o processo legislativo municipal e a iniciativa de lei. da

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o processo legislativo municipal e a iniciativa de lei. da
II Simpósio Regional Sobre Direitos Humanos e Fundamentais
Parte IV - Proteção dos Direitos Fundamentais Coletivos e
Difusos na Contemporaneidade
O PROCESSO LEGISLATIVO MUNICIPAL E A INICIATIVA DE
LEI. DA ORGANIZAÇÃO ADMINISTRATIVA MUNICIPAL. O
CASO DO ALVARÁ CONDICIONADO NA CIDADE DE SÃO PAULO (Jamile Gonçalves Calissi) p. 249-265
O PROCESSO LEGISLATIVO MUNICIPAL E A INICIATIVA
DE LEI. DA ORGANIZAÇÃO ADMINISTRATIVA
MUNICIPAL. O CASO DO ALVARÁ CONDICIONADO NA
CIDADE DE SÃO PAULO
THE LEGISLATIVE PROCESS AND MUNICIPAL LAW INITIATIVE.
ADMINISTRATIVE ORGANIZATION OF MUNICIPAL. THE CASE OF
PERMIT CONDITIONING IN THE CITY OF SÃO PAULO
Jamile Gonçalves Calissi1
RESUMO
O presente artigo propõe uma análise sobre o processo legislativo municipal e a iniciativa
de lei, investigando o caso do alvará condicionado da cidade de São Paulo, lei municipal
com vício de iniciativa e que fere direito fundamental de acessibilidade. A questão foi
analisada, segundo critérios internacionais, deduzindo-se que o texto normativo municipal
fere direitos fundamentais a partir da ótica de controle de constitucionalidade e controle de
convencionalidade.
PALAVRAS-CHAVE: processo legislativo municipal – iniciativa de lei – direitos fundamentais
ABSTRACT
This article proposes an analysis about the legislative process and the initiative of municipal
law, investigating the case of the license condition of São Paulo, bylaw initiative with
addiction and that hurts fundamental right of access. The issue was analyzed according to
international criterion deducting the normative text municipal hurts fundamental rights from
the perspective of judicial control and conventionality.
KEYWORDS: municipal legislative process - an initiative law - fundamental rights.
1
Doutorado em Direito Constitucional pela Instituição Toledo de Ensino de Bauru, área de concentração
em Sistema Constitucional de Garantia de Direitos (em andamento). Mestrado em Direito Constitucional pela
Instituição Toledo de Ensino de Bauru, como bolsista integral CAPES, área de concentração em Sistema
Constitucional de Garantia de Direitos. Graduação em Direito pelas Faculdades Integradas de Jaú – Fundação
Educacional Dr. Raul Bauab. MBA em Gestão Empresarial pela Fundação Getúlio Vargas. Professora das
Faculdades Integradas de Jaú – Fundação Educacional Dr. Raul Bauab. Servidora Pública.
currículo lattes: http://lattes.cnpq.br/5100816232667133
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1 DO VÍCIO DE INICIATIVA DE LEI
O processo legislativo, também denominado de procedimento legislativo, traduz-se
por um conjunto complexo de atos coordenados e subsequentes à produção normativa. É,
nos dizeres de Nelson de Sousa Sampaio:
uma espécie do gênero amplo do direito processual, pelo qual o direito regula
a sua própria criação, estabelecendo as normas que presidem à produção de
outras normas, sejam normas gerais ou individualizadas (SAMPAIO, 1996,
pág. 28).
É composto por uma fase introdutória denominada iniciativa, e outra fase constitutiva, que compreende a deliberação e a sanção e, por fim, a fase complementar de promulgação e publicação (FERREIRA FILHO, 2001, pág. 206).
É possível ilustrar, então, o processo legislativo compreendendo a iniciativa (embora seja considerada por alguns estudiosos como uma fase meramente introdutória e não
pertencente ao corpo do projeto) emenda, votação, sanção ou veto, promulgação e publicação.
Nos termos do artigo 59 da Constituição Federal, imperiosa a obtenção, por meio
do processo legislativo das seguintes espécies normativas: emendas constitucionais, leis
complementares, leis ordinárias, leis delegadas, medidas provisórias, decretos legislativos
e resoluções.
Regras pertinentes ao processo em comento devem ser seguidas, sob pena de
vício formal que poderá ocasionar a inconstitucionalidade do ato normativo.
De grande importância, a iniciativa é elemento indispensável para assegurar o correto desenvolvimento formal desse processo e, na eventualidade de sua não observação,
segundo os parâmetros constitucionais, deflagra-se o chamado vício formal de iniciativa
(vício formal subjetivo).
A instrumentalização do processo legislativo comum está prevista no artigo 61 da
Constituição Federal, quando das disposições da elaboração das leis ordinárias e leis complementares2.
2
Art. 61. A iniciativa das leis complementares e ordinárias cabe a qualquer membro ou Comissão
da Câmara dos Deputados, do Senado Federal ou do Congresso Nacional, ao Presidente da República, ao
Supremo Tribunal Federal, aos Tribunais Superiores, ao Procurador-Geral da República e aos cidadãos, na
forma e nos casos previstos nesta Constituição.
§ 1º - São de iniciativa privativa do Presidente da República as leis que:
I - fixem ou modifiquem os efetivos das Forças Armadas;
II - disponham sobre:
a) criação de cargos, funções ou empregos públicos na administração direta e autárquica ou aumento de sua
remuneração;
b) organização administrativa e judiciária, matéria tributária e orçamentária, serviços públicos e pessoal da
administração dos Territórios;
c) servidores públicos da União e Territórios, seu regime jurídico, provimento de cargos, estabilidade e aposentadoria;
d) organização do Ministério Público e da Defensoria Pública da União, bem como normas gerais para a
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Em observação ao disposto no artigo 61 supramencionado, a iniciativa geral é parlamentar (atribuição típica), porque é concedida aos membros do Congresso Nacional.
Contudo, essa iniciativa também pode ser concedida a órgãos ou entes que não
integram o Congresso Nacional. Tal iniciativa, chamada extraparlamentar, é concedida, assim, ao Chefe do Executivo, aos Tribunais do Poder Judiciário, ao Procurador-Geral da
República e aos cidadãos, neste último caso, chamada de iniciativa popular.
José Afonso da Silva preceitua didaticamente quatro tipos de iniciativas no âmbito
do procedimento legislativo municipal: concorrente, exclusiva, vinculada e popular (SILVA,
1997, págs. 107-109).
A primeira, denominada concorrente, pertence tanto a Vereadores quanto ao Chefe
do Poder Executivo e refere-se às matérias carentes de regulamentação.
A segunda iniciativa é a exclusiva, conferida especificamente a um órgão, agente
ou pessoa. É, geralmente, matéria reservada à Mesa da Câmara e ao Prefeito.
O terceiro tipo de iniciativa é a vinculada, referente àquela em que o titular, em um
determinado momento, possui a iniciativa sobre determinada matéria.
Finalmente, a quarta espécie de iniciativa, chamada popular, reservada ao eleitorado municipal, na proporção de 5% (cinco por cento), nos termos do artigo 30, XIII da
Constituição Federal. Esta última espécie de iniciativa tem por base a conscientização de
que a democracia brasileira não é meramente representativa, mas tem sua face também
participativa.
De maneira semelhante, Luiz Alberto David Araújo e Vidal Serrano Nunes Júnior
dão as suas contribuições para o tema.
Segundo os autores, são três as formas de iniciativa, a saber: concorrente (comum
ou geral), compartilhada entre o Poder Legislativo, o Presidente da República e a população, reservada (exclusiva ou privativa), quando a Constituição determina especificamente a
capacidade de iniciativa, e a vinculada, pertencente a mais de uma pessoa que tem o dever
de ofertar o projeto de lei no momento e prazo determinados (ARAUJO; NUNES JUNIOR,
pág. 400).
Oportuno mencionar que a Constituição Federal preconiza a iniciativa geral que
compete concorrentemente ao Presidente da República, Deputados e Senadores, qualquer
comissão das Casas do Congresso Nacional e a todos os cidadãos (FERREIRA FILHO,
1988, pág. 61-62).
organização do Ministério Público e da Defensoria Pública dos Estados, do Distrito Federal e dos Territórios;
e) criação e extinção de Ministérios e órgãos da administração pública, observado o disposto no art. 84, VI;
f) militares das Forças Armadas, seu regime jurídico, provimento de cargos, promoções, estabilidade, remuneração, reforma e transferência para a reserva.
§ 2º - A iniciativa popular pode ser exercida pela apresentação à Câmara dos Deputados de projeto de lei
subscrito por, no mínimo, um por cento do eleitorado nacional, distribuído pelo menos por cinco Estados, com
não menos de três décimos por cento dos eleitores de cada um deles.
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Embora exista uma compreensão doutrinária de que de fato ninguém possua realmente a chamada iniciativa geral3, há que se considerar a sua existência para trabalhar
com a sua exceção que está contida exatamente nas hipóteses de iniciativa reservada, que
“consiste na reserva de iniciativa sobre certas matérias em favor de um órgão determinado”
(FERREIRA FILHO, 1998, pág. 61).
Neste ínterim, é possível citar como de iniciativa reservada, a do Chefe do Executivo para as matérias dos artigos 61, § 1 e 166, I, II e III, a do Supremo Tribunal Federal para
a lei complementar referente ao Estatuto da Magistratura do artigo 93, a do Supremo Tribunal Federal e dos Tribunais Superiores, contida no artigo 96, II, para a criação e extinção
de cargos de seus membros, fixação dos respectivos vencimentos, alteração do número de
membros dos tribunais inferiores, criação ou extinção destes tribunais, alteração da organização e divisão judiciária e, por fim, a do Procurador-Geral da República para a criação e
extinção de cargos e serviços auxiliares, previsto no artigo 127, § 2.
Em âmbito municipal, quanto ao processo legislativo, guardadas as diferenças
peculiares, é possível compreender as espécies normativas enunciadas no artigo 59 da
Constituição Federal como aplicáveis também na atuação desse ente federativo e, por isso
mesmo, imperioso guardar respeito ao disposto na Constituição Federal, por força do chamado princípio da simetria com o centro, que busca a harmonização das regras insertas na
Constituição com as legislações infraconstitucionais, cabendo ao Município observar o que
dispõe o artigo 61 da Constituição, acrescentando a isso a conformação com os aspectos
locais estabelecidos pela Lei Orgânica.
Consoante o princípio fundamental da predominância de interesse, a divisão de
competências entre os entes federativos segue uma sistemática horizontal, estabelecendo
distinções na atuação da União, Estados-membros e Municípios.
A autonomia municipal, o seu ser-federativo, assenta-se sobre quatro pilares: capacidade de auto-organização, capacidade de autogoverno, capacidade de legislação própria, capacidade de auto-administração (SANTANA, 1998, pág. 47).
Soma-se a esses pilares, dentro da abordagem de competências constitucionais,
o critério de interesse local (aquilo que é pertencente ao interesse municipal e deve preponderar em relação às competências da União e do Estado-membro), pelo qual é regido
o município no tocante à sua competência legislativa, ficando ele com a possibilidade de
conformação de seus poderes inerentes à sua autonomia para dispor sobre aquilo que lhe
é de interesse, formando uma área de competências materiais privativas suplementares,
nos termos do artigo 30, I, da Constituição Federal.
Dessa forma, é possível a percepção que, embora a atribuição típica da Câmara
dos Vereadores seja a normativa, no que concerne ao procedimento legislativo municipal
que tem o interesse local como um dos seus vértices, existem matérias reservadas exclusi3
“Em face das reservas de iniciativa adiante examinadas, rigorosamente falando, no Direito brasileiro
ninguém possui realmente iniciativa geral. A designação vale simplesmente na medida em que significa poder
propor direito novo sobre qualquer matéria (exceto as reservadas), já que os titulares de iniciativa reservada,
salvo o Presidente da República, apenas possuem iniciativa para a matéria que lhes foi reservada.” FERREIRA FILHO 2001, pág. 202.
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vamente à atuação do Poder Executivo.
Conquanto seja função da Câmara legislar, esse seu poder não é ilimitado
ou absoluto. Na elaboração das leis, há de atender, em primeiro lugar, à sua
competência, restrita aos assuntos de peculiar interesse do Município; e, em
segundo, às normas constitucionais e legais superiores, a fim de que não
legisle além de sua competência ou de modo ilegal ou inconstitucional. A lei
deve ser elaborada, não só com atendimento de requisitos de substância,
como também de forma, para que se erija em norma legal, no duplo sentido
formal e material (MEIRELLES, 2006, pág. 642).
Como exemplo elucidativo e, em simetria com a Constituição Federal (artigo 61,
§ 1, II, b), aponta-se a organização da Administração Municipal, sendo tal competência
deflagradora de restrição ao preceito constitucional da iniciativa das leis, reservando-se ao
Poder Executivo a iniciativa para tratar de assuntos diretamente relacionados ao exercício
de atribuições e competências que impliquem a organização das funções administrativas.
São, portanto, as leis de iniciativa exclusiva do Prefeito.
Leis de iniciativa exclusiva do prefeito são aquelas em que só a ele cabe o
envio do projeto à Câmara. Nessa categoria estão as que disponham sobre
a criação, estruturação e atribuição das secretarias, órgãos e entidades da
Administração Pública Municipal; a criação de cargos, funções ou empregos
públicos na Administração direta e autárquica fixação e aumento de sua remuneração; o regime jurídico dos servidores municipais; e o plano plurianual,
as diretrizes orçamentárias, os orçamentos anuais, créditos suplementares e
especiais (MEIRELLES, 2006, pág. 733).
Outrossim, a reserva de iniciativa legislativa do Chefe do Poder Executivo em assuntos pertinentes à “organização administrativa e judiciária, matéria tributária e orçamentária, serviços públicos e pessoal da administração dos Territórios” (g. n.) guarda relação
com o exercício da atribuição constitucional de administrar a “res pública”, em atenção à
separação dos órgão do Poder do artigo 2º da Constituição Federal e, em âmbito municipal,
com a conceituação ampla da autonomia deste ente dentro da Federação brasileira.
Pertence ao espírito da garantia institucional da administração autônoma do
município, que certos traços típicos – feitos no desenvolvimento histórico característicos e essenciais – devem ser protegidos, por este modo e garantia,
contra uma remoção levada a cabo pelo legislador ordinário. Em conseqüência, não tem o legislador mão livre no que se refere à organização e ao círculo
material de eficácia dos municípios nem tampouco tocante à organização da
fiscalização do Estado, se é que a garantia tem, afinal de contas, um conteúdo (SCHMITT apud BONAVIDES, 2001, pág. 321).
Observando pertinência com o artigo 61 da Constituição, no tocante às matérias de
iniciativa reservada ao Presidente da República, é possível, então, afirmar que são matérias de iniciativa reservada ao Prefeito Municipal as que disponham sobre: criação, extinção
e transformação de cargos, funções ou empregos públicos na Administração direta e autár253
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quica ou aumento de sua remuneração; organização administrativa, matéria orçamentária
e remuneração; servidores municipais, seu regime jurídico, provimento de cargos, estabilidade e aposentadoria (SILVA, 1997, pág. 108).
A organização administrativa, âmbito reservado ao Poder Executivo, em sentido
amplo, compõe-se de um órgão de governo que exerce a função política e dos órgãos e
pessoas que exercem função administrativa.
A administração pública brasileira adotou o modelo formal, ou seja, é administração
pública, juridicamente, tudo aquilo que a lei assim considera, não havendo necessidade de
diagnosticar a atividade exercida.
É por isso que fazem parte da estrutura administrativa as empresas públicas e
as sociedades de economia mista que, na sua maioria, são entidades que integram a
administração formalmente, apesar de não exercerem funções administrativas típicas de
Estado.
Por outro lado, existem atividades preponderantemente administrativas, desenvolvidas no seio do órgão público e que fazem parte da organização administrativa do ente federado. É o caso, por exemplo, de situações atinentes ao fornecimento de serviços públicos
que, apartadas desta elaboração de simetria constitucional, vêm expressamente previstas
no artigo 30, V, da Constituição Federal, como competência legislativa suplementar do município.
Em âmbito municipal, essas atividades só poderão ser objetos de lei se esta for
proposta pelo Chefe do Poder Executivo, sob pena de vício formal, já que a iniciativa reservada consagra a independência de cada órgão do Poder para dispor sobre assuntos afetos
diretamente a seu interesse.
Assim, questões referentes ao expediente interno de órgão do Poder Executivo
deverão ser enfrentadas por este.
No município de São Paulo houve um Projeto de Lei de nº 189/2010, de autoria da
Câmara de Vereadores de São Paulo, convertido na Lei nº 15.499 de 7 de dezembro de
2011, sancionada pelo Prefeito Municipal, propondo a criação do denominado Alvará Condicionado.
O Alvará Condicionado consiste em uma espécie de licença provisória de funcionamento que permite que o comércio, indústria e serviço instalados irregularmente possam
continuar em funcionamento até obterem a regularização definitiva.
Existem alguns requisitos para obtenção do Alvará Condicionado, como por exemplo, a metragem do imóvel que não pode ser superior a 1.500 m² e, embora os responsáveis pela sua criação aleguem a desburocratização da atividade do pequeno e médio
empreendedor, o certo é que tal Lei, além de aparentar ser um instrumento de índole eleitoreira, tendo em vista a época de sua aprovação, véspera de ano eleitoral, também é
inconstitucional por vício formal de iniciativa.
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O Projeto de Lei referendado, que deu origem à Lei 15.499/11, teve autoria originária na Câmara dos Vereadores.
Tal autoria, no entanto, segundo os propósitos da simetria constitucional, usurpa
iniciativa de propositura de Lei reservada ao Chefe do Poder Executivo Municipal.
Desta feita, importante a análise dos dispositivos legais relacionados ao caso.
A Lei Orgânica do Município de São Paulo guarda corretamente a simetria constitucional e dispõe em seu artigo 37 sobre a iniciativa de propositura de lei do Prefeito Municipal para a “organização administrativa, serviços públicos e matéria orçamentária”4.
O Regimento Interno da Câmara dos Vereadores do Município de São Paulo também prevê a matéria no artigo 2355.
Ora, as matérias de iniciativa reservada existem para fortalecer a independência
dos órgãos do Poder!
No caso em tela, cabe somente ao Chefe do Poder Executivo a propositura de lei
sobre questões internas à administração e funcionamento do órgão municipal, pois é ele o
gestor administrativo do ente federativo.
E a criação de uma espécie de Alvará de Funcionamento, concedido no âmbito do
órgão administrativo municipal, por meio de uma Secretaria de Negócios Tributários, é algo
deveras específico para ser tratado por quem não tem o pleno conhecimento do funcionamento interno do órgão.
Assim, a usurpação de iniciativa é clara e, se levada a cabo, prejudicial ao município, que terá uma lei regulamentando uma atividade administrativa específica proposta por
um órgão (neste caso a Câmara de Vereadores) que desconhece, pormenorizadamente,
as peculiaridades do sistema.
Além do mais, não há que se falar, neste caso específico, em convalidação do projeto de lei com vício de iniciativa em função da sanção do Poder Executivo.
O Supremo Tribunal Federal, no passado, em sua Súmula nº 5, teve um posicionamento que hoje não mais é seguido: “A sanção do projeto supre a falta de iniciativa do
Poder Executivo”.
Contudo, como mencionado, esse entendimento não prevalece mais.
Não é possível acatar tranquilamente a tese de superação de usurpação da inicia4
Art. 37 - A iniciativa das leis cabe a qualquer membro ou Comissão permanente da Câmara Municipal, ao Prefeito e aos cidadãos, na forma e nos casos previstos nesta Lei Orgânica.
§ 1º - Compete exclusivamente à Câmara Municipal a iniciativa das leis que disponham sobre os Conselhos
de Representantes, previstos na seção VIII deste capítulo.
§ 2º - São de iniciativa privativa do Prefeito as leis que disponham sobre:
I - criação, extinção ou transformação de cargos, funções ou empregos públicos na administração direta,
autárquica e fundacional;
II - fixação ou aumento de remuneração dos servidores;
III - servidores públicos, municipais, seu regime jurídico, provimento de cargos, estabilidade e aposentadoria;
IV - organização administrativa, serviços públicos e matéria orçamentária;
V - desafetação, aquisição, alienação e concessão de bens imóveis municipais. (g.n.)
5
Art. 235 - Será privativa do Prefeito a iniciativa dos projetos de lei mencionados no parágrafo 2º do
artigo 37 e incisos I, II e III do artigo 137 da Lei Orgânica do Município.
Parágrafo único - Ressalvado o disposto na Constituição da República, aos projetos de iniciativa do Prefeito
não serão admitidas emendas que aumentem a despesa prevista nem as que alterem a criação de cargos.
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tiva por meio do sancionamento da lei.
Em posicionamento seguro, Manoel Gonçalves Ferreira Filho discorre sobre o assunto.
Para o autor, é pacífico o entendimento da supremacia da Constituição Federal. E
esta supremacia ocasiona conseqüências importantes, como rigidez, por exemplo. Assim,
qualquer ato derivado da Constituição tem sua validade ligada à sua concordância com os
preceitos desta, em relação a requisitos formais e materiais. Sob a ótica do entendimento
desse autor, a admissão da convalidação do vício de iniciativa equivale à admissão de um
ato nulo (FERREIRA FILHO, 2001, pág. 213).
E isso não pode ser sustentado em um Estado de Direito cujo princípio da independência e harmonia entre os Órgãos do Poder é direcionador o interlocutor de um ordenamento jurídico composto de instituições democráticas.
E o próprio Supremo Tribunal Federal já corrigiu aquele entendimento6.
Embora improvável, ainda que reste alguma dúvida quanto à usurpação de iniciativa aqui discutida, a Constituição Paulista, em perfeita consonância com a Constituição
Federal, também prevê a reserva de iniciativa, corroborando com a presente tese de incompatibilidade vertical e afronta ao princípio da independência e harmonia ente os Órgãos do
Poder.
Senão, vejamos.
A Constituição do Estado de São Paulo dispõe, em seu artigo 5º, que os órgãos do
Poder são independentes e harmônicos entre si7, disposição seguida pelo artigo 478.
Na observância ao princípio da independência e harmonia ente os Órgãos do Poder, imprescindível constatar que ao Poder Legislativo não cabe a administração da cidade,
tarefa esta reservada ao Poder Executivo.
A hipótese em comento é claramente de administração ordinária, e o papel no Legislativo, neste caso, é apenas o de estabelecimento de normas gerais, e nunca delimitação de atos pontuais e específicos, sob pena de ingerência.
6
A sanção do projeto de lei não convalida o vício de inconstitucionalidade resultante da usurpação
do poder de iniciativa. A ulterior aquiescência do chefe do Poder Executivo, mediante sanção do projeto de
lei, ainda quando dele seja a prerrogativa usurpada, não tem o condão de sanar o vício radical da inconstitucionalidade. Insubsistência da Súmula 5/STF. Doutrina. Precedentes. (ADI 2.867, Rel. Min. Celso de Mello,
julgamento em 3-12-2003, Plenário, DJ de 9-2-2007.)
No mesmo sentido: ADI 2.305, Rel. Min. Cezar Peluso, julgamento em 30-6-2011, Plenário, DJE de 5-8-2011;
AI 348.800, Rel. Min. Celso de Mello, decisão monocrática, julgamento em 5-10-2009, DJE de 20-10-2009;
ADI 2.113, Rel. Min. Cármen Lúcia, julgamento em 4-3-2009, Plenário, DJE de 21-8-2009; ADI 1.963-MC, Rel.
Min. Maurício Corrêa, julgamento em 18-3-1999, Plenário, DJ de 7-5-1999; ADI 1.070, Rel. Min. Sepúlveda
Pertence, julgamento em 29-3-2001, Plenário, DJ de 25-5-2001.
7
“São Poderes do Estado, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário”
8
Artigo 47 - Compete privativamente ao Governador, além de outras atribuições previstas nesta Constituição:
II - exercer, com o auxílio dos Secretários de Estado, a direção superior da administração estadual;
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Assim, imperioso o reconhecimento de usurpação de competência e violação ao
princípio da separação dos órgãos do Poder.
2 O PROBLEMA A PARTIR DA ÓTICA INTERNACIONAL E O DESRESPEITO AOS DIREITOS FUNDAMENTAIS
Classicamente, o Direito Internacional pautou-se pelo estudo e desenvolvimento de
duas doutrinas principais, a dualista e a monista.
A teoria dualista caracteriza-se, basicamente, por considerar direito interno e direito
internacional como realidades e sistemas absolutamente distintos.
Formulada primeiramente por Carl Heinrich Triepel, em 1899, mas só denominada
assim por Alfred Verdross, em 1914, essa teoria seria mais tarde adotada pelos italianos,
sobretudo, por Dionísio Anzilotti que, em 1905, fez algumas alterações na teoria original
concebendo a possibilidade de, em alguns casos, o direito internacional ser aplicado internamente sem a devida alteração (ARIOSI, 2.000, pág. 62).
A segunda teoria, denominada monista, tem como característica básica o fato de
não contemplar duas ordens distintas, porque considera que o direito internacional e o direito interno não são ordens jurídicas autônomas. Por isso, essa teoria dividiu-se em duas
posições: uma que defende a primazia do direito interno e outra que defende a primazia do
direito internacional.
Quanto à primeira facção, que contempla a primazia do direito interno, segundo
Celso Duvivier de Albuquerque Mello:
O monismo com primazia do direito interno tem as suas raízes no hegelianismo, que considera o Estado como tendo uma soberania absoluta, não
estando, em conseqüência, sujeito a nenhum sistema jurídico que não tenha
emanado de sua própria vontade (MELLO, 1997, pág. 105).
Encontrando adeptos na França, na Alemanha e, posteriormente, na Rússia, essa
doutrina, além de adotar o direito internacional como algo meramente discricionário, teve
seu nacionalismo extremado pelos nazistas, que a utilizaram manipulando-a de acordo com
os seus interesses.
A segunda modalidade monista teve como maior precursor Hans Kelsen, para
quem a primazia do direito internacional encontrava justificativa em sua própria tese de
norma fundamental.
Para ele, uma norma encontra seu fundamento na norma imediatamente superior,
em uma sucessão que sugere a figura de uma pirâmide, tendo em seu topo a norma fundamental (ou Grundnorm). Por influência de Alfred Verdross, Kelsen acabou por concluir que
essa norma fundamental nada mais seria do que o próprio direito internacional representado pela pact sunt servanda (MELLO, 1997, pág. 106).
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É possível considerar, assim, que a diferença prática entre as duas correntes, a
dualista e a monista, sustenta-se no fato de que na primeira a ratificação, após a aprovação
legislativa, só irradia efeitos externos, necessitando de um ato presidencial, um decreto,
para que gere efeitos no ordenamento interno; enquanto que para a segunda corrente, a
simples ratificação presidencial, após a aprovação legislativa, por si só basta para gerar
efeitos externos e internos.
Por fim, vale transcrever, inteiramente, crítica proferida por José Francisco Rezek
que bem sintetiza a existência das correntes antes apresentadas, a dualista e a monista,
com suas duas vertentes:
Nenhuma das três linhas de pensamento é invulnerável a critica, e muito já
escreveram os partidários de cada uma delas no sentido de desautorizar as
demais. Perceberíamos, contudo, que cada uma das três proposições pode
ser valorizada em seu mérito, se admitíssemos que procuram descrever o
mesmo fenômeno visto de diferentes ângulos. Os dualistas, com efeito, enfatizam a diversidade das fontes de produção das normas jurídicas, lembrando sempre os limites de validade de todo direito nacional, e observando
que a norma do direito das gentes não opera no interior de qualquer Estado
senão quando este, havendo-a aceito, promove-lhe a introdução no plano
doméstico. Os monistas kelsenianos voltam-se para a perspectiva ideal de
que se instaure um dia a ordem única, e denunciam, desde logo, à luz da
realidade, o erro da idéia de que o Estado soberano tenha podido outrora,
ou possa hoje, sobreviver numa situação de hostilidade ou indiferença frente
ao conjunto de princípios e normas que compõem o direito das gentes. Os
monistas da linha nacionalista dão relevo especial à soberania de cada Estado e à descentralização da sociedade internacional. Propendem, destarte,
ao culto da constituição, estimando que no seu texto, ao qual nenhum outro
pode sobrepor-se na hora presente, há de encontrar-se notícia do exato
grau de prestígio a ser atribuído às normas internacionais escritas e costumeiras (REZEK, 2.000, pág. 05).
Pois bem, até o advento da emenda constitucional nº 45, no Brasil havia a discussão acerca do status de um tratado internacional de direitos humanos. Uma vez incorporado ao ordenamento jurídico brasileiro, dúvidas pairavam quanto a sua natureza de norma
constitucional ou infraconstitucional.
Seguindo a procedibilidade inerente a um dualismo moderado, a internalização de
qualquer tratado internacional exigia a aprovação ad referendum do Congresso Nacional, e
não fazia isso por meio de lei (se assim fosse, seria um dualismo extremado), antes disso,
procedia-se por intermédio de decreto legislativo, concentrando-se as críticas justamente
nesse instrumento, pelo qual seria impossível, por meio dele, atribuir status constitucional
a um tratado internacional de direitos humanos.
Com a emenda constitucional nº 45, foi introduzido o § 3º, no artigo 5º da Constituição Federal, objetivando estabelecer, em definitivo, o status formal e material de norma
constitucional para aqueles tratados que, sendo de direitos humanos, deverão observar o
quorum de emenda constitucional.
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Após esse advento, além de se estabelecer a natureza constitucional de alguns
tratados internacionais, inevitavelmente, criou-se um novo sistema de controle de constitucionalidade no Brasil, com o nascimento da teoria da dupla compatibilidade vertical material
(MAZZUOLI, 2011).
Ou seja, os tratados internacionais de direitos humanos, aprovados com quorum de
emenda à Constituição, são, além de materialmente, também formalmente equiparados às
normas constitucionais e, portanto, poderão ser paradigmas de controle das normas infraconstitucionais (MENDES, 2005, pág. 239).
A dupla compatibilidade vertical traduz-se, então, na necessidade de toda lei infraconstitucional guardar concordância com a Constituição e, agora, com o tratado internacional de direitos humanos devidamente internalizado. A lei que for contrária ao tratado internacional, enquanto não alterada, terá vigência, mas não validade, configurando-se naquilo
que o Ministro Gilmar Mendes chama de “efeito paralisante”9.
Desta feita, possível elaborar o entendimento sobre o que seja o controle de convencionalidade10.
Na definição de convencionalidade, esta teoria tem como corolário a concepção de
quatro espécies de controle, a saber, controle de legalidade, controle de supralegalidade,
controle de constitucionalidade e, finalmente, o controle de convencionalidade.
O controle de convencionalidade não requer autorização internacional. Uma vez
vigente no ordenamento jurídico brasileiro o tratado internacional de direitos humanos, os
juízes e tribunais podem promover um controle difuso compatibilizando as leis com o conteúdo do tratado.
Importante ressaltar que, pela tese defendida por Valério de Oliveira Mazzuoli, os
tratados e convenções de direitos humanos que ingressaram no ordenamento jurídico brasileiro antes da Emenda Constitucional nº 45 ou que ingressaram após esta emenda, mas
não observaram a formalidade de quorum qualificado (submetendo-se, portanto, à internalização preconizada pelo § 2º do artigo 5º da Constituição), são considerados normas
com status constitucional, e os tratados e convenções de direitos humanos adotantes do
procedimento especial do § 3º, do artigo 5º da Constituição são considerados equiparados
à emenda constitucional. Na prática, isso significa dizer que ambos possuem grau hierárquico de norma constitucional e, portanto, condicionam todo o ordenamento jurídico no
tocante ao controle de convencionalidade; contudo, no caso dos tratados e convenções
internalizados pelo procedimento especial, haverá a irradiação como parâmetro para o con9
Termo cunhado pelo Ministro Gilmar Mendes no Recurso Extraordinário 466.343-1 ao indicar à época a supralegalidade dos tratados internacionais que não adentrassem o ordenamento jurídico brasileiro
seguindo a formalidade do § 3º do artigo 5º da Constituição Federal, momento em que o STF entendeu que
com a adoção da tese da supralegalidade, todas as leis que não guardassem compatibilidade com as normas
supralegais, deveriam ser expurgadas do sistema, por restarem derrogadas.
10
Os conceitos a respeito do tema foram enfrentados pelo STF no RE n° 466.343/SP e HC 87.585/
TO, a respeito da posição hierárquica dos tratados e convenções incorporados ao nosso ordenamento que
versem sobre direitos humanos.
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trole difuso e concentrado de convencionalidade.
E mais, no controle de convencionalidade concentrado, feito diretamente no STF,
os mecanismos serão a ADI, a ADECON e a ADPF.
Enfim, absolutamente possível, então, levantar a necessidade de análise da questão de acessibilidade em comento, considerando-se tanto a convencionalidade difusa quanto a concentrada.
A Convenção da ONU sobre os Direitos da Pessoa com deficiência, por sua vez, foi
o primeiro tratado internacional assinado pelo Brasil após a inserção do § 3º do, artigo 5º da
Constituição Federal. Sua assinatura e ratificação ocorreram em 2008, portanto, internalizado já com status de norma constitucional.
Contudo, a história brasileira em relação à proteção de pessoas com deficiência
não é recente.
Para efetivar, entre outras coisas, direitos de acessibilidade, foram editadas diversas leis.
A primeira lei é de 1989, Lei Federal nº 7.853, que assegurou diversos direitos as
referidas pessoas, tais como a inclusão no processo educativo, ações preventivas e diferenciadas na área de saúde, reserva de mercado e acessibilidade.
A reserva de mercado também foi objeto de lei própria, a Lei nº 8.112 de 1990, que
determinou um percentual dos cargos públicos a serem reservados para as pessoas com
deficiência. Já a Lei nº 8.213 de 1991 assegurou o direito ao trabalho nas empresas privadas, tomando por parâmetro o número de empregados.
No ano 2.000, a Lei Federal nº 10.048 dispôs sobre a prioridade no atendimento de
forma geral e determinou a reserva de unidades habitacionais, para facilitar o direito à casa
própria das pessoas em comento.
A Lei Federal nº 8.899 de 1994 assegurou transporte gratuito interestadual.
A Lei Federal nº 9.394 de 1996 dispôs sobre a educação gratuita e de preferência
na rede regular de ensino, bem como assegurou a educação profissional e ensino superior.
A Lei Federal nº 9.656 de 1998 dispôs que não pode haver impedimentos para
que a pessoa com deficiência possa participar de plano ou seguro privado de assistência
à saúde.
A Lei Federal nº 10.098 de 2000 determinou que fosse assegurada a acessibilidade
das pessoas com deficiência ou com mobilidade reduzida a prédios e locais públicos.
Dessa forma, é fácil constatar que, internamente, por força da Convenção Interamericana para eliminação de todas as formas de discriminação contra as pessoas portadoras de deficiência, aprovada em assembléia ocorrida na Guatemala, em 1999, o Brasil
há muito já se preocupa com as pessoas com deficiência e, principalmente, com a questão
da acessibilidade, mormente, a implementação de medidas assecuratórias de tais direitos
ainda não são realidade plena.
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E, ainda, somente a partir da internalização da Convenção sobre Pessoas com Deficiência é que o quadro brasileiro ganha proporções impensáveis até então.
Cumpre esclarecer que na aprovação da Convenção sobre os Direitos das Pessoas
com Deficiência, todas as normas por ela apresentadas passaram a integrar a própria Constituição Federal, devendo, portanto, recair sobre elas o critério de eficácia e aplicabilidade
nas normas constitucionais.
Assim, os princípios gerais, só para citar alguns poucos vetores, acarretam efeitos
vinculantes a toda a legislação infraconstitucional.
Ao estabelecer o respeito pela dignidade da pessoa com deficiência, a autonomia
individual, a liberdade, a independência, a não discriminação, a plena e a efetiva participação e inclusão de tais cidadãos ou cidadãs na sociedade e o respeito pela diferença e aceitação de tais pessoas, como parte da diversidade humana e da humanidade, é imperioso
concluir que a Convenção estabeleceu vetores para a concreção da legislação ordinária,
direcionando, assim, toda a política pública no tocante aos direitos das pessoas com deficiência.
Desta feita, perceptível que a lei que estabelece o alvará condicionado na cidade
de São Paulo é absolutamente incompatível com o texto da Convenção e, consequentemente, incompatível com os padrões constitucionais adotados pelo Brasil frente à comunidade internacional.
Isso porque, ao desburocratizar a abertura de um estabelecimento, o Poder Público, omisso, deixou de cumprir com normas de comando internacional, internalizadas em
nosso ordenamento com status constitucional.
O famigerado alvará condicionado, ao autorizar todos os comerciantes paulistas
irregulares de funcionarem, sem quaisquer preocupações com as regras de acessibilidade,
acaba por privar não somente grupo protegido pela Convenção da ONU sobre os Direitos
das Pessoas com Deficiência, mas amplia o seu desrespeito a toda pessoa com mobilidade
reduzida e alcança, também, os idosos. Todos, portanto, parte de grupos vulneráveis com
proteção já garantida pela legislação brasileira.
Em tempo, trata-se, pois, de afronta ao processo de afirmação da acessibilidade
como forma de garantia da integração social de pessoas com deficiência, idosos ou portadores de mobilidade reduzida em geral, com direitos já, em tese, consagrados pelas Leis
10.048 e 10.098 de 2000 e o Decreto 5296/2004 estabelecem normas gerais e critérios
básicos para a promoção da acessibilidade no Brasil.
As mencionadas normas, inclusive, estabeleceram prazos11 para o cumprimento de
suas disposições. E, infelizmente, ao arrepio dessas determinações, o que se constata é a
implementação de uma lei municipal completamente contrária aos objetivos já estabelecidos há muito pelo Brasil.
11
Os prazos são: 2 de junho de 2007 para atendimento das edificações públicas e 2 de dezembro de
2008 para o atendimento de edificações coletivas
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E o desrespeito promovido pela Lei nº 15.499 também atinge pilares da República
Federativa do Brasil.
Os direitos fundamentais de igualdade e de liberdade, corolários da ideologia constitucional brasileira, ao serem atingidos por tão tosca proposta transversa de desrespeito
à dignidade da pessoa humana, refletem o desproporcional intento “eleitoreiro” de alguns
segmentos da sociedade brasileira.
Merece destaque as lições de Luiz Alberto David Araujo quanto à igualdade e os
direitos das pessoas com deficiência:
O direito à igualdade surge como regra de equilíbrio dos direitos das pessoas com deficiência. Toda e qualquer interpretação constitucional que se
faça, deve passar, obrigatoriamente, pelo princípio da igualdade. Só é possível entendermos o tema da proteção excepcional das pessoas com deficiência se entendermos corretamente o princípio da igualdade.[...] A igualdade,
desta forma, deve ser a regra mestra de aplicação de todo o entendimento
do direito à inclusão das pessoas com deficiência. A igualdade formal deve
ser quebrada diante de situações que, logicamente, autorizam tal ruptura.
Assim, é razoável entender-se que a pessoa com deficiência tem, pela sua
própria condição, direito à quebra da igualdade, em situações das quais
participe com pessoas sem deficiência. Assim sendo, o princípio da igualdade incidirá, permitindo a quebra da isonomia e protegendo a pessoa com
deficiência, desde que a situação logicamente o autorize. Seria, portanto,
lógico afirmar que a pessoa com deficiência tem direito a um tratamento especial dos serviços de saúde ou direito à acessibilidade. Todas as situações
quebram a igualdade (inicialmente entendida), mas apresentam autorização
lógica para tanto (ARAUJO, 2011).
Em sua dimensão objetiva12, ressalta-se, os direitos fundamentais exigem que os
“poderes” constituídos respeitem e sigam as orientações ideológicas propostas constitucionalmente (CLÉVE, 2003, pág. 19).
Assim, deve, pois, o Poder Público exercer suas funções sempre objetivando proporcionar a maior eficácia possível aos direitos fundamentais, e nunca o contrário.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
1. O processo legislativo possui regras procedimentais que comento devem ser
seguidas, sob pena de vício formal que poderá ocasionar a inconstitucionalidade do ato
normativo.
2. A iniciativa é elemento indispensável para assegurar o correto desenvolvimento
formal desse processo e, na eventualidade de sua não observação segundo os parâmetros
constitucionais, deflagra-se o chamado vício formal de iniciativa (vício formal subjetivo).
3. Em âmbito municipal, quanto ao processo legislativo, guardadas as diferenças
peculiares, é possível compreender as espécies normativas enunciadas no artigo 59 da
Constituição Federal como aplicáveis também na atuação desse ente federativo e, por isso
mesmo, imperioso guardar respeito ao disposto na Constituição Federal, por força do cha12
Há também a dimensão subjetiva que confere a existência de direitos inerentes à pessoa.
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mado princípio da simetria com o centro, que busca a harmonização das regras insertas na
Constituição com as legislações infraconstitucionais, cabendo ao Município observar o que
dispõe o artigo 61 da Constituição, acrescentando a isso a conformação com os aspectos
locais estabelecidos pela Lei Orgânica.
4. Embora a atribuição típica da Câmara dos Vereadores seja a normativa, no que
concerne ao procedimento legislativo municipal, que tem o interesse local como um de seus
vértices, existem matérias reservadas exclusivamente à atuação do Poder Executivo.
5. É reserva de iniciativa legislativa do Chefe do Poder Executivo os assuntos pertinentes à organização administrativa e judiciária, matéria tributária e orçamentária, serviços
públicos e pessoais da administração dos Territórios.
6. O Alvará Condicionado, aprovado na cidade de São Paulo pela Lei Municipal
nº 15.499, de 7 de dezembro de 2011, consiste em uma espécie de licença provisória de
funcionamento que permite que o comércio, indústria e serviço instalados irregularmente
possam continuar em funcionamento até obterem a regularização definitiva.
7. O Projeto de Lei que deu origem à Lei 15.499/11 teve autoria originária na Câmara dos Vereadores e, no entanto, segundo os propósitos da simetria constitucional, usurpa
iniciativa de propositura de Lei reservada ao Chefe do Poder Executivo Municipal.
8. A Convenção da ONU sobre os Direitos da Pessoa com deficiência, por sua vez,
foi o primeiro tratado internacional assinado pelo Brasil após a inserção do § 3º, do artigo
5º da Constituição Federal. Sua assinatura e ratificação ocorreram em 2008, portanto, internalizado já com status de norma constitucional.
9. A partir da aprovação da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, todas as normas por ela apresentadas passaram a integrar a própria Constituição
Federal, devendo, portanto, recair sobre elas o critério de eficácia e aplicabilidade nas normas constitucionais.
10. A lei que estabelece o alvará condicionado é absolutamente incompatível com
o texto da Convenção e, consequentemente, incompatível com os padrões constitucionais adotados pelo Brasil frente à comunidade internacional, porque violadora de preceitos
constitucionais, tais quais o direito à igualdade, à liberdade e ao princípio da dignidade da
pessoa humana.
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