STJ e STF a respeito do tema reproduz,
mutatis mutandis, a que existia no referente à competência para ações de revisão
de benefícios acidentários. O STJ entendia ser da competência da Justiça Federal,
à base da seguinte fundamentação:
Processual Civil. Competência. Ação de revisão de beneficio acidentário.
Justiça Federal.
1. Compete a Justiça Federal julgar ação de revisão de beneficio
previdenciário, ainda que decorrente de acidente de trabalho, uma vez
que a matéria restringe-se a lei especifica previdenciária, independente de
alusão a questão acidentaria. Inaplicável a hipótese o Enunciado da Sumula
n. 15 - STJ.
2. Embargos de divergência conhecidos e providos. (EREsp n. 21.794-SP,
CE, Min. Edson Vidigal, DJ de 8.4.1996).
Já o STF decidiu ser causa de competência da Justiça Estadual, pelos seguintes
fundamentos:
Competência. Reajuste de benefício oriundo de acidente de trabalho.
Justiça Comum. - Ao julgar o RE n. 176.532, o Plenário desta Corte reafirmou
o entendimento de ambas as Turmas (assim, no RE n. 169.632, 1ª Turma,
RSTJ, a. 24, (226): 97-146, abril/junho 2012
107
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
e no AGRAG n. 154.938, 2ª Turma) no sentido de que a competência para
julgar causa relativa a reajuste de benefício oriundo de acidente de trabalho
é da Justiça Comum, porquanto, se essa Justiça é competente para julgar
as causas de acidente de trabalho por força do disposto na parte final do
inciso I do artigo 109 da Constituição, será ela igualmente competente
para julgar o pedido de reajuste desse benefício que é objeto de causa que
não deixa de ser relativa a acidente dessa natureza, até porque o acessório
segue a sorte do principal. Dessa orientação divergiu o acórdão recorrido.
Recurso extraordinário conhecido e provido.
(RE n. 351.528-SP, 1ª T., Min. Moreira Alves, DJ de 31.10.2002).
Considerando que ao STF compete dar a palavra final sobre a interpretação
da Constituição - e aqui a questão é tipicamente constitucional, pois envolve
juízo sobre competência estabelecida no art. 114 da Constituição - é importante
a adoção do entendimento por ele assentado, até mesmo para evitar que a
matéria acabe provocando recursos desnecessários. É indispensável, para isso, o
cancelamento da Súmula n. 366-STJ.
3. Ante o exposto, voto no sentido de, cancelando a Súmula n. 366-STJ, declarar
a competência do Juízo do Trabalho, o Suscitante. É o voto.
4. Essa orientação deve ser adotada para a definição das “causas decorrentes
de acidente do trabalho”, de que trata o art. 109, I, parte final, da Constituição.
É assim, aliás, que o STF tem julgado, como se pode constatar no AI n. 722.821
AgR, 1ª Turma, Min. Cármen Lúcia, DJe de 26.11.2009, em caso idêntico ao
aqui examinado:
Agravo regimental no agravo de instrumento. Constitucional e Previdenciário.
Pensão por morte decorrente de acidente de trabalho. Competência da Justiça
Comum Estadual para processar e julgar a causa. Precedentes. Incidência da
Súmula n. 501 do Supremo Tribunal Federal. Agravo regimental ao qual se nega
provimento.
(...)
2. A presente ação tem por objeto a concessão de pensão por morte
decorrente de acidente de trabalho. Assim como afirmado na decisão agravada,
a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal firmou-se no sentido de que,
“a teor do § 3º c.c. inciso I do artigo 109 da Constituição Republicana, compete à
Justiça comum dos Estados apreciar e julgar as ações acidentárias, que são aquelas
propostas pelo segurado contra o Instituto Nacional do Seguro Social - INSS, visando
ao beneficio e aos serviços previdenciários correspondentes ao acidente do trabalho.
Incidência da Súmula n. 501 do STF” (RE n. 478.472-AgR, Rel. Min. Carlos Britto,
Primeira Turma, DJe 1º.6.2007).
108
Jurisprudência da PRIMEIRA SEÇÃO
E:
Ementa: Recurso extraordinário. Constitucional. Previdenciário. Benefício
acidentário. Art. 109, I da Constituição Federal. Competência. 1. As ações acidentárias
têm como foro competente a Justiça comum, a teor do disposto no art. 109, I da
Constituição Federal, que as excluiu da competência da Justiça Federal. 2. Reajuste
de beneficio acidentário. Competência da Justiça estadual não elidida. Recurso
extraordinário conhecido e provido (RE n. 204.204, Rel. Min. Maurício Corrêa,
Segunda Turma, DJ 4.5.2001).
3. Os fundamentos da Agravante, insuficientes para modificar a decisão
agravada, demonstram apenas inconformismo e resistência em pôr termo a
processos que se arrastam em detrimento da eficiente prestação jurisdicional.
4. Pelo exposto, nego provimento ao agravo regimental.
Considerando que ao STF compete dar a palavra final sobre a interpretação
da Constituição - e aqui a questão é tipicamente constitucional, pois envolve
juízo sobre competência estabelecida no art. 109, I, da Constituição - é
importante a adoção do entendimento por ele assentado, até mesmo para evitar
que a matéria acabe provocando recursos desnecessários. É, pois, com essa
interpretação ampla que se deve compreender as causas de acidente do trabalho,
referidas no art. 109, I, bem como nas Súmulas n. 15-STJ (“Compete à justiça
estadual processar e julgar os litígios decorrentes de acidente do trabalho”) e
501-STF (Compete à justiça ordinária estadual o processo e o julgamento, em
ambas as instâncias, das causas de acidente do trabalho, ainda que promovidas
contra a união, suas autarquias, empresas públicas ou sociedades de economia
mista).
5. Ante o exposto, voto no sentido de declarar a competência do Juízo
Estadual, o Suscitado. É o voto.
MANDADO DE SEGURANÇA N. 14.987-DF (2010/0015095-5)
Relatora: Ministra Eliana Calmon
Impetrante: Município de Grajaú
Impetrante: Município de Fernando Falcão
Impetrante: Município de Formosa da Serra Negra
RSTJ, a. 24, (226): 97-146, abril/junho 2012
109
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
Impetrante: Município de Barra do Corda
Advogado: Heli Lopes Dourado e outro(s)
Impetrado: Ministro de Estado da Justiça
EMENTA
Administrativo e Constitucional. Área indígena: demarcação.
Propriedade particular. Art. 231 da CF/1988. Delimitação. Precedente
do STF na Pet n. 3.388-RR (Reserva Indígena Raposa Serra do Sol).
Dilação probatória. Descabimento do writ. Revisão de terra indígena
demarcada sob a égide da ordem constitucional anterior. Possibilidade.
1. Processo administrativo regularmente instaurado e processado,
nos termos da legislação especial (Decreto n. 1.775/1996). Ausência
de cerceamento de defesa.
2. A existência de propriedade, devidamente registrada, não inibe
a Funai de investigar e demarcar terras indígenas.
3. Segundo o art. 231, §§ 1º e 6º, da CF/1988 pertencem aos
índios as terras por estes tradicionalmente ocupadas, sendo nulos os
atos translativos de propriedade.
4. A ocupação da terra pelos índios transcende ao que se entende
pela mera posse da terra, no conceito do direito civil. Deve-se apurar
se a área a ser demarcada guarda ligação anímica com a comunidade
indígena. Precedente do STF.
5. Pretensão deduzida pelo impetrante que não encontra respaldo
na documentação carreada aos autos, sendo necessária a produção de
prova para ilidir as constatações levadas a termo em laudo elaborado
pela Funai, fato que demonstra a inadequação do writ.
6. A interpretação sistemática e teleológica dos ditames da ordem
constitucional instaurada pela Carta de 1988 permite concluir que o
processo administrativo de demarcação de terra indígena que tenha
sido levado a termo em data anterior à promulgação da Constituição
vigente pode ser revisto.
7. Segurança denegada.
110
Jurisprudência da PRIMEIRA SEÇÃO
ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos os autos em que são partes as acima indicadas,
acordam os Ministros da Primeira Seção do Superior Tribunal de Justiça “A
Seção, por unanimidade, denegou a segurança, nos termos do voto da Sra.
Ministra Relatora.” Os Srs. Ministros Luiz Fux, Castro Meira, Humberto
Martins, Herman Benjamin, Mauro Campbell Marques, Benedito Gonçalves e
Hamilton Carvalhido votaram com a Sra. Ministra Relatora.
Sustentou, oralmente, o Dr. Heli Lopes Dourado, pelos impetrantes e o
Dr. Moacir Guimarães Moraes Filho, pelo Ministério Público Federal.
Brasília (DF), 28 de abril de 2010 (data do julgamento).
Ministra Eliana Calmon, Relatora
DJe 10.5.2010
RELATÓRIO
A Sra. Ministra Eliana Calmon: Trata-se de mandado de segurança,
com pedido de liminar, impetrado pelos Municípios de Grajaú, Fernando
Falcão, Formosa da Serra Negra e Barra do Corda contra a Portaria n. 3.508
de 22.10.2009, na qual a autoridade coatora declara de posse permanente do
grupo indígena Porquinhos do Canela - Apãnjekra a terra indígena Porquinhos
situada em área do Estado do Maranhão.
Em longa exposição alegam os impetrantes o seguinte:
1) a demarcação da área teve início no ano de 1977 e terminou no ano
de 1979, oportunidade em que a Funai realizou estudos científicos, ouviu os
Municípios e a população envolvida e identificou a terra indígena;
2) o Presidente da Funai, em 30.10.2000, assinou a Portaria n. 1.122,
constituindo grupo técnico para realizar estudos de identificação e remarcação
das reservas já demarcadas nos Municípios de Grajaú, Fernando Falcão e Barra
do Corda, pretentendo adicionar à reserva existente na região e demarcada
na década de 1970 uma área de 392.682 ha (trezentos e noventa e dois mil e
seiscentos e oitenta e dois hectares), com o fim de propiciar a unificação das
aldeias existentes nos Municípios impetrantes;
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3) na demarcação ocorrida na década de 1970 os impetrantes foram
obrigados a ceder áreas que totalizaram 439.558 ha (quatrocentos e trinta e
nove mil e quinhentos e cinquenta e oito hectares);
4) o estudo de identificação da remarcação foi realizado pelo antrópologo
Jaime Garcia Siqueira, “velho conhecido de grupos estrangeiros e ONG´s
internacionais que nada têm a ver com os interesses dos índios, a não ser
explorá-los em busca de gordas e polpudas verbas arrecadas mundo afora e que
servem para interesses escusos”;
5) consideram os autores o antropólogo responsável pela marcação da
área remarcada parcial e inidôneo para levar a termo o estudo de identificação
em que se baseou a discutida Portaria, pois está o trabalho por ele apresentado,
divorciado da realidade, não representando os interesses dos índios que, após
a demarcação ocorrida na década de 1970, convivem de forma pacífica com
os não-índios. Como prova cita declaração supostamente feita por lideranças
da aldeia Porquinhos dos Canela - Apãnjekra, de que a aldeia não precisa
ser remarcada e que a unificação de diferentes etnias na mesma área poderá
implicar no confronto entre os índios (fl. 190);
6) que a expansão da terra indígena Porquinhos (Apãnjekra) até os limites
da terra indígena Canela (Rankankomekrá), como pretende a Funai, não
encontra ressonância na comunidade Rankankomekrá, por serem povos com
diferentes hábitos;
7) que a expansão da terra indígena aos limites da terra indígena
Bacurizinho (etnia Tupi-Guarani), adversários históricos, significa menosprezar
a ;capacidade de escolha dessas comunidades;
8) que a expansão da terra indígena implicará na remoção dos não-índios,
particulares que possuem escrituras, cartas de sesmarias e títulos definitivos do
Estado;
9) que apesar da contestação apresentada pelos Municípios na esfera
administrativa, o processo de remarcação prosseguiu, tendo sido apresentado
parecer favorável pela antropóloga Leila Silvia Burger Sotto-Maior, pela
Advocacia-Geral da União, ultimando-se com a publicação da Portaria
combatida. Anexa parecer elaborado pelo Instituto Hamanitas do Brasil que
refuta os argumentos do antropólogo Jaime Garcia Siqueira, descaracterizando
a necessidade da ampliação da terra indígena em questão e demonstrando que
as terras pretendidas na expansão nunca foram tradicionalmente ocupadas pelos
índio;
112
Jurisprudência da PRIMEIRA SEÇÃO
10) que o Estado do Maranhão possui apenas 15% de terras férteis, dos
quais 8% estão em mãos de índios;
11) que o STF, no julgamento da Pet n. 3.388-RR (Raposa Serra do Sol),
consignou ser vedado ampliar terra indígena já demarcada, sendo portanto
descabida a pretensão de adicionar à aldeia Porquinhos do Canela, com área já
demarcada de 79.520 ha, mais 221.480 ha.
Às fl. 365-367, o Ministro Presidente concedeu a liminar pleiteada, por
entender relevantes os fundamentos da impetração e configurado o perigo na
demora.
Inconformados, o MPF e a União interpuseram agravo regimental (fl.
394-419), arguindo, em preliminar, o descabimento do mandamus e, no mérito,
a ausência de fumaça do bom direito, sob o argumento de que o processo
administrativo obedeceu os trâmites legais previstos no Dec. n. 1.175/1996.
Notificada, a autoridade coatora prestou informações (fl. 931-1.030),
arguindo, preliminarmente, a ilegitimidade ativa do Município de Grajaú,
aduzindo, para tanto, estar o Município fora dos limites da terra indígena
Porquinhos dos Canela-Apãnjekra.
No mérito, alega que:
a) a identificação da terra indígena localizada nos Municípios de Fernando
Falcão, Barra do Corda, Formosa da Serra Negra e Mirador-MA observou
rigorosamente os requisitos traçados pelo Dec. n. 1.775/1996;
b) o relatório circunstaciado de identificação e delimitação da terra
indígena obedeceu rigorosamente as normas da Portaria n. 14/96 do Ministério
da Justiça, desenvolvendo de forma consistente todos os elementos necessários
para caracterização e comprovação da tradicionalidade da ocupação indígena na
área, conforme conceito definido no art. 231, § 1º, da CF/1988;
c) restou demonstrado, por meio de diligência levada a termo por
funcionários da Funai, que a prova apresentada pelos impetrantes com o fim
de demonstrar que os índios não tinham interesse na remarcação das terras era
falsa, tendo sido colhidas informações de que os indígenas que habitam o local
têm interesse na demarcação da terra indígena;
d) a Funai, ao designar o antropólogo Jaime Garcia Siqueira, cumpriu com
o preceituado pelo art. 2º do Dec. n. 1.775/1996, dispositivo que prega que o
estudo será levado a termo por antropólogo de qualificação reconhecida;
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REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
e) o antropólogo é Doutor e Mestre em antropologia pela USP e Doutor
pela UNB (Universidade de Brasília), Professor-Adjunto do Departamento de
Antropologia da Universidade Estadual do Maranhão;
f ) a pretensão de desconstituir os fundamentos adotados no estudo
apresentado pela Funai não encontra trâmite pela via do mandamus, já que o
procedimento do writ não comporta dilação probatória.
Afirma que a alegação de ilegalidade do processo de remarcação não
subsiste, porque a terra indígena Porquinhos foi demarcada na década de 1970,
tendo apresentado uma série de vícios no procedimento levado a termo sem
a realização de estudo antropológico, sob a égide de interesses econômicos
regionais.
Com o escopo de corrigir os vícios administrativos que resultaram na
supressão de porções de terras tradicionalmente ocupadas pelos Canela, é
que a Funai constituiu grupo técnico para realizar estudos de identificação e
delimitação da terra indígena ora discutida.
Alega que a atividade do Estado deve estar pautada pelo princípio da
legalidade, razão pela qual detém o poder-dever de anular atos ilegais, tais como
aquele que, editado na década de 1970, demarcou a terra indígena Porquinhos.
Afirma que o estudo realizado observou os preceitos definidos no art.
231 da CF/1988 e foi levado a termo com o escopo de conferir efetividade
aos direitos dos índios, nos termos propostos pelo Min. Carlos Britto no voto
proferido no julgamento da Pet n. 3.388-RR;
Por fim, afirma que, nos termos do Dec. n. 1.775/1996, o órgão fundiário
dará prioridade ao assentamento dos não-índios e garantirá o direito à
indenização pelas benfeitorias realizadas de boa-fé.
Ouvido, opinou o MPF pela extinção do writ sem resolução do mérito em
parecer assim ementado:
Mandado de segurança. Terras indígenas. Demarcação. Portaria do Ministro
da Justiça. Ato baseado em prévio relatório de estudo antropológico. Impetração
visando refutar o teor desse documento. Apresentação de parecer de outro
antropológico como contra-prova. Controvérsia acerca dos fatos e das provas.
Inviabilidade em sede mandamental. Ausência de comprovado direito líquido e
certo. Pela extinção do writ sem resolução do mérito.
(fl. 1.034)
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Jurisprudência da PRIMEIRA SEÇÃO
Às fl. 1.040-1.070, a Funai protocolizou petição requerendo ingresso como
assistente litisconsorcial da União, sob o argumento de que, nos termos da Lei n.
5.371/1967 e do Dec. n. 1.775/1996, detém a atribuição de proteger os direitos
indígenas e demarcar as terras por este tradicionalmente ocupadas.
Em sendo admitido seu ingresso no feito, requer a reforma da decisão do
Min. Presidente do STJ que concedeu a liminar pleiteada pelos impetrantes,
aduzindo, para tanto, que:
a) o mandado de segurança constitui via inadequada para questionar
o ato de demarcação de terras indígenas, já que os fatos apresentados pelos
impetrantes são controvertidos;
b) os impetrantes não conseguiram demonstrar o preenchimento dos
requisitos da fumaça do bom direito e do perigo na demora;
c) não restou comprovado qualquer vício formal no procedimento de
demarcação conduzido pela Funai;
d) as defesas apresentadas pelos impetrantes na seara administrativa
restaram examinadas pela autarquia federal;
e) o laudo antropológico elaborado por profissional pertencente aos
quadros da FUNAI detém presunção de veracidade;
f ) o procedimento de demarcação realizado nos idos de 1970 encontra-se
eivado de vícios, tendo sido levado a termo sob a influência de pressão política
existente à época; e
g) a revisão do processo de demarcação encontra guarida na ordem jurídica
instaurada pela Constituição Federal de 1988, diploma que alterou o modo de
lidar com os indígenas, procurando preservar a sua cultura e identidade.
É o relatório.
VOTO
A Sra. Ministra Eliana Calmon (Relatora): - Examino, em preliminar,
o pedido de ingresso da Funai no feito, para admitir a autarquia como
assistente litisconsorcial da União. Preliminarmente, ainda, examino a alegada
ilegitimidade ativa do Município de Grajaú.
A impetração dirige-se contra Portaria do Ministro de Estado da Justiça
que declarou como sendo de posse permanente do grupo indígena Canela RSTJ, a. 24, (226): 97-146, abril/junho 2012
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REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
Apãnjekra a terra indígena Porquinhos dos Canela - Apãnjekra, reserva que, nos
termos do suposto ato coator, está localizada nos Municípios de Barra do CordaMA, Fernando Falcão-MA, Formosa da Serra Negra-MA e Mirador-MA.
Os impetrantes, com o fim de obter provimento jurisdicional para
desconstituir a Portaria atacada, deduziram como causa de pedir próxima
suposta irregularidade contida no estudo antropológico elaborado pela Funai
(parcialidade do antropólogo responsável).
Postos nesses termos os elementos objetivos da demanda, tem-se que o
Município de Grajaú-MA não detém interesse-utilidade e, consequentemente,
legitimidade para figurar no pólo ativo do mandamus, já que não se discute
nestes autos suposta união de reservas indígenas existentes nos Municípios
impetrantes, mas tão-só a legalidade da Portaria editada pela autoridade coatora,
a qual não irradia efeitos em relação a esta pessoa política.
Assim sendo, denego a segurança em relação Município de Grajaú-MA,
nos termos do art. 267, VI, do CPC e do art. 6º, § 5º, da Lei n. 12.016/2009.
MERITUM CAUSAE
Volta-se a impetração contra a Portaria n. 3.508/2009 do Ministro de
Estado da Justiça que, acolhendo proposta formulada no processo administrativo
instaurado pela Funai, para identificação e delimitação da terra indígena
Porquinhos dos Canela - Apãnjekra, declarou como de posse permanente do
grupo indígena Canela - Apãnjekra área aproximada de 301.000 ha (trezentos
e um mil hectares) nos Municípios de Barra do Corda-MA, Fernando FalcãoMA, Formosa da Serra Negra-MA e Mirador-MA. O ato determinou que
a Funai realize a demarcação administrativa da terra indígena para posterior
homologação pelo Presidente da República, nos termos do art. 19, § 1º, da Lei
n. 6.001/1973 e do art. 5º do Dec. n. 1.775/1996.
Como forma de amparar a pretensão deduzida no mandamus, os
impetrantes, além de atacar o estudo antropológico por parcialidade do seu autor,
afirmam que a Funai não examinou a contestação apresentada no procedimento
administrativo e que, nos termos do decidido pelo STF no julgamento da Pet
n. 3.388-RR (Raposa Serra do Sol), tem-se que é inviável ampliação de terra
indígena demarcada.
Asseveram, por fim, que os particulares não-índios residentes no local
detém registro imobiliário expedido pelo Estado.
116
Jurisprudência da PRIMEIRA SEÇÃO
Passo, então, a examinar os argumentos deduzidos pelos impetrantes.
Primeiro destaco que o processo administrativo que culminou com a
edição da indigitada Portaria observou os trâmites legais previstos no Decreto
n. 1.775/1996 (diploma que dispõe sobre o procedimento administrativo de
demarcação das terras indígenas), tendo sido oportunizado o contraditório e
garantido o exercício da ampla defesa aos interessados.
Os impetrantes, juntamente com particulares residentes no local,
apresentaram contestação no processo administrativo da Funai, impugnando
as conclusões adotadas no estudo antropológico (fl. 195-246), defesa que foi
examinada e rejeitada pelo órgão federal (fl. 248-259) e pela Advocacia-Geral
da União (fl. 261-283; 284-294).
A decisão das autoridades chamadas à colação está em sintonia com a
jurisprudência desta Corte, como espelha o seguinte precedente:
Direito Administrativo. Mandado de segurança. Demarcação de terras
indígenas. Ato do Ministro de Estado da Justiça. Portaria n. 1.289/2005, que
declarou de posse permanente do grupo indígena Guarani Ñandeva a terra
indígena Yvy-Katu. Território demarcado que engloba fazendas de propriedade
dos impetrantes. Ausência de violação dos princípios da ampla defesa,
contraditório e devido processo legal. Análise suficiente das contestações
apresentadas pelos impetrantes. Legalidade e constitucionalidade do processo
administrativo que culminou com o ato impetrado. Ausência de direito líquido e
certo a ser protegido pela via eleita. Denegação da ordem.
1. Esta Primeira Seção, quando do julgamento do MS n. 10.269-DF, Relator
para acórdão o Ministro Teori Albino Zavascki (DJ de 17.10.2005), reconheceu a
ausência de nulidades no processo administrativo que culminou com a edição
do ato ora impetrado, ou seja, a Portaria n. 1.289/2005, que declarou de posse
permanente do grupo indígena Guarani Ñandeva a Terra Indígena Yvy-Katu.
2. No caso dos autos, não houve cerceamento de defesa, tampouco ocorreu
violação dos princípios do contraditório e do devido processo legal, pois o processo
administrativo foi regularmente instaurado e processado, nos termos da legislação
especial (Decreto n. 1.775/1996), oportunizando-se o acesso aos autos e o
oferecimento de defesa pelos impetrantes, cujas contestações foram exaustivamente
analisadas pela Fundação Nacional do Índio - Funai, pela Procuradoria Federal
Especializada e pela Consultoria Jurídica do Ministério da Justiça.
3. A demarcação das terras pertencentes tradicionalmente aos índios não
representa violação de direitos fundamentais dos atuais proprietários particulares
dos imóveis. Pelo contrário, significa o devido cumprimento de disposições
constitucionais e legais em favor dos antigos ocupantes das terras (CF/1988, art.
231 e seguintes; Lei n. 6.001/1973 e Decreto n. 1.775/1996).
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REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
4. Conforme parecer apresentado pela Funai, “o fato da cadeia dominial do
imóvel não apresentar vícios significa apenas que seus atuais titulares não agiram
de má-fé. Isto, porém, não elimina o fato de que os índios foram crescentemente
usurpados das terras de ocupação tradicional, sendo forçados a recorrer ao
emprego nas fazendas para não deixar romper o vínculo social, histórico e afetivo
com os lugares que tinham como referência de sua vida e de sua unidade como
grupo diferenciado”.
5. Segurança denegada.
(MS n. 10.994-DF, Rel. Ministra Denise Arruda, Primeira Seção, julgado em
8.3.2006, DJ 27.3.2006 p. 136)
Com relação à idoneidade do antropólogo responsável pela elaboração do
estudo adotado pela Funai, entendo oportuno transcrever o art. 2º do Decreto n.
1.775/1996:
Art. 2º A demarcação das terras tradicionalmente ocupadas pelos índios será
fundamentada em trabalhos desenvolvidos por antropólogo de qualificação
reconhecida, que elaborará, em prazo fixado na portaria de nomeação baixada
pelo titular do órgão federal de assistência ao índio, estudo antropológico de
identificação.
A lei que rege a matéria prevê que o estudo deve ser elaborado por um
único antropólogo, providência levada a termo pela Funai que designou para
exercício do munus servidor do órgão que detém títulos de Mestre e Doutor na
respectiva área.
A pretensão dos impetrantes de desconstituir a presunção de imparcialidade
e de capacidade técnica do referido antropólogo incumbido da realização do
estudo não merece trâmite nesta via, pois depende de dilação probatória.
Nesse sentido, colaciono o seguinte precedente do STF:
Mandado de segurança. Homologação do procedimento administrativo
de demarcação das terras indígenas Raposa Serra do Sol. Imprestabilidade
do laudo antropológico. Terras tradicionalmente ocupadas por índios. Direito
adquirido à posse e ao domínio das terras ocupadas imemorialmente pelos
impetrantes. Competência para a homologação. Garantia do devido processo
legal administrativo. Boa-fé administrativa. Acesso à justiça. Inadequação da via
processualmente estreita do mandado de segurança. Ausência de direito líquido
e certo.
A apreciação de questões como o tamanho das fazendas dos impetrantes, a
data do ingresso deles nas terras em causa, a ocupação pelos índios e o laudo
118
Jurisprudência da PRIMEIRA SEÇÃO
antropológico (realizado no bojo do processo administrativo de demarcação), tudo
isso é próprio das vias ordinárias e de seus amplos espaços probatórios.
Mandado de segurança não conhecido, no ponto.
(...)
Não há que se falar em supressão das garantias do contraditório e da ampla
defesa se aos impetrantes foi dada a oportunidade de que trata o artigo 9º do
Decreto n. 1.775/1996 (MS n. 24.045, Rel. Min. Joaquim Barbosa).
(...)
(MS n. 25.483-DF, rel. Ministro Carlos Britto, Pleno, DJ 4.6.2007)
No mesmo diapasão, confira-se julgado desta Corte:
Constitucional e Administrativo. Mandado de segurança. Demarcação de
terras indígenas. Devido processo legal. Dilação probatória.
I. O reconhecimento da ocupação de terras por indíos pela União é mera
declaração e não cria ou constitui nenhum direito, trata-se somente do
reconhecimento de uma situação pré-existente, que independe do próprio
reconhecimento do Estado.
II. O Decreto n. 1.775/1996 não prevê a interposição de recurso hierárquico e,
ainda assim, permite que as razões apresentadas na contestação administrativa
sejam apreciadas pelo Ministério da Justiça, não há que se falar em prejuízo para
o município impetrante ou desrespeito aos princípios do contraditório e da ampla
defesa.
III. Verificar a conformidade da atuação da FUNAI na delimitação da área indígena
ou a necessidade de elaboração de estudos complementares demanda a necessidade
de instrução probatória, o que é incompatível com o rito do mandado de segurança.
IV. Segurança denegada.
(MS n. 10.225-DF, Rel. Ministro João Otávio de Noronha, Primeira Seção,
julgado em 24.10.2007, DJ 12.11.2007 p. 148)
Os impetrantes afirmam, ainda, que os indígenas que habitam o local
não têm interesse na ampliação da reserva, tendo subscrito documento no qual
declaram que a proximidade entre tribos de diferentes etnias pode implicar em
confronto.
Contudo, conforme depreende-se da leitura da Informação Técnica
prestada pela Funai às fl. 971-972, servidor do referido órgão diligenciou junto
às comunidades indígenas e constatou que a declaração apresentada pelos
Municípios impetrantes não condizia com a verdadeira vontade dos índios que
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REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
manifestaram interesse na demarcação da reserva Porquinhos dos Canela Apãnjekra.
Superados esses pontos, passo ao exame da alegação dos impetrantes
de que a identificação da terra indígena Porquinhos dos Canela - Apãnjekra
configuraria ampliação de terra indígena já demarcada, providência vedada nos
termos do decidido pelo STF no julgamento da Pet n. 3.388-RR.
A terra indígena Porquinhos foi identificada e demarcada nos anos de
1977 a 1979, com área de 79.520 ha (setenta e nove mil, quinhentos e vinte
hectares), localizada no Município de Fernando Falcão-MA, razão pela qual
mostra-se-ia inviável o pretendido aumento da área identificada, que passaria a
ter uma extensão de 301.000 ha (trezentos e um mil hectares).
O Ministro da Justiça afirmou nas informações que o processo de
regularização fundiária da terra indígena Porquinhos, homologado pelo Decreto
n° 88.599 de 9.8.1983, foi objeto de pressão política e apresentou uma série
de vícios e ilegalidades, dentre as quais o fato de não ter sido elaborado laudo
antropológico, fatos confirmados pelo parecer ofertado pela antropóloga Themiz
de Magalhães (fl. 1.002-1.012).
A Funai, com o propósito de corrigir os vícios mencionados, constituiu
grupo técnico para realizar estudos de identificação e delimitação da terra
indígena Porquinhos dos Canela-Apãnjekra, norteados pelos princípios
insculpidos no art. 231 da CF/1988, ou seja: a delimitação da terra indígena
deve considerar a tradicionalidade da ocupação.
A orientação existente antes da Constituição da República de 1988 era no
sentido de proceder à demarcação de terras indígenas em limite inferior àquele
correspondente à ocupação tradicional, já que o intuito era de integrar o índio à
coletividade majoritária.
No parecer do Ministério da Justiça, constante do processo administrativo,
que culminou com a edição da Portaria atacada (fl. 249-250), restou assentado
ter ocorrido diversas manifestações dos Canela demonstrando interesse
pela demarcação correta do seu território tradicional, corrigindo-se os erros
cometidos por ocasião da demarcação de 1977.
Narra o parecer que o relatório enviado pela antropóloga Themiz de
Magalhães identifica os equívocos cometidos durante a demarcação da área
Apãnjekra e que em 1991 esta etnia encaminhou documento ao Superintendente
da Funai em Belém-PA reivindicando a unificação da terra indígena Porquinhos
com Al Kanela dos Ramkokamekra.
120
Jurisprudência da PRIMEIRA SEÇÃO
Afirma, ainda, que o procedimento que culminou com a edição da Portaria
n. 3.580/2009 não pretendeu “remarcar” a terra indígena, mas tão-somente
corrigir as falhas cometidas na demarcação levada a termo no ano de 1979,
tendo sido designado grupo técnico com o fim de cumprir com o comando do
art. 231 da CF/1988.
Assevera que a atitude da Funai está pautada no princípio da legalidade e
no poder-dever de autotutela insculpido nas Súmulas n. 346 e 473-STF.
Demonstradas as razões de ambas as partes, examino os limites da decisão
proferida pelo STF na Pet n. 3.388-RR (rel. Min. Carlos Ayres Britto, Pleno,
DJ 19.3.2009), em que a Suprema Corte, examinando a legitimidade do modelo
de demarcação continuada da reserva indígena Raposa Serra do Sol, interpretou
os arts. 231 e 232 da CF/1988 e fixou diversos conceitos sobre o tema da
demarcação de terras indígenas.
No que interessa ao caso dos autos, tem-se que o art. 231 da Constituição
Federal de 1988 preceitua que:
Art. 231. São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas,
crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente
ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os
seus bens.
§ 1º - São terras tradicionalmente ocupadas pelos índios as por eles habitadas em
caráter permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescindíveis
à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e as necessárias a
sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições.
§ 2º - As terras tradicionalmente ocupadas pelos índios destinam-se a sua posse
permanente, cabendo-lhes o usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios e dos
lagos nelas existentes.
O Constituinte Originário, em razão da importância do tema e buscando
reparar erro histórico, reservou um capítulo inteiro aos índios (capítulo VIII), o
que revela a preocupação em preservar o habitat natural dessa população, e com
ela a organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, preservando a
identidade dos povos primitivos da terra.
Incidindo a norma ao caso concreto, diante da defesa da propriedade,
devidamente titulada, temos que o texto do art. 231, §§ 1º e 6º, da CF/1988
estabelece pertencem aos índios as terras tradicionalmente por eles ocupadas,
sendo nulos os atos translativos de propriedade.
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REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
Revela-se pertinente, para compreensão do novo regime das terras
indígenas instaurado com a ordem constitucional de 1988, a leitura de trecho do
voto exarado pelo relator Min. Carlos Ayres Britto na Pet n. 3.388-RR, Pleno,
DJ 19.3.2009, quando o STF discutiu a demarcação continuada da reserva
indígena Raposa Serra do Sol. Vejamos:
80. Passemos, então, e conforme anunciado, a extrair do próprio corpo
normativo da nossa Lei Maior o conteúdo positivo de cada processo demarcatório
em concreto. Fazemo-lo, sob os seguintes marcos regulatórios:
I – O MARCO TEMPORAL DA OCUPAÇÃO. Aqui, é preciso ver que a nossa Lei
Maior trabalhou com data certa: a data da promulgação dela própria (5 de
outubro de 1988) como insubstituível referencial para o reconhecimento, aos
índios, “dos direitos sobre as terras que tradicionalmente ocupam”. Terras que
tradicionalmente ocupam, atente-se, e não aquelas que venham a ocupar.
(...)
II – O MARCO DA TRADICIONALIDADE DA OCUPAÇÃO. Não basta, porém,
constatar uma ocupação fundiária coincidente com o dia e ano da promulgação
do nosso Texto Magno. É preciso ainda que esse estar coletivamente situado
em certo espaço fundiário se revista do caráter da perdurabilidade. Mas um
tipo qualificadamente tradicional de perdurabilidade da ocupação indígena,
no sentido entre anímico e psíquico de que viver em determinadas terras é
tanto pertencer a elas quanto elas pertencerem a eles, os índios (“Anna Pata,
Anna Yan”: “Nossa Terra, Nossa Mãe”). Espécie de cosmogonia ou pacto de
sangue que o suceder das gerações mantém incólume, não entre os índios
enquanto sujeitos e as suas terras enquanto objeto, mas entre dois sujeitos
de uma só realidade telúrica: os índios e as terras por ele ocupadas. As terras,
então, a assumir o status de algo mais que útil para ser um ente. A encarnação
de um espírito protetor. Um bem sentidamente congênito, porque expressivo
da mais natural e sagrada continuidade etnográfica, marcada pelo fato de
cada geração aborígine transmitir a outra, informalmente ou sem a menor
precisão de registro oficial, todo o espaço físico de que se valeu para produzir
economicamente, procriar e construir as bases da sua comunicação lingüística
e social genérica. Nada que sinalize, portanto, documentação dominial ou
formação de uma cadeia sucessória. E tudo a expressar, na perspectiva da
formação histórica do povo brasileiro, a mais originária mundividência ou
cosmovisão. Noutros termos, tudo a configurar um padrão de cultura nacional
precedente à do colonizador branco e mais ainda a do negro importado do
continente africano. A mais antiga expressão da cultura brasileira, destarte, sendo
essa uma das principais razões de a nossa Lei Maior falar do reconhecimento
dos “direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam”. O termo
“originários” a traduzir uma situação jurídicosubjetiva mais antiga do que
qualquer outra, de maneira a preponderar sobre eventuais escrituras públicas
122
Jurisprudência da PRIMEIRA SEÇÃO
ou títulos de legitimação de posse em favor de não-índios. Termo sinônimo de
primevo, em rigor, porque revelador de uma cultura préeuropéia ou ainda não
civilizada. A primeira de todas as formas de cultura e civilização genuinamente
brasileiras, merecedora de uma qualificação jurídica tão superlativa a
ponto de a Constituição dizer que “os direitos originários” sobre as terras
indígenas não eram propriamente outorgados ou concedidos, porém, mais
que isso, “reconhecidos” (parte inicial do art. 231, caput); isto é, direitos que
os mais antigos usos e costumes brasileiros já consagravam por um modo tão
legitimador que à Assembléia Nacional Constituinte de 1987/1988 não restava
senão atender ao dever de consciência de um explícito reconhecimento. Daí a
regra de que “São nulos e extintos, não produzindo efeitos jurídicos, os atos
que tenham por objeto a ocupação, o domínio e a posse das terras a que se
refere este artigo, ou a exploração das riquezas naturais do solo, dos rios e
dos lagos nelas existentes, ressalvado interesse público da União, segundo o
que dispuser lei complementar, não gerando a nulidade e a extinção direito
a indenização ou a ações contra a União, salvo, na forma da lei, quanto a
benfeitorias derivadas da ocupação de boa-fé”. Pelo que o direito por
continuidade histórica prevalece, conforme dito, até mesmo sobre o direito
adquirido por título cartorário ou concessão estatal.
(...)
III – O MARCO DA CONCRETA ABRANGÊNCIA FUNDIÁRIA E DA FINALIDADE
PRÁTICA DA OCUPAÇÃO TRADICIONAL. Quanto ao recheio topográfico ou
efetiva abrangência fundiária do advérbio “tradicionalmente”, grafado no
caput do art. 231 da Constituição, ele coincide com a própria finalidade prática
da demarcação; quer dizer, áreas indígenas são demarcadas para servir,
concretamente, de habitação permanente dos índios de uma determinada
etnia, de par com as terras utilizadas para suas atividades produtivas (deles,
indígenas de uma certa etnia), mais as imprescindíveis à preservação dos
recursos ambientais necessários a seu bem-estar e as necessárias à sua
reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições (§ 1º do
art. 231). Do que decorre, inicialmente, o sobredireito ao desfrute das terras
que se fizerem necessárias à preservação de todos os recursos naturais de
que dependam, especificamente, o bem-estar e a reprodução físico-cultural
dos índios. Sobredireito que reforça o entendimento de que, em prol da causa
indígena, o próprio meio ambiente é normatizado como elemento indutor ou
via de concreção (o meio ambiente a serviço do indigenato, e não o contrário,
na lógica suposição de que os índios mantêm com o meio ambiente uma
relação natural de unha e carne).
(ressalva dos destaques)
Como se pode constatar, o ilustre Min. Ayres Britto, no voto que
envolveu rumorosa questão jurídica, interpretou e conceituou termos ainda não
enfrentados pela jurisprudência pátria de forma clara e objetiva.
RSTJ, a. 24, (226): 97-146, abril/junho 2012
123
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
Restou definido que a data da promulgação da Constituição (5.10.1988)
constitui o parâmetro que deve ser levado em conta para aferir-se a ocupação
de terras pelos indígenas. Deve ser demonstrado que os índios, àquela data, já
estavam localizados na área a ser demarcada - marco temporal.
Ficou, ainda, definido que a ocupação da terra pelos índios transcende ao
que se entende como mera posse da terra, no conceito de direito civil. Deve-se
apurar se a área a ser demarcada guarda ligação anímica com a comunidade; se os
índios têm a noção de que a discutida região forma um só ser com a comunidade:
é a cosmovisão mencionada pelo Min. Britto - marco tradicionalista da ocupação.
Logo, uma vez constatada a posse imemorial na área, não se há de invocar
em defesa da propriedade o seu título translativo, sendo ainda inservível a cadeia
sucessória do domínio, documentos que somente servem para demonstrar
a boa-fé dos atuais titulares, sem eliminar o fato de que os índios foram
crescentemente usurpados das terras de ocupação tradicional, sendo forçados a
tornarem-se empregados nas fazendas para não deixar romper o vínculo social,
histórico e afetivo com os lugares que tinham como referência de suas vidas.
No que pertine ao específico ponto da impetração, alegam os autores que o
STF, no julgamento da Pet n. 3.388-RR, definiu que é “vedada a ampliação de
terra indígena já demarcada”.
Deflui-se da leitura do rumoroso precedente, que a Suprema Corte,
acolhendo proposta feita pelo Min. Menezes Direito em voto-vista, adotou
18 (dezoito) diretrizes que deveriam ser observadas na demarcação da reserva
indígena Raposa Serra do Sol e que encontram aplicação nos casos que tratam
da mesma matéria, dentre as quais se destaca a mencionada nas razões da
presente impetração:
xvii - É vedada a ampliação da terra indígena já demarcada;
Da simples leitura da diretriz proposta pelo saudoso Ministro Direito,
poder-se-ia chegar à conclusão de que assiste razão aos impetrantes, já que o
processo administrativo que culminou com a edição da Portaria ora discutida
terminou por ampliar a terra indígena Porquinhos, demarcada na década de
1970.
Contudo, tem-se que a extensão do referido preceito somente pode ser
devidamente aferida a partir do exame das alterações inseridas pela ordem
constitucional de 1988 no tema das terras indigenas, matéria analisada pelo
124
Jurisprudência da PRIMEIRA SEÇÃO
STF no julgamento da questão em torno da demarcação da reserva indígena
Raposa Serra do Sol.
No que interessa ao presente caso, verifica-se que o Min. Menezes Direito,
no voto-vista, afirmou:
Além dos efeitos acima destacados, a homologação tem mais uma importante
conseqüência pelo bem da segurança jurídica: a impossibilidade de revisão dos
limites da terra indígena fixados na Portaria do Ministério da Justiça.
Como já ressaltado, o procedimento de regularização da terra indígena é
um procedimento destinado à apuração do fato indígena, isto é a presença
indígena em 5.10.1988, com a sua respectiva extensão, esta determinada com
base nas já suas referidas expressões.
Ora, uma vez estabelecido e constatado esse fato, com base no qual terá sido
homologada a área da terra indígena, não pode haver mais espaço ou ensejo para
uma revisão dessa área.
(grifei)
Na oportunidade, o Min. Menezes Direito tratou de 02 (dois) pontos
importantes, quais sejam, o marco temporal da ocupação da terra pelos índios e a
inviabilidade da revisão do processo administrativo de identificação da terra indígena.
Primeiramente, deflui-se da leitura do excerto do voto acima mencionado
que o Min. Direito concordou com o Min. Ayres Britto no que tange ao marco
temporal da ocupação. Ambos consignaram que a promulgação da Constituição
da República (5.10.1988) constitui a referência para a constatação do fato
indígena (presença indígena) na região a ser demarcada.
Resta, portanto, examinar o alcance da inviabilidade de revisão da terra
indígena demarcada.
Em razão da pertinência com o tema examinado, transcrevo trecho do
voto em que o relator Min. Ayres Britto retrata a posição que restou acolhida
pela Suprema Corte no que tange à diretriz que deve ser observada quando da
demarcação das terras indígenas:
Também aqui é preciso antecipar que ambos os arts. 231 e 232 da Constituição
Federal são de finalidade nitidamente fraternal ou solidária, própria de uma quadra
constitucional que se volta para a efetivação de um novo tipo de igualdade: a
igualdade civil-moral de minorias que só têm experimentado, historicamente e por
ignominioso preconceito - quando não pelo mais reprovável impulso coletivo de
crueldade - desvantagens comparativas com outros segmentos sociais.
RSTJ, a. 24, (226): 97-146, abril/junho 2012
125
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
(...)
Nesse mesmo fluir do pensamento é que os arts. constitucionais de n. 231 e
232 têm que ser interpretados como densificadores da seguinte idéia-força: o
avançado estádio de integração comunitária é de se dar pelo modo mais altivo
e respeitoso de protagonização dos segmentos minoritários. No caso, os índios
a desfrutar de um espaço fundiário que lhes assegure meios dignos de subsistência
econômica para mais eficazmente poderem preservar sua identidade somática,
linguística e cultural, razão de ser de sua incomparável originalidade. Depois disso,
e tão persuasiva quanto progressivamente, experimentarem com a sociedade
dita civilizada um tipo de interação que tanto signifique uma troca de atenções e
afetos quando um receber e transmitir os mais valioso conhecimentos e posturas
de vida. Como uma aparelho auto-reverse, pois também eles, os índios, têm o
direito de nos catequizar uim pouco (falemos assim).
(...)
80. Passemos, então, e conforme anunciado, a extrair do próprio corpo
normativo da nossa Lei Maior o conteúdo positivo de cada processo demarcatório
em concreto. Fazemo-lo, sob os seguintes marcos regulatórios:
(...)
Numa palavra, o entrar em vigor da nova Lei Fundamental Brasileira é a
chapa radiográfica da questão indígena nesse delicado tema da ocupação das
terras a demarcar pela União para a posse permanente e usufruto exclusivo dessa
ou daquela etnia aborígene.
(grifei)
Confira-se a posição defendida neste ponto pelo Min. Menezes Direito:
Em segundo lugar, terras indígenas são terras ocupadas tradicionalmente
pelos índios.
(...)
O conceito indica modo de ocupação, a maneira pela qual os índios se
relacionam com a terra. É um novo ângulo em relação ao que previam as Constituições
anteriores que, se de um lado justifica a extensão geográfica dos direitos a serem
reconhecidos, de outro pode significar a exigência de que a ocupação pelos índios se dê
em conformidade com a cultura e o modus vivendi que se deseja preservar.
Dos trechos transcritos, constata-se que a promulgação da Constituição
da República de 1988 representou uma revisão do enfoque atribuído à questão
indígena no Brasil.
Até então a visão predominante era de que os índios encontravam-se
em um estágio inferior de desenvolvimento e de que deveriam ser integrados
126
Jurisprudência da PRIMEIRA SEÇÃO
à comunhão nacional. Sob a égide da ordem constitucional anterior direitos
eram assegurados aos índios com o fim de assegurar-lhes a existência até que
houvesse a sua paulatina inserção na população dita civilizada.
Comentando o tema, o Procurador Regional da República, Robério Nunes
dos Anjos Filho, em obra coordenada por Jorge Miranda e Paulo Bonavides,
preceitua:
A Constituição de 1988, especialmente pelo disposto no Capítulo VIII do seu
Título da Ordem Social, rompeu com a velha tradição integracionalista do direito
brasileiro.
(...)
O novo texto constitucional, ao contrário, fiel ao espírito pluralista, libertário
e democrático que o inspirou, não só assegurou aos índios os mesmos direitos
conferidos aos demais brasileiros como também reconheceu a organização social,
costumes, línguas, crenças e tradições indígenas. Rejeitou, assim, a antiga posição
etnocêntrica e adotou uma postura mais voltada à aceitação do relativismo
cultural.
(Comentários à Constituição Federal de 1988. Rio de Janeiro: Forense, 2009. P.
2.403)
Tem-se, portanto, que a revisão de terra indígena demarcada em data
anterior à promulgação da Constituição de 1988 não encontra óbice, já que
tal procedimento foi realizado sob a égide de regime normativo-constitucional
incompatível com a ordem vigente.
Interpretando-se sistemática e teleologicamente os ditames da ordem
constitucional instaurada com a Carta de 1988, verifica-se, pois, que a diretriz
proposta pelo Min. Direito veda tão-somente que se amplie reserva indígena
que tenha sido demarcada em data posterior ao marco temporal eleito pela
Constituição Cidadã, qual seja, 5.10.1988, já que, nesses casos, o processo de
demarcação terá observado a diretriz traçada pelo Poder Constituinte de 1988
de respeito à preservação da cultura e das tradições dos povos indígenas.
Conforme já ressaltado ao longo deste voto, o processo administrativo
homologado pelo Decreto n. 88.599 de 9.8.1983, que tratou primeiramente
da demarcação da terra indígena Porquinhos, tramitou na década de 1970,
período em que vigia a Constituição de 1969 (para alguns Constituição de
1967 com Emenda de 1969) e a doutrina que pregava a inserção dos índios na
comunidade majoritária tida por civilizada, assegurando aos aborígenes apenas o
mínimo necessário à sua existência, posição esta que foi totalmente alterada pela
RSTJ, a. 24, (226): 97-146, abril/junho 2012
127
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
Constituição de 1988 e que, por via de consequência, acarretará, no mais das
vezes, a ampliação da terra indígena inicialmente demarcada.
Com essas considerações, denego a segurança, tornando sem efeito a
liminar deferida.
Prejudicados os agravos regimentais interpostos pela União, pelo MPF e
pela Funai.
É o voto.
MANDADO DE SEGURANÇA N. 15.459-DF (2010/0118918-4)
Relator: Ministro Benedito Gonçalves
Impetrante: Sociedade Difusora Canguçu FM Ltda
Advogado: Luiz Carlos Santos Ferraz
Impetrado: Ministro de Estado das Comunicações
Interessado: União
Litis. Pas.: Sistema Canguçu de Comunicação Ltda
Advogado: Luís Maximiliano Leal Telesca Mota
EMENTA
Administrativo. Mandado de segurança. Licitação. Serviço de
radiodifusão. Desclassificação de empresa em razão de adulteração
em documento necessário à habilitação. Revisão do certame em
decorrência de decisão de arquivamento de inquérito policial que
versava sobre os mesmos fatos. Descabimento.
1. Mandado de segurança contra ato do Ministro das
Comunicações, que, após a homologação do certame, em que a
impetrante fora declarada vencedora, entendeu por bem reabrir o
procedimento licitatório, para rever a decisão que havia inabilitado a
empresa Sistema Canguçu, ora litisconsorte passiva, considerando-a
vencedora, após a reclassificação das propostas. Como fundamento,
o ato coator utilizou-se do conhecimento superveniente de
128
Jurisprudência da PRIMEIRA SEÇÃO
que o inquérito policial, que versava sobre os mesmos fatos que
desclassificaram a empresa Sistema Canguçu do certame (falsidade
documental), fora arquivado por atipicidade de conduta.
2. O ato impugnado se deu de forma indevida, mediante a
extrapolação dos estritos limites que regem a possibilidade de alteração
do desfecho do procedimento licitatório, em razão dos seguintes
fundamentos:
- A questão relativa ao implemento das condições para habilitação
no certame mediante a utilização de documento adulterado encontrase acobertada pela coisa julgada administrativa, não mais podendo
sofrer modificação nessa mesma via, ainda que sob o pretexto de
superveniência de circunstâncias novas, inexistentes ou desconhecidas
à época anterior da prolação do ato.
- Não se admite a revogação de decisão proferida na fase de
habilitação, eis que o referido julgamento traduz o exercício de
competência estritamente vinculada ao ato convocatório e ao edital.
- Não se vislumbra ilegalidade no procedimento licitatório capaz
de ensejar o exercício do poder de autotutela administrativa.
- No caso dos autos, não há vinculação entre a decisão penal
e a administrativa, tendo em vista que: i) a decisão que inabilita/
desclassifica o concorrente do certame não tem cunho sancionador,
a ensejar a vinculação à absolvição do juízo penal; ii) o fato não foi
considerado inexistente no juízo penal, que apenas o declarou atípico,
por se tratar de falsificação grosseira, sem potencialidade lesiva; e iii)
não houve o reconhecimento de que a empresa proponente acabou por
cumprir as regras editalícias atinentes à habilitação, até mesmo porque
tal juízo não tinha competência para tanto; iv) o juízo penal analisou
a potencialidade lesiva da conduta de adulteração documental, a
fim de configuração de crime de falsidade ideológica, previsto no
artigo 299 do CP, sendo que na seara administrativa, a questão foi
examinada unicamente à luz do edital, mediante a observância ou não
dos requisitos lá previstos para a fase de habilitação.
- Não obstante o arquivamento do inquérito policial tenha
ocorrido em 1º.9.2000, a empresa Sistema Canguçu somente levou
tal fato ao conhecimento da Administração Publica em 31.1.2008,
quando já havia sido homologado o certame (21.11.2007), o que
RSTJ, a. 24, (226): 97-146, abril/junho 2012
129
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
caracteriza desídia da empresa concorrente, que poderia ter levantado
tal questão em tempo hábil, antes do julgamento do seu recurso
interposto da decisão que a desclassificou do certame, o que poderia
ter influenciado na decisão administrativa a esse respeito.
3. Vê-se que a Administração Pública, após a homologação
da concorrência e motivada pela decisão judicial de arquivamento
do inquérito penal, pretendeu dar nova interpretação aos fatos que
ocasionaram a desclassificação da empresa Sistema Canguçu do
certame, o que não é permitido, pelos motivos acima expostos.
4. Segurança concedida, para declarar nulo o ato coator e
restabelecer a homologação anterior do certame, datada de 21.11.2007.
Prejudicado o agravo regimental.
ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos os autos em que são partes as acima indicadas,
acordam os Ministros da Primeira Seção do Superior Tribunal de Justiça, por
unanimidade, conceder a segurança, restando prejudicado o agravo regimental,
nos termos do voto do Sr. Ministro Relator. Os Srs. Ministros Cesar Asfor
Rocha, Francisco Falcão, Teori Albino Zavascki, Humberto Martins, Herman
Benjamin, Napoleão Nunes Maia Filho e Mauro Campbell Marques votaram
com o Sr. Ministro Relator.
Licenciado o Sr. Ministro Arnaldo Esteves Lima.
Brasília (DF), 14 de março de 2012 (data do julgamento).
Ministro Benedito Gonçalves, Relator
DJe 20.3.2012
RELATÓRIO
O Sr. Ministro Benedito Gonçalves: Trata-se de mandado de segurança,
com pedido de liminar, impetrado por Sociedade Difusora Canguçu FM
Ltda. contra ato atribuído ao Ministro de Estado das Comunicações, que,
revendo pronunciamento anterior que declarava a impetrante vencedora do
certame, lançou nova homologação à Concorrência n. 21/1997 e adjudicou
130
Jurisprudência da PRIMEIRA SEÇÃO
o objeto (serviço de FM) à concorrente Sistema Canguçu de Comunicação
Ltda. (fls. 28).
Em suas razões, a impetrante narra que participou da Concorrência n.
21/1997, realizada pelo Ministério das Comunicações, que teve por objeto o
canal 277 em FM no Município de Canguçu-RS.
Informa que apresentou recurso administrativo contra a habilitação da
concorrente, Sistema Canguçu de Comunicação Ltda., por ter se utilizado, para
tanto, de documento público falsificado denominado “Termo de Declaração”,
aduzindo, ainda, a esse respeito, o seguinte (fls. 3):
O referido “Termo de Declarações” consiste em documento emitido pela
secretaria da Comissão de Licitação a todas as proponentes, certificando que
receberam o texto do edital e seus anexos. Este documento serviu à instrução da
documentação de habilitação apresentada pela empresa licitante (litisconsorte
passiva) e consta às fls. 031 do Processo n. 53790.000382/1997. Ficou claro,
em todo o procedimento, que o documento apresentado não foi obtido
(adquirido) pela licitante Sistema Canguçu de Comunicação Ltda, que se utilizou,
irregularmente, de um outro Termo de Declaração, adquirido por pessoa física,
onde inseriu indevidamente o nome da empresa, hoje tida como vencedora no
certame, dando conta da aquisição do Edital e seus anexos.
Assevera que, após o indeferimento do recurso administrativo, a impetrante
ofereceu representação ao Ministro de Estado das Comunicações, que entendeu
por bem declarar a inabilitação superveniente da Sistema Canguçu, “em
decorrência da constatação de adulteração em um de seus documentos de
habilitação” (fls. 4), tendo o certame, por conseguinte, prosseguido e a impetrante
declarada vencedora, adjudicando o serviço de radiodifusão.
A seguir, noticia que a Sistema Canguçu de Comunicação Ltda. apresentou
recurso administrativo dessa decisão, o qual foi considerado inicialmente
intempestivo, o que, todavia, foi afastado na via judicial, por meio de mandado
de segurança dirigido a esta Corte Superior e posterior recurso ordinário ao
STF. Processado tal recurso, foi ele julgado improcedente, o que ensejou a
homologação do resultado e a confirmação da impetrante como vencedora, nos
termos do despacho proferido em 27.11.1998 (DJU de 30.11.1998). Afirma
que todos os prazos foram cumpridos e a vencida não se irresignou contra esse
resultado.
Prossegue informando que, em 31.1.2008, quando já tramitava no
Congresso Nacional o processo de concessão da outorga dos serviços de
RSTJ, a. 24, (226): 97-146, abril/junho 2012
131
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
radiodifusão, a Sistema Canguçu dirigiu petição nominal ao Dr. Marcelo
Bechara de Souza Hobaika (Consultor Jurídico no Ministério das
Comunicações), que a recebera como requerimento administrativo denominado
“pedido de reconsideração”. Defende que, em tal peça, a concorrente confessou
expressamente ter adulterado o Termo de Declarações para poder participar do
certame, senão vejamos (fls. 6):
Para que fosse realizada a troca do Termo de Declaração da empresa Sistema
Canguçu de Comunicação Ltda. fazia-se necessário que um representante da
empresa se dirigisse até a cidade de Porto Alegre para realizar este procedimento.
Um dia antes da abertura dos envelopes o representante da empresa se dirigiu
até o Ministério das Comunicações em Porto Alegre por volta das 17:15hs. e foi
surpreendido com a informação de que o expediente se encerrava às 17 para fins
de licitação. Sendo assim, sem ter outra alternativa, o representante da empresa
Sistema Canguçu de Comuncação Ltda. tirou cópia da folha de rosto do Termo
de Declaração que constava os dados da pessoa física, autenticou em cartório
e preencheu a cópia autenticada de próprio punho com os dados da pessoa
jurídica, haja vista a impossibilidade deste ato ter sido praticado por funcionário
do Ministério das Comunicações.
Alega que a referida autoridade propôs a revisão do certame para a localidade
de Canguçu-RS, com fundamento no princípio da autotutela da Administração
Pública (artigo 54 da Lei n. 9.784/1999) e em razão do arquivamento, na esfera
penal, do inquérito que tramitava em decorrência dos mesmos fatos, em que
foi concluído que não estavam presentes os pressupostos caracterizadores do
crime de falso, já que a falsificação do documento fora grosseira. Tal proposta foi
acolhido pelo Ministro de Estado das Comunicações, resultando na reabertura
do procedimento licitatório, na habilitação da Sistema Canguçu e, procedendo
à nova classificação final, na indicação desta como vencedora do certame, tudo
sem a observância sequer do princípio do contraditório.
Sob esse arcabouço fático, alega a impetrante que o despacho ministerial
ora atacado foi proferido em procedimento eivado de diversas ilegalidades, que
incluem (fls. 8):
o prestígio ao uso de meios fraudulentos em licitação, o favorecimento, a
modificação da coisa julgada administrativa, o desrespeito ao direito adquirido
e à boa-fé objetiva, o desrespeito ao direito constitucionalmente assegurado do
contraditório e ampla defesa, culminando com abuso de poder e total afronta aos
princípios administrativos da legalidade, da isonomia e da vinculação ao edital e
da moralidade pública.
132
Jurisprudência da PRIMEIRA SEÇÃO
Defende que a exclusão do crime de falso, no âmbito penal, não afasta
o ilícito do ato em sede administrativa, até mesmo porque tais esferas são
independentes, além de que em nenhum momento, na seara penal, se considerou
inexistente a dita adulteração ou se afastou da condição de autor o representante
legal da empresa. Em outras palavras, não se afastou a ocorrência do ato, mas
apenas se entendeu que, por se tratar de falsificação grosseira, não estaria
configurado elemento essencial do tipo da falsidade documental.
Invoca, ainda, as teses relativas ao direito adquirido, ao abuso de poder da
Administrativa sob o pretexto de autotutela, e ao princípio da boa-fé objetiva.
Por fim, a impetrante requer seja concedida a segurança, com a anulação
do ato ilegal e abusivo praticado pela autoridade impetrada, assegurando-lhe,
por conseguinte, a condição de vencedora da concorrência, conforme decisão
homologatória anteriormente proferida.
A liminar foi por mim indeferida às fls. 2.125-2.127, o que deu ensejo ao
agravo regimental de fls. 2.131-2.145.
A empresa Sistema Canguçu de Comunicação Ltda. foi incluída no
feito como litisconsorte passiva necessária (fls. 2.149), tendo apresentado
manifestação às fls. 2.159-2.177.
A autoridade apontada como coatora apresentou informações às fls. 157172, aduzindo, em suma, o seguinte (fls. 170):
Portanto, somente quando a entidade Sistema Cangaçu de Comunicação Ltda.
apresentou o requerimento administrativo, dando ensejo a revisão do ato de
homologação do certame, é que se deu conhecimento à Administração de que
os motivos que ensejaram sua exclusão não subsistiam, haja vista a atipicidade da
conduta praticada.
Logo, uma vez constatado pela Administração que o ato de exclusão da
entidade do certame teria sido injusto, não restou alternativa, impondo-se
pelo exercício do poder-dever de autotutela que o resultado do certame para
localidade de Canguçu fosse revisto e se declarasse que a vencedora do certame é
a entidade Sistema Canguçu de Comunicação Ltda.
Oportuno destacarmos novamente que a causa da exclusão foi a suposta
adulteração de um documento que a Administração sequer exige nos certames
realizados posteriormente, sendo considerado desnecessária a cláusula exigindo
a prova de que teria o licitante obtido o edital e seus anexos, pois corre por
conta e risco dos licitantes conhecerem ou não as regras editalícias e ter ou não
adquirido o edital, bem como é plenamente cabível que uma terceira pessoa não
participante do certame possa obter o edital e repassar para outrem interessado
em tal participação.
RSTJ, a. 24, (226): 97-146, abril/junho 2012
133
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
O Ministério Público Federal opinou pela denegação da ordem,
principalmente porque a alegada fraude na licitação não se encontra demonstrada
de forma cabal nos autos, o que inviabiliza a utilização do mandado de segurança
(dilação probatória) (fls. 2.185-2.194).
É o relatório.
VOTO
O Sr. Ministro Benedito Gonçalves (Relator): Inicialmente, para uma
melhor compreensão da lide, faço um breve resumo dos acontecimentos fáticos
ocorridos nos autos:
- O Edital de Licitação relativo à Concorrência n. 2/1997, do Ministério
das Comunicações, foi adquirido por Gilnei Oriente Mussi e, por tal razão,
o Termo de Declaração (que consta dos arquivos originais da Comissão de
Licitação do Ministério das Comunicações) foi preenchido tão somente
no campo relativo ao interessado pessoa física, ficando em branco o espaço
destinado ao interessado pessoa jurídica (fls. 749).
- Diante da previsão contida no item 4.1 do Edital, que declarava que apenas
sociedades ou fundações poderão participar da concorrência, a Administração
Pública teria se encarregado de informar a todos os que retiravam o Termo
de Declaração em nome de pessoa física da necessidade de substituí-lo, para
participar da Concorrência. Facultou-se, então, àqueles que já tinham retirado o
edital, com o respectivo pagamento da taxa de custos, a substituição do Termo
de Declaração para fazer constar os dados da pessoa jurídica constituída.
- Ato contínuo, o Sr. Gilnei providenciou a constituição da pessoa jurídica
Sistema Canguçu de Comunicação Ltda., tornando-se sócio-gerente dela.
Porém, embora tenha tentado, por duas vezes na véspera da sessão de entrega da
documentação, e mais uma vez no dia da sessão, não conseguiu, em virtude de
questões atinentes ao horário de expediente, substituir o Termo de Declaração,
que havia adquirido em nome de pessoa física, por outro, como nome da
empresa, o que tudo indica que teria feito os responsáveis da empresa inserirem
neste documento os dados com o nome da pessoa jurídica e o CNPJ, para poder
participar da Licitação (fls. 747).
- Não obstante tal situação, a empresa Sistema Canguçu foi considerada
habilitada no Certame, o que ensejo à utilização de recurso administrativo por
parte da impetrante (29.12.1997 - fls. 752-759 e 764-766), o qual foi indeferido
134
Jurisprudência da PRIMEIRA SEÇÃO
pela Comissão Especial de Âmbito Nacional do Ministério das Comunicações
(Cean) (fls. 760-762). Em seguida, já na fase de julgamento das propostas
das licitantes, a impetrante apresentou representação contra a classificação da
referida empresa, forte no entendimento de que, não obstante ultrapassada a
fase de habilitação, a questão poderia ser novamente debatida porque nunca
ocorreria a preclusão diante de fato caracterizado como crime (19.6.1998 - fls.
768-733). Após parecer da Consultoria Jurídica e da Cean, o Ministro das
Comunicações decidiu desclassificar a empresa Sistema Canguçu, haja vista ter
concluído que a mesma teria adulterado um de seus documentos de habilitação.
- Inconformada, a Sistema Canguçu apresentou recurso, cuja decisão
inicial de intempestividade foi atacada via mandado de segurança. Nesse
ínterim, enquanto se aguardava a decisão judicial, o certame foi homologado
em 26.11.1998 e o seu objeto adjudicado às entidades vencedoras, com exceção
das localidades de Canguçu e Capão do Leão-RS, para as quais foram tidas por
vitoriosas as proponentes Sociedade Difusora Canguçu FM Ltda. e Central
de Eventos e Promoções e Marketing Ltda, respectivamente, cujos resultados
ficaram submetidos à condição resolutiva, aguardando decisão judicial sobre
os mandados de segurança que tramitavam no STJ. Após o julgamento dos
mandamus pelo poder Judiciário que afastou a alegada intempestividade (fls.
1.788-1.801), o recurso administrativo da Sistema Canguçu foi analisado e
julgado improvido pelo Ministro das Comunicações (DJ 5.10.2007 - fls. 1.821),
pelo fato da empresa não ter comprovado a obtenção do Edital da Concorrência
(fls. 1.807-1.817). Dessa decisão não houve recurso (certidão de fls. 1.824).
- Ato contínuo, em 21.11.2007, houve a confirmação da homologação
do certame, que havia inicialmente ocorrido em 26.11.1998, constando como
vencedora a impetrante (fls. 1.837).
- Não obstante, em 31.1.2008, quando o processo de concessão da outorga
dos serviços de radiodifusão já tramitava no Congresso Nacional (fls. 1.8681.817), a Sistema Canguçu dirigiu petição Consultor Jurídico no Ministério
das Comunicações, pugnando pela revisão do certame, ao argumento de que
o inquérito policial, que versava sobre a falsidade documental, foi arquivado.
Embora tal peça tenha sido considerada intempestiva, a Consultoria Jurídica,
sob o manto da auto-tutela, opinou pela classificação da empresa Sistema
Canguçu, reclassificação das licitantes e revogação da homologação da
Concorrência n. 21/97 para a localidade de Canguçu, tendo em vista que “não
seria razoável que, comprovado o arquivamento do inquérito que versa sobre a
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135
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
falsidade do documental, por atipicidade de conduta, a falsidade constituísse
motivo para o não provimento do recurso e desclassificação da empresa Sistema
Canguçu de Comunicação Ltda.” (fls. 1.839-1.851). Sob esse contexto, o
Ministro das Comunicações tornou sem efeito a homologação da Concorrência
n. 21/97 na localidade de Canguçu (fls. 1.852), o que foi atacado por recurso da
empresa impetrante, Sociedade Difusora Canguçu FM Ltda, cujos argumentos,
embora constantes de uma peça considerada intempestiva, foram apreciados e
considerados insubsistentes (fls. 1.859-1.867).
- Por fim, foi publicado, em 8.11.2010, o ato coator, que homologou a
presente licitação e adjudicou o objeto à Sistema Canguçu de Comunicações
Ltda (fls. 1.886).
Em suma, pode-se dizer que o contexto fático dos autos é o seguinte: A
empresa Sistema Canguçu foi desclassificada da Concorrência n. 21/1997 por ter
adulterado um dos documentos necessário à fase da habilitação, especificamente
o Termo de Declaração, que atestava a aquisição do edital e seus anexos. Após a
homologação do certame, em que a impetrante fora declarada vencedora, e quando
os autos já tinham sido enviados ao Congresso Nacional para a outorga do serviço
de radiodifusão, a Administração Pública, em razão do conhecimento de que o
inquérito policial que versava sobre os mesmos fatos (falsidade documental) fora
arquivado por atipicidade de conduta, entendeu por bem reabrir o procedimento
licitatório, para rever a decisão que inabilitou a empresa Sistema Canguçu,
considerando-a vencedora, após a reclassificação das propostas.
Como visto, a impetração está fundada basicamente no argumento de que
o ato coator, que tornou sem efeito a anterior homologação do mesmo certame
e declarou como vencedora a Sistema Canguçu, ora litisconsorte passiva, está
eivado de diversas ilegalidades, principalmente porque: i) a empresa Sistema
Canguçu fez uso de documento adulterado para implementar as condições
de sua habilitação na Concorrência que aqui se trata; ii) houve modificação
de coisa julgada administrativa; iii) houve desrespeito ao direito adquirido, à
boa-fé objetiva e aos princípios administrativos da legalidade, da isonomia, da
vinculação ao edital e da moralidade administrativa; e iv) a exclusão do crime
de falso no âmbito penal não afasta o ilícito do ato em sede administrativa,
mormente porque lá não se considerou inexistente a dita adulteração.
Tenho que assiste razão à recorrente.
Com efeito, prevê o art. 49 da Lei n. 8.666/1993 que a “autoridade
competente para a aprovação do procedimento somente poderá revogar a
136
Jurisprudência da PRIMEIRA SEÇÃO
licitação por razões de interesse público decorrente de fato superveniente
devidamente comprovado, pertinente e suficiente para justificar tal conduta,
devendo anulá-la por ilegalidade, de ofício ou por provocação de terceiros,
mediante parecer escrito e devidamente fundamentado”.
Tal artigo consagrou, com alguma especialidade, posição pacífica acerca do
controle dos atos administrativos, cuja matéria já fora objeto de súmulas n. 346
e 473 do STF, que assim dispõem, respectivamente: “A administração pública
pode declarar a nulidade dos seus próprios atos” e “A administração pode anular
seus próprios atos, quando eivados de vícios que os tornam ilegais, porque
deles não se originam direitos; ou revogá-los, por motivo de conveniência ou
oportunidade, respeitados os direitos adquiridos, e ressalvada, em todos os casos,
a apreciação judicial”.
Portanto, não há dúvida de que a Administração pode proceder, por meio
da autotela, ao controle dos seus próprios atos, declarando-os nulos quando
eivados de vícios que os tornem ilegais ou revogando-os quando não lhe forem
mais convenientes ou oportunos.
Entretanto, no caso dos autos, entendo que foram extrapolados os estritos
limites que regem a possibilidade de alteração do desfecho do procedimento
licitatório.
Digo isso primeiro porque a fase atinente à habilitação no certame, e com
ela a questão acerca da falsidade documento, encontram-se preclusas para a
Administração, não mais podendo ser por ela revistas.
É que a revogabilidade do ato administrativo esbarra em alguns limites,
como, por exemplo, a coisa julgada administrativa, que, segundo José dos Santos
Carvalho Filho (in Manual de Direito Administrativo, 19ª ed, 2008, p. 859),
significa que determinado assunto decidido na via administrativa não mais
poderá sofrer alterações nesta mesma via, embora possa sê-lo na via judicial.
O instituto, consoante Celso Antônio Bandeira de Mello (in Curso de Direito
Administrativo, 18ª ed, 2004, p. 424-425), tem o sentido de indicar, para a
Administração, a definitividade dos efeitos de uma decisão que tenha tomado
e diz respeito unicamente à situações nas quais haja decidido contenciosamente
determinada questão.
Bem ou mal, certo é que a questão relativa ao implemento das condições
para habilitação no certame mediante a utilização de documento adulterado foi
devidamente analisada pela Administração Publica no decorrer no procedimento
RSTJ, a. 24, (226): 97-146, abril/junho 2012
137
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
licitatório, que entendeu por bem, após vários recursos, desclassificar a empresa
Sistema Canguçu da concorrência que aqui se trata.
Sendo assim, tal entendimento encontra-se acobertado pela coisa
julgada administrativa, não mais podendo sofrer modificação nessa mesma
via administrativa, como forma de resguardar a estabilidade da relação entre
as partes, ainda que sob o pretexto de superveniência de circunstâncias novas,
inexistentes ou desconhecidas à época anterior da prolação do ato.
Ainda que assim não fosse, nos ditames de Marçal Justen Filho (in
Comentário à Lei de Licitações e Contratos Administrativos, 12ª ed, 2008, p.
615), “se o ato tiver sido praticado no exercício de competência vinculada, não
se poderá promover revogação. Logo, não se permite à Administração efetivar a
revogação de atos, no curso da licitação, quando os tiver praticado sem exercício
da discricionariedade.”
Com efeito, considerando que o julgamento da fase de habilitação é
estritamente vinculado ao ato convocatório e ao edital, o ato daí emitido não é
passível de revogação. Não é outro o ensinamento de Marçal Justen Filho (in,
comentários à Lei de Licitações e Contratos Administrativos, 12ª Ed., 2008, p.
553), senão vejamos:
Se a Administração expressamente reconheceu, no julgamento da
habilitação, a presença dos requisitos, não caberá ignorar a existência da decisão
administrativa anterior e editar uma nova, com conteúdo diverso. O que se
admite é a anulação do ato pretérito, indicando-lhe um defeito apto a invalidá-lo,
o que autorizaria que houvesse novo julgamento da fase de habilitação.
(...)
Pelos fundamentos acima expostos, não se admite revogação da decisão de
habilitação, eis que o julgamento referido traduz o exercício da competência
estritamente vinculadas (ao ato convocatório e ao edital).
Isso quer dizer que, tendo concluído que a proponente não preenchia
os requisitos previstos no edital para a habilitação no certame, vincula-se a
Administração a essa decisão, que somente poderá ser alterada, pelo instituto
da autotutela, se constatado algum vício de legalidade, seja pela própria
Administração, provocada ou ex-officio, ou pelo Poder Judiciário.
Ocorre que, no caso dos autos, não se vislumbra ilegalidade no
procedimento licitatório capaz de ensejar o exercício do poder de autotutela
administrativa, tampouco tenha o Poder Judiciário reconhecido e determinado
a anulação da decisão administrativa relativa à desclassificação da concorrente.
138
Jurisprudência da PRIMEIRA SEÇÃO
Certo é que não só a desclassificação da Sistema Canguçu, mas o
procedimento licitatório como um todo, correu em conformidade com os
ditames da lei e os princípios que regem a Administração Pública, tendo
consagrado a impetrante como vencedora.
Assim, a meu ver, não pode agora a Administração, sob o pretexto de
que tomou conhecimento do arquivamento do inquérito policial, reabrir o
procedimento administrativo já homologado e, mediante uma releitura dos fatos
já devidamente analisados, rever a decisão atinente à habilitação da concorrente,
adjudicando, inclusive, o objeto da licitação a ela, sob pena de violar a coisa
julgada administrativa.
Não se pode dizer que o decisum prolatado na esfera penal, que determinou
o arquivamento do inquérito por atipicidade da conduta, tem o condão de
possibilitar a revisão da decisão administrativa relativa à desclassificação da
concorrente.
É que, como ressabido, a vinculação entre as instâncias penal e
administrativa apenas ocorre quando o administrado, condenado na esfera
administrativa, for absolvido no âmbito penal por inexistência de fato ou
negativa de autoria. Está é a inteligência dos artigos 125 e 126, da Lei n.
8.112/1990, que assim dispõe:
Art. 125. As sanções civis, penais e administrativas poderão cumular-se, sendo
independentes entre si. (grifos nossos)
Art. 126. A responsabilidade administrativa do servidor será afastada no caso
de absolvição criminal que negue a existência do fato ou sua autoria. (grifos
nossos)
Entretanto, no caso dos autos, além de não ter havido condenação na seara
administrativa, posto que a inabilitação não é pena, não foi o fato considerado
inexistente no juízo penal, que apenas o declarou atípico, por se tratar de
falsificação grosseira, sem potencialidade lesiva.
A inabilitação não caracteriza uma punição/condenação, mas apenas a
preclusão do administrado participar do certame ante a constatação de que não
foram preenchidos os requisitos do edital exigidos para tanto.
Ademais, há que se levar em consideração que o órgão ministerial, ao
promover o arquivamento, em nenhum momento proclamou não ter havido a
adulteração do documento questionado, mas apenas afirmou que não estavam
presentes os pressupostos caracterizadores do crime de falso, já que a falsificação
RSTJ, a. 24, (226): 97-146, abril/junho 2012
139
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
do documento fora grosseira. É o que se infere da referida peça ministerial, a
qual tomo a liberdade de transcrever os seguintes trechos (fls. 644-645):
Da análise dos autos, em especial dos Termos de Declaração das fls. 158-159,
percebe-se a adulteração dos documentos, facilmente perceptível através da análise
comparativa entre os campos preenchidos pela funcionária do Ministério das
Comunicações e ou outro posteriormente completado. Entretanto, cabe analisar se
o ocorrido realmente configura o delito de falsidade ideológica em todos os seus
aspectos.
Conforme depoimento da fls. 168, de Werlau Mendes Ussan, responsável
regional pela referida concorrência, o documento Termo de Declaração tinha
como escopo provar a aquisição do Edital de concorrência e de seus anexos
pelos participantes. Ocorre que diversas pessoas interessadas em participar da
concorrência adquiriram o edital, sendo o mesmo preenchido com os dados da
pessoa física adquirente. Em virtude de posterior notícia sobre a proibição de
participação de pessoas físicas em concorrência do gênero, estas constituíram
pessoas jurídicas com o fim de participar do certame licitatório. Constituídas
as pessoas jurídicas, o termo preenchido com os dados da pessoa física era
devolvido ao funcionário do Ministério das Comunicações, os quais forneciam um
novo termo, agora com dados da pessoa jurídica.
Vê-se, portanto, que, no caso em tela, os responsáveis pela empresa Sistema, em
vez de trocarem os termos em tempo hábil, simplesmente preencheram junto ao
campo com os dados de pessoa física o campo com os dados de pessoa jurídica. É
dizer, acrescentaram, de próprio punho, os dados da pessoa jurídica constituída.
Ora, se os campos são excludentes entre si, como salientado pelo funcionário
responsável, e ambos encontravam-se preenchidos, ter-se-ia, no máximo, falsidade
material grosseira, incapaz de enganar, que não configura o crime de falso, pela
ausência de qualquer potencialidade lesiva.
Vejamos:
Ementa: 1. Direito Penal. Falsificação documental. Contrafação grosseira.
Não configuração do delito. 2. Quando a falsificação é grosseira, facilmente
perceptível, inapta para iludir o homem de inteligência mediana, sem
potencialidade lesiva contra a fé pública ou contra terceiros, ela não atinge
a raiz do ilícito penal. Tal atitude mostra-se irrelevante para o Direito Penal.
3. A idoneidade da falsificação do documento público e imprescindível para
a configuração do delito, segundo a jurisprudência e a doutrina. 4. Apelação
provada para absolver o réu (ACR n. 95.04.29733-1, Primeira Turma, Relator
Juiz Gilson Dipp, Data da decisão 5.3.1996, DJU 3.4.1996, p. 21.317).
Ademais, tem-se que, para regularizar a habilitação, a empresa concorrente
poderia trocar o Termo de Declaração com os dados de pessoa física por outro
140
Jurisprudência da PRIMEIRA SEÇÃO
com os dados de pessoa jurídica, junto ao próprio Ministério das Comunicações,
o que permitia, conclusivamente, que a compra do edital por pessoa física
pudesse ser transmitida a pessoa jurídica. Também, não há dúvida de que o
intuito do Termo de Declaração era tão-somente provar a aquisição do edital
pela concorrente. Diante disso, no caso dos autos, não há prejuízo de direito ou
alteração da verdade sobre fato juridicamente relevante.
Veja-se que “o delito do artigo 299 do CP exige como elemento subjetivo, o dolo
específico, que consiste na alteração de um fato com o fim de prejudicar direito, criar
obrigação ou modificar a verdade, sobre fato relevante, o que não ocorre quando
o agente faz acréscimo inútil a documento apenas para facilitar aquilo que julga
de direito, sem intenção de alterar fato juridicamente relevante e sem auferir
qualquer vantagem com tal proceder (...)” TJSP in Mirabete, Júlio Fabrino, Código
Penal interpretado, 1999.
Desse modo, nota-se que a declaração aposta pelos investigados não era apta
a iludir, pois contradizia outra informação já constante do próprio documento e,
mais ainda, não alterava a verdade sobre fato relevante, o que leva à ausência de
configuração típica do fato.
Diante do exposto, o Ministério Público Federal requer o arquivamento do
presente Inquérito, por atipicidade da conduta.
Portanto, não há dúvida de que houve a alteração de documento previsto no
edital como essencial à habilitação no certame. Tal fato é certo e incontroverso
nos autos, de modo que a circunstância de a alteração ter sido feita sem a
potencialidade necessária para que se classificasse como falsidade documental ou
ideológica não resulta na inexistência da adulteração do documento, tampouco
no entendimento de que a empresa proponente acabou por cumprir as regras
editalícias atinentes à habilitação.
Vale consignar que, embora tais instâncias tenham analisado o mesmo fato,
assim o fizeram sob enfoques diversos, com motivações diferentes. Enquanto
o juízo penal analisou a potencialidade lesiva da conduta de adulteração
documental, a fim de configuração de crime de falsidade ideológica, previsto no
artigo 299 do CP, na seara administrativa, a questão foi examinada unicamente
à luz do edital, mediante a observância ou não dos requisitos lá previstos para a
fase de habilitação.
Assim, não há falar em vinculação de instâncias. Não há como se
entender que a decisão penal, que tratou da questão sob enfoque diverso,
tem influência na validade da decisão administrativa, até mesmo porque a
inabilitação de participante de licitação não exige comprovação de infração,
bastando o não cumprimento das condições descritas no edital, sendo certo que
RSTJ, a. 24, (226): 97-146, abril/junho 2012
141
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
não houve determinação de nulidade da decisão administrativa por parte do
Poder Judiciário, tampouco a proclamação de que a empresa concorrente havia
cumprido os requisitos do edital no tocante à habilitação, mormente porque
sequer teria competência para tanto.
Como se não bastasse, soma-se a isso tudo o fato de que, não obstante
o arquivamento do inquérito policial tenha ocorrido em 1º.9.2000 (fls.
1.336), a empresa Sistema Canguçu somente levou tal fato ao conhecimento
da Administração Publica com a petição datada de 31.01.2008, apresentada
quando já havia sido homologado o certame (21.11.2007). Disso, só se pode
concluir que houve desídia da empresa concorrente, que poderia ter levado
tal informação ao conhecimento da Administração em tempo hábil, antes,
portanto, do julgamento do seu recurso administrativo, interposto da decisão
que a desclassificou do certame, o que poderia ter influenciado na decisão
administrativa a respeito.
Por tudo o que foi exposto, entendo que o ato coator, que tornou sem efeito
a homologação da Concorrência n. 21/1997, em prejuízo da ora impetrante, se
deu de forma indevida e sem amparo legal.
Ao que tudo indica, a Administração Pública, após a homologação da
concorrência e motivada pela decisão judicial de arquivamento do inquérito penal,
pretendeu dar nova interpretação aos fatos que ocasionaram a desclassificação
da empresa Sistema Canguçu do certame, o que não é permitido, seja em razão
da preclusão administrativa, da natureza vinculada dos atos praticados na fase de
habilitação, da inexistência de ilegalidade no procedimento licitatório revisado,
ou da não vinculação de tal decisão penal na esfera administrativa.
Ante o exposto, concedo a ordem, para declarar nulo o ato coator e
restabelecer a homologação anterior do certame, datada de 21.11.2007.
É como voto.
MANDADO DE SEGURANÇA N. 16.136-DF (2011/0030909-8)
Relator: Ministro Francisco Falcão
Impetrante: Deilson Moreira de Sant’Ana
142
Jurisprudência da PRIMEIRA SEÇÃO
Advogado: Bárbara Costa Pessoa Gomes Tardin e outro(s)
Impetrado: Ministro de Estado da Justiça
Interessada: União
EMENTA
Mandado de segurança. Anistia. Promoção. Efeitos retroativos.
Decadência da impetração. Recurso administrativo sem efeito
suspensivo. Interrupção. Inocorrência.
I - Na hipótese dos autos, o impetrante teve indeferido recurso
administrativo interposto contra a concessão de sua anistia apenas com
efeitos retroativos sobre a diferença entre os proventos da graduação de
Primeiro-Sargento e os proventos da graduação de Segundo-Tenente,
limitados de 31 de outubro de 1997 a 5 de dezembro de 2003.
II - A portaria que concedeu anistia ao impetrante com efeitos
retroativos limitados foi publicada em 2004 e, a despeito do anistiado
ter interposto recurso administrativo, que foi indeferido em 2010,
somente impetrou o mandado de segurança após a fluência do prazo
decadencial previsto no artigo 23 da Lei n. 12.016/2009.
III - É pacífica a jurisprudência deste Superior Tribunal de
Justiça no sentido de que o recurso administrativo, desprovido de
efeito suspensivo, não interrompe o prazo decadencial do mandado de
segurança. Precedentes: RMS n. 28.030-SP, Rel. Min. Denise Arruda,
DJe de 20.11.2009; EDcl no AgRg no MS n. 12.716-DF, Celso
Limongi (Desembargador convocado do TJ-SP), DJe de 15.4.2011;
RMS n. 22.439-RS, Rel. Min. Castro Meira, DJe de 10.2.2011; AgRg
no MS n. 14.178-DF, Rel. Min. Felix Fischer, DJe de 17.4.2009 e MS
n. 15.158-DF, Rel. Min. Eliana Calmon, DJe de 1º.9.2010.
IV - Mandado de segurança denegado.
ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos os autos em que são partes as acima indicadas,
acordam os Ministros da Primeira Seção do Superior Tribunal de Justiça:
“A Seção, por unanimidade, denegou a segurança, nos termos do voto do
RSTJ, a. 24, (226): 97-146, abril/junho 2012
143
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
Sr. Ministro Relator.” Os Srs. Ministros Teori Albino Zavascki, Humberto
Martins, Herman Benjamin, Napoleão Nunes Maia Filho, Mauro Campbell
Marques, Benedito Gonçalves e Cesar Asfor Rocha votaram com o Sr. Ministro
Relator. Licenciado o Sr. Ministro Arnaldo Esteves Lima.
Brasília (DF), 14 de março de 2012 (data do julgamento).
Ministro Francisco Falcão, Relator
DJe 23.3.2012
RELATÓRIO
O Sr. Ministro Francisco Falcão: Trata-se de Mandado de segurança com
pedido de liminar impetrado por Deilson Moreira de Sant’Ana contra o ato do
Excelentíssimo Senhor Ministro de Estado da Justiça, que indeferiu o recurso
administrativo interposto contra a concessão de sua anistia apenas com efeitos
retroativos sobre a diferença entre os proventos da graduação de PrimeiroSargento e os proventos da graduação de Segundo-Tenente, somente de 31 de
outubro de 1997 a 5 de dezembro de 2003.
Sustenta que possui direito líquido e certo em ver declarado o direito de
receber a diferença dos valores de Segundo-Sargento para Segundo-Tenente, de
5 de outubro de 1988 a 31 de dezembro de 1998, e a diferença entre o posto de
Segundo Tenente e a graduação de segundo-Sargento de janeiro de 1,01.01.199
a 05.12.2003, ao argumento de que requereu, desde 1985, a aplicação dos efeitos
financeiros da anistia, quando ingressou com ação ordinária perante a Justiça
Federal, devendo ser considerado, para o início da retroatividade e da prescrição
quinquenal, a data do protocolo da petição ou requerimento inicial de anistia.
Assevera que o indeferimento do recurso administrativo violou o disposto
no artigo 6º e parágrafos da Lei n. 10.559, que assegura o direito à retroatividade
a partir de 5 de outubro de 1988, com as promoções da carreira militar a que faz
jus.
Alega que em recurso administrativo relativo a militar em idêntica situação
foi corrigida a portaria de anistia para reconhecer o direito aos efeitos financeiros
retroativos integralmente no posto de Segundo-Tenente, desde 5 de outubro de
1988, possuindo também direito líquido e certo à anistia ampla.
144
Jurisprudência da PRIMEIRA SEÇÃO
Requereu a concessão de liminar para que seja determinada a entrega dos
efeitos financeiros retroativos incidindo integralmente no posto de SegundoTenente de 5 de outubro de 1988 a 31 de dezembro de 1998, com a diferença
dos valores de Segundo-Sargento para Segundo-Tenente.
A liminar foi indeferida às fls. 48-49.
Interposto agravo interno, este foi desprovido (fls. 721-726).
Manifestação da União (fls. 81-85).
Informações da autoridade impetrada (fls. 91-714).
Parecer do MPF pela denegação da ordem.
É o relatório.
VOTO
O Sr. Ministro Francisco Falcão (Relator): O impetrante volta-se contra
os efeitos da Portaria n. 744, que lhe concedeu a promoção à graduação de
Suboficial com os proventos do posto de Segundo-Tenente e determinou os
efeitos financeiros retroativos a partir de 31.10.1997 até 5.12.2003.
Contra o ato administrativo, o impetrante apresentou recurso que foi
indeferido em 19 de novembro de 2010.
Ocorre que a portaria 744 foi publicada em 26 de fevereiro de 2004 e o
recorrente somente impetrou o Mandado de Segurança em 15 de fevereiro de
2011, evidenciando-se, ipso facto, a decadência da impetração, em conformidade
com o que dispõe o artigo 23 da Lei n. 12.016/2009, verbis:
Art. 23. O direito de requerer mandado de segurança extinguir-se-á decorridos
120 (cento e vinte) dias, contados da ciência, pelo interessado, do ato impugnado.
Observe-se que, na hipótese dos autos, a relação jurídica estabelecida
não é de natureza continuada. A determinação de implemento da reparação
econômica consubstancia ato único, não se cogitando de sucessivas violações de
direito.
Por outro lado, a interposição de recurso administrativo não interrompe a
fluência do prazo decadencial para a impetração do mandado de segurança.
Tal entendimento é pacífico no âmbito deste Superior Tribunal de Justiça,
como se dessume dos julgados: RMS n. 28.030-SP, Rel. Min. Denise Arruda,
RSTJ, a. 24, (226): 97-146, abril/junho 2012
145
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
DJe de 20.11.2009; EDcl no AgRg no MS n. 12.716-DF, Celso Limongi
(Desembargador convocado do TJ-SP), DJe de 15.4.2011; RMS n. 22.439-RS,
Rel. Min. Castro Meira, DJe de 10.2.2011; AgRg no MS n. 14.178-DF, Rel.
Min. Felix Fischer, DJe de 17.4.2009 e MS n. 15.158-DF, Rel. Min. Eliana
Calmon, DJe de 1º.9.2010, este último assim ementado, verbis:
Processual Civil e Administrativo. Mandado de segurança. Certificado
de utilidade pública. Prazo decadencial. Fluência. Pedido de reconsideração.
Interrupção do prazo. Inocorrência.
1. O prazo decadencial para a impetração do mandado de segurança flui a
partir da ciência do ato capaz de produzir lesão ao direito do impetrante.
2. É pacífico o entendimento do STJ de que o prazo decadencial para
impetração do mandado de segurança não se interrompe nem se suspende em
razão de pedido de reconsideração ou da interposição de recurso administrativo,
exceto quanto concedido efeito suspensivo.
3. Segurança denegada.
Tais as razões expendidas, denego a ordem.
É o voto.
146
Primeira Turma
AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO DE INSTRUMENTO N. 1.378.599-SP
(2010/0205872-8)
Relator: Ministro Arnaldo Esteves Lima
Agravante: Mário Vieira - espólio
Representado por: Mario Vieira Filho - inventariante
Advogado: Alde da Costa Santos Júnior e outro(s)
Agravado: União
EMENTA
Administrativo. Processual Civil. Agravo regimental no agravo de
instrumento. Ação rescisória. Decadência. Não ocorrência. Ajudante de
Despachante Aduaneiro. Atividade de natureza privada. Reintegração.
Atrasados. Inexistência. Ofensa à coisa julgada reconhecida pelo
Tribunal de origem. Manutenção. Agravo não provido.
1. “Proposta a ação no prazo fixado para o seu exercício, a demora
na citação, por motivos inerentes ao mecanismo da justiça, não justifica
o acolhimento da arguição de prescrição ou decadência” (Súmula n.
106-STJ).
2. Hipótese em que não pode ser computado o tempo transcorrido
antes que a União fosse pessoalmente intimada (na forma prevista
pelos arts. 35 e 38 da Lei Complementar n. 73/1993 e 6º da Lei n.
9.028/1995) acerca da certidão de não realização da citação do réu,
a fim de que procedesse às diligências necessárias para obtenção do
endereço correto deste último.
3. A sentença proferida na ação de conhecimento limitouse a determinar a reintegração do de cujus ao cargo de Ajudante
de Despachante Aduaneiro, não contendo nenhuma espécie de
condenação pecuniária, motivo por que o Tribunal de origem, ao
rescindir o acórdão proferido em embargos à execução, limitou-se a
fazer prevalecer a coisa julgada.
4. A função “Ajudante de Despachante Aduaneiro” não se
trata de um cargo público, mas de uma atividade privada exercida
no âmbito da Alfândega, mediante autorização do Presidente da
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
República, incompatível com o exercício de qualquer função pública,
na forma prevista nos arts. 10 e 11 do Decreto-Lei n. 4.012/1942. A
reintegração do de cujus não importou, por conseguinte, na existência
de valores atrasados a serem pagos pela Administração a título de
remuneração.
5. Agravo regimental não provido.
ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos os autos em que são partes as acima indicadas,
acordam os Ministros da Primeira Turma do Superior Tribunal de Justiça, por
unanimidade, negar provimento ao agravo regimental, nos termos do voto do
Sr. Ministro Relator. Os Srs. Ministros Napoleão Nunes Maia Filho e Benedito
Gonçalves (Presidente) votaram com o Sr. Ministro Relator.
Ausentes, justificadamente, os Srs. Ministros Francisco Falcão e Teori
Albino Zavascki.
Brasília (DF), 15 de dezembro de 2011 (data do julgamento).
Ministro Arnaldo Esteves Lima, Relator
DJe 2.2.2012
RELATÓRIO
O Sr. Ministro Arnaldo Esteves Lima: Trata-se de agravo regimental
interposto por Mário Vieira - Espólio contra decisão de minha relatoria que
negou provimento ao seu agravo de instrumento.
Narram os autos que a União ajuizou ação rescisória em desfavor da parte
ora agravante, objetivando rescindir o acórdão proferido pela Primeira Turma
do Tribunal Regional Federal da 3ª Região, que havia julgado improcedentes
os embargos opostos à execução de título executivo judicial então movida por
Mário Vieira.
O Tribunal de origem, afastando as preliminares de carência de ação e
decadência, julgou procedente a ação rescisória, tendo o acórdão recorrido
recebido a seguinte ementa (fls. 843-844e):
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Jurisprudência da PRIMEIRA TURMA
Processual Civil. Ação rescisória. Ajudante de Despachante Aduaneiro.
Reintegração ao cargo. Pagamento de indenização. Execução. Violação de
dispositivo de lei. Erro de fato. Inexistência. Ofensa à coisa julgada. Ocorrência.
Preliminares de carência de ação e prescrição rejeitadas. Pedido procedente.
Embargos à execução acolhidos.
1. O pedido formulado na inicial guarda relação com a decisão rescindenda,
uma vez que a autora pleiteia modificar o acórdão que julgou improcedentes
os embargos à execução, nos quais questionava o pagamento da indenização
decorrente da reintegração de servidor ao cargo, que também é objeto da
presente rescisória. Preliminar de carência de ação rejeitada.
2. Ação proposta dentro do biênio estabelecido no artigo 495 do CPC. A
demora na citação, por motivos inerentes ao serviço da justiça, não justifica o
acolhimento da argüição de prescrição ou decadência (Súmula n. 106 do STJ).
Preliminar de prescrição rejeitada.
3. No caso presente, a liquidação foi elaborada por cálculo do contador, com
observância das normas que disciplinam a fase de execução. Assim, não houve
violação ao artigo 5º, incisos LIV e LV, da CF, artigos 608 a 610 e 743, inciso I, do
CPC, artigo 28 do Decreto-Lei n. 4.014, de 13.1.1942, a ensejar a rescindibilidade
do julgado.
4. Somente há erro de fato, quando a sentença admitir um fato inexistente, ou
quando considerar inexistente um fato efetivamente ocorrido (artigo 485, IX, §§
1º e 2º, CPC).
5. A decisão rescindenda, não tratou da questão da reintegração do autor
da ação principal ao cargo, fato que a demandante reputa inexistente. Pedido
improcedente neste ponto.
6. Ofensa à coisa julgada caracterizada. O pagamento da indenização
decorrente da reintegração de servidor ao cargo não poderia ter sido objeto de
deliberação nos embargos, visto que não foi decidida na sentença proferida no
processo principal.
7. Condenação do requerido ao pagamento de honorários advocatícios fixados
em R$ 1.000,00 (mil reais).
8. Preliminares suscitadas pelo réu rejeitadas. Ação procedente. Embargos à
execução procedentes.
Opostos embargos declaratórios, foram rejeitados (fls. 863-871e).
Sustentou o agravante, no recurso especial inadmitido, violação aos arts.
219, §§ 2º e 4º, e 495 do CPC, uma vez que o Tribunal de origem indevidamente
afastara a tese de decadência, haja vista que, “enquanto não realizada a citação
válida, em razão da incúria da parte demandante em diligenciar para que
essa citação seja efetuada, não se pode dizer e aceitar que a ação tenha sido
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REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
efetivamente proposta”. Isso porque, “ajuizada a ação em maio de 1997, certificou
o oficial de justiça, em julho de 1997, a não localização do réu no endereço
indicado (fl. 368e). Somente em junho de 2000 é que a União diligenciou para
tentar localizar o Sr. Mário Vieira e, com isso, realizar sua citação (fls. 420-423)”
(fl. 887e).
Afirmou que a Súmula n. 106-STJ seria inaplicável ao caso concreto,
uma vez que esta somente admitiria a demora na citação que “houver sido
comprovadamente causada por razões exclusivamente inerentes ao mecanismo
da justiça e não nos casos em que o ato citatório não se concretiza em tempo
hábil por culpa da parte, que deixa de promover as diligências necessárias à
localização do novo endereço do réu” (fl. 888e).
Seguiu afirmando que, em virtude da demora na citação, a Turma Julgadora
deveria também ter reconhecido a prescrição intercorrente, uma vez que “a
circunstância de ser de natureza decadencial o prazo para propor a rescisória
não subtrai a ação dos efeitos da prescrição intercorrente se, depois de ajuizada,
paralisar-se a lide durante período superior ao prazo previsto para a propositura
da ação” (fl. 890e).
Aduziu contrariedade aos arts. 485, IV, 467, 468 e 474 do CPC, na medida
em que, “Diversamente do afirmado, não foi o acórdão rescindendo que violou
a coisa julgada, mas, sim, o próprio acórdão recorrido, que julgou procedente
ação rescisória para infirmar, na verdade esvaziar o comando judicial exarado no
processo de conhecimento, há muito transitado em julgado” (fl. 892e).
Alegou que, à luz do regramento normativo vigente ao tempo do
julgamento da ação de conhecimento, entendeu-se “assemelhada a função de
Ajudante de Despachante Aduaneiro à de funcionário público, tanto em razão
das qualificações exigidas para o seu exercício, quanto em virtude da necessidade
de credenciamento junto à Delegacia da Receita Federal” (fl. 892e).
Aduziu que “o reconhecimento judicial da ilegalidade do ato de afastamento
e a consequente ordem de reintegração do autor no cargo que ocupava implica
automaticamente a recomposição integral dos seus direitos, aí se incluindo o
ressarcimento da remuneração que deixara de perceber, em homenagem ao
princípio da restitutio in integrum” (fl. 894e).
Asseverou que o acórdão rescindendo, ao confirmar a sentença de
improcedência dos embargos à execução, “longe de violar a coisa julgada
formada no processo de conhecimento, homenageou-a” (fl. 896e). Ademais, a
manutenção do acórdão recorrido deixaria “totalmente no vazio a condenação
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Jurisprudência da PRIMEIRA TURMA
imposta à União no processo de conhecimento, especialmente porque, à época
da execução do julgado, o cargo que o autor ocupava já havia sido extinto (fl.
897e).
Argumentou, ainda, que “não poderia a União valer-se dos embargos à
execução para discutir matéria própria do processo de cognição, muito menos
utilizar-se da rescisória da sentença proferida nos embargos à execução para
atingir a eficácia da coisa julgada operada no processo de conhecimento” (fl.
898e).
Afirmou que “a questão relativa ao pagamento da remuneração
correspondente ao tempo em que Mário Vieira permaneceu afastado de suas
funções também estava acobertada pelo comando do artigo 474 do CPC, pois já
havia sido decidida pelo ilustre magistrado singular às fls. 187v-188v” (fl. 898e).
Por fim, com base no princípio da eventualidade, alegou que, caso seja
reconhecida a ausência de prequestionamento quanto ao art. 219, §§ 2º e 4º, do
CPC, “não se poderá reconhecer a ofensa ao inciso II do artigo 535 do CPC” (fl.
901e).
Inconformado com a decisão que negou provimento ao seu agravo de
instrumento, a parte agravante interpôs o presente agravo regimental, aduzindo,
em síntese, que:
a) a intimação pessoa da União sobre a certidão de não realização da citação
não se apresenta como condição para aplicabilidade da consequência prevista no
art. 219, §§ 2º 4º, do CPC, “sobretudo quando constatada que a citação não
ocorreu dentro do prazo porque o endereço do réu indicado pela União Federal
não estava correto” (fl. 989e), cabendo à agravada zelar, independentemente de
intimação, para que a citação fosse realizada no prazo legal;
b) a questão atacada na ação rescisória ajuizada pela União já estaria
acobertada pela coisa julgada desde de 1987, quando houve o trânsito em
julgado da sentença homologatória dos cálculos da liquidação de sentença,
“que rejeitou expressamente a pretensão da União de excluir da condenação
pecuniária decorrente da decisão proferida no processo de conhecimento” (fl.
980e);
c) o de cujus ocupava cargo público, fato reconhecido na sentença proferida
na ação de conhecimento que determinara sua “reintegração”.
É o relatório.
RSTJ, a. 24, (226): 147-239, abril/junho 2012
153
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
VOTO
O Sr. Ministro Arnaldo Esteves Lima (Relator): O presente agravo
regimental não merece prosperar.
Com efeito, a decisão agravada deve ser mantida por seus próprios
fundamentos, in verbis (fls. 962-965e):
Decido.
De início, observa-se que os pressupostos de admissibilidade do agravo de
instrumento e do próprio recurso especial encontram-se presentes, motivo pelo
qual passo ao exame das questões suscitadas neste último recurso.
Tendo o Tribunal de origem se pronunciado de forma clara e precisa sobre
as questões postas nos autos, assentando-se em fundamentos suficientes para
embasar a decisão, não há falar em afronta ao art. 535, II, do CPC, não se devendo
confundir “fundamentação sucinta com ausência de fundamentação (REsp n.
763.983-RJ, Rel. Min. Nancy Andrighi, Terceira Turma, DJ 28.11.2005).
Quanto às preliminares de decadência e de prescrição, faz-se necessário um
breve resumo da cronologia dos fatos ocorridos no bojo da ação rescisória da
União:
1. A ação rescisória foi ajuizada em 26.5.1997 (fl. 21e);
2. Em 5.6.1997, foi determinada a citação do réu (fl. 388e), tendo o respectivo
mandado de intimação sido expedido em 10.6.1997;
3. Em 16.6.1997, foi juntado o mandado de intimação da União, concernente
ao indeferimento do pedido de antecipação dos efeitos da tutela (fls. 391-393e);
4. Em 17.6.1997, houve novo despacho de citação do réu, tendo em vista que
no despacho anterior não foi indicado o prazo para contestação (fl. 394e);
5. Em 17.6.1997 a União interpôs pedido de reconsideração/agravo regimental
contra a decisão que indeferiu a tutela antecipada (fls. 396-404e);
6. Em 20.6.1997, a União foi intimada do indeferimento de seu pedido de
reconsideração (fls. 413-415e);
7. Em 21.7.1997 foi juntado aos autos certidão do Oficial de Justiça, lavrava
na mesma data, em que informa que a citação do réu deixou de ser realizada em
virtude deste ter mudado de endereço (fl. 427e);
8. Em 9.11.1998 houve a intimação da União acerca do julgamento de seu
agravo regimental (fl. 465e);
9. Em 9.11.1998 os autos da ação rescisória estiverem conclusos ao Juiz Federal
Convocado Pedro Lazaran (fl. 468e);
10. De 10.11.1998 a 13.4.2000, autos conclusos à Des. Fed. Suzana Camargo,
para declaração de Voto (fl. 473e);
154
Jurisprudência da PRIMEIRA TURMA
11. Em 14.4.2000, autos conclusos ao Des. Fed. Roberto Haddad (fl. 470e);
12. Em 26.4.2000 foi dado vista ao Ministério Público Federal (fl. 479e);
13. Em 8.6.2000, o Ministério Público Federal requereu que fosse efetivada a
citação do réu (fls. 480-484e);
14. Em 26.6.2000, autos conclusos ao Des. Fed. Márcio Moraes;
15. Em 27.6.2000, autos conclusos ao Des. Fed. Roberto Haddad (fl. 497e);
16. Em 27.6.2000, autos encaminhados ao Juiz Federal Cazem Mazloum (fl.
498e);
17. Em 8.11.2000 o réu apresentou contestação (fls. 507-525e).
Pois bem.
Conforme se extrai do acórdão recorrido, a Turma Julgadora afastou as teses
de decadência e prescrição intercorrente sob o fundamento de que a citação do
réu, ora agravante, deu-se fora do prazo bienal estabelecido no art. 495 do CPC
“em razão da necessidade de diligências para obter o novo endereço do réu” (fl.
838e).
A partir do cotejo da movimentação processual dos autos, acima resumida,
observa-se que a União, ao menos até 8.6.2000, jamais havia sido pessoalmente
intimada (na forma prevista pelos arts. 35 e 38 da Lei Complementar n. 73/1993 e
6º da Lei n. 9.028/1995), da certidão de não realização da citação do réu.
Com efeito, durante anos o Tribunal de origem esteve às voltas com o
julgamento do agravo regimental interposto contra a decisão que havia
indeferido a liminar, sendo certo que apenas em 8.6.2000 o Ministério Público
Federal, após ter vistas dos autos, requereu que fosse efetivada a citação do réu
(fls. 480-484e).
Nessas circunstâncias, não há como imputar à União qualquer tio de
inércia, restando afastada, dessa forma as teses de decadência e de prescrição
intercorrente.
Passo ao exame da tese de afronta aos arts. 485, IV, 467, 468 e 474 do CPC.
Infere-se dos autos que o Tribunal de origem julgou procedente a ação
rescisória com base nos seguintes fundamentos:
a) a sentença proferida na ação de conhecimento limitou-se a reconhecer ao
autor o direito de ser reintegrado, nada dispondo acerca de eventual pagamento
de indenização pelo período de afastamento (fl. 104e), sequer tendo havido
apelação, nesse ponto;
b) o “Ajudante de Despachante Aduaneiro” não se equipararia a servidor
público, motivo pelo qual o pagamento de indenização, ainda que considerada
implíta na ordem de reintegração, seria irrelevante.
A propósito, confira-se o seguinte trecho do voto condutor no acórdão
recorrido (fls. 341-342e):
RSTJ, a. 24, (226): 147-239, abril/junho 2012
155
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
Na hipótese vertente, a autora alega que o acórdão rescindendo, ao
rejeitar os embargos opostos à execução, ofendeu a coisa julgada material,
por abrigar execução de obrigação não contemplada na sentença proferida
no processo principal.
Assiste razão à requerente.
Com efeito, a parte dispositiva da sentença exeqüenda está assim
redigida: “julgo procedente a ação, condenando a ré a reintegrar o autor no
cargo que vinha exercendo por autorização, condenando outrossim em
honorários de advogado que arbitro em 10% (dez por cento) do valor da
causa.”
Assim, a indenização decorrente da reintegração ao cargo, não poderia
ter sido objeto de deliberação nos embargos, na medida em que não foi
decidida na sentença proferida no processo principal, que se limitou a
decretar a procedência do pedido, para condenar a ré à reintegração do
autor no cargo de Ajudante de Despachante Aduaneiro, e ao pagamento de
honorários de advogado.
Acrescento que o requerido, não obstante tenha formulado na inicial
da ação principal pedido de reintegração no cargo, cumulado com
ressarcimento por dano causado em razão afastamento, deixou transcorrer
in albis o prazo para recorrer da sentença, vindo a se manifestar tãosomente na fase de execução.
Em razão disso, não tendo a sentença proferida na ação principal
determinado o pagamento de verbas indenizatórias ao requerido Mário
Vieira, merece reparo a decisão prolatada nos embargos à execução, vez
que proferida em ofensa à coisa julgada.
E ainda, na hipótese de se considerar implícita na ordem de reintegração
no cargo, o pagamento de indenização, esta somente seria aplicável
ao funcionário público, de acordo com o previsto no Art. 28 da Lei n.
8.112/1990, o que não ocorre nos presentes autos, já que o Ajudante de
Despachante Aduaneiro por definição legal não se equipara ao servidor
público, nos termos do disposto Art. 28 do Decreto-Lei n. 4.014/1942 e Art.
49 do Decreto n. 646/1992.
Por fim, verifico que no curso da ação por diversas vezes a condição
de servidor público foi levantada, tendo sido inclusive objeto de decisão
proferida no agravo regimental interposto nesta ação rescisória, que por
maioria de votos sustou o levantamento dos valores depositados por força
de precatório, ao fundamento de que se tratava de vantagens pagas a
pessoa não considerada servidor público, nos termos do voto da eminente
Desembargadora Suzana Camargo (fls. 393-402).
156
Jurisprudência da PRIMEIRA TURMA
Cabe ressaltar, a princípio, ser inquestionável o primeiro fundamento
adotado pela Turma Julgadora, quanto à inexistência, ao menos explícita, na
sentença proferida na ação de conhecimento, de condenação ao pagamento de
indenização, tanto assim que, nesse ponto, sequer recorreu a parte ora agravante.
A questão a ser definida limita-se, dessa forma, acerca dos eventuais efeitos
imanentes da reintegração determinada na sentença.
Como bem asseverado no acórdão recorrido, trata-se o ressarcimento de todas
as vantagens de consequência automática da reintegração de servidor público ao
cargo anteriormente ocupado, conforme disposto no art. 28 da Lei n. 8.112/1990,
in verbis:
Art. 28. A reintegração é a reinvestidura do servidor estável no cargo
anteriormente ocupado, ou no cargo resultante de sua transformação,
quando invalidada a sua demissão por decisão administrativa ou judicial,
com ressarcimento de todas as vantagens.
Ocorre que a função “Ajudante de Despachante Aduaneiro” não se trata de um
cargo público, mas de uma atividade privada exercida no âmbito da Alfândega,
mediante autorização do Presidente da República, incompatível com o exercício
de qualquer função pública, na forma prevista nos arts. 10 e 11 do Decreto-Lei n.
4.012/1942, in verbis:
Art. 10. O exercício das atividades de despachantes aduaneiros
dependerá de autorização prévia por decreto do Presidente da República.
Art. 11. Excetuada a faculdade prevista no artigo 2º, as funções de
despachante aduaneiro e de ajudante são incompatíveis com qualquer
função pública.
De fato, não obstante o pedido formulado na ação de conhecimento fosse de
“reintegração”, os próprios fatos então narrados na petição inicial demonstravam
que o então autor insurgiu-se contra ato da Inspetoria da Alfândega de Santos
que, por meio da Portaria n. 605, de 7.5.1963 (fl. 63e), “apressou-se em cassar a
autorização concedida para o exercício da função de ‘Ajudante de Despachante
Aduaneiro’, aplicando-se o disposto no art. 50, legra f, do Dec.-Lei n. 4.014/1942”
(fl. 59e).
Destarte, conclui-se que o Tribunal de origem, ao julgar procedente a ação
rescisória ajuizada pela União, agiu em consonância com a legislação de regência,
não havendo falar em ofensa à coisa julgada.
Ante o exposto, nego provimento ao agravo de instrumento.
Intimem-se.
RSTJ, a. 24, (226): 147-239, abril/junho 2012
157
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
Com efeito, verifica-se que a irresignação do agravante limita-se ao seu
mero inconformismo com o resultado do julgamento, que lhe foi desfavorável.
Ante o exposto, nego provimento ao agravo regimental.
É o voto.
RECURSO ESPECIAL N. 1.125.661-DF (2009/0100784-2)
Relator: Ministro Napoleão Nunes Maia Filho
Recorrente: Condominio Shopping Center Iguatemi
Advogado: Gabriel Nogueira Dias e outro(s)
Recorrido: Conselho Administrativo de Defesa Econômica - Cade
Procurador: Renata Espíndola Virgílio e outro(s)
EMENTA
Administrativo e Processual Civil. Ação de nulidade de
processo administrativo do Cade. Imposição de multa, da obrigação
de abstenção de inclusão de cláusula de raio e da publicação da
decisão. Caução do valor da multa. Tutela provisória suspensiva da
execução do acórdão do Cade afastada pelo Tribunal. Arts. 65 e 66
da Lei n. 8.884/1994. Requisitos do poder de cautela. Provisoriedade.
Não repercussão sobre o mérito da demanda, a ser decidido nas
instâncias ordinárias. Execução imediata da decisão administrativa de
reversibilidade custosa e problemática. Recurso especial provido.
1. O cabimento de Recuso Especial para adversar Acórdão
proferido em Agravo de Instrumento, na Corte de origem, já está
pacificado na jurisprudência do STJ (AgReg no REsp n. 1.052.435RS, Rel. Min. Castro Meira, DJUe 5.11.2008 e REsp n. 696.858CE, Rel. Min. Luiz Fux, DJU 1º.8.2006), tendo-se por superado o
relevante debate outrora travado a seu respeito.
2. O oferecimento de embargos ou o ajuizamento de qualquer
iniciativa processual do acionado, para adversar a execução de sanção
158
Jurisprudência da PRIMEIRA TURMA
pecuniária imposta pelo Cade não veiculam, em regra, efeito paralisante
da iniciativa da Autarquia (art. 60 da Lei n. 8.884/1994); esse efeito,
no entanto, pode ser alcançado, se a parte executada prestar adequada,
oportuna, justa e ampla garantia idônea (art. 65 da Lei n. 8.884/1994).
3. Entretanto, ainda que prestada a garantia, o efeito suspensivo
da execução do título pode ser motivadamente afastado pelo Juiz, mas
para isso se requer que a infração à ordem econômica (a) se revista de
gravidade e, cumulativamente, (b) se vislumbre na causa o fundado
receio de dano irreparável ou de reparação árdua (art. 66 da Lei n.
8.884/1994); esses os requisitos prudenciais do exercício do poder geral
de cautela, inerente às diversas modalidades da jurisdição moderna,
consagrados na doutrina jurídica especializada e na Jurisprudência dos
Tribunais do País, de acordo com os roteiros dos sistemas processuais
civis contemporâneos.
4. É relevantíssimo e indispensável reconhecer o préstimo
processual das medidas judiciais provisórias, mas estas não devem ser
prodigalizadas à mão larga – nem em favor dos litigantes privados, nem
em favor das partes públicas – senão adotadas parcimoniosamente e
somente nos casos de caracterizada necessidade; sem essa moderação,
corre-se o risco de banalizar ou vulgarizar a sua notável eficácia
preventiva, com prejuízo evidente ao desempenho regular de atividades
econômicas produtivas ou restrições patrimoniais injustificáveis;
convém repontuar que as medidas administrativas estatais de controle
e repressão a procedimentos empresariais privados, potencial ou
efetivamente lesivos a valores prezáveis da ordem econômica, devem,
obrigatoriamente, se ajustar aos limites do ordenamento jurídico
processual.
5. No caso, se a empresa for compelida a abster-se, desde já, da
inserção da cláusula de raio em seus contratos com os lojistas do seu
centro de compras, a eventual procedência da impugnação deduzida
perante o Judiciário encontraria uma situação consolidada, que não
poderia ser desconstituída pela só eficácia da decisão judicial; de fato,
se abolida a cláusula de raio, poderiam ser inauguradas, na cercania
(ou no entorno) do centro de compras, lojas concorrentes daquelas já
instaladas no seu espaço interno, sendo claro que a posterior interdição
RSTJ, a. 24, (226): 147-239, abril/junho 2012
159
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
dessas mesmas lojas (na hipótese de improcedência da execução do
Cade), esbarraria em resistências legítimas, calcadas inclusive no vulto
dos investimentos então já realizados para a sua instalação.
6. Nesse contexto, a eliminação (futura) da cláusula de raio
revela-se mais proporcional à equalização da controvérsia, inclusive
atentando-se para o fato de que esta é uma disposição histórica
e tradicional, nos contratos de centos de compras; na verdade, na
eventualidade de procedência da execução do Cade, os efeitos da
eliminação da cláusula de raio serão decorrentes diretamente da
força da própria decisão judicial, não se requerendo nenhuma outra
iniciativa judicial ulterior, o que não ocorreria, se essa dita cláusula
fosse já agora eliminada, tendo a sua eventual reversão de se submeter
a outro procedimento.
7. Recurso Especial a que se dá provimento, para assegurar
a suspensão provisória (limitada no tempo) da execução integral
do título executivo do Cade, até a decisão da lide nas instâncias
competentes, mas sem a antecipação de qualquer juízo quanto ao
mérito da causa, que convém ser urgenciado pelo Julgador singular,
dada a relevância da questão em debate.
ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros da Primeira
Turma do Superior Tribunal de Justiça, na conformidade dos votos e das notas
taquigráficas a seguir, após o voto-vista do Sr. Ministro Francisco Falcão,
por maioria, vencido o Sr. Ministro Teori Albino Zavascki (voto-vista), dar
provimento ao recurso especial, nos termos do voto do Sr. Ministro Relator. Os
Srs. Ministros Benedito Gonçalves (voto-vista) e Francisco Falcão (voto-vista)
votaram com o Sr. Ministro Relator.
Licenciado o Sr. Ministro Arnaldo Esteves Lima.
Brasília, (DF), 27 de março de 2012 (data do julgamento).
Ministro Napoleão Nunes Maia Filho, Relator
DJe 16.4.2012
160
Jurisprudência da PRIMEIRA TURMA
RELATÓRIO
O Sr. Ministro Napoleão Nunes Maia Filho: 1. Trata-se de Recurso
Especial interposto pelo Condomínio Shopping Center Iguatemi, com fulcro na
alínea a do art. 105, III da CF, em adversidade a acórdão do TRF da 1ª Região,
assim ementado:
Administrativo e Processual Civil. Agravo de instrumento. Decisão do Cade.
Condenação de shopping center a não estipular cláusula de raio e ao pagamento
de multa. Realização de processo administrativo. Presunção de legitimidade do
ato. Art. 65 da Lei n. 8.88493. Oferecimento de fiança bancária para garantir o
valor da multa. Provimento parcial do agravo.
1. Caso em que a decisão agravada antecipou a tutela para suspender o
julgamento do Cade que condenou o Shopping Iguatemi de São Paulo a) ao
pagamento de multa de 2% sobre o seu faturamento bruto; b) a cessar a infração,
abstendo-se de incluir e exigir cláusulas de raio em seus contratos de locação
de espaços comerciais; c) a publicar a decisão do Cade, por dias consecutivos,
durante uma semana, em jornal de maior circulação da cidade de São Paulo.
2. O art. 65 da Lei n. 8.884/1994 prevê uma condição necessária, mas não
suficiente, para suspender a execução de toda a decisão do Cade. A garantia do
Juízo, em valor suficiente, como no caso, pode até suspender a execução da
multa, mas não basta apresentar caução para suspender a obrigação de não
fazer, sendo necessária a presença dos requisitos autorizadores da antecipação da
tutela: verossimilhança das alegações e fundado receio de dano irreparável ou de
difícil reparação, ou fique caracterizado o propósito protelatório do réu (CPC, art.
273, caput, I e II), além da vedação de irreversibilidade do provimento antecipado
(CPC, art. 273, § 2º).
3. Tendo sido o julgamento do Cade precedido de processo administrativo
que tramitou por longo tempo, no qual foi assegurado o contraditório e
a ampla defesa, há uma presunção de legitimidade na decisão de mérito do
Órgão administrativo responsável por garantir a liberdade de iniciativa e a livre
concorrência.
4. Nesse contexto, o que transparece verossímil é a vedação de os Shoppings
Centers obrigarem seus lojistas a observar de cláusula de raio de forma ilimitada,
sem a possibilidade de denunciação pelas partes contratantes, notadamente na
hipótese dos autos, em que a cláusula impugnada também não está delimitada
no tempo e no espaço e nem definida quanto ao seu objeto.
5. Também relevante o argumento de que cabe ao lojista decidir se quer ou
não abrir nova franquia em outro shopping/empreendimento, este próximo
ou não, de onde já se encontra estabelecido, sendo dever do Estado reprimir
infração a liberdade de iniciativa, a livre concorrência, para garantir a defesa
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161
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
do consumidor, na forma da Lei Antitruste, que tipifica as infrações à ordem
econômica.
6. Agravo de instrumento ao qual se dá parcial provimento para suspender
em parte a decisão judicial agravada e permitir a execução da obrigação de não
fazer imposta pelo Cade ao Shopping Iguatemi de São Paulo (abster-se de incluir
e exigir cláusulas de raio em seus contratos de locação de espaços comerciais).
Permanece suspensa a execução do título extrajudicial apenas em relação à
aplicabilidade da multa, uma vez que suficientemente garantido o Juízo. (fls.
1.333).
2. Cuida-se, na origem, de Agravo de Instrumento, com pedido de efeito
suspensivo, interposto pelo Cade contra decisão que, em ação ordinária, deferiu
a liminar requerida pelo Shopping Iguatemi de São Paulo, ora recorrente, para
suspender integralmente a exigibilidade da decisão proferida no Processo
Administrativo n. 08012006636/1997-43, consubstanciada no pagamento
de multa e na abstenção de inclusão de cláusulas de raio em seus contratos de
locação de espaços comerciais, uma vez garantido o juízo no valor da multa
aplicada (arts. 60 e 65 da Lei n. 8.884/1994).
3. Aduz o recorrente, em síntese, ofensa aos arts. 273 do CPC e 65 e 66 da
Lei n. 8.884/1994. Além de fazer digressões sobre a existência de nulidade da
decisão proferida pelo Cade, quanto à afronta ao art. 273 do CPC, sustenta o
seguinte, no que interessa:
(...) a recorrente também demonstrou a efetiva existência do risco de danos
irreparáveis, caso tivesse que aguardar o provimento final da ação. Nesse
sentido, o Iguatemi demonstrou os seguintes danos e prejuízos iminentes que
a manutenção da exigibilidade da decisão do Cade inevitavelmente provocaria:
(i) Em primeiro lugar, o não cumprimento imediato da decisão enseja
multa diária de R$ 30.000,00 (trinta mil reais). Além disso, o Iguatemi está
sujeito a todos os reveses de uma execução fiscal, como a inscrição em
dívida ativa e no Cadin, o que lhe representará gravames imensuráveis, a
saber: a impossibilidade de obter créditos de instituições financeiras oficiais;
proibição de contratar com o Poder Público e de efetuar parcelamentos de
dívidas tributárias (...);
(ii) Em segundo lugar, a necessidade de cumprimento imediato da
decisão do Cade implica a imediata alteração de todos os contratos de
locação livremente pactuados pelo Iguatemi com os Lojistas-Locatários,
o que também representará grave e irreversível prejuízo. Como se
demonstrou, se a decisão administrativa não for suspensa, até o
provimento final desta lide, lojistas (oportunistas) terão a possibilidade de
162
Jurisprudência da PRIMEIRA TURMA
se estabeleceram em novas localidades dentro do raio que originalmente
tinham livremente concordado evitar, razão pela qual as partes acordaram
um determinado valor de aluguel. Isto significa, simplesmente, que, até
a sentença final da demanda, o faturamento e fluxo de clientes desses
Lojistas dentro do Iguatemi serão desviados, o que implicará não apenas
a diminuição instantânea do valor do aluguel variável, mas também
prejudicará todos os demais lojistas (terceiros) que dependem do fluxo de
consumidores do conjunto total de lojas.
(iii) Em terceiro lugar, frise-se que essas novas lojas (abertas pelos lojistas
apoiados na decisão do Cade), ao cabo da ação ordinária, vindo ela a
ser procedente, não poderão continuar a operar nessas condições. Isso
acarretará enormes prejuízos e transtornos, inclusive para terceiros, com a
necessidade de dispensa de centenas de empregos. Neste particular, notese que a capitis deminutio imposta pela decisão ao Iguatemi, proibindo-o de
pode receber ou pleitear reequilíbrio contratual por desrespeito à cláusula e
imediato desvio de faturamento potencializa ainda mais o dano apontado!
(iv) Além de todos esses gravíssimos prejuízos, o cumprimento imediato
da decisão do Cade, ao impor ao Iguatemi a obrigação de publicação
em jornal de grande circulação, acaba por impingir verdadeiro caráter
de difamação em praça pública do Iguatemi. Independentemente do
provimento final da ação, o Iguatemi será marcado para sempre em sua
imagem por essa decisão, cujo fundamento demonstra-se, desde logo,
duvidoso. (...).
(...).
Por fim, o Recorrente demonstrou a inexistência do chamado periculum in
mora reverso, ou seja, a ausência de qualquer risco de dano ou lesão ao Cade
e aos interesses tutelados pela Lei n. 8.884/1994. se mantida a decisão de 1ª
instância de antecipar os efeitos da tutela em referência (...).
Como o Recorrente demonstrou em sua contraminuta ao Agravo de
Instrumento, a ausência de periculum in mora reverso torna-se translúcida
quando se verifica que o Cade, assim como a SDE-MJ e o Ministério Público,
em nenhum momento ao longo dos mais de 10 (dez) anos de instrução do
processo administrativo, entenderam ser necessária a adoção de alguma
medida preventiva a fim de suspender liminarmente a adoção da cláusula de
raio. Ora, como preconiza o art. 52 da Lei n. 8.884/1994, o Cade tem o dever de
adotar medida preventiva, quando houve indício ou fundado receio de que o
representado, direta ou indiretamente, cause ou possa causar ao mercado lesão
irreparável ou de difícil reparação, ou torne ineficaz o resultado final do processo.
Portanto, se ao longo de 10 (dez) anos o Cade entendeu que não havia indício
de lesão irreparável ao mercado; se a conduta questionada está vigente no
mercado há mais de 40 anos, sendo utilizada por todos os agentes econômicos
RSTJ, a. 24, (226): 147-239, abril/junho 2012
163
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
deste setor; se a cláusula de raio tem sido legitimada por recorrentes decisões
judiciais, que suportam sua legalidade inclusive perante a Lei n. 8.884/1994; e se
é fato notório que o mercado de shoppings na cidade de São Paulo não pára de
crescer há anos, fica então evidente que inexiste qualquer prejuízo para o Cade
em aguardar o provimento final da ação proposta (fls. 1.345-1.347).
4. Com contrarrazões (fls. 1.382-1.3993), o recurso foi admitido (fls.
1.395-1.396), tendo sido deferida, pelo Presidente do TRF da 1ª Região,
medida liminar para conferir efeito suspensivo ao presente Recurso Especial
(MC n. 2008.01.00.061074-6).
5. O MPF, em parecer assinado pelo ilustre Subprocurador-Geral da
República Aurélio Virgílio Veiga Rios, pronunciou-se pelo não conhecimento
e, no mérito, pelo não provimento do Recurso Especial, com o consequente
afastamento do efeito suspensivo concedido na Medida Cautelar supra citada
(fls. 1.891-1.900).
6. É o que havia de relevante para relatar.
VOTO
O Sr. Ministro Napoleão Nunes Maia Filho (Relator): 1. O julgamento
deste REsp oportuniza, em primeiro lugar, reafirmar o cabimento dessa
modalidade recursal contra acórdão de Tribunal que decide controvérsia jurídica
no âmbito da antecipação de tutela; o tema não é novo nas cogitações desta Corte
Superior, que já o apreciou em mais de uma oportunidade, sob a perspectiva do
assento constitucional do Recurso Especial (art. 105, III da Carta Magna), que
aponta a existência de causas decididas em única ou última instância como um dos
seus pressupostos, sendo certo o alvitre que os provimentos judiciais antecipatórios
de tutelas – por serem manifestamente provisórios e precários, além de estarem
atrelados a aspectos fáticos – não satisfariam, pelo menos em tese, aquela indicação da
Constituição.
2. Não há dúvida que se trata de questão evidentemente relevante, mas de
fortíssimo sabor apenas doutrinário, por dizer respeito à definição da competência
recursal do STJ, pois os precedentes desta Corte Superior têm afirmado a
viabilidade processual do REsp contra decisões não definitivas, desde que não se
trate de reexame do seu contexto fático, mas da interpretação da abrangência de certa
norma legal, a viabilizar (ou não) a aplicação do instituto da tutela antecipada
(AgReg no REsp n. 1.052.435-RS, Rel. Min. Castro Meira, DJUe 5.11.2008);
164
Jurisprudência da PRIMEIRA TURMA
bem por isso, não refoge por completo à cognição desse recurso raro o controle
da legitimidade das decisões que deferem ou indeferem medidas liminares (REsp n.
696.858-CE, Rel. Min. Luiz Fux, DJU 1º.8.2006).
3. Já se vê que a orientação desta Corte é claramente afirmativa do
cabimento do REsp em casos assim, mas insta anotar que as tutelas judiciais
intraprocessuais que ensejam ou proíbem a fruição imediata de certos bens da
vida não podem ser classificadas como decisões interlocutórias puras e simples, pois
ressalta dos seus contextos que possuem carga jurídica de conteúdo substantivo,
por isso que a melhor diretriz é mesmo a de admitir a verificação de sua
compatibilidade jurídica com a normatividade infraconstitucional; dar-se-á
mais importância, nesse caso, à carga jurídica da decisão do que ao seu perfil
formal, embora também valioso.
4. Nem sempre as tutelas antecipatórias estarão calcadas apenas em
circunstâncias fáticas, embora a interpretação literal do art. 273 do CPC possa
conduzir a tal raciocínio, o que impediria a análise dessa questão por esta
Corte, dado o sempre lembrado conteúdo de sua Súmula n. 7; ao contrário,
embora mais rara a hipótese, não se pode desprezar situação em que a tutela
antecipada seja deferida mais com fundamento no convencimento do Juiz
sobre a verossimilhança do direito, a partir de uma interpretação de determinada
norma legal, do que de aspectos fáticos somente, como parece ser o caso ora em
discussão.
5. Assim, sempre que for possível verificar, independentemente de aspectos
puramente factuais, a compatibilidade da tutela antecipada com a ordem jurídica;
e mais, sempre que se puder verificar a séria probabilidade de irreversibilidade do
provimento judicial cautelar, é admissível o conhecimento do Recurso Especial.
6. Neste presente caso, cumpre delimitar o campo de investigação do
REsp, ora submetido a julgamento, devendo-se observar que se cogita de
recurso oriundo de ação de nulidade contrária a processo administrativo que
tramitou no Conselho Administrativo de Defesa Econômica - Cade, instaurado em
face do Condomínio Shopping Center Iguatemi, ao termo do qual imputou-lhe
a prática de infração contra a ordem econômica, o que motivou a imposição das
seguintes sanções:
(a) o pagamento de uma multa pecuniária;
(b) a obrigação de abster-se de incluir nas relações contratuais de locação
de espaços comerciais a cláusula de raio, pela qual os lojistas se obrigam a não
instalar lojas a pelo menos 2 km de distância do centro de compras, e, finalmente
RSTJ, a. 24, (226): 147-239, abril/junho 2012
165
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
(c) a obrigação de publicar em jornal a decisão do Cade.
7. Então a empresa ajuizou contra o Cade ação desconstitutiva da decisão
proferida no referido processo administrativo, alegando vícios no seu trâmite, e
caucionando o valor da sanção pecuniária, para obter a suspensão da execução,
a teor do art. 65 da Lei n. 8.884/1994; o Juiz de primeiro grau deferiu-lhe
integralmente o pedido de suspensão da exigibilidade do título, mas o Cade
agravou dessa decisão e o TRF da 1ª Região reformou parcialmente o decisum
monocrático, para desimpedir a execução da obrigação de abster-se da inclusão
da cláusula de raio (obrigação de não fazer); é contra o Acórdão Regional que a
empresa agora desafia este REsp, objetivando a suspensão total da executividade
do título formado na instância administrativa do Cade, tal como o fizera o Juízo
Singular.
8. Não há dúvida que a decisão do Cade, impondo multa ou obrigação de
fazer ou abster-se reúne todas as características de título executivo extrajudicial
(art. 60 da Lei n. 8.884/1994), sendo apto, portanto, para aparelhar a execução
forçada, eis que satisfaz por inteiro as exigências próprias da espécie.
9. No que diz respeito à oposição jurídica que o executado manifesta
contra a pretensão executória do Cade, releva notar que o oferecimento de
embargos ou o ajuizamento de qualquer medida processual do acionado, para
adversar a execução das sanções impostas pelo Cade não veiculam, em regra,
efeito paralisante da iniciativa da Autarquia (art. 65 da Lei n. 8.884/1994) e essa
é uma característica notável dessa modalidade de execução; sob esse ângulo, podese dizer que a execução prosseguirá normalmente, sem quaisquer empecilhos;
mas o efeito suspensivo da execução poderá ser alcançado, obstando-se a marcha
da execução, se a parte executada prestar adequada, oportuna, justa e ampla
garantia idônea (art. 65 da Lei n. 8.884/1994).
10. Na hipótese ora em apreciação, a empresa prestou a referida garantia
caucionária, o que poderia levar à conclusão de que a execução contra si estaria
suspensa, até porque essa é uma consequência possível e normalmente adotada
nos casos em que o juízo executório acha-se adequadamente resguardado, como
disciplinavam as regras do Processo de Execução comum e ainda disciplinam
as da Execução Fiscal; contudo, a Lei n. 8.884/1994, prevê um tratamento
normativo diferenciado, pois ainda que prestada a garantia, o efeito suspensivo
da execução do título pode ser motivadamente afastado pelo Juiz, se a infração
à ordem econômica (a) revestir-se de gravidade e, cumulativamente, (b)
vislumbrar-se na causa o receio de dano irreparável ou de reparação árdua (art.
166
Jurisprudência da PRIMEIRA TURMA
66 da Lei n. 8.884/1994); portanto, esse é um juízo vinculado de conveniência e
oportunidade.
11. Comentando esse dispositivo legal, o Professor FÁBIO ULHOA
COELHO assinala que se trata de provimento judicial cautelar, anotando que esse
provimento cautelar se justifica em função da gravidade da infração contra a ordem
econômica cometida pelo executado, desde que haja fundado receio de dano irreparável
ou de difícil reparação (Direito Antitruste Brasileiro, São Paulo, Saraiva, 1995,
p. 140), o que remete a reflexão do Julgador para investigar a presença desses
elementos justificadores da providência de natureza acautelatória.
12. No que diz respeito à jurisdição cautelar, que ganhou autonomia com a
edição do CPC de 1973, vale assinalar, com a devida ênfase, que a primeira nota
característica dessa espécie de tutela jurisdicional está na circunstância de fato que lhe
serve de pressuposto: ela supõe a existência de uma situação de risco ou de embaraço
à efetividade da jurisdição, a saber: risco de dano ao direito, risco de ineficácia da
execução, obstáculos que o réu maliciosamente põe ao andamento normal do processo e
assim por diante, no seguro magistério do Ministro Professor TEORI ALBINO
ZAVASCKI (Antecipação da Tutela, São Paulo, Saraiva, 1997, p. 27), em lição
de manifesta atualidade; outros autores, como o Professor MARCELO LIMA
GUERRA (Estudos sobre o Processo Cautelar, São Paulo, Malheiros, 1997), o
Professor OVÍDIO BAPTISTA DA SILVA (Do Processo Cautelar, São Paulo,
Forense, 2001) e o Professor LUIZ GUILHERME MARINONI (Processo
Cautelar, São Paulo, RT, 2008), também frisam essa nota caracetrística, de modo
que se pode dizer que há uniformidade de pensares doutrinários, quanto a esse
ponto.
13. Desse modo, uma vez prestada a garantia, o afastamento do efeito
suspensivo da execução do Cade dependeria da constatação de que a iniciativa
da Autarquia ostenta-se plausível e, ainda, que a não efetivação imediata da força
executória do título do Cade produzira danos de grave monta; dest´arte, devese definir se a alegação de legitimidade da cláusula de raio tem (ou não) pelo
menos aparência de se sustentar juridicamente, bem como se a sua não exclusão
incontinenti traria danos relevantes (graves) e de reparação custosa.
14. A aludida cláusula de raio é típica e tradicional nos contratos locacionais
de espaços comerciais em centros de compras e a sua função é sobremodo a de
preservar os investimentos exigidos na iniciativa econômica de implantação
desses megaempreendimentos, estando provavelmente a sua inserção nos pactos
respectivos ao abrigo da autonomia das vontades dos contratantes.
RSTJ, a. 24, (226): 147-239, abril/junho 2012
167
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
15. Mas, por outro lado, a imputação de que essa avença (a da cláusula de
raio) lesiona os interesses da comunidade de consumidores também não pode ser
descartada de logo e logo, por isso que convém balançar ou ponderar esses dois
valores (a liberdade de contratar e a defesa dos consumidores), para se definir
qual deles deverá ter incidência preferencial na solução da pendência relativa à
execução imediata da decisão do Cade, mas sem que um deles anule ou elimine a
extrema importância jurídica do outro.
16. Considero, assim à primeira vista, que se a empresa fosse compelida
e abster-se, desde já, da inserção da cláusula de raio em seus contratos com
os lojistas do seu centro de compras, estaria plenamente atendida a pretensão
executória do Cade, de sorte que a eventual procedência da impugnação
deduzida pela empresa encontraria uma situação consolidada, que não poderia ser
desconstituída pela só eficácia da decisão judicial.
17. De fato, se abolida imediatamente a cláusula de raio, poderiam
ser inauguradas, na cercania (ou no entorno) do centro de compras, lojas
concorrentes das já instaladas no seu espaço interno, sendo claro que a posterior
interdição dessas mesmas lojas (na hipótese de improcedência da execução do Cade),
esbarraria em resistências legítimas, calcadas inclusive no vulto dos investimentos
então já realizados para a sua instalação.
18. De outro lado, a eliminação (futura) da cláusula de raio seria mais
proporcional à equalização da controvérsia, inclusive atentando-se para o fato
de que esta é uma disposição histórica e tradicional, nos contratos de centos
de compras, e que, mesmo a decisão do Cade demorou mais de 10 anos para
ser proferida e não encontrou consenso; na verdade, na eventualidade de
procedência da execução do Cade, os efeitos da eliminação da cláusula de raio
serão decorrentes diretamente da força da própria decisão judicial, não se requerendo
nenhuma outra iniciativa judicial ulterior, o que não ocorreria, se essa dita cláusula
fosse já agora eliminada, atendendo-se a pretensão executória do Cade de forma
satisfativa, tendo a sua eventual reversão de se submeter a outro procedimento.
19. Aliás, a reversibilidade dos efeitos da tutela cautelar, pela eficácia
direta da decisão do feito principal, é tida como um limite ao poder cautelar do
Juiz, que não poderá, na própria medida provisória, resolver a lide; anote-se que a
reversibilidade deve ser entendida como a restituição das partes à situação jurídica
em que se achavam antes das demandas.
20. Assim, é relevantíssimo e indispensável reconhecer o préstimo
processual das medidas judiciais provisórias, mas não devem ser prodigalizadas
168
Jurisprudência da PRIMEIRA TURMA
à mão larga – nem em favor dos litigantes privados, nem em favor das partes
públicas – senão adotadas parcimoniosamente e apenas nos casos de caracterizada
necessidade; sem essa moderação, corre-se o risco de banalizar ou vulgarizar a sua
notável eficácia preventiva, com prejuízo evidente ao desempenho regular de
atividades econômicas produtivas ou restrições patrimoniais injustificáveis.
21. No REsp em julgamento, não estão configurados os elementos
normativos da situação que justificariam a aplicação o art. 66 da Lei n.
8.884/1994, de modo que se há de ensejar a aplicação do art. 65 da mesma Lei
para reger a situação em concreto.
22. O Recurso Especial merece provimento, para assegurar a suspensão
provisória (mas limitada no tempo) da execução do título executivo gerado
pelo Cade, até a decisão da lide nas instâncias competentes, que convém ser
urgenciada, mas sem a emissão de qualquer juízo quanto ao mérito da causa. É
como voto.
VOTO-VISTA
O Sr. Ministro Francisco Falcão: Trata-se de recurso especial interposto
pelo Shopping Center Iguatemi - SP, contra o acórdão que deu provimento
a agravo de instrumento, permitindo ao Conselho Administrativo de Defesa
Econômica - Cade, impor ao recorrente obrigação de não fazer, consistente na
abstenção da exigência da chamada “cláusula de raio” em seus contratos de
locação de espaços comerciais, pela qual o lojista fica proibido de se estabelecer
na vizinhança do Shopping Center.
O recorrente Shopping Center Iguatemi, alega que a decisão feriu o artigo
273 do CPC, além dos artigos 65 e 66 da Lei n. 8.884/1994, alegando em
síntese:
a) que estará sujeito a multa diária, acaso não cumpra a decisão;
b) o cumprimento da decisão implicará na alteração de todos os contratos
de locação hoje vigentes, com a possibilidade de que haja desvio no fluxo de
clientes e faturamento dentro do Iguatemi;
c) a decisão deverá trazer prejuízos e transtornos, inclusive a terceiros, com
a possível dispensa de empregados, diante da impossibilidade de se manter as
lojas operando nas novas condições;
O MPF se pronunciou, através do Procurador Aurélio Virgílio Veiga Rios,
pelo não conhecimento do recurso e, no mérito, pelo seu não provimento.
RSTJ, a. 24, (226): 147-239, abril/junho 2012
169
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
Analisando o recurso especial o nobre relator, Ministro Ministro Napoleão
Nunes Maia, entendeu pelo provimento do recurso especial, observando que
a retirada da “cláusula de raio” através de decisão transitória constituiria uma
situação que poderia gerar consolidação de difícil reversão, porquanto importaria
na instalação de lojas nas cercanias do Shopping, criando novas situações
jurídicas.
Por sua vez o ilustre Ministro Teori Albino Zavascki, divergiu da decisão
e não conheceu do recurso, afirmando que a jurisprudência do STJ é pacífica no
sentido de não conhecer do recurso especial em que se controverte a respeito da
presença ou não dos requisitos da antecipação da tutela previstos no art. 273 do
CPC, cujo exame importa na análise de matéria de fato.
O nobre Ministro Benedito Gonçalves acompanhou o relator pelo
provimento do recurso especial.
Para melhor examinar a questão pedi vista dos autos.
Analisando percucientemente os autos verifico que assiste razão ao relator.
É que na hipótese dos autos não se faz necessário o reexame do conjunto
probatório para visualizar a ocorrência dos requisitos para a concessão da tutela
de urgência, porquanto, efetivamente, a decisão agravada constituiria uma
situação que poderia gerar consolidação de difícil reversão.
Tais as razões expendidas, acompanhando integralmente o voto do
Ministro Relator, dou provimento ao recurso.
É o voto vista.
VOTO-VISTA
Ementa: Administrativo. Recurso especial. Ação de nulidade de
processo administrativo do Cade. Suspensão provisória tão somente
da multa aplicada. Permissão de exigibilidade da obrigação de não
fazer (abstenção de inclusão de cláusulas de raio nos contratos
locatícios). Provimento que não se baseia em elementos fáticos. Perigo
de irreversibilidade da medida. Recurso especial provido.
O Sr. Ministro Benedito Gonçalves: Tratam-se os autos, originalmente,
de ação de ordinária, com pedido de antecipação de tutela, ajuizada pelo
Condomínio Shopping Center Iguatemi de São Paulo em desfavor do
170
Jurisprudência da PRIMEIRA TURMA
Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade), visando anular o
acórdão proferido por este órgão, que, em processo administrativo, impôs ao
autor, em decorrência da prática de infração contra a ordem econômica, as
seguintes sanções: i) pagamento de multa; ii) abstenção de inclusão de cláusulas
de raio em seus contratos de locação de espaços comerciais; e iii) publicação da
decisão em jornal de grande circulação em São Paulo.
O pleito antecipatório foi deferido para suspender integralmente a
exigibilidade da decisão do Cade, mediante a garantia do juízo no valor da
multa aplicada, nos termos dos artigos 60 e 65 da Lei n. 8.884/1994.
O Tribunal, por sua vez, entendeu por bem dar parcial provimento ao
Agravo de Instrumento interposto pelo Cade, para suspender em parte o decisum
administrativo, permitindo a execução da obrigação de não fazer (abster-se de
incluir e exigir cláusulas de raio nos contratos) e mantendo suspensa apenas a
execução da multa, uma vez que suficientemente garantido o juízo.
No presente recurso especial, o Iguatemi pretende a suspensão total da
exigibilidade do título formado na instância administrativa do Cade, alegando
violação aos seguintes artigos: i) 65 da Lei n. 8.884/1994, posto que a suspensão
de exigibilidade nele prevista abrange todo o título executivo e não somente
parte dele; ii) 64 da Lei n. 8.884/1994, eis que a exceção nele prevista não
se encontra configurada no caso dos autos; e iii) 273 do CPC, em razão da
presença dos requisitos para o provimento antecipatório, principalmente ante
a possibilidade de lojistas-locatários instalarem-se imediatamente em locais
próximos ao Shopping.
Após o voto do Ministro Relator, Sr. Napoleão Maia, dando provimento
ao recurso especial para assegurar a suspensão provisória (limitada no tempo)
da execução integral do título executivo gerado pelo Cade, até a decisão da lide
nas instâncias competentes, mas sem a antecipação de qualquer juízo quanto
ao mérito da causa, que convém ser urgenciado, o Sr. Ministro Teori Albino
Zavascki, proferiu voto-vista divergente, não conhecendo do recurso especial.
Para melhor reflexão sobre a questão, pedi vista dos autos, e, após detida
análise dos argumentos das partes, acompanho o voto do eminente Relator.
Faço isso porque verifiquei que a antecipação de tutela não foi analisada
pelo Tribunal de origem à luz de elementos fáticos dos autos, além de que não
foi ponderado a respeito da irreversibilidade do provimento antecipado, o que
veda a sua concessão, a teor do disposto no § 2º, do artigo 273 do CPC.
RSTJ, a. 24, (226): 147-239, abril/junho 2012
171
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
Com efeito, entendeu a Corte a quo que, segundo o referido artigo, a
garantia do juízo é suficiente para suspender a exigibilidade da multa que
foi imposta ao Shopping, mas não a da obrigação de não fazer prevista nesse
mesmo título executivo emitido pelo Cade.
Permitiu, assim, a execução do comando obrigacional, ao fundamento de
que: i) há presunção de legitimidade do ato administrativo; ii) não há delimitação
de tempo, espaço e objeto na cláusulas de raio inseridas nos contratos locatícios;
e iii) cabe ao lojista-locatário a decisão de abrir ou não um novo estabelecimento,
não podendo o Estado reprimir tal liberdade de iniciativa.
Como visto, o provimento foi antecipado em face de mera opinião do
julgador, a partir da interpretação da norma contida no artigo 65 da Lei n.
8.884/1994, sem se ater a aspectos fáticos e tampouco à séria probabilidade de
irreversibilidade da decisão, o que, por si só, impede a sua concessão.
A esse respeito, bem asseverou o e. Min. Relator, cujo trecho do voto
transcrevo abaixo:
Considero, assim à primeira vista, que se a empresa fosse compelida e absterse, desde já, da inserção da cláusula de raio em seus contratos com os lojistas do
seu centro de compras, estaria plenamente atendida a pretensão executória do
Cade, de sorte que a eventual procedência da impugnação deduzida pela empresa
encontraria uma situação consolidada, que não poderia ser desconstituída pela só
eficácia da decisão judicial.
17. De fato, se abolida imediatamente a cláusula de raio, poderiam
ser inauguradas, na cercania (ou no entorno) do centro de compras, lojas
concorrentes das já instaladas no seu espaço interno, sendo claro que a
posterior interdição dessas mesmas lojas (na hipótese de improcedência da
execução do Cade), esbarraria em resistências legítimas, calcadas inclusive no
vulto dos investimentos então já realizados para a sua instalação.
Sendo assim, considerando que o provimento antecipado implica na
esfera de direitos subjetivos de terceiros, que eventualmente venham a realizar
contratos de franquia nas proximidades do Shopping, ocasionando situação de
difícil reversão, tenho que o artigo 273 do CPC restou violado, ante a falta de
análise da existência de todos os requisitos legais.
Nesse sentido:
Recurso especial. Violação do artigo 535, I e II, do CPC. Não-ocorrência. Ação
civil pública. Concessão de tutela antecipada. Cancelamento de enfiteuse.
172
Jurisprudência da PRIMEIRA TURMA
1. Não há por que falar em violação do art. 535 do CPC quando o acórdão
recorrido, integrado pelo julgado proferido nos embargos de declaração, dirime,
de forma expressa, congruente e motivada, as questões suscitadas nas razões
recursais.
2. É prescindível a intimação da parte contrária para oferecer contra-razões a
recurso se ela não havia sido citada e, por conseguinte, ainda não integrava a lide.
3. Não cabe a intimação do assistente para interposição de contra-razões se ele
ainda não havia sido admitido na lide.
4. O posterior comparecimento do Ministério Público, ratificando os atos até
então praticados, supre a ausência de sua manifestação antes da prática do ato.
5. Incabível a análise do cabimento da ação civil pública em recurso especial
interposto contra acórdão que tratou exclusivamente da antecipação de tutela.
6. Há violação do artigo 273 do CPC quando a tutela antecipada é concedida sem
a análise da existência de todos os requisitos legais.
7. Recurso especial conhecido em parte e provido (REsp n. 750.702-RJ, Rel.
Ministro João Otávio de Noronha, Quarta Turma, DJe 11.2.2010).
Tutela antecipada: requisitos. Deferimento liminar.
1. Ainda que possível, em casos excepcionais, o deferimento liminar da tutela
antecipada, não se dispensa o preenchimento dos requisitos legais, assim a ‘prova
inequívoca’, a ‘verossimilhança da alegação’, o ‘fundado receio de dano irreparável’,
o ‘abuso de direito de defesa ou o manifesto propósito protelatório do réu’, ademais
da verificação da existência de ‘perigo de irreversibilidade do provimento antecipado’,
tudo em despacho fundamentado de modo claro e preciso.
2. O despacho que defere liminarmente a antecipação de tutela com apoio,
apenas, na demonstração do fumus boni iuris e do periculum in mora malfere a
disciplina do art. 273 pelo legislador para a salutar inovação trazida pela Lei n.
8.952/1994.
3. Recurso especial não conhecido (Terceira Turma, REsp n. 131.853-SC, rel.
Ministro Carlos Alberto Menezes Direito, DJ de 8.2.1999).
Administrativo. Processual Civil. Embargos declaratórios nos embargos
declaratórios no agravo regimental no agravo de instrumento. Curso superior.
Ingresso. Pedido julgado improcedente nas instâncias ordinárias. “Teoria do fato
consumado”. Tese não apreciada por ausência de prequestionamento. Omissão.
Inexistência. Incidência da Súmula n. 282-STF. Exame de ofício. Impossibilidade.
Conclusão do curso após julgamento do agravo de instrumento. Fato novo.
Inexistência. Embargos rejeitados.
(...)
4. A tutela antecipada tem por característica sua interinidade, pois, “tomada
em determinada fase de tutela, prosseguirá o processo até final julgamento”
RSTJ, a. 24, (226): 147-239, abril/junho 2012
173
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
(MITIDIERO, Daniel Francisco. Comentários ao Código de Processo Civil. Tomo III.
São Paulo: Memória Jurídica Editora, 2006, p. 68).
5. Toda e qualquer tutela antecipada deve ser passível de reversibilidade, nos
termos do art. 273, § 2º, do CPC, porquanto sua validade vincula-se à sorte do
pedido principal, a ser resolvido na sentença. A propósito, confira-se a doutrina
de TEORI ALBINO ZAVASCKI: “No particular, o dispositivo observa estritamente
o princípio da salvaguarda do núcleo essencial: antecipar irreversivelmente seria
antecipar a própria vitória definitiva do autor, sem assegurar ao réu o exercício do
seu direito fundamental de se defender, exercício esse que, ante a irreversibilidade da
situação de fato, tornar-se-ia absolutamente inútil, como inútil seria, nestes casos, o
prosseguimento do próprio processo” (In Antecipação de Tutela. 2ª ed. São Paulo:
Saraiva, 1999, p. 97).
6. As medidas cautelares exercem “em nosso sistema apenas a função de assegurar
a utilidade do pronunciamento futuro, mas não antecipar seus efeitos materiais, ou
seja, aqueles pretendidos pela parte no plano substancial” (BEDAQUE, José Roberto
dos Santos. Tutela cautelar e tutela antecipada: tutelas sumárias e de urgência
[tentativa de sistematização]. 2ª ed. São Paulo: Malheiros, 2001, p. 27).
7. A conclusão do curso de medicina após o julgamento do agravo de
instrumento, por esta Corte, não constitui fato novo, na forma do art. 462 do
CPC, por se tratar de mero desdobramento da situação jurídica precariamente
constituída por força de anterior decisão judicial liminar, que se tornou
insubsistente em virtude do julgamento de improcedência do pedido da autora,
ora embargante, em ambas as Instâncias ordinárias.
8. Outrossim, a adoção de entendimento contrário, como pleiteado pela
parte embargante, importaria no provimento do recurso especial inadmitido
na origem, malgrado seus pressupostos de admissibilidade não se encontrem
preenchidos.
9. Embargos de declaração rejeitados (EDcl nos EDcl no AgRg no Ag n.
1.294.707-DF, Rel. Min. Arnaldo Esteves Lima, Primeira Turma, DJe 13.10.2011).
Processual Civil e Administrativo. Violação ao art. 535 do CPC. Inocorrência.
Multa do art. 538, p. ún., do CPC. Afastamento. Aplicação da Súmula n. 98 desta
Corte Superior. Poder de polícia. Mercadorias provenientes do estrangeiro. Tutela
antecipada visando sua liberação. Impossibilidade. Art. 1º da Lei n. 2.770/1956.
1. Os órgãos julgadores não estão obrigados a examinar todas as teses
levantadas pelo jurisdicionado durante um processo judicial, bastando que
as decisões proferidas estejam devida e coerentemente fundamentadas, em
obediência ao que determina o art. 93, inc. IX, da Lei Maior. Isso não caracteriza
ofensa ao art. 535 do CPC.
Precedente.
174
Jurisprudência da PRIMEIRA TURMA
2. Presente o nítido caráter prequestionador, deve ser afastada a multa
aplicada pela origem com base no art. 538, p. ún., do CPC, na forma da Súmula n.
98 do Superior Tribunal de Justiça.
3. Embora o Supremo Tribunal Federal (STF) venha sinalizando pela necessidade
de conferir interpretação conforme às normas que vedem genericamente a
concessão de tutela antecipada, não existe pronunciamento específico acerca do
art. 1º da Lei n. 2.770/1956, que permanece vigente e, portanto, deve ser aplicada,
sob pena de desrespeito à Súmula Vinculante n. 10.
4. Na espécie, trata-se de mercadorias provenientes do exterior apreendidas
pelo Fisco em razão da suspeita de subfaturamento, com possível aplicação da
pena de perdimento. Plenamente incidente, pois, o art. 1º da Lei n. 2.770/1956.
Precedentes.
5. O art. 273, § 2º, do CPC veda a concessão de tutela em situações nas quais haja
perigo de irreversibilidade do provimento judicial. Frise-se que o desembaraço
antecipado das mercadorias (kits de cartas de baralho), considerando ser possível
a venda a varejo, pode impedir eventual cominação do perdimento.
6. Recurso especial parcialmente provido (REsp n. 1.184.720-DF, Rel. Min.
Mauro Campbell Marques, Segunda Turma, DJe 1º.9.2010).
Ante o exposto, acompanhando o voto do relator, dou provimento ao
recurso especial, para suspender a execução integral do título executivo gerado
pelo Cade, até a decisão da lide nas instâncias competentes.
É como voto.
VOTO-VISTA
Ementa: Processual Civil. Recurso especial. Medida liminar
de natureza antecipatória. Limites da sua revisibilidade por recurso
especial. Inviabilidade de reexame dos pressupostos da relevância do
direito e do risco de dano.
1. A jurisprudência dominante no STJ é no sentido de não
conhecer de recurso especial em que se controverte a respeito da
presença ou não dos requisitos da antecipação da tutela previstos no
art. 273 do CPC, para cujo exame faz-se indispensável análise de
matéria de fato. Precedentes de todas as turmas do STJ.
2. Considera-se, também, que não cabe, sob o pretexto de discutir
a verossimilhança do direito, invocar violação a norma que diga
respeito ao próprio mérito da causa, a cujo respeito, nessa fase, o juízo
RSTJ, a. 24, (226): 147-239, abril/junho 2012
175
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
efetuado nas instâncias ordinárias é apenas de verossimilhança, sendo
que, não raro, a matéria de mérito é regrada por normas constitucionais
ou normas de direito local, insuscetíveis de apreciação em recurso
especial. Precedentes.
3. Assim, os acórdãos dos tribunais locais sobre medidas liminares,
cautelares ou antecipatórias somente podem ser revisados por recurso
especial quando se alega que neles houve ofensa direta e imediata
aos preceitos normativos federais que disciplinam tais medidas,
nomeadamente quando o seu deferimento se deu em caso que a lei
expressamente o proibia ou sem a observância de procedimentos por
ela exigidos.
4. No caso concreto, o recurso especial veio fundado na alegação
de ofensa a dispositivos que envolvem o próprio mérito da questão
controvertida. Mesmo a alegação de ausência de fumus boni iuris
(relevância do direito), com ofensa a normas do CPC sobre antecipação
de tutela (art. 273, especialmente) representa, nesse contexto, um
modo indireto de provocar o exame daquela questão de fundo, que,
conforme reafirmado, ainda não recebeu julgamento definitivo nas
instâncias ordinárias.
5. Recurso especial não conhecido.
O Sr. Ministro Teori Albino Zavascki: 1. No autos do Processo n.
2008.34.00.010553-0, em trâmite na 15ª Vara Federal da Seção Judiciária do
Distrito Federal, foi deferida antecipação de tutela nos seguintes termos:
Trata-se de ação de rito ordinário, com pedido de antecipação de tutela,
proposta por Condomínio Shopping Center Iguatemi contra o Cade, a fim
de, liminarmente, suspender os efeitos da decisão proferida no Processo
Administrativo 08012.006636/1997-43, até julgamento final da lide.
(...)
Com efeito, o deferimento da tutela antecipada requer prova de
verossimilhança das alegações, risco de dano irreparável, caso não concedida
no início do processo, bem como que não haja perigo de irreversibilidade do
comando emergencial postulado, nos termos do art. 273 do CPC.
No presente caso, a parte autora sustenta o seu direito na existência de
nulidade do processo administrativo.
176
Jurisprudência da PRIMEIRA TURMA
O objeto do processo administrativo em questão envolve matéria de
considerável complexidade, concernente ao possível envolvimento da requerente
em prática anti-concorrenciais.
Contudo, nos termos dos artigos 60 e 65 da Lei n. 8.884/1994, é admitida a
suspensão da execução de decisão do Cade por intermédio de depósito do valor
da multa aplicada ou de prestação de caução que garanta o cumprimento da
decisão proferida nos autos, in verbis:
Art. 60. A decisão do Plenário do Cade, cominando multa ou impondo
obrigação de fazer ou não fazer, constitui título executivo extrajudicial.
Art. 65. O oferecimento de embargos ou o ajuizamento de qualquer
outra ação que vise a desconstituição do título executivo não suspenderá
a execução, se não for garantido o juízo no valor das multas aplicadas,
assim como de prestação de caução, a ser fixada pelo juízo, que garanta o
cumprimento da decisão final proferida nos autos, inclusive no que tange a
multas diárias.
Em decorrência, entendo razoável o pedido formulado pela parte autora
de suspensão da decisão do Cade, mediante oferecimento de caução idônea,
integral e líquida, no valor da multa aplicada, representada por carta de fiança
bancária.
Por sua vez, o risco de dano irreparável ou de difícil reparação é configurada
pela iminência da autora sofrer execução judicial da decisão impugnada, a qual a
mesma se encontra descumprindo.
Assim sendo, presentes os requisitos, defiro o pedido de antecipação de
tutela para suspender, em relação à parte autora, a exigibilidade da decisão
proferida pelo Cade nos autos do Processo Administrativo n. 08012006636/119743, condicionando a suspensão à apresentação de carta de fiança bancária no
valor total da multa aplicada, ou ainda, ao depósito integral do valor da multa
aplicada, no prazo de 05 (cinco) dias.
Cumprida a determinação supra, intime-se o Cade para imediato cumprimento
deste decisum (fls. 18-19).
Esta decisão foi atacada por agravo de instrumento interposto pelo Cade,
o qual foi provido em parte pelo Tribunal Regional Federal da 1ª Região pelos
fundamentos sumariados na ementa que se transcreve:
Administrativo e Processual Civil. Agravo de instrumento. Decisão do Cade.
Condenação de shopping center a não estipular cláusula de raio e ao pagamento
de multa. Realização de processo administrativo. Presunção de legitimidade do
ato. Art. 65 da Lei n. 8.88493. Oferecimento de fiança bancária para garantir o
valor da multa. Provimento parcial do agravo.
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REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
1. Caso em que a decisão agravada antecipou a tutela para suspender o
julgamento do Cade que condenou o Shopping Iguatemi de São Paulo a) ao
pagamento de multa de 2% sobre o seu faturamento bruto; b) a cessar a infração,
abstendo-se de incluir e exigir cláusulas de raio em seus contratos de locação
de espaços comerciais; c) a publicar a decisão do Cade, por dias consecutivos,
durante uma semana, em jornal de maior circulação da cidade de São Paulo.
2. O art. 65 da Lei n. 8.884/1994 prevê uma condição necessária, mas não
suficiente, para suspender a execução de toda a decisão do Cade. A garantia do
Juízo, em valor suficiente, como no caso, pode até suspender a execução da
multa, mas não basta apresentar caução para suspender a obrigação de não
fazer, sendo necessária a presença dos requisitos autorizadores da antecipação da
tutela: verossimilhança das alegações e fundado receio de dano irreparável ou de
difícil reparação, ou fique caracterizado o propósito protelatório do réu (CPC, art.
273, caput, I e II), além da vedação de irreversibilidade do provimento antecipado
(CPC, art. 273, § 2º).
3. Tendo sido o julgamento do Cade precedido de processo administrativo
que tramitou por longo tempo, no qual foi assegurado o contraditório e
a ampla defesa, há uma presunção de legitimidade na decisão de mérito do
Órgão administrativo responsável por garantir a liberdade de iniciativa e a livre
concorrência.
4. Nesse contexto, o que transparece verossímil é a vedação de os Shoppings
Centers obrigarem seus lojistas a observar de cláusula de raio de forma ilimitada,
sem a possibilidade de denunciação pelas partes contratantes, notadamente na
hipótese dos autos, em que a cláusula impugnada também não está delimitada
no tempo e no espaço e nem definida quanto ao seu objeto.
5. Também relevante o argumento de que cabe ao lojista decidir se quer ou
não abrir nova franquia em outro shopping/empreendimento, este próximo
ou não, de onde já se encontra estabelecido, sendo dever do Estado reprimir
infração a liberdade de iniciativa, a livre concorrência, para garantir a defesa
do consumidor, na forma da Lei Antitruste, que tipifica as infrações à ordem
econômica.
6. Agravo de instrumento ao qual se dá parcial provimento para suspender
em parte a decisão judicial agravada e permitir a execução da obrigação de não
fazer imposta pelo Cade ao Shopping Iguatemi de São Paulo (abster-se de incluir
e exigir cláusulas de raio em seus contratos de locação de espaços comerciais).
Permanece suspensa a execução do título extrajudicial apenas em relação à
aplicabilidade da multa, uma vez que suficientemente garantido o Juízo.
No recurso especial, o Condomínio Shopping Iguatemi aponta violação
aos seguintes dispositivos: (a) art. 65 da Lei n. 8.884/1994, afirmando que, (i)
“Da leitura do referido dispositivo, resta claro que a suspensão da exigibilidade
178
Jurisprudência da PRIMEIRA TURMA
aqui prevista abrange todo o título executivo”; (ii) “A Lei, em nenhum momento
sequer, faz alguma distinção de quais partes poderão ou não ter sua exigibilidade
suspensa, mediante a garantia integral do juízo”; (iii) “No caso em tela (...), o
v. acórdão criou uma distinção que, à toda vista, simplesmente não existe no
artigo 65 da Lei n. 8.884/1994”; (iv) “Tal dispositivo trata da possibilidade de
suspensão da exigibilidade do título executivo do Cade como um todo, não
fazendo qualquer exceção e, tampouco, criando requisitos adicionais para a
suspensão de partes específicas da decisão do Cade” (fls. 1.363-1.364); (b) art. 66
da Lei n. 8.884/1994, sustentando que (I) “Aqui, a Lei n. 8.884/1994 cria uma
exceção à regra geral do art. 65 (segundo a qual a garantia do juízo suspende
integralmente o título executivo), estipulando que, somente nas hipóteses em
que houver fundado receio de dano irreparável ou de difícil reparação, poderá
o Juiz, mesmo garantido o juízo na forma do art. 65, determinar a adoção
imediata de providências na decisão do Cade, no todo ou em parte”; (II) “No
presente caso, o Cade, em suas razões do agravo de instrumento, sustentou
genericamente que haveria um ‘impacto concorrencial do não cumprimento das
obrigações de não fazer impostas (...)’” (fl. 1.365); (III) “Se, ao longo de 10 (dez)
anos o Cade nunca entendeu necessária a adoção de uma medida preventiva,
logo nunca houve qualquer indício de lesão irreparável ao mercado”; e (IV)
“Dizer simplesmente, como decidiu o egrégio Tribunal a quo, que há urgência
pela razão de a decisão do Cade deve ser cumprida desde logo é, data maxima
venia, fazer tábula rasa da lei, que é expressa em afirmar que, uma vez garantido
o juízo na forma do art. 65 da Lei n. 8.884/1994, para que se adote medidas
imediatas faz-se necessário que haja ‘fundado receio de dano irreparável ou de
difícil reparação’” (fl. 1.366); (c) art. 273 do CPC, alegando, em síntese, que
“não pode prevalecer o venerando acórdão ora recorrido, tendo em vista que é
manifesta a verossimilhança das alegações deduzidas pela Recorrente e, para
além disso, está presente a urgência e o fundado receio de dano irreparável
ou de difícil reparação (...)” (fl.1.367), mencionando, no ponto, a multa diária
no valor de R$ 30.000,00 (trinta mil reais) e a possibilidade de os lojistaslocatários instalarem-se imediatamente em locais próximos ao shopping, o que
afetará de forma negativa o seu faturamento (fl. 1.372). Pede, ao final, seja
provido o recurso especial para, “corrigindo-se as diversas contrariedades às
leis federais acima apontadas, seja cassado o venerando acórdão proferido pelo
Egrégio Tribunal Regional Federal da 1ª Região no julgamento do agravo de
instrumento interposto pelo Cade, ora Recorrido, negando-se provimento ao
aludido agravo de instrumento para confirmar a tutela antecipada deferida nesta
demanda em primeira instância” (fl. 1.375).
RSTJ, a. 24, (226): 147-239, abril/junho 2012
179
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
Em contra-razões, o Cade pede o desprovimento do recurso especial.
O Ministério Público Federal, em parecer de fls. 1.891-1.900, opina
pelo “não conhecimento e, no mérito, pelo não provimento do recurso
especial, afastando o efeito suspensivo concedido na Medida Cautelar n.
2008.01.00.0611074-6” (fl. 1900).
Na sessão do dia 1º.12.2011, o Relator, Min. Napoleão Nunes Maia, deu
provimento ao recurso especial para “assegurar a suspensão provisória (mas
limitada no tempo) da execução do título executivo gerado pelo Cade, até a
decisão da lide nas instâncias ordinárias, que convém ser urgenciada, mas sem a
emissão de qualquer juízo sobre o mérito da causa”.
Pedi vista.
2. Sobre o tema da revisibilidade, pelas instâncias extraordinárias, das
decisões liminares de natureza cautelar ou antecipatória, reporto-me a voto
proferido como relator no REsp n. 908.844, 1ª Turma, DJ de 23.04.2007:
4. A jurisprudência dominante no STJ é no sentido de não conhecer de recurso
especial em que se controverte a respeito da presença ou não dos requisitos da
antecipação da tutela previstos no art. 273 do CPC. Considera-se, de um modo
geral, que o exame de tais requisitos supõe análise de matéria de fato, o que faz
incidir a Súmula n. 7-STJ. Nesse sentido: REsp n. 640.167-MG, 1a Turma, Min. José
Delgado, DJ de 17.12.2004; AgRg no REsp n. 714.368-SP, 1a Turma, Min. Francisco
Falcão, DJ de 29.8.2005; AgRg no AG n. 738.154-SP, 1a Turma, Min. Luiz Fux, DJ de
19.6.2006; REsp n. 436.401-PR, 2a Turma, Min. Franciulli Netto, DJ de 15.8.2005;
REsp n. 722.972-SP, 2a Turma, Min. Francisco Peçanha Martins, DJ de 24.5.2006;
REsp n. 845.115-RS, 2a Turma, Min. Castro Meira, DJ de 5.9.2006; REsp n. 663.240PR, 2a Turma, Min. Humberto Martins, DJ de 2.10.2006; AgRg no REsp n. 579.878SP, 3a Turma, Min. Humberto Gomes de Barros, DJ de 14.6.2004; AgRg no REsp
n. 826.585-RJ, 3a Turma, Min. Nancy Andrighi, DJ de 1º.8.2006; AgRg no REsp n.
598.939-SP, 4a Turma, Min. Fernando Gonçalves, DJ de 13.6.2005; REsp n. 165.339MS, 5a Turma, Min. Jorge Scartezzini, DJ de 5.3.2001; AgRg no Ag n. 428.143-PR,
5a Turma, Min. Edson Vidigal, DJ de 29.4.2002; REsp n. 505.729-RS, 5a Turma, Min.
Felix Fischer, DJ de 23.6.2003; AgRg no REsp n. 504.427-PR, 5a Turma, Min. Laurita
Vaz, DJ de 6.2.2006; REsp n. 373.775-RS, 6a Turma, Min. Fernando Gonçalves, DJ de
1º.7.2002; AgRg no Ag n. 481.205-MG, 6a Turma, Min. Hélio Quaglia Barbosa, DJ de
26.6.2006; REsp n. 446.492-RS, 6a Turma, Min. Paulo Gallotti, DJ de 2.10.2006.
5. Há orientação assentada, também, de que não cabe, sob o pretexto de
discutir a verossimilhança do direito, invocar violação a norma que diga respeito
ao próprio mérito da causa, a cujo respeito, nessa fase, o juízo efetuado nas
instâncias ordinárias é apenas de verossimilhança, sem falar que, não raro, a
matéria de mérito é regrada por normas constitucionais ou normas de direito
180
Jurisprudência da PRIMEIRA TURMA
local, insuscetíveis de apreciação em recurso especial. Nesse sentido: REsp n.
626.930-RS, 1ª Turma, Min. Teori Albino Zavascki, DJ de 25.9.2006; REsp n. 745.075RS, 1ª Turma, Min. Teori Albino Zavascki, DJ de 9.10.2006; REsp n. 627.727-RS, 2ª
Turma, Min. Castro Meira, DJ de 20.2.2006; REsp n. 776.101-RJ, 2ª Turma, Min.
Castro Meira, DJ de 24.10.2005; REsp n. 235.381-RS, 2ª Turma, Min. Franciulli Netto,
DJ de 24.6.2002; REsp n. 719.483-SC, 4ª Turma, Min. Fernando Gonçalves, DJ de
1º.2.2006; REsp n. 573.372-RS, 5ª Turma, Min. Jorge Scartezzini, DJ de 1º.7.2004.
6. De nossa parte, consideramos que os acórdãos dos tribunais locais sobre
medidas liminares, cautelares ou antecipatórias, somente estão sujeitos a recurso
especial quando se alega que houve ofensa direta e imediata às normas legais que
disciplinam tais medidas, nomeadamente quando o seu deferimento se deu em
caso que a lei expressamente o proibia ou sem a observância de procedimentos
nela exigidos. Nesse sentido, sustentamos o seguinte no REsp n. 765.375-MA:
1. Os recursos para a instância extraordinária (recurso extraordinário
e recurso especial) somente são cabíveis em face de “causas decididas
em única ou última instância” (CF, art. 102, III e art. 105, III). Não é
função constitucional do STF e nem do STJ, no julgamento de recursos
extraordinários e recursos especiais, substituir-se às instâncias
ordinárias para fazer juízo a respeito de questões constitucionais ou
infraconstitucionais que, naquelas instâncias, ainda não tiveram tratamento
definitivo e conclusivo. É o que ocorre com as medidas liminares de natureza
cautelar ou antecipatória. Tais medidas, como se sabe, são conferidas à base
de juízo de mera verossimilhança do direito invocado (art. 273, § 4º, art.
461, § 3º, primeira parte, art. 798 e art. 804 do CPC). Justamente por não
representarem pronunciamento definitivo, mas provisório, a respeito da
controvérsia, as medidas antecipatórias e cautelares devem ser confirmadas
(ou, se for o caso, revogadas) pela sentença que julgar o mérito da causa,
podendo, ademais, ser modificadas ou revogadas a qualquer tempo,
inclusive pelo próprio órgão que as deferiu (CPC, art. 273, § 4º, art. 461,
§ 3º, parte final, e art. 807). Somente com a sentença, portanto, é que se
terá o pronunciamento definitivo sobre as questões jurídicas enfrentadas,
em juízo perfunctório, na apreciação das liminares. A natureza precária e
provisória do juízo de mérito desenvolvido em sede liminar desqualifica,
assim, o requisito constitucional do esgotamento das instâncias ordinárias,
indispensável ao cabimento do recurso extraordinário e do especial.
3. Com base nesse entendimento, o STF editou a Súmula n. 735,
segundo a qual “Não cabe recurso extraordinário contra acórdão que defere
medida liminar”. Os precedentes que deram suporte à edição dessa súmula
deixam claro que a interdição da via recursal extraordinária não decorre da
simples circunstância de ser interlocutória a decisão que concede a liminar,
mas sim de se tratar de decisão provisória, ainda sujeita a revogação ou
modificação nas instâncias ordinárias. Sendo decisões provisórias não
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181
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
satisfazem o pressuposto constitucional de “causa decidida em única ou
última instância”. Eis as ementas e os excertos mais ilustrativos dos citados
precedentes:
a) AgRg no AG n. 252.382-PE, Primeira Turma, Min. Moreira Alves,
DJ de 24.03.2000:
Ementa: Agravo regimental. Não cabimento de recurso
extraordinário contra acórdão que defere liminar por entender que
ocorrem os requisitos do fumus boni iuris e do periculum in mora.
Em se tratando de acórdão que deu provimento ao agravo para
deferir a liminar pleiteada por entender que havia o fumus boni iuris
e o periculum in mora, o que o aresto afirmou, com referência ao
primeiro desses requisitos, foi que os fundamentos jurídicos (no
caso, constitucionais) do mandado de segurança eram relevantes, o
que, evidentemente, não é manifestação conclusiva da procedência
deles para ocorrer a hipótese de cabimento do recurso extraordinário
pela letra a do inciso III do artigo 102 da Constituição (que é a dos
autos) que exige, necessariamente, decisão que haja desrespeitado
dispositivo constitucional, por negar-lhe vigência ou por tê-lo
interpretado erroneamente ao aplicá-lo ou ao deixar de aplicá-lo.
Agravo a que se nega provimento.
Voto:
1. (...). Com efeito, em se tratando de acórdão que deu provimento a
agravo para deferir liminar pleiteada por entender que havia o fumus
boni iuris e o periculum in mora, o que o aresto afirmou, com referência
ao primeiro desses requisitos, foi que os fundamentos jurídicos (no
caso, constitucionais) do mandado de segurança eram relevantes, o
que, evidentemente, não é manifestação conclusiva da procedência
deles para ocorrer a hipóteses de cabimento do recurso extraordinário
pela letra ‘a’ do inciso III do artigo 102 da Constituição (que é a dos
autos) que exige, necessariamente, decisão que haja desrespeitado
dispositivo constitucional, por negar-lhe vigência por tê-lo interpretado
erroneamente ao aplicá-lo ou ao deixar de aplicá-lo.
b) RE n. 263.038-PE, Primeira Turma, Min. Sepúlveda Pertence, DJ
de 28.04.2000:
Ementa: RE: cabimento: decisão cautelar, desde que definitiva:
conseqüente inadmissibilidade contra acórdão que, em agravo, confirma
liminar, a qual, podendo ser revogada a qualquer tempo pela instância
a quo, é insusceptível de ensejar o cabimento do recurso extraordinário,
não por ser interlocutória, mas sim por não ser definitiva.
Voto:
182
Jurisprudência da PRIMEIRA TURMA
Não obstante o tema do apelo esteja respaldado pela decisão
plenária do Supremo Tribunal (RREE n. 227.832, 233.807, T. Pleno,
1º.7.1999, Velloso, Inf. 155), a decisão recorrida não comporta
recurso extraordinário. Impugna-se decisão cautelar que, negando
provimento ao agravo, manteve o deferimento de liminar em ação
cautelar, porque - aduz o RE - seria improcedente a pretensão principal
- no caso, gozo da imunidade tributária. Certo, há muitas décadas é
firme no Tribunal a admissibilidade do recurso extraordinário contra
decisões interlocutórias nas quais, entretanto, se contenha, por força
da preclusão conseqüente, a decisão definitiva da questão federal
nas instâncias ordinárias. A jurisprudência é vetusta (cf. Cordeiro de
Mello, O Processo no Supremo Tribunal Federal, Fr. Bastos, 1964,
II/703) tem por si os clássicos (Pedro Lessa, Do Poder Judiciário,
1915, p. 119; Epitáfio Pessoa, Recurso Extraordinário, Rev. de Direito,
Matos Peixoto, Recurso Extraordinário, Fr. Bastos, 1935, p. 210;
Castro Nunes, Teoria e Prática do Poder Judiciário, Forense, p. 334;
Costa Manso, Processo na Segunda Instância, 1º/170; Afonso da
Silva, Do Recurso Extraordinário no Proc. Civil, ed. RT, 1963, p. 276
ss.). Não o desconheceu a recente L. 9.756/1998, que introduziu o §
3º ao art. 542 C.Pr.Civ, para prescrever que, ‘interpostos contra decisão
interlocutória ao processo de conhecimento, cautelar ou embargos à
execução’, o recurso extraordinário, ou o especial ficará retido nos
autos e somente será processado se o reiterar a parte, no prazo
para a interposição do recurso contra a decisão final, ou para as
contra-razões’: pelo contrário, ao determinar a retenção na hipótese,
pressupôs a lei corretamente a admissibilidade contra decisões
interlocutórias. Cuida-se, porém, de admissibilidade subordinada
- resulta da invariável jurisprudência de priscas eras e dos mestres
recordados - à eficácia preclusiva da interlocutória relativamente à
questão federal, constitucional ou ordinária, da qual se cogite. Ao
contrário, se a puder rever a instância a quo no processo em que
proferida - seja ele de que natureza for - dela já não caberá recurso
extraordinário, nem recurso especial, não porque seja interlocutória,
mas por não ser definitiva. É o que se dá na espécie, na qual - não
obstante o tom peremptório com que o enuncia a decisão recorrida
- a afirmação sobre a plausibilidade da pretensão de mérito será
sempre um juízo de delibação essencialmente provisório e, por isso,
revogável, quer no processo definitivo a ser instaurado, quer mesmo
no processo cautelar. Em caso similar, no qual lhe acompanhei o voto,
consignou no voto condutor o em. Ministro Moreira Alves - AgRAg n.
252.362, 15.02.2000, Inf. STF 178:
(...) em se tratando de acórdão que deu provimento a agravo
para deferir a liminar pleiteada por entender que havia o
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183
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
fumus boni iuris e o periculum in mora, o que o aresto afirmou,
com referência ao primeiro desses requisitos, foi que os
fundamentos jurídicos, (no caso, constitucionais) do mandado
de segurança eram relevantes, o que, evidentemente, não é
manifestação conclusiva da procedência deles para ocorrer
a hipótese de cabimento do recurso extraordinário pela letra
a inciso I do artigo 102 da Constituição (que é a dos autos)
que exige, necessariamente, decisão que haja desrespeitado
dispositivo constitucional, por negar-lhe vigência ou por tê-lo
interpretado erroneamente ao aplicá-lo ou ao deixar de aplicálo.
Falta, pois, à decisão recorrida - ao menos no tópico que a impugna
o recurso extraordinário - a qualificação de definitividade, que a faz
susceptível de recurso extraordinário.
c) AgRg no AG n. 245.703-2-SP, Segunda Turma, Min. Marco
Aurélio, DJ de 25.02.2000:
Ementa: RE. Demanda cautelar. Liminar. A liminar concedida em
demanda cautelar, objeto de confirmação no julgamento de agravo de
instrumento, não é impugnável mediante recurso extraordinário.
Voto:
(...) Quer se trate de liminar em mandado de segurança, quer em ação
cautelar, a decisão proferida não se enquadra na previsão do artigo
542, § 3º, do Código de Processo Civil, considerada a redação imprimida
pela Lei n. 9.756/1998. A razão é muito simples: respeitado o preceito,
o recurso extraordinário interposto, uma vez julgada a própria ação
cautelar, ficará prejudicado. Por isso, declarei-o inadequado á espécie.
A prevalecer a óptica do Agravante e presente o predicado ‘utilidade’
determinar-se-á, de imediato, o processamento, se for o caso, recurso
extraordinário. A liminar é decisão precária e efêmera que não desafia a
recorribilidade extraordinária. Desprovejo.
d) AgRg no AG n. 219.053-RS, Primeira Turma, Min. Sepúlveda
Pertence, DJ de 23.03.2001:
Ementa: Recurso extraordinário: não cabimento contra acórdão que
defere liminar por julgar presentes os requisitos do fumus boni iuris
e do periculum in mora. Entretanto não informado pelas alegações
deduzidas no agravo regimental.
Voto:
Não tem razão o agravante. (...) Terceiro, a definitividade exigida
pelos precedentes em que se fundou a decisão agravada não se satisfaz
com o fato de não caber outro recurso ordinário da decisão recorrida,
184
Jurisprudência da PRIMEIRA TURMA
mas supõe, além disso, que esse pronunciamento já não seja revogável
a qualquer momento no curso do processo, nem constitua, a respeito da
questão constitucional debatida, um juízo de mera delibação (...).
e) RE n. 232.387-1-RO, Primeira Turma, Min. Moreira Alves, DJ de
17.05.2002:
Ementa: - Recurso Extraordinário. Esta Corte, por ambas as suas
Turmas (assim, por exemplo, no RE 234.153, nos AGRAG n. 252.382
e 219.053, e no AgR n. 234.144), tem decidido que não cabe recurso
extraordinário contra acórdão que defere, ou mantém, liminar por
entender, em última análise, que ocorrem os requisitos do fumus boni
iuris e do periculum in mora, porquanto a aferição da existência deles,
além de se situar na esfera de avaliação subjetiva do magistrado,
não é manifestação conclusiva de sua procedência para ocorrer a
hipótese de cabimento desse recurso pela letra a do inciso III do artigo
102 da Constituição, que exige, necessariamente, decisão que haja
desrespeitado dispositivo constitucional, por negar-lhe vigência, por
tê-lo interpretado erroneamente ao aplicá-lo ou ao deixar de aplicá-lo.
Recurso extraordinário não conhecido.
Voto:
1. Esta Corte, por ambas as suas Turmas (assim, por exemplo, no
RE n. 234.153, nos AGRAG n. 252.382 e 219.053, e no AgR n. 234.144),
tem decidido que não cabe recurso extraordinário contra acórdão
que defere, ou mantém, liminar por entender, em última análise, que
ocorrem os requisitos do fumus boni iuris e do periculum in mora,
porquanto a aferição da existência deles, além de se situar na esfera
de avaliação subjetiva do magistrado, não é manifestação conclusiva
de sua procedência para ocorrer a hipótese de cabimento desse
recurso pela letra a do inciso III do artigo 102 da Constituição, que
exige, necessariamente, decisão que haja desrespeitado dispositivo
constitucional, por negar-lhe vigência, por tê-lo interpretado
erroneamente ao aplicá-lo ou ao deixar de aplicá-lo.
4. Relativamente ao recurso especial, não se pode afastar, de modo
absoluto, a sua aptidão como meio de controle da legitimidade das
decisões sobre medidas liminares, notadamente em casos em que o seu
deferimento ou indeferimento importa ofensa direta às normas legais
que disciplinam tais medidas. É o que ocorre, por exemplo, quando há
antecipação de tutela nos casos em que a lei a proíbe ou quando, para o
seu deferimento, não tiverem sido observados os procedimentos exigidos
pelas normas processuais. Nesses casos, a decisão tem eficácia preclusiva
- sendo, portanto, definitiva - quanto àquelas questões federais. Todavia,
a exemplo do que ocorre com o recurso extraordinário, o âmbito da
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185
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
revisibilidade dessas decisões, por recurso especial, não pode ser extensivo
aos pressupostos específicos da relevância do direito (fumus boni iuris) e do
risco de dano (periculum in mora). Relativamente ao primeiro, porque não
há, na decisão liminar, juízo definitivo e conclusivo das instâncias ordinárias
sobre a questão federal que dá suporte ao direito afirmado; e relativamente
ao segundo, porque há, ademais, a circunstância impeditiva decorrente da
Súmula n. 7-STJ, uma vez que a existência ou não de risco de dano é matéria
em geral relacionada com os fatos e as provas da causa. A invocação, por
analogia, da Súmula n. 735-STF é, no particular, inteiramente pertinente.
O acórdão ficou assim ementado:
Processual Civil. Decisão a respeito de antecipação da tutela. Limites
da sua revisibilidade por recurso especial. Inviabilidade de reexame dos
pressupostos da relevância do direito e do risco de dano.
1. Os recursos para a instância extraordinária somente são cabíveis em
face de “causas decididas em única ou última instância” (CF, art. 102, III e art.
105, III). Não é função constitucional do STF e nem do STJ, no julgamento
de recursos extraordinários e recursos especiais, substituir-se às instâncias
ordinárias para fazer juízo a respeito de questões constitucionais ou
infraconstitucionais que, naquelas instâncias, ainda não tiveram tratamento
definitivo e conclusivo.
2. As medidas liminares de natureza cautelar ou antecipatória são
conferidas à base de cognição sumária e de juízo de mera verossimilhança
(art. 273, § 4º, art. 461, § 3º, primeira parte, art. 798 e art. 804 do CPC). Por
não representarem pronunciamento definitivo, mas provisório, a respeito
do direito afirmado na demanda, são medidas, nesse aspecto, sujeitas a
modificação a qualquer tempo (CPC, art. 273, § 4º, art. 461, § 3º, parte final,
e art. 807), devendo ser confirmadas ou revogadas pela sentença final.
Em razão da natureza precária da decisão, o STF sumulou entendimento
segundo o qual “não cabe recurso extraordinário contra acórdão que defere
medida liminar” (Súmula n. 735 do STF). Conforme assentado naquela
Corte, a instância extraordinária, tratando-se de decisão interlocutória, está
subordinada “à eficácia preclusiva da interlocutória relativamente à questão
federal, constitucional ou ordinária, da qual se cogite. Ao contrário, se a puder
rever a instância a quo no processo em que proferida - seja ele de que natureza
for - dela já não caberá recurso extraordinário, nem recurso especial, não
porque seja interlocutória, mas por não ser definitiva. É o que se dá na espécie,
na qual - não obstante o tom peremptório com que o enuncia a decisão
recorrida - a afirmação sobre a plausibilidade da pretensão de mérito será
sempre um juízo de delibação essencialmente provisório e, por isso, revogável,
quer no processo definitivo a ser instaurado, quer mesmo no processo cautelar”
(RE n. 263.038-PE, 1ª Turma, Min. Sepúlveda Pertence, DJ de 28.4.2000).
186
Jurisprudência da PRIMEIRA TURMA
3. Relativamente ao recurso especial, não se pode afastar, de modo
absoluto, a sua aptidão como meio de controle da legitimidade das
decisões que deferem ou indeferem medidas liminares. Todavia, a exemplo
do recurso extraordinário, o âmbito da revisibilidade dessas decisões, por
recurso especial, não se estende aos pressupostos específicos da relevância
do direito (fumus boni iuris) e do risco de dano (periculum in mora).
Relativamente ao primeiro, porque não há juízo definitivo e conclusivo
das instâncias ordinárias sobre a questão federal que dá suporte ao direito
afirmado; e relativamente ao segundo, porque há, ademais, a circunstância
impeditiva decorrente da Súmula n. 7-STJ, uma vez que a existência ou não
de risco de dano é matéria em geral relacionada com os fatos e as provas
da causa.
4. Também não pode ser conhecido o recurso especial quanto à alegação
de ofensa a dispositivos de lei relacionados com a matéria de mérito
da causa, que, em liminar, é tratada apenas sob juízo precário de mera
verossimilhança. Quanto a tal matéria, somente haverá “causa decidida em
única ou última instância” com o julgamento definitivo.
5. Recurso especial parcialmente conhecido e, no ponto, improvido (DJ
de 8.5.2006).
3. Esse entendimento vem sendo reiterado na 1ª Turma (v.g., de minha
relatoria: REsp n. 1.029.735-DF, DJe de 17.11.2008; REsp n. 913.072-RJ, DJ
de 21.6.2007; REsp n. 665.273-RS, DJ de 4.6.2007; REsp n. 908.844-SP, DJ
de 23.4.2007; REsp n. 871.858-RJ, DJ de 23.11.2006) e em outros julgados
do Superior Tribunal de Justiça, como se pode constatar, v.g., dos seguintes
precedentes:
Processo Civil. Agravo de instrumento. Agravo regimental. Súmula n. 7-STJ.
Recurso especial contra decisão que defere liminar. Não cabimento. Súmula n.
735-STF.
(...)
2. Tese de mérito do especial que demanda o reexame do contexto fático
e probatório dos autos para a verificação dos pressupostos ensejadores da
concessão da liminar, providência inviável nesta instância em face da Súmula n.
7-STJ, conforme a jurisprudência pacífica desta Corte.
3. Esta Corte, em sintonia com o disposto na Súmula n. 735 do STF (Não cabe
recurso extraordinário contra acórdão que defere medida liminar), entende que,
via de regra, não é cabível recurso especial para reexaminar decisão que defere
ou indefere liminar ou antecipação de tutela, em razão da natureza precária da
decisão, sujeita à modificação a qualquer tempo, devendo ser confirmada ou
revogada pela sentença de mérito. Apenas violação direta ao dispositivo legal
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187
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
que disciplina o deferimento da medida autorizaria o cabimento do recurso
especial, no qual não é possível decidir a respeito da interpretação dos preceitos
legais que dizem respeito ao mérito da causa. Precedentes.
4. Agravo regimental a que se nega provimento.
(AgRg no Ag n. 1.284.086-MS, 4ª T., Min. Maria Isabel Gallotti, DJe de 10.11.2010)
Processual Civil. Medida cautelar. Retenção do recurso especial no Tribunal de
origem. Inexistência de fumus boni iuris e periculum in mora. Extinção da ação.
1. A análise do preenchimento dos pressupostos da tutela antecipatória nos
termos do artigo 273 do CPC encontra, em regra, óbice na Súmula n. 7-STJ.
Precedentes do STJ.
2. Inexistência de juízo definitivo e conclusivo das instâncias ordinárias sobre
a questão federal que dá suporte ao direito postulado no recurso especial.
Incidência, por analogia, da Súmula n. 735-STF: “Não cabe recurso extraordinário
contra acórdão que defere medida liminar”. Precedentes do STJ.
3. Não configurados os pressupostos processuais da ação cautelar – fumus boni
iuris e periculum in mora –, deve ser extinta a medida cautelar, sem resolução de
mérito, por carecer o autor de interesse processual.
Medida cautelar extinta.
(MC n. 14.672-RJ, 2ª T., Min. Humberto Martins, DJe 16.9.2009)
Processual Civil. Administrativo. Agravo regimental no agravo de instrumento.
Recurso especial. Interposição contra acórdão que, em sede de agravo regimental,
cassou liminar anteriormente concedida nos autos de medida cautelar.
Inexistência de “causa decidida em única ou última instância”.
1. Compete ao Superior Tribunal de Justiça julgar, em recurso especial, “as
causas decididas, em única ou última instância, pelos Tribunais Regionais Federais
ou pelos tribunais dos Estados, do Distrito Federal e Territórios”, quando a decisão
recorrida “contrariar tratado ou lei federal, ou negar-lhes vigência”, “julgar válido
ato de governo local contestado em face de lei federal”, ou “der a lei federal
interpretação divergente da que lhe haja atribuído outro tribunal” (art. 105, III, da
CF/1988).
2. Hipótese em que o recurso especial foi interposto contra acórdão que, em
sede de agravo regimental, cassou liminar anteriormente concedida em medida
cautelar, pela qual se buscava atribuir efeito suspensivo a recurso de apelação.
3. O mérito da medida cautelar, ao tempo da interposição do apelo extremo,
encontrava-se pendente de apreciação pela Corte de origem, descabendo falar,
na espécie, em “causa decidida em única ou última instância”.
4. Agravo regimental desprovido.
(AgRg no Ag n. 928.566-SP, 1ª T., Min. Denise Arruda, DJe de 26.5.2008)
188
Jurisprudência da PRIMEIRA TURMA
Processual Civil. Agravo regimental no agravo de instrumento. Recurso
especial. Interposição contra acórdão que confirmou decisão singular que
indeferiu pedido de antecipação dos efeitos da tutela recursal, formulado na
petição de apelação. Necessidade de cognição acerca da existência de lesividade.
Reexame de prova.
1. “Relativamente ao recurso especial, não se pode afastar, de modo absoluto,
a sua aptidão como meio de controle da legitimidade das decisões que deferem
ou indeferem medidas liminares. Todavia, a exemplo do recurso extraordinário,
o âmbito da revisibilidade dessas decisões, por recurso especial, não se estende
aos pressupostos específicos da relevância do direito (fumus boni iuris) e do risco
de dano (periculum in mora). Relativamente ao primeiro, porque não há juízo
definitivo e conclusivo das instâncias ordinárias sobre a questão federal que dá
suporte ao direito afirmado; e relativamente ao segundo, porque há, ademais, a
circunstância impeditiva decorrente da Súmula n. 7-STJ, uma vez que a existência
ou não de risco de dano é matéria em geral relacionada com os fatos e as provas
da causa” (REsp n. 696.858-CE, 1ª Turma, Rel. Min. Luiz Fux, Rel. p/ acórdão Min.
Teori Albino Zavascki, DJ de 1º.8.2006).
2. Agravo regimental desprovido.
(AgRg no Ag n. 765.730-SP, 1ª T., Min. Denise Arruda, DJ de 23.11.2006)
Processo Civil. Recurso especial. Antecipação de tutela. CPR. Alegação de
nulidade. Circulação do título considerada irrelevante pelo acórdão recorrido.
Impossibilidade de discussão dos requisitos da tutela antecipada em sede de
especial. Súmula n. 7-STJ.
(...)
2. Nas hipóteses de antecipação dos efeitos da tutela jurisdicional, as ponderações
acerca dos requisitos de sua concessão ordinariamente estão relacionadas ao
contexto fático-probatório do processo, não comportando revisão em sede de recurso
especial, salvo situações excepcionais. Aplicação da Súmula n. 7-STJ e, por extensão,
da Súmula n. 735-STF.
(...)
4. Recurso especial improvido.
(REsp n. 1.147.150-MT, 3ª T., Relatora p/ Acórdão Min. Nancy Andrighi, DJe de
10.10.2011)
4. Aos precedentes do Supremo Tribunal Federal antes citados, cumpre
registrar igualmente os seguintes, de data recente:
Agravo regimental no agravo de instrumento. Tributário. Mandado de
segurança. Pedido de liminar indeferido. Impossibilidade de análise em recurso
extraordinário. Não é cabível recurso extraordinário contra decisão que indefere
RSTJ, a. 24, (226): 147-239, abril/junho 2012
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REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
ou indefere medida liminar ou antecipação de tutela Súmula n. 735-STF. 1. A
Súmula n. 735 do STF dispõe que: “não cabe recurso extraordinário contra acórdão
que defere medida liminar”. Precedentes: RE n. 263.038, 1ª Turma, Min. Sepúlveda
Pertence, DJ de 28.4.2000, AI n. 439.613AgR, rel. Min. Celso de Mello, DJ de
24.6.2003. 2. É que as medidas liminares de natureza eminentemente satisfativas
são conferidas à base de cognição sumária e de juízo de mera verossimilhança
(art. 273, § 4º, art. 461, § 3º, primeira parte, art. 798 e art. 804 do CPC), por isso
que não representam pronunciamento definitivo e se sujeitam à modificação
a qualquer tempo (CPC, art. 273, § 4º, art. 461, § 3º, parte final, e art. 807),
reclamando confirmação ou revogação na decisão final. 3. Agravo regimental a
que se nega provimento.
(AgRg no Ag n. 832.877-PR, 1ª T., Min. Luiz Fux, DJe de 27.9.2011)
Direito Administrativo. Concurso público. Ausência de prequestionamento.
Impossibilidade, na hipótese, de prequestionamento implícito. Antecipação de
tutela. Súmula STF n. 735. Violação aos arts. 5º, LIV, LV, LXIX e 93, IX, da CF/1988.
Ofensa reflexa. (...) 2. Não cabe o apelo extremo contra decisão que concede ou
indefere provimentos liminares. Incidência da Súmula STF n. 735. 3. A jurisprudência
do Supremo Tribunal Federal é pacífica no sentido de que, em regra, as alegações
de ofensa a incisos do artigo 5º da Constituição Federal podem configurar,
quando muito, situações de ofensa meramente reflexa ao texto da Constituição.
(...) 5. Agravo regimental a que se nega provimento.
(AgRg no Ag n. 765.066-RJ, 2ª T., Min. Ellen Gracie, DJe de 17.8.2011)
Agravo regimental no agravo de instrumento. Processual civil. Liminar ou
tutela antecipada. Ato decisório não definitivo. Inviabilidade do recurso
extraordinário. Incidência da Súmula n. 735 do STF. Agravo regimental improvido.
I - As decisões que concedem ou denegam antecipação de tutela, medidas cautelares
ou provimentos liminares não perfazem juízo definitivo de constitucionalidade que
enseje o cabimento do recurso extraordinário. Incidência da Súmula n. 735 do STF.
Precedentes. II - Agravo regimental improvido.
(AgRg no Ag n. 741.770-MA, 1ª T., Min. Ricardo Lewandowski, DJe de 15.8.2011)
Agravo regimental no agravo de instrumento. Processual Civil. Liminar ou tutela
antecipada: ato decisório não definitivo. Inviabilidade do recurso extraordinário.
Incidência da Súmula n. 735 do Supremo Tribunal Federal. Aplicação de multa por
descumprimento de decisão judicial. Astreintes. Controvérsia infraconstitucional.
Ofensa constitucional indireta. Precedentes. Agravo regimental ao qual se nega
provimento.
(AgRg no Ag n. 802.533-RJ, 1ª T., Min. Cármen Lúcia, DJe de 24.11.2010)
190
Jurisprudência da PRIMEIRA TURMA
5. No caso concreto, tem-se recurso especial dirigido contra acórdão
que, entendendo ausentes os requisitos do art. 273 do CPC, suspendeu a
decisão que antecipara os efeitos da tutela quanto à execução da obrigação de
não fazer imposta pelo Cade ao Shopping Iguatemi de São Paulo (abster-se
de incluir e exigir cláusulas de raio em seus contratos de locação de espaços
comerciais), ficando mantida no que importa à execução da multa, uma vez
que suficientemente garantido o Juízo. O recurso especial veio fundado na
alegação de ofensa a dispositivos que envolvem o próprio mérito da questão
controvertida. Mesmo a alegação de ausência de fumus boni iuris (relevância do
direito), com ofensa a normas do CPC sobre antecipação de tutela (art. 273,
especialmente) representa, nesse contexto, um modo indireto de provocar o
exame daquela questão de fundo, que, conforme reafirmado, ainda não recebeu
julgamento definitivo nas instâncias ordinárias.
6. Pelas razões expostas, proponho, em preliminar, que o recurso não seja
conhecido. É o voto.
RECURSO ESPECIAL N. 1.217.346-RJ (2010/0193071-8)
Relator: Ministro Arnaldo Esteves Lima
Recorrente: Ademar de Borba e outro
Advogado: Aldir Guimarães Passarinho e outro(s)
Recorrido: União
EMENTA
Administrativo. Recurso especial. Concurso público. Curso de
formação. Alteração do conteúdo do programa. Inclusão de disciplina
não ofertada às turmas anteriores. Ilegalidade. Ocorrência. Recurso
conhecido e provido.
1. Os recorrentes, remanescentes do concurso público para
provimento de vagas no cargo de Auditor da Receita Federal regulado
pelo Edital n. 18/01, se insurgem contra inclusão no Programa de
RSTJ, a. 24, (226): 147-239, abril/junho 2012
191
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
Formação (segunda etapa do certame) de disciplina, com caráter
eliminatório, que não constava do programa que regulou o curso
realizado pelas turmas anteriores.
2. “Surge extravagante implementar-se, para candidatos
remanescentes em razão de haverem buscado o Judiciário, exigências
extras, não constantes do edital” (RE n. 596.482-RJ, Rel. Min. Marco
Aurélio, Primeira Turma, DJe 7.6.2011).
3. Recurso especial conhecido e provido.
ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos os autos em que são partes as acima indicadas,
acordam os Ministros da Primeira Turma do Superior Tribunal de Justiça, por
unanimidade, conhecer do recurso especial e dar-lhe provimento, nos termos do
voto do Sr. Ministro Relator. Os Srs. Ministros Napoleão Nunes Maia Filho,
Francisco Falcão e Teori Albino Zavascki votaram com o Sr. Ministro Relator.
Ausente, justificadamente, o Sr. Ministro Benedito Gonçalves.
Brasília (DF), 22 de novembro de 2011 (data do julgamento).
Ministro Arnaldo Esteves Lima, Relator
DJe 2.2.2012
RELATÓRIO
O Sr. Ministro Arnaldo Esteves Lima: Trata-se de recurso especial
interposto por Ademar de Borba e Outro, com fundamento no art. 105, III, a e
c, da Constituição Federal, contra acórdão proferido pelo Tribunal Regional
Federal da 2ª Região assim ementado (fl. 426e):
Constitucional e Administrativo. Concurso público para Auditor Fiscal
do Tesouro Nacional (AFTN). Exigência de determinada matéria (lógica e
argumentação no processo de raciocínio), de cunho eliminatório, no curso de
formação profissional. Alegação de malferimento aos princípios da legalidade e
da isonomia. Matéria ministrada à generalidade de candidatos convocados para
freqüência aos cursos de formação profissional realizados por força da Portaria n.
268, de 26.11.1996, do Ministro de Estado da Fazenda.
192
Jurisprudência da PRIMEIRA TURMA
- A questão de fundo recai sobre a validade ou não de exigência de
determinada matéria (Lógica e Argumentação no Processo de Raciocínio - Lógica)
no Curso de Formação Profissional de AFTN regulado pelo Edital ESAF n. 18, de
16.10.1991, e realizado pelos autores, ora apelantes, matéria a qual se alegou não
ter sido exigida aos candidatos aprovados no mesmo certame e que participaram
de Cursos de Formação Profissional anteriores àqueles realizados pelos autores.
- Ao momento de inscrição para a freqüência do referido Curso de Formação,
todos os candidatos aprovados nas fases anteriores do certame regulado pelo
Edital ESAF n. 18, de 16.10.1991, e então convocados por força da Portaria MF n.
268, de 26.11.1996 (esta editada em cumprimento a decisões judiciais proferidas
no âmbito do E. STJ em referência ao aludido concurso público), tiveram ciência
de todo o conteúdo programático e das regras e regulamentos do referido Curso,
concordando, assim, com todas as condições previamente estipuladas.
- Distante de ter malferido os princípios constitucionais da legalidade e da
isonomia, o regulamento do Curso de Formação Profissional freqüentado pelos
autores, ora embargados, além de ter sido prévia e regularmente levado ao
conhecimento de todos os candidatos participantes, atentou, ainda, para o
teor do art. 17, do Decreto n. 92.360, de 4.2.1986, que estabelece o permanente
aprimoramento do programa de formação profissional para ingresso nos cargos
integrantes da Carreira Auditoria do Tesouro Nacional, dispositivo legal o qual
restou integrado no âmbito administrativo pela Portaria ESAF n. 3, de 28.1.1997,
que aprovou o regulamento dos Cursos de Formação Profissional realizados por
força da Portaria MF n. 268, de 26.11.1996.
- Parece evidente, portanto, nesse último aspecto, que não se havia de exigir
da ESAF conduta diversa da que por ela adotada na estipulação da estrutura e
do conteúdo programático dos Cursos de Formação Profissional realizados por
força da Portaria MF n. 268, de 26.11.1996, vez que não seria razoável e exigível
que a ESAF meramente repetisse, nos Cursos de Formação Profissional realizados
a partir de 1997, a estrutura e o conteúdo programático dos Cursos realizados 5
(cinco) anos antes (em 1992), isso nada obstante originariamente regulados os
referidos Cursos pelo mesmo instrumento editalício de base (Edital ESAF n. 18, de
16.8.1991). Precedente análogo colhido da jurisprudência do E. TRF da 1ª Região
(AMS n. 1998.01.00.061934-1-DF, DJU de 29.5.2003).
- Sentença mantida.
No acórdão objeto do recurso especial, o Tribunal de origem manteve
sentença que, por sua vez, julgou improcedente o pedido em ação na qual os
recorrentes postulam seja excluída a disciplina “Lógica e Argumentação no
Processo de Raciocínio”, na qual foram reprovados, da apuração do resultado
final do curso de formação para ingresso na carreira de Auditor da Receita
Federal.
RSTJ, a. 24, (226): 147-239, abril/junho 2012
193
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
Opostos embargos de declaração, foram rejeitados por acórdão que recebeu
a seguinte ementa (fl. 444e):
Processual Civil e Administrativo. Concurso público. Embargos declaratórios.
Inexistentes vícios.
- As condições do concurso e de sua realização - nos termos do Artigo 12, § 1º,
da Lei n. 8.112/1990 - foram satisfeitas com a publicação do Edital n. 18/1991.
- O regulamento da segunda etapa do concurso, previsto no Edital n. 64/96,
obedeceu as disposições do Decreto n. 92.360/1986, segundo o qual compete
à ESAF planejar, organizar, executar e homologar os concursos, baixando as
respectivas instruções e o seu regulamento, bem assim buscar permanente
aprimoramento do programa de formação.
- Como visto, não se encontra em quaisquer dos diplomas referidos,
componentes da cadeia legal que embasaram o certame, exigência no rumo
de que os programas de formação de AFTN devam ser idênticos para todos os
grupos convocados a participar da segunda etapa daquele seletivo.
- Embargos declaratórios desprovidos.
Os recorrentes sustentam, nas razões de seu recurso especial, além de
divergência jurisprudencial, ofensa ao art. 12, § 1º, da Lei n. 8.112/1990, ao
fundamento de que a disciplina que motivou a reprovação deles no curso de
formação não fora oferecida para as turmas anteriores de candidatos aprovados
no mesmo concurso, regulado pelo Edital 18/91, o que violaria o princípio da
isonomia.
A União apresentou contrarrazões (fls. 496-501e).
O recurso foi admitido pelo Tribunal de origem (fls. 503-506e).
É o relatório.
VOTO
O Sr. Ministro Arnaldo Esteves Lima (Relator): Conforme relatado, o
Tribunal de origem manteve sentença que, por sua vez, julgou improcedente
o pedido em ação em que os recorrentes postulam seja excluída a disciplina
“Lógica e Argumentação no Processo de Raciocínio”, na qual foram reprovados,
da apuração do resultado final do curso de formação para ingresso na carreira de
Auditor da Receita Federal.
194
Jurisprudência da PRIMEIRA TURMA
De acordo com os autos, os recorrentes participaram do concurso público
para provimento de cargos de Auditor da Receita Federal regulado pelo
Edital n. 18/91, sendo aprovados na primeira fase. Por divergências acerca da
interpretação da forma de provimento de novas vagas que teriam surgido, não
foram imediatamente convocados para a segunda fase (Programa de Formação).
Com isso, os candidatos preteridos (cerca de 1.200, fls. 104-106e)
impetraram diversos mandados de segurança, tendo este Superior Tribunal
concedido a ordem determinando a convocação dos candidatos aprovados na
primeira fase para participarem do referido Programa de Formação.
Assim, em 6.12.1996, foi publicado o Edital 64, convocando os candidatos
favorecidos pelas citadas decisões judiciais para a segunda fase do concurso
público (fl. 76e), sendo o programa do curso de formação aprovado pela Portaria
3, de 28.1.1997 (fl. 80e).
Atendendo à convocação, os recorrentes participaram do curso de
formação, sendo reprovados na disciplina “Lógica e Argumentação no Processo
de Raciocínio” e, consequentemente, eliminados do certame (Edital n. 32, de
12.8.1997, fl. 94e).
Os recorrentes aduzem que a referida disciplina não constava dos
programas dos cursos de formação anteriores (turmas de 1992 e 1993 de
candidatos aprovados no mesmo concurso), pelo que sua inclusão no curso de
formação do qual participaram, com caráter eliminatório, violou o princípio da
isonomia e o disposto no art. 12, § 1º, da Lei n. 8.112/1990, que assim dispõe:
Art. 12. O concurso público terá validade de até 2 (dois ) anos, podendo ser
prorrogado uma única vez, por igual período.
§ 1º O prazo de validade do concurso e as condições de sua realização serão
fixados em edital, que será publicado no Diário Oficial da União e em jornal diário
de grande circulação.
A pretensão dos recorrentes merece prosperar. Com efeito, em se tratando
de candidatos oriundos do mesmo concurso público, devem ser submetidos aos
mesmos requisitos de avaliação e aprovação, sob pena de ofensa ao princípio
da isonomia. Apreciando caso idêntico ao dos autos, assim decidiu o Supremo
Tribunal Federal:
Concurso público. Parâmetros. Acesso ao Judiciário. Reconhecimento de
direito. Exigências suplementares. Erronia.
RSTJ, a. 24, (226): 147-239, abril/junho 2012
195
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
Surge extravagante implementar-se, para candidatos remanescentes em razão
de haverem buscado o Judiciário, exigências extras, não constantes do edital. (RE
n. 596.482-RJ, Rel. Min. Marco Aurélio, Primeira Turma, DJe 7.6.2011)
Por se tratar da mesma questão discutida nos autos, cumpre transcrever
trecho do voto condutor:
Em síntese, os ora recorrentes acabaram prejudicados por terem a sequência
no concurso obstaculizada, muito embora hajam logrado sucesso, na via judicial,
para nele continuarem. Observado o Edital Esaf n. 18, de 16 de agosto de 1991,
relativo ao grande todo que se mostrou o certame realizado, aqueles que não
tiveram percalços fizeram o curso de formação profissional sem se defrontarem
com a nova disciplina, ou seja, a demoninada “lógica e argumentação no processo
de raciocínio”, que, inclusive, é de um subjetivismo insuplantável. O Tribunal
Regional Federal da 2ª Região acabou por menosprezar a máxima de Ruy Barbosa:
(...)
O exercício desse direito inerente à cidadania que é o de ingressar em juízo
para afastar lesão ou ameaça de lesão a direito não pode atrair, principalmente
considerada a unidade do concurso, prejuízo para alguns dos candidatos. Daí
a manifestação da Procuradoria Geral da República, na pena abalizada do
Subprocurador-Geral Dr. Rodrigo Janot Monteiro de Barros. Cabe atentar para o
fecho da peça:
Se a justificativa administrativa para a exigência da disciplina está na
necessidade de permanente aprimoramento no Programa de Formação dos
AFTN estabelecida no Decreto n. 92.360/1986, não haveria qualquer óbice,
desde que não revestida de cunho eliminatório. Poderia, aliás, ministrá-la, a
posteriori, para todos os aprovados na primeira etapa do certame, inclusive
aos participantes do curso de formação anterior.
Não há corolário lógico na distinção dos critérios de seleção que dê respaldo
à discriminação perpetrada em relação aos candidatos participantes do
curso de formação profissional por forma de decisão judicial. Assim, impõese reconhecer a inexigência de aproveitamento mínimo na disciplina
“Lógica”, nos termos previstos 18, I, do regulamento a que se sujeitaram
os recorrentes (fls. 35-45), como forma de assegurar a isonomia entre os
candidatos. (grifo nosso)
Assim, deve ser afastado o caráter eliminatório da disciplina “Lógica e
Argumentação no Processo de Raciocínio” e, consequentemente, reconhecido o
direito dos recorrentes à nomeação no cargo pleiteado.
No tocante aos efeitos temporais do direito aqui reconhecido, cumpre
salientar que a Corte Especial do Superior Tribunal de Justiça, em 21.9.2011,
196
Jurisprudência da PRIMEIRA TURMA
no julgamento dos EREsp n. 1.117.974-RS, Rel. p/ o acórdão Min. Teori Albino
Zavascki, revendo posicionamento anterior, firmou a compreensão no sentido de
que, nos casos em que o candidato é nomeado por força de decisão judicial, não
é devido o pagamento de indenização pelo tempo em que se aguardou a solução
definitiva do processo. Tal entendimento segue a jurisprudência do Supremo
Tribunal Federal, que assim vem decidindo:
Agravo regimental. Concurso público. Nomeação. Provimento judicial.
Indenização. Impossibilidade.
Nos termos da orientação firmada nesta Corte, é indevida indenização pelo
tempo em que se aguardou solução judicial definitiva sobre aprovação em
concurso público.
Agravo regimental a que se nega provimento. (AgRg no RE n. 593.373-DF, Rel.
Min. Joaquim Barbosa, Segunda Turma, DJe 18.4.2011)
Nesse mesmo sentido são os seguintes precedentes do Superior Tribunal
de Justiça:
Administrativo e Processual Civil. Concurso público. Cargo de Auditor-fiscal
do Tesouro Nacional. Edital n. 18/91. Lei n. 8.541/1992. Preterição. Ocorrência.
Reconhecimento judicial. Direito aos vencimentos atrasados. Inexistência.
Contraprestação. Imprescindibilidade.
(...)
3. Os candidatos preteridos na ordem de classificação em certame público,
situação esta, inclusive, reconhecida judicialmente, não fazem jus aos
vencimentos referentes ao período compreendido entre a data em que deveriam
ter sido nomeados e a efetiva investidura no serviço público, ainda que a título
de indenização, na medida em que a percepção da retribuição pecuniária não
prescinde do efetivo exercício do cargo. Precedentes.
4. Recurso especial parcialmente conhecido e, nessa parte, provido. (REsp n.
508.477-PR, Rel. Min. Laurita Vaz, Quinta Turma, DJe 6.8.2007)
Direito Administrativo. Agravo regimental no recurso especial. Concurso
público. Preterição na ordem classificatória. Indenização. Não-cabimento. Agravo
improvido.
1. O ato administrativo que impede a nomeação de candidato aprovado em
concurso público, ainda que considerado ilegal e posteriormente revogado
por decisão judicial, não gera direito à indenização por perdas e danos ou ao
recebimento de vencimentos retroativos. Precedentes do STJ.
2. Agravo regimental improvido. (AgRg no REsp n. 1.022.823-RS, de minha
relatoria, Quinta Turma, DJe 13.10.2009)
RSTJ, a. 24, (226): 147-239, abril/junho 2012
197
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
Ante o exposto, conheço do recurso especial e dou-lhe provimento para,
reformando o acórdão recorrido, julgar procedente o pedido para (a) excluir
do resultado do “Programa de Formação” as notas referentes à matéria “Lógica
e Argumentação no Processo de Raciocínio” e (b) reconhecer o direito dos
recorrentes à nomeação no cargo postulado, com os efeitos legais daí oriundos,
observadas as prescrições legais.
Condeno a União ao pagamento das custas processuais e honorários
advocatícios. Tendo em vista o disposto no art. 20, § 4º, do CPC e levando em
consideração a data em que foi ajuizada a demanda, a complexidade da causa e a
necessidade de interposição de diversos recursos para a obtenção de êxito, fixo os
honorários advocatícios em R$ 30.000,00 (trinta mil reais).
É o voto.
RECURSO ESPECIAL N. 1.236.622-MG (2011/0021606-9)
Relator: Ministro Benedito Gonçalves
Recorrente: Estado de Minas Gerais
Procurador: Amélia Josefina Alves Nogueira da Fonseca e outro(s)
Recorrido: Turin Ltda
Advogado: Cantinila Bezerra de Carvalho e outro(s)
EMENTA
Tributário. Recurso especial. ICMS. Regime Especial de
Controle e Fiscalização. Imposição em face de reiteradas infrações
tributárias. Possibilidade. Legitimidade das obrigações impostas pelo
fisco. Juízo de razoabilidade. Necessidade.
1. Recurso especial pelo qual se discute a legitimidade do Regime
Especial de Controle e Fiscalização, previsto na legislação do Estado
de Minas Gerais (art. 52 da Lei n. 6.763/1975), que foi imposto à
contribuinte por meio de ato do Delegado Fiscal de Betim.
198
Jurisprudência da PRIMEIRA TURMA
2. O STJ já decidiu pela ilegitimidade do regime especial
mineiro, ao fundamento de que ele representa coação ilegítima para
o pagamento de tributos. Precedentes: REsp n. 281.588-MG, Rel.
Ministro João Otávio de Noronha, Segunda Turma, DJ 1º.2.2006;
AgRg no REsp n. 734.364-MG, Rel. Ministro Francisco Falcão,
Primeira Turma, DJ 29.8.2005; RMS n. 15.674-MG, Rel. Ministro
Luiz Fux, Primeira Turma, DJ 22.4.2003; AgRg no REsp n. 77.224MG, Rel. Ministra Nancy Andrighi, Segunda Turma, DJ 11.9.2000.
3. Mais recentemente, todavia, o STJ vem admitindo a imposição
do regime especial aos contribuintes que comprovadamente sejam
reincidentes na prática de infrações tributárias, como meio inerente
ao poder de polícia e necessário para que a Administração Tributária
possa prevenir novos prejuízos aos cofres públicos. Precedentes: AgRg
nos EDcl no RMS n. 17.983-GO, Rel. Ministro Herman Benjamin,
Segunda Turma, julgado em 20.10.2009, DJe 29.10.2009; REsp n.
1.032.515-SP, Rel. Ministra Eliana Calmon, Segunda Turma, DJe
29.4.2009; AgRg no RMS n. 23.578-SE, Rel. Ministro Francisco
Falcão, Primeira Turma, DJe 9.4.2008.
4. Tem-se, portanto, que é possível a imposição de regime especial
de controle e fiscalização a contribuintes que tenham reiteradamente
descumprido com suas obrigações tributárias, desde que tal regime
não configure obstáculo desarrazoado à atividade empresarial a ponto
de coagir o contribuinte ao pagamento de seus débitos tributários,
haja vista que, para esse mister, o fisco já possui meios próprios.
5. Entretanto, não é possível, desde logo, proceder ao juízo de
mérito do presente mandado de segurança, na medida em que a
validade do regime especial imposto à empresa contribuinte exige
prévio juízo de valor sobre a razoabilidade de cada uma das medidas
determinadas pelo ato impugnado, tarefa essa que, no caso em apreço,
ainda não foi exercida pela Corte a quo.
6. Das imposições contidas no apontado ato coator, a empresa
impetrante, segundo a exordial, insurge-se especificamente contra a
limitação de que a emissão de notas fiscais seja feita na repartição
fiscal e com a expressão “contribuinte sujeito a regime especial de
controle e fiscalização”. Assim, cabe ao Tribunal de origem decidir se,
in concreto, cada umas das aludidas restrições constituem obstáculos
RSTJ, a. 24, (226): 147-239, abril/junho 2012
199
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
desarrazoados que inviabilizam o prosseguimento das atividades da
empresa fiscalizada ou se, apenas, são necessárias à prevenção de novas
infrações tributárias.
7. Recurso especial parcialmente conhecido e, nessa extensão,
provido.
ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos os autos em que são partes as acima indicadas,
acordam os Ministros da Primeira Turma do Superior Tribunal de Justiça, por
unanimidade, conhecer parcialmente do recurso especial e, nessa parte, dar-lhe
provimento, nos termos do voto do Sr. Ministro Relator. Os Srs. Ministros Teori
Albino Zavascki e Napoleão Nunes Maia Filho (Presidente) votaram com o Sr.
Ministro Relator.
Ausente, justificadamente, o Sr. Ministro Francisco Falcão.
Licenciado o Sr. Ministro Arnaldo Esteves Lima.
Brasília (DF), 13 de março de 2012 (data do julgamento).
Ministro Benedito Gonçalves, Relator
DJe 16.3.2012
RELATÓRIO
O Sr. Ministro Benedito Gonçalves: Trata-se de recurso especial interposto
pelo Estado de Minas Gerais, com fulcro no art. 105, inciso III, alíneas a e c, da
Constituição da República, contra acórdão prolatado pelo Tribunal de Justiça
mineiro, assim ementado (fl. 611):
Mandado de segurança. ICMS. Práticas ilegais do contribuinte. Imposição do
Regime Especial de Controle e Fiscalização. Ilegalidade. Conforme entendimento
do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça, é ilegal a imposição,
ao contribuinte faltoso e descumpridor das obrigações tributárias, do regime
especial de controle e fiscalização, que lhe impõem condições mais gravosas de
recolhimento da exação ou de cumprimento de obrigações acessórias.
Rejeitados os aclaratórios (fls. 586).
200
Jurisprudência da PRIMEIRA TURMA
Nas suas razões (fls. 631-649), o estado recorrente, além de divergência
jurisprudencial, aponta violação dos arts. 535 do CPC; 113, § 2º, 161 e 194 do
CTN. Para tanto, alega, preliminarmente, que a Corte a quo foi omissa acerca
de questões que reputa relevantes para o desate da causa. No mérito, assevera,
em resumo, que “não visa o regime especial coagir o contribuinte a pagar suas
obrigações fiscais, até mesmo porque dispõe a Fazenda Pública da execução
fiscal e outras prerrogativas. O escopo do regime especial de fiscalização é,
pois, a atuação preventiva da Fiscalização frente às novas infrações que possam
ser cometidas por aquele contribuinte faltoso” (fl. 644). Pugna, ao final, pelo
reconhecimento da legitimidade do regime especial de controle e fiscalização
que foi imposto à recorrida, com a consequente denegação da ordem por ela
vindicada.
Contrarrazões às fls. 681-691, pelas quais a contribuinte defende que: a) os
artigos de lei suscitados no recurso especial não foram prequestionados; b) não
houve infringência ao art. 535 do CPC; c) a análise do apelo nobre esbarra no
óbice da Súmula n. 7-STJ; d) o dissídio jurisprudencial não foi suficientemente
demonstrado; e e) o entendimento do acórdão recorrido está em conformidade
com a jurisprudência do STJ.
Admitido o recurso especial pelo Tribunal de origem (fls. 706-709) e
interposto agravo contra a inadmissão do recurso extraordinário (fl. 714).
O parquet manifestou-se no sentido de que “não há interesse do Ministério
Público, como custos legis, em atuar no feito” (fl. 724).
É o relatório.
VOTO
O Sr. Ministro Benedito Gonçalves (Relator): Conforme relatado, discutese neste recurso a legitimidade do Regime Especial de Controle e Fiscalização,
previsto na legislação mineira (art. 52 da Lei n. 6.763/1975), que foi imposto à
contribuinte por meio de ato do Delegado Fiscal de Betim (fls. 22-24).
Quanto ao tema, assim decidiu o acórdão recorrido (fls. 613-615):
Pretende a apelante a concessão da segurança para que seja declarada a
nulidade do Ato Administrativo n. 001/008 (fl. 19-21), que lhe impôs o regime
especial de controle e fiscalização, o que entende ser ilegal e ferir direito líquido e
certo de sua titularidade.
RSTJ, a. 24, (226): 147-239, abril/junho 2012
201
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
Informam os autos que apelada aplicou à apelante a pena de imposição
do citado regime especial, em razão de fatos considerados provados e que
constituem crime, segundo as considerações constantes do próprio corpo do ato
administrativo impugnado (fl. 19).
Contudo, deve o Fisco utilizar os meios próprios para coibir as práticas da
apelante que considera ilícitas, não podendo fazê-lo por meio indireto, como a
imposição do regime especial de controle e fiscalização, ainda que este conte
com previsão legal. Essa tem sido a orientação dos Tribunais Superiores.
[...]
Esse mesmo entendimento foi manifestado pelo Superior Tribunal de Justiça, e
especificamente em relação ao regime especial de controle e fiscalização previsto
na legislação do Estado de Minas Gerais.
[...]
Não sendo, pois, possível a imposição do regime especial de controle
e fiscalização, ainda que conte com previsão legal, por entendimento do
próprio Excelso Pretório, tem-se que inadimissível, por ofensa ao Direito, o ato
administrativo impugnado (Ato n. 001/008 de fls. 19-21), figurando as restrições
por ele impostas à apelante como violadoras do seu direito líquido e certo de
desenvolver a sua atividade empresarial em condições normais.
Extrai-se do excerto acima que o Tribunal de origem considerou o regime
especial de controle e fiscalização imposto à contribuinte como ilegal, por
entender que a Administração já possuiu meios próprios para coibir a prática de
infrações tributárias.
Observa-se, portanto, que a Corte estadual empregou fundamentação
suficiente para dirimir a controvérsia, dispensando, portanto, qualquer integração
à compreensão do que fora por ela decidido.
Afasto, portanto, a alegada infringência ao art. 535 do CPC.
Passo, a seguir, ao juízo de reforma.
Antes, contudo, cabe apreciar as preliminares de conhecimento suscitadas
pela parte recorrida.
A matéria relativa à legitimidade do regime especial de controle e
fiscalização impingido à contribuinte foi devidamente enfrentada pelo Tribunal
a quo, restando, pois, implicitamente prequestionados os dispositivos legais
invocados pela recorrente, quais sejam, os arts. 113, § 2º, 161 e 194 do CTN,
na medida em eles tratam do poder de polícia conferido à Administração
Tributária.
202
Jurisprudência da PRIMEIRA TURMA
Afasto, também, o óbice da Súmula n. 7-STJ, uma vez que o recurso trata
de questão eminentemente de direito.
Frise-se, por oportuno, que o recurso especial não se presta para rediscutir
as premissas fáticas pelas quais o fisco justificou a imposição do regime especial.
Sobre esse suporte fático, assim consignou a sentença (fl. 526):
Observo que o ato administrativo atacado foi devidamente fundamentado
e que a motivação adotada pela autoridade impetrada corresponde àquela
mencionada pela legislação de regência como autorizativa do regime especial de
controle e fiscalização, à luz do art. 197 do Regulamento do ICMS, qual seja:
- utilização da prática criminosa de inserir valores diferentes nas vias destinadas
aos adquirentes e aquelas com o fim de informar ao fisco o valor do imposto a
recolher;
- utilização criminosa de créditos de ICMS originários de documentos
inidôneos;
- utilização da prática criminosa de registrar os documentos fiscais de saídas
em períodos posteriores aos da apuração do imposto, dentre outras.
Superado o juízo de admissibilidade, enfrento, doravante, o mérito recursal.
De fato, por diversas vezes, o Superior Tribunal de Justiça já foi
provocado a se manifestar sobre a validade, no âmbito infraconstitucional, dos
regimes especiais de controle e fiscalização previstos em legislações estaduais.
Especificamente quanto ao regime especial mineiro, disciplinado pela Lei
Estadual n. 6.763/1975, o STJ chegou a firmar o entendimento pela sua
ilegitimidade, ao fundamento de que ele representa coação ilegítima para o
pagamento de tributos. A esse respeito, confiram-se os seguintes julgados:
Tributário. Processo Civil. ICMS. Súmulas n. 282 e 356 do STF. Regime Especial
de Fiscalização e Controle. Violação do art. 97, V, do CTN. Exame de matéria
constitucional. Impossibilidade na via do recurso especial.
1. Aplicam-se os óbices previstos nas Súmulas n. 282 e 356 do STF quando a
questão infraconstitucional suscitada no recurso especial não foi debatida no
acórdão recorrido, nem, a respeito, foram opostos embargos de declaração.
2. O regime especial de controle e fiscalização, editado com base no art. 52 da
Lei n. 6.763/1975 do Estado de Minas Gerais, constitui meio de coação ilegítimo
a pagamento de tributo, afrontando, por isso, a legislação infraconstitucional,
especificamente o art. 97, V, do CTN. Precedentes do STJ e do STF.
3. O recurso especial não é via hábil para o reexame de questões de natureza
constitucional.
RSTJ, a. 24, (226): 147-239, abril/junho 2012
203
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
4. Recurso especial parcialmente conhecido e, nessa parte, não-provido
(REsp n. 281.588-MG, Rel. Ministro João Otávio de Noronha, Segunda Turma, DJ
1º.2.2006).
Tributário. ICMS. Regime Especial de Fiscalização e Controle. Ilegalidade.
Violação aos princípios da livre concorrência e do livre comércio. Precedentes do
Colendo Supremo Tribunal Federal.
I - Afigura-se ilegal o Regime Especial de Fiscalização e Controle instituído pelo
Estado de Minas Gerais, uma vez que o regime diferenciado impõe modo diverso
de tributação a impedir o exercício da livre atividade comercial, configurando
verdadeira coação ilegítima ao recolhimento de tributos, sendo certo que a
Fazenda Pública dispõe de instrumentos suficientes para providenciar o seu
pagamento.
II - Precedentes: ROMS n. 15.674-MG, Rel. Min. Luiz Fux, DJ de 22.4.2003; RE n.
231.543-MG, Rel. Min. Ilmar Galvão, DJ de 28.5.1999; RE n. 195.621-GO, Rel. Min.
Marco Aurélio, DJ de 10.8.2001 e REsp n. 17.134-MG, de minha relatoria, DJ de
6.12.2004.
III - Agravo Regimental improvido (AgRg no REsp n. 734.364-MG, Rel. Ministro
Francisco Falcão, Primeira Turma, DJ 29.8.2005).
Tributário. ICMS. Regime Especial de Fiscalização. Ilegalidade. Processual Civil.
Postergação do julgamento para a apresentação de memorias. Indeferimento.
Cerceamento de defesa. Inexistência.
1. As limitações impostas à atividade comercial do contribuinte, em face da
aplicação do regime especial do ICMS, violam as garantias constitucionais da
liberdade de trabalho, de comércio, e da livre concorrência. Precedentes do E. STF.
2. A ratio essendi das Súmulas n. 70, 323 e 547 do STF indicia o repúdio da
jurisprudência às formas coercitivas de cobrança do tributo mediante autotutela
oblíqua pela Administração Tributária.
3. O regime especial não pode mudar a forma de cobrança do tributo, uma
vez que “fiscalizar” não significa “tributar de maneira diversa”, a inviabilizar a
concorrência.
4. A apresentação de memoriais não é ato substancial e intrínseco à defesa,
motivo pelo qual o indeferimento da retirada do processo de pauta para
julgamento, para ensejar a sua apresentação, não acarreta cerceamento de defesa.
5. Recurso ordinário parcialmente provido, para conceder a segurança (RMS n.
15.674-MG, Rel. Ministro Luiz Fux, Primeira Turma, DJ 22.4.2003).
Agravo regimental. Recurso especial. Tributário. Mandado de segurança. ICMS.
Regime Especial de Controle e Fiscalização de Tributos. Art. 52, VIII da Lei Estadual
(MG) n. 6.763/1975. Artigo 839, I do Decreto (MG) n. 32.535/1991. Ilegalidade.
204
Jurisprudência da PRIMEIRA TURMA
Afronta ao art. 97, V do CTN.
I - O regime especial de controle e fiscalização, editado com base no artigo
52, VIII da Lei Estadual (MG) n. 6.763/1975 e artigo 839, inciso I do Decreto (MG)
n. 32.535/1991, constitui meio de coação ilegítimo a pagamento de tributo,
afrontando a legislação infraconstitucional (art. 97, V do CTN) e constitucional (art.
5º, inciso XIII da CF).
II - Precedentes do STJ e STF.
III - Agravo Regimental a que se nega provimento (AgRg no REsp n. 77.224-MG,
Rel. Ministra Nancy Andrighi, Segunda Turma, DJ 11.9.2000).
Ressalta-se, portanto, que a ilegitimidade do regime especial mineiro,
de acordo com os julgados colacionados, relaciona-se à sua utilização como
indevido instrumento de cobrança de tributo.
Mais recentemente, todavia, a jurisprudência do STJ vem admitindo a
imposição do regime especial aos contribuintes que comprovadamente sejam
reincidentes na prática de infrações tributárias, como meio inerente ao poder de
polícia e necessário para que a Administração Tributária possa prevenir novos
prejuízos aos cofres públicos. É o que se retira dos seguintes julgados:
Tributário. Processo Civil. Transporte de derivados de petróleo. ICMS. Regime
especial de fiscalização.
1. O regime especial de controle, fiscalização e pagamento do imposto é
previsto pelo art. 70, c.c. o art. 143 do Código Tributário Estadual. O Decreto n.
4.852/1997 restringe-se a regulamentar a previsão legal.
2. A Segunda Turma reconheceu recentemente, no RMS n. 21.348-GO, Relatora
Ministra Eliana Calmon, a validade do regime especial de controle, fiscalização e
arrecadação no caso específico do Estado de Goiás.
3. O regime especial não impede que a agravante continue a comercializar
sua mercadoria no Estado de Goiás, apenas altera a sistemática de declaração e
recolhimento do ICMS.
4. Agravo Regimental não provido (AgRg nos EDcl no RMS n. 17.983-GO,
Rel. Ministro Herman Benjamin, Segunda Turma, julgado em 20.10.2009, DJe
29.10.2009).
Tributário. ICMS. Inadimplência reiterada. Evasão fiscal. Prevenção. Regime
especial de fiscalização. Validade.
1. A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça admite a inclusão de
contribuinte em regime especial de fiscalização, arrecadação e controle quando
há provas de reiterado inadimplemento de obrigações tributárias. Precedentes.
RSTJ, a. 24, (226): 147-239, abril/junho 2012
205
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
2. Recurso especial não provido (REsp n. 1.032.515-SP, Rel. Ministra Eliana
Calmon, Segunda Turma, DJe 29.4.2009).
Recurso ordinário em mandado de segurança. Tributário. Antecipação
tributária, sem substituição. Regime Especial de Fiscalização Tributária do Estado
de Sergipe. Lei Estadual n. 3.796/1996 e respectivo decreto regulamentador.
Conformidade com o § 7º do art. 150 da Constituição Federal.
I - A jurisprudência desta colenda Corte é firme no entendimento de que é
legítima a cobrança antecipada de ICMS, mesmo por meio do regime normal
de tributação, em conformidade com a Lei Estadual n. 3.796/1996 do Estado de
Sergipe.
II - Assim sendo, cai por terra a argumentação desenvolvida pela recorrenteagravante, quanto a consubstanciar-se o regime de cobrança de ICMS a que está
obrigada como meio arbitrário de sanção política.
III - Em verdade, “a inclusão do contribuinte no sistema especial de controle
e fiscalização, desde que prevista em lei, não implica violação de direito líquido
e certo, estando comprovadas irregularidades fiscais referentes à sonegação de
tributos” (RMS n. 20.520-SE, Segunda Turma, DJ de 21.3.2006).
IV - A propósito, confiram-se, entre inúmeros outros: RMS n. 21.118-SE, Primeira
Turma, DJ de 29.6.2007; RMS n. 18.844-SE, Primeira Turma, DJ de 13.2.2006.
V - Agravo regimental improvido (AgRg no RMS n. 23.578-SE, Rel. Ministro
Francisco Falcão, Primeira Turma, DJe 9.4.2008).
Ponderados esses elementos, é possível concluir que, havendo legislação
local a esse respeito, é possível a imposição de regime especial de controle e
fiscalização a contribuintes que tenham reiteradamente descumprido com
suas obrigações tributárias, desde que tal regime não configure obstáculo
desarrazoado à atividade empresarial a ponto de coagir o contribuinte ao
pagamento de seus débitos tributários, haja vista que, para esse mister, o fisco já
possui meios próprios.
Solucionada a questão jurídica, resta, por fim, aplicar o direito à espécie, em
conformidade com o art. 257 do RISTJ da Súmula n. 456-STF.
No caso em tela, o acórdão recorrido, de forma genérica, entendeu que
a imposição do regime, por si só, configura ato ilegal, entendimento esse que,
como visto, não mais encontra amparo na jurisprudência desta Corte Superior.
Entretanto, não é possível, desde logo, proceder ao juízo de mérito do
presente mandado de segurança, na medida em que a validade do regime
especial imposto à empresa contribuinte exige prévio juízo de valor sobre a
206
Jurisprudência da PRIMEIRA TURMA
razoabilidade de cada uma das medidas determinadas pelo ato impugnado,
tarefa essa que, no caso em apreço, ainda não foi exercida pela Corte a quo.
Das imposições contidas no apontado ato coator, a empresa impetrante,
segundo a exordial, insurge-se especificamente contra a limitação de que
a emissão de notas fiscais seja feita na repartição fiscal e com a expressão
“contribuinte sujeito a regime especial de controle e fiscalização”.
Assim, cabe ao Tribunal de origem decidir se, in concreto, cada umas
das aludidas restrições constituem obstáculos desarrazoados que inviabilizam
o prosseguimento das atividades da empresa fiscalizada ou se, apenas, são
necessárias à prevenção de novas infrações tributárias.
Ante o exposto, conheço parcialmente do recurso especial em nessa parte, doulhe provimento para reconhecer a validade de imposição de regime especial de
controle e fiscalização e determinar o retorno dos autos para que o Tribunal
de origem analise a razoabilidade das medidas impostas, in concreto, à empresa
contribuinte.
É como voto.
RECURSO ESPECIAL N. 1.294.061-PE (2011/0280430-6)
Relator: Ministro Francisco Falcão
Recorrente: URO Unidade de Urologia Ltda
Advogado: Joaquim Correia de Carvalho Junior e outro(s)
Recorrente: Fazenda Nacional
Procurador: Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional
Recorrido: Os Mesmos
EMENTA
Importação de aparelho de ultra-som diagnóstico. Locação
subsequente. Auto de infração que não indica o importador.
Responsabilidade tributária solidária. Substituição tributária irregular.
RSTJ, a. 24, (226): 147-239, abril/junho 2012
207
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
I - O locatário do bem importado com a especial isenção do
artigo 149, III, do Decreto n. 91.030/1985 (Regulamento Aduaneiro)
foi responsabilizado pelo Fisco, com supedâneo no artigo 124, I,
do CTN. Na hipótese estaria configurada a solidariedade de fato,
porquanto estaria o recorrente enquadrado nos termos do artigo
primeiro, haja vista que possui interesse comum na situação. Não
obstante, ao lançar o auto de infração a Fazenda Nacional não incluiu
o responsável tributário principal, atacando diretamente o locatário,
que assumiu a responsabilidade em face de seu especial interesse na
situação.
II - Conforme explicita o artigo 121 do CTN, o sujeito passivo
da obrigação principal é a pessoa obrigada ao pagamento do Tributo.
Assim, devendo o tributo de importação ser pago pelo importador
decorre que é dele a obrigação principal de pagar pelo tributo e,
sendo dele, da mesma forma, a responsabilidade por burlar a isenção
e ter contra si auto de infração sob este título. Não se desconhece a
possibilidade da Fazenda Nacional indicar responsável solidário, in
casu, solidariedade de fato, entretanto, sendo certa a legitimidade do
importador para responder pelo tributo, deve ele constar no auto de
infração que serve de supedâneo ao crédito tributário. Tanto é assim
que o artigo 134 do CTN expressamente dispõe que, nos casos de
impossibilidade de exigência do cumprimento da obrigação principal
pelo contribuinte, respondem solidariamente com este aqueles que
intervieram ou que se omitiram.
III - Este Superior Tribunal de Justiça, em outras oportunidades,
já reconheceu que a responsabilidade tributária deve ser atribuída ao
contribuinte de fato, autor do desvio, e não terceiro de boa-fé, como
na hipótese dos autos em que o locador não tem a possibilidade de
verificar a origem fiscal do aparelho. Precedente: EDcl no AgRg no
REsp n. 706.254-RO, Rel. Min. Eliana Calmon, DJe de 6.5.2008.
IV - Conforme demonstrado o contribuinte originário, na
hipótese dos autos, é o importador. Assim, a interpretação de tal
dispositivo deixa clara a intenção do legislador de impor ao contribuinte
principal a responsabilidade pela obrigação.
V - Em verdade está a se erigir uma nova forma de substituição
tributária, porquanto de solidariedade, estritamente, não se trata,
208
Jurisprudência da PRIMEIRA TURMA
haja vista que não há devedor principal inscrito para a vinculação da
solidariedade.
VI - Recurso especial da Empresa provido. Recurso especial da
Fazenda Nacional Prejudicado.
ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos os autos em que são partes as acima indicadas,
acordam os Ministros da Primeira Turma do Superior Tribunal de Justiça: A
Turma, por unanimidade, deu provimento ao recurso especial da contribuinte
e julgou prejudicado o recurso da Fazenda Nacional, nos termos do voto do
Sr. Ministro Relator. Os Srs. Ministros Teori Albino Zavascki, Napoleão
Nunes Maia Filho e Benedito Gonçalves votaram com o Sr. Ministro Relator.
Licenciado o Sr. Ministro Arnaldo Esteves Lima.
Brasília (DF), 15 de março de 2012 (data do julgamento).
Ministro Francisco Falcão, Relator
DJe 22.3.2012
RELATÓRIO
O Sr. Ministro Francisco Falcão: Trata-se de recursos especiais interpostos
pela sociedade URO Unidade de Urologia Ltda, com fundamento no artigo
105, inciso III, alínea a, da Constituição Federal, e pela Fazenda Nacional, com
fundamento no artigo 105, inciso III, alínea a, da Constituição Federal, contra
acórdão proferido pelo Tribunal Regional Federal da 5ª Região, que restou
assim ementado, verbis:
Tributário. Importação de produto industrializado. IPI e Imposto de
Importação. Isenção subjetiva. Locação do bem antes de decorridos cinco anos.
Responsabilidade solidária. Juros de mora. Termo inicial. Decisão administrativa.
I - Quando a isenção for vinculada à qualidade do importador, a locação do
bem, antes de decorridos cinco anos da efetiva importação, obriga ao prévio
pagamento do imposto, a teor do art. 137 do Regulamento Aduaneiro, aprovado
pelo Decreto n. 91.030/1985.
II - É responsável solidária a pessoa que tenha interesse comum na situação que
constitua o fato gerador da obrigação principal, nos termos do art. 124, I, do CTN.
RSTJ, a. 24, (226): 147-239, abril/junho 2012
209
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
III - Existindo a solidariedade, o Fisco tem total liberdade para escolher de
quem cobrar, podendo, pois, dirigir as suas ações contra todos ou apenas um dos
devedores.
IV - Uma vez que o julgamento definitivo no âmbito administrativo foi no
sentido de reconhecer o não cabimento de acréscimos moratórios antes da
decisão da lide, por não estar ainda definitivamente constituído o crédito
tributário, não pode o julgador agravar a situação do contribuinte, para fixar
como termo inicial para a incidência de juros moratórios a data do vencimento do
crédito tributário.
V - Apelação parcialmente provida.
Opostos embargos declaratórios, restaram rejeitados, com a seguinte
ementa:
Processual Civil. Embargos declaratórios atacando omissão em decisão
anterior que não teria apreciado a questão atinente à inexistência da figura da
solidariedade à falta de outro contribuinte. Julgado embargado que enfrentou
a matéria, asseverando que a solidariedade (igualmente a decorrente do
CTN, Art. 124, I) não obriga seja feita a cobrança contra todos os devedores
(ou responsáveis), senão que permite a cobrança contra qualquer um deles
indistintamente; esta a razão pela qual a autuação fiscal pode ser feita contra
um dos “solidários” apenas, sem que isso configure vicio de qualquer natureza,
f. 350. Inocorrência de omissão, portanto, tanto que, nos novos aclaratórios a
embargante se coloca contra a decisão atacada, ao textuar que tal não é possível,
por contrário a texto expresso de lei, f. 360. Embargos declaratórios improvidos.
São fatos do caso em apreço: a ora recorrente foi inscrita em Dívida
Ativa, sendo-lhe atribuída a responsabilidade tributária para recolhimento
de Imposto de Importação e de IPI incidentes sobre importação de bem, em
regime de isenção, que fora locado antes do prazo de cinco anos previsto no art.
137 do Decreto n. 91.030/1985, ante o uso irregular dos bens por entidade não
beneficiada pelo regime. A fiscalização tributária autuou apenas a ora recorrente,
responsável-locatária, para que recolhesse os valores devidos a título de IPI e II.
Sustenta a contribuinte que o juízo a quo ofendeu os arts. 535, I e II, do
CPC; 124, 142 e 202, I, do CTN; e 896, parágrafo único, do Código Civil.
Preliminarmente, pugna pela cassação do acórdão proferido no julgamento dos
embargos declaratórios, pois o juízo embargado permaneceu omisso quanto aos
argumentos levantados. No mérito, aponta que não existe solidariedade onde
não há devedor principal da dívida. Afirma que a CDA é nula, pois não consta
como devedor principal o locador do bem importado.
210
Jurisprudência da PRIMEIRA TURMA
Sustenta a Fazenda Nacional que o juízo a quo violou o art. 161 do CTN.
Aduz, em síntese, que os juros moratórios devem ser contados a partir do
vencimento do crédito tributário.
É o relatório.
VOTO
O Sr. Ministro Francisco Falcão (Relator):
RECURSO ESPECIAL DO CONTRIBUINTE
Quanto à omissão apontada, não a vislumbro, porquanto o Tribunal a
quo, mesmo sem ter examinado individualmente cada um dos argumentos
apresentados pelo vencido, adotou fundamentação suficiente para decidir de
modo integral a questão controvertida.
Quanto ao mérito, o locatário do bem importado com a especial isenção
do artigo 149, III, do Decreto n. 91.030/1985 foi responsabilizado pela Fisco,
com supedâneo no artigo 124, I, do CTN.
Na hipótese está configurada a solidariedade de fato, porquanto está o
recorrente enquadrado nos termos do artigo primeiro, haja vista que possui
interesse comum na situação.
Não obstante, ao lançar o auto de infração a Fazenda Nacional não incluiu
o responsável tributário principal, atacando diretamente o locatário, que assumiu
a responsabilidade em face de seu especial interesse na situação.
Todavia, conforme explicita o artigo 121 do CTN, o sujeito passivo da
obrigação principal é a pessoa obrigada ao pagamento do Tributo. Assim, devendo
o tributo de importação ser pago pelo importador, decorre que é dele a obrigação
principal de pagar pelo tributo e, sendo dele, da mesma forma, a responsabilidade
por burlar a isenção e ter contra si auto de infração sob este título.
Não se desconhece a possibilidade da Fazenda Nacional indicar responsável
solidário, in casu, solidariedade de fato, entretanto, sendo certa a legitimidade do
importador para responder pelo tributo, deve ele constar no auto de infração que
serve de supedâneo ao crédito tributário.
Tanto é assim que o artigo 134 do CTN expressamente dispõe que, nos
casos de impossibilidade de exigência do cumprimento da obrigação principal
RSTJ, a. 24, (226): 147-239, abril/junho 2012
211
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
pelo contribuinte, respondem solidariamente com este aqueles que intervieram
ou que se omitiram.
Conforme demonstrado o contribuinte originário, na hipótese dos autos, é
o importador.
Assim, a interpretação de tal dispositivo deixa clara a intenção do legislador
impor ao contribuinte de direito a responsabilidade pela obrigação.
Este Superior Tribunal de Justiça, em outras oportunidades, já reconheceu
que a responsabilidade tributária deve ser atribuída ao contribuinte de fato,
autor do desvio, e não terceiro de boa-fé, como na hipótese dos autos em que o
locador não tem a possibilidade de verificar a origem fiscal do aparelho.
Nesse diapasão, destaco o EDcl no AgRg no REsp n. 706.254-RO, Rel.
Min. Eliana Calmon, DJe de 6.5.2008, verbis:
Processual Civil e Tributário. Embargos de declaração. Efeitos modificativos.
Constatação de equívoco quanto à tese defendida no recurso especial e quanto
ao prequestionamento dos dispositivos tidos como violados. Imunidade
tributária (art. 155, § 2º, X, b da CF/1988). Destinação da mercadoria. Desvio.
Responsabilidade do comprador pelo pagamento do tributo.
1. Acolhem-se os embargos de declaração, com efeitos infringentes, para se
conhecer do recurso especial, uma vez constatado o equívoco quanto à tese
defendida pelo recorrente e quanto ao prequestionamento desta tese.
2. Posiciona-se esta Corte no sentido de reconhecer que, tratando-se
de imunidade tributária condicionada à destinação da mercadoria, se dada
destinação diversa responderá pelo tributo o responsável por esta destinação (o
comprador) e não o vendedor de boa-fé.
3. Embargos de declaração acolhidos, com efeitos modificativos, para se
conhecer do recurso especial e lhe dar provimento.
Na hipótese dos autos, está a se erigir uma nova forma de substituição
tributária, porquanto de solidariedade, estritamente, não se trata, haja vista que
não há devedor principal inscrito para a vinculação da solidariedade.
Nesse contexto, deve ser anulado o débito fiscal.
Tais as razões expendidas, dou provimento ao recurso especial da empresa
recorrente e julgo prejudicado o recurso especial da Fazenda Nacional.
É o voto.
212
Jurisprudência da PRIMEIRA TURMA
RECURSO ESPECIAL N. 1.300.213-RS (2011/0306347-0)
Relator: Ministro Teori Albino Zavascki
Recorrente: Rio Grande Energia S/A
Advogado: Márcio Louzada Carpena e outro(s)
Recorrido: Divanildo Pellicioli
Advogado: Luiza Stumm
EMENTA
Processual Civil. Executividade de sentença. Improcedência de
ação declaratória negativa. Reconhecimento, em favor do demandado,
da existência de obrigação de pagar. Incidência do art. 475-N, I, do
CPC. Matéria decidida pela 1ª Seção, sob o regime do art. 543-C do
CPC. Especial eficácia vinculativa (CPC, Art. 543-C, § 7º).
1. Nos termos do art. 475-N, I do CPC, é título executivo judicial
“a sentença proferida no processo civil que reconheça a existência da
obrigação de fazer, não fazer, entregar coisa ou pagar quantia”. Antes
mesmo do advento desse preceito normativo, a uníssona jurisprudência
do STJ, inclusive em julgamento de recurso representativo de
controvérsia (REsp n. 1.114.404, 1ª Seção, Min. Mauro Campbell
Marques, DJ de 1º.3.2010), já atestara a eficácia executiva da sentença
que traz definição integral da norma jurídica individualizada. Não há
razão alguma, lógica ou jurídica, para submeter tal sentença, antes da
sua execução, a um segundo juízo de certificação, cujo resultado seria
necessariamente o mesmo, sob pena de ofensa à coisa julgada.
2. Nessa linha de entendimento, o art. 475-N, I do CPC se
aplica também à sentença que, julgando improcedente (parcial ou
totalmente) o pedido de declaração de inexistência de relação jurídica
obrigacional, reconhece a existência de obrigação do demandante para
com o demandado. Essa sentença, como toda a sentença de mérito,
tem eficácia de lei entre as partes (CPC, art. 468) e, transitada em
julgado, torna-se imutável e indiscutível (CPC, art. 467), ficando a
matéria decidida acobertada por preclusão, nesse ou em qualquer
outro processo (CPC, art. 471), salvo em ação rescisória, se for o caso.
RSTJ, a. 24, (226): 147-239, abril/junho 2012
213
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
Precedente da 1ª Seção, julgado sob o regime do art. 543-C do CPC:
REsp n. 1.261.888-RS, Min. Mauro Campbell Marques, DJe de
18.11.2011.
3. Recurso especial provido.
ACÓRDÃO
Vistos e relatados estes autos em que são partes as acima indicadas, decide a
Egrégia Primeira Turma do Superior Tribunal de Justiça, por unanimidade, dar
provimento ao recurso especial, nos termos do voto do Sr. Ministro Relator. Os
Srs. Ministros Napoleão Nunes Maia Filho (Presidente) e Benedito Gonçalves
votaram com o Sr. Ministro Relator.
Ausente, justificadamente, o Sr. Ministro Francisco Falcão.
Licenciado o Sr. Ministro Arnaldo Esteves Lima.
Brasília (DF), 12 de abril de 2012 (data do julgamento).
Ministro Teori Albino Zavascki, Relator
DJe 18.4.2012
RELATÓRIO
O Sr. Ministro Teori Albino Zavascki: Em ação promovida por Divanildo
Pellicioli contra a Rio Grande Energia S/A, visando ao reconhecimento da
inexistência da obrigação de pagar o preço por fornecimento de energia elétrica,
o pedido foi acolhido apenas em parte, ficando reconhecida a obrigação de
pagar o valor exigido pela empresa fornecedora, excetuada a parcela referente ao
custo administrativo. Requerido, pela demandada, o cumprimento do julgado
pela quantia certa reconhecida pela sentença, o pedido foi indeferido sob o
fundamento de inexistência de título executivo, decisão que foi mantida pelo
Tribunal, por acórdão assim ementado:
Energia elétrica. Cumprimento de sentença de procedência em parte.
A sentença que julga procedente, em parte, o pedido de desconstituição de
débito não se constitui em título executivo hábil a fundar pedido de cumprimento
pelo réu de pagamento pelo autor da dívida reconhecida.
Hipótese em que a ré não ajuizou reconvenção.
Recurso desprovido (fl. 81).
214
Jurisprudência da PRIMEIRA TURMA
Opostos embargos de declaração, foram rejeitados (fls. 102-105).
Nas razões do recurso especial (fls. 111-127), a recorrente aponta, além de
divergência jurisprudencial, ofensa aos seguintes dispositivos: (a) art. 535, II,
do CPC, pois, não obstante a oposição de embargos de declaração, não foram
sanados os vícios apontados; (b) arts. 475-I e 475-N, I, ambos do CPC, ao
argumento de que a sentença reconheceu expressamente a existência da dívida
e, como tal, é título executivo, independentemente de reconvenção ou de nova
ação.
Sem contra-razões (fl. 156).
É o relatório.
VOTO
O Sr. Ministro Teori Albino Zavascki (Relator): 1. Não há nulidade
por omissão no acórdão que decide de modo integral e com fundamentação
suficiente a controvérsia posta. Foi o que ocorreu no caso: o Tribunal de origem
julgou, com fundamentação suficiente, a matéria devolvida à sua apreciação.
2. Segundo dispõe o art. 475-N, I do CPC, é título executivos judicial “a
sentença proferida no processo civil que reconheça a existência da obrigação
de fazer, não fazer, entregar coisa ou pagar quantia”. A questão que ora se põe
é a de saber se tal dispositivo se aplica às sentenças que, julgando improcedente
(parcial ou totalmente) pedido de declaração de inexistência de relação jurídica
obrigacional, reconhecem a existência da obrigação do demandante para com o
demandado. A resposta é, sem dúvida, positiva. Com efeito, veja-se.
3. Conforme reconhecem fontes doutrinárias de alta qualificação (v.g.:
CARNEIRO, Athos Gusmão. Cumprimento da sentença civil, RJ: Forense,
2007, p. 86; THEODORO JÚNIOR, Humberto. Curso de Direito Processual
Civil, volume II, 47ª ed., RJ: Forense, 2012, p. 74; DIDIER JR., Fredie;
CUNHA, Leonardo José Carneiro da; BRAGA, Paula Sarno; OLIVEIRA:
Rafael. Curso de Direito Processual Civil - Execução, vol. 5, 2ª ed., Salvador: Ed.
Podium, p. 159; CALMON, Petrônio. Sentença e títulos executivos judiciais,
apud: A nova execução de títulos judiciais, obra coletiva, coordenadores Sérgio
Renault e Pierpaolo Bottini, SP: Saraiva, 2006, p. 100; KNIJNIK, Danilo.
A nova execução, obra coletiva, coord. Carlos Alberto Alvaro de Oliveira,
RJ;Forense, 2006, p. 169), a norma do art. 475-N, I do CPC, introduzido pela
Lei n. 11.232/2005, visou a deixar assentado de modo expresso o que já existia
RSTJ, a. 24, (226): 147-239, abril/junho 2012
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REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
e fora percebido pela jurisprudência do STJ (a partir de precedentes da sua 1ª
Turma): há sentenças proferidas no processo civil que, embora não possam ser
qualificadas como condenatórias em sentido estrito, certificam integralmente a
existência da obrigação, exaurindo, portanto, a atividade cognitiva, cuja repetição
seria, consequentemente, desnecessária por absoluta inutilidade, porque o
seu resultado não poderia ser outro que não o já proclamado. Tais sentenças
são, portanto, dotadas de imediata eficácia executiva. Nesse sentido foram os
precedentes da 1ª Turma, no ano de 2004, (v.g: REsp n. 588.202, 1ª Turma, DJ
de 25.2.2004 e REsp n. 614.577, 1ª Turma, DJ de 3.5.2004, ambos de minha
relatoria), que foram depois adotados pela 2ª Turma (v.g.: REsp n. 602.469,
Min. Castro Meira, DJ de 31.8.2007) e pela 1ª Seção (v.g.: EREsp n. 502.618,
Min. João Otávio de Noronha, DJ de 1º.7.2005 e EREsp n. 609.266, de minha
relatoria, DJ de 11.9.2006), inclusive em regime de recurso representativo de
controvérsia (REsp n. 1.114.404, 1ª Seção, Min. Mauro Campbell Marques,
DJ de 1º.3.2010), tendo servido de fundamento para a edição da Súmula n.
461-STJ (“O contribuinte pode optar por receber, por meio de precatório ou
por compensação, o indébito tributário certificado por sentença declaratória
transitada em julgado”).
A natural força executiva de sentenças dessa natureza foi assim sustentada,
em caso de minha relatoria:
Conforme assinalado anteriormente, ao legislador ordinário não é dado
negar executividade a norma jurídica concreta, certificada por sentença, se nela
estiverem presentes todos os elementos identificadores da obrigação (sujeitos,
prestação, liquidez, exigibilidade), pois isso representaria atentado ao direito
constitucional à tutela executiva, que é inerente e complemento necessário
do direito de ação. Tutela jurisdicional que se limitasse à cognição, sem as
medidas complementares necessárias para ajustar os fatos ao direito declarado
na sentença, seria tutela incompleta. E, se a norma jurídica individualizada está
definida, de modo completo, por sentença, não há razão alguma, lógica ou
jurídica, para submetê-la, antes da execução, a um segundo juízo de certificação,
até porque a nova sentença não poderia chegar a resultado diferente do da
anterior, sob pena de comprometimento da garantia da coisa julgada, assegurada
constitucionalmente. Instaurar a cognição sem oferecer às partes e principalmente
ao juiz outra alternativa de resultado que não um já prefixado representaria
atividade meramente burocrática e desnecessária, que poderia receber qualquer
outro qualificativo, menos o de jurisdicional. Portanto, repetimos: não há como
negar executividade à sentença que contenha definição completa de norma
jurídica individualizada, com as características acima assinaladas. Talvez tenha
sido esta a razão pela qual o legislador de 1973, que incluiu o parágrafo único do
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Jurisprudência da PRIMEIRA TURMA
artigo 4o do CPC, não tenha reproduzido no novo Código a norma do art. 290 do
CPC de 1939.
Interpretação sistemática do Código, especialmente depois das reformas que
lhe foram impostas a partir de 1994, permite que se vá mais longe. Imaginese sentença que, em ação declaratória, defina, com força de coisa julgada,
que a entrega de certa quantia de Pedro para Paulo foi a título de mútuo, e
não de doação, e que o prazo para devolvê-la deve ocorrer (ou já ocorreu) em
determinada data; ou que a ocupação do imóvel de Joana por Maria não é a título
de comodato, mas de locação, e que o valor mensal do aluguel é de R$ 300,00,
pagáveis no dia 30 de cada mês. Há, em tal sentença, como se percebe, definição
de norma jurídica individualizada, contendo obrigação da pagar quantia certa.
Se a definição dessa mesma norma estivesse representada em documento
particular assinado pelas partes e por duas testemunhas, ela constituiria título
executivo, nos termos do inciso II, do art. 585 do CPC. Igualmente, se a definição
decorresse de documento firmado perante tabelião. Também teria força
executiva se tivesse sido definida por autocomposição (transação) referendada
pelo Ministério Público, ou pela Defensória Pública ou, ainda, pelos advogados
dos transatores. Ora, nos exemplos dados, a norma individualizada e a relação
jurídica correspondente têm grau de certeza muito mais elevado: elas foram
definidas em processo de que participaram não apenas as partes, mas também os
seus advogados, e, sobretudo, o próprio Estado-juiz, dando ao ato certeza oficial.
Nessas circunstâncias, negar força de título executivo a esta espécie de sentença
seria atentar contra o sistema processual, sua lógica e os valores nele consagrados
(voto de relator proferido no REsp n. 614.577, citado).
4. Essa linha de fundamentação é inteiramente aplicável às hipóteses como
a dos autos: ao julgar improcedente o pedido de declaração de inexistência
da relação jurídica obrigacional, a sentença acabou exaurindo inteiramente a
atividade de certificação da existência da obrigação, inclusive no que se refere aos
sujeitos e à natureza da relação jurídica, bem como ao valor e à exigibilidade da
prestação. Nada mais resta a certificar. Ora, essa sentença, como toda a sentença
de mérito, tem eficácia de lei entre as partes (CPC, art. 468) e, transitada em
julgado, torna-se imutável e indiscutível (CPC, art. 467), ficando a matéria
decidida acobertada por preclusão, nesse ou em qualquer outro processo (CPC,
art. 471), salvo em ação rescisória, se for o caso. É descabido o raciocínio - que
às vezes comanda, ao menos implicitamente, certas afirmações em doutrina e
jurisprudência -, de que somente as sentenças de procedência têm a força de
preceito e podem se revestir da imutabilidade da coisa julgada. Também as de
improcedência têm tais propriedades, e as têm em idêntico grau de intensidade.
Elas também são, como é notório, sentenças de acertamento. Eis, a propósito, a
lição didática de Cândido Dinamarco:
RSTJ, a. 24, (226): 147-239, abril/junho 2012
217
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
Na realidade, o que mais comumente ocorre no processo de conhecimento
é que o juiz não decide somente a demanda do autor, mas as demandas
contrapostas das partes. Ao ofertar a resposta à inicial, o réu apresenta também a
sua demanda, que ordinariamente consiste na pretensão à rejeição da demanda
do autor (...). O autor pediu a condenação do réu a pagar, o réu pede a declaração
de que nada deve (improcedência da demanda do autor) - eis as demandas
contrapostas. A tutela jurisdicional será deferida, pela sentença de mérito, àquele
cuja pretensão for acolhida pelo juiz (procedência ou improcedência da demanda
inicial, ou ‘da ação’, como se costuma dizer) (DINAMARCO, Cândido Rangel.
Instituições de direito processual civil, vol. III, SP: Malheiros, 2001, p. 195).
Caberia perguntar, assim, que outra utilidade ou finalidade poderia ter,
em casos como o dos autos, uma nova ação cognitiva que viesse a ser movida
pelo credor, cujo direito já está reconhecido e certificado de modo integral e
irreversível. Nenhuma, pois a sentença não poderia, sob pena de ofensa à coisa
julgada, ter outro resultado que não o de, novamente, reconhecer a existência da
obrigação. O único acréscimo que dela poderia resultar seria o de um ritualístico
e sacramental “eu condeno a pagar”, que, além de não poder ser negado pelo
juiz, é inteiramente dispensável, já que, conforme registrado no precedente antes
citado, o dever de prestar é componente essencial da própria relação jurídica a
que se refere. Em outras palavras: se já está judicialmente reconhecido que a
obrigação existe e está vencida, o dever da entrega da correspondente prestação
é decorrência natural e necessária, prescindindo de nova intermediação judicial
para que isso ocorra. Não fosse assim, não haveria como justificar a força
executiva dos títulos extrajudiciais.
5. Na verdade, em demandas como a que deu origem ao presente recurso em que buscou provimento judicial que certificasse a inexistência de uma relação
jurídica obrigacional -, a procedência e a improcedência do pedido representam
o verso e o reverso inseparáveis da mesma moeda: o julgamento de mérito
importará necessariamente um juízo de certeza sobre a existência ou sobre a
inexistência da obrigação, sendo que, em qualquer dos casos, a sentença terá
eficácia preceitual para as partes, como verdadeira norma individualizada (“lei
entre as partes”) e, transitando em julgado, será imutável e indiscutível, salvo
por rescisória, se for o caso. Quando improcedente, conferirá, portanto, tutela
jurisdicional em favor do demandado, independentemente de reconvenção. Aliás,
em alguns casos, a norma processual deixa expresso esse potencial efeito dúplice,
sendo exemplos inequívocos as sentenças de mérito em ações possessórias
(CPC, art. 920), em ações de consignação em pagamento (CPC, art. 899, §
2º) e em ações de prestação de contas (CPC, art. 918). A reconvenção, como é
218
Jurisprudência da PRIMEIRA TURMA
sabido, somente se presta para decidir outra causa, fundada em relação jurídica
de direito material distinta, que, embora conexa com a da ação principal (CPC,
art. 315), com ela não se confunde. Conforme assinalou Pontes de Miranda, “a
pretensão, ou a ação, que é objeto da reconvenção, tem de ser diferente da que é
exercida na ação contra o réu” (MIRANDA, Pontes de. Comentários ao Código
de Processo Civil, Tomo V, RJ: Forense, 1974, p. 161). E conclui, mais adiante,
em exemplo que retrata, mutatis mutandis, o que aqui está em causa: “se, contra
ação declaratória positiva, o réu, defendendo-se, pede a declaração negativa, não
há reconvenção” (op.cit., p. 162). Não é outra a lição de Barbosa Moreira, que, ao
tratar do interesse processual em reconvir, assevera: “Este requisito falta sempre
que a matéria possa ser alegada, com idêntico efeito prático, em contestação.
Por exemplo: não se pode reconvir para pedir simplesmente a declaração de
inexistência do mesmo direito postulado na ação originária” (MOREIRA, José
Carlos Barbosa. O novo processo civil brasileiro, 27ª ed., RJ: Forense, 2008, p.
45). Em circunstâncias como essa, a falta de interesse jurídico em reconvir está,
pois, justamente nisso: a sentença de mérito julga julga a causa inteiramente
e, sendo de improcedência, confere ao demandado a tutela jurídica de que
necessita, com o mesmo efeito prático da reconvenção.
6. Reafirma-se, assim, o que ficou ao início registrado: o art. 475-N, I
do CPC, segundo o qual é título executivos judicial “a sentença proferida
no processo civil que reconheça a existência da obrigação de fazer, não fazer,
entregar coisa ou pagar quantia”, se aplica também às sentenças que, julgando
improcedente (parcial ou totalmente) o pedido de declaração de inexistência
de relação jurídica obrigacional, reconhecem a existência da obrigação do
demandante para com o demandado. Atentos doutrinadores perceberam esse
fenômeno (WAMBIER, Luiz Rodrigues; WAMBIER, Teresa Arruda Alvim;
e MEDINA, José Miguel Garcia. Breves Comentários à nova sistemática
processual civil, SP: RT, 2006, p 167; JORGE, Flávio Cheim; DIDIER
JR, Fredie; e RODRIGUES, Marcelo Abelha. A terceira etapa da reforma
processual civil, SP: Saraiva, 2006, p. 173-174; SANTOS, Ernani Fidélis dos.
As reformas de 2005 do Código de Processo Civil, SP: Saraiva, 2006, p. 31;
CARMONA, Carlos Alberto. “Cumprimento da sentença conforme a Lei
11.232 de 2005”, apud Processo Civil - aspectos relevantes - vol. 2, obra coletiva,
Coord. Bento Herculano Duarte e Ronnie Preuss Duarte, SP: Método Editora,
2007, p. 15). No plano da jurisprudência, esse entendimento tem a chancela da
1ª Seção do STJ, em julgamento sob o regime do art. 543-C do CPC, tratando
de caso idêntico ao presente (REsp n. 1.261.888-RS, Min. Mauro Campbell
RSTJ, a. 24, (226): 147-239, abril/junho 2012
219
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
Marques, DJe de 18.11.2011), cujos fundamentos foram sumariados na seguinte
ementa:
Processual Civil. Recurso especial representativo de controvérsia. Art.
543-C do CPC. Sentença que condena concessionária de energia elétrica em
obrigação de não fazer (impedimento de corte no fornecimento) e declara legal
a cobrança impugnada em juízo, salvo quanto ao custo administrativo de 30%
referente a cálculo de recuperação. Aplicação do art. 475-N, inc. I, do CPC pela
concessionária em relação à parte do que foi impugnado pelo consumidor na fase
de conhecimento. Possibilidade no caso concreto.
1. Com a atual redação do art. 475-N, inc. I, do CPC, atribuiu-se “eficácia
executiva” às sentenças “que reconhecem a existência de obrigação de pagar
quantia”.
2. No caso concreto, a sentença que se pretende executar está incluída nessa
espécie de provimento judicial, uma vez que julgou parcialmente procedente o
pedido autoral para (i) reconhecer a legalidade do débito impugnado, embora
(ii) declarando inexigível a cobrança de custo administrativo de 30% do cálculo
de recuperação de consumo elaborado pela concessionária recorrente, e (iii)
discriminar os ônus da sucumbência (v. fl. 26, e-STJ).
3. Recurso especial provido. Acórdão submetido ao regime do art.543-C do
CPC e da Resolução STJ n. 8/2008.
Cumpre observar que, considerada a especial eficácia vinculativa desse
julgado (CPC, art. 543-C, § 7º), impõe-se sua aplicação, nos mesmos termos,
aos casos análogos, como o dos autos.
7. Diante do exposto, dou provimento ao recurso especial, nos termos da
fundamentação. É o voto.
RECURSO ESPECIAL N. 1.303.543-RJ (2010/0170845-3)
Relator: Ministro Napoleão Nunes Maia Filho
Recorrente: Crisco Empreendimentos S A
Advogado: Nanci Gama e outro(s)
Recorrido: Município do Rio de Janeiro
Procurador: Gustavo da Gama Vital de Oliveira e outro(s)
220
Jurisprudência da PRIMEIRA TURMA
EMENTA
Recurso especial. Tributário, Processual Civil e processo
administrativo fiscal. Art. 535 do CPC. Ausência de contradição ou
omissão. Arts. 594 do CC e 110 do CTN. Ofensa não demonstrada.
Ação anulatória de lançamento tributário. ISSQN. Transmissão
televisa, licenciamento de produtos e propaganda estática. Direito
de uso e exploração de imagem de clube de futebol, com o qual
a recorrente firmara contratos de licença para uso de marca e de
exploração de espaços publicitários. Atividades equiparadas pela
autoridade fiscal à locação de bens móveis, quando do autuação.
Modificação do critério jurídico adotado pelo Fisco no lançamento
pelo Judiciário, para incluir as atividades da empresa em outro item
da lista de serviços. Erro de direito. Inadmissibilidade. Arts. 142 e 146
do CTN. Aplicabilidade da Súmula Vinculante n. 31-STF. Recurso
especial parcialmente conhecido e, nessa parte, parcialmente provido,
para cancelar o auto de infração apenas quanto à cobrança de ISSQN
e multa decorrentes das atividades equiparadas à locação de bens
móveis, sem prejuízo da renovação da autuação, em forma regular, se
for o caso.
1. Ausentes a contradição ou a omissão alegadas, porque o
acórdão impugnado solveu a controvérsia integralmente, não se
reconhece qualquer maltrato ao art. 535, incisos I e II do CPC.
2. A ora recorrente propôs ação objetivando a anulação de
lançamento tributário efetuado pelo Município do Rio de Janeiro
para a cobrança de ISSQN, mais multa por descumprimento de
obrigação acessória (não emissão de notas fiscais), sobre atividades de
licenciamento de produtos e propaganda estática, ambas equiparadas
à locação de bens móveis, conforme legislação tributária municipal.
3. Essas atividades eram decorrentes de contrato de licenciamento
com clube de futebol, por meio do qual foi assegurado à empresa,
mediante remuneração, o direito exclusivo de utilizar e explorar, no
território brasileiro e no exterior, os direitos à denominação e ao
símbolo do licenciante, às marcas registradas ou pendentes de registro
em seu nome, bem como o direito ao saldo positivo de parcela das
receitas das vendas de ingressos e bilheteria cabíveis ao licenciamento,
além do direito de explorar a imagem do clube e de seu patrimônio
RSTJ, a. 24, (226): 147-239, abril/junho 2012
221
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
para todos os fins comerciais lícitos, incluindo, exibição fotográfica,
reprodução audiovisual, fixação, transmissão e retransmissão junto ao
público de quaisquer atividades desportivas, eventos ou espetáculos de
que participasse o licenciante.
4. O Tribunal Estadual assentou que os bens disponibilizados
onerosamente em favor de terceiros pela apelante no desempenho de
seu mister pertencem a outrem (o clube de futebol); por isso, mostrase equivocado o entendimento de que tal relação consubstancia uma
locação e não um serviço; aduziu, ainda, que a atividade desempenhada
pela apelante configuraria efetivamente a prestação de serviço exigida
para o fim de incidência do ISS, a uma, porque é prestada a terceiros,
a duas, porque se relaciona com bens que não são da sua propriedade.
5. Compete privativamente à autoridade administrativa fiscal
verificar tanto a ocorrência da hipótese de incidência, ou seja, a
descrição legislativa de acontecimento ou situação que pode
desencadear o nascimento de uma obrigação tributária, como o fato
imponível, ou o fato gerador concreto, ou seja, aquele emergente da
situação singular e que se subsume à hipótese de incidência, nos exatos
termos do art. 142 do CTN.
6. No caso concreto, o que se constata é que a autoridade
administrativa reconheceu o fato gerador concreto para fins de
incidência do ISSQN como sendo uma locação de bens móveis, embora,
essa não seja a real atividade desenvolvida pela empresa, como bem
captaram o Julgador Singular e o Tribunal Estadual; todavia, não cabe
ao Judiciário substituir a Autoridade Fiscal, para dar outra qualificação
jurídica aos fatos por ela já analisados, corrigindo, dessa forma,
típico erro de direito do lançamento, pois isso afronta o princípio da
legalidade, do qual o princípio da tipicidade fechada é corolário, bem
como o da segurança jurídica.
7. A Primeira Seção desta Corte encampou a Súmula n. 227TFR, segundo a qual a mudança de critério jurídico adotado pelo
Fisco não autoriza a revisão de lançamento: REsp n. 1.130.545-RJ,
Rel. Min. Luiz Fux, DJe 22.2.2011, julgado sob o regime do art. 543C do CPC.
8. Se a Autoridade Fiscal enquadrou a atividade da recorrente
como locação de bens móveis, e o STF já decidiu que sobre ela não
222
Jurisprudência da PRIMEIRA TURMA
incide ISS (Súmula Vinculante n. 31), mostra-se ilegal a modificação
judicial desse critério jurídico, para fins de validar o lançamento
efetuado.
9. Ante o exposto, conhece-se parcialmente do recurso e,
nessa parte, dá-se-lhe parcial provimento para julgar parcialmente
procedente o pedido da ação anulatória, cancelando-se as cobranças
descritas nos itens I a VI do auto de infração, que remanesce, no
entanto, quanto ao mais, sem prejuízo de novo lançamento, de forma
regular, se for o caso.
10. Tendo em vista a sucumbência recíproca, determina-se a
compensação, por igual, das despesas e dos honorários advocatícios.
ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros da Primeira
Turma do Superior Tribunal de Justiça, na conformidade dos votos e das notas
taquigráficas a seguir, por unanimidade, conhecer parcialmente do recurso
especial e, nessa parte, dar-lhe parcial provimento, nos termos do voto do Sr.
Ministro Relator. Os Srs. Ministros Benedito Gonçalves, Francisco Falcão e
Teori Albino Zavascki votaram com o Sr. Ministro Relator.
Licenciado o Sr. Ministro Arnaldo Esteves Lima.
Dra. Alexandra Costa Pires, pela parte recorrente: Crisco Empreendimentos
S/A.
Brasília (DF), 27 de março de 2012 (data do julgamento).
Ministro Napoleão Nunes Maia Filho, Relator
DJe 11.4.2012
RELATÓRIO
O Sr. Ministro Napoleão Nunes Maia Filho: 1. Trata-se de Recurso
Especial interposto por Crisco Empreendimentos S/A, com fulcro nas alíneas a e
c do art. 105, III da CF, em adversidade a acórdão prolatado pelo TJRJ, assim
ementado:
RSTJ, a. 24, (226): 147-239, abril/junho 2012
223
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
Apelação cível. Direito tributário. ISS. Ação anulatória de débito fiscal.
Sociedade anônima cujo objeto social consiste na realização de empreendimentos
relacionados à exploração comercial de marcas e símbolos esportivos. Rendas
auferidas pela companhia com o licenciamento de produtos, publicidade
estática e transmissões televisivas dos jogadores do Clube de Regatas Vasco
da Gama. Não emissão das notas fiscais no período compreendido entre 2000
e 2002. Autos infracionais lavrados pela municipalidade. Sentença a quo que
julgou improcedente a demanda anulatória. Apelo ofertado pela parte autora.
Alegação de não incidência do ISS, por entender que suas atividades caracterizam
mera locação de bem móvel, cujas funções de licenciamento se resumem
numa obrigação de dar, circunstância oposta da prestação de serviços que se
consubstancia numa obrigação de fazer. Mostra-se perfeitamente constitucional
sujeitar a autora à imposição do imposto em comento cujo fato gerador é a
efetiva prestação de serviços. Manutenção do decisum. Legalidade do ato. A
empresa, ao captar um clube na qualidade de intermediadora que é, presta
serviços típicos de divulgação e comercialização dos bens que este clube possui.
Serviços de intermediação previstos na Lei n. 691/1984. Ocorrência do fato
gerador. Incidência do ISS. Recurso conhecido e provido (fls. 350).
2. Opostos Embargos Declaratórios ao referido acórdão, foram rejeitados
(fls. 390-394).
3. Em seu Apelo Raro, sustenta a empresa recorrente, preliminarmente,
ofensa ao art. 535, I e II do CPC, argumentando que o aresto foi contraditório,
porque, inicialmente, afirmou que a questão versada compreenderia a análise do
ato administrativo de autuação, mas, ao final, sem qualquer coerência, ignorou a
capitulação legal conferida (locação de bens móveis) para enquadrar a atividade da
recorrente em outro item da lista de serviço (agência, intermediação), olvidando que o
lançamento é ato privativo das autoridades fiscais e não do Judiciário.
4. Ademais, teria havido omissão na análise expressa dos arts. 594 do
CC e 110 do CTN, e do art. 150, IV da CF, este último ante a assertiva de
inconstitucionalidade da multa por descumprimento de obrigação acessória em
razão de seu caráter confiscatório.
5. No mérito, afirma ofensa aos arts. 128 do CPC e 142 do CTN,
porquanto o aresto impugnado teria fugido dos limites da lide, tratando a ação
como se declaratória fosse, ignorando que lhe competia analisar a validade do ato
administrativo de lançamento que lhe foi submetido, e não dizer se a recorrente
sujeitava-se ou não ao ISS.
6. Discorre sobre o conceito de serviço previsto no Código Civil, e que
suas atividades - transmissão televisiva, licenciamento de produtos e propaganda
224
Jurisprudência da PRIMEIRA TURMA
estática representam tão somente o direito de uso e exploração da imagem de
clube de futebol, com o qual firmara contratos de licença para uso de marca e
de exploração de espaços publicitários, não envolvendo qualquer obrigação de
fazer que possa ser compreendida como serviço. Outrossim, reforça ter sido a
própria fiscalização, no auto de infração que se pretende anular, que capitulou as
atividades da recorrente como locação de bens móveis, não cabendo ao Judiciário,
sob pena de ofensa aos arts. 128 do CPC e 142 do CTN, substituir o ato de
lançamento, capitulando a atividade da autora em outro item da lista de serviços.
7. Cita jurisprudência do STF sobre a inadmissibilidade de cobrança de
ISS sobre locação de bens móveis.
8. Com contrarrazões (fls. 553-559), o Recurso Especial foi inadmitido
e o Extraordinário sobrestado (art. 543-C do CPC). Interposto Agravo de
Instrumento para esta Corte (Ag n. 1.349.033-RJ), determinei a sua conversão
em Recurso Especial para submissão da controvérsia ao crivo desta Primeira
Turma deste STJ (fls. 624).
9. É o que havia de relevante para relatar.
VOTO
O Sr. Ministro Napoleão Nunes Maia Filho (Relator): 1. Verifica-se dos
autos que a ora recorrente propôs ação objetivando a anulação de lançamento
tributário efetuado pelo Município do Rio de Janeiro para a cobrança de
ISSQN, mais multa por descumprimento de obrigação acessória (não emissão
de notas fiscais), sobre atividades assim referidas no respectivo ato:
I) Art. 44 da Lei n. 691/1984 (código 1111035). Penalidade: art. 51, inciso I, item
1, da Lei n. 691/1984. Multa de 50% (cinquenta por cento) sobre o imposto devido.
Ocorrência: Deixou de recolher - documentos emitidos e livros escriturados o
ISS incidente sobre as receitas relativas a serviços de locação de bens móveis licenciamento de produtos, conta 7.1.9.99.00.00.011-7 (ano 2000) e 4.1.02.01.02
(ano 2001) Rendas de Licenciamento de Produtos, previsto no art. LXXIX do art. 8º
da Lei n. 691/1984, com redação dada pela Lei n. 1.194/1987 (...).
II) Art. 44 da Lei n. 691/1984 (cód. 1111248). Penalidade. art. 51, inciso I, item
5, alínea a da Lei n. 691/1984, alterada pela Lei n. 2.715/1998. Multa de 90%
(noventa por cento) sobre o imposto devido. Ocorrência; Deixou de recolher o
ISS referente ao serviço de locação de bens móveis - licenciamento de produtos conta 4.1.02.01.01 Rendas de Licenciamento de Produtos, previsto no inciso LXXIX
do artigo 8º da Lei n. 691/1984, com redação dada pela Lei n. 1.1.94/1987 (...).
RSTJ, a. 24, (226): 147-239, abril/junho 2012
225
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
(...).
IV) Art. 44 da Lei n. 691/1984 (código 1111035). Penalidade: art. 51, inciso
I, item 1, da Lei n. 691/1984. Multa de 50% (cinquenta por cento) sobre o
imposto devido. Ocorrência: Deixou de recolher - documentos emitidos e livros
escriturados - o ISS incidente sobre as receitas relativas a serviços de locação
de bens móvéis - publicidade estática, conta 7.1.9.99.00.00.0095 (ano 2000) e
4.1.02.01.01 (ano 2001) Rendas de Publicidade Estática, previsto no LXXIX do
artigo 8º da Lei n. 691/1984, com redação dada pela Lei n. 1.1.94/1987 (...).
V) Art. 44 da Lei n. 691/1984 (cód. 1111348). Penalidade: art. 51, inciso I, item
5, alínea a da Lei n. 691/1984, alterada pela Lei n. 2.715/1998. Multa de 90%
(noventa por cento) sobre o imposto devido. Ocorrência: Deixou de recolher o
ISS referente ao serviço de locação de bens móveis - publicidade estática, conta
4.1.02.01.01 Rendas de Publicidade Estática, previsto no inciso LXXIX do art. 8º da
Lei n. 691/1984, com redação dada pela Lei n. 1.194/1987, no período de março
de 2001 a agosto de 2002 (...).
(...).
VII) Art. 44 da Lei n. 691/1984 (cód. 1111248). Penalidade: art. 51, inciso I,
item 5, alínea a da Lei n. 691/1984, alterada pela Lei n. 2.715/1998. Multa de 90%
(noventa por cento sobre o imposto devido). Ocorrência: Deixou de recolher o ISS
referente ao serviço de diversões públicas - venda de direitos à transmissão pela
televisão, conta 7.1.9.99.00.00.010-9 - Rendas de Transmissão Televisiva, previsto
no item 4 do inciso LX do artigo 8º da Lei n. 691/1984, com redação dada pela Lei
n. 1.194/1987, no mês de dezembro de 2000.
VIII) Art. 48 da Lei n. 691/1984, combinado com o art. 183, inciso I, observado
o art. 194, todos do Decreto n. 10.514/1991 (cód. 1210670). Penalidade: art. 51,
inciso II, item 1, alínea b da Lei n. 691/1984, com as alterações introduzidas pela
Lei n. 2.277/1994. Multa de 5% do valor da operação. Ocorrência: Não emitiu
Notas Fiscais Fatura de Serviço, para os serviços e mês especificados no item VII
acima, para operações no valor de R$ 7.715.837,89 (sete milhões, setecentos e
quinze mil, oitocentos e trinta e sete reais e oitenta e nove centavos, ocasionando
multa no valor de R$ 385.791,89 (trezentos e oitenta e cinco mil, setecentos e
noventa e um reais e oitenta e nove centavos), coforme Quadro Demonstrativo II,
em anexo (fls. 48-50).
2. Na inicial da Ação Declaratória a ora recorrente informou que celebrou
contrato de licenciamento com o Club de Regatas Vasco da Gama, por meio do
qual lhe foi assegurado, mediante remuneração, o direito exclusivo de utilizar
e explorar, no território brasileiro e no exterior, os direitos à denominação e ao
símbolo do licenciante, às marcas registradas ou pendentes de registro em seu nome,
bem como o direito ao saldo positivo de parcela das receitas das vendas de ingressos
e bilheteria cabíveis ao licenciamento, além do direito de explorar a imagem do
226
Jurisprudência da PRIMEIRA TURMA
licenciante e de seu patrimônio para todos os fins comerciais lícitos, incluindo, exibição
fotográfica, reprodução audiovisual, fixação, transmissão e retransmissão junto ao
público, de quaisquer atividades desportivas, eventos ou espetáculos de que participe o
licenciante (fls. 18).
3. Considerando essa situação fática e o ato de lançamento, o acórdão
impugnado, na esteira do já havia decidido o ilustre Julgador singular, aduziu o
seguinte, no que interessa:
Conforme se infere da peça exordial, a sociedade empresária Crisco
Empreendimentos S/A moveu ação anulatória de débito fiscal em face do
Município do Rio de Janeiro, sob o rito ordinário, sustentando não incidência do
ISSQN sobre as rendas advindas do licenciamento de produtos, propaganda
estática, transmissão televisa dos jogadores do clube recreativo Vasco da Gama,
razão pela qual deve ser desconstituído o Auto de Infração n. 121.005, por não
estar obrigada a emitir as notas fiscais dos supostos serviços.
A sentença a quo de fls. 218-225 julgou improcedente o pleito autoral
condenando a autora no pagamento das despesas processuais e honorários
advocatícios de sucumbência, estes fixados em 5% sobre o valor atribuído à
causa.
(...).
A questão versada no presente litígio, embora possa vislumbrar matéria
controvertida, na verdade, diante da peculiaridade posta neste caso concreto,
impõe reconhecimento voltado para a análise positiva e legal do ato
administrativo que autuou a empresa apelante, não havendo na sentença
prolatada qualquer erronia.
O ponto nodal da lide gira em torno da legalidade ou não de incidência do ISS
(Imposto sobre Serviços) sobre as rendas auferidas pela parte autora decorrentes
dos atos de licenciamento de produtos e símbolos esportivos, publicidade
estática e transmissão televisa que esta pratica no desempenho típico de suas
atividades comerciais.
Enquanto a ora apelante pugna pela ausência de previsão legal e
inconstitucionalidade do item 79 da lista de serviços a que se referia o Decreto-Lei
n. 406/1968, bem como a não incidência do ISS, por entender que suas atividades
caracterizam mera locação de bens móvel, cujas funções de licenciamento se
resumem numa obrigação de dar, circunstância essa oposta da prestação de
serviços que se consubstancia numa obrigação de fazer, a ré afirma que se mostra
perfeitamente constitucional sujeitar a autora à imposição do imposto cujo fato
gerador é a efetiva prestação de serviços.
Num primeiro aspecto, cumpre-nos aferir qual a atividade exercida pela autora,
e em razão dessas atividades desenvolvidas, se há ou não a ocorrência do fato
RSTJ, a. 24, (226): 147-239, abril/junho 2012
227
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
gerador do ISS. Ou seja, se as atividades por ela desempenhadas caracterizariam
obrigação de dar ou obrigação de fazer.
Como é cediço, a tributação no Estado Democrático de Direito constitui
instrumento da sociedade, pois é exatamente através das receitas tributárias que
são viabilizadas a manutenção da estrutura política e administrativa do Estado e
as ações de governo.
A Constituição Federal da República, por sua vez, cuidou de definir as
possibilidades e limites da tributação, traçando as respectivas competências
tributárias dos entes federativos.
O ISSQN (Imposto sobre serviço de qualquer natureza) é de competência dos
municípios e vem regulado no art. 156, inciso III da Constituição da República
Federativa do Brasil, que assim dispõe:
Art. 156. Compete aos Municípios instituir impostos sobre:
III - serviços de qualquer natureza, não compreendidos no art. 155, II,
definidos em lei complementar.
Dessa forma, pode-se constatar que o tema vem sendo regulado pelo Decreto
Lei n. 406/1968, pela Lei n. 691/1984 e pela Lei n. 1.194/1987, sendo certo que
a Lei Complementar n. 116/2003 não dispõe sobre o ISSQN e, portanto, não se
aplica a hipótese em comento.
Isso porque essa matéria controvertida refere-se a fatos desenvolvidos
efetivamente nos anos de 2000 e 2002, anteriores, por via de consequência, a Lei
Complementar n. 116/2003.
O ISS, segundo a doutrina, consiste num fazer em favor de terceiros, ou seja,
reinvindica o caráter de bilateralidade, tornando necessária a existência de duas
pessoas diversas: de um lado, o prestador e do outro o tomador dessa obrigação
de fazer.
O conceito de serviço supõe, portanto, uma relação com outra pessoa, a quem
se serve.
Assim, conforme ensinamento do ilustre Professor Aires F. Barreto, em sua
obra ISS na Constituição e na Lei - Dialética, 2003, página 29, conceitua-se serviço
como todo esforço humano desenvolvido em benefício de outra pessoa (em favor
de outrem).
Pois bem, da análise do contrato social de fls. 22, especialmente o artigo 3º,
verifica-se que a companhia Crisco Empreendimentos S/A tem por objeto a
realização de empreendimentos relacionados com a exploração comercial de
marcas e símbolos esportivos. Em outras palavras, a mesma desenvolve suas
atividades lucrativas por meio da exploração econômica de marcas, símbolos e
imagens televisivas pertencentes aos clubes esportivos.
228
Jurisprudência da PRIMEIRA TURMA
O DL n. 406/1968, aplicável à hipótese, estabelece que o fato gerador do ISS é a
prestação de serviço previsto em lei específica.
A Lei n. 691/1984, por sua vez, que trata do Código Tributário do Município do
Rio de Janeiro, prevê, em seu art. 8º, incisos LX e LXXIX, o seguinte:
Art. 8. O Imposto sobre Serviços de Qualquer Natureza tem como fato
gerador a prestação, por empresa ou profissional autônomo, com ou sem
estabelecimento fixo, de serviços:
XLVII - agenciamento, corretagem ou intermediação de direitos da
propriedade industrital, artística ou literária;
LX - diversões públicas:
1. Vetado, cinemas, Vetado, auditórios, parques de diversões, táxi
dancings e congêneres;
2. bilhares, boliches, corridas de animais e outros jogos;
3. exposições, com cobrança de ingresso;
4. bailes, shows, festivais, recitais e congêneres, inclusive espetáculos
que sejam também transmitidos, mediante compra de direitos para tanto,
pela televisão ou pelo rádio;
5. jogos eletrônicos;
6. competições esportivas ou de destreza física ou intelectual com
ou sem a participação do expectador, inclusive a venda de direitos a
transmissão pelo rádio ou pela televisão;
7. execução de música, individualmente ou por conjuntos;
LXXIX - locação de bens móveis, inclusive arrendamento mercantil.
Ora, muito embora o STF, no julgamento do RE n. 116.121 tenha declarado
a ilegitimidade da expressão da locação de bens móveis, contida no item 79 da
Lista de Serviços anexa ao Decreto-Lei n. 406/1968 (na redação dada pela Lei
Complementar n. 56/1987), há que se reconhecer que os serviços prestados pela
recorrente não se equiparam a locação.
Não há como respaldar a tese do apelante, vez que há efetivamente entre
o clube e a Crisco Empreendimentos S/A a perfectibilização de um contrato
bilateral tendente ao oferecimento de um serviço. De um lado, na qualidade de
prestador, o autor, e do outro, na qualidade de tomar, o clube.
A empresa, ao captar sociedades esportivas na qualidade de intermediadora
que é, presta serviços típicos de divulgação e comercialização dos bens que
esses clubes possuem, quais sejam: suas marcas, símbolos, bandeiras, distintivos,
imagens televisivas de atletas, etc.
Dessa forma, forçoso reconhecer que a sociedade apelante não está
desempenhando uma mera obrigação de dar como faz crer, mas sim,
RSTJ, a. 24, (226): 147-239, abril/junho 2012
229
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
desenvolvendo uma típica obrigação de fazer em relação aos clubes que
representa, pois, como visto, o recorrente se obriga a explorar comercialmente
as marcas e símbolos esportivos disponibilizados pelos seus clientes. E essa
atividade, notadamente, não está equiparada a uma locação, mas sim a um típico
trabalho para satisfação de terceiros (serviço).
Enquanto o clube, ao ceder a sua marca para a Crisco Empreendimentos S/A,
desempenha uma mera obrigação de dar, hipótese essa que afasta a incidência
do ISS por se tratar de locação de bem móvel (licença da marca e símbolos do
clube), a Crisco Empreendimentos S/A em relação ao clube e a terceiros exerce
típica obrigação de fazer, posto que restou obrigada a desempenhar serviços de
exploração comercial dessas marcas e símbolos perante terceiros.
Tal atividade gera lucro para si, receita para o clube licenciante, e possibilidade
de lucro para outras empresas que queiram se utilizar das marcas e símbolos dos
clubes que representa.
No mais, a apelante ao seu considerar licenciante da marca fazendo crer que
não desempenha serviços, mas sim locação de bens móveis, incorre em grave
equívoco.
A apelante não é propriamente licenciante das marcas e símbolos postos a sua
disposição pelos seus clientes. Esta continua ostentando a condição de licenciada,
pois, como visto, atua como simples mandatária do clube.
No mais, é certo que a autora não detém a propriedade das marcas que
comercializa, motivo pelo qual, ao autorizar que outros o façam pratica serviço
típico de exploração comercial (exploração de diversões públicas e agenciamento
de marcas) sujeita ao ISS, na qualidade de intermediadora que é (incisos LX e
LXVII - Lei n. 1.194 - de 30 de dezembro de 1987).
Em outras palavras, o clube, ao ceder a sua marca à Crisco Empreendimentos
S/A faz um esforço em favor dele próprio, não estando sujeito ao ISSQN. A Crisco
Empreendimentos S/A, por sua vez, ao comercializar as marcas de seus clientes
na qualidade de intermediadora que é, desempenha um esforço para satisfazer
terceiros, circunstância essa geratriz do tributo aqui discutido.
Nessa esteira de raciocínio, muito embora o licenciamento das marcas,
símbolos e imagens televisivas de um determinado clube para a Crisco
Empreendimentos S/A represente uma obrigação de dar e verdadeira locação de
bem móvel, circunstância essa que não gera a incidência de ISSQN, tal não ocorre
em relação à licença concedida pela Crisco Empreendimentos S/A a terceiros
interessados em veicular essas marcas e símbolos em seus produtos, pois, nesse
último caso, a licença não é um fim em si mesmo, mas sim um meio que a
Crisco Empreendimentos S/A dispõe para dar consecução aos seus serviços de
intermediação, agenciamento de marca e exploração de diversões públicas, cujos
fatos geradores encontram-se previstos na legislação tributária municipal.
230
Jurisprudência da PRIMEIRA TURMA
No mais, cumpre destacar que os bens disponibilizados onerosamente em
favor de terceiros pela apelante no desempenho de seu mister pertencem a
outrem (clube). Por isso, mostra-se equivocado o entendimento de que tal relação
consubstancia uma locação e não um serviço.
Por outro lado, o contribuinte não demonstrou efetivamente que o lançamento
efetuado pelo Município tenha recaído sobre as atividades não previstas como
hipóteses de incidência do imposto 1SS. deixando, portanto de comprovar o fato
constitutivo do direito invocado, quando tal ônus lhe cabia, ex vi do art. 333, I do
CPC.
Desta forma, conclui-se que a atividade desempenhada pela apelante
configura efetivamente a prestação de serviço exigida para o fim de incidência
do ISS, a uma, porque é prestada a terceiros, a duas, porque se relaciona com bens
que não são da sua propriedade.
Destarte, nossos Tribunais Superiores, consolidaram o entendimento segundo
o qual a Lista ISS, anexa aos diplomas legais mencionados, apresenta rol taxativo,
cujos itens, individualmente considerados, admitem interpretação extensiva.
Assim se cabe incidência de ISS sobre agenciamento de propriedade industrial,
obras literárias e artísticas, entendo ser cabível também a incidência de ISS sobre
agenciamento de marcas e símbolos esportivos.
Corrobora com esse entendimento, os argumentos esposados na r. sentença
de fls. 218-225, os quais passam a integrar o presente voto na forma do permissivo
regimental.
Por tais razões, nega-se provimento ao apelo, mantendo-se incólume o
decisum vergastado por seus próprios termos e doutos fundamentos (fls. 353356).
4. Por ocasião do julgamento dos Embargos Declaratórios acrescentou-se:
Os presentes Embargos de Declaração, não obstantes se revelem tempestivos,
justificando seu conhecimento, não podem ser acolhidos, pois a decisão ora
esgrimida não contém contradições e nem omissões, uma vez que na ementa
e no bojo do acórdão vergastado há esclarecimento devidamente fundamento
sobre a matéria esgrimida.
A questão que se pretende ver lançado no exame do caso se firma na avaliação
procedida pelo Embargado, no sentido de que a Embargante desempenha uma
típica obrigação de fazer, em relação ao clube representado, cuja atividade está
equiparada a um trabalho de prestação de serviço que objetiva a satisfação de
terceiros.
Cumpre ainda, esclarecer que a empresa pratica um serviço típico de
exploração comercial que se encontra de fato sujeito ao Imposto sobre Serviços
de Qualquer Natureza, conforme se pode verificar dos termos da Lei n. 1.194/1997.
RSTJ, a. 24, (226): 147-239, abril/junho 2012
231
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
Ou seja, quando o clube cede a sua marca a Embargante, Crisco
Empreendimentos S/A, o faz sem qualquer esforço e proveito dele e, por isso. não
se mostra aqui a presença efetiva dos pressupostos autorizadores do ISSQN.
Já na circunstância de a Crisco Empreendimentos S/A comercializar as marcas
de seus clientes, na qualidade de intermediária, na verdade, esse ato é específico
de um exercício cuja finalidade é satisfazer terceiro e nesse passo vincula-se a
incidência do ISSQN.
Nota-se, no entanto, que a idéia não se prende aos termos do artigo 594 do
Código Civil, uma vez que não se visa unicamente uma retribuição pelo contrato
desempenhado.
Além disso, a embargante não demonstrou concretamente que o lançamento
efetuado pelo embargado tenha recaído sobre atividades não previstas naquelas
hipóteses de incidência do imposto do ISSQN (fls. 392-393).
5. Afasta-se, de pronto, a assertiva de ofensa ao art. 535, inciso I do CPC
(contradição). Veja-se que a ora recorrente postulou a declaração de nulidade
do auto de infração e uma de suas ponderações era de que sua atividade não
caracterizaria uma prestação de serviço ou obrigação de fazer. E a sentença e o
acórdão impugnados apresentaram a argumentação que entenderam coerente
para o fim de afastar essa assertiva, o que, por óbvio, passava pela definição do
tipo de atividade desempenhada pela empresa.
6. Inexiste ainda as omissões apontadas. O Tribunal de origem apreciou
fundamentadamente a controvérsia, naquilo que pareceu suficiente para a
solução da controvérsia, sendo certo que julgamento diverso do pretendido não
traduz maltrato à norma processual citada (art. 535, II do CPC).
7. Aos Municípios, a Constituição conferiu a competência para a cobrança
do ISSQN, desde que não compreendidos no art. 155, II da Carta Magna, estando
fora do seu âmbito, portanto, as operações relativas à circulação de mercadorias
e sobre prestações de serviços de transporte interestadual e intermunicipal e de
comunicação, ainda que as operações e as prestações se iniciem no exterior (art. 155, II,
e 156, III da CF/1988).
8. Para sofrer a incidência do ISS, o serviço deve estar incluído na lista
de serviços que acompanha a Lei Complementar; em outras palavras, a
competência tributária dos Municípios atribuída pela CF está limitada à Lista
de Serviços que, em Lei complementar, define quais as hipóteses de incidência.
9. Essa lista, segundo a jurisprudência desta Corte e também do STF, é
taxativa, ou seja, não admite a utilização da analogia para estabelecer obrigação
232
Jurisprudência da PRIMEIRA TURMA
tributária não prevista em Lei, admitindo-se, no entanto, a interpretação
extensiva da cada item, para o fim de alcançar os serviços prestados sob
nomenclaturas diferentes, mas que correspondam em sua substância àqueles
listados expressamente. A questão restou pacificada nesta Corte, por meio de
recurso submetido ao rito do art. 543-C do CPC, conforme se depreende da
seguinte ementa:
Tributário. Serviços bancários. ISS. Lista de serviços. Taxatividade. Interpretação
extensiva.
1. A jurisprudência desta Corte firmou entendimento de que é taxativa a
Lista de Serviços anexa ao Decreto-Lei n. 406/1968, para efeito de incidência de
ISS, admitindo-se, aos já existentes apresentados com outra nomenclatura, o
emprego da interpretação extensiva para serviços congêneres.
2. Recurso especial não provido. Acórdão sujeito ao regime do art. 543-C do
CPC e da Resolução STJ n. 8/2008. (REsp n. 1.111.234-PR, Rel. Min. Eliana Calmon,
DJe 8.10.2009).
10. Nesse mesmo julgamento restou assentado que o exame de compatibilidade
dos serviços efetivamente prestados com aqueles previstos abstratamente na referida
Lista deve ser levado a termo pelas instâncias de origem, sendo inviável de ser
analisado em sede de Recurso Especial, nos termos da Súmula n. 7-STJ.
11. Registre-se, ainda, que a Primeira Seção deste STJ possui entendimento
tranquilo de que a discussão em torno do conceito de serviço para fins de incidência
do ISS é de cunho eminentemente constitucional (art. 156, inciso III, da Constituição
Federal), descabendo a esta Corte, por meio da via recursal eleita, tal apreciação, sob
pena de usurpação da competência conferida, tão-somente, ao Supremo Tribunal
Federal (AgRg no REsp n. 1.191.465-ES, Rel. Min. Mauro Campbel Marques,
DJe 10.3.2011).
12. Assim, saber se a atividade desenvolvida pela recorrente de uso e
exploração de produtos, marcas, imagem e espaços físicos e transmissão televisiva
constitui serviço para fins de incidência do ISS é tarefa a ser descortinada pelo
Colendo STF.
13. De qualquer forma, a questão que interessa ao caso concreto é outra e
diz com o malferimento dos arts. 128 do CPC e 142 do CTN. Segundo a ora
recorrente, o Tribunal a quo desconsiderou o enquadramento legal conferido
pela própria autoridade fiscal às suas atividades, qual seja, de equipararem-se à
de locação de bens móveis, cuja incidência do ISS já fora afastada definitivamente
pelo colendo STF, que editou a Súmula Vinculante n. 31, segundo a qual é
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REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
inconstitucional a incidência do imposto sobre serviços de qualquer natureza - ISS sobre operações de locação de bens móveis.
14. Afirma, ainda, que o Judiciário não pode substituir lançamento realizado,
para reenquadrar as atividades da recorrente em outro item da lista de serviços,
como se autoridade fiscal fosse. Aduz que, ao não se ater ao lançamento efetuado
e afirmar que a cobrança seria correta, porque a recorrente presta serviços de
intermediação e agenciamento de marcas e produtos e não de locação de bens
móveis, não se tem dúvidas de que o acórdão recorrido pretendeu substituir
o lançamento, fundamentando a exigência em item diverso do indicado pelo
Recorrido, em afronta ao art. 142 do CTN, que determina que a atividade de
lançamento compete privativamente à autoridade administrativa.
15. Nesse ponto, penso que a insurgência merece acolhimento.
16. Como visto, à exceção do item VII do auto de infração, todas as
demais atividades foram equiparadas à locação de bens móveis; nesse contexto,
a pergunta que deve ser respondida é a seguinte: pode o Judiciário corrigir o
lançamento feito pela autoridade fiscal competente, de forma definitiva, para
dar outro enquadramento jurídico ao fato gerador?
17. Diz o art. 142 do CTN:
Art. 142 - Compete privativamente à autoridade administrativa constituir
o crédito tributário pelo lançamento, assim entendido o procedimento
administrativo tendente a verificar a ocorrência do fato gerador da obrigação
correspondente, determinar a matéria tributável, calcular o montante do
tributo devido, identificar o sujeito passivo e, sendo caso, propor a aplicação da
penalidade cabível.
18. Vê-se que a autoridade administrativa deve verificar, privativamente,
tanto a ocorrência da hipótese de incidência, ou seja, a descrição legislativa de
acontecimento ou situação que pode desencadear o nascimento de uma obrigação
tributária, como o fato imponível, ou o fato gerador concreto, ou seja, aquele
emergente da situação singular e que se subsume à hipótese de incidência
(ROQUE ANTÔNIO CARAZZA, O fato gerador da obrigação tributária,
Tratado de Direito Tributário, vol. 2, São Paulo, Editora Saraiva, 2011, p. 118119).
19. Compete-lhe exclusivamente tipificar essa realidade ou fenômeno ocorrido
concretamente de forma a verificar se ele se subsume fielmente aos elementos da hipótese
de incidência.
234
Jurisprudência da PRIMEIRA TURMA
20. É por meio desse ato administrativo singular (embora muitas vezes
precedido de um procedimento preparatório) que a obrigação tributária se
materializa e passa a ser exigível o crédito ali consignado.
21. Assim, retornando ao caso concreto, o que se constata é que a
autoridade administrativa reconheceu o fato gerador concreto para fins de incidência
do ISSQN como sendo uma locação de bens móveis, embora, essa não seja a real
atividade desenvolvida pela empresa, como bem captaram o Julgador Singular e o
Tribunal Estadual; todavia, não cabe ao Judiciário substituir a Autoridade Fiscal,
para dar outra qualificação jurídica aos fatos por ela já analisados, corrigindo,
dessa forma, típico erro de direito do lançamento, pois isso quebra o princípio
da legalidade, do qual o princípio da tipicidade fechada é corolário, bem como o
princípio da segurança jurídica.
22. Esclarecedor, ainda, o art. 146 do CTN, segundo o qual a mudança nos
critérios jurídicos adotados pela autoridade administrativa no exercício do lançamento
somente é admissível, em relação a um mesmo sujeito passivo quanto a fato gerador
ocorrido posteriormente à sua introdução.
23. Merecem destaque os comentários de LEANDRO PAULSEN sobre o
princípio da segurança jurídica e o art. 146 do CTN:
Princípio da proteção à confiança. O art. 146 do CTN positiva, em nível
infraconstitucional, a necessidade de proteção da confiança do contribuinte
na Administração Tributária, abarcando, de um lado, a impossibilidade de
retratação de atos administrativos concretos que implique prejuízo relativamente
a situação consolidada à luz de critérios anteriormente adotados e, de outros,
a irretroatividade de atos administrativos normativos quando o contribuinte
confiou nas normas anteriores.
- A inspiração para a norma transcrita buscou-a o legislador no direito
germânico. Em sua nova versão, estampada no art. 176 do Código de 1977
(Abgabenordnung 77), aquela regra, sob o título de proteção da confiança nas
hipóteses de anulação e alteração do lançamento (...) tem o seguinte teor: (...)
no art. 146, protege-se contra a mudança, com efeito retroativo, do critério
individualmente utilizado no lançamento relativo a a um mesmo sujeito passivo,
para proteger a boa-fé do contribuinte. A norma do art. 146...complementa a
irrevisibilidade por erro de direito regulada pelos artigos 145 e 149. Enquanto
o art. 149 exclui o erro de direito dentre as causas que permitem a revisão do
lançamento anterior feito contra o mesmo contribuinte, o art. 146 proíbe a
alteração do critério jurídico geral da Administração aplicável ao mesmo sujeito
passivo com eficácia para os fatos pretéritos (TORRES, Ricardo Lobo. O princípio da
Proteção da Confiança do Contribuinte. RFDT 06/09, dez/03). (Direito Tributário,
RSTJ, a. 24, (226): 147-239, abril/junho 2012
235
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
Constituição e Código Tributário à luz da doutrina e da jurisprudência, 13ª ed.,
Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora; ESMAFE, 2011, p. 1.070-1.071).
24. Esta Corte já firmou o entendimento pela inadmissibilidade da
alteração do lançamento por erro de direito. Nesse sentido:
Processo Civil. Recurso especial representativo de controvérsia. Artigo 543-C,
do CPC. Tributário e processo administrativo fiscal. Lançamento tributário. IPTU.
Retificação dos dados cadastrais do imóvel. Fato não conhecido por ocasião do
lançamento anterior (diferença da metragem do imóvel constante do cadastro).
Recadastramento. Não caracterização. Revisão do lançamento. Possibilidade. Erro
de fato. Caracterização.
1. A retificação de dados cadastrais do imóvel, após a constituição do crédito
tributário, autoriza a revisão do lançamento pela autoridade administrativa (desde
que não extinto o direito potestativo da Fazenda Pública pelo decurso do prazo
decadencial), quando decorrer da apreciação de fato não conhecido por ocasião
do lançamento anterior, ex vi do disposto no artigo 149, inciso VIII, do CTN.
2. O ato administrativo do lançamento tributário, devidamente notificado ao
contribuinte, somente pode ser revisto nas hipóteses enumeradas no artigo 145,
do CTN, verbis: “Art. 145. O lançamento regularmente notificado ao sujeito passivo
só pode ser alterado em virtude de: I - impugnação do sujeito passivo;
(...)
3. O artigo 149, do Codex Tributário, elenca os casos em que se revela possível
a revisão de ofício do lançamento tributário, quais sejam:
(...).
4. Destarte, a revisão do lançamento tributário, como consectário do poderdever de autotutela da Administração Tributária, somente pode ser exercido
nas hipóteses do artigo 149, do CTN, observado o prazo decadencial para a
constituição do crédito tributário.
5. Assim é que a revisão do lançamento tributário por erro de fato (artigo
149, inciso VIII, do CTN) reclama o desconhecimento de sua existência ou a
impossibilidade de sua comprovação à época da constituição do crédito
tributário.
6. Ao revés, nas hipóteses de erro de direito (equívoco na valoração jurídica
dos fatos), o ato administrativo de lançamento tributário revela-se imodificável,
máxime em virtude do princípio da proteção à confiança, encartado no
artigo 146 do CTN, segundo o qual “a modificação introduzida, de ofício ou
em conseqüência de decisão administrativa ou judicial, nos critérios jurídicos
adotados pela autoridade administrativa no exercício do lançamento somente
pode ser efetivada, em relação a um mesmo sujeito passivo, quanto a fato gerador
ocorrido posteriormente à sua introdução”.
236
Jurisprudência da PRIMEIRA TURMA
7. Nesse segmento, é que a Súmula n. 227-TFR consolidou o entendimento de
que “a mudança de critério jurídico adotado pelo Fisco não autoriza a revisão de
lançamento”.
8. A distinção entre o erro de fato (que autoriza a revisão do lançamento) e
o erro de direito (hipótese que inviabiliza a revisão) é enfrentada pela doutrina,
verbis:
Enquanto o erro de fato é um problema intranormativo, um desajuste
interno na estrutura do enunciado, o “erro de direito” é vício de feição
internormativa, um descompasso entre a norma geral e abstrata e a
individual e concreta.
Assim constitui “erro de fato”, por exemplo, a contingência de o evento
ter ocorrido no território do Município X, mas estar consignado como tendo
acontecido no Município Y (erro de fato localizado no critério espacial), ou,
ainda, quando a base de cálculo registrada para efeito do IPTU foi o valor do
imóvel vizinho (erro de fato verificado no elemento quantitativo).
Erro de direito, por sua vez, está configurado, exemplificativamente,
quando a autoridade administrativa, em vez de exigir o ITR do proprietário
do imóvel rural, entende que o sujeito passivo pode ser o arrendatário, ou
quando, ao lavrar o lançamento relativo à contribuição social incidente
sobre o lucro, mal interpreta a lei, elaborando seus cálculos com base no
faturamento da empresa, ou, ainda, quando a base de cálculo de certo
imposto é o valor da operação, acrescido do frete, mas o agente, ao lavrar o
ato de lançamento, registra apenas o valor da operação, por assim entender
a previsão legal. A distinção entre ambos é sutil, mas incisiva. (Paulo de
Barros Carvalho, in “Direito Tributário - Linguagem e Método”, 2ª Ed., Ed.
Noeses, São Paulo, 2008, p. 445-446)
O erro de fato ou erro sobre o fato dar-se-ia no plano dos
acontecimentos: dar por ocorrido o que não ocorreu. Valorar fato diverso
daquele implicado na controvérsia ou no tema sob inspeção. O erro de
direito seria, à sua vez, decorrente da escolha equivocada de um módulo
normativo inservível ou não mais aplicável à regência da questão que
estivesse sendo juridicamente considerada. Entre nós, os critérios jurídicos
(art. 146, do CTN) reiteradamente aplicados pela Administração na feitura
de lançamentos têm conteúdo de precedente obrigatório. Significa
que tais critérios podem ser alterados em razão de decisão judicial ou
administrativa, mas a aplicação dos novos critérios somente pode dar-se
em relação aos fatos geradores posteriores à alteração. (Sacha Calmon
Navarro Coêlho, in Curso de Direito Tributário Brasileiro, 10ª Ed., Ed. Forense,
Rio de Janeiro, 2009, p. 708)
O comando dispõe sobre a apreciação de fato não conhecido ou não
provado à época do lançamento anterior. Diz-se que este lançamento teria
RSTJ, a. 24, (226): 147-239, abril/junho 2012
237
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
sido perpetrado com erro de fato, ou seja, defeito que não depende de
interpretação normativa para sua verificação.
Frise-se que não se trata de qualquer fato, mas aquele que não foi
considerado por puro desconhecimento de sua existência. Não é, portanto,
aquele fato, já de conhecimento do Fisco, em sua inteireza, e, por reputálo despido de relevância, tenha-o deixado de lado, no momento do
lançamento.
Se o Fisco passa, em momento ulterior, a dar a um fato conhecido uma
“relevância jurídica”, a qual não lhe havia dado, em momento pretérito, não
será caso de apreciação de fato novo, mas de pura modificação do critério
jurídico adotado no lançamento anterior, com fulcro no artigo 146, do CTN,
(...).
Neste art. 146, do CTN, prevê-se um “erro” de valoração jurídica do fato
(o tal “erro de direito”), que impõe a modificação quanto a fato gerador
ocorrido posteriormente à sua ocorrência. Não perca de vista, aliás, que
inexiste previsão de erro de direito, entre as hipóteses do art. 149, como
causa permissiva de revisão de lançamento anterior. (Eduardo Sabbag, in
Manual de Direito Tributário, 1ª ed., Ed. Saraiva, p. 707).
9. In casu, restou assente na origem que: Com relação a declaração de
inexigibilidade da cobrança de IPTU progressivo relativo ao exercício de 1998, em
decorrência de recadastramento, o bom direito conspira a favor dos contribuintes
por duas fortes razões. Primeira, a dívida de IPTU do exercício de 1998 para
com o fisco municipal se encontra quitada, subsumindo-se na moldura de ato
jurídico perfeito e acabado, desde 13.10.1998, situação não desconstituída, até o
momento, por nenhuma decisão judicial. Segunda, afigura-se impossível a revisão
do lançamento no ano de 2003, ao argumento de que o imóvel em 1998 teve os
dados cadastrais alterados em função do Projeto de Recadastramento Predial,
depois de quitada a obrigação tributária no vencimento e dentro do exercício de
1998, pelo contribuinte, por ofensa ao disposto nos artigos 145 e 149, do Código
Tribunal Nacional. Considerando que a revisão do lançamento não se deu por
erro de fato, mas, por erro de direito, visto que o recadastramento no imóvel
foi posterior ao primeiro lançamento no ano de 1998, tendo baseado em dados
corretos constantes do cadastro de imóveis do Município, estando o contribuinte
notificado e tendo quitado, tempestivamente, o tributo, não se verifica justa
causa para a pretensa cobrança de diferença referente a esse exercício.
10. Consectariamente, verifica-se que o lançamento original reportou-se à
área menor do imóvel objeto da tributação, por desconhecimento de sua real
metragem, o que ensejou a posterior retificação dos dados cadastrais (e não o
recadastramento do imóvel), hipótese que se enquadra no disposto no inciso VIII,
do artigo 149, do Codex Tributário, razão pela qual se impõe a reforma do acórdão
regional, ante a higidez da revisão do lançamento tributário.
238
Jurisprudência da PRIMEIRA TURMA
11. Recurso especial provido. Acórdão submetido ao regime do artigo 543-C,
do CPC, e da Resolução STJ n. 8/2008 (REsp n. 1.130.545-RJ, Rel. Min. Luiz Fux, DJe
22.2.2011)
25. Assim, se a Autoridade Fiscal enquadrou a atividade da recorrente
como locação de bens móveis, e o STF já decidiu que sobre ela não incide ISS
(Súmula Vinculante n. 31), mostra-se ilegal a modificação judicial desse critério
jurídico, para fins de validar o lançamento efetuado.
26. Ante o exposto, conheço parcialmente do recurso e, nessa parte, doulhe parcial provimento para julgar parcialmente procedente o pedido da ação
anulatória, cancelando-se as cobranças descritas nos itens 1 a VI do auto
de infração, que remanesce, quanto ao mais. Tendo em vista a sucumbência
recíproca, determina-se a compensação, por igual, das despesas e dos honorários
advocatícios.
RSTJ, a. 24, (226): 147-239, abril/junho 2012
239
Segunda Turma
RECURSO EM MANDADO DE SEGURANÇA N. 29.280-MT
(2009/0066999-5)
Relator: Ministro Mauro Campbell Marques
Recorrente: Elizabeth Curvo Pinto Gomes e outros
Advogado: Salvador Pompeu de Barros Filho
Recorrido: Estado de Mato Grosso
Procurador: Nelson Pereira do Santos e outro(s)
Interessado: SINJUSMAT Sindicato dos Servidores do Poder Judiciário
do Estado de Mato Grosso
Advogado: Antônio Paulo Z Menodnça
EMENTA
Recurso ordinário em mandado de segurança. Tributário.
Contribuição sindical confederativa. Contribuição sindical
compulsória. Diferenças. Incidência dessa última para todos os
trabalhadores de determinada categoria independentemente de filiação
sindical e da condição de servidor público celetista ou estatutário.
1. A Carta Constitucional de 1988 trouxe, em seu art. 8º, IV,
a previsão para a criação de duas contribuições sindicais distintas, a
contribuição para o custeio do sistema confederativo (contribuição
confederativa) e a contribuição prevista em lei (contribuição
compulsória).
2. A contribuição confederativa é fixada mediante assembléia
geral da associação profissional ou sindical e, na conformidade da
jurisprudência do STF, tem caráter compulsório apenas para os
filiados da entidade, não sendo tributo. Para essa contribuição aplicase a Súmula n. 666-STF: “A contribuição confederativa de que trata o art.
8º, IV, da Constituição, só é exigível dos filiados ao sindicato respectivo”.
3. Já a contribuição compulsória é fixada mediante lei por
exigência constitucional e, por possuir natureza tributária parafiscal
respaldada no art. 149, da CF/1988, é compulsória. Sua previsão legal
está nos artigos 578 e ss. da CLT, que estabelece: a sua denominação
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
(“imposto sindical”), a sua sujeição passiva (“é devida por todos aqueles
que participarem de uma determinada categoria econômica ou profissional,
ou de uma profissão liberal representada por entidade associativa”), a sua
sujeição ativa (“em favor do sindicato representativo da mesma categoria
ou profissão ou, inexistindo este, em favor da federação correspondente
à mesma categoria econômica ou profissional”) e demais critérios da
hipótese de incidência.
4. O caso concreto versa sobre a contribuição compulsória (“imposto
sindical” ou “contribuição prevista em lei”) e não sobre a contribuição
confederativa. Sendo assim, há que ser reconhecia a sujeição passiva
de todos aqueles que participarem de uma determinada categoria
econômica ou profissional, ou de uma profissão liberal representada
por entidade associativa, ainda que servidores públicos e ainda que não
filiados a entidade sindical.
5. Recurso ordinário em mandado de segurança não provido.
ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos esses autos em que são partes as acima
indicadas, acordam os Ministros da Segunda Turma do Superior Tribunal
de Justiça, na conformidade dos votos e das notas taquigráficas, o seguinte
resultado de julgamento: “A Turma, por unanimidade, negou provimento ao
recurso ordinário, nos termos do voto do Sr. Ministro-Relator, sem destaque e
em bloco.”
Os Srs. Ministros Cesar Asfor Rocha, Castro Meira e Humberto Martins
votaram com o Sr. Ministro Relator.
Não participou, justificadamente, do julgamento o Sr. Ministro Herman
Benjamin.
Presidiu o julgamento o Sr. Ministro Mauro Campbell Marques.
Brasília (DF), 13 de dezembro de 2011 (data do julgamento).
Ministro Mauro Campbell Marques, Relator
DJe 2.2.2012
244
Jurisprudência da SEGUNDA TURMA
RELATÓRIO
O Sr. Ministro Mauro Campbell Marques: Cuida-se de recurso ordinário
em mandado de segurança (art. 105, II, b, da CF/1988) contra acórdão
denegatório proferido pelo Tribunal de Justiça do Estado de Mato Grosso TJMT o qual consignou que é devida a contribuição sindical pelos servidores
públicos, independente de filiação ao respectivo sindicato representativo, tendo
em vista a sua natureza tributária e seu recolhimento obrigatório por todos os
integrantes de uma dada categoria econômica ou profissional (e-STJ fls. 217225).
Sustenta a recorrente que os não filiados ao sindicato representativo não
se sujeitam à mencionada contribuição sindical. Invoca a aplicação da Súmula
n. 666-STF. Cita jurisprudência do STF em seu favor. Pede o provimento do
recurso ordinário para a concessão da segurança a reconhecer a não-incidência
da referida contribuição sobre os impetrantes (e-STJ fls. 232-240).
Contrarrazões nas e-STJ fls. 286-292.
É o relatório.
VOTO
O Sr. Ministro Mauro Campbell Marques (Relator): A Carta
Constitucional de 1988 trouxe, em seu art. 8º, IV, a previsão para a criação de
duas contribuições sindicais distintas, a contribuição para o custeio do sistema
confederativo (contribuição confederativa) e a contribuição prevista em lei
(contribuição compulsória), a saber:
8º É livre a associação profissional ou sindical, observado o seguinte:
[...]
IV - a assembléia geral fixará a contribuição que, em se tratando de categoria
profissional, será descontada em folha, para custeio do sistema confederativo da
representação sindical respectiva, independentemente da contribuição prevista
em lei;
A contribuição confederativa é fixada mediante assembléia geral da
associação profissional ou sindical e, na conformidade da jurisprudência do
STF, tem caráter compulsório apenas para os filiados da entidade, não sendo
tributo. Para essa contribuição aplica-se a Súmula n. 666-STF: “A contribuição
RSTJ, a. 24, (226): 241-354, abril/junho 2012
245
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
confederativa de que trata o art. 8º, IV, da Constituição, só é exigível dos filiados ao
sindicato respectivo”.
Já a contribuição compulsória é fixada mediante lei por exigência
constitucional e, por possuir natureza tributária parafiscal respaldada no art. 149,
da CF/1988, é compulsória. Sua previsão legal está nos artigos 578 e ss. da CLT,
que estabelece: a sua denominação (“imposto sindical”), a sua sujeição passiva (“é
devida por todos aqueles que participarem de uma determinada categoria econômica
ou profissional, ou de uma profissão liberal representada por entidade associativa”),
a sua sujeição ativa (“em favor do sindicato representativo da mesma categoria
ou profissão ou, inexistindo este, em favor da federação correspondente à mesma
categoria econômica ou profissional”) e demais critérios da hipótese de incidência.
Transcrevo:
Art. 578 - As contribuições devidas aos Sindicatos pelos que participem das
categorias econômicas ou profissionais ou das profissões liberais representadas
pelas referidas entidades serão, sob a denominação do “imposto sindical”, pagas,
recolhidas e aplicadas na forma estabelecida neste Capítulo.
Art. 579 - A contribuição sindical é devida por todos aqueles que participarem
de uma determinada categoria econômica ou profissional, ou de uma profissão
liberal, em favor do sindicato representativo da mesma categoria ou profissão
ou, inexistindo este, na conformidade do disposto no art. 591. (Redação dada pelo
Decreto-Lei n. 229, de 28.2.1967).
Art. 580 - A contribuição sindical será recolhida, de uma só vez, anualmente, e
consistirá: (Redação dada pela Lei n. 6.386, de 9.12.1976).
I - Na importância correspondente à remuneração de um dia de trabalho, para
os empregados, qualquer que seja a forma da referida remuneração; (Redação
dada pela Lei n. 6.386, de 9.12.1976).
II - para os agentes ou trabalhadores autônomos e para os profissionais
liberais, numa importância correspondente a 30% (trinta por cento) do maior
valor-de-referência fixado pelo Poder Executivo, vigente à época em que é
devida a contribuição sindical, arredondada para Cr$ 1,00 (um cruzeiro) a fração
porventura existente; (Redação dada pela Lei n. 7.047, de 1º.12.1982).
III - para os empregadores, numa importância proporcional ao capital social
da firma ou empresa, registrado nas respectivas Juntas Comerciais ou órgãos
equivalentes, mediante a aplicação de alíquotas, conforme a seguinte Tabela
progressiva: (Redação dada pela Lei n. 7.047, de 1º.12.1982).
Classes de Capital Alíquota %
1 - Até 150 vezes o maior valor-de-referência ............................................................ 0,8
2 - Acima de 150 até 1.500 vezes o maior valor-de-referência ..............................0,2
246
Jurisprudência da SEGUNDA TURMA
3 - Acima de 1.500, até 150.000 vezes o maior valor-de-referência .................... 0,1
4 - Acima de 150.000. até 800.000 vezes o maior valor-de-referência ............. 0,02
§ 1º A contribuição sindical prevista na tabela constante do item III deste
artigo corresponderá à soma da aplicação das alíquotas sobre a porção do capital
distribuído em cada classe, observados os respectivos limites. (Parágrafo incluído
pela Lei n. 4.140, de 21.9.1962 e alterado pela Lei n. 6.386, de 9.12.1976).
§ 2º Para efeito do cálculo de que trata a tabela progressiva inserta no item III
deste artigo, considerar-se-á o valor de referência fixado pelo Poder Executivo,
vigente à data de competência da contribuição, arredondando-se para Cr$ 1,00
(um cruzeiro) a fração porventura existente. (Parágrafo incluído pela Lei n. 4.140,
de 21.9.1962 e alterado pela Lei n. 6.386, de 9.12.1976).
§ 3º É fixada em 60% (sessenta por cento) do maior valor-de-referência, a que
alude o parágrafo anterior, a contribuição mínima devida pelos empregadores,
independentemente do capital social da firma ou empresa, ficando, do mesmo
modo, estabelecido o capital equivalente a 800.000 (oitocentas mil) vezes o maior
valor-de-referência, para efeito do cálculo da contribuição máxima, respeitada a
Tabela progressiva constante do item III. (Parágrafo incluído pela Lei n. 4.140, de
21.9.1962 e alterado pela Lei n. 7.047, de 1º.12.1982).
§ 4º Os agentes ou trabalhadores autônomos e os profissionais liberais,
organizados em firma ou empresa, com capital social registrado, recolherão a
contribuição sindical de acordo com a tabela progressiva a que se refere o item III.
(Parágrafo incluído pela Lei n. 6.386, de 9.12.1976).
§ 5º As entidades ou instituições que não estejam obrigadas ao registro de
capital social, consideração, como capital, para efeito do cálculo de que trata
a tabela progressiva constante do item III deste artigo, o valor resultante da
aplicação do percentual de 40% (quarenta por cento) sobre o movimento
econômico registrado no exercício imediatamente anterior, do que darão
conhecimento à respectiva entidade sindical ou à Delegacia Regional do Trabalho,
observados os limites estabelecidos no § 3º deste artigo. (Parágrafo incluído pela
Lei n. 6.386, de 9.12.1976).
§ 6º Excluem-se da regra do § 5º as entidades ou instituições que comprovarem,
através de requerimento dirigido ao Ministério do Trabalho, que não exercem
atividade econômica com fins lucrativos. (Parágrafo incluído pela Lei n. 6.386, de
9.12.1976).
Art. 581 a 588 (...) omissis.
Art. 589. Da importância da arrecadação da contribuição sindical serão feitos
os seguintes créditos pela Caixa Econômica Federal, na forma das instruções que
forem expedidas pelo Ministro do Trabalho: (Redação dada pela Lei n. 6.386, de
9.12.1976).
I - 5% (cinco por cento) para a confederação correspondente; (Redação dada
pela Lei n. 6.386, de 9.12.1976).
RSTJ, a. 24, (226): 241-354, abril/junho 2012
247
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
II - 15% (quinze por cento) para a federação; (Redação dada pela Lei n. 6.386,
de 9.12.1976).
III - 60% (sessenta por cento) para o sindicato respectivo; (Redação dada pela
Lei n. 6.386, de 9.12.1976).
IV - 20% (vinte por cento) para a “Conta Especial Emprego e Salário”. (Redação
dada pela Lei n. 6.386, de 9.12.1976).
Art. 590. Inexistindo confederação, o percentual previsto no item I do artigo
anterior caberá à federação representativa do grupo. (Redação dada pela Lei n.
6.386, de 9.12.1976).
§ 1º Na falta de federação, o percentual a ela destinado caberá à confederação
correspondente à mesma categoria econômica ou profissional. (Parágrafo
incluído pela Lei n. 6.386, de 9.12.1976).
§ 2º Na falta de entidades sindicais de grau superior, o percentual que aquelas
caberia será destinado à “Conta Especial Emprego e Salário”. (Parágrafo incluído
pela Lei n. 6.386, de 9.12.1976).
§ 3º Não havendo sindicato, nem entidade sindical de grau superior, a
contribuição sindical será creditada, integralmente, à “Conta Especial Emprego e
Salário”. (Parágrafo incluído pela Lei n. 6.386, de 9.12.1976).
Art. 591. Inexistindo sindicato, o percentual previsto no item III do artigo 589
será creditado à federação correspondente à mesma categoria econômica ou
profissional. (Redação dada pela Lei n. 6.386, de 9.12.1976).
A compulsoriedade dessa segunda contribuição (“imposto sindical”,
“contribuição prevista em lei” ou “contribuição compulsória”) foi reconhecida
pela jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, conforme os seguintes
precedentes:
Sindicato: contribuição sindical da categoria: recepção.
A recepção pela ordem constitucional vigente da contribuição sindical
compulsória, prevista no art. 578 CLT e exigível de todos os integrantes da
categoria, independentemente de sua filiação ao sindicato resulta do art. 8º, IV, in
fine, da Constituição; não obsta à recepção a proclamação, no caput do art. 8º, do
princípio da liberdade sindical, que há de ser compreendido a partir dos termos
em que a Lei Fundamental a positivou, nos quais a unicidade (art. 8º, II) e a própria
contribuição sindical de natureza tributária (art. 8º, IV) - marcas características
do modelo corporativista resistente -, dão a medida da sua relatividade (cf. MI
n. 144, Pertence, RTJ 147/868, 874); nem impede a recepção questionada a falta
da lei complementar prevista no art. 146, III, CF, à qual alude o art. 149, à vista
do disposto no art. 34, §§ 3º e 4º, das Disposições Transitórias (cf. RE n. 146.733,
Moreira Alves, RTJ 146/684, 694) (RE n. 180.745-SP, Primeira Turma, Rel. Min.
Sepúlveda Pertence, julgado em 24.3.1998).
248
Jurisprudência da SEGUNDA TURMA
Sindicato de servidores públicos: direito à contribuição sindical compulsória
(CLT, art. 578 ss.), recebida pela Constituição (art. 8º, IV, in fine), condicionado,
porém à satisfação do requisito da unicidade.
1. A Constituição de 1988, à vista do art. 8., IV, in fine, recebeu o instituto da
contribuição sindical compulsória, exigível, nos termos dos arts. 578 ss. CLT,
de todos os integrantes da categoria, independentemente de sua filiação ao
sindicato (cf. ADIn n. 1.076, med. cautelar, Pertence, 15.6.1994).
2. Facultada a formação de sindicatos de servidores públicos (CF, art. 37, VI),
não cabe excluí-los do regime da contribuição legal compulsória exigível dos
membros da categoria (ADIn n. 962, 11.11.1993, Galvão).
3. A admissibilidade da contribuição sindical imposta por lei é inseparável, no
entanto, do sistema de unicidade (CF, art. 8., II), do qual resultou, de sua vez, o
imperativo de um organismo central de registro das entidades sindicais, que, à
falta de outra solução legal, continua sendo o Ministério do Trabalho (MI n. 144,
3.8.1992, Pertence).
4. Dada a controvérsia de fato sobre a existência, na mesma base territorial, de
outras entidades sindicais da categoria que o impetrante congrega, não há como
reconhecer-lhe, em mandado de segurança, o direito a exigir o desconto em seu
favor da contribuição compulsória pretendida (RMS n. 21.758-DF, Primeira Turma,
Rel. Min. Sepúlveda Pertence, DJ de 4.11.1994).
O posicionamento deste eg. STJ também é pela aplicação da contribuição
sindical compulsória, prevista nos arts. 578 e seguintes da CLT, a todos os
trabalhadores de determinada categoria, celetistas ou estatuários, conforme
ementado:
Administrativo. Recurso especial. Decadência. Inocorrência. Contribuição
sindical (“imposto sindical”). Servidor público municipal. Recolhimento
compulsório.
1. Não se configura a decadência se o writ foi impetrado antes de escoado
o prazo de cento e vinte dias da efetiva lesão de direito líquido e certo do
impetrante.
2. A lei específica que disciplina a contribuição sindical compulsória (“imposto
sindical”) é a CLT, nos arts. 578 e seguintes, a qual é aplicável a todos os trabalhadores
de determinada categoria, inclusive aos servidores públicos, observada a unicidade
sindical e a desnecessidade de filiação, segundo a jurisprudência do Supremo Tribunal
Federal, que considerou recepcionada a exação pela atual Constituição Federal.
3. É obrigatório o recolhimento do “imposto sindical” pela Administração
Pública Municipal a pedido de qualquer das entidades incluídas no rol dos
beneficiários da importância da arrecadação, como previsto no art. 589 da CLT.
RSTJ, a. 24, (226): 241-354, abril/junho 2012
249
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
4. Recurso especial improvido (REsp n. 612.842-RS, Segunda Turma, Rel. Minª.
Eliana Calmon, DJ 11.4.2005).
Administrativo. Recurso especial. “Imposto sindical”. Compulsoriedade do
desconto. Possibilidade.
I - A controvérsia a ser dirimida restringe-se a saber se existe a possibilidade de
compulsoriedade no desconto em folha de pagamento, do denominado “imposto
sindical”, previsto no art. 578 e seguintes da Consolidação das Leis do Trabalho.
II - Há legislação específica que determina a compulsoriedade da contribuição
sindical, hodiernamente denominada “imposto sindical”.
III - Os arts. 578 e seguintes, da CLT, são aplicáveis a todos os trabalhadores
de determinada categoria, inclusive aos servidores públicos, observada a unidade
sindical e a falta de necessidade de filiação, conforme assentado pela jurisprudência
do Colendo Supremo Tribunal Federal, que considerou recepcionada a exação pela
atual Constituição Federal.
IV - É compulsório o recolhimento do denominado “imposto sindical” pela
Administração Pública.
V - Recurso Especial improvido (REsp n. 728.973-PR, Primeira Turma, Rel. Min.
Francisco Falcão, DJ de 10.4.2006).
O caso concreto versa sobre a contribuição compulsória (“imposto sindical”
ou “contribuição prevista em lei”) e não sobre a contribuição confederativa.
Sendo assim, há que ser reconhecia a sujeição passiva de todos aqueles que
participarem de uma determinada categoria econômica ou profissional, ou de
uma profissão liberal representada por entidade associativa, ainda que servidores
públicos e ainda que não filiados a entidade sindical.
Ante o exposto, nego provimento ao presente recurso ordinário.
É como voto.
RECURSO EM MANDADO DE SEGURANÇA N. 33.620-MG
(2011/0012823-2)
Relator: Ministro Castro Meira
Recorrente: D F R (menor)
250
Jurisprudência da SEGUNDA TURMA
Representado por: N I R e outro
Advogado: Antônio Lopes Neto
Recorrido: Ministério Público do Estado de Minas Gerais
EMENTA
Administrativo e Previdenciário. Pensão por morte. Reversão.
Neto inválido que estava sob guarda da avó pensionista. Equiparação
a filho prevista em lei estadual. Interpretação compatível com a
dignidade da pessoa humana e com o princípio de proteção integral
do menor. Segurança concedida.
1. A dignidade da pessoa humana, alçada a princípio fundamental
do nosso ordenamento jurídico, é vetor para a consecução material dos
direitos fundamentais e apenas estará assegurada quando for possível
ao homem uma existência compatível com uma vida digna, na qual
estão presentes, no mínimo, saúde, educação e segurança.
2. Esse princípio, tido como valor constitucional supremo, é o
próprio núcleo axiológico da Constituição, em torno do qual gravitam
os direitos fundamentais, auxiliando na interpretação e aplicação de
outras normas.
3. Não é dado ao intérprete atribuir à norma jurídica conteúdo
que atente contra a dignidade da pessoa humana e, consequentemente,
contra o princípio de proteção integral e preferencial a crianças e
adolescentes, já que esses postulados são a base do Estado Democrático
de Direito e devem orientar a interpretação de todo o ordenamento
jurídico.
4. O art. 33, § 3º, da Lei n. 8.069/1990 determina que “a guarda
confere à criança ou adolescente a condição de dependente, para todos
os fins e efeitos de direito, inclusive previdenciários”.
5. No caso, a avó paterna, pensionista de membro do Ministério
Público de Minas Gerais, por decisão judicial transitada em julgado,
obteve a tutela do impetrante, ante a ausência de condições financeiras
dos pais biológicos.
6. O art. 149, § 1º, da Lei Complementar Estadual n. 34/1994
determina que a parcela da pensão destinada ao cônjuge sobrevivente
RSTJ, a. 24, (226): 241-354, abril/junho 2012
251
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
reverterá em benefício dos filhos, em caso de morte da pensionista.
Essa norma, em momento algum, limitou o instituto da reversão aos
filhos do segurado. É plenamente possível, e mesmo recomendável,
em face dos princípios já declinados, interpretá-la de modo a abarcar,
também, os filhos da cônjuge sobrevivente, para evitar que fiquem
desamparados materialmente com o passamento daquela que os
mantinha.
7. Ademais, a tutela do impetrante concedida judicialmente à avó
transferiu à tutora o pátrio poder, de modo que o neto tutelado, pelo
menos para fins previdenciários, pode e deve ser equiparado a filho da
pensionista, o que viabiliza a incidência da norma.
8. A Lei Complementar Estadual n. 64/2002, que “institui o
regime próprio de previdência e assistência social dos servidores
públicos do Estado de Minas Gerais”, no art. 4º, § 3º, II, equipara a
filho o menor sob tutela judicial.
9. Na espécie, é fato incontroverso que o impetrante teve sua
tutela deferida à avó, que durante anos foi responsável por seu sustento
material. Assim, impõe-se a observância da regra contemplada no
art. 4º, § 3º, II, da Lei Complementar Estadual n. 64/2002, devendo
o impetrante ser equiparado a filho sem as limitações impostas pelo
acórdão recorrido.
10. Havendo regra a tutelar o direito perseguido em juízo,
não deve o julgador adotar exegese restritiva da norma, de modo a
amesquinhar o postulado da dignidade da pessoa humana e inibir a
plena eficácia do princípio da proteção integral do menor, sobretudo
quando comprovada a sua invalidez permanente.
11. Recurso ordinário provido.
ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos os autos em que são partes as acima indicadas,
acordam os Ministros da Segunda Turma do Superior Tribunal de Justiça, por
unanimidade, dar provimento ao recurso ordinário nos termos do voto do Sr.
Ministro Relator. Os Srs. Ministros Humberto Martins, Herman Benjamin
(Presidente), Mauro Campbell Marques e Cesar Asfor Rocha votaram com o
Sr. Ministro Relator.
252
Jurisprudência da SEGUNDA TURMA
Brasília (DF), 6 de dezembro de 2011 (data do julgamento).
Ministro Castro Meira, Relator
DJe 19.12.2011
RELATÓRIO
O Sr. Ministro Castro Meira: Cuida-se de mandado de segurança, com
pedido liminar, impetrado por Davi Fonseca Ribeiro, menor absolutamente
incapaz, nestes autos representado pelo pai Nilton Itamar Ribeiro e pela mãe
Lúcia Helena Fonseca Ribeiro, contra omissão supostamente ilegal e abusiva
perpetrada pelo ilustre Procurador Geral de Justiça do Estado de Minas
Gerais, que teria deixado de conceder ao impetrante o direito de receber pensão
pelo falecimento de sua avó, e também tutora, Elza Serrano Ribeiro, então
pensionista junto ao Ministério Público Estadual.
Noticiam os autos que o impetrante é portador de encefalopatia crônica
infantil (paralisia cerebral) e, em 27.1.1997, foi tutelado pela sua avó paterna,
pensionista junto ao Ministério Público do Estado de Minas Gerais.
O impetrante pleiteia, por intermédio deste instrumento, a reversão a seu
favor do benefício previdenciário de pensão por morte de sua tutora.
A Corte local, por maioria de votos, denegou a segurança pelos
fundamentos resumidos na seguinte ementa:
Mandado de segurança. Inclusão de menor sob tutela da avó após o falecimento
do segurado. Benefício de pensão por morte. Inexistência da qualidade de dependente
no momento do óbito do titular. Benefício intransferível. Denegar a ordem. - Para
que alguém tenha direito aos proventos de pensão por morte, mister ostentar a
qualidade de dependente, por um dos fatos previstos em lei, todos eles exigidos
ao tempo do óbito do titular. É que em se tratando de benefício de pensão por
morte a legislação aplicável é aquela em vigor na data do óbito do segurado,
mesmo se requeridas em razão de fato superveniente, sendo aplicável o princípio
“tempus regit actum”. Neste diapasão, a incapacidade de um menor tutelado por
sua avó exclusivamente, por si só, não gera qualquer direito previdenciário se
o avô faleceu antes da tutela e o pretenso beneficiário não estiver inscrito no
órgão previdenciário como dependente e nem atender aos requisitos de ser
inscrito como tal. - Para efeitos previdenciários, a incapacidade é apenas um
requisito especial que caracteriza, enquanto ela existir, o estado de dependência
reconhecido em lei como gerador de tal qualificação. Somente a atribuição legal
RSTJ, a. 24, (226): 241-354, abril/junho 2012
253
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
de dependente é que, efetivamente, confere a qualidade de beneficiário do
Regime de Previdência Estadual, essencial para aferição de qualquer benefício
previsto na lei, notadamente a pensão por morte. (e-STJ fl. 347).
Por meio de recurso ordinário, o impetrante intenta a reforma do julgado.
Alega que a controvérsia dos autos demanda a interpretação teleológica de
diversas disposições legais e constitucionais invocadas na petição inicial, com
foco nos princípios da proporcionalidade, da razoabilidade, da equidade, e da
proteção integral e prioritária aos interesses do menor incapaz.
Argumenta o seguinte:
(a) o aresto recorrido “analisou o caso em tablado cotejando os preceitos legais
de forma isolada, equivocada e em intolerável interpretação literal” (e-STJ fl. 408);
(b) “a condição do impetrante como dependente da pensionista Elza Serrano
Ribeiro é incontroversa nos autos e advém do fato de ser menor tutelado” pela
avó falecida (e-STJ fl. 408);
(c) a guarda do menor incapaz, nos termos do art. 33, § 3º, do Estatuto da
Criança e do Adolescente (Lei n. 8.069/1990), confere ao tutelado a condição de
dependente, “inclusive para fins previdenciários” (e-STJ fl. 409);
(d) a “Lei Complementar Mineira n. 64/2002, que instituiu o Regime Próprio dos
Servidores de Minas Gerais, estabelece como dependente o menor sob tutela,
conforme seu art. 4º, § 3º, inciso II” (e-STJ fl. 409);
(e) “não se pode restringir, tal como fez o acórdão recorrido, os efeitos da
tutela judicial deferida única e simploriamente a fins assistenciais, afastandose indevidamente as consequências previdenciárias, sob pena de se malferir o
disposto no art. 33, § 3º, do ECA e o art. 4º, § 3º, inciso II, da Lei Complementar
Mineira n. 64/2002” (e-STJ fl. 409);
(f ) “sendo dependente da pensionista, o direito de reversão da pensão
encontra-se positivado no art. 149 e parágrafos da Lei Complementar Mineira n.
34/1994, que estabeleceu a Lei Orgânica do Ministério Público Estadual” (e-STJ fl.
409);
(g) “é irrelevante o fato de ter o recorrente tornado-se dependente da
pensionista após o falecimento do Promotor de justiça, o segurado, óbice
principal levantado pelo acórdão recorrido para o indeferimento do writ” (e-STJ
fl. 410);
(h) nos termos da Súmula n. 340-STJ, “a lei aplicável à concessão de pensão
previdenciária por morte é aquela vigente na data do óbito do segurado”,
devendo, no caso, ser aplicada a Lei n. 3.807/1960, que previa no art. 18 a
possibilidade de inscrição posterior de dependente.
254
Jurisprudência da SEGUNDA TURMA
Em contrarrazões ao recurso ordinário, o recorrido reafirma os fundamentos
de que se valeu a Corte Mineira para denegar a ordem mandamental. (e-STJ fls.
448-457).
Admitido na origem (e-STJ fl. 459), subiram os autos para julgamento.
O Ministério Público Federal, por meio da ilustre Subprocuradora-Geral
da República Dra. Maria Silvia de Meira Luedemann, opina pelo provimento
do recurso, nos termos do parecer de fls. 467-474 (e-STJ), assim ementado:
Ementa: Recurso ordinário em mandado de segurança. Direito Administrativo
e outras matérias de direito público. Servidor público civil. Pensão. Menor tutelado
pela avó, pensionista, e portador de paralisia cerebral. Dependência. Legislação
infraconstitucional. Interpretação. Força normativa dos princípios. Dignidade da
pessoa humana. Continuidade do benefício. Possibilidade.
1 - Não se pode analisar as legislações infraconstitucionais envolvidas nos
autos (LCE n. 34/1994, LCF n. 75/1993, LICCB e até mesmo o próprio ECA) sem
atentar-se para as particularidades do caso concreto, mormente tendo-se em
vista a situação de saúde do menor, o que, em última análise, cuida da efetivação
de um dos fundamentos da República Federativa do Brasil, a saber, a cidadania e a
dignidade da pessoa humana. Obstar a qualidade de beneficiário ao menor, neste
caso, além de negar força normativa aos princípios constitucionais, o colocaria
em risco, se já não bastasse a perda da pessoa que tantos esforços envidou para
garantir-lhe condições dignas de saúde física, mental e afetiva. Assim, no caso em
questão, amenizando o rigor formal da legislação infraconstitucional, a concessão
do “writ” é medida que se impõe, tendo em vista o melhor interesse do menor, em
respeito ao preceito contido no artigo 227 da Constituição da República brasileira.
2 - “(...) 1. A regra do art. 75, II, b, da Lei n. 6.815/1980 deve ser interpretada
sistematicamente, levando em consideração, especialmente, os princípios da
CF/1988, da Lei n. 8.069/1990 (ECA) e das convenções internacionais recepcionadas
por nosso ordenamento jurídico. 2. A proibição de expulsão de estrangeiro que tenha
filho brasileiro objetiva resguardar os interesses da criança, não apenas no que se
refere à assistência material, mas a sua proteção em sentido integral, inclusive com
a garantia dos direitos à identidade, à convivência familiar, a assistência pelos pais.
3. Precedentes da 1ª Seção: HC n. 31.449-DF, Min. Teori Albino Zavascki, DJ de
31.5.2004; HC n. 88.882-DF, Min. Castro Meira, DJ de 17.3.2008; HC n. 43.604-DF,
Min. Luiz Fux, DJ de 29.8.2005. 4. Ordem concedida.” (STJ, HC n. 102.459-DF, Rel.
Ministro Carlos Fernando Mathias (Juiz Federal Convocado do TRF 1º Região), Rel.
p/ Acórdão Ministro Teori Albino Zavascki, Primeira Seção, julgado em 25.6.2008,
DJe 29.9.2008) - Destacamos.
3 - Parecer pelo provimento do recurso. (e-STJ fl. 467).
É o relatório.
RSTJ, a. 24, (226): 241-354, abril/junho 2012
255
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
VOTO
O Sr. Ministro Castro Meira (Relator): Cuida-se de mandado de segurança,
com pedido liminar, impetrado por Davi Fonseca Ribeiro, menor absolutamente
incapaz, devidamente representado nos autos por seus pais Nilton Itamar
Ribeiro e Lúcia Helena Fonseca Ribeiro, contra omissão supostamente abusiva
e ilegal do Excelentíssimo Senhor Procurador-Geral de Justiça do Estado de
Minas Gerais, que teria deixado de reverter ao impetrante a pensão outrora
paga à sua avó e tutora, Elza Serrano Ribeiro, então pensionista do Ministério
Público Estadual.
Consta dos autos que o impetrante, nascido em 23.4.1993, é portador de
encefalopatia crônica infantil – paralisia cerebral – decorrente de nascimento
prematuro, apresentando déficit motor que impossibilita a marcha, limita os
movimentos e dificulta significativamente o seu desenvolvimento. Por necessitar
de cuidados especiais e de tratamento oneroso, e ante a dificuldade financeira
enfrentada pelos pais biológicos, teve a sua guarda transferida à avó paterna, que
se tornou sua tutora desde 14.1.1997, por decisão judicial transitada em julgado.
A avó detentora do pátrio poder, Elza Serrano Ribeiro, era pensionista
do Ministério Público do Estado de Minas Gerais, na condição de viúva do
Promotor de Justiça aposentado Nilton Val Ribeiro (avô do impetrante), e veio
a falecer em 19.4.2009.
A Corte de Justiça Mineira, por maioria de votos, vencido o Desembargador
Alberto Vilas Boas, denegou a segurança, amparada basicamente no fato de ter
o impetrante nascido após a morte do avô, que era o verdadeiro segurado da
previdência estadual, de modo que “não se permite que essa pensão se transfira
ao dependente exclusivo da avó”.
Rendendo vênias à posição adotada no acórdão recorrido, calcada em
robusta fundamentação, creio não ser a melhor exegese dos dispositivos que
normatizam a controvérsia.
(A) necessidade de aplicar o direito com foco na dignidade da pessoa
humana e no princípio de proteção integral e preferencial ao menor incapaz
A interpretação das normas jurídicas em geral deve observar não apenas os
princípios basilares do direito, mas também os fundamentos em que se ampara
a República Federativa do Brasil, dentre eles a dignidade da pessoa humana,
como consta do art. 1º, inciso III, da Constituição da República, verbis:
256
Jurisprudência da SEGUNDA TURMA
Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos
Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de
Direito e tem como fundamentos:
III - a dignidade da pessoa humana;
Essa disposição normativa não é mera construção retórica. Deve ser
entendida como um balizamento a toda atividade estatal, não apenas no
desenvolvimento de políticas públicas que atentem para os fundamentos eleitos
como basilares à organização do Estado brasileiro, mas também no exercício das
funções legislativa e judiciária.
A dignidade da pessoa humana, alçada a princípio fundamental do
nosso ordenamento jurídico, é vetor para a consecução material dos direitos
fundamentais e apenas estará assegurada quando for possível ao homem uma
existência compatível com uma vida digna, na qual estão presentes, no mínimo,
saúde, educação e segurança.
Considera-se a dignidade da pessoa humana valor constitucional supremo,
o próprio núcleo axiológico da Constituição, em torno do qual gravitam os
direitos fundamentais.
Em outras palavras, esse valor é revelado pela CF/1988 por meio dos
direitos fundamentais, aos quais confere caráter sistêmico e unitário.
É difícil imaginar que a lei, ou sua interpretação, possa descortinar situação
de afronta inequívoca à dignidade da pessoa humana, sob pena de absoluto
descompasso com o valor central que orienta a nossa Carta Republicana.
Deveras, a dignidade da pessoa humana atua como um postulado,
auxiliando a interpretação e aplicação de outras normas.
Luís Roberto Barroso, Professor Titular de Direito Constitucional da
Universidade do Estado do Rio de Janeiro, bem analisa a dignidade da pessoa
humana como princípio:
que (...) identifica um espaço de integridade moral a ser assegurado
a todas as pessoas por sua só existência no mundo. É um respeito à criação,
independentemente da crença que se professe quanto à sua origem. A
dignidade relaciona-se tanto com a liberdade e valores do espírito como com
as condições materiais de subsistência. Não tem sido singelo, todavia, o esforço
para permitir que o princípio transite de uma dimensão ética e abstrata para
as motivações racionais e fundamentadas das decisões judiciais. Partindo da
premissa anteriormente estabelecida de que os princípios, a despeito de sua
RSTJ, a. 24, (226): 241-354, abril/junho 2012
257
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
indeterminação a partir de um certo ponto, possuem um núcleo no qual operam
como regras, tem-se sustentado que no tocante ao princípio da dignidade da
pessoa humana esse núcleo é representado pelo mínimo existencial. Embora
existam visões mais ambiciosas do alcance elementar do princípio, há razoável
consenso de que ele inclui pelo menos os direitos à renda mínima, saúde
básica, educação fundamental e acesso à justiça. (Interpretação e Aplicação da
Constituição, p. 381).
A dignidade da pessoa humana, proclamada na Constituição Federal, é
uma declaração, e não uma criação constitucional, pois preexiste à proclamação
constitucional e tem o sentido de instituí-la como centro do Estado, para o qual
deve convergir toda a atividade estatal. Esse princípio tem destaque em todas as
relações, públicas e privadas, e tornou-se o centro axiológico da concepção do
Estado Democrático de Direito e de uma ordem mundial idealmente pautada
pelos direitos fundamentais.
Assim, tratando-se de postulado central do Estado Democrático de
Direito, para o qual devem convergir os poderes estatais, as leis devem atentar
para a dignidade da pessoa humana e os juízes dela não podem se apartar
quando as interpretam no caso concreto.
O juiz tem uma função social importantíssima, que é a de pacificar os
conflitos sociais intersubjetivos que lhe são apresentados, resultantes, quase
sempre, da polissemia dos termos que compõem a norma jurídica, passível,
portanto, de múltiplas interpretações.
Cabe ao juiz adotar a exegese da norma que melhor atente “aos fins sociais
a que ela se dirige e às exigências do bem comum”, tal como previsto no art. 5º
da antiga Lei de Introdução ao Código Civil - LICC (DL n. 4.657/1942).
A atual Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro - LINDB
(Lei n. 12.376/2010) veiculou disposição absolutamente idêntica, impondo a
obrigação de o juiz aplicar o direito com olhos na função social da lei e no bem
coletivo.
O caso em exame, que envolve interesses de menor incapaz, deve atentar
também para o princípio da proteção integral da criança ou adolescente – que
deriva do postulado da dignidade da pessoa humana –, a quem se assegura
o exercício de todos os direitos fundamentais em condições de liberdade e
dignidade.
É justamente o que preceituam os arts. 1º e 3º, da Lei n. 8.069/1990
(Estatuto da Criança e do Adolescente - ECA), verbis:
258
Jurisprudência da SEGUNDA TURMA
Art. 1º Esta Lei dispõe sobre a proteção integral à criança e ao adolescente.
Art. 3º A criança e o adolescente gozam de todos os direitos fundamentais
inerentes à pessoa humana, sem prejuízo da proteção integral de que trata esta
Lei, assegurando-se-lhes, por lei ou por outros meios, todas as oportunidades
e facilidades, a fim de lhes facultar o desenvolvimento físico, mental, moral,
espiritual e social, em condições de liberdade e de dignidade.
Já o art. 4º desse diploma legal veicula o princípio da proteção preferencial,
em regime de absoluta prioridade, sobretudo na efetivação de direitos referentes
à vida, à saúde, à educação e à dignidade, assim preconizando:
Art. 4º É dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do poder
público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à
vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização,
à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e
comunitária.
Parágrafo único. A garantia de prioridade compreende:
a) primazia de receber proteção e socorro em quaisquer circunstâncias;
b) precedência de atendimento nos serviços públicos ou de relevância pública;
c) preferência na formulação e na execução das políticas sociais públicas;
d) destinação privilegiada de recursos públicos nas áreas relacionadas com a
proteção à infância e à juventude.
O art. 5º dispõe que “nenhuma criança ou adolescente será objeto de
qualquer forma de negligência ou discriminação (...), por ação ou omissão, aos
seus direitos fundamentais”.
É evidente que a norma dirige-se, também, ao aplicador do direito, que
não pode, por meio de interpretação literal e, portanto, desfocada dos princípios
que tutelam os interesses de menores, sobretudo incapazes, negligenciar seus
direitos fundamentais.
Por fim, o art. 6º do ECA, endossando as imposições gerais constantes
da LICC e da LINDB, determina que, “na interpretação desta Lei levar-se-ão
em conta os fins sociais a que ela se dirige, as exigências do bem comum, os
direitos e deveres individuais e coletivos, e a condição peculiar da criança e do
adolescente como pessoas em desenvolvimento”.
Portanto, a interpretação das normas previdenciárias que cuidam do direito
à reversão ao dependente do benefício de pensão por morte não pode descuidar,
nem um minuto sequer, dos princípios da dignidade da pessoa humana e da
RSTJ, a. 24, (226): 241-354, abril/junho 2012
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REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
proteção integral e preferencial de crianças e adolescentes, sobretudo quando
acometidas de incapacidade absoluta e permanente, como no caso.
Não é dado ao intérprete atribuir um conteúdo à norma jurídica que
atente contra a dignidade da pessoa humana e, consequentemente, contra o
princípio de proteção integral e preferencial a crianças e adolescentes, já que
esses postulados são a base do Estado Democrático de Direito e devem orientar
a interpretação de todo o ordenamento jurídico.
Firmada a premissa e fixado o critério interpretativo a ser utilizado no caso,
passemos a examinar as normas previdenciárias que regem o direito perseguido
pelo impetrante.
(B) As normas de conteúdo previdenciário aplicáveis ao caso
O art. 33, caput, da Lei n. 8.069/1990, ao tratar da guarda de menores,
deixa claro o dever do responsável de prestar assistência material, moral e
educacional à criança ou adolescente, ao mesmo tempo em que lhe assegura o
direito de opor-se a terceiros, inclusive aos pais.
Em outras palavras, a guarda transfere ao responsável o pátrio poder, que
passa a ter direitos e deveres perante o menor, à semelhança dos pais, que ficam
destituídos do poder familiar.
Por essa razão, o § 3º do art. 33 determina que “a guarda confere à criança
ou adolescente a condição de dependente, para todos os fins e efeitos de direito, inclusive
previdenciários”.
No caso dos autos, a avó paterna, pensionista de membro do Ministério
Público de Minas Gerais, por decisão judicial transitada em julgado, obteve
a tutela do impetrante, dada a ausência de condições financeiras dos pais
biológicos.
Portanto, ainda que não formalmente incluído como dependente no
Instituto de Previdência Estadual, o impetrante adquiriu essa condição ao ser
deferida a tutela judicial.
O art. 149, § 1º, da Lei Complementar Estadual n. 34/1994 determina que
a parcela da pensão destinada ao cônjuge sobrevivente reverterá em benefício
dos filhos, em caso de morte da pensionista, verbis:
Art. 149. A pensão destinada ao cônjuge sobrevivente e filhos será devida
àquele enquanto perdurar a sua viuvez e, no caso dos filhos matriculados em
260
Jurisprudência da SEGUNDA TURMA
curso regular de nível superior, estendida até a conclusão do curso, observado
o limite de 25 (vinte e cinco) anos de idade, extinguindo-se, também, pela
convolação de núpcias.
§ 1º - A parcela destinada ao cônjuge sobrevivente reverterá em benefício dos
filhos, em caso de morte ou cessação da viuvez, observado o disposto no caput
deste artigo.
Segundo a interpretação dada pelo aresto recorrido, o impetrante não era
filho do servidor segurado, nem mesmo da pensionista posteriormente falecida,
razão por que não reconheceu haver direito a amparar a pretensão mandamental.
Com todas as vênias à posição em contrário, não me parece correto o
raciocínio.
Em primeiro lugar, lembramos da necessidade de se interpretar a norma
com foco na dignidade da pessoa humana e no princípio de proteção integral e
preferencial do menor incapacitado.
Em segundo lugar, a norma, em momento algum, limita o instituto da
reversão apenas aos filhos do segurado. É plenamente possível, e mesmo
recomendável, em face dos princípios já declinados, interpretá-la de modo
a abarcar, também, os filhos da cônjuge sobrevivente, para evitar que
fiquem desamparados materialmente com o passamento daquela que os
mantinha.
Em terceiro lugar, a tutela do impetrante, concedida judicialmente à avó,
transferiu à tutora o pátrio poder, de modo que o neto tutelado, pelo menos para
fins previdenciários, pode e deve ser equiparado a filho da pensionista, o que
viabiliza a incidência da norma.
A Lei Complementar Estadual n. 64/2002, que “institui o regime próprio
de previdência e assistência social dos servidores públicos do Estado de Minas
Gerais e dá outras providências”, no art. 4º, § 3º, II, equipara a filho o menor sob
tutela judicial, nos seguintes termos:
Art. 4º. São dependentes do segurado, para os fins desta lei:
I - o cônjuge ou companheiro e o filho não emancipado, menor de vinte e um
anos ou inválido;
§ 3º. Equiparam-se aos filhos, nas condições do inciso I deste artigo, desde que
comprovada a dependência econômica e a ausência de bens suficientes para o
próprio sustento e educação:
RSTJ, a. 24, (226): 241-354, abril/junho 2012
261
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
II - o menor que esteja sob tutela judicial, mediante a apresentação do
respectivo termo.
Igualmente, o art. 16 da Lei n. 8.213/1991, que cuida do regime de custeio
da Previdência Social, é expresso ao equiparar o menor tutelado a filho, mediante
declaração do segurado e desde que comprovada a dependência econômica:
Art. 16. São beneficiários do Regime Geral de Previdência Social, na condição
de dependentes do segurado:
§ 2º. O enteado e o menor tutelado equiparam-se a filho mediante declaração
do segurado e desde que comprovada a dependência econômica na forma
estabelecida no Regulamento.
Na espécie, é fato incontroverso que o impetrante teve sua tutela deferida à
avó, que durante anos foi responsável por seu sustento material.
Os princípios da proteção integral do menor e da dignidade da pessoa
humana impõem a observância da regra contemplada no art. 4º, § 3º, II, da Lei
Complementar Estadual n. 64/2002, devendo o impetrante ser equiparado a
filho sem as limitações impostas pelo acórdão recorrido.
Nesse ponto, vale a pena transcrever o lúcido voto vencido do
Desembargador Alberto Vilas Boas:
O impetrante tem dezoito anos de idade e é portador de encefalopatia
crônica infantil - paralisia cerebral - derivada de parto prematuro, sendo certo
que é incapaz de se conduzir, praticar atos da vida ordinária e necessita de
cuidados especiais no que concerne à sua sobrevivência, segundo se observa dos
documentos que instruem a inicial.
Ocorre que, no decorrer de 1997, foi colocado sob tutela da avó paterna Elza
Serrano Ribeiro em processo judicial que tramitou perante a comarca de Pouso
Alegre que, no âmbito da aludida causa, foi considerada idônea para dele cuidar
conforme declarado na sentença de mérito.
Sendo assim, a tutora, então pensionista do Ministério Público do Estado de
Minas Gerais, provia todas as necessidades essenciais do impetrante, conquanto
não o tivesse inscrito como dependente seu junto ao citado órgão público.
Em razão do falecimento da tutora em 19 de abril de 2009, a autoridade
coatora não deferiu a reversão da pensão por morte e este é o objeto da ação
mandamental haja vista o nexo de dependência econômica então existente entre
o autor e a falecida pensionista.
Enfatizo, inicialmente, que não cabe discutir as razões que propiciaram ao
juízo da comarca de Pouso Alegre deferir a tutela à falecida pensionista, e, por
262
Jurisprudência da SEGUNDA TURMA
conseguinte, é lícito admitir que a finalidade do pedido consistiu em dar proteção
mais eficaz à pessoa do incapaz.
Neste particular, Rolf Madaleno esclarece que:
O tutor exerce um munus público, delegado pelo Estado ao transferir a
uma terceira pessoa o encargo de zelar pela criação, educação e pelos bens
do menor posto sob tutela. A tutela substitui o poder familiar, e se trata
de institutos de finalidades semelhantes, porque visam à preservação do
patrimônio do menor tutelado, e têm em mira o atendimento dos integrais
interesses do menor, para um crescimento sem percalços, com um sadio
desenvolvimento físico e mental, de modo ao tutelado poder construir sua
vida, seu futuro e o futuro de sua geração. (Curso de Direito de Família. Rio
de Janeiro: Forense, 2008, p. 824).
Poder-se-ia objetar, então, que a Lei Complementar n. 34/1994 - que organiza
o Ministério Público do Estado de Minas Gerais - não autorizaria concluir pela
reversão da pensão por morte ao tutelado em razão de ausência de previsão
legal.
No entanto, este entendimento é de um rigor formal muito intenso em sede
de instituto jurídico que deve merecer interpretação teleológica, em especial se
observado o contexto fático-normativo da causa.
Sim, porque é inegável a condição de dependente do impetrante em face
de sua falecida tutora, e, nada obsta que ostente esta condição aquele que se
encontrava sob tutela, especialmente diante do disposto no art. 4º, § 3º da Lei
Complementar Estadual n. 64/2002 aplicável a todos os servidores públicos
estaduais.
Dentro desta perspectiva, se a lei previdenciária estadual atribui ao tutelado a
condição de dependente, a circunstância de a lei orgânica ministerial nada dispor
sobre o tema não inviabiliza o exercício do direito pretendido pelo impetrante.
Não há preceito normativo que vede esta extensão e seria contraditório permitir
tratamento diferenciado entre dependentes, especialmente quando se sabe que
parte da pensão é paga com recursos do instituto previdenciário estadual.
Assim, a condição do impetrante e a forma como foi cuidado pela falecida Elza
Serrano, assimilou-se a de filho, e, como o art. 149, § 1º, da Lei Complementar Estadual
n. 64/1994 autoriza a reversão da pensão aos filhos, não seria válido dispensar
tratamento distinto ao incapaz que acabou por representar esta condição.
Logo, o raciocínio que estabeleço é no sentido de que, à luz do disposto no art.
227, CF, constituiria verdadeiro retrocesso suprimir do autor o direito de usufruir
da pensão quando ostentou, verdadeiramente, a condição de dependente da
falecida pensionista.
RSTJ, a. 24, (226): 241-354, abril/junho 2012
263
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
Fundado nestas razões e com a devida venia dos que têm entendimento em
sentido oposto, concedo a segurança nos termos requeridos na inicial. (e-STJ fls.
365-367).
Por fim, a Lei n. 8.112/1990, especificamente o art. 217, II, b e d, determina
que o menor sob guarda ou tutela e, também, o dependente econômico são
beneficiários das pensões até que completem 21 anos ou enquanto perdurar a
invalidez:
Art. 217. São beneficiários das pensões:
II - temporária:
b) o menor sob guarda ou tutela até 21 (vinte e um) anos de idade;
d) a pessoa designada que viva na dependência econômica do servidor, até 21
(vinte e um) anos, ou, se inválida, enquanto durar a invalidez.
Embora a referida lei restrinja seu alcance aos servidores públicos civis
da União, o dispositivo citado guarda profunda semelhança com a regra
contemplada no art. 4º da Lei Complementar Estadual n. 64/2002, o que
demonstra haver simetria entre os regimes previdenciários dos servidores
federais e estaduais, ambos contemplando o direito dos menores tutelados ao
benefício da pensão por morte.
Vale apena relembrar a regra do art. 33, § 3º, da Lei n. 8.069/1990, já
citada, para a qual “a guarda confere à criança ou adolescente a condição de
dependente, para todos os fins e efeitos de direito, inclusive previdenciários”.
Nesses termos posta a controvérsia, não parece haver dúvida quanto à
concessão da segurança, já que há regramento geral no Estatuto da Criança e
do Adolescente, norma específica no Estatuto dos Servidores Civis do Estado
de Minas Gerais, além de regra simétrica aplicada aos servidores civis da União.
Havendo regra a tutelar o direito perseguido em juízo, não deve o julgador
adotar exegese restritiva da norma, de modo a amesquinhar o postulado da
dignidade da pessoa humana e inibir a plena eficácia do princípio da proteção
integral do menor, sobretudo quando comprovada a sua invalidez permanente.
Ante o exposto, dou provimento ao recurso ordinário.
É como voto.
264
Jurisprudência da SEGUNDA TURMA
RECURSO EM MANDADO DE SEGURANÇA N. 36.949-SP
(2012/0007699-7)
Relator: Ministro Humberto Martins
Recorrente: Município de Taboão da Serra
Procurador: Elaine Cristina Kuipers Assad e outro(s)
Recorrido: Estado de São Paulo
Interessado: J V e outros
EMENTA
Constitucional. Administrativo. Estatuto da Criança e do
Adolescente. Direito a educação. Matéria pacífica no STF e no STJ.
Situação de urgência. Atuação administrativa do juízo da infância e
da juventude. Art. 153 da Lei n. 8.069/1990. Limites. Cabível no caso
concreto. Avaliação da juridicidade por meio da proporcionalidade e
da razoabilidade da medida. Ausência de direito líquido e certo.
1. Cuida-se de recurso ordinário interposto contra acórdão que
negou provimento ao pleito de anulação da determinação judicialadministrativa da Vara da Infância e da Juventude, que determinou
- após pedido do Conselho Tutelar e avaliação do Ministério Público
Estadual -, a oferta de duas vagas para menores em situação de risco,
bem como a transferência de outro, para efetivar o direito a sua
educação. O município atendeu a demanda, porém argumenta que
não é obrigado a cumprir determinação do juízo, salvo se esta for
derivada de um provimento jurisdicional contencioso.
2. A garantia constitucional ao direito a educação, em especial a
menores, é tema pacificado tanto no Supremo Tribunal Federal, quanto
no Superior Tribunal de Justiça: AgRg no Recurso Extraordinário n.
410.715-SP, Relator Min. Celso de Mello, Segunda Turma, julgado
em 22.11.2005, publicado no DJ em 3.2.2006, p. 76, Ementário vol.
2219-08, p. 1,529, RTJ vol. 199-03, p. 1.219, RIP v. 7, n. 35, 2006, p.
291-300, RMP n. 32, 2009, p. 279-290; e REsp n. 1.185.474-SC, Rel.
Min. Humberto Martins, Segunda Turma, julgado em 20.4.2010, DJe
29.4.2010.
RSTJ, a. 24, (226): 241-354, abril/junho 2012
265
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
3. A peculiaridade reside nos limites da atuação administrativa do
juízo da infância e da juventude, ao se deparar com situações urgentes
que demandem a sua atuação protetiva; em síntese, a pergunta é: pode
o órgão jurisdicional da infância e da juventude demandar, de ofício,
providências, com base no art. 153, da Lei n. 8.069/1990.
4. A doutrina é pacífica no sentido de que o juízo da infância
pode agir de ofício para demandar providência em prol dos direitos
de crianças e de adolescentes, que bem se amoldam ao caso concreto;
Leciona Tarcísio José Martins Costa: “O poder geral de cautela do
Juiz de Menores, atual Juiz da Infância e da Juventude, reconhecido
universalmente, sempre foi exercido independentemente de
provocação, já que consiste nas medidas protecionais e preventivas
que deve tomar, tendo em vista o bem-estar do próprio menor –
criança e adolescente – que deve ser resguardado e protegido por
determinações judiciais, mesmo que as providências acauteladoras
não estejam contempladas na própria lei” (Estatuto da Criança e do
Adolescente Comentado. Belo Horizonte: Del Rey, 2004, p. 315-316).
5. O controle jurisdicional de tais medidas deve ocorrer
pelo prisma da juridicidade, ou seja, pela avaliação; por um lado,
da necessidade de concretizar direitos dos menores, previstos na
Constituição Federal e na legislação; por outro, da proporcionalidade
e razoabilidade da medida. No escrever de Roberto João Elias, “A
faculdade concedida, entretanto, deve sempre ser utilizada em favor
da criança ou do adolescente, não podendo, de forma alguma, se
transformar em atitude arbitrária, que contrarie a finalidade primordial
da lei, que é a proteção integral do menor. É na busca de tal desiderato
que se permite a utilização de meios não considerados na legislação.
Tais meios, entretanto, devem se harmonizar completamente com os
princípios que regem a matéria, devendo-se sempre recordar que o
menor é sujeito e não objeto de direitos” (Comentários ao Estatuto da
Criança e do Adolescente - Lei n. 8.069, de 13 de Julho de 1990, 4 ed.
São Paulo: Saraiva, 2010, p. 211-212).
6. Em síntese, não é possível reconhecer a existência de
direito líquido e certo ao município impetrante, que objetive anular
determinação de providências no sentido de concretizar o direito a
266
Jurisprudência da SEGUNDA TURMA
educação de menores em situação de urgência, tal como pedido pelo
Conselho Tutelar.
Recurso ordinário improvido.
ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos os autos em que são partes as acima indicadas,
acordam os Ministros da Segunda Turma do Superior Tribunal de Justiça: “A
Turma, por unanimidade, negou provimento ao recurso ordinário, nos termos
do voto do Sr. Ministro-Relator, sem destaque e em bloco.” Os Srs. Ministros
Herman Benjamin (Presidente), Mauro Campbell Marques, Cesar Asfor Rocha
e Castro Meira votaram com o Sr. Ministro Relator.
Brasília (DF), 13 de março de 2012 (data do julgamento).
Ministro Humberto Martins, Relator
DJe 19.3.2012
RELATÓRIO
O Sr. Ministro Humberto Martins: Cuida-se de recurso ordinário em
mandado de segurança interposto pelo Município de Taboão da Serra, com
fundamento no art. 105, inciso II, alínea b, da Constituição Federal, contra
acórdão do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo assim ementado (e-STJ,
fl. 118):
Mandado de segurança. Pedido de providências no âmbito do Juízo da Infância
e Adolescente. Ofício à municipalidade para providenciar vagas e transferências
em escolas públicas, em favor de menores sob medida de proteção. Natureza
administrativa do procedimento e da medida de proteção. Inocorrência
de violação aos princípios do devido processo legal, da ampla defesa e do
contraditório. Ordem denegada. Pedido de providências urgentes e diversas dentre elas o de vaga e transferência escolar -, em favor de crianças e adolescentes
em situação de risco, têm natureza administrativa e comporta adoção de medidas
necessárias de ofício, em flexibilização procedimental, em prol da proteção
integral dos infantes, na forma dos artigos 53, 50 e 153, do Estatuto da Criança
e do Adolescente - ECA, sem ocorrência de violação ao devido processo legal,
ampla defesa e contraditório.
RSTJ, a. 24, (226): 241-354, abril/junho 2012
267
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
Friso que a controvérsia desenrola-se sob segredo de justiça, por haver
menores interessados; portanto não serão mencionados os nomes dos infantes
envolvidos no acórdão.
Nas razões do recurso ordinário (e-STJ fls. 125-131), descreve o município
recorrente que recebeu ofício da Vara da Infância e da Juventude com a
requisição de tomada de providências no sentido de garantir vagas escolares
para dois menores, bem como a transferência de outro, também menor. O
município alega que respondeu a demanda. Frisa que a determinação do juízo
não pode se revestir de cunho mandatório, pois teria ocorrido em desatenção
a diversos princípios constitucionais. Na petição inicial, pediu a suspensão da
determinação judicial (e-STJ, fl. 13).
Contrarrazões, nas quais se alega que deve ser improvido o recurso, já que
o art. 153 do Estatuto da Criança e do Adolescente dotaria o juízo do poderdever de requisitar serviços públicos de caráter protetivo a menores em situação
de carência. Assim, não haveria necessidade uma ação civil pública ou, sequer, de
iniciativa administrativa dos menores ou de seus responsáveis; em síntese, frisa
que - neste caso - pode o Poder Judiciário agir de ofício (e-STJ fls. 134-140).
Parecer do Subprocurador-Geral da República opina no sentido do não
provimento do recurso ordinário (e-STJ fls. 154-159), verbis (e-STJ fl. 154):
1. Processual Civil. Recurso ordinário em mandado de segurança.
Administrativo. Pedido de providência no âmbito do juizado da infância e da
adolescência. Providências determinadas para assegurar vagas de transferência
em escolas públicas em favor de menores sob medida de proteção. 2. Natureza
administrativa do procedimento e da medida de proteção. Inocorrência de
violação aos princípios do devido processo legal, ampla defesa e contraditório.
3. Inexistência de violação ao devido processo legal, ampla defesa e contraditório
para atendimento e cumprimento dos dispostos nos artigos 58, 70 e 153 do ECA.
4. Parecer pelo não conhecimento e improvimento do recurso.
É, no essencial, o relatório.
VOTO
O Sr. Ministro Humberto Martins (Relator): Não deve ser provido o
recurso.
O contorno fático é de simples apreensão.
268
Jurisprudência da SEGUNDA TURMA
No dia 4.3.2010, foi recebido um ofício expedido pelo juízo estadual, na
Secretaria Municipal de Educação, Cultura e Ciência e Tecnologia de Taboão
da Serra (SP). O Ofício relacionava-se ao Pedido de Providências n. 554/06 e
possuía o seguinte conteúdo (e-STJ, fl. 16):
Vara da Infância e da Juventude
(...)
Taboão da Serra, 1º de março de 2010.
Ilmo. Sr (a) Secretário,
Pelo presente, expedido nos autos da ação de pedido de providências, referente
aos menores (...), filhos de (...), em curso perante este Juízo e Cartório, respectivo,
requisito a Vossa Senhoria, as medidas necessárias no sentido de providenciar
vagas aos menores (...), da Escola Municipal Infantil Seninha, no período
matutino, bem como a transferência do menor (...) da Escola Municipal de Ensino
Fundamental Edson Mambelo para a Escola Estadual Maria Catharina Comino.
Apresento a Vossa Senhoria meu protesto de elevada estima e distinta
consideração.
Ao receber o ofício, o município encaminhou resposta, na qual solicitou
vista do processo denominado de Pedido de Providências n. 554/06.
Posteriormente, impetrou mandado de segurança, no qual frisa não se
eximir de efetuar a oferta de vagas, bem como a requisitada transferência.
Contudo, insurgiu-se contra a determinação do juízo da infância e da juventude.
O município reconhece que o ofício possui natureza de determinação
administrativa. Não obstante isso, considera que somente seria obrigado a
cumprir qualquer determinação do juízo, se a referida determinação fosse
derivada de um processo judicial.
Eis os termos da petição inicial (e-STJ, fl. 7):
Conforme se observou, o estatuto legal protetivo dos direitos da criança e
adolescente, no que tange ao cumprimento das prerrogativas nele estabelecidas,
é cristalino em determinar que este se dê através de regular processo judicial, o
qual se inicia com a propositura da ação cabível.
Ocorre que, em momento algum, houve a propositura de qualquer ação
judicial. Resta claro que a ordem judicial em questão foi tomada sem que
houvesse ocorrido o ajuizamento da ação judicial cabível, seja pelos menores,
seja pelo Parquet.
RSTJ, a. 24, (226): 241-354, abril/junho 2012
269
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
Em síntese, considera que o ofício consubstanciou ato ilegal, porque
externo a processo judicial, bem como porquanto não teria sido observado o
devido processo legal, o contraditório e a ampla defesa do município.
O Tribunal de origem não acolheu a tese levantada pelo município e
consignou (e-STJ, fls. 119-120):
Há que se distinguir, na esfera do Juízo da Infância e da Juventude, feitos
administrativos de feitos jurisdicionais: estes pressupõe o ajuizamento de ação
judicial e seguem o rigor formal do processo civil; aqueles são marcados como
providências de amparo a crianças e adolescentes, em regra de averiguação e
de proteção a infantes em situação de risco, que seguem princípios próprios do
processo administrativo e do Estatuto da Criança e do Adolescente, com maior
flexibilidade forma, sobretudo antes as medidas urgentes, necessárias à tutela de
direito ameaçado ou violado de criança e adolescente.
Ademais, o provimento que emana de um não equivale ao do outro, pois
enquanto o de natureza jurisdicional tem o foco de coisa julgada, o de feição
administrativa é despido desse caráter e, ao contrário, comporta não só revisão ou
reexame na própria sede administrativa, mas também questionamento em ação
judicial adequada.
No caso, estamos em sede administrativo-judicial (não jurisdicional) de pedido
de providências urgentes destinada à proteção de menores em situação de risco,
no bojo do qual, veio a determinação ora atacada, com escopo de assegurar
vagas no ensino infantil a dois menores e transferência escolar de um terceiro.
Em síntese, o município recorre e considera que não podem ser-lhe
determinadas providências por meio de ofício que não derive de ação judicial
e, ademais, que teriam sido inobservados os princípios processuais cabíveis aos
atos administrativos.
Passo a decidir.
Em primeiro lugar, cabe notar que a legislação federal é clara ao indicar
que o direito material a educação é uma obrigação dos entes estatais para com
os cidadãos, em especial para aqueles em idade escolar. No caso de menores,
isso é especialmente verificável do próprio texto do Estatuto da Criança e do
Adolescente (Lei n. 8.069/1990), que abaixo cito:
Art. 53. A criança e o adolescente têm direito à educação, visando ao pleno
desenvolvimento de sua pessoa, preparo para o exercício da cidadania e
qualificação para o trabalho, assegurando-se-lhes:
I - igualdade de condições para o acesso e permanência na escola;
(...)
270
Jurisprudência da SEGUNDA TURMA
V - acesso à escola pública e gratuita próxima de sua residência.
(...)
Art. 70. É dever de todos prevenir a ocorrência de ameaça ou violação dos
direitos da criança e do adolescente.
A questão é mansa tanto pelo viés constitucional, quanto pelo prisma
da lei federal. Neste sentido, tanto o Supremo Tribunal Federal, quanto o
Superior Tribunal de Justiça já pacificaram que é cabível o ajuizamento de ação
judicial para perseguição da efetividade do direito social a educação, em casos
congêneres.
Neste sentido:
Recurso extraordinário. Criança de até seis anos de idade. Atendimento em
creche e em pré-escola. Educação infantil. Direito assegurado pelo próprio texto
constitucional (CF, art. 208, IV). Compreensão global do direito constitucional à
educação. Dever jurídico cuja execução se impõe ao poder público, notadamente ao
município (CF, art. 211, § 2º). Recurso improvido. - A educação infantil representa
prerrogativa constitucional indisponível, que, deferida às crianças, a estas
assegura, para efeito de seu desenvolvimento integral, e como primeira etapa
do processo de educação básica, o atendimento em creche e o acesso à préescola (CF, art. 208, IV). - Essa prerrogativa jurídica, em conseqüência, impõe,
ao Estado, por efeito da alta significação social de que se reveste a educação
infantil, a obrigação constitucional de criar condições objetivas que possibilitem,
de maneira concreta, em favor das “crianças de zero a seis anos de idade” (CF,
art. 208, IV), o efetivo acesso e atendimento em creches e unidades de préescola, sob pena de configurar-se inaceitável omissão governamental, apta a
frustrar, injustamente, por inércia, o integral adimplemento, pelo Poder Público,
de prestação estatal que lhe impôs o próprio texto da Constituição Federal. - A
educação infantil, por qualificar-se como direito fundamental de toda criança,
não se expõe, em seu processo de concretização, a avaliações meramente
discricionárias da Administração Pública, nem se subordina a razões de puro
pragmatismo governamental. - Os Municípios - que atuarão, prioritariamente,
no ensino fundamental e na educação infantil (CF, art. 211, § 2º) - não poderão
demitir-se do mandato constitucional, juridicamente vinculante, que lhes foi
outorgado pelo art. 208, IV, da Lei Fundamental da República, e que representa
fator de limitação da discricionariedade político-administrativa dos entes
municipais, cujas opções, tratando-se do atendimento das crianças em creche
(CF, art. 208, IV), não podem ser exercidas de modo a comprometer, com apoio
em juízo de simples conveniência ou de mera oportunidade, a eficácia desse
direito básico de índole social. - Embora resida, primariamente, nos Poderes
Legislativo e Executivo, a prerrogativa de formular e executar políticas públicas,
revela-se possível, no entanto, ao Poder Judiciário, determinar, ainda que em
RSTJ, a. 24, (226): 241-354, abril/junho 2012
271
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
bases excepcionais, especialmente nas hipóteses de políticas públicas definidas
pela própria Constituição, sejam estas implementadas pelos órgãos estatais
inadimplentes, cuja omissão - por importar em descumprimento dos encargos
político-jurídicos que sobre eles incidem em caráter mandatório - mostra-se
apta a comprometer a eficácia e a integridade de direitos sociais e culturais
impregnados de estatura constitucional. A questão pertinente à “reserva do
possível”. Doutrina.
(AgRg no Recurso Extraordinário n. 410.715-SP, Relator Min. Celso de Mello,
Segunda Turma, julgado em 22.11.2005, publicado no DJ em 3.2.2006, p. 76,
Ementário vol. 2219-08, p. 1,529, RTJ vol. 199-03, p. 1.219, RIP v. 7, n. 35, 2006, p.
291-300, RMP n. 32, 2009, p. 279-290).
Administrativo e Constitucional. Acesso à creche aos menores de zero
a seis anos. Direito subjetivo. Reserva do possível. Teorização e cabimento.
Impossibilidade de arguição como tese abstrata de defesa. Escassez de recursos
como o resultado de uma decisão política. Prioridade dos direitos fundamentais.
Conteúdo do mínimo existencial. Essencialidade do direito à educação.
Precedentes do STF e STJ.
1. A tese da reserva do possível assenta-se em ideia que, desde os romanos,
está incorporada na tradição ocidental, no sentido de que a obrigação impossível
não pode ser exigida (Impossibilium nulla obligatio est - Celso, D. 50, 17, 185). Por
tal motivo, a insuficiência de recursos orçamentários não pode ser considerada
uma mera falácia.
2. Todavia, observa-se que a dimensão fática da reserva do possível é questão
intrinsecamente vinculada ao problema da escassez. Esta pode ser compreendida
como “sinônimo” de desigualdade. Bens escassos são bens que não podem ser
usufruídos por todos e, justamente por isso, devem ser distribuídos segundo
regras que pressupõe o direito igual ao bem e a impossibilidade do uso igual e
simultâneo.
3. Esse estado de escassez, muitas vezes, é resultado de um processo de
escolha, de uma decisão. Quando não há recursos suficientes para prover todas as
necessidades, a decisão do administrador de investir em determinada área implica
escassez de recursos para outra que não foi contemplada. A título de exemplo, o
gasto com festividades ou propagandas governamentais pode ser traduzido na
ausência de dinheiro para a prestação de uma educação de qualidade.
4. É por esse motivo que, em um primeiro momento, a reserva do possível
não pode ser oposta à efetivação dos Direitos Fundamentais, já que, quanto
a estes, não cabe ao administrador público preterí-los em suas escolhas. Nem
mesmo a vontade da maioria pode tratar tais direitos como secundários. Isso,
porque a democracia não se restinge na vontade da maioria. O princípio do
majoritário é apenas um instrumento no processo democrático, mas este não
se resume àquele. Democracia é, além da vontade da maioria, a realização dos
272
Jurisprudência da SEGUNDA TURMA
direitos fundamentais. Só haverá democracia real onde houver liberdade de
expressão, pluralismo político, acesso à informação, à educação, inviolabilidade
da intimidade, o respeito às minorias e às ideias minoritárias etc. Tais valores não
podem ser malferidos, ainda que seja a vontade da maioria. Caso contrário, se
estará usando da “democracia” para extinguir a Democracia.
5. Com isso, observa-se que a realização dos Direitos Fundamentais não é
opção do governante, não é resultado de um juízo discricionário nem pode ser
encarada como tema que depende unicamente da vontade política. Aqueles
direitos que estão intimamente ligados à dignidade humana não podem ser
limitados em razão da escassez quando esta é fruto das escolhas do administrador.
Não é por outra razão que se afirma que a reserva do possível não é oponível à
realização do mínimo existencial.
6. O mínimo existencial não se resume ao mínimo vital, ou seja, o mínimo para
se viver. O conteúdo daquilo que seja o mínimo existencial abrange também
as condições socioculturais, que, para além da questão da mera sobrevivência,
asseguram ao indivíduo um mínimo de inserção na “vida” social.
7. Sendo assim, não fica difícil perceber que dentre os direitos considerados
prioritários encontra-se o direito à educação. O que distingue o homem dos
demais seres vivos não é a sua condição de animal social, mas sim de ser um
animal político. É a sua capacidade de relacionar-se com os demais e, através da
ação e do discurso, programar a vida em sociedade.
8. A consciência de que é da essência do ser humano, inclusive sendo o seu
traço característico, o relacionamento com os demais em um espaço público onde todos são, in abstrato, iguais, e cuja diferenciação se dá mais em razão da
capacidade para a ação e o discurso do que em virtude de atributos biológicos
- é que torna a educação um valor ímpar. No espaço público - onde se travam
as relações comerciais, profissionais, trabalhistas, bem como onde se exerce
a cidadania - a ausência de educação, de conhecimento, em regra, relega o
indivíduo a posições subalternas, o torna dependente das forças físicas para
continuar a sobreviver e, ainda assim, em condições precárias.
9. Eis a razão pela qual o art. 227 da CF e o art. 4º da Lei n. 8.069/1990 dispõem
que a educação deve ser tratada pelo Estado com absoluta prioridade. No mesmo
sentido, o art. 54 do Estatuto da Criança e do Adolescente prescreve que é dever
do Estado assegurar às crianças de zero a seis anos de idade o atendimento em
creche e pré-escola. Portanto, o pleito do Ministério Público encontra respaldo
legal e jurisprudencial. Precedentes: REsp n. 511.645-SP, Rel. Min. Herman
Benjamin, Segunda Turma, julgado em 18.8.2009, DJe 27.8.2009; RE n. 410.715
AgR-SP - Rel. Min. Celso de Mello, julgado em 22.11.2005, DJ 3.2.2006, p. 76.
10. Porém é preciso fazer uma ressalva no sentido de que mesmo com a
alocação dos recursos no atendimento do mínimo existencial persista a carência
orçamentária para atender a todas as demandas. Nesse caso, a escassez não
seria fruto da escolha de atividades não prioritárias, mas sim da real insuficiência
RSTJ, a. 24, (226): 241-354, abril/junho 2012
273
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
orçamentária. Em situações limítrofes como essa, não há como o Poder Judiciário
imiscuir-se nos planos governamentais, pois estes, dentro do que é possível, estão
de acordo com a Constituição, não havendo omissão injustificável.
11. Todavia, a real insuficiência de recursos deve ser demonstrada pelo
Poder Público, não sendo admitido que a tese seja utilizada como uma
desculpa genérica para a omissão estatal no campo da efetivação dos direitos
fundamentais, principalmente os de cunho social. No caso dos autos, não houve
essa demonstração. Precedente: REsp n. 764.085-PR, Rel. Min. Humberto Martins,
Segunda Turma, julgado em 1º.12.2009, DJe 10.12.2009.
Recurso especial improvido.
(REsp n. 1.185.474-SC, Rel. Ministro Humberto Martins, Segunda Turma,
julgado em 20.4.2010, DJe 29.4.2010).
No caso concreto, há uma peculiaridade.
A determinação judicial derivou da ação administrativa do juízo da
infância e da juventude, com fulcro no art. 153, da Lei n. 8.069/1990 (Estatuto
da Criança e do Adolescente), cujo teor transcrevo:
Art. 153. Se a medida judicial a ser adotada não corresponder a procedimento
previsto nesta ou em outra lei, a autoridade judiciária poderá investigar os fatos e
ordenar de ofício as providências necessárias, ouvido o Ministério Público.
O Ministério Público Federal entende que não existe direito líquido e
certo, já que a atuação administrativa do juízo da infância e da juventude está
amparada legalmente (e-STJ, fls. 157-159):
A transferência escolar para vagas em favor de crianças e adolescentes em
situação de risco tem natureza administrativa, comportando medidas necessárias,
inclusive de ofício, com flexibilidade de procedimento para que se atendam aos
artigos 53, 70 e 153 do ECA.
(...)
O procedimento foi iniciado pelo Ministério Público do Estado de São Paulo,
diante de um relatório do Conselho Tutelar, em favor de três menores, para
assegurar vagas (...).
(...)
Portanto, o acórdão deu razoável interpretação aos dispositivos do Código,
e sobrepaira dizer que o interesse público está evidenciado pela proteção
constitucional aos direitos das crianças e dos adolescentes, razão pela qual opina
o MPF pelo não conhecimento e improvimento do recurso.
274
Jurisprudência da SEGUNDA TURMA
A doutrina pátria é consentânea em afirmar a possibilidade da ação
administrativa do juízo da infância e da juventude em medidas do gênero.
Assim menciona Kazuo Watanabe, no tocante ao papel ativo, conferido ao
magistrado da infância e da juventude pelo Estatuto:
O texto legal em análise dispõe, a um tempo, sobre o procedimento e sobre
os poderes do juiz. À inexistência de procedimento específico, a regra não é da
aplicação subsidiária do procedimento ordinário previsto no Código de Processo
Civil. Poderá ser adotado pelo juiz, ouvido o Ministério Público, o procedimento
que lhe parecer mais adequado. Por outro lado, não está ele sujeito ao princípio
dispositivo na instrução da causa, não tendo aplicação estrita, no regime do
Estado, o princípio da iniciativa das partes em matéria de prova (“judex secundum
allegata et probata partirum judicare debet”). Caber ao magistrado adotar a
iniciativa para “investigar os fatos e ordenar de ofício as providências necessárias”,
como é explícito o dispositivo comentado, o que bem revela que o Estatuto
perfilhou a tendência doutrinárias que procura conferir ao juiz, cada vez mais,
um papel mais ativo no processo. Isso conduz, por outro lado, à atenuação do
formalismo processual. (Artigo 153. In: Muniz Cury (Coord.). Estatuto da Criança
e do Adolescente Comentado: comentários jurídicos e sociais, 9 ed. São Paulo:
Malheiros Editores, 2008. p. 595).
No mesmo sentido, leciona Tarcísio José Martins Costa:
O poder discricionário conferido ao juiz no dispositivo em comento deve ser
entendido como faculdade que lhe é dada para, em harmonia, com a finalidade
precipuamente tutelar do Direito da Criança e do Adolescente. Como a lei não
pode prever tudo, nem a tudo prover, e a providência a ser adotada em favor do
menor não se adequar a um procedimento previamente delineado na lei, pode
o juiz proceder de acordo com o seu prudente critério, no sentido de dar melhor
solução ao caso concreto.
De há muito, o magistrado deixou de ser um conviva de pedra no processo,
cabendo-lhe de ofício, ou a requerimento da parte, determinar as provas
necessárias à instrução da causa, consoante se vê dos artigos 130 e 1.107, do
CPC. O artigo 153 do ECA tem ainda maior alcance do que as referidas normas
processuais, porquanto, além de conferir ao juiz atribuições de livre investigação
dos fatos, ou seja, o poder de direção e orientação do processo, outorga-lhe o
poder jurisdicional de ordenar, de ofício, as providências necessárias mesmo sem
procedimento legal, previamente previsto em lei.
(...)
O poder geral de cautela do Juiz de Menores, atual Juiz da Infância e da
Juventude, reconhecido universalmente, sempre foi exercido independentemente
de provocação, já que consiste nas medidas protecionais e preventivas que deve
RSTJ, a. 24, (226): 241-354, abril/junho 2012
275
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
tomar, tendo em vista o bem-estar do próprio menor – criança e adolescente – que
deve ser resguardado e protegido por determinações judiciais, mesmo que as
providências acauteladoras não estejam contempladas na própria lei. (Estatuto da
Criança e do Adolescente Comentado. Belo Horizonte: Del Rey, 2004, p. 315-316).
Acredito que a juridicidade de uma medida administrativa, tal como
prevista no art. 153 do Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei n. 8.069/1990),
precisa estar amparada pela juridicidade, ou seja, deve atender aos princípios da
norma específica, de proteção aos menores, bem como os delineamentos gerais
do sistema jurídico.
Neste sentido, indica Roberto João Elias:
A regra concede ao Juiz da Infância e da Juventude uma certa liberdade, no
que tange ao procedimento, dependendo da medida a ser adotada. A faculdade
concedida, entretanto, deve sempre ser utilizada em favor da criança ou do
adolescente, não podendo, de forma alguma, se transformar em atitude arbitrária,
que contrarie a finalidade primordial da lei, que é a proteção integral do menor. É
na busca de tal desiderato que se permite a utilização de meios não considerados
na legislação. Tais meios, entretanto, devem se harmonizar completamente com
os princípios que regem a matéria, devendo-se sempre recordar que o menor é
sujeito e não objeto de direitos.
(Comentários ao Estatuto da Criança e do Adolescente - Lei n. 8.069, de 13 de
Julho de 1990, 4 ed. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 211-212).
Na mesma seara, indica José de Farias Tavares:
Poderá ocorrer caso em que o juiz não encontre nesta lei, ou na legislação civil
ou penal, conforme seja de uma ou outra natureza, regra para aplicar. Decidirá o
caso concreto, então, aplicando medida, a critério seu, que se ajuste na prática aos
objetivos protecionistas do Estatuto. Se não chega a ser esta faculdade instituto
de direito livre ao modo da escola histórica, ou de criação do que se poderia
chamar de norma protetora em branco, será, contudo, uma abertura para o
processo de cunho social.
(Comentários ao Estatuto da Criança e do Adolescente. 7 ed. Rio de Janeiro:
Forense/GEN, 2010, p. 140).
Em síntese, tal problema normativo deve ser avaliado - em sede de controle
judicial -, também, por meio da aferição da proporcionalidade e da razoabilidade
da medida.
No caso concreto, tenho que não houve desbordo, já que a proteção
demandada pelo Conselho Tutelar foi encaminhada ao magistrado pelo Parquet,
276
Jurisprudência da SEGUNDA TURMA
e as providências demandadas não somente são plenamente efetiváveis, como
constam das atribuições constitucionais do município.
Logo, não é possível reconhecer a existência de direito líquido e certo ao
município impetrante, que objetive anular determinação de providências no
sentido de concretizar o direito a educação de menores em situação de urgência,
tal como pedido pelo Conselho Tutelar.
Ante o exposto, nego provimento ao recurso ordinário.
É como penso. É como voto.
RECURSO ESPECIAL N. 1.264.398-PR (2011/0157834-2)
Relator: Ministro Mauro Campbell Marques
Recorrente: Recupere - Serviços de Cobrança Ltda. e outro
Advogado: Eduardo Alves Paim e outro(s)
Recorrido: Fazenda Nacional
Advogado: Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional
Recorrido: Centrais Elétricas Brasileiras S/A - Eletrobrás
Advogado: Leandro Barata Silva Brasil e outro(s)
EMENTA
Processual Civil. Tributário. Empréstimo Compulsório sobre o
Consumo de Energia Elétrica. Devolução mediante conversão em ações
na forma do art. 4º, da Lei n. 7.181/1983. Valor patrimonial da ação
comparado ao valor de mercado. Inocorrência de abuso de direito.
1. Ausente a violação aos artigos 165, 458, II e III, 515, § 1º, e 535,
II, do CPC. O Poder Judiciário não está obrigado a enfrentar todas
as teses e artigos de lei invocados pelas partes, bastando fundamentar
suficientemente o decidido.
2. A alegada violação ao art. 31, § 6º, da CF/1988 não merece
conhecimento em sede de recurso especial, posto tratar-se de matéria
RSTJ, a. 24, (226): 241-354, abril/junho 2012
277
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
constitucional, de exame próprio pelo Supremo Tribunal Federal em
sede de recurso extraordinário.
3. O direito da Eletrobrás de converter os créditos em ações,
na sistemática de devolução do empréstimo compulsório sobre o
consumo de energia elétrica, encontra amparo no art. 3º do DL n.
1.512/1976 e no art. 4º da Lei n. 7.181/1983, não sendo suficiente
para caracterizar o seu exercício abusivo o fato de o valor patrimonial
da ação (valor considerado na conversão) ser superior a seu valor de
mercado (valor pelo qual as ações foram vendidas pelos particulares
no mercado).
4. Não há como restar caracterizado o abuso de direito quanto
existe somente uma forma para o seu exercício, isto é, quando não há
alternativa para aquele que exerce o seu direito de fazê-lo de outra forma
que gere prejuízo menor à outra parte. Considerar aqui o abuso, significa
impedir o exercício do próprio direito, significa dizer que o lícito é
ilícito, isto é, que o direito inexiste já que de impossível exercício.
A Eletrobrás, quando exerce o direito de conversão em ações, não tem
alternativa ao valor patrimonial da ação, visto que esta forma é a
legalmente prevista e a empresa está sujeita ao princípio da legalidade
vinculante à administração pública, tendo sido reconhecida a licitude
do procedimento nos recursos representativos da controvérsia: REsp
n. 1.003.955-RS e REsp n. 1.028.592-RS, Primeira Seção, Rel. Min.
Eliana Calmon, julgados em 12.8.2009.
5. A verificação da ausência de abuso de direito no presente caso
não exclui a possibilidade de se responsabilizar a Eletrobrás ou seus
dirigentes por eventual manipulação do valor de mercado ou do valor
patrimonial de suas ações (v.g. mediante a inserção de dados irreais no
balanço patrimonial), no intuito de realizar a conversão com prejuízo
aos contribuintes, o que não se discute nos presentes autos.
6. Recurso especial parcialmente conhecido e, nessa parte, não
provido.
ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos esses autos em que são partes as acima
indicadas, acordam os Ministros da Segunda Turma do Superior Tribunal
278
Jurisprudência da SEGUNDA TURMA
de Justiça, na conformidade dos votos e das notas taquigráficas, o seguinte
resultado de julgamento: “Prosseguindo-se no julgamento, após o voto-vista
do Sr. Ministro Cesar Asfor Rocha, acompanhando o Sr. Ministro Mauro
Campbell Marques, a Turma, por unanimidade, conheceu em parte do recurso e,
nessa parte, negou-lhe provimento, nos termos do voto do Sr. Ministro-Relator.”
Os Srs. Ministros Cesar Asfor Rocha (voto-vista), Castro Meira, Humberto
Martins e Herman Benjamin (Presidente) votaram com o Sr. Ministro Relator.
Brasília (DF), 2 de fevereiro de 2012 (data do julgamento).
Ministro Mauro Campbell Marques, Relator
DJe 10.2.2012
RELATÓRIO
O Sr. Ministro Mauro Campbell Marques: Trata-se de recurso especial
interposto por Recupere - Serviços de Cobrança Ltda. e Quimpil Química Industrial
Piracicabana Ltda. com fulcro nos permissivos constitucionais do art. 105, III, a
e c, contra acórdão proferido pelo Tribunal Regional Federal da 4ª Região em
processo onde se discute a legalidade dos critérios de devolução do empréstimo
compulsório sobre o consumo de energia elétrica mediante a conversão em
ações pelo valor patrimonial e a ocorrência de abuso de direito. O acórdão restou
assim ementado (e-STJ fls. 696-724):
Tributário. Empréstimo Compulsório Incidente sobre Energia Elétrica.
Conversão em ações. Art. 3º da Lei n. 1.512/1976. Possibilidade. Critérios. Data da
conversão. Valor patrimonial da ação. Abuso de direito. Não configuração.
1. A possibilidade de a Eletrobrás proceder a devolução do empréstimo
compulsório incidente sobre energia elétrica mediante conversão acionária
tem expressa previsão no art. 3º do Decreto-Lei n. 1.512/1976, que autoriza a
conversão dos créditos do contribuinte em ações preferenciais nominativas,
desde que haja autorização de sua Assembléia Geral.
2. No tocante ao valor das ações, ou seja, o preço dos títulos acionários que
a ser considerado para fins de se operar a conversão dos créditos, deve ser
observado o disposto no art. 4º da Lei n. 7.181/1983, segundo a qual “a conversão
dos créditos (...) será efetuada pelo valor patrimonial das ações, apurado em 31 de
dezembro do ano anterior ao da conversão”.
3. O valor patrimonial das ações resulta da avaliação de todo o acervo da
empresa, dividido pelo número de ações existentes, ou seja, representa
RSTJ, a. 24, (226): 241-354, abril/junho 2012
279
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
a correlação entre a situação econômico-financeira global da sociedade e o
número de ações emitidas. Já o valor de mercado resulta de diversos fatores, nem
sempre diretamente ligados ao desempenho da empresa; caracteriza-se por ser
extremamente volátil, flutuante e sujeito à especulação, não se revelando um
parâmetro seguro para a avaliação do valor real de uma ação.
4. A utilização como critério do valor patrimonial das ações ao invés de seu valor
de mercado decorre do exercício de um direito expressamente previsto no art. 4º da
Lei n. 7.181/1983, não havendo, em razão disso, falar em ato ilícito.
5. O fato de a Eletrobrás ter pleno conhecimento da cotação de suas ações no
momento da conversão acionária - substancialmente inferior ao valor patrimonial da
ação, à época das referidas assembleias de conversão -, por si só, não revela má-fé da
executada a caracterizar abuso de direito.
Os particulares alegam a ocorrência de violação aos artigos 165, 458, II
e III, 515, § 1º, e 535, II, do CPC; arts. 187, 884 e 927, do CC; e art. 31, §
6º, da CF/1988. Postulam o reconhecimento do enriquecimento sem causa e
indenização por ato ilícito praticado pela Fazenda Nacional e pela Eletrobrás
consistentes no abuso de direito no exercício da faculdade de conversão dos
créditos decorrentes do Empréstimo Compulsório sobre o Consumo de Energia
Elétrica em ações preferenciais para aumento do capital social da Eletrobrás.
Informam que a dita conversão gerou aos titulares dos créditos prejuízos de
grande monta ao realizarem a venda das ações na Bolsa de Valores de São
Paulo - Bovespa tendo em vista a diferença entre o valor patrimonial das ações
fixado pela Eletrobrás e o valor de mercado efetivamente praticado. Procuram
demonstrar o dissídio (e-STJ fls. 749-791).
Contra-razões da Fazenda Nacional nas e-STJ fls. 855-861.
Contra-razões da Eletrobrás nas e-STJ fls. 867-895.
Recurso regularmente admitido na origem (e-STJ fls. 910-911).
É o relatório.
VOTO
O Sr. Ministro Mauro Campbell Marques (Relator): De início, atesto
não terem sido maculados os artigos 165, 458, II e III, 515, § 1º, e 535, II, do
CPC. Isto porque o acórdão recorrido enfrentou de forma suficientemente
fundamentada a lide proposta, dando-lhe solução adequada ao raciocínio
desenvolvido. O Poder Judiciário não está obrigado a enfrentar todas as teses e
280
Jurisprudência da SEGUNDA TURMA
artigos de lei invocados pelas partes, bastando fundamentar suficientemente o
decidido.
Deixo de conhecer do recurso em relação à alegada violação ao art. 31, § 6º,
da CF/1988, posto tratar-se de matéria constitucional, de exame próprio pelo
Supremo Tribunal Federal em sede de recurso extraordinário.
Considero prequestionados os demais dispositivos legais invocados (arts.
187, 884 e 927, do CC), razão pela qual, prejudicado o exame pelo dissídio.
A tese desenvolvida pela recorrente centra-se na idéia de que houve abuso
no exercício, por parte da Eletrobrás, do direito de converter os créditos em
ações, nas 142ª e 143ª assembleias de conversão, com amparo no art. 3º do DL
n. 1.512/1976 e art. 4º da Lei n. 7.181/1983, causando, desse modo, prejuízos
aos então credores, já que o valor patrimonial da ação (valor considerado na
conversão) era superior a seu valor de mercado (valor pelo qual as ações foram
vendidas pelos particulares no mercado).
A respeito do tema tratado, muito elucidativos são os argumentos utilizados
em primeira instância e aproveitados pela Corte de Origem para rechaçar as
pretensões dos particulares, transcrevo (e-STJ fl. 708):
A decisão recorrida restou fundamentada nos termos em que passo a
transcrever, in verbis:
Quanto à discussão atinente ao valor atribuído às ações quando da
conversão, os autores alegaram abuso de direito pelas requeridas ao
utilizar como critério o valor patrimonial das ações ao invés de seu valor
de mercado. Ocorre que o emprego do citado parâmetro decorreu de exercício
de um direito expressamente previsto no art. 4.º da Lei n. 7.181/1983, não
havendo por isso de se falar em ato ilícito (art. 187, CCB/2002). De outra
banda, a parte autora não apontou qualquer inconstitucionalidade no
citado dispositivo que pudesse inquinar de nulidade o texto legal.
Trata-se de uma escolha feita pelo legislador, que, por sua vez, revela-se
bastante razoável ante as características do mercado de valores mobiliários.
Com efeito, a conversão do crédito em ações segundo o valor patrimonial
atende à necessidade de se estabelecer um parâmetro objetivo e estável
às partes. O valor de mercado dos títulos negociáveis em Bolsa de Valores,
em sentido contrário, sujeita-se às oscilações e especulações próprias
do mercado financeiro, podendo existir, num mesmo dia, considerável
acréscimo ou decréscimo de seu preço.
Ademais, o valor de mercado das ações poderia, no dia seguinte à
conversão dos créditos, encontrar-se acima do valor patrimonial - hipótese
RSTJ, a. 24, (226): 241-354, abril/junho 2012
281
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
em que a Eletrobrás teria “arcado” com o prejuízo (ante ao contido na
Lei n. 7.181/1983). Não se olvide, ainda, que, em se tratando de ações
negociáveis em bolsa de valores, a importância pode a qualquer tempo atingir
ou ultrapassar o valor atribuído por ocasião da conversão, sendo também
variável os respectivos dividendos, razão por que é impossível precisar a
efetiva existência de danos aos requerentes.
É bem verdade que os autores não estão obrigados a permanecer
como acionistas da Eletrobrás até a valorização das ações - conforme
argumento da inicial. Isso, porém, não afasta a possibilidade de elas terem
a potencialidade de ter seu valor de mercado aumentado a qualquer
tempo e de seus titulares auferirem ganhos superiores às diferenças ora
almejadas, seja com a alienação das citadas ações, seja com o recebimento
de dividendos. Essa aleatoriedade descaracteriza a existência de dano que
possa vir a ser indenizado tal como postulado no feito.
[...]
Irretocável o raciocínio empregado pelo julgador monocrático.
Não obstante, passo a tecer considerações contextuais a respeito da matéria
ora em debate.
Cumpre salientar, de início, que o art. 4º da Lei n. 7.181/1983 determinou que
a conversão dos créditos do empréstimo compulsório em ações da Eletrobrás
poderá ser total ou parcial, conforme decidir a Assembléia Geral, e que sua
conversão será pelo valor patrimonial das ações. O Supremo Tribunal Federal,
no RE n. 146.615-4, considerou recepcionada pela atual Constituição Federal
a conversão do crédito em ações, na forma determinada pela legislação.
Este dispositivo é materialmente compatível com a Constituição de 1988,
apresentando-se o critério escolhido pelo legislador em consonância com o
direito fundamental de propriedade, encartado no art. 5º, XXII, inexistindo
contrariedade, ainda, ao princípio que veda a estipulação de tributo com efeito de
confisco, consagrado no art. 150, IV.
O valor patrimonial das ações resulta da avaliação de todo o acervo
da empresa, dividido pelo número de ações existentes, ou seja, representa a
correlação entre a situação econômico-financeira global da sociedade e o número
de ações emitidas. Quanto ao valor de mercado, resulta de diversos fatores, nem
sempre diretamente ligados ao desempenho da empresa; caracteriza-se por
ser extremamente volátil, flutuante e sujeito à especulação, não se revelando
um parâmetro seguro para a avaliação do valor real de uma ação. Não se pode
concluir, portanto, que a conversão pelo valor patrimonial das ações acarreta
confisco, pelo simples fato de, em dado momento, haver descompasso com o
valor de mercado.
É de se observar, ainda, que a devolução em ações constitui prerrogativa
da Eletrobrás, que pode optar pela devolução em pecúnia ou em participação
282
Jurisprudência da SEGUNDA TURMA
acionária. A cláusula de inalienabilidade, consoante o § único do art. 3º do DL n.
1.512/1976, somente pode ser afastada por decisão da Assembléia Geral.
A tese desenvolvida pela parte autora centra-se na ideia de que houve abuso
de direito no exercício, por parte das rés, do direito de converter os créditos em
ações, nas 142ª e 143ª assembleias de conversão, com amparo no art. 3º do DL
n. 1.512/1976 e art. 4º da Lei n. 7.181/1983, causando, desse modo, prejuízos aos
então credores.
Consabido que o exercício de um direito, mesmo que amparado em lei, pode
configurar abuso de direito, previsto no art. 187 do Código Civil de 2002, quando
extravasar manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social,
pela boa-fé e os bons costumes, ensejando o dever de reparação do dano causado
por esse exercício, nos termos do art. 927 do CC/2002.
Sucede que o alegado abuso de direito, no caso sub examine, dependeria, a meu
ver, da efetiva comprovação de desvio na aplicação do critério legal observado
pela Eletrobrás, não sendo suficiente para sua configuração a simples demonstração
dos reflexos patrimoniais adversos experimentados pelos novos acionistas em razão
das mencionadas conversões acionárias. Outrossim, a despeito das alegações da
parte autora, entendo que o fato de a Eletrobrás ter pleno conhecimento da cotação
de suas ações no momento da conversão acionária - substancialmente inferior ao
valor patrimonial da ação, à época das referidas assembléias de conversão -, por si só,
não revela má-fé da executada a caracterizar abuso de direito.
Diante dos fatos narrados pela parte autora, não há como evidenciar, como
pretende fazer crer a parte recorrente, suposta desconsideração intencional por
parte da Eletrobrás dos reflexos patrimoniais adversos que a conversão acarretou
para os novos acionistas, mas, sim, que a executada valeu-se de prerrogativa
expressamente prevista em lei, compatível com o texto constitucional.
Ademais, em que pese seja relevante a afirmação de que há mais de vinte
anos o valor de mercado das ações nunca alcançou sequer a metade do valor
patrimonial apresentado em balanço, não há qualquer comprovação de que o
balanço patrimonial da empresa executada tenha contemplado dados irreais,
tampouco que a Eletrobrás tenha praticado irregularidades em sua contabilidade,
a fim de, com a manipulação de dados, “mascarar” sua situação patrimonial e, com
isso, devolver a seus credores valores inferiores ao devido, o que, aí sim, poderia
caracterizar, em tese, abuso de direito.
No entanto, como antes mencionado, não há qualquer demonstração no
sentido de que a executada tenha divulgado balanços contábeis dissociados da
realidade do ativo e passivo da empresa, hábil a causar lesão a seus credores.
Além disso, tampouco merece prosperar a alegação da recorrente no sentido
de que a devolução do empréstimo compulsório mediante conversão acionária,
sem a possibilidade de devolução do tributo em pecúnia, revelaria disposição
legal contrária ao princípio de direito privado da autonomia da vontade. Isso
RSTJ, a. 24, (226): 241-354, abril/junho 2012
283
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
porque a relação jurídica do contribuinte perante o ente tributante obedece
a regras próprias e princípios de direito público, não prevalecendo, pois, a
autonomia privada.
Dentro deste contexto, não vislumbro o abuso de direito supostamente
perpetrado pela Eletrobrás e pela União na opção pela conversão dos créditos
do empréstimo compulsório em ações, merecendo ser confirmada a sentença, no
particular.
Como bem enfrentado pela Corte de Origem, a lei é que determina a
conversão dos créditos pelo valor patrimonial da ação. Sendo assim, somente
haverá ilegalidade se restar demonstrado qualquer equívoco no procedimento que
culminou na fixação desse valor (v.g. não correspondência dos balanços à realidade
dos ativos e passivos da empresa, balanço irregular). A este respeito, transcrevo
trecho do voto da Exma. Min. Eliana Calmon quando do julgamento do recurso
representativo da controvérsia REsp n. 1.028.592-RS (Primeira Seção, Rel.
Min. Eliana Calmon, julgado em 12.8.2009):
Ao que tudo indica, em 31.12 do ano anterior à conversão, o valor patrimonial
das ações diferia substancialmente do valor de mercado.
Mas como bem destacou o memorial em comento, tomando como base a
situação de outras empresas, ora o valor patrimonial da ação é superior ao seu
valor de mercado, ora acontece justamente o inverso. Isso decorre exatamente da
natureza volátil do mercado de ações.
Daí porque o fato de, circunstancialmente, quando da conversão dos créditos
em ações o valor patrimonial ser superior ao valor de mercado, necessariamente
não se pode concluir que houve confisco ou devolução “a menor” do empréstimo
compulsório.
Contudo, são demasiadamente graves as afirmações de que há mais de 20
anos o valor de mercado das ações nunca alcançou sequer a metade do valor
patrimonial apresentado em balanço porque este é completamente irreal e
fictício, eis que a Eletrobrás vem praticando irregularidades em sua contabilidade,
com a manipulação de dados, para “mascarar” ou “maquiar” sua situação
patrimonial e, com isso, devolver aos seus credores valores inferiores aos devidos.
Mesmo que verídicos (e provados) fossem tais fatos, entendo que não são eles
suficientes para justificar a alteração do critério legal nessa demanda.
Nessas circunstâncias, o questionável seria um possível desvio na aplicação
do critério legal pela Eletrobrás que, ao divulgar balanços não correspondentes à
realidade dos ativos e passivos da empresa, causaram, em tese, lesão aos seus credores.
Sob esse prisma, a questão deveria ser resolvida em ação própria, no âmbito da
responsabilidade civil, através da qual teria o credor condições de provar que, não
284
Jurisprudência da SEGUNDA TURMA
obstante a utilização do critério legal, sofreu ele prejuízos específicos pela atuação
irregular da companhia na elaboração de seus balanços anuais.
Afora isso, não se há de perder de vista que a Eletrobrás está sujeita a controle
externo.
A CVM, juntamente com o Bacen, exercem a supervisão e controle do mercado
de capitais, de acordo com as diretrizes traçadas pelo Conselho Monetário
Nacional – CMN, não sendo demais destacar que a Lei n. 6.385/1976 (e alterações
posteriores) prevê a fiscalização:
® da emissão e distribuição de valores mobiliários no mercado (dentre os quais
se incluem as ações);
® das demonstrações financeiras dos emissores (dos valores mobiliários) por
auditor independente.
A mesma lei, no art. 4º, reputa ao CMN e à CVM, dentre outras, as atribuições
de:
® proteger os titulares de valores mobiliários e os investidores contra as
emissões irregulares de valores mobiliários e atos ilegais de administradores e
acionistas controladores das companhias abertas;
® evitar ou coibir modalidades de fraude ou manipulação destinadas a criar
condições artificiais de demanda, oferta, ou preço dos valores mobiliários
negociados no mercado; e
® assegurar a observância de práticas comerciais eqüitativas no mercado de
valores mobiliários.
Na qualidade de sociedade de economia mista, integrante da Administração
Indireta, a Eletrobrás sujeita-se também ao controle do Tribunal de Contas da
União (CF, art. 71, II). Nesse sentido, decidiu o Supremo Tribunal Federal:
Mandado de segurança. Ato do Tribunal de Contas da União. Atribuição do
órgão. Consultor jurídico. Sustentação da tribuna. Versando o mandado de
segurança ausência de atribuição do Tribunal de Contas da União, cabível
é a sustentação da tribuna pelo consultor jurídico do Órgão. Mandado de
segurança. Ato do Tribunal de Contas da União. Chamamento ao processo
das mesas da Câmara dos Deputados e do Senado. Inadequação. A previsão
do artigo 49 da Constituição Federal - de cumprir ao Congresso Nacional
fiscalizar e controlar, diretamente ou por qualquer de suas Casas, os atos
do Poder Executivo, incluídos os da administração indireta - não atrai
a participação do Poder Legislativo na relação processual de mandado
de segurança impetrado contra decisão do Tribunal de Contas da União.
Sociedade de economia mista. Tribunal de Contas da União. Fiscalização. Ao
Tribunal de Contas da União incumbe atuar relativamente à gestão de
sociedades de economia mista. Nova inteligência conferida ao inciso II
do artigo 71 da Constituição Federal, ficando superada a jurisprudência
RSTJ, a. 24, (226): 241-354, abril/junho 2012
285
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
que veio a ser firmada com o julgamento dos Mandados de Segurança n.
23.627-2-DF e n. 23.875-5-DF.
(MS n. 25.181-DF, Rel. Ministro Marco Aurélio, Pleno, julgado em
10.11.2005, DJ 16.6.2006 p. 6).
Ementa: Constitucional. Administrativo. Tribunal de Contas. Sociedade de
economia mista: fiscalização pelo Tribunal de Contas. Advogado empregado
da empresa que deixa de apresentar apelação em questão rumorosa. I. - Ao
Tribunal de Contas da União compete julgar as contas dos administradores e
demais responsáveis por dinheiros, bens e valores públicos da administração
direta e indireta, incluídas as fundações e sociedades instituídas e mantidas
pelo poder público federal, e as contas daqueles que derem causa a perda,
extravio ou outra irregularidade de que resulte prejuízo ao erário (CF, art. 71,
II; Lei n. 8.443, de 1992, art. 1º, I). II. - As empresas públicas e as sociedades
de economia mista, integrantes da administração indireta, estão sujeitas à
fiscalização do Tribunal de Contas, não obstante os seus servidores estarem
sujeitos ao regime celetista. III. - Numa ação promovida contra a CHESF,
o responsável pelo seu acompanhamento em juízo deixa de apelar. O
argumento de que a não-interposição do recurso ocorreu em virtude de
não ter havido adequada comunicação da publicação da sentença constitui
matéria de fato dependente de dilação probatória, o que não é possível no
processo do mandado de segurança, que pressupõe fatos incontroversos.
IV. - Mandado de segurança indeferido.
(MS n. 25.092-DF, Rel. Ministro Carlos Velloso, Pleno, julgado em
10.11.2005, DJ 17.3.2006 p. 6).
Existem, pois, diversos mecanismos que visam coibir as ilegalidades noticiadas,
bem como reprimi-las, de modo que descabe a esta Corte, não obstante a
gravidade dos fatos imputados à Eletrobrás, afastar nessa específica demanda
o critério eleito pelo legislador, até porque os eventuais prejuízos não decorrem,
diretamente, da conversão pelo valor patrimonial da ação, mas do suposto
desvio de aplicação do critério legal que teria, em tese, levado a um valor não
correspondente à realidade.
Outrossim, não há como restar caracterizado o abuso de direito quanto existe
somente uma forma para o seu exercício, isto é, quando não há alternativa para
aquele que exerce o seu direito de fazê-lo de outra forma que gere prejuízo menor à
outra parte. Considerar aqui o abuso, significa impedir o exercício do próprio
direito, significa dizer que o lícito é ilícito, isto é, que o direito inexiste já que de
impossível exercício. Nessa toada, não estranha o fato de o particular argumentar
que o procedimento correto seria o não exercício do direito à conversão por
parte da Eletrobrás (e-STJ fl. 780). A este respeito, impera mencionar que
286
Jurisprudência da SEGUNDA TURMA
Eletrobrás, quando exerce o direito de conversão em ações, não tem alternativa
ao valor patrimonial da ação, visto que esta forma é a legalmente prevista e
a empresa está sujeita ao princípio da legalidade vinculante à administração
pública. Veja-se:
Lei n. 7.181/1983
Art. 4º - A conversão dos créditos do empréstimo compulsório em ações da
Eletrobrás, na forma da legislação em vigor, poderá ser parcial ou total conforme
deliberar sua Assembléia Geral, e será efetuada pelo valor patrimonial das ações,
apurado em 31 de dezembro do ano anterior ao da conversão.
Parágrafo único - O valor da conversão que exceder à quantia determinada
pelo capital social, dividido pelo número de ações em circulação, será considerado
reserva de capital.
A alternativa de resgate em dinheiro dos créditos ao fim do prazo de 20
(vinte) anos não é comparável ao exercício da conversão em ações, posto que
mais penosa à Eletrobrás, tendo em vista o poder liberatório antecipado dessa
forma de devolução mediante conversão a antecipar o termo inicial do prazo
prescricional e a impedir a continuidade do fluxo de juros remuneratórios/
compensatórios, além da desnecessidade de liquidez quando da devolução.
De outro lado, é de se notar que o prejuízo sofrido foi circunstancial,
tendo em vista que a venda das ações no mercado foi opção do particular que
poderia tê-las mantido a fim de obter preço melhor em outra oportunidade.
Importa observar que a Eletrobrás não tem controle sobre o valor que suas ações
atingem no mercado. Desse modo, não há sequer critério seguro para mensurar
o prejuízo sofrido, o que relativiza a própria ocorrência do dano.
Na verdade, em tal situação, dizer que ocorreu qualquer abuso de direito
significa na prática indiretamente impugnar o próprio critério legal eleito para a
fixação do valor da ação quando da conversão. Esta é a insurgência do particular.
No entanto, a legalidade desse critério já foi objeto de julgamento nos recursos
representativos da controvérsia REsp n. 1.003.955-RS e REsp n. 1.028.592-RS,
conforme se segue:
1. Empréstimo Compulsório da Eletrobrás: conversão dos créditos pelo valor
patrimonial da ação:
1.1 Cabível a conversão dos créditos em ações pelo valor patrimonial e não
pelo valor de mercado, por expressa disposição legal (art. 4º da Lei n. 7.181/1983)
e por configurar-se critério mais objetivo, o qual depende de diversos fatores
RSTJ, a. 24, (226): 241-354, abril/junho 2012
287
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
nem sempre diretamente ligados ao desempenho da empresa. Legalidade do
procedimento adotado pela Eletrobrás reconhecida pela CVM.
1.2 Sistemática de conversão do crédito em ações, como previsto no DL n.
1.512/1976, independentemente da anuência dos credores.
[...]
(REsp n. 1.003.955-RS, Primeira Seção, Rel. Min. Eliana Calmon, julgado em
12.8.2009).
Desta forma, por não vislumbrar enriquecimento ilícito ou ato abusivo por
parte da Eletrobrás no simples exercício regular de seu direito de conversão dos
créditos em ações pelo valor patrimonial, entendo não assistir razão ao particular.
Por fim, a verificação da ausência de abuso de direito no presente caso não
exclui a possibilidade de se responsabilizar a Eletrobrás ou seus dirigentes por
eventual manipulação do valor de mercado ou do valor patrimonial de suas ações
(v.g. mediante a inserção de dados irreais no balanço patrimonial), no intuito de
realizar a conversão com prejuízo aos contribuintes. Tal situação, se devidamente
caracterizada e provada, poderia ensejar a indenização correspondente, no
entanto, não é objeto do presente processo.
Ante o exposto, conheço parcialmente do presente recurso especial e, nessa
parte, nego provimento.
É como voto.
VOTO-VISTA
O Sr. Ministro Cesar Asfor Rocha: Recurso especial baseado nas alíneas a
e c do permissivo constitucional, da relatoria do em. Ministro Mauro Campbell
Marques, interposto por Recupere Serviços de Cobrança Ltda. e por Quimpil
Química Industrial Piracicabana Ltda. contra o acórdão de fls. 696-724, da 1ª
Turma do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, assim ementado:
Tributário. Empréstimo Compulsório Incidente sobre Energia Elétrica.
Conversão em ações. Art. 3º da Lei n. 1.512/1976. Possibilidade. Critérios. Data da
conversão. Valor patrimonial da ação. Abuso de direito. Não configuração.
1. A possibilidade de a Eletrobrás proceder a devolução do empréstimo
compulsório incidente sobre energia elétrica mediante conversão acionária
tem expressa previsão no art. 3º do Decreto-Lei n. 1.512/1976, que autoriza a
conversão dos créditos do contribuinte em ações preferenciais nominativas,
desde que haja autorização de sua Assembléia Geral.
288
Jurisprudência da SEGUNDA TURMA
2. No tocante ao valor das ações, ou seja, o preço dos títulos acionários que
a ser considerado para fins de se operar a conversão dos créditos, deve ser
observado o disposto no art. 4º da Lei n. 7.1818/1983, segundo a qual “a conversão
dos créditos (...) será efetuada pelo valor patrimonial das ações, apurado em 31 de
dezembro do ano anterior ao da conversão”.
3. O valor patrimonial das ações resulta da avaliação de todo o acervo da
empresa, dividido pelo número de ações existentes, ou seja, representa
a correlação entre a situação econômico-financeira global da sociedade e o
número de ações emitidas. Já o valor de mercado resulta de diversos fatores, nem
sempre diretamente ligados ao desempenho da empresa; caracteriza-se por ser
extremamente volátil, flutuante e sujeito à especulação, não se revelando um
parâmetro seguro para a avaliação do valor real de uma ação.
4. A utilização como critério do valor patrimonial das ações ao invés de seu
valor de mercado decorre do exercício de um direito expressamente previsto no
art. 4º da Lei n. 7.181/1983, não havendo, em razão disso, falar em ato ilícito.
5. O fato de a Eletrobrás ter pleno conhecimento da cotação de suas ações no
momento da conversão acionária – substancialmente inferior ao valor patrimonial
da ação, à época das referidas assembleias de conversão –, por si só, não revela
má-fé da executada a caracterizar abuso de direito (fls. 723-724).
O Tribunal de origem acolheu, parcialmente, os declaratórios da ora
recorrente apenas para fins de prequestionamento (fls. 739-745).
No recurso especial, esclarecem as recorrentes que “ajuizaram ação
ordinária contra a União Federal e a Eletrobrás sustentando que o empréstimo
compulsório de energia elétrica é um tributo através do qual as recorridas tomaram
compulsoriamente um valor em dinheiro do contribuinte, com a obrigação
de devolver, em dinheiro, o mesmo valor corrigido monetariamente e acrescido
de juros, em prazo determinado. Sustentaram que o art. 3º do Decreto-Lei n.
1.512/1976, combinado com o art. 4º da Lei n. 7.181/1983, facultou a conversão
dos créditos em ações e que a última dessas conversões ocorreu através das 142ª e
143ª AGEs da Eletrobrás. Defenderam que a legislação que rege o empréstimo
compulsório de energia elétrica foi recepcionada pelo STF, que considerou
constitucional inclusive a conversão, sem, contudo, legitimar os efeitos
extremamente adversos para os credores transformados compulsoriamente em
acionistas da Eletrobrás” (fl. 751). Asseveram que, in verbis, “não questionam,
aqui, o direito legal à conversão dos créditos em ações, nem o valor utilizado para a
conversão (valor patrimonial). O que sustentam as recorrentes é que o direito
à conversão foi exercido quando o valor de mercado das ações estava, como de
resto sempre esteve, bastante depreciado. O exercício desse direito, no momento em
RSTJ, a. 24, (226): 241-354, abril/junho 2012
289
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
que se verificou, excedeu manifestamente a sua finalidade econômica e social que
era assegurar aos novos acionistas a realização de uma importância em dinheiro,
pelo menos equivalente ao valor de seus créditos. E esse fim foi manifestamente
desvirtuado em face da enorme diferença entre o valor patrimonial e o valor de
mercado das ações, em prejuízo dos titulares dos créditos. Também ultrapassou
o limite da boa-fé objetiva porque desconsiderou os reflexos patrimoniais
extremamente adversos que a conversão traria – como de fato trouxe – para
os novos acionistas, que confiavam receber os valores de seus créditos em
dinheiro, sem redução. Com isso, as rés cometeram ato ilícito, nos termos do
Novo Código Civil” (fls. 751-752). Pleitearam, então, “(a) o reconhecimento
da ilicitude do exercício do direito de conversão do empréstimo compulsório
em ações preferenciais; e (b) a condenação das recorridas ao pagamento de
indenização decorrente da diferença entre o valor da conversão, realizado pelo
valor patrimonial das ações da companhia, corrigido monetariamente entre a
data da conversão e a data da venda, e o montante que as autoras efetivamente
receberam, mediante a venda das suas ações na Bovespa, acrescida de juros de
mora” (fl. 752).
Ressaltam que se cuida de “matéria inédita, que não foi apreciada pelo
STJ nos Recursos Especiais n. 1.003.955-RS e n. 1.028.592-RS, pelo que é
inaplicável o art. 543-C ao presente caso” (fl. 757).
Alegam, preliminarmente, violação dos artigos 165, 458, incisos II e
III, 515, § 1º, e 535, inciso II, do Código de Processo Civil, tendo em vista
que o acórdão recorrido “não examinou, em suas razões de decidir, matéria
explicitamente alegada pelas recorrentes, notadamente no que refere à
necessidade de aplicação do art. 884 do Código Civil, e do art. 37, § 6º, da
Constituição Federal, ao presente caso” (fl. 757). Acrescentam que, apesar de
opostos embargos de declaração, permaneceu o Tribunal de origem sem cuidar
desses temas, implicando nulidade do julgado. Cita precedentes desta Corte e
do Supremo Tribunal Federal (fls. 759-760).
No mérito, esclarecem que “os prejuízos se materializaram no momento
em que as recorrentes, no exercício do direito constitucional de não se manterem
associados à Eletrobrás (art. 5º, inciso XX da CF), alienaram suas ações na Bolsa
de Valores de São Paulo. Esses prejuízos decorreram do fato de que receberam,
na conversão, ações preferenciais pelo valor patrimonial de R$ 130,00 por lote
de mil ações e as venderam em média por R$ 45,00 o milheiro, conforme se
comprova pelos documentos de fls. 72 a 89. O prejuízo foi em média de R$
85,00 por lote de mil ações” (fl. 763).
290
Jurisprudência da SEGUNDA TURMA
Sobre o nexo de causalidade “entre o ato que aprovou o aumento de
capital mediante a conversão dos créditos em ações e o dano sofrido pelas
autoras” (fl. 763), afirmam que está devidamente caracterizado, “primeiramente,
porque é um direito inquestionável dos titulares dos créditos decorrentes do
empréstimo compulsório de energia elétrica, reconhecido pela jurisprudência do
STF (RE n. 121.336-CE), o de receberem o equivalente ao valor emprestado,
em dinheiro, dentro de determinado prazo. O exercício da faculdade de
fazer o resgate antecipado, mediante conversão dos créditos em ações, só
encontraria legitimidade na medida em que estivesse assegurada aos acionistas
a possibilidade de realizarem o valor das ações através da sua venda em bolsa de
valores, única forma admitida por lei para a negociação de ações de companhia aberta,
face ao disposto no art. 19, combinado com o art. 21 da Lei n. 6.385/1976;
além disso, o valor realizado deveria ser equivalente ao dos créditos. Já o direito de
realização das ações encontra amparo no art. 5º, inciso XX, da CF (ninguém
pode ser obrigado a permanecer associado). Como não há prazo determinado
por lei para a realização do valor das ações no mercado, o exercício desse direito
poderá ser imediato” (fl. 763). Assim, “negar essa possibilidade de venda das
ações significaria frustrar a expectativa inerente ao empréstimo compulsório,
que é a devolução do mesmo valor emprestado, em dinheiro” (fl. 763). Ademais,
“se não tivesse havido a conversão, os credores receberiam o valor integral do
empréstimo, em dinheiro, na forma do art. 2º do Decreto-Lei n. 1.512/1976” (fl.
764).
Diante desse quadro e do que dispõem a Lei n. 7.181/1983 e os artigos
3º e 4º do Decreto-Lei n. 1.512/1976 sobre a conversão em ações, segundo
as recorrentes, teria o acórdão recorrido violado os artigos 187, 884 e 927 do
Código Civil ao negar a indenização pleiteada.
Para comprovar o dissídio jurisprudencial, traz precedente da 7ª Turma do
Tribunal Regional Federal da 1ª Região (fls. 787-790).
A Fazenda Nacional e a Eletrobrás apresentaram contrarrazões (fls. 855861 e 867-895).
O recurso especial foi admitido na origem (fl. 910-911).
O recurso extraordinário não foi admitido (fls. 912-914), tendo sido
interposto agravo em RE para o Supremo Tribunal Federal (fls. 916-926), já
contraminutado pela Eletrobrás (fls. 928-932).
O em. Ministro Mauro Campbell Marques, relator, conheceu em parte do
recurso especial e, nessa parte, negou-lhe provimento.
RSTJ, a. 24, (226): 241-354, abril/junho 2012
291
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
Entendeu, preliminarmente, que não foram violados os artigos 165, 458,
incisos II e III, 515, § 1º, e 535, inciso II, do Código de Processo Civil,
tendo em vista que o acórdão recorrido enfrentou de forma suficientemente
fundamentada a lide proposta, dando-lhe solução adequada ao raciocínio
desenvolvido. Acrescentou que o Poder Judiciário não está obrigado a enfrentar
todas as teses e artigos de lei invocados pelas partes, bastando fundamentar o
julgado.
No tocante ao art. 31, § 6º, da Constituição Federal, não conheceu do
recurso por se tratar de matéria constitucional, imprópria de ser reexaminada na
presente via.
No mérito, por final, argumenta que o valor atribuído às ações quando da
conversão decorreu da aplicação da norma legal (art. 4º da Lei n. 7.181/1983) e
ressalta que, diante das oscilações dos títulos negociáveis em Bolsa de Valores,
o valor de mercado das ações poderia, no dia seguinte ao da conversão dos
créditos, superar o próprio valor patrimonial adotado, cabendo à Eletrobrás
arcar com o prejuízo. Ressalta que, cuidando-se de ações negociáveis em
bolsa de valores, também seriam variáveis os respectivos dividendos, razão
por que seria impossível precisar a efetiva existência de danos aos requerentes.
Descaracterizou, igualmente o alegado abuso de poder e a ma-fé na conversão
em ações determinada nas AGE’s n. 142 e n. 143.
Devo acompanhar o voto do em. relator, também para conhecer
parcialmente do recurso especial e, nessa parte, negar-lhe provimento.
Primeiramente, escapa do âmbito do recurso especial o exame de eventuais
contrariedades, pelo acórdão recorrido, de normas constitucionais. Nessa parte,
portanto, deixou de conhecer do apelo extremo ora enfrentado.
Quanto aos artigos 165, 458, incisos II e III, 515, § 1º, e 535, inciso II, do
Código de Processo Civil, o acórdão recorrido os viola, tendo em vista que o
Tribunal Regional Federal da 4ª Região, expressa e extensamente, cuidou dos
fatos da causa e dos dispositivos legais e constitucionais relacionados à questão
jurídica em debate, rejeitando, entretanto, o pretendido direito à indenização (cf.
fls. 696-724).
No tocante ao mérito, não há qualquer ilegalidade ou abuso de direito
a ensejar a reparação de danos buscada pela recorrente na presente “Ação
Ordinária com Pedido Indenizatório Cumulada com Ação de Cobrança”
(fl. 3).
292
Jurisprudência da SEGUNDA TURMA
Segundo dispõe o art. 3º do Decreto-Lei n. 1.512/1976, “no vencimento
empréstimo, ou antecipadamente, por decisão da Assembléia Geral da
Eletrobrás, o crédito do consumidor poderá ser convertido em participação
acionária, emitindo a Eletrobrás ações preferenciais nominativas e seu capital
social”. Por outro lado, a Lei n. 7.181/1983, que prorrogou a vigência do
empréstimo compulsório, estabeleceu no seu art. 4º que “a conversão dos créditos
do empréstimo compulsório em ações da Eletrobrás, na forma da legislação em
vigor, poderá ser parcial ou total conforme deliberar sua Assembléia Geral, e
será efetuada pelo valor patrimonial das ações, apurado em 31 de dezembro do ano
anterior ao da conversão” (grifo meu).
As disposições referidas, aplicadas no caso concreto pela Eletrobrás, de
fato, podem gerar divergências numéricas relevantes entre o “valor patrimonial”,
utilizado na conversão do crédito em ações, e o “valor de mercado”, a ser
observado pelo credor/acionista no momento de alienar as suas ações na bolsa
de valores. No caso em debate, por exemplo, segundo a recorrente, “a conversão,
promovida pela Eletrobrás e sua controladora União Federal, utilizou o valor
patrimonial de 31.12.2004 que era, naquela data, de R$ 130,00 (cento e trinta
reais) por lote de 1000 ações, conforme se comprovada pelo balanço do exercício,
especificamente na Nota Explicativa das Demonstrações Financeiras n. 23 juntada
aos autos” (fl. 767). Acrescenta, então que “essas ações foram alienadas pelas
recorrentes em maio de 2007 na Bolsa de Valores de São Paulo pelo preço
médio de R$ 45,86 por lote de mil ações, conforme dossiês juntados aos autos”
(fl. 767).
Ocorre que esse tema, na verdade, já foi decidido, em regime de repetitivo
(art. 543-C do Código de Processo Civil), no julgamento do REsp n. 1.028.592RS, Primeira Seção, Ministra Eliana Calmon, DJe de 27.11.2009. No referido
precedente, com efeito, ficou decidido que a mera divergência entre o “valor
patrimonial” e o “valor de mercado” das ações não revela, por si, ilegalidade capaz
de ensejar reparação de danos. Ter-se-ia que, em ação própria – indenizatória –,
provar que o prejuízo resultou, efetivamente, de “suposto desvio de aplicação
do critério legal que teria, em tese, levado a um valor não correspondente à
realidade”. Para afastar qualquer dúvida, confiram-se as seguintes passagens do
relatório da em. Ministra Eliana Calmon:
Petição inicial
Ao proceder a uma retrospectiva das normas que regem o referido empréstimo,
destacou a autora:
RSTJ, a. 24, (226): 241-354, abril/junho 2012
293
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
[...]
16) se alguém tivesse seu crédito da Eletrobrás convertido em ações no dia
5.10.2001, por exemplo, e no mesmo dia vendesse no pregão da Bolsa de Valores,
teria realizado prejuízo de 77,18% de seu patrimônio, pois o valor de mercado (R$
27,30) foi apenas 22,82% do valor patrimonial (R$ 119,62), que serviu de base para
a conversão.
[...]
Conclui a autora que durante dez anos a ação da Eletrobrás foi negociada,
em média, a 19,21% do valor patrimonial, impondo severo prejuízo a quem foi
obrigado a recebê-la por aquele valor.
[...]
Recurso especial da autora
A empresa autora, com amparo nas alíneas a e c do permissivo constitucional,
aponta contrariedade aos arts. 1º do Decreto n. 20.910/1932, 168 e 110 do CTN,
1.256 do antigo CC, além de divergir de acórdão do STJ.
[...]
Insurge-se, ainda, quanto à parte do julgado que reconheceu caber à Eletrobrás
a escolha da devolução do empréstimo em dinheiro ou em ações porque tal
entendimento contraria os arts. 110 do CTN e 1.256 do antigo Código Civil (art.
586 do Código Civil atual).
Reafirma os argumentos de que a devolução sem correção integral e tomando
por base o valor patrimonial dos títulos causou-lhe prejuízos.
Por isso, pede a autora ao final:
[...]
b) seja facultado ao credor a escolha do recebimento dos créditos em dinheiro
ou em ações e, se em ações, tenha como base o valor de mercado dos títulos,
única forma de evitar prejuízos à recorrente e impedir o enriquecimento ilícito da
ré;
Do voto da em. relatoria, por sua vez, trago os seguintes fundamentos:
III - Recurso especial da empresa autora:
O art. 1.256 do CC/1916 dispõe:
O mútuo é o empréstimo de coisas fungíveis. O mutuário é obrigado
a restituir ao mutuante o que dele recebeu em coisas do mesmo gênero,
qualidade ou quantidade.
[...]
294
Jurisprudência da SEGUNDA TURMA
O mesmo entendimento não se aplica à tese de ter o credor direito de receber
o valor que compulsoriamente recolheu, porque a devolução sem correção
integral e tomando por base o valor patrimonial dos títulos causou-lhe prejuízos.
Nesse ponto, considero implicitamente prequestionada a tese em torno do art.
1.256 do CC/1916.
[...]
6) Devolução em ações: valor patrimonial x valor de mercado
Insurge-se a autora contra a parte do julgado que legitimou a conversão
dos créditos em ações pelo valor patrimonial e não pelo valor de mercado, como
postulado na inicial.
Segundo a autora, o critério utilizado causou-lhe prejuízo na medida em que
a cotação das ações da Eletrobrás em bolsa é muito inferior ao valor patrimonial,
que serviu de base para a conversão.
Para ilustrar suas assertivas, a autora trouxe na inicial dados relativos ao
Preço de Mercado (Cotação) X Valor Patrimonial da Eletrobrás de 1989 a 2001,
divulgados por instituições financeiras autorizadas pelo Bacen.
Concluiu que tal critério reduziu a 1/5 os valores recolhidos a título de
empréstimo compulsório, o que não se coaduna com os princípios do nãoconfisco e da garantia do direito de propriedade, bem assim com a própria
natureza do empréstimo compulsório.
[...]
Apenas para enriquecer o debate, considerando que esse tema ainda não foi
enfrentado pelo STJ, trago outros argumentos contidos em memorial que me
foi entregue em dezembro/2006, intitulado “novo confisco face ao critério de
conversão dos créditos do empréstimo compulsório sobre o consumo de energia
elétrica em participação acionária pelo valor patrimonial”.
Esclareço que, naquela ocasião, não se tinha notícias, no âmbito desta Corte,
de qualquer processo em que tivesse sido debatida a questão, tanto que o
referido memorial não faz referência a nenhum feito específico.
Embora tais informações não tenham sido trazidas pelas partes na discussão
dessa lide, entendo de absoluta pertinência o seu enfrentamento para que o tema
seja amplamente debatido e propicie ao STJ a adoção da solução mais adequada
à prestação jurisdicional e à uniformização da interpretação do direito federal.
Esses foram os argumentos trazidos pelos advogados subscritores do referido
memorial (Dr. Antônio Matos dos Santos, Dr. Renato Luiz Zechlinski Júnior e Dr.
Neimar Guimarães da Silva):
[...]
2) toma-se como exemplo um contribuinte que detinha 1.000 UP’s: na
data da conversão, essas UP’s correspondiam a R$ 12.230,00, uma vez que
RSTJ, a. 24, (226): 241-354, abril/junho 2012
295
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
a UP, divulgada pela Eletrobrás em janeiro/2005, correspondia a R$ 12,23;
ao dividir esse crédito pelo valor patrimonial de R$ 130,00 e considerando
que, na data da AGE, o valor das ações da Eletrobrás, negociadas na Bovespa,
representava meros R$ 30, 29, a restituição seria de apenas R$ 2.849,00;
[...]
Concluem que:
- o valor de mercado da ação da Eletrobrás sequer alcançou 50% de seu valor
patrimonial nos mais de 20 anos em que suas ações são negociadas em Bolsa,
sendo permanente esse “descompasso”, tomando de empréstimo a palavra
utilizada pelo então relator no TRF da 4ª Região; e
- não é razoável, legal e moral que, na data da conversão, os industriais contribuintes do empréstimo compulsório - sejam compelidos a adquirir ações
pelo preço de R$ 130,00 quando, na mesma data, qualquer investidor, inclusive os
inúmeros fundos que são acionistas da Eletrobrás, poderiam comprar as mesmas
ações por apenas R$ 30,00, preço recomendado por analistas de mercado, e em
torno do qual foram realizados os negócios na Bovespa no dia 30.6.2005, data da
realização da AGE.
Passo à análise do tema, dividindo-o em tópicos:
[...]
II - Conversão pelo valor patrimonial da ação:
Discute-se, na hipótese dos autos, o critério adotado para a conversão valor patrimonial -, em contraposição ao valor de mercado que, no entender da
recorrente, lhe causaria menor prejuízo. Eis os respectivos conceitos:
Valor patrimonial – É o resultado da divisão do patrimônio total da sociedade
pelo número de ações. Nos termos do art. 176, I, da Lei n. 6.404/1976, é obtido
pela divisão do patrimônio líqüido da sociedade pelo número de ações,
vindo definido, no final do exercício, por meio de demonstração financeira
denominada balanço. É o valor devido ao acionista em caso de liquidação
ou reembolso quando da retirada de um dos sócios (arts. 44 e 45 da Lei n.
6.404/1976).
Segundo Fábio Ulhoa Coelho:
O valor patrimonial é a parcela do patrimônio líqüido da sociedade
anônima correspondente a cada ação. É obtido pela divisão do valor em
reais do patrimônio líqüido pelo número de ações. Todos os bens e direitos
titularizados por uma companhia compõem o seu patrimônio bruto,
também chamado ativo. Ao se deduzir desse montante o correspondente
296
Jurisprudência da SEGUNDA TURMA
às obrigações devidas pela sociedade (quer dizer, o passivo), chega-se ao
patrimônio líqüido. Conceitualmente falando, o patrimônio líqüido de
determinado sujeito de direito é o seu ativo menos o passivo.
(...)
Na liquidação da sociedade anônima, depois de realizado o ativo e
satisfeito o passivo, procede-se à partilha do acerto social remanescente
(isto é, do patrimônio líqüido). Nessa oportunidade, é pago a cada acionista o
valor patrimonial das ações que possui. Na amortização de ações, operação
pela qual se antecipa ao acionista, no todo ou em parte, o quanto ele
receberia caso a sociedade fosse dissolvida (LSA, art. 44), também prevalece
o valor patrimonial da ação (total ou parcial). A partilha e a amortização
representam algumas das hipóteses em que o valor atribuído à ação
baseia-se no patrimônio líqüido da companhia; nelas, é irrelevante se há
ou não valor nominal previsto nos estatutos, e a respectiva quantificação,
assim como não importam, também, as demais valorações da participação
acionária.
(obra citada, fls. 85-87).
Valor de negociação – É o preço obtido pela ação quando de sua alienação
(valor de mercado), e é definido por uma série de fatores econômicos:
perspectiva de rentabilidade, patrimônio líquido, desempenho no setor, órgãos
de administração e a conjuntura econômica.
Sobre esse tópico, leciona o festejado autor:
O montante pago pela ação, quando adquirida - ou, o que é o mesmo,
o recebido, quando vendida - denomina-se valor de negociação. Não é
igual ao nominal, nem ao patrimonial. Se alguém está interessado em
comprar ações de certa companhia, deve entabular tratativas com um
acionista disposto a vendê-las. O valor atribuído à participação acionária,
nesse momento, dependerá unicamente do encontro de vontades desses
sujeitos de direito. A ação vale, ao ser negociada, o que o comprador
está interessado em pagar, e o vendedor em receber. Os demais
critérios de avaliação (nominal, patrimonial, econômico ou de emissão)
podem eventualmente servir de referência às partes para formularem
suas propostas iniciais ou transigirem durante as conversações. Nada,
porém, impede ou obriga a atribuição de um certo valor à participação
acionária, senão exclusivamente a vontade dos contratantes; se comprador
e vendedor acertam quanto ao número, é esse o valor de negociação
da ação. O maior ou menor distanciamento entre o valor acordado e os
critérios avaliadores do investimento apenas pode sugerir que o negócio foi
desvantajoso para uma parte e vantajoso para a outra.
RSTJ, a. 24, (226): 241-354, abril/junho 2012
297
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
Valor de negociação da ação é o contratado, por livre manifestação de
vontade, entre quem a aliena e quem a adquire. O principal elemento que
as partes do negócio levam em consideração, para chegar ao acordo, diz
respeito às perspectivas de rentabilidade da empresa.
Em negociações racionais, o fator econômico predominante
na formulação de propostas e nas transigências, de parte a parte, é a
expectativa de ganhos ligados ao investimento (são “racionais” as
negociações desenvolvidas entre pessoas não sujeitas a nenhuma
pressão, que guiam suas decisões por critérios de otimização dos recursos
disponíveis. (...) Em suma, o fator econômico predominante nas negociações
racionais de um investimento são as perspectivas de rentabilidade por ele
apresentadas. Tais perspectivas são determinantes na mensuração do valor
de negociação da ação.
Na aquisição de participação acionária, ressalte-se, o valor nominal é, em
geral, irrelevante; será levado em conta pelas partes apenas como indicador
da existência de garantia relativa contra a diluição, elemento de muito
pequena importância econômica.
O valor patrimonial da ação, por sua vez, também não será o
decisivo, embora sua importância, em determinadas negociações, possa
ser consideravelmente que a do nominal. Para compreender melhor a
relação entre esses dois parâmetros avaliativos da ação (o patrimonial e o
de negociação), tomem-se dois exemplos. No primeiro, imagine-se uma
sociedade anônima dedicada à prestação de serviços na área de informática.
Seu objeto é estruturar logiciários (programas de computador) que atendam
a demandas específicas das empresas clientes. Seu patrimônio líqüido terá,
normalmente, valor reduzido, já que será composto de equipamentos de
informática e mobiliários usados, bens essenciais ao desenvolvimento
dessa empresa, mas de pequeno valor de troca. Já as perspectivas de
rentabilidade do negócio podem ser elevadas de acordo com o potencial
de celebração de novos contratos. Em geral, numa sociedade com esse
perfil, o valor de negociação tende a ser consideravelmente maior que o
patrimonial.
No segundo exemplo, considere-se uma sociedade anônima industrial
cuja fábrica se encontra instalada em um imóvel próprio, de grandes
dimensões, localizado em centro urbano. Imagine-se que, por enquanto,
a companhia não passa por dificuldades econômicas, gerando receita
suficiente para o atendimento das despesas e para uma pequena margem
de lucros. Trata-se, contudo, de sociedade sem condições ou estímulo para
novos investimentos na modernização de suas instalações. Pois bem, se
a tecnologia, os processos e os equipamentos empregados na produção
estiverem obsoletos, em comparação com os das empresas concorrentes,
e se houver, por outro lado, interesse de algumas construtoras na
298
Jurisprudência da SEGUNDA TURMA
aquisição do terreno em que se encontra a fábrica, para a exploração de
empreendimento imobiliário, esse quadro sugere que as suas ações terão
valor de negociação tendencialmente inferior ao patrimonial.
Outro fator decisivo para a definição do valor de negociação da ação
diz respeito à sua espécie. Se o valor patrimonial é sempre o mesmo,
qualquer que seja a ação, o de negociação, ao inverso, varia se esta é
ordinária ou preferencial. Em outros termos, como são diferentes os
direitos titularizados pelos ordinarialistas e preferencialistas, inclusive
na distribuição de dividendos (item 2.1), isso costuma interferir nas
perspectivas de rentabilidade do investimento e, por via de conseqüência,
no valor de negociação que cada espécie de ação alcança no mercado.
Além da diferença em razão da espécie, cabe registrar que, mesmo entre
as ações ordinárias, o valor de negociação também varia de acordo com
a atribuição, ou não, do poder de controle. Quer dizer, o acionista titular
de certa quantidade de ações ordinárias, que lhe asseguram, de modo
permanente, a maioria nas deliberações sociais (ele é, p. ex., detentor de
mais da metade das ações com direito a voto), encontrará no mercado
investidores interessados em adquiri-las todas, pagando preço unitário
consideravelmente superior ao que pagariam por apenas parte delas
ou pelas ordinárias dos demais acionistas. Isto é, as ações de controle
valem mais, na hora da negociação, que as outras, porque está sendo
transacionada uma participação societária qualificada, que dará ao
adquirente o direito de administrar a sociedade anônima.
(...)
Desse modo, as ações emitidas por sociedades anônimas fechadas têm
apenas valor de negociação privada, enquanto que as de emissão das
companhias abertas podem ser também, e geralmente têm, o valor de
mercado. Em vista dessa classificação, aponta-se, aqui, mais um conjunto de
fatores interferentes na definição do valor de negociação de certas ações,
quais seja, as de companhia abertas: muitas vezes, na economia globalizada
do nosso tempo, especulações realizadas em bolsas de países asiáticos
causam baixa na cotação de ações brasileiras, na Bovespa, por exemplo.
Em resumo, o valor de negociação de uma ação é sempre o resultado
do acordo de vontades entre o vendedor e o comprador. A aceitação de
um preço maior ou menor, em razão dos mais variados fatores - desde os
particulares à companhia emissora até os relacionados à conjuntura política
ou macroeconômica - depende, uma vez mais, exclusivamente da vontade
das partes.
(obra multicitada, fls. 87-90).
Como bem observou o acórdão recorrido, a conversão, em tese, pode ter em
vista a cotação das ações no mercado, o valor patrimonial ou perspectivas de
RSTJ, a. 24, (226): 241-354, abril/junho 2012
299
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
rentabilidade da empresa. Mas o legislador, in casu, preferiu adotar como critério
o valor patrimonial das ações, como se depreende do art. 4º da Lei n. 7.181/1983,
verbis:
Art. 4º - A conversão dos créditos do empréstimo compulsório em
ações da Eletrobrás, na forma da legislação em vigor, poderá ser parcial ou
total conforme deliberar sua Assembléia Geral, e será efetuada pelo valor
patrimonial das ações, apurado em 31 de dezembro do ano anterior ao da
conversão.
A partir das observações colhidas da doutrina, é perfeitamente possível
verificar que o valor de mercado da ação depende de diversos fatores, muitos
deles nem sempre diretamente ligados ao desempenho da empresa.
O valor patrimonial, por sua vez, configura-se critério mais objetivo e não é,
necessariamente, menos vantajoso que o valor de mercado. Essa conclusão fica
bastante nítida a partir do exemplo trazido pelo Prof. Fábio Ulhoa Coelho. Por isso,
entendo que a questão não pode ser analisada a partir de uma visão simplista,
levando em consideração tão-somente o fato de o valor da ação no mercado ser
inferior ao seu valor patrimonial no momento da conversão.
Importante mencionar que a Comissão de Valores Mobiliários - CVM, em
12.3.2004, foi consultada a respeito do valor a ser adotado e da necessidade
de assegurar aos acionistas o direito de preferência na emissão das ações
preferenciais da classe “B”, provenientes da conversão dos créditos oriundos de
empréstimos compulsórios. Em resposta, manifestou-se a Autarquia através do
Ofício/CVM/SEP/GEA-1/N. 199/2004 nos seguintes termos:
(...)
Primeiramente, em relação à consulta acerca do critério a ser adotado
para a definição do valor das ações, somos de opinião de que a Lei n.
7.181/1983, sendo especial, afasta a incidência da norma geral da lei
societária, determinando, portanto, que estas novas ações terão o seu
preço de emissão estabelecido em razão, unicamente, do critério do valor
patrimonial líquido da ação.
(...)
Portanto, havendo a previsão legal e orientação da CVM quanto à emissão das
ações pelo valor patrimonial líquido, não poderia a companhia ter agido de forma
diversa.
Ademais, ainda que o valor de mercado da ação fosse, em tese, mais vantajoso
ao credor, a adoção de tal critério pelo STJ implicaria em negativa de vigência
ao art. 4º da Lei n. 7.181/1983, além do que esta Corte estaria legislando no caso
concreto, o que lhe é absolutamente vedado.
300
Jurisprudência da SEGUNDA TURMA
Essas são as considerações cabíveis ao STJ sob o aspecto infraconstitucional,
competindo ao STF o controle de constitucionalidade do referido dispositivo,
questão suscitada desde a inicial e reafirmada em sede de recurso extraordinário
admitido na origem (fls. 625).
III - Prejuízo dos credores:
Ao que tudo indica, em 31.12 do ano anterior à conversão, o valor patrimonial
das ações diferia substancialmente do valor de mercado.
Mas como bem destacou o memorial em comento, tomando como base a
situação de outras empresas, ora o valor patrimonial da ação é superior ao seu
valor de mercado, ora acontece justamente o inverso. Isso decorre exatamente da
natureza volátil do mercado de ações.
Daí porque o fato de, circunstancialmente, quando da conversão dos créditos
em ações o valor patrimonial ser superior ao valor de mercado, necessariamente
não se pode concluir que houve confisco ou devolução “a menor” do empréstimo
compulsório.
Contudo, são demasiadamente graves as afirmações de que há mais de 20
anos o valor de mercado das ações nunca alcançou sequer a metade do valor
patrimonial apresentado em balanço porque este é completamente irreal e
fictício, eis que a Eletrobrás vem praticando irregularidades em sua contabilidade,
com a manipulação de dados, para “mascarar” ou “maquiar” sua situação
patrimonial e, com isso, devolver aos seus credores valores inferiores aos devidos.
Mesmo que verídicos (e provados) fossem tais fatos, entendo que não são eles
suficientes para justificar a alteração do critério legal nessa demanda.
Nessas circunstâncias, o questionável seria um possível desvio na aplicação
do critério legal pela Eletrobrás que, ao divulgar balanços não correspondentes
à realidade dos ativos e passivos da empresa, causaram, em tese, lesão aos seus
credores.
Sob esse prisma, a questão deveria ser resolvida em ação própria, no âmbito
da responsabilidade civil, através da qual teria o credor condições de provar que,
não obstante a utilização do critério legal, sofreu ele prejuízos específicos pela
atuação irregular da companhia na elaboração de seus balanços anuais.
Afora isso, não se há de perder de vista que a Eletrobrás está sujeita a controle
externo.
A CVM, juntamente com o Bacen, exercem a supervisão e controle do mercado
de capitais, de acordo com as diretrizes traçadas pelo Conselho Monetário
Nacional - CMN, não sendo demais destacar que a Lei n. 6.385/1976 (e alterações
posteriores) prevê a fiscalização:
- da emissão e distribuição de valores mobiliários no mercado (dentre os quais
se incluem as ações);
RSTJ, a. 24, (226): 241-354, abril/junho 2012
301
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
- das demonstrações financeiras dos emissores (dos valores mobiliários) por
auditor independente.
A mesma lei, no art. 4º, reputa ao CMN e à CVM, dentre outras, as atribuições
de:
- proteger os titulares de valores mobiliários e os investidores contra as
emissões irregulares de valores mobiliários e atos ilegais de administradores e
acionistas controladores das companhias abertas;
- evitar ou coibir modalidades de fraude ou manipulação destinadas a criar
condições artificiais de demanda, oferta, ou preço dos valores mobiliários
negociados no mercado; e
- assegurar a observância de práticas comerciais eqüitativas no mercado de
valores mobiliários.
Na qualidade de sociedade de economia mista, integrante da Administração
Indireta, a Eletrobrás sujeita-se também ao controle do Tribunal de Contas da
União (CF, art. 71, II). Nesse sentido, decidiu o Supremo Tribunal Federal:
Mandado de segurança. Ato do Tribunal de Contas da União. Atribuição do
órgão. Consultor jurídico. Sustentação da tribuna. Versando o mandado de
segurança ausência de atribuição do Tribunal de Contas da União, cabível
é a sustentação da tribuna pelo consultor jurídico do Órgão. Mandado de
segurança. Ato do Tribunal de Contas da União. Chamamento ao processo
das mesas da Câmara dos Deputados e do Senado. Inadequação. A previsão
do artigo 49 da Constituição Federal - de cumprir ao Congresso Nacional
fiscalizar e controlar, diretamente ou por qualquer de suas Casas, os atos
do Poder Executivo, incluídos os da administração indireta - não atrai
a participação do Poder Legislativo na relação processual de mandado
de segurança impetrado contra decisão do Tribunal de Contas da União.
Sociedade de economia mista. Tribunal de Contas da União. Fiscalização. Ao
Tribunal de Contas da União incumbe atuar relativamente à gestão de
sociedades de economia mista. Nova inteligência conferida ao inciso II
do artigo 71 da Constituição Federal, ficando superada a jurisprudência
que veio a ser firmada com o julgamento dos Mandados de Segurança n.
23.627-2-DF e n. 23.875-5-DF.
(MS n. 25.181-DF, Rel. Ministro Marco Aurélio, Pleno, julgado em
10.11.2005, DJ 16.6.2006 p. 6).
Ementa: Constitucional. Administrativo. Tribunal de Contas. Sociedade de
economia mista: fiscalização pelo Tribunal de Contas. Advogado empregado
da empresa que deixa de apresentar apelação em questão rumorosa. I. - Ao
Tribunal de Contas da União compete julgar as contas dos administradores e
302
Jurisprudência da SEGUNDA TURMA
demais responsáveis por dinheiros, bens e valores públicos da administração
direta e indireta, incluídas as fundações e sociedades instituídas e mantidas
pelo poder público federal, e as contas daqueles que derem causa a perda,
extravio ou outra irregularidade de que resulte prejuízo ao erário (CF, art. 71,
II; Lei n. 8.443, de 1992, art. 1º, I). II. - As empresas públicas e as sociedades
de economia mista, integrantes da administração indireta, estão sujeitas à
fiscalização do Tribunal de Contas, não obstante os seus servidores estarem
sujeitos ao regime celetista. III. - Numa ação promovida contra a CHESF,
o responsável pelo seu acompanhamento em juízo deixa de apelar. O
argumento de que a não-interposição do recurso ocorreu em virtude de
não ter havido adequada comunicação da publicação da sentença constitui
matéria de fato dependente de dilação probatória, o que não é possível no
processo do mandado de segurança, que pressupõe fatos incontroversos.
IV. - Mandado de segurança indeferido.
(MS n. 25.092-DF, Rel. Ministro Carlos Velloso, Pleno, julgado em
10.11.2005, DJ 17.3.2006 p. 6).
Existem, pois, diversos mecanismos que visam coibir as ilegalidades noticiadas,
bem como reprimi-las, de modo que descabe a esta Corte, não obstante a
gravidade dos fatos imputados à Eletrobrás, afastar nessa específica demanda o
critério eleito pelo legislador, até porque os eventuais prejuízos não decorrem,
diretamente, da conversão pelo valor patrimonial da ação, mas do suposto
desvio de aplicação do critério legal que teria, em tese, levado a um valor não
correspondente à realidade.
Enfim, decidido, expressamente, no repetitivo acima que a mera
divergência entre o “valor patrimonial” e o “valor de mercado” das ações não
revela, por si, ilegalidade capaz de ensejar reparação de danos, caberia à ora
recorrente, autora da ação de indenização, comprovar, nas instâncias ordinárias,
desvios ou irregularidades praticadas pela Eletrobrás na confecção dos balanços
anuais com o firme propósito de se beneficiar e de prejudicar a acionista, antes
credora vinculado ao empréstimo compulsório. Tal comprovação, entretanto,
não desincumbiu a recorrente, que se limita a dizer que a conversão, diante da
flagrante diferença entre o “valor patrimonial” e o “valor de mercado”, ultrapassa
o limite da boa-fé objetiva, caracteriza abuso de direito e gera enriquecimento
indevido.
Sobre a questão fático-probatória, por sua vez, imutável nesta instância
especial, assim decidiu o Tribunal de origem, afastando qualquer indício de máfé por parte da Eletrobrás:
RSTJ, a. 24, (226): 241-354, abril/junho 2012
303
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
O valor patrimonial das ações resulta da avaliação de todo o acervo
da empresa, dividido pelo número de ações existentes, ou seja, representa a
correlação entre a situação econômico-financeira global da sociedade e o número
de ações emitidas. Quanto ao valor de mercado, resulta de diversos fatores, nem
sempre diretamente ligados ao desempenho da empresa; caracteriza-e por
ser extremamente volátil, flutuante e sujeito à especulação, não se revelando
um parâmetro seguro para a avaliação do valor real de uma ação. Não se pode
concluir, portanto, que a conversão pelo valor patrimonial das ações acarreta
confisco, pelo simples fato de, em dado momento, haver descompasso com o
valor de mercado.
[...]
Diante dos fatos narrados pela parte autora, não há como evidenciar, como
pretende fazer crer a parte recorrente, suposta desconsideração intencional por
parte da Eletrobrás dos reflexos patrimoniais adversos que a conversão acarretou
para os novos acionistas, mas, sim, que a executada valeu-se de prerrogativa
expressamente prevista em lei, compatível com o texto constitucional.
Ademais, em que pese seja relevante a afirmação de que há mais de vinte
anos o valor de mercado das ações nunca alcançou sequer a metade do valor
patrimonial apresentado em balanço, não há qualquer comprovação de que o
balanço patrimonial da empresa executada tenha contemplado dados irreais,
tampouco que a Eletrobrás tenha praticado irregularidades em sua contabilidade,
a fim de, com a manipulação de dados, “mascarar” sua situação patrimonial e, com
isso, devolver a seus credores valores inferiores ao devido, o que, aí sim, poderia
caracterizar, em tese, abuso de direito (fls. 709-710).
Ante o exposto, acompanho o relator para conhecer parcialmente do
recurso especial e, nessa parte, negar-lhe provimento.
RECURSO ESPECIAL N. 1.276.475-SP (2011/0064083-9)
Relator: Ministro Herman Benjamin
Recorrente: J A M R J
Advogado: Cláudia Melo Rosa
Recorrido: Fazenda do Estado de São Paulo
Procurador: Márcia Coli Nogueira e outro(s)
304
Jurisprudência da SEGUNDA TURMA
EMENTA
Administrativo. Processual Civil. Recurso especial. Indenização.
Dano moral. Princípio do juiz natural. Censura pública. Apelação
adesiva sobre honorários advocatícios. Ausência de prequestionamento
e incidência da Súmula n. 7-STJ. Cerceamento de defesa. Inexistência.
Segredo de justiça.
1. Trata-se na origem de Ação Ordinária movida por Juiz de
Tribunal de Alçada contra a Fazenda Pública de São Paulo em
razão de alusões injuriosas proferidas por membro da mesma Turma
julgadora durante sessão de julgamento.
2. Os dispositivos que tratam do princípio do juiz natural não
foram prequestionados e não se opuseram Embargos de Declaração.
Incidência da Súmula n. 211-STJ.
3. Para requalificar, na hipótese dos autos, eventuais rusgas
recíprocas como dano moral, seria essencial rever matéria fática, o que
é vedado pela Súmula n. 7-STJ.
4. O recorrente alega que o valor da causa não foi impugnado
e que sua majoração decorre de recurso adesivo, do qual não se
poderia conhecer pela ausência de sucumbência da Fazenda quando
da sentença. Porém, o art. 500 do CPC não foi prequestionado no
acórdão recorrido. Incidência da Súmula n. 211-STJ. No mais, a
revisão do quantum fixado depende de reanálise de matéria fática, o
que é vedado pela Súmula n. 7-STJ.
5. Rejeita-se a alegação de cerceamento de defesa por ausência
de intimação de audiências. Houve intimação das partes, pelo Diário
Oficial, sobre as audiências de instrução que culminaram com a
oitiva das testemunhas que tiveram excertos transcritos em sentença,
conforme consta de fls. 134-154 e 168-STJ. E mesmo que fosse
dessa forma, no mérito, o acórdão não retoma a análise da prova oral,
limitando-se à valoração do documento considerado ofensivo pelo
ora recorrente. As audiências não foram relevantes ou imprescindíveis
para o posicionamento tomado no acórdão recorrido. Pas de nulitté
sans grief. Precedente: REsp n. 1.201.317-GO, Segunda Turma, Rel.
Ministro Humberto Martins, DJe 14.12.2011.
RSTJ, a. 24, (226): 241-354, abril/junho 2012
305
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
6. Sobre o segredo de justiça, seu deferimento deu-se em saneador,
sem notícia de Agravo Retido ou qualquer outro tipo de irresginação
até o momento da apelação. Precedente do STJ.
7. Recurso Especial parcialmente conhecido e, nessa parte, não
provido.
ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos os autos em que são partes as acima indicadas,
acordam os Ministros da Segunda Turma do Superior Tribunal de Justiça: “A
Turma, por unanimidade, conheceu em parte do recurso e, nessa parte, negoulhe provimento, nos termos do voto do Sr. Ministro-Relator, sem destaque.” Os
Srs. Ministros Mauro Campbell Marques, Cesar Asfor Rocha, Castro Meira e
Humberto Martins votaram com o Sr. Ministro Relator.
Dr(a). Joao Augusto Melo Rosa Junior, pela parte recorrente: J A M R J.
Brasília (DF), 1º de março de 2012 (data do julgamento).
Ministro Herman Benjamin, Relator
DJe 12.4.2012
RELATÓRIO
O Sr. Ministro Herman Benjamin: Trata-se na origem de Ação Ordinária
movida por Juiz de Tribunal de Alçada contra a Fazenda Pública de São
Paulo em razão de alusões injuriosas proferidas por membro da mesma Turma
julgadora durante sessão de julgamento.
A demanda foi julgada improcedente, com amparo na seguinte
fundamentação:
Os testemunhos prestados neste processo contêm informação a respeito
do mal-estar causado a alguns dos juízes pelo modo como o autor durante as
sessões da 5ª Câmara ou do Terceiro Grupo de Câmaras se referia aos votos por
eles proferidos quando deles divergia (...).
Há notícia nos autos de que os juízes mais antigos reuniram-se para discutir
o problema e procurar um modo de convencer o autor a proferir seus votos sem
ofender os colegas. Consta que o Juiz Almeida Braga, por ser o presidente da
Turma Julgadora, foi incumbido de tentar solução para o problema (fls. 131-STJ).
306
Jurisprudência da SEGUNDA TURMA
Isto explica a conduta do Juiz Almeida Braga na sessão em que ocorreu o fato
(...) - fls. 181-183-STJ.
O acórdão recorrido afastou preliminares, manteve a sentença quanto
ao mérito, reformando-a apenas em relação à verba honorária, majorada de
R$ 100,00 para R$ 2.000,00. Afirmou que o teor do voto que teria ensejado o
pedido “é, sem dúvida, indicativo de desgaste na relação entre os dois juízes,
mas não evidencia caráter ofensivo, cuidando-se mais do exercício do direito
de dizer o que sente, o que pensa e por quais razões, liberdade de expressa do
pensamento e exercício do direito de crítica, repita-se, sem intenção de ofender.
Não caracterizada a ilicitude da conduta, não incide dever de indenização, ainda
que o autor possa ter-se sentido agastado, constrangido ou melindrado com a
situação” (fl. 258-STJ). Eis a ementa:
Dano moral. Nulidade da sentença não configurada porque apreciou
os aspectos que eram relevantes para o julgamento da causa, não incidindo
obrigatoriedade de responder a todos os argumentos e questionamentos das
partes. Imposição de segredo de justiça que não acarretou prejuízo algum para
as partes, por isso não constituindo motivo de nulidade. Testemunha ouvida
sem a presença do autor ou de quem o representasse, sem que houvessem
sido intimados para a audiência. Invalidade da prova que não compromete
a validade do processo e da sentença porque o fato que motiva o pedido do
autor é objeto de prova documental, incontroversa, nela baseada a sentença, de
modo que o referido depoimento não teve nenhuma influência no julgamento
da causa. Preliminares afastadas. Voto apresentado em sessão de julgamento
deste Tribunal que faz críticas à forma pela qual se expressa o voto vencido
proferido pelo autor. Indicação de desgaste na relação entre os dois juízes, mas
sem caráter ofensivo, cuidando-se mais de exercício da liberdade de expressão
do pensamento, do direito de dizer o que pensa, o que sente e por quais razões,
de exercício do direito de crítica, sem intenção de ofender. Não configurada a
ilicitude da conduta, descabe indenização por dano moral, ainda que o autor
possa ter-se sentido agastado, constrangido ou melindrado com a situação.
Honorários advocatícios, fixados em dez por cento do valor da causa (esta de
apenas mil reais), que se eleva, por equidade, tendo em vista a natureza da causa
e o trabalho desenvolvido pelos procuradores do Estado, para dois mil reais. Não
provido o recurso do autor e provido o da Fazenda do Estado (fl. 252-STJ).
O Recurso Especial é interposto com fundamento no art. 105, III,
a, da Constituição da República. O recorrente alega, além de divergência
jurisprudencial, violação dos arts. 548, 549, 125, I, 155, 261, parágrafo único,
500 e 20, §§ 3º e 4º, do CPC e 40 e 41 da Loman. Afirma que a substituição
RSTJ, a. 24, (226): 241-354, abril/junho 2012
307
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
do relator, sem qualquer certificação, viola o princípio do juiz natural e que o
magistrado nomeado não tem assento permanente na Corte. Aduz ser indevida
a decretação de sigilo porque a publicidade é a regra. Registra irregularidades nas
intimações para as audiências, o que provoca cerceamento de defesa e violação
do contraditório. Ressalta que recebeu censura pública sem direito de defesa.
Aponta ser indevida a majoração dos honorários sucumbenciais porquanto não
houve mútua sucumbência.
Contraminuta apresentada às fls. 309-318-STJ.
O Recurso foi indeferido em decisão genérica (fls. 321-322-STJ).
Em decisão monocrática, dei provimento ao Agravo para melhor exame da
matéria.
O Ministério Público Federal afirmou que as razões recursais são
insuficientes para infirmar as conclusões do acórdão recorrido (fls. 351-354 e
361-STJ).
É o relatório.
VOTO
O Sr. Ministro Herman Benjamin (Relator):
1. Princípio do Juiz Natural
Sobre o argumento de violação do princípio do juiz natural, não houve
prequestionamento, nem sequer implícito, da matéria. Nada foi dito sobre a
distribuição de fl. 240-STJ e os motivos da redistribuição de fl. 241-STJ.
Também não há notícia da oposição de Embargos de Declaração
destinados a sanar eventual omissão do acórdão recorrido.
Nem se diga que se trata de matéria de ordem pública, porquanto
consolidado o entendimento, na 2ª Turma, com a ressalva do meu ponto de
vista, de que mesmo esta depende do prequestionamento para que possa ser
realizado o debate em instâncias extraordinárias. Cito precedente:
Direito Administrativo. Mandado de segurança. Acórdão recorrido. Violação do
art. 219, § 5º, do CPC. Ausência de prequestionamento. Incidência da Súmula n.
211-STJ. Revisão de aposentadoria. PBPREV. Competência para o reconhecimento do
pedido. Interpretação da Lei Estadual n. 7.517/2003. Incidência da Súmula n. 280-STF.
308
Jurisprudência da SEGUNDA TURMA
Hierarquia entre entes da administração pública. Necessidade de análise de lei local.
Incidência da Súmula n. 280-STF. Dissídio jurisprudencial. Cotejo analítico e similitude
fática não comprovados. 1. A falta de prequestionamento da matéria suscitada
no recurso especial - ofensa ao art. 219, § 5º, do CPC - impede o conhecimento
do recurso especial por incidência do teor da Súmula n. 211-STJ. 2. Depois de
reiterados pronunciamentos da Corte Especial, a jurisprudência pacificou-se
em não conhecer do recurso especial quando ausente o prequestionamento,
requisito indispensável à sua admissibilidade, nos termos do art. 105, III, da
Constituição da República, ainda que se trate de matérias de ordem pública - no
caso, a aplicação do art. 219, § 5º, do Código de Processo Civil. (...) 5. Ocorrendo
omissão de questão fundamental ao deslinde da causa, deve a parte, no
recurso especial, alegar ofensa ao art. 535, inciso II, do Código de Processo Civil,
demonstrando, de forma objetiva, a imprescindibilidade da manifestação sobre
a matéria impugnada e em que consistiria o vício apontado, e não interpor o
recurso contra a questão federal não prequestionada, como ocorreu na presente
hipótese. (...) 9. Agravo regimental não provido. (AgRg no Ag n. 1.355.007-PB, Rel.
Ministro Castro Meira, Segunda Turma, julgado em 14.6.2011, DJe 30.6.2011).
Incide, portanto, a Súmula n. 211-STJ.
2. Censura Pública
O recorrente afirma ter-lhe sido aplicada censura pública sem direito de
defesa. Para tanto, aponta como violados os arts. 40 e 41 da Loman.
Inicialmente, não se poderia compreender o ato impugnado como censório
em sentido, em razão dos termos do art. 42, parágrafo único, do mesmo diploma,
ao prever que “as penas de advertência e de censura somente são aplicáveis aos
Juízes de primeira instância”.
Contudo, para qualificar eventuais rusgas de parte a parte como
“impropriedade”, derivação de “excesso de linguagem” ou ato causador de dano
moral, especialmente à luz da dignidade e da independência do magistrado,
seria essencial, na hipótese dos autos, a revisão da matéria fática que ensejou o
julgamento, o que é vedado pela Súmula n. 7-STJ.
3. Os honorários advocatícios
O recorrente alega que o valor da causa não foi impugnado e que sua
majoração decorre de recurso adesivo, do qual não se poderia conhecer pela
ausência de sucumbência da Fazenda quando da sentença.
O valor da causa foi fixado na inicial, para efeitos fiscais, em R$ 1 mil reais.
A sentença de improcedência condenou o autor ao pagamento de honorários
RSTJ, a. 24, (226): 241-354, abril/junho 2012
309
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
arbitrados em 10% do valor da causa. A Fazenda apelou adesivamente visando
à majoração da verba, considerada irrisória, à luz da atividade exercida, das
particularidades processuais do caso, tudo com amparo no art. 20, § 4º, do
CDC, argumento devidamente acolhido.
Vejo que o art. 500 do CPC não foi prequestionado no acórdão recorrido.
Como já dito, a ausência de Embargos de Declaração ratifica a incidência da
Súmula n. 211-STJ.
No mais, a revisão do quantum fixado dependeria da reanalisar matéria
fática, posto que o valor não parece, prima facie, exagerado, incidindo, assim, a
Súmula n. 7-STJ.
4. Cerceamento de defesa
O Recorrente alega cerceamento de defesa, em razão da ausência de
intimação de audiências.
Sobre a prova oral, a sentença assim se manifestou:
Ocorre que os testemunhos prestados neste processo contêm informação
a respeito do mal-estar causado a alguns dos juízes pelo modo como o autor
durante as sessões da 5ª Câmara ou do Terceiro Grupo de Câmaras se referia
aos votos por eles proferidos quando deles divergia (“... Quando o doutor
Mello Rosa iniciou sua judicatura no 3º Grupo de Câmaras a maneira como
proferia sues votos criou profundo mal estar entre os demais integrantes
daquele órgão (...) divergindo de votos já proferidos fazia críticas contudentes
e que ofendiam e desagradavam os prolatores daqueles votos” - fls. 131; “(...)
O juiz Melo Rosa (...) Diante da divergência de voto apresentada por algum
dos colgas se mostrava de forma, para dizer o menos, bastante indelicada (fls.
142)” (fl. 182-STJ).
Mesmo que superado o óbice da Súmula n. 7-STJ, uma rápida investigação
dos autos indica a intimação das partes, pelo Diário Oficial, sobre as audiências
de instrução que culminaram com a oitiva das testemunhas que tiveram excertos
transcritos em sentença, conforme consta de fls. 134-154 e 168-STJ.
E mesmo que fosse dessa forma, no mérito, o acórdão não retoma a análise
da prova oral, limitando-se à valoração do documento considerado ofensivo pelo
ora recorrente. As audiências não foram relevantes ou imprescindíveis para o
posicionamento tomado no acórdão recorrido, que assim se manifestou sobre a
preliminar:
310
Jurisprudência da SEGUNDA TURMA
De fato, não consta certidão de intimação das partes e seus advogados a
respeito da audiência designada para 9 de dezembro de 2002, 17:00 horas (fls.
73), o que invalida o depoimento nela colhido porque sem a presença do autor ou
de quem o representasse (fls. 94-96).
Todavia, esse fato não compromete a validade do processo nem da sentença,
uma vez que o fato que motiva o pedido do autor é objeto de prova documental
sobre o qual não paira qualquer controvérsia, tanto que a sentença está fundada
nesse documento e não na prova testemunhal, o que significa que o referido
depoimento, não tendo influenciado no julgamento da causa, não acarretou
qualquer prejuízo (fls. 253-254-STJ).
Correta a interpretação dada, corroborada pela jurisprudência desta Corte,
que prestigia a instrumentalidade do processo e a aplicação do brocardo pas de
nulitté sans grief:
Administrativo e Processual Civil. Improbidade. Ausência de intimação do réu
para audiência de oitiva de testemunha. Colisão entre princípios. Contraditório
e ampla defesa. Economia processual e instrumentalidade das formas.
Sopesamento. Prova não essencial. Fato incontroverso. Ausência de prejuízo - pas
de nullité sans grief.
1. Não apenas o Direito Constitucional mas também o Processual Civil recebe a
influência cada vez maior da ideologia pós-positivista, segundo a qual, em razão
da hegemonia axiológica dos princípios, estes se convertem em alicerce de todo
sistema normativo e, assim como as regras, podem disciplinar situações concretas
e impor obrigação legal.
2. A diferença primordial entre princípios e regras, da qual decorrem todas as
outras, é que esses contém um mandamento de otimização. Isso quer dizer que
é intrínseco a um princípio o comando de se aplicar no maior número de casos
possíveis dentro das possibilidades jurídicas e fáticas existentes.
3. Em decorrência desse mandamento de otimização, os princípios estão
sujeitos a constantes colisões. Não é raro que dois ou mais princípios incidam
sobre um mesmo caso concreto e que, se aplicados em conjunto, levariam a
resultados inconciliáveis, a juízos concreto de dever-ser jurídico contraditórios.
4. Em uma colisão entre princípios, não há uma relação de precedência
absoluta. A preponderância de um sobre o outro dependerá do caso concreto,
que, em razão das específicas condições, revelará qual princípio tem mais peso e
por tal motivo deve prevalecer.
5. Há, no caso dos autos, uma flagrante irregularidade processual consistente
na ausência de intimação do ora recorrente para acompanhar a audiência da
testemunha Marli Ferreira Chaves. Esse fato, analisado isoladamente, representa
RSTJ, a. 24, (226): 241-354, abril/junho 2012
311
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
uma ofensa ao contraditório e ao devido processo legal, motivo pelo qual a
primeira solução que se poderia pensar seria a anulação do processo desde a
ocorrência na anomalia.
6. Contudo, há especificidades que não recomendam esse desfecho. Isso
porque, conforme assentado pelo Tribunal de origem, a irregularidade da ausência
de intimação do acusado não lhe trouxe prejuízo, seja porque a prova produzida
sem o contraditório não foi determinante na fundamentação da sentença, seja
porque o fato sobre o qual a testemunha foi interrogada era incontroverso ante a
ausência de impugnação da defesa.
7. Tais circunstâncias elevam o peso dos princípios da instrumentalidade das
formas e da economia processual, já que, em que pese a ausência de intimação
do acusado para exercer o contraditório na oitiva da testemunha, tal vício não
lhe acarretou prejuízo. Aplica-se, in casu, o princípio do “pas de nulitté sans grief”,
segundo o qual não há nulidade sem prejuízo.
Preliminar de cerceamento de defesa rejeitada.
Recurso especial improvido.
(REsp n. 1.201.317-GO, Rel. Ministro Humberto Martins, Segunda Turma,
julgado em 16.6.2011, DJe 14.12.2011).
Conheço da alegação, rejeitando-a.
5. Segredo de Justiça
O segredo de justiça foi solicitado em contestação “por se tratar de ação
que tem por objeto conduta de magistrados, destacando a ré seu intento de
arrolar juízes que integram aquele Tribunal em que se deram os fatos, como
testemunhas” (fl. 61-STJ). A providência foi deferida “ante a peculiaridade do
caso” (fl. 77-STJ).
O acórdão afastou a nulidade (fl. 253-STJ).
Alegou-se em Especial nulidade do processo em razão de violação do
princípio da publicidade.
A recorrida aponta preclusão, porquanto o deferimento se deu em saneador,
sem notícia de Agravo Retido ou qualquer outro tipo de irresginação até o
momento da apelação. Já o acórdão destaca que “a imposição de segredo de
justiça não acarreta prejuízo algum para as partes do processo”.
Ainda que se possa cogitar da aplicação do princípio da ampla
devolutividade para superar a preclusão (que, aliás, não foi prequestionado
312
Jurisprudência da SEGUNDA TURMA
e não é objeto de impugnação específica no Especial), não se pode superar
o óbice processual (aqui, por óbvio, não se fazendo qualquer juízo de valor
sobre a legitimidade ou legalidade da decretação do segredo de justiça em tal
modalidade de demanda), nos termos de precedente em situação que, embora
análoga, bem se aplica ao caso:
Habeas corpus. Tráfico de drogas. Nulidade do processo. Tramitação em
segredo de justiça. Violação ao princípio da publicidade. Matéria não arguida
oportunamente. Preclusão. Prejuízo não demonstrado. Ordem denegada.
1. Se a Defesa não impugnou, em qualquer momento processual, o fato de o
processo ter tramitado em segredo de justiça, não sendo a tese objeto da apelação
julgada pelo Tribunal de origem, vindo a ser suscitada somente posteriormente, em
habeas corpus, operou-se a preclusão da matéria.
2. Tendo o feito tramitado em segredo de justiça por determinação da
Corregedoria-Geral de Justiça do Estado, não se demonstrando qualquer prejuízo
à Defesa, que teve o devido acesso aos autos, não há nulidade a ser reconhecida.
3. Ordem denegada.
(HC n. 148.723-SC, Rel. Ministra Maria Thereza de Assis Moura, Sexta Turma,
DJe 17.12.2010, grifei).
6. Conclusão
Diante do exposto, conheço parcialmente do Recurso Especial e, nessa parte,
nego-lhe provimento.
É como voto.
RECURSO ESPECIAL N. 1.276.540-AM (2011/0082096-3)
Relator: Ministro Castro Meira
Recorrente: Fazenda Nacional
Procurador: Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional
Recorrido: Samsung SDI Brasil Ltda.
Advogado: Luiz Felipe Brandão Ozores e outro(s)
RSTJ, a. 24, (226): 241-354, abril/junho 2012
313
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
EMENTA
Processual Civil e Tributário. Recurso especial. Art. 535, II, do
CPC. Alegações genéricas. Súmula n. 284-STF. Arts. 110, 111, 176
e 177, do CTN. Prequestionamento. Ausência. Súmula n. 211-STJ.
Desoneração do PIS e da Cofins. Produtos destinados à Zona Franca
de Manaus. Art. 4º do DL n. 288/1967. Interpretação. Empresas
sediadas na própria Zona Franca. Cabimento.
1. O provimento do recurso especial por contrariedade ao art. 535,
II, do CPC pressupõe seja demonstrado, fundamentadamente, entre
outros, os seguintes motivos: (a) a questão supostamente omitida foi
tratada na apelação, no agravo ou nas contrarrazões a estes recursos,
ou, ainda, que se cuida de matéria de ordem pública a ser examinada
de ofício, a qualquer tempo, pelas instâncias ordinárias; (b) houve
interposição de aclaratórios para indicar à Corte local a necessidade
de sanear a omissão; (c) a tese omitida é fundamental à conclusão do
julgado e, se examinada, poderia levar à sua anulação ou reforma; e (d)
não há outro fundamento autônomo, suficiente para manter o acórdão.
Esses requisitos são cumulativos e devem ser abordados de maneira
fundamentada na petição recursal, sob pena de não se conhecer da
alegativa por deficiência de fundamentação, dada a generalidade dos
argumentos apresentados.
2. No caso, a recorrente apontou violação do art. 535, II, do
CPC, porque o aresto impugnado teria sido omisso quanto aos arts.
110, 111, 176 e 177, do CTN, sem explicitar, contudo, os diversos
requisitos acima mencionados. Limitou-se a defender a necessidade
de prequestionamento para fins de interposição dos recursos extremos.
Incidência da Súmula n. 284-STF.
3. A ausência de prequestionamento – arts. 110, 111, 176 e 177,
do CTN – obsta a admissão do apelo, nos termos da Súmula n. 211STJ.
4. A tese de violação do art. 110 do CTN não se comporta
nos estreitos limites do recurso especial, já que, para tanto, faz-se
necessário examinar a regra constitucional de competência, tarefa
reservada à Suprema Corte, nos termos do art. 102 da CF/1988.
Precedentes.
314
Jurisprudência da SEGUNDA TURMA
5. As operações com mercadorias destinadas à Zona Franca de
Manaus são equiparadas à exportação para efeitos fiscais, conforme
disposto no art. 4º do Decreto-Lei n. 288/1967, de modo que sobre
elas não incidem as contribuições ao PIS e à Cofins. Precedentes do
STJ.
6. O benefício fiscal também alcança as empresas sediadas na
própria Zona Franca de Manaus que vendem seus produtos para
outras na mesma localidade. Interpretação calcada nas finalidades que
presidiram a criação da Zona Franca, estampadas no próprio DL n.
288/1967, e na observância irrestrita dos princípios constitucionais
que impõem o combate às desigualdades sócio-regionais.
7. Recurso especial conhecido em parte e não provido.
ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos os autos em que são partes as acima
indicadas, acordam os Ministros da Segunda Turma do Superior Tribunal de
Justiça, por unanimidade, conhecer em parte do recurso e, nessa parte, negarlhe provimento nos termos do voto do Sr. Ministro Relator. Os Srs. Ministros
Humberto Martins, Herman Benjamin e Mauro Campbell Marques votaram
com o Sr. Ministro Relator. Não participou, justificadamente, do julgamento o
Sr. Ministro Cesar Asfor Rocha.
Brasília (DF), 16 de fevereiro de 2012 (data do julgamento).
Ministro Castro Meira, Relator
DJe 5.3.2012
RELATÓRIO
O Sr. Ministro Castro Meira: O Tribunal Regional Federal da 1ª Região,
ao interpretar o art. 4º do Decreto-Lei n. 288/1967, negou provimento à
apelação da Fazenda Nacional e à remessa de ofício por entender que as vendas
realizadas pela autora, sediada na Zona Franca de Manaus, para empresas
situadas na mesma localidade, gozam do benefício fiscal de isenção do PIS e da
Cofins, por se tratarem de operações equiparadas à exportação.
RSTJ, a. 24, (226): 241-354, abril/junho 2012
315
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
O aresto recebeu a seguinte ementa:
Tributário. Processual Civil. Procedimento ordinário. Contribuição para o PIS
e para a Cofins. Ausência de prova documentação original. Preliminar rejeitada.
Repetição de indébito. Prescrição. Receitas de vendas de produtos destinados
à Zona Franca de Manaus. Isenção. Decreto-Lei n. 288/1967. Art. 40 do ADCT.
Compensação.
1. Com fundamento no disposto no art. 365, III, do CPC, a jurisprudência temse manifestado que cópias dos comprovantes dos recolhimentos devidamente
autenticados substituem os originais.
2. O art. 40 do ADCT da Constituição Federal de 1988 preservou a Zona Franca
de Manaus como área de livre comércio recepcionando o Decreto-Lei n. 288/1967,
que prevê expressamente que a exportação de mercadorias de origem nacional
para a Zona Franca de Manaus, ou reexportação para o estrangeiro, será, para
todos os efeitos fiscais, equivalente a uma exportação brasileira para o exterior.
3. A legislação referente ao PIS e à Cofins prevê expressamente que as
mencionadas contribuições não incidirão sobre as receitas decorrentes das
operações de exportação de mercadorias para o exterior, razão por que se aplica
àquelas destinadas à Zona Franca de Manaus, por força do disposto no DecretoLei n. 288/1967 e no art. 40 do ADCT.
4. No benefício da exclusão da base de cálculo do PIS e da Cofins devem ser
incluídos os valores resultantes de vendas de produtos por empresa localizada na
Zona Franca de Manaus para outra da mesma localidade, sob pena de ofensa ao
disposto no Decreto-Lei n. 288/1967, aos arts. 40 e 92 do ADCT da CF/1988, bem
como ao princípio da isonomia.
5. Apelação e remessa oficial improvidas. (e-STJ fl. 177).
Os embargos de declaração opostos na sequência foram acolhidos em parte,
sem efeitos infringentes, para fixar a prescrição decenal, observada a sistemática
dos “cinco mais cinco”, já que os pagamentos supostamente indevidos foram
realizados antes da entrada em vigor da LC n. 118/2005. (e-STJ fls. 200-207).
Por meio de recurso especial fundado exclusivamente na alínea a do inciso
III do art. 105 da CF/1988, a Fazenda Nacional aponta violação dos arts. 4º do
DL n. 288/1967; 5º da Lei n. 7.714/1988, com redação da Lei n. 9.004/1995,
c.c. art. 5º, I, da Lei n. 10.637/2002; 7º, I, da LC n. 70/1991; 110, 111, I e II, 176
e 177, do Código Tributário Nacional - CTN.
Subsidiariamente, alega contrariedade ao art. 535, II, do Código de
Processo Civil - CPC, por suposta negativa de prestação jurisdicional.
Argumenta que “o art. 4º do DL n. 288/1967 não se aplica a empresas
situadas no mesmo local a que se destinam as mercadorias que geraram a
316
Jurisprudência da SEGUNDA TURMA
receita, já que adota a terminologia exportação para a Zona Franca de Manaus”.
(e-STJ fl. 219, grifo do original).
Defende que, nesse caso, “não ocorre exportação, mas apenas circulação
interna de mercadoria, venda de produto dentro de um mesmo Estado”. (e-STJ
fl. 219).
Afirma que as normas que definem isenção devem ser interpretadas
restritivamente, nos termos dos arts. 111, 176 e 177, do CTN.
Ao apontar vulneração do art. 110 do CTN, assevera que “a extensão
do termo exportação para alcançar também a venda realizada nos limites de
um mesmo Estado da Federação altera indevidamente o conceito utilizado
pela Constituição Federal para definir competências tributárias, residindo ai a
ilegalidade da interpretação”. (e-STJ fl. 220).
Contrarrazões ofertadas. (e-STJ fls. 355-371).
Inadmitido o apelo na origem (e-STJ fls. 374-375), subiram os autos em
razão do provimento do Agravo n. 1.415.966-AM. (e-STJ fl. 399-400).
É o relatório.
VOTO
O Sr. Ministro Castro Meira (Relator): O provimento do recurso especial
por contrariedade ao art. 535, II, do CPC pressupõe seja demonstrado,
fundamentadamente, que:
(a) a questão supostamente omitida foi tratada na apelação, no agravo ou
nas contrarrazões a estes recursos, ou, ainda, que se cuida de matéria de ordem
pública a ser examinada de ofício, a qualquer tempo, pelas instâncias ordinárias;
(b) houve interposição de aclaratórios para indicar à Corte local a
necessidade de sanear a omissão;
(c) a tese omitida é fundamental à conclusão do julgado e, se examinada,
poderia levar à sua anulação ou reforma;
(d) não há outro fundamento autônomo, suficiente para manter o acórdão.
Esses requisitos são cumulativos e devem ser abordados de maneira
fundamentada na petição recursal, sob pena de não se conhecer da alegação
por deficiência de fundamentação, dada a generalidade dos argumentos
apresentados.
RSTJ, a. 24, (226): 241-354, abril/junho 2012
317
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
No caso, a Fazenda Nacional apontou violação do art. 535, II, do CPC,
porque o aresto recorrido teria sido omisso quanto aos arts. 110, 111, 176 e 177,
do CTN, sem explicitar, contudo, os diversos requisitos acima mencionados.
Limitou-se a defender a necessidade de prequestionamento para fins de
interposição dos recursos extremos.
Os embargos de declaração, ainda que para f ins de prequestionamento,
somente são cabíveis quando presente, ao menos, um dos vícios do art. 535 do
CPC, bem como para corrigir inexatidões materiais.
Nesse ponto, tem aplicação a Súmula n. 284-STF, segundo a qual: “É
inadmissível o recurso extraordinário, quando a deficiência na sua fundamentação
não permitir a exata compreensão da controvérsia”.
Quanto ao mérito, não se admite o apelo relativamente à alegação
de ofensa aos arts. 110, 111, 176 e 177, do CTN, por absoluta ausência de
prequestionamento.
Incide, portanto, a Súmula n. 211-STJ, verbis: “Inadmissível recurso
especial quanto à questão que, a despeito da oposição de embargos declaratórios,
não foi apreciada pelo Tribunal a quo”.
Ademais, a tese de que o aresto viola o disposto no art. 110 do CTN – pois
altera o conceito de exportação utilizado pela Constituição da República para definir
competência tributária – não se comporta nos estreitos limites do recurso especial,
já que, para tanto, faz-se necessário examinar a regra constitucional de competência,
tarefa reservada à Suprema Corte, nos termos do art. 102 da CF/1988.
Nesse sentido, colacionam-se julgados de ambas as Turmas de Direito
Público:
Processo Civil. Tributário. Preceitos constitucionais. Descabimento. Via especial.
Falta de prequestionamento. Súmulas n. 282 e n. 356-STF. Fundamento inatacado.
Súmula n. 284-STF. IPI. Redução da base de cálculo do PIS e da Cofins.
1. Os artigos 97 e 110 do Código Tributário Nacional reproduzem princípios
encartados em normas da Constituição da República e por conseguinte não se
sujeitam à análise na via especial.
2. “É inadmissível o recurso extraordinário, quando a deficiência na sua
fundamentação não permitir a exata compreensão da controvérsia” (Súmula n.
284-STF).
3. A falta de prequestionamento das matérias impugnadas pela recorrente
impede o conhecimento do apelo, ante os óbices das Súmulas n. 282 e n. 356-STF.
318
Jurisprudência da SEGUNDA TURMA
4. Não há norma autorizativa da dedução do IPI na base de cálculo do PIS e da
Cofins. Precedentes.
5. Recurso especial improvido. (REsp n. 828.935-PR, Rel. Ministro Castro Meira,
Segunda Turma, DJ 29.8.2006).
Processual Civil e Tributário. Agravo regimental no agravo de instrumento. Artigos
97 e 110 do CTN. Repetição de dispositivo constitucional. Apreciação vedada em
recurso especial. Industrialização por encomenda. ISS. Incidência. Acórdão recorrido
em consonância com a jurisprudência desta Corte. Súmula n. 83-STJ.
1. Caso em que a agravante insurge-se contra a decisão a quo que reconheceu
cabível a incidência do ISS nas operações de industrialização por encomenda.
2. A análise da violação dos artigos 97 e 110 do Código Tributário Nacional, por
reproduzirem princípios encartados em normas da Constituição da República,
não é admitida na via especial, sob pena de usurpação da competência do
Supremo Tribunal Federal. Precedentes: REsp n. 828.935-PR, Rel. Ministro Castro
Meira, Segunda Turma, DJ 29.8.2006; e AgRg nos EDcl no REsp n. 1.098.218-SP, Rel.
Ministro Herman Benjamin, Segunda Turma, DJe 9.11.2009.
3. A jurisprudência do STJ firmou-se no sentido de que “a ‘industrialização por
encomenda’, elencada na Lista de Serviços da Lei Complementar n. 116/2003,
caracteriza prestação de serviço (obrigação de fazer), fato jurídico tributável
pelo ISS”. Precedentes: REsp n. 1.097.249-ES, Rel. Ministra Denise Arruda, Primeira
Turma, DJe 26.11.2009; AgRg no Ag n. 1.279.303-RS, Rel. Ministro Herman
Benjamin, Segunda Turma, DJe 21.6.2010 e REsp n. 888.852-ES, Rel. Ministro Luiz
Fux, Primeira Turma, DJe 1º.12.2008.
4. Agravo regimental não provido. (AgRg no Ag n. 1.362.310-RS, Rel. Min.
Benedito Gonçalves, Primeira Turma, DJe 6.9.2011).
Admite-se o recurso especial, tão somente, quanto à alegação de
contrariedade ao disposto no art. 4º do Decreto-Lei n. 288/1967, cujo teor é o
seguinte:
Art. 4º A exportação de mercadorias de origem nacional para consumo ou
industrialização na Zona Franca de Manaus, ou reexportação para o estrangeiro,
será para todos os efeitos fiscais, constantes da legislação em vigor, equivalente a
uma exportação brasileira para o estrangeiro.
O dispositivo equipara às exportações a venda de mercadorias nacionais
para a Zona Franca de Manaus.
Por outro lado, a receita de exportações de produtos nacionais para o
estrangeiro é desonerada do PIS e da Cofins, nos termos do art. 149, § 2º, I, da
CF/1988:
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319
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
Art. 149. Compete exclusivamente à União instituir contribuições sociais, de
intervenção no domínio econômico e de interesse das categorias profissionais ou
econômicas, como instrumento de sua atuação nas respectivas áreas, observado
o disposto nos arts. 146, III, e 150, I e III, e sem prejuízo do previsto no art. 195, § 6º,
relativamente às contribuições a que alude o dispositivo.
§ 2º As contribuições sociais e de intervenção no domínio econômico de que
trata o caput deste artigo:
I - não incidirão sobre as receitas decorrentes de exportação;
A regra constitucional desonerativa foi devidamente observada pela
legislação infraconstitucional, a exemplo do art. 7º da LC n. 70/1991 (Cofins) e
do art. 5º da Lei n. 10.637/2002 (PIS).
Conjugando-se as duas regras, conclui-se que as vendas à Zona Franca
de Manaus, equiparadas que são às exportações, gozam da isenção do PIS e da
Cofins.
A jurisprudência desta Corte é farta sobre o assunto, como se observa dos
julgados a seguir transcritos:
Processual Civil e Tributário. Tributos sujeitos a lançamento por homologação.
Prescrição. Art. 3º da Lei Complementar n. 118/2005. Preclusão. Ausência de
prequestionamento. Súmula n. 282-STF. Mercadorias destinadas à Zona Franca de
Manaus. PIS e Cofins. Não-incidência. Honorários advocatícios. Revisão. Súmula n.
7-STJ.
1. A questão do prazo prescricional das Ações de Repetição de Indébito
Tributário, à luz do art. 3º da Lei Complementar n. 118/2005, não foi atacada
no Recurso Especial. A discussão do tema em Agravo Regimental encontra-se
vedada, diante da preclusão.
2. Não se conhece de Recurso Especial quanto a matéria não especificamente
enfrentada pelo Tribunal de origem, dada a ausência de prequestionamento.
Incidência, por analogia, da Súmula n. 282-STF.
3. As operações com mercadorias destinadas à Zona Franca de Manaus são
equiparadas à exportação para efeitos fiscais, conforme disposições do Decreto-Lei
n. 288/1967. Não incidem sobre elas as contribuições ao PIS e à Cofins. Precedentes
do STJ.
4. A revisão da verba honorária implica, como regra, reexame da matéria fáticoprobatória, o que é vedado em Recurso Especial (Súmula n. 7-STJ). Excepcionamse apenas as hipóteses de valor irrisório ou exorbitante, o que não ocorreu no
caso dos autos.
320
Jurisprudência da SEGUNDA TURMA
5. Agravo Regimental parcialmente conhecido e, nessa parte, não provido.
(AgRg no Ag n. 1.295.452-DF, Rel. Min. Herman Benjamin, Segunda Turma, DJe
1º.7.2010).
Processual Civil e Tributário. Violação ao art. 535. Inexistência de indicação
de vício no acórdão recorrido. Meras considerações genéricas. Súmula n. 284
do STF, por analogia. Prescrição. Tributo sujeito a lançamento por homologação.
Aplicação da tese dos cinco mais cinco. Precedente do Recurso Especial Repetitivo
n. 1.002.932-SP. Obediência ao art. 97 da CR/1988. PIS e Cofins. Receita da venda
de produtos destinados à Zona Franca de Manaus. Equiparação à exportação.
Isenção.
1. Não merece acolhida a pretensão da recorrente, na medida em que não
indicou nas razões nas razões do apelo nobre em que consistiria exatamente o
vício existente no acórdão recorrido que ensejaria a violação ao art. 535 do CPC.
Desta forma, há óbice ao conhecimento da irresignação por violação ao disposto
na Súmula n. 284 do STF, por analogia.
2. Consolidado no âmbito desta Corte que nos casos de tributo sujeito a
lançamento por homologação, a prescrição da pretensão relativa à sua restituição,
em se tratando de pagamentos indevidos efetuados antes da entrada em vigor da
Lei Complementar n. 118/2005 (em 9.6.2005), somente ocorre após expirado o
prazo de cinco anos, contados do fato gerador, acrescido de mais cinco anos, a
partir da homologação tácita.
3. Precedente da Primeira Seção no REsp n. 1.002.932-SP, julgado pelo rito
do art. 543-C do CPC, que atendeu ao disposto no art. 97 da Constituição da
República, consignando expressamente a análise da inconstitucionalidade da Lei
Complementar n. 118/2005 pela Corte Especial (AI nos EREsp n. 644.36-PE, Relator
Ministro Teori Albino Zavascki, julgado em 6.6.2007).
4. A jurisprudência da Corte assentou o entendimento de que a venda
de mercadorias para empresas situadas na Zona Franca de Manaus equivale à
exportação de produto brasileiro para o estrangeiro, em termos de efeitos fiscais,
segundo interpretação do Decreto-Lei n. 288/1967, não incidindo a contribuição
social do PIS nem a Cofins sobre tais receitas.
5. Precedentes: REsp n. 1.084.380-RS, Rel. Min. Teori Albino Zavascki, Primeira
Turma, DJe 26.3.2009; REsp n. 982.666-SP, Rel. Min. Eliana Calmon, Segunda
Turma, DJe 18.9.2008; AgRg no REsp n. 1.058.206-CE, Rel. Min. Humberto Martins,
Segunda Turma, DJe 12.9.2008; e REsp n. 859.745-SC, Rel. Min. Luiz Fux, Primeira
Turma, DJe 3.3.2008.
6. Recurso especial não provido. (REsp n. 817.847-SC, Rel. Min. Mauro Campbell
Marques, Segunda Turma, DJe 25.10.2010).
Tributário. Zona Franca de Manaus. Prescrição. Remessa de mercadorias
equiparada à exportação. Crédito presumido do IPI. Isenção do PIS e da Cofins.
RSTJ, a. 24, (226): 241-354, abril/junho 2012
321
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
1. Prevalência da tese dos “cinco mais cinco” na hipótese dos autos, relativa à
prescrição dos tributos sujeitos à lançamento por homologação - Inaplicabilidade
da Lei Complementar n. 118/2005.
2. A destinação de mercadorias para a Zona Franca de Manaus equivale à
exportação de produto brasileiro para o estrangeiro, em termos de efeitos fiscais,
segundo interpretação do Decreto-Lei n. 288/1967.
3. Direito da empresa ao crédito presumido do IPI, nos termos do art. 1º da Lei
n. 9.363/1996, e à isenção relativa às contribuições do PIS e da Cofins.
4. Recurso especial parcialmente conhecido e, nessa parte, improvido. (REsp n.
653.975-RS, Rel. Min. Eliana Calmon, Segunda Turma, DJ 16. 2.2007).
Tributário. Agravo regimental no recurso especial. Repetição de indébito.
Tributo sujeito a lançamento por homologação. Prescrição. Tese dos “cinco mais
cinco”. REsp n. 1.002.932-SP. PIS. Cofins. Verbas provenientes de vendas realizadas à
Zona Franca de Manaus. Não incidência. Agravo não provido.
1. O prazo prescricional para o contribuinte pleitear a restituição do indébito,
nos casos de tributos sujeitos a lançamento por homologação, referente a
pagamento indevido efetuado antes da entrada em vigor da LC n. 118/2005,
continua observando a “tese dos cinco mais cinco” (REsp n. 1.002.932-SP, Rel Min.
Luiz Fux, Primeira Seção, DJ 18.12.2009).
2. A Corte Especial do Superior Tribunal de Justiça declarou a
inconstitucionalidade da segunda parte do art. 4º da LC n. 118/2005, que
estabelece aplicação retroativa de seu art. 3º, por ofensa dos princípios da
autonomia, da independência dos poderes, da garantia do direito adquirido, do
ato jurídico perfeito e da coisa julgada (AI nos EREsp n. 644.736-PE, Rel. Min. Teori
Albino Zavascki, Corte Especial, DJ 27.8.2007).
3. Este Superior Tribunal possui entendimento assente no sentido de que as
operações envolvendo mercadorias destinadas à Zona Franca de Manaus são
equiparadas à exportação, para efeitos fiscais, conforme disposições do Decreto-Lei
n. 288/1967 (REsp n. 802.474-RS, Rel. Min. Mauro Campbell Marques, Segunda
Turma, DJe 13.11.2009).
4. Agravo regimental não provido. (AgRg no REsp n. 1.141.285-RS, Rel. Min.
Arnaldo Esteves Lima, Primeira Turma, DJe 26.5.2011).
Processual Civil. Recurso especial. Violação ao art. 535 do CPC. Ausência de
prequestionamento. Súmula n. 282-STF. Deficiência de fundamentação. Súmula
n. 284-STF. Constitucional e Tributário. Repetição de indébito. Tributos sujeitos a
lançamento por homologação. Prazo prescricional. Isenção. PIS e Cofins. Produtos
destinados à Zona Franca de Manaus.
322
Jurisprudência da SEGUNDA TURMA
1. A interposição de embargos declaratórios é pressuposto do especial
fundado na violação ao art. 535 do CPC, sob pena de não conhecimento do
recurso quanto ao ponto, dada a ausência de prequestionamento.
2. A ausência de debate, na instância recorrida, sobre os dispositivos legais
cuja violação se alega no recurso especial atrai, por analogia, a incidência da
Súmula n. 282 do STF.
3. Sobre a prescrição da ação de repetição de indébito tributário de tributos
sujeitos a lançamento por homologação, a jurisprudência do STJ (1ª Seção) assentou
o entendimento de que, no regime anterior ao do art. 3º da LC n. 118/2005, o prazo
de cinco anos, previsto no art. 168 do CTN, tem início, não na data do recolhimento
do tributo indevido, e sim na data da homologação – expressa ou tácita - do
lançamento. Assim, não havendo homologação expressa, o prazo para a repetição
do indébito acaba sendo de dez anos a contar do fato gerador.
4. Nos termos do art. 40 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias ADCT, da Constituição de 1988, a Zona Franca de Manaus ficou mantida “com suas
características de área de livre comércio, de exportação e importação, e de incentivos
fiscais, por vinte e cinco anos, a partir da promulgação da Constituição”. Ora, entre
as “características” que tipificam a Zona Franca destaca-se esta de que trata o art.
4º do Decreto-Lei n. 288/1967, segundo o qual “a exportação de mercadorias de
origem nacional para consumo ou industrialização na Zona Franca de Manaus, ou
reexportação para o estrangeiro, será para todos os efeitos fiscais, constantes da
legislação em vigor, equivalente a uma exportação brasileira para o estrangeiro”.
Portanto, durante o período previsto no art. 40 do ADCT e enquanto não alterado
ou revogado o art. 4º do DL n. 288/1967, há de se considerar que, conceitualmente,
as exportações para a Zona Franca de Manaus são, para efeitos fiscais, exportações
para o exterior. Logo, a isenção relativa à Cofins e ao PIS é extensiva à mercadoria
destinada à Zona Franca. Precedentes: REsp n. 223.405, 1ª T. Rel. Min. Humberto
Gomes de Barros, DJ de 1º.9.2003 e REsp n. 653.721-RS, 1ª T., Rel. Min. Luiz Fux, DJ
de 26.10.2004).
5. “O Supremo Tribunal Federal, em sede de medida cautelar na ADI n. 2.348-9,
suspendeu a eficácia da expressão ‘na Zona Franca de Manaus’, contida no inciso I
do § 2º do art. 14 da MP n. 2.037-24, de 23.11.2000, que revogou a isenção relativa
à Cofins e ao PIS sobre receitas de vendas efetuadas na Zona Franca de Manaus.”
(REsp n. 823.954-SC, 1ª T. Rel. Min. Francisco Falcão, DJ de 25.5.2006).
6. “Assim, considerando o caráter vinculante da decisão liminar proferida
pelo E. STF, e, ainda, que a referida ação direta de inconstitucionalidade esteja
pendente de julgamento final, restam afastados, no caso concreto, os dispositivos
da MP n. 2.037-24 que tiveram sua eficácia normativa suspensa” (REsp n. 677.209SC, Rel. Min. Luiz Fux, DJ de 28.2.2005).
7. Recurso especial parcialmente conhecido e, nessa parte, desprovido. (REsp
n. 1.084.380-RS, Rel. Min. Teori Albino Zavascki, Primeira Turma, DJe 26.3.2009).
RSTJ, a. 24, (226): 241-354, abril/junho 2012
323
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
Todavia, a discussão trazida no recurso especial não se amolda,
perfeitamente, aos precedentes. No caso, a autora – Samsung SDI Brasil – está
sediada na Zona Franca de Manaus e pretende desonerar-se da incidência do
PIS e da Cofins sobre mercadorias que vende para outras empresas situadas na
mesma localidade.
A segurança foi concedida em primeira instância com base nos seguintes
fundamentos:
É de ver, assim, que, nos termos da sistemática constitucional e
infraconstitucional que regula a Zona Franca de Manaus, não se pode deixar de
reconhecer que as vendas a empresas nela situadas, ainda que promovidas par
outras empresas também da Zona Franca, equivalem a exportações, pelo que
estão isentas tanto da Cofins quanto da contribuição ao PIS.
De fato, como bem decidiu o colendo Supremo Tribunal Federal, ao deferir
a medida cautelar na ADIn n. 11.2348-9 para suspender a eficácia do artigo 14,
§ 2º, inciso I da Medida Provisória n. 2.037-24, de 23 de novembro de 2000, que
excetuava da regra de isenção da Cofins e da contribuição ao PIS “a empresa
estabelecida na Zona Franca de Manaus”, verbis:
Quanto ao inciso I do § 2º do artigo 14 surge mais clara ainda a relevância
da articulação de inconstitucionalidade. A isenção versada não contempla
empresa estabelecida na Zona Franca de Manaus, na Amazônia Ocidental
ou em área de livre comércio. Em primeiro lugar, o preceito é estranho
à norma que veio a ser projetada no tempo e que se mostrou fruto das
Leis n. 8.191/1991 e n. 8.248/1991. Nelas não se procedeu à exclusão. Em
segundo lugar, tendo em conta o desenvolvimento que se quis imprimir,
com justas razões, à Região Amazônica, o dispositivo conflita com o sistema
constitucional, voltado, sem dúvida alguma, à correção das desigualdades
regionais e sociais. A razão de ser do artigo 40 do Ato das Disposições
Transitórias direcionaria, isto sim, ao elastecimento dos benefícios próprios,
sob o ângulo fiscal, na região, e não ao afastamento, à exclusão. Óptica
diversa, disciplina discrepante do fim visado, implica a revelação de visão
míope. O artigo 40 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias
constitucionalizou, de forma projetada no tempo, considerados vinte e
cinco anos a partir da promulgação da Constituição Federal, a legislação
ordinária reveladora da outorga de benefícios a quem viesse a estabelecerse na Amazônia. Por isso mesmo, ganhou envergadura e respeitabilidade
meio o artigo 4º do Decreto-Lei n. 288/1967 (...).
(...) A incongruência é flagrante, no que em relação a uma das áreas
que maior atenção necessita, quer sob o angulo da segurança nacional,
quer internacional, tenha-se afastado a isenção em análise, em que pese
o alargamento geográfico que lhe foi atribuído. Perceba-se o ressaltado
324
Jurisprudência da SEGUNDA TURMA
por Celso Bastos em parecer. Perceba-se a fidelidade das palavras do
constitucionalista aos termos da Carta de 1988:
Diante deste estudo hermenêutico, fica certo que a Zona Franca de
Manaus ganhou status constitucional, o que significa dizer, tornou-se um
direito consagrado com força própria da supremacia constitucional, o que
repele qualquer normatividade que não deve em conta as diretrizes básicas
da hermenêutica.
Ao afirmar que é mantida a Zona Franca de Manaus, o texto conferiu-lhe
uma duração imodificável, ao menos por lei infraconstitucional.
Mais adiante, é certo, o texto constitucional vai definir a duração mínima
da instituição, a partir de sua promulgação: optou pelo prazo certo de vinte
e cinco anos.
Ao proceder assim, o artigo 40 não beneficiou a Zona Franca de Manaus
com uma mera formalidade, o que aconteceria se entendesse que o que
não se pode é expressamente suprimir a Zona Franca de Manaus. É que
seria possível, na linha de entendimento, suprimir os incentivos fiscais e a
própria área de livre comércio. Isto seria a mais bárbara das interpretações
constitucionais. Seria admitir que a Constituição brinca com as palavras ou
adota pseudoconceitos que na verdade nada obrigam de substancial. É,
portanto, forçoso aceitar-se que a Zona Franca de Manaus é, na verdade,
um nome que encabeça uma realidade normativa e material caracterizada
pela manutenção da área de livre comércio com os seus incentivos fiscais
trecho do parecer transcrito nas razões que compõem a inicial, a propósito
da Medida Provisória n. 1.602 (MC na ADIn n. 2.348-9-DF, Rel. Min. Marco
Aurélio, julgado em 7.12.2000).
Nunca é demais lembrar da situação peculiar em que se encontra a região
amazônica e da evidente necessidade de implementação da Zona Franca para a
garantia do seu desenvolvimento econômico e social.
Nos termos do artigo 1º do Decreto-Lei n. 288/1967, “a Zona Franca de Manaus
é uma área de livre comercio de importação e exportação e de incentivos fiscais e
especiais, estabelecida com a finalidade de criar no interior da Amazônia um centro
industrial, comercial e agropecuário dotado de condições econômicas que permitam
seu desenvolvimento, em face dos fatores locais e da grande distância a que se
encontram os centros consumidores de seus produtos”.
Com efeito, são flagrantes as disparidades sócio-econômicas entre a região
amazônica e as demais regiões brasileiras, todas agravadas pelas dificuldades
de transporte e telecomunicações que isolam a região, motivo pelo qual, sem
os incentivos fiscais, dificilmente teria sido implementado tal polo industrial em
plena floresta amazônica.
RSTJ, a. 24, (226): 241-354, abril/junho 2012
325
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
A Zona Franca de Manaus merece, sim, tratamento diferenciado, vista que é
máxima do principio de isonomia tratar os desiguais desigualmente e proteger
o hipossuficiente, razão porque não existe justificativa teleológica, tampouco
ontológica, para premiar com isenção a venda de mercadoria produzidas fora da
Zona Franca, em detrimento das empresas pertencentes à ela, quando, em ambos
os casos, são destinadas ao consumo ou industrialização na própria Zona Franca.
Por estes fundamentos, concedo a segurança para declarar a inexigibilidade
da Confins e da contribuição ao PIS sobre a receita das vendas, pela impetrante,
de produtos destinados ao consumo, industrialização ou exportação, a empresas
situadas na Zona Franca de Manaus, prejudicados os pedidos formulados
posteriormente. (e-STJ fls. 79-82).
A orientação perfilhada na sentença foi reafirmada no TRF da 1ª Região,
que negou provimento à apelação da Fazenda e à remessa oficial, nos seguintes
termos:
Para análise do mérito da controvérsia, cabe, inicialmente, um breve histórico.
Pretende a autora o reconhecimento do direito de não incluir na base de
cálculo da Cofins e do PIS as receitas oriundas de vendas às empresas situadas
dentro da Zona Franca de Manaus.
A Zona Franca de Manaus foi instituída pela Lei n. 3.173/1957, que inicialmente
funcionava, de acordo com o seu art. 1º, como área de “(...) armazenamento ou
depósito, guarda, conservação beneficiamento e retirada de mercadorias, artigos
e produtos de qualquer natureza, provenientes do estrangeiro e destinados ao
consumo interno da Amazônia, como dos países interessados, limítrofes do Brasil
ou que sejam banhados por águas tributárias do rio Amazonas” (art. 1º).
O art. 5º da aludida lei já previa que “as mercadorias de procedência estrangeira,
quando desembarcadas diretamente na área da Zona Franca de Manaus, e
enquanto permanecerem dentro da mesma, não estarão sujeitas ao pagamento
de direitos alfandegários ou quaisquer outros impostos federais, estaduais ou
municipais que venham gravá-las, sendo facultado o seu beneficiamento e
depósito na própria zona de sua conservação”. Dessa forma, já havia previsão
legal da existência de alguns incentivos fiscais em relação a operações realizadas
naquela área.
Em 28.2.1967, foi editado o Decreto n. 291, que veio estabelecer incentivos
fiscais para o desenvolvimento da Amazônia Ocidental da Faixa de Fronteiras
abrangida pela Amazônia, a objetivar a instalação de um pólo industrial e
comercial naquela região.
Após, foi editado o Decreto-Lei n. 288/1967, o qual, em seu art. 4º, deu à Zona
Franca de Manaus o status de zona de livre comércio, nos seguintes termos:
326
Jurisprudência da SEGUNDA TURMA
Art. 4º A exportação de mercadorias de origem nacional para consumo
ou industrialização na Zona Franca de Manaus, ou reexportação para o
estrangeiro, será para todos os efeitos fiscais, constantes da legislação em
vigor, equivalente a uma exportação brasileira para o estrangeiro.
O objetivo da norma foi o de equiparar a venda de mercadorias efetuadas a
estabelecimentos situados na Zona Franca de Manaus à exportação de produto
brasileiro para o exterior.
Com a instituição de um novo ordenamento jurídico pela Constituição Federal
de 1988, o art. 40 do ADCT expressamente prorrogou os benefícios fiscais
concedidos anteriormente à Zona Franca de Manaus, in verbis:
Art. 40. É mantida a Zona Franca de Manaus, com suas características de
área livre de comércio, de exportação e importação, e de incentivos fiscais,
pelo prazo de vinte e cinco anos, a partir da promulgação da Constituição.
Parágrafo único. Somente por lei federal podem ser modificados os
critérios que disciplinaram ou venham a disciplinar a aprovação dos
projetos na Zona Franca de Manaus.
Aludida norma, ao preservar a Zona Franca de Manaus como área de livre
comércio, recepcionou expressamente o Decreto-Lei n. 288/1967, que prevê que
a exportação de mercadorias de origem nacional para a Zona Franca de Manaus,
ou reexportação para o estrangeiro, será, para todos os efeitos fiscais, equivalente
a uma exportação brasileira para o exterior.
Após, a Emenda Constitucional n. 42, de 19.12.2003, que acrescentou o art. 92
ao ADCT, prorrogou por mais 10 (dez) anos o prazo fixado no mencionado artigo
40.
No que se refere ao PIS, a Lei n. 7.714/1988, com a redação dada pela Lei n.
9.004/1995, dispôs que:
Art. 5º Para efeito de cálculo da contribuição para o Programa de
Formação do Patrimônio do Servidor Público (Pasep) e para o Programa de
Integração Social (PIS), de que trata o Decreto-Lei n. 2.445, de 29 de junho
de 1988, o valor da receita de exportação de produtos manufaturados
nacionais poderá ser excluído da receita operacional bruta.
Prevê, ainda, a Lei n. 10.637/2002, em seu art. 5º:
Art. 5º A contribuição para o PIS/Pasep não incidirá sobre as receitas
decorrentes das operações de:
I - exportação de mercadorias para o exterior;
RSTJ, a. 24, (226): 241-354, abril/junho 2012
327
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
Em relação à Cofins, a Lei Complementar n. 70/1991, com as modificações
trazidas pela Lei Complementar n. 85/1996, afirmou expressamente que:
Art. 7º São também isentas da contribuição as receitas decorrentes:
I - de vendas de mercadorias ou serviços para o exterior, realizadas
diretamente pelo exportador;
Da leitura das normas acima, verifico que os valores resultantes de exportações
foram excluídos da base de cálculo do PIS e da Cofins e, por extensão, em razão
do disposto no Decreto-Lei n. 288/1967 e nos arts. 40 e 92 do ADCT, da CF/1988,
às operações destinadas à Zona Franca de Manaus.
Não obstante o acima exposto, em 1999 foi editada a Medida Provisória n.
1.807, sucessivamente reeditada, que veio suprimir expressamente a isenção das
exportações destinadas à Zona Franca de Manaus, conforme se vê abaixo:
Art. 14. Em relação aos fatos geradores ocorridos a partir de 1º de
fevereiro de 1999, são isentas da Cofins as receitas:
I - dos recursos recebidos a título de repasse, oriundos do Orçamento
Geral da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, pelas
empresas públicas de sociedades de economia mista;
II - da exportação de mercadorias para o exterior;
III - dos serviços prestados a pessoa física ou jurídica residente ou
domiciliada no exterior, cujo pagamento represente ingresso de divisas;
IV - do fornecimento de mercadorias ou serviços para uso ou consumo
de bordo em embarcações e aeronave em tráfego internacional, quando o
pagamento for efetuado em moeda conversível;
V - do transporte internacional de cargas ou passageiros;
VI - auferidas pelos estaleiros navais brasileiros nas atividades
de construção, conservação, modernização, conversão e reparo de
embarcações pré-registradas ou registradas no Registro Especial Brasileiro
- REB, instituído pela Lei n. 9.432, de 8 de janeiro de 1997;
VII - de frete de mercadorias transportadas entre o País e o exterior pelas
embarcações registradas no REB, de que trata o art. 11 da Lei n. 9.432, de 1997;
VIII - de vendas realizadas pelo produtor-vendedor às empresas
comerciais exportadoras nos termos do Decreto-Lei n. 1.248, de 29 de
novembro de 1972, e alterações posteriores, desde que destinadas ao fim
específico de exportação para o exterior;
IX - de vendas, com fim específico de exportação para o exterior, a
empresas exportadoras registradas na Secretaria de Comércio Exterior do
Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio;
328
Jurisprudência da SEGUNDA TURMA
X - relativas às atividades próprias das entidades a que se refere o art. 13.
§ 1º São isentas da contribuição para o PIS/Pasep as receitas referidas
nos incisos I a IX do caput.
§ 2º As isenções previstas no caput e no parágrafo anterior não alcançam as
receitas e vendas efetuadas:
I - a empresa estabelecida na Zona Franca de Manaus, na Amazônia
Ocidental ou em área de livre comércio;
II - a empresa estabelecida em zona de processamento de exportação;
III - a estabelecimento industrial, para industrialização de produtos
destinados a exportação, ao amparo do art. 3º da Lei n. 8.402, de 8 de
janeiro de 1992.
Ocorre que, por meio de decisão proferida na ADI-MC n. 2.348-DF, o STF
suspendeu a eficácia da expressão “na Zona Franca de Manaus”, constante do
dispositivo acima, conforme se vê da transcrição que segue:
Zona Franca de Manaus. Preservação constitucional. Configuram-se a
relevância e o risco de manter-se com plena eficácia o diploma atacado
se este, por via direta ou indireta, implica a mitigação da norma inserta no
artigo 40 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias da Carta de
1988: Art. 40. É mantida a Zona Franca de Manaus, com suas características
de área livre de comércio, de exportação e importação, e de incentivos fiscais,
pelo prazo de vinte e cinco anos, a partir da promulgação da Constituição.
Parágrafo único. Somente por lei federal podem ser modificados os critérios
que disciplinaram ou venham a disciplinar a aprovação dos projetos na
Zona Franca de Manaus. Suspensão de dispositivos da Medida Provisória n.
2.037-24, de novembro de 2000. (ADI-MC n. 2.348-DF, Rel. Ministro Marco
Aurélio, DJ de 7.11.2003, p. 81).
Considerando que aludida decisão tem caráter vinculante e que a
ação principal encontra-se pendente de julgamento, não há que se falar na
aplicabilidade da norma em referência.
Prevalece, assim, o entendimento no sentido de que os valores resultantes
de exportações devem ser excluídos da base de cálculo do PIS e da Cofins e, por
extensão, em razão do disposto Decreto-Lei n. 288/1967 e nos arts. 40 e 92 do
ADCT da CF/1988, às operações destinadas à Zona Franca de Manaus, conforme
se vê dos seguintes julgados:
(...)
Ocorre que, no caso dos autos, a autora, empresa localizada na Zona Franca de
Manaus, pretende que as receitas obtidas com a venda de mercadorias de origem
RSTJ, a. 24, (226): 241-354, abril/junho 2012
329
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
nacional para outras empresas situadas na mesma localidade sejam excluídas da
base de cálculo do PIS e da Cofins, com fundamento no princípio da isonomia.
Não obstante a Fazenda Nacional tenha se insurgido em relação ao
deferimento de isenção das exações em relação aos valores obtidos com vendas
realizadas por empresas situadas fora da Zona Franca de Manaus para empresas
ali situadas, passo ao exame da questão da extensão daquela isenção para as
vendas de produtos de empresas situadas naquela região para outra da mesma
localidade, por força da remessa oficial.
Buscando uma descentralização do desenvolvimento no país, foi criada a Zona
Franca de Manaus com o objetivo de garantir o desenvolvimento econômico e
social daquela região.
Um dos atos editados para alcançar aludido objetivo foi o Decreto-Lei n.
288/1967, que, como já ressaltado, foi recepcionado pela Constituição Federal
de 1988 (arts. 40 e 92 do ADCT da CF/1988), razão pela qual a jurisprudência vem
entendendo que os valores resultantes de exportações devem ser excluídos da
base de cálculo do PIS e da Cofins e, por extensão, às operações destinadas à Zona
Franca de Manaus.
Cumpre ressaltar que o Decreto-Lei n. 288/1967 não exclui da aludida isenção
os valores obtidos com as vendas de produtos por empresas situadas na Zona
Franca de Manaus para outras empresas ali localizadas.
Ir contra esse entendimento acarreta a redução dos benefícios que a aplicação
do Decreto-Lei n. 288/1967 traz à região, diminuindo o interesse das empresas
ali localizadas em vender para outras situadas na mesma localidade e daquelas
que porventura pretendam ali se instalar, bem como viola os objetivos previstos
com a criação da Zona Franca de Manaus, cujos benefícios fiscais a ela concedidos
anteriormente foram prorrogados pela Constituição de 1988 (arts. 40 e 92 do
ADCT da CF/1988).
Por isso, no benefício da exclusão da base de cálculo do PIS e da Cofins devem
ser incluídos os valores resultantes de vendas de produtos por empresa localizada
na Zona Franca de Manaus para outra da mesma localidade, sob pena de ofensa
ao disposto no Decreto-Lei n. 288/1967, dos arts. 40 e 92 do ADCT da CF/1988,
bem como ao princípio da isonomia, conforme se vê do seguinte julgado deste
Tribunal:
(...)
Ante o exposto, nego provimento à apelação e à remessa oficial.
É o voto. (e-STJ fls. 166-175).
Com acerto decidiu o acórdão recorrido.
São bastante antigas as preocupações do Governo Federal com a ocupação
e o desenvolvimento econômico da Amazônia. No ano de 1957, durante o
330
Jurisprudência da SEGUNDA TURMA
governo Juscelino Kubitschek, foi editada a Lei n. 3.173, de 6 de junho de
1957, criando uma Zona Franca em Manaus para armazenamento ou depósito
de mercadorias provenientes do estrangeiro destinadas ao consumo interno da
Amazônia ou de países limítrofes ao Brasil.
Quase dez anos mais tarde, veio à lume o Decreto-Lei n. 288, de 26
de fevereiro de 1967, por meio do qual foi regulamentada a Zona Franca de
Manaus - ZFM, estabelecidos os objetivos da política governamental para a
área, definidos os incentivos fiscais para as atividades econômicas e criado um
órgão vinculado ao Ministério do Interior, atualmente já não existente, com a
responsabilidade de administrar a implementação da área de livre comércio.
Posteriormente, em agosto de 1968, foi publicado o Decreto-Lei n.
356/1968, que ampliou a zona de concessão de benefícios da Zona Franca de
Manaus, passando a abranger toda a Amazônia Ocidental, incluindo os Estados
do Amazonas, Acre, Rondônia e Roraima.
A implementação da ZFM deveu-se, basicamente, a três fatores:
(a) um de ordem militar – a necessidade de ocupar e proteger a Amazônia
em face da nascente política de internacionalização;
(b) outro de natureza econômica – a meta governamental de substituição
das importações; e
(c) o último de cunho social – a busca pela redução das desigualdades
regionais.
O objetivo explícito do Governo, ao idealizar a Zona Franca de Manaus,
nos termos do art. 1º do DL n. 288/1967, foi o de criar “no interior da Amazônia
um centro industrial, comercial e agropecuário dotado de condições econômicas
que permitam seu desenvolvimento, em face dos fatores locais e da grande
distância em que se encontram os centros consumidores de seus produtos”.
A necessidade de ocupar a Amazônia, até então praticamente despovoada,
aliada à política de substituição das importações, foram fatores determinantes
para a criação da Zona Franca de Manaus.
A ideia do Governo Federal era aquecer a economia local, atrair indústrias,
mão-de-obra, capital externo e, com isso, garantir o povoamento da área,
promover o crescimento e a diversificação do parque industrial brasileiro e
diminuir a histórica dependência dos produtos importados.
Para atrair investidores interessados em aplicar o seu capital em uma região
praticamente inóspita, com um mercado consumidor pequeno e de baixa renda,
RSTJ, a. 24, (226): 241-354, abril/junho 2012
331
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
longe dos grandes centros, com pouca ou nenhuma infraestrutura, dificuldades
de transporte e comunicação, mão-de-obra escassa e desqualificada, além de
outros problemas, foram criados inúmeros incentivos fiscais, dentre eles o
previsto no já citado art. 4º do DL n. 288/1967, que equiparou às exportações as
vendas de produtos à Zona Franca de Manaus.
Sem esses benefícios, dificilmente, alguma empresa teria se interessado em
investir na região, como afirma CELSO RIBEIRO BASTOS:
O objetivo último é beneficiar a região com o desenvolvimento que se
espera venha a ocorrer por fruto dos benefícios fiscais criados. As zonas francas
encontram-se, pois, em regiões pouco desenvolvidas, e são marcadas por
dificuldades que as regiões normalmente aquinhoadas não ostentam. É por isto
que os benefícios fiscais criados, em regra, não podem ser subtraídos ante que
aquele que para lá foi, atraídos por esses incentivos, tenha tempo de amortizar os
seus investimentos. As referidas zonas criam, portanto, benefícios fiscais que não
são gratuitos, no sentido de trazer um incentivo sem contraprestação por parte
do beneficiado. Pelo contrário, este arcará com o pesadíssimo ônus de investir
capitais numa área que, se não fora o beneficiamento jurídico-tributário, seria
absolutamente desprezível para o investimento. (Incentivos Fiscais - Zona Franca
de Manaus in Caderno de Direito Tributário e Finanças Públicas, São Paulo: Revista
dos Tribunais, ano 6, n. 22, jan-mar 1998).
Para IVES GANDRA DA SILVA MARTINS:
A idéia de centrar em Manaus este foco de desenvolvimento para atrair
empresas, que compensariam a distância entre os centros de produção do país
e dos mercados com os incentivos outorgados, desfazendo-se a imagem de que
a Amazônia deveria ser apenas um “museu do índio” e limitar-se a trabalhar com
produtos maturais ou artesanais, levou o governo militar à edição do DecretoLei n. 288/1967, que é, de rigor, um diploma com um único intuito: outorgar
incentivos fiscais em prol do progresso regional, todo o resto sendo decorrência.
A visão de seus articuladores revelou-se, no tempo, consistente, sendo hoje
a Zona Franca de Manaus e a Amazônia um polo de crescimento, graças a tais
incentivos. (Teleologia dos Incentivos Fiscais Aprovados pela Suframa in Revista
Dialética de Direito Tributário, n. 194, novembro de 2011, p. 74-75).
A interpretação sugerida pela Fazenda Nacional para o art. 4º do DL
n. 288/1967 não se compatibiliza com a regra do art. 1º, segundo a qual era
objetivo do Governo criar “no interior da Amazônia um centro industrial,
comercial e agropecuário dotado de condições econômicas que permitam seu
332
Jurisprudência da SEGUNDA TURMA
desenvolvimento, em face dos fatores locais e da grande distância em que se
encontram os centros consumidores de seus produtos”.
Ora, se era pretensão do Governo atrair o maior número de indústrias para
a região e, consequentemente, criar postos de trabalho, gerar renda, atrair mãode-obra, garantir a ocupação e o desenvolvimento econômico da área, reduzindo
a dependência dos produtos importados, não é razoável concluir que o art. 4º do
DL n. 288/1967 tenha almejado beneficiar, tão somente, empresas situadas fora
da ZFM.
Caso contrário, seria mais vantajoso para qualquer empresa, ao menos
sob a ótica do PIS e da Cofins, não fixar sede na Zona Franca de Manaus, o
que atenta contra o espírito do DL n. 288/1967, que objetivava, justamente,
estimular o investimento na região.
Nesses termos, a pretensão veiculada no recurso especial vai de encontro
aos objetivos, explícitos e implícitos, que levaram à instituição da ZFM.
Outro fator primordial para a criação da Zona Franca foi a necessidade de
reduzir as desigualdades regionais, como lembra ANDRÉ ELALI:
No caso da Zona Franca de Manaus, infere-se que ela foi instituída pelo
Decreto-Lei n. 288, de 1967, para tornar a região um pólo de desenvolvimento
industrial e, no mesmo diapasão, servir para reduzir desigualdades regionais e
sociais.
(...)
Por tais motivos, houve um crescimento evidente do setor industrial local,
fomentando toda a produção e o comércio da região, com o consequente
aumento de empregos e redução de desigualdades regionais e sociais,
promovendo-se, pois, o desenvolvimento econômico. (Tributação na Zona Franca
de Manaus - Comemoração aos 40 anos da ZFM. Coordenação Ives Gandra da
Silva Martins, Carlos Alberto de Moraes Ramos Filho e Marcelo Magalhães Peixoto,
Apet/MP, São Paulo, 2008, p. 470-471).
A tese proposta pala Fazenda Nacional – de limitar o art. 4º do DL n.
288/1967 às operações de venda realizadas por empresas não sediadas na ZFM
– propicia o alargamento da desigualdade que se pretendeu combater e estimula
uma concorrência desleal, na medida em que aquinhoa com o benefício da
isenção apenas as empresas sediadas fora da Zona Franca, em aberto prejuízo
as que ali se fixaram, oneradas pelo alto custo de desbravar um território como
pouca ou nenhuma infraestrutura, distante dos grandes centros e sem mão-deobra qualificada.
RSTJ, a. 24, (226): 241-354, abril/junho 2012
333
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
Os incentivos fiscais entabulados no DL n. 288/1967, dentre eles o do art.
4º, visam à neutralização das disparidades sócio-econômicas entre as regiões
sul e sudeste e a região amazônica, buscando reduzir as desigualdades regionais
e sociais, o que representa um dos objetivos da República Federativa do Brasil
(art. 3º, III, da CF/1988) e, também, um dos princípios constitucionais ligados à
Ordem Econômica (art. 170, VII, da CF/1988).
A exegese do art. 4º do DL n. 288/1967 não pode desprezar os postulados
constitucionais que norteiam a atuação do Estado brasileiro. Em outras palavras,
o dispositivo não pode ser interpretado a ponto de “promover” ou “incentivar” a
desigualdade regional – que justamente quis combater –, em confronto expresso
com um dos objetivos da República Federativa do Brasil e um dos princípios da
ordem econômica.
Por fim, o acórdão recorrido não se utilizou de interpretação ampliativa
ou analógica nem estendeu a regra de isenção, como base na isonomia, a quem
não foi contemplado por lei. Ao contrário, valeu-se corretamente das regras de
hermenêutica, calcadas nas finalidades e objetivos que presidiram a criação da
Zona Franca, estampadas no próprio DL n. 288/1967, bem como na observância
irrestrita do objetivo fundamental da República Federativa do Brasil, que impõe
o combate às desigualdades sócio-regionais (art. 3º, III, da CF).
Ante o exposto, conheço em parte do recurso especial e nego-lhe provimento.
É como voto.
RECURSO ESPECIAL N. 1.285.463-SP (2011/0190433-2)
Relator: Ministro Humberto Martins
Recorrente: Ministério Público do Estado de São Paulo
Recorrido: Associação dos Plantadores de Cana da Região de Jaú
Advogado: Luís Henrique da Costa Pires e outro(s)
Recorrido: Companhia de Tecnologia de Saneamento Ambiental Cetesb
Advogado: Rui Santini e outro(s)
Recorrido: Fazenda do Estado de São Paulo
Procurador: Silvio Ferracini e outro(s)
334
Jurisprudência da SEGUNDA TURMA
EMENTA
Direito Ambiental. Ação civil pública. Cana-de-açúcar.
Queimadas. Art. 21, parágrafo único, da Lei n. 4.771/1965. Dano ao
meio ambiente. Princípio da precaução. Queima da palha de cana.
Existência de regra expressa proibitiva. Exceção existente somente
para preservar peculiaridades locais ou regionais relacionadas à
identidade cultural. Inaplicabilidade às atividades agrícolas industriais.
1. O princípio da precaução, consagrado formalmente pela
Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e o
Desenvolvimento - Rio 92 (ratificada pelo Brasil), a ausência de
certezas científicas não pode ser argumento utilizado para postergar
a adoção de medidas eficazes para a proteção ambiental. Na dúvida,
prevalece a defesa do meio ambiente.
2. A situação de tensão entre princípios deve ser resolvida pela
ponderação, fundamentada e racional, entre os valores conflitantes.
Em face dos princípios democráticos e da Separação dos Poderes, é o
Poder Legislativo quem possui a primazia no processo de ponderação,
de modo que o Judiciário deve intervir apenas no caso de ausência ou
desproporcionalidade da opção adotada pelo legislador.
3. O legislador brasileiro, atento a essa questão, disciplinou o uso
do fogo no processo produtivo agrícola, quando prescreveu no art. 27,
parágrafo único da Lei n. 4.771/1965 que o Poder Público poderia
autoriza-lo em práticas agropastoris ou florestais desde que em razão
de peculiaridades locais ou regionais.
4. Buscou-se, com isso, compatibilizar dois valores protegidos
na Constituição Federal de 1988, quais sejam, o meio ambiente e a
cultura ou o modo de fazer, este quando necessário à sobrevivência dos
pequenos produtores que retiram seu sustento da atividade agrícola e
que não dispõem de outros métodos para o exercício desta, que não o
uso do fogo.
5. A interpretação do art. 27, parágrafo único do Código Florestal
não pode conduzir ao entendimento de que estão por ele abrangidas as
atividades agroindustriais ou agrícolas organizadas, ou seja, exercidas
empresarialmente, pois dispõe de condições financeiras para implantar
outros métodos menos ofensivos ao meio ambiente. Precedente:
RSTJ, a. 24, (226): 241-354, abril/junho 2012
335
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
(AgRg nos EDcl no REsp n. 1.094.873-SP, Rel. Min. Humberto
Martins, Segunda Turma, julgado em 4.8.2009, DJe 17.8.2009).
6. Ademais, ainda que se entenda que é possível à administração
pública autorizar a queima da palha da cana de açúcar em atividades
agrícolas industriais, a permissão deve ser específica, precedida de
estudo de impacto ambiental e licenciamento, com a implementação
de medidas que viabilizem amenizar os danos e a recuperar o ambiente,
Tudo isso em respeito ao art. 10 da Lei n. 6.938/1981. Precedente:
(EREsp n. 418.565-SP, Rel. Min. Teori Albino Zavascki, Primeira
Seção, julgado em 29.9.2010, DJe 13.10.2010).
Recurso especial provido.
ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos os autos em que são partes as acima indicadas,
acordam os Ministros da Segunda Turma do Superior Tribunal de Justiça: “A
Turma, por unanimidade, deu provimento ao recurso, nos termos do voto do
Sr. Ministro-Relator, sem destaque e em bloco.” Os Srs. Ministros Herman
Benjamin (Presidente), Mauro Campbell Marques, Cesar Asfor Rocha e Castro
Meira votaram com o Sr. Ministro Relator.
Brasília (DF), 28 de fevereiro de 2012 (data do julgamento).
Ministro Humberto Martins, Relator
DJe 6.3.2012
RELATÓRIO
O Sr. Ministro Humberto Martins: Cuida-se de recurso especial interposto
pelo Ministério Público do Estado de São Paulo, com fundamento no art. 105,
inciso III, alínea a, da Constituição Federal, contra acórdão do Tribunal de
Justiça do Estado de São Paulo assim ementado:
I - Embargos infringentes. Ação civil pública ambiental. Queimada de canade-açúcar. Recentes estudos feitos pelos institutos avançados demonstram que
a fuligem da cana-de-açucar não ocasiona o surgimento de qualquer tipo de
processo cancerígeno.
336
Jurisprudência da SEGUNDA TURMA
II - Inexistindo dado científico concreto, o Judiciário não pode paralisar a
atividade canavieira do Estado que dá, pelo menos, 15 milhões de empregos
diretos e indiretos, especialmente nesta quadra em que o desemprego do Estado
já alcança 6,4% da população economicamente ativa.
III - Embargos rejeitados. (e-STJ fls. 1.095).
Rejeitados os embargos de declaração opostos (e-STJ fls. 1.148).
No presente recurso especial, o recorrente alega que o acórdão estadual
contrariou as disposições contidas nos arts. 27, parágrafo único da Lei n.
4.771/1965, 3º, I, II, III e IV, 4º, I e VII e 14, § 1º da Lei n. 6.938/1981, arts. 1º,
IV e 21 da Lei Federal n. 7.347/1985, 6º, VIII da Lei Federal n. 8.078/1990 e
aos arts. 2º, I, 3º, IV e 4º, IV da Lei Federal n. 8.171/1991.
O recorrente interpôs o simultâneo recurso extraordinário (fls. 1.2101.232).
Apresentadas as contrarrazões (e-STJ fls. 1.186-1.208 e 1.236-1.240),
sobreveio o juízo de admissibilidade negativo da instância de origem (e-STJ fls.
1.240-1.241).
Este Relator houve por bem dar provimento ao agravo de instrumento
para determinar a subida do presente recurso especial (e-STJ fls. 1.262).
É, no essencial, o relatório.
VOTO
O Sr. Ministro Humberto Martins (Relator):
DO JUÍZO DE ADMISSIBILIDADE
O recurso especial comporta conhecimento, porquanto atende os
pressupostos recursais.
DA ALEGADA VIOLAÇÃO DA LEGISLAÇÃO FEDERAL
Consta dos autos que o Ministério Público do Estado de São Paulo
ajuizou ação civil pública com o objetivo de impedir a queima da palha da
cana de açúcar na região do Município de Jaú, tendo em vista que tal prática
acarretaria intensos danos ao meio ambiente.
RSTJ, a. 24, (226): 241-354, abril/junho 2012
337
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
Ao julgar o recurso de apelação e, posteriormente, os embargos infringentes,
entendeu o Tribunal de origem que:
2. A queimada da cana não causa os danos descritos no recurso. A indústria
sucro-alcoleira, ao contrário do alegado, resolve questão econômico-social
porque a introdução das colheitadeiras e o reescalonamento da mão-de-obra
afeta tanto o interesse público no plano do desemprego do que a proteção do
meio ambiente.
3. A queima da folhagem seca da cana não é proibida. A Lei Política Nacional do
Meio Ambiente propôs diretrizes gerais sobre proteção a ele, não estabelecendo
com relação às queimadas qualquer tipo de vedação em culturas regulares
renovadas, como, aliás, observou o que foi decidido no julgamento da Apelação
n. 45.503.5/3 (...)
4. Na verdade, o Pró-Álcool trouxe ao meio ambiente enormes benefícios.
Diminuiu os índices de chumbo na atmosfera paulista (de 1,2 micrograma
em 1978 para 0,2 micrograma em 1987) e de dióxido de enxofre (de 130 de
microgramas em 1977 para 60 microgramas em 1989). A par disso ocorreu
diminuição da produção de monóxido de carbono ou da produção alternativa
para substituição de um combustível fóssil.
5. Demais disso, cumpre ressaltar que, enquanto o carbono da cana é cíclico,
indo para a atmosfera quando de sua queima, seja como álcool ou como palha, é
ainda reabsorvido pela planta ao crescer e o carbono do combustível fóssil, ao ser
liberado para a atmosfera, não voltará a fossilizar-se.
6. Conclui-se daí que a fuligem que cai tem somente efeitos de incômodo e de
estética, quando as casas são recentemente pintadas.
7. Quanto ao câncer, toda fumaça é prejudicial, mas a pior delas é a derivada
dos combustíveis fósseis.
8. Analisando sob o aspecto de custo/benefício, verifica-se que a cultura
da cana-de-açúcar, mesmo com a queima da palha, é preferível à utilização de
combustíveis fósseis, sem considerar os inúmeros derramamentos de petróleo na
plataforma marítima.
(...)
10. Mais a mais, o Decreto n. 47.700, de 11 de março de 2003, regulamenta a
Lei n. 11.241/2002, que dispõe sobre a eliminação gradativa da queima da palha
da cana-de-açúcar, dispondo em seus arts. 1º e 2º, que a eliminação do uso do
fogo para a queima será feita de forma gradativa, observadas tabelas definidoras
do ano/percentual da área onde deverá haver a eliminação, determinando um
programa iniciado em 2002 com 20% de eliminação, até o ano de 2021 com 100%
de eliminação (para área mecanizável) e um programa a ser iniciado em 2011 com
10% de eliminação, até o ano 2031 com 100% de eliminação da queima (para área
não mecanizável). (fls. 1.096-1.103).
338
Jurisprudência da SEGUNDA TURMA
O acórdão merece reforma.
Conforme se observa, o Tribunal de origem faz considerações de ordem
fática, no sentido de que a queima da palha da cana de açúcar é quase que
um mal necessário, pois o álcool combustível trouxe mais benefício ao meio
ambiente que o combustível fóssil, bem como, resolve questão econômico social.
O cerne da questão não é o benefício produzido ao meio ambiente pelo
combustível verde. Isto está fora de dúvidas. Também não se discute nos autos
qual a política energética que deve ser adotada pelo país, principalmente no
Estado de São Paulo. O que deve ser analisado é se o método da queima da
palha da cana de açúcar, inserido no processo de produção, deve ser vedado, por
causar danos ambientais.
Delimitado o objeto que deve ser apreciado, colhe-se do acórdão que
inexiste dado científico concreto de que a queima da palha e a fuligem da canade-açúcar ocasionem danos ambientais ou o surgimento de qualquer tipo de
processo cancerígeno.
À primeira vista, pode parecer que infirmar esta conclusão enseje violação
da Súmula n. 7 desta Corte Superior. Todavia, não é isso que acontece. Não é
preciso revisar as provas e dados fáticos constantes no acórdão para sentenciar
que a proteção ao meio ambiente é incondicionada a certezas científicas.
Segundo o princípio da precaução, consagrado formalmente pela
Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e o Desenvolvimento Rio 92, a ausência de certezas científicas não pode ser argumento utilizado para
postergar a adoção de medidas eficazes para a proteção ambiental. Na dúvida,
prevalece a defesa do meio ambiente.
Eis o teor do princípio 15 da Declaração do Rio de Janeiro:
De modo a proteger o meio ambiente, o princípio da precaução deve ser
amplamente observado pelos Estados, de acordo com as suas capacidades.
Quando houver ameaça de danos sérios ou irreversíveis, a ausência de absoluta
certeza científica não deve ser utilizada como razão para postergar medidas
eficazes e economicamente viáveis para prevenir a degradação ambiental.
(Grifei).
Vale destacar que a Convenção do Rio de Janeiro teve sua ratificação
autorizada pelo Congresso Nacional por meio do Decreto Legislativo n. 2,
de 3.2.1994, tendo entrado em vigor para o Brasil em 29 de maio de 1994 e
promulgada pelo Decreto n. 2.519, de 16.3.1998.
RSTJ, a. 24, (226): 241-354, abril/junho 2012
339
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
Há ainda outro tratado internacional, ao qual o Brasil aderiu (Decreto
Legislativo n. 1, de 3.2.1994), que consagra o princípio da precaução. Trata-se
da Convenção - Quadro das Nações Unidas sobre a Mudança do Clima que,
em seu art. 3º dispõe que “As partes devem adotar medidas de precaução para
prever, evitar ou minimizar as causas da mudança do clima e mitigar seus efeitos
negativos. Quando surgirem ameaças de danos sérios ou irreversíveis, a falta de
plena certeza científica não deve ser utilizada como razão para postergar essas
medidas (...)” (Grifei).
Em doutrina, diz-se que “no mundo da precaução há uma dupla fonte
de incerteza: o perigo ele mesmo considerado e a ausência de conhecimentos
científicos sobre o perigo. A precaução visa justamente a gerir a espera da
informação. Ela nasce da diferença temporal entre a necessidade imediata de
ação e o momento onde nossos conhecimentos científicos vão modificar-se”
(Nicolas Treich e Gremaq, apud MACHADO, Direito Ambiental Brasileiro. São
Paulo: Malheiros, 2005, p. 64).
Portanto, a ausência de certeza científica, longe de justificar uma ação
possivelmente degradante do meio ambiente, deveria incitar o julgador a mais
prudência.
Tudo isso, obviamente, deve harmonizar-se com o desenvolvimento sócioeconômico, não podendo obstá-lo de modo irremediável. Deve-se, aqui, buscar
uma solução para o que parece ser uma tensão entre postulados constitucionais.
Ensina-nos a moderna teoria constitucional que a situação de tensão de
princípios deve ser resolvida pela ponderação, fundamentada e racional, entre os
valores conflitantes. Leciona também que, em face dos princípios democrático
e da Separação dos Poderes, é o Poder Legislativo quem possui a primazia no
processo de ponderação, de modo que o Judiciário deve intervir apenas no caso
de ausência ou desproporcionalidade da opção adotada pelo legislador.
O legislador brasileiro, atento a essa questão, disciplinou o uso do fogo no
processo produtivo agrícola, quando previu, no art. 27, parágrafo único da Lei n.
4.771/1965 que:
Art. 27. É proibido o uso de fogo nas florestas e demais formas de vegetação.
Parágrafo único. Se peculiaridades locais ou regionais justificarem o emprego
do fogo em práticas agropastoris ou florestais, a permissão será estabelecida
em ato do Poder Público, circunscrevendo as áreas e estabelecendo normas de
precaução.
340
Jurisprudência da SEGUNDA TURMA
Observe-se que a lei prevê a permissão para o emprego do fogo em
práticas agropastoris ou florestais desde que em razão de peculiaridades locais
ou regionais.
Busca-se, com isso, compatibilizar dois valores protegidos na Constituição
Federal de 1988, quais sejam, o meio ambiente e a cultura ou o modo de fazer,
este quando necessário à sobrevivência dos pequenos produtores que retiram
seu sustento da atividade agrícola e que não dispõem de outros métodos para o
exercício desta, que não o uso do fogo.
Conforme já me posicionei em decisão anterior, a interpretação do art.
27, parágrafo único do Código Florestal não pode conduzir ao entendimento
de que estão por ele abrangidas as atividades agroindustriais ou agrícolas
organizadas, ou seja, exercidas empresarialmente.
Neste sentido:
Ambiental. Direito Florestal. Ação civil pública. Cana-de-açúcar. Queimadas.
Artigo 21, parágrafo único, da Lei n. 4.771/1965 (Código Florestal) e Decreto
Federal n. 2.661/1998. Dano ao meio ambiente. Existência de regra expressa
proibitiva da queima da palha de cana. Exceção existente somente para preservar
peculiaridades locais ou regionais relacionadas à identidade cultural. Viabilidade
de substituição das queimadas pelo uso de tecnologias modernas. Prevalência do
interesse econômico no presente caso. Impossibilidade.
1. Os estudos acadêmicos ilustram que a queima da palha da cana-de-açúcar
causa grandes danos ambientais e que, considerando o desenvolvimento
sustentado, há instrumentos e tecnologias modernos que podem substituir tal
prática sem inviabilizar a atividade econômica.
2. A exceção do parágrafo único do artigo 27 da Lei n. 4.771/1965 deve ser
interpretada com base nos postulados jurídicos e nos modernos instrumentos de
linguística, inclusive com observância – na valoração dos signos (semiótica) – da
semântica, da sintaxe e da pragmática.
3. A exceção apresentada (peculiaridades locais ou regionais) tem como
objetivo a compatibilização de dois valores protegidos na Constituição
Federal/1988: o meio ambiente e a cultura (modos de fazer). Assim, a sua
interpretação não pode abranger atividades agroindustriais ou agrícolas
organizadas, ante a impossibilidade de prevalência do interesse econômico sobre
a proteção ambiental quando há formas menos lesivas de exploração.
Agravo regimental improvido.
(AgRg nos EDcl no REsp n. 1.094.873-SP, Rel. Min. Humberto Martins, Segunda
Turma, julgado em 4.8.2009, DJe 17.8.2009).
RSTJ, a. 24, (226): 241-354, abril/junho 2012
341
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
Portanto, as atividades agroindustriais, ante o seu poder econômico, não
podem valer-se da autorização constante no art. 27, parágrafo único do Código
Florestal para realizar queimadas, pois dispõe de condições financeiras para
implantar outros métodos menos ofensivos ao meio ambiente. Em tais situações,
estaria vedado ao Poder Público emitir essas autorizações.
Ademais, aqui em obiter dictum, ainda que se entenda que é possível
à administração pública autorizar a queima da palha da cana de açúcar em
atividades agrícolas industriais, a permissão deve ser específica, precedida de
estudo de impacto ambiental e o licenciamento, com a implementação de
medidas que viabilizem amenizar os danos e a recuperar o ambiente.
Tudo isso em respeito ao art. 10 da Lei n. 6.938/1981, segundo o qual,
“a construção, instalação, ampliação e funcionamento de estabelecimentos
e atividades utilizadores de recursos ambientais, efetiva ou potencialmente
poluidores ou capazes, sob qualquer forma, de causar degradação ambiental
dependerão de prévio licenciamento ambiental.” (Grifei).
Neste sentido:
Ambiental. Agravo regimental. Queima de palha de cana-de-açúcar. Prática
que causa danos ao meio ambiente. Necessidade de prévia autorização dos
órgãos públicos competentes.
1. Discute-se nos autos se a queimada de palha de cana-de-açúcar é medida
que, em tese, pode causar danos ao meio ambiente e se se trata de prática
possível a luz do ordenamento jurídico vigente.
2. Em decisão monocrática, foi dado provimento ao recurso especial do
Ministério Público, interposto com fundamento nas alíneas a e c do permissivo
constitucional, tendo sido (i) fixado que a queimada de palhas de cana-de-açúcar
causa danos ao meio ambiente e, por isso, só pode ser realizada com a chancela
do Poder Público e (ii) determinada a remessa dos autos à origem para que lá seja
apreciada a causa com base nos elementos fixados na jurisprudência do STJ, vale
dizer, levando-se em consideração a existência ou não de autorização do Poder
Público, na forma do art. 27, p. ún., do Código Florestal.
3. No regimental, sustenta a agravante (i) a impossibilidade de julgamento
da lide pelo art. 557 do Código de Processo Civil - CPC, (ii) a inexistência de
prequestionamento dos dispositivos legais apontados no especial e a ausência
de demonstração do dissídio jurisprudencial, (iii) a incidência da Súmula n. 7
desta Corte Superior, (iv) o não-cabimento de recurso especial, uma vez que a
origem validou lei local em face da Constituição da República vigente (cabimento
de recurso extraordinário), (v) a existência de lei local autorizando a prática da
queimada.
342
Jurisprudência da SEGUNDA TURMA
4. Não assiste razão à parte agravante, sob qualquer perspectiva.
5. Em primeiro lugar, no âmbito da Segunda Turma desta Corte Superior,
pacificou-se o entendimento segundo o qual a queimada de palha de canade-açúcar causa danos ao meio ambiente, motivo pelo qual sua realização
fica na pendência de autorização dos órgãos ambientais competentes, sendo
perfeitamente possível, portanto, o julgamento da lide com base no art. 557 do
CPC. A título de exemplo, v. REsp n. 439.456-SP, Rel. Min. João Otávio de Noronha,
Segunda Turma, DJU 26.3.2007. Não fosse isso bastante, a apreciação do agravo
regimental pela Turma convalida eventual vício.
6. Em segundo lugar, a instância ordinária enfrentou a questão da queima de
palha de cana-se-açúcar e suas conseqüências ambientais, motivo pelo qual não
cabe falar em ausência de prequestionamento do art. 27 do Código Florestal que trata justamente dessa temática no âmbito da legislação infraconstitucional
federal. O enfrentamento da tese basta para o cumprimento do requisito
constitucional.
7. Em terceiro lugar, não encontra óbice na Súmula n. 7 do Superior Tribunal
de Justiça o provimento que assevera, em tese, quais são o entendimento da
Corte Superior a respeito do tema e qual a norma aplicável à espécie, remetendo
os autos à origem para que lá sejam reanalisados os fatos e as provas dos
autos em cotejo com a jurisprudência do STJ. Inclusive, quando do julgamento
monocrático, ficou asseverado que “não há menção, no acórdão recorrido, acerca
da (in)existência de autorização ambiental própria no caso em comento, sendo
vedado a esta Corte Superior a análise do conjunto fático-probatório (incidência
da Súmula n. 7)”. Por isso, foi determinada a remessa dos autos à origem para que
lá venha a ser apreciada a causa levando-se em consideração a existência ou não
de autorização do Poder Público, na forma do art. 27, p. ún., do Código Florestal.
8. Em quarto lugar, a origem, em momento algum, enfrentou a controvérsia
dos autos confrontando a validade de lei local com a Constituição da República.
Ao contrário, discutindo dispositivos de leis estaduais, chegou à conclusão de que
a queima de palha de cana-de-açúcar era viável e não causava danos ao meio
ambiente. Não há que se falar, portanto, em cabimento de recurso extraordinário,
no lugar de recurso especial.
9. Em quinto e último lugar, a existência de lei estadual que prevê,
genericamente, o uso do fogo como método despalhador desde que atendidos
certos requisitos não é suficiente para afastar a exigência prevista em legislação
federal, que é a existência específica de autorização dos órgãos competentes. Não
custa lembrar que a licença ambiental está inserida na esfera de competência do
Executivo, e não do Legislativo (sob pena de violação ao princípio da separação
de Poderes).
10. Agravo regimental não provido.
(AgRg no REsp n. 1.038.813-SP, Rel. Min. Mauro Campbell Marques, Segunda
Turma, julgado em 20.8.2009, DJe 10.9.2009).
RSTJ, a. 24, (226): 241-354, abril/junho 2012
343
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
Processual Civil e Ambiental. Embargos de divergência. Queimada da palha de
cana-de-açúcar. Proibição. Aplicação do art. 27 do Código Florestal.
1. “Segundo a disposição do art. 27 da Lei n. 4.771/1985, é proibido o uso
de fogo nas florestas e nas demais formas de vegetação – as quais abrangem
todas as espécies –, independentemente de serem culturas permanentes ou
renováveis. Isso ainda vem corroborado no parágrafo único do mencionado
artigo, que ressalva a possibilidade de se obter permissão do Poder Público
para a prática de queimadas em atividades agropastoris, se as peculiaridades
regionais assim indicarem” (REsp n. 439.456-SP, 2ª T., Min. João Otávio de Noronha,
DJ de 26.3.2007). Indispensável considerar que “[as] queimadas, sobretudo
nas atividades agroindustriais ou agrícolas organizadas ou empresariais, são
incompatíveis com os objetivos de proteção do meio ambiente estabelecidos
na Constituição Federal e nas normas ambientais infraconstitucionais. Em época
de mudanças climáticas, qualquer exceção a essa proibição geral, além de
prevista expressamente em lei federal, deve ser interpretada restritivamente pelo
administrador e juiz” (REsp n. 1.000.731, 2ª Turma, Min.Herman Benjamin, DJ de
8.9.2009).
2. Assim, a palha da cana-de açúcar está sujeita ao regime do art. 27 e seu
parágrafo do Código Florestal, razão pela qual sua queimada somente é admitida
mediante prévia autorização dos órgãos ambientais competentes, nos termos do
parágrafo único do mesmo artigo e do disposto no Decreto n. 2.661/1998, sem
prejuízo de outras exigências constitucionais e legais inerentes à tutela ambiental,
bem como da responsabilidade civil por eventuais danos de qualquer natureza
causados ao meio ambiente e a terceiros.
3. Embargos de Divergência improvidos.
(EREsp n. 418.565-SP, Rel. Min. Teori Albino Zavascki, Primeira Seção, julgado
em 29.9.2010, DJe 13.10.2010).
Ante o exposto, dou provimento ao recurso especial.
É como penso. É como voto.
RECURSO ESPECIAL N. 1.297.891-SP (2011/0305518-8)
Relator: Ministro Herman Benjamin
Recorrente: BRF - Brasil Foods S/A
Advogados: Janaína Castro de Carvalho Kalume e outro(s)
344
Jurisprudência da SEGUNDA TURMA
Eduardo Antonio Lucho Ferrão
Flavio Eduardo Silva de Carvalho
Eduardo Pugliese Pincelli
Recorrido: Fazenda Nacional
Advogado: Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional
Interessado: Huaine Participações Limitada
Interessado: Perdigão Agroindustrial S/A
EMENTA
Processual Civil. Recurso especial. Violação do art. 535 do CPC.
Omissão configurada. Questões relevantes para a solução da lide.
Ausência de valoração.
1. Trata-se de Recurso Especial interposto contra acórdão que
proveu Agravo de Instrumento da Fazenda Pública e, dessa forma,
rejeitou a Exceção de Pré-Executividade, sob o fundamento de que a
questão da decadência está atrelada ao exame da sucessão empresarial
(art. 133 do CTN), a demandar extensa dilação probatória nos
Embargos da Devedora.
2. A recorrente opôs Embargos de Declaração para apontar a
existência de premissa equivocada, obscuridade e omissões no acórdão.
Afirma que a sua rejeição implica ofensa ao art. 535 do CPC.
3. No mérito, a empresa pretende discutir a violação da legislação
processual civil e tributária atinente à nulidade do título executivo
extrajudicial e à decadência.
4. Conquanto as matérias discutidas, em tese, possam ser
conhecidas de ofício, é importante registrar que o órgão colegiado
não emitiu juízo de valor a seu respeito; pelo contrário, expressamente
consignou que se vinculam a tema sujeito à instrução probatória,
razão pela qual, no ponto, eventual pronunciamento do STJ implica
supressão de instância.
5. A recusa em valorar questões relevantes para a solução da lide
configura omissão.
6. In casu, controverte-se sobre a viabilidade da Exceção de PréExecutividade como instrumento adequado para suscitar, mediante
RSTJ, a. 24, (226): 241-354, abril/junho 2012
345
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
prova pré-constituída hipoteticamente apta ao deslinde da matéria, a
nulidade do título executivo extrajudicial e a decadência.
7. A premissa utilizada na Corte local – necessidade de averiguar
a sucessão empresarial – é equivocada, pois o fundamento da autuação
fiscal (omissão de receitas pelo contribuinte) e da providência adotada
pela Fazenda Nacional (inclusão da recorrente na CDA sob o
entendimento de que há responsabilidade solidária por infração à lei)
não se relaciona às hipóteses dos arts. 132 e 133 do CTN.
8. Nos moldes em que o tema foi suscitado, e à luz do acórdão
hostilizado, é inequívoca a omissão, pois os seguintes pontos reclamam
pronunciamento. São eles:
a) se a tese sobre a constatação da responsabilidade solidária,
por formação de grupo econômico com infração à lei, relaciona-se à
existência de empresas cuja personalidade jurídica deve ser considerada
única ou não;
b) nesse contexto, se o prazo para atribuição de responsabilidade
possui natureza decadencial ou prescricional;
c) se a PFN modificou os critérios jurídicos adotados pela Receita
Federal, por ocasião do lançamento, para, no âmbito administrativo,
incluir suposta devedora corresponsável, sem abrir oportunidade para
defesa da parte interessada, nos moldes do Decreto n. 70.235/1972;
d) em caso positivo, qual o prazo (e o respectivo termo a quo)
para inclusão do denominado “devedor solidário”;
e) em caso negativo, se o título executivo extrajudicial (CDA)
padeceria de nulidade.
9. Tais questões, como se infere, são de natureza estritamente
jurídica (prescindem de dilação probatória) e, no caso em tela, são
preliminares à análise das teses de decadência e de nulidade do título
executivo.
10. Dito de outro modo, a depender das respostas (entendimento)
do Tribunal de origem, os questionamentos poderão ser suficientes
ou não para o exame das assertivas lançadas na Exceção de PréExecutividade.
346
Jurisprudência da SEGUNDA TURMA
11. Recurso Especial provido com determinação de remessa dos
autos, para novo julgamento dos Embargos de Declaração, na forma
acima explicitada.
ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos os autos em que são partes as acima indicadas,
acordam os Ministros da Segunda Turma do Superior Tribunal de Justiça: “A
Turma, por unanimidade, deu provimento ao recurso, nos termos do voto do Sr.
Ministro-Relator.” Os Srs. Ministros Mauro Campbell Marques, Castro Meira
e Humberto Martins votaram com o Sr. Ministro Relator.
Não participou, justificadamente, do julgamento o Sr. Ministro Cesar
Asfor Rocha.
Dr(a). Eduardo Pugliese Pincelli, pela parte recorrente: BRF - Brasil
Foods S/A.
Brasília (DF), 16 de fevereiro de 2012 (data do julgamento).
Ministro Herman Benjamin, Relator
DJe 6.3.2012
RELATÓRIO
O Sr. Ministro Herman Benjamin: Trata-se de Recurso Especial
interposto, com fundamento no art. 105, III, a, da Constituição da República,
contra acórdão assim ementado:
Direito Tributário. Execução fiscal. Sucessão empresarial. Legitimidade da
empresa sucessora por incorporação para figurar no polo passivo. Alteração da
sede da empresa.
1. “A exceção de pré-executividade á admissível na execução fiscal relativamente
às matérias conhecíveis de ofício que não demandem dilação probatória” (Súmula
n. 393 do STJ).
2. Ainda que se possa alegar causas extintivas ou modificativas do direito da
parte exeqüente, no caso a União Federal, não menos certo é que há evidente
incompatibilidade com essa objeção processual, eis que depende de dilação
probatória a alegação concernente ao IRRF no que tange ao art. 35 da Lei n.
7.713/1988.
RSTJ, a. 24, (226): 241-354, abril/junho 2012
347
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
3. A sucessão empresarial também depende de análise demonstrativa das
configurações e responsabilidade das holdings, em especial o envolvimento do
grupo e a Huaine Participações Ltda. O que não se ajusta ao conceito de objeção
pré-processual.
4. A análise da decadência que, em tese poderia ser objeto de alegação em
exceção de pré-executividade, nestes autos não aproveita ao contribuinte posto
que depende, para sua configuração, da análise da própria sucessão empresarial.
A matéria demanda, na verdade, “extenso revolvimento de provas”, não sendo
admissível a exceção (STJ REsp n. 604.257-AgRg Min. Teori Zavascki).
5. “A presunção de legitimidade assegurada à CDA impõe ao executado o ônus
de demonstrar a inexistência de sua responsabilidade tributária, demonstração essa
que, por demandar prova, deve ser promovida no âmbito dos embargos à execução”
(STJ REsp n. 1.110.925, Min. Teori Zavascki).
Os Embargos de Declaração foram rejeitados.
A recorrente alega violação dos arts. 269, IV, 295, IV, 535, 586, 618, I, e
795 do CPC; dos arts. 121, I, 125, III, 133, I, 142, 150, § 4º, 173 e 204 do CTN;
e do art. 3º da Lei n. 6.830/1980.
Foram apresentadas as contrarrazões.
É o relatório.
VOTO
O Sr. Ministro Herman Benjamin (Relator): Os autos foram recebidos
neste Gabinete em 17.1.2012.
Registro, inicialmente, que se trata de demanda que envolve crédito
tributário milionário, superior a R$ 500.000.000,00 (quinhentos milhões
de reais) à época do ajuizamento da Execução Fiscal (meados de 2009) –
atualmente superior a R$ 700.000.000,00 (setecentos milhões de reais).
A Fazenda Nacional, na resposta ao Recurso Especial, limitou-se a afirmar,
em petição de uma única folha, que os “fundamentos apresentados (...) em nada
contribuem para infirmar o r. decisum” (fl. 1.262, e-STJ).
Dada a dimensão econômica da matéria debatida nos autos, determino
a extração de cópias do Recurso Especial, das contrarrazões e do presente
acórdão, com encaminhamento à Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional e à
Advocacia-Geral da União.
348
Jurisprudência da SEGUNDA TURMA
Passo a descrever a interessante e complexa controvérsia submetida à
apreciação judicial.
1. O crédito tributário e a questão jurídica
A recorrente se insurge contra a cobrança que lhe foi dirigida, com base em
inscrição em dívida ativa, que tem por objeto tributos como Imposto de Renda
da Pessoa Jurídica, Imposto de Renda retido na Fonte, PIS e Cofins, com fatos
geradores ocorridos entre 1992 e 1995.
Afirma que os créditos tributários foram constituídos pela Receita Federal
em 6.2.1997, exclusivamente contra a empresa Perbon Fomento Comercial Ltda.
(extinta por incorporação pela empresa Huaine Participações Ltda.).
Em síntese, narra que a pessoa jurídica autuada apresentou tempestiva
impugnação ao lançamento, da qual posteriormente desistiu, no ano de 2000,
para fins de adesão ao parcelamento denominado Refis.
No ano de 2005, a devedora foi excluída do Refis e, com isso, restabeleceuse a condição para cobrança da dívida (isto é, entre 1997 e 2005 – impugnação
ao lançamento de ofício e exclusão do Refis, respectivamente – não fluiu o prazo
prescricional por força do art. 151, III e VI, do CTN).
A Procuradoria da Fazenda Nacional, por mero Parecer interno, chegou à
conclusão de que está caracterizada a existência de grupo econômico, e que as
empresas Perdigão Agroindustrial S/A (incorporada pela recorrente, BR Foods
S/A) e Huaine Participações Ltda., em conjunto, infringiram a lei, razão pela
qual estaria caracterizada a responsabilidade solidária e, em consequência, ambas
deveriam ser inscritas em dívida ativa da União.
Dito de outro modo, a recorrente afirma que foi surpreendida com a
cobrança administrativa e o posterior ajuizamento da Execução Fiscal doze
anos após a autuação e dezesseis anos após a ocorrência do primeiro fato
gerador. Isso, por si só, evidenciaria a decadência, hipótese de extinção do crédito
tributário.
Ademais, o título executivo extrajudicial seria nulo, pois a inclusão da suposta
devedora corresponsável deveria ser precedida de contencioso administrativo, com
observância dos princípios do contraditório e da ampla defesa.
Por essa razão, a recorrente apresentou Exceção de Pré-Executividade, a
qual, após reconsideração do juízo de 1º grau, foi acolhida no que diz respeito à
decadência.
RSTJ, a. 24, (226): 241-354, abril/junho 2012
349
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
A Fazenda Nacional interpôs Agravo de Instrumento, que foi provido no
Tribunal a quo, sob o entendimento de que a questão da decadência “depende,
para sua configuração, da análise da própria sucessão empresarial”, nos termos
do art. 133 do CTN, o que implica dizer que demanda extenso revolvimento
de provas, a ser promovido em Embargos do Devedor, e não na objeção préexecutiva.
A empresa BR Foods S/A (sucessora da Perdigão Agroindustrial S/A)
opôs Embargos de Declaração, apontando a existência de premissa equivocada,
obscuridade e omissões no julgado.
Diante da rejeição dos aclaratórios, defende a tese de violação ao art. 535
do CPC; no mérito, de nulidade do título executivo e de decadência, hipóteses
que viabilizam a sua discussão na via utilizada.
2. A tese de violação do art. 535 do CPC
Procede a tese relacionada à existência de omissão no julgado.
Nos Embargos de Declaração dirigidos ao Tribunal de origem, foram
levantados os seguintes questionamentos:
a) o juízo de primeiro grau, ao analisar a prova pré-produzida nos autos,
constatou de plano a decadência ao registrar que a exequente “dispunha dos
mesmos elementos existentes no momento do ajuizamento do feito para imputação
da responsabilidade solidária da coexecutada”, e que “optou por dirigir sua
pretensão fiscal apenas em face da primeira executada Huaine Participações
Ltda., incorporadora da Perbon Fomento Comercial Ltda.”, ou seja, que
“deveria a exequente ter incluído na autuação a segunda executada no momento
da lavratura do auto de infração, em 6.2.1997”, e que, ao não fazê-lo, “impediu
esta empresa de participar do processo administrativo”, não sendo lícita a
pretensão de responsabilizar a recorrente “mais de quatorze anos após o auto de
infração” (fl. 1.185, e-STJ, grifei);
b) a ausência de correspondência entre a informação contida na CDA,
quanto à responsabilidade solidária, e o conteúdo do lançamento direto (que
imputou responsabilidade tributária apenas à empresa contribuinte, Huaine
Participações Ltda.) implica nulidade do título executivo (arts. 586 e 618, I, do
CPC; art. 204 do CTN; e art. 3º da Lei n. 6.830/1980) e violação do art. 142 do
CTN, porque o crédito tributário não teria sido “regularmente constituído em
face da ora Embargante” (fl. 1.186, e-STJ);
350
Jurisprudência da SEGUNDA TURMA
c) “ainda que se admita não ter havido, à época da lavratura dos Autos
de Infração, elementos suficientes para a responsabilização de contribuintes
solidários, é fora de dúvida que (...) a imputação da responsabilidade contra
eventuais solidários deveria ter sido realizada no prazo da decadência nos
termos do art. 150, § 4º ou do art. 173 do CTN, que não se suspende nem se
interrompe” (fl. 1.187, e-STJ).
Em síntese, afirma a recorrente que as circunstâncias fáticas e jurídicas,
regularmente assinaladas na decisão do juízo de primeiro grau, não foram
examinadas no acórdão hostilizado, razão pela qual estaria caracterizado o vício
da omissão.
A Corte local, como dito no relatório, rejeitou os Embargos de Declaração,
mantendo o acórdão que, ao apreciar o recurso da Fazenda Nacional, teve a
seguinte fundamentação (fl. 1.179, e-STJ, grifei):
Verifica-se que a exceção oposta não se mostra adequada na hipótese dos
autos.
Com efeito a Súmula n. 393 do STJ assim dispõe:
A exceção de pré-executividade é admissível na execução fiscal
relativamente às matérias conhecíveis de ofício que não demandem dilação
probatória.
(...)
A sucessão empresarial disposta no artigo 132 do CTN também depende de
análise demonstrativa das configurações e responsabilidade das holdings, em
especial o envolvimento do grupo e a Huaine Participações Ltda. o que não se ajusta
ao conceito de objeção pré-processual.
A análise da decadência que, em tese poderia ser objeto de alegação em
exceção de pré-executividade, nestes autos, não aproveita ao contribuinte, posto
que depende, para sua configuração, da análise da própria sucessão empresarial.
A matéria demanda, na verdade, “extenso revolvimento de provas”, não sendo
admissível a exceção (STJ, REsp n. 604.257-AgRg, Min. Teori Zavascki). E ainda, o
mesmo C. STJ decidiu: “A presunção de legitimidade assegurada à CDA impõe ao
executado que figura no titulo executivo o ônus de demonstrar a inexistência de sua
responsabilidade tributária, demonstração essa que, por demandar prova, deve ser
promovida no âmbito dos embargos à execução” (STJ, REsp n. 1.110.925, Min. Teori
Zavascki).
Conforme se vê, a questão de mérito (nulidade do título executivo e
decadência) não foi analisada porque o órgão colegiado afirmou que, no caso
RSTJ, a. 24, (226): 241-354, abril/junho 2012
351
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
concreto, a matéria deverá ser ventilada em Embargos à Execução Fiscal,
por encontrar-se necessariamente atrelada ao exame da “sucessão empresarial
disposta no art. 132 do CTN”, a qual demanda dilação probatória.
Consequentemente, o mérito do presente recurso não foi prequestionado,
pois, embora as questões discutidas na Exceção de Pré-Executividade
qualifiquem-se como passíveis de conhecimento de ofício (decadência e carência
da ação por inexistência de título extrajudicial líquido e certo), não podem ser
diretamente enfrentadas no STJ, sob pena de supressão de instância.
Voltando ao enfrentamento das razões recursais, a premissa que embasou o
acórdão hostilizado encontra-se evidentemente equivocada.
Não se discute a existência de sucessão empresarial (prevista nos arts. 132
e 133 do CTN), mesmo porque esse não foi o fundamento da autuação fiscal
ou das providências adotadas unilateralmente no âmbito da Procuradoria da
Fazenda Nacional.
Controverte-se a respeito da viabilidade de a Exceção de Pré-Executividade
debater, mediante prova pré-constituída hipoteticamente apta para o deslinde do
feito, as alegações de nulidade do título executivo extrajudicial e de decadência.
Nos moldes em que o tema foi suscitado, e à luz do acórdão hostilizado,
não há como negar a existência de omissão, pois as seguintes questões precisam
ser analisadas e independem de prova:
a) a suposta prática de atos de infração à lei, por empresas integrantes
de grupo econômico, resulta na existência de responsabilidade solidária?
Nesse contexto, o prazo para atribuição de responsabilidade possui natureza
decadencial ou prescricional?;
b) a PFN modificou unilateralmente os critérios jurídicos adotados pela
Receita Federal, por ocasião do lançamento, para incluir administrativamente
suposto devedor corresponsável, sem abrir oportunidade para defesa da parte
interessada, nos moldes do Decreto n. 70.235/1972?;
c) em caso positivo, qual o prazo (e o respectivo termo a quo) para a
inclusão do denominado “devedor solidário”?;
d) em caso negativo, o título executivo extrajudicial (CDA) não padeceria
de nulidade?
Tais questões, como se infere, prescindem de dilação probatória e, no caso
em tela, são preliminares à análise das teses de decadência e de nulidade do
352
Jurisprudência da SEGUNDA TURMA
título executivo. Dito de outro modo, a depender das respostas (entendimento)
do Tribunal de origem, poderão ser suficientes ou não para o enfrentamento das
assertivas lançadas na Exceção de Pré-Executividade.
O STJ possui a orientação de que a ausência de valoração de temas
relevantes para a composição da lide implica omissão no julgado. Nesse sentido:
Processual Civil. Recurso especial. Questão relevante. Ausência de manifestação
do Tribunal a quo. Violação do art. 535 do CPC. Omissão configurada.
1. O Tribunal de origem reformou a sentença e julgou parcialmente procedente
Ação Ordinária para impedir a produção de efeitos retroativos (à data de adesão)
no ato de exclusão do Simples, sob o argumento de que o regime especial de
tributação somente poderia deixar de ser aplicado à recorrida a partir da entrada
em vigor da Medida Provisória n. 2.189-49/2001, quando a espécie de atividade
por ela exercida passou a impedir a respectiva adesão, ou manutenção.
2. A Fazenda Pública opôs Embargos de Declaração afirmando que houve
omissão - pois a exclusão não teve por base a referida Medida Provisória, mas
dispositivo legal constante na redação original da Lei n. 9.317/1996 -, bem como
ter sido intencional a ocultação de informações, justamente para viabilizar a
indevida adesão ao Simples, razão pela qual os efeitos excludentes devem
retroagir à data de adesão.
3. A rejeição dos Aclaratórios sem enfrentamento de questões relevantes para
a solução da lide implica violação do art. 535 do CPC e, por conseqüência, do art.
538, parágrafo único, do CPC.
4. Recurso Especial parcialmente provido para excluir a multa prevista no art.
538, parágrafo único, do CPC e determinar a devolução dos autos ao Tribunal a
quo, prejudicadas as demais questões.
(REsp n. 1.171.860-GO, Rel. Ministro Herman Benjamin, Segunda Turma, DJe
19.4.2011).
Processual Civil. Agravo regimental no agravo de instrumento.
Responsabilidade civil do Estado. Análise de teses necessárias para o deslinde
da controvérsia. Ausência de manifestação. Omissão configurada. Violação do
art. 535 do CPC. Nulidade do acórdão. Precedentes do STJ. Retorno dos autos ao
Tribunal de origem. Provimento do recurso especial.
1. É pacífico o entendimento deste Tribunal Superior no sentido de que o
órgão julgador não está obrigado a se manifestar sobre todos os argumentos
expostos pelas partes, desde que adote fundamentação suficiente para o efetivo
julgamento da lide.
2. Se o Tribunal de segundo grau manteve-se omisso em relação a tema
relevante para o deslinde da controvérsia, o qual foi suscitado no momento
RSTJ, a. 24, (226): 241-354, abril/junho 2012
353
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
oportuno, mostra-se evidente o interesse recursal no que se refere à alegada
afronta ao art. 535 do CPC.
3. A parte recorrente aponta violação do art. 535, inc. II, do CPC, pois, apesar
da apresentação de dois aclaratórios no intuito de debater a questão, a Corte de
origem não analisou a tese de que o Estado deve ser condenado ao pagamento
de indenização por danos morais suportados por ex-presidiário baleado por
agentes públicos durante o banho de sol.
4. Houve, portanto, violação do art. 535, II, do Código de Processo Civil, o que
impõe o reconhecimento de nulidade do acórdão, bem com a determinação de
novo julgamento dos embargos de declaração para que seja sanada a apontada
omissão.
5. Agravo regimental não provido.
(AgRg no Ag n. 1.401.739-RJ, Rel. Ministro Mauro Campbell Marques, Segunda
Turma, DJe 29.6.2011).
Com essas considerações, dou provimento ao Recurso Especial e determino a
devolução dos autos ao Tribunal de origem, para novo julgamento dos Embargos de
Declaração, nos termos acima explicitados.
É como voto.
354
Segunda Seção
EMBARGOS DE DECLARAÇÃO NOS EMBARGOS DE DECLARAÇÃO
NOS EMBARGOS DE DECLARAÇÃO NO AGRAVO REGIMENTAL NO
CONFLITO DE COMPETÊNCIA N. 105.345-DF (2009/0099044-9)
Relator: Ministro Raul Araújo
Embargante: Agropecuaria Vale do Araguaia Ltda
Embargado: Viação Aérea São Paulo S/A - Vasp e outros
Autor: Ministério Público do Trabalho e outros
Terc Inter: Sindicato Nacional dos Aeronautas
Advogado: Rita de Cássia Barbosa Lopes e outro(s)
Suscitante: Agropecuaria Vale do Araguaia Ltda
Advogado: Cláudio Alberto Feitosa Penna Fernandez e outro(s)
Suscitado: Juízo de Direito da Vara de Falências e Recuperações Judiciais
do Distrito Federal - DF
Suscitado: Juízo da 14ª Vara do Trabalho de São Paulo - SP
EMENTA
Embargos de declaração nos embargos de declaração nos
embargos de declaração no agravo regimental no conflito de
competência. Obscuridade. Inteligência do art. 49 da LFR (Lei n.
11.101/2005). Suspensão das ações e execuções contra o devedor.
Termo inicial. Deferimento do processamento da recuperação judicial.
Decisão com efeitos ex nunc. Embargos de declaração acolhidos.
1. A regra do art. 49 da Lei n. 11.101/2005 merece interpretação
sistemática. Nos termos do art. 6º, caput, da Lei de Falências e
Recuperações Judiciais, é a partir do deferimento do processamento da
recuperação judicial que todas as ações e execuções em curso contra o
devedor se suspendem. Na mesma esteira, diz o art. 52, III, do referido
diploma legal que, estando a documentação em termos, o Juiz deferirá
o processamento da recuperação judicial e, no mesmo ato, ordenará
a suspensão de todas as ações e execuções contra o devedor. Assim,
os atos praticados nas execuções em trâmite contra o devedor entre
a data de protocolização do pedido de recuperação e o deferimento
de seu processamento são, em princípio, válidos e eficazes, pois os
processos estão em seu trâmite regular.
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
2. A decisão que defere o processamento da recuperação judicial
possui efeitos “ex nunc”, não retroagindo para atingir os atos que a
antecederam.
3. O art. 49 da Lei n. 11.101/2005 delimita o universo de credores
atingidos pela recuperação judicial, instituto que possui abrangência
bem maior que a antiga concordata, a qual obrigava somente os
credores quirografários (DL n. 7.661/1945, art. 147). A recuperação
judicial atinge “todos os créditos existentes na data do pedido, ainda
que não vencidos”, ou seja, grosso modo, além dos quirografários, os
credores trabalhistas, acidentários, com direitos reais de garantia, com
privilégio especial, com privilégio geral, por multas contratuais e os
dos sócios ou acionistas.
4. O artigo 49 da LFR tem como objetivo, também, especificar
quais os créditos, desde que não pagos e não inseridos nas exceções
apontadas pela própria lei, que se submeterão ao regime da recuperação
judicial e aqueles que estarão fora dele. Isso, porque, como se sabe, na
recuperação judicial, a sociedade empresária continua funcionando
normalmente e, portanto, negociando com bancos, fornecedores e
clientes. Nesse contexto, se, após o pedido de recuperação judicial, os
débitos contraídos pela sociedade empresária se submetessem a seu
regime, não haveria quem com ela quisesse negociar.
5. Na hipótese, o aresto embargado deu ao dispositivo
infraconstitucional a interpretação que entendeu pertinente, dentro
do papel reservado ao STJ pela Carta Magna (art. 105), concluindo
que o crédito fora validamente adimplido antes do deferimento do
processamento da recuperação judicial, momento em que a execução
não estava suspensa e eram válidos e eficazes os atos nela praticados,
razão pela qual o Juízo do Trabalho é o competente para ultimar os
atos referentes à adjudicação do bem imóvel.
6. Embargos de declaração acolhidos, para sanar obscuridade,
sem efeitos infringentes.
ACÓRDÃO
Em Questão de Ordem, a Segunda Seção, por unanimidade, decide que os
conflitos de competência distribuídos até hoje ficam com quem os receber por
358
Jurisprudência da SEGUNDA SEÇÃO
distribuição e tenha proferido alguma decisão. A partir de hoje, a distribuição
e os Srs. Ministros que não proferiram nenhuma decisão nos conflitos de
competência distribuídos até 9 de novembro de 2011 deverão encaminhar
os autos à Sra. Ministra Nancy Andrighi. No mérito, a Segunda Seção, por
unanimidade, acolhe os embargos de declaração, para sanar obscuridade, sem
efeitos infringentes, nos termos do voto do Sr. Ministro Relator, consignada
a questão de ordem. Os Srs. Ministros Paulo de Tarso Sanseverino, Maria
Isabel Gallotti, Antonio Carlos Ferreira, Ricardo Villas Bôas Cueva, Nancy
Andrighi e Luis Felipe Salomão votaram com o Sr. Ministro Relator. Ausentes,
justificadamente, os Srs. Ministros Massami Uyeda e Marco Buzzi.
Brasília (DF), 9 de novembro de 2011 (data do julgamento).
Ministro Raul Araújo, Relator
DJe 25.11.2011
RELATÓRIO
O Sr. Ministro Raul Araújo: Cuida-se de embargos de declaração nos
embargos de declaração nos embargos de declaração no agravo regimental no
conflito de competência opostos por Agropecuária Vale do Araguaia Ltda contra
acórdão que guarda a seguinte ementa:
Embargos de declaração nos embargos de declaração no agravo regimental
no conflito de competência. Bens adjudicados antes do processamento
da recuperação judicial. Juízo trabalhista competente para ultimar os atos
expropriatórios. Limites de cognição do conflito de competência. Embargos
parcialmente acolhidos, sem efeitos infringentes.
1. Se a adjudicação é pretendida antes do deferimento da recuperação judicial,
não há mais falar em crédito trabalhista líquido a ser habilitado na recuperação,
e sim em crédito, total ou parcialmente, adimplido pelo devedor antes da
instauração do procedimento de soerguimento da empresa.
2. No caso dos autos, a adjudicação do bem imóvel objeto da lide não só foi
requerida como também deferida antes de concedido o pedido de recuperação,
cujo processamento somente foi determinado posteriormente. Assim, na esteira
dos precedentes desta egrégia Corte, o Juízo trabalhista é o competente para
ultimar os atos relativos à adjudicação.
3. Em sede de conflito de competência, no qual a única pretensão possível é
a definição do juízo competente para processar e julgar determinada lide, não é
pertinente deliberar-se sobre matérias transbordantes desse tema.
RSTJ, a. 24, (226): 355-390, abril/junho 2012
359
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
4. É de ser mantido o entendimento de que inexiste conflito de competência
na espécie, na medida em que não há dois juízos diferentes decidindo acerca do
destino do mesmo bem, já que apenas a Justiça Obreira acerca disso deliberou.
5. Embargos de declaração parcialmente acolhidos, sem efeitos infringentes.
(fls. 1.396-1.397).
Diz a embargante que padece o acórdão de obscuridade, porquanto
teria eleito como marco definidor da competência a data em que deferida a
recuperação judicial quando a Lei n. 11.101/2005 estabelece expressamente
em seu art. 49 que todos os créditos existentes na data do pedido, e não do
deferimento da recuperação, estão sujeitos à recuperação judicial.
Acrescenta que o pedido de recuperação judicial foi formulado em 13 de
agosto de 2008, quatorze dias antes da decisão proferida pelo Juízo trabalhista
acerca da adjudicação do imóvel objeto do dissenso. Entende, nesse sentido, que
a situação revela sobreposição de competências.
Pretende seja esclarecida se a hipótese é de “mero lapsus calami; ou se
realmente, a Corte estaria a desconsiderar a vigência do artigo 49 da Lei
n. 11.101, de 09 de fevereiro de 2005, ao arrepio do estatuído pela Súmula
Vinculante n. 10 (cláusula de reserva de plenário)” (fl. 1.405).
Ressalta que os presentes embargos têm manifesta intenção de
prequestionar a declaração implícita de inconstitucionalidade do artigo 49 da
Lei n. 11.101/2005, em vista da negativa de sua aplicação ao caso sub judice, e
sem se atentar para o quorum qualificado a que alude o artigo 97 da Constituição
Federal.
O Sindicato dos Aeroviários no Estado de São Paulo apresenta impugnação
dos embargos trazidos pela Agropecuária Vale do Araguaia Ltda (fls. 1.4111.515), apontando, de início, a resistência injustificada da embargante em
obedecer aos comandos legais. Ressalta que os arts. 6º e 52, III, da Lei n.
11.101/2005 dispõem que somente com deferimento da recuperação judicial é
que o curso da prescrição e das ações e execuções ajuizadas contra o devedor é
suspenso. Assim, até esse momento, os atos praticados nas execuções são válidos
e eficazes.
Assevera que a lei deve ser interpretada em sua completude, bem por isso
não é possível pinçar um único artigo como capaz de solucionar questão que
demanda uma apreciação generalizada dos comandos legais.
360
Jurisprudência da SEGUNDA SEÇÃO
Diz, ainda, que, a prevalecer o entendimento manifestado pela embargante,
“estar-se-ia diante de uma verdadeira aberração jurídica, já que os credores,
apenas com o protocolo da petição inicial da recuperação judicial, desde logo
ficariam impedidos de impulsionar suas execuções em juízos distintos do
universal, a despeito de inexistir, até então, lei e determinação judicial vedando
tal prosseguimento” (fl. 1.418).
Assinala que a Constituição Federal protege o ato jurídico perfeito e
acabado (CF, art. 5º, XXXVI) e o que pretende a embargante é desfazer a
adjudicação, ato jurídico, perfeito e acabado, sem que houvesse à época de sua
ocorrência decisão judicial autorizando o processamento de sua recuperação
judicial, ou determinando a suspensão das execuções.
Lembra que, tanto sob a égide do diploma anterior (DL n. 7.661/1945)
quanto na vigência da Lei n. 11.101/2005, a jurisprudência se firmou no sentido
de não permitir efeitos ex tunc à decisão que decreta a quebra ou defere o
processamento da recuperação judicial. Cita jurisprudência desta egrégia Corte
e do Supremo Tribunal Federal em abono a sua tese.
Nesse passo, afirma que, se nos termos do art. 685-B do Código de
Processo Civil a adjudicação se perfectibiliza com a lavratura e assinatura do
auto, e essa ocorreu antes do deferimento do processamento da recuperação
judicial, como reiteradamente reconhecido nos presentes autos pelos diversos
Ministros que compõem a Segunda Seção, não é possível seu desfazimento à
míngua de lei ou ato judicial que o determine.
Esclarece que o art. 49 da Lei n. 11.101/2005 somente estabelece quais
credores que, a partir do processamento da recuperação judicial, a ela se sujeitam,
como o fazia a concordata em relação aos credores quirografários.
Ressalta, ainda, que a matéria em questão não dá azo à reserva de plenário,
seja porque baseada na jurisprudência do STJ e do STF, seja porque preclusa,
já que trazida somente nos terceiros embargos de declaração aviados pela
suscitante.
Aponta, de outra parte, que nos termos do art. 54 da Lei n. 11.101/2005,
o plano de recuperação judicial não pode prever prazo superior a um ano para
pagamento dos créditos derivados da legislação do trabalho. Afirma, nesse
contexto, que o plano de recuperação da suscitante foi homologado em 4.2.2010
e que, se fosse séria a intenção de pagamento dos credores obreiros, esse já teria
ocorrido. Porém, assevera que até hoje não foi pago um centavo sequer da dívida
que ultrapassa um bilhão de reais.
RSTJ, a. 24, (226): 355-390, abril/junho 2012
361
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
Diz, ainda, que o rol de credores não integra os autos do presente conflito,
o que confirma a necessidade de que não seja conhecido.
Requer, por fim, a condenação da embargante às penas da litigância de máfé, sugerindo que se tome por base para a estipulação da multa o valor do bem
adjudicado - R$ 421.012.500,00 (quatrocentos e vinte e um milhões, doze mil
e quinhentos reais), condicionando a interposição de qualquer outro recurso ao
recolhimento do valor fixado.
O Sindicato Nacional dos Aeronautas apresenta a impugnação de fls. 1.5191.531. Aduz, inicialmente, que em sede de embargos de declaração não é
possível inovar a lide, como pretende a suscitante nos presentes declaratórios,
trazendo questão que não foi apresentada anteriormente. Ressalta, nesse ponto,
que os segundos embargos de declaração somente podem versar sobre questão
surgida no julgamento antecedente.
Afirma que a irretroatividade das decisões proferidas pelo Juízo da
Recuperação é indispensável, de modo a preservar a segurança jurídica e o
devido processo legal, mormente se tratando de atos jurídicos perfeitos, como é
o caso da adjudicação da Fazenda Piratininga.
Alerta, ademais, que nem sequer havia um plano de recuperação judicial
aprovado quando fixada a competência da Justiça do Trabalho.
MCLG Administração e Participações Ltda e Marcelo Henrique Limírio
Gonçalves, na qualidade de adquirentes da Fazenda Piratininga, apresentaram a
impugnação de fls. 1.533-1.552, ressaltando sua inquestionável legitimidade e
interesse para a apresentação desta. Dizem, em apertada síntese, que a questão
ora trazida pela embargante já foi analisada e superada pelas diversas decisões
existentes no presente conflito, bem como pelas proferidas na MC n. 17.488DF e na MC n. 17.645-DF, não havendo que se cogitar da existência de
obscuridade. Requer seja aplicada à embargante multa por litigância de máfé, no patamar de 5% sobre o valor corrigido da venda judicial da Fazenda
Piratininga.
É o relatório.
VOTO
O Sr. Ministro Raul Araújo (Relator): Apesar de se tratar dos terceiros
embargos de declaração opostos pela Agropecuária Vale do Araguaia, entende362
Jurisprudência da SEGUNDA SEÇÃO
se ser descabida a aplicação da multa por litigância de má-fé requerida nas
várias impugnações ao presente recurso, porque o questionamento apresentado
pela embargante se mostra pertinente e não foi anteriormente enfrentado de
forma mais explícita nos acórdãos anteriores, apesar de precedidos de vários
pedidos de vista.
De fato, a maior parte dos precedentes invocados para amparar os
arestos embargados foram proferidos na vigência da legislação anterior (DL n.
7.661/1945), tomando por parâmetro a decretação de falência, sem se cogitar de
processamento de recuperação judicial.
Daí, reconhecendo a relevância da questão trazida a debate, na parte que
invoca a aplicação da norma do art. 49 da Lei n. 11.101/2005, passo ao seu
exame nos presentes embargos de declaração.
O art. 49 da Lei n. 11.101/2005 tem a seguinte redação:
Art. 49. Estão sujeitos à recuperação judicial todos os créditos existentes na data
do pedido, ainda que não vencidos.
§ 1º Os credores do devedor em recuperação judicial conservam seus direitos e
privilégios contra os coobrigados, fiadores e obrigados de regresso.
§ 2º As obrigações anteriores à recuperação judicial observarão as condições
originalmente contratadas ou definidas em lei, inclusive no que diz respeito aos
encargos, salvo se de modo diverso ficar estabelecido no plano de recuperação judicial.
§ 3º Tratando-se de credor titular da posição de proprietário fiduciário de
bens móveis ou imóveis, de arrendador mercantil, de proprietário ou promitente
vendedor de imóvel cujos respectivos contratos contenham cláusula de
irrevogabilidade ou irretratabilidade, inclusive em incorporações imobiliárias,
ou de proprietário em contrato de venda com reserva de domínio, seu crédito
não se submeterá aos efeitos da recuperação judicial e prevalecerão os direitos
de propriedade sobre a coisa e as condições contratuais, observada a legislação
respectiva, não se permitindo, contudo, durante o prazo de suspensão a que se
refere o § 4º do art. 6º desta Lei, a venda ou a retirada do estabelecimento do
devedor dos bens de capital essenciais a sua atividade empresarial.
§ 4º Não se sujeitará aos efeitos da recuperação judicial a importância a que se
refere o inciso II do art. 86 desta Lei.
§ 5º Tratando-se de crédito garantido por penhor sobre títulos de crédito,
direitos creditórios, aplicações financeiras ou valores mobiliários, poderão
ser substituídas ou renovadas as garantias liquidadas ou vencidas durante a
recuperação judicial e, enquanto não renovadas ou substituídas, o valor
eventualmente recebido em pagamento das garantias permanecerá em conta
vinculada durante o período de suspensão de que trata o § 4º do art. 6º desta Lei.
RSTJ, a. 24, (226): 355-390, abril/junho 2012
363
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
Com base no que dispõe o caput do dispositivo acima transcrito, entende a
suscitante que, desde a data em que protocolizado o mero pedido de recuperação
judicial a competência para decidir acerca da forma de pagamento dos débitos
da sociedade empresária, constituídos até aquele momento, já seria do Juízo da
recuperação.
Assim, entende a embargante que, no caso dos autos, não seria válido o
pagamento dos créditos trabalhistas com a adjudicação de imóvel da sociedade
empresária, pois, poucos dias antes, por essa havia sido protocolizado seu pedido
de recuperação judicial (13.8.2008).
Sucede que, ao se tomar como correto esse entendimento, chegar-se-ia à
conclusão de que todos os atos praticados nas execuções em trâmite contra o
devedor a partir do protocolo do pedido de recuperação judicial seriam nulos,
já que praticados por juiz absolutamente incompetente. Careceriam de eficácia,
também, os atos praticados pelo próprio devedor, como o adimplemento
voluntário de um título que vencesse um dia após referida data, já que deveria
ser pago de acordo com o futuro plano de reorganização.
Não parece ser essa, assim, a correta exegese do art. 49 da Lei n.
11.101/2005, o qual merece interpretação sistemática, como alerta Mário
Sérgio Milani, verbis:
Numa leitura isolada e assistemática da atual lei, poder-se ia afirmar,
peremptoriamente, com estribo no art. 49, que todos os créditos e, por
conseguinte todos os credores existentes na data do pedido de recuperação
judicial a ela estão sujeitos.
Todavia, à luz de uma interpretação sistemática, constata-se que tal assertiva
não é verdadeira (...)
Por conseguinte, fica afastada, in totum, a interpretação literal do comando
veiculado no caput do art. 49: “Art. 49. Estão sujeitos à recuperação judicial todos
os créditos existentes na data do pedido, (...)” (grifamos).
Em outras palavras, pode-se afirmar, categoricamente, que nem todos os
credores estão sujeitos à recuperação judicial. (in Lei de Recuperação Judicial,
Recuperação Extrajudicial e Falência Comentada. São Paulo: Malheiros Editores,
2011, p. 211-212)
Com efeito, nos termos do art. 6º, caput, da Lei de Falências e Recuperações
Judiciais, é a partir do deferimento do processamento da recuperação judicial que
todas as ações e execuções em curso contra o devedor se suspendem. Para
melhor compreensão, transcreve-se o dispositivo:
364
Jurisprudência da SEGUNDA SEÇÃO
Art. 6º A decretação da falência ou o deferimento do processamento da
recuperação judicial suspende o curso da prescrição e de todas as ações e execuções
em face do devedor, inclusive aquelas dos credores particulares do sócio solidário.
§ 1º Terá prosseguimento no juízo no qual estiver se processando a ação que
demandar quantia ilíquida.
§ 2º É permitido pleitear, perante o administrador judicial, habilitação, exclusão
ou modificação de créditos derivados da relação de trabalho, mas as ações de
natureza trabalhista, inclusive as impugnações a que se refere o art. 8º desta Lei,
serão processadas perante a justiça especializada até a apuração do respectivo
crédito, que será inscrito no quadro-geral de credores pelo valor determinado em
sentença.
§ 3º O juiz competente para as ações referidas nos §§ 1º e 2º deste artigo
poderá determinar a reserva da importância que estimar devida na recuperação
judicial ou na falência, e, uma vez reconhecido líquido o direito, será o crédito
incluído na classe própria.
§ 4º Na recuperação judicial, a suspensão de que trata o caput deste artigo em
hipótese nenhuma excederá o prazo improrrogável de 180 (cento e oitenta) dias
contado do deferimento do processamento da recuperação, restabelecendo-se,
após o decurso do prazo, o direito dos credores de iniciar ou continuar suas ações
e execuções, independentemente de pronunciamento judicial.
§ 5º Aplica-se o disposto no § 2º deste artigo à recuperação judicial durante
o período de suspensão de que trata o § 4º deste artigo, mas, após o fim da
suspensão, as execuções trabalhistas poderão ser normalmente concluídas, ainda
que o crédito já esteja inscrito no quadro-geral de credores.
§ 6º Independentemente da verificação periódica perante os cartórios de
distribuição, as ações que venham a ser propostas contra o devedor deverão ser
comunicadas ao juízo da falência ou da recuperação judicial:
I - pelo juiz competente, quando do recebimento da petição inicial;
II - pelo devedor, imediatamente após a citação.
§ 7º As execuções de natureza fiscal não são suspensas pelo deferimento da
recuperação judicial, ressalvada a concessão de parcelamento nos termos do
Código Tributário Nacional e da legislação ordinária específica.
§ 8º A distribuição do pedido de falência ou de recuperação judicial previne
a jurisdição para qualquer outro pedido de recuperação judicial ou de falência,
relativo ao mesmo devedor.
No mesmo sentido, diz o art. 52, III, do mesmo diploma legal que, estando
a documentação em termos, o Juiz deferirá o processamento da recuperação judicial
e, no mesmo ato, ordenará a suspensão de todas as ações e execuções contra o devedor.
RSTJ, a. 24, (226): 355-390, abril/junho 2012
365
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
Ora, se as execuções somente se suspendem a partir do deferimento do
processamento da recuperação judicial, falta coerência à conclusão de que todos
os atos praticados no intervalo entre a protocolização do pedido de recuperação
e o deferimento de seu processamento são nulos. Fosse assim, a lei determinaria
a suspensão das ações e execuções desde a protocolização do pedido, e não a
partir do deferimento de seu processamento.
Cumpre assinalar, além disso, que nesse período são praticados diversos atos
processuais nas execuções e, até mesmo, vários atos pelo próprio devedor, que
continua na gerência de seus negócios, inclusive o pagamento de fornecedores e
vários outros. Todos esses, em princípio, são atos jurídicos válidos, que não são
atingidos pelo simples protocolo de pedido de recuperação judicial.
Atento para o aspecto em discussão, Júlio Kahan Mandel critica essa
opção do legislador de somente suspender as execuções com o deferimento do
processamento da recuperação judicial, in verbis:
Note que a suspensão começa a ser contada do dia do despacho que manda
processar a recuperação, e não do dia da impetração do benefício. Ou seja, há um
interregno de tempo durante o qual o devedor não fica, em tese, protegido contra as
execuções.
(in Direito Falimentar e a Nova Lei de Falências e Recuperação de Empresas.
Coord. Luiz Fernando Valente de Paiva. São Paulo: Quartier Latin, 2005, p. 131)
Portanto, a decisão que defere o processamento da recuperação judicial
possui efeitos “ex nunc”, não retroagindo para atingir os atos que a antecederam,
a partir do pedido de recuperação.
Seria de se questionar, então, qual a finalidade do disposto no art. 49 da Lei
n. 11.101/2005, já que a lei não tem palavras inúteis.
Em primeiro lugar, o mencionado art. 49 delimita o universo de credores
atingidos pela recuperação judicial, instituto que possui abrangência bem maior
que a antiga concordata, a qual obrigava somente os credores quirografários (v.
Decreto-Lei n. 7.661/1945, art. 147). A recuperação judicial atinge “todos os
créditos existentes na data do pedido, ainda que não vencidos”, ou seja, grosso modo,
além dos quirografários, os credores trabalhistas, acidentários, com direitos reais
de garantia, com privilégio especial, com privilégio geral, por multas contratuais
e os dos sócios ou acionistas.
Além disso, o artigo 49 da LFR tem como objetivo especificar quais os
créditos, desde que não pagos e não inseridos nas exceções apontadas pela
366
Jurisprudência da SEGUNDA SEÇÃO
própria lei (§ 3º do art. 49), que se submeterão ao regime da recuperação judicial
e aqueles que estarão fora dele. Isso, porque, como se sabe, na recuperação
judicial, a sociedade empresária continua funcionando normalmente e, portanto,
com empregados e negociando com bancos, fornecedores e clientes. Nesse
contexto, se, após o pedido de recuperação judicial, os débitos contraídos pelo
devedor se submetessem a seu regime, não haveria quem com ele quisesse
negociar.
Assim, para possibilitar a continuidade dos negócios, finalidade última da
recuperação judicial, o legislador não somente excluiu os créditos constituídos
após o protocolo do pedido de recuperação, como, na verdade, os cercou de
privilégios, como, por exemplo, serem classificados como extraconcursais, no
caso de ser decretada a falência da sociedade empresária (art. 67 da Lei n.
11.101/2005). Daí a importância do art. 49 da LFR, que determina quais
créditos se submetem ao regime da recuperação e quais dela estão excluídos.
Sobre o tema, esclarece Fábio Ulhoa Coelho, verbis:
Os credores posteriores à distribuição do pedido estão excluídos porque,
se assim não fosse, o devedor não conseguiria mais acesso nenhum a crédito
comercial ou bancário, inviabilizando-se o objetivo da recuperação.
(in Comentários à Nova Lei de Falências e de Recuperação de Empresas, 3ª ed.
São Paulo: Saraiva, 2005, p. 131.)
Também sobre a questão se debruça Marcos Andrey de Sousa, in verbis:
O primeiro aspecto a observar é o marco temporal, qual seja, a data do
pedido. Os credores posteriores ao pedido não podem ser incluídos no plano
de recuperação, mesmo que este seja elaborado e apresentado posteriormente.
Aliás, a lei atribui efeitos diametralmente opostos aos credores posteriores,
considerando-os inclusive extraconcursais na hipótese de falência do devedor,
segundo o artigo 67 da nova lei.
É visível, neste ponto, o interesse do legislador em estimular os fornecedores,
de produtos ou dinheiro, a manter fornecimentos com concessão de crédito
ao empresário que postulou sua recuperação, eis que a manutenção sadia
da atividade não só é o objetivo da lei, como é primordial para o mister da
recuperação. Assim sendo, sujeitar os fornecedores posteriores seria um
desestímulo à continuidade de parcerias e futuros negócios.
(in Comentários à Nova Lei de Recuperação de Empresas e de Falências. Coord.
Newton de Lucca e Adalberto Simão Filho. São Paulo: Quartier Latin, 2005, p. 228229)
RSTJ, a. 24, (226): 355-390, abril/junho 2012
367
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
Feitos esses esclarecimentos, de modo a afastar a eventual obscuridade
apontada pela embargante, deixo consignado, ainda, que o aresto embargado em
nenhum momento declarou implicitamente a inconstitucionalidade do art. 49
da Lei n. 11.101/2005, mas apenas deu a interpretação que entendeu pertinente
ao referido dispositivo infraconstitucional, dentro do papel reservado ao STJ
pela Carta Magna (art. 105).
Na hipótese, como afirmado no acórdão embargado, o crédito foi
validamente adimplido antes do deferimento do processamento da recuperação
judicial, momento em que a execução não estava suspensa e eram válidos
e eficazes os atos nela praticados, razão pela qual o Juízo do Trabalho é o
competente para ultimar os atos referentes à adjudicação do bem imóvel.
Transcrevo, a propósito, trecho do voto proferido anteriormente, verbis:
Esse entendimento permanece válido sob a égide da Lei n. 11.101/2005,
porquanto, se a adjudicação foi pretendida antes do deferimento da recuperação
judicial, não há mais falar em crédito trabalhista líquido a ser habilitado na
recuperação, e sim em crédito, total ou parcialmente, adimplido pelo devedor antes
da instauração do procedimento de soerguimento da empresa.
No caso dos autos, a adjudicação do bem imóvel objeto da lide não só foi
requerida como também deferida (em 27 de agosto de 2008) antes de concedido
o pedido de recuperação, cujo processamento somente foi determinado em 13 de
novembro de 2008 (fls. 34-37). Assim, na esteira dos precedentes acima listados,
o Juízo trabalhista é o competente para ultimar os atos relativos à adjudicação.
Ante o exposto, conheço e acolho os embargos de declaração para sanar
a obscuridade apontada, com os esclarecimentos devidos, sem alteração no
resultado do julgado.
É como voto.
EMBARGOS DE DIVERGÊNCIA EM RECURSO ESPECIAL N. 595.742-SC
(2004/0120504-3)
Relator: Ministro Massami Uyeda
Relatora para o acórdão: Ministra Maria Isabel Gallotti
368
Jurisprudência da SEGUNDA SEÇÃO
Embargante: Tânia Conrad Fritzsche
Advogado: Rafael de Assis Horn e outro(s)
Embargado: Cornélia Conrad Lowndes
Advogados: Paulo Laitano Távora
Antonio Carlos Dantas Ribeiro e outro(s)
Norberto Ungaretti e outro(s)
Mário Roberto Carvalho de Faria e outro
EMENTA
Embargos de divergência. Inventário. Preclusão. Matéria
suscitada em contrarrazões. Prequestionamento a cargo do recorrido.
Recurso especial conhecido. Aplicação do direito à espécie. Divergência
configurada.
1. O cabimento dos embargos de divergência pressupõe a
existência de divergência de entendimentos entre Turmas do STJ
a respeito da mesma questão de direito federal. Tratando-se de
divergência a propósito de regra de direito processual não se exige
que os fatos em causa nos acórdãos recorrido e paradigma sejam
semelhantes, mas apenas que divirjam as Turmas a propósito da
solução da questão de direito processual controvertida.
2. Segundo pacífica jurisprudência do STJ, não são cabíveis
embargos de divergência para discussão de regra técnica de
admissibilidade de recurso especial. A razão de ser desta uníssona
jurisprudência é intuitiva e óbvia: as chamadas “regras técnicas de
admissibilidade” devem ser apreciadas e ponderadas na análise de
cada caso concreto, à vista dos fundamentos do acórdão recorrido
e das razões das partes, bem ou mal conduzidas, vicissitudes que
descaracterizam a possibilidade de reconhecimento da divergência.
3. Hipótese em que não se cuida de regra técnica de admissibilidade
de recurso especial, mas de divergência acerca de questão de direito
processual civil relativa aos limites da devolutividade do recurso
especial após o seu conhecimento, quando o STJ passa a julgar o
mérito da causa.
4. Alegados pela parte recorrida, perante a instância ordinária,
dois fundamentos autônomos e suficientes para embasar sua pretensão,
RSTJ, a. 24, (226): 355-390, abril/junho 2012
369
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
e tendo-lhe sido o acórdão recorrido integralmente favorável
mediante a análise de apenas um dele, não se há de cogitar da
oposição de embargos de declaração pelo vitorioso apenas para
prequestionar o fundamento não examinado, a fi m de preparar
recurso especial do qual não necessita (falta de interesse de recorrer)
ou como medida preventiva em face de eventual recurso especial da
parte adversária.
5. Reagitado o fundamento nas contrarrazões ao recurso especial
do vencido, caso seja este conhecido e afastado o fundamento ao qual
se apegara o tribunal de origem, cabe ao STJ, no julgamento do causa
(Regimento Interno, art. 257), enfrentar as demais teses de defesa
suscitadas na origem.
6. Embargos de divergência providos.
ACÓRDÃO
Prosseguindo o julgamento, após o voto da Sra. Ministra Maria Isabel
Gallotti conhecendo dos embargos e lhes dando provimento, a Seção, por
maioria, conheceu dos embargos de divergência e lhes deu provimento, vencidos
os Srs. Ministros Relator, Nancy Andrighi e Luis Felipe Salomão, que não
conheciam dos embargos de divergência.
Lavrará o acórdão a Sra. Ministra Maria Isabel Gallotti. Votaram com
a Sra. Ministra Maria Isabel Gallotti os Srs. Ministros Raul Araújo, Paulo
de Tarso Sanseverino, Antonio Carlos Ferreira, Ricardo Villas Bôas Cueva e
Marco Buzzi.
Vencidos os Srs. Ministros Relator, Nancy Andrighi e Luis Felipe Salomão.
Brasília (DF), 14 de dezembro de 2011 (data do julgamento).
Ministra Maria Isabel Gallotti, Relatora p/ acórdão
DJe 13.4.2012
RELATÓRIO
O Sr. Ministro Massami Uyeda: Cuida-se de embargos de divergência
opostos por Tânia Conrad Fritzsche em face de acórdão proferido pela egrégia
370
Jurisprudência da SEGUNDA SEÇÃO
Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça, nos autos do EDcl no REsp n.
595.742-SC (fls. 622-629), relatora Ministra Nancy Andrighi, p. em 28.6.2004,
assim ementado:
Processual Civil. Embargos de declaração. Omissão. Ausência.
Prequestionamento. Contra-razões. Matéria de ordem pública. Questões
constitucionais. - Não há de se falar em omissão da decisão embargada com
relação a questões que, não obstante suscitadas nas contra-razões do recurso
especial, não foram apreciadas pelo Tribunal de origem, ressentindo-se, assim,
do prequestionamento viabilizador da via especial. - O recurso especial deve
preencher o pressuposto específico do prequestionamento, ainda que a questão
federal suscitada seja matéria de ordem pública. - Ao julgador do STJ não é
dado imiscuir-se na competência do STF, sequer para prequestionar questão
constitucional suscitada em sede de embargos de declaração, sob pena de violar
a rígida distribuição de competência recursal disposta na Constituição Federal.
Embargos de declaração rejeitados.
Assinalou a embargante divergência jurisprudencial com os seguintes
acórdãos da Terceira Turma e da Segunda Seção deste Sodalício, assim
ementados, respectivamente:
Recurso especial. Julgamento da causa. Conhecido o recurso, o tribunal
procedera ao julgamento da causa, posto que não se trata de corte de cassação.
Para faze-lo, poderá ser necessário o exame, em favor do recorrido, de temas não
versados no acórdão. Assim é que, tendo a defesa dois fundamentos, capazes,
por si, de assegurar a vitoria a quem os deduziu, sendo acolhido um, não poderá
o vencedor recorrer, por falta de interesse. Considerado este insubsistente, no
julgamento do recurso, o outro haverá de ser objeto de exame, ainda que não
o tenha sido na decisão recorrida. Diversa a posição do vencido. A ele interessa
recorrer. Haverá de provocar o pronunciamento do tribunal, pela via dos
declaratórios, se o caso, sobre os temas que lhe interessem, e demonstrar o
cabimento do especial quanto a todos eles. (ut EDcl no REsp n. 28.325-SP, 3ª
Turma, relator Ministro Eduardo Ribeiro, DJ de 3.5.1993).
Recurso especial. Conhecimento. Julgamento da causa. Conhecido o recurso
especial, a ele pode-se negar provimento com base em fundamento, exposto na
causa, mas não considerado no acórdão recorrido, que teve outro como bastante.
Ao litigante que obteve tudo que poderia obter não sera dado recorrer, por falta
de interesse. Entretanto, não se reformara decisão, cuja conclusão e correta,
apenas porque acolhido fundamento errado. (ut EDcl no REsp n. 17.646-RJ, 3ª
Turma, relator Ministro Eduardo Ribeiro, DJ de 29.6.1992).
RSTJ, a. 24, (226): 355-390, abril/junho 2012
371
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
Recurso especial. Conhecimento. Julgamento da causa. Limites. Sumulas n.
456 do Supremo Tribunal Federal e art. 257, parte final, do RISTJ. Conhecendo
do recurso especial, o superior tribunal de justiça julgara a causa. Para isso pode
ser necessário examinar questões não versadas pelo acórdão. Se, para decidi-las,
entretanto, for indispensável acertar os fatos, mediante exame de provas, devem
os autos tornar ao tribunal de origem para que delibere sobre os temas de que
não cogitou ao apreciar a apelação. Renuncia de direitos por quem não era seu
titular - não estando a isso autorizado, responde pelos prejuízos. (ut REsp n. 5.178SP, 3ª Turma, relator Ministro Nilson Naves, DJ de 25.11.1991)
Processo Civil. Recurso especial. Técnica de julgamento. Conhecido o recurso
especial, o Tribunal deve aplicar o direito à espécie (RISTJ, art. 257), tenham ou
não as respectivas contra-razões se reportado à questão influente no desate da
lide, oportunamente ativada nas instâncias ordinárias. Embargos de divergência
acolhidos. (ut EREsp n. 20.645-SC, 2ª Seção, relator Ministro Ari Pargendler, DJ de
1º.8.2000).
Alega a recorrente que a divergência consiste no fato de que os vv. acórdãos
paradigmas da 3ª Turma e da 2ª Seção deixam assente que o prequestionamento
é obrigação apenas de quem recorre, de modo que é possível o exame no recurso
especial de questões abordadas pela recorrida em contra-razões, mesmo que
não debatidas pelo Tribunal a quo. Já o acórdão embargado manifesta-se no
sentido da impossibilidade de apreciação pelo Superior Tribunal de Justiça de
matéria ventilada em contra-razões pelo recorrido, mas não debatida no acórdão
proferido pelo Tribunal a quo (fls. 745-761).
Por decisão monocrática, da lavra desta Relatoria, os embargos de
divergência, inicialmente, foram indeferidos liminarmente (fls. 1.023-1.025).
Interposto o recurso de agravo regimental, a Segunda Seção do Superior
Tribunal de Justiça, por maioria, conferiu provimento ao recurso, para conhecer
dos embargos de divergência (fls. 1.066-1.077).
Opostos embargos de declaração, foram eles acolhidos, por maioria, com
efeitos infringentes, para o fim de limitar a divergência ao acórdão proferido
pela Segunda Seção (fls. 1.131-1.136).
Intimada, a embargada Cornélia peticionou nos autos (fls. 1.098), reiterando
as contra-razões anteriormente apresentadas às fls. 891-910, requerendo o nãoconhecimento ou a rejeição dos embargos.
É o relatório.
372
Jurisprudência da SEGUNDA SEÇÃO
VOTO VENCIDO
Ementa: Embargos de divergência no recurso especial. Prévia
admissão da controvérsia mediante juízo perfunctório. Nãovinculação em relação ao julgamento dos embargos. Exame de
questões suscitadas em contra-razões e não enfrentadas pelo acórdão
recorrido. Inexistência de similitude fática entre os julgados tidos
por divergentes. Rediscussão de regra técnica de admissibilidade de
recurso especial. Inviabilidade em sede de embargos de divergência.
Embargos não conhecidos.
I - É admissível que, embora inicialmente admitidos os
embargos de divergência mediante análise superficial, após o parecer
do Ministério Público e impugnação da parte embargada, não seja
o recurso conhecido, em razão da ausência de preenchimento de
requisito de admissibilidade, tendo em vista a não-vinculação do juízo
prévio de admissibilidade para fins de julgamento do recurso;
II - Em sede de embargos de divergência, deve ser demonstrada
a similitude fática entre o acórdão impugnado e o paradigma
colacionado, o que não ocorreu, in casu;
III - A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça não
admite, em embargos de divergência, a rediscussão de regra técnica
relativa a admissibilidade de recurso especial, sendo esse o caso dos
autos;
III - Embargos de divergência não conhecidos.
O Sr. Ministro Massami Uyeda (Relator): Os embargos não merecem ser
conhecidos.
Com efeito.
Inicialmente, é importante consignar ser possível que, embora
admitidos os embargos de divergência mediante análise superficial, após o
parecer do Ministério Público e impugnação da parte embargada, não seja
o recurso conhecido em razão da ausência de preenchimento de requisito
de admissibilidade, tendo em vista a não-vinculação do juízo prévio de
admissibilidade para fins de julgamento do recurso. Nesse sentido: AgRg nos
EREsp n. 347.552-SP, 3ª Seção, relator Ministro Paulo Galotti, j. em 27.8.2003;
RSTJ, a. 24, (226): 355-390, abril/junho 2012
373
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
e AgRg nos EREsp n. 324.565-SP, Primeira Seção, relatora Ministra Denise
Arruda, j. em 9.6.2004.
Prestado o esclarecimento supra, é certo que a jurisprudência pacífica deste
egrégio Sodalício manifesta-se no sentido de que, em sede de embargos de
divergência, deve ser demonstrada a similitude fática entre o acórdão impugnado
e o paradigma colacionado.
Quanto à divergência apontada, não existe a mencionada similitude fática
entre o acórdão embargado e o acórdão tido como paradigma.
De fato, o acórdão embargado (EDcl no REsp n. 595.742-SC), ao cuidar
de direito sucessório, refere-se à necessidade de prequestionamento de matéria
de ordem pública (preclusão acerca do valor dos bens colacionados, que seria
o da época da abertura da sucessão, e não do momento em que foram feitas as
doações), com ofensa do art. 473 do Código de Processo Civil.
O referido acórdão deixa assente que o prequestionamento é indispensável
à análise de eventual violação a dispositivo de lei federal pelo Superior Tribunal
de Justiça. Assevera, ainda, que não basta que a questão seja suscitada em
contra-razões de recurso especial, mas, ao revés, é imprescindível que ela tenha
sido objeto de discussão pelo Tribunal de origem para que seja apreciada pelo
Superior Tribunal de Justiça.
Já o acórdão paradigma, da lavra da Segunda Seção (EREsp n. 20.645SC), cuida de ação cominatória cumulada com pedido de indenização, onde
se discute se os eventuais danos ocorridos na propriedade dos recorrentes são
derivados de ação instantânea ou continuada no tempo.
Afirma o mencionado julgado que, conhecido o recurso especial, deve o
Tribunal aplicar o direito à espécie (Regimento Interno do Superior Tribunal
de Justiça, art. 257) tenham ou não as respectivas contra-razões se reportado
à questão influente no desate da lide, oportunamente ativada nas instâncias
ordinárias (fl. 713), não tratando de questão de ordem pública, ao contrário do
acórdão embargado.
Ademais, além da ausência de similitude fática necessária a ensejar a
oposição dos embargos de divergência, a jurisprudência do Superior Tribunal de
Justiça não admite, em embargos de divergência, a rediscussão de regra técnica
relativa a admissibilidade de recurso especial, o que também se dá na hipótese
de prequestionamento, sendo esse o caso dos autos.
A propósito, confiram-se os seguintes precedentes:
374
Jurisprudência da SEGUNDA SEÇÃO
Agravo regimental. Embargos de divergência. Enunciado Sumular n. 115-STJ.
Aplicabilidade de regra técnica relativa a admissibilidade de recurso especial.
Descabimento dos embargos.
1. Embargos de divergência opostos contra acórdão que não conheceu do
recurso especial por aplicação da Súmula n. 115-STJ.
2. Não se admite, em embargos de divergência, a rediscussão de regra técnica
relativa a admissibilidade de recurso especial, como a contida na súmula referida.
Precedente.
3. Agravo regimental a que se nega provimento (ut AgRg nos EREsp n. 1.196.970AM, 2ª Seção, relator Ministro Paulo de Tarso Sanseverino, DJ de 20.5.2011).
Processual Civil. Recurso especial. Embargos de divergência. Agravo regimental.
Discussão acerca da aplicação de regra técnica relativa ao conhecimento do
recurso especial. Impossibilidade.
1. A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, na linha do
entendimento do Supremo Tribunal Federal, é firme quanto à impropriedade
de debate, em embargos de divergência, sobre a aplicação de regra técnica
relativa ao conhecimento do recurso especial, o que se dá nas hipóteses de
prequestionamento e incidência da Súmula n. 7 do STJ, entre outras.
2. Agravo regimental desprovido. (ut AgRg nos EREsp n. 1.168.109-SC, 2ª Seção,
relator Ministro João Otávio de Noronha, DJ de 13.5.2011).
Assim sendo, não se conhece dos embargos.
É o voto.
VOTO
O Sr. Ministro Luis Felipe Salomão: Sr. Presidente, como eu já havia
votado no agravo regimental nesse mesmo sentido, peço vênia à Sra. Ministra
Maria Isabel Gallotti, porque, efetivamente, não vou mudar.
Cumprimento o Advogado pelo brilho da sustentação oral, mas penso que
a regra técnica de admissibilidade do recurso é, para mim, o fator fundamental,
ao lado da ausência de similitude.
VOTO-VISTA
A Sra. Ministra Maria Isabel Gallotti: Trata-se de embargos de divergência
opostos por Tânia Conrad Fritzsche contra acórdão da 3ª Turma deste Tribunal
RSTJ, a. 24, (226): 355-390, abril/junho 2012
375
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
(fls. 584-596), integrado em embargos de declaração (fls. 622-629), que
considerou não ser possível o exame de matéria suscitada nas contrarrazões
ao recurso especial por ausência do requisito do prequestionamento do tema
relativo à preclusão acerca da definição dos valores de bens trazidos à colação em
processo de inventário.
Afirma a embargante que o acórdão embargado encontra-se em
divergência com o entendimento da 2ª Seção, que, no julgamento dos Embargos
de Divergência em REsp n. 20.645-SC, concluiu que, conhecido o recurso
especial, deve o Tribunal aplicar o direito à espécie, mediante o exame das
questões relevantes para a solução da controvérsia e suscitadas nas instâncias
ordinárias.
O relator, Ministro Massami Uyeda, não conheceu dos embargos por
entender não demonstrada a similitude fática entre os acórdãos embargado e
paradigma, bem assim diante da jurisprudência deste Tribunal que não admite
embargos de divergência para discussão de critérios técnicos de admissibilidade
de recurso especial, sendo acompanhado pelos Ministros Luís Felipe Salomão e
Nancy Andrighi.
Pedi vista.
Anoto, inicialmente, que, a despeito de as ações em que proferidos os
acórdãos embargado e paradigma terem por objeto, respectivamente, o critério
para a definição dos valores de bens trazidos à colação em processo de inventário
e indenização decorrente de danos em imóvel rural, a divergência a propósito de
relevante questão de direito processual (extensão do efeito devolutivo de recurso
especial conhecido, quanto às questões suscitadas na origem, mas não decididas no
acórdão recorrido) é manifesta.
Com efeito, ao examinar a possibilidade de um fundamento invocado
pela parte vencedora na instância de origem, mas não examinado no acórdão
recorrido (que deferiu o pedido por outro fundamento), ser apreciado pelo STJ
após o conhecimento do recurso especial, na fase de exame do mérito do recurso
(Regimento Interno, art. 257), o acórdão embargado e o acórdão paradigma
chegaram a conclusões diametralmente opostas.
Não se discute que a Corte Especial e as Seções deste Tribunal
consolidaram o entendimento, em reiterados julgados, de que não são cabíveis
embargos de divergência para discussão de regra técnica de admissibilidade de
recurso especial. Nesse sentido, entre muitos outros, confiram-se: AgRg na Pet
n. 5.897-RJ, Corte Especial, Rel. Min. Gilson Dipp, DJ 21.8.2008; AgRg nos
376
Jurisprudência da SEGUNDA SEÇÃO
EREsp n. 917.575-SC, 1ª Seção, Rel. Min. Mauro Campbell, DJ 10.3.2010;
EDcl nos EREsp n. 1.067.738-GO, 2ª Seção, Rel. Min. Fernando Gonçalves,
DJ 19.3.2010; AgRg nos EREsp n. 866.309-RS, 3ª Seção, Rel. Min. Laurita
Vaz, DJ 26.8.2009).
A razão de ser desta uníssona jurisprudência é intuitiva e óbvia: as chamadas
“regras técnicas de admissibilidade” devem ser apreciadas e ponderadas na
análise de cada caso concreto, à vista dos fundamentos do acórdão recorrido
e das razões das partes, o que descaracteriza a divergência. Por exemplo, a
verificação da pretensão de reexame de prova, interditada no âmbito do recurso
especial (Súmula n. 7), ou, ao contrário, de critério jurídico de valoração
da prova, admitida nesta via; a análise do requisito do prequestionamento,
explícito ou implícito (Súmulas n. 356 e 282 do STF e 211 do STJ); a correta
demonstração analítica da divergência nas razões do especial; a pretensão de
reinterpretação de cláusula contratual (óbice da Súmula n. 5) ou, ao contrário,
de reconhecimento de ilegalidade a propósito da exegese da mesma cláusula,
possível na via especial, são, entre outras, análises restritas às características de
cada processo, dependentes não da interpretação de regras de direito processual
ou de direito material, mas da forma como a causa foi conduzida, bem ou mal,
desde a origem pelos sujeitos daquela específica relação processual.
No caso em exame, todavia, não se trata de regra técnica de admissibilidade
de recurso especial.
Destaco que o recurso especial não foi interposto pela ora embargante, que,
vencedora nas instâncias de origem, não teria interesse para recorrer, restandolhe, em atenção ao princípio da eventualidade, suscitar a questão da preclusão
nas contrarrazões ao recurso apresentado pela parte contrária, como o fez (fls.
371-372), matéria que, ressalto, foi mencionada pela ora embargante, desde a
contraminuta ao agravo de instrumento no qual proferido o acórdão impugnado
no recurso especial (fls. 213-214).
Observo, a propósito, que a embargada tenta descaracterizar a divergência
com o acórdão no EREsp n. 20.645-SC afirmando, insistentemente, que a
embargante não teria suscitado a matéria (preclusão acerca da definição dos
valores de bens trazidos à colação em processo de inventário) “em nenhum
momento perante as instâncias ordinárias, tendo sido invocada tão somente em
contrarrazões de especial” (extraído de memorial oferecido pela embargante,
argumento reiterado na sustentação oral e já afirmado à fl. 614 em resposta
aos embargos de declaração e à fls. 898-899). Donde, sustenta a embargada a
RSTJ, a. 24, (226): 355-390, abril/junho 2012
377
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
inexistência de divergência, pois no acórdão paradigma “o tema cuja análise se
pretendia em sede de recurso especial havia sido devidamente suscitado nas
instâncias ordinárias, sem que, contudo, tivesse sido novamente ventilado em
contrarrazões de especial.” (texto extraído do mesmo memorial). E conclui,
citando passagem do voto do saudoso Ministro Carlos Alberto Menezes
Direito:
Pelo sistema brasileiro, o recurso especial, quando conhecido, devolve ao
Tribunal a competência para julgar a causa, aplicando o direito à espécie. A
vedação existiria se, efetivamente, a parte tivesse trazido a questão apenas no
especial, não tendo sido a mesma ventilada em nenhuma oportunidade nas
instâncias ordinárias.
Com efeito, se fosse certa a premissa afirmada reiteradamente pela
embargada, se a alegação de preclusão não tivesse sido feita pela embargante
em “nenhuma oportunidade nas instâncias ordinárias”, se, de fato, se tratasse
de inovação de defesa que, embora pudesse ter sido trazida oportunamente,
houvesse sido adotada apenas nas contrarrazões de recurso especial, não
haveria divergência apta a ensejar o conhecimento dos presentes embargos de
divergência.
Dada a insistência da afirmação da embargada de que a questão da
preclusão não foi alegada em momento algum na instância ordinária, transcrevo
parte substancial da contraminuta apresentada na origem:
Preliminarmente
Cumpre salientar, “ab initio”, que relativamente à época que deve ser considerada
(momento da liberdade ou abertura da sucessão), para fins de determinar o valor a
ser atribuído na colação dos bens doados em vida pelos de “cujus”, na modalidade
de adiantamento de legítima, para as suas herdeiras, já houve pronunciamento
definitivo do Tribunal de Justiça de Santa Catarina ao julgar os Embargos de
Declaração opostos pela ora agravante, Cornélia Conrad Laowndes, ao acórdão
proferido pela Colenda Quarta Câmara nos Agravos de Instrumentos n. 2000.0200447, 2000.020962-3 e 2000.021043-9, cuja relatoria foi do ilustre Des. Pedro Manoel
Abreu.
Com efeito, a questão restou definitivamente dirimida pelo acórdão
proferido nos Embargos de Declaração acima noticiado, cujo excerto pedimos
vênia para transcrever (grifei):
Não prospera também o peito no que diz respeito ao equívoco da palavra
“liberdade” na ementa do decisium. Com efeito, a simples leitura do acórdão
378
Jurisprudência da SEGUNDA SEÇÃO
denota que, a partir do entendimento de Silvio Rodrigues, a Câmara decidiu
que a colação deve ser feita pelo valor do bens à época da liberdade. E, de
fato, assim constou na ementa. Não há, portanto, qualquer erronia a ser
corrigida - grifamos
Destarte, a questão suscitada pela agravante no presente recurso, consoante
supra evidenciado, já restou decidida pelo Tribunal de Justiça de Santa Catarina,
demonstrando inequivocamente o entendimento desta egrégia corte acerca da
matéria, sendo de cunho manifestamente protelatório a atitude da agravante ao
interpor o presente recurso.
(...)
A esta conclusão, chegou o ilustre magistrado a quo não só tendo em vista
todas as circunstâncias que envolve os inventários em tela, mas também por
comungar do entendimento esposado pela Colenda Quarta Câmara do Tribunal
de Justiça de Santa Catarina no julgamento dos Agravos de Instrumentos n.
2000.020044-7, 2000.020962-3 e 2000.021043-9, cujo acórdão teve como relator
o eminente Des. Pedro Manoel Abreu.
Com efeito, da ementa do supracitado acórdão podemos extrair os seguintes
excertos:
(...) Exigência de colação em substância das aludidas cotas. Possibilidade
colação pelo valor à época da liberalidade. Garantia de efetiva igualdade
patrimonial entre os herdeiros.
(...) Com os fenômenos da inflação e da massificação das relações sociais,
somados à velocidade das transações negociais do mundo contemporâneo,
as colações tendem a dar-se pelo valor do bem ao tempo da liberalidade
(...)
Por derradeiro, ressaltando-se a pertinência e a íntima ligação entre a quaestio
aqui versada e a matéria apreciada nos Agravos de Instrumento n. 2000.0200447, 2000.020962-3 e 2000.021043-9, alhures referidos, requer a agravada seja o
presente recurso redistribuído para a Colenda Quarta Câmara Civil deste Egrégio
Tribunal de Justiça.
A embargante foi vitoriosa na decisão interlocutória de primeiro grau.
Diante do agravo de instrumento interposto pela parte adversária, ofereceu
contraminuta na qual sustentou, com veemência, que a questão já havia sido
decidida em três agravos de instrumento anteriores, por outra Câmara do
Tribunal de Justiça. Alegou a preclusão e pediu a redistribuição do novo agravo
para a Câmara que julgara os recursos anteriores. Além de sustentar que já
tinha havido “julgamento definitivo do Tribunal de Justiça” sobre a questão em
RSTJ, a. 24, (226): 355-390, abril/junho 2012
379
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
agravos anteriores (preclusão), a contraminuta enfrentou o mérito, justificando o
acerto do critério adotado pelo juízo de primeiro grau.
O acórdão recorrido não se manifestou sobre a alegação de preclusão e nem
sobre o pedido de redistribuição do processo. Apreciou o mérito e confirmou a
decisão de primeiro grau, decidindo, portanto, favoravelmente à agravada, ora
recorrida. Esta, portanto, não tinha interesse em interpor recurso especial.
Sequer se alegue que deveria ter oposto embargos de declaração ao acórdão
recorrido, o qual lhe tinha sido completamente favorável, apenas para que se
manifestasse sobre o outro fundamento autônomo deduzido na contraminuta
(a preclusão). Exige-se do recorrente que obtenha, do Tribunal de origem, a
apreciação da questão de direito que deseja suscitar em recurso especial, pois, do
contrário, não poderá alegar que o acórdão violou dispositivo legal por ele não
examinado. A parte vencedora não tem interesse para recorrer e, desta forma,
não lhe cabe opor embargos de declaração para preparar o caminho para o
recurso do qual não necessita.
Interposto recurso especial, as contrarrazões foram inauguradas (fls. 369372) com o sumário das circunstâncias da causa e a reiteração do argumento
de que a questão do critério da avaliação dos bens doados em antecipação de
legítima, segundo a data da liberalidade, já havia sido decidida de forma preclusa,
sem recurso pela recorrente Cornélia (ora embargada). Seguiu-se minuciosa
defesa do critério de mérito adotado por ambas as instâncias de origem, dadas
as peculiaridades da causa, notadamente a alegada impossibilidade, por ato da
embargada Cornélia, de trazer à colação o bem doado em sua substância.
O acórdão embargado deixou de apreciar a alegação de preclusão constante
das contrarrazões com as seguintes considerações:
(...) cumpre ressaltar que a questão da preclusão da matéria para a recorrente,
alegada pela recorrida em contra-razões e repisada em memoriais, não foi objeto
do recurso especial e sequer foi tratada no acórdão recorrido. Portanto, ante a
falta de prequestionamento dessa matéria, deixo de analisá-la.
Em seguida, o acórdão embargado conheceu parcialmente do recurso
especial, por ofensa ao art. 1.014, parágrafo único, do CPC, e deu-lhe provimento
para determinar que os bens colacionados sejam avaliados conforme o valor que
possuíam à época da abertura do inventário. (fl. 591).
Foram opostos embargos de declaração, no qual alegou a ora embargante
que, por ter sido vencedora nas instâncias ordinárias, não tinha interesse
380
Jurisprudência da SEGUNDA SEÇÃO
em recorrer e, portanto, não lhe poderia ter sido exigido o incabível, ou seja,
interpor recurso especial para prequestionar a questão versada na contraminuta,
restando-lhe reiterar a matéria, como o fez, nas contrarrazões ao especial da
parte adversária.
Os embargos de declaração foram rejeitados (fls. 622-29), reiterando
a 3ª Turma a tese de direito processual civil no sentido de que não pode ser
examinada pelo STJ, quando julgar o mérito da causa, após o conhecimento
do recurso especial, tese de defesa da recorrida não apreciada pelo Tribunal de
origem.
Manifesta, portanto, a divergência a propósito de relevantíssima questão
de direito processual civil acerca da devolutividade do recurso especial, quando
o recurso especial é conhecido e o STJ passa ao julgamento do mérito. Do que
se depreende do acórdão embargado, entende a 3ª Turma que, havendo dois
fundamentos autônomos de defesa, e tendo o acórdão recorrido dado ganho
de causa ao recorrido analisando apenas um destes fundamentos (omitindose quanto ao exame do outro), no caso de o STJ não concordar com este
fundamento esposado na origem, não lhe caberá, após ultrapassada a fase de
conhecimento, apreciar o segundo fundamento da defesa, mesmo que reiterado
nas contrarrazões do recurso especial. Isso por falta de prequestionamento.
No acórdão paradigma (EREsp n. 20.645-SC), ao contrário, tomado
do julgamento de embargos de divergência, julgou a 2ª Seção que, tendo o
fundamento de defesa sido alegado na instância ordinária, mesmo que não
abordado pelo Tribunal de origem, caberia seu exame pelo STJ, se ultrapassada
a barreira do conhecimento do recurso especial. No paradigma sequer foi
considerado necessário o questionamento da matéria nas contrarrazões ao
recurso especial. Bastou à Seção houvesse sido suscitada a questão em alguma
oportunidade nas instâncias ordinárias.
No caso, impossível maior zelo na defesa da embargante. A questão
da preclusão foi minuciosamente alegada em contraminuta ao agravo de
instrumento na origem; em contrarrazões ao recurso especial e em embargos
de declaração ao acórdão embargado. Mais não se lhe poderia ser exigido, data
máxima vênia, senão mediante o atropelo do princípio processual segundo o
qual não tem interesse em recorrer a parte plenamente vitoriosa.
Repito: a questão versada nos presentes embargos de divergência é
relevantíssima. A prevalecer a tese adotada pela 3ª Turma, manifestamente
divergente do acórdão paradigma, passa a ser grande o risco da parte vencedora
RSTJ, a. 24, (226): 355-390, abril/junho 2012
381
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
nas instâncias ordinárias, quando embasado seu direito em vários fundamentos
autônomos, vier a ser vencedora por fundamento posteriormente reformado
pelo STJ. Nenhum ato de diligência de seus patronos poderá assegurar seus
direitos, salvo talvez a via ainda mais estreita da ação rescisória.
Lembro, a propósito, antigo precedente da 3ª Turma no qual se registrou
que a ausência de interesse em recorrer da parte que obteve êxito integral na
causa não impede seja conhecido o recurso especial e a ele negado provimento
“com base em fundamento exposto na causa, mas não considerado no acórdão
recorrido, que teve outro como bastante” (REsp n. 17.464-RJ, DJ. 29.6.1992).
Do voto condutor do acórdão, proferido pelo Min. Eduardo Ribeiro,
considero pertinente destacar a seguinte passagem:
À parte que teve sua pretensão inteiramente atendida, não é dado recorrer,
por faltar-lhe interesse. O processo não visa à discussão de teses acadêmicas, mas
ao fim pragmático de assegurar a um dos litisconsortes determinado bem da vida.
Desse modo, a quem já obteve tudo o que poderia obter, não será lícito pretender
outro pronunciamento judicial, apenas porque não considerado determinado
fundamento, sem que daí adviesse qualquer consequência prática. No caso
em exame, o autor fora vencedor, garantindo-se-lhe a renovação compulsória
do contrato. Não lhe era possível recorrer. O fundamento desconsiderado no
julgamento, mas debatido no processo, não deixaria, entretanto, de existir.
Inadmissível fosse agora negada a renovação, embora a ela tivesse o autor direito,
por desconhecer razão de que as instâncias ordinárias não cuidaram, já que
entendiam haver outro motivo, bastante para conduzir ao mesmo resultado.
Diversa, obviamente, a posição do recorrente. Sendo vencido, a ele interessa
recorrer. Ao trazê-lo, deverá deduzir toda a matéria que lhe aproveite. Disso se
abstendo, não se cogitará do que omitiu.
De outra parte, para que se vislumbre o especial, necessário o
prequestionamento, pela evidente razão de que não poderá o Tribunal a quo
ter contrariado a lei quanto a matéria de que não tratou. Menos ainda dissentir
de outro julgado. Entretanto, não se exigirá prequestionamento quanto a temas
capazes de levar a que se negue provimento ao recurso. Não se reformará
decisão juridicamente correta, quanto à conclusão, apenas porque acolhido o
fundamento errado, dos vários debatidos na causa.
Ressalto que a 2ª Seção, ao apreciar o EREsp n. 41.614-SP, em julgamento
ocorrido em 28.10.2009, sob a relatoria da Ministra Nancy Andrighi, assim
como no acórdão embargado, reafirmou a orientação de que, conhecido o
recurso especial, deve o STJ aplicar o direito à espécie, podendo “mitigar o
requisito do prequestionamento”, encontrando a ementa do referido acórdão
assim redigida:
382
Jurisprudência da SEGUNDA SEÇÃO
Direito Processual Civil. Aplicação do direito à espécie. Art. 257 do RISTJ.
Celeridade da prestação jurisdicional. Inexistência de supressão de instância.
Prequestionamento. Mitigação. Embargos de divergência no recurso especial.
Harmonia entre decisão embargada e acórdãos paradigmas. Não conhecimento.
- Superado o juízo de admissibilidade, o recurso especial comporta efeito
devolutivo amplo, o que implica o julgamento da causa e a aplicação do direito à
espécie, nos termos do art. 257 do RISTJ, que procura dar efetividade à prestação
jurisdicional, sem deixar de atender para o devido processo legal.
- Na aplicação do direito à espécie o STJ poderá mitigar o requisito do
prequestionamento, valendo-se de questões não apreciadas diretamente pelo 1º
e 2º graus de jurisdição, tampouco ventiladas no recurso especial. Não há como
limitar as funções deste Tribunal aos termos de um modelo restritivo de prestação
jurisdicional, compatível apenas com uma eventual Corte de Cassação.
- A aplicação do direito à espécie também atende os ditames do art. 5º, LXXVIII,
da CF, acelerando a outorga da tutela jurisdicional.
- Não há como conhecer dos embargos de divergência quando a decisão
embargada encontra-se em harmonia com o entendimento contido nos acórdão
alçados a paradigma.
(EREsp n. 41.614-SP, rel Min. Nancy Andrighi, Segunda Seção, DJ 30.11.2009)
Reitero que o recurso especial interposto pela ora embargada foi admitido,
hipótese em que deve o Tribunal aplicar o direito à espécie, com a apreciação de
todas as questões discutidas nos autos, ainda que não examinadas pelo Tribunal
de origem, conforme entendimento da Corte Especial, confira-se:
Embargos de divergência. Recurso especial. Técnica de julgamento.
1. Se o Tribunal local acolheu apenas uma das causas de pedir declinadas
na inicial, declarando procedente o pedido formulado pelo autor, não é lícito
ao Superior Tribunal de Justiça, no julgamento de recurso especial do réu,
simplesmente declarar ofensa à Lei e afastar o fundamento em que se baseou o
acórdão recorrido para julgar improcedente o pedido.
2. Nessa situação, deve o Superior Tribunal de Justiça aplicar o direito à espécie,
apreciando as outras causas de pedir lançadas na inicial, ainda que sobre elas não
tenha se manifestado a instância precedente, podendo negar provimento ao
recurso especial e manter a procedência do pedido inicial.
(EREsp n. 58.265-SP, Rel. p/ acórdão Min. Humberto Gomes de Barros).
Esse posicionamento, recentemente, foi ratificado pela Corte Especial no
julgamento do EREsp n. 1.088.405-RS, cuja ementa tem o seguinte teor:
RSTJ, a. 24, (226): 355-390, abril/junho 2012
383
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
Agravo regimental nos embargos de divergência em recurso especial. Teses
suscitadas na instância de origem. Acolhimento de parte dos fundamentos.
Necessidade de análise dos demais. Aplicação do direito à espécie.
I - Caso o e. Tribunal a quo julgue procedente o pedido acolhendo uma das
causas de pedir elencadas na inicial, o e. Superior Tribunal de Justiça deve,
antes de prover o recurso especial da parte contrária, enfrentar as demais teses
suscitadas nas contrarrazões recursais, aplicando o direito à espécie. Precedentes.
(Art. 257 do RISTJ e Súmula n. 456 do Pretório Excelso).
II - In casu, o autor apresentou perante o e. Tribunal a quo, além da prejudicial
de prescrição, outros fundamentos para ver reconhecida a procedência do seu
pedido, sendo acolhidas a ausência de amparo normativo e a inobservância dos
princípios da legalidade, da tipicidade e da anterioridade para dar provimento ao
recurso.
III - Interposto recurso especial pelo agravante, e tendo o agravado reproduzido
em suas contrarrazões as alegações trazidas em sede de apelação, deve a c.
Primeira Turma, no julgamento do recurso especial, prosseguir no exame dos
demais fundamentos suscitados, aplicando o direito à espécie.
Agravo regimental desprovido.
(EREsp n. 1.088.405-RS, Relator o Ministro Felix Fischer, DJ 17.12.2010)
Em face do exposto, com a devida vênia, divirjo do voto relator, conheço e
dou provimento aos embargos de divergência para determinar que a 3ª Turma
examine como entender de direito a questão relativa à preclusão da definição
dos valores de bens trazidos à colação em processo de inventário, suscitada pela
ora embargante na contraminuta e nas contrarrazões ao recurso especial.
É como voto.
VOTO-VOGAL
O Sr. Ministro Raul Araújo: Sr. Presidente, com a devida vênia, também
não vejo como aplicar ou dizer que estamos aplicando regra de admissibilidade
de recurso em relação à parte que, na verdade, foi recorrida no recurso especial.
Não há como, a não ser que estivéssemos tratando de admissibilidade de
contrarrazões; e não é isso.
Temos aqui uma demonstração patente da existência de divergência entre
os julgados em que não se pode exigir prequestionamento em prejuízo da parte
que chegou vencedora das instâncias ordinárias e tem a sua situação revertida
nesta Corte. Do contrário, ficaria a embargante totalmente prejudicada, sem ter
384
Jurisprudência da SEGUNDA SEÇÃO
mais como ver analisadas outras questões que, de per si, seriam suficientes para
que também lograsse êxito na causa.
Entendo absolutamente incensurável, correto, o voto da eminente Ministra
Isabel Gallotti, que examinou com muito esmero, com muito cuidado esse caso,
que está a merecer a solução que Sua Excelência aponta.
Com a devida vênia, conheço dos embargos de divergência e dou-lhes
provimento.
VOTO
O Sr. Ministro Paulo de Tarso Sanseverino: Sr. Presidente, com a devida
vênia do eminente Ministro Relator, tenho que não é a regra técnica de
conhecimento; foi matéria que foi ventilada em vários momentos.
Até para evitar a eventual alegação posterior de violação do art. 257, do
nosso Regimento Interno, com a vênia do Sr. Ministro Relator, acompanho a
divergência, conhecendo dos embargos de divergência e dando-lhes provimento.
VOTO
O Sr. Ministro Antonio Carlos Ferreira: Sr. Presidente, com a devida vênia
do Sr. Ministro Relator, acompanho a divergência, conhecendo dos embargos de
divergência e dando-lhes provimento.
VOTO
O Sr. Ministro Marco Buzzi: Sr. Presidente, eminentes Pares, a menos que,
como na lauda 5 de 10 folhas, no 3º parágrafo, foi dito pela eminente Ministra
Isabel Gallotti, que deveria ter a parte oposto embargos de declaração ao
acórdão recorrido, o qual tinha sido completamente favorável, que é uma coisa
absolutamente ilógica.
Peço vênia ao eminente Ministro Relator para acompanhar a dissidência,
conhecendo dos embargos de divergência e dando-lhes provimento.
Presidente o Sr. Ministro Sidnei Beneti
Relator o Sr. Ministro Massami Uyeda
RSTJ, a. 24, (226): 355-390, abril/junho 2012
385
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
2ª Seção - Sessão 14.12.2011
Nota Taquigráfica
RECLAMAÇÃO N. 5.684-SP (2011/0074829-6)
Relator: Ministro Massami Uyeda
Reclamante: TV Ômega Ltda
Advogado: Fabiane Franco Lacerda e outro(s)
Reclamado: Juiz da 54ª Vara do Trabalho de São Paulo - SP
Interessado: José Vidal Pola Galé
Advogado: Henrique D’aragona Buzzoni
EMENTA
Processual Civil. Reclamação. Garantia da competência e
autoridade das decisões proferidas pelo Superior Tribunal de Justiça.
Acórdão proferido no Conflito de Competência n. 91.276-RJ. Decisão
de juízo trabalhista determinando o prosseguimento da execução.
Descumprimento da determinação contida no acórdão prolatado
por esta Corte Superior. Ocorrência, na espécie. Reclamação julgada
procedente.
I - A reclamação tem por finalidade preservar a competência do
Superior Tribunal de Justiça ou garantir a autoridade de suas decisões,
sempre que haja indevida usurpação por parte de outros órgãos de sua
competência constitucional, nos termos do art. 105, inciso I, alínea f,
da Constituição Federal.
II - No caso dos autos, a reclamante comprovou que a reclamação
trabalhista, transitada em julgado após a suscitação do Conflito de
Competência n. 91.279-RJ, foi abrangida pela decisão proferida nesse
processo;
III - Desse modo, a decisão do r. Juízo trabalhista que determinou
o prosseguimento da execução naquele Juízo descumpriu o comando
386
Jurisprudência da SEGUNDA SEÇÃO
do acórdão proferido pela Segunda Seção do STJ de remessa dos
autos à Justiça comum;
IV - Reclamação julgada procedente.
ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos os autos em que são partes as acima indicadas,
acordam os Ministros da Segunda Seção do Superior Tribunal de Justiça,
na conformidade dos votos e das notas taquigráficas a seguir, a Seção, por
unanimidade, julgar procedente a presente Reclamação, para cassar a decisão
reclamada de fl. 113, proveniente do Juízo da 54ª Vara do Trabalho de São PauloSP, proferida nos autos da Reclamação Trabalhista n. 01205.2001.054.02.00-2,
nos termos do voto do Sr. Ministro Relator.Os Srs. Ministros Luis Felipe
Salomão, Raul Araújo, Paulo de Tarso Sanseverino, Maria Isabel Gallotti,
Antonio Carlos Ferreira, Ricardo Villas Bôas Cueva, Marco Buzzi e Nancy
Andrighi votaram com o Sr. Ministro Relator.
Brasília (DF), 29 de fevereiro de 2012 (data do julgamento).
Ministro Massami Uyeda, Relator
DJe 9.3.2012
RELATÓRIO
O Sr. Ministro Massami Uyeda: Cuida-se de reclamação ajuizada pela
TV Ômega Ltda objetivando a garantia da autoridade do acórdão proferido
pela Segunda Seção do Superior Tribunal de Justiça, nos autos do Conflito de
Competência n. 91.276-RJ, ainda não transitado em julgado, assim ementado:
Conflito de competência. Justiças Comum e Trabalhista. Ações de obrigação de
fazer e declaratória de inexistência de sucessão de obrigações. Decisão da justiça
comum reconhecendo a não-ocorrência de sucessão empresarial e a ausência de
responsabilidade da TV Ômega pelos créditos trabalhistas e tributários da Bloch
Editores e da extinta TV Manchete. Decisões proferidas por juízos trabalhistas,
reconhecendo a sucessão empresarial em sede de execução de reclamações
trabalhistas ali ajuizadas, com determinação de penhora de numerário e de
contas bancárias da TV Ômega. Interpretação do alcance e dos efeitos do mesmo
contrato pelos juízos comum e trabalhista. Conflito de competência. Ocorrência, na
espécie. Competência do juízo comum para a análise das constrições patrimoniais
RSTJ, a. 24, (226): 355-390, abril/junho 2012
387
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
determinadas pela Justiça do Trabalho, sendo inválidas as anteriormente deferidas. I
- Nos termos do art. 115, I, do Código de Processo Civil, à configuração de conflito
positivo de competência, é necessário que duas ou mais autoridades judiciárias,
de esferas diversas, declarem-se competentes para apreciar e julgar o mesmo
feito, ou que incida a prática de atos processuais na mesma causa, por mais de
um juiz; II - Compete à Justiça comum decidir a respeito do contrato firmado
entre a Suscitante TV Ômega e as empresas TV Manchete e Bloch Editores S.A.,
bem como o alcance e efeitos do referido contrato; III - A existência de decisão
da Justiça Comum, no sentido de que não há sucessão empresarial, englobando
responsabilidade tributária e trabalhista da TV Ômega, concomitante à existência
de decisões proferidas pelos Juízos trabalhistas, no sentido da existência da
sucessão empresarial, inclusive com determinação de constrição patrimonial
da TV Ômega, caracteriza conflito positivo de competência, a ser dirimido pelo
Superior Tribunal de Justiça; IV - Conflito conhecido, declarando-se a competência
do Juízo Comum para analisar e julgar as questões decorrentes das condenações
impostas à TV Manchete, tornando-se inválidas as constrições patrimoniais
determinadas pela Justiça do Trabalho.
Referido acórdão foi complementado no julgamento dos embargos de
declaração, que receberam a seguinte ementa:
Embargos de declaração. Conflito de competência. Justiças Comum e
Trabalhista. Efeitos modificativos. Excepcionalidade. Possibilidade, na espécie.
Esclarecimentos acerca de situações específicas não tratadas no julgamento do
conflito de competência. Necessidade. Embargos declaratórios acolhidos.
Alega a reclamante, em síntese, que, embora o julgamento do Conflito
de Competência n. 91.276-RJ tenha abrangido expressamente a Reclamação
Trabalhista de n. 01205.2001.054.02.00-2 (reclamante José Vidal Pola Galé),
em trâmite perante o r. Juízo de Direito da 54ª Vara do Trabalho de São Paulo,
referido Juízo trabalhista, devidamente informado nos autos de reclamação
da decisão proferida pelo STJ, teria se recusado a cumprir a determinação
de remessa dos autos à Justiça comum, determinando o prosseguimento da
execução trabalhista em face da TV Ômega.
Aduz, outrossim, que a reclamação trabalhista acima elencada foi proposta
diretamente em face da TV Ômega, tendo o trânsito em julgado da fase de
conhecimento ocorrido em 27.10.2009, ou seja, após a suscitação do Conflito de
Competência.
Requer, assim, a concessão da liminar, para que fossem obstados os
atos executórios praticados na referida reclamação trabalhista, e, ao final, o
388
Jurisprudência da SEGUNDA SEÇÃO
provimento da presente reclamação, para o fim de preservar a competência deste
Tribunal Superior.
Por decisão desta Relatoria, foi deferida a liminar, para o fim de suspender
o curso da execução trabalhista até o julgamento final da presente reclamação
(fls. 98-101).
O r. Juízo da 54ª Vara do Trabalho de São Paulo prestou informações à fl.
112-113.
A ilustre Procuradoria-Geral da República apresentou parecer, no sentido
da procedência da reclamação (fls. 115-119).
É o relatório.
VOTO
O Sr. Ministro Massami Uyeda (Relator): A reclamação merece prosperar.
Com efeito.
É cediço que o instrumento da reclamação tem, em sua essência, a função de
fazer prevalecer, na hierarquia judiciária, o efetivo respeito aos pronunciamentos
jurisdicionais, emanados de Tribunais Superiores (art. 102, inciso I, alínea l,
combinado com o artigo 105, inciso I, alínea f, da Constituição Federal), para
o fim de resguardar a integralidade e a eficácia subordinante dos comandos que
deles emergem, bem como sua competência.
Seu objeto, portanto, encontra-se na ofensa a alguma decisão ou usurpação
infringente da competência do Superior Tribunal, vale dizer, a preservação da
competência do Tribunal e a garantia da autoridade de suas decisões.
Na realidade, veja-se que a reclamante TV Ômega Ltda comprovou que
o Processo de n. 01205.2001.054.02.00-2 (reclamante José Vidal Pola Galé),
em trâmite na 54ª Vara do Trabalho de São Paulo, foi abrangido pela decisão
proferida no Conflito de Competência n. 91.279-RJ, que assim dispôs, no que
interessa, in verbis:
(...) c) Reclamatórias trabalhistas de empregados da TV Manchete ou da Editora
Bloch que moveram ação diretamente contra a TV Ômega: Estão abrangidos
pela decisão do STJ todos os casos de ações trabalhistas de empregados da TV
Manchete ou da Editora Bloch que moveram a ação diretamente contra a TV
Ômega e que não transitaram em julgado antes da suscitação do Conflito de
Competência e não foram objeto de julgamento pelo e. TST.
RSTJ, a. 24, (226): 355-390, abril/junho 2012
389
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
Ademais, restou comprovado nos autos, inclusive por meio das informações
prestadas (fls. 112-113), que o r. Juízo de Direito da 54ª Vara de São Paulo, a
despeito de ter sido informado acerca do decidido no Conflito de Competência
n. 91.279-RJ, determinou o prosseguimento da execução trabalhista, bem como
a liberação dos depósitos recursais efetuados pela TV Ômega em favor de José
Vidal Pola Galé, o bloqueio das contas correntes da TV Ômega e de seus sócios
pelo sistema Bacen-Jud 2.0, e pesquisa de bens junto ao Detran e a ARISP (fl.
48 e 64), tendo havido inclusive o bloqueio dos valores (fls. 65-78).
Desse modo, tendo havido o trânsito em julgado da reclamação trabalhista
em 27.10.2009 (fl. 60), ou seja, após a suscitação do referido Conflito de
Competência, a decisão que determinou o prosseguimento da execução naquele
juízo trabalhista, efetivamente, descumpre a determinação do acórdão proferido
pela Segunda Seção do STJ.
Assim sendo, julga-se procedente a presente reclamação, para cassar a
decisão reclamada de fl. 113.
É o voto.
390
Terceira Turma
RECURSO EM HABEAS CORPUS N. 28.853-RS (2010/0155470-8)
Relatora: Ministra Nancy Andrighi
Relator para o acórdão: Ministro Massami Uyeda
Recorrente: I L M (preso)
Advogado: Maria Berenice Dias e outro(s)
Recorrido: Ministério Público do Estado do Rio Grande do Sul
EMENTA
Recurso ordinário em face de decisão denegatória de habeas
corpus.
Preliminar. Exequente que não elege o rito do artigo 733,
do Código de Processo Civil para o processamento da execução.
Impossibilidade de o magistrado instar a parte sobre o rito a ser
adotado. Concessão de ordem ex officio. Possibilidade.
Mérito. Execução (apenas) de verba correspondente aos frutos
do patrimônio comum do casal a que a autora (exequente) faz jus,
enquanto aquele se encontra na posse exclusiva do ex-marido. Verba
sem conteúdo alimentar (em sentido estrito). Viés compensatório/
indenizatório pelo prejuízo presumido consistente na não imissão
imediata nos bens afetos ao quinhão a que faz jus. Recurso ordinário
provido.
I - A execução de sentença condenatória de prestação alimentícia,
em princípio, rege-se pelo procedimento da execução por quantia
certa, ressaltando-se, contudo, que, a considerar o relevo das prestações
de natureza alimentar, que possuem nobres e urgentes desideratos, a
Lei Adjetiva Civil confere ao exeqüente a possibilidade de requerer
a adoção de mecanismos que propiciem a célere satisfação do débito
alimentar, seja pelo meio coercitivo da prisão civil do devedor, seja
pelo desconto em folha de pagamento da importância devida. Não
se concebe, contudo, que o magistrado, no silêncio da exeqüente,
provoque a parte autora a se manifestar sobre a possibilidade de o
processo seguir pelo rito mais gravoso para o executado, situação que,
além de não se coadunar com a posição eqüidistante que o magistrado
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
deve se manter em relação às partes, não observa os limites gizados
pela própria inicial;
II - No caso dos autos, executa-se a verba correspondente aos
frutos do patrimônio comum do casal a que a autora faz jus, enquanto
aquele se encontra na posse exclusiva do ex-marido. Tal verba, nestes
termos reconhecida, não decorre do dever de solidariedade entre os
cônjuges ou da mútua assistência, mas sim do direito de meação,
evitando-se, enquanto não efetivada a partilha, o enriquecimento
indevido por parte daquele que detém a posse dos bens comuns;
III - A definição, assim, de um valor ou percentual correspondente
aos frutos do patrimônio comum do casal a que a autora faz jus,
enquanto aquele encontra-se na posse exclusiva do ex-marido, tem,
na verdade, o condão de ressarci-la ou de compensá-la pelo prejuízo
presumido consistente na não imissão imediata nos bens afetos ao
quinhão a que faz jus. Não há, assim, quando de seu reconhecimento,
qualquer exame sobre o binômio “necessidade-possibilidade”, na
medida em que esta verba não se destina, ao menos imediatamente,
à subsistência da autora, consistindo, na prática, numa antecipação da
futura partilha;
IV - Levando-se em conta o caráter compensatório e/
ou ressarcitório da verba correspondente à parte dos frutos dos
bens comuns, não se afigura possível que a respectiva execução se
processe pelo meio coercitivo da prisão, restrita, é certo, à hipótese
de inadimplemento de verba alimentar, destinada, efetivamente, à
subsistência do alimentando;
V - Recurso ordinário provido, concedendo-se, em definitivo, a
ordem em favor do paciente.
ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos os autos em que são partes as acima indicadas,
acordam os Ministros da Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça, na
conformidade dos votos e das notas taquigráficas a seguir, prosseguindo no
julgamento, após o voto-vista do Sr. Ministro Sidnei Beneti e do voto do Sr.
Ministro Ricardo Villas Böas Cueva, acompanhando a divergência, a Turma,
por maioria, dar provimento ao recurso em habeas corpus, nos termos do voto
394
Jurisprudência da TERCEIRA TURMA
do Sr Ministro Massami Uyeda, que lavrará o acórdão. Vencida a Sra. Ministra
Relatora Nancy Andrighi. Ausente, justificadamente, o Sr. Ministro Paulo de
Tarso Sanseverino.
Brasília (DF), 1º de dezembro de 2011 (data do julgamento).
Ministro Massami Uyeda, Relator
DJe 12.3.2012
RELATÓRIO
A Sra. Ministra Nancy Andrighi: Cuida-se de recurso ordinário em habeas
corpus, interposto por I. L. M., contra acórdão proferido pelo TJ-RS.
Ação (inicial às e-STJ fls. 15-18 e aditamento às e-STJ fls. 27-28): de
execução de alimentos, sob o rito previsto no art. 733 do CPC, proposta por J.
P. B. M. em face de I. L. M., com base em título judicial exarado nos autos de
ação de separação judicial litigiosa cumulada com pedido de guarda de filhos,
fixação de alimentos provisionais, partilha de bens, regulamentação de visitas e
medida de separação de corpos com pedido liminar. Em sede de interlocutória
naqueles autos, foi fixada, em favor da credora, “verba (...) qualificada não como
alimentar (...) por força dos frutos que lhe cabe (sic) do patrimônio do casal, já
que o demandado está na posse e administração dos bens”, no equivalente a 10
(dez) salários mínimos (cópia eletrônica da decisão às e-STJ fls. 21-22).
Petição de J. P. B. M. (e-STJ fls. 122-125): a autora denuncia que, a fim
de privá-la de receber os valores executados, o ex-cônjuge tem efetuado suas
movimentações financeiras por intermédio de conta-corrente de titularidade
de sua mãe, motivo pelo qual, inclusive, não foi encontrado saldo suficiente na
conta bancária da empresa Rodoprata, da qual o executado é sócio.
Esses fatos foram considerados pelo i. Juiz na decisão interlocutória (e-STJ
fls. 154-157), para determinar a expedição de alvará na quantia de R$ 13.900,00
a ser retirada da conta bancária da mãe do executado, bem como o bloqueio de
contas de titularidade dele e do Posto Frizzo, de valores depositados oriundos
do Moinho Taquariense.
Há notícia, de decisão proferida nos autos principais (reproduzida às e-STJ
fls. 331-332), na qual, em Juízo de reconsideração, o valor da verba devida a J.
P. B. M. foi reduzido para o equivalente a 3 (três) salários-mínimos, com efeito
RSTJ, a. 24, (226): 391-505, abril/junho 2012
395
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
retroativo à data em que inicialmente arbitrada (16.4.2009). Com base nessa
decisão, o montante devido foi readequado, conforme memória de cálculo
apresentada à e-STJ fl. 371.
Decisão: decretou a prisão do paciente pelo prazo de 30 dias, ao reconhecer
o não pagamento e não acatar a justificativa apresentada (e-STJ fls. 392-414),
declarando expressamente tratar-se de “obrigação alimentar (...) mesmo que de
cunho compensatório, já que se destina à mantença da autora” (e-STJ fl. 448).
Acórdão em habeas corpus: denegou a ordem, em conformidade com o
parecer exarado pelo MP-RS (e-STJ fls. 469-473), nos termos da seguinte
ementa:
Habeas corpus. Dívida de alimentos. Ilegalidade inexistente. 1. Tratando-se
de execução de alimentos na modalidade do art. 733 do CPC, é imprescindível
a citação do réu para pagar ou justificar a impossibilidade, sob pena de prisão
civil. 2. Não se verificando qualquer ilegalidade ou abuso de poder por parte da
autoridade coatora, ao decretar a prisão civil do devedor de alimentos, impõe-se
a denegação da ordem. 3. A lei prevê a prisão civil para o caso de inadimplemento
da obrigação alimentar, sendo de lembrar que eventuais pagamentos parciais
não impedem a sua decretação. Ordem denegada (e-STJ fl. 479).
Recurso ordinário em habeas corpus (e-STJ fls. 488-500): o recorrente
sustenta que a prisão civil na hipótese “é manifestamente ilegal e caracteriza abuso
de autoridade, tendo em vista que os alimentos objeto da referida execução não
têm caráter alimentar, conforme expressamente consignado na própria decisão
que os fixou” (e-STJ fl. 489).
Parecer do MPF (e-STJ fls. 529-531): O Subprocurador-Geral da
República Washington Bolívar Júnior emitiu parecer pelo não provimento do
recurso.
Decisão proferida em sede de Habeas Corpus n. 181.592-RS: deferi a
liminar pleiteada em favor de I. L. M., ao entendimento de que “a dúvida –
quanto à natureza da dívida – opera a favor do paciente”.
É o relatório.
VOTO
A Sra. Ministra Nancy Andrighi (Relatora):
396
Jurisprudência da TERCEIRA TURMA
I. Da delimitação da lide e de seus contornos fáticos.
O recorrente alega que no rol taxativo do art. 733 do CPC não está inserta
a cobrança forçada de “frutos do patrimônio comum”, natureza atribuída pelo
i. Juiz à verba fixada em favor da credora. Argumenta que a obrigação a cujo
pagamento foi condenado em benefício da ex-mulher, portanto, ostenta cunho
compensatório, o que lhe retira a natureza alimentícia necessária à execução
coercitiva.
Dos contornos fáticos assim como definidos na lide – insuscetíveis de
análise na via estreita deste recurso ordinário em habeas corpus –, verifica-se que
o i. Juiz considerou, para a fixação da verba em favor da credora, a peculiaridade
de que o devedor encontra-se na posse e administração do patrimônio comum
do casal, em relação ao qual ainda não houve a devida partilha, valendo-se, para
tanto, do disposto no parágrafo único do art. 4º da Lei n. 5.478, de 1968.
A discussão, portanto, cinge-se unicamente a estabelecer se a verba fixada
em prol da credora reveste-se ou não de natureza alimentar, de modo a poder ela
valer-se, ou não, da execução coercitiva prevista no art. 733 do CPC.
II. Dos alimentos compensatórios.
Para que seja possível aferir a natureza da obrigação a que foi condenado
o recorrente, é necessário traçar um breve bosquejo acerca do instituto dos
alimentos compensatórios, o qual tem habitado o centro de relevantes e atuais
discussões jurídicas, apresentando-se como uma solução restauradora do
equilíbrio que pode ser invariavelmente rompido com a dissolução dos laços
conjugais ou convivenciais.
Sem a pretensão de igualar economicamente os ex-cônjuges ou excompanheiros, “a pensão compensatória”, na dicção do abalizado professor Rolf
Madaleno, tem por finalidade corrigir eventual distorção advinda da ruptura
do vínculo afetivo, no sentido de “situar a desfeita convivência a um background
familiar da união rompida” (Responsabilidade civil na conjugalidade e alimentos
compensatórios. In Revista Brasileira de Direito das Famílias e Sucessões. n. 13 –
Dez-Jan/2010. p. 22).
Ao determinar a origem da pensão compensatória no Direito Francês (art.
270 do Código Civil da França), bem como assinalar sua larga aplicação no
Direito Espanhol (art. 97 do Código Civil da Espanha), o renomado professor
avança no tema, com as seguintes ponderações:
RSTJ, a. 24, (226): 391-505, abril/junho 2012
397
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
A pensão compensatória constitui-se no ressarcimento de um prejuízo
objetivo, surgido exclusivamente do desequilíbrio econômico ocasionado pela
ruptura do matrimônio e carrega em seu enunciado uma questão de equidade.
Na doutrina de Aurelia Maria Romero Coloma, a pensão compensatória
identifica-se com a indenização devida pela perda de uma chance, experimentada
durante o matrimônio pelo cônjuge que mais perde com a separação. E, com
efeito, não é destituída de lógica a equiparação com a teoria da perda de uma
chance, porque o instituto da responsabilidade civil foi levado a acompanhar
as transformações ideológicas e econômicas vivenciadas pela sociedade,
prevalecendo hoje, o paradigma da solidariedade como eixo da dignidade da
pessoa humana, e essa dignidade, quando for preciso repará-la, não pode ficar
restrita à existência da culpa e a perda de uma chance pelos acordos conjugais de
concessões e sacrifícios pessoais caracterizam um prejuízo consumado e o dano a
ser reparado é a perda dessas oportunidades.
A pensão compensatória visa a reparar o passado, cuidando para que ele não
falte no futuro. Tem a toda evidência, um propósito indenizatório, que não exclui
sua função compensatória, mas antes, se completa, pois corrige um descompasso
material causado pela separação e compensa o cônjuge que se viu em condições
financeiras inferiores com o término da relação, e cobre as oportunidades que
foram perdidas durante o matrimônio (op. cit. p. 26).
Com base nessas breves pinceladas acerca dos alimentos compensatórios,
verifica-se que não se submetem aos meios executórios coercitivos previstos no
art. 733 do CPC.
III. Da necessária distinção entre alimentos compensatórios e aqueles
derivados de parte da renda líquida dos bens comuns, administrados pelo
devedor.
É de certa forma compreensível a ilação que se faz em alguns estudos
doutrinários sobre o tema em questão, no sentido de confundir os alimentos
compensatórios com aqueles constantes do parágrafo único do art. 4º da Lei
n. 5.478, de 1968, fixados em favor do credor tendo como parâmetro a renda
líquida dos bens comuns, administrados pelo devedor, quando pendente a
partilha.
Essa parte da renda líquida dos bens comuns administrados pelo devedor
tem cunho eminentemente alimentar e serve para prover o sustento do cônjuge
ou companheiro que se vê privado do patrimônio comum ante a dissolução do
vínculo conjugal ou convivencial.
398
Jurisprudência da TERCEIRA TURMA
Muito embora a princípio seja possível divisar desarmonioso arranjo
consistente no fato de que a posse e administração dos bens comuns encontramse nas mãos de apenas um dos ex-cônjuges, trata-se, na verdade, de situação
transitória, que não tem o condão de gerar o desequilíbrio inerente ao cabimento
dos alimentos compensatórios. Isso porque os bens ainda pertencem, em tese
em sua totalidade, a ambos os cônjuges, devendo apenas o detentor provisório
do patrimônio repassar parte da renda líquida dele auferida àquele que foi
temporariamente destituído de sua fruição.
A pendência de partilha, portanto, retira, no meu entender, da renda
líquida dos bens comuns administrados pelo devedor, a feição de alimentos
compensatórios, para lhes conferir nítida natureza jurídica alimentar,
vinculando-os aos efeitos coercitivos atrelados ao procedimento previsto no art.
733 do CPC.
Abstraindo das particularidades inerentes à cada lide, marcadamente
em se tratando de Direito de Família, extraio do voto proferido no REsp
n. 1.046.296-MG, DJe 8.6.2009, por meio do qual esta Turma majorou os
alimentos devidos entre ex-cônjuges, em razão exatamente de se encontrar a
totalidade do patrimônio comum do casal na posse e administração do devedor
da pensão, o seguinte trecho:
Na hipótese em julgamento, prepondera singularidade de grande relevo e que
deve sempre ser considerada em processos de semelhante jaez, porquanto ao
encontrar-se o alimentante na administração e posse de todo o acervo de bens
do casal e, ao que tudo indica, conforme se colhe do próprio acórdão impugnado,
obstar a partilha do patrimônio comum, impõe à recorrente dificuldades
financeiras e ônus intransponíveis.
Impressiona a ousadia do alimentante ao interpor recurso contra sentença
que simplesmente atualiza valores a título de alimentos que se obrigou a pagar
à recorrente, enquanto não partilhados os bens comuns do casal e, ainda mais, o
fato de ser acolhido o pleito recursal pelo TJ-MG, sem observar a particularidade
ora evidenciada.
E mais, alicerça o recorrido sua negativa de pagar mais à alimentanda, em
eventual “ociosidade” da ex-mulher, quando na verdade não percebe que se tal
fato efetivamente se comprovar, não será por outro motivo que não o apego
aos bens materiais do próprio alimentante, ao não dividir o patrimônio que
igualmente à alimentanda pertence.
Não se olvide a afirmação da própria recorrente, no sentido de que se não
fosse a negativa do recorrido de partilhar os bens do patrimônio comum, de
pensão alimentícia não necessitaria, porquanto deteria patrimônio suficiente
RSTJ, a. 24, (226): 391-505, abril/junho 2012
399
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
para seu sustento e manutenção do padrão de vida, o que é absolutamente
inviável com a pensão da qual sobrevive. Dessa forma, se houvesse a divisão
do patrimônio comum de maneira equânime, nada obstaria a recorrente de
trabalhar, cuidando dos seus próprios bens. Causa, pois, perplexidade a menção
ao ócio a que faz o recorrido, quando ele próprio não permite que de outro modo
se configure a realidade.
Por fim, não há a menor plausibilidade de que o recorrido alegue que seu
patrimônio diminuiu, notadamente porque se encontra ele com todos os bens
do casal. Se, contudo, persistir na alegação de que sua fortuna diminuiu e, se tal
fato realmente se confirmar, poderá responder por isso, porque se ele administrar
mal os bens que não lhe pertencem exclusivamente, terá que prestar contas,
certamente, de sua incúria.
Por tudo isso, considerada a peculiaridade essencial de que, fixados os
alimentos em separação judicial, os bens não foram partilhados e o patrimônio
do casal está na posse e administração do alimentante que protela a divisão do
acervo do casal, ressaltando-se que, por conseguinte, a alimentanda não tem
o direito de sequer zelar pela manutenção da sua parcela do patrimônio que
auxiliou a construir, deve ser permitida a revisão dos alimentos, enquanto tal
situação perdurar.
Sempre, pois, deve esta específica peculiaridade – a pendência de partilha e
a conseqüente administração e posse dos bens comuns do casal nas mãos do
alimentante – ser considerada em revisional de alimentos, para que não sejam
cometidos ultrajes perpetradores de situações estigmatizantes entre as partes
envolvidas em separações judiciais.
Erigida sob os princípios da dignidade da pessoa humana e da solidariedade
familiar, a obrigação alimentícia derivada de parte da renda líquida dos bens
comuns repousa no dever de mútua assistência, que ainda vigora, até que se
ultime a partilha do acervo patrimonial do casal.
Desprover essa verba do caráter alimentar que lhe é inerente teria o condão
de conferir insustentável benefício ao cônjuge que se encontra na posse e
administração dos bens comuns e que possa estar de alguma forma, protelando
a partilha desse patrimônio. Não há que se premiar o devedor renitente, em
detrimento daquele que faz jus aos alimentos fixados consoante prudente
arbítrio do Juiz, que esteve rente às circunstâncias fáticas apresentadas pelas
partes no curso do processo.
Desestimula-se, dessa forma, possível pulverização e dissipação de um
patrimônio comum, ao tempo em que se preserva a necessária sintonia entre
fome e alimentos.
400
Jurisprudência da TERCEIRA TURMA
No caso em julgamento, distorção na partilha não há, notadamente porque
inexiste a própria partilha, elemento essencial à concretização do desequilíbrio
gerador das hipóteses de cabimento da pensão compensatória, a qual tem
como primordial escopo restaurar a simetria socioeconômica dissipada com o
rompimento dos laços afetivos.
Por fim, muito embora esta Turma já tenha apreciado questão similar, no
HC n. 34.049-RS, DJ 6.9.2004, para aplicar restritivamente o art. 733, § 1º, do
CPC, quando em detrimento de um direito indisponível – a liberdade –, foi
declarado no acórdão então recorrido tratar-se, naquela hipótese específica, de
“verdadeira antecipação da futura partilha”.
Ressalte-se que o tempo do processo corre de forma desigual, não raras
vezes a favor do devedor que, invocando seu amplo acesso à liberdade e ao direito
de defesa, acaba por enfraquecer e até mesmo fulminar o direito fundamental à
assistência alimentar essencial à vida e à sobrevivência material e psíquica do
credor de alimentos.
Não é viável, portanto, esvaziar a possibilidade de execução alimentar
mediante prisão civil de sua forte carga de constrangimento pessoal e
reprovabilidade social, para deixar ao desalento o inarredável preceito ético de
solidariedade familiar.
Feitas as distinções necessárias e considerando não tratar a hipótese de
alimentos compensatórios, ressai cristalina a natureza jurídica alimentar da
verba derivada da renda líquida dos bens comuns, fixada em favor da credora,
o que permite a execução pelo rito coercitivo, sendo de rigor a manutenção do
acórdão recorrido, que denegou a ordem de habeas corpus, ante a ausência de
ilegalidade ou de abuso de poder do i. Juiz, ao decretar a prisão civil do devedor.
Forte nessas razões, nego provimento ao recurso ordinário em habeas corpus
e, por conseguinte, determino a cassação da liminar deferida nos autos do HC
n. 181.592-RS.
RELATÓRIO
O Sr. Ministro Massami Uyeda: Cuida-se de recurso ordinário interposto
por I. L. M. contra acórdão prolatado pela colenda 7ª Câmara Cível do egrégio
Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul que denegou a ordem
impetrada no Habeas corpus.
RSTJ, a. 24, (226): 391-505, abril/junho 2012
401
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
Os elementos dos autos dão conta de que, com lastro no título executivo
judicial constituído no bojo da ação de separação judicial litigiosa cumulada
com pedido de guarda de filhos, fixação de alimentos provisionais, partilha de
bens, regulamentação de visitas e medida de separação de corpos com pedido
liminar, J. P. B. M., promoveu, em 28.5.2009, Ação de Execução, em face de seu
ex-marido, I. L. M., tendo por escopo a satisfação de crédito relativo “aos frutos
que lhe cabem”, em virtude de o patrimônio comum encontrar-se na posse do
executado, fixados em 10 (dez) salários mínimos, correspondentes R$ 4.650,00
(quatro mil, seiscentos e cinqüenta reais), corrigidos desde 10.5.2009 (fl. 16
e-STJ).
Instada pelo r. Juízo a quo a se manifestar sobre o rito em que a presente
execução deveria se processar, a executada, embora inicialmente tenha apontado
o rito do artigo 732 do Código de Processo Civil (fl. 24 e-STJ), posteriormente
aditou a inicial, para que a execução fosse processada sob o rito do artigo 733 do
Código de Processo Civil (fl. 26 e-STJ).
Citado, o executado apresentou sua justificativa, aduzindo preliminarmente,
i) a inviabilidade de se modificar, por iniciativa do Juízo, o rito processual eleito
pela autora; ii) a não-caracterização de verba alimentar do crédito exeqüendo, este
consistente nos frutos do patrimônio comum; iii) ausência de título executivo.
No mérito, alegou, em suma, a impossibilidade de proceder aos pagamentos
dos valores determinados, não se podendo confundir os rendimentos da pessoa
jurídica da qual é sócio com o seu, de pessoa física, que é de R$ 3.218,90 (três
mil, duzentos e dezoito reais e noventa centavos). Anota, no ponto, que o
patrimônio da empresa, inclusive, não integra o patrimônio comum. Afirma,
ainda, que, além de sua subsistência, presta mensalmente alimentos à filha,
oriunda do primeiro casamento, bem como aos seus três filhos, em comum com
a exequente, no valor de R$ 1.450,00 (mil, quatrocentos e cinqüenta reais) [fls.
245-261 e-STJ].
O r. Juízo a quo rejeitou-a, decretando a prisão do executado pelo prazo de
trinta (30) dias, sob a seguinte fundamentação:
executado já foi intimado para o pagamento do débito, sob pena de prisão
civil. Limitou-se, contudo, a trazer ilações acerca da natureza da prestação
alimentícia, a necessidade de conferir efeito retroativo à decisão que minorou o
valor da prestação, bem como a sua impossibilidade de pagamentos dos valores
executados. [...] Ocorre que o cálculo de fl. 311 já havia readequado os valores
ao novo patamar de 3 salários mínimos, sendo que esta magistrada foi induzida
em erro pela parte executada, tanto é que foi proferido o despacho de f. 429,
402
Jurisprudência da TERCEIRA TURMA
o qual apenas procrastinou a tramitação do feito. As demais argumentações
não se mostram plausíveis e não afastam a decisão de f. 315 que determinou
o pagamento sob pena de prisão. Veja-se que a obrigação é alimentar, sendo
possível a decretação da prisão civil, mesmo que de cunho compensatório, já
que se destina à mantença da autora. Conforme o art. 733, CPC, não havendo
o cumprimento do dispositivo legal, cabe prisão civil. Assim, defiro o requerido
pela exequente e decreto a prisão do executado [...] pelo prazo de 1 mês (fl. 447
e-STJ).
Decisum que ensejou a impetração de “habeas corpus”, o qual a colenda 7ª
Câmara Cível do egrégio Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul
negou provimento em acórdão assim ementado:
Habeas corpus. Dívida de alimentos. Ilegalidade inexistente. 1. Tratando-se de
execução de alimentos na modalidade do art. 733 do CPC, é imprescindível a
citação do réu para pagar ou justificar a impossibilidade, sob pena de prisão
civil. 2. Não se verificando qualquer ilegalidade ou abuso de poder por parte da
autoridade coatora, ao decretar a prisão civil do devedor de alimentos, impõe-se
a denegação da ordem. 3. A lei prevê a prisão civil para o caso de inadimplemento
da obrigação alimentar, sendo de lembrar que eventuais pagamentos parciais
não impedem sua decretação (fls. 479 e-STJ).
Esta decisão constitui, assim, objeto do presente writ. Em suas razões,
sustenta o ora recorrente, em síntese, que a verba exigida na execução subjacente
refere-se, por expressa decisão judicial, a um suposto direito à percepção de
frutos decorrentes da administração dos bens comuns, ainda não partilhados,
faltando-lhe, por conseguinte, caráter alimentar. Aduz, outrossim, que referida
verba possui, na verdade, caráter compensatório, tendo, assim, por finalidade
“evitar o desequilíbrio econômico-financeiro decorrente da ruptura da vida em
comum, assim como possibilitar a readaptação material do cônjuge que, com a
separação, se vê em situação econômica desvantajosa em relação ao outro, que se
encontra na posse do patrimônio do casal” (fls. 487-499 - e-STJ).
É o relatório.
VOTO
O Sr. Ministro Massami Uyeda (Relator para o acórdão): O inconformismo
recursal merece prosperar.
Com efeito.
RSTJ, a. 24, (226): 391-505, abril/junho 2012
403
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
Inicialmente, a despeito de o presente recurso ordinário não veicular
qualquer insurgência acerca da impropriedade em que o Rito do artigo 733 do
Código de Processo Civil foi, na espécie, imprimido, a constatação da existência
de constrangimento ilegal admite a concessão da ordem ex officio (RHC n.
23.095-SP, 5ª Turma, Rel. Min. Jorge Mussi, DJe 8.9.2008; RHC n. 23.692-RJ,
4ª Turma, Rel. Min. Fernando Gonçalves,, DJe 30.6.2008; RHC n. 18.238-MS,
3ª Turma, Rel. Min. Carlos Alberto Menezes Direito, DJ 7.8.2006; RHC n.
16.235-SP, 3ª Turma, Rel. Ministra Nancy Andrighi, DJ 30.8.2004).
Da análise acurada dos autos, constata-se que a exeqüente, em sua peça
exordial, não teceu qualquer pedido no sentido de que a execução trilhasse o
rito mais gravoso do artigo 733 do Código de Processo Civil, que prevê a prisão
civil para o devedor. Como assinalado, instada pelo r. Juízo a quo a se manifestar
sobre o rito em que a presente execução deveria se processar, a executada, embora
inicialmente tenha apontado o rito do artigo 732 do Código de Processo
Civil (fl. 24 e-STJ), posteriormente aditou a inicial, para que a execução fosse
processada sob o rito do artigo 733 do Código de Processo Civil (fl. 26 e-STJ).
De fato, à exequente, enquanto não citado o executado, era dada a
possibilidade de aditar sua petição inicial. Entretanto, a provocação do
magistrado para que esta se manifestasse sobre o procedimento a ser seguido,
que no silêncio, naturalmente, deve observar o Rito do artigo 732 do Código de
Processo Civil, revela-se, por si só, descabida.
Na verdade, é certo que a execução de sentença condenatória de prestação
alimentícia, em princípio, rege-se pelo procedimento da execução por quantia
certa, ressaltando-se, contudo, que, a considerar o relevo das prestações de
natureza alimentar, que possuem nobres e urgentes desideratos, a Lei Adjetiva
Civil confere ao exeqüente a possibilidade de requerer a adoção de mecanismos
que propiciem a célere satisfação do débito alimentar, seja pelo meio coercitivo
da prisão civil do devedor, seja pelo desconto em folha de pagamento da
importância devida.
Não se concebe, contudo, que o magistrado, no silêncio da exeqüente,
provoque a parte autora a se manifestar sobre a possibilidade de o processo
seguir pelo rito mais gravoso para o executado, situação que, além de não
se coadunar com a posição eqüidistante que o magistrado deve se manter
em relação às partes, não observa os limites gizados pela própria inicial. “Na
verdade, ao Juiz não é dada a possibilidade de substituir-se às partes em suas
obrigações, como sujeitos processuais, exceto nos casos expressamente previstos
404
Jurisprudência da TERCEIRA TURMA
em lei, sob pena de violação dos princípios processuais da demanda, inércia e
imparcialidade” (ut REsp n. 1.133.706-SP, desta Relatoria, DJe 13.5.2011).
Não bastasse tal impropriedade, suficiente, na compreensão deste Ministro,
para reconhecer a ilegalidade da prisão sub judice, tem-se, ainda, que a verba ora
executada não se reveste de caráter alimentar, em seu sentido estrito.
De plano, revela-se oportuno bem delimitar os contornos da decisão
judicial que, no bojo da ação de separação judicial litigiosa cumulada com pedido de
guarda de filhos, fixação de alimentos provisionais, partilha de bens, regulamentação
de visitas e medida de separação de corpos com pedido liminar, fixou, a título de
frutos do patrimônio em comum, enquanto na posse exclusiva do ex-marido,
dez salários mínimos para a autora, objeto da execução subjacente:
[...] A verba referente à autora deverá ser qualificada não como alimentar, mas
sim, por força dos frutos que lhe cabe do patrimônio do casal, já que o demandado
está na posse e administração dos bens. Diante do extenso rol de bens, fixo a
verba no valor de 10 (dez) salários mínimos nacionais, provisoriamente, devidos
até o dia 10 de cada mês, em conta bancária em nome da autora. Em relação aos
filhos, pois menores, evidente a presunção de necessidade. O valor de 20 (vinte)
salários mínimos é proporcional ao padrão de vida do casal, pelo que é devido. [...]
Referido valor, é certo, no decorrer do processo, restou minorado, nos
seguintes termos:
[...] Revejo posicionamento anterior exarado nas fls. 161 a 164 e minoro o
repasse para apenas 03 (três) salários mínimos. Outrossim, como o valor referente
à autora não é alimentar terá efeito retroativo à data da decisão de fl. 16.4.2009,
devendo o débito se adequar ao novo patamar, observando a data aludida e
eventuais pagamentos. [...]
Em que pese o fato de as referidas decisões deixarem expressamente
assente que a verba correspondente aos frutos do patrimônio comum do casal
a que a autora faz jus, enquanto na posse exclusiva do ex-marido, não teria
caráter alimentar, tal viés, na ação executiva, a ela foi atribuído pelas Instâncias
ordinárias, processando-se, assim, pelo rito do artigo 733 do Código de Processo
Civil, que, como é de sabença, comina, para a hipótese de inadimplemento de
“alimentos provisionais” fixados em decisão ou sentença, a decretação de prisão
civil do alimentante.
Tal entendimento, na compreensão deste Ministro, não guarda a melhor
exegese para a verba sob comento.
RSTJ, a. 24, (226): 391-505, abril/junho 2012
405
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
Na constância da sociedade conjugal, a obrigação de prestar alimentos
reciprocamente estriba-se no dever conjugal de mútua assistência, prevista no
artigo 1.566, inciso III, do Código Civil. Sobrevindo a ruptura da sociedade
conjugal, a obrigação de prestar alimentos subsiste, calcada, agora, no dever de
solidariedade existente entre os cônjuges, já que ainda mantido, entre eles, o
vínculo conjugal, caso em que os alimentos, estes compreendidos em seu sentido
estrito (destinados, portanto, a subsistência daquele que os vindica), deverão ser
pautados, essencialmente, na necessidade do alimentando e na possibilidade do
alimentante, conforme preceituam os artigos 1.694-1.695 combinados com o
1.576 do Código Civil.
No caso dos autos, como visto, executa-se a verba correspondente aos
frutos do patrimônio comum do casal a que a autora faz jus, enquanto aquele se
encontra na posse exclusiva do ex-marido. Tal verba, nestes termos reconhecida,
não decorre do dever de solidariedade entre os cônjuges ou da mútua assistência,
mas sim do direito de meação, evitando-se, enquanto não efetivada a partilha, o
enriquecimento indevido por parte daquele que detém a posse dos bens comuns.
Efetivamente, o instituto da meação, inserido no direito de família e
intrinsecamente relacionado ao regime de bens, consiste na divisão, na partilha
da metade do patrimônio comum de um casal, em razão da dissolução da
sociedade conjugal. O regime de bens, portanto, definirá em que medida
comunicar-se-ão os bens do casal, quando da dissolução da sociedade conjugal.
A definição, assim, de um valor ou percentual correspondente aos frutos do
patrimônio comum do casal a que a autora faz jus, enquanto aquele encontrase na posse exclusiva do ex-marido, tem, na verdade, o condão de ressarcila ou de compensá-la pelo prejuízo presumido consistente na não imissão
imediata nos bens afetos ao quinhão a que faz jus. Não há, assim, quando de seu
reconhecimento, qualquer exame sobre o binômio “necessidade-possibilidade”,
na medida em que esta verba não se destina, ao menos imediatamente, à
subsistência da autora, consistindo, na prática, numa antecipação da futura
partilha.
Ressalte-se, por oportuno, que a verba correspondente aos frutos do
patrimônio comum do casal a que a autora faz jus, enquanto aquele se encontra
na posse exclusiva do ex-marido, não se confunde com o instituto denominado
pela doutrina como “pensão compensatória” ou “alimentos compensatórios”, que tem
por desiderato específico ressarcir o cônjuge prejudicado pela perda da situação
financeira que desfrutava quando da constância do casamento e que o outro
continuou a gozar. Efetivamente, estes alimentos (compreendidos em seu sentido
406
Jurisprudência da TERCEIRA TURMA
amplo), chamados de “compensatórios”, não se prestam (também) a subsistência
do alimentado, tanto que podem ser concedidos independente de o alimentado
possuir meios suficientes para sua mantença. Os “alimentos compensatórios”,
portanto, objetivam minorar o desequilíbrio financeiro experimentado por
apenas um dos cônjuges em razão da dissolução da sociedade conjugal.
Por sua vez, a verba sob comento (parte dos frutos do patrimônio comum
do casal a que a autora faz jus, enquanto aquele se encontra na posse exclusiva
do ex-marido) tem por escopo, como visto, evitar o enriquecimento indevido
por parte daquele que detém a posse dos bens comuns, bem como ressarcir ou
compensar o outro cônjuge pelo prejuízo presumido consistente na não imissão
imediata nos bens afetos ao quinhão a que faz jus.
Efetivamente, tais verbas, embora distintas, especificamente, quanto
à finalidade e à concepção, aproximam-se, nitidamente, quanto à natureza
compensatória e/ou ressarcitória, não se prestando, por conseqüência, a conferir
a subsistência (ao menos, diretamente) do respectivo credor.
Delimitada, assim, a verba sob comento, tem-se, inclusive, que o seu
reconhecimento não obstaria, concomitantemente, o deferimento de alimentos
(em seu sentido estrito, destinados, portanto, à subsistência de quem os vindica),
desde que existência do binômio necessidade/possibilidade restasse pedida,
demonstrada e assim reconhecida na decisão judicial, circunstâncias inocorrentes
na espécie.
Aliás, este entendimento pode ser extraído, inclusive, do parágrafo único
do artigo 4º da Lei n. 5.478/1968, que, por tratar especificamente da verba
correspondente aos frutos do patrimônio comum do casal a que o cônjuge faz
jus, enquanto aquele se encontra na posse exclusiva do outro, distingue-se do
pedido de alimentos provisórios, propriamente ditos.
Nesse sentido, revela-se oportuno citar precedente desta egrégia Terceira
Turma, com transcrição de excerto, in totum, aplicável à hipótese dos autos:
O parágrafo único do art. 4º da Lei de Alimentos, é certo, estabelece que, “se
se tratar de alimentos provisórios pedido pelo cônjuge, casado pelo regime da
comunhão universal de bens, o juiz determinará igualmente que seja entregue
ao credor, mensalmente, parte da renda líquida dos bens comuns, administrados
pelo devedor”. Este dispositivo, entretanto, como se pode observar, estabelece
distinção entre os alimentos provisórios e os frutos dos bens comuns.
Ademais, o acórdão dos embargos infringentes, objeto da execução, é claro no
sentido de que os frutos previstos na parte final do dispositivo indicado enseja,
na verdade, uma verdadeira antecipação da futura partilha, daí haver recebido
RSTJ, a. 24, (226): 391-505, abril/junho 2012
407
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
os embargos para “determinar que, enquanto não for concretizada a partilha,
o varão entregue à mulher, a título de frutos dos bens comuns, importância
correspondente a 16 salários mínimos nacionais”. A parcela executada, neste caso,
nos termos da lei e do acórdão executado, não se confunde com os alimentos
provisórios, daí não ensejar a prisão civil prevista no art. 733, § 1º, do Código de
Processo Civil. Referido artigo, viabilizando a prisão civil em detrimento de um
direito indisponível, a liberdade, não pode ser interpretado extensivamente. Deve
ser aplicado, restritivamente, à “execução de sentença ou de decisão, que fixa os
alimentos provisionais”, o que não é o caso dos autos, no qual são executados
frutos de bens comuns. Esse é o entendimento que melhor se ajusta ao art. 5º,
inciso LXVII, da Constituição Federal, segundo o qual “não haverá prisão civil por
dívida, salvo a do responsável pelo inadimplemento voluntário e inescusável de
obrigação alimentícia e a do depositário infiel.” (HC n. 34.049-RS, Relator Ministro
Carlos Alberto Menezes Direito, Data do Julgamento 14.6.2004).
Permissa venia, tem-se que este precedente guarda, efetivamente,
similaridade à hipótese dos autos, pois, nele também se discute a natureza da
parte dos frutos dos bens comuns, restando expressamente afastado o caráter
alimentar, seja porque tal verba não se confunde com os alimentos destinados
à subsistência, seja porque aquela equivaleria, como entendeu o Tribunal de
origem, a uma verdadeira antecipação da partilha.
Assim, levando-se em conta o caráter compensatório e/ou ressarcitório
da verba correspondente à parte dos frutos dos bens comuns, não se afigura
possível que a respectiva execução se processe pelo meio coercitivo da prisão,
restrita, é certo, à hipótese de inadimplemento de verba alimentar, destinada,
efetivamente, à subsistência do alimentando.
Na hipótese dos autos, a presente execução refere-se exclusivamente a
verba correspondente a parte dos frutos dos bens comuns, inexistindo, nos autos,
notícias de que o alimentante não tem honrado o pagamento dos alimentos
no importe de vinte salários mínimos dos filhos que se encontram na guarda
da exeqüente. O inadimplemento destes alimentos, sim, é que ensejariam a
execução sob o rito do artigo 733 do Código de Processo Civil.
Tem-se, portanto, que a decretação da prisão civil do ora recorrente não
observou os parâmetros de legalidade.
Assim, confere-se provimento ao presente recurso ordinário, para conceder,
em definitivo, a ordem em favor do paciente.
É o voto.
408
Jurisprudência da TERCEIRA TURMA
VOTO-VISTA
O Sr. Ministro Sidnei Beneti: 1. - Resume-se a questão em definir se
a verba devida, cujo inadimplemento serviu de base para a decretação da
prisão do ora Recorrente (CPC, art. 733, § 1º), caracteriza propriamente
verba alimentar ou se constitui modalidade diversa de débito, de natureza
não alimentar, que o alimentando, ora Recorrente, veio caracterizando como
“alimentos compensatórios”.
2. - A expressão “alimentos compensatórios”, trazida aos autos, presta-se a
confusão que se evita facilmente se dela retirado o termo “alimentos” e substituído
por “prestação” (Cód. Civil Francês, arts. 270 e 271) ou “pensão” (Cód. Civil
Espanhol, art. 97), reservando-se o termo “alimentos” para aquilo que mais que
centenária terminologia legal e doutrinária sempre assim denominou no mundo,
ou seja, a verba destinada à subsistência material e social do alimentando
(alimentos naturais e civis, ou côngruos (PONTES DE MIRANDA, Trat. Dir
Priv, RJ, Borsoi, 1955, T. IX, p. 207; CARLOS ROBERTO GONÇALVES,
Dir. Civ. Bras, SP, Saraiva, 5ª ed., 2008, Vol. VI, p. 451).
Na origem francesa, aliás, produto da reforma do divórcio, de 1975, a
própria introdução da matéria na lei sofreu crítica. Diz o Projeto de Lei do
Senado Francês, de 12.12.1996; “Nascida da reforma do divórcio de 1975,
a prestação compensatória apareceu como a ‘pedra angular’ desse edifício,
uma ‘noção revolucionária’ que devia por fim ao contencioso abundante e
incessante da pensão alimentar entre cônjuges. Destinada, como seus termos
indicam, a ‘compensar’ a disparidade objetiva criada pelo divórcio, encontrava
ela seu fundamento na responsabilidade e na solidariedade que sustenta todo
casamento. Após vinte anos de existência, parece que essa instituição não
preencheria mais sua função original e suscita dificuldades de aplicação e
realização”.
Na legislação brasileira, o art. 4º, § ún., da Lei de Alimentos (Lei n. 5.478,
de 25.7.1968), a que, entre nós, remonta a expressão simplificatória “alimentos
compensatórios”, foi interpretado, com precisão e por todos, por julgado desta
3ª Turma, Rel. Min. Carlos Alberto Menezes Direito (RC n. 3.409-RS, 6.9.2004,
p. 256), assinalando que: “Esse dispositivo, entretanto, como se pode observar,
estabelece distinção entre os alimentos provisórios e os frutos dos bens comuns”.
Não têm, os ditos “alimentos compensatórios”, caráter alimentar natural ou
civil, mas, sim, natureza indenizatória. Na origem gaulesa, essa natureza nãoRSTJ, a. 24, (226): 391-505, abril/junho 2012
409
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
alimentar é expressa na lei: “Um dos cônjuges é obrigado a fornecer ao outro
uma prestação destinada a compensar, tanto quanto possível, a disparidade que
a ruptura do casamento cria nas condições de vida respectivas. Essa prestação
possui caráter indenizatório. Toma a forma de um capital, cujo montante é
fixado pelo juiz” (CC Francês, art. 270).
3. - Não sendo verba alimentar, mas indenizatória, o inadimplemento da
“prestação ou pensão compensatória” não pode levar às mesmas consequências
do inadimplemento da obrigação alimentar, não se justificando, pois, com base
no seu inadimplemento, a decretação da prisão do devedor (CPC, art. 733, § 1º).
É claro que a forma da prestação dessa verba, realizada em regra de forma
similar à prestação dos alimentos propriamente ditos, pode levar a confusão
de entendimento, especialmente do alimentando, quanto às consequências do
inadimplemento, imaginando, este, que também acarrete a sabidamente mais
eficaz, em regra, medida coercitiva da prisão do alimentante inadimplente.
Mas as naturezas jurídicas são diversas e quem, como alimentando, recebe,
por convenção ou sentença judicial, essa verba, deve saber bem que diferente, ela,
nas consequências, da obrigação alimentar propriamente dita.
4. - No caso, a verba não é alimentar, mas, sim, indenizatória, pois provem
de frutos havidos pela parte do ativo patrimonial da alimentanda que restou sob
a administração do alimentante, e não de pensão alimentícia.
A própria alimentanda, como o demonstrou o voto divergente, reclamou,
na inicial, o pagamento de verba relativa “aos frutos que lhe cabem”, dando-lhes
o valor cobrado (e-STJ, fl. 16) e pedindo o processamento da cobrança nos
termos do art. 732, não do art. 733, do Cód. de Proc. Civil.
O Juízo é que determinou, indevidamente, porque sem poder o Juízo para,
entre as pretensões possíveis da parte, optar ou obrigá-la a optar por uma que
entreveja adequada, vedado a ele imiscuir-se no chamado concurso eletivo de
ações – que se define como coexistência de mais de uma modalidade à escolha
do titular do direito alegado.
E o próprio Juízo, aliás, veio a dizer, com todas as letras, em decisão
interlocutória, que não se tratava de cobrança alimentar propriamente dita,
escrevendo que “como o valor referente à autora não é alimentar, terá efeito
retroativo à data da decisão de fl. 16.4.2009” (cit. e-STJ fl. 492).
5. - As circunstâncias de ainda não estar realizada a partilha e de o
alimentante deixar rastro documental de astúcia, podendo indigitar má-fé,
410
Jurisprudência da TERCEIRA TURMA
ao realizar os recebimentos em conta-corrente em nome de sua genitora,
não transmuda a verba inadimplida de “pensão compensatória” em “pensão
alimentícia”, embora dessas circunstâncias possam-lhe advir consequências
adversas no decorrer do processo de execução, desprovido da característica de
execução alimentar, quer dizer, ao caso não se aplica o disposto no art. 733, §
ún., do Cód. de Proc. Civil.
6. - Pelo exposto, renovando a manifestação do maior respeito pelo
entendimento da E. Relatora, meu voto acompanha a divergência, deferindo a
ordem de “Habeas Corpus” em prol do paciente.
RECURSO ESPECIAL N. 865.462-RJ (2006/0160759-6)
Relator: Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva
Recorrente: Jorge Luiz Colnaghi
Advogados: Carlos Alexandre Guimarães Pessoa e outro
Diogo José Nolasco Dominguez e outro(s)
Recorrido: Condomínio do Edifício Park Lane
Advogado: Paulo Roberto do Nascimento
EMENTA
Recurso especial. Ação de cobrança de cotas condominiais.
Negativa de prestação jurisdicional. Art. 535 do CPC. Não
ocorrência. Violação de dispositivos constitucionais. Descabimento.
Prequestionamento. Ausência. Súmula n. 211-STJ. Fundamentação
do julgado. Coisa julgada. Não ocorrência. Coisa julgada formal.
Preclusão. Distinção. Doutrina. Débito condominial não previsto no
edital. Arrematação. Responsabilidade pelo pagamento. Precedentes.
1. Não há falar em negativa de prestação jurisdicional se o
Tribunal de origem motiva adequadamente sua decisão, solucionando
a controvérsia com a aplicação do direito que entende cabível à
hipótese, apenas não no sentido pretendido pela parte.
RSTJ, a. 24, (226): 391-505, abril/junho 2012
411
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
2. Compete ao Superior Tribunal de Justiça, em sede de recurso
especial, a análise da interpretação da legislação federal, motivo pelo
qual se revela inviável invocar, nesta seara, a violação de dispositivos
constitucionais porquanto matéria afeta à competência do STF (art.
102, inciso III, da Carta Magna).
3. A ausência de prequestionamento da matéria suscitada no
recurso especial, a despeito da oposição de embargos declaratórios,
impede o conhecimento do recurso especial (Súmula n. 211-STJ).
4. A teor do disposto no art. 469, inciso I, do Código de Processo
Civil, os motivos, ainda que importantes para determinar o alcance da
parte dispositiva do julgado, não fazem coisa julgada.
5. Se a responsabilidade do adquirente do imóvel pelo pagamento
do débito condominial foi utilizada como um dos fundamentos para
o indeferimento de pedido incidental formulado pelo condomínio
nos autos da execução, não há falar em coisa julgada a impedir a
rediscussão da matéria em posterior ação de cobrança.
6. A doutrina especializada ensina que a expressão “coisa julgada
formal” deve ser usada apenas com referência às sentenças. Decisões
interlocutórias sujeitam-se à preclusão, o que impede a rediscussão da
matéria no mesmo processo, mas não em outro.
7. Segundo a jurisprudência desta Corte, em não havendo
ressalvas no edital de praça, não pode ser atribuída ao arrematante
a responsabilidade pelo pagamento das despesas condominiais
anteriores à alienação judicial.
8. Recurso especial conhecido em parte e, nessa parte, provido.
ACÓRDÃO
Vistos e relatados estes autos, em que são partes as acima indicadas, decide
a Terceira Turma, por unanimidade, conhecer em parte do recurso especial e,
nessa parte, dar-lhe provimento, nos termos do voto do(a) Sr(a). Ministro(a)
Relator(a). Os Srs. Ministros Nancy Andrighi, Massami Uyeda, Sidnei Beneti e
Paulo de Tarso Sanseverino votaram com o Sr. Ministro Relator.
412
Jurisprudência da TERCEIRA TURMA
Brasília (DF), 28 de fevereiro de 2012 (data do julgamento).
Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, Relator
DJe 8.3.2012
RELATÓRIO
O Sr. Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva: Trata-se de recurso especial
interposto por Jorge Luiz Colnaghi, com fundamento no art. 105, inciso III,
alínea a, da Constituição Federal, contra acórdão proferido pelo Tribunal de
Justiça do Estado do Rio de Janeiro.
Noticiam os autos que o Condomínio do Edifício Park Lane propôs ação
contra José Augusto Pessoa Salinas, objetivando a condenação ao pagamento
de cotas condominiais atrasadas. Julgada procedente a demanda, na fase de
execução, foi realizada a alienação do bem imóvel objeto da lide, em hasta
pública, tendo sido o imóvel arrematado pelo ora recorrente em 31.7.2001
(e-STJ fl. 40).
O arrematante foi imitido na posse do imóvel em 15.10.2001 (e-STJ fl.
42).
Nos autos da referida execução, foi formulado pelo Condomínio exequente
pedido de levantamento do seu crédito, indeferido (e-STJ fls. 334-339), e
determinado, segundo afirma o Condomínio, “o levantamento integral do
produto da arrematação, em favor do Credor Hipotecário” (e-STJ fl. 202).
Daí a propositura, em 6.6.2002, de nova ação de cobrança de cotas
condominiais - que deu origem aos presentes autos - correspondentes ao
período de janeiro de 1998 a julho de 2001, desta vez contra o ora recorrente, na
qualidade de arrematante do imóvel (e-STJ fls. 30-33).
O juízo de primeiro grau julgou procedente o pedido “para condenar o
réu ao pagamento das cotas vencidas, constantes no pedido inicial e vincendas
até a data do trânsito em julgado desta decisão, acrescidas, a partir da data do
vencimento de cada cota, multa convencional até o limite legal de 20% e juros
moratórios legais, a razão de meio por cento (0,5%) ao mês. Incidente ainda, a
partir do vencimento de cada cota, correção monetária pelos índices das UFIR’s,
calculada anualmente na forma do que dispõe o art. 28 da Lei n. 9.069/1995”
(e-STJ fl. 228).
RSTJ, a. 24, (226): 391-505, abril/junho 2012
413
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
Os embargos de declaração opostos (e-STJ fls. 231-234) foram rejeitados
(e-STJ fl. 236).
Ambas as partes manejaram recursos de apelação (e-STJ fls. 238-247 e
255-272).
O feito foi convertido em diligência, conferindo oportunidade ao
condomínio para que provasse (i) “onde constou o débito condominial, anterior
à arrematação”; (ii) “a ciência pelo arrematante da dívida” e “onde foi atribuído
ao mesmo e não ao proprietário anterior o ônus (...) desta dívida” (e-STJ fls.
310-311).
A Décima Sétima Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado do Rio
de Janeiro conferiu parcial provimento aos recursos em acórdão assim ementado:
Despesas condominiais anteriores à arrematação - Ante a omissão do edital
de arrematação (artigo 686 - V, CPC) e determinação por acórdão (coisa julgada
formal) da liberação de todo o produto da hasta em favor de crédito hipotecário
preferente, resta observar o artigo 4ª parágrafo único, Lei n. 4.591/1964 (1.345,
Novo Código Civil), ressalvando ao novo adquirente subrogação contra o anterior
e o exequente. Proveu-se recurso do arrematante para, sobre débito anterior,
incidirem juros da citação e correção do ajuizamento. Provimento parcial de
ambos os recursos (e-STJ fl. 343).
O ora recorrente opôs embargos de declaração (e-STJ fls. 347-352) que foram
parcialmente acolhidos para fins de prequestionamento (e-STJ fls. 355-356).
Nas razões do especial (e-STJ fls. 359-378), o recorrente aponta violação
dos seguintes dispositivos legais com as respectivas teses:
(i) artigo 535, inciso II, do Código de Processo Civil - argumentando que
houve negativa de prestação jurisdicional ao deixar o Tribunal de origem de
se manifestar acerca de aspectos relevantes da demanda suscitados em sede de
embargos de declaração relacionados com omissões constatadas na sentença de
primeiro grau;
(ii) artigo 458, incisos I e III, do Código de Processo Civil - suscitando
nulidade da sentença de primeiro grau por deficiências no seu relatório e
omissões na sua fundamentação;
(iii) artigo 472 do Código de Processo Civil - defendendo a tese de que
os efeitos da decisão proferida nos autos do agravo de instrumento interposto
em demanda diversa, na qual figurava como parte interessada, não poderiam ter
sido a ele estendidos em virtude dos limites subjetivos da coisa julgada;
414
Jurisprudência da TERCEIRA TURMA
(iv) artigos 264 do Código de Processo Civil e 5º, inciso LV, da
Constituição Federal - ao argumento de que teria havido alteração da causa de
pedir em segundo grau de jurisdição;
(v) artigo 4º da Lei n. 4.591/1964 - considerando que o referido dispositivo
seria inaplicável à hipótese em comento, haja vista que o caso concreto versa
sobre arrematação de imóvel em leilão judicial, não se confundindo com uma
simples alienação ou transferência de direitos;
(vi) artigo 677, parágrafo único, do Código Civil/1916 - sustentando, em
síntese, “que as dívidas de condomínio anteriores à arrematação não são de
responsabilidade do arrematante, uma vez que a hipótese caracteriza-se como
aquisição originária” (e-STJ fl. 370), prova disso é que o artigo apontado como
malferido “dispõe, claramente, que a venda de imóvel em praça não transmite ao
adquirente os impostos devidos por aquele bem” (e-STJ fl. 370) e
(vii) artigo 686, inciso V, do Código de Processo Civil - aduzindo que “o
edital de praça do imóvel arrematado pelo réu omitiu solenemente a informação
quanto a existência de débitos de cotas condominiais, fazendo constar, tão
somente, que o imóvel em questão apresentava débitos de IPTU referente aos
exercícios de 1995 a 2000” (e-STJ fl. 375).
Com as contrarrazões (e-STJ fls. 410-425), e não admitido o recurso na
origem (e-STJ fls. 427-431), foi provido o recurso de agravo de instrumento
para melhor exame do recurso especial em decisão da lavra do Ministro Ari
Pargendler, tendo sido procedida a sua conversão em recurso especial (e-STJ fls.
460 e 464).
É o relatório.
VOTO
O Sr. Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva (Relator): O recurso merece ser
parcialmente conhecido e, nessa parte, provido.
De início, inviável o acolhimento da pretensão recursal no tocante ao art.
535, inciso II, do Código de Processo Civil.
Segundo o recorrente, o Tribunal de origem teria deixado de se pronunciar
acerca de ponto relevante, qual seja, a alegação de nulidade da sentença por
deficiência de fundamentação.
RSTJ, a. 24, (226): 391-505, abril/junho 2012
415
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
O que se verifica dos autos, entretanto, é que o Tribunal de origem rejeitou
expressamente a preliminar de nulidade da sentença, consignando:
(...)
Rejeitamos a preliminar de nulidade da sentença, por conter o essencial
sucinto, a sustentar o decisum. Além do mais os artigos 515-517, CPC (regra
tantum devolutum quantum appelatum) sanam o exame completo das querelas
articuladas (e-STJ fl. 344).
Tendo o acórdão recorrido se manifestado a respeito do ponto considerado
omisso, ainda que não no sentido pretendido pela parte, não há falar em
negativa de prestação jurisdicional.
Sobre o tema, o seguinte precedente:
Civil e Processual Civil. Agravo regimental em agravo de instrumento.
Embargos de declaração. Negativa de prestação jurisdicional. (...)
1. Não há falar em negativa de prestação jurisdicional nos embargos de
declaração, se o Tribunal de origem enfrenta a matéria posta em debate na
medida necessária para o deslinde da controvérsia, ainda que sucintamente. A
motivação contrária ao interesse da parte não se traduz em maltrato ao art. 535
do CPC (...).
(AgRg no Ag n. 1.160.319-MG, Rel. Ministro Vasco Della Giustina
(Desembargador convocado do TJ-RS), Terceira Turma, julgado em 26.4.2011, DJe
6.5.2011).
Registre-se que o entendimento adotado pelo acórdão recorrido está em
consonância com a jurisprudência desta Corte, que há muito se encontra pacificada
no sentido de que, “se os fundamentos do acórdão não se mostram suficientes ou
corretos na opinião do recorrente, não quer dizer que eles não existam. Não pode
confundir ausência de motivação com fundamentação contrária aos interesses da
parte” (AgRg no Ag n. 56.745-SP, Rel. Ministro Cesar Asfor Rocha, Primeira
Turma, julgado em 16.11.1994, DJ 12.12.1994 p. 34.335).
Daí porque afasta-se também a alegada ofensa ao art. 458, inciso II, do
Código de Processo Civil.
Quanto à suposta ofensa ao artigo 5º, inciso LV, da Constituição Federal,
inviável a análise nesta seara.
Nos termos do art. 105, inciso III, da Constituição Federal, compete ao
Superior Tribunal de Justiça, em sede de recurso especial, a análise da interpretação
416
Jurisprudência da TERCEIRA TURMA
da legislação federal, motivo pelo qual se revela inviável invocar nesta seara a
violação de dispositivos constitucionais, porquanto matéria afeta à competência
do Supremo Tribunal Federal (art. 102, inciso III, da Carta Magna).
A propósito:
Agravo regimental. Agravo de instrumento. Embargos à execução.
Indeferimento de prova pericial. Análise de ofensa a dispositivo constitucional.
Impossibilidade. Violação aos arts. 165, 458, II, e 535, II, do CPC. Inocorrência.
Reexame de provas. Impossibilidade. Súmula n. 7-STJ. Sucumbência. Graus de
distribuição. Aferição.
Impossibilidade. Súmula n. 7-STJ.
1. Refoge à competência deste Superior Tribunal de Justiça, a quem a Carta
Política confia a tarefa de unificação do direito federal, apreciar violação a dispositivo
constitucional.
(...)
5. Agravo regimental a que se nega provimento.
(AgRg no Ag n. 1.164.854-RJ, Rel. Ministro Paulo de Tarso Sanseverino, Terceira
Turma, julgado em 21.6.2011, DJe 27.6.2011).
No tocante ao conteúdo normativo do art. 264 do Código de Processo
Civil, não foi debatido no acórdão recorrido, apesar da oposição de embargos
declaratórios.
Desatendido, portanto, o requisito do prequestionamento, nos termos
da Súmula n. 211-STJ: “Inadmissível recurso especial quanto à questão que, a
despeito da oposição de embargos declaratórios, não foi apreciada pelo Tribunal
a quo.”
No que se refere ao tema principal, o Tribunal de origem afastou as
pretensões do recorrente - de se ver livre do pagamento das cotas condominiais
- ao argumento de que a matéria já teria sido apreciada, incidentalmente, nos
autos da ação de execução que originou a venda judicial do bem, em que o
arrematante figurou como interessado, de modo que a reapreciação da matéria
esbarraria na coisa julgada.
Assim dispôs o acórdão recorrido:
“(...)
B) (...) In casu, por se tratar de execução hipotecária, há acórdão, onde figura
o ora R como interessado, a se observar, in verbis: ‘(...) Preferência do crédito
RSTJ, a. 24, (226): 391-505, abril/junho 2012
417
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
hipotecário do exeqüente, sendo o débito condominial obrigação propter rem deve
recair sobre o adquirente do imóvel.
Há, na verdade, coisa julgada formal a respeitar.
“C) Ficamos, realmente, impressionados com a tese do Réu, todavia a questão
já foi resolvida, quanto à responsabilidade deste (...)” (e-STJ fl. 344).
Consoante se extrai dos autos, de fato, na execução em que foi penhorado e
arrematado o bem, passaram a integrar o processo na condição de interessados o
credor hipótecário, Banco Bradesco S.A., e também o arrematante do bem, ora
recorrente.
Naqueles autos, em sede de decisão interlocutória, foi indeferido o pedido
formulado pelo condomínio exequente - de levantamento do valor do crédito
- sob o fundamento de que o crédito hipotecário seria preferencial, tendo
sido consignado, ainda, que, em razão do caráter propter rem da obrigação,
deveria a responsabilidade pelo pagamento do débito condominial recair sobre o
adquirente do imóvel.
Sob tais fundamentos, naquela oportunidade, foi mantida a decisão singular
que indeferiu o pleito do condomínio exequente de levantamento do crédito.
O que se observa, portanto, é que a responsabilidade do arrematante pelo
pagamento do débito condominial foi utilizada como um motivo para que fosse
indeferido o requerimento formulado pelo condomínio.
Ocorre que, como cediço, os fundamentos utilizados na decisão não fazem
coisa julgada, a teor do que dispõe o art. 469 do Código de Processo Civil:
Art. 469. Não fazem coisa julgada:
I - os motivos, ainda que importantes para determinar o alcance da parte
dispositiva da sentença;
II - a verdade dos fatos, estabelecida como fundamento da sentença;
III - a apreciação da questão prejudicial, decidida incidentemente no processo.
Nesse sentido vale citar também a jurisprudência desta Corte:
Processual Civil. Brasil Telecom. Contrato de participação financeira. Subscrição
de ações. Fixação do critério de apuração do valor patrimonial da ação na fase
de cumprimento de sentença. Ofensa à coisa julgada. Não-ocorrência. Agravo
improvido.
1. O instituto da coisa julgada diz respeito ao comando normativo veiculado
no dispositivo da sentença, de sorte que os motivos e os fundamentos, ainda que
418
Jurisprudência da TERCEIRA TURMA
importantes para determinar o alcance da parte dispositiva, não são alcançados pelo
fenômeno da imutabilidade, nos termos do art. 469, do CPC.
2. Não afronta a coisa julgada a decisão que apenas fixa o critério para se
chegar ao que foi determinado pelo dispositivo da decisão exeqüenda.
3. Agravo improvido.
(AgRg no Ag n. 1.011.802-RS, Rel. Ministro Luis Felipe Salomão, Quarta Turma,
julgado em 2.4.2009, DJe 20.4.2009).
Recurso especial. Processual Civil. Embargos do devedor. Execução de título
judicial. Coisa julgada. Divergência entre a fundamentação e o dispositivo do
acórdão exeqüendo. Prevalência deste último.
I - Nos termos do disposto no art. 469, I, do CPC, os motivos, ainda que importantes
para determinar o alcance do dispositivo do julgado, não fazem coisa julgada.
II - Se há divergência entre a fundamentação e o dispositivo do acórdão
exeqüendo, deve prevalecer este último.
Recurso provido.
(REsp n. 823.186-SP, Rel. Ministro Sidnei Beneti, Terceira Turma, julgado em
20.5.2008, DJe 5.8.2008).
Logo, ainda que o arrematante, na condição de interessado, tivesse se
insurgido contra aquela decisão, a fim de alterar-lhe a fundamentação, não
obteria êxito.
Desse modo, não pode prevalecer o entendimento adotado pelo acórdão
recorrido, que entendeu inviável a discussão da matéria em virtude da coisa
julgada.
Apenas a título de registro, anote-se, ainda, a impropriedade do uso da
expressão “coisa julgada formal” empregada pelo acórdão recorrido para designar
a suposta imutabilidade do decidido nos autos daquele agravo de instrumento.
É que o conceito de “coisa julgada formal” melhor se amolda ao fenômeno
que se opera nas sentenças. No tocante às decisões interlocutórias, a regra é a
ocorrência de preclusão, que inviabiliza a discussão do tema no mesmo processo.
Essa é a lição da doutrina especializada: “a expressão ‘coisa julgada formal’
deve ser usada apenas com referência à sentença. Decisões interlocutórias
sujeitam-se a preclusão. A sentença produz coisa julgada formal e,
eventualmente, também coisa julgada material” (TESHEINER, José Maria.
Eficácia da sentença e coisa julgada no processo civil. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2001, p. 68-69).
RSTJ, a. 24, (226): 391-505, abril/junho 2012
419
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
Prossegue o mesmo autor, citando lição de Manoel Caetano Ferreira Filho:
“As decisões que extinguem o processo, decidindo ou não o mérito da causa,
fazem coisa julgada, material ou formal, segundo tenham ou não solucionado
a lide, sendo, pois, errôneo falar-se de preclusão em relação a elas”. “As decisões
proferidas no curso do processo (interlocutórias), quer atinentes ao mérito, quer
atinentes às questões processuais, não fazem coisa julgada, nem mesmo no sentido
formal. Em relação às decisões interlocutórias o que se produz é a preclusão, que as
torna imutáveis no mesmo processo em que foram proferidas” (TESHEINER, ob. cit.,
p. 69).
Assim já decidiu esta Corte:
Coisa julgada material. Lide.
A coisa julgada material refere-se ao julgamento proferido relativamente a lide,
como posta na inicial, delimitada pelo pedido e causa de pedir. Não atinge decisões
de natureza interlocutória, que se sujeitam a preclusão, vedado seu reexame no
mesmo processo mas não em outro.
Alienação de bem. Despesas de condomínio.
Ainda na vigência da primitiva redação do paragrafo único do artigo 4º da
Lei n. 4.591/1965, a responsabilidade assumida pelo adquirente do bem não
significava ficasse exonerado o primitivo proprietário.
(REsp n. 7.128-SP, Rel. Ministro Eduardo Ribeiro, Terceira Turma, julgado em
13.8.1991, DJ 16.9.1991, p. 12.631).
Assim, também por esse motivo não poderiam prevalecer as conclusões do
Tribunal de origem acerca da impossibilidade de rediscussão da matéria.
De qualquer sorte, depreende-se do acórdão recorrido que, apesar de ter
utilizado o fundamento da existência coisa julgada, para julgar procedente a ação
de cobrança, o Tribunal de origem ingressou no exame do mérito, encampando
as conclusões alcançadas naquele outro recurso no sentido da responsabilidade
do arrematante pelo pagamento do débito condominial, o que permite a análise
do tema por este Tribunal Superior.
Nesse particular, a orientação adotada pelas instâncias ordinárias diverge
da jurisprudência desta Corte que firmou orientação no sentido de que, em
não havendo ressalvas no edital de praça, não pode ser atribuída ao arrematante
a responsabilidade pelo pagamento das despesas condominiais anteriores à
alienação judicial.
Nesse sentido, recente julgado desta Terceira Turma:
420
Jurisprudência da TERCEIRA TURMA
Processo Civil. Recurso especial. Alienação em hasta pública.
Despesas condominiais anteriores à aquisição do imóvel. Dívida não
mencionada no edital. Sub-rogação sobre o produto da arrematação. Reserva de
valores.
1. As dívidas condominiais anteriores à alienação judicial - não havendo ressalvas
no edital de praça - serão quitadas com o valor obtido com a alienação judicial
do imóvel, podendo o arrematante pedir a reserva de parte desse valor para o
pagamento das referidas dívidas.
2. Recurso especial provido.
(REsp n. 1.092.605-SP, Rel. Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em
28.6.2011, DJe 1º.8.2011).
Trata-se de entendimento consentâneo com os princípios da segurança
jurídica e da proteção da confiança, que prestigia o instituto da alienação em
hasta pública, conforme assentado no citado precedente, ainda que se considere
a natureza propter rem da obrigação.
Assim, vale colacionar, ainda, os seguintes julgados:
Embargos de declaração no recurso especial. Acolhimento. Efeitos
infringentes. Ação declaratória de inexigibilidade de débito não previsto no
edital. Responsabilidade. Precedentes. Não provimento do recurso especial.
I. Se a dívida constou do edital de praça, o arrematante é responsável pelos débitos
condominiais anteriores à arrematação, caso contrário, poderá ser feita a reserva de
parte do produto da arrematação para a quitação da mesma. Precedentes.
II. Embargos de Declaração acolhidos, com efeitos infringentes, negando
provimento ao Recurso Especial.
(EDcl no REsp n. 1.044.890-RS, Rel. Ministro Sidnei Beneti, Terceira Turma,
julgado em 2.12.2010, DJe 17.2.2011).
Recurso especial. Execução. Praça. Arrematação. Débitos fiscais e condominiais.
Responsabilidade do arrematante, desde que haja previsão expressa no edital.
Precedentes do STJ. Hipótese ocorrente, na espécie. Dissídio jurisprudencial não
demonstrado. Recurso improvido.
I - Em regra, o preço apurado na arrematação serve ao pagamento do IPTU
e de taxas pela prestação de serviços incidentes sobre o imóvel (art. 130 e 130,
parágrafo único, do CTN);
II - Contudo, havendo expressa menção no edital acerca da existência de débitos
condominiais e tributários incidentes sobre o imóvel arrematado, a responsabilidade
pelo seu adimplemento transfere-se para o arrematante;
RSTJ, a. 24, (226): 391-505, abril/junho 2012
421
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
III - No tocante ao alegado dissídio jurisprudencial, é certo que não houve
cotejo analítico, bem como não restou demonstrada a perfeita similitude fática
entre o acórdão impugnado e os paradigmas colacionados;
IV - Recurso especial improvido.
(REsp n. 1.114.111-RJ, Rel. Ministro Massami Uyeda, Terceira Turma, julgado em
20.10.2009, DJe 4.12.2009).
Processo Civil. Recurso especial. Arrematação. Crédito hipotecário. Crédito
oriundo de despesas condominiais em atraso. Preferência. Débito condominial
não mencionado no edital. Responsabilidade pelo pagamento.
(...)
- A responsabilidade pelo pagamento de débitos condominiais e tributários
existentes sobre imóvel arrematado, mas que não foram mencionados no edital de
praça, não pode ser atribuída ao arrematante.
- Se débito condominial não foi mencionado no edital de praça pode ser feita a
reserva de parte do produto da arrematação para a quitação do mesmo.
Recurso especial não conhecido.
(REsp n. 540.025-RJ, Rel. Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em
14.3.2006, DJ 30.6.2006, p. 214).
Ante o exposto, conheço do recurso especial em parte e, nessa parte, doulhe provimento para julgar improcedente a ação de cobrança.
O autor arcará com os ônus da sucumbência e honorários advocatícios
fixados em R$ 4.000,00 (quatro mil reais).
É o voto.
RECURSO ESPECIAL N. 1.153.702-MG (2009/0164305-1)
Relator: Ministro Paulo de Tarso Sanseverino
Recorrente: Estado de Minas Gerais
Procurador: Christiano Amaro Corrêa e outro(s)
Recorrido: Ana Maria Prado Motta e outro
Advogado: João Águido Ribeiro do Valle
422
Jurisprudência da TERCEIRA TURMA
EMENTA
Recurso especial. Ação de cobrança. Cédula de Crédito Rural.
Estado de Minas Gerais como sucessor do Banco do Estado de Minas
Gerais S/A (Bemge). Inaplicabilidade do Decreto n. 20.910/1932.
Norma específica restrita às hipóteses elencadas. Cessão de crédito.
Regime jurídico do cedente. Aplicação dos prazos de prescrição do
Código Civil de 1916 e de 2002. Incidência da norma de transição do
art. 2.028 CC. Prescrição não implementada.
1. Ação ordinária de cobrança movida pelo Estado de Minas
Gerais, como sucessor do Banco do Estado de Minas Gerais S/A
(Bemge), proposta em julho de 2007, de dívida estampada em cédula
de crédito rural, vencida em julho de 1998.
2. Inexistência de violação ao art. 535 do CPC quando o Tribunal
de origem manifesta-se de forma clara e suficiente acerca da matéria
que lhe é submetida a apreciação, sendo desnecessário ao magistrado
rebater cada um dos argumentos declinados pela parte.
3. Inaplicabilidade do Decreto n. 20.910/1932 quando a Fazenda
Pública seja credora, pois, por ser norma especial, restringe-se sua
aplicação às hipóteses em que os entes públicos sejam devedores (art.
1º).
4. Na cessão de crédito, o regime jurídico aplicável é o do cedente,
e não o do cessionário.
5. O prazo prescricional da ação de execução de cédula de crédito
rural seria de três anos, a contar do vencimento (art. 60 do DecretoLei n. 167/1967 e art. 70 do Decreto n. 57.663/1966).
6. Prescrita a execução, permite-se o manejo da ação ordinária
de cobrança, ajuizada no prazo geral de prescrição das ações pessoais,
previsto no Código Civil de 1916, que era de vinte anos.
7. Com a vigência do Código Civil de 2002, o prazo prescricional
passou a ser de cinco anos, na forma do art. 206, § 5º, I (“prescreve em
cinco anos a pretensão de cobrança de dívidas líquidas constantes de
instrumento público ou particular).
8. Aplicação da regra de transição acerca da prescrição,
considerando-se interrompido o prazo na data do início da vigência
RSTJ, a. 24, (226): 391-505, abril/junho 2012
423
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
do Código Civil de 2002 (11.1.2003) e passando a fluir, desde então, a
prescrição quinquenal do novo estatuto civil.
9. Inocorrência de prescrição, na espécie, pois a ação de cobrança
foi ajuizada em julho de 2007.
10. Doutrina de Câmara Leal acerca do tema e precedentes desta
Corte.
11. Recurso especial provido.
ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos os autos em que são partes as acima indicadas,
acordam os Ministros da Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça, por
unanimidade, dar provimento ao recurso especial, nos termos do voto do(a) Sr(a)
Ministro(a) Relator(a). Os Srs. Ministros Ricardo Villas Bôas Cueva, Nancy
Andrighi, Massami Uyeda e Sidnei Beneti votaram com o Sr. Ministro Relator.
Brasília (DF), 10 de abril de 2012 (data do julgamento).
Ministro Paulo de Tarso Sanseverino, Relator
DJe 10.5.2012
RELATÓRIO
O Sr. Ministro Paulo de Tarso Sanseverino: Trata-se de recurso especial
interposto pelo Estado de Minas Gerais contra acórdão do Tribunal de Justiça de
Minas Gerais, assim ementado (fl. 351):
Comercial, Administrativo e Processual Civil. Ação de cobrança. “Cédula Rural
Hipotecária”. Bemge S/A. Cessão de crédito ao Estado de Minas Gerais. Aplicação da
prescrição quinquenal. Configuração. Resolução do mérito. Inteligência do art. 1º do
Decreto Lei n. 20.910/1932 e art. 269, IV do CPC. Todo e qualquer direito ou ação
da Fazenda Pública, seja qual for a sua natureza, prescreve em 05 (cinco) anos,
portanto, neles se incluem os créditos e débitos cedidos pelo Bemge S/A ao Estado
de Minas Gerais, que, desde a data da cessão do crédito, passaram a pertencer à
Fazenda Estadual, impondo-se, portanto, observância ao lapso prescricional do
Ente Estatal, previsto em lei, razão pela qual a pretensão de recebimento de valor
constante de “Cédula de Crédito Rural Hipotecária” encontra-se alcançada pela
causa extintiva.
424
Jurisprudência da TERCEIRA TURMA
Opostos embargos de declaração, foram rejeitados (fls. 375-378).
Versa a questão, na origem, acerca de ação de cobrança ajuizada pelo
Estado de Minas Gerais em desfavor de Daltro Lisboa Motta e outro com
esteio em cédula de crédito rural que lhe fora cedida pelo Banco do Estado de
Minas Gerais - Bemge.
O Juiz sentenciante julgou os pedidos parcialmente procedentes para
excluir a incidência de comissão de permanência na atualização da dívida e
condenar os réus a pagar o débito constante na cédula de crédito rural (fl. 307).
Em julgamento de apelações recíprocas, o TJMG reformou a sentença por
entender exaurido o prazo prescricional disciplinador da matéria, que seria de
cinco anos, conforme art. 1º do Decreto n. 20.910/1932 (fls. 347-359).
No recurso especial, interposto com fundamento nas alíneas a e c do
permissivo constitucional, a recorrente alega violação dos: (a) art. 535, II, do
CPC, alegando ausência de prestação jurisdicional; (b) art. 1º do Decreto n.
20.910/1932, sustentando não incidir o prazo prescricional desse dispositivo
legal, por se tratar de relação jurídica calcada em título de crédito em que o
Estado é credor, regulada pelo Código Civil e (c) art. 2º do CPC, aduzindo
inobservância do princípio dispositivo, eis que não teria havido alegação de
incidência do prazo prescricional do Decreto n. 20.910/1932. Aduz, também,
dissídio pretoriano (fls. 381-398).
Certidão de não-interposição de contrarrazões à fl. 425.
É o relatório.
VOTO
O Sr. Ministro Paulo de Tarso Sanseverino (Relator): Eminentes colegas, o
recurso especial merece parcial provimento.
Quanto ao art. 535 do CPC, a irresignação não merece acolhida, pois
as questões submetidas ao Tribunal a quo foram suficiente e adequadamente
apreciadas, com abordagem integral do tema e fundamentação compatível.
Amolda-se à espécie, pois, ao entendimento pretoriano consolidado
no sentido de que, “quando o Tribunal de origem, ainda que sucintamente,
pronuncia-se de forma clara e suficiente sobre a questão posta nos autos, não
se configura ofensa ao artigo 535 do CPC. Ademais, o magistrado não está
obrigado a rebater, um a um, os argumentos trazidos pela parte” (AgRg no Ag
RSTJ, a. 24, (226): 391-505, abril/junho 2012
425
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
n. 1.265.516-RS, Rel. Min. João Otávio de Noronha, Quarta Turma, DJ de
30.6.2010).
Relativamente ao art. 2º do CPC e ao art. 1º do Decreto n. 20.910/1932,
o acórdão recorrido solucionou a controvérsia ao entendimento de que, “por
envolver direito afeto à Fazenda Pública”, aplicar-se-ia a prescrição quinquenal
(fl. 354).
Contudo, tenho que esse entendimento não deve prevalecer.
Em primeiro lugar, o Decreto n. 20.910/1932 é norma especial, aplicável
restritamente às hipóteses ali previstas, quais sejam, as situações em que o ente
público for sujeito passivo do débito, in verbis:
Art. 1º. As dívidas passivas da União, dos Estados e dos Municípios, bem assim
todo e qualquer direito ou ação contra a Fazenda Federal, Estadual ou Municipal,
seja qual for a sua natureza, prescrevem em cinco anos contados do ato ou fato
do qual se originaram.
Assim, em decorrência de sua especificidade normativa, não tem esse
dispositivo legal o condão de incidir em outras situações jurídicas que não sejam
as expressamente elencadas.
Na espécie, encontra-se o Estado de Minas Gerais na condição de credor
de uma obrigação inadimplida e, consequentemente, autor da correspondente
ação de cobrança.
Tenho, assim, que se mostra inaplicável a referida previsão legislativa, por
não se enquadrar na hipótese legal.
É bem verdade que há precedentes da 1ª Seção deste Superior Tribunal
aplicando o referido Decreto quando credora a União, inclusive para cobrança
de débitos oriundos de Cédulas de Créditos Rurais cedidos à União por
instituições financeiras oficiais, em casos muito similares ao presente, como se vê
das seguintes ementas:
Recurso especial. Administrativo. Prequestionamento. Ausência. Ofensa ao
artigo 535 do CPC. Alegação. Ausência. Súmula n. 211-STJ. Prescrição. Dívida ativa
não-tributária. Execução fiscal. Decreto n. 20.910/1932. Aplicação.
1. Não houve pronunciamento sobre o disposto nos artigos 2º da Lei n.
6.830/1980, 39 da Lei n. 4.320/1964, 4º da Lei de Introdução ao Código Civil,
e 126 e 127, ambos do Código de Processo Civil, e, a despeito da interposição
de embargos de declaração nas instâncias ordinárias, o Tribunal de origem
permaneceu silente sobre a questão aventada no recurso especial.
426
Jurisprudência da TERCEIRA TURMA
2. Outrossim, nas razões do recurso especial não se apontou negativa de
prestação jurisdicional em relação à sobredita tese, com base no art. 535 do CPC,
omissão esta que só ratifica a impossibilidade de apreciação de tal matéria de
direito, em recurso especial.
Inteligência da Súmula n. 211-STJ. Precedentes.
3. O prazo prescricional para a Fazenda Pública cobrar dívidas não-tributárias
é quinquenal, em observância ao que dispõe o art. 1º do Decreto n. 20.910/1932.
Precedentes.
4. Recurso especial parcialmente conhecido e, nesta parte, não provido.
(REsp n. 1.197.850-SP, Rel. Ministro Castro Meira, Segunda Turma, julgado em
24.8.2010, DJe 10.9.2010).
Processual Civil e Administrativo. Ofensa ao art. 535 do CPC não configurada.
Execução fiscal. Dívida ativa não tributária. Crédito Rural. Prescrição. Lei Uniforme
de Genebra. Art. 177 do CC/1916. Inaplicabilidade.
1. A solução integral da controvérsia, com fundamento suficiente, não
caracteriza ofensa ao art. 535 do CPC.
2. Controverte-se nos autos a respeito da prescrição relativa ao crédito rural
adquirido pela União nos termos da Medida Provisória n. 2.196-3/2001.
3. O art. 70 da Lei Uniforme de Genebra, aprovada pelo Decreto n.
57.663/1966, fixa em três anos a prescrição do título cambial. A prescrição da
ação cambiariforme, no entanto, não fulmina o próprio crédito, que poderá ser
perseguido por outros meios.
4. A União, cessionária do crédito rural, não está a executar a Cédula de Crédito
Rural (de natureza cambiária), mas a dívida oriunda de contrato, razão pela qual
pode se valer do disposto no art. 39, § 2º, da Lei n. 4.320/1964 e, após efetuar a
inscrição na sua dívida ativa, buscar sua satisfação por meio da Execução Fiscal,
nos termos da Lei n. 6.830/1980.
5. No sentido da viabilidade da Execução Fiscal para a cobrança do crédito
rural posicionou-se a Seção de Direito Público do STJ, ao julgar, no âmbito dos
recursos repetitivos, o REsp n. 1.123.539-RS.
6. Superadas essas questões, permanece uma a ser solucionada: afastado
o prazo de prescrição da Lei Uniforme de Genebra, o da aplicabilidade, como
pretende a recorrente, do prazo vintenário previsto no Código Civil/1916 e
reduzido para 10 anos, nos termos do Novo Código Civil.
7. Defende-se a tese de que existe peculiaridade justificadora da incidência
das normas do Código Civil, qual seja o fato de que se trata de crédito de natureza
privada, posteriormente cedido à União.
Portanto, ao contrário das multas administrativas ou da taxa de ocupação –
que representam créditos titularizados, desde o início, pela União, e em torno
RSTJ, a. 24, (226): 391-505, abril/junho 2012
427
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
dos quais se firmou jurisprudência quanto à aplicação do prazo prescricional
previsto no art. 1º do Decreto n. 20.910/1932 –, os direitos relativos ao crédito
rural são de natureza privada, pois titularizados por instituições financeiras que,
posteriormente, cederam seus direitos em favor do ente federativo.
8. A transferência de titularidade não teria o condão de alterar o regime jurídico
da prescrição, porquanto na sub-rogação operada viriam em conjunto os mesmos
direitos, ações, privilégios e garantias que o primitivo credor possuía em relação à
dívida contra o devedor principal e os fiadores (art. 384 do Novo Código Civil).
9. A tese fazendária convida à seguinte reflexão: pode a norma inserta no art.
384 do Código Civil ser aplicada indistintamente quando o cessionário – no caso,
a União – exerce suas prerrogativas de Poder Público?
10. Nessa circunstância específica, a questão deveria ser disciplinada
exaustivamente por lei, em função da submissão da Administração Pública ao
princípio da legalidade.
11. Não há, contudo, previsão legal a respeito da prescrição para cobrança de
créditos de natureza privada posteriormente adquiridos pela Fazenda Pública e
por ela submetidos ao regime jurídico administrativo.
12. Data venia, o argumento de que o crédito passou a ser titularizado pela
Fazenda Nacional com as mesmas feições iniciais que existiam a favor do Banco
do Brasil conduz à perplexidade.
13. Com efeito, se fosse assim, como justificar a inscrição em dívida ativa da
União e a utilização da Execução Fiscal para a cobrança de crédito privado? Como
aceitar a possibilidade de registro no Cadin e as restrições ao fornecimento de
CND quando houver pendências em relação ao crédito privado? E mais: como
defender a incidência do Decreto-Lei n. 1.025/1969 na cobrança de crédito
privado?
14. Por essa razão, a controvérsia deve ser solucionada com base nos seguintes
parâmetros: a) preservação da harmonia do sistema jurídico; e b) falta de direito
adquirido ao regime jurídico de cobrança do crédito.
15. Insisto no fato de que não se trata de mera alteração do titular do crédito
(sujeito de Direito privado para sujeito de Direito público), mas sim de alteração
no próprio regime jurídico de cobrança do mencionado crédito.
16. Conforme já referido, o STJ firmou orientação de que inexiste ilegalidade
ou inconstitucionalidade na cobrança do crédito rural por meio da Execução
Fiscal.
17. Ora, se a cobrança do crédito em tela teve alterado o regime jurídico, contra
o qual, não me canso de reiterar, não há direito adquirido, deve-se preservar a
harmonia do sistema.
18. Por esse motivo, entendo que haveria quebra de unidade – e que inclusive
a atuação do Poder Judiciário seria equiparável à do legislador positivo – se,
428
Jurisprudência da TERCEIRA TURMA
na cobrança de crédito submetido a regime jurídico de direito publicista, fosse
adotada a norma concernente à prescrição conforme disciplina do Código Civil.
Dito de outro modo, a aplicação de prazo que não o previsto no art. 1º do Decreto
n. 20.910/1932 dependeria de expressa previsão do legislador.
19. Assim, de forma a manter coerência com a orientação jurisprudencial
do STJ, a prescrição da dívida ativa de natureza não tributária é qüinqüenal,
aplicando-se o disposto no art. 1º do Decreto n. 20.910/1932.
20. Em síntese, por não se tratar de execução de título cambial, e sim de
dívida ativa da Fazenda Pública, de natureza não tributária, deve incidir, na forma
dos precedentes do STJ, o prazo prescricional previsto no art. 1º do Decreto n.
20.910/1932.
21. Ainda que se cogitasse de aplicar o prazo trienal, há de se prestigiar o
entendimento pacificado no STJ de que a inadimplência de parcela do contrato
não antecipa o prazo prescricional, prevalecendo a data de vencimento
contratualmente estabelecida.
22. Recurso Especial parcialmente provido.
(REsp n. 1.175.059-SC, Rel. Ministro Herman Benjamin, Segunda Turma, julgado
em 5.8.2010, DJe 1º.12.2010).
Entretanto, como devidamente explanado nos votos proferidos quando do
julgamento desses precedentes, a questão julgada pela Seção de Direito Público
traz uma peculiaridade que a diferencia sobremaneira do presente caso, qual
seja, a inscrição do devedor cambial na dívida ativa da União, utilizando-se o
ente público, por conseguinte, do processo de execução fiscal para cobrar o que
julgava ser-lhe devido, entendendo-se pela possibilidade de utilização dessa
espécie processual específica.
No presente caso, o Estado de Minas Gerais não se utilizou desse
procedimento administrativo, de inscrição na dívida ativa, optando por ajuizar
ação de cobrança da dívida constante no próprio título cambiariforme, razão
pela qual não há que se falar em possível utilização desses precedentes à espécie.
Ademais, o fato de ter sido a Cédula Rural cedida, deixando o banco de ser
credor e transmitindo o seu status para um ente federado, tem o mesmo sentido
jurídico de a cessão de crédito dar-se entre dois particulares, não implicando na
transmudação do regime jurídico material, permanecendo hígido o sistema legal
acerca desse título cambial, portanto, incidentes as normas de quando pactuada
a relação jurídica.
Essa conclusão é corroborada pelo Código Civil, em seu art. 294, ao
estabelecer que ao devedor é permitida a oposição de exceções que porventura
RSTJ, a. 24, (226): 391-505, abril/junho 2012
429
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
tenha não só quanto ao cessionário mas também quanto ao cedente, assim
disposto:
Art. 294. O devedor pode opor ao cessionário as exceções que lhe competirem,
bem como as que, no momento em que veio a ter conhecimento da cessão, tinha
contra o cedente.
Essa disposição legal já constava no anterior Código Civil, em seu artigo
1.072, que asseverava:
Art. 1.072. O devedor pode opor tanto ao cessionário como ao cedente as
exceções que lhe competirem no momento em que tiver conhecimento da
cessão; mas, não pode opor ao cessionário de boa-fé a simulação do cedente.
Nesse exato sentido já se manifestou esta egrégia 3ª Turma, em julgado sob
a relatoria do Min. Sidnei Beneti, assim ementado:
Direito Civil e Processual Civil. Cessão de crédito. Ausência de notificação ao
devedor. Consequências.
I - A cessão de crédito não vale em relação ao devedor, senão quando a este
notificada.
II - Isso não significa, porém, que a dívida não possa ser exigida quando faltar a
notificação. Não se pode admitir que o devedor, citado em ação de cobrança pelo
cessionário da dívida, oponha resistência fundada na ausência de notificação.
Afinal, com a citação, ele toma ciência da cessão de crédito e daquele a quem
deve pagar.
III - O objetivo da notificação é informar ao devedor quem é o seu novo
credor, isto é, a quem deve ser dirigida a prestação. A ausência da notificação
traz essencialmente duas consequências: Em primeiro lugar dispensa o devedor
que tenha prestado a obrigação diretamente ao cedente de pagá-la novamente
ao cessionário. Em segundo lugar permite que devedor oponha ao cessionário
as exceções de caráter pessoal que teria em relação ao cedente, anteriores à
transferência do crédito e também posteriores, até o momento da cobrança
(inteligência do artigo 294 do CC/2002).
IV - Recurso Especial a que se nega provimento. (REsp n. 936.589-SP, Rel.
Ministro Sidnei Beneti, Terceira Turma, julgado em 8.2.2011, DJe 22.2.2011).
Da mesma forma, a 4ª Turma desta Corte Superior já analisou a questão, ao
menos em duas oportunidades, acerca do regime jurídico quando da ocorrência
de cessão, em ambas assentando seu entendimento de que o regime jurídico do
prazo prescricional deve ser o do cedente, e não o do cessionário.
430
Jurisprudência da TERCEIRA TURMA
Anotem-se os seguintes precedentes:
Direito Civil. Execução de honorários advocatícios sucumbenciais. Prescrição.
Sucessão das obrigações da Minas Caixa pelo Estado de Minas Gerais. Prazo
aplicável. Art. 25, inciso II, da Lei n. 8.906/1994 (EOAB). Decretação da liquidação
extrajudicial. Interrupção do prazo de prescrição (art. 18, e, da Lei n. 6.024/1974).
Fluência retomada do início a partir do término do regime de liquidação.
Pagamento administrativo a menor. Renúncia tácita ao prazo prescricional.
1. Cuidando-se de sucessão de obrigações, o regime de prescrição aplicável
é o do sucedido e não o do sucessor, nos termos do que dispõe o art. 196 do
CC/2002 (correspondente ao art. 165 do CC/1916): “A prescrição iniciada contra
uma pessoa continua a correr contra o seu sucessor”. Assim, o prazo prescricional
aplicável ao Estado de Minas Gerais é o mesmo aplicável à Minas Caixa, nas
obrigações assumidas pelo primeiro em razão da liquidação extrajudicial da
mencionada instituição financeira.
2. No caso, a prescrição relativa a honorários de sucumbência é, de fato,
quinquenal, mas não por aplicação do art. 1º do Decreto n. 20.910/1932, mas à
custa da incidência do art. 25, inciso II, da Lei n. 8.906/1994 (EOAB), que prevê a
fluência de idêntico prazo a contar do trânsito em julgado da decisão que fixar a
verba. Precedentes.
3. Porém, a decretação da liquidação extrajudicial de instituições financeiras
produz, de imediato, o efeito de interromper a prescrição de suas obrigações (art.
18, alínea e, da Lei n. 6.024/1974), consectário lógico da aplicação da teoria da
actio nata, segundo a qual não corre a prescrição contra quem não possui ação
exercitável em face do devedor. É que a decretação da liquidação extrajudicial
também induz suspensão das ações e execuções em curso contra a instituição
e a proibição do aforamento de novas (art. 18, alínea a, da Lei n. 6.024/1974).
Precedentes.
4. Com efeito, não possuindo o credor ação exercitável durante o prazo em que
esteve a Minas Caixa sob regime de liquidação extrajudicial, descabe cogitar-se
de fluência de prazo de prescrição do seu crédito nesse período.
5. Não fosse por isso, ainda que escoado o prazo prescricional de cinco anos
depois do término da liquidação extrajudicial da Minas Caixa, o pagamento
administrativo realizado pelo sucessor (Estado de Minas Gerais) há de ser
considerado renúncia tácita à prescrição.
Precedentes.
6. Recuso especial não provido.
(REsp n. 1.077.222-MG, Rel. Ministro Luis Felipe Salomão, Quarta Turma,
julgado em 16.2.2012, DJe 12.3.2012).
RSTJ, a. 24, (226): 391-505, abril/junho 2012
431
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
Processual Civil. Agravo regimental no agravo de instrumento. Recurso especial.
Remuneração da caderneta de poupança. Ação intentada contra o Estado de
Minas Gerais, sucessor da Minascaixa. Relação de direito privado. Competência da
2ª Seção. Precedente. Prescrição vintenária. Precedentes. Desprovimento.
I. Matéria de competência das Turmas integrantes da 2ª Seção do STJ.
II. Sujeitando-se a autarquia estadual, que desenvolvia atividade bancária, ao
mesmo regime de prescrição aplicável às pessoas jurídicas de direito privado, a
sua extinção e sucessão pelo Estado de Minas Gerais não implica em alteração
do lapso extintivo do direito de ação dos antigos depositantes em caderneta de
poupança que vindicam expurgos inflacionários sobre seus depósitos.
III. A jurisprudência iterativa desta Corte é no sentido de adotar o prazo
prescricional de vinte anos, pois os juros e a correção monetária, creditados a
menor, representam o próprio capital depositado e não simplesmente acessórios.
IV. Agravo regimental a que se nega provimento.
(AgRg no Ag n. 1.113.989-MG, Rel. Ministro Aldir Passarinho Junior, Quarta
Turma, julgado em 17.3.2011, DJe 23.3.2011).
Quando do julgamento desse REsp n. 1.077.222-MG, o Min. Luis Felipe
Salomão constou em seu voto contundente reflexão acerca da questão, assim
dispondo:
O único artigo de lei indicado como violado, art. 1º do Decreto n. 20.910/1932,
que prevê prescrição quinquenal para as dívidas fazendárias, não se aplica ao
caso concreto, uma vez que a obrigação executada não é originariamente da
pessoa jurídica de direito público ora recorrente, mas do seu antecessor, Minas
Caixa.
Aplica-se antiga e conhecida regra de Direito Civil segundo a qual, cuidando-se
de sucessão de obrigações, o regime de prescrição aplicável é o do sucedido e não
o do sucessor, nos termos do que dispõe o art. 196 do CC/2002 (correspondente
ao art. 165 do CC/1916): “A prescrição iniciada contra uma pessoa continua a
correr contra o seu sucessor”.
Em suma, o regime jurídico aplicável é o do sucedido, e não o do sucessor;
o do cedente, e não o do cessionário.
De outro modo, não se pode perder o foco de que a presente ação de
cobrança pauta-se em título de crédito especial (cédula de crédito rural) cuja
relação jurídica primeva é fulcrada no direito privado, de cunho empresarial,
com normas específicas a lhe regerem, conforme entendimento deste Superior
Tribunal:
432
Jurisprudência da TERCEIRA TURMA
Direito Comercial. Cédula de Crédito Rural. Natureza jurídica. Direito Cambial.
Art. 60, Decreto-Lei n. 167/1967.
Consoante o teor do art. 60, do Decreto-Lei n. 167/1967, a Cédula de Crédito
Rural sujeita-se ao regramento do Direito Cambial, aplicando-se-lhe, inclusive, o
instituto do aval. Precedentes. Recurso especial provido.
(REsp n. 747.805-RS, Rel. Ministro Paulo Furtado (Desembargador convocado
do TJ-BA), Terceira Turma, julgado em 2.3.2010, DJe 11.3.2010).
E o título de crédito rural, nos termos do art. 60 do Decreto-Lei n.
167/1967 c.c. art. 70 do Decreto n. 57.663/1966 (Lei Uniforme de Genebra),
pode ser executado no prazo de três anos, conforme já devidamente assentado,
há bastante tempo, pelo Superior Tribunal de Justiça:
Comercial. Cédula Rural Hipotecária. Prescrição. Interrupção do prazo.
I. A prescrição da Cédula de Crédito Rural é regida pela Lei Uniforme.
II. Interposta ação declaratória, interrompe-se a fluência do prazo de prescrição
da cédula.
III. Recurso especial conhecido e provido.
(REsp n. 167.779-SP, Rel. Ministro Aldir Passarinho Junior, Quarta Turma,
julgado em 10.10.2000, DJ 12.2.2001, p. 119).
Contudo, o que não encontra previsão em quaisquer desses diplomas
legislativos é o prazo para ação de cobrança do débito cartularizado no título
quando já não mais possível o manejo da ação executiva, ou seja, quando
transcorridos os três anos ali estabelecidos.
Dessa forma, como regra de hermenêutica, tenho que incidente à espécie
as regras gerais acerca da prescrição, que são as estabelecidas no Código Civil de
1916, vigente à época do vencimento do título, ocorrido em 28.7.1998.
Por inexistir prazo específico no rol do art. 178 do Código Civil de 1916,
incidente a regra geral do seu art. 177, que estabelece ser de vinte anos o prazo
prescricional relativo às ações pessoais.
Finalmente, na doutrina, por todos, corroborando o raciocínio aqui
desenvolvido, ao analisar exatamente essa questão, Antônio Luís da Câmara
Leal, em sua obra clássica acerca do tema (Da prescrição e da decadência, Rio de
Janeiro: Forense, 1978, 3ª ed, página 298), anotou o seguinte:
Entendemos, pois, que as ações que competem à União, aos Estados e aos
Municípios contra particulares, não subordinadas a prazo especial, prescrevem
RSTJ, a. 24, (226): 391-505, abril/junho 2012
433
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
em vinte anos, quando pessoais, e em que quinze ou dez, quando reais, segundo
a regra geral do art. 177 do Cód. Civil.
No caso, o vencimento da cédula rural deu-se em 28.7.1998, sendo que em
11.1.2003, teve início a vigência do atual Código Civil, tendo transcorrido, até
então, aproximadamente quatro anos e seis meses do prazo, menos, portanto, da
metade do anterior prazo, a ensejar a incidência da norma de transição disposta
no art. 2.028 do Código Civil.
No Código Civil de 2002, passou-se a ter regra específica acerca dessa
situação, sem correspondente no Código Civil de 1916, que é o enunciado
normativo do art. 206, § 5º, I, com o seguinte teor:
Art. 206. Prescreve:
(...)
§ 5º Em cinco anos:
I - a pretensão de cobrança de dívidas líquidas constantes de instrumento
público ou particular;
Assim, com fulcro na regra do art. 206, § 5º, I, do Código Civil, passou a
ser de cinco anos o prazo prescricional na presente hipótese, interrompido em
11.1.2003 e findando em 11.1.2008.
Tendo em vista que a presente ação de cobrança foi ajuizada em 31.7.2007
(fl. 5), não se verificou a ocorrência da prescrição no caso concreto.
Por isso, merece ser provido o presente recurso especial.
Ante o exposto, dou provimento ao recurso especial para afastar a prescrição e
determinar o retorno dos autos à origem para que prossiga no julgamento das apelações
interpostas pelas duas partes.
É o voto.
VOTO-VOGAL
O Sr. Ministro Massami Uyeda: Sr. Presidente, estou inteiramente
de acordo com o posicionamento de Vossa Excelência, porque dizer que a
prescrição quinquenal dos créditos, ou dos débitos fiscais, aplicar-se-ia a uma
cédula de crédito rural exatamente pela mudança da posição ativa do credor,
porque o credor passou a ser o Estado e, por ser o Estado, então, perde essa
434
Jurisprudência da TERCEIRA TURMA
prerrogativa de propor uma ação de cobrança com maior prazo, creio que
estamos começando a confundir a natureza desse instituto.
Na origem, não é débito ou crédito estatal, do Poder Público. Era um
crédito comum, um débito comum, um empréstimo representado por uma
cédula, apenas o Governo do Estado é que adquiriu por uma cessão e, por ter
adquirido, então, transmutou a natureza disso em título executivo, fiscal? Não.
Nesse caso, Vossa Excelência deu uma interpretação bem centrada, até
mesmo contrastando com a posição da Primeira Seção de Direito Público - mas
é claro, na Seção de Direito Público teria que ser essa a solução; aqui estamos
tratando de matéria de Direito Privado.
Acompanho Vossa Excelência no sentido de dar provimento ao recurso
especial.
RECURSO ESPECIAL N. 1.159.242-SP (2009/0193701-9)
Relatora: Ministra Nancy Andrighi
Recorrente: Antonio Carlos Jamas dos Santos
Advogado: Antônio Carlos Delgado Lopes e outro(s)
Recorrido: Luciane Nunes de Oliveira Souza
Advogado: João Lyra Netto
EMENTA
Civil e Processual Civil. Família. Abandono afetivo. Compensação
por dano moral. Possibilidade.
1. Inexistem restrições legais à aplicação das regras concernentes
à responsabilidade civil e o consequente dever de indenizar/compensar
no Direito de Família.
2. O cuidado como valor jurídico objetivo está incorporado no
ordenamento jurídico brasileiro não com essa expressão, mas com
RSTJ, a. 24, (226): 391-505, abril/junho 2012
435
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
locuções e termos que manifestam suas diversas desinências, como se
observa do art. 227 da CF/1988.
3. Comprovar que a imposição legal de cuidar da prole foi
descumprida implica em se reconhecer a ocorrência de ilicitude civil,
sob a forma de omissão. Isso porque o non facere, que atinge um bem
juridicamente tutelado, leia-se, o necessário dever de criação, educação
e companhia – de cuidado – importa em vulneração da imposição
legal, exsurgindo, daí, a possibilidade de se pleitear compensação por
danos morais por abandono psicológico.
4. Apesar das inúmeras hipóteses que minimizam a possibilidade
de pleno cuidado de um dos genitores em relação à sua prole,
existe um núcleo mínimo de cuidados parentais que, para além do
mero cumprimento da lei, garantam aos filhos, ao menos quanto à
afetividade, condições para uma adequada formação psicológica e
inserção social.
5. A caracterização do abandono afetivo, a existência
de excludentes ou, ainda, fatores atenuantes – por demandarem
revolvimento de matéria fática – não podem ser objeto de reavaliação
na estreita via do recurso especial.
6. A alteração do valor fixado a título de compensação por danos
morais é possível, em recurso especial, nas hipóteses em que a quantia
estipulada pelo Tribunal de origem revela-se irrisória ou exagerada.
7. Recurso especial parcialmente provido.
ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros da Terceira
Turma do Superior Tribunal de Justiça, na conformidade dos votos e das
notas taquigráficas constantes dos autos, prosseguindo no julgamento, após o
voto-vista do Sr. Ministro Paulo de Tarso Sanseverino, a retificação de voto da
Sra. Ministra Nancy Andrighi e a ratificação de voto-vencido do Sr. Ministro
Massami Uyeda, por maioria, dar parcial provimento ao recurso especial
nos termos do voto da Sra. Ministra Relatora. Votou vencido o Sr. Ministro
Massami Uyeda. Os Srs. Ministros Sidnei Beneti, Paulo de Tarso Sanseverino e
Ricardo Villas Bôas Cueva votaram com a Sra. Ministra Relatora.
436
Jurisprudência da TERCEIRA TURMA
Brasília (DF), 24 de abril de 2012 (data do julgamento).
Ministra Nancy Andrighi, Relatora
DJe 10.5.2012
RELATÓRIO
A Sra. Ministra Nancy Andrighi: Cuida-se de recurso especial interposto
por Antonio Carlos Jamas dos Santos, com fundamento no art. 105, III, a e c, da
CF/1988, contra acórdão proferido pelo TJ-SP.
Ação: de indenização por danos materiais e compensação por danos
morais, ajuizada por Luciane Nunes de Oliveira Souza em desfavor do recorrente,
por ter sofrido abandono material e afetivo durante sua infância e juventude.
Sentença: o i. Juiz julgou improcedente o pedido deduzido pela
recorrida, ao fundamento de que o distanciamento entre pai e filha deveuse, primordialmente, ao comportamento agressivo da mãe em relação ao
recorrente, nas situações em que houve contato entre as partes, após a ruptura do
relacionamento ocorrido entre os genitores da recorrida.
Acórdão: o TJ-SP deu provimento à apelação interposta pela recorrida,
reconhecendo o seu abandono afetivo, por parte do recorrente – seu pai –,
fixando a compensação por danos morais em R$ 415.000,00 (quatrocentos e
quinze mil reais), nos termos da seguinte ementa:
Ação de indenização. Danos morais e materiais. Filha havida de relação
amorosa anterior. Abandono moral e material. Paternidade reconhecida
judicialmente. Pagamento da pensão arbitrada em dois salários mínimos até a
maioridade. Alimentante abastado e próspero. Improcedência. Apelação. Recurso
parcialmente provido.
Recurso especial: alega violação dos arts. 159 do CC-1916 (186 do
CC-2002); 944 e 1.638 do Código Civil de 2002, bem como divergência
jurisprudencial.
Sustenta que não abandonou a filha, conforme foi afirmado pelo Tribunal
de origem e, ainda que assim tivesse procedido, esse fato não se reveste de
ilicitude, sendo a única punição legal prevista para o descumprimento das
obrigações relativas ao poder familiar – notadamente o abandono – a perda do
respectivo poder familiar –, conforme o art. 1.638 do CC-2002.
RSTJ, a. 24, (226): 391-505, abril/junho 2012
437
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
Aduz, ainda, que o posicionamento adotado pelo TJ-SP diverge do
entendimento do STJ para a matéria, consolidado pelo julgamento do REsp n.
757.411-MG, que afasta a possibilidade de compensação por abandono moral
ou afetivo.
Em pedido sucessivo, pugna pela redução do valor fixado a título de
compensação por danos morais.
Contrarrazões: reitera a recorrida os argumentos relativos à existência
de abandono material, moral, psicológico e humano de que teria sido vítima
desde seu nascimento, fatos que por si só sustentariam a decisão do Tribunal de
origem, quanto ao reconhecimento do abandono e a fixação de valor a título de
compensação por dano moral.
Juízo prévio de admissibilidade: o TJ-SP admitiu o recurso especial (fls.
567-568, e-STJ).
É o relatório.
VOTO
A Sra. Ministra Nancy Andrighi (Relatora): Sintetiza-se a lide em
determinar se o abandono afetivo da recorrida, levado a efeito pelo seu pai,
ao se omitir da prática de fração dos deveres inerentes à paternidade, constitui
elemento suficiente para caracterizar dano moral compensável.
1. Da existência do dano moral nas relações familiares
Faz-se salutar, inicialmente, antes de se adentrar no mérito propriamente
dito, realizar pequena digressão quanto à possibilidade de ser aplicada às relações
intrafamiliares a normatização referente ao dano moral.
Muitos, calcados em axiomas que se focam na existência de singularidades
na relação familiar – sentimentos e emoções – negam a possibilidade de
se indenizar ou compensar os danos decorrentes do descumprimento das
obrigações parentais a que estão sujeitos os genitores.
Contudo, não existem restrições legais à aplicação das regras relativas
à responsabilidade civil e o consequente dever de indenizar/compensar, no
Direito de Família.
Ao revés, os textos legais que regulam a matéria (art. 5º, V e X da CF e arts.
186 e 927 do CC-2002) tratam do tema de maneira ampla e irrestrita, de onde
438
Jurisprudência da TERCEIRA TURMA
é possível se inferir que regulam, inclusive, as relações nascidas dentro de um
núcleo familiar, em suas diversas formas.
Assim, a questão – que em nada contribui para uma correta aplicação da
disciplina relativa ao dano moral – deve ser superada com uma interpretação
técnica e sistemática do Direito aplicado à espécie, que não pode deixar de
ocorrer, mesmo ante os intrincados meandros das relações familiares.
Outro aspecto que merece apreciação preliminar, diz respeito à perda
do poder familiar (art. 1.638, II, do CC-2002), que foi apontada como a
única punição possível de ser imposta aos pais que descuram do múnus a eles
atribuído, de dirigirem a criação e educação de seus filhos (art. 1.634, II, do CC2002).
Nota-se, contudo, que a perda do pátrio poder não suprime, nem afasta,
a possibilidade de indenizações ou compensações, porque tem como objetivo
primário resguardar a integridade do menor, ofertando-lhe, por outros meios,
a criação e educação negada pelos genitores, e nunca compensar os prejuízos
advindos do malcuidado recebido pelos filhos.
2. Dos elementos necessários à caracterização do dano moral
É das mais comezinhas lições de Direito, a tríade que configura a
responsabilidade civil subjetiva: o dano, a culpa do autor e o nexo causal. Porém,
a simples lição ganha contornos extremamente complexos quando se focam
as relações familiares, porquanto nessas se entremeiam fatores de alto grau de
subjetividade, como afetividade, amor, mágoa, entre outros, os quais dificultam,
sobremaneira, definir, ou perfeitamente identificar e/ou constatar, os elementos
configuradores do dano moral.
No entanto, a par desses elementos intangíveis, é possível se visualizar,
na relação entre pais e filhos, liame objetivo e subjacente, calcado no vínculo
biológico ou mesmo autoimposto – casos de adoção –, para os quais há
preconização constitucional e legal de obrigações mínimas.
Sendo esse elo fruto, sempre, de ato volitivo, emerge, para aqueles que
concorreram com o nascimento ou adoção, a responsabilidade decorrente de
suas ações e escolhas, vale dizer, a criação da prole.
Fernando Campos Scaff retrata bem essa vinculação entre a liberdade
no exercício das ações humanas e a responsabilidade do agente pelos ônus
correspondentes:
RSTJ, a. 24, (226): 391-505, abril/junho 2012
439
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
(...) a teoria da responsabilidade relaciona-se à liberdade e à racionalidade
humanas, que impõe à pessoa o dever de assumir os ônus correspondentes a fatos
a ela referentes. Assim, a responsabilidade é corolário da faculdade de escolha e
de iniciativa que a pessoa possui no mundo, submetendo-a, ou o respectivo
patrimônio, aos resultados de suas ações que, se contrários à ordem jurídica,
geram-lhe, no campo civil, a obrigação de ressarcir o dano, quando atingem
componentes pessoais, morais ou patrimoniais da esfera jurídica de outrem.
(Da culpa ao risco na responsabilidade civil in: RODRIGUES JÚNIOR, Otávio Luiz;
MAMEDE, Gladston; ROCHA, Maria Vital da (coords.). Responsabilidade civil
contemporânea. São Paulo, Atlas, p. 75).
Sob esse aspecto, indiscutível o vínculo não apenas afetivo, mas também
legal que une pais e filhos, sendo monótono o entendimento doutrinário de que,
entre os deveres inerentes ao poder familiar, destacam-se o dever de convívio,
de cuidado, de criação e educação dos filhos, vetores que, por óbvio, envolvem
a necessária transmissão de atenção e o acompanhamento do desenvolvimento
sócio-psicológico da criança.
E é esse vínculo que deve ser buscado e mensurado, para garantir a proteção
do filho quando o sentimento for tão tênue a ponto de não sustentarem, por si
só, a manutenção física e psíquica do filho, por seus pais – biológicos ou não.
À luz desses parâmetros, há muito se cristalizou a obrigação legal dos
genitores ou adotantes, quanto à manutenção material da prole, outorgando-se
tanta relevância para essa responsabilidade, a ponto de, como meio de coerção,
impor-se a prisão civil para os que a descumprem, sem justa causa.
Perquirir, com vagar, não sobre o dever de assistência psicológica dos pais
em relação à prole – obrigação inescapável –, mas sobre a viabilidade técnica de se
responsabilizar, civilmente, àqueles que descumprem essa incumbência, é a outra
faceta dessa moeda e a questão central que se examina neste recurso.
2.1. Da ilicitude e da culpa
A responsabilidade civil subjetiva tem como gênese uma ação, ou omissão,
que redunda em dano ou prejuízo para terceiro, e está associada, entre outras
situações, à negligência com que o indivíduo pratica determinado ato, ou
mesmo deixa de fazê-lo, quando seria essa sua incumbência.
Assim, é necessário se refletir sobre a existência de ação ou omissão,
juridicamente relevante, para fins de configuração de possível responsabilidade
civil e, ainda, sobre a existência de possíveis excludentes de culpabilidade
incidentes à espécie.
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Jurisprudência da TERCEIRA TURMA
Sob esse aspecto, calha lançar luz sobre a crescente percepção do cuidado
como valor jurídico apreciável e sua repercussão no âmbito da responsabilidade
civil, pois, constituindo-se o cuidado fator curial à formação da personalidade do
infante, deve ele ser alçado a um patamar de relevância que mostre o impacto
que tem na higidez psicológica do futuro adulto.
Nessa linha de pensamento, é possível se afirmar que tanto pela concepção,
quanto pela adoção, os pais assumem obrigações jurídicas em relação à sua prole,
que vão além daquelas chamadas necessarium vitae.
A ideia subjacente é a de que o ser humano precisa, além do básico para
a sua manutenção – alimento, abrigo e saúde –, também de outros elementos,
normalmente imateriais, igualmente necessários para uma adequada formação –
educação, lazer, regras de conduta, etc.
Tânia da Silva Pereira – autora e coordenadora, entre outras, das obras
Cuidado e vulnerabilidade e O cuidado como valor jurídico – acentua o seguinte:
O cuidado como “expressão humanizadora”, preconizado por Vera Regina
Waldow, também nos remete a uma efetiva reflexão, sobretudo quando estamos
diante de crianças e jovens que, de alguma forma, perderam a referência da
família de origem (...). a autora afirma: “o ser humano precisa cuidar de outro ser
humano para realizar a sua humanidade, para crescer no sentido ético do termo.
Da mesma maneira, o ser humano precisa ser cuidado para atingir sua plenitude,
para que possa superar obstáculos e dificuldades da vida humana”. (Abrigo
e alternativas de acolhimento familiar, in: PEREIRA, Tânia da Silva; OLIVEIRA,
Guilherme de. O cuidado como valor jurídico. Rio de Janeiro: Forense, 2008, p.
309).
Prossegue a autora afirmando, ainda, que:
Waldow alerta para atitudes de não-cuidado ou ser des-cuidado em situações
de dependência e carência que desenvolvem sentimentos, tais como, de se sentir
impotente, ter perdas e ser traído por aqueles que acreditava que iriam cuidá-lo.
Situações graves de desatenção e de não-cuidado são relatadas como sentimentos
de alienação e perda de identidade. Referindo-se às relações humanas vinculadas
à enfermagem a autora destaca os sentimentos de desvalorização como pessoa
e a vulnerabilidade. “Essa experiência torna-se uma cicatriz que, embora possa
ser esquecida, permanece latente na memória”. O cuidado dentro do contexto da
convivência familiar leva à releitura de toda a proposta constitucional e legal relativa
à prioridade constitucional para a convivência familiar. (op. cit. p. 311-312 - sem
destaques no original).
RSTJ, a. 24, (226): 391-505, abril/junho 2012
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REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
Colhe-se tanto da manifestação da autora quanto do próprio senso
comum que o desvelo e atenção à prole não podem mais ser tratadas como
acessórios no processo de criação, porque, há muito, deixou de ser intuitivo
que o cuidado, vislumbrado em suas diversas manifestações psicológicas, não é
apenas uma fator importante, mas essencial à criação e formação de um adulto
que tenha integridade física e psicológica e seja capaz de conviver, em sociedade,
respeitando seus limites, buscando seus direitos, exercendo plenamente sua
cidadania.
Nesse sentido, cita-se, o estudo do piscanalista Winnicott, relativo à
formação da criança:
[...] do lado psicológico, um bebê privado de algumas coisas correntes,
mas necessárias, como um contato afetivo, está voltado, até certo ponto, a
perturbações no seu desenvolvimento emocional que se revelarão através de
dificuldades pessoais, à medida que crescer. Por outras palavras: a medida que
a criança cresce e transita de fase para fase do complexo de desenvolvimento
interno, até seguir finalmente uma capacidade de relacionação, os pais poderão
verificar que a sua boa assistência constitui um ingrediente essencial. (WINNICOTT,
D.W. A criança e o seu mundo. 6ª ed. Rio de Janeiro: LTC, 2008).
Essa percepção do cuidado como tendo valor jurídico já foi, inclusive,
incorporada em nosso ordenamento jurídico, não com essa expressão, mas com
locuções e termos que manifestam suas diversas desinências, como se observa do
art. 227 da CF/1988.
Vê-se hoje nas normas constitucionais a máxima amplitude possível e, em
paralelo, a cristalização do entendimento, no âmbito científico, do que já era
empiricamente percebido: o cuidado é fundamental para a formação do menor e
do adolescente; ganha o debate contornos mais técnicos, pois não se discute mais
a mensuração do intangível – o amor – mas, sim, a verificação do cumprimento,
descumprimento, ou parcial cumprimento, de uma obrigação legal: cuidar.
Negar ao cuidado o status de obrigação legal importa na vulneração da
membrana constitucional de proteção ao menor e adolescente, cristalizada, na
parte final do dispositivo citado: “(...) além de colocá-los a salvo de toda a forma de
negligência (...)”.
Alçando-se, no entanto, o cuidado à categoria de obrigação legal supera-se
o grande empeço sempre declinado quando se discute o abandono afetivo – a
impossibilidade de se obrigar a amar.
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Jurisprudência da TERCEIRA TURMA
Aqui não se fala ou se discute o amar e, sim, a imposição biológica e legal de
cuidar, que é dever jurídico, corolário da liberdade das pessoas de gerarem ou adotarem
filhos.
O amor diz respeito à motivação, questão que refoge os lindes legais,
situando-se, pela sua subjetividade e impossibilidade de precisa materialização,
no universo meta-jurídico da filosofia, da psicologia ou da religião.
O cuidado, distintamente, é tisnado por elementos objetivos, distinguindose do amar pela possibilidade de verificação e comprovação de seu cumprimento,
que exsurge da avaliação de ações concretas: presença; contatos, mesmo que não
presenciais; ações voluntárias em favor da prole; comparações entre o tratamento
dado aos demais filhos – quando existirem –, entre outras fórmulas possíveis que
serão trazidas à apreciação do julgador, pelas partes.
Em suma, amar é faculdade, cuidar é dever.
A comprovação que essa imposição legal foi descumprida implica. por
certo, a ocorrência de ilicitude civil, sob a forma de omissão, pois na hipótese o
non facere que atinge um bem juridicamente tutelado, leia-se, o necessário dever
de criação, educação e companhia – de cuidado – importa em vulneração da
imposição legal.
Fixado esse ponto, impõe-se, ainda, no universo da caracterização da
ilicitude, fazer-se pequena digressão sobre a culpa e sua incidência à espécie.
Quanto a essa monótono o entendimento de que a conduta voluntária está
direta