Resenha completa

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Resenha completa
Le cinema dans le boudoir, ou O desnobre caminho óctuplo
Uma resenha de Nymphomaniac de Lars von Trier
por Fernando Auil
1.
Prólogo: O derradeiro erro de Seligman
Em uma famosa entrevista concedida à publicação O Pasquim em 1969, Leila Diniz disse: Eu
acho bacana ir pra cama. [...] Você pode amar muito uma pessoa e ir para cama com outra.
Já aconteceu comigo.
Na contramão dos bons costumes, não era incomum chocar a opinião pública do país com
frases tais como: Transo de manhã, de tarde e de noite.
A pesar disso, conta-se que um coronel do interior (ou um empresário paulista, em outras
versões da história), ao ter recusada sua oferta de dinheiro em troca de sexo, reclamou: Mas,
Leila, mas você dá pra todo mundo!, ao que ela teria respondido: Sim, eu posso dar pra todo
mundo... Mas não dou pra qualquer um.
Obviamente Seligman, a personagem de Stellan Skarsgård, ignorava esta anedota.
Caso
contrário, provavelmente a cena nal de Nymphomaniac teria outro desfecho.
2.
Um marquês, duas irmãs
Embora a literatura de Donatien Alphonse François, Marquês (posteriormente Conde) de Sade,
posa revelar vilões sadianos, com diversas gradações de sadismo, o corpus da sua obra carece
signicativamente de heróis, contando apenas com heroínas.
Duas irmãs adolescentes de berço nobre cam repentinamente órfãs de ambos progenitores
e desprovidas de qualquer recurso nanceiro.
Expulsas, ipso facto, do internato onde eram
educadas, acabam na rua, completamente indigentes.
Uma delas tenta se virar observando os preceitos da religião em que piamente acredita. O
seu calvário é descrito por Sade no romance Justine, ou les malheurs de la vertu. O relato das
vicissitudes da personagem serve de base, naturalmente, para uma ácida e abrangente crítica
da cristandade e da visão cristã da natureza humana.
A outra irmã decide utilizar o único ativo com que conta, seu próprio corpo, e procura
emprego num bordel. Sade descreve as aventuras da moça no romance Juliette, ou les prospe-
1
rités du vice. No decorrer do relato, a personagem acaba acumulando uma fortuna. Embora
farto em obscenidades, o principal assunto deste livro, segundo Georey Gorer, não é sexo, mas
dinheiro: Os meios para obtê-lo, o poder que proporciona, a civilização e as instituições na sua
volta.
3.
Melancolia e Justine
Heroínas abnegadas também abundam nos lmes de Lars von Trier:
•
Bess em Breaking the waves (1996), protagonizado por Emily Watson.
•
Selma em Dancing in the dark (2000), papel da cantante islandesa Björk.
•
Grace em Dogville (2003) e a mesma personagem em Manderlay (2005), interpretadas
por Nicole Kidman e Bryce Dallas Howard, respectivamente. Esses dois lmes são parte
de uma trilogia inconclusa.
Melancholia de 2011 não é uma exceção.
O argumento gira em torno de duas irmãs.
O
relato é dividido em duas partes. A primeira intitula-se com o nome da protagonista, Justine,
personagem de Kirsten Dunst. A segunda parte toma o nome da sua irmã, Claire, protagonizada por Charlotte Gainsbourg. A citação de Sade aqui é clara.
Para ilustrar a indiferença da natureza com relação a suas criaturas, no romance de Sade
Justine acaba sendo morta por um raio. Uma catástrofe natural também é usada em Melancholia: A Justine de von Trier perece numa colisão interplanetária.
4.
Ninfomaníaca Juliette
O romance Juliette estrutura-se basicamente em um padrão de episódios explicitamente pornográcos intercalados com extensas digressões sobre uma abrangente variedade de tópicos,
incluindo teologia, moralidade, estética e naturalismo, através do cristal sombrio e fatalista da
metafísica secular de Sade.
Desta maneira, se for adotada a precaução de contornar a narrativa incidental e as cenas
pornográcas, uma vez que simplesmente ignorá-las é impossível, Juliette destila o que talvez
seja o melhor expoente da losoa denitiva de Sade.
Seria possível descrever, mesmo que supercialmente, o último lme de von Trier de maneira
essencialmente diferente? Poderia tal coisa ser atribuída ao mero acaso?
2
Em Melancholia predominam ostensivamente as imagens, coreografadas no embalo de idílios
wagnerianos. Em Nymphomaniac reina soberana a intensidade dialógica, em um crescendo de
crimes e perversões
1
que abonam e validam este meta-diálogo Sade-von Trier. A pornograa
no lme atinge seu clímax ejaculando a Weltanschauung do diretor.
Órfã de pai na adolescência, precocemente anorgásmica no seu primeiro matrimônio. Eis
a Joe-Juliette que nos apresenta von Trier.
Enquanto a Esnge beberica seu chã, quem vai
adentrar nesse continente obscuro para desvendar seus enigmas?
Gérard Zwang sabiamente
esclarece:
É, no entanto, o amante atencioso, paciente, mais que o pesquisador invasivo, que obterá as
melhores informações sobre a cava subjetividade das mulheres, por meio das condências
espontâneas que elas lhe farão, se souber amá-las. [4, pp. 32-33.]
Esta é uma Esnge às avessas, cujas fauces misteriosas transpõem, a título de doce recompensa,
apenas aqueles afortunados que sondaram com sucesso alguns dos seus enigmas inexauríveis.
Mas Seligman revela-se apenas um bom ouvinte, nada mais do que isso. E, claro, só isso não
basta.
5.
Hey Joe
No seu romance losóco Aline et Valcour, o Marquês adverte seus leitores:
[...] Ceci n'est pas une historiette indécente [...]; c'est une partie de l'histoire humaine,
qu'il va peindre; ce sont des développemens de moeurs; si vous voulez proter de ces récits,
si vous désirez y apprendre quelque chose, il faut donc qu'ils soient exacts, et ce qui est
gaze, ne l'est jamais. Ce sont les esprits impurs qui s'oensent de tout. [...] Y eut-il même
quelques obscénités dans ce que vous allez nous dire, eh bien, de telles choses révoltent,
dégoûtent, instruisent, mais n'échauent jamais...
Houve na sua época muitos lósofos notáveis, mas nenhum deles teve talento para o gênero
da pornograa no grau exibido por Sade.
Para quem se divertir com a ideia de substituir lósofos por cineastas e Sade por von
Trier, Nymphomaniac obriga a esboçar uma paráfase, ainda a risco de soar quase uma fantasia.
Embora a derradeira conclusão do lme possa soar moralista demais para o gosto de alguns,
o nal de Nymphomaniac de von Trier não seria como o do Fausto de Goethe, apenas revisto
através de um caleidoscópio de obscenidades.
1 Paralias,
corrigiriam alguns, em benefício da correção política.
3
Sendo von Trier um provocador nato, da protagonista a provação conduz o espectador
à provocação.
Esvai-se qualquer ideia de redenção, conjurada nos versos de uma folk-song
americana dos anos 50, que Jimi Hendrix faria famosa na década seguinte.
6.
La portefeuille d'un homme de cinema
Com este lme, von Trier clama no deserto do politicamente incorreto e neste delírio de lucidez
ressoam os ecos do lósofo Sade, aquele conrmando o que o este já sabia. Toda litania obscena,
toda liturgia pagã, sempre terá o efeito de exorcizar a arte assediada pelos íncubos lúbricos em
lascivo conluio com a mediocridade.
O brado declara, procaz mas não por isso menos agudo, que não adianta azular a pílula
com pálidos sucedâneos: As verdadeiras cores quentes existem apenas em tons avermelhados.
E este provocador-diretor sabe pintar como ninguém as suas histórias, contando em cada fotograma as cores apropriadas.
Filosofando Lars von Trier com a paleta de Sade, dir-se-ia, se não fosse igualmente correto
armar que conduz o divino Marquês as pinceladas fortes do dinamarquês.
7.
Eros no
Chorus Mysticus
Entre os antigos, Eros não era erótico no sentido atual. O amor sensual era representado por
Hedone, entanto que o amor carnal por Afrodite.
Antigamente Eros e Tânatos eram um par antitético. Eros personicava, entre os gregos,
as forças da vida em pugna contra a morte.
Por outro lado, se formos acreditar no Chorus Mysticus que fecha o Fausto de Goethe, então:
Das Ewig-Weibliche
Zieht uns hinan.
Enquanto Eros preserva da aniquilação, o Eterno Feminino conduz às alturas. E o artista, tutor
dileto dos afazeres humanos, acresce a sua ressalva: Contudo, ríspidos e íngremes podem ser
alguns dos seus caminhos.
8.
Epílogo: O eterno feminino
per aspera
A famosa entrevista foi publicada na edição número 22 de O Pasquim, veiculada na semana de
20 a 26 de novembro de 1969.
4
Seis anos antes, em Washington
dc,
Martin Luther King havia sonhado de viva voz com
a liberdade, frente a mais de duzentas mil pessoas, numa bela tarde de verão. Pouco mais de
um ano atrás, a revolta de Maio de 68 em Paris havia incendiado o mundo. Apenas três meses
antes havia acontecido o Festival de Woodstock.
O Rio tinha assistido sem fôlego a passeata dos cem mil. Meses depois viriam os sombrios
dias e noites pavorosas do AI-5.
Personicando a enorme pressão feminina contida numa sociedade que estava no limite
explosivo de uma mudança de comportamento, Leila concentrava a rebeldia e ânsia de liberdade dos anos 60, explodia em alegria de viver o que a maioria mal estava conseguindo reprimir.
Embora a contrapressão também fosse enorme, ela escandalizou mas com uma ingenuidade
imensa e cativante.
Nenhum regime opressor subestima o poder apotropaico da inocência no seu estado puro:
Eros conduzido da mão pelo Eterno Feminino sempre será subversivo.
Referências
[1] Georey Gorer. The life and ideas of The Marquis De Sade.
[2] Wikipedia.
[3] AMEA:
http://en.wikipedia.org/wiki/Juliette_%28novel%29.
World
Museum
of
Erotic
Art.
marquis-de-sade-juliette.
Juliette.
Site:
http://www.ameanet.org/
[4] Gérard Zwang. Le sexe de la femme. São Paulo: UNESP, 2000.
[5] D. A. F. de Sade. Aline et Valcour, ou le Roman Philosophique. Tome II. The Project Gutenberg EBook available at
17707-h.htm.
http://www.gutenberg.org/files/17707/17707-h/
[6] YouTube. Jimi Hendrix Hey Joe (Monterey Pop Festival 1967).
com/watch?v=vi3O8Um2VEY.
[7] Ivan Câmara Correa. Leila Diniz. Site:
http://www.youtube.
http://camaracorrea.com/leila-diniz.
[8] Johann Wolfgang von Goethe. Faust: Der Tragödie zweiter Teil. The Project Gutenberg
EBook available at
http://www.gutenberg.org/cache/epub/2230/pg2230.html
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