diálogos, cultura e memória - SIMELP
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diálogos, cultura e memória - SIMELP
Língua portuguesa: ultrapassar fronteiras, juntar culturas (Eds.) Mª João Marçalo & Mª Célia Lima-Hernandes, Elisa Esteves, Mª do Céu Fonseca, Olga Gonçalves, Ana LuísaVilela, Ana Alexandra Silva © Copyright 2010 by Universidade de Évora ISBN: 978-972-99292-4-3 SLG 13 – Estudo e ensino de Língua Portuguesa: interface entre língua X, literatura e cultura de diferentes povos. DIÁLOGOS, CULTURA E MEMÓRIA Áurea Rita de Ávila Lima FERREIRA1 Maria das Dores Capitão Vigário MARCHI RESUMO: O trabalho tem como propósito apresentar discussões/reflexões acerca de narrativas orais coletadas em regiões de Mato Grosso do Sul – Brasil e de narrativas escritas/autorais dos autores brasileiros José Cândido de Carvalho e José Lins do Rego. O foco da análise, seguindo orientações teóricas de Mikhail Bakhtin, apóia-se no como e no que o sujeito lembra, inventa e reinventa em suas narrações no processo dialógico visualizado no contar. Nos textos busca-se, numa abordagem discursiva, desvelar a personagem lendária Lobisomem entrelaçada em histórias, em memórias. PALAVRAS-CHAVE: Narrativas orais, autorais; cultura; dialogismo; memória. A tradição como expressão social, como patrimônio cultural de um grupo, ou ainda como memória coletiva de um povo permite a continuidade de uma cultura. Contudo, ela não é estanque, é atravessada por mudanças, por variações. E é essa capacidade de variação que permite à tradição sua sobrevivência, sendo as transformações pelas quais passa no tempo e no espaço a garantia de sua atualização no presente. Entre os feixes de textos que compõem o mosaico discursivo da tradição estão as narrativas orais – portos de acesso à memória e à cultura de uma comunidade. Segundo Zumthor (1997, p. 13-14), A memória do grupo [...] tende a assegurar a coerência de um sujeito na apropriação de sua duração: ela gera a perspectiva em que se ordena uma existência e, nesta medida, permite que se mantenha a vida. Seria apenas paradoxal sustentar que ela cria o tempo. É evidente que cria a história, ata o liame social e, por conseguinte, confere sua continuidade aos comportamentos que constituem uma cultura. 1 Universidade Federal da Grande Dourados/Faculdade de Comunicação, Artes e Letras/Bloco José Pereira Lins. Rodovia Dourados–Itahum, Km 12, Dourados, Mato Grosso do Sul/Brasil. Pesquisa realizada com apoio FUNDECT. [email protected]; [email protected] 39 Língua portuguesa: ultrapassar fronteiras, juntar culturas (Eds.) Mª João Marçalo & Mª Célia Lima-Hernandes, Elisa Esteves, Mª do Céu Fonseca, Olga Gonçalves, Ana LuísaVilela, Ana Alexandra Silva © Copyright 2010 by Universidade de Évora ISBN: 978-972-99292-4-3 SLG 13 – Estudo e ensino de Língua Portuguesa: interface entre língua X, literatura e cultura de diferentes povos. O imaginário de um povo, as experiências vividas em cada momento de sua história, o registro dos relatos ouvidos, do repertório de lendas que se revestem de variada roupagem constituem-se em uma forma de desnudar saberes e de estabelecer diálogos com memórias vivas orais ou escritas. O trabalho propõe-se, assim, a visualizar momentos indiciadores de tais diálogos, a partir do estudo de relações entre narrativas de literatura dita escrita/autoral e entre narrativas orais populares recolhidas em Mato Grosso do Sul/Brasil. O foco das reflexões são algumas imagens, construídas no processo discursivo arquitetado no contar, que lançam um olhar sobre uma figura lendária – o Lobisomem – e que são fruto da heterogeneidade e que mostram como a língua produz sentidos por e para sujeitos. A análise trabalhará, então, textos de épocas diferentes: uns de matriz oral e outros atravessados pelo oral, tendo todos eles como um dos fios condutores a personagem apontada. Os textos escritos/autorais selecionados para o estudo são O Coronel e o Lobisomem (editado em 1964), de José Cândido de Carvalho e Fogo Morto (editado em 1943), de José Lins do Rego e os textos/narrativas orais foram coletados em regiões de pantanais sul-mato-grosssenses (período de 1993 a 2000) e em regiões do município de Dourados/Mato Grosso do Sul (período de 2007 a 2008). Nas narrativas recolhidas em Mato Grosso do Sul e nas contadas nos textos autorais estabelecem-se limites, tênues às vezes, criam-se personagens, organizam-se histórias, estabelecem-se identidades e confere-se legitimidade para crenças, costumes que vão compondo um tecido cultural nacional. Lembranças de um passado que evidenciam um jogo de memórias, culturas. 40 Língua portuguesa: ultrapassar fronteiras, juntar culturas (Eds.) Mª João Marçalo & Mª Célia Lima-Hernandes, Elisa Esteves, Mª do Céu Fonseca, Olga Gonçalves, Ana LuísaVilela, Ana Alexandra Silva © Copyright 2010 by Universidade de Évora ISBN: 978-972-99292-4-3 SLG 13 – Estudo e ensino de Língua Portuguesa: interface entre língua X, literatura e cultura de diferentes povos. Passemos agora ao foco específico do trabalho: a presença da personagem Lobisomem nos vários textos. Comecemos pelos textos escritos/autorais. Em Fogo Morto e em O Coronel e o Lobisomem surgem momentos narrativos em que o olhar se detém no imaginário e na cultura popular da região (no caso, Paraíba e Pernambuco) em que a história é retratada e em que pode ser visualizada a construção da figura da personagem Lobisomem. Sendo a linguagem possibilidade e materialidade de criação de mundos (KOCH, 2002), nada melhor para compreender o ser humano do que escutar/ler os seus discursos. Uma das marcas das duas obras (a de Cândido Carvalho e a de José Lins do Rego) é a exploração de certos recursos discursivos que mostram a construção da personagem. No caminhar pelos textos, o destecer da personagem Lobisomem vai sendo acompanhado, por exemplo, de uma riqueza de descrições que sinaliza para traços de oralidade e rastros de culturas nos textos. Em Fogo Morto, o modo de organização descritivo orienta para a suposta transformação do mestre Amaro em Lobisomem. E a coerência dessa hipótese vai sendo observada, por exemplo, pelos diálogos e pelas associações que vão sendo tecidas em relação a mestre Amaro. Logo no início do texto é sugerida a ligação da transformação da personagem Mestre Amaro em Lobisomem a momentos de Lua-Cheia, em tempos de quaresma, a latidos e a sangue de animais. Vejamos como isso acontece na passagem a seguir, quando se começa a enredar a personagem Mestre José Amaro: Um cachorro começava a latir, latia com desadoro, e por fim lançava uivos de uma dor profunda [...]. – É lua cheia hoje? 41 Língua portuguesa: ultrapassar fronteiras, juntar culturas (Eds.) Mª João Marçalo & Mª Célia Lima-Hernandes, Elisa Esteves, Mª do Céu Fonseca, Olga Gonçalves, Ana LuísaVilela, Ana Alexandra Silva © Copyright 2010 by Universidade de Évora ISBN: 978-972-99292-4-3 SLG 13 – Estudo e ensino de Língua Portuguesa: interface entre língua X, literatura e cultura de diferentes povos. [...] Uma nuvem cobriu o céu e tudo ficou escuro. De repente o mundo se clareou, outra vez, em luz branca. O seleiro [mestre Amaro] estava possuído de paz, de terna tristeza; ia ver a lua, [...] A noite convidava-o para andar. [...] E os vaga-lumes rastejavam no chão com medo da lua. [...] Cheirava toda a terra. Era cheiro de flores abertas, era cheiro de fruta madura. O mestre José Amaro foi voltando para a casa como se tivesse descoberto um mundo novo. Quando chegou, a mulher já estava com medo: – Que foste fazer a estas horas, Zeca? Sei quem está aluado! Calou-se, fechou a porta de casa e foi para a rede com o coração de outro homem. [...] Lembrou-se então do sangue do preá, sujando o verde do capim. [...] Assim se comenta “hoje é dia de guarda, e o povo da casa-grande está de jejum.” (p. 76) Observa-se que o modo de organização descritivo, aliado ao narrativo, ao longo de toda a obra, e visualizado nesses exemplos, pincela com fortes nuances a imagem de um lobisomem em Mestre Amaro. Verifiquemos outra seqüência, nesta uma voz coletiva toma lugar: “No outro dia corria por toda a parte que mestre Amaro estava virando Lobisomem. Fora encontrado pelo mato, na espreita da hora do diabo, tinham visto sangue de gente na porta dele.” (p. 77) A imagem do lobisomem em mestre Amaro vai ganhando força também pelas vozes/individuais/sociais das diversas personagens que se espalham pelo texto, num caminhar entre religião e religiosidades. – Lucinda disse que quando viu aquele homem de andar de cão, sentiu um não-sei-quê nela. Pois o mestre José Amaro parou para falar com ela, coisa que ele nunca fez. E perguntou pela saúde. E ela lhe disse: “Com as graças de Deus vou indo, mestre José Amaro!” E o mestre botou aqueles olhos amarelos em cima dela e foi lhe dizendo: “Com a graça de Deus ou com a graça do diabo, dona Lucinda?” Lucinda disse que era como se tivesse visto o demônio na frente dela. E desde este dia que lhe deu esta dor que não passa. [...[ Para elas o mestre José Amaro botara coisa na irmã”.(p. 89) Outra passagem O moleque ouvia o seleiro [Mestre Amaro], de boca aberta. E enquanto o mestre comia no tabuleiro reparava no olhar duro, na boca 42 Língua portuguesa: ultrapassar fronteiras, juntar culturas (Eds.) Mª João Marçalo & Mª Célia Lima-Hernandes, Elisa Esteves, Mª do Céu Fonseca, Olga Gonçalves, Ana LuísaVilela, Ana Alexandra Silva © Copyright 2010 by Universidade de Évora ISBN: 978-972-99292-4-3 SLG 13 – Estudo e ensino de Língua Portuguesa: interface entre língua X, literatura e cultura de diferentes povos. grande, nas mãos grossas. Era aquele o homem de quem o povo falava tanto. Diziam que pelas estradas, pela beira do rio, alta noite o velho virava em bicho perigoso, de unha como faca, de olhos de fogo, atrás da gente para devorar. E o moleque por mais que olhasse não via nada daquilo. O mestre José Amaro de fato não era como todos os outros. Gostava de ouvi-lo [...]. Os olhos amarelos, a cor de um branco de preso de cadeia, davam ao seleiro um ar diferente dos outros homens que o moleque via nos eitos, nos trabalhos de enxada. (p. 78-79) Em cada voz vê-se uma fronteira movediça que instaura o cruzamento “real” e imaginário, unidade e pluralidade tendo como elemento condutor a personagem José Amaro/Lobisomem. A descrição da personagem vai sendo delineada, repetida em relação a algumas características (“olhos amarelos”, “cor de um branco de preso de cadeia”, “pernas, mãos inchadas”, “ímpetos de desejos violentos", “solto na noite, como um bicho com o diabo no corpo”, “unhas grandes”, “a cabeça comprida de lobo”, “a forma de monstro desadoro”, “parte com o diabo”), a algumas ações (gritar, sair “de noite para desgraçar os viventes”, “atrás de sangue para beber”, “perder-se pelos campos”, “vagabundear pela estrada”, “pelos caminhos ermos”, “correndo de noite para beber sangue de gente” em dia de guarda, no jejum) e em meio um desfiar de rezas, santos, missas. E aqui citamos Charaudeau (2008): “descrever está estreitamente ligado ao contar, pois as ações só têm sentido em relação às entidades e às qualificações de seus actantes”. Em O Coronel e o Lobisomem, as descrições em torno do Lobisomem são apresentadas por um narrador personagem protagonista – Coronel Ponciano de Azeredo Furtado –, e surgem como estratégia para acentuar a figura “valente, destemida” desse Coronel que, certa vez, após embate com o Lobisomem e, por ter “coração molenga”, concede “passaporte ao condenado” (p.182). Vejamos um dos momentos textuais que retrata o encontro do Coronel com o Lobisomem. 43 Língua portuguesa: ultrapassar fronteiras, juntar culturas (Eds.) Mª João Marçalo & Mª Célia Lima-Hernandes, Elisa Esteves, Mª do Céu Fonseca, Olga Gonçalves, Ana LuísaVilela, Ana Alexandra Silva © Copyright 2010 by Universidade de Évora ISBN: 978-972-99292-4-3 SLG 13 – Estudo e ensino de Língua Portuguesa: interface entre língua X, literatura e cultura de diferentes povos. Já um estirão era andado quando, numa roça de mandioca, adveio aquele figurão de cachorro, uma peça de vinte palmos de pêlo e raiva. Na frente de ostentação tão provida de ódio, a mulinha de Ponciano debandou sem minha licença por terra de dormideira e cipó, onde imperava toda raça de espinho, caruru-de-sapo e roseta-de-frade. O luar era tão limpo que não existia matinho desimportante para suas claridades – tudo que vinha à tona, de quase aparecer a raiz. Aprovei a manobra da mula na certeza de que lobisomem algum arriscava sua pessoa em tamanho carrascal. Enganado estava eu. Atrás, abrindo caminho e destorcendo o mato, vinha o vingancista do lobisomem. Roncava como porco cevado. Assim acuada, a mulinha avivou carreira, mas tão desinfeliz que embaralhou a pata do coice numas embiras-de-corda. Não tive mais governo de sela e rédea. Caí como sei cair, em posição militar, pronto a repelir qualquer ofendimento. Digo, sem alarde que o lobisomem bem podia ter saído da demanda sem avaria ou agravo, caso não fosse um saco de malquerença. Estando eu em retirada, pelo motivo já sabido de ser portador de galão e patente, não cabia a mim entrar em arruaça desguarnecido de licença superior. Disso não dei conta ao enfeitiçado, do que resultou a perdição dele. Como disse, rolava eu no capim, pronto a dar ao caso solução briosa, na hora em que o querelante apresentou aquela risada de pouco caso e deboche: – Quá-quá-quá. . . Não precisou de mais nada para que o gênio dos Azeredos e demais Furtados viesse de vela solta. Dei um pulo de cabrito e preparado estava para a guerra do lobisomem. [...] Não conversei – pronto dois tiros levantaram asa da minha garrucha. Foi o mesmo que espalhar arruaça no mato todo. Subiu asa de urubu que era bicho da noite e uma sociedade de morcegos escureceu o luar. (p. 179) Observa-se, então, a contribuição das descrições para a paisagem da personagem Coronel Ponciano. A figura do Lobisomem, tal como no texto anterior (Fogo Morto), vai sendo emoldurada por momentos de religiosidade (de orientação judaico-cristã, saber popular, misticismo, crendices). Veja-se uma outra passagem do texto: “Por descargo de consciência, do que nem carecia, chamei os santos de que sou devocioneiro: São Jorge, Santo Onofre, São José!” (p.35). Destaca-se a seguir também uma passagem de Fogo Morto: “Quando latiam os cachorros, nas noites de escuro, ela se benzia, rezava ave-maria para que Nossa Senhora a defendesse de encontrar com o malvado” (p. 129). Vê-se nos dois textos autorais acima pontuados que aquele que conta/narra, o 44 Língua portuguesa: ultrapassar fronteiras, juntar culturas (Eds.) Mª João Marçalo & Mª Célia Lima-Hernandes, Elisa Esteves, Mª do Céu Fonseca, Olga Gonçalves, Ana LuísaVilela, Ana Alexandra Silva © Copyright 2010 by Universidade de Évora ISBN: 978-972-99292-4-3 SLG 13 – Estudo e ensino de Língua Portuguesa: interface entre língua X, literatura e cultura de diferentes povos. sujeito, é sobredeterminado pelas características culturais do grupo social ao qual pertence, as descrições vão atendendo, vivendo a voz de uma coletividade, compartilhando saberes, laços sociais, “normas” de uma sociedade, de um contexto cultural. A religião/religiosidade pode ser vivenciada também em outras escolhas discursivas, por exemplo, nos nomes toponímicos que acompanham o desenrolar da trama da personagem. Alguns exemplos, um de O Coronel e o Lobisomem: “E nem pensava eu mais em Tutu Militão quando, de passagem por Santo Amaro, fui visitar Juju Bezerra e mais o confessor de meus pecados.” (p. 145); outro de Fogo Morto: “José Amaro vinha vindo da banda do Santa Fé” (p. 89). Voltemos agora nosso olhar para as narrativas orais coletadas em Mato Grosso do Sul. Pontue-se que, em muitas delas, a personagem Lobisomem é retomada. Ela é recorrente em várias histórias que apontam para tempos outros e de agora e que puxam raízes no contar dos vários povos que para regiões do Mato Grosso do Sul vieram2. Essas narrativas vão se organizando em formas mais ou menos estáveis (BAKHTIN, 2000), transformam-se cada vez que a historia é contada, desfiam-se nelas detalhes que se mostram modificados, denunciando aspectos referentes aos seus interlocutores. As imagens que vão se constituindo seduzem o ouvinte, tal como nas duas obras autorais/escritas citadas, e, numa relação dialógica, apresentam marcas, vozes de outras histórias, de outras regiões e um universo singular que determina o lugar de onde o contador conta. 2 O município de Dourados, o estado de Mato Grosso do Sul são marcados por remeter em sua origem, e atualmente, a um espaço de fluxos migratórios ocorridos em vários momentos. Os habitantes do Município e do Estado são pessoas descendentes de migrantes e imigrantes vindos de vários lugares do Brasil e de países fronteiriços com o Brasil ou não. 45 Língua portuguesa: ultrapassar fronteiras, juntar culturas (Eds.) Mª João Marçalo & Mª Célia Lima-Hernandes, Elisa Esteves, Mª do Céu Fonseca, Olga Gonçalves, Ana LuísaVilela, Ana Alexandra Silva © Copyright 2010 by Universidade de Évora ISBN: 978-972-99292-4-3 SLG 13 – Estudo e ensino de Língua Portuguesa: interface entre língua X, literatura e cultura de diferentes povos. Vejam-se alguns recortes do emaranhado de descrições que vai tecendo a figura do Lobisomem em espaços de Mato Grosso do Sul. É assim, por exemplo, a personagem Lobisomem visualizada nas narrativas coletadas em Dourados e no Pantanal: “um berro muito feio”, “aquela coisa mais feia”, “um cachorro preto, todo preto orelhudo assim enorme”, “era tipo um cavalo médio, assim, um potro”, “Um bicho estranho, grande, todo preto, é o lobisomem”, “preto, bem comprido”, “Coisa de Satanás”, “Um homem de capa”, O tinhoso”, “Cachorrão peludo”, “Uma pessoa invisível”, “uma sombra com vários nomes”; “um vizinho”, “gente mesmo”, “com cara pálida”, “um rapazinho”, “bichão da bunda pra cima e oreiudo”, “um negócio”, “um cachorro”, “um bicho bem grandão”, “molão”, “um bicho preto”, “um rapaz revoltado”, “um cachorro preto enorme”, “o bicho”. Veja-se um momento de uma história recolhida em 2008: O Lobisomem gera-se, se forma, da pessoa que não tem Deus, entendeu? A pessoa que não tem devoção, metido a bruto e faz o que o pensamento mau dá, e se vira para o lado do Demônio. O Lobisomem é uma pessoa comum, uma pessoa que não tem religião, não tem Deus, não lembra de Deus, nada, para ele Deus não existe. Aí ele vai e vira Lobisomem. O Lobisomem é assim, ele corre sete províncias, você sabe o que é província? São sete estados. De tão veloz que ele é, e ainda vem amanhecer o dia no ponto dele. Aí o que ele achar no caminho ele rasga e bebe. A hora que ele rasga e bebe o sangue ele volta. Pois é, é horrível. Aí ele rasga assim com os dentes, os dentes dele. Ele se veste de saco de estopa, é mulambo, essas coisas assim. O que ele acha pelo caminho ele come. E no outro dia se tiver um homem é uma mulher, se tiver uma mulher é um homem. Aí ele já tá no ponto, são sete províncias e no outro dia ele já tá no ponto. Se estiver no meio de nós, nós não conhecemos, não sabemos como é. É difícil a pessoa, a pessoa se topar com o Lobisomem. Eu já vi um Lobisomem pelo buraco da parede assim, pela brecha da porta assim. Meu marido estava no [mocio]3 e os 3 Na transcrição das narrativas orais, seguiram-se normas convencionais estipuladas pela equipe de pesquisa que trabalha com narrativas orais na FACALE/UFGD/Brasil, o que justifica a presença nos exemplos de sinais indicadores de entoações enfáticas (caixa alta), de prolongamentos de vogais ou consoantes (:), de pausa(+); de incompreensão de palavras ou segmento (/ /), de hipótese do que se ouviu (/hipótese/) 46 Língua portuguesa: ultrapassar fronteiras, juntar culturas (Eds.) Mª João Marçalo & Mª Célia Lima-Hernandes, Elisa Esteves, Mª do Céu Fonseca, Olga Gonçalves, Ana LuísaVilela, Ana Alexandra Silva © Copyright 2010 by Universidade de Évora ISBN: 978-972-99292-4-3 SLG 13 – Estudo e ensino de Língua Portuguesa: interface entre língua X, literatura e cultura de diferentes povos. cachorros eu acho que estavam no pé da minha porta, tinha pedregulho, e vinha assim: TA3, TA, TA, TA, TA, e o cachorrinho só faltava morrer. Era cercadinho por fora, só faltava morrer. Aí o finado Bira falou assim: – olha tem um Lobisomem andando aí fora, passando na estrada, o que será? E o Francisco meu filho, era pequenininho, e foi espiar pela brecha da porta. A lua tava clara quando o cachorrinho correu em baixo da área, eu peguei a rezar e ele pegou o caminho. Ele é todo cabeludo que nem um carneirão, todo cabeludo assim sabe. PACO, PACO, PACO, PACO, PACO, PACO, PACO. O passo dele é que nem passo de burro: PACO, PACO, PACO, PACO, PACO, PACO, PACO, PACO, foi se embora, É FEIO, É FEIO, CABELÃO VERMELHO. A memória, numa atmosfera de religiosidade recorrente, misturando espaços do campo, e da cidade de Dourados, espaços do Pantanal e dos locais de origem dos contadores (registre-se que os contadores são descendentes de mineiros, paulistas, gaúchos, nordestinos, portugueses, italianos, árabes, indígenas) e de tempos do passado e do presente, produz trilhas, por vezes, imprecisas, lacunares que mostram relatos amalgamados. Nas histórias de uns e de outros, visualiza-se um mosaico em que as lembranças de uns vão se encostando às dos outros e formando uma paisagem, mostrando uma cultura. Verifica-se, nos vários textos aqui focalizados (nos autorais e nos orais recolhidos em Mato Grosso do Sul), que as histórias do Lobisomem são revitalizadas em cada contar, apresentando, contudo, uma narrativa mínima que se repete, o que permite a visualização de um mesmo tema, de uma mesma personagem. Isso faz lembrar Paul Zumthor (1997, p.19): A tradição [...] oferece aos discursos pronunciados um pequeno número de modelos analógicos, muitas vezes procedendo eles mesmos de um modelo nuclear bem abstrato: estes modelos determinam as formas tomadas também pela consciência que só se tem de si e do mundo pela linguagem que se fala. 47 Língua portuguesa: ultrapassar fronteiras, juntar culturas (Eds.) Mª João Marçalo & Mª Célia Lima-Hernandes, Elisa Esteves, Mª do Céu Fonseca, Olga Gonçalves, Ana LuísaVilela, Ana Alexandra Silva © Copyright 2010 by Universidade de Évora ISBN: 978-972-99292-4-3 SLG 13 – Estudo e ensino de Língua Portuguesa: interface entre língua X, literatura e cultura de diferentes povos. Os pontos de contato entre as várias histórias podem ser reconhecidos por meio da figurativização da personagem também na relação com o tempo, com o espaço, a qual culmina numa amostragem de valores, de crenças, de religiosidades, atados por nós discursivos, interdiscursivos/intradiscursivos que vão sendo evidenciados no rol de textos objeto de nossa análise. O Lobisomem vai aparecendo, nos vários textos, em meio às horas mortas, em locais diversos. Relembremos diferentes atualizações desse tempo/espaço em meio ao contar das duas obras escritas autorais e das narrativas orais coletadas em regiões de Mato Grosso do Sul: Fogo Morto – “na espreita da hora do diabo”, “pela beira do rio”, “pelos caminhos ermos”, “pelos campos”, “nas moitas escuras”, “andando pelos esquisitos”, “pelos lugares desertos em noite que era de lua cheia”, “A lua deitava-se no mundo. Era um mar de leite por cima das coisas”. O Coronel e o Lobisomem – “no alto o luar vigorava com toda força e foi na claridade dele, num repente, relembrei estar em noite de lobisomem – era sextafeira”. Narrativas de Mato Grosso do Sul: a. Textos orais recolhidos em Dourados – “de noite”, “de tardinha”, “sextafeira”, “meia noite”, “sexta-feira santa da quaresma”, “noite de lua cheia”, “na boca da noite”, “na boquinha da noite”, “de madrugada com lua clarinha”, “parecendo dia”, “à meia noite”, ”de madrugadinha”, “Sexta-Feira de Paixão”; “em uma porteira de madeira”, num “terreno baldio”, “área grandona de uma casa”, “na casa”, “no pátio”, “no meio da estrada”, “no mato perto da 48 Língua portuguesa: ultrapassar fronteiras, juntar culturas (Eds.) Mª João Marçalo & Mª Célia Lima-Hernandes, Elisa Esteves, Mª do Céu Fonseca, Olga Gonçalves, Ana LuísaVilela, Ana Alexandra Silva © Copyright 2010 by Universidade de Évora ISBN: 978-972-99292-4-3 SLG 13 – Estudo e ensino de Língua Portuguesa: interface entre língua X, literatura e cultura de diferentes povos. casa”, “próximo a um córrego que tinha uma árvore grande”, no “terreno do fundo”, “no fundo do centro de macumba”, “no pé da serra”, “capão”, “um mato fechado assim”, “na porta da casa”. b. Histórias recolhidas em regiões do Pantanal Sul-mato-grossense – “sextafeira”, “meia-noite”, “de noite”, “a hora em que eles deitaram”, “nessa lagoazinha”, “no mato”, “na floresta”, “dentro da floresta”, “dentro do mato”, “numa cancela”, “lá no areão”, “na casa”, “na areia muito branca”, “na casa do vizinho”, “na fazenda Porto Alegre”, “em cima de um barco”, “numa quebrada de muro”, “no caminho”, “longe de casa”, “na porta”. Ainda em relação ao espaço de aparição da personagem, em todas as histórias, é ele condicionado pelo lugar/espaço geográfico, conforme Halbwachs (2006, p. 170), “[...] não há memória coletiva que não aconteça em um contexto espacial”, mas também pelo lugar/espaço social, externo, interno de onde fala cada contador, pelo diálogo que atravessa todos os textos numa cadeia de vozes que fazem ecoar uma memória cultural. Nesse giro de olhar sobre os textos autorais, e sobre os textos recolhidos em terras de Mato Grosso do Sul, verifica-se a presença de renovação e ao mesmo tempo de conservação numa conjunção temática. Observam-se janelas para a visualização do já visto, amalgamado no novo. Os textos orais e os escritos vão se mostrando como um discurso privilegiado de acesso ao imaginário de diferentes épocas, povos, culturas, de diálogo com o acervo de manifestações culturais populares. Reafirma-se a compreensão de que o multiculturalismo vem configurando-se no bojo de diálogos intertextuais, interdiscursivos assinalando que os universos culturais têm funcionado cada vez mais como vasos comunicantes sem que, no entanto, as particularidades locais e regionais, admitam ser ofuscadas (CANCLINI, 2000). 49 Língua portuguesa: ultrapassar fronteiras, juntar culturas (Eds.) Mª João Marçalo & Mª Célia Lima-Hernandes, Elisa Esteves, Mª do Céu Fonseca, Olga Gonçalves, Ana LuísaVilela, Ana Alexandra Silva © Copyright 2010 by Universidade de Évora ISBN: 978-972-99292-4-3 SLG 13 – Estudo e ensino de Língua Portuguesa: interface entre língua X, literatura e cultura de diferentes povos. Referências bibliográficas BAKTHIN, M. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 2000. CANCLINI, N. G. Culturas híbridas: estratégias para entrar e sair da modernidade. São Paulo, Editora da USP, 2000. CARVALHO, J. C. de. O Coronel e o Lobisomem. Rio de Janeiro: José Olympio, 1972. CHARAUDEAU, P. Linguagem e discurso: modos de organização. São Paulo: Contexto, 2008. KOCH, I. V. Desvendando os segredos do texto. São Paulo, Contexto, 2002. HALBWACHS, M. A memória coletiva. São Paulo: Centauro, 2006. REGO, J. L. Fogo Morto. Rio de Janeiro: José Olympio, 2008. ZUMTHOR, P. Tradição e Esquecimento. São Paulo: Hucitec, 1997. 50
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