O Processo de Intelectualização em Shakespeare:

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O Processo de Intelectualização em Shakespeare:
O Processo de Intelectualização em Shakespeare:
Uma análise de Hamlet em três planos
Hugo Neri
“A possibilidade de se questionar acerca do sentido do mundo
pressupõe a capacidade de se abismar com o curso dos eventos”
Max Weber – O Judaísmo Antigo
I. Introdução
Este trabalho, sobre a dramaturgia de William Shakespeare, e em especial uma
de suas obras, Hamlet, busca demonstrar o processo de intelectualização, circunscrito
temporal e contextualmente, em uma dimensão considerada limítrofe da objetividade
das criações humanas: a literatura. O processo de intelectualização é uma tentativa de
explicação da maneira pela qual as ideias humanas, uma vez objetivadas, comportam-se
no contexto e no tempo. O conjunto de ideias que constroem o processo de
intelectualização se originou da reconstrução da teoria sociológica da religião de Max
Weber1. Esta tentativa de demonstração serve, portanto, como uma primeira verificação
da possibilidade de autonomização do processo de intelectualização enquanto produto
da reconstrução da teoria sócio-histórica de Weber.
A hipótese central, que pode levar a demonstração do processo de
intelectualização como um todo, é a de que Hamlet conteria em seu interior o produto
final de um processo de constituição de uma ideia objetiva2, fruto de uma interpretação
positiva3: a interioridade psicológica e existencial em um personagem de ficção4. Ao
passo que procuro explicar o desenvolvimento dessa ideia objetiva pelo processo de
intelectualização. A criação de Hamlet, assim como uma série de outras peças de
dramaturgos contemporâneos e conterrâneos de Shakespeare, foi possibilitada pelo
1
Que é o primeiro objetivo da minha pesquisa de mestrado.
Isto é, uma ideia que possui algum fundo de objetividade para além do valor atribuído a ela.
3
Interpretação positiva seria um processo de objetivação da subjetividade compreendendo as seguintes
etapas: compreensão, revisão, sistematização e, finalmente, objetivação, que como objetivação, não mais
pertencerá ao sujeito. O sujeito que realiza este tipo de ação, em dado momento, é considerado como
sendo o intelectual do processo de intelectualização.
4
Um processo de interiorização, termo cunhado pelo crítico literário e especialista em Shakespeare,
Harold Bloom. Todavia, esta ideia não é exclusiva de Bloom, outros especialistas atuais em Shakespeare,
de correntes bastante diferentes, estão de acordo com esta ideia, como é o caso de Stephen Greenblatt,
Andrew Gurr e James Shapiro.
2
ambiente de alta concorrência5 que caracterizou o teatro elisabetano. As criações
(literárias, filosóficas e científicas) são compreendidas enquanto novas interpretações.
A situação de concorrência impulsionaria o desenvolvimento interno das novas
interpretações, das ideias contidas nas peças. Haveria, por outro lado, a necessidade de
adaptação da criação a um dado público, no caso da peça do teatro elisabetano,
adaptação às audiências frequentadores do teatro. A adaptação é contingencial e não
pode aniquilar o núcleo duro de dada criação, mas apenas em suas construções ideias
auxiliares. Shakespeare, por exemplo, tinha grandes preocupações com a execução e
recepção de todas suas peças incluindo Hamlet, que a adaptara à forma teatral, o que
limita a extensão de certas falas e também limita os personagens a certo enredo.
Contudo, o grau de complexidade da construção subjetiva do personagem Hamlet, além
das mais de seiscentas novas palavras criadas para expressar o que desejava em Hamlet,
mostram tendência não adaptativa do conteúdo interno ao receptor da obra6. Com isso,
as criações humanas fundamentadas na linguagem, que em algum momento tiveram sua
existência objetivada (potencialmente na escrita), não podem ser reduzidas, em sua
integridade, ao contexto de origem7 e ao contexto motivacional de seu criador
(inserindo-se aqui a recepção do público), mesmo se for suposto que todos os elementos
que compõem o produto da criação tenham origem nesses contextos; tampouco, podem
ser esgotados pelo conjunto de análises e interpretações feitas a posteriori8.
Em relação à hipótese sobre Hamlet, identifico a existência de três planos9
diferentes de análise que além de se interrelacionam, mantêm certa independência dos
demais. O primeiro seria um plano biográfico, que expressaria a perfilação ou
perspectiva de um mundo intersubjetivamente compartilhado, no qual o sujeito, que cria
e objetiva (de preferência textualmente) suas ideias, está inserido. É o mundo
intersubjetivamente compartilhado que fornece as motivações de um sujeito, partindo
desde um sentido ontológico e metafísico, algo difusamente captável, em direção a uma
maior pragmaticidade (do sentido do mundo em geral a uma atividade econômica
5
O principal mecanismo impulsionador do desenvolvimento do processo de intelectualização é a
concorrência, competição ou luta. Um dos principais produtos da concorrência é a maior consistência
interna de certas interpretações.
6
Afinal, Shakespeare era um exímio conhecedor e criador de linguagem; no total de suas obras estima-se
que empregou algo em torno de 18.000 palavras diferentes.
7
Jamais poderíamos reduzir o espaço social da obra ao espaço social do autor, como tenta Bourdieu em
Flaubert e as regras da arte.
8
Este trabalho procura, assim, defender certa objetividade das ideias.
9
Esta tentativa de estabelecer três níveis de análise é uma contribuição direta para o trabalho
desenvolvido no mestrado.
prática). Este plano biográfico para a análise do processo de intelectualização deve ser
circunscrito em função do momento (prolongado) de objetivação de nova interpretação,
fazendo com que os fatos mais amplos sirvam para fornecer uma base de
compreensibilidade da ação do sujeito. No caso deste trabalho, o corte temporal gira em
torno dos anos de 1599-1601, época, mais ou menos estabelecida pelos especialistas em
Shakespeare, da criação efetiva de Hamlet. Desta maneira, o mundo intersubjetivo
estará perspectivado em relação a Shakespeare desse momento10. Todavia, seria
incompreensível tentar captar neste plano as forças de motivação de Shakespeare sem
considerar alguns processos históricos mais cruciais que formam seu mundo: a
Inglaterra do final do século XVI que passou por uma Reforma Protestante em dois
níveis, uma legal-estatal com a fundação da Igreja Anglicana e outra mais longa e difusa
de um processo de esgotamento da Igreja Católica medieval e a conversão ao
protestantismo; a língua inglesa; um processo de crescimento demográfico e
urbanização significativa, sobretudo em Londres (onde os trabalhos de Shakespeare
serão realizados); a constituição dos teatros em Londres por companhias de teatro e
garantidos pela legislação real, fazendo da encenação das peças o principal
entretenimento londrina e criando acirrada concorrência entre as companhias de teatro.
O segundo seria o plano da objetificação. A objetivação se dá na passagem do
primeiro para o segundo plano, tornando objetivo sentimentos e concepções
razoavelmente difusos. A criação de uma obra envolve o primeiro plano e também
outras interpretações já objetivadas neste segundo plano. A existência e persistência de
uma criação objetivada ocorrem enquanto ela existir em sua materialidade, podendo
uma obra dada como perdida ser resgatada no futuro. Neste segundo plano, além de
haver a construção de um contexto interno da obra, onde certas ideias, personagens e
conceitos se desenvolverão, há sempre uma relação intertextual com outras obras. Este
é, portanto, um plano de relação entre obras de outrem, como, também, das obras de um
mesmo autor. Um exemplo é notar como Hamlet de Shakespeare tem seu enredo
advindo de um possível Ur-Hamlet11, de autoria desconhecida, encenado por volta de
dez anos antes do Hamlet de Shakespeare; este Ur-Hamlet, por sua vez, teria sua origem
na tragédia de Hamlet do francês Belleforest em 1570, que teria sido uma interpretação
das estórias dinamarquesas de Saxo Grammaticus escrito em Latim no século XII. Os
10
“O que se oferece a ambos, ao atuante e ao observador que interpreta, não é somente o simples ato
significativo e o contexto ou configuração de sentido a que este pertence, senão todo o mundo social em
perspectiva” (Schutz, 1975 , p.38)
11
“Ur” é um prefixo da língua alemã que significa “primordial”, no sentido de ser o primeiro de algo.
elementos intertextuais, somados aos elementos e forças do primeiro plano levam os
diferentes autores a realizarem uma nova interpretação, como o é, claramente, Hamlet
de Shakespeare.
E, por fim, o terceiro plano, que seria o momento de criação e consolidação de
ideias objetivas, isto é, uma ideia nova que tem sua origem a partir do contexto da obra,
mas que também não pode ser reduzido ao contexto da obra (no plano de objetivação)
nem ao plano biográfico. Contudo, as ideias objetivas necessitam dos dois primeiros
planos para que seja possível sua origem. Após sua origem, ela possuiria uma
transcendência que influenciaria os outros dois planos em um momento de tempo
posterior, incluindo seu próprio autor. A ideia objetiva que Hamlet expressa é a
interiorização do personagem. Após sua constituição, sua influência será visível e
decisiva para as próximas peças de Shakespeare assim como para outros autores de
ficção, e ainda, mais tardar para a interpretação do próprio homem, como farão
Nietzsche e Freud.
Divido a análise em três momentos que seguem a divisão dos três planos. No
primeiro plano (biográfico12), considero, brevemente, fatores macrossociológicos como
o problema da religião (que fornece o sentido ao mundo) e a urbanização. Este último
serve para fundamentar a origem do fenômeno mais localizado do teatro elisabetano. A
ideia ai é mostrar a concorrência viçosa que se forma em torno de um mercado teatral
que impulsiona (e financia) o desenvolvimento das peças teatrais. O segundo plano
(objetivação) é separado em três momentos: a) da objetivação de elementos do primeiro
plano; b) das relações intertextuais; c) da definição do núcleo do contexto interno. O
terceiro plano (ideias objetivas) procura definir o momento anterior do processo de
desenvolvimento do processo de interiorização do personagem.
II. Primeiro Plano
Nos anos em que Shakespeare foi para Londres e se estabeleceu como um
dramaturgo e poeta, nas últimas duas décadas do século XVI, a maior instituição
europeia, a Igreja Católica, tinha entrado em colapso na Inglaterra por conta de duas
reformas (uma estatal e outra fruto de um processo paulatino de mudança de fé). A
religião era considerada a base de uma sociedade bem organizada e a preservação da
unidade religiosa era presumida como essencial para a manutenção do Estado. Esta
12
Biográfico/intersubjetivo.
fratura poderia levar à Guerra Civil e a episódios como a Noite de São Bartolomeu em
1572, quer será tema de uma das peças de Marlowe. “Em questão de crenças religiosas,
famílias no início do século XVI na Inglaterra eram, caracteristicamente, fraturados, e
muitos indivíduos estavam fraturados por dentro” (Greenblatt, 2004, p.85). O sentido do
mundo, fornecido em todas as suas instâncias pela religiosidade Católica, não era dado
prontamente a todos. Em muitos imperou uma crise de sentido e cada vez mais amplo
conforme avançava o protestantismo. A Reforma religiosa promovida pelo Estado da
dinastia Tudor, iniciada com Henrique VIII e seu rompimento com o poderio papal de
Roma, passou por idas e vindas entre a antiga e a nova fé, sendo a vitória dessa disputa
efetuada pelo protestantismo. A Reforma religiosa estatal realizada por motivos
políticos acabara colaborando com o avanço da nova fé. O protestantismo que avança na
Inglaterra é de base calvinista, sendo esta uma religião urbana e letrada13. Assim como a
nova religiosidade reformada inglesa, o desenvolvimento do teatro elisabetano é, antes
de tudo, um resultado do fenômeno da cidade.
A Inglaterra desse período era essencialmente rural. Estratificações sociais
elaboradas no período estavam estritamente ligadas à posse de terras e um bom exemplo
é o trabalho de William Harrison14 (1534-1593). Houve um expressivo crescimento
urbano, particularmente em Londres, que teve início por volta da década de 1520. Em
1564, Londres contava com 80 mil habitantes, ao passo em 1600 havia,
aproximadamente, 200 mil pessoas (estima-se que a população total da Inglaterra nesse
mesmo ano era de quatro milhões de pessoas). Contudo, apenas cerca de 20% da
população nascera em Londres, o que a tornava uma cidade de imigrantes, como era o
caso de Shakespeare e outros dramaturgos. Houve um amplo crescimento dos artesões
urbanos; o crescimento de uma classe de mercadores e manufatureiros em grandes
cidades e em cidades portuárias e o crescimento de uma classe letrada: mestres em
escolas e escrivães. Sobretudo o último grupo, o dos letrados, expressou,
frequentemente, uma forma de ascensão social podendo-se atingir a titulação de
gentlemen. Este aumento dos estratos médios com profissões liberais e comerciais fez
com que os índices de analfabetismo fossem menores em Londres do que no resto da
13
Tradução da Bíblia realizada oficialmente pro William Tyndale para o inglês e a promulgação do Book
of Common Player foi um momento decisivo para o desenvolvimento da língua inglesa. “Sem as grandes
traduções ao inglês do Novo Testamento e o sonoro e ressonante Book of Common Prayer, seria difícil de
imaginar William Shakespeare” (Greenblatt, p.87).
14
Um sacerdote da época que, em suas Descrições da Inglaterra (Contribuição feita ao trabalho de
Holinshead, Chronicles de 1577)., estratifica a sociedade em quatro camadas: a) nobres e gentlemen, b)
burgueses e citizens, c) os pequenos proprietários rurais, os yeomen, d) artesãos e trabalhadores sem
propriedade.
Inglaterra. Isto comporia algo como um estrato médio da sociedade15. “Quase todas
essas diferentes classes no estrato médio podem ser encontradas entre os frequentadores
de peças no teatro Shakespeariano. Sua composição, amplamente, define a composição
da maioria da audiência nos teatros londrinos16” (Gurr, 2004, p.58).
O teatro era constituído de uma companhia de atores. Essas companhias
acompanharam a migração mais geral do campo para a cidade que aconteceu nesse
período. O ano de 1572, certamente, foi um ano de virada para o teatro devido à
legislação real (de inspiração protestante) que, na tentativa de combater a
vagabundagem, decreta aos atores a obtenção de um estatuto especial, vinculando-os,
assim, à patronagem nobiliárquica17. Com isso, a companhia que não o obtivesse,
deveria ser fechada. Antes disso, as companhias eram um grupo de atores itinerantes
que iam às cidades e vilarejos para apresentarem suas peças, sem o vínculo com um
estabelecimento fixo de apresentação. Isso possibilitava que o número de peças fosse
pequeno, dada à inexistência de um público fixo. A itinerância criava, também, uma
situação de ausência de concorrência, de luta entre diferentes companhias. Houve,
portanto, a atrofia na elaboração de novas peças e também do próprio refinamento das
peças existentes. As peças realizadas ao longo deste período eram de dois tipos. Por um
lado, havia peças de origem religiosa, mais precisamente católica, cujo conteúdo e
propósitos eram moralizantes; os personagens eram, geralmente, entes como o Vício, a
Luxúria, a Preguiça e etc. Por outro lado, havia as encenações de puro entretenimento
dos cortesãos com o tradicional personagem do bobo da corte.
Uma vez que essas companhias de atores se fixam em Londres (sedentarizamse), o caráter de empresa, a relação com um público relativamente fixo e a concorrência
com outras companhias de atores e as próprias motivações da audiência18 (dos teatros
que pagavam para ver entretenimento e não um puro conteúdo religioso moralizante)
15
A ascensão social do pai de Shakespeare, John, é um bom exemplo desta razoável elevação social ao
nível de “pequena nobreza” (gentry) como reflexo da prosperidade econômica; no caso do pai de
Shakespeare, um artesão que produzia luvas em uma cidade de interior que era Stratford-upon-Avon. O
que caracterizava o estrato dos gentlemen “era a liberdade em relação à necessidade de trabalhar, seja
manualmente ou com dinheiro” (Gurr, 2004, p.62).
16
“Embora a variação social percorra todo o caminho de condes e até mesmo uma rainha para trapaceiros
sem dinheiro, famílias de pedintes e desempregados” (Gurr 2004, p.58).
17
“‘Common Player in Enterludes & Ministrels, not belonging to any Baron of this Realm or towards any
other honorable Personage of greater Degree’ to be deemed rogues and vagabonds” (The Society for
Theatre Research, 1970, p.20). após importante negociação política e papel decisivo Charles Howard,
Conde de Notthingham e patrono da companhia Admiral’s Men.
18
De acordo com os trabalhos de Guur, havia dois tipos de teatros para dois tipos de audiência, um nas
casas de teatro, como o Rose e theatre e depois o Globe e o Fortune, para um público mais amplo, como
visto, e as encenações em lugares fechados para a nobreza.
alterou o modo como se desenvolverá o teatro. A Reforma destruiu as peças de milagre
(moralidade), promovendo a secularização do teatro. A patronagem dos nobres
minimizava a oposição puritana às companhias de teatro19. Era proibido falar sobre o
Estado atual e religião no palco. Tudo isto alterou o sentido do desenvolvimento do
teatro20. A legislação sobre o teatro ainda possui a faceta de intensificar a concorrência
fazendo com que se concentram em poucas companhias os atores e escritores. Essa alta
seletividade cria, sem dúvida, uma triagem qualitativa destes profissionais. Era um
negócio muito rentável, ao ponto de Shakespeare conseguir dinheiro suficiente para
investir em algumas terras, ser dono da maior casa em Stratford-upon-Avon e comprar
um brasão de família. Toda esta concorrência fomenta o desenvolvimento de criações
dramatúrgicas21 (novas interpretações) potencialmente mais refinadas, dada às
contribuições de avanços de conteúdo, de estilo de escrita de encenação que as peças
causavam uma sobre as outras. Embora as peças fossem revisadas pelos dramaturgos de
acordo com a resposta do público, os dramaturgos aprendiam, cada vez mais, os limites
de adaptação de suas criações à forma teatral e à expectativa da plateia, que era, por
volta de 1600, bastante eclética e flexível22. A impossibilidade de tratar diretamente de
questões políticas e religiosas de seu momento atual forçou os dramaturgos, que
quisessem retratá-las, a utilizar subterfúgios metafóricos, geralmente envolvendo
encenações históricas ou estórias antigas existentes em que os dramaturgos operavam
reinterpretações, criando, assim, suas peças.
19
“O mundo teatral em que Shakespeare encontrou seu caminho era volátil, especulativo, competitivo e
precário. O palco tinha inimigos vociferadores: os teatros eram templos a Vênus e outras divindades
pagãs diabólicas; eram assim taxados pelos pregadores e moralistas” (Greenblatt, 2004, p.193).
20
Andrew Gurr parece ver na formação de um mercado novo, o do entretenimento (fazendo o teatro em
meados do reinado de Elizabeth I e de seu sucessor, Jaime I, o carro-chefe deste mercado), a condição
necessária para o desenvolvimento criativo de uma série de peças de alto nível de elaboração, rompendo
com o monotonismo das peças religiosas: “O desprendimento desta veste moral que os teatros de Londres
começaram a proporcionar deve ter sido, principalmente, por conta da maneira pela qual os novos teatros
criaram as primeiras audiências cativas. Apenas quando as peças puderam ser oferecidas à multidão que
se juntou e pagou exclusivamente para desfrutar de uma peça, os poetas ficaram livres para criar ofertas
como A Tragédia Espanhola e Tamburlaine” (Gurr, 2004, p.144). Ele não considera que a secularização
somente foi possível pela quebra do edifício de crença da religião católica (a antiga religião), pois, como a
nova religião via com maus olhos o entretenimento do teatro, este logo se tornou um espaço não religioso
e regulamentado pelo Estado.
21
Os principais “shakespearólogos” mobilizados neste trabalho concordam com a existência dessa alta
concorrência que impulsiona o desenvolvimento do teatro elisabetano. Entre eles, Gurr formula uma
explicação popperiana: “O resultado foi uma evolução constante e pressurizada no repertório de peças dos
atores, um tipo de Darwinismo cultural, com os poetas e suas audiências enquanto pais e as peças
enquanto sua cria” (Gurr, 2004, p.143).
22
Ao ponto de aguentarem pontos altos desta concorrência toda se expressar no interior das próprias
encenações em longas linhas, como aconteceu com a Guerra dos Teatros no interior de Hamlet.
.
Entre o Ato contra vagabundagem, em 1572, e a primeira encenação de Hamlet,
em 1601, o teatro londrino passou por duas fases. A primeira fase iria de 1583, onde há
o registro das peças de um autor conhecido, John Lyly, precursor da primeira geração de
teatro (que Shakespeare se encontra tardiamente), até 1594 com a morte de três grandes
dramaturgos: Thomas Kyd, Robert Greene e Christopher Marlowe. Dentre os três,
Thomas Kyd foi uma grande influência para os demais dramaturgos, inclusive
Shakespeare, sobretudo com sua A Tragédia Espanhola (1587), a primeira tragédia
moderna (sobre este ponto, a relação entre Kyd e Hamlet será tratada mais a frente).
Contudo foi a figura de Marlowe que teve maior projeção nesta primeira fase. Assim
como Shakespeare, nasceu no mesmo ano e não era de Londres, embora Marlowe tenha
frequentado a universidade (assim como os demais, exceto Kyd) gozando de maior
posição social. Quando Shakespeare finalizou sua primeira peça, que veio a público em
1590, Marlowe já havia completado seu próprio cânone, com os dois volumes de
Tamburlaine, Dr. Faustus e O Judeu de Malta, peças polêmicas com grandes
individualidades. Marlowe contribuiu, decisivamente, com todo teatro elisabetano,
sobretudo pelo estilo que adotara: o verso branco decassílabo, que se adaptara muito
bem para o teatro. Marlowe influenciou os primeiros anos da carreira de Shakespeare
(que começou tarde em comparação com os outros). Mas, até 1594, Shakespeare tinha
feito algumas de suas grandes criações como Ricardo III e Romeu e Julieta.
A segunda fase, após 1594, é a da elevação de Shakespeare à posição de
principal dramaturgo do teatro inglês. Este período durou, virtualmente, até ele se retirar
para sua cidade, em 1614 (dois anos antes de sua morte). Havia concorrentes menores
como Dekker, Marston (envolvido na Guerra dos Teatros), Chettle, Haughton,
Chapman, Heywood até 1597, após isso emerge um grande nome, Ben Jonson, que
passa a rivalizar com Shakespeare. De 1594 a 1599 a produção dramatúrgica de
Shakespeare amadurece muito, produzindo peças e personagens consagrados como
Ricardo II (Ricardo), O Mercador de Veneza (Shylock), as duas partes de Henrique IV,
Henrique V (a tríade de sir John Falstaff), Julius Caesar (Brutus). Foi também a partir
de 1594 que o Conselho Privado do reino atribuiu às companhias de teatro os dois
teatros suburbanos: o Rose e o Theatre, “ao mesmo tempo que fez a concessão ao Lord
Mayor de poder banir todo tipo de encenação futura nas hospedarias da cidade” (Gurr,
2004, p.147).
De maneira conclusiva, como diz Greenblatt:
No final do século XVI em Londres, aquelas circunstâncias incluíram
o crescimento fenomenal da população urbana, a emergência de
teatros públicos, e a existência de um mercado competitivo para as
novas peças. Elas incluíram, também, um crescimento impressionante
da alfabetização; um sistema educacional que treinou seus estudantes
a serem altamente sensíveis aos efeitos retóricos; um gosto político e
social para exibição elaboradas; uma cultura religiosa que compelia os
fiéis a ouvirem longos e complexos sermões, e uma cultura intelectual
e vibrante (Greenblatt, 2004, p.208).
A carreira teatral era uma das opções de trabalho secular para quem quisesse
seguir uma “carreira intelectual” que não estivesse relacionada ao direito. Este foi,
resumidamente, o que constituiu o plano biográfico de Shakespeare para sua produção
dramatúrgica: um problema profundo de religião e o amplo desenvolvimento do
mercado teatral onde Shakespeare já havia criado muitas peças e amadurecera
paulatinamente suas ideias de maneira a poder criar seus personagens, que culminará
em Hamlet.
III. Segundo Plano
William Shakespeare expressa bem a ação do intelectual no processo de
intelectualização, de modo que suas obras eram fruto da interpretação positiva.
“Enquanto escritor, ele raramente começava com uma folha em branco; ele
caracteristicamente tomava os materiais que ele há estavam em circulação e infundia a
eles suas energias criativas supremas” (Greenblatt, 2004, p.8). Hamlet, particularmente,
salienta ainda mais este caráter. Ao final da década de 1580, existia uma peça de
Hamlet, hoje perdida, nomeada pelos especialistas de Ur-Hamlet, de autoria
desconhecida23. Hamlet de 1601 e o Ur-Hamlet têm sua história delimitada pela lenda
da vingança do príncipe Amleth da Dinamarca que fora fixada na escrita por Saxo
Grammaticus em seu livro Gesta Danorum (literalmente, Feitos dos Dinamarqueses)
23
"As origens da peça mais célebre escrita por Shakespeare são tão obscuras quanto são confusas as suas
questões textuais. Temos conhecimento da existência de um Hamlet anterior, revisto e superado pela peça
de Shakespeare, mas não dispomos da referida obra e também pouco sabemos quem a escreveu. A
maioria dos estudiosos acredita que o autor da referida peça tenha sido Thomas Kyd,23 que escreveu A
Tragédia Espanhola, arquétipo da 'peça de vingança'" (Bloom, 1998, p.479).23 Esta é a posição de
Northorp Frye, o importante crítico literário. Ver: Sobre Shakespeare, org. Robert Sandler. A hipótese de
Bloom segue a de outro crítico literário mais antigo, Peter Alexander, que afirma que o próprio
Shakespeare havia escrito o Ur-Hamlet, logo no início de sua carreira, até 1589. A hipótese de Bloom vai,
inclusive, ainda mais além, dizendo que: "Shakespeare jamais deixa de revisar Hamlet, desde a primeira
versão, por volta de 1587-89, até a época de seu recolhimento em Stratford" (Bloom, 1998, p.488). Isto é,
a proposta de Bloom é a de que Hamlet seria um projeto de vida do autor.
ainda no século XII e apenas impressa em Latim no ano de 151424. James Shapiro25
resume a estória da seguinte maneira:
Seu tio mata o pai de Amleth (depois que ele derrotou o rei da
Noruega num duelo) e depois casa-se com a mãe de Amleth. O
assassinato não é segredo, e, para evitar surpresas sobre seu plano para
vingar a morte do pai, o jovem Amleth age como um louco, falando
absurdos26. Uma bela jovem é enviada para descobrir suas intenções.
Mais tarde, enquanto fala com sua mãe nos aposentos dela, Amleth é
espionado pelo conselheiro do rei – a quem ele mata e desmembra.
Seu tio, então, envia Amleth e dois guardas à Inglaterra com
instruções para que seja sumariamente executado, mas Amleth
intercepta a correspondência e substitui seu nome pelo dos guardas.
Ele volta para a Dinamarca e se vinga da morte do pai matando o tio.
Na versão de Saxo Grammaticus, Amleth sobrevive e é feito rei. Os
códigos de honta e de vingança são claros, e Amleth triunfa graças à
sua paciência, inteligência e capacidade de agir decisivamente quando
enxerga a oportunidade. (Shapiro, 2011, pp.321-2)
Os limites do enredo de Hamlet de Shakespeare já estão ai presentes, incluindo
certos detalhes, como o assassinato do conselheiro (Polônio) no quarto da rainha, o
pedido de execução sumária para a corte inglesa e a astúcia de mandar os guardas (que
serão os amigos do príncipe Guildenstern e Rosencrantz para a morte). Como diz a
literatura sobre assunto, Shakespeare provavelmente não teve acesso a essa versão
diretamente, mas teve com uma reinterpretação francesa de 1570, feita por Belleforest
em seu Histoires Tragiques que acrescenta algumas coisas, como o romance existente
entre a mãe de Hamlet e seu tio. Os outros elementos advêm, provavelmente, da
reinterpretação realizada no Ur-Hamlet, que adicionou como argumenta Shapiro, o
Fantasma, a metalinguagem teatral e a morte de Hamlet27. Ao passo que, “de todos os
24
O que Saxo Grammaticus fez equivale à ação clássica dos sacerdócios de fixação na escrita. Sobre a
importância da escrita e fixação na escrita para o processo de intelectualização segue a seguinte tese: O
aparecimento e uso de uma nova tecnologia, a escrita, potencializa as possibilidades anteriores de
interpretação, revisão e nova objetivação. Isto, pois, parte do conhecimento anterior é objetificado em um
instrumento que garante maior impessoalidade. Quando a transmissão do conhecimento de modo geral se
faz pela oralidade, sem referência alguma a uma forma de existência objetiva e fixa, o conhecimento
depende mais fortemente da pessoa ou grupo de pessoas que o formularam ou o expressaram. Sendo
decisivo aqui, a possibilidade diminuta de uma revisão/reinterpretação eficaz - a possibilidade de uma
exegese oral é menos acessível. A escrita abre a possibilidade do exame temporal que excede o tempo
geracional, um ciclo de vida humano.
25
Autor de um importante livro sobre este período da vida de Shakespeare, a saber, 1599: Um ano na
vida de William Shakespeare.
26
"O nome Amleth é derivado do nórdico antigo, querendo dizer 'tolo', ou 'esperto que finge ser tolo'"
(Bloom, 1998, p.487).
27
Embora Harold Bloom procure afirmar que o Ur-Hamlet era uma obra do próprio Shakespeare, seu
argumento a seguir leva em consideração algo de maior importância, independentemente se o autor foi
Kyd, Shakespeare ou um outro desconhecido, Ur-Hamlet era uma tragédia aos moldes das tragédias de
Sêneca: “Tudo leva a crer que o primeiro Hamlet shakespeariano, escrito entre 1588 e 1589, fosse
bastante semelhante ao Amleth de Belleforest, um vingador romano, no estilo de Sêneca, inserido em
contexto nórdico." (Bloom, 1998, p.498) Assim como diz Thomas Nashe, dramaturgo e panfletário
contemporâneo de Shakespeare (1567 – c.1601) “O Sêneca inglês lido à luz de vela rende muito boas
frases, como ‘o sangue é um mendigo’ e assim por diante, e se você fizer uma súplica justa numa manhã
personagens, apenas Fortinbrás, (...) é, talvez, uma invenção de Shakespeare” (Shapiro,
2011, p.322). Há, todavia, acréscimos mais importantes que o personagem Fortinbrás.
Cerca de um quarto da peça faz referências à competição teatral da época
conhecida como Guerra dos Teatros, criando na peça um subenredo. Esses acréscimos
demonstram o alto nível de concorrência e independência dos dramaturgos. Outra
realização de Shakespeare sobre o texto de Hamlet é um desenvolvimento muito mais
complexo da metateatralidade do que Kyd na A Tragédia Espanhola, criando contextos
dentro de contextos. Hamlet é de certo metateatro, embora ele não seja somente
metateatro. A peça representaria, em forma metafórica, o próprio teatro. E, assim como
Shakespeare e os demais dramaturgos da época, Hamlet age como dramaturgo
reescrevendo a peça que a companhia apresentará para a corte acrescentando certos
pontos, desta maneira, reinterpretando-a e ressignificando-a. E por fim, há a infusão da
crise de sentido; consequência da mudança religiosa do mundo elisabetano. Hamlet
parece dizer algo sobre o homem em um contexto de crise de sentido outrora
estabelecido do mundo por conta do avanço da Reforma.
Para traçar os limites28 que o plano do mundo intersubjetivamente compartilhado
exerce sobre o plano da objetificação, acompanharei a interação de Hamlet com seu
ambiente na peça, a fim de depurar as principais questões advindas da perspectiva do
mundo intersubjetivo do autor. Com esses limites é possível reconhecer o contexto
interno da obra que impulsionaria o desenvolvimento de uma ideia objetiva.
Metateatralidade
O pano de fundo da peça como um todo é o assassinato do antigo rei Hamlet por
seu irmão Cláudio, que se torna o atual rei e desposa em tempo recorde Gertrudes, a
rainha, viúva do rei Hamlet e mãe do príncipe Hamlet. Hamlet concebe como estratégia
fazer com que a companhia encene uma peça que simule o assassinato de um rei
gélida, ele lhe proporcionará Hamlets inteiros, eu poderia dizer punhados de discursos trágicos” (Shapiro,
2011, p.320). Nashe atribuía à criação de Ur-Hamlet a Thomas Kyd, o mesmo autor de A Tragédia
Espanhola, a primeira das tragédias modernas, que também seguia o modelo de tragédia de Sêneca.
Shakespeare com seu Hamlet inaugura um novo tipo de tragédia que ele usará em obras muito
importantes posteriores como Othello, Macbeth e Rei Lear.
28
Isto também tem a função de limitar uma análise de uma obra literária como feita por Bourdieu sobre o
espaço interno da obra e o espaço social do autor: “A escrita abole as determinações, as sujeições e os
limites que são constitutivos da existência social: existir socialmente é ocupar uma posição determinada
na estrutura social e trazer-lhe as marcas, sob a forma especialmente, de automatismos verbais ou de
mecanismos mentais, é também depender, ter e ser tido, em suma, pertencer a grupos e estar encerrado
em redes de relações que têm a objetividade, a opacidade e a permanência da coisa e que se lembram sob
a forma de obrigação, de dívidas, de deveres, em suma, de controles e sujeições” (BOURDIEU, 1996,
pp.42-43).
semelhante ao que supostamente acontecera em Elsinore para “pegar” seu tio Cláudio
(atual rei) e, assim, ser revelada a ele (Hamlet) a verdade29; sendo esta uma das facetas
da metateatralidade da peça30.
A peça ganha valor de representação da representação, isto é, representação do
teatro, quando Hamlet decide fingir que está louco, ou seja, decide atuar no papel de
louco. Em concordância com o crítico literário Harold Bloom, a possibilidade da
autoconsciência da atuação de Hamlet está em Horácio que é a representação da plateia
no teatro. Este é um ponto importante no avanço da consolidação da interioridade do
personagem, que será vista mais a frente. Hamlet conta a Horácio que atuará um papel e
que ele é seu cúmplice no sentido de uma plateia que sabe e não pode comunicar os
eventos aos atores que atuam. Quando Hamlet indaga a Horácio o que fazia ele na
Dinamarca, o mesmo responde: “Uma vontade de vadiar” (I,ii, 175); prontamente,
Hamlet o defende dizendo que a plateia não é vadia. Esta é uma defesa clara aos ataques
dos pastores protestantes da época que eram contrários aos teatros acusando os atores de
serem libertinos e a plateia (as audiências, o público) de ociosa, alheias à ética do
trabalho. Hamlet reconhece que parte deste ataque tem razão, mas pondera: “Outros
povos acusam-nos e apontam – por causa dessas farras – como bêbados, e nos tacham
de porcos e relapsos. Realmente isso nos tira os altos feitos, A força e a essência da
reputação.” (I,iv, 19-22)
O sentido da atuação de Hamlet só se constitui após o encontro do fantasma de
seu pai: a vingança. Todavia, este será sempre um fim frouxo, dado a dificuldade de
justificação de Hamlet em realizar tal ato. Ao fim do encontro com o fantasma de seu
pai (que está no purgatório tentando purificar sua alma, uma vez que morrera sem os
sacramentos católicos), há uma nova alusão da autoconsciência da peça: quando o
fantasma diz “Recorda-te de mim” (I,iv,95) Hamlet diz: “Recordar-te! Por certo, alvo
29
Ponto de imensa importância, pois certamente Shakespeare acreditava que a representação do real
poderia mostrar o que é o real (da mesma maneira que ele diz em Julius Caesar “No, Cassius; for the eye
sees not itself/ But by reflection, by some other things” (I, ii, 57-58), mas não consegue fazer, ele
consegue com Hamlet). Uma das suposições é a de Hamlet, em seus solilóquios além de consolidar a
internalização diz algo sobre a verdade do ser-humano. Há, no interior da teoria de Weber, um conceito
de ser-humano (o mesmo existe para Alfred Schutz, autor que emprego para aprofundar a teoria da ação
de Weber), dessa maneira, persiste no processo de intelectualização este conceito. Não é o caso de
afirmar, assim como Harold Bloom, que Shakespeare inventa o humano, mas ele sem dúvida reflete
alguma coisa de existencial sobre alguma facete desse ser-humano, portanto, apresenta alguma verdade.
30
Conforme argumenta Harold Bloom: “Ao longo de quase mil linhas, cerca de um quarto da extensão da
peça, Shakespeare abre um hiato na representação da realidade, ou mimese da ação. Decerto, as platéias
do Globe, nas tardes de 1601, eram sofisticadas o bastante para aceitar uma arte que, propositadamente,
abandona, e mais adiante retoma, as ilusões da representação cênica” (Bloom, 2004, p.31).
fantasma! Enquanto houver memória neste globo atônito.” (I,iv, 100-3) O globo atônito
é referência ao Globe, o teatro no qual a companhia de Shakespeare atuava. Aqui
Shakespeare expressamente diz que a existência do teatro representa a existência da
memória do livre arbítrio, expressão no humanismo31 de raízes católicas. Isso também
toca no embate das pressões que os protestantes exerciam para o fechamento dos
teatros, uma ameaça muito concreta que sempre quando pode fora exercida.
Guerra dos teatros
A guerra dos teatros tem início quando uma companhia de teatro chega ao
castelo de Elsinore e se desenrola durante o segundo e o terceiro ato. Quando Hamlet
pergunta: “Que atores são eles?” (II,ii,322), Rosencrantz (amigo de Hamlet em
Wittenberg) responde: “Os mesmo que o Senhor costumava ouvir com tanto gosto, os
trágicos da cidade” (II,ii, 323-4) (como fora conhecida a companhia do próprio
Shakespeare, Lord Chamberlaine’s Men). Hamlet, na sequência, passa interrogar os
motivos por eles terem saído em itinerância, indagando se eles não tinham mais público.
Rosencrantz diz que eles não tinham o mesmo público de outrora por conta de uma
“inovação”, de “um grupo de pirralhos, filhotes de falcão, que gritam mais que os
outros, e são delirantemente aplaudidos por isso. Eles estão em moda...” (II,ii,333-4) A
referência é a companhia rival, Children of Chapel, dirigida pelo antigo colega e rival
da companhia de Shakespeare, Ben Jonson entre 1600-132. Ainda nesta sequência,
Shakespeare deixa claro sua opinião da luta entre os teatros e as companhias por
patrocínio, utilizando a voz de Rosencrantz e Guildenstern deliberadamente em defesa
da arte pela própria arte33. Rosencrantz diz: “A verdade é que tem havido muito
31
“Emrye Jones escreveu: ‘Shakespeare deve ser visto como um escritor que inevitavelmente respirou a
atmosfera neoclássica’, adicionando: ‘sem o humanismo poderia não ter havido literatura elisabetana: sem
Erasmus, não existiria Shakespeare” (Gillespie, p.114).
32
Seguindo a tese central do interessante estudo de James Bednarz, em Shakespeare and the Poets’ War,
que Ben Jonson começou a se definir explicitamente como opositor de Shakespeare através de seu drama
em 1599; Shakespeare, em contrapartida, reagira com peças metateatrais, sendo Hamlet uma delas.
Todavia, Jonson e Shakespeare trabalharam juntos na Chamberlaine’s Men entre 1598-9.
33
Que sem dúvida, não foi uma invenção de Flaubert e Baudelaire como defende Bourdieu. Há, todavia,
uma espécie de atitude cínica sustentada por Hamlet e, assim, por Shakespeare, em relação à arte pela
arte. Provavelmente isso fazia parte do próprio jogo do teatro, uma vez que a experiência do teatro levaria
a obra a um contato imediato com a plateia, seguido da competição existente entre os autores e os teatros.
Em outras palavras, a razão de ser de uma peça nesse período elisabetano se dá na relação que ela tem
com outras peças e outras referências externas. O campo literário, conforme argumentado por Bourdieu
em seu Flaubert, não partilharia da mesma experiência, uma vez que o romance não conseguiria ter o
mesmo apelo e, até mesmo, grau de competitividade que existira nesse período. Se lá Flaubert poderia
passar meses para concluir um parágrafo, como atesta Bourdieu, aqui a produção de peças era incessante,
de três a quatro peças por ano por autor, de vários autores distintos, muitas nem mesmo sendo publicadas
e outras vindo a público anonimamente.
barulho de ambas as partes, e o povo não julga pecado atiçá-los à luta. Durante algum
tempo, não houve interesse financeiro por nenhuma peça a não ser que o poeta e o ator
não brigassem aos murros pela questão” (II,ii, 345-9) E conclui Guildenstern: “Oh, tem
havido muito desperdício de cérebro.” (II, ii, 351). O que culminará na defesa e louvor
do estatuto do ator/autor, a colocação de sua posição acima de um quinhão de nobres
“pois são o resumo e a crônica de nosso tempo” (II,ii, 519) – o que só vem, também, a
mostrar a defesa consciente que Shakespeare fez de sua opinião representada no
príncipe Hamlet e o jogo que Shakespeare estava jogando com esta peça. Se a isso
somarmos as frequentes vezes que o príncipe Hamlet igualou todos os homens
utilizando o republicano argumento da ausência de sentido maior na finitude – de que
todo homem irá para o pó, não importando se rei ou mendigo – o ator/autor tem especial
vantagem nesse ciclo, já que sua expressão é a expressão de seu tempo, algo de sua
obra, nem que seja um “mau epitáfio”, seria melhor historicamente do que qualquer
outra coisa. Em um mundo que perde seu sentido, a única transcendência possível
parece ser a estética.
Crise de sentido
A questão do sentido (e a eventual crise de sentido) diz respeito ao ponto inicial
do processo de intelectualização: a necessidade de atribuição de sentido ao mundo, que
seria uma necessidade interior (em oposição à necessidade exterior) do conceito de serhumano. As sugestões de trabalho mais interessantes a este respeito estão no trabalho de
Curran Jr, Hamlet, Protestantismo e o Lamento da Contingência: o não ser [Hamlet,
Protestantism, and the Mourning of Contingency: Not to be] sobre a existência da
progressiva disseminação do protestantismo calvinista e sua concepção de mundo na
Inglaterra. Disseminação que parece se sobrepor, aos poucos, ao catolicismo e sua
maneira de ver o mundo, principalmente em relação ao livre-arbítrio34. Como atesta
Curran Jr: “Em Hamlet, assim como na Inglaterra elisabetana, o protestantismo sempre
vence, e essa vitória, na peça, é finalmente reconhecida” (Curran Jr., 2006, p.3). Mas,
além disso, a vitória do protestantismo resultaria em um possível mundo secular futuro.
Parte de meu argumento central é a de que o rei Hamlet, representaria o
catolicismo, assassinado por Cláudio, seu irmão, que representa o protestantismo
calvinista (irmão do catolicismo). Assim, o fantasma do rei Hamlet representa o
34
Que tem sua especial expressão no humanismo que vinha sendo desenvolvido desde Petrarca no século
XIV.
fantasma do catolicismo, expressando seus últimos suspiros. Gertrudes, a rainha, por
sua vez, poderia ser a representação de Elizabeth, a rainha inglesa, mas Gertrudes
poderia ainda melhor representar a nação inglesa, que estava casada com o catolicismo
(o rei Hamlet) e logo após sua morte se lançou numa relação de concubinato com seu
irmão, o protestantismo (Cláudio) – que é na opinião de Shakespeare pela voz do
príncipe Hamlet: menos virtuoso mais ardil e vil – sendo que Gertrudes mal se dera
conta de tudo isso.
E, finalmente completando o quadro familiar, Hamlet representa o indivíduo do
humanismo inglês, filho órfão do catolicismo, e que sente em sua subjetividade um
sentimento de crise, que tem em seu peito “o que não passa” (I,ii, 88), e que diz “se não
fosse os maus sonhos que tenho” (II, ii, 255-6) sonhos estes que expressam a supressão
do livre-arbítrio e da consequente liberdade humanista, mas que expressam também um
sentimento do mau augúrio, de uma possível luta fratricida, na qual irmão se lançaria
contra irmão – o medo da guerra civil, do qual Shakespeare, leitor de Maquiavel, tanto
tinha consigo. O príncipe defende até o terceiro ato – que encerra o clímax da peça –
uma visão de mundo católica do livre arbítrio, sobretudo em seu mais famoso
solilóquio: “Ser ou não ser, essa que é a questão” (III,i,57) onde ele pondera entre a
resignação ou o enfrentamento da “trágica fortuna”, levando ao argumento de que: “é a
conclusão que devemos buscar” (III,i,64-5), isto é, o livre-arbítrio.
Após o terceiro ato (de cinco), a livre-ação dos personagens já não parece
conseguir se assenhorar de seus próprios destinos, da “trágica fortuna”. Tudo parece
adquirir vida própria, beirando a um fim inevitável, no qual alguns pressentem, mas o
único verdadeiramente consciente disto é o príncipe Hamlet. O terceiro ato encerra a
presença do fantasma do rei, que não mais volta a se apresentar na peça, marcando
assim, o fim da visão de mundo católica e o início do triunfo da visão calvinista de
mundo, marcada pela Doutrina da Predestinação. Na medida em que as ações no interior
do contexto da obra acontecem, passam a ter, paulatinamente, certa independência do
contexto de origem ao criar uma situação que começa a operar por regras próprias,
como consequências imprevistas, efeitos perversos e o sentimento de sufocamento, da
situação de não diálogo existente no auge da peça, quando as duas visões de mundo que
têm sua origem nos marcos religiosos, mas não são esgotados por eles, são confrontados
e impõe uma situação de razão/desrazão, lucidez e loucura, ai já não é mais aberta a
possibilidade de recolocá-lo de sua fonte primária, o mundo intersubjetivo onde o autor
se situaria.
O príncipe Hamlet tem um problema que é anterior a seu contato com o
fantasma de seu pai (que lhe conta que fora assassinado por Cláudio). Ao ser
interrogado por Cláudio e por sua mãe, ele diz expressamente estar em aparente mágoa
pela morte do pai. Em outras palavras, ele tinha consciência da atuação do luto por seu
pai, mas não era o que ele sentia. A aparente mágoa não é, senão, a fachada do luto que
os diferentes personagens têm que encenar. Ciente de que está representação no mundo,
ele diz: “esses ‘parecem’, pois são ações que o homem representa: (...); Meus trapos são
o adorno da desgraça.” (I,ii,86-89)
Hamlet parece sofrer da perda da capacidade de percepção do sentido do mundo,
tornando tudo vão (sem sentido): “como são gestos vãos, inúteis, a meu ver, esses
hábitos do mundo!” (I,ii,136-7)35; sustentando, também, uma sensação de crise social
eminente, que é expressada por ele via. Embora ele ainda não tenha consciência dessa
crise social, pois ele não encontrou o fantasma de seu pai, ele a pressente. Daqui temos
ao menos a certeza de que não é morte do pai que o incomoda, isto é, não é a morte do
catolicismo, mas outra coisa.
Desdobramento do metateatro e da crise de sentido no clímax
A encenação para pegar Cláudio, apresentando-o o reflexo da verdade, é bem
sucedida, causando o efeito esperado no Rei. A partir daqui o encaminhamento para o
climax é feito de maneira cada vez mais acelerada, culminando no diálogo travado entre
Hamlet e Gertrudes, conjuntamente com o assassinato de Polônio. Mas antes de chegar
ao quarto de sua mãe, Hamlet encontra o Rei em seus aposentos, em seu solilóquio
próprio, que é identificado pelo príncipe como se estivesse rezando. Por um breve
momento Hamlet pensa em matar o Cláudio; porém, após uma argumentação consigo
mesmo, ele decide por não fazê-lo, pois ali ele não teria sua vingança, uma vez que
despacharia seu tio em um momento propício a ele, o momento no qual ele não estaria
em pecado, pois estaria rezando. Na verdade, Hamlet não consegue justificar o ato da
vingança, pois não há um sentido ético e metafísico óbvio no mundo36. Ele tenta, todo
tempo, resolver primeiro os problemas éticos e morais da sua ação37. Marcando uma
35
A principal fonte de referência para esta lamentação está no Primeiro Livro do Eclesiastes, capítulo I,
em que o autor (que a tradição atribui a Salomão, embora não seja verdade) lamenta: “vaidade, tudo é
vaidade”.
36
“Hamlet sabe que tem que matar Cláudio, mas não consegue justitificar essa ação, porque o apelo à
honra tradicional do vingador soa vazio” (Shapiro, 2011, p.348).
37
“Dentro deste labirinto, Shakespeare força Hamlet a confrontar uma série de problemas éticos que ele
precisa resolver antes de poder agir” (Shapiro, 2011, p.338).
diferença gritante entre a estória original de Amleth e as próprias tragédias
contemporâneas (inspiradas em Sêneca) que têm validade em uma moralidade dada.
Hamlet chega ao quarto da rainha, enquanto Polônio já está escondido atrás do
reposteiro. A cena se configura em torno de um progressivamente angustiante “diálogo”
em que as duas partes não se entendem. É como seus mundos fossem distintos e sua
intersubjetividade não fosse compartilhada. Gertrudes tenta convencer que o filho está
louco, enquanto Hamlet pretende mostrar a verdade a ela: “Não irás sem que vejas num
espelho a mais íntima parte de ti mesma” 38 (III,iv,19-20); Gertrudes, todavia, encara as
palavras de seu filho como se estivessem veladas de um sentimento homicida e, ao
gritar socorro, Polônio se assusta e é assassinado por Hamlet que, por sua vez, não se
comoveu. Sua questão é, de uma vez por todas com Gertrudes.
A rainha indaga Hamlet: “Que fiz eu, para assim me censurares levianamente,
num clamor tão rude?” (III,iv,41-2) e ele responde a ela: “Um ato que do próprio
matrimônio arranca a alma, e da doce religião faz um arranjo de palavras.” (III,iv, 4950). Ela não consegue perceber o que Hamlet quer dizer, até que ela o indaga uma nova
vez e ai fica claro para a transposição para a peça da crise da católica de mundo católica
em face da concepção protestante; diz ele: “Olha neste retrato e neste outro, a
representação de dois irmãos.” (III,iv, 56-7) isto é, o rei Hamlet e Cláudio, catolicismo e
protestantismo, irmãos, credos cristãos. O primeiro é marcado como belicoso honrado
“pareciam dos deuses ter a marca”, enquanto o outro era ardiloso, sorrateiro, vil “espiga
podre que contamina a safra” (III,iv, 67-8), “Assassino e vilão, mísero escravo, que não
vale um vigésimo do dízimo do teu antigo esposo, um rei palhaço, usurpador do reino e
do comando” (III,iv, 102-5) – e não a toa as metáforas “escravo” e “dízimo”. Assim,
Hamlet questiona retoricamente e conclui em seguida, “Mas que escolha seria entre este
e o outro? Certamente tens sentidos, mas ‘stão paralisados” (III,iv, 73-5) Gertrudes não
se deu conta, a nação inglesa não se deu conta, estariam num estado de ataraxia, ou
mesmo de uma apatia que o príncipe Hamlet (e Shakespeare) parecem temer
angustiadamente. Por um lado, a falta de liberdade da existência que todos estariam
fadados – e que será consumada ao final da peça. Por outro, a luta entre irmãos que
ameaça o reino, a Guerra Civil, como se verá menos de 50 anos depois na Inglaterra.
Todo esse clamor faz o fantasma do rei Hamlet aparecer uma última vez, como se
estivesse resignado, pronto a deixar a existência. Hamlet tenta mostrar a sua mãe “Tu
38
“No, Cassius; for the eye sees not itself/ But by reflection, by some other things” (I, ii, 57-58 - Julius
Caesar)
não vês nada?”, que responde “Nada, mas vejo tudo o que nos cerca” proferindo ao
filho seu diagnóstico “Essa é uma criação do teu espírito”. Os tempos antigos, o
catolicismo e a contingência do homem se vão, dão lugar a um mundo concreto com um
destino inevitável (nosso mundo moderno). E nessa crise, nesse extinguir de um modo
de ser, a única coisa possível a Hamlet, além de seu sentimento de crise, é o sentimento
de corrupção do mundo: “enquanto a corrupção vai te minando, invisível, cruel.” (III,iv,
159-160)
O mundo secular
O resto da peça é marcado pelas conjecturas que ganharam força própria no
interior da obra. Hamlet é enviado para Inglaterra e escoltado por seus dois colegas,
Rosencrantz e Guildenstern, para que seja executado lá; quis o destino que ele se safasse
e Rosencrantz e Guildenstern se encaminhassem para a morte em seu lugar. Laertes,
filho de Polônio, o conselheiro assassinado por Hamlet volta da França para a
Dinamarca para se vingar do assassinato com pretensões ao próprio trono; acaba se
aliando ao rei e logo sabem da volta de Hamlet, arquitetando, assim, um plano de morte
do príncipe. Ofélia enlouquece e se suicida, quando enfim a pressão sobre ela termina.
A vingança arquitetada contra Hamlet – que agora não quer mais vingança – volta-se
contra todos, e todos morrem na última cena, exceto Horácio. Um fim inevitável, mas
que é anteriormente pressentido por Hamlet, que só pode se resignar. Talvez o único e
último ato de liberdade (todavia contrária a própria liberdade): resignar-se.
Na última cena Hamlet diz a Horácio “Dentro do peito eu tinha algo lutando que
me impedia de dormir. Sentia-me pior que entre grilhões” (V,ii, 4-6) Ele não se sente
mais, pois a determinação da visão de mundo calvinista prevaleceu na Dinamarca
(Inglaterra), por mais que ele, o Príncipe, tenha agido maquiavelicamente conforme a
um “Elogio a loucura” como defendera Erasmus uma geração anterior, e que marcou
profundamente o autor, Shakespeare. Mas ele não conseguiu fugir, e a ele coube tais
palavras: “Quando falham os planos bem pensados, a divindade nos acerta os fins,
Quando nós os lascamos.” (V,ii, 9-11).
IV. Terceiro Plano
O processo de constituição de uma interioridade psicológica bem acabada em
Hamlet parece ser um ponto de comum acordo entre os especialistas mais relevantes e
atuais de Shakespeare de correntes distintas. Há forte discordância no que diz respeito
ao início do processo ou como que as maiores influências se dão neste sentido. Por
exemplo, Harold Bloom (quem cunha o termo processo de interiorização) argumenta
que nas peças de Shakespeare, o processo de interiorização dos personagens só
apresenta força característica a partir do triunfo cômico do personagem Falstaff. A
principal hipótese é que, depois de concluídos os personagens Falstaff, Hal e Bruto,
Shakespeare decidira rever sua própria prática de dramaturgo, retornando ao princípio
da carreira, talvez em tributo a Hamnet, o filho que falecera. A tese de Bloom aqui
continua afirmando sobre a necessidade da tristeza como conceito chave do
revisionismo do autor39.
O mistério de Hamlet, e da própria peça, depende da noção de tristeza
como mecanismo de revisão, e, talvez, do processo de revisão, em si,
entendido como uma espécie de nostalgia por um Shakespeare mais
jovem. Aos 36 anos, Shakespeare parece conceber estar diante de um
momento máximo, transcendental, e concentra aqui todo o seu talento,
na ocasião em que se volta para o esforço revisionista de uma
intensidade jamais observada antes (ou depois) em sua carreira
(Bloom, 1998, p.499).
Bastante próximo do argumento de Greenblatt,
Algo mais profundo deve ter trabalhado em Shakespeare, então, algo
poderoso o suficiente para invocar a representação da interioridade
atormentada sem precedentes. “ser ou não ser”: como as audiências e
os leitores longamente entenderam de maneira instintiva, esses
pensamentos suicidas, provocados pela morte de alguém amado, está
no coração da tragédia de Shakespeare. Elas podem estar também no
coração do próprio distúrbio interior do dramaturgo. Os Shakespeares
nomearam seus gêmeos, Judith e Hamnet, após seus vizinhos de
Stratford Judith e Hamnet Sadler. O último apareceu nos registros de
Stratford tanto como Hamnet quanto Hamlet Sadler; na ortografia
frouxa da época, os nomes eram virtualmente intercambiáveis. Mesmo
que a decisão de refazer a antiga tragédia fosse uma decisão
estritamente comercial, a coincidência dos nomes – o ato de ter que
escrever o nome do próprio filho de novo e de novo – pode ter muito
bem reaberto uma ferida profunda, uma ferida que nunca se curaria
propriamente. (Greenblatt, 2004, p.334).
Andrew Gurr defende uma hipótese, muito mais ampla que a de Bloom e a de
Greenblatt, de que o desenvolvimento de interiorização nos personagens teve sua
origem não apenas com as peças de Shakespeare, mas, sim, nas três grandes peças que
apresentaram os primeiros grandes personagens na primeira fase do teatro, antes da
morte de Marlowe e Kyd: Tamburlaine, Fausto e Hierônimo.
As grandes figuras de palco do período de Marlowe, Tamburlaine, Fausto e o
herói de A Tragédia Espanhola, compartilhavam diversos fatores. Eram
todos figuras históricas ou quase históricas sem nenhuma grande
39
Argumento semelhante está presente em Greenblatt.
reinvindicação nos livros de histórias. Todos falam grandes versos. Todos são
personalidades poderosas, e todos eles encaram desafios pessoais imensos.”
(Gurr, 2004, pp.165-6).
Estes personagens teriam contribuído decisivamente para o processo que
Shakespeare aprimoraria e chegaria ao topo com Hamlet40. A influência dessas peças
sobre outras peças depois delas foi grande. Os progressos de Marlowe em Tamburlaine
com o verso branco decassílabo foi decisivo para a encenação teatral que será
amplamente utilizada pelos demais, incluindo Shakespeare. Marlowe teria agarrado a
chance de mobilizar o público. Em suma, para Gurr: “Com o desenvolvimento da
‘personation’ de Shakespeare nas interações entre os personagens no palco41,
recolocando o emocionalismo dominante das poderosas linhas (versos) de Marlowe, foi
o que cresceu de salto evolucionário nos anos 1590” (Gurr, 2004, p.165).
Gurr e Bloom discordam sobre a contribuição de Marlowe e Kyd acerca do
processo de interiorização dos personagens. Para Bloom, haveria um “impulso interior”
desde a série Henrique VI (primeira peça do autor), embora Shakespeare não tenha
atingido maturidade o bastante para atingi-la. Marlowe não teria sido capaz de oferecer
subsídios a Shakespeare no aprimoramento da arte de interiorização. Shapiro também
discorda de Gurr, porém a explicação do processo de interiorização difere de Bloom e
Greenblatt42. Sua explicação tenta dar conta do fenômeno sem reduzi-lo ao primeiro
plano atribuindo as causas para a profunda subjetividade do autor ainda com apelo à
tristeza (Bloom), para seu momento contingencial de tristeza pela perda do filho e,
assim, sua relação mais aguda com a morte (Greenblatt), por um efeito geral e difuso do
clima da época e do teatro (Gurr). Ela leva em consideração tanto relações intertextuais
com outros autores, quando um caminho de desenvolvimento de ideias interno e
próprio.
A chave está no uso do solilóquio. Assim como os demais especialistas, Shapiro
afirma que “ele [Shakespeare] escrevera solilóquios memoráveis desde o começo de sua
carreira, mas, por mais poderosos que fossem não chegavam perto da intensa percepção
40
Diz Gurr que os motivos iriam para além do ator fingir ser um ser-humano, ele diz que a audiência
projetou nos três personagens desejos pessoais, cada um dos personagens representando os desejos
profundos da mentalidade elisabetana. “Tamburlaine, o pastor, tornou-se um conquistador incorporando o
militarismo e o poder terreno. Fausto, o cético, incorporou a dúvida religiosa. Hiperônimo, o vingador,
construiu um modelo de justiça terrena em um mundo corrupto.” (Gurr, 2004, p.166)
41
“A emoção de massa nas audiências dos teatros e uma ‘personation’ poderosa no palco cresceram
juntas ao final da década de 1580” (Gurr, 2004, p.166).
42
“A sensação de interiorização que Shakespeare cria nos permite ouvir um personagem tão inteligente
quanto Hamlet lutar contra seus pensamentos, e é algo que nenhum dramaturgo jamais conseguiria até
então” (Shapiro, 2011, p.329).
de si mesmo que encontramos em Hamlet” (Shapiro, 2011, p.329). Em sua peça escrita
meio ano antes do início de Hamlet (1599), Julius Caesar, Shakespeare emprega,
sobretudo no início da peça, falas importantes no personagem de Bruto, mas que não se
desenvolvem. A hipótese de Shapiro neste ponto é a influência de uma construção
objetiva, a forma de ensaio pessoal, inaugurada por Montaigne com seus Ensaios. Os
dois primeiros ensaios foram publicados em francês em 1580 (que Shakespeare poderia
ter lido já que possuía domínio ao menos instrumental de francês), embora a tradução
inglesa somente tenha saído em 1603. Não se pode fazer uma relação direta da
influência de Montaigne até a construção de Hamlet, o que se pode afirmar com
segurança é a existência de certo paralelismo nas formulações de autoconsciência e
conflitos internos acerca de dilemas éticos e morais. O desenvolvimento deve ser
captado no interior das próprias peças de Shakespeare.
A interioridade psicológica e existencial de um personagem é criada quando ele
procura resolver um conflito ético que não possui uma verdade estabelecida no mundo.
E em um personagem teatral isto seria mais bem captado nos solilóquios. Vejamos os
solilóquios de Falstaff em 1 Henrique IV, Brutus em Julius Caesar e Hamlet e falas
destes dois últimos.
Antes da batalha de Shrewsburry, príncipe Hal faz uma cobrança moral a
Falstaff, dizendo que ele devia uma morte a Deus, quando Falstaff43 disse que a tocante
fala: “Desejara, Hal, que fosse hora de deitar e que tudo estivesse bem” (V, i, 124).
Após a saída de Hal, Falstaff se lança em um questionamento sobre a honra e sobre a
morte:
A letra ainda não está vencida, repugna-me pagá-la antes do termo.
Que necessidade tenho eu de ir ao encontro de quem não me chama?
Bem, não importa: é a honra que me incita a avançar. Sim, mas, se a
honra me levar para o outro mundo, quando eu estiver avançando? E
então? Pode a honra encanar uma perna? Não. Ou um braço? Não. Ou
suprimir a dor de uma ferida? Não. Nesse caso, a honra não entende
de cirurgia? Não. Que é honra? Uma palavra. Que há nessa palavra,
honra? Vento, apenas. Bela apreciação! Quem a possui? O que morreu
na quarta-feira. Pode ele senti-la? Não. Ou ouvi-la? Não. Trata-se,
então, de algo insensível? Sim, para os mortos. E não poderá ela viver
com os vivos? Não. Por quê? Opõe-se a isso a maledicência. Logo,
não quero saber dela: a honra não passa de um escudo de porta de casa
de defunto. E aqui termina o meu catecismo. (V, i, 126-134 – 1
Henrique IV).
43
Sobre o personagem, Greenblatt, que defende a tese de que Shakespeare transformava toda a sua vida
vivida em sua arte, argumenta, longamente, que a formação de Sir John Falstaff, o velho gordo fanfarrão,
foi produto da transformação literária de um dos adversários de Shakespeare que morrera na primeira fase
do teatro, Robert Greene.
Nada poderia ser tão diferente de Bruto e Hamlet no que diz respeito à
melancolia e a relação com a possibilidade de morte iminente. Falstaff tem uma posição
cética em relação a algo que justificaria a ação, de certo modo próximo à ação de
Hamlet. Contudo, este ceticismo está marcado mais pelo pavor da morte (e a vontade de
evitá-la) do que pela perda total de sentido do mundo. A perturbação interior por um
sentido do mundo não é uma questão para Falstaff, senão apenas quando a possibilidade
de morrer se faz presente a ele. Quando isso acontece, ele não se questiona sobre ela,
mas, sim, evita-a procurando manter sua conduta de vida costumeira, uma vida de
glutonia, preguiça, alguma malandragem e ceticismo em relação aos grandes feitos.
Em Julius Caesar a interioridade do personagem ganha uma nova luz. Contudo,
ela é apenas embrionária, indo até a primeira cena do segundo ato. A conversa entre
Cássio e Bruto na cena dois do primeiro ato se assemelha, em parte, à primeira conversa
que Gertrudes (a rainha) tem com Hamlet quando a rainha fala sobre a tristeza, a
melancolia do filho.
Meu caro Cássio, não vos iludais; se o olhar tenho velado, é apenas
contra mim mesmo que dirijo meu desgosto. Paixões de diferente
natureza me afligem de algum tempo, pensamento que tão-somente a
mim dizem respeito, e que minha conduta, por ventura, sujam de
algumas manchas. (...)Bruto, estando em guerra consigo mesmo,
esquece-se, por vezes, de patentear o amor que vota aos outros. (I, ii,
41-52 – Julius Caesar)
“Parece”, não, Senhora; é, não “parece”. Não é apenas meu casaco
negro, boa mãe, nem solene roupa preta, nem suspiros que vêm do
fundo da alma, nem o aspecto tristonho do semblante, com as formas
todas da aparente mágoa que mostram o que sou: esses “parecem”,
pois são ações que o homem representa: Mas eu tenho no peito o que
não passa; meus trapos são o adorno da desgraça (I, ii, 80-89 Hamlet).
Bruto sabe que sofre, sabe que está em conflito consigo mesmo, mas não parece
ter plena consciência da fonte de sua dor. Ele mantém uma conduta soturna que procura
evitar os outros. Hamlet, por outro lado, entende a diferença entre a encenação da
tristeza e o reconhecimento da existência de uma melancolia “no fundo de seu peito”
anterior à morte de seu pai. Hamlet tem autoconsciência da sua atuação no mundo e de
sua dor, enquanto Bruto parece expressar que chegar a este ponto não seja possível:
“Não Cássio; o olho a si mesmo não enxerga, senão pelo reflexo em outra coisa” (I, ii,
57-58). A posição de Cássio é muito distinta da de Horácio ou qualquer outro
personagem em Hamlet, ele se coloca para Bruto como sendo espelho, dizendo que “por
maneira modesta vou mostrar-vos o que de vós desconheceis ainda”44. Hamlet distingue
aquilo que é contingencial daquilo que é transcendente, pois ele teria no peito; “algo que
não passa”. Bruto jamais poderia atingir este nível em uma tragédia romana, pois logo o
valor maior do homem político, do cidadão romano fala em sua mente. Bruto
pessoalmente ama César, mas sabe que César tem que morrer pelo bem público.
Preciso é que ele morra. Eu, por meu lado, razão pessoal não tenho
para odiá-lo, afora a do bem público. Deseja ser coroado. Até onde
influirá isso em sua natureza, eis a questão. (II, i, 10-13 - Julius
Caesar)
Entre o valor individual e o valor coletivo, triunfa o coletivo, pois eles são antes
de tudo, romanos. César tem que morrer por se tornar cada vez mais um indivíduo (aos
moldes de Tamburlaine de Marlowe) que, por outro lado, não tem consciência de si
mesmo, construindo uma imagem para si sem limites. Pode ser atribuída a Falstaff,
maior interioridade do que a César, pois, Falstaff (embora não se questione sobre o
valor de sua vida em relação à morte e com um isso não lança um questionamento
subjetivo e uma tentativa de interpretação do sentido do mundo) teme a morte sabendo
que ela limita a sua subjetividade. Em outras palavras, Falstaff tem consciência do
limite de sua existência na morte, por isso ele descarta a honra, com, o algo vazio. Bruto
diz que “a honra prezo e a morte não receio”; Cássio também diz não ter receio da
morte e várias vezes fala do suicídio. Mas a própria relação da autodestruição é muito
diferente em Cássio, Bruto e Hamlet. A morte para Cássio é vista como liberdade (dos
antigos) “Então já sei como hei de usar a adaga. Cássio há de libertar o próprio Cássio
da escravidão.” (I, iii, 92-3). Uma possível morte de Bruto, mesmo ele não evocando o
suicídio de maneira direta, caminha no sentido do sacrifício para o bem comum, o bem
de Roma. O suicídio e a honra para Hamlet não têm uma conclusão direta nesse mundo,
em seu primeiro solilóquio ele diz: “Oh, se esta carne rude derretesse, e se desvanecesse
em fino orvalho! Ou que o Eterno não tivesse oposto seu gesto contra a própria
destruição! Oh, Deus! Como são gestos vãos, inúteis, a meu ver, esses hábitos do
mundo!” (I, ii, 132-7). O mesmo questionamento do suicídio volta a aparecer no
solilóquio famoso do “Ser ou não ser”.
Em Hamlet o mundo cindido entre protestantismo e catolicismo, a perda do
sentido do mundo anterior possibilitaria, enfim, a existência de um protagonista que
44
Os versos em inglês de Cássio são muito mais sonoros e parecem ainda mais diretos à afirmação de
Bruto sobre a impossibilidade de autoconsciência do próprio conflito interno: “So well as by reflection, I,
your glass,/ Will modestly discover to yourself/ That of yourself which you yet know not of” (I, ii, 73-5).
consegue mergulhar em si próprio. Em Julius Caesar isso não seria possível, pois
embora o questionamento do ato do assassinato tivesse tido algum dilema ético para
Brutus, que era o mais próximo de César, o bem de Roma vinha antes. Na Inglaterra
protestante, a salvação é individual, não sendo possível justificar uma ação senão no
próprio individuo. A verdade está na vontade de deus, a vontade de deus é captada e
interpretada pessoalmente, seja pelos sinais de deus em oração ou pela palavra da
Bíblia. A ancoragem do sentido último do mundo perde uma referência imediata,
levando a necessidade de resolução da ação e da não ação todo o tempo. Hamlet não
podia agir com honra como o fez o Hierônimo de Thomas Kyd, o Amleth tradicional ou
qualquer outro que poderia agir com moral.
Ao localizar o conflito da peça dentro de seu protagonista,
Shakespeare transformou para sempre a tradicional peça de vingança,
em que aquele conflito tinha até então sido externalizado, batalhado
entre o herói e os poderes antagônicos, e na qual o herói (como
Amleth das fontes de Shakespeare) tinha que adiar por razões práticas
e de autoproteção. Essa foi a grande ruptura de sua carreira (Shapiro,
2011, p.338).
John Falstaff é o primeiro a questionar a validade da moral, as consequências
dos atos (mesmo tidos como nobre) são claras em Julius Caesar, em Hamlet as duas
coisas se combinam em um individuo que cria uma consciência de si e a consciência de
uma consciência. O núcleo do contexto na perda do sentido advindo da crise religiosa e,
na verdade, a possível visibilidade da concepção de mundo moderna (um mundo criado,
sem magia, somado de uma separação entre uma separação absoluta entre sujeito cético,
autoconsciente, e o objeto no mundo, tal como aparece nas Meditações de Descartes).
Diz Shapiro que: “Talvez o grande segredo dos solilóquios não seja sua interioridade,
tanto quanto sua objetividade, sua capacidade, como um ensaio, de levar-nos para
dentro de uma relação íntima com o orador e de ver o mundo através de seus olhos”
(Shapiro, 2011, p.335). Parece ser exatamente sobre a objetividade que essa
interiorização consolidada em Hamlet expressaria sua força transcendente, fazendo com
que seus leitores, desde então, vejam na tragédia interior do príncipe o reflexo da
própria tragédia para aqueles sofrem da necessidade metafísica, a necessidade interna.
A interiorização não pode ser contingencial. Ela tem um suporte. Expressando algo do
de ser humano que está na base da atribuição e construção de sentido do mundo e a
incessante necessidade e tentativa de reinterpretá-lo. É a interiorização de um tipo de
indivíduo inserido em uma construção de sentido do mundo nova, que é a concepção de
mundo moderna.
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