Histórias quase possíveis

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Histórias quase possíveis
Histórias quase possíveis
José Roberto de Amorim
José Roberto de Amorim
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Histórias quase possíveis
a
Quintal dos Poetas
Oficina Literária
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Copyright 2014 by José Roberto de Amorim
Dados de Catalogação na Publicação (CIP)
A425h
Amorim, José Roberto de
HISTÓRIAS QUASE POSSÍVEIS/ José Roberto de Amorim – Lagoa Santa: Quintal
dos Poetas – Oficina Literária, 2014.
ISBN 978-85-911866-8-6
Literatura Brasileira. 2. Romance. 3. Contos I Título.
CDD 869.93
Versão digital da edição impressa produzida sob responsabilidade editorial do autor
Ilustração da capa: Ana Amorim
Quintal dos Poetas
Oficina Literária
Lagoa Santa, 2014
www.quintaldospoetas.com
[email protected]
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José Roberto de Amorim
Histórias quase possíveis
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Índice
A degustação da maçã ou os infortúnios do prazer (romance)
Prólogo.................................................................................................................................................pag. 08
Antes de mais nada, o fim.................................................................................................................pag. 09
Agora sim, o começo.........................................................................................................................pag. 20
O braço forte da lei........................................................................................................................... pag. 29
Alinhavando a gaiola..........................................................................................................................pag. 37
A flor e o pássaro...............................................................................................................................pag. 38
Sonho doce sonhado.........................................................................................................................pag. 41
Bendito fruto da paixão.....................................................................................................................pag. 44
O retorno e as meias verdades.........................................................................................................pag. 49
Maldito fruto sem futuro..................................................................................................................pag. 52
Iniciação.............................................................................................................................................. pag. 57
Novos ventos......................................................................................................................................pag. 61
Auspicioso negócio............................................................................................................................pag. 63
Pífio ardil.............................................................................................................................................pag. 64
Maravilhoso mundo velho................................................................................................................pag. 69
La décadence.......................................................................................................................................pag. 75
Novos voos.........................................................................................................................................pag. 77
Queda e ressurreição..........................................................................................................................pag. 80
O bouquet dos prazeres....................................................................................................................pag. 83
Maintenant, la civilisation.................................................................................................................pag. 87
Refinada lambança .......................................................................................................................... pag. 93
Penúltimas notícias...........................................................................................................................pag. 99
Epílogo e fundo moral................................................................................................................... pag. 103
O vendedor de epitáfios e outras histórias breves (contos)
A domesticação da barata.............................................................................................................. pag. 106
O conciliábulo................................................................................................................................. pag. 109
O vendedor de epitáfios ............................................................................................................... pag. 117
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O belfo ou uma breve história da origem do banco de três pernas........................................ pag. 122
As nove portas................................................................................................................................. pag. 126
O juízo...............................................................................................................................................pag. 131
As cores contundentes da vingança............................................................................................. pag. 142
O céu, o purgatório e o inferno.................................................................................................... pag. 148
Porque os camundongos roem livros.......................................................................................... pag. 154
A sobrepeliz do cardeal ................................................................................................................. pag. 158
O sino do Tibet .............................................................................................................................. pag. 165
Opalina..............................................................................................................................................pag. 169
O triunfo de Greta Garbo..............................................................................................................pag. 173
O chá das amigas..............................................................................................................................pag. 180
O prestidigitador..............................................................................................................................pag. 186
INRI em Nova York........................................................................................................................pag. 190
Avenida Adolf Hitler...................................................................................................................... pag. 194
O cartório..........................................................................................................................................pag. 199
A dignidade do morto.....................................................................................................................pag. 204
A fábrica de bonecas.......................................................................................................................pag. 209
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A degustação da maçã
ou
os infortúnios do prazer
Romance
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PRÓLOGO
O prazer é vermelho. Não igual a um coração, mas a uma maçã. Porém, a principal
semelhança entre os dois não é a cor e sim a utilidade. Como a utilidade da maçã é ser comida,
não basta examiná-la por fora. É preciso cortá-la ao meio e saborear as metades obtidas. O prazer
também é assim. Mas ao cortá-lo em partes, descobrimos que, ao contrário da fruta de Adão e
Eva, as metades são diferentes: uma metade é o amor e a outra metade é o desejo.
É preciso distinguir as metades do prazer e saber apreciá-las com correção, evitando o lado
amargo da fruta, pois ele também existe.
As vidas são diferentes e seguirá sendo assim, mas o mais interessante é que elas estão
cheias de prazeres e de maçãs e elas são vermelhas e precisam ser comidas, com amor ou com
desejo.
Cada um que faça sua escolha.
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ANTES DE MAIS NADA, O FIM
A súbita queda da luminosidade da sala cortou mecanicamente o cochilo ruidoso e suarento
do velho. Inserido num ambiente de trastes, semideitado na cadeira de mogno de espaldar
cardinalício talhado em pesadas flores de liz, estava Cedro Angélico. Abriu rapidamente os olhos
miúdos e constantemente cansados, na sua idade. A vista falhava, mas seus reflexos não. Eram um
tanto ligeiros e, assim, a bem da coerência, incompatíveis com seus oitenta e sete anos de idade,
tal qual não eram a vista e muita coisa mais. Incoerentes sendo, funcionaram rápido e quase
instantaneamente o devolveu à realidade modorrenta da sala repleta de trastes, como dito.
O velho juntou as partes boas e as ruins do seu conjunto orgânico exaurido no geral, reagiu
e se pôs alerta como podia. Ergueu a cabeça, olhando em direção à porta que se abria a um
alpendre de madeiras carcomidas, mal ocultas por uma tintura descarnada, herança de antigas eras,
por um lado priscas, por outro, tenebrosas, como sempre acontece em todo lugar. Lá estava a
causa da quebra do equilíbrio sereno do ambiente, interrompendo o torpor típico das mornas e
sonolentas tardes pós-prandiais dos octogenários; sonolentos, aliás, como lagartos cobertos das
escamas indolentes da idade. Alguém se postara sob o portal e tentava vislumbrar o interior,
procurando vencer o contraste do sol aberto que havia acabado de enfrentar por algumas horas,
galopando o lombo de extenuado cavalo e que lhe fechara defensivamente as pupilas sensíveis,
pois que sensíveis são os olhos e preciosa a visão em qualquer idade.
- Ô de casa! - gritou o recém-chegado, receoso de que uma imperceptível aproximação
pudesse ser mal interpretada.
O velho pigmaleou solerte e matreiro e apenas pigarreou discreto. Era o sinal para anunciar
que a inesperada presença já havia sido percebida. Mas nada disse, escondendo uma certa
malandragem oriunda de berço e polida na convicção formada ao longo da vida, singular no seu
caso que é, aliás, de que trata essa história no escopo principal.
Com o pigarro pensou o visitante ter obtido a resposta que queria, ainda que pergunta
alguma tivesse sito feita. Era a licença para entrar, concluiu ligeiro, no afã de ser aceito e ver
tolerada aquela sua intromissão. Assim pensando avançou alguns passos em direção ao interior da
sala. Seguiu reto e se postou frente ao velho, contemplando-o com gravidade, teatralizando a
importância daquela visita como, afinal, precisava que fosse.
Talvez necessário descrever que tudo se passava numa sala relativamente pequena de uma
moradia simples, de um pequeno sítio, de um lugar qualquer, de uma quase metade de século, nos
ermos do sertão. Um século pródigo para alguns e nem tanto para outros: tinha havido guerras e
progresso no mundo todo, mas não no sertão que continuava o mesmo, crescendo por moto
próprio, diferente do resto. De sorte que o sertão continuava sertão e aquela casa parecia mostrar
todas as agruras do século.
Miserável figura de moradia, lar, habitação, ninho ou toca. Um muro de adobe em ruínas com vários fragmentos de camadas de tinta de cores variadas sobrepostas, sucedendo manchas de
terra de tijolos expostos - protegia as laterais externas da casa. O muro resultava ser menor do que
o espaço que devia cercar, pois que muito pouco valia o que se tinha que cercar. Mas essas falhas
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de segurança não tinham a menor importância no meio daquela penúria. Contudo, sempre há de
haver um certo zelo defensivo e daí então, ao tal muro se seguia, de cada lado frontal do terreno,
uma cerca de paus finos enfiados entre três fios de arames farpados, displicentemente esticados
numa tarde qualquer de preguiça. Cercava porcos mas não cercava galinhas que bem podiam
passar por entre as tortas linhas dos paus de arbustos do cerrado na sua função de anteparo. Tudo
muito rústico e improvisado. Mas nada disto importava, certamente, pois ninguém cobiçava aquela
pobreza conformada e galinhas e porcos, guardadas as proporções, mereciam o mesmo espaço e
acabavam do mesmo jeito, na panela de domingo e depois na travessa de louça grossa para serem
justamente comidos pois para isso se tinha investido na sua criação. Tudo parado e desalinhado
no tempo que passava longe, detrás da serra acolá. Dentro da moradia nada era muito diferente
em termos de desimportância e carência; pois esse era o tom, como já dito. A sala terminava em
paredes mal niveladas, com pintura também em mal estado, sujas, com manchas causadas pela
água gotejada e com reboco se soltando em alguns pontos, deixando o adobe à vista. Enfim,
pobreza igual, por dentro e por fora.
Cravadas em pontos diversos da sala havia três portas de madeira em pranchas mal
ajuntadas, pintadas em óleo grosso num tom escuro de cinza. Todas estavam abertas, que não
havia intimidades a guardar nem se esperava visita. Chão de assoalho tosco, vincado de frestas.
Duas janelas para o alpendre e duas do lado oposto, mostrando, à média distância, as arvores do
quintal e convidando à sombra, pois no interior da sala estava quente e carregado no ar. Caibros
expostos sustentavam uma pesada cobertura de telhas escuras moldadas em coxas grossas de
negras opulentas, vazadas em alguns pontos por fios da luz do sol forte de meio de tarde, de verão,
de fim de mundo.
À mobília que preenchia os espaços da sala, mais justo seria chamar de decadente do que
de simples, pois solenes as havia, embora rotas e carcomidas no geral. Eram peças solteiras, de
modos diversos, juntadas apenas para cumprir suas funções práticas essenciais, como sói ser com
mobílias em casas naquele precípuo estado. Um guarda-louça pesado e talhado em boa madeira,
guardava, como convinha, peças de jeito antigo. Testemunhas, talvez, de solenes rituais familiares
perdidos, desde o início dos tempos dos infortúnios. Uma poltrona revestida de veludo verde
manchado e roto, deixando à vista o forro de pano rústico e, sob ele, o algodão encardido do
enchimento, semioculto por um paletó e um chapéu atirados no assento, acentuando o desleixo
do conjunto todo. Uma mesa escura e extraordinariamente sólida, cercada por meia dúzia de
cadeiras de palhinha amarela, quase todas soltando tiras. Uma velha arca de couro, apropriada para
transporte de carga em lombo de burro, jazia em um canto, inútil, esquecida. Ao lado da arca uma
cuspideira de cobre, encardida por não ser limpa com a desejável frequência, multiplicando o
poder de corrosão dos ácidos das salivas ali misturadas. Nem carecia ser diferente com a falta de
higiene, sendo tudo desse jeito.
Das paredes pendiam dois quadros, atirados sem guardar qualquer simetria ou relação com
algum ponto da sala: um coração de Jesus de moldura azul reluzente e uma fotografia colorida à
mão de que, daqui a pouco, falaremos mais. Finalmente, completando o ambiente despojado e
decrépito, a cadeira onde o homem velho estava sentado reinando em seu reino de destroços.
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Justo dizer que era um móvel solene, até majestoso. Contrastava, com certeza, com o restante da
sala pelo bom estado de conservação. Talvez por isso, dava uma certa aura de autoridade ao seu
ocupante, legitimando seu lamentável reinado. Decorre daí, talvez, o tom de respeito e solenidade
com que o recém-chegado perguntou:
- O senhor é Cedro Cedrus? Venho de longe para lhe falar.
O velho ouviu a pergunta, apoiou-se melhor na cadeira, deixou passar alguns segundos e
respondeu, um tanto contrariado:
- Não sei se sou quem procuras, de qualquer forma chegaste em hora errada.
Foram palavras expelidas num tom de mau humor como não poderia deixar de ser em
sendo ditas por um octogenário interrompido em seu vital repouso vespertino. O jovem, contudo,
não se deixou intimidar pelo tom inamistoso da recepção e completou ludibriando a timidez:
- Desculpe senhor, mas viajo há dias e não pude escolher a hora de chegar. O que me traz
é urgente e por isso tive, a contragosto, de desprezar a impropriedade de incomodá-lo nessa
hora.
A resposta firme, decidida e, ao mesmo tempo educada e bem articulada, pareceu um bom
prenúncio ao ancião, desconfiado até então, com uma certa razão. Não era seguramente a forma
com que se expressaria alguém que viesse com intenções perigosas. Tal conclusão desarmou a
animosidade inicial e fez o velho mudar a forma com que recebera o estranho, até arriscando uma
ponta de cordialidade.
- Muito bem. Espana a poeira do corpo, arrasta uma cadeira e diga porque procuras Cedro
Cedrus.
Embora não tivesse obtido a confirmação desejada o visitante, que até então estava tenso,
se sentiu um tanto mais relaxado e, ainda que de forma solene, avançou alguns passos rápidos em
direção a cadeira de palhinha colocada ao lado do seu interlocutor. Sentou-se num gesto ágil,
impelido pela ansiedade que guardava desde que decidiu fazer o que agora fazia, e que estava no
ápice do seu projeto da visita. Tirou o chapéu largo de feltro preto descorado e pendurou no
espaldar. Ajeitou a guaiaca, colocou o chicote sobre a coxa, posou o alforje que trazia no ombro
e fitou o dono da casa por alguns segundos, sem saber o que estava por vir.
O ancião observou todos os movimentos do recém-chegado e esperou que ele tomasse
cômodo. Tudo se deu em segundos, mas aquele ritual que atrasava a explicação do motivo da
vinda já o incomodava quando o visitante resolveu principiar a falar a fala que já havia preparado,
ensaiado e repassado várias vezes.
- Meu nome é Jequitibá Malesco e estou vindo do Distrito dos Deserdados, de um lugar
chamado Cerradão da Seriema.
O velho ouviu com atenção os topônimos que indicavam as origens do visitante tentando
se situar e antecipar o motivo da inusitada visita. Lugares conhecidos e agora já perdidos? Terras
de um amor antigo? Sitio de uma herança insabida. Túmulo de um remoto amigo? Tudo isso e
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nada disso? Seu giro mnêmico resultou inútil mas ele não quis revelar a inocuidade do ligeiro
esforço.
O visitante fez uma pausa, entendendo que seu interlocutor digeria suas palavras, buscando
uma referência. Nesse lapso de segundos o velho voou léguas e décadas nas asas da memória e,
enquanto fazia isso, fitava os particulares do forasteiro buscando um rumo qualquer. Olhos negros
de expressivo contorno. Mãos e braços fortes. Boa envergadura. Na entrada já havia notado a
leveza no andar, a rapidez no deslocar, deslizando na horizontal. Na vertical nem pensou pois não
quis aventar qualquer relação de parentesco, perto, médio ou distante. Poderia ser o contrário (e
era), mas ele decidiu, por antecipação, que nada naquele homem deveria encontrar rumo nas suas
reminiscências, pois não queria comprometimentos daquela espécie naquela altura da vida. Assim
era ele: pensava ligeiro, ligeiro tirava conclusões, muitas acertadas, muitas levianas, tantas outras
equivocadas. Mas era desse modo que vivia. Ainda agora, tantos anos passados.
Ao final, sua expressão foi de vazio, como não poderia ser diferente, por falta de
consistência na lógica que havia adotado naquela análise corrida. Mas, assim mesmo, o resultado
até que calhou bem a Cedro Angélico, pois seria complicado descobrir, na parte final da vida, que
aquele era seu próprio filho, casual e temporão. Mas isso vemos depois que a história continua na
toada que tem que ser.
Percebendo o resultado pífio da elaboração mental no semblante do ancião, o recémchegado, constrangido pelo silêncio, resolveu continuar a sua fala e até aumentar o ritmo da sua
penetração sobre a resistência do seu interlocutor.
- Vim aqui porque acredito que o senhor é quem procuro, sabe coisas do meu passado e
pode me ajudar a acabar com a minha busca.
Aquelas palavras desconfortaram novamente o velho. Do passado, como vimos, não
gostava de falar e essa condição adversa acrescentou rispidez à sequência da conversa.
- Não o conheço e ignoro o seu passado. - Disse secamente.
- O Senhor não andou por Sacramento muitos anos atrás? - Insistiu o visitante, desprezando
a posição refratária do outro lado.
Em lugar de responder à pergunta, o ancião se pôs a examinar mais uma vez seu
interlocutor, insistindo com si mesmo, masturbando a situação, a avaliar o significado da visita
inesperada que subitamente quebrara a já longa sequência de tardes sonolentas, sucessivas e
monótonas naquela idade.
Repassou a geografia da jornada do recém-chegado. Distrito dos Deserdados, na sua parte
mais perto, ficava a pelo menos três dias de viagem, em bom galope. Que motivação levaria aquele
homem, que supunha não conhecer, a percorrer essa distância para vê-lo? E, ao que parece a
viagem fora feita em clima de aflição, instigando disposição e empurrando ligeireza.
- Quando começou a viagem? - perguntou, quebrando, finalmente, a tensão que se instalara
natural, na evolução da cena narrada.
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- Na verdade já há alguns anos venho procurando o senhor, mas a informação que me
trouxe aqui, eu obtive há uns dez dias - respondeu o visitante, propositadamente já inequívoco
identificando o velho como sendo a pessoa procurada, agora encontrada com sucesso.
- Assim que soube que o senhor poderia me dar uma informação muito importante, parti
imediatamente. Não quis correr o risco de não encontrá-lo por falta de pressa. Também
não tive certeza de que o encontraria aqui. Mas vim e sei que o rumo é certo.
Seguramente o visitante buscava algo muito valioso para ele, pensou o velho, se animando
e virando o humor para o lado mais ameno. Vamos tratar o assunto levando isso na devida conta,
valorizando a visita e ajudando no que fosse dado ajudar e, claro, cobrando justo por isso. Pois
assim era Cedro, como vamos revelar.
- Continuo sem saber se sou de fato quem procuras, mas vamos ver em que posso ajudálo, compensando seu esforço – respondeu o ancião.
- Eu nasci em Sacramento, nas cabeceiras do Rio Barreiro. Sei que o senhor andou por
aquelas paragens, tempo atrás - acrescentou o visitante objetivo.
Sim, relembrou em silêncio, o velho homem, sem esforço. Lembrava-se de ter conhecido
um tal lugar. Um arraial inserido na parte final de um roteiro de viagem que tinha empreendido
décadas passadas, trilhado no dito cujo Distrito dos Deserdados, atrás da quitação de dívidas
antigas de clientes descansados. Assim, com a curiosidade aguçada por uma referência conhecida
de décadas passadas, e mais, achando interessante aquela situação inusitada, o ancião afastou de
vez o seu incômodo com a visita e a invasão impertinente ao seu passado guardado. Com um
gesto de mão simpatizante pediu que o visitante prosseguisse seu relato, no que ele obedeceu
gratificado, embargando a voz, involuntário cedendo à emoção.
- Nunca conheci meus verdadeiros pais. Fui criado por alguém que julgava fosse minha mãe
de verdade mas que, à morte, confessou não sê-lo. Desconheço se eles estão vivos, mas
preciso reviver suas memórias com tudo que puder saber sobre eles.
As palavras do forasteiro fizeram o velho movimentar-se sobre a cadeira, procurando captar
de forma mais precisa as exatas intenções daquele homem. Ali estava alguém impelido por uma
dúvida corrosiva sobre suas origens. Alguém angustiado, premido e disposto a muito por uma
informação que iluminasse uma sombra em sua vida. Um homem querendo desesperadamente
reconstituir o seu passado.
Que estúpido sofrimento, que leviano projeto! Recriar o passado é reacender desejos já
satisfeitos, emoções já saciadas – pensou o ancião com toda a vivacidade como se lesse,
alegremente, notas em um precioso caderno onde tivesse anotado receitas para o bem viver,
mesmo agora, depois que uma vida de prazeres já tinha cobrado dele o preço dos infortúnios que
costuma espalhar.
À medida que o forasteiro ia desfibrando a ansiedade que carregava, o velho ia
vislumbrando possibilidades interessantes diante de si. E sorriu. Sorriu mais para dentro do que
para fora, mas sorriu. E sorrindo com o sorriso mais discreto de fora resolveu mostrar mais
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interesse. Com um ar de simpatia se inclinou discretamente na direção do visitante que, agora
mudo, aguardava alguma reação do seu interlocutor. Entendeu ser aquele um gesto favorável para
continuar a sua fala, que era o que o velho queria.
- A mulher que me criou, por odiosa e desconhecida vingança, me tirou da casa de meus
pais quando eu tinha dois anos de idade. Embora seja grato a ela pela forma amorosa e feliz
com que me criou, eu a odiei quando ela, no leito de morte, confessou que não era minha
mãe e que meu pai era um comerciante de Sacramento de onde me tirara há mais de trinta
anos.
A menção desses fatos remexeu de forma decisiva a memória ativa do velho. Agora de
forma precisa e objetiva, virando páginas devagar e revelando retratos com toda a claridade e
nitidez dos pretos, brancos e cinzas que naquele tempo a realidade era retratada assim, graduada
e irreal. De fato, em torno daquele tempo, naquele preciso lugar, por força de uma necessidade
premente, teve que ressuscitar os rescaldos dos negócios da família e se ocupar algumas semanas
em cobrar dívidas antigas, percorrendo vilas e arraiais naquele ingrato e extemporâneo mister,
juntando resquícios da herança paterna para ganhar uma sobrevida pois estava inteiramente falido
e penando outra vez. Exatamente! Durante dois ou três meses zanzando pelas povoações
ribeirinhas do ribeirão do Barreiro: Barreirinho, Barra do Pindanhaçu, Carmo do Descampado e,
certamente, Sacramento.
As imagens se formaram rápidas e, ligeiras como vinham, refizeram com nitidez e doçura
aventuras vividas aos quarenta e nove anos de idade quando ainda conservava a força e disposição
de um mancebo, como se verá literalmente, quando for oportuno. Lembrava-se que, naquela
viagem, tinha contraído uma doença que quase o deitara no escuro de uma cova muito antes da
hora. Uma temporada inusitada de chuvas e torrentes transbordantes resultou no seu penoso
isolamento por uma semana, abrigado em uma tosca palhoça, às margens de um afluente do
ribeirão do Barreiro, comendo comida estragada e bebendo água barrenta. Resultou daí uma
porca doença que, fora a humilhação dos descontrolados dejetos do baixo ventre, carcomeu suas
forças, roendo a sempre boa saúde, antes que ele conseguisse chegar a Sacramento e tentasse se
pôr a salvo daquele solerte perigo. Ali se reteve por algumas semanas, hospedado na casa de um
comerciante, seu cliente devedor, sendo cuidado por sua mulher e uma dedicada e disponível
criada. Sim, tinha boas lembranças daqueles cuidados macios e perfumados. Sim, tinha boas e
gratíssimas lembranças daquelas mulheres solitárias e solidárias, naquela casa sombria, onde os
dias passavam sem nenhuma serventia e elas queriam resgatar parte do tempo perdido. Lembravase também que, cerca de três anos depois, ao passar novamente pelo lugar, cheio de recordações
e tardias gratidões acumuladas, não mais encontrou o comerciante, a mulher e nem a criada.
Contaram que ele havia se mudando, tomando rumo não sabido após desfazer-se da loja por
qualquer preço, como se precisasse sair apressado para acudir ou fugir de alguma coisa que
ninguém soube o que era com certeza, mas todo mundo suspeitava e comentava em voz baixa.
Ninguém lhe falou daquela suspeita, sendo ele só um forasteiro de passagem, nem um pouco
benquisto como são os cobradores de dívidas que já deviam estar esquecidas. De sorte que, para
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ele, aquela história não despertou maior interesse, preocupado que estava em cobrar as tais dívidas
e encerrar de vez sua curta e agonizante carreira de negócios. E não mais se lembrou daquilo, nem
da mulher do comerciante, nem da criada.
Agora, repassando friamente esses fatos, a lembrança só serviu para Cedro Angélico
concluir que realmente, o forasteiro estava no caminho certo. O finito não findara e ei-lo de novo
presente Mas não quis revelar ainda a possível existência de uma conexão entre ele e o passado do
moço. Assim, assumindo uma postura de cautela, resolveu aclarar melhor os desdobramentos
daquela situação que quebrara o seu cochilo naquela tarde morna e seca e que teria sido igual a
inúmeras outras se não fosse o incidente da visita, por si só uma raridade.
- O que o faz acreditar que conheci seus pais – perguntou fingindo desinteresse.
O forasteiro, animado pela pergunta do velho, respondeu coloquial, como queria que fosse
a conversa para mais tocar intimidades:
- Bem, pouco antes de finar-se, a mulher que me criou, deu-me uma informação importante
que acabou por me trazer exato aqui. Ela me revelou o nome de meus pais e que eles viviam
em Sacramento. Logo que me foi possível parti para aquela vila para apurar a revelação da
moribunda. Mas, infelizmente não os encontrei. Vim a saber pelo pároco que lá vivia há
mais de cinquenta anos, que eles se mudaram repentinamente do lugar. O velho padre acrescentou o visitante - comentou que pouco se sabia deles pois pouco saiam, não
frequentavam a igreja e não se relacionavam socialmente com ninguém. Era, contudo,
admirado e respeitado pela sua correção nas transações comerciais que fazia.
Nesse ponto o recém-chegado fez pequena pausa como se tivesse apreciado aquela
referência feita sobre o suposto pai. Em seguida retomou a narrativa:
- Na verdade, o bom padre não me contou muita coisa, mas duas de suas informações se
revelaram preciosas e acabaram por me trazer até o senhor com essa feliz precisão. Contoume que a única pessoa que tivera uma relação mais próxima ao casal fora um viajante que
com eles morou algumas semanas, se recuperando de uma doença perigosa. Contou-me,
ainda, que no lugar onde funcionou a loja de meu pai, havia agora uma selaria cujo dono
comprara também alguns móveis e utensílios do antigo ocupante.
O velho ouvia atentamente a narração do forasteiro tentando definir de que forma deveria
reagir, gerindo a intromissão.
Subitamente, o jovem alteou propositadamente a voz, como se quisesse sublinhar o que
dizia, olhou diretamente nos olhos do velho e exclamou:
- Sei que aquele viajante era o senhor.
- Porque tem tanta certeza - retrucou desafiante Cedro Angélico – um pouco incomodado
com aquela contundência.
O homem, como se já esperasse aquela reação continuou, aparentando calma:
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- Porque naquela selaria encontrei um baú da antiga loja de meu pai onde estavam guardados
papéis velhos com registros de compras, vendas e pagamentos. Os papéis mais recentes
eram recibos de pagamento de dívidas datadas e assinadas pelo senhor. As datas são
consistentes com a minha dedução
Isso dito, o visitante enfiou a mão no alforje que pendia ao lado da cadeira, cavacou o fundo
e sacou, num gesto quase agressivo, um maço de papéis amarelados pelo tempo e a umidade e,
num misto de receio e desafio, exibiu-o ao velho. O octogenário, sem pegar no pacote amarrado
com um barbante encardido, inclinou-se, apertou os olhos como se procurasse ajustar o foco da
visão e pôde ler no cabeçalho de um deles:
“Sucupira Nemélio & Cedro Cedrus – Sociedade Comercial”
Aquela evidência acintosa aborreceu o velho, esfriando o entendimento. Sentiu-se
verdadeiramente acuado. Como pôde o rapaz localizá-lo com base em tão remoto indício? Ainda
mais tendo mudado de nome. Sentiu-se fragilizado, sem condições de manipular os cordéis da
cena como gostaria. Tossiu, raspou a garganta, esperou o rapaz guardar os papéis, levantou-se
lentamente, deu alguns passos em direção à cuspideira, escarrou ruidosamente como se procurasse
aliviar seu constrangimento, compensando-o com a ansiedade que aqueles minutos de espera
certamente provocariam no forasteiro.
O moço esfregou as mãos, acompanhou os gestos do ancião e procurou uma outra posição
contra o assento da cadeira, abrandando o olhar, sem saber o que dizer.
Percebendo o desconforto e receio dos desdobramentos dos acontecimentos estampado
nos discretos movimentos de seu interlocutor, o velho se sentiu novamente no comando da
situação e suficientemente seguro para dar sequência a um plano que lhe fermentava na mente
desde que percebera a ânsia e a força dos motivos íntimos do visitante e do seu desejo manifesto.
Ali estava alguém desperdiçando o presente, tentando abrir o futuro com as chaves do passado
Com muita disposição, muita ansiedade debilitando a razão.
Caminhou de volta à sua cadeira, sentou-se e exclamou solenemente:
- Sim, de fato eu conheci seus pais e posso ajudá-lo a saber algumas coisas do seu passado,
desde o começo de tudo.
Essas palavras fizeram com que o moço suspirasse fundo e relaxasse os músculos de corpo
como se merecesse alguns segundos de repouso por uma, possível, bem sucedida empreitada.
Aguardou, sem qualquer reação, numa pausa como que também imposta por algum receio de que
o velho pudesse recuar da disposição positiva que acabara de lhe passar.
Falou pausada e cuidadosamente, escolhendo as palavras.
- Não quero ofendê-lo senhor, mas dentro das minhas posses estou disposto a recompensálo, ou a quem o senhor indicar, por uma informação ou algo que me ajude a aclarar melhor
o meu passado.
Esse dito fez velho sorrir um sorriso manifesto, discreto contudo, mas de triunfo, como se
desde o início tivesse por objetivo exatamente provocar tais palavras em seu interlocutor.
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- Na verdade, eu não posso dizer, com propriedade, que convivi com seus pais. Foram
apenas duas semanas, mas, de fato, foi tempo suficiente para criar uma amizade que se
fortaleceu com algumas passagens posteriores por Sacramento.
Ditas essas palavras, cheias de meias verdades, o ancião fez uma pausa, como se buscasse
cauteloso o que devia seguir dizendo. O forasteiro permaneceu atento, temendo que pudesse vir
a perder algum ponto da narrativa. O octogenário continuou, aumentando as mentiras:
- Fui muito grato a eles pelo tratamento que me deram por conta de uma fraqueza de
doença que me abateu longe de casa e de cuidados verdadeiros. Acho que foi uma
convivência curta mas muito intensa e que atou laços entre nós. Tanto que, ao partir, recebi
de seus pais uma inestimável lembrança que tem me acompanhado todos esses anos e que
guardo com reverência e preito de gratidão entalhada.
- Então o senhor tem algo que lhes pertenceu - inquiriu o moço excitado, cortando a
narrativa e cravando os olhos no velho.
Cedro Angélico levantou-se novamente. Com uma trinca de passos cadenciados andou
lentamente até a parede ao lado da porta da entrada da sala, sentiu os olhos do forasteiro segui-lo,
parou a meio metro da parede e voltou-se teatral.
- Vê esse retrato - disse apontando um dos quadros dependurados nas paredes da sala. Uma
velha moldura onde se via um casal contra um fundo azul descorado, colorido à mão com
água de molho de papel crepom.
O forasteiro apontou os olhos na direção indicada, fixou o olhar com curiosidade sobre o
objeto e aguardou a sequência.
O velho olhou o chão alguns segundos. Em seguida alçou a cabeça e sem fitar nada em
particular exclamou em tom levemente dramático:
- São seus pais!
Ao ouvir estas palavras o homem deu um salto, se pôs de pé e avançou em direção à parede.
Arrancou o quadro com uma certa valentia e passou a contemplá-lo com reverência. Em seguida,
voltou-se para o velho que permanecia ao lado, fitou-o resoluto e exclamou:
- Isso é mais do que eu esperava encontrar.
Não obteve nenhum retorno. A sala ficou algum tempo em silêncio. O forasteiro extasiado
olhando o quadro e o velho fingindo olhar o infinito fora da sala. Corrido o tempo em que se
julgou seguro para propor o que vinha preparando, Cedro Angélico, atravessou a sala, sentou-se
em sua cadeira solene e falou com a voz impostada, como pôde:
- Essa é a única lembrança que tenho deles e, infelizmente, não posso dispor dela.
O forasteiro replicou, incontinente, com uma serenidade que surpreendeu seu interlocutor:
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- Sei que o senhor tinha grande apreço pelos meus pais e creio que eles sentiam o mesmo
pelo senhor, mas, com todo respeito, penso que tenho mais direito à única lembrança que
restou deles e que para mim tem o peso de uma relíquia. Além disso estou disposto a
recompensá-lo como anunciei.
Isso dito e, sem esperar resposta, abriu a guaiaca, tirou um maço gordo de notas, colocouo sobre a mesa e aguardou a reação do outro.
- Não posso aceitar isso, exclamou o ancião. Se você considera que tem direitos sobre o
quadro nem tem que pagar por ele.
- Sim, mas gostaria de recompensá-lo até como uma ajuda desinteressada em nome dos
laços que, de alguma forma, há muito nos une.
De fato os unia, como eu disse de passagem, fortes laços de sangue, mas isso não vem agora
ter nenhuma pertinência. Assim o velho guardou silêncio, pois pensava em outra coisa, relegando
os detalhes daquela mesma história passada em Sacramento há trinta anos e que, como dito,
veremos depois.
O homem esperou alguns segundos ansiosos e, após entender que o silêncio do outro
significava aprovação, avançou sobre ele estendeu a mão que foi prontamente aceita e apertada
com vigor. Em seguida Jequitibá Malesco sorriu, no que foi seguido pelo ancião. Agachou-se,
apanhou o alforje que jazia no chão, ao lado da cadeira, deu um giro para trás à medida que se
erguia e, ainda sorrindo, esticou quatro largos e ágeis passos em direção à porta levando o retrato
apertado contra o peito. Ganhou a claridade do alpendre e o calor ensolarado que ensopava o
jardim. Depois, um tropel indicou que se ia. O velho permaneceu sorrindo e mudo e assim ficou
por mais um tempo até que o ruído do galope do cavalo do homem, deixou de ser ouvido.
- Cá! - Gritou olhando em direção a porta que, entre duas janelas iluminadas pela luz do
dia, se abria para o escuro da parte interna e mais encalorada da casa, bem no rumo dos
raios do sol daquela hora.
Aguardou alguns segundos e não obtendo resposta repetiu o chamamento, agora já com
certa impaciência.
Mais alguns segundos e surgiu, sala adentro, uma jovem de pouco mais de trinta anos, com
os cabelos pretos que, se não estivessem contidos por um laço de fita amarrado na parte posterior
da cabeça, lhe chegaria até a cintura num jeito meio cigano. Era Camélia Veltum doce companheira
da velhice de Cedro Angélico. As mulheres sempre foram para ele simples objetos de prazer postos
no mundo para saciar divinos desejos, mas não agora. Agora dependia singelamente de uma delas
para ter um mínimo de consolo e proteção. É a mecânica da vida pondo as coisas no lugar no seu
tempo devido.
- O que foi? - exclamou a moça. - Não sabia que você estava acordado, lavava roupa no
quintal à beira da cisterna.
- Ora mulher, você não percebeu que eu tinha uma visita?
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- Na verdade sim, e até estranhei, mas não quis aparecer e fui pro fundo do quintal. O que
foi?
A essa pergunta o ancião não respondeu de imediato. Esticou lentamente as pernas.
Espreguiçou como se estivesse acabando de acordar, ampliou o mesmo sorriso que já durava
alguns minutos e apontou a parede onde uma mancha mais clara no formato do quadro que
acabara de ser levado, marcava sua longa permanência naquele lugar, ao tempo em que denunciava
a sua ausência.
- Lembra daquele quadro que já encontramos aqui quando mudamos pra cá?
- Sim, alguém o esqueceu na parede ou não o quis levar quando mudou daqui Onde está
ele? – perguntou a jovem.
- Foi bom não termos jogado ele fora pois acabo de vendê-lo por bom dinheiro - disse o
velho, apontando o maço de notas que ainda jazia sobre a mesa.
- Como - retrucou Camélia Veltum, surpresa. - Como alguém poderia querer comprar
aquela coisa velha?
- É uma história que agora não interessa. Alguém achou que ele valia, pagou por ele e até
ficou muito feliz pois satisfez uma vontade antiga. As pessoas pagam pelos desejos que
têm, lembra-se?
- Veja – disse, apontando novamente o maço de notas. Quanto será que tem aí?
A moça estranhou que ele não soubesse, mas nada perguntou. Pegou o dinheiro, examinou,
passou cuidadosamente nota por nota escorregando-as entre os dedos, contou e se entusiasmou
com o resultado.
- É uma loucura alguém pagar esse dinheiro todo por um quadro velho de uma gente antiga
que ninguém conhece.
- Sabe de uma coisa – completou o octogenário – estamos todos felizes, eu, você e,
principalmente, o novo dono do quadro. Vamos à vila comemorar, comprar algumas coisas
e festejar que isso anda raro e não pode ser assim quando não precisa. Vai trocar de roupa,
que o carroção do Imbé Cáltio não demora a aparecer, no rumo do povoado, na hora de
sempre.
Referia-se ao único meio de transporte disponível e que, a cada dois dias, com bastante
pontualidade, passava por ali a caminho da vila que ficava a cerca de duas léguas do sítio, serra
abaixo numa estrada poeirenta e cheia de curvas.
- Verdade, que boa coincidência – exclamou a moça alegre, seu sentimento mais raro -. Não
demoro nem um pouco.
Isso dito sumiu rapidamente pela porta de onde havia saído, meia dúzia de minutos antes.
Cedro Angélico acompanhou a retirada da moça com um movimento brando de cabeça e
continuou a manter o olhar na sua direção, mesmo alguns segundos após ela desaparecer porta
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adentro. Em seguida estendeu a mão sobre a mesa e apanhou o maço de notas, sentido nos dedos
o prazer do tato com toda aquela preciosa aspereza. Olhou-o, fechou a mão sobre ele e pousouo sobre o colo satisfeito. Recostou-se melhor sobre a cadeira cardinalícia, reclinou a cabeça
levemente para trás buscando um apoio mais confortável sobre o espaldar majestoso. Olhou o
horizonte que se estendia no quintal entre os fundos da janela e ficou sorrindo. Continuou assim,
pensando nas fragilidades do desejo, quando mal usado, deslocado de contexto.
Passados alguns minutos, a moça reentrou na sala animada, farfalhando um vestido rodado
que varria os móveis próximos a cada movimento seu, locomovendo-se entre eles, em direção ao
velho.
- Estou pronta - exclamou com entusiasmo, postando-se frente ao outro.
- Vamos descendo que não temos muito tempo - completou.
Apanhou o paletó e o chapéu que se encontravam jogados sobre o assento da poltrona
decadente de veludo verde e estendeu-os ao homem. Ele continuou imóvel olhando o horizonte
pós-janela do quintal e sorrindo. A moça repetiu o movimento, imprimindo-lhe também um
sacolejo. Mais uma vez não obteve qualquer reação. Assustada jogou as roupas para o lado,
inclinou-se aflita e sacudiu o velho. Em princípio apenas assustada e em seguida soluçando e
respirando forte como se o ar da sala começasse de repente a faltar. O velho continuou sorrindo
e mirando o infinito. Estava inteira, completa e irremediavelmente morto. E mereceu morrer
sorrindo. Afinal, viveu uma vida inesperada e morreu oitenta anos depois de uma vidente vaticinar
que ele, por ser o fruto torto de uma paixão pecaminosa, não viveria mais do que alguns poucos
anos. Mas, em compensação, teria a graça de morrer anjinho, poupado de penar nos rios
caudalosos do inferno. Ele dispensou de morrer anjinho com toda a convicção, mas onde está
agora eu não sei.
AGORA SIM, O COMEÇO
Naqueles lugares ermos vivia-se à espera de que o calendário católico apostólico romano
se cumprisse. E ele se cumpria e tornava a se cumprir no ano seguinte e no próximo e no
subsequente e assim... Até o dia em que cada um, fiado no crédito acumulado em tanta pertinência,
se visse na presença do próprio Deus, em pessoa, cobrando o débito, acertando o saldo e
justiçando os infiéis. Tempo certo de coisas inexoravelmente certas. Assim, naqueles tempos, as
festas religiosas eram coisas especiais cuja espera podia dar algum sentido à sucessão monótona
de dias, semanas e meses, embalados no mecanismo regular e eterno do universo. A natureza
cumpria seu ciclo com zelo, sem muita violação. Chovia no tempo da chuva, secava no tempo do
sol, ventava no tempo do vento, floria no tempo do cio. Mas, no meio de tudo isso, ditosas
celebrações. Dia da padroeira, novena da Santa Virgem, a benção dos animais e outros muitos
ritos comunitários igualmente aguardados, posto que em incertas datas, de morte, de bodas e de
nascença. As nascenças não eram tão incertas assim, visto que se acumulavam todas numa época
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só, pois as mulheres daqueles lugares só pariam na primavera. Desta forma, na estação das flores
era uma só festa. Fora disso, contudo, a alegria vinha entremeada de tristezas, descontando as
bodas que prenunciavam o florescer.
Mas, às vezes, embora também fossem minuciosamente esperadas, coisas incomuns
aconteciam e quebravam o ritmo monocórdio da existência. Como quanto os ciganos vinham do
sul para prever o futuro e enchiam os lugarejos de curiosidade e medo, submetendo a fragilidade
das almas. Ou quando as atrizes de alvos colos ofertados na bandeja dos decotes, vinham do norte
para representar suas comédias recheadas de expressões em um francês lindo e suspeito.
Do lado leste é que vinham os circos. Quatro companhias diferentes, se revezando a cada
dois anos, numa ordem regular e obediente como se houvesse um acordo entre elas. O ritual da
vinda e da preparação era sempre o mesmo, mas nunca perdia o jeito de novidade que, se não
fosse, por novidade passaria, pelo menos no detalhe da pessoa ou da vestimenta. Primeiro os
lugarejos acordavam e em, excitada surpresa, encontravam os muros brancos cheios de cartazes
coloridos anunciando as grandes atrações e a data da estreia. Aí o povo já se envolvia e o assunto
não podia ser mais outro. Depois chegava o cortejo avançado dos artistas, vestidos a caráter,
exibindo passagens de algumas das mais apreciadas performances, seduzindo o lado lúdico das
pessoas, mesmo as mais sérias. Depois vinha a atração extra de acompanhar a montagem do
acampamento, o erguer da lona, o trato dos animais e a espiada nas canelas das mulheres do elenco,
com frequência postas à mostra no sentar e na rodada das saias. Mulheres radiantes, doces e
fictícias, sempre abertas e cheias de sol, como não as eram as outras do lugar, comuns e sem graça
no que lhes era exigido das suas obrigações conjugais. No meio de tanta mágica a juventude
pairava no elenco dos circos, pois as filhas sucediam as mães que já tinham sucedido as avós, e
eram iguais e maravilhosas estacionadas do tempo.
O circo enchia de magia e mudava o sentido do dia-a-dia naquelas plagas sonolentas onde
as horas pingavam em cada parte do dia, escorregando pegajosas.
Foi assim naquela manhã em Chapadão de Deserdados quando o circo chegou. Amanheceu
cinzento, abafado na densidade carregada das nuvens. Uma chuva insistente lavou a noite a noite
toda, liquefazendo os sonos e trazendo a natureza pra debaixo dos lençóis e desconfortando. O
amanhecer encontrou a povoação coberta dos cartazes do circo, silenciosa e sorrateiramente
colocados durante a noite para parecer que algo de realmente mágico havia acontecido. E mais,
naquelas circunstâncias, isso de fato pareceu, pois ninguém podia imaginar que algum ser vivente
e racional pudesse se dispor a colar aqueles cartazes debaixo do aguaceiro que precedeu o dia.
Talvez homens peixes houvesse, mesmo sem serem atração no picadeiro. Mágicos ou não, lá
estavam os cartazes molhados mas firmes, prenunciando a chegada do admirado Circo Espanhol,
prometendo uma vez mais, atrações nunca vistas nas passagens passadas. Quiçá, imaginadas
sequer, pela originalidade da criação. A mulher que vira homem em pleno picadeiro, a ema que
come fogo, a cobra que assovia e, mui especialmente, o homem que voa, planando no espaço e
arrostando o perigo da gravidade sem nenhuma proteção. Variado e inusitado espetáculo a
merecer prioritária atenção daquela comunidade. Nem precisava de tal apelo, sendo sempre bem21
vindo o que quebrava a rotina e a disciplina embutida. E isso se dava ligeiro e facilitado pela
conivência geral.
De imediato o conselho dos notáveis despe a toga, o chapelão e a sotaina e convoca urgente
reunião para revisão do calendário das novenas e assembleias. As datas são rapidamente
acomodadas para o que contam com as complacências dos patronos e comadres. O mesmo fazem
os moç0s com o programa de saraus. Enfim, por uns tempos se adiam os compromissos, mesmo
os políticos e os da alma. E o lugarejo mergulha nos seus magníficos e raros tempos de
prestidigitação e de encantamento, na beira do irreal. É assim entre os grandes e os pequenos,
irmanados na mesma meninice.
É assim na casa da viúva do dr. Umbuzeiro Cedrus, também. A notícia da chegada do circo
encontra a família inteiramente envolvida com os preparativos finais para a entrega definitiva da
filha única, prometida ao serviço de Deus como freirinha piedosa. Disposta para servi-lo até o
último de seus dias nessa vida passageira, plena de sofrimento, engano e desilusão. Incômoda mas
acomodável coincidência do divino e do profano pois a viúva do dr. Umbuzeiro sabe distanciar
as portas dos paraísos, os breves e os perenes. Deus, por certo há de entender que, mesmo a mais
piedosa das famílias, posto que contemplada por graça dele mesmo com distinta posição e apreço
social, precisa estar à altura da gala das noites raras que se avizinham. E assim, baús antigos são
abertos e revirados à cata de não menos antigas roupas, cuidadosamente guardadas para essas
festas mundanas. É preciso, porém, não repetir o traje da última temporada, no ano que passou.
Um recorte de gola modificado, uma manga encurtada, uma renda renovada. Uma tintura com
cores novas da moda. O máximo para dar figura nova aos trajes reformados e assim escapar da
arguta perspicácia própria dos vizinhos invejosos, como são todos nos lugares lugarejos, e nos
outros também que a vaidade se expande conforme o espaço que tem, seja muito ou não.
Açucena Cedrus – a noivinha de Jesus, minha doce personagem - tem aceso nos olhos um
brilho de despudorada alegria. Como se lhe tivessem arranjado, de surpresa, um prêmio de
despedida do lado alegre da vida. Foi assim que a filha única do dr. Umbuzeiro e de d. Violeta
acolheu aquela inesperada situação na sua alma em preparo para longa reclusão, contemplando os
mistérios divinos e agasalhando no colo os sofrimentos alheios. E foi assim que não sentiu
remorso de ainda se sentir presa às leviandades desse mundo. A mãe, contudo, como mãe, se
incomoda, receosa de que a mudança de prioridades na cabeça da menina, ainda que justificada e
efêmera, possa prejudicar a preparação novicial o que, até então, vinha concentrando alegremente
a labuta do gineceu das Cedrus, reforçado pela ajuda de tias, madrinhas e vizinhas solitárias, todas
no mesmo lugar cortando e costurando. Mas é preciso cautela com os impulsos da idade, bem
sabe a venerável senhora, às vésperas de condenar a filha a preservar-se num convento pelo resto
da vida, à salvo das poeiras profanas desse mundo. Interpelada docemente a jovem se mostra
firmemente convencida de que há de se cumprir o seu destino, prometida a Deus desde que a
extemporânea e complicada gestação que a formara a tinha ameaçado de nunca botar os olhos
negros nas luzes claras desse mundo. Mas Deus atendeu às desesperadas preces da família e
Açucena Cedrus nasceu toda floral de parto sereno, viçosa e saudável como ao Senhor fora
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implorado, marcada de venial pecado e com o futuro traçado por divino compromisso, como
freira. Isso há de se cumprir, reforça em fé sua mãe, conivente e confiante pois paciente é o seu
Deus e sabe do seu triunfo nessa luta singela entre o gozo e a penitência de inocente menina. Mas
não foi desse modo, como iremos contar, no lugar apropriado.
Naqueles dias as coisas correram assim na casa austera dos Cedrus, com as almas em
harmonia para o sagrado e o mundano. Raros dias, perpassados de espera ansiosa pela estreia do
circo antes das portas do claustro. E não para a faina no gineceu excitado. Uma costura divina,
um alinhavo sagrado, camisolão de baeta, uma rendilha brilhante, um brocado de seda, um
bordado vaidoso, um veludo escarlate. Mas as coisas não se misturam entre o hábito de freira e a
toalete do circo. Seguem bem as tarefas duas, pra deleite de Açucena e tranquilidade da mãe.
Assim passam, dias poucos mas mais lentos que de costume, na lentidão dos costumes de
Chapadão de Deserdados.
Mas finalmente é final de uma tarde de domingo, quente e especial como poucos. As
obrigações dominicais já ficaram pra trás zelosamente cumpridas, Deus e o estômago saciados
com contrição e decência. Então, tendo atrás de si o céu avermelhado pelo sol que não agoniza
mas foge, d. Violeta vai vencendo rua acima o quarto de légua que separa sua casa do Alto do
Descampado, coberto de ralo pasto onde se ergue a lona vistosa do circo maculando o horizonte
azulado escorado numa parede de penedos colossais, guarnecendo o vale. Iluminada pela luz
tremulante de centenas de lampiões suspensos em seu interior, o circo parece um imenso balão
pronto a subir pelo céu de veludo azul em matizes de escuros crescentes rumo as grimpas do
infinito. Tomando pelo braço a filha, a viúva do dr. Cedrus caminha solene, cumprimentando com
um movimento de cabeça, num discreto risco vertical, os passantes e vizinhos. Postados em
alpendres e janelas, os idosos, entrevados, deserdados ou simplesmente desacoroçoados observam
como podem e com os humores que lhes parecem justos, o cortejo rumo à lanterna chinesa de
lona. Poucos, porém, são os que se alhearam inteiramente ao apelo daquele maravilhoso evento
sazonal e intruso, acolhido, contudo, com todo o deslumbramento.
De forma lenta e ordenada a lona armada vai engolindo uma boa parte do povoado.
Pequenos grupos se formam ao longo das passagens para cumprimentos e demais ritos sociais,
algumas vezes acrescidos de contidos cochichos sobre roupas, ancas e pelancas. O povo se move
rumo ao alto do descampado numa alegre procissão. Os assentos do circo vão sendo aos poucos
ocupados. Algumas doridas pisadas, vassouradas de plumas e ameaçadas de bundas a um palmo
do nariz não chegam a incomodar, pois predomina a alegria. Camarotes, cadeiras e poleiros vão
acomodando a massa, conforme posses e posições conquistadas ou herdadas.
Um camarote especial havia sido reservado ao magnífico marquês dos Choupos, um fidalgo
de antiga casa de França, exilado voluntário em Chapadão de Deserdados desde quando a
memória pode alcançar. Mas como sempre acontecia, ele não apareceu, reforçando a lenda do seu
mundo de mistérios, isolado desse nosso prosaico mundo e de seus seres comuns. Outro igual
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camarote foi destinado a Sucupira Nemélio. E lá estava ele: gordo, cachaço corado, autoridade e
homem mais abastado do desabastado lugar, mercador de tudo, diamantes em primeiro lugar.
Solteiro, não estava contudo sozinho. Modesto, gostava de compartilhar as benesses da sua riqueza
e posição com outras lideranças do lugar. Discreto, as conversas no camarote eram contidas e
sussurradas, tratando dos interesses do povo que ele, por ser povo, nem precisava saber.
D. Violeta, mais por obrigação de tradição social do que pelas posses decadentes do
presente, acomodou-se com a filha numa ala de cadeiras bem situadas, a poucos metros do pesado
cortinado azul que escondia os camarins, jaulas, geringonças e as outras intimidades do circo,
necessárias as rotinas que produziam, enfim, a magia do espetáculo pois esse, claro, dependia de
muita coisa banal.
Acomodados os traseiros o vozerio aumentou. Todos se conhecem e querem saber notícias,
mesmo quando já sabidas pois é pouco o repertório em vila tão modorrenta. Quinze minutos
depois do fim da ocupação já bate uma certa aflição por inexplicável demora para início da sessão.
Não dura muito mais, todavia. Surge o mestre da cerimônia com suas roupas vermelhas, jeito de
domador fracassado e, sobretudo, o pronunciado sotaque espanhol fluindo por sob o bigode
torcido e engomado. Anuncia a abertura da noite. Começa o espetáculo e as atrações prometidas
nos cartazes e proclamas vão se sucedendo com regularidade cumprindo o programa,
decepcionantes, indiferentes ou surpreendentes ao respeitável público, conforme o veredicto das
palmas. Macacos, elefantes e leões, bailarinas e anões. Divertindo, emocionando, ou simplesmente
enganando, honesta e docemente. E o melhor, com certeza, fica para o final. O número mais
esperado. O show do trapézio, as peripécias do homem que voa. Este vou descrever no parágrafo
seguinte com mais individuação.
Feericamente precedido de aplausos excitados pela crescente expectativa habilmente criada
pelo apresentador, Castanheiro Fúlvio, o Pássaro de Castela, adentrou o picadeiro. Correndo
agilmente de um a outro lado, ergueu os braços segurando as pontas da capa cintilante, num gesto
ritual e emblemático como se abrisse um par de asas poderosas, causando inveja a Ícaro com suas
asas postiças e mal ajambradas.
Após alguns minutos de saudação ao público, sustentados pela força decrescente dos
aplausos, o trapezista aproximou-se da corda pendente do trapézio e, num movimento ensaiado,
deixou cair a capa vermelha e brilhante que lhe cobria os ombros e se estendia até o meio das
pernas adornadas por meias e sapatilhas azuis, tão ajustadas que pareciam parte do próprio corpo
do homem. Agora sem a simbologia das asas, revela ao público o que realmente pode fazer voar
um mamífero bípede e implume: uma musculatura perfeita, paciente e sofridamente esculpida
desde a adolescência, potenciando pernas e braços já gerados para isso. No caso dele era diferente,
mas isso se vê depois, pois agora, nesse exato momento, o que nos importa nessa história é a
reação de Açucena Cedrus e é a ela que passo. Devo contar que instantaneamente, de forma
inexplicável e brusca, aquela visão máscula estilhaçou as defesas mal formadas da filha querida de
d. Violeta Cedrus e fez ferver os seus fluidos de fêmea no estágio primário, mas nem por isso
aprendiz. Verdadeiramente, não era a primeira vez nos seus curtos dezenove anos de vida, mas
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era a mais intensa e estranha. Havia muita coisa nova concentrada, fervilhando quando não devia,
dada a hora e o lugar. Ofegante, a moça apurou instintivamente os seus sentidos despertos e os
lançou penetrantes na direção da causa daquela ebulição involuntária, forte e natural. Mesmo a
razoável mas bem vencida distância, perscrutou, apalpou, sentiu detalhes do corpo daquele
homem, retesado sob a roupa colante, no esforço disciplinado de erguer-se pela corda, metros do
chão, até o trapézio. Saliências e reentrância, vistas e imaginadas invadiram incontinente as
intimidades da menina. Simples desejo ou amor à primeira vista? Não foi possível apurar naquele
exato momento. Fato é que, de repente, algo tinha vindo para ficar, mesmo em local tão impróprio
a romances verdadeiros.
O trapezista espanhol, o homem voador, alheio à invasão que proporciona aos humores da
moça, concentrou-se na sua perigosa e fútil tarefa. Alcançou o trapézio e se sentou sobre ele.
Tomou impulso dobrando ritmado os joelhos, furando o ar com a ponta dos pés num crescente
movimento de pêndulo. Uma, duas, várias vezes. Aos poucos vai aumentando o ritmo e elevando
a ansiedade da multidão na mesma cadência. Minutos se passam nesse moto crescente, valente
penetração fálica no ar. Atingida a velocidade desejada e medida com precisão, sob exclamações
incontidas da plateia se lança ao vazio em contornos calculados em direção a outro trapézio em
movimento parelho que outro trapezista havia lançado a ele em tempo e distância perfeitos.
Executava pela milésima vez, com o sucesso esperado, o terrível salto mortal triplo sem rede de
proteção, a quinze metros do chão duro e pouco receptivo. Depois repetiu a façanha no sentido
inverso, de um trapézio ao outro, com a mesma emoção, fascinando a plateia predisposta a ser
fascinada e susceptível à emoção. Concluído o ansiado e breve lance da coreografia alada, ao som
de palmas entusiásticas e sinceras o trapezista desceu por uma corda com as pernas eretas na
horizontal, sustentando todo o peso do corpo na força de mãos e braços. Tocou o chão e
caminhou rápido rumo ao público, erguendo os punhos triunfantes. A moça respirou de forma
descompassada quando ele avançou em sua direção sorridente. Parecia que ele agradecia
especialmente aos aplausos dela. Seus olhares pareceram a ela se cruzarem, ariscos e candentes.
Sopros ingênuos de inesperada e fulminante paixão ou flamejante tentação a levam a sentir nesse
glorioso detalhe uma espécie de secreta conivência aos frêmitos traiçoeiros de sua alma a Deus já
prometida. Olhou para o lado, discreta, temendo que a mãe pudesse ter percebido alguma coisa,
especialmente seu despudorado ofegar. D. Violeta, contudo, não podia dar conta de nada que ia à
sua volta, distraída que estava com cada detalhe do número que o público reverenciava. Mas não
seria, certamente, a perspicácia própria das mães de filhas daquela idade e condição que iriam
conter os impulsos da jovem naquele precípuo instante. Não obstante o alheamento da mãe,
procurava pelo menos, conter o entusiasmo das palmas. E aplaudiu como o faria alguém que
aplaudisse por pura educação, sem nada de interesse, ignorando os empurrões que a alma lhe dava,
inquieta.
O trapezista agradeceu por mais alguns segundos os aplausos da plateia e saltitante, ao estilo
afetado dos artistas de circo como era de fato, desapareceu sob o dossel das pesadas cortinas de
veludo azul que fechavam o fundo do picadeiro num majestoso reposteiro. A banda atacou a peça
musical requerida pelo momento de glória e um bando alvoroçado de palhaços, na sua função de
quebrar os resquícios da tensão do número do trapézio, se espalhou rapidamente, ocupando todos
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os cantos do picadeiro. A cada queda ou bofetada dos bufões o público ria interagindo solidário
e grato. E o bailado de gestos previsíveis foi seguindo o seu curso conhecido até o fim, mas não
sem fazer sucesso, pois todos gostam de rir e se emocionar quando é próprio e era, pois todos
estavam ali atrás de alegria singela.
Açucena Cedrus, já refeita dos frêmitos que o homem voador lhe causara, acompanhou
mecanizada o resto do espetáculo. Mas, na verdade, nem se dava conta do que passava à frente
dos seus olhos, sua mente bloqueada, sua alma em desalinho. Tem em marcas fincadas as imagens
do número do trapezista e mais sua figura de Hércules e Adônis e o segredo de voar. Consultou
o programa do espetáculo, recebido ao entrar e que, casualmente guardara no fundo da bolsa,
então sem muito interesse pelo conteúdo. Mas agora não. Desdobrou o folheto ansiosa. Buscou
identificar aquele homem fascinante. Em destaque estava o nome, fácil de achar. O homem
voador: Castanheiro Fúlvio - O Pássaro de Castela. A jovem pronunciou seu nome em silêncio.
Sentiu ser capaz de penetrar incontinente na intimidade dele. E foi além e teceu uma banal novela
que a ligava ao trapezista pelo resto de seus dias. Se viu vagando pelo mundo, ao estilo dos ciganos
e da própria gente de circo. Se viu embalando o berço. Se viu em contendas de amor, em perfume
e suor; como descrito nos romances proibidos, zelosamente trancados nas estantes secretas da
biblioteca dos Cedrus, ao dispor da sua sede de amor, de aventura e de luxúria.
Sua vida recriada num suspiro não dura, contudo, mais do que uma dúzia de segundos
fugidios. Nem podia, por falta de lastro. Um toque suave no ombro a traz de volta à hora e ao
lugar.
- Foi tudo muito interessante, não foi? Perguntou a mãe, destroçando a leveza do seu
sonhar prematuro e atrevido.
Percebeu então que o espetáculo já se encerrara e o mestre da cerimônia agradecia a
presença do público em nome de todo o elenco. Pôs-se de pé, num salto, como se quisesse
disfarçar seu alheamento e respondeu:
- Sim, minha mãe, foi o mais perfeito espetáculo que me lembro de já ter visto.
A mãe não podia perceber o certo atrevimento da resposta. Isso fez a moça sorrir e
completar:
- Foi extremamente excitante.
D. Violeta, surpreendida com a frase, já ia pedir explicações pelo emprego de uma palavra
que sempre lhe parecera um tanto imoral, quando foi interrompida por um grito da plateia, já
semidesfeita e que, admirada, apontava para o alto. A veneranda senhora, seguida por sua filha,
olhou na direção apontada pelos tantos braços levantados. Um pássaro azul cruzou o alto do
picadeiro num voo silencioso. A ave estranha, com porte e envergadura de um gavião, alçou o
topo da lona e seguiu uma estreita trajetória circular acompanhando a circunferência afunilada do
alto do recinto. Completadas algumas voltas, começou uma descida em linha reta em direção às
duas mulheres da família do distinto e saudoso dr. Umbuzeiro Cedrus. A pequena multidão,
surpresa com o extemporâneo espetáculo, se assustou com o que lhes pareceu uma perigosa
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posição de ataque. Alguns que se viram na linha do voo se abaixaram atrás das cadeiras. Outros
se puseram a correr em busca de uma saída. Outros simplesmente se puseram a gritar, inertes e
rendidos. As duas mulheres, por pavor ou confiança; ainda que se sentindo na linha da trajetória
do suposto ataque da ave, não moveram um só músculo. Permaneceram imóveis, em solene
posição que não revelava a intensidade do medo. O pássaro seguiu o seu mergulho e, à poucos
metros da dupla, dobrou o corpo, esticou as garras e ruflou as asas espalmadas para estancar a
velocidade da descida. Elegante e suavemente pousou sobre o frágil ombro da mais jovem das
mulheres, dobrou as asas e ficou imóvel, sereno e dominante. Açucena Cedrus, respirou fundo e
evitou olhar a ave com medo de alguma reação perigosa a um palmo da sua cara. Permaneceu
parada e muda, congelada. A mãe, extremamente pálida, apenas olhou incrédula aquela cena
singular. Alguns segundos se passaram. A ave olhando a moça e ela olhando em frente. As pessoas
que se encontravam mais próximas se aproximaram devagar. As demais se descontraíram, passado
o susto, e olharam atentas. Sentindo-se segura pela placidez inesperada da ave, a jovem se arriscou
a olhá-la finalmente. O gavião azul retribui com meneios de cabeça como se investigasse algo
interessante. A moça avançou um passo para testar a reação do pássaro. Ia tentar o segundo passo
mas alguém a estancou. Uma jovem senhora, trajada com discrição, com um gesto suave de mão
deteve, gentilmente, o seu avanço e, à guisa de poleiro, estendeu o braço em direção da ave. Ela
não reagiu, parecendo dispensar a cortesia. A mulher insistiu, gesticulando impaciente o membro
erguido. O bicho então obedeceu e do braço passou ao ombro. Naquela posição, com a ave
equilibrada e quieta, a mulher atravessou rapidamente o picadeiro e desapareceu pela fresta
semiaberta na junção das partes da cortina azul de veludo.
Açucena Cedrus e sua mãe acompanham caladas a trajetória da mulher carregando o
pássaro para fora do recinto. Pareciam encantadas com o que acabaram de vivenciar, melhor do
que o espetáculo em si, na sua mesmice circense.
- Que coisa maravilhosa - exclamou a menina, estampando um belo sorriso de
encantamento.
- Sim - concordou a velha senhora com entusiasmo. Parecia que o pássaro a havia escolhido,
propositadamente, no meio da multidão. Nunca havia visto um pássaro assim, semelhante
a um gavião azul. Mas não existem gaviões azuis. Bem, talvez possa existir na Espanha e
esse é um circo espanhol - arrematou seu raciocínio ingênuo, pensativa, sem muita
convicção.
Nesse instante, um senhor forte e alto, de cabelo emplastado e vasto como um telhado, que
até então permanecera próximo a dupla de mulheres observando o seu diálogo, resolveu se
intrometer na conversa.
- Desculpe, minha senhora, sou um homem viajado e posso afirmar, com certeza, que não
existe gavião azul em nenhum lugar do mundo. Aquele pássaro pareceu-me um bicho muito
raro e estranho. E acho que ele realmente escolheu a menina no meio da multidão, como
uma coisa pensada.
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D. Violeta ouviu a observação com atenção, mas não apreciou a intervenção por lhe parecer
despolida, sendo ele um desconhecido. Agradeceu formalmente o comentário, pegou a menina
pelo braço e se afastou a passo curto em direção à saída que, a essa altura, devolvia ao arraial os
últimos espectadores que saiam devagar comentando o episódio retardatário do pássaro. Algumas
pessoas conhecidas não deixaram de interromper o trajeto das duas mulheres para fazer
comentários sobre a cena inusitada, retardando um pouco mais sua saída.
Quando chegaram próximo à abertura que ligava o interior do circo a um toldo vermelho
de cerca de quatro metros, ladeado por tochas fumegantes cuidadosamente colocadas à distância
segura da lona inflamável, d. Violeta e a filha eram parte de um grupo de vinte ou trinta pessoas,
os últimos espectadores ainda presentes. Antes de cruzar o arco da saída, Açucena ainda voltou a
cabeça para o interior como se, através de uma última visão do picadeiro, quisesse reforçar na
memória tudo que vivera naquela noite. Noite ímpar que certamente marcaria por algum tempo
seus últimos dias mundanos, às vésperas de se internar num convento distante, quase perdido,
apartado desse mundo. Então dava passos miúdos e vagarosos como se não quisesse encerrar
aquele instante, mais confuso do que mágico e que fatalmente acabaria ao deixar aquele espaço.
Mas, aquele domingo raiou para ser inesquecível e não ia acabar assim placidamente. E não
acabou pois o mais surpreendente ainda estava para acontecer. Sim pois eis que, de repente, um
grito lacerante inundou com força o ambiente enlonado. A jovem, numa reação automática, pulou
em direção à mãe buscando, instintivamente, uma guarita. D. Violeta, também assustada, virou-se
incontinente na direção do grito ao mesmo tempo em que abraçava protetoramente a filha,
respondendo com seu gesto a carência de defesa. As duas mulheres abraçadas e com o peito em
sobressalto, olharam na direção de onde parecia ter partido o grito, buscando vislumbrar a sua
causa. Não gastaram mais que frações de segundos para encontrá-la com todos os seus quesitos
de horror. No fundo do picadeiro, defronte a grande cortina azul, vislumbraram uma silhueta
cambaleante de mulher. O ser incerto avançou alguns passos indiretos com as duas mãos enlaçadas
ao pescoço. À distância parecia que a mulher estrangulava a si mesma. Logo a reconheceram
apesar da expressão torcida pela agonia e a dor. Era a mulher que pouco antes recolhera o pássaro
azul e mergulhara com ele por trás do cortinando de veludo. Avançava trôpega, com os olhos
estufados, curvada à frente em precário equilíbrio. Açucena e a mãe, horrorizadas, conseguiram
perceber um grosso caldo de sangue esguichando do pescoço da mulher em direção ao chão
rendido à gravidade não obstante a força do jato jorrante na horizontal. Alguns funcionários do
circo que no picadeiro recolhiam coisas, passada a bobeira do susto, avançaram sobre a mulher e
tentaram ampará-la, mas não conseguiram. Ela caiu ao chão agonizante, em convulsão já olhando
para o nada do além. O sangue em abundancia que escorria pelo pescoço e o colo, os encharcaram
aumentando a tragédia da ocorrência e a horripilância da cena. As duas mulheres permaneceram
petrificadas, olhando o que se passava e não estava programado. Outros integrantes do circo –
artistas e serviçais - surgiram de vários cantos atraídos pelos ruídos de movimentos incomuns
vindos do picadeiro.
De repente mais terror vinha se somar ao quadro precedente. Alguém surgiu do escuro, de
um canto do vasto recinto e avançou arrasado e indeciso como se estivesse embriagado. Venceu
devagar o espaço até o centro do picadeiro, chamando a atenção de todos. Parou e a iluminação
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daquele ponto veio mostrar outro detalhe do terror que se sucede. É o trapezista – O Pássaro de
Castela. Vestido ainda com sua roupa azul, tem a cara coberta de sangue do nariz até o pescoço.
A menina ao ver aquilo não conseguiu mais conter-se, soltou um grito pavoroso e desfaleceu
inteira sobre o piso de terra e casca de arroz que vindo do picadeiro, forrava também o corredor
de saída onde estavam as duas. A mãe não conseguiu ajudar muito. Sentou-se no chão ao lado da
filha, fechou os olhos, cobriu o rosto com as mãos trêmulas e soluçou combalida, tragada no
torvelinho das emoções de noite tão singular.
O BRAÇO FORTE DA LEI
Aroeira Militatus - cabo Mili – como mais era conhecido, resultava ser a autoridade policial
de Deserdados, tanto máxima quanto única, pois outra não havia nem carecia. Oficial dos poderes
do estado, legitimamente provido, com portaria de juiz e tudo mais, como mandava o regulamento
aplicável. Ao mesmo tempo era a força e o escrivão. Quer dizer, punha as irregularidades no papel
e remetia para apreciação superior a seis léguas de distância, nas baixadas verdejantes do vale.
Quando força era pedida tinha que improvisar e requisitar a ajuda de uma trinca de compadres
voluntários, contudo dispostos, sempre prontos à ação. Mas isso era tão raro que não há casos
precedentes registrados, fora esse que agora se dá notícia e que marcou os anais pela raridade e
relevância. No geral, era fácil a ocupação, pois a ordem naquele mundo pacato, era coisa natural e
a lei se sustentava por si só, planando divinamente, garantida pelos fios dos bons costumes e pelo
temor a Deus e suas chamadas troantes e timoratas. De sorte que, do que ele se ocupava mesmo
era de desfilar sua farda, impecável em qualquer ocasião. Notadamente na ronda dos bolos e cafés
todo final de tarde. Esperto, variava os rumos da ronda de acordo com a rosa dos ventos,
alternando sabiamente a escolha da fartura das mesas dos caros anfitriões e suas dadivosas e
prendadas esposas. Segunda-feira, rumo norte, pela Rua da Agonia mirando nas roscas cocadas
da dona Miosótis Maltecus, servidas com requinte numa mesa guarnecida com pesados talheres e
porcelana inglesa. Terça-feira, sudoeste, ambrosia, no ponto quanto ao doce e a consistência, nem
aguada nem melosa. Quarta-feira um pouco mais longe, mas sempre valia a pena. Rumo sul,
Caminho dos Esfolados, suspiros nevados da família Natatarius: d. Nata e suas filhas Natinha
maior e Natinha menor, unidas caprichosas na culinária e na prosa. E assim ia, comendo com
exagero, retardando a tarde em tão boas companhias, adiando a noite na sua solidão de solteiro,
mais por comodidade do que por falta de opção. Não era gordo contudo. Nem suarento, nem
bigodudo, nem de cabelos emplastados como convém a esse tipo de personagem. No espaço das
manhãs nosso valente cabo, muito responsável, assíduo e pontual, cumpria a obrigação num
plantão inútil no seu escritório, se assim se pode dizer do local do seu ofício. Falo de um
comodozinho improvisado, no fundo de uma serraria em ruínas. Dignas ruínas, diga-se, com suas
rixas paredes de pedras pesadas fincadas para durar mais do que a própria serventia.
A falta do teto do conjunto principal não diminua em nada a majestade decadente do
edifício, alto como um castelo e tão imponente quanto, caso não estivesse em ruínas. O tal
comodozinho se encostava numa das paredes externas do prédio, meio que fora de propósito para
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a harmonia do conjunto arruinado. Mesmo porque, mantinha teto, portas e janelas preservados.
Tinha sido uma espécie de depósito de ferramentas no tempo em que a serraria fungava e cortava,
laminando as pobres árvores ceifadas do vale norte e arrastadas até ali à força das parelhas de
burros dóceis e esforçados. Naqueles poucos metros quadrados de trastes e decadências cabo Mili
mantinha a honorabilidade do seu cargo escorado numa escrivaninha velha, duas cadeiras e um
sofá de veludo na mesma deplorável condição. Sem esquecer do armário de portas envidraçadas
e baças onde guardava meia dúzia de maços de papel contendo os únicos três inquéritos que havia
produzido em uma vida toda de prontidão: um caso escandaloso de incesto, uma desavença de
herança e um caso de assombração que o padre Carvalho Meldi resolveu não assumir e remeteu
à instância civil. Esse não chegou a subir pois o próprio Mili teve o bom senso de arquivá-lo
arguindo incompetência de instância. Agiu bem pois o suspeito desapareceu sem mais nem menos
e, assim, ele não teve que tratar do que não conhecia e padre Meldi não teve que se desgastar com
os racionalismos cientificistas do bispo. Ninguém questionou o despacho pois, com o sumiço do
suspeito, a assombração parou de assombrar, o caso se resolveu e restaurou-se a razão.
Esse era o mundo singelo da autoridade policial que tinha que agir no caso escabroso e
complexo do assassinato ocorrido no Circo Espanhol. E diga-se, a bem da sua venerável memória,
ele agiu rápido e com notável astúcia e sangue frio. Acontece que nosso confiabilíssimo
compatriota Aroeira Militatus - o cabo Mili -, como quase todo mundo, também estava presente
àquele terrível e, literalmente, inesquecível episódio da noite de estreia do Circo.
Deixem-me tocar nos detalhes. Vinha ele descendo a ladeira calmamente, rumando
satisfeito para casa após o espetáculo, quando recebeu a espavorida notícia de que uma mulher
tinha sido degolada em pleno picadeiro. Assim que se deu conta de que tinha um escabroso caso
de assassinato nas mãos, a primeira coisa que Mili pensou foi em reunir a sua guarda, quer dizer,
localizar os três compadres que prometeram apoiá-lo se tivesse que entrar numa ação verdadeira
para impor a autoridade do estado. Para isso tinham sido adestrados e sempre estavam preparados,
malgrado a pouca demanda. Ia precisar de fato nesse caso, pois tinha ido ao circo trajado com sua
farda de gala, branca com frisas azuis e douradas e o cinturão de verniz reluzente, com bainha de
espadim, mas sem coldre. Assim, sua velha garrucha tinha ficado no escritório, guarnecida na cinta
do uniforme de batalha, impecável todavia: o tal da ronda das quitandas. Espadim não havia
mesmo, a alça era só enfeite. É que o modelo do uniforme era muito antigo, não tinha
acompanhado a modernização imprimida no armamento policial pelo último governador da
província. Aliás, essa modernidade nem chegou até ali. Foram-se os espadins e não vieram as
pistolas prometidas. De sorte que ele tinha que se virar mesmo era com a retro mencionada
garrucha e que, infelizmente, nem estava à mão como dito. Mas ele não se afobou, havia cruzado
casualmente com pelo menos dois dos compadres da guarda, num e noutro canto do circo e tinha
certeza da ajuda que estava a precisar naquela rara emergência. Seguiu o rito em que estava
treinado: puxou o apito e assoprou, ao mesmo tempo em que correu no sentido contrário do
grupo que descia em tumulto, empurrado por quem vinha atrás. Subiu a colina, buscando alcançar
a lona de novo. Fiava que seria seguido pelos promitentes companheiros, atraídos instintivamente
pelo silvo agoniado do apito como tinham combinado e testado em várias simulações de
treinamento militar. E assim foi que funcionou de verdade. Chegaram praticamente juntos à boca
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da entrada da grande tenda de lona. Pela primeira vez aquilo acontecia. Pela primeira vez a força
precisou ser reunida para enfrentar uma emergência de fato. E não levou mais do que trinta
eficientíssimos segundos. Ali estavam Aroeira Militatus no comando, Pinus Palpius e Cerejeira
Xânvilus na coadjuvância: a força policial de Deserdados pronta para a ação. O compadre
Vinhático Roxilium – derradeiro integrante do trio de suporte - não apareceu. Nem podia, naquele
instante estava em casa de cama, abatido por uma gota que tinha cismado de lacerar-lhe o pescoço
do dedão do pé direito com certa selvageria. Depois ele lamentaria não ter participado. Mas o fato
é que não participou e estava faltando um quando Mili e os companheiros romperam os limites
da lona do circo, limites que os separavam da noite fresca e empoeirada de estrelas que cobria o
mundo. Lá estava, no centro do picadeiro, a mulher caída com a garganta rasgada de onde um
resto de sangue teimava em regurgitar e escorria devagar para uma poça borrenta do mesmo
sangue já talhado. Ao lado estava o trapezista, ajoelhado, olhando o chão e com o rosto e o peito
sujos daquela seiva inerte e pegajosa. Em volta, uma dezena de pessoas formando um semicírculo
contemplava a cena, estarrecida, imóvel e muda. Algumas mulheres choravam, mas nada
desesperado. Cabo Mili se aproximou em passo de comando enquanto os companheiros de tropa,
três metros atrás, lhe resguardavam o costado, atentos aos detalhes. Examinou a mulher e não
levou mais do uns segundos para ter certeza do seu estado mortuário absoluto e, como tal,
irreversível. Em seguida, aparentando calma, pediu uma cadeira, colocou-a em frente ao trapezista,
se assentou e perguntou a ele o que tinha acontecido. Não obteve resposta. Repetiu a pergunta
algumas vezes inutilmente. Uma confissão de assassinato naquele instante abreviaria sobremaneira
o seu trabalho, mas o homem continuou mudo, contemplando o chão. Mili passou os olhos no
grupo de pessoas que estava em volta e perguntou quem era o responsável pelo circo. Como
também não obteve resposta, repetiu a pergunta em tom impaciente e enérgico, ordenando e não
pedindo. Então um senhor baixo e gordo, de terno de risca de giz e ostentando uns pequenos
óculos de aro dourado deu um passo à frente e se apresentou como o gerente da companhia, quer
dizer, legalmente responsável por ela. Com esse foco quis o homem, com certeza, ficar de fora de
qualquer mal-entendido que pudesse envolvê-lo levianamente com o escabroso episódio. Era só
um burocrata, gordo e sem destreza, equilibrando e ponderado, preocupado com receitas e
despesas.
- O senhor sabe o que aconteceu? Perguntou o cabo.
- Não senhor, eu estava no escritório, longe de tudo isso - respondeu o gerente.
- Alguém aqui sabe o que aconteceu? - perguntou, desviando os olhos do grupo e fixandoos no trapezista que continuava em transe olhando para o chão.
- Acho que eu vi alguma coisa - respondeu um anão vestido de palhaço e com o rosto já
livre de parte da maquiagem.
Toda a gente do circo ali presente olhou para o anão com olhares de reprovação e
indignação como se ele estivesse quebrando algum pacto. Mas ele olhou de volta sem se intimidar.
É que anão também tem seu dia de rompante.
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- Muito bem. Então amanhã o senhor deverá comparecer ao meu escritório para prestar
depoimento – disse cabo Mili satisfeito com a iniciativa da pequena criatura.
- Os demais deverão ficar à disposição e ninguém poderá deixar esse local. O trapezista terá
que me acompanhar e ficar sob custódia até que tenha condições de responder umas
perguntas. Quero que todo mundo do circo venha para cá. Meu compadre Pinus Palpius
vai anotar o nome de todos. Repito, ninguém pode deixar esse local.
Isso dito, o cabo Aroeira Militatus se levantou, se acercou do trapezista, pegou no seu braço,
pediu a ajuda de Cerejeira Xânvilus que pegou no outro braço. Assim o ergueram e o colocaram
de pé. Ele se deixou levar sem nenhuma resistência abatido e penitente. Parecia nem estar se dando
conta do que estava acontecendo. Seus olhos estavam baços e, de fato, parecia difícil que alguém
pudesse enxergar qualquer coisa através de olhos naquele estado morteiro. Deram alguns passos
em direção à saída quando cabo Mili se lembrou da vítima. Olhou por sobre o ombro. A pobre
criatura de Deus, jazia lá no chão em posição indigna, longe do estado que é próprio de se dar aos
mortos, pelo menos uma cova para descansar em paz.
- Quanto à vítima – exclamou o cabo pragmático - vocês vão ter que cuidar de tudo. Aqui
não temos cemitério e cada um enterra os seus no quintal. Mas aqui no terreno do circo
não pode.
Essas palavras liberaram, finalmente, a morta para um enterro descente e o corpo começou
a ser levado debaixo de muito respeito, a despeito do cortejo estar quase todo fantasiado.
Cabo Mili aguardou a retirada e depois arrematou fechando a cena do crime:
- Vou precisar requisitar um transporte, uma carroça ou coisa assim, para apressar a descida.
O gerente, que estava ansioso por se mostrar prestativo respondeu que isso não seria
problema e deu comando para que aprontassem logo uma charrete. Fácil, pois cavalos e coches
os circos os têm aos montes, e prontos para serem usados.
Mili e o companheiro continuaram então rumo à saída, conduzindo os passos com uma
certa dificuldade pois o custodiado mal dava conta da coordenação das pernas, prejudicando o
movimento do grupo desigual. Enquanto isso o compadre Cerejeira, zeloso do seu serviço, ficava
para arrolar os nomes de todos, pois ninguém estava livre de ser convocado para um interrogatório
futuro se houvesse precisão.
Um pequeno bando de curiosos que havia retardado a volta para casa por causa do tumulto,
os esperava do lado de fora. Na hora da tragédia quem restava dentro correu para fora, quem
estava do lado de fora não ousou entrar e agora ninguém ousou perguntar nada. Naquele instante
apenas observaram a passagem do trapezista e sua guarda, guarnecendo pelos flancos o estado
estupidificado do homem. Um ou outro soltava um discreto acento de horror ao ver os vestígios
de sangue coagulado sujando da boca ao meio do peito daquela figura estranha.
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Açucena, restabelecida do choque da pregressa cena de horror, já tinham descido com a
mãe, amparadas por amigos. Nenhuma das duas iria conseguir dormir aquela noite. Aliás, Açucena
Cedrus nunca mais seria a mesma. Havia provado a banda da maçã pelo lado da paixão e restava
rendida à disposição que se seguiu de descobrir o prazer prometido no pedaço que provou.
A descida aventava ser rápida com a charrete tocada por mãos hábeis e puxada por uma
bela égua circense, alta e garbosa como uma bailarina e, como era descida de morro, a lei de
Newton ajudava. Devia ser distinto o cortejo, o exagero dos enfeites da montaria, contudo,
conferia a ele um acento bufo. Mas a cena era mesmo de tragédia.
Assim que se ajeitou na boleia, cabo Mili se perguntou preocupado onde o trapezista podia
passar a noite, confinado em segurança, pois cadeia não havia. Ao passar pelo arco que separava
a área reservada ao circo cortou os pensamentos por um instante para ler um cartaz com o nome
do trapezista em letras fulgurantes: Castanheiro Fúlvio - O Pássaro de Castela. Já sabia, mas só
agora prestou atenção. Afinal aquele era o nome do suspeito principal de um crime horroroso.
Onde alojar Castanheiro Fúlvio, o Homem Voador. Eis um problema - pensou o cabo sacolejando na boleia da charrete, agitada no avanço sobre a trilha enrugada, no rumo do povoado,
um quarto de légua abaixo. Não há um lugar suficientemente seguro onde o homem voador possa
ficar detido – seguiu pensando. A não ser talvez em meu próprio escritório - concluiu. Lá não há
espaço, nem cama, mas para esta noite há de servir, até que se possa ajeitar coisa melhor. Assim
raciocinou Mili com hábil pragmatismo. Consultou o companheiro que o acompanhava e assim
ficou decidido sem mais retardo. Mesmo porque, não havia opção à vista já que as duas únicas,
digamos, repartições públicas do lugar eram o tal escritório e o salão que Sucupira Nemélio - o
homem mais rico e agente público de Deserdados - usava para o trato das coisas comunitárias.
Audiência, despachos, solenidades cívicas, essas coisas. Impróprio, portanto, para uso policial.
Promiscuidade impensável na aura de autoridade.
Durante o resto do trajeto daquela singularíssima jornada, o trapezista continuou no mesmo
estado de lerdeza em que estava. Nem precisava muito zelo na custódia, estando ele naquele delírio
de pedra, com os olhos gazeados, alheios ao que se passava, olhando pro lado de dentro de si
mesmo, procurando a alma mas sem ver nada. Assim o grupo seguiu, sacolejante, não
sobressaltado contudo. A viagem não demorou visto que as ruínas da serraria e o tal escritório,
ficavam no meio do caminho entre o circo e o povoado, colina abaixo num declive mediano mas
muito favorável. Cortaram o silêncio da noite por mais um quarto de hora e já lá estavam à porta
do cômodo escolhido para servir de improvisada cadeia. Não houve nenhum problema na
manobra de desembarque. A lua era cheia, o tempo fresco, a brisa amena. O trapezista até
colaborou, descendo maquinalmente o estribo da carroça sem precisar de ajuda. Foi alojado na
velha poltrona que era onde devia passar o resto da noite como pudesse. E lá ficou quieto como
vinha, cordado. Pássaro de triste figura, abatido e tremendamente contaminado com a suspeição
de um bárbaro assassinato, cujos vestígios estavam estampados em todo o seu frontal, do rosto
até a metade do peito. Mili trocou de roupa, pegou a velha garrucha, conferiu a munição e coroou,
finalmente, a sua autoridade pois não a há sem o respaldo da força. Na sequência testou as tramelas
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das janelas e passou uns cadeados velhos que guardava casualmente na gaveta. Saiu e fez o mesmo
com a porta, lacrando o ferrolho de fora. Parecia tudo seguro mas, mesmo com o estado letárgico
do detido, resolveu não correr risco e combinou com o prestativo assistente que montaria guarda
à porta e seria rendido por ele às quatro horas da madrugada. Depois tiraria um ligeiro cochilo em
casa, no conforto da cama de casal, espaçosa pois ele era solteiro. Pretendia voltar às oito horas,
ver se o suspeito já podia passar por um interrogatório. Isso acertado, o assistente de Mili – nosso
bom Pinus Palpius - tomou o rumo dos lampiões que piscavam a cerca de um quilômetro pra
dentro da mesma noite. Eram muitos pontos luminosos, alumiando as janelas, portas, alpendres
e vielas do povoado que, àquela hora, excepcionalmente, estava todo desperto, cochichando e
agitado pela agitação de uma noite incomum. Tantos pontos flamejantes até ganhariam disputa
com um bando de vaga-lumes, o que não era comum naquela hora tardia. A claridade distante foi
buscada com passos impelidos por moto de ligeireza já que o compadre Pinus, no cumprimento
da sua nobre obrigação, tinha visto muito de perto toda aquela surpreendente matéria. Assim pois,
tinha muito para contar a compadres e comadres e urgência de aplacar a sede dos curiosos. E isso
fez. Foi repetindo a história, pelas portas e janelas por onde teve que passar gastando naquele
mistér falatório as poucas horas que tinha para tirar um descanso. Não deixou de acrescentar sua
competente convicção de que o trapezista era mesmo o assassino da pobre mulher do circo, com
o que, quase todos concordavam sem esforço de juízo, quem viu e quem não viu. Confesso que
eu mesmo, faço parte desse grupo. Mas, a bem da verdade, isso não fez diferença no seguimento
da história. Assim como não fez saber o motivo do assassinato que até hoje permanece obscuro
com o inquérito inconcluso pelas circunstâncias inusitadas que o cercaram desde o começo. E
sinto decepcioná-los, pois seguiremos não sabendo.
A noite havia sido longa pela sua raridade. Ninguém conseguiu dormir direito no povoado
e as conversas se estenderam adentrando a madrugada, como em noite de velório. Mas o dia que
surgiu compensou o tempo da espera, inundando a terra de luz e de azul como faz inexorável
quase sempre. Contudo, os vestígios de um assassinato estavam frescos e os destroços
permaneciam espalhados, incomodando. Tinham que ter cuidados, como mandam os
regulamentos dos homens e as leis imutáveis de Deus. Pois, ao crime não há água que lave, não
há fogo que queime nem há tempo que esqueça. Tem que ser apurado, julgado e punido conforme
o peso do caso.
Cabo Mili – depois das poucas horas de sono que tinha se reservado - acordou com esses
pensamentos sábios e justos de crime e de castigo e sorriu com satisfação incontida naquela rara
manhã. Ia ter um dia inteiramente diferente pela frente. Assim não tinha sido antes, nem depois
assim seria. De sorte que ele levantou animado apesar do pouco tempo de sono, vestiu-se, tomou
um café miúdo, pegou sua égua castanha e rumou para a casa de Sucupira Nemélio. Este o
aguardava aflito, pois tinha saído do circo antes da tragédia e sabido do caso através de terceiros.
Assim, contava ouvir logo a versão de quem ia tocar as investigações. Queria esclarecer alguns
pontos estranhos pois tinha gente contando ter visto um pássaro dilacerando a garganta da vítima
à vista de todos. Combinaram de ir juntos até o local em que o trapezista estava detido. No
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caminho iriam conversando sobre o caso. Nemélio mandou buscar seu cavalo puro sangue que já
estava arriado e mantido de prontidão, batendo os cascos e transbordando energia. Montou e
seguiram juntos, trotando elegantes nas suas cavalgaduras rumo à serraria em ruínas. Era perto
mas a manhã já principiava a esquentar quando apearam no destino, com a conversa adiantada.
Lá, além de Pinus Palpius que completava a guarda da noite conforme o combinado, estava
também Cerejeira Xânvilus, madrugador, com a lista dos nomes das pessoas que coletara no circo,
fruto zeloso naquela diligência de que fora incumbido na noite anterior. Formaram uma espécie
de conselho de segurança e se puseram a examinar a lista da diligência. Tinha mais de cem nomes
relacionados, com as respectivas funções que exerciam na companhia circense. Palhaços e
bailarinas, domadores e acrobatas, serviçais e burocratas se apertavam irmanados no rol dos
suspeitos potenciais. O primeiro nome era o do gerente. Na primeira abordagem do cabo Mili ele
havia dito que não sabia de nada do que havia acontecido, mas concordaram que ele devia ser
interrogado com mais detalhe e rigor, juntamente com o anão que tinha dito ter visto alguma coisa
e, naturalmente o trapezista, principal suspeito do bárbaro assassinato.
Xânvilus foi despachado com a missão de trazer o dito cujo gerente e mais o anão. Partiu
a galope, ladeira acima rumo ao elevado onde a lona se espalhava. Enquanto isso o cabo e o agente
resolveram já começar a inquirir o trapezista e avançar o inquérito. Pinus Palpius foi encarregado
de abrir a porta do escritório, vale dizer, da improvisada cadeia. E o fez com todo o cuidado,
destrancando o ferrolho com um mínimo de barulho, empurrando a porta e saltando de banda,
tentando fugir da reta de um possível ataque. Enquanto isso cabo Mili se punha à frente do portal
empunhando a garrucha e garantindo o revide. A porta aberta mostrou silêncio e a escuridão do
interior. Entraram devagar acostumando as retinas. Dentro encontraram o trapezista sentado
ainda na poltrona. Estava quieto, mas um olhar vivaz mostrava que ele já não estava mais no
estado de choque que tinha estado desde que entrara no picadeiro do circo seguindo a mulher em
seus passos moribundos. O agente, o cabo e o assistente olharam um para o outro satisfeitos.
Agora sim, iam poder inquirir o suspeito e tentar clarear as sombras daquela história fantástica.
Quem falou primeiro foi o cabo, na condição natural de comandante daquela operação.
Postou-se à frente do homem que o acompanhou com o olhar. Perguntou seu nome, mas ele não
respondeu. Perguntou de novo e de novo recebeu a mesma resposta, quer dizer nenhuma. E mais
uma vez e outra sem resultado nenhum. O cabo então, com visível irritação, chamou Nemélio de
lado e se puseram a conversar. Sem nenhuma ocultação pois queriam mesmo que o detento
escutasse a conversa. E ele escutou com visível interesse e sem nenhuma tensão. Trataram dos
requisitos para improvisarem uma espécie de cadeia. Sim, pois daquele jeito, a detenção parecia
ter que ser prolongada por uns tempos. Uma cama, restos de comida duas vezes ao dia, um par
de roupas, um lençol e um cantinho para o banho e as necessidades. Iam ter que costurar essas
coisas, tirando daqui e dali. Resumindo: ao final da conversação concluíram que o lugar da
detenção poderia ser ali mesmo nas ruínas da serraria. A construção já não tinha mais teto mas as
grossas e altas paredes estavam sólidas e não seria difícil reforçar portas e janelas. A cama poderia
ficar debaixo de uma lona e, no mais, um caixote e uma latrina. Para roupas e comida podiam
convocar os serviços das Filhas de Maria, sempre prontas e prestativas em nome da mãe santa
que têm. Terminado o porco projeto do arremedo de cadeia, olharam o prisioneiro. Este devolveu
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o mesmo olhar. Na verdade até o adornou com um discreto sorriso que aumentou a irritação do
cabo Mili, já então começando a se achar um tanto inoperante e meio imbecil. Ia ele tentar começar
o interrogatório novamente, agora até com um par de safanões se preciso fosse. Foi quando
ouviram o tropel de uma cavalgadura meio desembestada. Era Cerejeira Xânvilus já de volta e
espavorido. Correram à porta. Estava sozinho. Não tinha cumprido o encargo recebido de trazer
o gerente e o anão.
- Cadê o pessoal que eu mandei buscar - gritou Mili redobrando a irritação pois, afinal, a
manhã do dia seguinte já ia pelo meio e o inquérito do crime do dia anterior não tinha
produzido ainda uma linha miserável.
Cerejeira Xânvilus puxou as rédeas do animal para fazê-lo sossegar e quase deitou-o ao
chão. Apeou afobado e gritou:
- O povo todo sumiu, o circo está vazio!
Cabo Mili quase o ergueu pelo colarinho amassado e sujo.
- Como pode ser. Uma fuga coletiva?
- Não sei - respondeu o compadre Cerejeira – Ninguém viu nada, todo mundo sumiu.
- E a lona, equipamentos, viaturas? – Insistiu o cabo.
- Isso está tudo lá, mas não achei uma alma viva, nem mesmo os bichos – completou o
ajudante, atropelando as palavras e cuspindo estilhaços de saliva a perigosa distância
enquanto tentava falar, explicando o inexplicável.
Mili estava estupefato com aquela notícia absurda. Afinal como era possível desaparecer
mais de cem criaturas, literalmente da noite para o dia? Mas não quis perder tempo com aquela
discussão inverossímil. Voltou correndo para dentro do escritório, seguido dos companheiros.
Pelo sim, pelo não, queria ter certeza de que o prisioneiro ainda estava lá. E estava. Estava lá
Castanheiro Fúlvio, exato no mesmo lugar. E para surpresa geral falou pela primeira vez:
- Não se preocupem com meus companheiros, eles nada têm com essa história. Eu matei
aquela mulher. Eu sou o assassino da minha bem amada Acácia Laetitia, minha doce Laé,
aquela que me ensinou a voar.
Aroeira Militatus olhou para Cerejeira Xânvilus que olhou para Pinus Palpius que olhou
para Sucupira Nemélio. E repetiram no sentido inverso. Todos com olhares incrédulos e
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expressão bestificada. Era muita coisa para acontecer em menos de vinte e quatro horas no pacato
arraial de Chapadão de Deserdados.
ALINHAVANDO A GAIOLA
Aquela reunião estava muito animada para os seus precípuos motivos em que animação não
cabia. Afinal, tratava-se de um assunto grave, quer dizer, o acerto dos detalhes para o
confinamento seguro de Castanheiro Fúlvio, o trapezista, réu confesso do estranho assassinato de
Acácia Laetitia, embebida no seu sangue num banho de violência. Nada jamais precedente, nem
nada jamais subsequente segundo, até agora, me é dado apurar. Mas o acontecimento havia
acendido uma grande excitação no sono do povoado e aquilo era só a sequência da fábula que se
fez no lado real e na imaginação daquela gente contida pela mesmice. Sucupira Nemélio, na sua
condição de líder legitimamente constituído no cargo de agente comunitário por vontade de Sua
Excelência Augusta e Serena havia convocado a comunidade para discutir o local e as condições
para que o réu restasse preso, à espera das ordens superiores das instâncias de cima. Na viceliderança, como era habitual, padre Carvalho Meldi atuava, sempre muito sensato, conciliador e
iluminado pelas suas orações. O projeto em discussão era aquele ideado pelo cabo Mili, logo após
a prisão. O trapezista ficaria confinado no próprio galpão da serraria em ruínas e o seu tratamento,
pela via da misericórdia cristã, ficaria a cargo das pias moças de Maria. Ali estavam elas
representadas por d. Dália Natatarius e d. Violeta Cedrus, eternas filhas da virgem, saltando sobre
as idades. Mais, lá estava Mogno Pílpio, grande mestre carpinteiro devoto de São José, convocado
para opinar dos reforços em portas e janelas arruinadas pelo tempo e a falta de uso. Sem esquecer,
claro, a tropa voluntária responsável pela guarda do preso, parte mais crítica da amadora detenção.
Esforçados eram, todos. O compadre Vinhático Roxílio já melhorzinho da gota espinhenta que
lhe mordia o dedão, não estava presente. Não que não tivesse condição. É que tinha ficado de
guarda, na custódia do preso. O projeto, em linhas gerais, foi prontamente aprovado, mesmo
porque, nem outro havia para uma discussão de verdade. Assim a coisa simplificou e a animação
dos debates ficou para o zelo dos detalhes executórios da medida prisional. D. Nata não viu
nenhum problema quanto a vestir e alimentar o preso por uns tempos. Concluíram que quatro
famílias podiam se revezar na alimentação e que o singelo vestuário seria coberto por conta do
padre Meldi e suas paroquianas, prendadas no pedir para conforto dos necessitados. Açucena
Cedrus mais as irmãs Natinha maior e Natinha menor, foram nomeadas pelas respectivas mães
para cuidar de levar a alimentação do preso, duas vezes cada dia. Outras mais seriam chamadas.
Quanto às instalações do arremedo de cadeia, mestre Pílpio reforçaria as tramelas, trocaria uma
ou outra tábua mais carcomida e tudo mais necessário no capítulo das madeiras. A falta de teto
no galpão arruinado não chegou a preocupar pois as paredes estavam sólidas e eram de boa altura,
desanimando as escaladas. Mas, pelo sim pelo não, se lembraram de manter o criminoso preso
pelo pé em uma corrente de alcance sob medida para não tolher os movimentos nem exceder na
liberdade. Seria feita uma pequena cobertura de telhas para que o trapezista pudesse se abrigar das
intempéries, quer dizer do sol inclemente pois que a chuva era rara. Um catre, uma latrina de lata
num cercadinho para esconder o pudor do banho e das necessidades da fisiologia, na sua parte
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mais porca. Enfim, tudo mais ou menos como havia sido pensado no projeto inicial, feito às
pressas mas de muito pragmatismo como então se comprovou para gáudio de Mili – o idealizador.
Um intervalo de dois dias foi calculado para a expressa implantação das singulares medidas.
Assim ficou tudo acertado e a assembleia se desfez em clima de desmedida alegria como se
o assunto tratasse de uma festa paroquial. O povoado se esqueceria rápido da vítima, mas levaria
muitos anos para se esquecer do criminoso.
A FLOR E O PÁSSARO
A vida de Açucena Cedrus estava fora dos eixos havia já quatro dias. Impensável às vésperas
da sua viagem para o convento de Santa Branca dos Lírios, mas assim era de fato e sem controle
da razão, pois um turbilhão se formara inteiro no povoado e nela ainda mais. O espetáculo do
circo, a cena do estranho pássaro azul e da mulher moribunda, a notícia da prisão. Tudo isso havia
remoído o cotidiano, especialmente o da moça. Nela tinha feito parar o tempo e tornado o futuro
sem sentido. Vinte e quatro horas da segunda-feira, mais vinte e quatro horas da terça, mais vinte
e quatro da quarta. Infinidade de minutos sucessivos e constantes. O que estaria acontecendo
agora com aquele homem coberto de maravilhas e lambuzado de mistérios?
A preparação do enxoval da prometida freirinha seguia nas mãos das tias, no meio de muita
conversa sobre o assunto palpitante. Ela fingia interesse no labor, mas concentrada no assunto
das conversas e esquecida da produção que então seguia lenta pela distração da conversa. A rotina
da casa perdera o interesse para ela. Arranjava visitas como há muito não fazia, farejando
novidades. As conseguia incompletas e se quedava ainda mais curiosa. Quando a mãe lhe deu a
notícia do encargo na equipe de alimentação do trapezista ela sentiu que uma graça divina lhe caia
no colo inquieto sob o peito palpitante. Ia poder se aproximar, estar junto, conversar com o
homem que enchia seu corpo com uma coisa quente e pulsante que nunca havia sentido. Ainda
mais assim, tão forte e de repente. Mas nem teve coragem de agradecer a Deus, como sempre
fazia, confiada na pureza de tudo o que desejava. Nem precisava, mesmo nesse caso, pois graça
mesmo não havia e muito menos pureza. Talvez fosse estigma. Isso ela não pedia. Mas não se
arrependeria daquilo que se seguiu, abrindo o seu mundo de paixão, que o do desejo já estava
aberto e fervente.
Naquele instante sublime, manteve a serenidade, planejando sem pensar, avançando sem
sentir. Para d. Violeta mostrou apenas zelo e quis saber dos detalhes da sua obrigação,
compromisso piedoso das Meninas de Maria. Afinal, foi lá que descobriu sua santa vocação de
ficar no serviço de Deus pelo resto da sua vida. Recebeu a orientação de procurar d. Nata e acertar
com ela e as Natinhas. Mas nem precisou do incômodo, pois naquela tarde mesma recebeu o
recado de que na segunda e na quarta-feira seguintes seria dela o encargo de levar a caridade do
santo almoço para o pobre prisioneiro. Nem preciso dizer que a espera do seu turno foi a
continuação do arrastar do tempo que já tinha começado muito antes. Mas para quem estava de
fora o tempo correu exato como sempre corre e, depois do domingo veio a segunda-feira, como
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sempre acontece. Às onze horas Açucena Cedrus já estava terminando os preparativos para sua
ansiada missão. Separou a melhor parte do que havia sido preparado para o almoço da família,
colocou numa vasilha de louça decorada de nobre procedência anglo-imperial, tampou com
cuidado para não haver extravaso lambuzando os seus cuidados. Fez uma trouxinha com uma
pequena toalha alva de linho finamente bordada e enfiou um par de pesados talheres de prata sob
o nó. A mãe reparou no meticuloso zelo mas nada comentou. Na verdade achou caridoso tão
extremado cuidado. Pura e boa menina era a filha única dos Cedrus. Quem veio buscá-la foi o
compadre Vinhático Roxílio como estava combinado. Empunhava com destreza as rédeas
enceradas de uma sege, velha mas ampla e confortável, puxada por um cavalo negro fogoso.
Apeou apenas para ajudá-la a embarcar. Tinha pressa pois ia assumir seu turno na guarda do preso.
Recusou o convite pro cafezinho recém-passado e seguiu o destino da sua obrigação. Tudo
pareceu justo e perfeito como convinha que fosse naquela missão singular. Seguiram colina acima
rumo à prisão improvisada. Vinte minutos foi o que gastaram para vencer o trajeto poeirento
como era tudo por ali. À medida do avanço o coração da moça ia ficando apressado, exagerando
na função de irrigar as veias do corpo e sustentar as funções de que ele era dotado. Mas ela não
pensou particularmente em nada, senão na chance de ver o trapezista de alguma forma e ficar
mais perto dele. Mais apressado ficaria seu confuso coração quando chegaram ao destino. Ao
longo do trajeto ela pouco conversou evitando extravasar curiosidade em excesso. Não conhecia
o ritual do tratamento dispensado ao prisioneiro, também não quis perguntar, temendo levar água
fria no que estava urdindo.
Roxílio estacionou a sege debaixo de uma mangueira frondosa protegendo o cavalo e o
veículo do sol flamejante. Ela desceu com cuidado, firmando um pé de cada vez no espaço exíguo
dos degraus, prevenindo queda e protegendo a vasilha de algum acidente impensável. Não sabia,
de fato, se ia poder ter contato com o preso e aguardou, ponderada como queria parecer. Roxílio
deveria render Pinus Pálpio na troca da guarda e trazia instruções do cabo Mili sobre cuidados
redobrados de vigilância que ambos deviam observar de hora em diante. Encontrou o
companheiro assentado na única poltrona do recinto, meio sonolento, desguarnecendo a vigília.
Entrou percutindo o assoalho com o salto das botas, balançando os móveis com o peso dos
passos. A menina o seguiu e permaneceu em pé aguardando para saber a parte que lhe tocava
naquela operação. Combinaram que Açucena poderia deixar a matula sobre a mesa e esperar do
lado de fora enquanto tratavam das tais instruções apertadas do cabo Mili. Ela obedeceu, deixou
o pobre recinto entulhado das velharias e suas poeiras e foi se assentar num cepo encorpado,
embaixo da mangueira frondosa, ao lado da sege desusada. Sentiu-se inteiramente frustrada.
Estava a poucos passos do prisioneiro mas parece que não teria nenhum contato com ele. Não
podia ser assim um redondo fracasso, pensou com ansiedade. E a ansiedade empapou rapidamente
os seus pensamentos e, incontinenti, na incontinência da idade e da pesada paixão ela passou a
agir para que não fosse assim. Levantou foi até a porta da miserável sala onde os dois guardas
confabulavam e bateu delicadamente. Pálpio abriu e perguntou o que ela queria.
- Desculpem a interrupção. É que mamãe me recomendou que não deixasse a vasilha, pois
faz falta lá em casa. Tenho que levá-la de volta ainda agora.
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Não era essa a rotina que vinha sendo seguida pelas meninas Natinhas, pensou Pinus Pálpio.
Elas deixavam a refeição e recolhiam a vasilha no dia seguinte sem mais outra condição. Mas a
ponderação de Açucena pareceu pertinente pois ela só voltaria daí a dois dias. Conhecia os rigores
de d. Violeta, nas suas instruções. Assim, sem muita reflexão, os guardiões do preso resolveram
atender ao ardiloso apelo da inocente menina. E eis o verdadeiro princípio de uma história de
paixão que seguiremos contando, uma parte de cada vez. Roxílio abriu a gaveta da escrivaninha,
tirou uma argola de ferro com duas chaves e se dirigiu à entrada do galpão destelhado que detinha
o trapezista. Açucena pegou a trouxinha do almoço e o seguiu triunfante. A porta da prisão foi
aberta devagar ao tilintar dos ferros e das rangentes ferragens, reclamando tanto tempo sem uso.
O guarda entrou primeiro, com cautela examinando, as condições de risco visíveis e as invisíveis.
Não as havia. A moça entrou atrás arfante e temerosa, sem saber exatamente o que ia encontrar
depois de tanta expectativa. O preso estava docilmente sentado no arremedo de catre que
dispunha para descansar do incerto daquela condição ingrata. Tinha uma grossa corrente enlaçada
ao tornozelo e presa numa tora pela ponta oposta fixada, por seu turno, numa argola de ferro
carcomida pelos tempos que passaram, mas ainda confiável. Olhou para o guarda com olhar
inócuo. Com Açucena foi diferente. Pareceu surpreso com a presença. Mostrou alegria em vê-la e
ensaiou um sorriso que a fez vergar por força de um estranho sentimento, meio terno e meio
inquieto. Ela o olhou sem o recato que a ocasião pedia. Não desviou os olhos seus, o que o fez se
sentir confortável pela primeira vez, desde que o drama da sua prisão começou. Mas não houve
propriamente um bailado de olhares naquela primeva hora. Castanheiro Fúlvio – o homem voador
- tinha fome e era disso que carecia cuidar naquele preciso instante. Recebeu a vasilha e os talhares.
Não deixou de reparar nas mãos estendidas, nas dimensões combinadas, na harmonia dos dedos,
no brilho e forma das unhas levemente alongadas. Imaginou a luxúria do tato, a doçura do
arranhão. Mas tinha fome, como dito, e não seguiu pensando, premido pela necessidade besta e
compulsiva de nutrir a carência das entranhas escuras e boçais. Agarrou o pacote ofertado,
desamarrou, destampou a terrina com cuidado, estendeu a toalha num caixote desconjuntado,
apoiou e começou a comer com certa sofreguidão e nenhuma fineza. Enquanto fazia isso, variava
o feixe do olhar entre a bendita comida e os olhos da moça igualmente benditos e incrustados de
um negro eloquente e fundo. O alimento era banal mas os olhos eram raros e lhe pareceram
temperados dos mais divinos sabores. Ela devolvia, olhando-o com um misto de ternura,
verdadeira piedade e salpicos concupiscentes, numa confusa mistura de paladares difusos. Mas
Roxílio interrompeu implacável aquele discreto colóquio, mudo e sensual. Pediu que o prisioneiro
avisasse quando tivesse terminado a refeição. Pegou no braço de Açucena, conduziu-a para fora e
trancou a porta novamente. Pediu a moça que ficasse ali por perto e assim que o prisioneiro
avisasse o término da refeição que o fosse chamar. E assim foi. Quando voltou para recolher a
vasilha o guarda nem deu oportunidade para que ela entrasse na cela novamente. Daí para a frente
tudo transcorreu sem notas dignas de registro, exceto por um detalhe discreto. Quando Açucena
Cedrus chegou em casa, desfez a trouxa onde havia embalado a vasilha com a refeição do
prisioneiro e encontrou uma mensagem escrita com ponta de carvão no verso do guardanapo
branco. Ela leu, releu e não pôde acreditar. Pelo menos não até a noite do glorioso dia seguinte.
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SONHO DOCE SONHADO
Açucena Cedrus virou a costas para a porta da cozinha para que ninguém pudesse ver o
que estava fazendo. Com movimentos discretos dobrou o guardanapo com cuidado, pressionando
as dobras para reduzir o volume e preservar o segredo. Enfiou-o no bolso do vestido, por debaixo
do avental. Apurou o ouvido, prestou atenção no movimento das sombras e quando teve certeza
de que não havia ninguém por perto, virou-se e caminhou na direção da copa. Atravessou-a
depressa e subiu as escadas se apoiando cuidadosamente no corrimão para evitar uma queda que
pudesse chamar a atenção e colocar tudo a perder, estabanadamente. Passou defronte da porta do
quarto de d. Violeta poupando o ruído dos seus passos. Pressionou o bolso com a mão sobre o
avental para que o volume não denunciasse seu precioso conteúdo e suscitasse questões. Entrou
no seu quarto ofegante, fechou a porta, tirou o guardanapo do bolso e desdobrou-o sobre a cama
com cuidado como se ele enlaçasse um tesouro, e assim era de fato. Ali estava a mensagem do
trapezista prisioneiro, rabiscada em preto delével em traços miúdos, aproveitando o espaço
disponível com a máxima discrição e economia. Tinha sido escrita com a ponta fina de um graveto
carbonizado, à serventia de lápis. Estava apagada em algumas vogais e outras tantas consoantes,
mas dava para entender perfeitamente a escrita. O que ela não entendeu muito bem foi o sentido
da inesperada mensagem, ainda que o conteúdo fosse claro e conciso. Ali estava escrito em letras
pequenas de fôrma:
“Quero encontrá-la amanhã, tarde da noite. Coloque uma toalha branca na janela do seu
quarto.”
O recado era claro, mas não fazia sentido. Aquele homem maravilhoso marcava um encontro com
ela. Mas como seria isso possível? Ele estava preso, acorrentado pelo pé como uma ave perigosa.
A toalha branca na janela sim, podia indicar o local onde ela estaria, mas como ele iria encontrála no meio do povoado com tão difuso sinal? Outras toalhas poderiam também pender de outras
tantas janelas, pois que isso era comum. Além do mais, seu quarto ficava no andar de cima, sem
outro acesso que não fosse pela escada que principiava na copa, bem no meio dos afazeres da
casa: das leituras, costuras e futricas. Mais agitado agora com a aceleração dos corte e das costuras
do enxoval conventual que, não raro, avançava pelas horas da noite
Açucena teve medo do perigo contido naquela grande ousadia. Isso era um desatino, para
ele e para ela. Afinal estava às vésperas de se internar num convento, escapando das banalidades
do mundo. Mas o medo não evolui como devia e pedia o bom senso e sua alma singela, cravejada
de pureza. Tornou-se em decepção e desviou para uma ponta de raiva e outros sentimentos
mesquinhos. Aquilo podia ser uma simples brincadeira, construída na pura maldade. Caçoava da
sua inocência, do seu deslumbramento que, com certeza, ele já havia notado. Teve vontade de
chorar e nem teve tempo de conter a vontade. Atirou-se de bruços na cama ao lado do guardanapo.
Fechou os olhos molhados e procurou não pensar em nada. Não queria perder o sentido que tinha
traçado para sua vida, e a jornada estava para começar no rumo do Convento de Santa Branca dos
Lírios, logo na semana entrante. Mas não conseguiu, nem por um miserável segundo, fugir da
coceira da tentação que já vinha fermentando. Não podia simplesmente ignorar aquilo, nem tinha
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forças reunidas. Podia ser uma simples brincadeira, mas também podia ser o maior momento da
sua vida inteira, pregressa e ainda por vir. Abriu os olhos, virou de lado, apoiou a cabeça no braço
e ficou olhando o guardanapo estendido, cheio de insensatez e promessas douradas. Ficou
olhando, seguiu olhando e pensando. Enquanto pensava amolecia o bom senso, para isso
predisposto. O desafio atraia pela sua simplicidade e era difícil lutar contra aquelas circunstâncias.
Não tinha que fazer quase nada a não ser mostrar o caminho e esperar a maravilhosa presença.
Esqueceu do resto, pois era o que lhe convinha nos domínios do prazer, na soleira do desejo, bem
distante da razão e da força da penitência.
E assim pensando, com nova disposição, começou a encontrar sentido no desvario. O
recado dizia tarde da noite, quer dizer, depois que tudo estivesse quieto, as comadres retiradas, sua
mãe e os vizinhos dormindo. E as toalhas brancas recolhidas das janelas, protegidas do sereno.
Exceto uma. A sua, a indicação do seu quarto. A seta apontando o rumo do seu coração, aberto e
dadivoso. Açucena Cedrus então começou a achar racionalidade e razão no plano que há pouco
a desnorteava. Do pecado, nem se lembrou. Certas coisas continuavam carecendo de
convencimento e faltando explicação. Mas já não se importou e tocou a fazer a parte que lhe cabia
naquela urdidura.
Como não poderia deixar de ser- e como antes já tinha sido naquela mesma aventura aquele dia lhe pareceu extremamente longo, cheio de horas a mais, pesadas e segurando as horas
seguintes, como um cordão penitente, arrastando devagar a sua ansiedade. Sem ver sentido em
mais nada, furtou-se da banalidade das rotinas da casa e se reteve em seu quarto a pretexto de
deitar fora os guardados que não teriam lugar na clausura do convento nem na recriação da sua
memória daquele ponto em diante, pois nova vida já estava programada. E assim passou a
monotonia do dia, interrompendo o exílio só para almoçar e jantar, quer dizer, engolir a comida,
pois fome não havia, com toda aquela ansiedade.
A noite, como esperado, foi um tanto movimentada na casa, com as tias e vizinhas reunidas
laboriosas e aflitas para terminar o enxoval no tempo e na condição em que tinham se imposto,
zelosas no compromisso. Açucena, do seu quarto acompanhava os ruídos de baixo, esperando
que o silêncio pudesse enfim atestar que todos tinham indo embora e que a copa já era um
caminho liberado para o acesso ao seu quarto. Enquanto isso relia o recado, renovando a coragem
pra seguir no desatino e lapidar os detalhes do plano da magia da visita. Decidiu que só colocaria
a toalha na janela depois que reinasse silêncio absoluto na casa. Ficou em dúvida de como deveria
estar quando a visita chegasse. Assentada na poltrona como uma dama majestosa, recostada na
cama, dócil e inocente? De camisola, de vestido? Um traje de gala, uma simples veste doméstica?
Seja como for, só poderia colocar as coisas em andamento depois que a mãe fosse lhe dar a benção
da noite, como sempre acontecia. Assim, vestiu a camisola e se pôs novamente a revirar as gavetas
num ritual sem sentido, simulando a tal organização dos guardados no adiantado da noite, pronta
para cair num sono inocente. Era assim que queria ser encontrada pela mãe e assim foi, por volta
de onze horas, o que de fato aconteceu. Logo que d. Violeta saiu do quarto Açucena Cedrus pôs
o plano em andamento. Preferiu continuar de camisola. Parecia mais natural. Ademais, se aquilo
fosse só uma brincadeira, tudo pareceria menos ridículo para ela mesma. Só teria que ir dormir e
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fingir que nada havia acontecido. De sorte que ela abriu a janela e estendeu a toalha branca
deflagrando o processo. Colocou um peso para evitar que o vento a levasse. Desnecessário
cuidado pois a brisa era leve e conivente. Mas o luar não. A lua estava cheia e a noite clara e
reveladora dos escondidos. Isso reacendeu os medos de Açucena. Não era noite dos sorrateiros.
Mas nada havia a fazer daí para a frente. Escovou os cabelos, prendeu-os com uma fita azul com
serventia de diadema. Pingou uma rara fragrância num dedo e umedeceu a ponta de uma orelha.
Repetiu e contemplou a ponta da outra. Preparou-se como noiva, como podia, com tão poucos
recursos, tentando evitar o ridículo que, noiva de verdade não precisa evitar. Apagou o lampião,
colocou a poltrona virada para a porta, deu as costas para a janela, assentou-se e esperou. Uma
hora se passou sem nada acontecer. Mas ela não se afligiu, consolava-se tentando se convencer
que seria melhor se o homem não viesse mexer com os arranjos da sua vida, assim tão de repente
e em tempo tão impróprio. Cochilou e despertou uma meia dúzia de vezes, variando o desejo e
esperando sem saber se queria que aquilo acontecesse dessa forma. Veio um cansaço natural e ela
finalmente adormeceu, mergulhando num sono profundo e sonhando com o que preferia ser
sonho sem o ônus do real. Sonhou que o trapezista entrou pela janela e a acordou com um leve
toque no ombro fazendo-a estremecer. Sonhou que ele pegou suas mãos e a fez se levantar da
poltrona devagar. Sonhou que ele a enlaçou docemente e a beijou nos olhos, na boca e no pescoço.
Ele estava nu e a despiu devagar. Depois se deitaram no chão e fizeram amor toda a noite, doce e
devagar, sem remorso e sem dor, banhados pelo luar. Em seguida ele a carregou até a cama, a
cobriu e saltou pela janela à fora. Ouviu-se um ruflar pesado de asas e depois o silêncio da noite,
cortado pelo canto dos galos, sem um pingo de romantismo como sói ser com o canto de galos.
Mas o luar ainda estava lá entrando com a sua parte. Ela não se levantou preferindo ficar lânguida,
estendida no cansaço dos desejos sonhados e realizados como se fossem reais. Sonhou que
adormecia e parava de sonhar.
Acordou com a mãe batendo na porta do quarto no adiantado da manhã, com o sol já alto
e atrevido, caçoando da preguiça. Acordou e sorriu feliz com o encantamento do sonho. Doce e
prazeroso, limpo e sem vestígios. E assim ficou por uns dias, negando para si mesma, uma a uma,
as evidências de que aquilo não tinha sido um sonho mas um delírio de prazer, vibrante e real. Por
isso nem quis se assustar com a notícia de que o trapezista havia escapado da prisão sem deixar
nenhum tipo de rastro, vexando o cabo Mili e sua guarda improvisada. Todo mundo sabia como
ele tinha escapado, confirmando a suspeita de que ele podia voar. Cabo Mili evitou mencionar
essa versão no seu relatório oficial, mas não evitou o deboche pelo fracasso inexplicável da sua
singela obrigação.
A pobre moça pagaria resignada o preço da sua paixão alucinada e fugaz. Foi caro e lhe
encurtou a vida. Mas dela ninguém nunca ouviu a queixa de que não tinha valido a pena.
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BENDITO FRUTO DA PAIXÃO
Açucena Cedrus não sentia tristeza nem alegria naquele exato momento. Apenas seguia o
seu destino, no começo e ora tão turbado por aquela incrível aventura que a havia envolvido de
forma tão intensa e contundente com o moço trapezista, há cerca de um mês, passado com aflição
e sentido de desnorteio. O projeto familiar e seu de se entregar a uma vida religiosa contemplativa
e alheia já não parecia a única e inquestionável opção para o resto dos seus dias que longos
deveriam ainda ser, sendo ela tão viçosa. Mas seguia o seu destino, como dito. O local do seu retiro
não era perto e o caminho era penoso, de pau, pedra e sequidão, tão longe do mundo como fosse
possível ser. Depois das longitudes da planície carecia subir quase mil metros, rodeando devagar
o cone superior da Serra de Santa Branca dos Lírios até seu pico penhascoso de graníticas rochas
escoradas atrevidas contra o céu, setenta léguas ao norte do Chapadão de Deserdados. Tão perto
do céu que era possível sentir o perfume de Deus, exalando nas manhãs pois, na sua mania de
grandeza, ele só se mostra nos altos e mesmo assim só um pouco.
Saíram ao raiar do dia, num comboio de quadrúpedes rudes, fortes e sem pressa. A cada
ano, no mês de maio, a tropa fazia o trajeto levando moças de toda parte para tentar a vida reclusa
do Convento de Santa Branca dos Lírios, famoso pela devoção das internas e o alcance das suas
orações a favor das causas impossíveis. Mas menos da metade delas aceitava de forma permanente
aquela rotina tão monótona, inda que muito eficaz ao entendimento do sentido mais profundo do
amor a Deus, pois solidão e silêncio elevam a elevação até as grimpas dos azuis, atrás dos quais
fica o céu. O trabalho contemplativo das freiras gozava de grande respeito no seio da Igreja e
sempre que o sr. Bispo precisava de uma graça suprema recorria àquela congregação, de tão fina
sintonia com os extratos das esferas superiores, pois o caro prelado era gordo e libidinoso e não
conseguia muita elevação sem ajuda de terceiros.
Açucena atravessou calada todas as sofridas horas que a poeirenta e sacolejante viagem
havia durado. Aliás, ela já estava assim desde o dia em que ficou sabendo da fuga do trapezista,
escapando num voo humilhante, deixando para trás quem devia detê-lo mas só conseguia arrastar
os pés pelo chão. Tinha estado com ele na noite anterior ao anúncio do desaparecimento do
próprio, o que agitou muito o povoado e a fez ficar calada complacente e conivente. Falo da noite
que, durante algum tempo, ela nem tinha certeza se tinha mesmo havido ou era só o poder de
sonhar o que se quer que aconteça com fervor, pois a fé costuma concretar os abstratos. Talvez
ficasse calada só para se concentrar na lembrança daquela noite ou no sonho que tinha sonhado
sobre ela. Chegou calada e permaneceu, retardando sua inserção, pois silêncio era bem vindo
naquele local contrito e de poucas ideias. Mas havia de se dar a conhecer e mostrar consideração
pelos outros e humilde simpatia. Ficou nos primeiros dias tentando se sintonizar com sua piedosa
rotina no vetusto mosteiro de pedras e adoração, enlevo e esfoladura. Aos poucos foi conseguindo
conciliar os lados daquela rara combinação do mundano com o divino e não houve propriamente
drama de consciência no viço da sua alma. Mesmo porque, no fulgor dos seus dezenove anos
vividos em mundo pequeno, Açucena Cedrus não sabia o rumo certo da vida, embora o
pressentisse com alguma ansiedade e tivesse tido matéria em que pensar.
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No primeiro mês ela e as outras noviças tinham que passar pelo aprendizado duro das
tarefas humildes: lavar, passar e cozinhar; essas coisas terrenas puras e sempre dignas para as
matronas e as virgens. Não estava acostumada. Enfim não estava acostumada com nada daquilo,
nem mesmo em estar tão perto das coisas sagradas. Por isso estava assustada. E a cada manhã
acordava se sentido no lugar errado e procurando o certo, suspeitando que ele estava no jardim,
pois era lá que Deus parecia estar presente de fato. Empregou-se em suas tarefas domésticas com
um pouco de desleixo, embora não planejasse que fosse assim, pois queria acertar e torcia para
que o simples passar do tempo pusesse as coisas no lugar. Olhava as velhas irmãs e as invejava,
imaginando que o tempo já tinha passado para elas e elas já eram parte natural daquela vida
incomum. Mas as próprias velhas irmãs ainda estavam rezando para o tempo passar e colocar as
coisas nos lugares. Coitadas, morreriam antes que isso acontecesse. Mas gozam da companhia de
Deus para sempre que é o que almejavam e por certo mereciam.
Enquanto isso, na alvorada da sua nova vida, Açucena tinha que seguir seu batente
desgastante, da manhã até a noite, dormindo só para esperar que tudo recomeçasse exato no dia
seguinte. De toda forma, ela não se importou muito em buscar as portas do céu, começando
daquela forma singela, pois bem sabia que penitência e humildade faziam parte do programa da
aprendizagem no caminho da adoração. Mas, mais que isso, a ocupação das pernas, dos pés, dos
braços e das mãos atenuavam o arrastar do tempo e apressavam a aceitação do costume para com
aquela férrea disciplina, como ela ansiava. E assim, naquela rotina os dias passaram de fato um
pouquinho mais ligeiros, mesmo sendo iguais uns aos outros e não estando ela, tão dedicada ao
seu ingrato mister. Mas o rolar forçado do mecanismo do tempo não arrefeceu o turbilhão dos
sentimentos e ela continuou aérea, presa à memória recente da sua vida mundana, como se nada
tivesse passado ainda. De toda forma, já naquele primeiro estágio da sua reclusão, Açucena havia
se destacado. Não pela sua dedicação aos baldes e panelas, mas ao contrário, pelo seu olhar
perdido, sua doce conformação, seu semblante penitente, sempre compenetrada na capela e nas
horas de contemplação no claustro ou no jardim. Era pura saudade revirando a sua mente. Mas
sua paixão mundana foi mesmo assim, confundida com a verdadeira paixão que devia impregnar
cada canto daquele mosteiro. De sorte que ela, depois de dois meses de trabalho serviçal, acabou
incluída no primeiro grupo de noviças candidatas a terem acesso admitido na Ala da Santa Paixão.
Era aí que acontecia a iniciação nos mistérios da adoração a Deus no seu estágio mais elevado.
Tão elevado que alguns até confundem com o verdadeiro prazer, numa outra dimensão.
A iniciação era solene e grave. Começava às quinze horas de uma sexta-feira e terminava na
noite do domingo seguinte, numa vigília penitente de jejum, rezas e reflexões diante do
crucificado, sofrendo e ensinando a paz. Dizem que a própria Santa Tereza de Ávila havia revelado
os passos do ritual, conforme uma sagrada visão que tivera em um dos seus múltiplos êxtases. A
penitência e a inanição ajudavam na abertura da sensibilidade, como ensinava a receita da Santa.
Lá estavam Açucena Cedrus e mais três noviças despertas para os santos sentimentos. O
ritual era no terceiro andar do mosteiro a que se chegava por uma escadaria estreita que acabava
numa grossa porta guardada por grossas chaves e grossas dobradiças de bronze medieval
protegendo grossamente a inacessibilidade leviana ao local. As noviças cabisbaixas, em ordem de
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contrito respeito, adentraram a Ala da Santa Paixão seguindo a madre em fila, movendo os pés
em passo cadenciado e balançando as pesadas vestes num balé sincronizado e um tanto
cinematográfico se cinematografia houvesse naquelas bandas. O corredor era de pedra como tudo
ali e havia sete grandes portas cravadas nas laterais da ala e dispostas em espaços tais que nenhuma
ficava em frente da outra. Cada qual estava identificada com letras esculpidas em placas de
mármore fixadas no alto dos portais de granito trabalhado: Êxtase, Agonia, Elevação, Aflição,
Glorificação, Graça, Beatitude. Nomeavam as salas que representavam cada uma das partes do
aprendizado da paixão por Cristo – o Salvador.
Cada uma delas teria que ser frequentada pelas noviças ao longo dos anos, uma após outra
até que sua formação estivesse completa e elas estivessem prontas e consoladas da renúncia que
haviam feito aos prazeres passageiros do mundo. No fundo estava a Capela da Iniciação.
As moças foram gentilmente ajoelhadas num tablado, sob o majestoso domo chanfrado
que antecedia o retábulo maior. Uma doce iluminação colorida descia do céu e penetrava por uma
pequena abertura forrada de vitrais, impregnando tudo com muita inspiração. Açucena e as colegas
vestiam um camisolão branco de tecido grosso e traziam um comprido véu leve preso à cabeça
pelo laço de uma corda trançada de fina seda. Tolerante imitação da coroa de espinhos da paixão
justificada do único que teria amado, de verdade, toda a humanidade a um só tempo. Caía até os
pés, misturando uma fartura de panos alvos instigando a opção pela pureza. Um coro de velhas e
piedosas religiosas garantia o lado sonoro do enlevo, cantando um hino dolente e triste que
penetrava e confortava a alma, preparando o clima. Uma tênue iluminação de castiçais fundidos
nas paredes laterais completava a penumbra contrita do ambiente circundante. O altar, porém,
estava profusamente iluminado, irradiando uma cintilação dourada que completava tudo na
inspiração divina das emanações de luz. No centro do retábulo reinava entronada a própria Santa
Tereza em êxtase, inspirada na obra de Bernini da Capela Cornaro, na longínqua Itália, porém sem
o anjo violento pronto para cravar a afiada seta da paixão no peito receptivo da santa, já preparada
para a vida eterna.
O primeiro ato era a pregação mor da Madre Coroa de Lírios Entremeada de Espinhos.
Para dar início a divina formação das freiras tinha que explicar as diferenças entre o desejo e o
amor, separando o joio do trigo, logo no primeiro capítulo do aprendizado do mistério da
adoração e apontando o caminho certo. Ela o fazia de forma muito competente, escorada no
entendimento dessas coisas que foi aperfeiçoando ao passar de anos de profunda e ininterrupta
contemplação da majestade de Deus em pessoa, dado o peso da sua autoridade. A fala inicial tinha
por objetivo lançar as bases para a abertura das reflexões sobre o tema e era um resumo de
revelações de santos e de teólogos que viveram ou se debruçaram toda a vida sobre o assunto, ao
longo dos tempos.
No meio de toda aquela consternação favorável a madre explicou, com voz de tonificação
celestial, que o desejo é a simples vontade de se obter prazer efêmero e que, por isso o amor
potenciado revelado na paixão lhe é infinitamente superior, pois ele é a necessidade divina e eterna
de adorar. E mais explicou, esclarecendo que o desejo sempre é buscado através de uma ação
mecânica que tem começo com o seu despertar e que tem um fim melancólico quando ele é
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satisfeito. Enfatizou que a paixão, ao contrário do desejo, é infinita, tem começo mas não tem um
fim previsível. Completou ensinando que a realização do desejo é a saciedade que leva ao enfado
e que quando isso não é possível surge a frustração. Ambos são sentimentos egoístas e
mesquinhos, faces abjetas do pecado.
Aquilo tudo estava cheio de verdades, mas a bem da exatidão, não era o que convinha a
Açucena, frágil, desamparada e inteiramente desnorteada naquele instante.
À medida em que ia falando, Madre Coroa de Lírios Entremeada de Espinhos ia gazeando
os olhos em busca de inspiração, tentando se sintonizar com as luzes das esferas etéreas, tão
familiares para ela que muito tinha se preparado para isso, esfolando o corpo e perfumando a
alma. E sempre a conseguia e chegava eloquente no final da sua santa preleção que era quando
enfatizava veemente aquela história de que a paixão nunca se realiza, pois a adoração é suprema e
não tem fim. A parte mais apreciada por ela própria, e que sempre merecia seu capricho na escolha
das palavras e nas modulações da voz. Era quando ensinava que a natureza infinita da adoração
faz surgir o sofrimento, mas que ele, pela sua sagrada natureza, também era uma forma de
crescimento rumo ao divino.
Na parte final e mais importante da sua catequese, explicava a santa madre que o sofrimento
também é uma forma de adoração e que a paixão suprema foi aquela sofrida por Cristo para nos
redimir daquele pecado que cometemos antes de nascer. E encerrava com voz doce e lacrimejante,
explicando que nos nunca vamos conseguir compensar essa paixão, mas que Deus nos deu a graça
divina de tentar, apaixonando-nos por ele.
Ao final da pregação havia um longo momento de silêncio em que todas aquelas mulheres
mergulhavam fundo no que tinham acabado de ouvir, inclusive as velhas irmãs que já tinha ouvido
aquilo dezenas de vezes mas sempre encontravam um ângulo novo cuja polêmica lhes pudesse
preencher os vazios do silêncio do retiro.
Açucena prestou muita atenção nas palavras da madre. Achou tudo meio confuso, mas
sabia que ia ter que refletir sobre elas toda a noite e teria que debatê-las na manhã do dia seguinte,
sonolenta e em lacerante jejum. Tentou repetir as palavras que ouvira e o fez várias vezes,
desconectando cada vez mais as ideias. E, à medida que a noite avançava e o sono batia, ela ia se
sentindo mais confusa e agregando coisas à fala da madre, por sua conta. E assim foi repetindo a
lição do jeito que tinha conseguido entender.
No chegar da madrugada Açucena já havia mergulhado num caldo de confusões teológicas.
Alheia ao cantar de um monte de galos fornicadores e pagãos esperando amanhecer para caçar as
galinhas, a moça já não conseguia mais ordenar a sua mente, desacostumada aquele tipo de
exercício cruel. Começou a cochilar e tentou escapar. Viu-se nua num bosque verde e ensolarado,
passeando com um pássaro azul, docemente pousado sobre seu ombro alvo e macio. As garras
do pássaro apertavam fortemente o ombro, mas não a feriam nem a desconfortavam. Ao
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contrário, convidavam a penetrações mais profundas. Havia montes de flores colorindo a relva e
delas saiam vapores leitosos que entravam pelas narinas inebriantes e a faziam repetir várias vezes:
- Amor, desejo, prazer sem pecado... amor, desejo, prazer sem pecado.
O sonho se repetiu numa ordem circular mudando um ou outro detalhe. Depois ela dormiu
profundamente e parou de sonhar, exausta no real e no onírico. Na verdade, literalmente desmaiou
pois não podia resistir àquela inanição e àquele desconforto, na condição delicada em que estava,
precisando se alimentar duplamente.
Acordou com um cheiro forte que lhe irritou as narinas e sacudiu os neurônios. Estava na
sacristia da capela deitada num catre rústico coberto de panos escuros, grossos e ásperos. A irmã
enfermeira havia lhe colocado algo sob o nariz e foi o que a fez despertar. Já tinha amanhecido.
Foi examinada detalhadamente por mãos e tatos experientes, inclusive em suas partes
íntimas, o que a fez chorar baixinho, comedindo os soluços. Terminado o exame lhe foi servido
um café simples com bolachas e uma laranja que ela comeu devagar embora penasse fome. Preferia
uma maçã mas estava meio confusa sobre qual das metades preferir.
Nenhuma palavra foi trocada, nada inquirido, nada justificado. Terminada a refeição a irmã
enfermeira recolheu a bandeja e deixou o recinto. Saiu fechando pesadamente a porta, num
estrondo que soou como o começo do próprio apocalipse. Açucena Cedrus ficou sozinha.
Mergulhou sob os panos desconsoláveis da cama e ficou olhando a claridade que entrava por uma
janela rasgada no alto de uma das paredes, querendo consolação. Não pensou em quase nada,
ainda meio sonolenta. Ficou naquele estado, esperado. Quarenta minutos depois entrou a madre,
arfante e com cara carregada, saltando fora do hábito um tanto agressiva.
- Minha filha, sinto muito mas você não pode ficar mais aqui. Vai ter que voltar para sua
casa paterna com toda a brevidade.
A mensagem era simples, fria e pragmática, direta no coração. A moça olhou a veneranda
Madre Coroa de Lírios Entremeada de Espinhos sem nenhuma emoção especial diante da notícia.
Sentia-se muito desanimada e sem coragem para nada. Mas, mesmo assim, ousou perguntar o
motivo. Ela respondeu sem nenhuma palavra amena, pela metade ou indireta:
- Você está grávida. Que Deus se apiede de você, pobre criatura - respondeu a religiosa
juntando as palmas das mãos e inclinando a cabeça para o alto como se estivesse
recomendando o perdão para aquela pecadora.
Açucena pensou na visitação de Maria, mas não ousou fazer nenhuma comparação, pois os
pássaros não eram anjos. Sua noite de amor não tinha sido um sonho, afinal. Havia produzido
um pequeno e secreto fruto. Uma tragédia iria começar, mas ela quase se sentiu feliz. Levantouse sem esperar nenhuma orientação, abriu a porta e entrou no corredor da Ala da Santa Paixão
quase correndo embora se sentisse fraca. Enquanto caminhava descalça, buscando o seu quarto
na clausura, foi lendo aquelas placas vetustas que identificavam as salas que davam para o lúgubre
corredor: Êxtase, Agonia, Elevação, Aflição, Glorificação, Graça, Beatitude. Não era a paixão que
queria viver, ainda que outra não pudesse jamais.
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Tinha que esperar o próximo comboio de suprimentos do convento para descer a serra e
voltar ao seu mundo pequeno onde as pessoas costumavam ter desejos e tentações, amores e
paixões diretos e naturais. Enquanto isso ficou encerrada na sua sela, numa reclusão voluntária
mas muito conveniente para todos, pois que as piedosas irmãs não sabiam muito bem como lidar
com a virtude da tolerância naquelas situações tão pecaminosas. Rezou muito naqueles dias e se
convenceu ter aceito a vontade de Deus, como boa filha de Maria que era. Longe de querer
competir com a excelsa Mãe de Deus, atreveu acreditar que o bendito fruto existia também para
os singelos úteros das pecadoras que Cristo redimiu, especialmente para as mulheres de Chapadão
de Deserdados que, além de mulheres, eram flores, quer dizer prontas para florir a cada primavera.
O RETORNO E AS MEIAS VERDADES
Pelo menos dois meses era o que Açucena Cedrus teria que esperar até que pudesse voltar
para casa e cumprir seu decreto de expulsão. Era então que a próxima condução regular viria ter
no Convento de Santa Branca dos Lírios e na volta poderia levá-la até Chapadão de Deserdados,
no seu calvário de volta à casa paterna carregando o seu desatino no ventre. Essa espera seria sua
maior penitência, suprema coroação do martírio da sua vergonha. Sentia-se como se fosse
guardada prisioneira sem ter tido a chance de um julgamento justo. Nesse tempo teria que ficar
isolada na clausura, sem qualquer contato com as rotinas do convento. Enquanto isso esfolava as
mãos com as contas do rosário, rezando dia e noite e pedido perdão para o seu pecado, provindo
das cegueiras do amor e revelado ao mundo nas circunstâncias mais perversas. Eram tantos os
espinhos da sua condição no silencio daquela expiação que ela nem havia pensado ainda no que
diria a pobre d. Violeta. Mas fiava que sua mãe transbordava de santa misericórdia como coisa
natural e saberia entender a virtude das suas razões. Felizmente nem precisou pôr à prova a
misericórdia da mãe em tão acentuado grau de perigo de não se fazer merecida. E foi aí que o
padre Ipê Náltio entrou nessa história com sua sabedoria a serviço de Deus e ao lado dos
pecadores, atenuando os sofrimentos da terra, na incerteza do céu. Era ele o vigário de Santa
Branca dos Lírios, capelão do convento por legal decorrência da primeira condição. Vida dura e
corrida, intercalando missas e ofícios na sede da paróquia e na capela do convento, subindo e
descendo dia sim, dia não, no seu cavalo de São Jorge. Confessor austero e sereno, se convenceu
da brandura dos pecados de Açucena e resolveu perdoá-la, como era sua obrigação nos misteres
do sagrado sacramento da confissão. Resolveu mais, resolveu ajudá-la. Aliás, isso já havia feito
antes e isso ainda faria, pois aqueles casos não eram assim tão raros naqueles ermos e tempos.
Mas ele era seletivo, ajudando apenas aquelas pobres meninas cujo fundo da alma pudesse
enxergar e, isso sim, era muito mais raro de acontecer. De sorte que o padre sugeriu à madre
superiora que a moça seguisse com ele até o povoado de Santa Branca dos Lírios onde poderia
casualmente encontrar meios de voltar para casa mais cedo, encurtando a agonia da espera e o
incômodo de ficar ali, no meio do cotidiano das freiras, marcando-o como se fosse uma nódoa.
A boa madre prontamente acedeu, pois também queria encurtar aquela situação que perturbava a
santa paz do convento e a pureza do lugar. Na verdade o plano do padre era muito mais abrangente
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do que a princípio parecia e muito mais cheio da melhor das piedades. Não era só a questão do
tempo de espera da condução, mas também a questão da condição de espera do tempo de procriar.
Protegido pela sacra inviolabilidade do próprio confessionário – e mesmo assim falando
baixinho – padre Ipê havia proposto a Açucena que ficasse morando com ele por uns tempos até
que a criança nascesse e, assim, ela pudesse voltar para casa, com o pequeno aninhado nos braços,
condição muito mais digna do que fazê-lo com ela escondida na barriga, sem ter muito como
explicar aquela protuberância fora de tempo e lugar. Certamente seria um choque para d. Violeta,
com ou sem a piedade que nela era intrínseca. No momento da proposta Açucena se assustou e
refugou, temendo as intenções desse excesso de bondade. Mas logo depois aceitou, corrigindo
com a razão o sentimento de pena e de punição com que vinha julgando a si mesma no meio
daquele turbilhão. E fez bem pois, ao contrário do que podem estar pensando os leitores mais
maliciosos, o bom padre se revelou um fraterno protetor. E mais, encheu Açucena de paz e dos
mais sábios conselhos, preparando-a para a volta à vida mundana na nefanda condição de mãe de
um pequeno bastardo, gerado numa noite de amor, fugaz e confundida com os sonhos,
arrefecendo o prazer, mais distante do peso das coisas reais e de contas a prestar.
A execução do piedoso plano teve princípio de forma natural e insuspeita numa manhã
ensolarada e serena que prometia um dia radiante depois de tantos outros sombrios. O padre e a
moça seguiram montados em suas respectivas cavalgaduras e a descida foi lenta pois ela não estava
acostumada com aquele transporte rude no lombo de um animal. Iam, um ao lado do outro e,
assim, puderam conversar ao longo do trajeto. A bem da verdade quem conversou mesmo foi o
padre, pois Açucena ficou retraída, reservada a escutá-lo. Mas se sentiu confortável com os rumos
da conversa. Esperava ter que ouvir um ou outro sermão e estava preparada e disposta. Temia
ainda pelo pedido de uma compensação por aquela proteção. Mas, nada de sermão, proposta
indecente ou coisa que assim parecesse. Ao contrário, o que ouviu revelava uma pessoa doce e
compreensível. Até um tanto herética e debochada, muito diferente da imagem que todos tinham
do capelão do convento, cheio de ralhas e contrições e da suprema autoridade da cabeleira branca
e meio rala. Mas nada disso agora correspondia, no meio do sol e do dia. Ele se mostrava afável e
brincalhão, reparando nas delícias singelas da natureza e interpretando os caprichos de Deus de
uma forma engraçada, revelando uma alma brincalhona por trás da preta e sufocante sotaina,
surrada e cheia de caspa e fios brancos perdidos do alto da cabeça alargando a tonsura de uma
forma cruel.
Chegaram na boca da noite, com o jantar já cheiroso de sabores e no ponto de terminar,
assim que o padre mandasse. Escorreram a poeira numa bacia de água morna e, à mesa, a conversa
continuou no mesmo tom leve e ameno, sem nenhum assunto dominante, sem nada que pudesse
pesar na hora da digestão. O padre chegou a fazer piadas com as coisas do convento, satirizando
os narizes das monjas e fazendo a moça estampar uma gostosa alegria, coisa rara de uns tempos
para cá. De sorte que, quando Açucena se recolheu ao conforto da cama designada, ela se sentia
quase feliz. O quarto era limpo e arejado, se sentia segura, estava saciada da fome e principiava a
estancar finalmente o sangramento da alma, macerada desde algumas semanas. Enquanto o sono
não vinha repassou o dia com um sorriso nos beiços, serena e agradecida. Dormiu bem e acordou
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muito menos incomodada com os pecados do desejo e as chagas da paixão, à sua conveniência.
E sentiu que podia muito bem passar ali um ano tranquilo à espera do seu filho. De fato tinha
razão e o vigário muito ajudou enchendo a sua alma de uma teologia do perdão que ensinava que
o amor transformado em paixão não admite a presença do pecado. Decorre dos ensinamentos de
padre Ipê Náltio, portanto, o esquema que ela desenhou na última página do seu breviário e que
consultava toda noite, depois da sua contrita e fervorosa oração, pedindo força para o bom
entendimento do lado mais secreto dos ensinamentos de Cristo:
paixão > adoração > redenção
desejo > gozo > pecado
Não fora simples desejo mas verdadeira paixão a causa da sua inaudita aventura nos braços
do trapezista voador. Seu caso se enquadrava então na parte superior da equação do venerando e
sábio padre. Não duvidando disso - e evitando fazê-lo - se quedou em paz e assim ficou enquanto
esteve sob a custódia do religioso se preparando para voltar e recomeçar a vida no caminho
natural.
E assim, em paz, tentava se convencer que estava quando, desceu na porta de sua casa com
os peitos inchados de leite e o pequeno Cedro Cedrus aninhado nos braços, devidamente ungido
com os óleos do batismo e uma certidão arranjada pelo nosso bom protetor atestando pai e mãe
desconhecidos e batizado com o sobrenome Cedrus pela graça de Açucena, amorosa mãe adotiva
mas, no real, oferecida ao holocausto das maledicências sobre as mães carentes de maridos. Tinha
também uma carta minuciosa assinada pelo reverendo que contava a versão da história respaldada
no perdão. No período de ausência, d. Violeta e a filha trocaram cartas frequentes como se tudo
estivesse normal. É que, nosso padre Ipê era quem transportava a correspondência entre o
mosteiro e o povoado de Santa Branca dos Lírios. Assim, garantiu a certeza do fluxo entre o
remetente e o destinatário, sem erro ou ruptura. Mas nenhuma carta seguiu com esse estrito
propósito e a pobre senhora não foi avisada do retorno prematuro da filha. Nem era conveniente
essas coisas no papel, antecipando agonia por falta de explicação. Daí o susto que tomou quando
viu Açucena de volta. Nem carece descrevê-lo, é fácil de imaginar. Mas o que importa, afinal, é
que, com jeito e com cautela, a filha foi escaldando a história e d. Violeta, por Cedrus que era
também, se quedou conformada com tudo e com a frustração do projeto divino bruscamente
interrompido. Perante as ouriçadas e perspicazes vizinhas até defendeu eloquente a opção de
Açucena de deixar o convento assumindo a criação do desafortunado órfão, abandonado na porta
do mosteiro numa brava noite de chuva, debaixo da frialdade dos respingos e do vento, como
contava a história que o padre inventou. E assumiu o pequeno, na sua parte de avó, com muita
convicção e terna dedicação.
Assim, em pouco tempo, a casa dos Cedrus foi tomada de uma singela alegria, aberta e sem
vergonha, como lar abençoado. Pena que a pobre moça tivesse que privar o filho do seu próprio
leite, escondendo suas fontes e dependendo de outras. Coitada, isso acentuou nela o prenúncio
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de um castigo que também se agregou à penitência do seu pecado, perdoado sem toda a convicção
que Açucena queria.
No mais, o tempo passou como costuma fazer e as coisas se arranjaram na vida do nosso
herói como estava escrito e me foi dado contar com toda a isenção, fiel ao peso dos fatos. Açucena
Cedrus a esposa de um dia, a mãe amorosa, a mulher apaixonada, a amante irreal, nunca sossegaria
inteiramente sua alma e, na sua curta vida, viveria momentos de agonia, tentando se perdoar do
pouco que havia feito mas que não devia ter feito aos olhos puros de Deus, na sua órbita mais
santa.
Cedro Angélico – o filho bastardo, nascido Cedrus - viveria muitos anos e, ao contrário da
mãe, teria todo o tempo do mundo para separar o amor e o desejo, e preferir o segundo se
esquivando do primeiro, achando que isso valia a solidão. Como ela, pecados não cometeu e
morreria convencido de que degustou a melhor parte da maçã, evitando o sofrimento como pôde,
sorvendo a vida pelo seu lado mais doce.
MALDITO FRUTO SEM FUTURO
Agosto é sempre poeirento em Chapadão de Deserdados. Um clima seco de serrado e
pradaria, de regatos limpos e rasos, de escarpas majestosas e sopro de ventos baixos que balançam
os ramos e os galhos mais delgados sacudindo a paisagem. Que levanta a poeira das ruas secas e
seca as gargantas e incomoda os olhos ressecando os globos.
Assim que naquele agosto, comum de tudo isso, Açucena Cedrus avançou pela rua devagar,
pisando com cuidado o pó vermelho do chão, procurando evitar sujar o couro dos sapatos acima
da linha do solado: do bico ao salto. Era um modelo antigo que tinha sido da mãe, mas não carecia
o desleixo de sujá-lo. Pela mão levava o filho pequeno, único e não revelado ao mundo como tal:
Cedro Cedrus, supostamente adotado pela bondade dos Cedrus, mas seu filho de verdade como
se viu a pouco. A exemplo da mãe, o pequeno tentava pisar leve na poeira mas não conseguia
nem queria evitar aquele divertimento de fazê-la levantar e colorir o ar. A moça não ralhava mas
apenas o afastava com o braço esticado, mantendo uma distância segura para preservar a barra
rendada do vestido dos respingos do pó. Percorrem assim, nesse cuidado que retardava o passo,
algumas centenas de metros. O suficiente para levar o par a um canto mais afastado do povoado
que era o rumo pretendido. Naquele lado, passado o largo da igreja, a Rua dos Caldeirões - morro
acima - e o beco das lavadeiras – morro abaixo: as casas são pequenas, amontoadas, improvisadas
de barro e paus, niveladas na miséria, com telhado de folhas de coqueiro amarradas em caibros
compridos e roliços, atravessados na horizontal. Duas ruelas banguelas se cruzavam num espaço
sem nome, onde brincavam crianças. Velhos matutavam, papagaios matraqueavam, cachorros
dormiam, galinhas galinhavam com seu galo sem escolha. E a vida corria devagar e sem o sentido
que a vida precisa ter pra justificar o nascimento daquela gente e o esforço de crescer no meio de
tanto perigo, solta nos cantos do mundo. Ao vê-la se aproximar, uma trinca de mulheres
suspendeu a prosa e a olhou e ao pequeno, estranhando a aparição. Não é comum uma visita desse
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tipo. Nem podia, ali era um bairro de velhos e viúvas, fechado em si mesmo, esquecido. Era um
canto de lavadeiras e seu contato com o resto do povoado costumava se limitar a um trote trôpego
de mulheres sem marido, com enormes pacotes de pano na cabeça: trouxas redondas na vinda,
denunciando a roupa suja e malas retanguladas na volta, com sua carga preciosa de roupas, lavadas,
engomadas, passadas e cuidadosamente dobradas e redobradas num capricho fugaz, pois logo
seriam desdobradas, amassadas e sujas novamente. Tanto melhor pois era disso que viviam. As
freguesas não costumavam ir ali. Quando precisavam falar com as serviçais, passavam recados que
eram rapidamente levados ao destinatário, por algum vizinho, e prontamente respondidos.
Recurso assaz comum de comunicação naquele tempo de tudo perto e sem pressa, pois atrasos
não faziam diferença e ninguém se afligia por isso.
A moça, com o menino quieto, preso à mão, parou no meio da rua, cautelosa, evitando uma
touceira de capim à frente, que podia ocultar algum rastejante peçonhento de prontidão para o
mal. Protegeu os olhos com a mão em concha, evitando o sol e olhou em direção aos casebres,
girando levemente a cabeça de um lado ao outro, num ângulo de noventa graus. Virou as costas e
repetiu o movimento do lado oposto. Inútil, não encontrou o que procurava. A indicação era parca
e as casas muito iguais. Mesma cor de barro à vista, mesma frente sem alpendre, mesma cerca de
varetas de bambu, mesma miséria dos miseráveis iguais e solidários no nada a repartir. Resolveu
então buscar uma indicação. Foi em direção à trinca de mulheres que, à essa altura já não proseava,
preferindo observar, curiosa, a aproximação da visita singular arrastando uma cria.
- Boa tarde! – cumprimentou sem sorrir.
- Sim, senhora – respondeu uma das mulheres – do mesmo jeito.
- Eu estou procurando a cigana Azaleia Caucásia – continuou a moça.
As mulheres se entreolharam estranhando a pergunta.
- Tem essa pessoa aqui não - respondeu uma terceira. Aqui só tem mulher que lava roupa,
menino que azucrina e velho com o pé na cova - arrematou debochada.
- Ela é prima da Orquídea Nigina e não é daqui. Está de passagem – completou a moça,
meio sem graça.
Nisso alguém gritou de longe, interrompendo a breve conversação. Uma negra, alta e
delgada, postada ao lado de um tronco, acenou para a moça com um quê de agitação. Era a própria
Nigina com a sua negritude sestrosa da mina, sedutora na graça da sua raça. Ao vê-la, Açucena
Cedrus acendeu um sorriso e se afastou rapidamente das mulheres, virando-lhes as costas, depois
de agradecer a atenção com um discreto gesto de cabeça fugidia. Pareceu aflita para deixar o grupo
como se estivesse arrependida de ter feito a pergunta revelando mais do que devia. A trinca
guardou silêncio alguns segundos e depois comentou baixo alguma coisa, desairosa por certo.
A moça seguiu rápido e ao alcançar a preta, agarrou-lhe um braço intimamente se sentindo
mais confortável e segura. Esta, por sua vez, pegou o pequeno no colo e juntas viraram um canto
da rua, sumindo da vista das outras que ainda as seguiam esticando um olhar intruso.
Açucena extravasou uma aflição ao ouvido amigo.
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- Eu não deveria ter perguntado àquelas mulheres do jeito que perguntei. Afinal não quero
que saibam que eu estive procurando uma cigana. Devia ter perguntado apenas onde era a
sua casa. Fui muito burra. Você sabe que não quero que minha mãe saiba que eu vim aqui
e quanto menos conversa melhor se cerca um segredo.
- Não se preocupe, mocinha – respondeu a outra – elas não sabem da minha prima.
Ninguém viu ela chegar, ninguém vai ver ela sair. Ela se mexe em segredo. Eu trabalho há
muitos anos para a sua mãe, ninguém tem que estranhar você vir a minha casa.
A conversa prosseguiu, de aflição espontânea e de consolo forçado, uma centena de metros.
Agora já não há nem mesmo ruela. Já é só mato. Um mato ralo e um capim valente teimando em
cobrir a trilha batida de pedregulhos em que o caminho se tornara. Chegaram a uma quase cabana
de barro e sebe à mostra e buracos nas paredes num conjunto lamentável. A jovem assustou-se
com a pobreza estampada de forma tão contundente, mas disfarçou. Não era justo constranger.
Nem devia, estando ali como estava, em busca de ajuda. Assim, entrou no casebre esforçando um
sorriso sem gosto e sem vontade. Guardou distância de se encostar em qualquer coisa e o mesmo
procurou para o pequeno Cedro que retinha rente às dobras da saia, seguro pelos ombros, à salvo
do entorno repelente. Percorreu com olhos vagarosos o que estava a sua volta. O que viu foi mais
de espanto do que de horror. Os extremos da pobreza não têm fim, pensou, suspirando
tenuemente com uma ponta de dó.
O cômodo era pequeno, de chão batido e cobertura de folhas de macaúba. Servia de sala e
quarto com um catre, cadeiras, uma mesa comprida de taboas apoiadas sobre estacas fincadas no
chão. Tudo misturado sem ordem e nenhum plano possível. Um vão, sem prumo e sem portal
ligava o cômodo ao resto da moradia. Uma cortina rala de pano roto e colorido servia de anteparo
a resguardar as outras intimidades da casa. Ali era cozinha e demais serventias, fechando os tudos
da casa num resultado singelo, de falta.
- Senta, – exclamou Orquídea Nigina, desentulhando uma cadeira e a colocando no centro
do aposento em posição de destaque.
- Senta que vou buscar a prima Azaleia – completou sumindo atrás do pano do vão que se
abria pro fundo da tosca moradia.
Açucena Cedrus obedeceu. Sentou-se devagar como se temesse que a cadeira não a pudesse
sustentar. Sentindo firmeza, depois de um sacolejo cauteloso para testar a capacidade das pernas
do assento, colocou o pequeno sobre o colo e aguardou ansiosa. Não ouviu vozes. Antes mesmo
que um minuto se passasse o que ouviu foi um ruído de chocalho num batido repetido, ritmado.
Incontinente, uma mulher cor de chumbo, esquálida e curvada, parecendo muito velha, carcomida
pelos anos, entrou no aposento, enchendo o ambiente com sua figura estranha, mesmo pequena.
O ruído veio das contas e ossos que trazia na forma de um colar que pendia vertical, em direção
ao solo, devido à curva acentuada da coluna da mulher e que projetava seu pescoço,
exageradamente para frente. Era a tal cigana. Ergueu a mão em direção à visitante oferecendo o
seu anel a ser beijado, imitando, sem propósito, a arrogância de um prelado de altas indulgências.
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Reverência ridícula, posto não ser este o caso dela. A moça se assustou com o gesto inesperado.
Relutou um par de segundos mas, contendo o asco com esforço, acabou beijando a pedra
vermelha do enfeite vagabundo que coroava de miserável majestade a mão cava e encardida da
lamentável figura. Completada a saudação constrangedora, a cigana atravessou o resto da sala e,
com certa dificuldade sentou-se no catre encostado próximo à porta da rua. Olhou a criança
alguns minutos, apertando os olhos como se quisesse enxergar melhor. Depois tirou um cigarro
de palha que trazia na orelha, uma binga que trazia na algibeira, tirou a chama com grande maestria,
acendeu o pito e deu uma longa baforada empesteando tudo. Tapou a boca e o nariz com a mão,
reteve o fumo como se quisesse com ele impregnar as entranhas e alcançar a alma. Repetiu a
operação algumas vezes provocando aflição em Açucena. Depois apagou o cigarro sobre a unha
e voltou o toco para o lugar de antes, sobre a orelha. Olhou firme um horizonte imaginário,
arregalou os olhos o máximo que conseguiu e, em seguida, os foi fechando devagar como se
lentamente adormecesse. Esse estado letárgico durou alguns minutos. A moça aguardou paciente
abraçando o filho que no colo da mãe permaneceu quieto, um tanto assustado mas sereno. De
repente, a cigana abriu os olhos e começou a girá-los alternando as direções numa estranha
pantomima, meio cômica, meio alucinada. Em seguida começou a falar numa voz clara e num tom
troante. Parecia um trecho retirando de um sermão ou coisa assim.
- Só a paixão de Cristo pode purificar e tornar eterno o que não é. Seu cálice era de fel e ele
o adoçou para o amor dos homens. O cálice desse amor foi feito para gotejar, gota a gota,
destiladas, uma a uma, na seda da temperança. O cálice da paixão dos homens parece doce
mas ao bebê-lo a boca enche, o caldo entorna, escorre por entre os lábios e o amor se esvai
na sujeira do desejo. É frágil o fruto que daí vem.
Dito isso, calou-se e fechou os olhos novamente, voltando ao estado anterior.
Açucena Cedrus ouviu tudo aquilo assustada e sem entender nada. Mas mesmo assim ficou
imóvel, aguardando o desdobrar. Mas não se sentiu serena. Ao contrário. Sentiu o ar pesado e o
ambiente quente, o coração forçado e os pulmões tolhidos. Apesar do hermetismo, aquelas
palavras pareceram a ela um prenúncio de castigo por seus pecados de amor. Lembrou-se das
longas e ininteligíveis pregações que ouvia no tempo do seu noviciado no Convento de Santa
Branca dos Lírios. Lembrou do amargo desejo que abortou sua carreira de freira. Sentiu um vazio
no peito. Mas enfrentou o desconforto e seguiu tentando tirar algum proveito daquela aventura
que já ia pelo meio.
De qualquer forma, surpreendeu-se com a correção e erudição da frase dita por pessoa de
aparência tão ignorante. Mas nada comentou e nem cabia fazê-lo. Aguardou alguns minutos. A
cigana, contudo, permaneceu como estava e assim continuou até que Orquídea Nigina afastou a
lamentável cortina que separava a sala e o fundo da sua moradia e entrou no miserável recinto.
Olhou a prima naquele estado, apertou os beiços e fez um gesto chamando a moça para segui-la
em direção da rua. Abriu a porta gretada, esperou que ela passasse puxando o menino pela mão e
a seguiu ganhando a claridade de fora, afastando o desconforto. Açucena respirou fundo, aliviada
de ter deixado aquele ambiente estranho e olhou o filho. Ele não pareceu assustado e isso a deixou
relaxada. Porém não afastou o arrependimento de ter vindo.
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- Sei que você não entendeu nada do que a prima disse - comentou a preta já antecipando
o que lhe seria perguntado.
- Sim, aqui vim para ela predizer o futuro do pequeno, mas ela pouco falou e só disse coisas
sem sentido para mim. Respondeu a moça, por certo desapontada.
- É assim mesmo. É que ela estava em transe viajando no futuro. Aquelas palavras vão ser
interpretadas e muito bem explicadas assim que ela voltar daquele sono profundo. Na verdade ela
não estava dizendo nada, só estava repetindo o que ouvia. Ela guarda tudo na memória e depois
fica remoendo até entender a mensagem. Mas você pode voltar pra casa com o pequeno. A prima
pode ficar horas e até dias daquele jeito e outros tantos matutando. Amanhã vou ter que levar a
roupa da sua mãe e, se Deus quiser, te conto o significado daquelas palavras confusas. Ali vai estar
com toda a clareza o segredo do futuro do menino. E não se esqueça, também vamos ter que
combinar um agradinho pra prima.
- Está bem, te espero então – respondeu a moça apressada.
Tratou de deixar aquele lugar com ligeireza, arrastado o pequeno Cedro pela mão. Este
seguiu obediente, alheio à aflição da mãe e, mais ainda, ao significado daquela visita incomum. Sua
quietude surpreendeu. Na verdade, muito cedo na vida ele aprenderia a ficar quieto, atalhando as
aflições. Talvez até tivesse aprendido ali mesmo, naquela hora, a utilidade dessa esperta conduta,
indispensável àqueles que levam a vida pelo prazer, escapando do remorso e escamoteando o
pecado, pois foi assim que ele quis viver logo que descobriu a parte doce da vida.
Açucena apressou o passo e torceu para não encontrar ninguém pelo caminho. Foi
satisfatoriamente atendida pois cruzou apenas com um ancião jogado numa tosca cadeira,
escornado e alheio ao mundo, sob a sombra de uma árvore. Cumprimentou-o respeitosa, mas ele
nem respondeu, encerrado. Continuou no seu passo ligeiro, conduzindo o menino aos pulos e
tropeços. Nessa ligeireza não demorou a deixar o bairro miserável. Ao passar por uma pequena
capelinha e divisar a porta aberta resolveu conter a pressa e entrar para refletir um pouco sobre as
palavras da cigana enquanto podia se lembrar delas. Entrou e se assentou na primeira fileira de
bancos, cautelosa e pronta para se evadir se surgisse algum constrangimento com aquela
intromissão. Não havia ninguém. Colocou o pequeno Cedro sobre os joelhos e pesquisou o
interior com curiosidade. Nunca havia estado ali. O modesto templo era dedicada à Nossa Senhora
do Rosário e servia às piedosas almas negras daquelas bandas, desde o século passado. À sua direita
havia um altar de tábuas pintadas de azul e branco, abrigando São Benedito com o menino Jesus
assentado no colo. Quis entregar a ele a missão de ajudá-la a decifrar o significado do vaticínio da
cigana. Não tentou, contudo, reconstruir as frases prolixas que tinha ouvido. Apenas rezou. Mas
não conseguiu imprimir doçura na mensagem que transmitiu ao santo. A ideia de desejo e punição
embutida nas palavras da cigana Azaleia turvaram sua oração e a fizeram se sentir indigna,
imprópria de estar ali buscando a proteção das santas negritudes, humildes e sofredoras. Achou
mais uma vez que estava fazendo algo de imprudente. Não era justo que quisesse a ajuda de um
santo para entender uma adivinhação supersticiosa. Muitas vezes tinha ouvido sermões do padre
Meldi condenando isso. Assim resolveu interromper sua contrição e deixar o santo em paz. Saiu
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do templo e apressou ainda mais os passos em busca do refúgio de casa. Não demorou a chegar.
O povoado era pequeno e esticado na planura facilitando o caminhar. Teve que carregar o filho
em alguns trechos pois ele teimava em se distrair com os pequenos encantos do mundo e retardava
o passo.
Açucena evitou contato com a mãe, atravessou o resto do dia aflita e a noite foi mal
dormida, velando o canto dos galos e torcendo para que o sol não tardasse a dissolver os resquícios
da madrugada. Receava ter perdido o seu tempo se expondo a uma tolice. Queria logo que o dia
amanhecesse e que Nigina trouxesse a leitura do vaticínio sobre o futuro do pequeno, corrigindo
a frustração. A cigana havia acordado do transe? Tinha interpretado as misteriosas palavras? Mas
teve que esperar até o meio do dia, alongando os afazeres. Foi quando a lavadeira apareceu pra
saldar o compromisso com mais uma volumosa mala de roupas, como fazia todo sábado. E ainda
teve que esperar ocasião propícia em que d. Violeta Cedrus não estivesse tão perto com as antenas
dos ouvidos espalmadas. A chance apareceu na hora da conferência das peças devolvidas já
lavadas e passadas. Normalmente quem fazia isso era a mãe, mas Açucena se antecipou ao
trabalho. Assim, no meio de um inventário de peças de vestuário foi que tomou contato com o
terrível futuro do filho. Seria breve a vida de Cedro Cedrus. Era esse o recado, curto, sem recurso
e sem apelo. Mas ela não viveria o bastante para conferir isso, pois começou a morrer ali mesmo,
corroída pelo lado amargo do amor, sem futuro e sem prazer, recusando cumprir sua sentença
repleta de crueldade.
INICIAÇÃO
Aos doze anos Cedro Cedrus, depois Angélico, ficou sozinho no mundo. A mãe morreu
cozida na dor de ter sabido que ele teria poucos anos de vida e isso havia começado no dia da
visita à cigana e avançava implacável. Era a sequência das tragédias da mesma paixão que não a
queriam deixar em paz, mas finalmente deixaria, já que nada dura mais do que devia durar, pois
junta muitos destroços no caminho. A avó desnorteou-se também sem saber o que fazer do futuro
de quem não tinha futuro. Mas ele seguiu vivendo sem querer e sem saber que não podia fazer
isso, pois o fim do começo não foi o começo do fim.
A mãe morreu dormindo, num dezembro e, extravasando uma mágoa contida, nem se
despediu do mundo. A avó levou mais quatro longos anos para morrer, prazo em que contou com
a solidariedade e dor de primas e adjacentes, rodeando o tempo todo o seu leito de moribunda.
Pouco antes de morrer Açucena havia contado à mãe o segredo do futuro sem futuro do pequeno
Cedro, o que pode ter sido a causa do cancro que se abriu na perna da pobre d. Violeta Cedrus e
que acabou por comer a sua vida inteira agregando muita dor física às feridas da alma. Tinha se
esquecido da história mentirosa de que o pequeno nem era seu neto. Mas nisso nunca pôs mesmo
fé, assumindo as dores uma a uma, como avó verdadeira que era e se sentia apesar das provas para
provar o contrário. Jazeram as duas, lado a lado, enterradas no quintal, junto a um muro de adobe
carunchoso. Duas cruzes brigando com o mato, nada mais na memória. Os vestígios da tumba do
dr. Umbuzeiro Cedrus já tinham se apagado, somando ao desleixo que varreu aquela casa nos
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últimos anos. De certa forma ali se extinguia a dinastia dos Cedrus pois o filho de Açucena a ela
não daria continuidade, pelo menos não nos registros dos cartórios. Daí, oficialmente a mãe não
teve neto e a avó não teve bisneto. Raízes, enfim, não marcam a nossa história e, quem sabe mais
do que eu conto aqui agora, sabe que Cedro Angélico acabaria por renunciar ao lugar onde nasceu
com certo radicalismo.
Naquele tempo que antecedeu e mesmo no que coincidiu com as mortes, o menino, apesar
da idade, ainda não havia posto o pé na escolinha do povoado e havia aprendido a ler e escrever
em casa, apartado do mundo e livre da rotina das obrigações e disciplinas dos dias na ordem da
vida. É que a mãe e depois a avó, como dito, não sabiam o que fazer com o presente de quem
nem tinha futuro e cuidaram só do essencial, desnorteadas que estavam na sua aflição, uma de
cada vez mas somando suas penas no peso da penitência que tomou conta da casa. Não havia
planos de médio e de longo prazo. De sorte que tudo que dele dizia respeito era para o imediato,
para um mundo restrito de sala, quarto e quintal. Nada de prazos longos, de investimentos futuros.
Cada dia guardando sentido em si mesmo. Daí pois que ele se iniciou como noviço da vida sem
o senso da provisão, sem compromissos, pois compromissos pressupõem o direito de cobranças
adiante e impõe o senso da escassez e a regra da economia para saldar as pendências. Há quem
diga que é daí que nasce o sentido pragmático de que todo ser é dotado. Claro que, no bojo de
tudo isso, mantido isolado, ele também não fez amizades e disso decorre a exacerbação da sua
veia egoísta, completando o lado mais polêmico da sua forma de ser e da vida que levou.
Mas quanto mais longe do mundo, mais o menino Cedro queria conhecê-lo, senti-lo de
algum modo, e ficava tampando os vazios das horas com o segredo das letras estampadas nas
almas dos velhos livros do dr. Umbuzeiro, na vasta biblioteca do fundo do corredor, ordenados
em escaninhos segundo as partes com que a alma se reparte e a maioria nem nota. O pequeno ali
passava os dias na companhia dos livros numa atração anormal para uma simples criança, inda
que tão diferente no sentido pedagógico e da inserção social, por via de consequência.
Compreensível, contudo, essa atração para quem não tinha muita obrigação com que se ocupar,
confinado no seu mundo de clausura, distante do mundo real. No seu imaginário universo,
escolhido a bel prazer, onde o tempo não corria ou, se corria, podia correr de novo, pois é assim
o feitiço da ficção. Bastava voltar as páginas. Também podia escolher as partes que convinham
garimpando o prazer, pulando por cima do resto como se fosse magia. Assim a vida muito boa
parecia, posto que um tanto irreal, de qualquer lado que se olhe. Mas essa era a tendência desde a
concepção e o resto agregou com muita facilidade.
A maioria concorda que a escola é a célula mater na formação do caráter. No caso do nosso
herói, que escola não frequentou, há mais coisas para se pensar da mais vã filosofia, pertinentes,
contudo, nesse exato momento. Coisas boas e más como acontece em tudo e a que não quero
imprimir meus juízos de valores, estando no meio da história e aberto às divergências. Mas uma
coisa é clara como consequência do detalhe principal da vida de Cedro Cedrus: acabou se
apegando à cultura oriental que, convenhamos, não entra na porta da escola do lado do ocidente
e vice-versa também. Vai daí que atalhou o ascetismo cristão das letras paroquiais a que estaria
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fadado por falta de opção e excesso de contrição. E acabou conhecendo poetas da Arábia,
filósofos da China e iluminados da Índia e inserindo-os com letras e ilustrações na sua formação
libertina, no sentido iluminista. O resultado de tanta abertura não podia ser diferente, e não foi.
Cedo se convenceu que o mundo é um jardim do prazer para ser desfrutado, sem cercas e muros
para serem escalados. E a isso deu segmento no moto da sua vida. Se ganhou ou perdeu, o leitor
que o julgue com sua sabedoria, sua escolaridade e os santos ensinamentos a que foi submetido.
Na parte religiosa houve dubiedade. Catecismo não houve pois ele estava inserido na grade
curricular da escolinha da paróquia que o menino não frequentou, como dito. A mãe embutia uma
doce revolta ousando pensar que Deus talvez visse no filho uma simples fruta podre caída da
árvore maldita da sua paixão. Não chegava a se atrever a pensar isso com todas as letras, nem
inseria essa agonia nas suas orações que nunca deixaram de ser frequentes nem estavam ausentes
na hora em que deixou esse mundo com o rosário estrangulado entre os dedos moribundos, sem
ter coragem de pensar para onde ia e qual a serventia da herança que deixava.
Por conta da mágoa mal resolvida, Açucena ia adiando a iniciação do filho nos mistérios da
trindade. D. Violeta até tentou remediar essa grave omissão mas, talvez até pensasse como a filha,
e o seu magistério sagrado não foi pleno nem muito empenhado. Nem ministério chegou a ser,
pois não havia um pingo de fé. Resultou de tudo isso que o menino nunca chegou a viver o
conflito da balança entre as privações efêmeras da terra e os prêmios eternos do céu. E, justiça
seja feita, isso em nada o desmereceu.
Enfim, as luzes do oratório da alcova da avó nunca conseguiram lumiar os escuros da alma
do pequeno Cedro, muito menos do Cedro adulto e distante e nem mesmo do Cedro provecto às
vésperas da hora crucial de ser chamado a prestar contas ao Senhor, como acontece com todos e
que todos esquecem com muita facilidade quando estão distantes do chamamento. Mas, mesmo
mais livre do que o normal nos mortais, nosso pequeno herói nem sempre podia inventar a
realidade e saltar os desígnios de Deus do jeito que lhe convinha. E aqui chamo um exemplo
crucial: a morte da mãe. O incompreensível significado daquela súbita ausência o abalou como
nada mais faria nas oito e meia dezenas de anos que viveu. Foi a coisa mais real de toda a sua
existência, tão concreta quanto um murro na cara, quando menos se espera. Apesar da pouca
idade - que é quando essas coisas são absorvidas com uma certa naturalidade, como todos muito
bem o sabemos - ele sentiu uma dor estranha e prematura. Pois não conseguia entender a partida
definitiva da mãe, que sempre estivera ali, doce e macia, ao alcance da mão e sempre a afagá-lo
com o negro dos olhos e a carícia do olhar calmante que vazava e cobria, aquecendo num colo
cheiroso. E ela era Açucena, tanto mãe quanto mulher e muito mais do que flor. Mas de flor tinha
muito. Morreu, levou o perfume e deixou os espinhos mesmo sem ter querido.
Para o pequeno bastardo desenganado, a sucessão lenta dos dias havia perdido o sentido
sem a proteção materna, sem aquela aprovação. Isso foi fazendo o menino murchar numa marcha
galopante, aumentando ainda mais a agonia da avó, mais fiada na trágica premonição da brevidade
da vida do neto. Mas o tempo corrigiu o sofrimento, como costuma fazer.
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A negra Orquídea Nigina tem tudo a ver com o resto da história, quero dizer da narrativa
sobre a formação do caráter do pequeno Cedro Cedrus, que depois viraria Angélico, completando
o ciclo como veremos na hora devida. Ela sempre esteve perto de tudo aquilo, ajudando no
trabalho pesado da casa dos Cedrus quando havia precisão. Depois da morte de Açucena, mais
ainda, pois d. Violeta havia perdido todas as condições sobre as rotinas da existência. A casa
também principiava a morrer, contaminada com o desleixo do desnorteio de quem não vê vida
pela frente quando acorda de manhã. A preta assumiu as coisas como pôde e como era servida no
seu berço de humildade cheio de obrigações e carente de direitos. E mais, se imiscuiu na tutela do
pequeno sem ter sido convidada. Ninguém podia impedir e ela estava cismada com a morte da
moça, assim tão cedo. Será que a prima Azaleia Caucásia havia errado no vaticínio e a morte
anunciada era da mãe e não do filho? Mas não pôde dirimir a dúvida pois a cigana cinzenta,
carcomida e tabagista, havia voltado pra não-sei-aonde e não havia dado notícias, lá se iam dois
anos. Nigina se sentiu um pouco responsável pela morte da mãe e também pelos infortúnios do
menino. Teria sido ele condenado sem ter sido preciso? E resolveu remediar isso, pondo um dedo
na ferida que o destino abria.
Antes de mais nada havia uma questão crucial a resolver: como preparar uma criança para
morrer? Sim, pois o vaticínio tardava mas ainda não havia esfriado. Crianças sempre foram
preparadas para a vida, não o contrário. Mas esse era o caso, raro mas real, que tinha que ser
encarado e não havia como fingir que não era assim. Morta a mãe, caduca a avó e a questão passou
inteira para Orquídea Nigina dar solução. Ela se roía com essa herança maldita, um tanto macabra,
inadiável contudo. Mas tinha que enfrentá-la pois não conseguia deixar de se sentir responsável
pela situação que culminou com a morte da mãe da indigitada criança e a jogara naquela agonia,
ainda mais agravada pela doença da avó, adoecida por duplo motivo.
Durante algum tempo a questão desnorteou o juízo de Nigina, tempo em que o pequeno
Cedro definhava pelos cantos, contrafeito quando não devia, estando no melhor da infância e
sendo ela intrinsecamente feliz pela ingenuidade das explicações em tenra idade. Mas por fim,
como diz o ditado, o que não tem solução já está solucionado. De sorte que ela, enfim, resolveu
mergulhar na tutoria. E mais, resolveu curar a ferida com o ferro que feria. Quer dizer, se o mundo
era um mundo de sofrimento a culpa era de quem sofria, pois outros mundos havia para quem
soubesse achá-los. Com essa filosofia, da mais pura leviandade, armou sua pedagogia para ensinar
ao menino os remédios para o tormento da alma, enquanto vivia. E ele estava disposto para isso,
já convencido de que muitos mundos existiam, mais ou menos reais. Isso estava nos livros que no
caso dele, por estar um tanto quanto isolado, mais real os mundos irreais tendiam a parecer.
Aos treze anos, pelas mãos hábeis de Orquídea Nigina, Cedro Cedrus foi introduzido nos
temperos do sexo e do paladar e durante três anos chafurdou precoce no mundo de delícias que
a sua preceptora podia proporcionar, plenamente dotada dos tantos talentos da raça para o
sofrimento e o prazer, sabendo separá-los com muita sabedoria quando isso lhe convinha. Foi
uma catequese radical e por certo imoral que marcou de forma indelével o caráter do nosso herói.
Nem podia ser diferente. Era um remédio perfeito para uma vida breve que na verdade não foi.
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Mas isso não tem importância pois nem sei se houve danos por conta do erro cronológico dos
planos de Nigina, ruim nos cálculos e nas crenças, mas repleta das mais belas intenções.
Com tão robustos exemplos de cama, mesa e banhos, entrou fundo nos ouvidos da alma
do pequeno que a vida não era mesmo um seco vale de sal. Dispensado pois estava, pela própria
natureza, de enfrentar provações aguardando a passagem para um estado de paz que duraria para
sempre.
E assim, com todo o empenho colocado na solução da amarga pendência, ficou então
resolvida a questão da tristeza terminal que era o mais urgente e salvou o nosso herói da tragédia
de uma morte prematura de fato, sem ter sido o desígnio verdadeiro nos registros de Deus.
Não se pode julgar o mérito da preparação da boa preta Nigina, pois controvérsias existem
e todas com fundamentos e pitadas de bom-senso. Mas, com acerto ou não, o fato é que o menino
acabou saindo da sombra funeral que pairava sobre ele, mesmo sem ter sabido se ela de fato
existia. Mas foi como se soubesse, pois Cedro Cedrus, depois Angélico nunca chegaria a ter um
projeto de vida a que pudesse seguir e viveu fazendo tratos efêmeros que lhe trouxessem prazer
e ludibriassem o resto que ainda estava por vir.
Foi esta a formação do pequeno órfão nos primeiros quatorze anos de vida, escorado na
mágica dos livros da biblioteca do avô e no mistério das coisas que não costumam ser escritas e
que as bocas passam aos ouvidos que as devolvem às bocas, um pouco mais adiante sem se
importar com o real. Decorre daí, talvez, o jeito singular da vida que Cedro Angélico viveu, no
embalo do fortuito, qual pluma ao vento buscando o rumo mais fácil e não o mais indicado pela
opinião da maioria.
NOVOS VENTOS
Aos doze anos Cedro Cedrus, depois Angélico, ficou sozinho no mundo, dizia eu ainda há
pouco e agora repetindo, fechando esta parte da história. Sim, pois nenhuma das boas primas e
vizinhas quis assumir os encargos de uma criança tão órfã, num contexto tão penitente. De sorte
que ele acabou tendo que ficar sob a tutela do estado, pois a tutela de Nigina não mais podia durar.
Estou exagerando nessa coisa de tutela do estado, pois não era oficial. Explico-me melhor: é que
Sucupira Nemélio - o agente comunitário - mas acima de tudo comerciante de robusto cabedal viu nele o filho que não tinha e resolveu assumi-lo, trazendo-o para dentro de casa e alojando-o
no peito, do lado certo e mais vazio. Nigina intermediou o negócio e foi a última coisa que fez
antes de fugir das suas rotinas naquela fase da vida e ir para lugar incerto, sem a rosa dos ventos,
como a prima já havia feito e criado o precedente. Há quem diga que a fuga tem a ver com questões
de remorsos. É possível, mas é difícil afirmar com os dados que dispomos. Fato é que aquela
criatura conhecia as necessidades dos Cedrus e dos Nemélio pois convivia em ambas as casas
desde muito tempo antes daqueles acontecidos. Havia vantagens mútuas convindo na relação filial
e a causa facilmente se assentou.
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Por força da força do inexorável, acabou nosso pequeno herói atrás de um balcão de secos
e molhados, encantando a freguesia com as histórias que contava no entremeio das vendas,
escorado no mundo das histórias que lera e que faziam variantes os horizontes contritos da gente
do povoado, massacrado pelo peso do real, sem atalho e sem solução. Cedro era muito jeitoso
com o lado doce das coisas e aplicou esse jeito no seu jeito de vender e no dom de convencer das
necessidades inda quando inexistentes ou falsas no sentido mais estoico. Literalmente tentava
encantar os clientes e nisso foi pioneiro. Mas do resto não conhecia, não nasceu para negócios,
organizar transações e administrar escassez. Muito antes pelo contrário. Tanto assim que Nemélio
deixou com ele só a conta doméstica e o mister vendedor da loja do povoado, reservando para si
a incumbência do resto e que era o principal dos domínios espalhados.
Assim, como há muito vinha querendo, o negociante pôde viajar mais amiúde e se dedicar
um pouco mais ao miolo dos negócios, tais como os interesses imobiliários na capital, os negócios
no atacado e o comércio de diamantes. E deu certo pois com esse pequeno arranjo os negócios
dobraram. Treze anos de crescimento e riqueza. Mas para o jovem Cedro correram assim sem
muita variação e sem nenhuma nova janela para espalhar o olhar curioso que vinha acumulando
desde sua orfandade e sua decisão, silente e natural de evitar beber do cálice das bebidas mais
amargas, enquanto tivesse jeito. E ele acreditava que jeito sempre haveria.
Um dia a coisa se encaixou com exata precisão e foi aí que a vida de Cedro Cedrus começou
a mudar, seguindo o destino que já estava marcado, sem ajuda de ciganos ou de outros adivinhos.
Como é comum acontecer, tão marcante mudança resultou de um singelo ocorrido que, se não
causasse o que causou, não teria tido registro. Falo de um jeito na coluna que colocou o mais
antigo e leal criado da família Nemélio numa condição meio que entrevada, obrigando-o a conter
os movimentos. Foi para trás do balcão restrito ao atendimento, deixando à juventude dos vinte
anos do rapaz os sacolejos da entrega das compras dos clientes na boleia de uma claudicante
carroça, escorada e rangente. Nessa função das entregas Sucupira Nemélio não queria qualquer
um, pois tinha tido problemas de extravios de mercadorias sem ter podido apurar com precisão o
doloso ou culposo da intenção embutida no sumiço. Assim, confiou ao filho o que confiança
pedia.
Mas naquela segunda-feira não havia nenhuma entrega programada e os dois estavam na
venda, meio sem o que fazer, ajeitando prateleiras e espantando poeiras. Foi aí que o mordomo
do marquês dos Choupos entrou, soberbo no seu paço desfilante das estradas e das ruas europeias,
tão cheias de boulevards, de civilização e encanto. O jovem Cedrus nunca o tinha visto, mas havia
ouvido falar. Adiantou-se para atendê-lo, pois sabia da fama do marquês, notório consumidor de
aquém e além mar. Era rara e bem-vinda aquela aparição. As compras do nobre senhor eram
espaçadas. Quando feitas, contudo, compensavam a raridade pelo tanto e qualidade. Mas o
melhor: pagas com belas moedas de ouro que valiam pelo peso muito mais que pelo cunho. Eis
pois a razão do interesse justificado de Cedro Cedrus, centrado na sorte daquele dia. Afinal, ainda
que um tanto desligado do pecuniário, ele era sócio e não era burro. E também naquela vez a
compra foi generosa. O mordomo puxou uma lista de molhados entremeada de secos, coisas
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básicas que sabia ali encontrar de imediato para repor a despensa do trivial na Casa dos Choupos.
Exibiu outra lista de coisas que teriam que ser trazidas da Europa e entregues em dois meses, mais
tardar. Não haveria problemas pois “Nemélio & Cedrus” também prestavam esse serviço de
importação com base nos negócios da capital e representante na Europa.
Conferidos os itens da lista, tudo podia ser fornecido e a transação foi ligeira. Ao final, a
bela compra esperada e o compromisso de um pagamento mais belo ainda, em luzentes e pesadas
moedas douradas, assim que a compra fosse entregue. Tudo isso fez nosso herói acompanhar o
freguês até sua montaria e se despedir dele com correta educação mostrando também a fidalguia
que tinha de berço, raiz antiga dos Cedrus que a decadência não anulou. O mordomo pareceu
gostar do tratamento, respondendo do mesmo jeito. O jovem voltou à loja quase saltitante,
levitando na vantagem da feliz transação. A exigência de que a entrega da mercadoria local fosse
feita antes do anoitecer do dia seguinte foi aceita sem ressalvas, mesmo porque, com ela vinha o
pagamento, a parte melhor do trato. A entrega da encomenda, a duas léguas do povoado, seria
como que uma pequena aventura para o rapaz. Ainda mais pela chance de conhecer o lendário
solar do marquês dos Choupos e todo o maravilhoso Vale das Santas Delícias, onde nunca havia
ido apesar da encolhida distância que o dito estava dali. Assim, incontinente, se pôs ele a carregar
a encomenda para a entrega acertada, antes do mais tardar, na tarde daquele dia.
AUSPICIOSO NEGÓCIO
Ninguém sabia muita coisa sobre o marquês dos Choupos. Aliás, ninguém sabia nem como
ou quando ele veio parar ali naquele ermo do mundo, transplantando os seus choupos ancestrais,
por cima do oceano. Diziam que ele provinha de antiga família de fidalgos, gloriosa no tempo dos
reis e arruinada quando eles também o foram por conta da revolução que iluminou a razão do
mundo lavando com sangue a poeira da tradição. Devia haver um pouco de fantasia nesse
assentamento, mas é fato que ninguém se lembrava de quando o solar tinha sido construído e se
fora ele o seu primeiro habitante. A imponente construção sempre estivera ali no fundo do vale
verde, duas léguas do chapadão estéril onde se erguia o povoado. O Vale das Santas Delícias ficava
ao norte. Seu verdejante frescor era um estranho contraste com a aridez do chapadão, agravado
ainda mais com a devastação da floresta do vale do lado sul, tragada pela faina das serras, serrando
suas madeiras. Ali, no meio do inverossímil vergel, nascia o regato que abastecia as necessidades
do povo de Deserdados, mas a capitação era feita longe da propriedade do marquês, água abaixo.
Quem quisesse poderia contemplar a edificação de longe com suas torres de pedra, seus telhados
abruptos, seus vitrais coloridos e seu harmonioso excesso de janelas, altas e delgadas, enfileiradas
como sentinelas guardando um mundo diferente. Mas, impossível uma aproximação. Toda a
propriedade era cercada de uma faixa de mata densa de árvores intricadas e sortidas, irmanadas
no seu mister defensor, reforçadas de espinheiros e traiçoeiros peçonhentos. Para reforçar tudo
isso, um muro de pedras abraçava protetor o solar e seus jardins setecentista, raros e delicados,
jardinados pela própria natureza no seu poder criador sem igual. Nada crescia mais do que devia,
nada secava e havia em tudo harmonia. E mais, no quesito da defesa uma matilha vigilante, cujos
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uivos incessantes, a qualquer hora do dia ou da noite, intimidavam os curiosos e desacorçoavam
os atrevidos. No máximo, por pura coincidência, alguém podia cruzar com o marquês cavalgando
casualmente ao sol ameno da tarde terminal nos extremos da propriedade, acompanhado de suas
cadelas francesa, brancas e delgadas: Juliette e Justine.
E foi com elas que Cedro Cedrus deu primeiro quando cruzou o portão do muro de pedras
e entrou nos jardins que cercavam o solar, trazendo a encomenda do marquês dos Choupos. A
matilha não uivou e nem apareceu, como se tivesse recebido uma ordem clara nesse preciso
sentido. Só as cadelas dóceis e alegres para recebê-lo. Seria aquele seu primeiro encantamento de
uma série deslumbrante que estava começando e duraria alguns anos.
A vinte metros da entrada, sobre o calçamento pedregoso, estava o mordomo provedor,
perfilado a esperá-lo. Sentinela parecendo um general. Fez sinal para que parasse, subiu na boleia
sem ser convidado e o guiou por uma viela lateral, procurando os fundos do amplo solar. O belo
par de cadelas não os acompanhou, seguindo garboso e ligeiro pela alameda principal ladeada de
choupos eternos. A carroça sacolejou mais cinquenta metros sobre um calçamento pior do que o
primeiro mas ainda assim transitável, melhor do que as vielas do povoado. A exuberância dos
jardins, mesmo os que margeavam aquela estrada secundária, chamou a atenção do rapaz. Nunca
havia visto nada tão farto de verde, tão enfeitado de flores, tão cheio de uma fina natureza. No
sítio do povoado, tão perto, arbustos carrasquentos, capim ralo e poeira é que era o natural.
Também nunca tinha visto uma habitação tão grande e majestosa. E concluiu, sem esforço, que
um mundo melhor efetivamente existia como tinha tido notícia, além do que, até então tinha
podido enxergar. Conheceu a casa pela porta da cozinha, mas nem por isso restou menos
encantado. Ao contrário, ficou fortemente compelido a conhecer o resto. E pensou em arranjar
um pretexto para fazer isso assim que concluísse a entrega. Ajeitou rapidamente os caixotes e
pipas nas entranhas escuras e largas da despensa. Mas não teve a menor oportunidade, a
mercadoria ia sendo conferida a medida em que cada coisa era baixada e assim que o último
volume foi ajeitado o mordomo fez o pagamento das moedas de ouro prometidas, mais uma a
título de generosa propina. Despachou Cedro Cedrus, acompanhando-o de volta até o portão da
saída e se despediu com um gesto ininteligível. O rapaz se afastou lentamente contemplando a
propriedade por sobre o ombro. Reparou nas figuras de leões que adornavam dessimetricamente
a verga externa do portão. Rumou para casa num trote preguiçoso pensando em leões
guarnecendo entradas de misteriosos solares. Prometeu a si mesmo que em breve voltaria. Vamos
ver se cumpriu.
PÍFIO ARDIL
No caminho de volta para o arraial, depois da entrega da encomenda do marquês dos
Choupos, Cedro Cedrus ia desfiando o seu encantamento e ainda mais quando atravessou o
descampado desencantado reparando no contraste entre a pedra e o vergel. Passou a pensar numa
maneira breve de voltar àquele assombroso lugar, tão diferente da mediocridade geral que tinha
cercado a sua vida até então. Volta e meia girava a cabeça para trás para admirar aquela rara
paisagem, excepcional unicidade diferenciando num distrito de coisas tão iguais, nas pessoas, nas
suas obras e na natureza. Tudo ali o havia impressionado vivamente: o magnífico solar, seu
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misterioso dono que sequer havia visto, o verde e cores mais dos jardins, a majestade das galgas
cadelas, o inverossímil mordomo provedor. Sentiu que muito das coisas interessantes do mundo
estava encerrado ali, tão perto e tão longe. À medida que ia se afastando sentia uma certa agonia
pela falta de opção para forjar um retorno tão logo fosse possível. Carecia vencer a lonjura artificial
daquele isolamento pois a distância real era curta, fácil de vencer, seguindo palmos de poucas
léguas, montado ou mesmo à pé. Mas havia as barreiras do exílio voluntário do marquês. Não
podia esperar uma nova entrega incerta para acessar aquele espaço, ainda mais como mero
entregador: leva, recebe e volta sem nenhuma interação. Além do mais, essa opção não teria
serventia para o motivo que guardava em mente, estável e frequente para se realizar.
Naquele certa aflição, a primeira ideia que teve foi grossa e um tanto imbecil pela
contradição inserida. Pensou numa sutil invasão. Coisa como pular o muro e vencer as defesas do
bem guardado solar, uma a uma. Mas logo desacorçoou-se da ideia pela sua ineficácia e simplória
concepção. Descoberto seria repelido, oculto não teria acesso permanente à alma daquele mundo
que era o que interessava de fato. Pedir simplesmente para ser admitido também seria imbecil,
sendo ele um ninguém que estaria tentando romper o exílio do marquês por simples curiosidade,
sem nenhuma densidade.
Trilhou o caminho de volta devagar mas chegou de volta ao armazém ainda sem nenhuma
ideia decente. Desceu da carroça e entrou, encontrando Sucupira Nemélio aflito à sua espera. Mal
pisou na soleira da porta, foi crivado com uma trinca de perguntas sucessivas que se
complementavam numa mesma direção.
- Correu tudo bem? Fez a entrega? Recebeu as moedas como tinha sido combinado?
O rapaz estava um tanto distraído. Inda matutava no seu plano e nem ouviu as perguntas.
Apenas enfiou a mão no bolso, tirou as moedas e as despejou devagar na mão grande e ávida que
o velho comerciante estendeu a ele. Não chegava a ser um negócio de impacto no universo dos
negócios da firma no seu portento. Mas moedas de ouro são um fantástico emblema de progresso
e, por isso, fascinam através do tempo, trazendo augúrios de sossego e de fartura. Assim, a medida
que as moedas iam pingando na palma encurvada, Nemélio ia abrindo um sorriso alargado, canto
a canto da boca, tocado pelo tilintar do metal sonoro, vil e indispensável. Embora o volume não
justificasse, emborcou uma mão sobre a outra, encerrando o pequeno tesouro. Atravessou o
recinto com cuidado levando a preciosa carga e foi se assentar sob uma escrivaninha que havia
atrás do balcão, ainda cheio do sorriso. Aliás, aquele sorriso atravessaria a noite e boa parte da
manhã do dia subsequente. Esparramou as moedas lentamente sobre o móvel e começou a contálas, devagar para estender o prazer daquela tarefa doce e da qual ele se julgava pleno merecedor,
pelo trabalho e o tino. Cedro Cedrus se assentou numa ponta do pesado balcão, balançou as
pernas, olhou os bicos das botinas um instante e depois ficou observando a contagem triunfal,
mas sem maior interesse.
O comerciante contou as moedas, repetiu a contagem e constatou que a havia uma moeda
a mais do que o combinado.
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- Parece que o mordomo do marquês mandou mais dinheiro do que devia - comentou sem
tirar os olhos, boca e bochechas sorridentes de cima das moedas.
Na verdade a quantia estava certa. É que o rapaz, absorto na maquinação do seu plano,
havia se esquecido de separar sua bela gorjeta, apartando-a do monte de moedas e a retendo
consigo, como era seu direito. Mas esse descuido foi feliz e estalou na sua mente como um chicote
inspirador. Inesperadamente, bateu-lhe uma ideia magnífica para o plano de voltar à casa do
marquês com alguma brevidade. Exatamente por isso não disse nada sobre a correção da
contagem. Seu silêncio embutia, enfim, a descoberta de um motivo, plenamente justificável e
meritório para sua volta ao Solar dos Choupos. Assim, largou o estágio de gestação da urdidura e
passou para o estágio de ação imediata. Pulou do balcão e deus três largos passos na direção do
comerciante. Olhou o monte de moedas: ali estava o plano perfeito e já quase acabado. Poderia
voltar sob pretexto de devolução do dinheiro pago em excesso, ainda que tal não houvesse. Bastava
um pequeno arranjo, sem danos nem prejuízos, mente aliviada e coração limpo.
- Se é assim, acho que devo voltar ao solar e devolver o troco – disse, transparecendo uma
certa alegria, injustificada aos olhos do seu interlocutor.
Como não poderia deixar de ser, Sucupira Nemélio concordou de pleno com a decente
proposta, ratificando o plano sem saber a extensão e a intenção embutida. Assim, não houve muita
conversa e combinaram que no dia seguinte, logo pela manhã, o dinheiro excedente seria
devolvido, pois quanto mais rápida a devolução maior o mérito da honestidade da ação. Bons
tempos aqueles! Cedro Cedrus gastou um tempinho mais, lapidando a verossimilhança do plano.
Sendo o tal excesso sua gorjeta conscientemente recebida das mãos do próprio mordomo, claro
que não havia propriamente dinheiro para ser devolvido. Desta forma, teria que recorrer às suas
próprias economias para gerar uma quantia extra, excedente. O investimento certamente
compensava, mas aí havia um problema. A mercadoria e a própria gorjeta foram pagas com
moedas únicas de reluzente ouro e as suas ditas economias eram constituídas de moedas ordinárias
de ligas de cobre, escuras e ensebadas pelo manuseio dos anônimos do norte e do sul do pobre
país onde havia nascido. Era de fato um problema, mas não teve que perder muito tempo com
ele. Só tinha uma coisa a fazer: tentar comprar uma das tais moedas de ouro do pai adotivo e usála na devolução. De sorte que ele juntou uma porção aleatória das suas economias e fez a proposta
alegando incontida fascinação por aquelas moedas raras e brilhantes, uma das quais gostaria de
guardar para lembrar aqueles tempos felizes e a qualidade do negócio de que esteve à testa. O
resultado foi melhor do que o esperado. Tocado pelo seu sensibilíssimo coração de pai retardatário
mas presente, o velho Nemélio se encantou com aquela doce argumentação a propósito do
fascínio das moedas e simplesmente doou ao retardatário filho uma das moedas, a título de
singelíssima antecipação de herança. Assim, Cedro Cedrus formou um conjunto de duas preciosas
moedas para devolver o que não era devido, obtendo com elas a quantia mínima para garantir a
credibilidade do plano que urdira.
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E foi com a certeza de tê-las seguramente guardadas no fundo do bolso que, no dia seguinte
bem cedo, tocou para a casa do marquês. Ia ansioso mas, mesmo assim, trotava devagar, ainda
pensativo. Tinha um motivo para voltar, mas faltava o mais importante que era um motivo para
ser admitido no seio naquele berço de fascínios e de mistérios, de forma permanente. Esse sim,
era um desafio magnífico a reclamar seus talentos guardados à espera dos horizontes do mundo.
Não tinha nenhuma ideia quanto a esse ponto vital, mas seguia resoluto, contando um pouco com
a sorte e a energia do desejo, no seu estado mais puro.
Seguiu a estrada poeirenta e quente, abafada por um ar imóvel, como era de costume nos
ermos do Chapadão de Deserdados. Ao começar a suave descida para o Vale das Santas Delícias
o clima mudou como por encanto e bateu uma brisa fresca, um hálito limpo e perfumado de
coisas mais caprichadas no seio da natureza. Naquele ponto a estrada já não tinha poeira e virava
um leito de pedregulhos soltos entremeados de um musgo verde escuro viçoso. Mais à frente
começava um lajeado de pedras redondas, tão juntas e tão iguais na forma e no tamanho que
parecia obra de um meticuloso arquiteto, executada por um não menos meticuloso pedreiro. Esse
piso caprichoso passava debaixo do arco do portão e ia até o pátio frontal do Solar dos Choupos,
abraçando uma fonte ruidosa de águas altas e vaporosas. Magnificente harmonia de ocres, de
brancos e de verdes impressionando as retinas com matizes variados conforme o dia avançava.
Como não podia deixar de ser, o jovem Cedrus encontrou o portão fechado, resolutamente
fechado. Os leões de pedra estavam lá, sustentando a verga do portal de cantaria, rompantes e
atrevidos. Mas, não obstante a ameaçadora figura, não faziam mais do que guardar o imponente
brasão dos marqueses, pois quem impedia a entrada era mesmo o grosso e alto portão de ferro,
bruto e seguro na sua serventia de barrar os intrusos de toda qualidade.
Mas aquele robusto obstáculo não podia ser o ponto final da urdidura do rapaz. De sorte
que ele apeou da sege com um pulo aguerrido e, mantendo a rédea longa de couro numa das mãos,
se aproximou do portão. Colou o rosto contra as ferragens trabalhadas em volteios e pontas de
liz, já um tanto carcomidas pelos óxidos vorazes e espiou por entre as grades. Tomou um susto
ao dar de cara com o mordomo do marquês, surgido exato do nada e já postado há menos de um
metro, bem à sua frente, como se quisesse obstar que ele divisasse os jardins cortinados de sol e
ainda frescos pela brandura da manhã. Com certeza o onipresente homem já devia estar ali a sua
espera e disposto como um aguerrido templário. De fato, das janelas mais altas da fachada do
solar não era difícil avistar a descida da estrada. Muito provavelmente alguém devia ficar ali o dia
todo montando guarda para prevenir a entrada de intrusos como ele. Assim, sua aproximação não
passou despercebida. Tanto faz - pensou - juntando um pouco de ânimo para romper os acidentes
do percurso.
- O sr. deseja alguma coisa? – perguntou o mordomo num tom de voz pouco sutil quando
ao incômodo da presença de quem não era mesmo esperado.
A resposta veio um pouco assustada, tímida, sem autoridade e carente de qualquer poder
de convencimento:
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- Desculpe-me, eu preciso falar com o marquês sobre um equívoco que houve no
pagamento da mercadoria que eu entreguei ontem.
O mordomo não gostou de ouvir aquela resposta pois tinha absoluta certeza de que o
pagamento fora feito corretamente. Sentiu que ali podia haver algum tipo de artimanha. Mas não
mostrou irritação. Ao contrário, abrandou a voz e caçoou da ingenuidade do rapaz com um sorriso
discreto de ironia. Alguns segundos mais e partiu para reduzir o assunto ao que ele era de fato, ou
seja, um banal caso doméstico a pedir um desfecho rápido e asséptico.
- Pode tratar desse assunto comigo mesmo.
Era tudo o que Cedro Cedrus não queria ouvir, mas sabia que ouviria, dadas aquelas
circunstâncias tão desafortunadas a catucar-lhe as costelas, inteiramente rendido. Apertou os
lábios com força, olhou a cara sutilmente sorridente do mordomo e permaneceu calado, quem
sabe à espera de uma ideia milagrosa que pudesse tirá-lo daquele fiasco iminente.
O mordomo não esperou que ele falasse mais coisa alguma. Enfiou a mão no bolso, tirou
uma moeda de ouro e esticou o braço através da grade do portão, fazendo-o dar um passo para
trás meio que intimidado. Com a voz ainda mais branda o homem alargou a ironia do riso e falou.
- Eis aqui o que corrige o tal equívoco no pagamento, qualquer que ele tenha sido.
O rapaz ficou perplexo sem saber o que fazer. Tinha se preparado para devolver e não para
receber. Permaneceu imóvel passando os olhos da cara do mordomo para a moeda e vice-versa.
Depois de algum tempo nessa situação sem achar solução, finalmente pegou a moeda e a colocou
no bolso. Esta foi se chocar indiscretamente com as outras duas que lá já estavam, tilintando de
forma um tanto constrangedora. Ao ouvir o som o mordomo abriu mais ainda o sorriso, deu as
costas e se afastou devagar e sem mais nada dizer.
Cedro Cedrus se sentiu humilhado. Pensou em conhecer o marquês na intimidade e nem
passou do portão. Aliás, nem conseguiu dizer o que queria. Balançou entre se abalar dali apressado
ou ficar um pouco mais à espera do inesperado. Colou as costas no portão inexpugnável,
escorregou devagar e se sentou no chão desanimado. Enquanto isso o mordomo se afastou sem
olhar para trás para confirmar o fracasso do atrevimento. Apesar do incômodo da posição ali ficou
refestelado como se buscasse descansar de uma longa jornada. Não foi bem assim, mas assim se
sentia, carecendo de juntar um pouco de ânimo e voltar para casa, arrastando o rabo entre as
pernas. Pior era o dia banal de trabalho que ainda tinha pela frente. Falta mágica nesse mundo,
falta a chave do prazer, pensou, desconsolado.
Mas eis que o inesperado esperado acabou aparecendo e fez o martírio do nosso herói ter
enfim um refrigério. Veio sob a inusitada forma de saliva fria e pegajosa escorrendo pelas dobras
da orelha, inesperada e nojenta. Foi o segundo susto do dia e, desta vez, literalmente pelas costas.
Ao sentir aquela estranha lambida de língua grande, lixosa e grossa o rapaz deu um pulo se afastado
da grade do portão de onde partia o ataque sorrateiro. Ali estavam as duas cadelas do marquês,
dóceis e amáveis olhando para ele com as armas do crime pendendo vibrantes das bocarras
pingantes. Refeito do susto, sorriu satisfeito, enfiou a mão pelas gretas do portão e afagou os
animais que mostraram gosto nas carícias e retribuíram com as lambidas de praxe, mas desta vez
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em lugar mais educado e contando com a aquiescência do acarinhado. Afinal eis um começo,
pensou, recobrando a animação e saindo do zero. Poderia ficar ali algum tempo curtindo os
animais em cima da sensação de que afinal conseguira entabular relação com alguns seres vivos
que gravitavam em torno do marquês. Mas aquele colóquio não pôde durar muito.
Repentinamente as cadelas se puseram alertas e viraram na direção do solar como se ouvissem
um chamado, inaudível aos humanos. Cedro Cedrus se ergueu e procurou descobrir o que havia
atraído os animais de forma tão imediata.
Maravilhosa surpresa! A vinte metros estava a causa da prontidão das galgas, vestida com
um tecido branco vaporoso e com os cabelos negros presos em coque no alto da cabeça. Parecia
Vênus, uma fada ou coisa assim. Ela veio andando calmamente na direção do portão sem dizer
uma palavra, conduzida pelo ondular sublime das pernas sob um vestido branco, jogadas uma
após a outra, outra após uma com divina elegância. Ao se aproximar Cedro Cedrus pôde se
deslumbrar com o sorriso e com o corpo caprichoso que o tecido leve não queria esconder. Viu
as curvas delicadas dos seios, a planura da barriga, a suavidade das ancas, o negrume da pélvis, a
harmonia das pernas no sentido vertical, a brancura corada da pele. Duvidou. Mas não era um
sonho, era real e cheirava bem, um cheiro verdadeiro de flor. Carregando tudo aquilo a onírica
pessoa chegou a dois passos e encarou nosso herói redobrando o sorriso. O enlevo, como deve
ser com a contemplação primeira de uma divindade, durou não mais do que segundos, breves e
indeléveis. Depois a criatura se voltou na direção do ponto mágico de onde havia surgido, levando
toda a sua divindade de volta. As galgas a seguiram, uma de cada lado formando um corpo de
guarda. Era Gérbera Silente - a favorita do marquês dos Choupos. Tão favorita que só tinha ela.
Cedro Cedrus voltou para casa maravilhado. Não havia alcançado o seu intento precípuo,
mas tinha tido uma bela compensação: uma visão divina e uma moeda extra de ouro no bolso,
somando três raros exemplares. Lembrou do riso irônico do mordomo e achou justo devolver a
insolência. Gargalhou gostoso e debochado, fazendo ecoar no vale o bem estar que estava sentido
naquele justo instante. Tinha sido quase por acaso, mas foi ai que incorporou o prazer da esperteza
na sua cesta de gozos. Tinha sido o primeiro e também seria o último, muitos anos depois.
MARAVILHO MUNDO VELHO
As criaturas humanas foram criadas por um deus hedonista risonho e obeso. Teve ele o especial capricho
de dotá-las de refinadas capacidades para desfrutar do prazer e do deleite e foi nisso que os diferenciou dos
animais. O tempo de permanência dos seres humanos nesse mundo representa apenas a reserva de tempo
que lhes foi concedida para desfrutarem das maravilhosas capacidades que possuem. É esse o sentido de
viver.
Esta frase estava gravada numa grande placa de bronze colocada no alto do vestíbulo do
solar dos Choupos e expressava a essência da filosofia de vida do marques. Cedro Cedrus tomou
contato com essas ideias, já nos primeiros dias em que começou a frequentar o solar do Vale das
Santas Delícias. Elas passaram a exercer enorme influência sobre ele ao longo da vida, como já
falamos um pouco. Mas não causaram tanto impacto no começo, justo é dizer. Talvez nem tivesse
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prestado muita atenção, tão encantado que estava com a sua admissão, pura e simples, naquele
círculo radicalmente fechado, concentrado nas coisas mais aparentes que lhe fartavam os sentidos
mais banais sem se preocupar com as essências. Foi aos poucos que ele mergulhou nas máximas
do marquês, fez as suas seleções e as incorporou ao seu projeto de vida. Está certo que a forma
delicada com que as ideias foram passadas da primeira vez, e repassadas algumas vezes depois,
pesou na influência.
Mas o que pesou mais no começo foram mesmo as delícias que escapavam de Gérbera
Silente por onde quer que ela fosse e que ele queria desfrutar a todo custo, as abstratas e as
concretas. Nada mais eficaz do que a teoria e a prática conjugadas para formar um bom aluno.
Mas também não devemos nos esquecer dos inocentes saraus ao ar livre e das iguarias da mesa
sempre posta, sempre farta e variada, a adornar a selvageria da fome tornando-a doce e sofisticada.
Santo jardim de delícias.
A influência do marquês, a bem da verdade, foi marcante mas, como dito, não foi absorvida
de uma vez, nem naquele lugar. Nosso herói até teve que contar com o correr da idade para evoluir
a base de alguns conceitos, entendendo, só mais tarde, o princípio da relatividade que, ao tempo
do seu aprendizado, já estava contaminando os princípios hedonistas do marquês. Sendo justo à
fidelidade aos fatos, devo dizer que esse relativismo veio do envelhecimento do próprio marquês,
pois à medida que suas capacidades físicas iam decaindo, mais platônico ele ia ficando, levitando
na beleza muito mais do que imergindo na orgia. Aliás, morreu tranquilo e sereno, embevecido
com a glória dos resplendores de Deus, embora O tivesse tentado negar a maior parte da vida.
Uma santa decadência, com certeza.
Toda a aventura que fez do nosso herói, o herói que resulta ser nesse registro; começou
numa tarde pachorrenta. O dia deixo de dar, pela absoluta irrelevância que tem o calendário nesse
nível de detalhe. Mas, justo na tarde desse dia, estava ele no armazém do pai, sonolento, batendo
os olhos baixos, fingindo conferir umas notas de compras, assentado na escrivaninha, por detrás
do balcão comprido, escuro grosseiro, de madeira trabalhada com desleixo. Naquele estado e
naquela posição não viu quando o mordomo do marquês ocupou a soleira da porta sem fazer
qualquer ruído. Quem percebeu a chegada primeiro foi Sucupira Nemélio que, de um dos lados
da entrada, em cima de um tamborete, conferia as prateleiras, arredondado o inventário do
estoque, como sempre fazia com grande excesso de zelo e imensidão de avareza. O comerciante
estranhou e se preocupou com a visita. Tinha ficado sabendo que o mordomo vinha fazendo
perguntas sobre seu filho à gente do povoado. Também pouco tempo havia corrido desde que ele
tinha vindo com uma extensa lista de compras. Tudo já tinha sido entregue, inclusive a parte dos
importados. Na verdade, fazia menos de três meses, quando o normal seria uma compra por ano.
Assim, a visita era mesmo estranha. Mas, claro, como bom comerciante que era, para ele um bom
cliente vinha sempre em primeiro lugar e entrava quando quisesse. Desta forma, desceu cauteloso
do banco e se adiantou para cumprimentá-lo, saudando sua vinda, extemporânea em tudo. Não
conseguiu seu intento pois o visitante o ignorou inteiramente. Nem entrou no recinto. Apenas fez
um gesto, chamando Cedro Cedrus com um sinal de mão, vigoroso e um tanto arrogante. Depois
girou rapidamente o corpo esquálido e deixou a soleira rumo à rua. O rapaz, que já havia
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espantado a preguiça com a surpresa da visita, se pôs de pé e olhou o pai adotivo com uma
interrogação estampada no semblante, já agora bastante mais animado, vencida a lerdeza do
cochilo. Nemélio fez um gesto positivo liberando o chamado, encostou-se no balcão e aguardou,
curioso mas sem fazer previsões. Caso as tivesse feito, com certeza erraria, por falta de referência.
É que nem ele - nem ninguém - podia imaginar que o assunto da aparição da figura singular do
mordomo do marquês era a entrega de um convite raríssimo. E isso Cedro Cedrus não escondeu
do seu caro protetor, revelando o conteúdo, assim que retornou da conversa reservada e rápida
que tinha acontecido num canto do alpendre. Simplesmente ele estava sendo convidado para
visitar o Solar dos Choupos em dia e hora aprazíveis: uma manhã de domingo.
A princípio
o bom comerciante não entendeu muito bem aquela inusitada situação, mas logo se alegrou com
a raridade do fato. Até se tornou conivente, encantando-se com a deferência. Combinaram sigilo,
temendo uma onda de cochichos e maldades já que todo mundo estranhava o marques, pelo seu
isolamento, o mistério dos seus hábitos e as velhas falações. Não ele, com certeza, pois tinha lá
seus puros interesses no trato com o marquês. Aliás um fidalgo de raízes europeias, do velho
tronco dos Choupos: incontestável nobreza. Talvez tivessem enxergado no jovem algo muito
especial. E isso certamente ele era. Por isso mesmo o trouxe para dentro da sua casa, entronandoo como o filho que não teve, por mais que tivesse tentado enxertar sementes nas entranhas
petrificadas da esposa, santa e dedicada, contudo, deficiente na cama, dificultando tudo pela falta
de estímulo. Mas o especial que pesava nesse caso, nosso puro Nemélio não tinha imaginação.
Isso, todavia, não põe demérito nos outros predicados do rapaz que foram reconhecidos de forma
tão sutil e tão cheia de acasos.
A manhã do domingo do convite raiou, tendo o sábado precedente lhe dado o lugar como
tinha que ser no moto do calendário. Nosso herói não dormiu mal nem acordou cedo. Ao
contrário, repousou com toda a serenidade como faz um guerreiro na noite do dia em que venceu
a batalha. O convite não marcava hora e ele não queria chegar muito cedo como um paspalho
incontido que mal tinha podido esperar a chegada do momento.
Mesmo aos domingos, antes de ir à missa, Sucupira Nemélio dava uma passada no barracão
de mercadorias para conferir se tudo estava certo. Verificava sinais de arrombamento nas portas
e tramelas e sinais de atrevimento de roedores nos sacos de cereais. Examinava buracos no teto e
infiltrações nas paredes, numa rotina banal, mas essencial à tranquilidade do descanso do domingo.
Naquela manhã em particular ele havia quebrado essa rotina. Reteve-se à mesa do café um pouco
mais, esperando que o filho adotivo descesse para estarem juntos. Estava curioso em saber o
motivo do inesperado convite do marquês dos Choupos. O rapaz não demorou a descer e ficou
satisfeito de encontrá-lo à sua espera pois também tinha coisas que desejava saber. Queria saber
mais sobre a misteriosa figura do marquês, antes de se aventurar desprotegido em seus domínios.
Conversaram, cada um tentando matar sua curiosidade com o outro. Mas nem o jovem sabia
muito bem porque estava sendo merecedor da honraria do convite, nem nosso bom comerciante
sabia muito sobre a vida do nobre dos Choupos. Aliás, ninguém por ali sabia. A única ligação
entre a vila e o solar, eram exatamente as vindas do mordomo para as compras esporádicas de
mantimentos. E nesses contatos não havia muita conversa, além do comercial. Pairava mistério,
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sempre foi assim e, até então, não precisou ser diferente. De sorte que, ao final do colóquio, um e
outro permaneceram na santidade das suas ignorâncias e foi com elas que um partiu pro sacrifício
sacro da missa e o outro partiu para os mistérios excitantes do solar, cravado majestoso, bem no
centro imaginário de um vale de delícias.
Nosso herói seguiu num trote indolente e descompromissado,
pronto para um domingo, em tudo especial. Queria ter tempo para serenar a própria ansiedade,
convencendo a si mesmo de que merecia aquilo de alguma maneira. Vestido todo de branco,
trazia um pouco de uma aura de noivo e era assim, talvez, que se sentisse de fato, meio entre o
receio e o prenúncio do gozo. Tudo correria maravilhosamente bem. Tanto que Cedro Cedrus só
estaria de volta um par de dias depois daquele dia faustoso, tempo em que o velho Nemélio muito
se assustou. Mas teve que aquentar pois notícia não houve nem havia como obter. Mas no fim
tudo se acertou, mais para o filho do que para o pai, todavia.
A chegada no solar foi tranquila. O rapaz encontrou o portão aberto e os leões de pedra
mansos como nunca. Cruzou o limiar devagar esperando uma aparição repentina do mordomo,
sorrateiro guardião, atento e extensivo nos quatro cantos de entre muros da vasta propriedade.
Mas, alguns metros adiante, o que primeiro encontrou foram as duas cadelas, brancas e esguias;
correndo ao seu encontro. O cavalo se assustou com os animais e quase jogo-o ao chão. O
incidente fê-lo se dar conta de que poderia estar montando um indesejável intruso, equino e
obtuso. Resolveu então apear e seguir caminhando, deixando a montaria presa num galho de
árvore, suarenta, faminta e inútil para o resto do dia, como o quadrúpede que era. Seguiu pisando
firme o solo lajeado da alameda ladeada de choupos vigorosos e impecáveis, acompanhando as
duas cadelas que pareciam servir de guias instruídas e devidamente autorizadas para formar um
cortejo. Estava exultante de ter voltado àquele lugar, ainda mais de modo tão favorável e nobre.
Já havia trilhado uma
centena de metros quando Gérbera Silente surgiu de entre duas colunas espessas de ciprestes.
Trajava o mesmo modelo de vestimenta de quando a viu pela primeira vez, leve e diáfana, em cor
suave, contrastando com o verde forte das ramagens e impondo a sua magnificência humana sobre
a natureza. Ofereceu a mão e ele que a tomou com gentil e embargado encanto. Seguiram assim
mancomunados e completos, inserido um no outro em tão curto espaço de tempo. Seguiram a
sequência do caminho que ia dar numa fonte circular de pedras, cercada de muretas baixas
adornadas com coruchéus e festões de escura cantaria talcosa, antigas e nobres, trazidas de longe
para enfeitar.
Lá estava o marquês dos Choupos absorto na leitura de um livro, sob a sombra de uma
barraca de tecido grosso amarelo, cercado se sucos e iguarias tão coloridas que ao jovem causaram
dúvidas se eram enfeites ou comestíveis. O anfitrião convidou-o a se assentar e lhe estendeu uma
das travessas daquelas coisas coloridas dirimindo a sua dúvida quanto à serventia das mesmas.
- São ao mesmo tempo uma festa aos olhos e ao paladar, multiplicando o prazer – disse o
marquês amavelmente.
Cedro Cedrus aceitou a rara oferenda, sorriu e ficou aguardando a próxima iniciativa do
marques, enquanto degustava a iguaria devagar, mostrando fineza no trato. Ele, porém, apenas
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voltou à leitura, deixando o convidado um tanto constrangido. Ainda mais assim se sentiu, pois a
moça deixou-os a sós e se afastou sem dizer nada, o que, aliás, era uma das suas marcas. Aquela
situação durou perturbadores quinze eternos minutos, tempo em que nosso herói gastou lendo e
relendo o dorso do livro que o marquês sustentava adiante do rosto: Justine ou os Infortúnios da
Virtude.
Findo esse tempo de penosa passagem o nobre senhor, com toda a nobreza da sua senhoria,
fechou o livro, colocou-o sobre a mesa e finalmente falou. Era uma simples saudação, curta e
direta mas maravilhosa no conteúdo, melhor do que o esperado.
- Meu caro jovem, olhe à sua volta. Este é o Solar dos Prazeres. A casa libertina de adoração
ardorosa aos desejos refinados. Você teve o privilégio de ser escolhido para provar das
coisas deste mundo raro.
Dito isso se levantou e, girando o corpo devagar, olhou em volta de si mesmo como se
tentasse contemplar o mundo de que falava. Mas esse não era propriamente visível. Depois se
deteve examinado o semblante do jovem e continuou.
- Mas para ser efetivamente admitido você terá que mostrar capacidade de entender que
mundo é esse de que eu falo.
Cedro Cedrus ouviu aquelas palavras absolutamente extasiado, e isso já era um prazer, mal
tendo começado aquela aventura. Ser admitido no solar do marquês era tudo em que vinha
pensando nos últimos tempos e nem tinha chegado a definir exatamente o que esperava encontrar
ali. Nem precisava ter ouvido promessas de prazer mas elas redobraram o entusiasmo.
Ia aceitar de pronto o desafio da admissão, mas nem foi preciso. Isso já estava implícito no
ritual daquela iniciação. De outra forma, nem teria como sair dali sem mais nem menos, pois que,
o marques acabara de revelar o segredo do solar. Uma revelação que podia revoltar as cercanias,
como revoltou o mundo nos tempos da Inquisição e da queima das bruxas. Assim o que se seguiu
da fala do nobre senhor dos choupos, de antigas raízes provenientes da Europa, foi apenas de
caráter informativo, passando as formalidades do processo vestibular de admissão. Das
consequências da não admissão o nobre não falou, mas podemos imaginar que o mordomo do
marquês também fosse versado nas artes do extermínio
Mas, voltemos ao processo da iniciação pela fala do marquês:
- Gérbera Silente irá conduzi-lo até a biblioteca do solar. Localize os livros que acha que
deve ler. Você deverá descobrir as diferenças recônditas entre o amor e o desejo. A
capacidade de distinguir essas diferenças é essencial para a habilitação aos gozos dessa casa.
Se mostrar que é capaz disso será admitido, se não, terá tido a honra de ter podido tentá-lo.
Terá sido, de certo, uma grande honra, mesmo que você nunca viesse ter a oportunidade
de contar a história a alguém.
Assim que o marquês acabou de falar a moça reapareceu, sutil na sua leveza mágica, como
sempre. Ofereceu novamente a mão a Cedro Cedrus, que nem teve tempo de pensar nas palavras
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finais de seu anfitrião. Seguiram em direção à entrada principal do solar. Enquanto caminhavam
o rapaz pensou em perguntar alguma coisa sobre o marquês, sondando melhor o que estava apara
acontecer. Mas desistiu pois, embora a moça volta e meia se virasse para ele exibindo um belo
sorriso de satisfação e simpatia, ele sentiu que não seria adequado estragar aquele momento com
alguma pergunta prosaica de curiosidade leviana. Assim, se contentou em analisar rapidamente a
figura do nobre dos Choupos que, aliás, estava vendo pela primeira vez. Chamava especial atenção
a antiguidade do traje e do penteado. Parecia uma figura pinçada diretamente do século XVIII,
com véstia, calção, meias três/quartos, pescocinho enlaçado numa gravata de seda preta e os
cabelos brancos esticados e presos num comprido rabo de cavalo. Uma figura muito antiga e
respeitável, por certo. E era tudo, por enquanto. Logo poderia conhecê-lo muito melhor, bastava
ir devagar.
A biblioteca do solar estava instalada num amplo aposento do primeiro andar, cheio de
mesas compridas e poltronas macias para os êxtases e fadigas das jornadas de leitura, navegando
as ideias e as imagens como cada um é servido. Estantes de mogno ao natural se estendiam até o
teto e estavam cobertas de livros encadernados em couro, protegidos com zelo para vazar os
séculos. Nosso herói não precisou se perder naquele emaranhando de ensaios e fábulas e girar
atrás da coisa certa. Lembrou-se de imediato do livro que o marquês estava lendo: Justine ou os
Infortúnios da Virtude. Assim, procurou primeiro o marquês de Sade. Depois Epicuro, Ovídio, Omar
Khayyam e o rei Salomão com suas taças de umbigos concupiscentes. Gastou quatro dias
completos na companhia desses nobres cavalheiros e de outros tanto quanto, tentando completar
a contento a sua fascinante tarefa, alternando euforia e cansaço. Nessa jornada uma coisa chamou
a atenção do rapaz: notou que os livros do marquês de Sade estavam autografados pelo próprio e
que ele os dedicava a si mesmo. Mais tarde, depois de folhear muito aqueles livros, notaria que a
caligrafia do autor era extremamente parecida com a do próprio marquês dos Choupos, mas não
perdeu tempo especulando sobre isso, pois já estava convencido da proximidade dos dois.
Ao final da imersão na biblioteca Cedro Cedrus produziu duas laudas e meia e se sentiu
pronto a se submeter ao teste da admissão, como tanto ansiava e se sentia capaz, afinal. Registrou
a produção num pergaminho muito maior do que o tamanho do texto exigia, enrolou-o com
cuidado e enviou ou juízo do fidalgo do solar.
Não deu outra, o marquês abonou a admissão e, mais ainda a aprovaria, a doce musa silente
que era parte fundamental do processo seletivo na parte do desejo e nada se resolvia sem a sua
aprovação. Como pouco se falava do amor naquela casa, pouca coisa se dava a revelar quanto ao
papel daquela preciosa princesa nessa parte. Nem teria cabimento pois o amor é seletivo pela
própria natureza e não se reduz a regras com facilidade. Também ainda era cedo e Cedro Cedrus
tendia, desde então, a não sentir especial atração por essa parte da maçã.
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LA DÉCADENCE
Já na semana seguinte à semana da aprovação nosso herói foi sendo inserido na prática que
era o lado bom de toda aquela afetação. Mas a primeira sessão foi moderada, como devem ser os
princípios. Começou com uma singela degustação de vinhos e carnes tenras, pois é por aí que os
prazeres começam e se temperam, usufruindo das suas tantas alegrias. Depois um sarau refinado
e elegante com leitura de poemas preferidos de uns e outros e as filosofias do marquês, encerrando
o ritual na sua primeira sessão.
E as noites e dias se sucederam num crescendo vertiginoso, visto lento, porém, pela energia
supitante do nosso jovem noviço, louco pelo início dos exercícios do sexo. Compreensível que
fosse assim naquela idade vigorosa em que ele se encontrava. Mas, pura ansiedade contudo, pois
logo na segunda semana já tiveram começo as sessões sensuais, plenas e salutares. Todo um jogo
de luxúria, de carícias sutis, de violações a distância. Também dos tatos, também do gosto das
seivas, também das penetrações, que ninguém é de ferro e, afinal, Gérbera Silente estava ali para
isso mesmo, com todo o meu respeito.
Mas desse jogo – saibam
todos – o marquês não participava, senão observando, satisfazendo-se no puro visual e, às vezes,
até um pouco distraído. Aquilo causou surpresa ao nosso herói, mas ele guardou a estranheza.
Nem podia ser diferente naquele estágio em que estava, quase um estranho ainda naquele
esplendoroso universo, suave, quente e irrenunciável.
Nosso herói passou a frequentar a casa do marques com bastante assiduidade,
compensando o que almejara com ardor e isso foi abrindo a ele as portas do solar, uma a uma.
Praticamente despendia todos os domingos nesse raro lazer de profana sagração, da manhã até a
noite. Nunca foi mesmo de frequentar a missa e por isso Sucupira Nemélio não lhe pedia
explicações pela ausência sistemática do ofício dominical e nem cobrava a companhia perdida. No
geral, não havia prejuízo pois companheirismo havia no essencial e isso satisfazia a velhice do pai
adotivo, sempre cheio de abnegação para com ele.
Como não poderia deixar de ser, foi numa manhã do dia do santo descanso que o jovem
aprendiz chegou perto de entender a ideologia do marques no estágio em que estava, já próximo
do fim da vida. É que a frequência da presença semanal estreitou as intimidades entre o moço e o
velho e predispôs que isso afinal acontecesse.
Eis como se deu: o mestre estava fazendo o seu repasto matinal sozinho à beira do lago
quando Cedro Cedrus chegou. Tentou passar despercebido preferindo a companhia da moça e
das galgas cadelas, trocando carinho com essas fêmeas maravilhosas, ao ar livre, aquecido pelo sol.
Mas o marquês o chamou e o convidou a se assentar e acompanhá-lo na refeição. Comeram em
silêncio alguns minutos. Cabia ao senhor dos Choupos começar qualquer conversação e o rapaz
esperou que isso se desse. E ele o fez, alguns minutos depois. Parecia que havia gasto o preâmbulo
de silêncio pensando com cuidado no que iria dizer. A voz era mansa como de costume, mas ele
parecia cansado e até triste. Essa pífia disposição estampada no semblante passou a fazer sentido
quando ele começou a falar. O marquês abriu a sua alma como não era usual na sua pedagogia,
nem era esperado naquela circunstância tão bucólica, com tanta vida emanando da natureza e
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enchendo o ambiente de paz. Contou que já havia vivido uma vida longa e cheia de aventuras,
sempre mirando o prazer através do desejo. Disse que sempre fora radical nas suas convicções e
sempre procurou viver de acordo com elas. Por conta disso tinha vivido toda sorte de perseguições
e intolerâncias e sofrimentos concretos, encerrado em masmorras. Mas havia vencido todas pela
sua força mental e seu instinto natural e foi com eles que veio dar naquele lugar tão longe da sua
pátria e do seu berço cultural. Revelou que não esperava mais nada além de encerrar os seus dias
como tinha vivido: saciando seus desejos de forma abusiva, sem reprimi-los ou arrefecê-los na
insensatez da austeridade e do comedimento. Sempre tinha achado que o amor estraga o desejo e
sempre procurou se afastar dele. Mas agora, depois de tanto tempo de tenaz perseverança, estava
abalado nas suas crenças fundamentais. Havia se esquecido do lado político da sua pregação que
era de onde devia provir a sua força primeva. Tinha se tornando um velho carente, sentimental e
imbecil. Temia pelo desfecho da sua biografia, tão duramente construída em luta feroz contra a
intolerância e a ignorância dos virtuosos e dos fracos de espírito. Sentia-se frustrado e não era
justo que viesse a morrer assim depois de ter passado quase toda a sua vida saciando os seus
desejos e não ter sentido nenhum enfado.
Depois do inesperado desabafo o marquês se calou e olhou longe como se acabasse de
fazer uma pesada confissão a um austero vigário de aldeia. Deixou uma incômoda interrogação
parada no ar, resistindo ao sopro da brisa fresca da manhã. Nosso herói esperou algum tempo,
desejando a continuidade da revelação prenunciada. Mas o silêncio persistiu e assim continuou até
que o marquês se pôs a cochilar prosaicamente, frustrando a sua curiosidade de aprendiz e
deixando-o um tanto desolado. Levantou-se devagar e se afastou andando de costas por alguns
metros na fé do fim do cochilo e continuação da conversa. Depois se virou e seguiu na direção
do solar. Pensou em procurar Gérbera Silente mas desistiu em seguida. Preferiu vagar pelos jardins
e pensar nas palavras do marquês dos Choupos que acabara de ouvir um tanto desapontado.
Vagou um pouco pelas alamedas mas nem demorou muito para chegar a uma conclusão. Sim era
exatamente isso: o pobre marques dos Choupos, tinha aprendido - há muitos anos atrás - que o
amor estraga o prazer, agora vinha praticando essa equação ao avesso, numa inversão melancólica.
Enfim, o marques da libertinagem, da voluptuosidade, da devassidão, da obscenidade, da
impiedade e da blasfêmia havia se transformado num reles amante platônico, incapaz para o prazer
físico, renunciando ao gozo na degustação da maçã, prostrado na adoração a uma mulher muitos
anos mais jovem. Talvez até tivesse atingido um estágio superior, superando a venal deselegância
dos cheiros, dos suores, dos fluidos. Pelo outro lado, talvez nunca tivesse sido amado na vida e
vivesse expiando os pecados do passado à sombra dessa maldição.
Mas, imperioso assentar, que as revelações da ruína dos lastros do marquês não abalaram
as convicções do nosso herói nem um pouco. Aliás, até penso que ele não teria dependido muito
daquele aprendizado para tê-las formado, pois já havia favorecimento nas sementes que Nigina
havia plantado no seu seio infantil. E, por outra, ele até pode ter se julgado capaz de superar a
maestria do marquês, abalada com o tempo. E sua vida, vivida até o fim com uma certa coerência,
disso pode ter sido uma prova. Contudo, posso assegurar, que nada naquilo – digo, da inversão
do marquês - incomodava o nosso herói no instante presente e ele não perdeu tempo buscando
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aprofundar as explicações ou se afligir por não as ter encontrado. Muito antes pelo contrário.
Mesmo porque, no resto todo o marquês estava certo: o prazer antes de tudo, seja da forma que
for. Cedro Cedrus selecionou as lições do seu preceptor que lhe interessavam e mergulhou nelas
com sofreguidão o quanto pôde, ajudado naquele tempo pela inesquecível Gérbera Silente, sempre
inesquecível e sempre silenciosa, exalando desejos e saciando prazeres especialmente os que
exacerbavam os tatos, os suspiros e os gritos primais. Mas, claro, precedidos da excitação das
expectativas que é a essência da luxúria. Foram os melhores anos da sua vida. Amá-la, contudo,
não pôde. Ficou um vazio no seu aprendizado, na teoria e na prática, mas ele, com certeza, jamais
seria capaz de admitir isso.
NOVOS VOOS
Aos vinte e oito anos Cedro Cedrus achou que estava na hora de cair num mundo mais
distante e virar Angélico. Afinal isso estava marcado nos registros do seu destino e estava lá para
quem soubesse lê-lo com competência, sem precisar ser vate ou adivinho. Significa que para ele
estava no tempo exato de ampliar os horizontes das chances dos prazeres e deixar a casa natal que
já era a segunda e não tinha ainda aquietado a sua inquietude. Já havia passado pelo estágio de
aprendizado no Solar dos Choupos e, naquele particular, apesar das maravilhas e, até por isso
mesmo, já estava alcançando um grau de enfado. Aliás consequência da pasmaceira que o próprio
excesso de gozos costuma exacerbar sintetizando os contrários. Assim, estava precisando de uma
certa reciclagem. E aí começou um novo capítulo, mas diga-se a bem da verdade, mais de suor e
vicissitudes do que de gozos propriamente referentes. Olhando por esse lado, a mudança não teria
sido vantajosa, mas tem muita coisa que compensou. Enfim, assim é a vida e toda mudança traz
perdas e traz ganhos. Contudo, ao recontar a história, relevamos os primeiros e relegamos os
segundos, tão humanos que somos. Não é o caso, pois o herói desse caso, não fazia esses
balanços.
O nome de Angélico lhe calhou. Não pela santidade pois ele não tinha nenhuma, mas
porque logo descobriram que ele era capaz de voar na vertical, como os anjos faziam, descendo
no seu pouso suave, celestial e inverossímil.
Acontece que um dia, depois de tanto tempo e sem mais nem menos, o Circo Espanhol
voltou a Deserdados. Claro que já não havia o brilho do passado e chegou envergonhado e
silencioso como não era o costume naquela atividade espalhafatosa em si mesma. Na verdade uma
funda decadência abria rasgos por todos os lados, na lona, nas roupas e nas almas daquela gente
que devia ser alegre, venturosa e saltitante, mas não era então. Os palhaços não tinham graça, os
animais bravios andavam de pescoço baixo e inspiravam pena e os trapezistas não voavam como
antigamente. Mas a gente do circo - filhos de gente de circo que um dia havia brilhado – teimosa
e persistente itinerava de um lugar a outro, seguindo sua vocação do berço dos pais, avós e mais
toda a antecedência nas folhas, troncos e raízes da genealogia. Sabido é que quem nasce para o
circo não nasce para nenhuma outra coisa que não seja o circo e poucos aprendem as alternativas
do viver, pois nascem fechados na fidelidade do seu sangue saltimbanco.
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Aquela temporada não podia mesmo dar certo visto que, além da triste figura da
Companhia Espanhola, algumas pessoas do povoado ainda se lembravam do passado tenebroso
do circo. Uma flagrante injustiça, pois nos braços da balança, o circo foi causa mais de alegria.
Mas a tragédia houve e não há como relegar. Falo, naturalmente, daquela cena horripilante, do
bárbaro assassinato ocorrido há quase três décadas e dos estranhos acontecimentos que se
seguiram e que já tinham virado lenda na boca dos contadores de casos de Deserdados. Assim,
muitos não viam com bons olhos aquela gente de volta. Cabo Mili, claro, estava entre eles. Mas
não quis reviver aquele passado sem solução, mesmo porque, já estava aposentado, imobilizado
em cima de uma cama, sem ânimo para nada, sofrendo com a dor física e mais ainda com a demora
do passar das horas sem remédio para o seu mal, no escuro da solidão. Ademais não gostava muito
de se lembrar daquele tempo pois dali nasceu muito folclore desairoso sobre ele, que o povoado
contava e ria nas rodas descontraídas, sem hora e sem lugar. Pobre cabo, havia sido um fiel
cumpridor dos mandados do estado e o que ia levar para o túmulo era um maldoso deboche.
Injustas bocas de escárnio, pois quem podia reter um pássaro sem dispor de gaiola?
No geral, era muito contrapeso para a temporada do circo dar algum resultado positivo. De
sorte que muito pouca gente se interessou pelo espetáculo, uns por descaso, outros por indignação
e outros porque os reclames mambembes não despertaram atenção pela falta de conteúdo e a
carência de cores e de luxos. Assim não foi, contudo, com Cedro Cedrus, desperto para tudo que
quebrasse a rotina cochilante de Deserdados. Naquele tempo ele já não era mais frequentador
habitual do marquês dos Choupos pois havia um certo enfado de parte dos envolvidos naquele
projeto incomum. Disso resultava então que ele andava arrastando um perigoso desânimo, letal
para a ansiedade da sua alma. Daí foi tomado de interesse pela passagem bissexta e até acabaria
atado àquela troupe por uns tempos. Mas a motivação que sentiu em aderir ao grupo não foi
devido propriamente a uma atração pela itinerância do circo. Muito menos pelo pífio espetáculo
prometido à gente de Deserdados, que, aliás, ele nem chegou a ver de verdade. Foi antes pelos
predicados, morenos e de malícias de Jasmim Laetitia, parte rara e colorida daquele grupo sem
graça. Foi já na partida que aconteceu o encontro marcado pelo destino desde o princípio dos
tempos.
Depois de uma curta e melancólica
temporada de assentos vazios, a direção do circo mostrou disposição e resolveu tentar a sorte em
lugar mais populoso, arriscando contra um público mais exigente. Montaram a caravana e
seguiram em lamentável cortejo, arrastando a frustração pela rua principal naquele lugar
secundário, mas com fé e esperança. Foi quando a moça se desgarrou um momento, como o
destino pediu, e entrou na loja onde nosso herói trabalhava em parceria com o pai adotivo e soltava
os bocejos da sua indisfarçável preguiça. Pois nesse tempo ele ainda estava sob a proteção de
Sucupira Nemélio à espera de coisa mais agitada, para colorir as rotinas da vida, encurtando o dia
e agilizando a chegada do futuro que ainda havia guardado para degustar, assaltando
diuturnamente o cesto das maçãs. Permanecia muito encantado com as fontes do prazer e, em
especial, com a divina natureza das mulheres, sua maciez, a harmonia dos seus redondos, a magia
dos seus cheiros. Desde que passara a frequentar a casa do marques dos Choupos, sua visão de
que o mundo todo podia ser um jardim de prazeres já beirava a obsessão e aquecia as febres.
Especialmente a obsessão de desprovar que ele – digo, o mundo - podia não sê-lo. Carecia localizar
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esses oásis perenes e ele queria a aventura, estava pronto pra ela. Talvez por isso tenha exagerado
na atração que aquela mulher exerceu sobre ele, tão instantânea e tão vazia de lastro, irresistível
contudo. Tal qual tinha acontecido com sua mãe quando viu o Homem Voador pela primeira vez
e mergulhou sem pensar nos labirintos da paixão. Ele estava mais interessado em colher flores
nos canteiros do prazer, pelo lado do desejo. Mas a disposição de largar tudo e seguir a força de
um impulso casual era a mesma e estava no sangue, pronta a borbulhar. A moça também não
resistiu a incentivar aquela relação. E nem devia pois o circo estava precisando de sangue novo
para sair daquele marasmo e ela estava encarregada mesmo disso, garimpando potenciais
candidatos.
Não precisou muita conversa para o acerto do rumo e Cedro Cedrus e Jasmim Laetitia
combinaram se encontrar daí a dois dias, no caminho poeirento que ia dar na capital da província.
Ela nem chegou a acreditar que ele fosse. Mas não se incomodou: nem tinha nada a perder e não
se lembrou mais do trato assim que saiu do armazém do Nemélio. Nosso herói, ao contrário, tinha
tudo a perder se não agarrasse aquela boa oportunidade de abrir mais um capítulo na história da
sua vida. Assim não pensou em outra coisa, o resto daquele dia e o longo todo da noite. E no dia
seguinte já estava se aprontando pra partida, já na chegada do sol. Pensou em se despedir do
marquês e sua pupila mas não conseguiu reunir ânimo para tanto. Tinha que ir ao contrário da sua
rota, perdendo tempo. Contentou-se em pensar que aquela convivência com o misterioso marquês
havia sido boa, mas estava na hora de acabar de vez. Tinha certeza de que sentiria falta da doce
Gérbera Silente a melhor flor do jardim de delícias do Solar dos Choupos. Isso também já estava
na hora de acabar, e se consolou a si mesmo sem muita dificuldade. Com Sucupira Nemélio sabia
que seria mais difícil, afinal vinha sendo um pai de verdade para ele desde que ficara sozinho no
mundo, vinte anos passados. Havia uma dívida a saldar, talvez. Mas simplificou as coisas da
despedida, como era do seu jeito natural. Deixou um bilhete lacônico e simplesmente se foi,
levando apenas duas mudas de roupas domingueiras e uma boa economia que havia juntado
displicentemente no fundo de uma gaveta, ao longo daqueles anos. Era sócio do negócio, mas
nem se lembrou disso correndo um sério risco, pois num futuro muito próximo ela de muito lhe
valeria. E voltaria, exato por conta dela, quatro anos depois.
Selou a égua que tinha ganhado no aniversário passado e partiu rumo ao seu novo destino
como havia prometido a si mesmo que um dia faria. Cavalgou ligeiro para tirar o atraso e tirou.
Encontrou Jasmim Laetitia a vinte léguas de distância, na beirada do caminho numa espécie de
acampamento. Nunca tinha ido tão longe e sentiu que era o começo de um outro ato da sua vida.
Ela ficou feliz em vê-lo e o tratou com carinho desde o instante primeiro. Não teve dificuldades
em inseri-lo na troupe mambembe disposta a isso mesmo, buscando renascimento. Ao longo
da viagem havia pausas frequentes para exercícios e ensaios, e nosso herói foi sendo testado na
busca dos seus talentos, pois era assim que faziam, buscando novos artistas, quase a troco de nada.
Nem teve que penar com bosta de elefante e alfafa de camelo, pois logo se descobriram seus
predicados voadores, inatos, inexplicáveis e raros. Tal era sua vocação que não precisou muito
tempo de adestramento e logo já estava apto para compor o espetáculo. Concebeu um número
admirável pelo perfil incomum. E já passo a descrevê-lo, pois esse é um dos atrativos desta história.
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É que ele podia desafiar a lei da gravidade no quesito relativo à velocidade dos corpos que caem
e se esborracham no chão. E o fazia sem esforço. Balançava assentado no trapézio ganhando
velocidade, depois unia os braços sobre a cabeça e saltava para o alto ganhando um impulso
acedente difícil de explicar. Subia na vertical ganhando altura enquanto o trapézio ia e voltava. Em
seguida abria os braços em cruz e descia verticalmente sobre ele agarrando-o novamente. Parece
simples na forma simplória que acabo de descrever mas, teoricamente, isso era impossível de ser
feito, pois o tempo que o trapézio levava para ir e voltar à posição inicial sempre tendia a ser maior
do que a velocidade da queda em direção ao solo. Contrariava a lei irrevogável do velho Newton
que dizia que a matéria atrai a matéria na razão direta das massas e na razão inversa do quadrado
das distâncias. Diziam os entendidos que Cedro Cedrus descia mais devagar do que o normal que
a lei determinava de forma inexorável, por suposto. A façanha parecia simples como eu disse, mas,
teoria à parte, o efeito visual encantava o público que simplesmente sentia que algo de mágico
havia ali bem no ar, acima das cabeças inclinadas apontando os respectivos queixos a contemplar
o segundo homem voador de que se teve notícia. Era como se ele pudesse retardar a queda
esperando o tempo certo do trapézio retornar. Por conta disso Cedro viraria Angélico, passaria a
principal atração do circo e ajudaria a infeliz companhia circense a conhecer novo surto de glória
e prosperidade como show e como business. Ganhou algum dinheiro, usufruiu dos predicados da
sensual e quente Jasmim por uns tempos e guardou a indelével convicção de que, afinal, as leis
não foram criadas necessariamente para serem cumpridas, até mesmo as naturais.
A temporada circense do nosso herói foi inesquecível. Mas foi relativamente curta e teve
um fim melancólico. Poderia ficar ali pelo tempo que quisesse, sendo a principal atração. Mas não
ficou. É que ele e Jasmim Laetitia, depois de muita fornicação e de um afeto sincero acabaram se
sentindo mais irmãos do que amantes. E eles tinham razão. Nunca souberam disso, mas eram
filhos do mesmo pai. Falo novamente do misterioso Castanheiro Fúlvio, o Homem Voador. Ele
do ventre de Açucena Cedrus e ela do ventre de Acácia Laetitia, a indigitada vítima do começo
dessa história, morta pelo próprio Fúlvio sem ninguém saber porquê, e continua assim até hoje.
De sorte que o afeto que havia entre eles não teve tempo de virar paixão e estacionou no desejo,
felizmente. Foi como se a própria natureza não estivesse aprovando aquela doce e concupiscente
inocência carregada de prazeres. Claro que não chegou a haver o pecado do incesto, pois
conhecimento não havia daquela rara condição, como acabei de dizer. Deste forma, não houve
drama e nem remorso na triste separação. E cada um seguiu seu rumo tranquilo quanto a sua
moral. Assim aquele episódio nem chegou a guardar espaço na lembrança de nenhum dos dois
irmãos. Nenhuma lei os condenou, nem na terra nem no céu. Nem seria sensato se assim não
tivesse sido.
QUEDA E RESSURREIÇÃO
Quando a notícia da herança lhe chegou às mãos nosso herói estava mesmo precisando
muito dela. Naquele tempo ele já tinha se afastado da troupe do Circo Espanhol e se separado
para sempre de Jasmim Laetitia sua irmã por parte de pai, condição não sabida, nem por ele, nem
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por ela. Fazia triste figura, qual um d. Quixote sem causa e sem nobreza, montado no seu cavalo
também de triste figura, dada a condição do cavaleiro. Estava meio que vagando a esmo, de lugar
em lugar, sem saber muito o que queria e muito menos sabendo o que podia esperar da sua
peregrinação infiel. Comerciante já tinha sido, mas não tinha como continuar por falta de capital.
Os tantos livros que já havia lido não lhe tinham serventia naquele exato momento, nem sua
filosofia podia ensinar. Vivia então da sua habilidade de trair a gravidade da terra, enfrentando as
alturas em pequenos serviços que exigissem coragem. Consertava telhados, desentupia as calhas,
limpava o cimo das torres e lustrava os seus sinos, visando pequenos retornos para a comida e a
cama. Era destro no mister pois não temia cair. Ia onde ninguém ia, por isso tinha lá o seu
diferencial. Eis um grande desperdício para seu talento natural. Mas não pensava em voltar a ser
trapezista, pois não era o seu fim e nem estava interessado em pequenas melhorias. Também não
queria voltar para a casa paterna. Não fazia sentido, para o orgulho que punha nas suas convicções.
Foi um período difícil e
estava aprendendo as agruras da vida, vivendo o essencial, apartado dos prazeres que se tinha
prometido. Pelo menos estava distante do peso dos tratos e compromissos, contudo não era
suficiente. Mas nem chegou a aprender com muito convencimento essa amarga lição, pois a notícia
da herança mudou o seu destino, abrindo-lhe um banquete fasto e diuturno, casando direitinho
com o futuro que queria.
Não demorou a esquecer a figura lamentável que
fazia, com pouca dignidade, batendo de porta em porta a procura de serviço; comendo em
qualquer canto, dormindo sem poder escolher um teto sobre a cabeça adornada com cabelos
cheios de pavios e a barba desgrenhada. Seria a vez primeira nessa triste condição, mas não seria
a última, pois a vida é longa e cheia de esquinas. Tanto que, dá margem para especular se nosso
herói havia cumprido o seu projeto naquela altura da vida. Mas no geral, viveu bem e, de toda
forma, ninguém ouviu qualquer lamúria, mesmo na melancolia dos seus dias de velhice. É que ele
tinha aprendido a sabedoria de esperar, enquanto o tempo avançava.
Assim que chegou a notícia da herança, Cedro Angélico agradeceu o augúrio ao deus da
boa fortuna, amaldiçoou a vida que vinha levando e se pôs a caminho, mirando o sol que acabava
de raiar. Vendeu a cavalgadura e, com o dinheiro apurado, pôde seguir alegre e recostado no
conforto das melhores opções para alcançar o arraial de Chapadão de Deserdados com uma certa
ligeireza. Não tinha pensado em voltar, pelo menos por enquanto. Mas eis a roda da vida rodando
como é servida. De toda forma um retorno triunfante para assumir sua herança na terra dos
deserdados, quer dizer, na terra dos preteridos às fortunas que outros tiveram a bondade de juntar
para o nosso deleite.
Era uma quarta-feira de abril quando chegou, tendo o dia declinando na curva do seu final
e a sombra da noite já chegando e confundindo as diferenças das coisas e das pessoas numa
mistura cinzenta. Assim pôde chegar sem despertar alvoroço, que era o que queria. Mas logo no
dia seguinte a notícia espalhou, ficando ele cercado de toda a atenção da gente do povoado,
agradecendo o carinho e contando as histórias do tempo da sua ausência. Ao velho padre Carvalho
Meldi, na condição de testamenteiro fiel, coube sacramentar o mandado da herança. Em assim
sendo, no meio de muita gente, no recinto do armazém inserido no inventário dos bens,
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desdobrou o testamento e leu a vontade do morto, destinando tudo que era seu para o filho
adotivo. Todo mundo já sabia, pois o conteúdo do precioso papel circulou pela gente do povoado,
sem nenhuma restrição. Foi aí que uma irmã de d. Violeta Cedrus tomou a incumbência de
mandar-lhe o precioso recado, o que fez com sucesso, rastreando o rumo do parente com notável
competência. Cumpriu-se assim a vontade do falecido, sem nenhum acidente. Generoso coração
de Sucupira Nemélio que havia desprezado, com a pureza do mesmo, a falta de motivos para a
ausência do herdeiro, deixando-o sem companhia nos seus anos derradeiros, viúvo e solitário. Belo
gesto, elogiado por todos, elevando ainda mais a saudade que o defunto deixava.
E lá estava, magnífica cesta de
riquezas, repleta de móveis, e de imóveis aqui e acolá, títulos, créditos, moedas e papéis que a
todos surpreendeu pela sua abundância, mesmo se sabendo que ele era o homem mais rico de que
se podia lembrar em boa parte da província, malgrado a simplicidade, detrás de um tosco balcão.
Um verdadeiro baú aberto a adornar a vida do
nosso herói, no meio da mocidade. Ali estava o moto para movimentar as engrenagens da sua
vida como tinha almejado depois do aprendizado com o marquês dos Choupos e sua bela pupila,
sempre doce e quase nua, exalando um perfume inexplicável, sendo ela o que era: mais mulher do
que flor.
Nosso herói recebia os afagos da gente do povoado e se ria por dentro muito mais do que
por fora. E dizia a si mesmo, conversando com as entranhas de uma forma debochada:
- Bem aventurados os deserdados e a sua mansa humildade, pois deles é o reino dos céus.
Fico eu cá na terra com os louros da fortuna e as chaves das alcovas.
Mas por mais que desprezasse toda aquela puxação, nosso herói não conseguiu fugir de um
Te Deum Laudamos, entoado em louvor pela sua boa fortuna na matriz de Deserdados sob os zelos
dedicados do padre Carvalho Meldi, mais uma vez. E lá estava jubilosa, tentando colaborar com
a santa louvação, toda a gente do lugar que sabia da sua história e nela tinha vivido de uma forma
ou de outra. Tinha vindo até gente de quem nunca mais se tinha ouvido falar como Azaléia
Caucásia e a prima Orquídea Nigina, a cigana embusteira e de faro apurado para cheirar as boas
oportunidades. Cabo Aroeira Militatus, não pôde participar dado seu estado entrevado, mas se fez
representar pelos membros da sua guarda de voluntários Pinus Palpius, Cerejeira Xânvilus e
Vinhático Roxílio, decrépitos mas cumpridores. Também não podiam faltar as velhas amigas e
vizinhas dos Cedrus: d. Miosótis Maltecus, d. Dália Natatarius entre outras tantas sobreviventes.
Quase todos na mais avançada idade, saudosos da memória dos Cedrus e de Sucupira Nemélio e
felizes com o presente do herdeiro, bastardo mas bafejado pela sorte, de forma inesperada outra
vez.
À noite - acalmado o povoado na sua tanta alegria pela fortuna alheia – Cedro Angélico
não dormiu muito bem, excitado que estava com as chances do futuro imediato. Ficou girando no
redemoinho de imagens frenéticas de palácios e festins, inseridas em sonos entrecortados,
espocando em flashes intermitentes. A noite já se desfazia quando sossegou e conseguiu dormir
sem sonhos, esfriando a agitação. Assim, na manhã do dia seguinte em que havia ficado rico de
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verdade, Cedro Angélico ficou retido no ninho da cama e levantou tarde, lambuzado com a
preguiça dos ricos de berço. Passou o resto do dia de pijamas, lambiscando o capricho das
quitandas, dispensando as visitas e conferindo o inventário dos bens que havia herdado.
Apesar das insistências ninguém foi recebido exceto, claro, Orquídea Nigina, a primeira
preceptora. Conversaram muito, mas não houve alegria. As lembranças eram pesadas e os
sentimentos, eram muito contraditórios nos seus limites incertos. Mas havia ficado a gratidão,
traduzida sonoramente num embornal de moedas que a velha amiga preta levou para casa com
dificuldade, temendo ser assaltada.
Cedro Angélicos surpreendeu-se com a exuberância e diversificação da herança. Não havia
sinais exteriores de toda aquela riqueza, nem mesmo para ele que tinha passado duas dúzias de
anos vivendo no íntimo daquela casa. Mas lá estavam desde imóveis na capital, a créditos, ações,
robustos depósitos e lotes de pedras preciosas guardadas em cofres bancários. Benditas
engrenagens para mover a sua vida com opulência e prazer, saciando as partes mais sensíveis do
seu corpo e da alma que vai dentro conduzindo-o com sabedoria, mesmo quando há excessos.
Pensava em não se demorar muito tempo naquele lugarejo estancado, se desfazendo das
raízes para sempre e centrando a sua vida em negócios na capital. Chegou a pensar em visitar o
Solar dos Choupos, mas não foi adiante. Tinha outros passos a dar. Eram no mesmo caminho,
mas a direção era outra.
Nunca mais voltaria a Chapadão de Deserdados. Por ironia do nome, foi ali naquele ermo
árido e austero, onde estava fadado a passar uma vida sem sentido, que o mundo abriu-se para ele.
Ali tinha sido previsto que ele teria poucos anos de vida e ali, em poucos anos da sua vida, havia
conseguido obter dois preciosos e inesperados legados: a herança de Sucupira Nemélio e a arte
do acesso às delicadas sutilezas do prazer que tinha aprendido no Solar dos Choupos. Justamente
um doce projeto de vida e os meios raros de poder colocá-lo em andamento. Nunca mais se
esqueceria dos gozos que emanavam de Gérbera Silente. Talvez passasse a vida buscando
encontrá-los em todas as mulheres. Mas não pôde procurá-la novamente. Teria sido mau aluno se
o fizesse.
O BOUQUET DOS PRAZERES
O que mais agradou Cedro Angélico no conjunto da herança havida do precioso pai adotivo
foi um sobrado de esquina, muito bem situado, bem no centro, na capital da província. Era perfeito
para abrigar pelo menos três dos quatro ramos de negócio que intencionava explorar, naquela
altura da vida, principiando o seu projeto central, na sequência da existência, numa etapa muito
mais auspiciosa do que antes. Quando chegou já encontrou propostas para vender o imóvel, mas
nem quis saber, já tinha planos maduros para ele, antes mesmo de chegar. Daí que, do que cuidou
primeiro foi da desocupação do imóvel. Ademais, já tinha disposto dos haveres da parte da vila
de Deserdados, urbanas e rurais, mas não era só compulsão. É que, para eles, não havia direta
aplicação no conjunto do que queria fazer. Sendo assim, imóveis, mercadorias e contas a receber
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que eram muitas, centradas na sua vila natal e nas suas cercanias, viraram dinheiro vivo na
brevidade possível. Com as dívidas duvidosas nem quis se preocupar pois aquilo era miudeza no
conjunto da fortuna. Mas, na verdade, mais tarde até correria atrás dessas migalhas como vamos
ver na temporalidade correta.
No geral houve perda na transação apressada da parte desprezada da herança, pois ninguém
ali naquele povoado perdido tinha cabedal grosso o suficiente para arcar com o valor merecido
dos tantos bens do saudoso Sucupira Nemélio. Até teve que ser formado uma espécie de
consórcio, juntando gente interessada naquela ocasião favorável pela ojeriza e a pressa do dono
em mudar de ramo e lugar. Ocasião e negócios sempre andam ombreados e isso foi feito, e por ai
se selou a ruptura final do nosso herói com o seu passado naquela vila medíocre, onde tinha vivido
o primeiro quarto de vida. Aliás, assim já teria sido, não fosse a herança dadivosa que havia
provocado o retorno impensado, inevitável contudo.
O projeto do negócio de Cedro Angélico era singelo, todavia crucial pelo peso da sua
essência, posto que nele pensava com uma certa persistência, ainda que adiável, pois condição de
fazer, até então não havia. Mas, em havendo, já estava resolvido: tinha mesmo que inserir um
pouco mais de prazer no banal dos dias sucessivos por onde a vida rolava, quase sempre sem
sentido. Foi essa a viga central da motivação, quando nosso herói se instalou na capital, ampliando
o horizonte como havia almejado desde os tempos ditosos que passou à sombra dos choupos
delgados e altos em tão gratas companhias, num passado de saudade.
A herança incluía três belos imóveis na capital. Havia entre eles uma quinta afastada que
nosso herói escolheu para morar e passar seus doces recolhimentos, que eles também haviam e se
faziam precisos e preciosos. Ali até tentou produzir um pouco de poesia. Mas nesse tipo de criação
nunca pôs muito empenho. Sabia-se limitado e o produto se perdeu por falta de entusiasmo, quem
sabe até merecido. Mas, justiça seja feita, teve muita limitação no plano da sua obra, pois de amor
evitava falar e isso embota o estro.
Outro dos bens herdados acabou em serventia diversa daquela que deveria por destinação
de origem, rude por excelência. Exigiu ampla reforma gerida com muito capricho que o negócio
pedia pela sua natureza. Falo de um amplo galpão na entrada do cais, na área onde os marinheiros
se curavam da solidão do mar, que navegar é preciso mas viver também é quando o mar se liquefaz
em excesso e traz saudades da terra e da quentura das gretas de entrepernas.
O terceiro bem de herança era o dito sobrado de esquina retro e supra mencionado. Ali ele
instalou o coração dos negócios sonhados. No andar de baixo montou uma vasta e ecumênica
livraria, maior do que toda a cultura da capital somada e reunida. Ao lado, uma câmara de música
com seu pequeno auditório e um palco descendente, ao estilo italiano. No andar de cima um
restaurante. Requintado ambiente, cheio de refinados manjares a dourar os apetites. No armazém
do cais um magnífico bordel, cheio de deusas virginais e de putas assumidas, orgulhosas de o
serem e competentes também, pois que só assim há orgulho para qualquer profissão. Eis a perfeita
conjugação de trabalho e prazeres, nunca dantes conseguida, ainda que a receita resultasse banal,
tão ao alcance da mão para quem não a tinha pequena, quer dizer, apoiada no lastro de uma
pequena fortuna.
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À livraria chamou Panis Spiritum, ao salão de música Auditus Deorum, ao restaurante chamou
Palatum Eruditum e ao bordel chamou de Feminae Superbae. Para este último até tinha pensado em
alguma coisa composta com a palavra phallus mas depois desistiu, seria de um certo mau-gosto.
Nem foi muito original nos batismos, mas tinha o charme do arremedo de latim ainda que bastante
imperfeito, pois nessa matéria ele não tinha tido muita chance no seu autodidatismo, escorado na
biblioteca do avô e em muitos galicismos. Forçoso admitir que os nomes eram sonoros e
impressionavam ao público em geral, chamando sua atenção pela sofisticação. Aos mais doutos,
contudo, causou discreta hilaridade. De todo forma, logo os frequentadores divorciaram os
compostos reduzindo-os a Spiritum, Auditus, Palatum e Feminae, e corrigiu o pedantismo, pelo
menos um pouco.
Todavia, a essência não era o nome e
sim o diferencial que Cedro Angélico imprimiu ao seu feixe interligado de negócios. Claro,
compelido muito mais pela libertina veia hedonista do que pelo tino comercial que, aliás, acho que
não tinha nenhum. Mas era assim que ele achava valer a pena viver. A livraria era mais uma
biblioteca do que uma loja. Não vendia livros, ao invés disso, alugava horas de leitura. Seu forte
eram os livros raros, encadernados em luxo e dispostos por assunto. Havia uma sala reservada
para debates, conforme um programa previamente elaborado pelo próprio proprietário e por uma
horda de poetas vagabundos que logo ganharam a sua amizade. O público não era dos mais
extensos, mas era gente fiel. Havia uma conta corrente e os frequentadores podiam quitar suas
horas de leitura no fim do mês. Sempre deu prejuízo, mas ali também nosso herói se divertia,
especialmente ao cair da tarde, depois de degustar um almoço de raríssimo quilate no andar de
cima e descer as escadas com desleixada preguiça.
Montar o restaurante foi muito trabalhoso, mais ainda supri-lo no dia-a-dia. Pessoal de
formação em culinária francesa, não era de se encontrar naquelas distantes paragens, assim sem
mais nem menos. Nem os finos ingredientes e produtos que tinham que vir de longe a custos
avultados, pelos sucessivos transbordos. Mas o resultado do esforço de Cedro Angélico fascinou
os entendidos e lhe valeu notas de entusiasmos na imprensa local, durante um certo tempo. Teria
sido ele – mais tarde reconhecido – o inventor do self service só que com extremo requinte. E lá
estavam expostas as iguarias sobre mesas espaçosas, com placas indicativas e na sequência correta
para a plena satisfação dos desejos do paladar ao nível das divindades – não as gregas, claro, que
essas só comiam ambrosia, nauseante pela frequência exagerada do doce, todo dia; melando o
paladar. Placas luzentes penetravam os olhos e dirigiam as mãos de garfos e colheres, que o desejo
apontava e o estômago aceitava com prazer, completando o ciclo que Deus criou com capricho,
especialmente para quem conhece a sequência. Hors d’oeuvre, entrée, plat de résistance, entre-mets, dessert
e seus tantos detalhes divinos espalhados nas bandejas e inseridos nos segredos temperados dos
huitres, potages, poissons, gibiers, fromages, mousses e, claro, vins, champagne et liqueurs.
Mas havia um detalhe um tanto desagradável no meio de tanta elevação ao deus da
degustação. É que com tanto requinte, sustentado com tanta dificuldade de matéria prima e idem
de mão-de-obra, os preços cobrados tinham que ser elevados. Vai daí que pouca gente podia
alimentar tanto luxo para se alimentar, pois que o prazer de comer fica em segundo plano quando
ruge a fome e nessa, a banalidade do pão nosso, também conta. E tem que contar todo dia glorioso
ou frugal. De sorte que, salvo pelas novidades das primeiras semanas o Palatum Eruditum vivia às
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moscas. Força de expressão, claro, pois elas não eram admitidas no recinto, no salão nem na
cozinha.
Isso posto, posso dizer que no alegre casarão do prazer multiplicado, o que dava mesmo
algum retorno era a câmara de música misturando os gostos e popularizando partes de óperas e
operetas que era o que mais gente atraia nas sessões vesperais. Mas ali o gosto era italiano e o
momento de exaltação era a sessão noturna com o recital de castratos, diretamente da pátria, em
sessões variadas.
Por último o fabuloso bordel. De outro igual não se tinha notícia nem entre os fornicadores
mais viajados. Era coisa original naqueles tempos recatados, misturando shows picantes de
excitação, com simples fornicação. Aqueles em amplos salões almofadados, tenuemente
iluminados e estes em quartinhos confortáveis e discretos dotados de maravilhosos bidês de latão
resplandecente para limpar as sequelas e os pecados. Causou também sua grande sensação e durou
um pouco mais do que o Palatum com toda a sua fineza. Mas também espantou pelos preços
cobrados: um mundo inteiro de fêmeas soberbas rodeadas de músicos, cenários, eunucos e
serviçais todos somados numa folha de papel, lembrando os pagamentos devidos pelos serviços
prestados. Tudo muito produzido aguçando o desejo, redobrando o prazer e encarecendo o coito.
Enfim a realidade do mundo perturbando o erotismo dos sonhos.
No princípio houve certa sensação com todas as novidades do pacote de prazeres de Cedro
Angélico. Nem podia ser diferente, era muita ousadia para uma capital de província de segunda
importância no conjunto da nação. O pequeno grande mundo local se entusiasmou e houve
momentos de glória para o bouquet de prazeres, pois aquilo virou moda nas esferas de cima. Ricos
comerciantes, jornalistas, deputados e juízes, escritores irmanados na doce peregrinação, da livraria
ao restaurante, depois a sala de músicas e finalmente o bordel, coroando a alegria sem medo de
congestão. Senhoras também podiam, mas até um certo ponto que pra tudo há o limite. Todavia,
não havia conflito no arranjo permissivo, pois as damas se recolhiam mais cedo, lascivas na
quentura das suas alcovas aconchegadas e sussurrantes à distância dos maridos, mansamente
corneados, num festival de adultérios sagrados.
Mas, a bem da verdade, os belos templos de prazeres, monumentos hedonistas de uma certa
obsessão, nem tiveram trajetória marcante. Bateu um certo cansaço no entusiasmo inicial pois
lastro mesmo não havia para aquelas finezas da carne e do espírito. Foram muitas as razões que
nem cabe enumerar. Justo pensar até que possa ter havido um certo boicote, pois no fundo o
mundo sempre condena a exacerbação do desejo e a busca do prazer pelo lado menos nobre. De
sorte que os negócios definharam com uma certa rapidez, frustrando o nosso herói bem no meio
da vida. Está certo que, para Cedro Angélico, era muito gratificante passar a noite e o dia naqueles
ambientes tão grados e variados, saciando os desejos como quem simplesmente respira, e ainda
ganhar dinheiro, se isso fosse possível. Mas, coitado do nosso herói, a vida não é tão simples como
queremos que seja. Desde a expulsão de Adão que Deus quis separar as coisas em seus devidos
lugares, achando que sofrimento também tem o seu lugar. Vai daí que foi curta a trajetória de
Cedro Angélico no mundo empresarial. Mas ele era teimoso e morreu como queria viver.
Resultou
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que ele vendeu tudo que restava, esqueceu o lado amargo e foi conhecer a Europa e seus refinados
prazeres, polidos ao longo dos séculos pela civilização. Contudo antes de assumir o fracasso dos
negócios teve que reagir, pois dinheiro, até por extinto, ninguém se conforma que acabe, pois
quando acaba, muita coisa costuma acabar junto. É pestilento o bafo da decadência e disso ele já
havia provado, ainda que tão a sério não tivesse levado a lição, como habituava fazer com o lado
sombrio das coisas. De sorte que, assim que constatou que os negócios iam muito mal, pois as
contas teimavam em não fechar no final de cada mês, Cedro Angélico pensou numa grande
promoção para animar a gula e a concupiscência dos clientes fugidios. Era seu modo de reagir,
sempre adornando e dourando as soluções, apartado da dose de amargor dos problemas. Assim,
não pensou em cortar despesas e acertar desacertos. Ao contrário, mais ia ter que gastar,
aumentando a taxa de risco, numa mórbida ousadia. Pensou em promover um grande festival, de
alcance mundial. Um congresso do prazer, com teoria e prática finamente integradas. Poderia
trazer da Europa praticantes notáveis. Poderia trazer, sobretudo, o marques dos Choupos na
condição de patrono, acompanhando de Gérbera Silente na condição dela mesma, vale dizer,
magnífica fêmea, digo mais, a própria Feminae Superbae corporificada. A lembrança do marques e
da sua pupila reacenderam nele o odor excitante de velhas e doces recordações carregadas de
luxuria e gula, raízes dos seus rumos futuros.
Há mais de quinze anos não os
via. Como estaria ela? Madura e bela. Plenamente investida das credenciais de Ovídio para o ápice
do amor, na calidez das carnes ainda tenras e sedosas, preservadas nos seus óleos naturais,
dispostos a temperar a mecânica dos tatos. Havia contradições ainda por ser testadas.
A ideia agiu nele como uma fornalha areada a expandir os vapores e exigir o escape,
ameaçando explodir. Assim, logo no dia seguinte ao dia da ideia, concebida sem muita vacilação,
montou no melhor cavalo e partiu em trote acelerado no rumo do Vale das Santas Delícias, seu
berço de nascimento, no sentido da existência escolhida.
Pobre do nosso herói, encontrou o solar em ruínas. Nem móveis, nem livros, nem cristais,
nem prataria. Nem um ramo de alegria. Nem sinal de um ser vivente e a natureza estava falida. As
fontes haviam secado, espantando as suas ninfas. O sol parecia mais frio e o silêncio abafava o
canto dos passarinhos. Pensou em ir até o povoado saber de alguma coisa sobre a ruína do solar,
contudo desistiu. Seria inútil e injusto com o marquês e os lustros da sua longa história.
Mas não foi ali, nem na falência fatal que destruiu as posses no nosso herói, que o prazer
acabou. Pois as maçãs têm sementes e brotam em todo lugar para serem degustadas em suas duas
metades.
MAINTENANT, LA CIVILISATION
Cedro Angélico queria uma aventura que marcasse o resto da sua vida e desse a ela um
emblema definido. Depois de deixar Deserdados e o Vale das Santas Delícias tinha passado
forçado pelo mundo dos negócios e anotado fracassos. A vida de artista de circo havia sido ainda
mais pífia. De tudo tinha fugido para não ser engolido, pelo menos era o que dizia a si mesmo.
De
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sorte que a hora era agora. Vendeu o resto de tudo que tinha. – parte restante do muito que tinha
herdado do pai adotivo - e seguiu o seu destino sem saber muito qual era. Desembarcou na capital
do mundo pela primeira e única vez em agosto de 1912. Quando foi não pensou se voltaria, mas
voltou assim que pôde, pois opção não havia para quem programa um dia de cada vez, exceto
viver um dia de cada vez, sem qualquer garantia de continuidade.
A travessia do Atlântico havia sido tranquila no mar e absurdamente agitada a bordo como,
aliás, todos queriam e nisso se empenhavam. Era uma festa só, de dia e de noite, entre os azuis do
céu e do mar, diferentes nos tons, iguais no essencial das suas grandezas esticadas com um certo
exagero em cima e embaixo. No mais, as luzes flutuantes, tremulantes, agredindo a noite sobre o
espelho das águas e o colorido dos balões, sempre cheios enfeitando a alegria de viver muito e
imerecidamente em tão pouco tempo e espaço. No meio daquela esbórnia não foi difícil para
nosso herói fazer uma dúzia de amizades, visto que, cada festa e nova festa parecia a última da
vida. Conheceu muitos outros que sentiam o mesmo, e se entendiam nessa penúria de sentimento
e excesso de apetites. Acontece que a nave magnificente conduzia um grupo de gente levitante,
limpa, límpida e instruída, girando o mundo ao contrário para fugir do tédio do passar das horas
sob as mesmas longitudes da manhã até a noite e a manhã seguinte. Agora, depois dos exotismos
da América meridional voltavam animados e felizes ao berço da civilização, cruzando o mar em
um tapete mágico, lento e irresponsável.
Nosso herói se imiscuiu entre eles com os talentos que tinha ou que iludia possuir, passando
por alguém que podia fazer parte dos bem-aventurados de nascença ou de conquista. Riam juntos
e contavam histórias de velhos reinos e de aventuras no trópico e na Arábia, viajando embalados
na fumaça do haxixe e nos vapores do absinto. Das histórias nosso herói sabia, escorado nas searas
literárias desde as tenras idades, como visto já foi. Dos zonzos rituais ele um pouco conhecia, mas
queria transbordar. E não se surpreendeu com tanta sofreguidão babada à sua volta, que desse
mundo sabia e esse mundo esperava encontrar e estava preparado. Irmanados nessa bela hedonia
brotaram as amizades, sólidas para aquela temporada e só para ela. Pois ninguém nessa condição
se compromete mesmo com o amanhã e aceita o preço do prazer, mesmo sem saber qual é.
Dessa forma, quando Cedro desembarcou no velho continente, desembarcou com ele o
príncipe Pinho Tepowski das Begônias, magnífico ser humano que gostava de humanos do mesmo
sexo, contido, porém, na fineza das amizades pela nobreza do berço. Altíssimo russo de velhos
troncos arbóreos adaptados às queimações dolorosas do frio branco da estepe. O nobre amigo
havia se encantado com a fina filosofia de Cedro Angélico, interessante, ainda mais tendo vindo
de onde vinha, assim de repente, tão culto e tropical, ocupando espaço numa nave flutuante no
lado baixo do Atlântico. Tomou de encantamento por ele e prometeu guiá-lo nas delícias da Cidade
das Luzes e que já estava ali quase em frente, depois da colina seguinte, vencido o mar e o porto,
completando a travessia.
A admiração do russo pelo nosso herói teve começo por conta da performance do dito
num concurso, bem no meio do oceano, no cruzamento da linha que divide os hemisférios.
Elegante contenda, para gente espirituosa e letrada como ele acreditava ser e queria, e até parece
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que era pois, afinal, havia gasto toda a sua fortuna lustrando o espírito e afinando o apetite, que
dizer, refinando os ingredientes da mais elevada filosofia de vida. O prêmio do referido concurso
caberia àquele que pudesse melhor definir a máxima do bem viver, dispondo apenas de dez
minutos para condensar tamanha leviandade. Mas era seu tema de fé e ele se sentiu absolutamente
capaz para aquele desafio. Tinha muito a ver, aliás, com aquele outro desafio primal proposto pelo
marquês dos Choupos no vale das Santas Delícias Assim, havia o precedente e não houve
dificuldade, pois tudo já estava pronto. Cedro Angélico arrebatou o prêmio, citando uma velha
anotação que havia feito nas tantas imersões de leitura na biblioteca do marques, mergulhado nos
segredos do amor e do desejo. Ganhou um coroa de louros e muita confiança na habilidade de
dissecar certos segredos da vida. A coroa murchou logo no dia seguinte, mas a confiança
continuou o seguindo, embora nem sempre valesse.
Mas vamos a um detalhe: a citação que encantou a seleta plateia e arrebatou a coroa. Agora
abaixo transcrevo, num competente resumo, fiel aos originais, sem enxertar nada meu, embora
tivesse vontade:
Meus diletos parceiros,
Penso eu que num mundo relativo e passageiro, o sentido da existência é a busca persistente
do prazer. A realização do desejo é a única razão justificável para o esforço humano sobre
a terra. E para isso o homem deve ser livre e conivente com quem também é livre, pois a
liberdade se justifica em si mesma. Olhando pelo lado político o zelo da liberdade é a
garantia dos meios fundamentais para o alcance do prazer próprio e do outro. Ninguém
pode ter medo de ser responsável pela sua própria liberdade nem de deixar de estimular
que o outro faça o mesmo. Pois o prazer isolado é uma ilusão passageira e tende à
frustração. A violação das leis morais não merece castigo pois elas nada mais são do que
restrições que nos impedem de alcançar o prazer. A virtude e a lei são fantasias destinadas
a conter os corajosos e consolar os fracos. O prazer não está ao alcance dos tímidos, pois
ele não é tão leviano que se ofereça de graça. A misericórdia, a gentileza e o altruísmo
revelam-se muitas vezes como perversões de quem está disposto a trocar o prazer pela dor
e a privação. Essa troca é uma aberração, a não ser que a dor e a privação também sejam
uma fonte de prazer. O amor faz parte deste jogo pois enseja os prazeres mais intensos.
Mas ele tende a ser imaterial, seus custos são altos e seus resultados são efêmeros e não raro
dolorosos(...)
Tenho que reconhecer que o arrazoado de Cedro Angélicos era uma mera compilação
talentosa das ideias de um outro marquês um tanto ensandecido. Mas quem percebeu se calou.
De toda forma teve aplausos coniventes e seu momento de glória por conta do conteúdo, da
charmosa impostação e do domínio aceitável da bela língua francesa na qual, aliás, tinha aprendido
todas aquelas coisas que agora transmitia. As ideias não eram suas, como eu disse, mas era como
se fossem, pela força com que à elas havia aderido e vinha tentando praticar.
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Nosso herói agradeceu o prêmio com um olhar pedante e uma visível imodéstia que
encantou aquela gente arrogante, imodesta e liberal, pois o século estava no seu primeiro quarto
e havia muita promessa de luz sobre o progresso das ideias e o fim das intolerâncias morais. Rara
plateia, permissivos pensamentos que só o doce ócio persistente da riqueza é capaz de fermentar
numa safra sempre boa. Descobriu-se capaz de muito do que havia vislumbrado na doce
convivência com o marques dos Choupos dez anos passados mas que só serão contados alguns
capítulos à frente.
O príncipe Tepowski das Begônias, patrono e entusiasta, acabou ficando em segundo lugar.
Gastou uma meia lauda defendendo um epicurismo meio devasso que ninguém entendeu muito
bem o que era, pela sua sutil contradição. Nem a dubiedade moral de toda aquela gente conseguiu
entender, e nem quis se esforçar, nem tampouco carecia. Tepowski, na sua elegância de príncipe,
achou justíssimo o veredicto do júri, aliás as palmas do distintíssimo público, que era assim o
escrutínio. Daí, a partir daquela auspiciosa contenda, Cedro Angélico passou a ser presença
obrigatória na mesa de Sua Alteza, animada, elegante e cheia de delicada malícia, no meio do salão
mais nobre da nobre nave que seguia riscando timidamente a superfície do mar, tolerante com
aquela intromissão.
Angélicos
não
escondeu do novíssimo amigo suas origens, nem o fato de que iria conhecer a capital do mundo
pela primeira vez. Mas, revertendo a cronologia, exagerou bastante no inventário das suas posses
e nos galhos da sua genealogia, na verdade cheia de árvores e flores distantes, tudo muito natural.
Do que resultou julgar o príncipe tratar com gente da sua extirpe e não com gente de outra laia,
como era o resto do mundo.
Avenida dos Campos Elíseos Nº 202. Era o elegante endereço do príncipe russo, seu
bigodinho proustiano, sua barriga de pachá e sua arca de prazeres. A suntuosa habitação - se assim
posso chamá-la tão provincianamente - havia sido comprada de um rico português, um par de
anos atrás com suas salas e banheiros cheios de modernidades e classicismos visuais, numa bela
combinação dos requintes e comodidades de um século promissor e que ainda nem tinha tido sua
primeira guerra mundial que, aliás, andava perto. Mas o príncipe havia introduzindo uma notável
melhoria ao que já era notável. Tinha mandado construir nos jardins da magnífica mansão um
edifício com requintes barrocos de inspiração berniniana a que chamou Mon Petit Trianon, também
conhecido como “A Galeria dos Prazeres”. Era ali o templo maior dos hedonistas da cidade
iluminada que centrava a luz do mundo. Dizem, às línguas pequenas e ouvidos bem situados, que
a construção foi financiada com desvios do tesouro secreto dos Romanoff de que seria ele o
guardião, zelando por uma poupança que vinha sendo discretamente acumulada desde o Domingo
Sangrento de 1905. Mas nunca disso se soube além dos círculos fechados dos verdadeiros amigos.
Assim o príncipe escapou do faro sanguinário dos Bolcheviques que, se cientes, certo o caçariam
e lhe dariam um final com requintes de crueldade.
Cedro Angélico aceitou a oferta da hospedagem que o príncipe Tepowski das Begônias lhe
fizera sem qualquer afetação ou pontinha de incômodo. Mesmo porque, estava precisando de
agrados na situação em que se encontrava, com a falência anunciada. Mas, mesmo assim, prometeu
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que a permanência seria provisória pois pensava em se instalar de forma definitiva não muito
longe dali, num amplo apartamento que planejava comprar e habitar por aquela temporada. Pura
mentira, convincente, contudo, pois que dispensava o trabalho próprio da busca de um imóvel em
pleno verão da Cidade das Luzes. Assim, por enquanto só as delícias da cidade, como Sua Alteza
fazia questão de patrocinar. Bom para o nosso herói pois, na verdade, seu dinheiro estava no fim
e sem aquela mordomia deveria já estar arranjando uma forma de voltar aos ermos da sua terra,
coisa que o repugnava naquela bendita hora.
O giro maravilhoso pela cidade
teria que começar com um singelo passeio matinal pelas praças e jardins, seguido de um almoço
num templo gastronômico muito bem estrelado e ainda mais adornado de pratas, cristais e veludos
macios para as bundas obesas sustentarem os estômagos protuberantes rodeadas de confortos,
liberando o descanso dos pés dos apertos dos sapatos medonhos de verniz daquele tempo
mimoso, mais apertados ainda quando têm que participar da sustentação das ditas cujas bundas
obesas e estômagos avantajados.
E assim foi, depois de uma noite amena em
que o programa dominante tinha que ser uma dúzia de belas horas de sono reparador, após uma
leve e ligeira refeição de frutas, carnes tenras e rasos cálices de vinho branco para não turbar a
serenidade do sono, nem a envolvência dos sonhos.
Sonhos, depois dos sonhos a realidade do dia e ele se abriu esplêndido no dia seguinte ao
dia antecedente, como não tinha como não ser, sendo o universo assim tão regulado pelas regras
do criador, notório conformista. Dia daqueles que fazem parecer que a grandeza do sol está em
dourar as manhãs e não em ser o centro do sistema planetário onde a terra reina absoluta com seu
manto azul, verde e amarelo. Reina absoluta pois o resto não conta, o que conta é a vida contida
na natureza. O príncipe Pinho Tepowski das Begônias e Cedro Angélico, depois de outra frugal
refeição matinal, desceram à rua e seguiram a pé pela avenida, trilhando as calçadas cheias de
árvores e canteiros de flores que exalavam cheiros e pintavam cores. Procuraram a praça do
bosque com a intenção de gastar lá algum tempo amenizando à espera da hora do almoço, o ponto
alto de um dia que começava singelo, resplandecente contudo. Foi aí que nosso herói teve o
primeiro contato com as promessas prazerosas que o aguardavam naquela incrível temporada,
para quem estava ali por pura aventura.
Falo
da viscondessa Rosa Zilium, um dos mais belos animais falantes, pensantes e insinuantes que ele
já havia visto, cheia de viços e frescuras. Mas não trocaram nenhuma palavra. Ficaram nas
formalidades da apresentação e ele se limitou ao doce prazer de contemplá-la enquanto o príncipe
a punha a par das aventuras da sua última viagem. Ela se mostrou nos seus talentos visíveis e tudo
o que foi mostrado o agradou e o excitou a conhecer os talentos não mostrados. Ele se sentiu um
pouco triste quando se despediram. Arrependeu-se de ter perdido a oportunidade de falar com
ela. Mas falar o que, naquele momento de encantamento? Melhor se encantar em silêncio.
No resto do
passeio a dupla de amigos foi parando vez ou outra para pequenas conversas fúteis e inúteis, como
tinha que ser em um passeio matinal naquele tipo de lugar. Isso durou o resto da manhã e, quando
terminou, finalmente era hora do almoço. Falo desse evento marcante entre o café da manhã o
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repasto da tarde. Justamente ele abria a festa gustativa do Paillard, o mais divino dos divinos
templos da adoração dos segredos do paladar refinado. E para lá foram, pela sombra e sem pressa,
encantados com as alamedas de Haussmann.
A mesa do príncipe já estava arranjada
no lugar de sempre, ou seja, magnificamente postada num plano mais elevado do salão já
intrinsecamente elevado, sobre uma espécie de presbitério, centro das atenções daquela catedral
da degustação. Como sempre fazia, na sua arrogância legítima de príncipe pela seleção de Deus
em pessoa, comandou o pedido sem dar chance de escolha para o convidado. Melhor assim pois
Cedro Angélico preferia não correr o risco de mostrar ignorância quanto àquelas iguarias que de
iguais não tinham nada, eram únicas na cidade e no mundo. Não que não entendesse um pouco
daquelas coisas, pois até já havia sido empresário do ramo. Mas temia estar distante ou
desatualizado em relação aos gostos da capital do mundo naquele ano de 1912. E estava mesmo
muito longe de todos os seus precedentes.
Para matar a sede que embota a sensibilidade das gustativas iniciadas nos mistérios dos
gostos, primeiro um champagne Saint Marceaux levemente granitado, safra de 1902. De entrada uma
lagosta fria com molhos de ervas exóticas. Depois um pato com pimentões (gratinado aos vapores
de um velho Barsac). Para acalmar a excitação da língua um borgonha do ano anterior e, para
encerrar, uma singela maçã da província ao natural. Delicadas combinações gustativas com
orgasmo garantido.
Enquanto comiam extasiados, o príncipe pôs nosso herói a par de uma grande surpresa que
vinha reservando com esmero delicado.
- Meu caro Angélico, amanhã vamos colocar em prática a sua teoria do prazer, que aliás
também é minha e por ela é que eu vivo. Você só tem que viver mais trinta horas de doce
ansiedade e de um pouco de temperança.
Ele aceitou o desafio, com certeza. Mesmo porque nada tinha que fazer senão esperar
placidamente pelo que lhe fosse oferecido. Mas, mesmo que não tivesse aceito, por hipótese
absurda, essa nossa história seguiria, tal qual eu a imaginei. Também, trinta horas a mais ou a
menos não fariam diferença naquela vida posta em dúvida num remoto passado, distante no
tempo e na geografia.
Cedro Angélicos descansou a tarde toda embalado num sono de inocente e quando acordou
o príncipe havia saído. Ele não se sentiu propriamente traído, sendo deixado pra trás, miserável e
sozinho. Nem podia, sendo um hóspede obscuro, bafejado pela sorte, falido e sem destino.
Não tendo
mesmo do que se queixar, passou grande parte da noite estalando moderados golinhos de
Marceaux e vasculhando alguns dos dez mil volumes encadernados de verde da biblioteca do
palacete do número 202 da Avenida dos Campos Elíseos, nobre endereço da nobre capital do
mundo civilizado. Nada do que se queixar de verdade, sendo ele um leitor de nascença da estirpe
dos Cedrus de Chapadão de Deserdados. Bom começo para uma noite que antecede promessas
de indescritíveis prazeres. Mas, por estranho que pareça, não encontrou nada que tratasse do seu
tema favorito. Dormiu toda a manhã depois daquela agradável noite de leitura e bebericos que
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durou até o raiar da madrugada.
Às
treze
horas foi avisado de que o almoço estava servido. O príncipe, mais uma vez não apareceu o que
o fez se sentir um tanto incomodado e desconfiado com aquela estranha mordomia. Mas, como
aventureiro que era, não receou nem um pouco seguir em frente. Depois da refeição voltou à
biblioteca do palacete e pegou uma antologia poética enfeixada numa luxuosa edição em papel
moeda e capa de marroquim, pois que o conteúdo merecia. Poetas portugueses e brasileiros
antigos o enlevaram até o meio da tarde, distraindo-o sob macios sofás. Cochilou um pouco,
embalado ao som da absurda sonoridade do polêmico verso de Eureste Fenício, produzida em
seus tempos indolentes de Coimbra, cheios de prazeres e sonhos e ainda longe da realidade que
muito o faria sofrer no fim da vida que previra efêmera, no calor da juventude, com tanta coisa
pela frente:
“Por mais que os alvos cornos curve a lua (...)”
Espantou o sono que teimava em lhe derrubar as pestanas e deu uma volta pelo jardim com
o livro nas mãos, parando aqui e ali, desfrutando dos sons bucólicos dos versos árcades sob o
frescor dos verdes iluminados com respeito pelo pôr do sol. Depois se recolheu aos lençóis de
seda da sua alcova, rosnou como um gato, rolou como um cachorro, virou de bruços como um
porco e dormiu até as vinte e uma hora como um animal qualquer também faria. Foi aí que
bateram a sua porta. Um serviçal entrou com uma bandeja de prata contendo um lenço colorido
de macio tecido do oriente. Colocou a bandeja sobre uma mesinha e pediu que ele se aprontasse
e descesse. Daí a alguns minutos ia começar uma das mais fantásticas aventuras da vida de Cedro
Cedrus, então já Angélico, pelos raros predicados.
REFINADA LAMBANÇA
A intensa iluminação da alameda interna que levava ao Mon Petit Trianon, quer dizer, à
pequena galeria dos prazeres do príncipe Pinho Tepowski das Begônias, ofuscava a semipenumbra
dos aposentos frontais do palacete do número 220 da avenida dos Campos Elíseos, na parte mais
nobre da Cidade das Luzes. Penetrava incontida, colorida, reta e tremulante através dos vitrais dos
inúmeros janelões da fachada da suntuosa construção e já espalhava um clima inebriante antes
mesmo do início da fantástica noite que estava prometida para dali a pouco. Era cedo, contudo, e
prevalecia uma certa tranquilidade em tudo, pois que as preparações tinham sido feitas no decorrer
da tarde e estavam prontas. As comidas já estavam preparadas, as bebidas postas para gelar como
convinha a cada tipo e os músicos já estavam nos seus postos afinando detalhes. Mas, para a festa
propriamente dita, ainda era cedo, como dito.
Daí porque ainda não havia convidados
quando Cedro Angélico desceu dos seus aposentos vestido com um traje híbrido, meio exótico e
meio europeu também, trazendo envolto no pescoço o lenço colorido que lhe tinha sido oferecido
ao toalete, três quartos de horas antes. Tremia de curiosidade e dilatava as pupilas de pura
excitação, antevendo a noite de delícias que estava para acontecer dali a pouco. Não esperava nada
menos do que isso naquele soberbo templo hedonista, conforme promessa de seu sumo sacerdote.
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Assim que acabou de descer as escadarias, caracoladas de pedra rosa
polida, o mordomo do príncipe lhe entregou um cálice de absinto precedido de um piscar de olho
maroto, conivente e um tanto enxerido. Depois lhe indicou o salão onde os convidados deviam
se agrupar à espera da abertura do grande festival de delícias. Ele se assentou numa poltrona,
pousou o cálice sobre uma mesa e se pôs a fazer nada, esperando e examinando os detalhes
barrocos da sala: móveis, estuques de volteios em alto e baixo relevo, murais bucólicos de faunos
e ninfas se aquecendo e cortinados de veludo e outros panos pesados, barrocamente arranjados
do seu jeito singular. Mas não demorou muito naquela contemplação e já os primeiros convidados
começaram a chegar e se acomodar na mesma sala e do mesmo jeito, sorvendo suas bebidas com
uma certa discrição. Aliás, como era recomendado, pois havia um cerimonial que se devia cumprir
para gozar o festival com correta elegância. Todos os homens estavam de preto e traziam um
lenço como o do nosso herói envolto no pescoço. As mulheres traziam um broche de penas
coloridas, colocado onde cada uma bem quisesse. Todas vestiam o mesmo modelo de vestido. A
vestimenta era fornecida pelo príncipe e, assim como o lenço dos homens, servia de ingresso à
festa.
Cerca de quarenta minutos foram gastos naquela aglomeração vestibular, até que Sua Alteza
o príncipe Pinho Tepowski das Begônias apareceu solene e pedante como era esperado e ele fazia
questão. Vinha acompanhado de um frade rudemente vestido, grande e obeso, quer dizer, tanto
largo quanto comprido, aparência que, aliás, contradizia-lhe o nome. Claro que a companhia do
príncipe causou surpresa aos menos habituais, dado o propósito sabido daquele ajuntamento e ser
um frade; por certo, uma presença estranha numa festa, obscena pelos excessos que embutia. Era
frei Eucalipto Latinol, membro eventual daquela singular irmandade, doutorado em filosofia dos
prazeres, fiel aos seus votos de pobreza e castidade, mas refinando glutão. Por incrível que pareça
era ele a primeira atração, pois que a festa ia ser antecedida de um pouco de filosofia mundana e
isso era com ele mesmo. Sim, pois como dizia o outro marquês – o de Sade - mesmo numa orgia
é preciso haver um pouco de método. Daí, coube ao bom frade falar um pouco sobre os
propósitos daquela celebração para que todos soubessem como se comportar, saboreando melhor
os tantos e variados desfrutes daquela noite, enfartando os sentidos e lambuzando os desejos com
sabedoria e supremo refinamento.
A maioria não era neófita, mas aquele
introito nunca era dispensado e, às vezes, dependendo do palestrante, como hoje, era muito
valorizado. Nenhum constrangimento para o frade sapiente, pois Deus era sua paixão maior e ele
sabia adorá-Lo e explicar as contradições por Ele ter dotado o ser humano de tantos santos
sentidos inclinados ao prazer. No fundo, acreditava honestamente que sua palavra, tão longe do
púlpito, trazia muita ajuda à sua catequese. Confesso que não vou entrar nos méritos da ideia nem
tentar entender os meandros da contradição, sendo mero escriba da história.
O príncipe e seu singular acompanhante atravessaram o salão até o fundo onde havia um
tablado de madeira revestido de couro verde, fixado com grandes taxas de bronze exagerados pois
eram de mera decoração. Lá chegando, o frade subiu os degraus arrastando a barra do hábito e
tomou posição atrás de um pequeno parlatório. Foi feito silêncio e ele, risonho e cheio de fraternal
simpatia, se empenhou no seu discurso. Disse que, fisiologicamente, o prazer é a sensação
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resultante da tentativa de saciedade do apetite neurossensorial do ser humano e que ele é capaz de
satisfazer tanto o desejo quanto o amor, com perfeita competência. A diferença é moral e está nas
consequências. A satisfação do desejo se faz através do gozo que leva à saciedade mas nunca ao
contentamento e há sempre o risco de surgir o sentimento do pecado. A satisfação do amor se faz
através da adoração que leva ao contentamento mas nunca à saciedade e há sempre o risco de
surgimento do sentimento do remorso. Ambas as sequelas do prazer, contudo, têm o seu remédio.
O antídoto do remorso é o altruísmo pois, no amor, deve prevalecer o compromisso e a oferta.
Ao contrário do que vai com o amor, no desejo o prazer é um fim em si mesmo. Ele é pontual,
quase sempre casual e nem sempre comungável. Por isso o seu antídoto é o egoísmo, pois ele
reforça a falta de compromisso e de reciprocidade, potenciando a amoralidade e vencendo o
sentimento de pecado.
Nesse ponto da sua exposição o frade fez um silêncio curto, olhou a plateia, criando um
clima para entrar de fato com a sua singular catequese. Em seguida colocou sua polêmica favorita
sobre o tema, manobrando com suma delicadeza para não escorregar no piso liso da contradição
ou de ser mal compreendido:
- O que devemos escolher, o remorso ou o pecado? – perguntou, com malícia e ironia.
Não esperou nenhuma resposta e nem as queria agora pois a pergunta era só uma provocação.
Assim continuou risonho, deixando a polêmica no ar, como queria mesmo fazer:
– Depende do preço que se quer pagar por aquilo que se quer comprar.
Fez uma pausa pequena e puxou a sequência da ideia:
- Mas, essa polêmica não nos deve inquietar nem um pouco, pois, pelo menos nesse preciso
instante, todos nós já fizemos nossas opções levemente egoístas, não é mesmo? – arrematou
o bom frade, agora exagerando no riso e constrangendo os mais sensíveis.
Fez uma segunda pausa, sorveu um gole de vinho para limpar a garganta e estimular as ideias
finais e acrescentou puxando a conclusão da palestra:
- Meus caros amigos, não é possível se organizar uma festa do amor, pela sua própria
natureza. No amor o prazer acontece todo dia – enquanto dura - nas coisas sublimes e nas
banais. O amor não se enquadra no tempo, não tem começo nem fim programado. Vai daí
que é impossível organizá-lo, dedicar a ele um festival ou coisa dessa natureza.
E concluiu, fechando finalmente o introito bacante, cheio de ensinamentos elevados para quem
os quisessem ter naquele instante desfavorável às coisas dessa natureza:
- Quanto aos desejos, contudo, organizamos uma noite inteira de gozos para satisfazê-los
com todo o requinte, estimulando a excitação, assumindo a tentação e arrematando na paz
da saciedade.
- Quanto ao pecado, que cada um cuide dos seus.
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Assim, foi a fala do frade, incomodando alguns, indiferente à maioria que, eufórica e ansiosa, não
estava dando a mínima bola para aquela falação essencialmente moralista. Mas, de certa forma, a
abertura singular era como uma bênção, indispensável àquela celebração; olhando pelo lado
teológico e pela eventual necessidade de conforto moral de uns e de outros. Assim se justificava.
Ademais, dava muita satisfação ao que, no fundo, não passava de um festim nababesco
Debaixo de aplausos de algum discreto comentário desairoso, frei Eucalipto Latinol deixou
a tribuna e foi substituído pelo príncipe que passou umas questões de ordem à fina plateia. Ele
agradeceu as gradas presenças de damas e cavaleiros e explicou o programa da festa. Era sempre
o mesmo, mas isso não desagradava nem afastava os habituais, muito antes pelo contrário, todos
queriam voltar. Claro, um ou outro nunca mais aparecia, deixando para sempre a santa
fraternidade. Mas, asseguro, não eram deficiências da festa em si. É que o prazer também cansa e
o desejo fenece quando perde a raridade. E nesse ponto é que a catequese do santo frade fazia o
seu sentido, resolvendo a polêmica, pelo menos para ele.
- Caros amigos – começou o anfitrião – pode parecer, em princípio, que os desejos variam
enormemente de pessoa para pessoa. Mas se vocês prestarem atenção não é bem assim.
Salvo alguns desvios pouco saudáveis, todos nós temos os mesmos desejos e eles estão
contidos nos limites da nossa capacidade natural de sentir prazer. Notem que temos a
capacidade de sentir fundamentalmente dois tipos de prazeres e eles são a origem de todos
os nossos desejos saudáveis. Falos dos velhos prazeres da carne e do espírito. Foi com base
neles que organizei o meu singelo Petit Trianon, lugar central da nossa celebração, para onde
vamos passar agora sem mais embromação.
Isso dito, o príncipe desceu da tribuna. Sob reverentes aplausos, atravessou o salão seguido
pelo frade bonachão e fez sinal para que todos os seguissem, no que foi alegremente obedecido.
Ao
encontrar Cedro Angélico no meio da gente, um tanto deslocado, fez sinal para que ele caminhasse
a seu lado, lugar de alto destaque, o que fez com que ele sorrisse prazeroso, antecipando com
singeleza os gozos que esperava dali a pouco. Nosso herói aproveitou para cumprimentar frei
Latinol e dizer a ele, de forma um tanto inadequada pela precipitação, que nunca havia conhecido
o amargor do pecado, o que deu margem para que o frade louvasse a sua santidade com uma
espetada de ironia.
Enquanto isso o
grupo de convidados os seguia. Percorreram a alameda iluminada com archotes coloridos e
entraram no templo dos prazeres do príncipe. Embora todos tivessem as mentes alteradas pelo
álcool e o fumo reinava o comedimento e tinha que ser assim pelas regras adotadas. Quem
mostrasse excesso de entusiasmo nunca mais seria admitido e isso significava banimento das altas
rodas da Cidade das Luzes, condição impensável àquela gente.
O pequeno mas suntuoso palacete era uma construção de dois andares em estilo barroco
italiano, inspirada em Borromini, guardando harmonia com o estilo do resto da vasta habitação.
Ao vestíbulo, abraçava uma escadaria que descia de ambos os lados, ligando um piso muito liso,
enxadrezado, a um balcão de grades de metal brilhante cuidadosamente polido, resplandecendo
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qual ouro, mas que não era. Lá em cima estava a ala dos prazeres da carne. Duas portas altas e
imponentes separavam esses quentes prazeres. Na verga uma placa de metal, com letras em relevo
identificava cada um deles: à direita a Luxuria, à esquerda a Degustação. Mas não foi por ali que
começaram. Em frente à entrada do vestíbulo, debaixo do balcão, havia um corredor. No arco
estava a identificação da ala dos prazeres do espírito e mais abaixo, um subtítulo: “Galeria das
Artes”. E foi por ele que o anfitrião entrou, conduzindo os convidados felizes e excitados. Antes,
porém, mostrou meia dúzia de mesas e cadeiras em um dos lados do vestíbulo explicando que ali
se poderia consultar o programa das atividades da noite e poderiam ser feitas as inscrições para as
apresentações e debates na sala de Literatura. O corredor não era longo, estava guarnecido de
pedestais e estátuas e terminava numa sala com aparadores repletos de bebidas e iguarias para
aguçar o espírito, ativar a libido e aplacar pequenas fomes prematuras. Ali havia duas portas
discretas, uma de cada lado, em simetria preservando a harmonia da parede que as continham com
toda a dignidade. No portal de cada qual havia uma pequena inscrição. Numa estava escrito
“Esperteza” e a outra indicava um prosaico toalete, pois eles também resultam ser importantes
em noitadas de prazeres quando o corpo dejeta mais do que seria o usual.
Ao longo
do corredor da galeria havia outras portas mais suntuosas com a identificação dos prazeres do
espírito que guardavam: Música, Pintura e Literatura. Não havia nenhuma placa proibindo fumar,
pois naquele tempo não havia disso e o fumo era um prazer onipresente, sem riscos de contágio
nem agressões às narinas que, com o passar do tempo, muito frágeis se tornaram.
Feitas as explicações pelo orgulhoso anfitrião, estavam liberados os prazeres do andar de
baixo e cada um se dirigiu para onde queria. Os prazeres de cima seriam liberados depois, quando
os desejos para eles estivessem mais aquecidos. Nessa movimentação meio confusa de abertura
do magnífico evento Cedro Angélico perdeu o príncipe de vista e se sentiu um pouco abandonado,
injusta condição, ainda mais sendo ele um convidado especial, único na posição precípua de
hóspede de Sua Alteza. Sozinho sentiu curiosidade de saber o que havia na sala da Esperteza, pois
dela o príncipe não havia falado e esse era um prazer a que ele não se furtava no dia a dia. Qual
seria o prazer específico ali presente, atrás da dubiedade do nome? Foi conferir. Era uma sala de
jogos de carta, tão somente. Mesas redondas com seus panos verdes e decoração escorada nas
espadas, copas, ouros e paus, pintas imortais do baralho, como sempre. A diferença existente é
que, quem ganhasse através de uma jogada de blefe, recebia o prêmio dobrado, dobrando o prazer
de ter sido esperto, mais do que os outros espertos.
Como não gostasse de jogo, um
exagero pareceu ao nosso herói a inclusão daquele prazer cotidiano num local tão refinado. Já ia
abandonando a sala quando avistou, numa das mesas, a viscondessa Rosa Zilium bela e esperta
gazela no meio de velhos lobos maldosos. Estava deslumbrante. De vestido de noite, tal qual
estava com o vestido vaporoso que usava na primeira vez que a vira, dois dias atrás. Ficou muito
contente de revê-la e mudou pronto de ideia, pois prazer melhor não havia, mesmo que fosse para
simples contemplação. Aliás, aquele feliz encontro esperava, exato naquela festa, mais do que em
qualquer outro lugar. Tinha perdido a chance com ela aquele dia no parque e agora queria reverter
a lerdeza.
Aproximou-se e a cumprimentou meio formal, ligeiramente
acanhado, sem conseguir dissimular esta pífia condição. Ela respondeu com um aceno e um
sorriso essencialmente educado. Não havia lugares à mesa e se ele quisesse ficar ali teria que ser
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em pé atrapalhando o jogo e disputando espaço com os serviçais. De sorte que Cedro Angélico
se sentiu meio imbecil com aquela aproximação atabalhoada, despediu-se e se afastou maldizendo
a sua burrice no salão da esperteza. Mais uma vez havia jogado fora uma oportunidade de se
achegar à viscondessa; condição indispensável, enfim, para alcançar os recônditos da fêmea.
Saiu e, meio desanimado com seu medíocre começo e resolveu ficar em torno do bufê
provando das iguarias com um certo desinteresse, forçando o apetite. No fundo tinha esperança
de que a viscondessa não demorasse a sair. E. de fato, foi o que aconteceu. Rosa Zilium saiu como
a viscondessa que era, enchendo o ambiente, tomando espaço às outras mulheres, sem ser preciso
esforço. Aproximou-se dele e tomou a iniciativa de trocarem algumas palavras banais. Mas a coisa
evoluiu e acabou que ficaram juntos, compartilhando prazeres, sem compromisso nenhum.
Mas,
vamos por partes, seguindo devagar pois que a noite foi longa e o conluio não foi assim tão pleno
como pôde parecer nessa narração tão genérica. Começaram pelo salão de música onde optaram
pela seção da câmara dedicada a Mozart onde sopranos árabes inusitados cantavam árias da Die
Zauberflote, maravilhando ouvidos e enlevando espíritos ao nível mais alto do gozo. Gente havia
que alcançava o êxtase pois amava aquela peça de fato. Mas não era apropriado tamanha elevação
numa festa pontual.
Em seguida Cedro Angélicos e Rosa Zilium participaram de um debate na sala de literatura
sobre a obra de Hugo, parte final da primeira parte do evento literário. Depois, como estava
programado, ia ser aberta, finalmente, a parte de cima do palacete, dando lugar à celebração dos
prazeres exuberantes da carne. Mais uma vez o príncipe tinha explicações a dar, embora a maioria
ali já conhecesse as regras desde os primeiros festivais, e elas não mudavam pois já eram perfeitas
para aquilo que serviam. Mas seguiu-se o ritual, já que dele o príncipe não abria mão e tinha todo
o direito dado a fortuna que gastava para encantar os amigos, saciando-lhes os apetites com fineza.
De sorte que todo mundo se reuniu no vestíbulo novamente e o anfitrião, mais uma vez, supriu
seus felizes convidados de todas as informações requeridas para assegurar o sucesso intrínseco e
o extrínseco do singular evento, inesquecível mas sem compromissos e pecados, como era o
princípio do prazer no fremir do desejo.
Impoluto, desta vez olhando seus submissos e gratos convidados do alto do balcão do
vestíbulo, o príncipe explicou que os eventos da luxúria e da degustação seguiriam paralelos como
devia ser e cada dileto convidado poderia resolver qual sequência adotar pois que, nesse particular,
sempre houve controvérsia e até um pouco de lenda e superstição. No salão da degustação seriam
servidas peças das culinárias francesa e italiana e uma ou outra iguaria exótica. No salão da luxúria
teria lugar exibições eróticas, levemente pornográficas, inda que sempre sutis, pois que erotismo
pede delicadeza e prolongamento do pipocar do desejo, afastando a grosseria. Claro, havia
aposentos providenciais reservados para quem quisesse chegar a extremos. Mas nada de sujeira
pelos cantos, numa festa elegante.
Havia uma regra, única mas
fundamental: todos deviam usar máscaras pois as identidades deveriam ser preservadas, zelando
pelos altos princípios filosóficos da festa. Finalizando, em tom de maliciosa brincadeira, o príncipe
decretou que eventuais amores decorrentes de intercursos carnais acontecidos no evento seriam
considerados de enorme mau gosto, pois, o prazer, pelo lado do gozo, não deve deixar sequelas.
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Foi informado também que as seções na galeria das artes seriam reiniciadas, depois das primeiras
rodadas de licores digestivos e de maçudos charutos de origem tropical, curtidos em ilhas calientes.
Terminada a explicação, finalmente a derradeira, Cedro Angélico que estava ao lado da
viscondessa, ficou aguardando que iniciativa sua bela acompanhante iria tomar, para então fazer
o mesmo pois já se sentia o par escolhido. Ela apertou sua mão e sorriu conivente, poupando
palavras como vinha fazendo desde o princípio do encontro, injetando mistério naquela relação
singular. Apenas tirou duas pequenas penas amarelas da bolsa, entregou uma a ele. Combinaram
que as usariam nas máscaras para garantir a identificação no meio da multidão anônima. Ela subiu
as escadas pelo lado esquerdo e, sem qualquer constrangimento, entrou pela porta da Sala da
Luxúria. Nosso herói aguardou alguns minutos e a seguiu, garboso no papel de macho escolhido.
Penetrou na sala ofegante atrás de uma discreta pena amarela, junto a qual pudesse encontrá-la e
com ela partilhar as delícias extremadas da luxúria Havia uma antessala onde ele recebeu a máscara
e enfiou a pena, dissimulando como se fosse apertar a presilha. Colocou-a e penetrou no salão
principal. Estava escuro e havia umas espécies de tablados iluminados onde pessoas se exibiam,
aguçando o apetite com certa libertinagem. Procurou-a ansioso, mas não pôde ter a certeza de
que a tinha encontrado, pois ela não se revelou como ele esperava e o que mais havia eram penas
inseridas nas máscaras com o mesmo propósito identificativo, muitas das quais amarelas.
Satisfez seus desejos
obscenos por quase todo o resto da noite, procurando a certeza que ela pudesse ter sido uma de
suas parceiras de penas de canarinho. Mas também não desprezou penas vermelhas, verdes e azuis,
pois depois de uma certa altura o que o guiava era o cheiro e cor já não mais importava.
No final da noite, alvorada anunciada, encontrou a viscondessa no salão de degustação
devorando iguarias ao lado do frade, fresca como a manhã que já se anunciava e rindo com as
piadas do santo homem, singularíssima figura de destaque do evento. Ela não lhe deu atenção. De
repente se levantou e, sem olhá-lo, deixou o aposento no seu andar magnífico de viscondessa que
podia ser rainha pela sua majestade. Saiu sem nenhum pecado, exatamente como tinha entrado.
Nunca mais ele a viu.
Cedro Angélico encerrou de maneira melancólica o dia mais extraordinário da sua vida tão
cheio de desejos magnificamente satisfeitos, especialmente os da carne: estrebuchado na cama,
com a cabeça girando e o olhar olhando a manhã, mas quase sem vê-la apesar do excesso de
claridade. Adormeceu rapidamente, mas cheio de frustrações e uma certa raiva fermentando.
Acordou no meio da tarde convencido de que o amor não vale a pena, afinal. Tinha razão o
marques libertino antes de tornar-se piegas: ele estraga o prazer e ainda deixa sequelas.
PENÚLTIMAS NOTÍCIAS
Toda a história contada, uma história não seria se não tivesse acontecido o que agora é
lembrado com uma certa brevidade. Foi então que nosso herói quase viu se cumprir aquele
presságio antigo carregado de tragédias do seu tempo de infância, passado na tristeza de um futuro
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sem promessa de ter continuidade. Bem podia ter morrido, dessa vez de verdade, sem visões turvas
de ciganas suspeitíssimas, na sua premonição sem fé e nem piedade. Digo da quase vontade de
Deus que, se fosse mesmo vontade, não havia escapatória. Morria mesmo. Mas, claro, de verdade
não foi, posto que houvesse o susto e ele marcasse a memória por uns tempos. Como podia ser
diferente com tanta febre malsã e as entranhas contraídas, estranguladas em cólicas e cheias de
sujidades intestinais? Um mal perigoso que envenena o sangue e confunde o organismo,
murchando a pessoa, sem vontade de comer pra não correr o risco outra vez.
Foi assim
que aconteceu naquele tempo com nosso Cedro Angélico, até então tão viçoso – apesar da meia
idade que já tinha - com suas seivas de árvore robusta e orgulhosa e coberto de peles e pelos
saudáveis no lugar de cascas e folhas. Dava no mesmo, e foi isso que o salvou.
Havia voltado da Europa em completa ruína, selando em melancolia sua carreira solo no mundo
dos negócios. Sozinho não podia dar certo, dado sua inclinação obsessiva para os gozos da vida,
pesando contra a prudência no braço desigual da balança da provisão. Carente de alternativas e
com dificuldades até para o elementar da sobrevivência resolveu ir a campo nos ermos de
Deserdados, a cobrar dívidas antigas do negócio do armazém do caro pai adotivo, correndo atrás
dos rescaldos da herança recebida e dilapidada agora. Migalhas do tempo de “Nemélio & Cedrus”
que havia desprezado na abundância da fortuna quando a tinha recebido opulenta e virgem, há
mais de dez anos atrás. Mas se as dívidas dos velhos clientes de um negócio defunto de fato
não prescreviam, porque haveria de perdoá-las estando necessitado?
Evitou Deserdados porque lá tinha decidido que não mais voltaria. Mas havia muitos outros
negócios antigos nas vilas e povoados das cercanias e foi lá que mirou o foco da sua ação
cobradora.
A viagem, extemporânea e sem anúncio, acabou acontecendo num mês incomum, copioso
de chuvas como não devia nem se tinha memória para o mesmo. Nunca antes tinha havido, nem
depois.
Uma certa anomalia do clima que até pode ter vindo de excessos no comportamento
dos homens, como nos tempos da bíblia. Mas não se pode afirmar, pois o povo seguia correto
suas vidas santas e medíocres de sempre. Contudo o tempo quis ser diferente e deu-se então a
maior temporada chuvosa de que se tem registro naqueles lugares de poucas veias de rios e de
nuvens escassas, num céu azul persistente. Mas, de fato aconteceu, e a causa não importa. O que
era riacho virou rio e o que era rio ultrapassou o caudal de cada dia banal. A água caiu do céu
como Deus fosse servido e que, aliás, sempre faz o que quer e às vezes exagera. Correu – a água,
bem entendido, pois Deus não precisa correr, já está em todo lugar - com a fúria que lhe é peculiar,
mesmo sem motivo, tão benfazeja que é. E subiu, muito além do razoável espantando o sossego
e desconstruindo. Ninguém se preparou por ali, pois não era o costume. Portanto, não se evitou
o incômodo e a sequência de perdas.
E foi numa dessas, no meio de
uma jornada carregada de imprudência para os riscos da ocasião, que Cedro Angélico ficou isolado
por uma enchente repentina. Por consequência, passou uma semana inteira comendo comida
estragada e bebendo água barrenta catada no rio raivoso e sujo por causa disso. Mas, como é
comum de acontecer, depois voltou o azul do céu e assim permaneceu e está até hoje, com pouca
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interrupção. Contudo não resgatou os estragos que a água deixou com a frialdade e a força. De
sorte que quando ele conseguiu chegar na vila de Sacramento já ardia de febre, devolvendo para
fora tudo o que engolia empurrado, a custo de muita repugnância. Sem falar da flatulência, que
isso era problema dos outros que andaram por perto, mesmo sem um convite. Bem feito quem
sabe, então. A lama engoliu as passagens e respingou de sujeiras os cantos todos e isso foi muito
pior, como se houvesse desordem e um pouco de desleixo na vila inteira. Tudo estava desse jeito
quando ele arribou, mesmo que um tanto pra baixo por causa de tanta desanda na harmonia
intestinal. Da boca do estômago até o anel do dito cujo, tinha tido sofrimento.
Havia um comerciante da vila na sua dorida lista de débitos. Desconfortável pro cobrador,
muito mais pro devedor, pois que o débito desconforta mesmo os mais descansados. Falo de
Jatobá Malesco de quem, aliás, já falei, mesmo sem dar precisão ao nome. Morava com sua jovem
mulher num sobrado um tanto avantajado: na parte de cima; que na de baixo era a loja dos secos
e dos molhados. O débito retardatário não tinha morrido mas houve uma inversão, pois ao vê-lo
naquele estado deplorável, mal sustentado nas pernas, o devedor e sua mulher resolveram acolhêlo e tratar a doença com toda a santidade, mesmo não tendo santo que proteja os cobradores. E
assim foi, por quinze dias seguidos. Tempo em que Anêmola Malesco, a mulher do comerciante,
se desdobrou em desvelos. Tantos que a caridade, a bem da boa verdade, nem de tanto carecia.
Pia obrigação transpassada de rubra e quente concupiscência. Pois ela era carente na sua
juventude, acanhada nas suas necessidades, tendo para satisfazê-las um homem muito mais velho.
Foram quinze dias de sofrimento mais um átimo de prazer, um depois do outro que, para o
segundo é preciso estar atento e forte. Numa sequência, um tanto desajuizada por suposto, mas,
nunca esquecida por certo. Exceto muitos anos depois, quando a memória já havia se arrefecido
e não mais tinha valia, como a brasa se torna carvão.
Estou a vê-los com a
curiosidade de autor que me é facultada, por mérito e por direito, não por mera leviandade. Vejo
então, e vos conto, o que passo a narrar.
Cedro Angélico, já não era rapaz, mas tinha as seivas preservadas pois punha nisso muito
do sentido da vida, no meio da caridade da família acolhedora Tinha ele sido alojado num quarto
confortável, na parte da frente do sobradão dos Malescos, com varanda arejada de frente para a
outra frente, do lado oposto da rua, um segundo sobradão, quase cópia do primeiro. Pela parte de
dentro, a porta do aposento dava para um corredor lateral e o acesso era discreto, apartado das
intimidades da casa onde vivia o casal na sua rotina de harmonia e de certos desencontros, pois
havia diferenças mui difíceis de acertar. Perfeito aposento para a função a que se destinava de
servir de pousada para os viajantes casuais, de passagem abreviada em negócios de interesse do
comerciante Malesco. Agora era um tanto diferente, servindo a uma convalescença sem tempo de
duração. Havia alguns inconvenientes para essa outra destinação: como o doente estava preso na
cama, tudo tinha que ser levado a ele escada acima, pois que as serventias da casa ficavam embaixo,
na parte detrás. Mas bem cuidavam dos serviços de limpar e dar de comer, com doçura e
disposição d. Anémola Malesco, secundada por sua serviçal Begônia Paçante, fêmea de boa idade,
confiável e presente, tão competente com as coisas doméstica que nem precisava de mando. Uma
pessoa de casa pelo tempo em que já estava com a família, desde nascida. As duas mulheres se
revezavam no paciente afazer. Uma dupla combinada como era comum no serviço do dia-a-dia
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da casa.
E assim tudo correu nas duas
primeiras semanas, com o doente avançando na melhora. Corava e se animava passando a reparar
nos predicados da dona da casa. Falo da beleza da cara, do cheiro dos cabelos, do redondo e do
macio das partes ocultas e do novelo de pelos das partes mais ocultas ainda. Mas, por certo se
ofereciam, escondidas entre as pernas ou anunciadas sutis em contornos suaves, levantando as
barras rendadas do peitilho atrevido inda que bem comportado.
Ela, também, não gastou muito tempo para
parar de se preocupar com as entranhas e começar a se preocupar com as partes externas do
homem, da ponta do cabelo até a ponta do pé. Assim, logo se estabeleceu uma comunicação e
havia uma recíproca, forte e silenciosa como é a erupção do desejo, no seu jeito mais natural, sem
tempo de maturar, pois disso não carece como desejo que é.
Resultou de todas essas circunstâncias favoráveis que
numa noite qualquer, já tarde, d. Anémola quis mudar a rotina do serviço e assumir tudo sozinha
como vinha planejando quase sem pensar noutra coisa, compelida de forma um tanto selvagem.
Tinha que ser assim, pois aquele tipo de serviço ela decididamente não queria compartilhar com
nenhuma outra fêmea. E temia que sua fiel serviçal estivesse pensando o mesmo. Mas ela era
mais forte e afastou o perigo aferrolhado a porta do quarto da pobre rival em tudo inferior.
Afastou o perigo mas levantou a suspeita pois Begônia Paçante já via a intenção e não teve dúvida
da autoria do seu solerte confinamento quando, após o ruído do ferrolho, escutou o farfalhar do
vestido de seda, comprido e rodado, varrendo o entorno. O mesmo que tinha passado no ferro
quente a pedido da patroa, atendendo uma demanda repentina sem motivo aparente, bem no meio
da tarde e nem era domingo. O marido, coitado, nem careceu de cuidado, roncando como estava
desde às nove da noite, era o felino amansado e com o guizo no pé.
O plano começou já na hora do jantar. Depois do repasto, quase sempre
frugal, Jatobá Malesco costumava sorver um pequeno cálice de licor de jenipapo para melhor
acomodar a comida e dormir com mais conforto e profundidade. Preferia beber uma coisa mais
forte, mas sua jovem esposa era contra e segurava essa singela vontade, tal uma samaritana zelosa
da saúde do marido, como se com ele quisesse viver muitos anos. Naquela vez, porém, compelida
pelo ardil, ela inverteu as prioridades. Fingiu estar distraída, pegou um cálice maior, encheu de
conhaque, colocou na frente do marido e, alegando uma urgência na cozinha, saiu apressada
deixando a garrafa ao alcance do velho com toda facilidade. Não deu outra, o pobre, sorveu três
goles rapidamente. Quando ela voltou, tamancando o assoalho para anunciar o retorno e facilitar
o embuste, encontrou-o sorrindo, feliz, se sentindo muito ágil e esperto. Não deu meia hora e o
pobre homem já estava na cama, pronto para um sono profundo e um inocente despertar debaixo
de um par de cornos; primeiro, único mas ainda assim, um par de cornos, verdadeiros e para
sempre.
Na etapa seguinte Begônia Paçante era afastada do páreo com aquela providência de ser
trancada no quarto, submetida a um recolhimento forçado.
Com o marido escornado e a criada confinada, a jovem senhora subiu arfante as
escadas inebriada pelas expectativas do prazer, prescindindo da legitimação do amor. Mas tudo
era vermelho e ela foi em frente. O primeiro empecilho não houve: a luz escapando pela fresta
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debaixo da porta anunciava que ele estava acordado, com certeza esperado. Anémola Malesco
bateu suavemente e entrou em seguida sem esperar por resposta, pronta para as bodas do pecado.
Deitado na cama Cedro Angélico lia um livro, sorvendo as letras tremulantes sob o lume instável
de um pequeno lampião de campanha. Metade de baixo coberta pelo lençol, dorso descoberto
exibindo a rigidez muscular dos homens que voam, conservados e prontos, mesmo na meia idade.
Tirou os olhos do livro que lia e olhou, simplesmente olhou para ela. Palavra não foi dita, nem
palavra carecia. Queriam a mesma coisa e nem precisou haver um acordo, pois um pacto tácito de
luxuria já havia, desde alguns dias. Ele estendeu a mão para ela e a guiou a se sentar na borda da
cama. Fê-la despir-se devagar, debaixo de suspiros, pois os sons fazem parte, da mesma forma
que os cheiros. Depois a induziu a andar nua pela casa, arrostando um perigo picante, silencioso
e obsceno que fervilhou o desejo. Em seguida brincou com seus pelos e novelos: os lisos e os
hirsutos.
Resumindo:
o
inesquecível intercurso durou enquanto a noite durou e todos os cantos das carnes e das almas
entrelaçadas que podiam dar prazer – e são muitos – foram meticulosamente explorados. No fim
a exaustão e todas as suas sujeiras, sujas mas laváveis e santas.
No dia seguinte Cedro Angélico não foi mais encontrado, no quarto, na povoação ou
cercanias. Por muito tempo, dele nem eu mais ouvi falar. Começava o terço final da sua vida, a
parte mais obscura, que deixo ao leitor a tarefa de recriar numa outra ocasião. Partiu sem agradecer
tantos favores impagáveis. Deixou um maço de recibos quitando as dívidas que tinha para cobrar
do marido. Não se sabe se houve ironia, mas o pobre ficou muito agradecido. Claro, no geral,
Cedro Angélico deixou muito mais do que isso. Aquela competente libertinagem acabou sendo o
mais apaixonado banquete da vida de Anêmola Malesco. Nem tinha como não ser. Não de doce
recordação, contudo, mas de lascas cortantes de sofrimento pacientemente curtido pela vida à
fora, que a paixão costuma cobrar as suas dívidas. Pois que a outra mulher - Begônia Paçante, a
criada – também espetada na paixão, não aceitou a parte que lhe tocou na repartição do vinho no
cálice daquela concupiscência. Enquanto jazia na frigidez escura do seu quarto, contida pela
manobra solerte da patroa tresloucada de desejo, sorveu devagar a sua parte e resolveu se vingar
com requintes de crueldade. Tomou para si o fruto do adultério, como se seu tivesse sido, o ventre
fecundado.
O resto da história já vimos.
EPÍLOGO E FUNDO MORAL
Há uma lacuna de trinta e cinco anos na narrativa da vida de Cedro Cedrus, depois Angélico.
Não tive ânimo de pesquisar esse período obscuro, estando tão longe no tempo e no espaço e um
tanto carente de fé na crença de que o esforço despendido na diferenciação das metades do prazer
possa ter alguma importância.
Mas
posso
assegurar que, nesse período, nosso herói ainda teve um longo período de gozos, refinados ou
103
grosseiros, breves ou pontuais; pois a vida é assim. Acabou daquele jeito, no seu deleite final, feliz
com a sua esperteza, deselegante e rasteira.
Açucena Cedrus não teve lacunas na sua vida: foi curta e intensa como, no essencial, aqui
foi narrado. Abreviada nos exageros do amor e da paixão, foi intensa de fato, pois foi por conta
de tudo isso que morreu antes do que podia se tivesse evitado o descuido no exame das maçãs.
Cedro Cedrus, depois Angélico, morreu sem ter tido tempo de pensar se errou na opção.
Devem estar ambos no céu.
Eis a forma que encontrei para expor as partes da fruta vermelha, em forma de coração. O
leitor que julgue a valia das opções com seu fino paladar, temperado nos prazeres que provou,
pois não há quem isso não tenha feito na degustação da maçã; os santos e os pecadores.
Qualquer que seja a escolha, hei de dar-lhes razão.
104
O vendedor de epitáfios
e
outras histórias breves
Contos
105
A DOMESTICAÇÃO DA BARATA
Pode um inseto preencher uma lacuna na vida de alguém? Até ontem esta pergunta me
pareceria aloucada. Talvez seja. Hoje seria, ontem e antes também se a minha condição não fosse
tão peculiar. Ou não, se você, como eu, mesmo sem motivo, começar a achar que um inseto pode
de fato preencher uma lacuna na sua vida. A vida ocupa um espaço que pode ser grande ou
pequeno. Ninguém se preocupa com uma entidade de dois centímetros de comprimento por
menos de um centímetro de largura, cheia de pernas, cascudos e antenas, num momento em que
a sua vida está ocupando o espaço de um bosque repleto de árvores frondosas, transpassado de
sol e com o céu encimando o teto numa largueza de infinito. Certamente não. Nessas
circunstâncias será preciso muita coisa para preencher uma vida. Você estará pensando em como
ser glorioso e ter a memória respeitada por muito tempo. Ou em sofisticar o padrão de consumo
e viver regaladamente. Ou em melhorar a aparência e viver mais de cem anos, viçoso e admirado
pela capacidade oculta de vencer a decadência natural das células que compõem o animal de que
somos feitos, programados essencialmente para garantir a perpetuação da espécie, procriando e
depois morrendo como merece, independentemente de ter sido justo ou ímpio.
Mas, se a sua vida transcorre num espaço quadrado de doze metros, um inseto talvez possa
preencher uma lacuna. Pelo menos eu senti assim enquanto olhava aquela barata parada e
desconfiada, perscrutadora pesquisando o canto tridimensional formado pela junção de duas
paredes e um piso, todos absolutamente banais. Pesquisando com certeza pois aquelas antenas
não estariam tão vibrantes apenas para torná-la atraente. Baratas, insetos nojentos, predadores.
Temos horror ao fato delas preferirem habitar os esgotos. Mas ninguém sabe muito bem qual é o
mal que elas causam. Mesmo assim, nós as detestamos, enfim, insetos. Na escala de prestígio da
criação só perdem para os vermes. Mas, no momento em que você e ela são os únicos seres vivos
num espaço de doze metros quadrados - digo quatro metros de comprimento por três metros de
largura bem medidos, ou vice-versa – ela passa a ter alguma importância. Primeiro porque ela se
mexe e isso traz vida para dentro do seu espaço confinado onde você, embora reine, reina
inutilmente se nada se mexe e, assim, se submete ao seu reino. Uma barata, convenhamos, já está
intrinsecamente submetida à sua superior autoridade humana, pois a sua capacidade de esmagá-la
com um pisão é infinita, embora você nem sempre saia vencedor nesse rinha, principalmente
quando ela está protegida pela intersecção de duas paredes e um piso como é o caso presente. Mas
isso não importa. O que importa é que ela se mexe e, assim, o meu reinado está estabelecido como
convém. É condição necessária ao meu conforto moral, mas não é suficiente pois na solidão pesa
mais o lado social do que o político. Portanto eu estou muito mais interessado em estabelecer
uma interação do que mostrar a minha força e é com essa intenção que vou tentar uma
aproximação.
Estou deitado na minha cama e ela está num canto da minha cela devidamente arrumada
com o lençol estendido, o cobre leito ajeitado o os cobertores caprichosamente dobrados ao pé
da dita cama. É que estou preso mas não sou desleixado, embora eu tenha provocado
deliberadamente a atração da barata com alguns restos de comida que deixei fermentando nos
106
cantos da cela com esse precípuo propósito. Tive até o refinamento de temperar o repasto com
uns grãos de açúcar para aumentar a atratividade.
Sou o único prisioneiro aqui confinado, dada minha enorme periculosidade. O Estado se
preocupa muito com o cidadão que ele tem que proteger, daí essa torpe providência que me priva
da convivência com outros mamíferos bípedes, implumes e eretos como eu, dotado de um cérebro
absurdamente grande para o meu tamanho na escala dos seres vivos. Mas não podem me impedir
de conviver com outros seres vivos insignificantes. Decorre singelamente disso minhas tentativas
de aproximação àquela barata. Soa como uma conspiração e isso me diverte e me faz voar. De
fato a presença da barata coroa o sucesso de um plano bem urdido, como podes concluir. Mas o
plano está incompleto e acaba na atração da barata. Não considerei o depois, quer dizer como me
comunicar com ela. Lá está ela e aqui estou eu olhando para ela deitado no meu leito sem saber o
que fazer agora. Se eu me aproximar precipitadamente a tendência dela é fugir. Não posso correr
esse risco. Seria desperdiçar os quinze dias que gastei sevando os cantos da cela à espera de que
algum inseto aparecesse. Preciso saber mais a respeito das baratas. Vou esperar mais um pouco,
afinal tenho todo o tempo do mundo. Assim decido ficar só olhando, sem nenhum particular
propósito. Ela parece estar fazendo o mesmo em relação a mim. Tento fazer um exercício de
empatia me colocando no lugar dela. O que eu faria se fosse ela? Uma dedução é clara e direta:
não teria porque fugir se não me sentisse ameaçado e mais, voltaria sempre a um lugar onde
soubesse encontrar alimento farto e saboroso. Essas são as necessidades básicas de todos os seres
vivos, portanto, claro, aplica-se também às baratas. Aqui está a essência do comportamento de
todos os insetos e animais. Eis a regra número um do manual da domesticação e foi com base
nele que o homem cativou as galinhas, cavalos e cachorros e os trouxe para dentro das suas
fazendas e quintais. Aqui estou eu enxergando essa coisas com toda a clarividência mas,
infelizmente, não posso ir além nas minhas primeiras reflexões sobre o precioso inseto. É que de
repente ele se foi, sem mais nem menos. Escapou por debaixo da fresta das grades, coisa que eu
não posso fazer. Espero que volte amanhã. Senti uma certa frustração, quem sabe até um vazio.
Preciso ter paciência e alguma perseverança. Fico olhando o teto. Nada se mexe e o silêncio
estarrece. Estou sozinho outra vez.
Acordo e me recuso a abrir os olhos. Estou deitado de costas e eles estão consequentemente
dirigidos para o alto. Se eu os abrir agora a primeira coisa que vou ver é o teto, vazio como sempre,
rude e baixo, confinando e escondendo o céu infinito. Mantenho os olhos fechados, viro-me de
bruços, apoio a cabeça sobre os antebraços cruzados e miro o canto da cela onde o inseto estava
ontem. Mantenho os olhos ainda fechados, reservando um suspense. Estará ela lá? Penso nas
probabilidades e retardo minha reentrada em mais um dia, que nem sei qual é e nem faz diferença.
Mas mantenho a esperança de que ele não seja igual a todos os outros. Basta um pequeno detalhe
cheio de pernas e um par de antenas frenéticas. Abro os olhos em neutra emoção, quero crer. Ela
não está lá. E porque deveria? Baratas não marcam encontro, não fazem compromissos.
Mantenho a razão e a paciência. Levanto e vou cuidar da minha rotina diária. Faço tudo devagar
para não ficar sem ter o que fazer muito cedo. Hoje não é dia de banho e, assim, minha higiene
matinal se resume a lavar o rosto, escovar os dentes e pentear os cabelos. De vez enquanto confiro
os cantos da cela e os lugares mais escondidos. Por fim visto o uniforme de prisão. É a hora exata
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da chegada do café. O carcereiro está orientado para não me dirigir a palavra nem escutar o que
eu digo e faz isso com extrema competência e crueldade. Foi escolhido a dedo e faz parte da suave
tortura a que me condenaram. Deixa a miserável refeição e se vai como está treinado a fazer.
Depois de comer espalho os farelos de pão pelos cantos aumentando a tentação para quem se
dispor à minha companhia. Agora fico esperando a hora do passeio solitário no pátio. É uma
dádiva que tenho uma vez por semana e é hoje.
As portas que levam ao pátio se abrem automaticamente sob o ranger de ferros pesados,
percutidos a custo de uma rude mecânica. Saio da cela e ganho o corredor. O pátio fica no fundo.
Não é muito maior do que a cela, mas tem a exuberante capacidade de receber a luz do dia.
Também tem a bondade de deixar medrar algumas plantinhas medíocres nas rachaduras do piso,
na junção com as paredes de pedra. São verdes e conseguem se manter viçosas apesar do pouco
sol. Tenho fascinação pelo verde da natureza. Embora medíocres as plantinhas são macias, como
macio é o veludo. Gosto de acariciá-las e sentir que estão vivas. Mas não se mexem e isso as
tornam inacessíveis e distantes. Existe um atrativo extra nesse pátio maravilhoso. Sempre é
possível localizar um urubu riscando as grimpas do céu. É o voo mais elegante que existe.
Majestosas criaturas ao longe. Mas o tempo de permanência no pátio é curto, quase irreal. Talvez
seja melhor assim pois tornam aquela pausa extremamente preciosa, também pela sua raridade.
Uma sirene anuncia que devo voltar. A punição pelo descumprimento da ordem de retorno à cela
é cruel: o acesso ao pátio fica suspenso por um mês inteiro. Não ouso desrespeitar o sinal.
Passei o resto do dia lendo que é quase só o que faço. Tenho o singelo direito de poder
requisitar cinco livros para ler a cada mês. Lembrei que amanhã começa um novo período. Vou
pedir livros sobre os hábitos dos insetos. Quem sabe descubra os segredos da arte de domesticar
as baratas. Claro que não estou muito entusiasmado com essa possibilidade pois tenho certeza que
o máximo que o conhecimento humano conseguiu avançar foi saber que elas vivem em torno dos
homens. Quer dizer vivem deles mas não vivem para eles como os animais domésticos em geral.
Na verdade o conhecimento humano só avança de verdade sobre coisas que são úteis ou
malévolas. No caso das baratas não acontece nem uma coisa nem outra. É justificável que seja
assim. Talvez eu esteja exagerando no que diz respeito a carência de conhecimentos. Afinal não
preciso me aprofundar muito no assunto. Preciso apenas desenhar os passos seguintes ao meu
plano inicial de interação. Talvez também a palavra interação seja um exagero. Interagir significa
trocar informações, influências, emoções. Certamente não é bem o caso. Na verdade eu queria
apenas que ela vivesse por aqui, que estivesse presente com uma certa regularidade, concedendo
ao meu mundo um pouco de movimento, pois, além de mim nada aqui se mexe e esse é o meu
grande problema. Num ambiente imóvel fica difícil distinguir os limites do real, as diferenças entre
a vida e a morte.
Talvez me baste confiná-la em um vidro e ficar observando os seus movimentos quando
me aprouver. Até poderia ser justo, pois ela estaria confinada exatamente como eu estou e isso
nos tornaria mais iguais, facilitando a comunicação. É claro que ela não mereceria isso. Mas eu
também não mereço. Quanto tempo será que uma barata conseguiria sobreviver encerrada dentro
de um vidrinho? Claro que eu poderia fazer furinhos na tampa para entrada de ar e alimentá-la
com regularidade. Preciso saber um pouco mais sobre a capacidade de sobrevivência das baratas
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em condições, digamos, adversas. Sei que elas são muito resistentes o que minimiza os riscos de
uma experiência sem bases científicas.
Ia eu nessas reflexões, urdindo o meu plano de arranjar uma singelíssima companhia,
quando ela finalmente apareceu. Eu estava sentado na cama, casualmente olhei para o chão e lá
estava ela. Vinha cautelosa numa linha reta entre a pia e mim. Avançava um centímetro de cada
vez. Nas paradas balançava as antenas nervosamente como era o seu feitio, sondando as condições
de risco do ambiente. Fiquei imóvel estudando os movimentos do bicho. Ela veio evoluindo
lentamente e parou a trinta centímetros de mim. Permaneci imóvel pensando no que fazer.
Deveria tentar capturá-la? Não tenho um vidrinho ainda mas tenho uma caixa de fósforos que
pode servir de prisão provisória. Sim, é isso que eu vou fazer. Girei o dorso devagar tentando
alcançar a gaveta da mesinha. Durante dois segundos desviei os olhos da barata para localizar o
puxador da dita gaveta. Parece que ela adivinhou a minha intenção e quis fugir. Quando a olhei
novamente ela corria tentando entrar debaixo da cama que era o lugar mais escuro do ambiente,
portanto rota natural da fuga. Minha reação foi instintiva, sem chance de planejamento e controle.
Levantei o pé e quando ela passou sob ele desci-o como uma marreta esmagando-a
impiedosamente. Juro que não tive a intenção. Acho que os seres humanos já estão programados
geneticamente para agir assim. Pensando bem eu já devo ter feito isso uma dezena de vezes antes
de ser preso. Confesso que sequer dei a ela um enterro decente. Aliás deixei-a lá esmagada como
estava. Quem sabe aquela pasta esbranquiçada atraia algumas formigas.
O CONCILIÁBULO
Acontece que em 1770 a religião ainda ditava absoluta os destinos e costumes dos homens
como já vinha acontecendo há séculos. Mas, naqueles vetustos tempos do penúltimo quarto do
século XVIII, havia também as confrarias controlando, mais que nunca, as minúcias do cotidiano
das pessoas em nome de Deus: na alegria e na tristeza, na vida e na morte. Aliás, a morte ocupava
muito mais espaço do que a própria vida e os seus rituais se constituíam na mais solene e tenebrosa
das obrigações religiosas, que já não eram poucas. As heras eram daninhas e a era ainda um tanto
obscura e, assim, não havia nada mais presente do que a morte, mesmo porque o pessoal tinha
hábito de ir em enterro até dos parentes distantes dos vizinhos mais ranzinzas. Afinal prestar
solidariedade às pessoas na hora do supremo rito de passagem para a eternidade sempre podia
contar pontos diante do próprio criador. Também se morria muito pois a medicina ainda
engatinhava depois de tanto tempo.
Era natural que, além da Igreja Católica, também as confrarias se ocupassem dos rituais
fúnebres. Elas tinham um destacado papel nesse mistér e, tal era o empenho em cumpri-lo bem,
que chegava a haver conflitos de interesses nas piedosas práticas de honrar os falecidos.
De sorte que em novembro de 1770 - sendo d. José I rei de Portugal - instalou-se uma
importante assembleia numa das salas do esplendoroso convento de Mafra, cedida para o fim
precípuo e inequívoco de regular as relações dos confrades mafrenses com os rituais fúnebres.
Mafra sempre teve muita influência na nação inteira, debaixo do padroado. Por isso mesmo o
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cardeal patriarca de Lisboa era o patrono do encontro. Pensava tirar de lá elementos para regular
a questão em âmbito nacional.
Por inspiração do próprio d. João V, o convento sempre praticou uma política de amplo
apoio às irmandades, razão pela qual pululavam fraternidades religiosas em torno do magnífico
edifício: da Penitência, do Rosário, do Senhor dos Passos, das Almas, Das Dores e outras.
Naquele dia específico só duas delas estavam presentes, exatamente as de maior prestígio e
que abrigavam a gente mais graúda e influente do lugar. Mas tinham credenciais de ampla
representatividade. De um lado os irmãos da venerável Ordem Terceira de São Francisco sob a
autoridade do seu frade comissário e da outra os membros da Irmandade do Santíssimo sob a
chefia do seu juiz presidente. O conciliábulo, entre outras coisas relacionadas às solenidades
funerárias, tinha sido estabelecido para disciplinar uma questão particularmente sensível. É que
estava havendo uma certa confusão nos funerais daqueles irmãos que, ao mesmo tempo,
pertenciam às duas confrarias, ocasião em que costumavam surgir constrangedoras discussões - à
vista do morto - para definição da posição dos irmãos de cada confraria na formação da guarda
de honra e no acesso às alças do caixão. A matéria costumava afetar particularmente as grandes
confrarias, sendo comum também conflitos com os irmãos do Carmo. Enfim, a divergência era
de extrema relevância e, não raras vezes, as querelas entravam na alçada do cível e acabavam na
mesa do ouvidor, disputando com questões criminais. Daí pois a pertinência daquele conciliábulo.
Quem falou primeiro foi o frade comissário dos terceiros de São Francisco, coordenador
do encontro. Era um grande orador, brilhante no púlpito, na classe e nas assembleias. Mas nessa
ocasião sua fala seria breve, mera abertura solene dos trabalhos. Havia pouco mais do que cem
pessoas no evento, de sorte que ele falou num tom moderado e pausado, mais professoral do que
eclesiástico. Começou lendo uma mensagem do patriarca de Lisboa onde o alto prelado
manifestava grande interesse pelos resultados daquele simpósio. Em seguida passou a salientar
que o mais sagrado dos direitos assegurados pelas irmandades aos seus sócios era o direito de
serem acompanhados no seu enterro, por todos os irmãos, com toda dignidade, respeito e
pompa... se estivessem em dia com as anuidades, claro; pois todo direito pressupõe atendidos os
deveres precedentes. Lembrou que esse era o tema principal do encontro. Pediu que Deus
iluminasse as razões dos que ali estavam presentes e puxou uma reza comprida. Terminada a
oração, o frade comissário passou a palavra ao juiz presidente da irmandade do Santíssimo que,
com sua potente voz de tenor, anunciou o primeiro ponto da pauta. Tratava-se de um tema que
tocava numa das essências da razão de ser das irmandades. É que quando um irmão morria longe
da base da sua confraria, a distância prejudicava o deslocamento dos demais irmãos para as
homenagens fúnebres o que comprometia a dignidade da cerimônia por falta de quórum e/ou
paramentos apropriados. Para esse ponto um confrade do Santíssimo já tinha uma solução que
agradava a todos. Assim não houve ressalvas e a proposta pode ser aprovada por aclamação. Ficou
decidido que quando um irmão morresse em local distante um membro da irmandade, assim que
ficasse sabendo do passamento, recolheria os hábitos dos demais irmãos, se deslocaria até o local
do falecimento e cederia os hábitos para que os irmãos da confraria congênere local pudessem
representar a confraria original do morto. Está certo que a solução tinha um ponto falho, pois se
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garantia a representativa da irmandade do falecido não garantia o quórum necessário para
assegurar a dignidade da cerimônia. Esse detalhe não chegou a ser resolvido, mas não atrapalhava
o mérito da solução proposta. Bastava então lembrar em ata a necessidade futura de melhoria
desse ponto.
Assim passou-se ao segundo item da pauta. Tratava-se de uma questão de dignidade
envolvendo os funerais dos pobres. É que estes não eram transportados em caixões fechados e
sim em esquifes abertos que quatro homens contratados para o transporte apoiavam nos ombros,
levando o morto ao descoberto, sujeito a chuvas e trovoadas e como se fosse um objeto qualquer.
Muitos consideram a exposição do cadáver à curiosidade das ruas um verdadeiro atentado ao
pudor do falecido. Essa questão suscitou algum debate pois mexia um pouquinho com o bolso
dos irmãos ali presentes. Como tinha havido oposição e emendas à proposta teve que ir à votação
mas acabou aprovada sem muita dificuldade. Ficou estabelecido que a prática seria proibida e que
os corpos transportados em esquifes sem tampa seriam cobertos com um grosso pano preto,
cuidadosamente fixado para não ser levado pelo vento. O pano seria fornecido à conta dos fundos
das irmandades ricas. Adicionalmente ficou acertado que nos percursos longos, no meio do
trajeto, os quatro carregadores do esquife seriam rendidos evitando que o féretro fosse
interrompido em plena rua, para descanso dos carregadores. Medida mais do que justificada pois,
nos percursos extenuantes, era comum os carregadores pararem numa taverna para descansar e
tomar um trago enquanto o morto e demais acompanhantes ficavam na rua mal ajeitados
esperando.
Encerrada a segunda deliberação da pauta, já se estava aproximando a hora do almoço.
Decidiu-se, pois, deixar a terceira e mais importante questão para depois do intervalo. Mas antes
do encerramento dos trabalhos a palavra foi passada ao frade comissário dos Terceiros de São
Francisco para que ele pudesse transmitir uma boa notícia chegada de Lisboa na semana anterior
mas mantida sob segredo para aquela ocasião. Anunciou ele que o cardeal-patriarca de Lisboa
tinha determinado que todos os irmãos que acompanhassem a procissão do Rosário pelas ruas da
vila de Mafra teriam direito a duzentos dias de indulgências. Lembrou que, até então, essa graça
só era concedida aos membros efetivos da irmandade do Rosário. A notícia causou grande alegria
nos presentes e foi nesse clima festivo que se dirigiram ao refeitório onde iriam tomar as refeições,
misturados aos frades franciscanos residentes no convento. O refeitório conventual era formado
por uma sala comprida, com duas suntuosas portas nas extremidades e vinte janelas nas laterais.
No centro trinta e seis mesas compridas com capacidade de acolher cerca de quatrocentos
comensais, assentados em desconfortáveis bancos sem encosto.
Como em tudo no convento, ali também havia um ritual a ser seguido. Mesmo porque, era
inadmissível alimentar o corpo sem alimentar simultaneamente o espírito, pois que uma coisa
completava a outra. O alimento do corpo era, digamos, razoável: sopa, carne assada, toucinho
frito, arroz, ervas cozidas, pão, vinho (moderada porção) e água (à vontade). O alimento da alma
talvez não ficasse muito atrás da mediana qualidade da refeição propriamente dita. Começava com
uma breve oração tirada pelo frade capelão, preguiçoso, gordo e esfomeado mas discreto e muito
respeitado nas suas incumbências. Na sequência, enquanto o pessoal comia num silêncio forçado,
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um noviço - do alto de um púlpito que emergia majestoso da parede no centro da sala, com um
livrinho na mão e passando um discreto nervosismo - recitava lições espirituais. Muito
apropriadamente as lições escolhidas eram aquelas que associavam o espírito ao estômago, tais
como o milagre dos peixes, a multiplicação dos pães e a transformação da água em vinho, benditos
milagres que nivelavam o espírito e o corpo. Naquele precípuo momento, embora a parte mais
suculenta da refeição fosse um assado de cordeiro, a lição tratava do milagre dos peixes. Mas
ninguém se confundiu com aquele conflito das carnes ultrapassando no per capita o consumo
usual do vetusto convento. Afinal era um dia incomum em que se misturavam os fradecos do
convento, os irmãos de São Francisco e os confrades do Santíssimo. Mas o tempo sempre passa,
passou depressa mesmo na inteira hora reservada à sagrada refeição e, enfim, eis a hora de voltar
à sala do conciliábulo, o que foi feito com uma certa preguiça manifesta nos paços lentos com que
todos retornaram.
A segunda parte da reunião iria tratar do assunto que, a rigor, tinha sido o motivo principal
da convocação. Mais uma vez a abertura do simpósio foi precedida de uma oração, desta vez breve,
contudo. Iniciados os trabalhos propriamente ditos a palavra foi tomada por um dos membros da
mesa diretiva que introduziu o assunto a ser debatido daquela hora, ou seja, a tal questão da
regulação dos rituais de funerais dos irmãos que pertenciam simultaneamente a ambas irmandades
ali representadas. Essa condição pegava cerca de um terço dos componentes do plenário. Mas,
pelo outro lado, pegava a totalidade dos membros das mesas diretivas, quer dizer os que
coordenavam os debates. É que entre eles estavam os homens de maior destaque e fortuna de
Mafra que eram exatamente aqueles que podiam se dar ao luxo de pagar as anuidades da
Irmandade de São Francisco e do Sagrado Coração ao mesmo tempo. Antigamente uma sábia
determinação de Lisboa proibia que diretores de irmandades pertencessem a mais de uma
agremiação, mas agora não havia mais tal restrição e o pessoal de posição diretiva podia discutir
livremente, apresentar propostas e influir nas decisões de acordo com suas preferências pessoais.
Sendo assim, eram eles os principais interessados na matéria. Mas, de qualquer forma, em havendo
polêmica envolvendo propostas, ao final das discussões, elas teriam que ser colocadas em votação
secreta e seria adotada aquela que obtivesse maioria simples de votos.
O miolo da questão, que hora se examinava, era, enfim, a definição da disposição dos
membros de cada irmandade na guarda de honra do esquife ao longo do cortejo fúnebre e mais
especificamente a distribuição do privilégio de pegar nas alças do caixão. Havia três propostas
previamente inscritas para serem examinadas. A primeira, cujo patrono era um ilustre bacharel em
Cânones pela universidade de Coimbra, propunha que o morto, antes de morrer, deixasse uma
carta determinando a qual das irmandades caberia distribuir os privilégios do cortejo. A segunda
proposta foi apresentada pelo vigário da Basílica do convento, membro nato da mesa dos irmãos
do Santíssimo. Propunha que os privilégios do cortejo fossem distribuídos por sorteio, ou seja, a
irmandade premiada determinaria quais dos seus membros comporiam a guarda de honra do
morto e carregaria as alças do caixão.
A terceira proposta foi formulada pelo frade capelão da enfermaria do convento. Parecia a
mais democrática e ele confiava muito no sucesso da sua adoção. De sorte que expôs os detalhes
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com empenho e entusiasmo embora a ideia fosse muito simples, assim como as demais. Em
essência propunha que as posições da guarda de honra e do acesso às alças do caixão fossem
distribuídas igualmente aos membros de ambas irmandades em posições alternadas de forma a
descaracterizar qualquer prevalência.
A apresentação das três ideias foi rápida e objetiva, mesmo porque não havia mesmo muito
o que explicar. Assim passou-se à discussão com abertura dos debates a todos os presentes,
bastando o interessado pedir a palavra. Pelas regras do simpósio quem desejasse deveria apresentar
as suas restrições a cada proposta, pela ordem de apresentação e seu proponente poderia rebater
as críticas como julgasse necessário. Tréplicas não eram admitidas, mas eventualmente, sob
aquiescência do proponente poderia haver emendas. Quem primeiro pediu a palavra foi um
produtor de oliveiras dos arredores de Mafra, de baixa escolaridade mas muito lúcido e experto.
Criticou a primeira proposta com base no fundamento de que seria constrangedor para o morto,
já passado à outra vida, deixar uma carta em que revelava que tinha preferência por uma das
irmandades a que pertencia em detrimento da outra. Além do mais o fundamento da ideia era
ilógico pois, se o finado tivesse preferências ele, em vida, teria pertencido apenas àquela confraria.
Se ela pertencia às duas é porque tinha igual apreço por elas. O argumento era tão claro e linear
que o patrono da ideia, a despeito da sua alta condição de bacharel coimbrão absteve-se de rebater
a crítica, ainda mais tendo notado no plenário e na mesa vários meneares de cabeça, aprovadores
da crítica.
Passou-se, pois, ao exame da proposta seguinte. Desta vez quem pediu a palavra foi o
capelão do convento. Apresentou sua restrição repudiando a proposta da distribuição por sorteio
com fervor e até deselegância, argumentado que o acaso não faz parte dos desígnios de Deus.
Além disso, ponderou, com uma certa ironia, que sorteio lembra jogo e não é disso que tratava
aquela reunião, mas sim de coisa muito mais elevada. A crítica fez corar de raiva o vigário da
basílica de Mafra, proponente da ideia. Não só pela agressividade em si mas também pelo motivo
da mesma. É que já havia uma animosidade precedente entre o vigário e o capelão por conta de
umas divergências teológicas entre eles, de pública notoriedade. De sorte que aquele embate já era
mais ou menos esperado, pois sempre acontecia nas reuniões onde ambos estavam presentes.
Assim ninguém estranhou quando o vigário se levantou, se aproximou do capelão e rebateu a
crítica no mesmo tom em que ela tinha sido feita, quer dizer num misto de raiva e ironia. Ponderou
que quando se trata de Deus não é apropriado falar em acaso pois os resultados obtidos por
sorteios nada mais são do que a manifestação da vontade imutável do Criador que os homens não
tinha como conhecer previamente. Além do mais, comparar com um mero jogo de azar um
assunto tão sagrado como o que se estava debatendo era não só uma heresia como também uma
monumental pobreza de espírito. Ia nessa linha, quando o frade comissário, já prevenido, tocou a
sineta. Isso significava o imediato estabelecimento do silêncio no recinto. O vigário obedeceu,
suspendeu sua argumentação e retornou incontinente ao seu lugar na mesa. Caminhando de costas
para o plenário acabou poupado de ver os risos contidos da assembleia. Gostaria de argumentar
muito mais como era da sua índole, mas não podia deixar de se calar, mesmo porque a
desobediência ao toque de silêncio significava a expulsão do transgressor do recinto, além de
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outras sansões formais, cominadas nas regras estabelecidas pelo patriarcado de Lisboa para esse
tipo de incidente.
Assim que o vigário se assentou e pareceu recobrar a serenidade a sineta foi novamente
tocada restabelecendo a continuidade dos trabalhos. Ninguém mais pediu a palavra para tratar da
proposta. Até porque ninguém queria se meter naquele imbróglio teológico assaz delicado,
complexo e pouco objetivo. De sorte que o frade comissário abriu os debates para a terceira
proposta. Desta vez quem pediu a palavra foi o ouvidor da comarca. Começou lembrando que,
como membro de ambas irmandades, ele estava diretamente atingido e que tinha especial
empenho em contribuir para a melhor solução do problema. Mesmo porque, a questão muito o
afligia. Jurou que não estava em busca de solução para seu problema pessoal. Feito esse preâmbulo,
ponderou que a ideia de que os privilégios de distribuir as vagas de honra do cortejo entre as duas
irmandades de forma alternada e equitativa trazia um terrível incômodo à individualidade das
pessoas que pertenciam às duas irmandades. Isso na medida em que os irmãos nessa condição
teriam que fazer uma opção sobre qual irmandade iria representar. Isso feria o princípio da
unicidade da pessoa humana como detentora de direitos e deveres. Encerrou acentuado que a
secção legal de um indivíduo em duas partes era uma aberração monstruosa à luz do direito
moderno, seja civil seja canônico. Havia, pelo menos, um meia dúzia de ilustres bacharéis no
plenário mas, nem eles e muito menos os demais, entenderam muito bem os argumento do
ouvidor. De sorte que, como tinha acontecido com a proposta anterior ninguém quis de meter no
assunto.
Como tinha havido oposição mas não tinha havido propostas de emendas as propostas
originais iriam ser submetidas à votação secreta tal qual foram originalmente formuladas. Assim
foi feito, sendo o voto registrado num pedaço de papel onde o votante deveria constava o número
da proposta escolhida conforme a ordem de apresentação. O coordenador do simpósio abstinhase de votar, lhe sendo reservado, contudo, o voto de minerva.
Terminada a votação a mesa passou imediatamente ao escrutínio. Os votos foram contados
e recontados mais de uma vez, o que ocupou cerca de uma hora, tempo em que todos
permaneceram em seus lugares em relativo silêncio. Ao final desta uma hora o resultando foi
anunciando e arrancou exclamações ruidosas do plenário. É que havia ocorrido um espetacular
empate entre as três propostas, coisa um tanto inesperada. Sendo assim, conforme as regras,
tocava ao frade comissário emitir o voto de minerva e apontar a proposta vencedora. Ele
manifestou uma honesta contrariedade com a missão, mas não tinha como fugir da
responsabilidade de determinar qual das propostas deveria ser adotada. Quis ser cauteloso visto o
interesse que o cardeal patriarca de Lisboa tinha no resultado daquela reunião já que ele cogitava
de estender o que ali fosse decidido a todas as irmandades de Portugal. Chamou o representante
do patriarca a um canto e tentou arrancar dele algum indício das preferências do venerável prelado.
Mas não foi ajudado pois o representante nunca havia tratado desse assunto com o cardeal nem
tinha recebido qualquer instrução sobre a matéria. Ou seja, aquela assembleia estava plenamente
dotada de soberania e liberdade. De sorte que o pobre frade comissário tinha que se valer apenas
do seu tirocínio. Isso o estava incomodando. É que ele tinha esperanças de ir servir em Lisboa e
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temia tomar uma decisão que viesse contrariar o patriarca, prejudicando seu projeto. Voltou a
mesa e pediu que cada patrono apresentasse suas propostas novamente para que pudesse examinálas com toda a judiciosidade. Assim foi feito. Nesse tempo tomou anotações numa caderneta de
couro que tirou de sob o hábito. Pelo movimento do lápis e contração da face, deixou transparecer
uma certa aflição. Terminadas as apresentações leu e releu as anotações, consultou as fisionomias
da assembleia que permanecia em silêncio de olho nele. O frade fechou os olhos e assim
permaneceu. Passados alguns minutos se levantou e olhou o plenário. Comunicou um tanto
desolado que ainda não se sentia em plenas condições de decidir. Assim, tinha resolvido ir até a
capela rezar, pedindo inspiração. Solicitou que todos permanecessem em seus lugares e se retirou,
deixando a assembleia um tanto contrariada com toda aquela indecisão.
O plenário conseguiu ficar quieto por cerca de uma hora, desde a saída do frade comissário.
Depois, a medida que a ausência se prolongava, foi ficando agitado, mesmo porque, a noite
principiava a cair e todos começavam a achar que já era hora daquilo ter terminado. Com aquele
frio mafrense de novembro, acentuado pelos ventos que vinham do mar, preferiam estar em casa
tomando um caldo verde cheio de paios gordurosos. Assim, muitos já tinham deixado seus lugares
e formado rodinhas de conversação quando um jovem frade adentrou o recinto espavorido. Trazia
a notícia de que o frade comissário estava caído no chão da capela desfalecido. Passou o recado e
lançou-se novamente porta a fora correndo pelo corredor em direção à capela. Foi seguido por
um grupo de pessoas e, em poucos segundos, o corredor que levava à capela, estava tomado pelo
alarido de dezenas de passos apressados percutindo o assoalho. Levaram poucos minutos para
chegar ao local onde o frade estava caído. E lá estava ele na mesma posição. Não foi difícil
constatar que o pobre homem estava morto. Mesmo porque, estampava aquela expressão
inconfundível dos mortos: olhos arregalados e boca aberta. Alguém corrigiu a terrível expressão
cerrando os olhos e tapando a boca do cadáver. Logo se formou um círculo compacto em torno
do corpo. Em poucos minutos o próprio frade que o havia encontrado puxou um terço de
defuntos que foi rezado com enorme contrição e alguns arremedos de lágrimas. Aos poucos foi
chegando mais gente pois a notícia do passamento correu célere pelas alas do convento e ganhou
o largo defronte, exatamente o mais movimentado da vila de Mafra.
Terminada a encomendação emergencial o corpo do venerando frade comissário foi levado
para a enfermaria do convento para ser preparado para os funerais. Enquanto o corpo era limpo
e aromatizado alguém foi despachado até a cela do frade morto para apanhar as vestes especiais
que seriam utilizadas no funeral. Enquanto isso os participantes do trágico conclave se
dispersaram prometendo dar um pulo até em casa e voltar em seguida para cuidar dos detalhes
das exéquias que lhes tocavam na condição de irmãos do falecido.
Na enfermaria os frades residentes faziam a parte mais desagradável e materializada da
preparação. Mas o fizeram com zelo, piedade e os estímulos das orações que não cessaram um só
instante. Ao final, vestido com vistosos paramentos sacerdotais em tons de abacate do Brasil,
filetados com delicadezas de ouro; o corpo foi colocado em uma suntuosa urna de madeira escura
com alças de metal brilhante. Um cortejo informal transportou a urna até a magnífica abside da
basílica. Lá um grupo de piedosas irmãs já havia ornando um tablado suntuoso de madeira
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torneado que foi deslocado da sacristia onde permanecia à disposição para tais ocasiões. A urna
foi colocada sobre ele e cercada de coroas e tocheiros de prata. Estava montado o suntuoso
cenário fúnebre.
A noite já tinha cerrado e o resto dela correu devagar cheio de rezas, cantos e cerimônias
que tais, conduzidas pelo vigário da basílica. Ao se aproximar a madrugada o assistente do vigário,
a pedido do mesmo, convocou as mesas das irmandades do Santíssimo e de são Francisco para
que fossem assentados os detalhes do cortejo fúnebre, segunda e majestosa parte das exéquias
compreendendo a saída do féretro pelas ruas da vila até o cemitério que, aliás, ficava nos fundos
do próprio convento. E foi aí que reapareceu o impasse da questão das preferências das
irmandades, exatamente o impasse que o próprio morto não havia resolvido. Tendo pertencido
tanto aos irmãos do Santíssimo quanto aos de São Francisco quais deles teriam a honra de compor
a guarda e levar as alças do caixão? Ou seja, qual das três propostas que tinham sido examinadas
no conclave inconcluso deveria ser adotada?
Tocava suspender o funeral e reabrir o conclave. Eram as circunstâncias impostas pela mão
insensível do destino. E assim foi feito. A questão irresoluta ocupou toda a manhã em debates
acalorados. Ao final houve consenso mas não houve solução para o problema imediato. É que
todos concordaram que o processo iniciado no conclave ainda tinha que continuar em aberto e
não poderia ser atropelado, mesmo justificadamente. Só o conciliábulo já iniciado tinha autoridade
para resolver a questão e teria que fazê-lo com absoluta judiciosidade, gastando o tempo que fosse
preciso. Alguém propôs uma solução provisória, ou seja, que valesse apenas para aquela situação
específica, tirada de um acordo entre as partes. Mas não houve consenso neste ponto, pois muitos
entendiam que uma tal decisão, mesmo provisória, certamente iria influir na decisão final.
Resolveu-se então fazer uma consulta urgente diretamente ao patriarca de Lisboa. Seria composta
uma comissão para ir até o supremo prelado expor a situação, apresentar as três propostas e pedir
que ele mesmo exercesse o voto de minerva, ou que desse alguma uma outra solução. A comissão
partiria imediatamente e, com sorte, poderia estar de volta na manhã seguinte.
Enquanto isso as solenidades fúnebres continuaram paralisadas na basílica. Apenas uma pia
cantoria, esticada como desse o repertório disponível para aquelas ocasiões.
Na manhã seguinte, por volta do meio dia, a comissão estava de volta de Lisboa. Mas
infelizmente não trouxe a solução. Acontece que o precioso cardeal patriarca tinha partido
inesperadamente para Roma, atendendo a uma convocação urgente do Papa. Assim, infelizmente,
o corpo teria que continuar mais um pouco insepulto. Decidiu-se, então, marcar uma eleição
urgente para escolha do novo frade comissário dos irmãos de São Francisco e, assim que ficasse
recomposta a mesa, seria realizada uma nova e definitiva seção do conciliábulo para voltar a
discutir a questão das três propostas. Caso persistisse o impasse o novo frade comissário decidiria
pelo voto de minerva e ponto final. Mas aqui, novo problema: ainda não era possível marcar a
data pois os únicos dois frades dos irmãos de São Francisco habilitados a concorrer ao cargo
estavam viajando. Com sorte, talvez dentro de três ou quatro dias se pudesse ter tudo resolvido.
Enquanto isso o corpo teria que continuar sendo velado, resguardado de qualquer medida
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precipitada. Afinal não precisaria haver afobação, visto que, aquele inverno estava sendo muito
rigoroso, o que ajudava na conservação da matéria, mesmo morta.
A cada dia que passa há mais moscas e menos gente no velório. À noite, então, o corpo do
pobre frade comissário fica entregue a umas duas ou três religiosas sonolentas.
Já se passaram sete dias e o corpo permanece insepulto. A despeito da baixa temperatura,
devido ao efeito do calor dos tocheiros o tom de abacate do Brasil dos paramentos do frade parece
estar ficando mais amarelo. Ao mesmo tempo seu rosto vai ficando cada vez mais céreo.
Começam a circular rumores de que a família do morto pretende sequestrar o cadáver na
calada da noite.
O VENDEDOR DE EPITÁFIOS
“Filho de coveiro, coveiro é”, dizia a tradição quando tradição ainda dizia alguma coisa.
Mas, mesmo naquele tempo, alguém daquela soturna e miserável linha de sucessão, achou que não
tinha que ser assim. Foi louvável a rebeldia, houve empenho e luta, como se verá. Mas, também
se verá que não é tão simples quebrar certas sinas ou teimosias do destino. Acho que foi o caso e
vou tentar demonstrar.
O nome do pai era “Zé Coveiro”, como não podia ser diferente, sendo Zé e coveiro e sendo
o povo como é, tão certeiro e grosseiro nessas coisas de apelidos. O tio também tinha a mesma
profissão e ambos, por sinal, seguiam a carreira do avô. Mas Lindomar repudiava ter que tomar o
sobrenome da alcunha da família, sendo ele, de direito, Lindomar Souza dos Santos. Mas até os
quatorze anos de idade nada garantia que ele não herdaria a pobre herança ancestral. Contudo,
por empenho da mãe, tinha aprendido as contas e letras fundamentais que era tudo que sua
vilazinha de distrito podia oferecer. Mas era pouco, pois ele tinha ambições. Para o pai, essa parca
educação até que tinha sido de sobra já que, para ser coveiro como ele, não precisava letra alguma.
Só uns braços dispostos e uma enxada afiada e pesada. Mais nada, pois tinha até autoridade para
escolher, a seu gosto, onde cavar o buraco destinado a cada defunto. O tamanho era padrão, no
cumprido, no largo e no fundo. Nada de carecer de contas ou marcação. Quando o caixão ia para
um jazigo mais trabalhado aí já não era com ele; coisa mais especializada, carecia de pedreiro. De
sorte que Lindomar, de bom talhe na musculatura dos braços, já tinha nascido pronto para sua
singela profissão. Mas nem chegou a ser sequer aprendiz, protegido pela mãe que priorizou a ida
à escola e os deveres das contas e do ditado. Queria seguir nos estudos e aos quatorze anos entrou
para o seminário, ajudado por uma tia, piedosa e que tinha prometido essa boa ação um dia. Com
essa medida pouco original o futuro parecia garantido. Mas a vida não é tão simples assim. Ele
ficou uma quadra de anos tentando ser padre. Era carente de vocação e também foi vencido pelos
impulsos da procriação, próprios da idade, embora pareçam precoces. A mãe compreendeu,
aceitou a decisão, rezou muito pedindo a Deus que norteasse o menino. E Ele ouviu as preces da
boa progenitora pois, ao contrário do que costumam ensinar, Deus não é vingativo. Assim, aos
dezoito anos o rapaz conseguiu um lugar no comércio, na loja do seu Cardozo, sólida e de muita
tradição. Tinha jeito pra negócios, com tino de vendedor, talento inovador, persistência e coragem.
Tanto que progrediu com uma certa rapidez. Com justiça, pois valores agregou e o negócio
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prosperou. Achou então que a vida lhe sorriria, pois tinha sido auspicioso o começo e gostava do
que fazia. Num esforço autodidata até seguiu nos estudos, refinando a intuição e pensando em
mais progressos.
Já durava quatro anos essa nova condição e Lindomar acreditou que, agora sim, a vida
estava traçada, começando pelo que mais queria desde pequeno que era se livrar do destino de ser
coveiro tal qual o pai, o tio e o avô, entre outros ascendentes mais remotos. Mas, aos vinte e dois
anos nosso herói perdeu o precioso emprego. Foi grande a decepção pois já vinha pensando em
se casar e muitos planos, até então perfeitamente viáveis, nas novas circunstâncias se tornaram
impossíveis. Não por culpa dele. Não que o rapaz tivesse deixado de ser capaz para sua obrigação
e, por conta disso, tivesse sido dispensado do trabalho. Ao contrário, continuava mostrando
empenho e competência. Mas, como dito, a vida dá suas voltas e, numa dessas, o seu Cardozo,
depois de cinquenta anos no batente da barriga no balcão, teve que deixar a direção do negócio.
“Morreu de repente” como se dizia então, simplificando e até poetizando o que tinha sido um
enfarte fulminante. Os herdeiros não gostavam de Lindomar pois seu Cardozo tinha feito dele o
segundo no comando dos negócios e eles viam aquilo como uma usurpação ardilosa. Assim,
Lindomar perdeu o emprego. Ficou dois anos procurando uma nova colocação e adiando o
casório debaixo de grande aflição. Difícil era a saída. Nesse tempo o pai adoeceu, ficou meio
prejudicado na sua ocupação, contudo, continuou trabalhando. Ele bem que poderia assumir o
negócio se quisesse. Mas não, seguiu resistindo, obrigando Zé Coveiro a se valer de um ajudante
improvisado, mal pago e sem futuro nenhum na continuidade do cargo. Também, a renda das
covas, mesmo somada, não daria para duas famílias. E o problema persistiu sem nenhuma solução.
Assim, nosso herói, aflito e decidido, resolveu tentar a sorte em um centro mais promissor. E
tinha boa opção pois o tio, também coveiro como já dito, morava e trabalhava numa cidade bem
maior, quinze léguas de distância. Aliás, era lá o seminário onde ele havia estudado, oito anos atrás.
Sendo assim, também poderia procurar algum colega ex-seminarista, outro grande motivo para
sua decisão. E para lá foi de mala e cuia; mais cuia do que mala, pois pouco havia o que carregar.
Foi morar com o tio provisoriamente. Meio acanhado por ter que ser mais uma boca numa casa
miserável, mas foi. O comércio era maior, mas também mais exigente. Os ex-colegas não se
sensibilizaram com a sua condição. Aliás, com muitos deles nem conseguiu falar. De sorte que o
pobre rapaz, seis meses depois de chegar todo cheio de esperanças e muita disposição, continuava
na mesma, quer dizer, sem nenhuma colocação, por mais singela que fosse. Já batia desespero,
nele, no tio e, especialmente na tia que, cada dia, mais tinha que ralear o feijão.
Mas como nada é para sempre, mesmo que demore ou que cause aflição; eis que, num belo
domingo de sol Lindomar teve uma ideia para ajeitar sua vida. Inusitada, por suposto, nascida que
foi do retro mencionado desespero. Ironia do destino: foi bem no meio das covas que a ideia
nasceu. Talvez houvesse mesmo uma sina, mas podia ser melhor do que o ofício de coveiro.
Acontece que o rapaz tinha ido ao cemitério levar a marmita do tio. Naquele dia havia muito
trabalho com covas, apesar de ser domingo. No futuro as pessoas até iriam poder escolher o dia
de nascer, mas o dia de morrer continuaria insabido. Assim, claro, já era naquele tempo. De sorte
que, naquele domingo em particular, havia muito serviço e o tio não ia poder sair para o almoço.
118
E lá estava ele tentando ser prestativo com a marmita na mão, enrolada numa trouxa. Entregou a
refeição já fria ao tio que a colocou num canto pois não podia parar naquele precípuo instante.
Na volta, enquanto caminhava pelas alamedas estreitas do quintal dos falecidos, Lindomar
foi reparando nos túmulos e nas suas adjacências. Notou que tudo ali era muito bem cuidado.
Diferia profundamente da pobreza e desleixo do cemitério onde seu pai tentava ganhar a vida. Lá
covas rasas cobertas de ervas daninhas e destroços de cruzes de madeira, tudo muito passageiro.
Aqui um jardim enfeitando a memória dos mortos, debaixo de uma aura de eternidade e de etérea
dignidade. Gramados verdes e ciprestes italianos altos e majestosos, apontando o céu
sugestivamente. Aqui era mais fácil ascender ao Criador. Muitas flores viçosas enfeitando os
canteiros de granito, de mármore e os vasos caprichosos de bronze. Muitos túmulos se destacavam
pela imponência e riqueza. Monumentos de mármore e bronze sustentando a glória dos mortos
que solenemente guardavam.
Toda aquela majestade mexeu com Lindomar. Nunca havia reparado no lado glorioso da
morte. Nem tinha podido de fato, vivendo no ermo em que vivia, cercado de pobreza como geral
condição, inserida aí a profissão do pai e que queriam ser dele um dia. Por certo tinha tido razão
em não querer ser coveiro, mas agora via o campo dos mortos de uma forma diferente. Claro que
se fosse poeta ou escultor teria acentuado um outro aspecto da morte, certamente mais nobre.
Mas, na condição em que se encontrava, navegando na nau perdida da miséria, Lindomar pensou
mesmo foi em dinheiro.
Foi rápida a transformação. Com o vil metal tilintando na cabeça o pobre rapaz – assim
chamado sem força de expressão – se assentou num banco ruminando pensamentos numa atitude
discreta. Mas, à medida em que pensava, seu semblante se iluminava como se estivesse feliz. Quem
passava, naquela hora e lugar, estranhava aquele sinal de alegria, sendo ali um sitio onde a tristeza
era condição natural. Nós, contudo, sabemos que aquela excitação nada tinha a ver com a morte
em si pois, a bem da boa filosofia, ela nunca faz sorrir. Ao contrário, nosso herói sorria porque
pensava na vida. Uma nova e boa vida, quem sabe, depois de anos inúteis de espera e frustração.
Em essência, como dito, estava ele certo ao se recusar a ser um simples coveiro. Naquela
hora, contudo, tinha entendido que havia ali bons e maus negócios, como em todo lugar.
Certamente, os melhores proviam, não da terra que comia os mortos, mas da majestade dos
túmulos que os elevavam. Quanto mais majestosos os túmulos, mais ricos os mortos, mais
dinheiro correndo no comércio da morte. Um singelo raciocínio cheio de boas verdades a nortear
Lindomar numa manhã de domingo, assentado num banco em condição incomum. Valia a pena
aprofundar o arremedo de ideia, evoluir para um plano verdadeiro. Sim, vencer na vida fazendo
negócios num cemitério. Se essa era a sua sina, que assim ela se cumprisse.
Então bateu uma ansiedade de começar uma ação. E assim foi: nosso herói se levantou e
caminhou pelas alamedas do campo santo localizando os mausoléus mais notáveis para examinálos com mais acurácia. Passou o resto da tarde nessa operação singular. Ao final do dia juntou-se
ao tio na volta pra casa. Iam em silêncio: o tio por excesso de cansaço e ele por excesso de
animação. Passou a noite dormindo mal, remoendo as opções para se estabelecer no ramo dos
cemitérios que, aliás, nem eram muitas. Levantou cedo sem nenhuma decisão. Sem dúvida o
melhor negócio era a própria construção dos mausoléus, afinal suntuosos monumentos, muito
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mais caros do que as casas dos próprios mortos, quando vivos. Mas esse era um negócio grande
e ele não tinha capital suficiente. Aliás, não tinha capital para nada. A lembrança era crua, singela
e desanimadora. Mas, havia brotado uma bela ilusão depois de tanto tempo. Assim, ele não aceitou
tão fácil o esfriamento do seu entusiasmo por aquele motivo tão óbvio, inda que tardiamente
lembrado.
Voltou ao cemitério em busca de inspiração. Foi sozinho, visto que, aquele era o dia de
folga do tio. Melhor assim, não teria que dar explicações sobre o seu tão repentino interesse por
aquele tipo de coisa. Examinou tudo de novo. Perscrutou os túmulos, tanto os grandes quanto os
pequenos. Ao final, uma coisa lhe chamou a atenção. Notou que os túmulos, principalmente os
mausoléus de família, tinham muitas inscrições estampadas. Vários dísticos, vários epitáfios.
Artísticas letras de variados formatos e tamanhos gravadas em bronze, no vernáculo e em latim,
elevando os jazigos e glorificando os predicados de seus mortos. Essa constatação animou-o
novamente, mesmo porque ele não queria desacreditar naquela nova esperança para consertar os
rumos da sua vida. Quem sabe estivesse aí um grande negócio ao alcance da sua mão: vender
epitáfios para os ricos? A atividade não carecia de capital. Pensava ter talento para criar os ditos
cujos epitáfios, tinha a sua instrução. Até ai tudo bem, não vislumbrava empecilhos. Certamente,
como em todo negócio, o mais difícil seria a comercialização.
E aqui começa a segunda parte desta história. Mas, cronologicamente, não houve intervalo
entre o que começa aqui e o que se tratou no precedente parágrafo. Sim, pois o nosso herói
começou de imediato, ali mesmo, a executar o seu auspicioso projeto, já agora com diretriz
definida. Começou atacando o que se deve atacar primeiro, ou seja, a qualidade do serviço. Deixou
para depois a segunda perna de sustentação de qualquer negócio: a estratégia de venda. A
priorização estava certa, até porque, um bom produto se vende, por força da qualidade que tem.
Assim, devia começar examinando as ofertas do mercado, o estado da competição. Isso definido
partiu para campo, quer dizer, voltou a examinar os jazigos novamente. Agora com foco centrado
nas letras e nos dizeres que abundavam sobre o mármore e o granito dos túmulos. Notou que
havia muitas inscrições em latim. Na verdade, quase todas eram transcrições de autores clássicos,
sem os créditos devidos e com alguns erros banais. No vernáculo havia muita transcrição bíblica
e coisas do tipo: “bom filho, bom pai e bom marido”, ou “magnânimo com os fracos e impiedoso
com os poderosos” com variações do tipo “vencedor dos vencedores e libertador dos vencidos”.
Enfim, havia pouca criação, muita cópia e muita repetição. Pareceu-lhe viável competir
naquele negócio. Conhecia latim, a bíblia e os clássicos. Além do mais tinha certo jeito poético,
podia ser criativo. Sem problemas por esse lado, portanto. Essa conclusão injetou-lhe mais
entusiasmo. Encheu-se de febril energia. Correu para a biblioteca do seminário. Foi prontamente
reconhecido pelo padre bibliotecário, não teve dificuldade de acesso e até teve facilidades de graça
como tinta e papel. Desta forma, ali poderia ser o seu laboratório de produção, bem provido de
recursos. Passou o resto do dia copiando frases, retocando, criando, melhorando. Despendeu mais
uma semana nesse esforço produtivo. Ao final desse tempo selecionou o conjunto das melhores
frases, passou a limpo e copiou num caderno de capa dura. Achou que já tinha um estoque de
produtos prontos para serem colocados no mercado. Avançava muito bem para tão pouco tempo
de trabalho.
120
Mas aí resolveu trocar o entusiasmo por um pouco de prudência. Quer dizer, dar uma
parada para avaliar o que havia feito até então. Deixou o seminário com o caderno debaixo do
braço e procurou um lugar mais agradável. Nada de cemitério desta vez. Foi se assentar debaixo
de uma árvore numa praça da cidade. Releu os dísticos e epitáfios como um crítico independente.
Infelizmente, concluiu sem muita dificuldade, que não havia nada de diferente no que havia
produzido. Basicamente as mesmas transcrições do latim, mesmas frases bíblicas, mesmos
pensamentos clássicos. Fechou o livro e olhou longe meio que escapando da incômoda
autoavaliação. Mas, mais uma vez não desanimou. E, sendo assim, não levou mais do que alguns
minutos para ter uma outra ideia. Esta, de verdade inovadora, já que criava um processo de
produção inteiramente novo. É que ele teve a ideia de envolver o próprio morto no processo de
criação do seu epitáfio. Ele e o morto poderiam se reunir e, com base nas frases que já tinha
previamente produzido, criar epitáfios ao gosto do falecido, cortando, acrescentando, modificando
os modelos disponíveis. Belo trabalho a quatro mãos. Claro, isso teria que ser feito antes que o
morto morresse, mas esse detalhe não lhe parecia problema. Ao contrário, tinha até outra
vantagem: permitia a participação do futuro morto também no processo de compra, fechando
harmonicamente o ciclo produção/comercialização. Convenhamos, uma ideia um tanto
revolucionária, até onde me é dado saber.
Desnecessário dizer que Lindomar se encheu de entusiasmo mais uma vez, agora com toda
a razão pois havia avançado muito. Aliás, seu plano estava completo, com começo, meio e fim e
prometia sucesso pela inovação. Tinha até bolado um nome para personalizar o produto: “Serviço
pré-morte participativo”. Desnecessário dizer também que, com tanto entusiasmo, nosso herói
partiu logo para encarar o mercado com seu novo serviço. Afinal, como eu disse alhures sobre o
bravo Lindomar: “tinha jeito pra negócios, com tino de vendedor, talento inovador, persistência
e coragem”. Mas até teria sido prudente que ele fizesse alguns testes antes, mas não foi assim que
se deu. Ele estava ansioso, vivendo na porta do desespero. Compreensível então aquela
precipitação.
E, aqui nossa história se aproxima do final que, confesso, não é bem o que eu queria nem
nosso herói merecia. Talvez ele até estivesse à frente do seu tempo. Isso explica mas não salva.
Enfim, Lindomar tinha dado azar outra vez. A experiência foi curta e o desfecho do caso
posso contar em mais meia dúzia de linhas. Depois de tentar oferecer seus serviços ao delegado,
ao juiz, ao prefeito e ao presidente da Liga Comercial; quer dizer, justamente as pessoas mais vivas
da cidade; nosso herói acabou preso. Submetido a uma junta psiquiátrica foi taxado de louco e
internado num asilo. Já está lá há alguns anos. Parece que se esqueceram dele pois, certamente,
não é assim tão perigoso. Temo pela sua sorte, pois há maus tratos, as condições de higiene do
asilo são péssimas e a taxa de mortalidade é alta. Dizem que estão abrindo novas vagas de coveiros
no cemitério da instituição. Há um pequeno salário. Soube que Lindomar Souza dos Santos é um
dos candidatos.
121
O BELFO OU UMA BREVE HISTÓRIA DA ORIGEM DO BANCO DE TRÊS
PERNAS
O irmão Honoré de Bourges nunca se soube belfo, ainda que essa condição muito o
incomodasse. É que naqueles meados de século XI o conceito ainda nem existia. Mas o escárnio
sim e a condição, mesmo inominada, de alguma forma sempre o aborreceu. Com a idade até foi
se conformando com aquela desconformidade, ainda que ela o atrapalhasse até o fim da vida. Na
verdade, sentiu-se belfo muito cedo. Mas, então, nem podia imaginar que essa característica infeliz
da sua fisionomia, no futuro teria um nome específico. Hoje, quem folheia um dicionário qualquer,
vai dar facilmente com a palavra e o seu desagradável significado. BELFO: “diz-se das pessoas
que têm o lábio inferior grosso e pendido e que falam como se tivessem a boca cheia”.
Infelizmente era exatamente assim que ele era, até de forma extremada. Havia uma enorme
desvantagem nessa cruel condição: a maneira peculiar de falar dava a impressão de um certo
retardo mental; impressão esta, aliás, ainda mais reforçada por aquele estado meio caído do lábio
inferior. Além disso, era difícil entender o que ele dizia devido aos trancos na dicção. Pobre
Honoré, ter nascido assim colocava um enorme obstáculo no seu projeto de ser um grande orador
sacro, tal qual tinha sido o pai. Era ele da Borgonha, região de Cluny, vassalo do piedoso duque
de Aquitânia. Seu pai tinha sido um fidalgo de nobreza menor que, aos quarenta e cinco anos,
resolvera tomar ordens religiosas, internando-se na famosa Abadia de Cluny. Ali ganhou enorme
respeito como pregador e teólogo, maior autoridade da abadia na filosofia de Aristóteles e na
doutrina de santo Agostinho. Não era pouca coisa, sendo a Abadia de Cluny um reduto de grandes
teólogos e inflamados pregadores, irmanados na missão de resgatar a moral da filosofia clássica,
varrer os maus costumes que degradavam o clero medieval e construir uma igreja majestosa,
independente da majestade dos reis. De sorte que Honoré de Bourges queria seguir os gloriosos
passos do pai elevando ainda mais o nome da família naquela casa exemplar que durante muitos
séculos lastreou uma conduta clerical de acordo com a doçura de Deus e os merecimentos do seu
esplendor.
O beiço belfo de Honoré era atávico pois o pai não era assim. Dele havia herdado os
pendores intelectuais. Muito cedo foi introduzido nos mistérios dos pensamentos mais altos nas
artes e na filosofia, ajudado pela biblioteca do pai com seus seiscentos volumes, notáveis para
aqueles tempos obscuros. Interessava-se por tudo, inclusive a matemática e a geometria. Não se
sabe bem porque o pai tomou o hábito de Cluny assim tão tarde na vida. Mas isso impressionou
o pequeno Honoré e ele aos doze anos marcou que queria seguir-lhe os passos. Mas tinha um
beiço caído e uma articulação desnorteada turbando os sonhos de Honoré. Aliás, essa condição
já o atrapalhava antes dele ter adotado esse projeto de vida, mas ele nem se deu conta pois sonhos,
de certa forma, desconhecem o senso e a razão. Longe estava de ser um idiota, mas aquele lábio
pendente e a boca meio mole predispunham à chacota. Contudo, não se deixou abater e nunca
aceitou o papel de bufão que, de certa forma, lhe estava reservado pela natural intolerância infantil.
Nunca chegou a ficar amuado num canto mas, para sua mãe, aquela preferência pelo silêncio e
reclusão da biblioteca do pai, era uma espécie de fuga. De toda forma, Honoré imaginava que
aquela era uma situação transitória. Quando se tornasse um abade de Cluny tudo isso se resolveria,
se fosse essa a vontade de Deus, e haveria de ser. Para isso rezava cheio de fé e devoção.
122
O tempo passou depressa e no tempo certo deu-se a admissão do jovem Bourges na famosa
abadia que havia sido fundada pelo duque Guilherme de Aquitânia. Mas não foi como ele queria.
Muito antes ao contrário. Triste, mas não ouve injustiça. A deficiência era notória, impossível
ignorar que ele jamais poderia ser frade com aquela dicção e aquele jeito abobalhado. Assim, apesar
do seu incomum cabedal intelectual e sendo ele filho de quem era, só pôde ser admitido na
condição de irmão, quer dizer, só poderia se ocupar dos serviços domésticos da abadia. Coisas
como cuidar da limpeza, cozinhar, ordenhar, consertar e outras coisas menores. Aceitou com
humildade o veredito, mas achou que podia mais, tendo Deus a seu lado. Como simples irmão
dos frades de Cluny não precisava de muita instrução. Nada mais do que o elementar e as
capacidades mecânicas, pois o foco era o trabalho duro. Felizmente não lhe fora proibido dedicarse aos estudos nas suas horas de folga, vale dizer, nas preciosas horas roubadas ao sono. Na
verdade essa liberalidade não era nada comum, mas não seria cristão condená-lo às trevas quanto
ele já vinha cheio de ilustração e tinha notáveis marcas do berço dos Bourges. Claro está que não
havia qualquer projeto ou expectativa de que ele pudesse superar a sua humilde condição de
serviçal da abadia. Até porque, para o problema central não havia solução. Era mesmo difícil
entender o que ele tentava dizer com aquele beiço bovino. Parecia que as palavras grudavam em
sua boca, enrolavam na língua e teimavam em não sair, obrigando-o a um certo esforço para botálas pra fora. Essa cruel limitação em alguns causava aflição em outros um riso contido. Mas, apesar
da humildade também lhe corria nas veias o sangue de notáveis guerreiros e pelejadores. De sorte
que, no fundo, Honoré não aceitava a ideia de ter sido condenado a um perpétuo silêncio. Assim,
não pedia milagre, nem revisão do seu caso, mas nutria esperança. Entre outros projetos mais
profundos dedicou-se a estudar as vidas dos grandes oradores gregos e romanos, buscando
conhecer os segredos das suas carreiras de glórias. Foi com viva esperança que descobriu que o
grande orador Demóstenes tinha nascido gago e venceu a deficiência se exercitando com
pedrinhas na boca e discursando junto ao mar agitado, tentando falar mais alto do que o barulho
das ondas. Tentou o método durante dois anos seguidos, tenaz e persistente. Coitado, só desistiu
depois de quase morrer engasgado, tentando pregar com a boca cheia de conchinhas do mar. Não
houve melhoras mas somente o susto. Por conta da aventura foi repreendido pelo abade superior
da abadia mas, de certa forma acabou ganhando um prêmio pois o bom abade se apiedou dele
como convinha para tanta persistência tocada por tão nobre motivo. Quer dizer, dourar a palavra
de Deus e levá-la aos corações mais duros. Assim recebeu formais admoestações sobre as virtudes
da resignação mas também uma bela notícia. Ia ser transferido para a carpintaria, coisa mais nobre
do que cozinha e limpeza. Era até uma espécie de promoção. Em troca, porém, tinha que prometer
que iria se esquecer de vez daquela ideia de ser orador sacro. Teve que aceitar pois não tinha opção.
E assim foi. Honoré passou a se ocupar do formão, da serra e da talhadeira. E o fez com
toda aquela dedicação que lhe era natural. Poucos anos depois, sem nenhum favor, assumia a
direção da carpintaria do mosteiro. Foi nessa merecida posição que o ano de 1055 veio encontrálo. Aquele seria um ano muito especial para a abadia. É que no ano anterior ela tinha deixado de
ficar sob controle episcopal e passara diretamente à subordinação do papa. Em abril assumia o
papa Vítor II e, assim que tomou posse, anunciou que o primeiro ato do seu pontificado seria
uma viagem pela Europa, começando exatamente pelo Mosteiro de Cluny, justamente a instituição
123
que tinha tomado a direção ideológica do projeto de dotar a igreja de um poder temporal tão forte
e esplendoroso quanto o dos maiores reinos da Europa. O papa queria ser não só o porta-voz de
Deus na terra mas um rei cercado de magnificência, de exércitos e de um povo piedoso e também
disposto a tudo pela glória do estado. Ao Mosteiro de Cluny cabia convencer a Europa disso.
Coisa que fazia com notória competência, com todos os ilustres teólogos e festejados pregadores.
Além disso, era de Cluny que partia o maior clamor para a moralização dos costumes eclesiásticos,
tão relaxados naqueles tempos. Coisa em que Vitor II punha muito empenho
A notícia da iminente visita do papa pegou o superior da abadia inteiramente de surpresa.
O trono papal estava vago há mais de um ano e ninguém esperava que o primeiro ato do novo
papa incluísse uma visita a Cluny, assim tão de repente. Mas a questão estava posta e não cabia
questionar o Santo Padre. Ao contrário, a visita seria uma grande consagração para o conjunto da
obra de Cluny. Assim, restava correr com os preparativos para que o Sumo Pontífice fosse
recebido com toda a dignidade a que tinha direito.
Os preparativos, como não podia deixar de ser, começaram com a formação de uma
comissão para estudar o programa da visita, conforme o despacho recebido da chancelaria de
Roma. A dita cuja começou a trabalhar de imediato. Logo concluiu que não havia qualquer
problema quanto a hospedagem e alimentação da comitiva papal. O mesmo com relação às
solenidades e rituais de praxe com suas missas, sagrações e cantorias. Mas havia um ponto de
preocupação. É que Sua Santidade, durante a visita, queria promover uma espécie de simpósio,
reunindo mil e oitocentos prelados. Está certo que local não era obstáculo já que na abadia tudo
era majestoso, incluso enormes salões ovais, com ciclópicas colunas de pedras e abóbodas que
tocavam o céu. A questão da alimentação de tanta gente também dava para contornar já que o
evento duraria apenas três dias. Bastava pedir uma ajuda à boa gente da aldeia, pobre mas sempre
aberta a pios donativos. Nada que a doação de algumas centenas de patos, gansos e galinhas não
pudesse resolver. Mas restava um detalhe de solução mais complexa: como acomodar mil e
oitocentas pessoas assentadas num mesmo recinto? E foi aí que o irmão Honoré de Bourges foi
chamado à história. Então beirava ele os cinquenta anos, já conformadíssimo com sua condição
de belfo. Atendia as necessidades carpinteiras da abadia com toda tranquilidade, falava pouco e ia
levando sua vidinha monástica, ladrilhando seu caminho para o céu. Ao receber a convocação da
comissão estava traçando o desenho de um arcaz, coisa que fazia com muita maestria. Largou
imediatamente a tarefa e tratou de atender ao chamado. Foi quase correndo. Foi imediatamente
admitido no recinto da comissão mas nem chegou a ser ouvido quanto a viabilidade de
providenciar assentos para tanta gente, em tão pouco tempo. Devo esclarecer que não lhe deram
a palavra não só porque todo mundo tinha preguiça de vê-lo falar mas, também, porque a
incumbência tinha que ser atendida a qualquer custo pois era impensável opor qualquer óbice ao
desejo do papa. Inútil, portanto qualquer argumento. Tinha que ser feito, simplesmente. De sorte
que Honoré de Bourges recebeu o encargo e se retirou humildemente, voltando ao galpão da
carpintaria. Desta vez caminhou devagar arrastando o peso de grande preocupação. Mas não
entrou em pânico. Assentou-se em seu banco, apoiou os cotovelos em sua rústica mesa de
carpinteiro, segurou a cabeça entre as mãos e se pôs a pensar. Depois pegou um papel, conferiu
inventários e plantas e fez alguns cálculos. Ao fim de umas duas horas de judiciosa avaliação, pôde
124
concluir que não dispunha de madeira apropriada para confeccionar bancos para tanta gente. As
pranchas de madeira que tinha em estoque eram em quantidade insuficiente e de pouca resistência,
inadequadas para suportar o peso de várias pessoas. Ainda mais considerando que no meio do
clero daqueles tempos o peso médio era um tanto elevado, pois era o tempo em que os frades
tinham mesmo apetites de frade. Assim, para confeccionar bancos de múltiplos lugares com
aquela madeira e para aquele público teria que dotar os bancos de uma quantidade exagerada de
traves de reforço. Também não tinha esse tipo de madeira e nem tempo para isso. Tinha que
buscar outra solução. Nesse ponto deu-lhe um branco e até um certo desânimo. Assim achou
melhor fazer uma pausa. Ajoelhou, rezou e pediu inspiração. E ela não demorou. Logo teve uma
ideia fantástica, cheia de inovação. Era inspiradíssima, mas vamos nos lembrar que inovação não
era propriamente coisa muito valorizada em plena idade média. Mas ele não se conteve, era
cartesiano muito antes de Descartes. E cresceu no entusiasmo. Poderia fazer bancos individuais
com três pernas e de assentos triangulares! Sim, com esse formato não precisaria de traves de
reforço e ainda diminuiria o tamanho dos assentos. Aí estava a solução, gastaria muito menos
madeira e tempo. Porque ninguém pensou nisso antes? Saiu dali satisfeito à capela para as orações
da noite que já iam começar. Estava bem, sentia como se tivesse recebido uma inspiração divina.
Dormiu sereno e no dia seguinte bem cedo, já começou a trabalhar no projeto do banco de três
pernas com assentos triangulares. Logo nos primeiros esboços levou um susto. Percebeu que,
enquanto cinco bancos individuais de três pernas consomem quinze pernas para serem
confeccionados, um banco múltiplo de cinco assentos exige apenas doze pernas. Tocou a fazer
cálculos com a judiciosidade que lhe era peculiar e conseguiu provar na ponta do lápis que o que
perdia em pernas ganhava em economia de traves de reforço. Além disso, os bancos individuais
eram mais fáceis de fabricar em série. Estava provado: o banco de três pernas era a solução. Sentiuse seguro e foi em frente. No comecinho da tarde o projeto já estava pronto e conferido. Podia
partir sem demora para o corte da madeira. E foi aí que um anjo conservador soprou um celestial
sopro de alerta que arrefeceu um pouco o ímpeto inovador de Honoré de Bourges. Aquele tipo
de banco nunca havia sido produzido antes. Assim, ele não poderia fazê-lo agora sem uma
aprovação superior. Não poderia ser lançado num evento na Abadia de Cluny, com a presença do
papa, sem um sonoro nihil obstat. Sim, com certeza que não. O banco de três pernas teria que
receber aprovação antes de entrar em produção. Mas antes de submeter a questão à comissão era
necessário justificar o pedido de aprovação. E aí, Honoré, até inconscientemente, introduziria uma
segunda inovação no mundo medieval. Como ele tinha aquela dificuldade de falar resolveu
elaborar um protótipo. Pensava em usá-lo como um apoio à fala, indicando com mais clareza o
que ele queria dizer. E assim fez. Contraproducente porém. Logo que pôs os olhos naquela coisa
desarmônica e antiestética a Comissão já foi repudiando o banco inovador. E o fez com veemência
pois, sem dúvida, o tal banco devia mesmo assustar, com seu assento em forma triangular e cada
uma das pontas sustentada por uma perna. Isso tudo em plena Borgonha, bem no meio do verão
do ano de 1055. Não havia nada mais distante da estética de Aristóteles ou da harmonia com que
Deus tinha criado o universo. Quando muito um respeito à geometria de Euclides. Honoré bem
que tentou argumentar pelo lado pragmático, mostrando os cálculos onde restava provado que só
com aquele modelo era possível atender a demanda com o material e o pessoal disponível no
125
momento. Mas apesar da incontestabilidade dos números, parece que sua belfa dicção dificultou
a defesa do projeto. De sorte que o banco de três pernas foi sumariamente desaprovado e o projeto
sepultado por muitos séculos mais.
Hoje, tanto tempo depois, está claro que a condição de belfo pouco influiu no fracasso do
projeto, roubando a Honoré de Bourges a glória de ter sido o inventor do banco de três pernas.
Convenhamos, banco de três pernas é mesmo uma coisa meio esdrúxula, ainda mais com assento
triangular. Tanto que, até hoje a ideia não convenceu.
Quanto ao simpósio de Cluny, parece que não houve condições dele ser realizado. Mas
dizem que não foi propriamente pela falta de bancos e sim porque o papa Vitor II preferiu cancelar
o evento e promover um concílio em Florença dois anos depois.
AS NOVE PORTAS
Todas as casas começam na porta da rua e terminam na porta do quintal, mas cada uma
guarda uma memória diferente. Todas têm seus mortos. Eles também são diferentes. Há virgens
que se suicidam por frustração de amor. Há quem morra assassinado por excesso de ambição, ou
de crime passional por excesso de concupiscência. Mas há os que simplesmente morrem pelos
desígnios naturais de Deus. É o caso. A história começa em mil oitocentos e oitenta e começa pela
descrição da casa onde os fatos se sucederam ao longo de noventa anos mais-ou-menos.
Como dito, a casa começa pela porta da rua. Não há mais um jardim frontal como era no
tempo da construção original. Ali por volta de mil novecentos e quarenta a prefeitura achou por
bem alargar a rua e a obra comeu quase todo o jardim. Desta forma, hoje a porta da entrada da
casa dá direto na rua calçada de macadame. Não há passeio, apenas um rústico degrau de pedra
para facilitar o acesso ao piso da casa, um pouco mais elevado. Depois da porta da rua há um
vestíbulo estreito e comprido que liga a entrada à sala de visitas. Nas laterais abrem-se outras duas
portas. Uma leva ao escritório/consultório e a outra leva ao quarto reservado aos hóspedes e
viajantes que pedem pouso. Atualmente há uma segunda porta dando para a rua, da qual, daqui a
pouco, falaremos mais. Transposto o vestíbulo chega-se à sala de visitas. É relativamente pequena,
com alguns móveis estofados de veludo para assento das visitas. Mesinhas, cristaleiras encostadas
nas paredes, um piano alemão no canto. Objetos de arte espalhados pelas mesinhas e cristaleiras.
Quadros familiares nas paredes forradas de papel floral e pesados reposteiros e cortinados de
veludo cheios de ácaros, completam o conjunto. Uma outra porta liga a sala de visitas à sala de
jantar. Esse é o principal cômodo da ampla habitação e é aí que a vida da casa se passa, pois é aí
que a família permanece a maior parte do tempo. É ali, que os irmãos contam casos, repudiam o
presente, recordam o passado e evitam imaginar o futuro. É uma família incomum. Nenhum dos
irmãos se casou. Assim sendo, permaneceram juntos até que as mortes os separassem, um após
outro. Ozires e Nefertiti eram os pais. Bela e feliz união de duas famílias abastadas, formadas na
prosperidade perene de velhas e extensas sesmarias. Ozires e Nefertiti Prado de Almeida Souza.
Ela morreu de parto e ele, apesar da dor da viuvez, conseguiu viver até avançada idade. Só aceitou
o convite da morte depois que viu todos os filhos formados. Não era muito mas ele se contentou
e deu a missão paterna por concluída. Não teve a alegria de ter sido avô e nem se sabe, com
126
certeza, se isso importou para ele. Tudo indica que não. Não reconheceu os netos bastardos e nem
disso se queixou. Arranjou para que nada faltasse às pobres criaturas, mas também nunca aceitou
conhecer nenhuma delas.
Tirando o período em que cada um dos irmãos esteve estudando nas capitais, todo o resto
do tempo permaneceram juntos ali naquela casa. As mortes sucessivas, naturalmente acontecidas
pelo simples passar do tempo, trouxeram dores sucessivas aos remanescentes; também muito
naturais a que a gente se acostuma mas que levam para sempre um pedaço da alegria.
Mas voltemos à sala de jantar. É também o cômodo mais espaçoso da casa. A mesa de
jantar com doze cadeiras fica no centro. Ninguém ocupa mais as cabeceiras. É o espaço sagrado
reservado à memória dos pais, diuturna presença. Num canto há um jogo de sofás e cadeiras, onde
os homens leem jornais e as mulheres fazem remendos e bordados. Encostados às paredes guardacomidas, aparadores e outras utilidades. Tudo muito antigo e de boa qualidade, da Bélgica, França
e Inglaterra. Mas o que marca mesmo a tal sala de jantar são as nove portas dos quartos de dormir.
Quatro de cada lado. Estão dispostas em perfeita simetria, de tal forma que guardam a mesma
distância lateral e um perfeito alinhamento frontal. A nona porta está isolada, aberta no fundo, do
lado oposto da rua, ao lado do corredor que leva às serventias da casa.
Esta é a história dessas portas, ou melhor, do que elas simbolizam. Reparem que, nesse
preciso instante, todas elas estão fechadas. Mas há um detalhe crucial: três delas estão com as
chaves na fechadura e seis estão com as fechaduras vazias. Digo sem as chaves. Isso parece casual
mas não é. Ao contrário, tem um grande significado. Significa que sete membros da família já
morreram e seus quartos foram como que simbolicamente lacrados. Reparem ainda que num dos
portais há um gancho e nela tem um molho de chaves dependurado. São de ferro batido e já
apresentam ferrugem. São exatamente as seis chaves, das seis portas, dos seis quartos fechados,
das sete pessoas que já morreram. Alguns dos leitores devem estar estranhando a conta: seis
quartos e sete mortos. É simples, é que um dos quartos fechados, o que está no centro ao fundo,
é o quarto do casal e eles já morram. Aliás, esse simbolismo fúnebre representado pelo molho de
chaves dependurado no portal teve início exatamente com a morte de Nefertiti. Assim que a
família voltou dos funerais, Ozires trancou o quarto do casal e dependurou a chave no portal. Era
como se quisesse que as recordações da vida que tiveram juntos ficassem preservadas, encerradas
ali naquela alcova sombria. A partir daí o patriarca instalou-se no escritório. Passou lá quarenta
anos da sua vida. Dormia desconfortavelmente num sofá estreito, para incômodo dos filhos que
não entendiam aquele tipo de penitência autoinfligida.
Somente ele podia abrir o quarto do casal. Controlava assim até as operações de limpeza
do cômodo, duas vezes por semana. Nada podia ser tirado do lugar, senão para remoção da poeira.
Também passava muito tempo trancado lá, isolado, num retiro melancólico de silêncios, olhar
perdido naquelas coisas tão perto e tão distante que tinham sido da falecida. Sobreviveu a dois
filhos que morrem cedo, sem muita coisa deixar. Repetiu o ritual das chaves também com eles. De
sorte que aquele rito fúnebre se incorporou à tradição da família havida do enlace de Osíris e
Nefertiti. Fora essa coisa meio mórbida, o patriarca deixou para a família uma boa renda em letras
bancárias, um forte senso de união e fraternidade, tão forte que muitos atribuem a isso a
compulsão celibatária da família.
127
A bem da exatidão, há de se acentuar que a ideia de manter as chaves do lado de fora das
fechaduras dos quartos dos vivos não foi propriamente do pai e sim dos filhos que, consoantes
com os sentimentos do velho Osíris, quiseram dar a sua contribuição, completando o sentido da
simbologia. Bastou mandar instalar ferrolhos do lado de dentro das portas. Desta forma, quando
os quartos estavam ocupados e se quisesse privacidade bastava usar os tais ferrolhos. As chaves,
assim, podiam permanecer permanentemente do lado de fora e só serem retiradas quando
tivessem que ir para o funéreo molho de chaves do portal. Tudo isso se tornou muito natural no
dia-a-dia da casa e as visitas não costumavam fazer perguntas sobre aquele memorial tão incomum.
Como dito, há pouco, atualmente restam três portas com as chaves nas fechaduras. Uma
no primeiro quarto à esquerda de quem vem da rua, uma no segundo do lado oposto e uma no
último do mesmo lado. O primeiro é o quarto do dr. Ozirinho. É o primogênito e está com oitenta
anos, dos quais setenta e quatro vividos nessa casa. Os outros seis em que esteve ausente passouos na capital, no tempo em que estudou leis e se tornou advogado. Voltou bacharel mas nunca
exerceu a profissão. Também teve passagem pela política. Chegou a ser eleito vereador na década
de quarenta. Mas abandonou o mandato ainda no primeiro ano e nunca mais quis saber de política.
Vivia do inesgotável fundo coletivo de rendas que o pai deixara para os filhos. Até três anos atrás
era frequentador obsessivo dos bordeis do lugar e das adjacências, mas hoje enche os dias lendo
jornais velhos e traduzindo poemas do francês. Sem esquecer o hábito de tomar uns conhaques
todas as tardes no Café Francês, na praça principal da cidade. Velhos hábitos também. Duas vezes
conseguiu publicar algumas traduções de poemas em um jornal da capital, mas sem nenhuma
repercussão. Dr. Ozirinho tem uma característica marcante: manca de uma perna e por isso usa
bengala. Foi um acidente que sofreu nos seus tempos de política, mas precisamente no sexto mês
do seu mandato à câmara municipal. Sofreu um atentado a tiro. Uma tocaia, numa noite escura
quando voltava para casa. Teria sido um atentado de motivação política. Mas o caso tem uma outra
versão. Por ela o tal tiro tinha sido desferido quando ele pulava o muro da casa da bela Isilda,
fugindo da fúria do marido. O cornudo era prefeito e Ozirinho era da oposição. Vai daí que essa
versão também não é totalmente destituída de sentido político. Mas fato é que ele resolveu então
abandonar a edilidade. Mas somente a política, pois abandonar o regaço da bela Isilda, aí já seria
demais. É o que conta a tradição.
Esse é o resumo da história do primogênito do casal Ozires e Nefertiti. O outro membro
do sexo masculino vivo da família é o dr. Aníbal. Ele é exatamente o caçula. Seu quarto é o
penúltimo do lado direito, no sentido da sala de visita para a cozinha da casa. Ele é médico.
Formou-se em Montpelier na França. Foi para lá logo após a morte do pai e lá viveu vinte anos.
Há boatos que ele tenha se casado, mas não há comprovação disso. Quando perguntado ele nega.
De sorte que a tradição celibatária da família continua preservada. Fato é que ele voltou para casa
sozinho, depois de tanto tempo. No princípio alguns irmãos desprezaram a sua volta, é que havia
o entendimento de alguns deles de que a ida para a França tinha sido uma espécie de fuga. Mas o
fato é que ele acabou sendo aceito com a fraternidade que merecia, sendo como era: um bom
caráter de verdade. Montou um consultório no cômodo que tinha servido de escritório e quarto
improvisado de dormir do velho Ozires. Lá clinica, atendendo aos pobres sem cobrar. O número
de clientes é grande, pois tem gente que precisa e que não precisa também. Tanto que tiveram que
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abrir uma porta direto do cômodo para a rua, tirando o movimento de dentro de casa. Há um
certo desconforto na espera pois o pessoal tem que se acomodar num apertado banco de madeira
colocado na calçada. Para proteger do sol e da chuva foi construída uma cobertura de telhas.
Ficou horrível o improviso mas deu um pouco mais de conforto àquela gente humilde. E ninguém
reclama, até porque, o que move toda aquela simplicidade é a boa e santa mola da caridade.
O dr. Aníbal tem um dia duro, trabalhando de sete da manhã às seis horas da tarde. Mas a
noite é sagrada. Depois do jantar os três irmãos permanecem em volta da velha mesa de doze
lugares. Ficam ali por uma ou duas horas, honrando a velha tradição que já dura oitenta anos,
mantida apesar das perdas implacáveis. No geral conversam pouco, entremeando um café, um
bolo, um chocolate com leituras de jornais e persistentes cochilos. De vez enquanto o terceiro dos
irmãos ainda vivos – d. Zilda – se aplica ao crochê tentando resgatar sua velha e famosa habilidade,
mas sem o mesmo sucesso de outrora. Dela passamos a falar agora, fechando o ciclo da ligeira
apresentação das principais personagens dessa história também ligeira. Ela é o antepenúltimo
filho. A caçula das mulheres, de um total de três. Apesar de ser um dos filhos mais novos sempre
foi líder. Até sobre o pai exercia influência. Tinha sido dela a iniciativa de mandar instalar os
ferrolhos nas portas para eliminar a necessidade da retirada das chaves das fechaduras dos quartos
dos vivos quando se quisesse fechá-los por dentro. Eis apenas um pequeno exemplo. Na verdade,
não se tomavam decisões sérias naquela casa sem o concurso da opinião dela. Sempre requisitada
pelos irmãos, também em conselhos de ordem pessoal. Era forte e todos sentiam isso. Enfim,
assumiu o papel da mãe ausente com toda a legitimidade, pois todos queriam. O próprio pai, ao
morrer, pediu que fosse assim, pedido que ela jurou cumprir da melhor maneira até o fim. Foi
então que virou pai e mãe, vale dizer, coração e braço da família.
D. Zilda nunca se ausentou naquela casa, exceto para viagens curtas. Fez o curso normal ali
mesmo na cidade. Chegou a ser diretora da escola, cargo que exerceu com todos os méritos por
mais de vinte anos. Mesmo trabalhando fora uma parte do dia nunca descuidava das coisas da casa
e tudo andava direito, ali e na escola que dirigia. Chegou a ficar noiva, de enxoval pronto e data
marcada. Mas o casamento não se fez. Talvez já estivesse casada com os irmãos e os alunos e
percebeu que uma terceira união tenderia ao fracasso. Exagero por certo, mas era assim que ela
explicava o enlace desfeito, inclusive para si mesma. Já tinha muito compromisso na vida, dizia.
No ano de mil novecentos e sessenta, logo no mês de janeiro, aconteceu uma tragédia,
respeitadas devidamente as variações subjetivas do conceito. Mas não resta dúvida que foi mesmo
uma tragédia. Não que seja exatamente raro e intrinsecamente trágico dois irmãos morrerem num
mesmo ano, ou mesmo num mesmo mês. Mas, nesse caso, tratava-se praticamente da extinção
súbita de uma família ilustre, passados pouco mais de oitenta e cinco anos do feliz matrimônio de
Ozires e Nefertiti, sementes dos Prado de Almeida Souza. Além disso, tem a somar ao fato as
horríveis circunstâncias de uma das mortes.
O primeiro a morrer foi o dr. Ozirinho. Como dito de passagem, todos os dias, pelo final
da tarde, ele tomava seus golinhos sagrados. Descia até a praça principal da cidade em direitura
do Café Francês, ocupava uma mesa perto da antiga janela de guilhotina e cortina rendada e
tomava uns conhaques bem estalados na língua. Companhias não lhe faltavam, pela boa prosa,
cheia de erudição e bom humor. Muitas vezes preferia ficar só, olhando a praça através da vidraça.
129
Mas no geral gostava de contar casos, piadas e ironizar os modismos. Lá pelas sete, contudo,
qualquer que fosse a animação, ele se levantava, ia até o balcão, pagava a conta e meia hora depois
já estava em casa, pronto para o jantar com os irmãos. Numa segunda-feira chuvosa, porém, ele
não apareceu para jantar na hora de costume. Em seu lugar apareceu um mensageiro espavorido
pedindo a ajuda do dr. Aníbal, pois o dr. Ozirinho tinha sofrido um ataque e jazia inerte no chão
do Café Francês, sobre o piso encardido de ladrilhos hidráulicos. O médico pegou sua valise de
couro e saiu correndo debaixo de uma chuva branda, temendo encontrar o pior no seu destino.
Tinha razão, já nada mais pôde fazer. Encontrou o irmão morto, sangrando pela boca e cheirando
a álcool. Depois ainda teve muito suposto bastardo assumindo a bastardia e reclamando parte da
herança. Autênticos filhos da puta. Mas isso é uma outra história que nem merece ser contada.
Nada disso, claro, conspurcou a memória do ilustre dr. Ozires Prado de Almeida Souza jr. Nem
havia o menor motivo. Mereceu ser enterrado no mausoléu da família e ter a chave do seu quarto
tristemente agregada ao molho dependurado no portal. Como era o costume quem cuidou de
tudo foi d. Zilda. Até porque, o dr. Aníbal, logo após o funeral do irmão, mergulhou num estranho
estado de torpor e astenia e deixou de lado seus afazeres usuais, incluso as preciosas consultas à
gente humilde do lugar que foram suspensas, conforme aviso colocado zelosamente na porta pelo
próprio dr. Aníbal, com sua letra de médico. Trancou-se no consultório. No primeiro dia, passados
vinte minutos da hora do jantar, d. Zilda veio bater à porta. Ele respondeu que não estava com
fome, que não jantaria naquela noite. A ausência era quase um sacrilégio, mas a irmã entendeu:
era a dor por conta da perda do irmão mais velho. No segundo dia a recusa se repetiu. No terceiro
nem houve resposta. D. Zilda se afligiu, pediu ajuda aos vizinhos e a porta foi posta abaixo. O dr.
Aníbal jazia morto estendido no sofá, aquele mesmo que durante tantos anos tinha servido de
cama para o pai no seu dormir penitente. Estava estirado já na posição mortuária e com um
bilhete entre as mãos. Nele estava escrito:
“Sou covarde, não quero ser o último. Fujo novamente. Conto com seu fraterno perdão”.
A velha senhora tomou o papel devagar, leu o bilhete com serenidade, apertou-o contra o
peito e ficou rezando em silêncio.
D. Zilda morreu três anos depois, assentada à mesa de jantar às sete horas da noite, no
meio de uma sopa de legumes. Estava só. Viveu seus últimos anos naquela casa lúgubre, mas não
viveu inteiramente sozinha. É que uma prima mais jovem veio morar com ela desde a morte do
dr. Aníbal. Como último desejo pediu que após a sua morte fosse observado com ela o mesmo
ritual da chave, marca fúnebre da família inteira. Deixou todos os seus bens para a prima caridosa
que assistiu seus últimos e sombrios anos. No testamento fez constar única exigência.
Determinava que a herdeira zelasse pessoalmente pelo cumprimento do ritual da chave e que não
vendesse a casa senão cinco anos depois da sua morte. A prima cumpriu a determinação com zelo
e fidelidade, até porque não queria perder aquele copioso legado. Manteve a casa fechada e,
vencido o período da quarentena, leiloou os móveis, demoliu a casa e vendeu os escombros,
inclusive portas, portais e janelas. Muitos valiosos objetos de arte, porcelanas e baixelas podem ser
vistos hoje nas casas de parentes. Mas não se tem notícias do tal molho de chaves enferrujadas.
130
O JUÍZO
Espalhou-se a notícia de que uma grande autoridade havia chegado à cidade. No princípio,
apesar da intrínseca contundência, o acontecimento parecia não ter preocupado as autoridades
menores. Mas rapidamente tomou conta das rodas populares nos bares e esquinas e aí começou a
incomodar. Na sequência, como é natural, começou a gerar especulações, a ser tratado diariamente
na imprensa, no púlpito e nas comissões e plenários. Alguns se encheram de esperança outros de
receio, pois alguns queriam mudanças e outros não. O assunto foi crescendo e então jornalistas
foram escalados para tratar da matéria. Chegou a haver debates na televisão e artigos em revistas
e jornais. Políticos se revezaram em discursos contra e a favor mesmo sem saber exatamente do
que. Pregadores anunciaram o fim do mundo e outros atribuíram ao fato a instabilidade da bolsa
de valores nas últimas semanas. Mas, em essência, a rotina não mudou até o dia em que A Grande
Autoridade começou a mostrar a que veio. E isso não demorou muito e aconteceu de modo tão
mágico quanto mágica tinha sido a percepção de que A Grande Autoridade tinha chegado à cidade.
Aconteceu num dia banal em que nada anunciava o que estava para começar. O epicentro se deu
na Assembleia Legislativa Nacional, bem no centro geográfico e político da capital federal. Às oito
horas da manhã, quando o primeiro funcionário da faxina entrou no recinto do plenário do
congresso dos representantes do povo, já encontrou A Grande Autoridade assentada na cadeira
do presidente do parlamento. Ao vê-lo o modesto funcionário estancou-se estupefato e não
esboçou qualquer reação. Mas não levou mais do que alguns segundos para perceber que aquela
figura plácida e sorridente que havia se apossado da cadeira do segundo homem mais poderoso
da nação era a Grande Autoridade. Olhou-a como se estivesse vendo uma aparição divina, embora,
nada aparente no incomum intruso, denunciasse essa condição suprema. Virou-se lentamente e
mesmo em tremores caminhou sem tropeços e saiu pela mesma discreta porta lateral por onde
tinha entrado. Ao ganhar o corredor, contudo, disparou a correr espavorido em direção à sala do
supervisor da limpeza do imponente edifício em estilo moderno anti funcional, inaugurado em
1960. O corredor estava vazio pois, àquela hora, apenas um ou outro funcionário mais dedicado
já tinha se dado ao trabalho de chegar ao trabalho, pois tolerância havia com pequenos atrasos e
outras coisas maiores. Desta forma a corrida inusitada nem chegou a contar com espectadores o
que pôde cercar o episódio com uma certa discrição. O supervisor comia o precioso lanche da
manhã, fornecido pela casa, quando foi surpreendido por aquela figura afobada tentando contar
o que acabara de ver com rapidez superior ao que permitia sua capacidade de formar e pronunciar
as palavras. Ouviu a história com aflita atenção e uma incontinente emoção que, por sinal, iria
prejudicar sua digestão pelo resto do dia, especialmente com a porção generosa do presunto de
Parma que recheava o belo naco de ciabatta que ele mastigava despreocupado quando o homem
da limpeza irrompeu em sua sala e violentou o seu sossego. Nem se deu ao trabalho de conferir
o fato, tal o grau de veracidade que a expressão do mensageiro imprimia à mensagem. Ademais a
aparição da Grande Autoridade já era esperada e ele até ficava feliz de ser quem espalharia a
notícia. Pegou no telefone e chamou o chefe da segurança como estava previsto na rotina da casa.
Mas, ao mesmo tempo, não deixou de alertar a imprensa, se colocando à disposição para eventuais
entrevistas. Ao receber a notícia o chefe da segurança agiu ou pareceu agir com calma e perspicácia.
Afinal era isso que se esperaria de um ex-coronel, mesmo sendo ele um homem de gabinete que
131
nunca viveu uma emergência de verdade. Mostrou energia, assumiu o comando e depois de uma
rápida análise da situação decidiu isolar a sala onde a Grande Autoridade estava. Também decidiu
pedir ajuda externa para isolar o edifício pois estava certo que a notícia se espalharia de uma forma
ou de outra e muita gente seria atraída para conferir aquelas coisas inusitadas ao vivo. Postou seus
homens na entrada do recinto do plenário da assembleia geral da nação e passou-lhes severíssimas
instruções em voz clara e altissonante. Ninguém deveria sequer olhar para dentro. Em seguida
voltou literalmente correndo à sua sala e telefonou para o presidente do parlamento, usando para
isso, uma linha especial, como devia ser feito em casos especiais. E não havia caso mais especial
do que esse.
O telefonema encontrou o presidente em sua caminhada matinal na orla do lago, próximo
a sua casa de cinco milhões de dólares. Ao identificar a origem da ligação Sua Excelência,
suspendeu a caminhada e procurou um canto mais discreto pois já sabia que a ligação era
emergencial. Mas, de toda forma, foi surpreendido pela natureza do assunto pois não se
convencera de que verdadeiramente a Grande Autoridade estivesse por ali, a despeito das
vibrações que qualquer um podia captar com um mínimo de habilidade sensitiva, apesar também
dos boatos cada vez mais intensos que circulavam à boca grande e pequena e até já vinha agitando
alguns deputados mais radicais. Mesmo relativamente surpreso, estava, contudo, acostumado a
desempenhar papel de liderança nos grandes fatos políticos do país há mais de quarenta anos. Era
competente, portanto, para administrar mais esse incômodo, não obstante a natureza rara do fato.
Aliás, a despeito das tantas profecias ecumênicas de visionários que costumavam emergir nas
grandes crises, naturais ou provocadas que pontuaram quase todos os séculos, era a primeira vez
que a Grande Autoridade verdadeiramente aparecia. Mas, a bem da verdade, não havia muitas
alternativas naquele momento e o presidente se limitou a telefonar para as lideranças dos principais
partidos políticos e convocá-los ao seu gabinete, dentro de uma hora. A conversa com cada líder
foi rápida e objetiva e assim o presidente, a despeito de ter tentado acelerar o passo, suas pernas
curtas e seu ventre estufado não o ajudavam muito, de sorte que ele completou os telefonemas
mesmo antes de ter chegado em casa. Assim já teve tempo de alinhavar os pontos da estratégia
que teria que adotar para administrar essa situação. Logo concluiu que, também aqui, havia poucas
alternativas. Não havia muito o que inventar. Se houver exigências da Grande Autoridade, terá que
ceder. Contudo, claro, terá que ter habilidade para ceder o mínimo possível e, quem sabe, até
transformar em vantagem o que, aos olhos dos ingênuos, podia parecer derrota. Aliás, não existe
nada mais saboroso no jogo político do que deixar que o inimigo se julgue vitorioso depois de
atirar no próprio pé. Afinal, essa receitinha simples vinha funcionando há muito tempo. Está certo
que o sucesso dessa velha e boa estratégia dependia muito do poder de persuasão de expedientes
que não poderiam ser aplicados no trato com a Grande Autoridade, tais como chantagem e
suborno. Sempre fora mestre nessas artes, mas, infelizmente não podia se valer delas agora. Essa
lembrança gerou um certo desassossego nos pensamentos de Sua Excelência. Mas ele preferiu, no
momento, afastar os pessimismos e as dúvidas que pudessem prejudicar a objetividade e firmeza
da sua conduta. Afinal ele também era uma autoridade, político experiente e notório estrategista,
dominador de crises. Estava, quem sabe, diante do maior desafio da sua vitoriosa carreira e tinha
tudo para se sair bem. Ademais tinha amplo apoio dos colegas da assembleia. Assim, nessa linha
132
tênue de autoconvencimento, conseguiu afastar os pensamentos negativos no que acabou ajudado
pela água quente do chuveiro sob o qual acabara de entrar reconfortado.
Durante o banho tentou manter o pensamento afastado do redemoinho dos fatos que
previa que iriam se suceder dali a pouco. Mas abreviou a duração habitual daquele tépido ritual de
todas as manhãs e quinze minutos depois já enlaçava o nó da gravata e a ajeitava sob o peito
branco da camisa de algodão egípcio sob a qual vestiu um belo jaquetão escuro de corte inglês.
Depois tomou rapidamente um copo de laranjada e desceu pelo elevador até a garagem onde o
motorista já o esperava com o motor do carro ligado. Ao longo do caminho observou que o
trânsito estava nervoso e o fluxo apontava preferencialmente para a praça da assembleia nacional.
Receou encontrar a praça cheia de gente e seu receio se confirmou. Apesar de se aproximar do
edifício pela alameda dos fundos pôde observar de longe que pequena multidão já se formava
próximo ao portal da entrada principal e muita gente vinha ocupando os jardins. Mas havia ordem
e até uma certa contrição. Não havia faixas, nem palavras de ordem. Mas havia muitas bandeiras
e nas roupas predominavam as cores da pátria. Embora tentasse evitar qualquer apreensão, o
presidente do parlamento voltou a desassossegar-se com aquele clima que, para ele, sempre exercia
pressão e prejudicava o controle efetivo dos apoios prometido ou comprados. Assim, quando
desceu na garagem privativa do gabinete presidencial seu habitual sorriso - encimado pelo basto
bigode e, ainda mais acima, pela rala cabeleira besuntada - tinha um tom ligeiramente amarelo.
Caminhou apressado escoltado por dois assessores que, ao contrário do usual, não lhe
passaram informações relevante para as decisões do dia. Limitaram-se a sussurrar-lhe que a
Grande Autoridade ainda deveria estar no salão da assembleia e que ninguém tinha sido autorizado
a entrar no recinto. Enquanto caminhava pelos corredores em direção ao seu gabinete, o
presidente, também ao contrário do usual, não havia sido muito abordado, nem mesmo recebido
muitos cumprimentos. Chegou a ter a impressão de alguns até preferiram evitá-lo, fingindo não
tê-lo visto passar. Mas ao dar entrada no gabinete a sensação desagradável se dissipou. Havia uma
certa aflição entre os que o esperavam, embora ele estivesse rigorosamente no horário. Assim, sua
chegada foi marcada por sinceros sorrisos de alívio e por fortes apertos de mão temperados por
tapinhas carregados de solidariedade e confiança. Ali estava o velho capitão, piloto de tantas crises.
De sorte que ele pôde assumir o seu papel de presidente do parlamento com serenidade e
segurança. Assentou-se na cadeira que lhe estava reservada na cabeceira da ampla mesa de reuniões
e deu início ao singular evento. Procurou tranquilizar o colegiado de líderes. Disse que apesar do
caráter fantástico de tudo aquilo não havia nenhum motivo para descontrole. Até porque, ninguém
sabia exatamente o motivo da visitação da Grande Autoridade. Podia até tratar-se de uma mera
visita de cortesia. Assim, num primeiro momento, teriam apenas que escutar. Todos concordaram
com singelos movimentos de cabeça. Não havia mesmo o que discutir. O grupo se limitou, então
a definir o protocolo a ser seguido naquela sessão extraordinaríssima. Decidiram que todos os
parlamentares entrariam juntos no recinto e que o povo seria impedido de ocupar as galerias. Em
seguida a diretoria ocuparia a mesa e convidaria A Grande Autoridade a fazer parte dela, passandolhe a palavra. Daí para frente a sessão correria a critério do presidente, conforme as exigências das
circunstâncias. Todas as atividades paralelas da casa estavam canceladas, especialmente aquele ciclo
de palestras sobre éticas alternativas programado para ser aberto naquele dia com a palestra de
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uma conhecida atriz da televisão. Rápidas instruções foram passadas e o singelo ritual foi colocado
em prática. Tudo acertado, o presidente do legislativo nacional disse que iria ligar para o presidente
da república, para inteirá-lo da situação. Todos se retiraram e assim foi feito. O chefe do executivo,
claro, já sabia de tudo. Também mostrou tranquilidade, passou confiança, pediu para ser mantido
informado e se pôs à disposição. Em seguida o presidente do parlamento ganhou o corredor e,
apesar das pernas curtas, marchou com passo meio marcial, querendo passar firmeza e resolução.
Ao final do corredor estavam concentrados os deputados e senadores à espera. Abriram caminho
como se ele fosse uma quilha na água. Rapidamente organizou-se um cortejo para entrar no
plenário com um mínimo de pompa. As portas do recinto do plenário foram abertas e o presidente
entrou sorridente, seguido pela mesa diretora, pelo colégio de líderes e pelos representantes do
povo em geral, ordenados por estado, segundo o tamanho das respectivas bancadas. Nunca se
vira tanto decoro naquela casa. E lá estava A Grande Autoridade assentada na cadeira do
presidente, sorrindo com toda a gentileza em resposta aos meneios de cabeça que recebia de quase
todos a título de cumprimento. Ninguém se atreveu, contudo, a acenar como é habitual entre
políticos para fingir intimidade. A Grande Autoridade era uma figura simpática. Estava vestida
com uma camisa de malha preta esportiva, sem gola e de magas curtas. Uma calça Jeans descorada
presa por um cinto de couro largo completava a vestimenta. Nos pés trazia um tênis branco de
sola rasa e estava sem meias. A figura era magra, o cabelo era curto esbranquiçado e combinando
com a barba no mesmo tom, rasa e cuidadosamente aparada. Apesar da simplicidade do traje e da
postura, também no meio daquela assembleia ninguém teve dúvidas do tamanho da autoridade
daquele que ali estava sorridente, usurpando docemente a cadeira da presidência. Nem o próprio
presidente. De sorte que ele meio sem graça se limitou a cumprimentar respeitosamente A Grande
Autoridade e se assentar na cadeira à direita da mesma. Enquanto isso os demais parlamentares
foram assumindo seus lugares ordeiramente e em surpreendente silêncio. Talvez até porque não
havia conchavos a serem feitos naquela circunstância. O povo teve o acesso negado e assim as
galerias ficaram vazias. Ninguém conseguia tirar os olhos de cima da Grande Autoridade que
apenas sorria ternamente, cativando a todos. Havia um clima gratificante e sereno. Esse clima não
duraria muito, mas foi assim que teve começo o inesquecível primeiro dia do juízo.
Começou quando o ilustre e mui digno presidente do parlamento, do alto do seu magnífico
bigode e do seu distintíssimo jaquetão, puxou o microfone para perto de si. Firmou o pedestal
com uma das mãos e fez o tradicional teste de som, batendo a ponta da bonita unha envernizada
contra a boca do aparelho. O som se espalhou perfeito pelos cantos do recinto e ele sentiu-se
pronto para dar abertura aos trabalhos, mesmo sem saber exatamente o que seria tratado. Mas,
como combinado, ele apenas iria abrir os trabalhos e passar a palavra ao Ilustríssimo Visitante.
Ajeitou-se no assento da poltrona, esticou o curto pescoço, articulou a garganta, percutiu as cordas
vocais, movimentou os lábios, mas não conseguiu produzir nenhum som. Tentou várias vezes,
sem sucesso. À medida em que tentava e repetia a tentativa de dizer alguma coisa o rosto do pobre
homem ia se contraindo e formando uma expressão de agonia. Por fim, depois de uma meia dúzia
de patéticas tentativas, desistiu. Recostou-se na cadeira vencido e assustado. Estava inteiramente
mudo. Um enorme constrangimento e um não menos expressivo susto tomaram conta do
plenário. Um súbito calor imaginário invadiu o recinto provocando uma intensa transpiração em
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quase todos. Alguns pensaram que estavam tendo alguma crise cardíaca, outros acreditaram estar
sendo vítimas de uma crise hipertensiva, outros sentiram apenas um desconforto estranho. Mas
todos permaneceram quietos, em seus lugares, meio paralisados. Sentiram, sem exceção, que uma
coisa extraordinária começava a acontecer. Foi quando A Grande Autoridade estendeu a mão
direita espalmada dando a atender que estava assumindo a direção da assembleia. Os membros da
mesa diretora de limitaram a trocar olhares impotentes e conformados. Na sequência um rapaz
alto, magro e louro entrou singularmente no portentoso recinto, chamando a atenção de todos,
então já bastante desnorteados. Trazia uma mochila surrada pendente em uma das mãos. Devia
ser alguma encomenda urgente. Atravessou o recinto apressado seguido pelos olhares dos
membros da assembleia, surpresos com tanta informalidade no meio de tanta gravidade. Tomou
uma escadinha lateral e subiu numa espécie de palco onde estava a mesa diretora e entregou a dita
mochila à Grande Autoridade. Todos permaneceram quietos à espera de alguma revelação que
pudesse quebrar-lhes a ansiedade que, àquela altura, já havia provocado algumas discretas anginas.
O incomum destinatário recebeu a encomenda, abriu a mochila e de dentro tirou quatro singelas
pastas de papelão, fechadas com elásticos enlaçados em cada uma das quatro pontas. Uma era
branca, a outra vermelha, a terceira preta e a última verde. Espalhou-as diante de si e os que
estavam mais próximos puderam ler uma identificação colada na frente de cada uma das pastas.
A pasta branca estava identificada com a palavra “ambição”, a vermelha estava identificada com a
palavra “intolerância”, na preta estava colada a palavra “miséria” e na última, a de cor verde, liase a palavra “ruína”. Em seguida a Grande Autoridade empilhou as pastas ao seu lado com
cuidado. Abriu cada uma delas, sacou algumas folhas avulsas de papel reciclado, juntou-as e
examinou o conteúdo. Os membros da assembleia permaneceram imóveis, aguardando. Mas não
esperaram muito pois essa operação não levou mais do que uma fração de minutos. Se é que se
pode dizer assim, pois naquela situação, dentro do recinto, o tempo não corria convencionalmente.
Assim que a Grande Autoridade pousou os papéis de volta às pastas e ergueu os olhos para os
representantes do povo o painel do plenário se iluminou e apareceu uma espécie de alegoria que
lembrava uma ilustração barroca de bíblia antiga. Mostrava dois dragões rompantes com garras
de pássaro predador esganando pessoas que gesticulavam com expressão de desespero. Um dos
dragões era branco e o outro era vermelho e traziam estampadas no peito, respectivamente, as
palavras “ambição” e “intolerância”. Cada um dos dragões tinha uma garra de cor preta onde se
lia a palavra “miséria” e outra de cor verde onde estava estampada a palavra “ruína”. Poder-se-ia
dizer que a alegoria era fora de moda e de extremo mau-gosto, mas o susto que tomou conta de
todos não deu espaço para ninguém fazer tal tipo de avaliação supérflua, leviana e descabida
naquela hora aflitiva. Todos sentiam que o momento era grave e estavam compenetrados. Coisa
rara naquele lugar, nos últimos tempos quando só havia alegria. Alguns tomaram notas querendo
entender melhor o que estava se passando. Houve troca de opiniões a baixa voz e discreta
circulação de bilhetes apressados. Tudo muito sério e contrito. Enquanto isso a alegoria
permaneceu sendo mostrada no painel, tempo em que A Grande Autoridade permaneceu
impassível detrás do seu sorriso bondoso. Ao final de algum tempo já havia uma versão aceitável
do significado da alegoria circulando no plenário e com ela circulava também um princípio de
pânico, especialmente entre os mais místicos ou perspicazes. Por ela se entendia que a alegoria
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representava a ambição e a intolerância esmagando o povo através da miséria e da ruína.
Convenhamos que era uma interpretação bastante razoável e lúcida; simples como simples era a
mensagem que pairava no ar. Louvável esforço para um plenário que parecia nunca se preocupar
com o significado daquelas palavras. Assim também deve ter achado a Grande Autoridade. Tanto
que a alegoria desapareceu do painel. Eu seu lugar apareceram os nomes de todos os senadores e
deputados que compunham a assembleia nacional, alinhados em ordem alfabética. Um choque
gelado percorreu a coluna vertebral de cada um deles. Tudo aquilo estava sendo verdadeiramente
assustador.
Terminada a exibição da sequência dos parlamentares, o primeiro nome da lista reapareceu
piscando. Era o nome de uma deputada obesa que gostava de dar uns passinhos cretinos de dança
sempre que uma matéria apoiada por ela era aprovada pela assembleia por mais debochada que
fosse. A tal deputada não tinha nenhuma dúvida de que estava sendo convocada a falar alguma
coisa sobre a alegoria, e seria a primeira. Coitada, sempre detestou o nome Abigail que o pai tinha
tido a ideia de dar a ela em homenagem à vó Biga. Pensou em esperar um pouco. Quis se
convencer que o nome dela exposto no painel não significava, necessariamente, que ela estava
sendo convocada a ocupar a tribuna. Mas não teve tempo de se aliviar. A Grande Autoridade
olhou para ela e apontou o parlatório, dissipando toda dúvida e esperança. A gorda parlamentar,
alinhou os óculos, ajeitou a echarpe em volta do cachaço, alisou o largo vestido no cumprimento
das coxas, lançou um sorriso amarelo aos colegas mais próximos e se dirigiu à tribuna, claudicante,
torturada pela altura dos saltos dos sapatos que, nesse instante, pareciam indomáveis, conspirando
para empurrá-la às profundezas de um arrasador tropeção. Mas, dominando o descontrole das
pernas roliças, conseguiu chegar ao alto do parlatório sem maiores incidentes. Até pôde pensar
em alguma coisa para dizer. Poderia fazer uma espécie de sermão condenando a ambição e a
intolerância. Até conseguia se lembrar de umas passagens bíblicas a respeito, muita apreciadas nos
meios pertinentes. Assim, quando assumiu a tribuna já se sentia mais confiante. Já se preparava
para as saudações de praxe quando percebeu que os colegas tinham os olhos vidrados, fixos no
painel que se erguia sob sua cabeça. Alguns deixaram pender o lábio inferior, literalmente
boquiabertos. Virou-se para verificar o que estava prendendo a atenção da assembleia. Teve um
dos maiores sustos de toda a sua vida. As pernas fraquejaram de vez, as cores fugiram das sempre
coradas bochechas, a respiração descompassou-se. Precisou segurar firmemente na balaustrada
para não cair. No painel estavam sendo exibidas cenas autênticas da sua carreira política. Lá estava
ela, tímida professorinha, depois líder sindical, vereadora, deputada provincial, parlamentar
federal, dançarina debochada. No início simpatia, depois persuasão, suborno, propina. Pessoas
lesadas, perseguições, vinganças. Um pequeno apartamento na periferia, uma cobertura na capital,
uma casa na praia, uma conta na Suíça, num crescendo vertiginoso e absurdo para quem vivia à
serviço do povo. Tudo mostrado com toda verossimilhança. A nobre deputada tinha tido uma
carreira gloriosa, pelo lado da ambição e da intolerância. Mas não era o conteúdo e sim a forma
daquela exibição que estava chocando a assembleia: as cenas eram reais, inquestionáveis. Como se
estivessem acontecendo naquele exato instante, diante de todos. Alguns até tentaram se convencer
que eram cenas filmadas, maldosamente montadas numa pura armação. Mas isso não prosperou
pois a autoridade era grande e grande o seu poder. E isso estava no ar.
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A exibição durou não mais do que um átimo, mas foi arrasadora. A pobre Abigail deixou a
tribuna semidesfalecida amparada por seus assessores, aliás, um irmão e um sobrinho que até
então observavam o vexame do fundo do plenário. O cortejo quase fúnebre formado pelo trio
passou direto pela cadeira da deputada e sumiu por uma porta lateral. Nunca mais se teve notícias
dela. Dizem que ela se internou num convento, com votos de pobreza e um medo danado do
inferno, assustada por visões.
Quando o segundo nome começou a piscar no painel, verdadeira esquizofrenia tomou
conta da assembleia. A grande maioria dos parlamentares, inclusive todos os membros da mesa
diretora, deixaram o recinto apressados, aos tropeços. Alguns alegando emergência, outros
simplesmente fugindo calados. Ao final da debandada, além da Grande Autoridade, apenas uma
dúzia dos membros do parlamento permaneceram assentados em seus lugares. Eram os poucos
que não tinham o que esconder. E permaneceram até o final, expondo humildemente as passagens
mais relevantes das suas vidas políticas.
Os que fugiram correram todos na mesma direção. Formou-se um grande tumulto no
corredor que levava ao gabinete do presidente do parlamento. Houve uma certa dificuldade para
que ele conseguisse passar no meio daquele mar de destroços repleto de braços agitados, olhares
espavoridos e grunhidos ininteligíveis. Quando conseguiu concluir a travessia e entrar na sua
luxuosa sala o presidente trazia uma das mangas do jaquetão descosturada no ombro, deixando à
mostra o forro de seda vermelha. A gravata estava frouxa e uma das pontas do colarinho italiano
estava miseravelmente virada para cima, rendida covardemente a um reles safanão involuntário. O
cabelo estava desgrenhado e lhe caia desagradável pela testa engordurada. Em seus quarenta anos
à frente daquela casa, ninguém jamais o tinha visto com aparência tão lamentável.
Assim que conseguiu passar, dois assessores e dois seguranças montaram guarda à frente
da suntuosa porta de jacarandá da Bahia que dava entrada ao gabinete presidencial. Somente os
líderes dos partidos foram autorizados a passar. Não demorou muito para que todos eles
estivessem presentes, independentemente de qualquer convocação. Desta forma, não mais do que
quinze minutos depois da abertura da terrível assembleia do juízo já corria uma reunião de
emergência à portas fechadas. Não sei se era apropriado chamar de reunião àquele tumulto onde
todos falavam ao mesmo tempo e ninguém escutava nada. O chefe do parlamento, até então
notório por sua serenidade e ponderação, flanava no meio da sala, traumatizado sem saber o que
dizer. De sorte que não havia ordem nem coordenação. Na verdade ninguém tinha planos ou
propostas razoáveis para submeter a debate, visto que, aquela crise era única, não havia
precedentes para servir de parâmetro. Além disso, todos estavam assustadíssimos com o que
tinham acabado de presenciar. Desta forma, durante certo tempo, o que rolou foi muita conversa
insensata, muito café, cigarro e charuto num clima de histeria e pouco comedimento. Somente ao
final de algumas horas foi que baixou algum clima de racionalidade. Até porque tinha chegado a
notícia de que a Grande Autoridade já havia se retirado do prédio acompanhada pelos poucos
parlamentares que haviam permanecido no plenário até o final. Também se soube que a maioria
do povo e a imprensa já tinham deixado a praça da Assembleia. Parece que ia haver uma entrevista
coletiva num outro lugar com a presença da Grande Autoridade ou de seu porta-voz. As notícias
trouxeram um pouco de relaxamento imediato e foi então que o assunto passou a ser tratado
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como era de se esperar no meio de tanta raposa maldosa. Mais calmo, o presidente pôde assumir
a coordenação dos debates. E assim fez, mas estava inseguro. A primeira proposta efetiva
apresentada para enfrentamento da terrível situação veio de um jovem deputado, legítimo e
competente herdeiro de antiga família de oligarcas cheia de governadores, senadores e deputados.
Propunha, pura e simplesmente, uma renúncia coletiva de mandatos. Sustentou que tudo indicava
que A Grande Autoridade estava instalando um gigantesco processo de cassação. Em sendo assim,
nada mais justo que seguir o que o estatuto da casa mandava. No seu artigo primeiro, o notável
estatuto, assegurava que a renúncia sustava a cassação e o risco de inelegibilidade. Portanto uma
renúncia coletiva tornaria todo aquele terrível processo absolutamente inócuo. A proposta chegou
a merecer alguns tímidos aplausos. Talvez até viesse a angariar mais simpatia se houvesse tempo
para isso. Mas não houve. A proposta foi violentamente fulminada com um potente murro na
mesa que fez saltar copos e cinzeiros. Estando tão susceptível todos se assustaram e se encolheram
timidamente em suas cadeiras. Foi como se um raio acabasse de cair no meio da sala e aquela turba
tivesse escapado com vida por puro milagre. E logo agora que todo mundo estava recobrando um
pouco da serenidade. Ato contínuo todos os olhos e ouvidos se fixaram na pessoa que tinha
desferido aquele martelo da ira bem no meio do salão. Era um senador em seu primeiro mandato,
também bispo de uma igreja neocristã de atuação universal, muito poderosa política e
economicamente. Respeitado como teólogo marginal, tinha sido ele o criador da teologia mundana
da prosperidade. Impunha-se por todas essas credenciais e ainda mais pelos seus um metro e
noventa e oito centímetros de altura e cento e noventa e quatro quilos de peso. Um autêntico
monumento de autoridade, guardadas as devidas proporções com a Outra Autoridade, aquela que
estava provocando toda essa histeria coletiva. Assim quando o bispo-senador se levantou muitos
tiveram ímpeto de se esconder debaixo da mesa pois os nervos ainda estavam à flor da pele. A
primeira coisa que ele fez foi erguer a bíblia acima da cabeça como se fosse uma bandeira. Sempre
trazia o livro sagrado dentro da pasta. Durante grande parte da reunião ele tinha permanecido no
fundo da sala assentado numa poltrona, folheando e lendo passagens do livro santo dos cristãos.
Parece que tinha encontrado o que procurava e agora era hora de falar.
- Vocês não percebem o que está acontecendo? – disse ele trovejante, os olhos esbugalhados
e um filete de espuma branca riscado no canto da boca.
- Isso é um juízo sagrado. Estamos sendo julgados como no dia do Juízo Final!
- Esse é o nosso Apocalipse!
Estando predispostos, depois de tanta coisa estranha, todos entenderam muito bem o
significado daquelas terríveis palavras. Assim, esvaiu-se num instante a serenidade que parecia
estar sendo recuperada gradativamente ao longo da aflitiva reunião. Em poucos segundos instalouse o pânico definitivo na totalidade daqueles homens. Alguns choraram, outros rangeram dentes.
A maioria fez as duas coisas ao mesmo tempo. Mas, apesar da aflição, ou talvez por isso mesmo;
ninguém conseguiu tirar os olhos do bispo-senador. E ele continuou, agora num tom menos
trágico e mais professoral, como se quisesse trazer algum consolo àquelas almas aflitas. Explicou
que as cores das pastas que a Grande Autoridade empilhara sobre a mesa eram as mesmas cores
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dos Quatro Cavaleiros do Apocalipse e representavam a história do homem sob o domínio do
mal, descrito por são João. Lembrou que no Apocalipse as cores representavam a ambição, a
guerra, a fome e a morte e que, nos tempos modernos, poderiam ter outros significados. A velha
ambição continuava como sempre, mas a guerra havia virado intolerância, a fome havia virado a
miséria e a morte havia virado a ruína. Foi o que apareceu no painel antes da trajetória da vida da
pobre deputada Abigail ser mostrada, repleta dos pecados da ambição e da intolerância e dos
crimes decorrentes.
Com essa explicação, ninguém podia ter mais dúvida do tamanho do problema que tinha
diante de si. Desta forma, não houve espera pela continuação da explicação pavorosa do bisposenador. Um verdadeiro tropel de parlamentares desnorteados irrompeu corredor à fora deixando
a sala vazia. Só ficou o bispo-senador, prostrado literalmente, mergulhando em profunda
contrição, meditando sobre os seus pecados grandes e pequenos. A turba que saia espavorida
encontrou o restante dos parlamentares que esperavam ansiosos do lado de fora, à míngua de
notícias. A cena foi dramática. Ninguém conseguia explicar, ninguém conseguia entender.
O presidente do parlamento, depois daqueles sustos do seu mais longo dos dias teve que
voltar para casa deitado na maca da ambulância do congresso, assistido por médicos e enfermeiros.
Indispensável precaução já tendo ele enfrentado duas cirurgias cardíacas e tendo passado, só
naquele dia, por uma crise hipertensiva, uma taquicardia e uma crise de mutismo de origem
inexplicável para os seguidores de Hipócrates e Hirófilo da Calcedônia. Mas quando chegou em
casa, resolveu mostrar valentia e entrou caminhando para não assustar a família. Infelizmente o
elevador estava com problemas e ele teve que subir um lance de escadas, o que fez com certa
dificuldade, se valendo do corrimão. Tomou o corredor da esquerda evitando a sala de estar onde
a família estava reunida. Rumou para seu pequeno gabinete, contíguo a uma suíte que era usada
para descanso nos intervalos entre despachos com os assessores mais chegados. Era uma espécie
de sala de leitura, pequena e mobiliada com relativa austeridade. Só era usada em situações muito
reservadas. Mal havia chegado recebeu um telefonema do Presidente da República. Tentou
explicar o que estava acontecendo, mas o chefe do executivo o interrompeu já na primeira palavra.
Não precisava dizer nada, ele já sabia de tudo. Aliás todo o povo já sabia pois as terríveis cenas
dos acontecimentos do parlamento acabaram de ser exibidas em cadeia nacional com todos os
detalhes. E mais, o povo estava nas ruas de caras pintadas, cantando hinos e agitando bandeiras.
Criticou o abandono precipitado do recinto da assembleia pela maioria dos parlamentares.
Comentou, com voz alterada, que para ele esse gesto indicava confissão maciça de culpa, coisa
que um político jamais deve fazer. Enfatizou que a facilidade com que o parlamento havia se
rendido abria um flanco que poderia levar a ele; o que, nesse momento, podia ter sido francamente
evitado. Falou em covardia, despreparo e traição. Não podia admitir tamanha mediocridade. Ainda
mais ele que tanto tinha feito para livrá-lo das situações difíceis em que tantas vezes estivera
metido, assim como fizera com pessoas da sua família. O pobre chefe do parlamento ouviu tudo
em obediente silêncio. Sentiu que, ao contrário do prometido, não iria obter qualquer apoio ou
solidariedade do Presidente da República e se preparou para mais um dos eventos do seu calvário
que tinha começado naquela manhã quando seu sossego matinal foi quebrado por aquele maldito
telefonema do chefe da segurança do parlamento. E assim foi. O Presidente da República não
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lhe dirigiu nenhuma palavra de ajuda ou consolo. Disse que não ia se meter nessa questão. Sentiase seguro para ficar quieto no seu canto. Afinal gozava de grande aprovação e apreço no seio do
povo o que, certamente, teria muito peso no juízo da Grande Autoridade. Com certeza seu
governo vinha sendo de grandes ganhos populares e ele jamais poderia ser visto como causador
de miséria e ruína. Aliás, muito antes pelo contrário. O parlamento é que tinha uma péssima
imagem, graças aos incontáveis desmandos que já vinham se acumulando há muito tempo.
Descrente, o povo achou que só lhe restava rezar. E deu no que deu.
O chefe do legislativo achou que essa autoconfiança do presidente era um tanto exagerada
e quis fazer algum comentário mais realista sobre algumas coisas mal resolvidas e que sempre
podiam voltar à tona. Lembrou das palavras “arrogância” e “mentira” que muito bem podiam ter
alguma coisa a ver com “ambição” e “intolerância”. Mas não teve tempo de fazer nenhuma
observação. O presidente, pressentindo que podia ser questionado no seu próprio juízo, se
despediu e bruscamente desligou o telefone. O pobre chefe do parlamento sentiu-se com menos
forças ainda do que quando tinha chegado em casa. Mergulhou numa espécie de torpor e assim
permaneceu alguns minutos. Sua letargia foi quebrada por outro chamado ao telefone. Era um
assessor informando que um porta-voz da Grande Autoridade havia aparecido na televisão
convocando todos os parlamentares para uma nova assembleia, dentro de dois dias, para a
continuação do juízo.
A notícia confirmou o que já esperava: aquela manobra escapatória tinha sido inútil. Era
outra má notícia, mas desta vez, ele não mergulhou numa autopiedade destrutiva. Ao contrário,
levantou-se e começou a andar em círculos pela sala, num passo mais animado. Tinha, em alguma
medida, recobrado o discernimento. Nesse estado, mais compatível com sua famosa sagacidade,
pôde se convencer que a nova convocação era natural e previsível. É claro que a Grande
Autoridade não se daria por satisfeita com aquela escapada, até certo ponto infantil, dos
parlamentares. Seja como for, a assembleia do segundo dia do juízo era um fato. A questão seria:
como lidar com ele? A partir daí começou a se sentir mais animado. Tanto que resolveu dar uma
saída para se fortalecer com os ares da noite. Chamou seu motorista, sentou-se no banco traseiro
do carro oficial preto e reluzente e mandou o motorista seguir pela orla do lago. Sentia-se mais
relaxado apesar do resultado frustrante da conversa com o presidente. Durante o passeio se
dispensou de voltar a pensar naquele assunto espinhoso. Desviou o pensamento. Ficou reparando
nas luzes da cidade refletidas nas águas negras e calmas do lago. Lembrou-se de quando esteve na
capital federal pela primeira vez. Cumpria então seu primeiro mandato de deputado. Sentiu uma
certa nostalgia. Foi há quase cinquenta anos.
Ao chegar em casa, de volta do revigorante passeio, fez questão de encontrar a família que,
àquela altura estava bastante preocupada com ele. Todos sentiram um certo alívio vendo-o assim
mais animado. Mas estavam assustados com o que tinham visto no noticiário televisivo da noite.
Mas ninguém quis comentar o assunto. Alguns de seus filhos tinham seus próprios problemas.
Afinal sobre eles caiam desagradáveis suspeitas, tais como, alguns milhões de dólares nãodeclarados em contas na suíça e milhões de reais em dinheiro em cofres de comitês políticos de
fonte desconhecida, entre outros. Mas ele aparentava calma e isso animou a todos, como dito.
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Contudo, não houve muita conversa. Mesmo porque ele disse que ia subir e tomar um belo banho
de banheira e não abriu espaço para conversas.
Subiu até sua suíte e foi direto para o enorme banheiro de granito preto e louças vermelhas,
de gosto duvidoso. Despiu-se devagar, evitando ainda ocupar a mente com seu monumental
problema. Abriu a torneira da sua bela jacuzzi encarnada e deixou jorrar a água quente regulada
automaticamente na temperatura ideal para ele e que seria mantida assim durante todo o banho
por um sofisticado sistema de aquecimento eletrônico ultrassensível. A grande banheira redonda
se encheu rapidamente e ele escorregou para dentro dela devagar. Recostou numa das bordas,
acomodou os fundilhos balofos numa depressão apropriada no piso da banheira, soltou braços e
pernas e deixou-os subir lentamente levados pelo empuxo da água. Fechou os olhos e se sentiu
finalmente pronto a enfrentar o maior problema da sua carreira. Repassou na mente as cenas do
dia como se estivesse examinando uma fita de vídeo. Lembrou da tenebrosa alegoria. Fixou-se na
figura patética da deputada Abigail deixando o plenário completamente arrasada. Nunca tinha
presenciado cena tão humilhante. É verdade que ela vinha exagerando, debochando acintosamente
do chamado decoro. Talvez até tivesse merecido aquela punição. Ela era de fato um monumento
a denegrir a imagem do parlamento. Com certeza estava entre os parlamentares de atitudes mais
condenáveis e mal vistas pela opinião pública. Tinha todas as chances de ser a primeira a se explicar
mesmo se não merecesse a precedência pela ordem alfabética.
Ia o chefe do parlamento calmamente nessa análise distorcida da ficha da pobre deputada
Abigail quando teve um lampejo matreiro, como era do seu jeito nos casos convencionais. Reagiu
como se tivesse tomado um choque daquela geringonça eletrônica. Saltaria fora d’água se tivesse
agilidade para isso. Como não tinha o que fez foi erguer-se rapidamente e ficar assentado com
água até o peito cabeludo, dispensando a borda da banheira para servir de recosto. Abriu os olhos
com vivacidade atiçado finalmente por um pensamento veramente animador. E se o juízo da
Grande Autoridade estivesse visando atingir apenas os parlamentares mais debochados? Até pode
ser que somente os crimes mais graves viessem a ser mostrados. Por exemplo, aqueles já
denunciados pelo ministério público ou de convencimento unânime do povo. Os pequenos
deslizes, atitudes antiéticas e coisas quitais, talvez até ficassem de fora. Sempre duvidaram muito
da sua lisura, mas ninguém tinha prova de nada que pudesse ser usada contra ele.
Eram pensamentos animadores de fato. Mas, mesmo assim, não prosperaram muito tempo.
Mesmo porque, não tinham o menor sentido. O próprio pensador se convenceu disso já no
minuto seguinte. Estava sendo simplório. O desânimo voltou a abatê-lo de novo. Desta vez de
forma definitiva. Lembrou do que tinha se passado em seu gabinete, naquela reunião tumultuada,
depois da evacuação quase total do recinto do plenário. Lembrou-se da tenebrosa advertência do
bispo-senador, especialmente da frase final que proferiu: “Este é o nosso Apocalipse”! Essa
lembrança reinstalou nele o sentimento de pânico. Agora entendia com toda a clareza: não eram
crimes que seriam julgados e sim pecados. A submissão ao domínio do mal, começando pela
ambição, arrogância e sede de poder e riqueza; passando pela intolerância, a mentira, o roubo, a
traição e o jogo sujo com os adversários; tudo isso trazendo como resultado a miséria e a ruína
do seu povo. O mesmo povo que ele fingia servir com toda dedicação e probidade. Tomou
imediata consciência de que só o julgamento do primeiro pecado já seria suficiente para arrasá-lo.
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Sua vida toda tinha sido tocada por uma ambição desenfreada. Queria ser tudo e ter tudo e para
conseguir isso tinha se valido de todos os meios de que pudesse lançar mão. Contudo, se recusava
a admitir que tivesse causado miséria e ruína. Sempre fora muito bem intencionado e diretamente
nunca tinha causado mal a ninguém. Mas essa tímida tentativa de autoconsolo não surtiu nenhum
efeito. Será que a Grande Autoridade também pensaria assim? Seria esse o seu implacável juízo?
Parou por aí. Um choro convulsivo interrompeu o ato de contrição do poderoso presidente do
parlamento nacional. Ou, por outra, o completou. Sentiu-se liquidado. As lágrimas tépidas se
misturaram às águas, também tépidas da banheira. Mas nenhuma das duas porções de água o pôde
consolar de nenhum modo. Estava no fim.
A notícia do seu suicídio ganhou as ruas logo na manhã seguinte. Mas, diga-se de passagem,
até que não ocupou muito espaço na imprensa. É que havia muita coisa a noticiar sobre aqueles
acontecimentos extraordinários, inclusive a necessidade de formação de um novo parlamento
depois dos suicídios em massa ocorridos naquela noite e no dia seguinte. Nobre tragédia grecoromana para um vil paísinho caliente. Mas, a Grande Autoridade já anunciou que ninguém vai
escapar de prestar contas na instância superior.
Há uma certa apreensão no Executivo e no Judiciário.
AS CORES CONTUNDENTES DA VINGANÇA
A manhã de trabalho transcorreu tranquila para a professora Alsa Pontes de Almeida,
mesmo sendo uma segunda-feira cinzenta e preguiçosa. No trabalho usualmente desgastante dos
professores, uma manhã tranquila significa, singelamente, um período inteiro de aulas em que os
alunos mostrem interesse pela matéria e se abstenham de molecagens e gracinhas. E assim tinha
sido em todas as classes da professora Alsa naquela manhã. Coisa rara. Mas o dia, como um todo,
não foi bom para ela. Ao contrário, foi perpassado de elevada dose de angústia. Começou por
conta do conteúdo de um bilhete que foi entregue a ela pelo porteiro da escola, ao final da última
aula. Tinha sido deixado na manhã de sexta-feira por um mensageiro desconhecido com a
recomendação rigorosa de que fosse entregue exclusivamente em mãos da destinatária e o mais
rápido possível, recomendação essa lastreada numa bela propina. Não obstante, uma paga apenas
parcialmente merecida, já que a mensagem estava sendo entregue com dois dias de atraso. Detalhe
nem um pouco desprezível. Aliás, muito mais do que isso. Detalhe realmente trágico, como logo
se verá.
Naquela escola era comum os professores receberem bilhetes anônimos. Em geral eram
queixas ou ameaças da parte de pais ou alunos inconformados com notas ou punições, geralmente
justas e merecidas à luz do melhor juízo escolar de antigamente. Achando tratar-se de um desses
bilhetinhos infelizes, a professora abriu o envelope lacrado sem nenhum sobressalto ou especial
curiosidade. Leu a mensagem. Não era nada do costumeiro, em absoluto. Em princípio quis até
rir, dado o lado imbecil da mensagem. Era uma proposta indecente. Algum admirador
simplesmente a estava convidando a trair o marido. Um hilário atrevimento, foi o que pareceu ao
primeiro juízo da destinatária.
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Mas passada a surpresa e a ingenuidade da primeira reação, a professora resolveu reler a
mensagem com mais atenção. O canalha a orientava a ir à missa do domingo seguinte toda vestida
de branco. Seria o sinal do aceite da desaforada proposta. Agora sim, o bilhete tomou o peso que
realmente tinha. Alsa foi tomada de profunda indignação. Como alguém podia fazer uma proposta
tão debochada e sem sentido? Amassou o papel num impulso e caminhou em direção ao banheiro
para atirá-lo ao vaso sanitário. Mas antes que tivesse atravessado a porta da sala em que se
encontrava estancou. Em seguida empalideceu e quase teve um desmaio. Lembrou que nesse
domingo passado, por acaso tinha ido à igreja trajando justamente um vestido branco. Quer dizer,
o remetente da mensagem pode ter achado que ela tinha concordado com a proposta. Empurrada
por essa dedução terrível mas absolutamente provável, enfiou o bilhete apressadamente no bolso
do vestido e deixou-se cair numa cadeira muita assustada cobrindo o rosto com as mãos. Ficou
assim alguns segundos, vencida. Depois ouviu passos, ergueu a cabeça rapidamente e olhou em
direção à porta. Sentiu um alívio. Era a prof. Zildete, sua melhor amiga. A recém-chegada logo
percebeu que algo não estava bem e perguntou o que era. Alsa pediu que ela fechasse a porta, o
que foi feito rápido e sem perguntas. Em seguida meteu a mão no bolso, tirou o papel amassado
e entregou à amiga tremendo e com cara de choro. Zildete desdobrou o papel e leu o bilhete
rapidamente. Terminada a leitura, voltou a amassar o papel e exclamou indignada:
- Eu sei quem é esse cretino!
Alsa ergueu-se da cadeira e pegou-a pelas mãos, pedindo detalhes daquela incrível e inesperada
revelação.
- É o prefeito – completou Zildete com absoluta segurança.
A outra ficou perplexa, quis gritar, espernear de raiva, xingar o puto. Mas se conteve esperando
que a amiga continuasse. E ela continuou com firmeza e lógica, tentando convencer de que o
autor do desplante era mesmo o miserável prefeito. Contou que naquele baile da semana passada
em que ficaram juntas na mesma mesa notou que o safado não tirava os olhos dela. Era acintoso
e até constrangedor. Muita gente percebeu. Alsa confessou que não tinha notado nada. Nem
poderia, não era coisa que prendesse sua atenção naquele instante em que só queria se divertir ao
lado do marido. Mas Zildete não tinha dúvidas do assédio visual, até porque, todos sabem que o
dito prefeito é um notório cafajeste, famoso por abordar mulheres casadas. Aliás, solteiras
também, de toda qualidade e condição. Com certeza ainda não tinha tomado uns sopapos porque
se escondia atrás do seu tremendo poderio político. Assim, flanava solto sobre as honras
femininas do local, despreocupado sob a complacência geral: do juiz, do promotor, do padre e até
de alguns maridos traídos. Pobre Alsa, acabou tendo que concordar com aquela suposição
incômoda; muito provável, contudo. O conhecimento da autoria do crime, todavia, em muito
pouco aliviou sua agonia. Aquilo tinha que ficar em segredo absoluto. Não tinha a menor ideia de
como o marido podia reagir. Ele não era homem de dar sopapos, mas também não era de aceitar
conviver com situações indignas ou dúvidas de cunho moral. Havia o risco iminente do cretino
do prefeito achar que sua proposta tinha sido aceita e partir para uma abordagem mais direta.
Santo Deus, o que fazer para conjurar o perigo? Amava muito o marido, era absolutamente correta
143
e jamais tinha passado pela sua cabeça poder se meter um dia numa embrulhada que pudesse
colocar seu casamento em risco.
As amigas eram muito religiosas, assim concordaram em rezar muito para afastar o satanás
conquistador. Mas também concordaram em fazer alguma coisa mais concreta e pragmática. Mas
não puderam continuar tratando do delicado assunto naquele precípuo instante: alguém batia à
porta. Combinaram continuar no dia seguinte e cada uma partiu para sua casa pensando numa
solução para o caso inusitado. Alsa passou muito mal o resto do dia, se assustando com qualquer
gesto do marido. Este tratou-a com a carinho de sempre e, ao contrário dela, dormiu como um
anjo.
No dia seguinte, antes da aula as duas professoras se encontraram na praça da matriz. Isso
era comum pois gostavam de estar ali, trocando confidência. Isso desde os tempos em que ambas
eram simples crianças. Alsa se mostrava tão aflita quanto antes. A noite mal dormida encontravase estampada em seu rosto. Estava desanimada. A amiga, ao contrário, mostrava muita excitação
e disposição para enfrentar o caso. Disse que tinha um plano e sem esperar concordância foi logo
expondo a ideia. Era o seguinte: no próximo domingo Alsa iria à missa toda de preto. E explicou:
o preto era o oposto do branco, portanto ao usá-lo estaria negando frontalmente o que poderia
ter sido interpretado como um sinal positivo pelo sedutor cafajeste quando ela usou o vestido
branco. Alsa não gostou da ideia. Era muito arriscada e confusa. O prefeito sedutor poderia
interpretar aquilo de várias maneiras, sabe-se lá quais. Além disso, como justificar aquela
extravagância ao marido. Ninguém vai à missa de preto exceto em missas fúnebres. Repudiou o
plano. Redobrou o desânimo e entrou com ar de sofrimento na escola para começar seu dia
trabalho. Ia ser longo, tinha que dar cinco aulas naquele dia. Deu-as precariamente e com desleixo,
surpreendendo os próprios alunos pois não era o comum. E depois de tudo isso, coisa ainda pior:
um novo bilhete deixado pelo mesmo mensageiro no dia anterior. Era tudo que ela temia. Ao
recebê-lo a pobre professora não se conteve e irrompeu num choro convulsivo diante de todos.
Devia ser uma mensagem do conquistar acreditando que ela tinha aceito a proposta e já marcando
um encontro. Desmaiou. Foi socorrida, se conteve, recobrou-se, agradeceu a atenção de todos e
guardou o segredo. Todos ficaram perplexos. Ela era sempre muito calma e serena. Não teve
coragem de ler o bilhete. Rasgou-o com raiva e o atirou ao esgoto com uma descarga nervosa. A
amiga Zildete só ficou sabendo do caso mais tarde e preferiu não dar nenhum palpite. Mas sofria
também. De sorte que a pobre ultrajada ficou ainda mais desnorteada. Pediu o resto da semana
de licença da escola e ficou em casa rezando e implorando proteção e luz para tomar uma decisão
acertada. Ficou sozinha e isso redobrou sua contrição, e a aflição na mesma proporção. É que o
marido teve que fazer uma viagem inesperada e ficaria fora até meados da semana seguinte. Tinha
recebido uma proposta urgente de emprego na capital e resolveu ver de perto o que era. Sozinha
a pobre Alsa espalhou sua aflição por todos os cômodos da casa e chamou Zildete para
compartilhar a agonia com ela. Essa não se furtou, leal e presente como sempre tinha sido.
Rezaram juntas como de hábito e lamentaram todas as dores do mundo. Ao final de muita
penitência tiveram uma inspiração singela, mas com certeza, plena de divina inspiração: contar a
verdade. Era isso, a pobre esposa assediada devia contar tudo ao marido. Sabiam que essa medida
tinha lá seus riscos. Mas não tiveram mais nenhuma dúvida e até ficaram aliviadas com a decisão.
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Precipitadamente talvez. Pelo menos tinham um plano melhor do que o tal do vestido preto.
Combinaram que Alsa naquele domingo não iria à missa. Pediria uma prorrogação da licença na
escola e ficaria reclusa em casa até o retorno do marido. E assim foi. Na espera a pobre até se
sentiu em relativa paz. A ideia era correta, afinal não tinha feito nada de errado. O marido haveria
de entender e tudo estaria resolvido. Afinal eles se amavam de verdade. Coitada, não deu certo
nem um pouquinho. O marido reagiu muito mal. Não acreditou na parte inocente da história.
Acusou-a das piores coisas. Atribuiu a confissão a alguma coisa que ela tinha tentado e que não
tinha dado certo. Mero recuo de uma atitude impensada. Foi horrível. O marido exagerou. Não
quis conversa e simplesmente foi embora atrás da proposta de emprego que tinha acabado de
receber. A inocente criatura mergulhou num abismo, quis morrer. Depois quis matar. Mas como
não era de índole para tal, adoeceu. Cobriu-se de funda melancolia. Cada vez pior, sem condições
para a vida e o trabalho. Consternou a cidade que se solidarizou com ela, mesmo sem saber o
motivo real da surpreendente separação, assim tão de repente. Recebeu muitas visitas e votos de
melhora. Claro, ninguém tocava no assunto da separação, nem mesmo a família. Todos estavam
perplexos. Mas ela só piorava: magra, branca e desfalecida. Uma decadência vertiginosa em muito
pouco tempo.
Então, a querida amiga Zildete Rios Gonçalves resolveu que tinha que fazer alguma coisa
mais contundente. Era uma doce criatura, mas diante daquele caso tão ignóbil e injusto, acabou
se impregnando de um sentimento que nunca tinha sentido antes: o sentimento de vingança. Não
adiantaria rezar para que o cretino do prefeito fosse castigado, até porque, rezas não são para isso.
O bandido tinha que pagar era aqui e agora. E assim, impulsionada por esse novo sentimento
novo e forte partiu para a ação, mais animada do que nunca. Tudo seria feito sem o conhecimento
de Alsa, pois ela, com certeza, não aprovaria a ideia. Não tinha nada a ver com seu temperamento
nem com sua atual condição de desânimo e decepção. Preferia acreditar num milagre.
Como Zildete não era versada nas artes da maldade, a primeira coisa que fez foi pedir ajuda.
Tem sempre alguém por perto com inclinação para esse tipo de coisa. Não foi diferente nesse
caso. Aliás, havia alguém da própria família que podia ajudar. De sorte que a primeira coisa que
ela fez foi conversar com sua prima Albertina. Não podia ter feito escolha melhor. A prima foi
logo desembaraçando a meada com toda desenvoltura. Sabia de tudo a respeito das aventuras do
famigerado prefeito. Podia dar nome aos bois. Ela própria tinha sido vítima. Conhecia muitas
outras. Deixasse com ela. Zildete pediu calma, não queria um escândalo. Continuaram
conversando. Falaram de passagem no plano do vestido negro. Mero detalhe da história, mas que
conto assim mesmo. A prima ouviu o relato e não fez nenhum comentário. Disse que pensaria em
alguma maldade de verdade. Algo para arruinar a vida do safado e encerrar de vez sua malfadada
carreira, importunando mulheres honestas. Na verdade queria uma vingança. Tinha sido vítima
do mesmo embuste que o prefeito agora pretendia aplicar na pobre Alsa. Mas com uma diferença
cruel. Havia se apaixonado. Sofreu muito ao descobrir ter sido vítima de uma mera sedução
concupiscente. Sim Albertina era a pessoa certa: esperta e ressentida.
Zildete ficou feliz com o impulso do expediente. Pena que não podia contar nada daquilo
à pobre da amiga. Talvez até ficasse mais animada. Mas isso não poderia ser feito.
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Albertina não perdeu um minuto. Logo no dia seguinte procurou duas amigas. Sabia terem
elas também sido vítimas da abordagem desonrosa do prefeito garanhão. Essas conheciam outras
e as outras mais outras. O cara era terrível. De sorte que a coisa se alastrou com enorme rapidez.
Muitas vítimas não quiseram se envolver. Algumas mais sem-vergonhas, tinham se rendido aos
encantos do convite indecente e se deram por satisfeitas e devidamente gratificadas em suas
libidos. Outras quiseram participar por simples solidariedade. E assim formou-se um grupo de
vinte e nove mulheres. Algumas jovens outras mais maduras, bonitas e feias, casadas, solteiras e
abandonadas.
O grupo marcou uma reunião urgente e secretíssima para tratar do assunto. Naturalmente
quem falou primeiro foi Albertina na condição de mentora e líder. Ela explicou a situação, contou
a história em detalhes. Tentou manter sob sigilo o nome de Alsa. Inútil providência, todavia. Era
uma cidade pequena e ali não havia segredo. Todos já tinham deduzido a causa verdadeira do
sofrimento da pobre criatura. Melhor assim, pois desta forma a revolta era maior entre aquelas
mulheres indignadas. O grupo se mostrou animado e discutiu o assunto com grande entusiasmo.
Propostas foram feitas e ao final foi aprovada a proposta de outra amiga de Alsa que teve uma
ideia baseada no tal plano do vestido preto. Iriam todas à missa no domingo seguinte vestidas de
púrpura. A cor da dignidade, da majestade, da superioridade. O plano foi aprovado sob aplausos,
a despeito da dificuldade de se encontrar aquela cor no comércio. Mas nada é impossível às
mulheres decididas. E o plano seguiu.
O domingo combinado nasceu glorioso, de sol, de flores e de passarinhos. Vinte e nove
mulheres vestidas de púrpura, atravessaram as ruas da cidade - algumas de braço com seus maridos
- e se dirijam à igreja. No trajeto já chamaram a atenção, como tinha que ser. Mais ainda no interior
do templo. Afinal que estranha coincidência era aquela, sobretudo em se tratando de uma cor tão
rara e, até certo ponto, inadequada como traje dominical? Os maridos de algumas delas até as
tinham questionado a respeito naquela extravagância logo na saída de casa. Mas nenhuma se
intimidou. E lá estavam, espalhadas pelo recinto do templo se mostrando, acintosas. Pintas
púrpuras por todo lado, enfeitando a igreja numa estranha alegoria. O ambiente acabou
contaminado com uma certa agitação, salpicada de cochichos e risinhos discretos. Ninguém
conseguiu ficar verdadeiramente contrito como pedia a ocasião. O padre se sentiu incomodado
mas preferiu não trazer a questão à homilia. Não encontrou o que dizer. De sorte que a cerimônia
correu como relativa normalidade, pelo menos na parte do ritual. Exceto, claro, na hora da
comunhão. É que nessa hora as vinte e nove mulheres se alinharam na fila do sacramento, uma
atrás da outra, formando um colar púrpura surpreendente. Com certeza algo muito estranho
estava acontecendo.
Não se falou em outra coisa no resto do dia. Os maridos foram os primeiros a cutucar o
assunto. Mal chegaram em casa de volta da missa crivaram com irritadas perguntas suas mulheres
de púrpura. Elas se submeteram mas não foram diretas, apenas deixaram transparecer o propósito
daquela combinação. Aliás, como já estava acertado entre elas.
Ao longo da semana a coisa foi fermentado e em pouco todo mundo já sabia o significado
daquela extravagância com toda precisão. Sim, era um protesto feminista contra o prefeito
garanhão. Mas aí aconteceu o inesperado. Algo que as corajosas vinte e nove mulheres não
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esperavam e, nesse particular, até tinham sido um pouco ingênuas. O tiro acabaria saindo pela
culatra. É que o fato se deu no ano de mil novecentos e trinta e um e então ninguém dava muita
bola para os protestos das mulheres. Virou piada e o que é pior, o prefeito saiu triunfante do
episódio inusitado. Coitadas, as vinte nove mulheres caíram no escárnio popular. Acabaram sendo
vistas como meras odaliscas do harém do fogoso prefeito. Reveladas e assumidas. Ficaram
marcadas como vagabundas e seus maridos como cornos festeiros. Algumas até apanharam.
Outras se mudaram e outras ficaram reclusas, recorrendo à triste solução da pobre Alsa.
Mas justiça seria feita, pois ela tarda mas não falha nunca, se estamos perto pra ver ou pra
contar. E esse foi o caso. Albertina assumiu as dores das colegas. Afinal tinha sido a mentora da
ideia. Foi invadida por uma verdadeira fúria. Era a segunda vez que o prefeito a havia humilhado.
Resolveu simplesmente matar o puto contumaz. Aliás com requintes de ironia, usando das
próprias artimanhas que ele gostava de usar. Desta vez a pobre Alsa seria muito útil, até mesmo
sem saber.
Albertina bolou o plano da vingança com obsessão e incrível rapidez. Era simples e
diabólico com pouco risco de falha e muita chance de triunfo. A cidade nunca mais se esqueceria
da história. E de fato assim foi, tanto que estou a contá-lo muitos anos depois.
O prefeito andava muito sorridente ultimamente. Delirava de satisfação quando alguém
lembrava o caso das vinte e nove mulheres, dava-lhe tapinhas no ombro e o chamava de maroto.
Mas feliz mesmo ficou foi com um bilhete que recebeu certa manhã. Era um suposto recado de
Alsa combinando um encontro de amor. Seria no dia seguinte à noite, em local discreto que o
bilhete indicava. A mensagem informava que ela estaria sensualmente vestida de preto, em tecido
diáfano, e pedia que ele levasse o bilhete e o devolvesse por ocasião do encontro, por medida de
segurança para preservar o sigilo. O garanhão encheu-se de indescritível felicidade e não pensou
noutra coisa no resto do tempo, tocando os negócios públicos com o desleixo de sempre. No
mesmo período Albertina preparava o vestido preto transparente, de véu. O véu era para ocultar
sua identidade e conseguir se fazer passar pela desejada Alsa, usada como isca irresistível sem
saber. Ao mesmo tempo amolava uma faca de cozinha. Dessas facas que se usava para decolar
galinhas e recolher o sangue num pires para preparação de um saboroso molho pardo, como se
fazia então e já não mais se faz.
Não houve contratempo. Na hora e local indicado lá estavam Albertina, o prefeito e
ninguém por perto. Ele se aproximou ofegante de tesão. Falou uma ou duas bobagens amorosas
e entregou o bilhete a ela, como havia sido pedido. Depois se aproximou e tentou levantar o véu
para beijá-la. Não deu tempo. Um rasgo de vinte centímetro no estômago, provocado por uma
raivosa facada, prostrou-o de joelhos. Mais um corte profundo, desta vez na nuca. A vítima caiu
de bruços e estrebuchou rapidamente e sem ruído. Foi encontrado no dia seguinte bem cedo.
Evidente que o crime chocou a cidade. Há muitos suspeitos: inimigos políticos, maridos traídos,
bastardos, credores, etc. Albertina destruiu o bilhete e o vestido e, por enquanto, está tranquila. O
enterro foi muito concorrido. Tinha gente de todo jeito e condição. Mas o que mais chamou
atenção foram vinte e nove mulheres vestidas de púrpura seguindo o cortejo com caras trancadas.
Desta vez não houve deboche. Dizem que até os maridos apoiaram. A oposição já articula um
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impedimento para que o vice-prefeito não tome posse no lugar do falecido. Contam que ele
também é um notório garanhão. Mas o assunto é delicado e a lei eleitoral nem trata da matéria.
De qualquer forma, na próxima eleição a questão deve volta à tona e até pode ser que apareça um
porta-voz das mulheres de púrpura como candidata à vereança. Há um partido interessado em
dar tratos à ideia
Alsa Pontes de Almeida está apresentando discretas melhoras na sua melancolia. Há
esperança de que brevemente ela possa reviver por sobre aqueles destroços.
O CÉU, O PURGATÓRIO E O INFERNO
Um certo país tinha sido convencido de que havia se tornado grande e já fazia parte do
seleto grupo das nações mais ricas do globo. Para consolidar essa glória e afastar de vez as dúvidas
dos recalcitrantes estrangeiros, o governo resolveu se apresentar como candidato para promover
um mega evento esportivo de alcance mundial. Tinha que ser magnífico pois essa magnificência
marcaria também a glória do partido governista no seu projeto de ficar vinte anos no poder, no
mínimo. Convenceu que tinha plenas condições de promover o tal evento com competência e
seriedade e acabou escolhido entre candidatos muito melhores. A notícia embebedou os
predispostos e agitou a economia. Agitou mais do que fortaleceu, pois era assim que aquele
governo trabalhava: fazendo mágica quando precisava, exagerando e mentindo sempre que podia.
Seja como for, muitos estavam apostando no grande evento esportivo e investindo nos
empreendimentos consequentes. Pois aquele também era um país de especuladores e todos
sonhavam em ganhar dinheiro fácil da noite pro dia.
Estabelecido o cronograma das obras tocaram a construir estádios, rodovias, hotéis e tudo
mais que o ávido consumidor moderno aprecia, especialmente aqueles do mundo civilizado, rico
e arrogante. Os amigos do governo ficaram com a parte do leão, mas também sobrou muito
negócio bom para os empresários de média presença. É o caso do João Souza de Moraes, um
paraibano de valor que havia emigrado para o sul tentando melhorar a sua sina. Estabeleceu-se
em Curral Belo e desde cedo aprendeu a atuar em todo o perímetro metropolitano e não só na
capital. Começou de baixo, fornecendo marmitas para o pessoal da construção civil da zona
periférica. Por isso, também se tornou conhecido pela alcunha de “João Marmitinha”. Inteligente
e trabalhador, foi crescendo com competência na técnica e austeridade na gestão. Juntou algum
dinheiro, associou-se a um mestre de obras e começou a construir casas para famílias de baixa
renda no entorno de Curral Belo. O negócio prosperou com firmeza e solidez pois João tinha o
talento necessário. Em quinze anos já estava firme no ramo da construção de hotéis e shopping
centers em toda a Grande Capital. Sua principal esperteza era enxergar oportunidades antes dos
outros, prevendo para onde o progresso ia soprar. Evidentemente também tinha que desembolsar
uma ou outra propina para ter acesso a informações privilegiadas dos agentes do governo. Mas
essa era a parte mais rentável dos investimentos na fase dos pré-projetos. Viu na chegada daquele
mega evento uma oportunidade única. E de fato era. Ainda mais já sendo ele um empresário bem
sucedido e experiente no ramo do turismo e do entretenimento. Assim que ouviu boatos de que
Curral Belo ia ser uma das principais sedes das disputas esportivas tocou a caçar informações mais
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amplas e seguras. Descobriu que a notícia procedia e que a pista que ligava os trinta quilômetros
de distância entre a cidade e o aeroporto ia ser duplicada. Aliás, o próprio aeroporto iria ser
ampliado e modernizado. João Marmitinha atinou de imediato que aqueles empreendimentos
teriam um extraordinário poder de impulsão urbana. Logo teve a ideia de meter um hotel e um
shopping center no meio do trajeto. Era perfeito, poderia contar com o pico do evento esportivo
para amortizar o investimento num prazo muito curto. De fato, nunca havia tido uma
oportunidade tão boa na vida. De sorte que ele arregaçou as mangas e foi em frente. Aliás nem
precisou disso pois só usava camisas de mangas curtas mais confortáveis e prontas para o trabalho,
mesmo o pesado. Manteve a simplicidade mesmo depois de rico.
No meio do trajeto tinha uma cidadezinha simpática, tinha uma cidadezinha simpática bem
no meio do trajeto. Chamava-se Lagoa Seca. Apesar da sua localização estratégica – perto da
capital e do aeroporto - estava estagnada há alguns anos. Mas agora, com certeza seria o olho do
furacão do progresso que se avizinhava. De sorte que João Souza de Moraes não perdeu tempo e
foi pessoalmente sondar a região em busca de terrenos que pudesse comprar na surdina, rápido e
barato, antes que as notícias se espalhassem. Não precisou andar muito. Uma avenida bem cuidada
ligava o centro da cidadezinha simpática à estrada do aeroporto, a tal que seria duplicada. A
topografia favorecia e o local estava cheio de lotes vagos. Perfeito, tinha que ser ali. Estava
decidido. Já no dia seguinte, agentes disfarçados do perspicaz empresário voltavam a Lagoa Seca
para deflagrar uma operação sigilosa de análise das condições para compra dos terrenos. Como a
operação tinha que ser discretíssima levaram uma semana inteira na delicada perscrutação. Mas
infelizmente Marmitinha não gostou muito do resultado que lhe foi apresentado. Não
propriamente da competência do trabalho em si, mas sim do que o conteúdo do relatório revelava.
Não seria tão fácil comprar os terrenos na área escolhida. Está certo que havia uma grande área
com um galpão em ruínas que já estava à venda por preço compensador. Mas o tamanho era
insuficiente para a execução do projeto e os demais terrenos não estavam disponíveis. Faziam
parte de uma fazenda cuja herança estava sob bravo litígio, com mortes e tudo mais. A notícia
aborreceu mas não desanimou o empresário. Até porque, não é próprio dos empresários bem
sucedidos desanimar tão facilmente. Assim, manteve a flama e perguntou se a informação era
segura e se eles tinham examinando todos os terrenos em torno. Disseram que sim. Infelizmente
havia apenas uma área que não fazia parte do inventário litigioso. Era um velho cemitério, ainda
em uso que pertencia à municipalidade. Tratava-se de uma boa área, espaçosa e plana e dava
fundos para o terreno do galpão que estava à venda. Se os dois pudessem ser juntados formariam
o terreno ideal. Mas, enfim, não era a solução pois não podia ser comprada. “Porque não? –
perguntou João Marmitinha, causando certa perplexidade em seus interlocutores. A resposta
parecia óbvia, afinal era o cemitério da cidade. Mas nada era óbvio para o empresário.
Definitivamente não aceitava negativas para propostas que ainda nem tinham sido feitas. Portanto
havia um próximo passo a ser dado: perguntar ao prefeito se ele queria vender o cemitério.
Realmente era uma iniciativa meio maluca, mas foi com muitas coisas desse tipo que o empresário
havia conseguido o seu sucesso. Assim, mandou comprar o tal galpão e marcou uma entrevista
com o prefeito, confiante e poderoso. Feliciano de Assis era o nome do prefeito – vulgo
“Raposão”.
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Encontraram-se pela primeira vez numa segunda-feira de manhã. Àquela altura todo
mundo já sabia do projeto, grassava a especulação e os imóveis do lugar já tinham dobrado de
preço. O empresário tinha um plano armado para convencer o prefeito. Havia se preparado
rapidamente mas com meticulosidade para aquela reunião. Devo adiantar de imediato, que oferta
de propina não fazia parte do plano pois, por incrível que pareça, o prefeito era honestíssimo. O
apelido de Raposão não era porque o probo Feliciano tivesse a mão cheia de dedos e sim pela sua
matreirice no trato com a política. Morreria honradíssimo, herói do folclore local e mais pobre do
que quando entrou para a política, coisa assaz rara hoje em dia. Sabendo daquela inusitada
condição João Marmitinha estava preparado para uma abordagem sincera e transparente, pois ele
também sabia ser assim quando se fazia necessário. De sorte que levava na pasta apenas o esboço
do projeto. Abriu o laptop sobre a mesa do prefeito e mostrou o empreendimento maravilhoso.
Falou dos impostos que seriam agregados à renda da prefeitura, da geração de empregos, da
valorização dos imóveis, das atrações a novos empreendimentos. Quando sentiu que o prefeito
mostrava um certo interesse na ideia, tocou na questão do terreno e do cemitério e mais uma vez
só falou em vantagens. Explicou que se a prefeitura cedesse o terreno do cemitério ele construiria
um novo campo santo muito mais moderno e suntuoso em local à escolha da comunidade. Além
disso, estava previsto no projeto um magnífico memorial anexo ao estacionamento do shopping,
a ser erguido em honra aos que ali tinham sido enterrados. Isso dito o empresário passou a mostrar
o projeto do memorial. Extraordinário templo de mármore, granito e inscrições em latim a imitar
a magnificência da memória dos mortos imortais da Grécia e de Roma. Mas, a bem da verdade, a
origem da concepção do memorial não tinha sido tão nobre assim. É que a ideia tinha vindo da
mulher do empresário que se inspirou num magnífico cemitério de gatos e cachorros que havia
visitado em Miami.
O prefeito examinou detalhes, fez perguntas, mostrou interesse, contudo, matreiro como
era, não fez nenhuma promessa. Mas selou um compromisso de levar o assunto à audiência
pública na Câmara Municipal como era seu hábito em assuntos mais polêmicos em que usava o
povo e a edilidade local como uma espécie de conselho antes de partir para os projetos de lei ou
portarias controversas. Esse era o Raposão.
Claro que a primeira reunião para tratar do assunto estava apinhada de gente pois a notícia
correu rápido e conturbou a cidade. Tinha havido até debate preliminar nas associações de classe
e da comunidade onde alguns formadores de opinião local cooptados por agentes do empresário
foram podando previamente as arestas e induzindo as posições. Não se falava em outra coisa e o
entusiasmo era geral. Desta forma os cidadãos de Lagoa Seca estavam preparados em suas
opiniões, próprias ou adotadas. Todos queriam as maravilhas que o grande empreendimento traria.
Na verdade já havia corrido muito conchavo e até o terreno para o novo cemitério estava
escolhido, conforme interesse do presidente da Câmara Municipal. Mas muita coisa ainda estava
em suspenso e a questão mais sensível era o traslado dos corpos para o novo campo santo,
delicadíssima questão tanto pelo lado teológico quanto pelo lado da logística.
Quem falou primeiro foi o empresário Marmitinha. Falou do hotel, do shopping center, do
memorial, do novo cemitério. Tudo muito claro, agradável e convincente. Não abriu para
perguntas, pois elas teriam de ficar para outro momento mais oportuno. Em seguida falou o padre.
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Disse que a Igreja Católica não era contra o empreendimento mas que defendia a ideia de que o
projeto do tal memorial fosse ampliado e modificado de forma a se tornar um mausoléu que
pudesse comportar todos os corpos já enterrados no velho cemitério. Só os futuros defuntos é
que seriam enterrados no novo cemitério. Houve palmas e apartes. Os apartes vieram de algumas
famílias antigas que tinham jazigos suntuosos no velho cemitério. Alguns deles continham
patriarcas sepultados há mais de cem anos. Não concordavam que esses jazigos fossem destruídos.
Outros aplausos e nenhum aparte. O próprio padre apoiou. O presidente da Câmara falou do
terreno disponível que podia abrigar o novo cemitério. Todos sabiam que o terreno pertencia a
um primo dele e alguns trocaram olhares maliciosos. Mas só houve uma restrição solitária. Veio
de uma vereadora da oposição que lembrou ironicamente que o terreno ficava no meio do nada e
não tinha um acesso descente. O prefeito declinou de usar a palavra e foi a vez do empresário
fechar o encontro. João Marmitinha elogiou a sensatez dos debates e destacou que não via grandes
problemas para ser encontrada uma solução satisfatória para os pontos levantados. Apenas pedia
um tempo para analisar tudo com mais cuidado e apresentar uma contraproposta. O povo
aplaudiu. Marcaram nova audiência para o final do mês. Parecia que tudo corria muito bem. De
fato aquela etapa tinha sido muito produtiva. João Marmitinha até se surpreendeu com tanta
facilidade, apenas restrições sem grandes dificuldades ou ônus. A comunidade queria, as lideranças
políticas não eram contra, nem o padre. Tanto que ninguém deu muita importância quando os
muros da cidade amanheceram pichados com a palavra “profanação”. Devia ser um maluco
qualquer, pois eles sempre existem.
A segunda reunião teve que ser transferida para o auditório de um colégio pois havia muito
mais gente. Além disso, durante a reunião seria servido um almoço e ali era o lugar ideal pelo
espaço e a infraestrutura oferecidos. Desta vez quem falou primeiro foi o empresário. Inicialmente
pediu que os apartes e debates ficassem para o final. Em seguida acionou um minúsculo datashow
e, num telão absurdamente grande para o local, foi mostrando as propostas de solução para cada
um dos pontos levantados na reunião precedente. Tudo ilustrado em magníficas simulações que
pareceriam reais se não fossem os exageros alados e a música de filme de aventuras intergalácticas.
Como era seu estilo, começou pelo mais fácil, no caso, o acesso precário ao local cogitado para
abrigar o novo cemitério. Afirmou que não havia problema pois poderia estender o calçamento
interno do projetado campo santo até a ligação com o asfalto da avenida mais próxima. Em relação
aos jazigos familiares do antigo cemitério, também não havia problema: poderia desmontá-los e
remontá-los integralmente no novo local. Em seguida passou a falar do memorial, certamente o
assunto mais polêmico. Explicou que, aceitando as ponderações do padre, havia encomendado
uma modificação na ideia inicial, de tal forma que o memorial viraria de fato um mausoléu. Ou
seja, passaria a abrigar túmulos. Estes seriam padronizados, com acabamento em fino mármore
importado, dispostos em forma de círculo em torno de uma pira permanentemente acesa. Coisa
de primeiro mundo. Até podia ser uma atração adicional do empreendimento. O edifício teria a
forma de um anfiteatro e a parte externa seria adornada com colunas gregas. Ele não disse, claro,
mas com a modificação o mausoléu passava a ser uma cópia fiel do tal cemitério de gatos e
cachorros de Miami.
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Depois da apresentação da ideia do mausoléu João Marmitinha ficou em silêncio e a tela
foi mostrando o deslumbrante projeto que o povo acompanhava em enlevo. Ao sentir que o clima
era positivo o empresário apelou para um tom de voz um tanto fraternal e anunciou que,
infelizmente, havia uma pequena restrição na proposta. É que o mausoléu só teria capacidade de
abrigar quarenta túmulos. O espaço disponível não permitiria mais do que isso. Nada mais disse,
encerrou a exposição e abriu a fase dos debates. O foco, como esperado foi o mausoléu. Primeiro
queriam saber se a cota dos mortos destinados ao suntuoso local não podia ser ampliada. O
empresário foi taxativo, não era possível. Até por questões estéticas: se as dimensões fossem
ampliadas o edifício passaria a lembrar muito mais um ginásio poliesportivo do que um
monumento funerário. O padre até quis insistir, mas aí o empresário apelou. Mostrando certa
impaciência explicou que a ampliação exigiria a construção de pilotis para compensar a perda de
espaço tomado ao estacionamento e aí o custo da obra inviabilizaria o projeto. Alguns não
aceitaram o argumento, mas a grande maioria concordou com a ideia do mausoléu mesmo com a
restrição do número de sepulturas. Nesse ponto, percebendo que estava em vantagem para
sacramentar a proposta, Marmitinha achou que era hora de servir o almoço e alegrar os estômagos,
amenizando os riscos de uma ou outra radicalização. Assim foi feito. Muito álcool, gordura e
carboidrato, predispondo à preguiça. No retorno do almoço, com todo mundo já bastante
sonolento a reunião seguiu morna e durou não mais do que um terço de hora. Colocada em
votação as propostas do empresário foram aprovadas por significativa maioria. Decidiu-se criar
uma comissão para definir os critérios de escolha dos nomes dos defuntos que teriam a honra de
terem seus corpos trasladados para o mausoléu. Esse assunto daria pano pra muita manga mas
naquele instante ninguém deu muita importância. E a reunião terminou com o anúncio
aplaudidíssimo de que em trinta dias as obras do hotel, do shopping, do mausoléu e do novo
cemitério teriam início simultâneo com prioridade de contratação de empreiteiras e mão de obra
local. Uma foto do empresário, o prefeito e o presidente da câmara apertando as mãos, selou o
compromisso inesquecível que tornaria Lagoa Seca conhecida no país inteiro, especialmente nos
meios humorísticos. Mais uma vez, no dia seguinte os muros amanheceram pichados com a
palavra “profanação”. Houve críticas na imprensa local: só podia ser mesmo obra de um
desequilibrado.
A comissão encarregada de definir os critérios para seleção dos candidatos a repousar
suntuosamente no mausoléu foi formada de maneira heterogênea e ecumênica. Mas não há como
negar a forte influência dos católicos pois a coordenação foi entregue ao padre. Mas havia gente
de outras igrejas, da edilidade e representantes do povo miúdo. Ao contrário das duas reuniões
anteriores, essa foi tumultuada desde o princípio. As propostas eram muitas. Uns queria o critério
de antiguidade, ou seja, os quarenta primeiros defuntos sepultados no antigo cemitério seriam os
escolhidos. Outros queriam um critério elitista, quer dizer, as famílias mais tradicionais de Lagoa
Seca teriam a preferência. Um terceiro grupo queria que a escolha fosse por sorteio. Havia também
uma proposta de escolha por eleição direta. Nenhuma das propostas obteve maioria convincente.
Os debates se acaloraram e chegou a haver um princípio de tumulto. Foi quando o padre resolveu
suspender a reunião e marcar uma nova sessão para a semana seguinte. Queria tempo para se
aconselhar com o bispo. Este era famoso pela sua lucidez, ponderação, espírito de conciliação e
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fidelidade teológica. E não decepcionou. Sugeriu ao padre que o critério de seleção fosse pela
santidade dos mortos. Não havia nada mais cristalino, incontestável e cristão. Estava na própria
bíblia. O bispo apontou o critério – aliás com brilhantismo - mas não entrou em detalhes. De
sorte que o padre voltou para sua paróquia só com metade da solução do problema. Tocava a ele
detalhar de que forma avaliar a santidade dos defuntos do velho cemitério de Lagoa Seca. Rezou
e pensou, pensou e rezou e acabou descobrindo que a proposta do bispo não era difícil de ser
posta em prática. De fato era até um tanto óbvia. Poderia haver um julgamento de defuntos.
Aqueles que depois de julgados fossem considerados bons, seriam os escolhidos. Entusiasmou-se
com a ideia. Teve certeza que contaria com o apoio dos representantes das outras igrejas, pois
ninguém ousaria contrariar o que estava na bíblia. E tinha razão. Procurou cada um deles pediu
apoio e obteve, mesmo porque nem havia como argumentar em contrário. Depois, numa reunião
fechada costurou um acordo. Seria criado um Comitê do Juízo. O chefe da Igreja Transcendental
de Todos os Dias presidiria os julgamentos, o da Igreja da Graça Infinita na Vida Doméstica seria
o inquisidor e o da Igreja do Sucesso Pessoal Insuperável nos Negócios seria o moderador. Para
reforçar o convencimento prometeu que a toga que usariam no tribunal seria simplesmente
magnífica, digna de verdadeiros doutores. Acordaram também que as famílias deviam inscrever
os candidatos e que cada defunto teria um advogado de defesa. Também haveria um júri popular
escolhido por sorteio. Com o acordo costurado entre as personagens mais influentes na comissão
não houve dificuldades de aprovação da proposta conjunta pelo plenário da mesma.
Tudo acertado, consoante o cronograma das obras, começaram os preparativos para os
julgamentos. Claro que, antes de mais nada, teve lugar a posse pomposa dos membros do Comitê
Julgador, vestidos com togas de doutores “honoris causa” com chapéu de abajur, pingentes,
pompons e tudo mais. Mas na sequência das ações ocorreu uma grande surpresa. Ninguém
verdadeiramente contava com aquele contratempo. É que para as quarenta vagas disponíveis no
suntuoso mausoléu houve apenas doze inscrições. E o que é pior: procedidos os julgamentos para
avaliar o caráter e probidade dos inscritos, somente oito candidatos foram considerados realmente
aptos a pertencer à categoria de homens bons. Está certo que o processo foi muito rigoroso, mas
mesmo assim, o resultando foi inesperado. O prefeito se incomodou, o presidente da câmara, o
padre e outras autoridades locais. Depunha contra a honra e tradição da cidade. Era necessário
fazer alguma coisa. Pensou-se numa campanha para estimular mais inscrições. Mas há de se admitir
que baixou um desânimo geral. Houve alguns vexames nos primeiros julgamentos e conversas de
pé de ouvido indicam que a maioria das famílias não está empenhada em defender formalmente
a bondade dos seus mortos. Soma-se a isso o fato de que parece que os ressentimentos familiares
são muito maiores do que a gente imagina. Desta forma a maioria abriu mão de concorrer a uma
das quarenta vagas e já autorizou o traslado dos corpos para o novo cemitério. Mas o Comitê
Julgador se sente um pouco frustrado na magnificência da sua incumbência e quer retardar o
processo na esperança de novas inscrições e de poder preencher as vagas do mausoléu. Mas João
Marmitinha tem pressa e não pode esperar. O empresário, um tanto contrariado, até concordou
em implantar um cemitério provisório para sepultar os corpos dos defuntos que não foram
inscritos na seleção ao Mausoléu mas cujas famílias também ainda não autorizaram o traslado dos
corpos para o novo Campo Santo. O povo já o apelidou de “purgatório”. Enquanto isso, fiel ao
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cronograma original, o mausoléu vai sendo erguido. Infelizmente deve ser inaugurado com
capacidade ociosa esperando que sejam afinal encontrados mais trinta e dois homens bons entre
os mortos de Lagoa Seca.
PORQUE OS CAMUNDONGOS ROEM LIVROS
Nasci no porão de uma escola pública, num ninho aconchegante feito de papéis velhos
quentes e macios. Não era propriamente um porão e sim um vão entre o assoalho e a base de
pedras da antiga construção onde a escola estava instalada. O ninho ficava abaixo do salão que
servia de biblioteca. Era um bom lugar. Havia uma greta junto ao portal da porta do corredor que
levava à cozinha da cantina e era ali que buscávamos nossas refeições. Minha mãe me abandonou
ainda na adolescência, fugindo com um ratão gordo de bigodes enormes. Não sei se vocês sabem
mas o tamanho dos bigodes do macho é um requisito muito apreciado pelas fêmeas no mundo
dos roedores. De sorte que minha mãe se deslumbrou com um tipo desses e resolveu seguir o
caminho dele me deixando sozinho. Foi um escândalo. Não pela fuga e o abandono propriamente
ditos e sim porque minha mãe é da família Mus musculus e o tal ratão é da família Rattus rattus.
Somos apenas aparentados, contudo muitos não aprovam essas uniões pois acham que podem
degenerar as espécies dos filhotes resultantes desses cruzamentos heterodoxos.
Mas a fuga da minha mãe não fez muita diferença para mim, já que as mães camundongo
não têm muito o que fazer para seus filhotes, exceto amamentá-los quando eles são bebês. Sim
pois nós também somos mamíferos tal qual os humanos. De qualquer forma é justo que as mães
troquem os filhos pelos machos, ainda mais em se tratando de um disputado ratão bigodudo,
como foi o caso.
Escolas públicas são um bom lugar para camundongos já que a sopa da cantina costuma
ser uma gororoba asquerosa para os humanos e sobra muita comida para nós camundongos.
Afinal, não somos exigentes e vivemos com qualquer porcaria. Claro que, vivendo numa escola,
mesmo tendo sido abandonado pela mãe um tanto precocemente, eu consegui aprender a ler e
escrever. É que eu ficava prestando atenção nas aulas de língua pátria e ler e escrever não é difícil.
É simples questão de lógica aplicada a símbolos que expressam a sonoridade das palavras. Seguir
as regras gramaticais já é mais difícil, contudo, no meu caso, isso não tem tanta importância, até
porque, em matéria de leitura sempre me interessei muito mais pelos conteúdos do que pelas
formas.
Confesso que sempre tive fascínio por livros e pelo conhecimento. Fico maravilhado com
a capacidade que os livros têm de armazenar casos e ideias e passá-los adiante muitos anos depois
deles terem sido criados pelos autores e produzidos pelos editores. Gostava de ouvir as crianças
lerem em voz alta, contando histórias ou explicando coisas interessantes. Acho que foi do prazer
em escutar essas leituras que me animei a aprender a ler. Devo admitir, todavia, que o retorno não
era totalmente compensador. É que, para um camundongo é muito difícil manusear um livro, digo
é difícil abri-lo e passar as páginas como faz um humano com facilidade. Assim, o exercício da
leitura convencional sempre foi muito desgastante para mim pois, depois de passar a página com
muito trabalho, ainda tenho que tomar distância para enxergar uma área maior da página, sem o
que eu teria que correr de um lado para o outro seguindo as linhas da escrita. Haja pernas e
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pulmão. Mesmo assim, nunca deixava de dar minhas lidinhas. Não roía papel velho sem antes ler
o conteúdo. Claro que esse expediente é limitado e não satisfaz curiosidades intelectuais mais
exigentes já que, na maioria das vezes, dessa forma só conseguimos mesmo é nos inteirar de
fragmentos de notícias de jornais velhos. Naquela época até tentei achar uma alternativa para essas
limitações da leitura para camundongos. Imaginei que subindo nas estantes dos livros próximos
às mesas de leitura eu poderia, a certa distância, lê-los juntamente com o outro leitor. Mas nós
camundongos temos péssima visão e, além disso, não distinguimos cores. Enfim, somos
terrivelmente míopes. Assim a única oportunidade que temos de ler livros é esperando que alguém
os deixe em cima de uma mesa para que possamos folheá-lo pacientemente, página por página.
Quer dizer as dificuldades são enormes, até porque só podemos fazer isso nos fins de semana, já
que, a noite não há iluminação e durante a semana tem sempre gente nas bibliotecas. Com tanta
dificuldade raramente conseguia chegar até o fim do livro e me inteirar de todo o seu conteúdo.
Resolvi em parte esse problema dando preferência à leitura de livros de poesia. Reconheço que
meu método de leitura não era o ideal, mas era o único método de que dispunha e, assim, ia
levando conformado.
Devo reconhecer que essa minha condição incomum de ser um camundongo alfabetizado
não deixa de manchar o meu caráter com uma incoerência. Sim pois, como é natural, também
gosto de roer os livros quer dizer, danificá-los de alguma forma. Na verdade, não é que eu goste
e sim que eu precise fazer isso. Daqui a pouco voltarei a essa questão com mais vagar. Por
enquanto, voltemos à escola onde eu nasci. Ali vivia eu, feliz e despreocupado, tranquilo e nem
um pouco entediado. Um dia, todavia, resolveram desratizar a escola e tive que fugir. Foi terrível:
muitos de nós não escaparam. Foi uma maldade incompreensível. Não creio que a medida radical
tenha sido só por causa daquelas ruídas esporádicas nos livros, pois aquele era estrago de pequena
monta. Mas, seja como for, tive que fugir o mais depressa possível. Desci pelo ralo e alcancei o
esgoto da rua. Ali estive exilado por um tempo, tentando reconstruir a minha vida. O lugar era
horrível e a comida pior ainda, meras migalhas deterioradas. Contudo, aquele silêncio e o escuro
me davam uma agradável sensação de segurança, sentimento que havia se tornado importante
naquela fase. Mas, como tudo passa com o tempo, essa fase também passou. De sorte que, um
belo dia, resolvi abandonar aquele lugar sombrio em busca de uma vida mais interessante e
ensolarada. Afinal, foi num ambiente assim que eu nasci e cresci. Segui o encanamento central,
escolhi aleatoriamente um cano mais fino, subi por ele, vislumbrei uma luz e fui em direção a ela,
subindo na vertical, coisa em que nós, roedores, somos exímios. Acabei dando no ralo de um
banheiro, até cheiroso e bem cuidado. O ralo tinha uma fenda providencial. Facilmente meti-me
por ela e alcancei o piso ladrilhado. Fui esgueirando pelos cantos, passei atrás do cesto de papéis,
pela porta e fui dar num salão de assoalho de tábuas. Nova esgueirada pelos cantos, passei atrás
de uns móveis e revolvi subir pelo pé de um deles, direto até o topo. Lá chegando lancei a vista ao
longe - não tão longe dada a minha cruel miopia - e vi algo fascinante: dezenas de estantes
enfileiradas e milhares de livros. Sim: era uma biblioteca, enorme. Notável coincidência. Fui dar
exatamente num ambiente que me era habitual. E mais: nunca havia visto coisa igual, pelo luxo,
qualidade e quantidade. Livros de todos os feitios, tipos de capas, grossuras, tamanhos. Não podia
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ter dado em melhor lugar. De sorte que resolvi logo ficar morando ali. Restava escolher o lugar
exato e me instalar de mala e cuia.
Depois de uma minuciosa e cansativa excursão noturna em busca de alimento constatei que
não havia cantina ali. Encontrei apenas uns restos de comida no lixo de um cômodo azulejado
que depois descobri ser o lugar em que os funcionários da biblioteca lancham, quer dizer, o local
ao qual chamam de copa. Naquele primeiro dia nem consegui completar minha frugal refeição
pois, bem no meio dela, alguém acendeu a luz e entrou no cômodo. Mal tive tempo de me esconder
debaixo da geladeira. Era a encarregada da limpeza recolhendo o lixo e o meu jantar inconcluso.
Entendi logo a mecânica da coisa. Ali era o lugar onde os funcionários faziam o lanche e o lixo
com os restos era recolhido logo em seguida. A partir desses dados, já pude estabelecer minha
rotina de refeições. Tinha que ser depois do lanche dos funcionários e antes que o pessoal da
limpeza fizesse a coleta do lixo. Algo como: almoço entre meio dia e quatorze horas e jantar entre
dezoito e vinte horas. Tudo bem para mim. Quanto ao local de dormir escolhi um espaço entre
as fileiras de livros opostos, na última prateleira de uma estante próxima a copa. Era perfeito.
Escondido, escuro e silencioso. Para fazer o ninho, bastaria juntar uns papeis macios, levemente
roídos. Não é propriamente um ninho, pois quem faz ninhos são as fêmeas. Além disso sou um
celibatário convicto. E aqui, como prometido, passo a explicar porque nós roedores roemos coisas,
fazendo jus ao nome da nossa espécie. A razão é simples e tem natureza ortodôntica: é porque
nossos dentes crescem sem parar e se não roermos coisas eles ficam enormes. Acabariam nos
dando o aspecto grotesco de vampiros. Essa fama preferimos deixar para nossos parentes
voadores, os morcegos. Assim, a maior parte das coisas que nós roemos não nos serve de alimento.
Quanto mais duro o material roído melhor para aparar os dentes. Eu adotei o seguinte processo:
roo madeira para limar os dentes e papel para dar acabamento. E é aí que entra o meu hábito de
roer papel e, naturalmente, livros. No princípio eu roía qualquer livro, sem método e sem nenhuma
preocupação seletiva. Na verdade preferia os que estavam na estante onde passei a morar. Ia nessa
rotina medíocre quando inesperadamente descobri uma coisa extraordinária. Vou contar com mais
detalhe. Normalmente eu roía os livros enfileirados na estante, perfurando uma pequena cavidade
superficial do lado oposto da lombada. Desta forma o texto não era atingido mas somente as
bordas em branco da página. Um belo dia casualmente mudei essa rotina e roí um livro no sentido
horizontal, abrindo um sulco mais largo, atingindo o próprio texto. A profundidade do sulco –
também casual - foi de cerca de dois centímetros e meio, de tal forma que consegui atingir da
primeira à última folha. Quer dizer, varei o livro de cabo a rabo. Terminando esse exercício
diferenciado que, como eu disse, tem motivação essencialmente ortodôntica, fui dormir. Sonhei
intensamente durante toda a noite. Era uma história interessante de amor e guerra envolvendo
tribos de índios brasileiros. Muito sangue, paixão e heroísmo. Acordei maravilhado e no princípio
não entendi muito bem o que havia acontecido. Nunca havia sonhando na minha vida, muito
menos uma história tão completa, com princípio, meio e fim. Não levei muito tempo para perceber
que tinha descoberto algo extraordinário: eu sonhei exatamente a história do livro que eu havia
roído daquela forma peculiar. Acreditando piamente nisso fiz algumas pesquisas e algumas
experiências controladas e pude comprovar uma hipótese revolucionária e que pode ser formulada
com base no seguinte enunciado: um camundongo, roendo todas as páginas de um livro a uma largura tal
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que o texto seja atingido tornava-se capaz de sonhar o seu conteúdo exatamente como se o tivesse lido. Incrível
mas verdadeiro, testado e comprovado. Descoberta essa maravilhosa capacidade atirei-me
ferozmente à leitura. Finalmente poderia me tornar um leitor habitual e sem restrições. Tornei-me
literalmente um devorador de livros. Era só roer e sonhar. Era um método bastante destrutivo
reconheço, mas de outra forma não haveria eficácia. Curioso observar que o expediente valia
também para os livros de ensaios. Claro que, nesses casos, em lugar de sonhar com uma história
sonhamos com o autor fazendo uma espécie de palestra. Era como se ele próprio estivesse lendo
e explicando o conteúdo do livro. Desta forma eu podia ler de tudo com o maior proveito. Esse
o aspecto mais interessante dessa descoberta interessante: eu poderia me transformar num erudito.
Tentei filosofia, teoria literária, ciência política; nenhum problema. O método era infalível. Era
capaz de roer e sonhar com o conteúdo de pelo menos quatro livros por noite. E não deixava por
menos. Quanto mais aprendia, mais queria aprender. Em já sendo míope acabei ficando cego.
Cego de amor pela aventura do conhecimento. Tornei-me obcecado Queria me tornar um sábio,
um intelectual brilhante. Tão cego que passei a não dar nenhuma importância ao estrago que a
minha roeção estava fazendo no acervo da biblioteca. Estrago sim pois tinha livro que eu lia duas
ou três vezes e em cada uma deixava um sulco profundo em todas as páginas do livro. Não era
como na época da biblioteca da escola quando as ruídas eram eventuais e tímidas. Agora não, era
voraz. Mas eu não ligava e ia roendo e sonhando. A certa altura até tive que por algum método
naquele festim literário. Estabeleci um programa de leitura dividido por áreas e subáreas de
conhecimento. Não foi difícil, bastou me basear no roteiro de um livro que descobri por acaso
intitulado Guia bibliográfico da sabedoria, escrito por uma competente e dedicada bibliotecária
aposentada. Volta e meia lia um romance ou uma obra poética, por lazer. E assim fui vorazmente
cuidando da minha formação com toda aplicação, sem temer um eventual estresse ou overdose.
Mas uma noite algo deu errado: tive um horrível pesadelo. Não foi por ter roído um mau
livro, ou um livro de terror. Ao contrário, nesse dia eu não havia roído livro algum. É que no fim
do expediente tinha havido uma festinha na copa da biblioteca. O evento foi até altas horas da
noite. Fiquei ali esperando durante horas na expectativa do fim da dita festa para devorar algumas
migalhas nutritivas. Valeu a pena. Como a festa acabou mais tarde e o pessoal havia tomado uns
coquetéis etílicos, não houve limpeza imediata e a mesa ficou cheia de restos de comidas. Assim
eu pude fartar-me como nunca. Comi de tudo, gorduras, açúcares e carboidratos. Acho que foi o
excesso de comida que me fez ter o pesadelo. Sonhei que estava assentado no duro banco dos
réus, sendo julgado por um crime considerado hediondo. O ambiente era escuro e as pessoas
vestiam pesadas batinas escuras. Todos eram humanos exceto eu. Continuava camundongo.
Acusavam-me do crime de insolência, petulância, afetação, pernosticidade, arrogância,
pedantismo, dano ao patrimônio público e muitas outras coisas feias. Acho que só não me
acusaram de heresia porque eu nunca havia dito ou escrito qualquer coisa. De qualquer forma a
pena era severíssima.
- Onde já seu viu um camundongo metido a sábio, a intelectual. Ainda mais causando
extensos danos ao patrimônio de uma biblioteca com seu grotesco método de adquirir
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conhecimentos - afirmava o promotor apontando o dedo gordo para minha minúscula e
acuada figura.
A acusação foi rápida mas arrasadora. A ela seguiu-se um tenebroso silêncio. Em seguida
me foi dada a palavra para eu me defender. Não consegui dizer uma única palavra a meu próprio
favor. O que dizer, afinal? O que podia justificar um camundongo querer ser um sábio? Para que?
Fiquei calado e acabei condenado sem direito a apelação. A pena era tudo o que eu não suportaria:
ficar encerrado para sempre num cano de esgoto, no meio de imundícies. Acordei sobressaltado,
com o pulso marcando acima de mil batimentos por minuto. Naquele dia nem quis sair do ninho.
Fiquei ali, macambúzio pensando no pesadelo. Não há dúvida que ele continha uma lição, uma
autocrítica enrustida. No fundo me mostrava que a minha ambição intelectual não tem nenhum
sentido e no, no juízo dos humanos, sou mesmo um criminoso.
Estou num estado de completo desadoro já há uma semana. Minha vida deixou de ter
sentido. Hoje circulou a notícia de que os estragos que eu vinha fazendo nos livros já foram
notados e causaram profundo aborrecimento. O diretor da biblioteca está irritadíssimo e já
autorizou uma licitação para desratização das dependências. Estou tão desanimado que nem sei
se vou fugir como fiz da outra vez. Afinal, o que adianta eu me tornar um grande sábio sem ter
nenhum reconhecimento por isso. Ao contrário: estou sendo visto apenas como um roedor
nojento e destrutivo. Também já estou ficando velho e isso acentua meu desânimo. Sim pois os
camundongos não costumam viver muito mais do que um ano. Quer dizer, a maioria de nós nem
comemora o seu primeiro aniversário. Esse pode ser o meu caso. Quem sabe na próxima
encarnação eu volte humano e possa me tornar de fato um intelectual brilhante com todos os
méritos e reconhecimentos.
Termino essa minha curta e dramática história sem chegar ao meu final, deixando espaço
para uma eventual segunda parte se o público se interessar. Aproveito para afirmar
categoricamente que ela não tem nenhum fundo moral, nem encerra nenhuma mensagem
filosófica. Nem sequer é uma crítica àqueles que não têm o menor zelo pelos livros de uma
biblioteca pública. Dobram as páginas, arrancam folhas, derramam café, fazem anotações cretinas,
sublinham palavras e frases e, no final, não tiram nenhum proveito do que leram.
Em não sendo uma lição de moral, fica então explícito que essa narrativa é um mero
registro sobre a verdadeira natureza dos roedores. Portanto tenho que reconhecer que não há
realmente nada que justifique pretensões intelectuais num camundongo. Mas também não posso
me esquecer que qualquer roedor que abandonar o hábito de roer, inclusive livros, vai acabar
ficando com dois horríveis caninos de vampiro.
A SOBREPELIZ DO CARDEAL
Como se recorda, o século XX contabilizou entre seus eventos notáveis, além de duas
guerras mundiais, igual número de concílios eclesiásticos. Também como se recorda, o segundo
deles aconteceu em 1957 na cidade balneária italiana de San Remo. Foi um conclave um tanto
elitista, seja na forma seja no conteúdo. Em relação ao primeiro, a adjetivação se justifica pelo fato
de que somente cardeais de alto coturno foram convidados, quero dizer, houve uma espécie de
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seleção de admissão dos membros do conclave. No que diz respeito ao assunto, o referido concílio
também era inusual, pois trataria de questões estritamente teológicas, envolvendo uma inserção
modernizante nas obras dos chamados “doutores da igreja”. Significa dizer era assunto fora de
moda, desde o século XVI. Claro que o clero progressista não gostou nem um pouco daquela
extravagância num tempo em que a Igreja Católica patinava como nunca, mais uma vez atordoada
com a dinâmica da evolução das coisas do mundo. Houve muita crítica, mais velada ou até
inexistente nas Sés e nas Catedrais e mais aberta nas igrejas miseráveis da América Latina e da
África. Aqueles padres humildes teimavam em não enxergar de que forma releituras
modernizantes das velhas raízes teológicas pudessem instrumentar melhor a Igreja para os
desafios concretos do presente. Também se criticou muito a escolha do local do conclave. Porque
logo San Remo, um reduto mundano, tradicional centro de veraneio de ricos e de festivais cretinos
de cinema e de música? Sinceramente, desconheço o motivo.
Mas assim foi, e no dia primeiro de abril de 1957, Sua Santidade, debaixo de toda a sua
piedosa velhice, declarava aberto o Concílio de San Remo. Para encurtar o relato sobre o
eruditíssimo evento, vou dizer apenas que dois ilustres e doutos cardeais, polarizaram os debates.
Por sinal brilharam como estrelas fulgurantes no céu glorioso da teologia católica. Ambos italianos,
por certo. Falo do cardeal Enzo Mazzeato da Sicília – Arcebispo de Milão - e do cardeal Roberto
Franchini da Toscana, arcebispo de Florença. O primeiro era considerado a maior autoridade
mundial na doutrina de Santo Ambrósio e o segundo gozava da mesma posição entre os
especialistas em Santo Agostinho. Desnecessário dizer que os debates foram brilhantes, quentes e
cheios de fina ironia de parte a parte, com torcida e manifestação de apoio e desapoio dos
partidários de um e de outro. Quem era mais atual: Ambrósio ou Agostinho? Isso não interessava
de fato, pois o propósito não era escolher e sim adequar o que não era adequado. Mas a polarização
acabou sendo a tônica dos debates. Ou seja, a coisa correu meio à distância das verdadeiras razões
de um concílio tão raro e especial. Não porque os santos e humildes patronos de toda aquela
discussão diferissem na essência de seus méritos teológicos, mas sim porque a soberba vaidade
dos cardeais Mazzeato e Francini ofuscava a nobreza dos motivos do simpósio. Objetivamente
seria impossível dizer qual dos dois ganhou a discussão, até porque não havia parâmetros para se
julgar aquele douto debate por um prisma tão leviano, pois aquilo não devia ser um jogo muito
menos um concurso. Contudo, no fundo era e, ao final, pairou a sensação de que o cardeal
Franchini tinha sido mais brilhante e convincente do que o seu opositor. Repito que,
objetivamente, seria impossível dizê-lo, mas subjetivamente até posso arriscar um arremedo de
explicação. É que o cardeal Franchini impressionava muito pela sua magnífica teatralidade. Era
alto, magro e jovial. Falava bem, mestre no domínio da impostação e no uso da sua bela voz de
tenor italiano. Acima de tudo elegante, vestido com sua deslumbrante sobrepeliz cor púrpura
imperial, com barrado de peliça branca, cordão e borlas de ouro. Enfim, literalmente soberbo
como um cardeal. Modernamente se poderia dizer que ele era um mestre na arte da autopromoção.
Sabia muito bem vender-se a si mesmo. Está certo que essas coisas não deviam funcionar num
sínodo de altos prelados, adoradores da humildade de Cristo. Mas funcionou. Ao final de tudo,
ninguém ficou sabendo quem era melhor ou mais atual: Ambrósio ou Agostinho e nada foi
agregado ao patrimônio teológico da Santa Igreja de São Pedro. Contudo o cardeal Franchini saiu
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dali muito mais admirado e poderoso do que quando havia entrado, mas também despertando
muito mais despeito e inveja. No cardeal Mazzeato até muito mais do que isso, despertou um
compulsivo desejo de vingança. Não era ele tão exuberante quanto o rival, aliás, muito antes pelo
contrário. Não se mostrou mais brilhante e, afinal, havia velhas frustrações acumuladas e alguns
ressentimentos de infância. Pode ser um exagero, mas ele jurou vingança e não pensava em outra
coisa quando voltou para sua arquidiocese em Milão. E assim passou algumas semanas, remoendo
aquela mesma ressaca que abate os perdedores ao final de um torneio. Mas vingança é vingança,
cardeal é cardeal e nessa combinação as coisas não se resolvem deixando do jeito que está. De
sorte que o arcebispo de Milão se concentrou no seu plano de desforra, tocando o demais com
uma certa displicência.
A primeira ideia que teve foi simples e rasteira. Tinha que introduzir um espião nas
intimidades do cardeal Franchini. Isso não era difícil, bastava enviar seu assistente para passar
algum tempo em Florença a pretexto de realizar pesquisas na biblioteca do palácio episcopal. Isso
era comum. A biblioteca valia como referência em matéria de história greco-romana, artes sacras
e teologia. Era muito concorrida e nada mais prosaico do que um prelado erudito como ele enviar
seu assistente para pesquisar naquele notável acervo. O enviado poderia montar ali o seu
observatório, espionando os fortes e os fracos do eminente cardeal.
Assim foi feito. Monsenhor Tagliavini foi o escolhido para a missão. Não podia ser
diferente sendo ele tão talhado para o caso. Além de muito capaz, intelectualmente falando, era
extremamente fiel ao cardeal Mazzeato. Também hábil e discreto. Não podia ser outro. O
monsenhor partiu para Florença numa tarde cinzenta levando uma carta de apresentação. Mas
não conseguiu ser recebido pelo cardeal Franchini. Assim teve que se contentar em circular pelos
limites da biblioteca como um seminarista qualquer. Dentro dessa limitação poderia ter fracassado
no seu mister espião. Mas deu sorte. É que a biblioteca não era um lugar só de estudo e reflexão,
mas também de muita intriga e fofoca, nos jardins, banheiros e cafés. De sorte que, mesmo sem
muito espaço para espionar, em pouco tempo ele pôde descobrir que o cardeal Franchini tinha
dois pontos fragilíssimos: uma vaidade e um vício aos quais se entregava com desmedida paixão.
O primeiro ponto diz respeito àquela sobrepeliz que ele usava no concílio e que já descrevemos
rapidamente. Tinha verdadeira paixão por ela e se sentia magnífico quando a usava. A peça de
vestuário funcionava quase como uma cabeleira de Sanção. Fazia-o sentir-se forte, atiçava o seu
ego e o enchia de extrema autoconfiança. Na verdade os poderes mágicos da sobrepeliz já tinham
virado lenda desde meados do século passado. Teria sido por isso que ele a tinha usado o tempo
todo no dito concilio. Aliás era assim em toda circunstância em que ele queria se sentir poderoso.
E havia fundamento para a lenda e a confiança do cardeal Franchini. A dita sobrepeliz tinha
pertencido ao ilustre cardeal Gioacchino Vincenzo Pecci - arcebispo de Perugia. Aquele mesmo:
famoso mecenas, brilhante intelectual, temido polemista que viria a se tornar o papa Leão XIII
no dia 20 de fevereiro de 1878. A segunda paixão do cardeal Franchini já não era assim tão gloriosa.
Pelo contrário, nivelava-o a uma classe de homens que muitos tratam com desprezo. Era
inteiramente viciado no jogo de pôquer.
Quando Mazzeato ouviu a confidência do seu espião a respeito das fraquezas do seu
desafeto, sorriu e esfregou as mãos pequenas e peludas com enorme satisfação. Sim pois, mesmo
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sem saber, monsenhor Tagliavini havia lhe trazido um plano de vingança praticamente pronto. E
também prazeroso. Nada de sangue nem de vítima estrebuchante. Acontece que ele também
gostava muito de pôquer. Aliás, era excelente jogador, famoso nos subterrâneos da jogatina dos
ilustres de Milão: prelados, ministros e magistrados carteando escondidos. Além disso, também
tinha se sentido seduzido pela magnífica sobrepeliz púrpura e gostaria de tê-la, com toda a sua
mágica e indução. Eis então um novo campo de embate. Poderia singelamente desafiar Franchini
para um jogo de pôquer e simplesmente ganhar dele a sobrepeliz, submetendo-o a uma dupla e
terrível humilhação. Parece fácil, mas pode não ser. Vamos com mais prudência, pensou Mazzeato
com os inúmeros botões da sua batina. É preciso saber antes quais são os talentos do cardeal
Franchini no fascinante jogo de pôquer. Ele era bom em tudo que fazia, devia ser bom também
no jogo de cartas. Carecia averiguar. E toca novamente monsenhor Tagliavini para Florença, à cata
de informações sobre as habilidades do outro cardeal no carteado. Não demorou para descobrir
e logo estava de volta dando conta da missão. Descobriu que Franchini apostava alto mas perdia
muito. Não fosse a enorme fortuna da família e ele já poderia estar em maus lençóis, afogado em
dívidas de jogo. Mas perdia e pagava direito e isso fazia dele bem-vindo em toda mesa de alto
nível. Encarnava a figura que hoje se costuma chamar de “o pato”. Era tudo que o cardeal
Mazzeato queria ouvir. Podia dar o segundo passo, ou seja, desafiar o adversário para um jogo
pesado. Passo seguinte passou a trabalhar na melhor forma de fazer isso. Tinha que ser cauteloso,
não podia induzir o adversário a montar uma estratégia marota, jogando na defensiva.
O verão já estava para começar, prometendo dias cálidos e noites frescas no sul da França.
Todos os anos, em agosto, o cardeal americano John Finger, presidente do Banco do Vaticano,
costumava passar férias em Monte Carlo. Famoso anfitrião pelas festas que dava, adornadas com
augustos jantares e muita gente fina disputando a mesa. Adivinhem qual era a atração de todo fim
de noite na suíte do cardeal banqueiro depois que os bêbados e chatos já tinham ido embora
caçando coisas mais sujas? Exatamente emocionantes rodadas de pôquer reunindo prelados e
financistas de fina lavra de todo o mundo, especialmente da Europa.
O cardeal Mazzeato era amigo do cardeal Finger, mas não costumava participar do notável
evento. Era sempre convidado, mas não ia. Preferia passar o verão nos Alpes, numa velha
propriedade da família. Mas esse ano poderia ser diferente: beira-mar ensolarado em lugar de
montanhas onde ficava à toa curtindo uma santa preguiça e se fartando como um frade comilão
sem ter mais o que fazer. A ideia para esse verão era outra: já que o cardeal Francini gostava do
jogo, bem podia ser que ele fosse um dos participantes das rodadas de Monte Carlo. Eis a
oportunidade buscada. O verão da vingança. Bastaria um simples telefonema para saber se podia
seguir com o plano.
A ligação para o Banco do Vaticano encontrou o presidente da poderosa instituição
(estamos em 1957 e o euro nem existia) sozinho em seu gabinete, ainda se recuperando de um
almoço exagerado. Finger tamborilava a barriga exposta pela batina semiaberta quando o telefone
tocou. Atendeu a Mazzeato com a alegria de quem fala com um velho conhecido depois de muito
tempo sem notícias. Ficou encantado com o interesse do amigo pelo seu famoso carteado anual,
afinal ele nunca atendera aos convites anteriores para participar do evento. Perguntado, informou,
com uma ponta de malícia, que o austero cardeal Franchini era frequentador habitual do dito cujo
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encontro. Ficou felicíssimo quanto Mazzeato disse que naquele ano também estaria presente. O
prelado de Milão só pedia uma coisa: que não fosse revelado aos outros parceiros que ele iria
participar do carteado naquele ano. Queria aparecer de surpresa. O pedido, como estratégia de
jogo era inteiramente idiota, mas Mazzeato queria criar um clima diferente, meio teatral. Afinal,
para ele, não era só um jogo mas sobretudo um golpe de justa vingança. O cardeal Finger achou
o pedido meio esquisito mas concordou. Não seria desleal para com os outros participantes. Afinal
o elemento surpresa não faz qualquer diferença sobre as sortes e os blefes dos bons jogadores de
pôquer. Mais estranho achou ainda quando Mazzeato lhe perguntou se Franchini usava uma bela
sobrepeliz quando estava na mesa de pôquer. Mas também não hesitou em responder-lhe a
pergunta sem pedir explicação. Apenas disse que não. O cardeal de Milão desligou o telefone feliz;
melhor dizendo, exultante. O plano estava em ação correndo no rumo certo. Dentro de um mês
estaria em Monte Carlo, sob o sol de um belo verão mediterrâneo, perpetrando a vingança e,
enfim, voltando a dormir com os anjos.
Os dias não correram depressa, até porque a ansiedade do cardeal Mazzeato não deixava.
E não deixaria, mesmo que os dias pudessem correr mais rápidos do que a rotina das horas,
exigindo exatos sessenta segundos para cada minuto e, novamente, exatos sessenta minutos para
cada hora. Mais eis que, depressa ou devagar, chega agosto. O verão se instala na costa
mediterrânea, o cardeal John Finger se instala mais uma vez na sua magnífica suíte num hotel chic
do bairro de Monte Carlo.
Os bêbados e os chatos já deixaram a mesa opípara do cardeal banqueiro e o jogo vai
começar. Justo na hora habitual: oito horas da noite. Há quatro jogadores à mesa: o anfitrião
cardeal John Finge, o banqueiro Daniel Goldwin da Basileia, o cardeal Jean Dubois arcebispo de
Montpellier e o cardeal Franchini. A participação do cardeal Mazzeato ainda não tinha sido
revelada e ele deveria aparecer por volta das nove e trinta, como tinha sido combinado, em
segredo, com Finger. O jogo envolvendo os quatro fiéis parceiros era o usual de quase todo ano
com pequenas variações, vez ou outra. Portanto, já se conheciam muito bem. Assim sendo as
partidas iam meio mornas quando Enzo Mazzeato chegou, tentando causar surpresa. Pediu
desculpas por ter chegado sem avisar. Mas ninguém se mostrou surpreso. Talvez já soubessem,
pois ali ninguém era bobo e, sendo assim, nunca dispensavam suas redes de espionagem em
qualquer situação. O anfitrião convidou o recém-chegado a se assentar à mesa, pedido licença aos
demais. Estes se limitaram a balançar as cabeças afirmativamente, deixando o cardeal Mazzeato
um pouco constrangido com a frieza da recepção. Mas logo se recompôs, afinal tinha ido ali com
intuito de fera e não cabia timidez. Tomou o seu lugar, recebeu o seu cacife e o jogo recomeçou,
pesado como sempre, com o dinheiro trocando de lado ou voltando para o mesmo lugar. Há
histórias de grandes ganhos e miseráveis perdas, todavia isso não era o comum. Mas era sempre
emocionante pelas grandes quantias apostadas. Foi assim também daquela vez. Emocionante para
quem jogou, mas chato de contar nos detalhes. Assim, em atenção ao leitor, vamos avançar a
narrativa até à meia noite que é quando deveria terminar a jogatina. Era assim: com hora marcada
para terminar, como sempre é nas rodas mais finas.
Ao que parece Mazzeato era mesmo um grande jogador e Franchini um perdedor em
essência. Sim pois, esgotado o tempo previsto de jogo, o suposto vingador estava ganhando
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duzentos e cinquenta mil dólares do seu precípuo opositor. Os demais estavam do mesmo jeito,
sem ganhar ou perder. O tempo se esgotara, o jogo estava findo e o cardeal de Florença havia
sido escalpelado em duzentos e cinquenta mil verdinhas. Mas para Mazzeato não era o final da
vingança. Ele queria a sobrepeliz. De toda forma, pelas regras o jogo havia terminado. Assim, ao
sinal do anfitrião, todos largaram as cartas e juntaram as suas fichas rastelando o pano verde.
Levantaram sacudindo a cinza dos charutos pousada porcamente em suas vestimentas pretas e se
dirigiram à varanda. Como era tradição tomaram um conhaque sob o sopro da brisa do
mediterrâneo. Era o ato final daquela nobre reunião. O banqueiro suíço e o bispo francês não
demoraram a sair, apressados e discretos. Mazzeato, porém, como bem o sabemos, tinha um
plano em curso. Pediu a Fringer outra dose do conhaque. Pegou Franchini pelo braço e entrou
em conversa sobre detalhes do jogo, retardando sua saída. Em princípio fez comentários
genéricos. Depois começou a provocar o adversário. Franchini não afinou. Pediu também mais
um conhaque e o clima foi esquentando, requentando a querela passada. Mazzeato pôs o dedo na
ferida. Comentou que nunca havia ganho duzentos e cinquenta mil dólares com tanta facilidade.
Não foi preciso mais, o sangue subiu ao rosto de Franchini. Era um ataque de cólera. Pediu uma
revanche sonora e malcriada. O cardeal de Milão não fez firula. Disse que concordava em
conceder a revanche mas tinha que ser já e nos termos que ele estabelecesse. O perdedor
inconformado concordou, mesmo antes de saber dos tais termos. Também não tinha remédio,
não podia vacilar sem perder algum terreno. Os termos do desafio eram incomuns e cheios de
segundas intenções. Seria mais um duelo do que um jogo de pôquer. Haveria um único cacife: um
milhão de dólares de Mazzeato contra a famosa sobrepeliz do cardeal de Florença. O jogo só
acabaria quando um dos dois perdesse tudo. As apostas seriam sem limite. Fringer observava tudo
calado e curioso. Não estranhou a proposta. Sabia do entrevero entre os dois, sabia do papel da
sobrepeliz na história, sabia do desejo de vingança. Apenas não esperava que fosse daquele jeito
e no meio da sua festa. Há de se dizer que Franchini também não estranhou, pois já esperava
alguma escaramuça do adversário desde o fim do concílio que acendera aquela rivalidade. Aceitou
sem ressalvas, aquele tudo ou nada. Queria acabar de vez com aquela ameaça ridícula mas, de toda
forma, muito incômoda.
Tudo devidamente acertado, o cardeal Fringer, impassível como um banqueiro americano,
convidou os dois a voltarem à mesa. O cardeal de Milão pediu cinco minutos de intervalo.
Precisava falar com seu assistente que se encontrava no corredor, esperando alguma ordem. Abriu
a porta, chamou o tal assistente e pouco depois voltava à suíte carregando uma pequena valise
preta adornada de metais e fechaduras engenhosas. Entrou no banheiro e se demorou alguns
minutos. Mazzeato já havia se preparado e estava à mesa esperando. Cinco minutos depois voltava
Franchini. Sua figura surpreendeu. Carregava a sobrepeliz sobre os ombros. Parecia descansado e
jovial. Atravessou a sala como se estivesse numa catedral e se assentou à mesa com alguma
afetação. Mazzeato, suarento e arfante, não gostou da artimanha. Afinal, havia aquelas lendas todas
sobre os poderes da sobrepeliz. Mas não protestou. Não haviam combinado nada sobre isso. Um
protesto seu poderia ser um pretexto para o cardeal de Florença desistir, desarmando o plano e
sepultando para sempre sua chance de vingança.
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O jogo foi memorável. Durou oito exatos minutos. Houve uma única rodada. Cada um
pediu duas cartas. Seguiram-se as apostas de parte a parte. Rapidamente chegou-se ao fim do
cacife: um milhão de dólares em dinheiro de Mazzeato e um milhão de dólares lastreados na
sobrepeliz de Franchini. Hora de mostrar o jogo. Primeiro o cardeal de Milão – Enzo Mazzeato.
Abre um full hand de dez e nove. Arma um semblante impassível olhando a cara do inimigo.
Franchini também fica impassível, nenhuma expressão, nenhuma revelação do que esconde nas
mãos. Vira as cartas devagar, cobre as cartas do adversário com as suas. Em seguida sorri, um
sorriso de deboche. Quatro valetes brilhantes, elegantes e triunfantes, mais uma dama sobrando.
Ganhara o jogo com sobra. Mazzeato faz careta, dá um murro na mesa. Tem ímpetos de esganar
o adversário, socar sua cara arrogante. Tenta se levantar mas é contido pela mão forte do cardeal
Fringer. Volta a esmurrar a mesa, agora com mais força. O cardeal de Florença, triunfante,
permanece assentado em prudente silêncio. Mas está um pouco assustado. Sabe que aqueles
murros preferiam a sua cara. Tira o sorriso dos lábios e fica olhando o nada. Todos ficam em
silêncio. Passados alguns minutos, Mazzeato vai se acalmando. Levanta-se e vai ao banheiro.
Franchini resolve aproveitar a ausência do adversário para ir embora, pondo fim àquele
constrangimento, levando uma letra de um milhão de dólares e a sobrepeliz nos ombros. Despedese de Fringer e coloca a sobrepeliz cuidadosamente na valise. Quanto ao dinheiro, recebe a garantia
do banqueiro de que em uma semana ele estaria depositado em sua conta pessoal. Mazzeato,
coitado, quase passou a noite toda no banheiro de Fringer, escondido do mundo. Depois que saiu,
resolveu ficar em Monte Carlo mais uma semana tentando se recuperar da refrega que tomou.
Quando voltou para Milão trazia no lado impuro do coração um avassalador desejo de mandar
matar Roberto Franchini, o cardeal de Florença.
Mas o tempo passa e, ao passar, costuma corrigir as coisas que não tem solução. Foi assim
também nesse caso. E por incrível que pareça, dez anos depois do início dessa história Franchini
e Mazzeato acabaram se reconciliando, pelo menos nas aparências. Deixem-me contar o caso.
Acontece que Franchini, triunfo após triunfo, foi crescendo de prestígio e acabou cotado para ser
papa. Resolveu pedir ajuda a todos os cardeais e não se esqueceu de incluir seu velho inimigo na
lista. Prevendo dificuldades já foi adiantando que se eleito, Mazzeato estaria cotado para assumir
um cargo importantíssimo na cúpula do Vaticano. Todo mundo estranhou pois a antiga rivalidade
era muito bem conhecida. Mas Franchini não vacilou, mandou espalhar a notícia por fonte
fidedigna. Um tempo depois ligou pessoalmente para Mazzeato e confirmou o boato. Não se sabe
muito bem se o cardeal de Florença trabalhou de verdade para eleger seu velho desafeto, nem
mesmo se sabe se ele votou nele realmente. Mas o fato é que o velho papa morreu e Roberto
Franchini acabou sendo eleito para a vaga como tinha planejado antecipadamente com aquela
competência que lhe era peculiar. E cumpriu direitinho a promessa feita ao velho inimigo
nomeando-o para um alto cargo no Vaticano. Muitos acreditam que o novo papa não dava a
mínima bola para a influência política de Mazzeato, até porquê, aqueles revezes antigos tinham
virado piada e ele já não tinha mais nenhum prestígio. Dizem que o que Franchini queria mesmo
era dissuadir seu velho desafeto daquela ideia de vingança. No fundo sempre temeu o sangue
siciliano e, como papa, já não poderia mais usar a deslumbrante sobrepeliz cor púrpura imperial,
com barrado de peliça branca, cordão e borlas de ouro.
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O SINO DO TIBET
Claro que fatos passados há quase seiscentos anos tendem a se confundir com lendas. E
esse é o caso desta história. Seja como for, verdade ou lenda, o que agora se conta tem sido
transmitido oralmente de geração a geração por todos esses séculos sob vivo interesse dos
piedosos ouvintes. A história começa quando o jovem Yun Tsan Chin, aos vinte anos, resolveu
abandonar a corte do imperador da China e sair em busca da felicidade duradoura. Não
exclusivamente a dele mas de toda a humanidade. Também não se tratava da felicidade efêmera
proporcionada por bens materiais, mas sim aquela muito mais sólida e profunda que só é alcançada
por espíritos elevados. A compulsão em abandonar o lar paterno se explicava pelo temperamento
dele, ao mesmo tempo contemplativo e pragmático. Essa rara combinação de predicados tinha
sido herdada dos pais em medida exata e equilibrada. Sua mãe descendia de nobres famílias antigas
do Himalaia e uma de suas ancestrais tinha sido uma princesa que, por volta do ano seiscentos da
era cristã, havia introduzido a religião budista na China. Mantendo a tradição de berço era muito
piedosa e isso passou ao pequeno Chin, que desde tenra idade tinha decidido se colocar a serviço
das coisas divinas, como monge piedoso. Mas também havia a influência do pai, um valente
general cheio de glórias, notável estrategista que, por seus inquestionáveis méritos, tinha sido feito
conselheiro do imperador e seu braço direito nas coisas da administração do vasto império chinês.
De sorte que, por conta dessa rara combinação genética, Yun Tsan Chin, depois de pouco tempo
combinando reflexões teológicas com preocupações pragmáticas acabou se convencendo que a
felicidade absoluta, posto fosse uma questão eminentemente espiritual, podia ser tratada de forma
mais objetiva e universal, através de meios acessíveis aos mortais menos dotados para enfrentar
esforços repetidos, lentos e pacientes. No fundo tinha uma pretensão monumental: pretendia
simplesmente antecipar a duração do ciclo de preparação para a entrada no Nirvana. Na verdade
ele acreditava que era possível alcançar esse estado transcendental ainda em vida. E mais,
convenceu-se de que para isso as pessoas não precisavam ter nascidas predestinadas, dotadas de
vontade incomum e paciência infinita. Era o lado prático da sua personalidade cutucando o lado
espiritual. Na verdade, como sói acontecer em toda lenda que se preze, ele tinha tido um sonho
no qual o próprio Buda aparecia e lhe passava uma mensagem divina. No sonho, o mestre dos
mestres lhe teria dito que ele era candidato a liderar uma grande mudança na doutrina budista.
Tratava-se de um projeto de simplificação e popularização dos critérios de seleção para o alcance
do Nirvana, quer dizer, uma releitura sobre a duração do ciclo do Samsara. Na nova doutrina o
paraíso de Buda podia ser alcançado sem sacrifícios mentais extenuantes. Para isso bastaria que
fossem adotadas novas práticas piedosas que simplificassem as contemplações, sacrifícios e
orações. Ele, Yun Tsan Chin, havia sido cogitado para conduzir essa mudança. Mas, havia um
porém: ele precisaria mostrar-se digno do esplendor da missão. Se conseguisse isso, o Buda lhe
apareceria novamente e lhe revelaria quais as novas liturgias e práticas da grande renovação. A
partir daí, como enviado divino, bastaria ele sair divulgando-as pelo mundo e a felicidade se
espalharia finalmente como uma grande benção divina nessa vida e nas outras.
Claro que o sonho deixou Chin transtornado. Não eram só delírios de um jovem sonhador,
rico e sossegado debaixo da proteção direta do imperador da China. Ao contrário, bateu muita
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disposição de enfrentar o desafio e buscar o merecimento que lhe fora apontado de forma tão
clara e contundente pelo próprio espírito iluminado que havia revelado as verdades do budismo e
que agora achava que estava na hora de rever algumas delas. Faria o que tivesse que fazer, iria onde
tivesse que ir, seja um templo sagrado da Índia, um porto sujo da Europa, o silêncio do Himalaia.
Devo fazer notar que aquela compulsão em chutar o pau da barraca era exatamente a
mesma que tinha feito Siddhartha Gautama sair pelo mundo muitos séculos antes em busca da
verdade divina. Com a diferença básica de que Yun Tsan Chin não era propriamente um príncipe,
nem tinha ficado chocado com a miséria humana, coisas que, por sinal, até então nunca havia visto
ao vivo, já que vivia confinado na Cidade Sagrada desde que nascera. Seja como for, tal qual o
jovem Buda, também ele resolveu abandonar as delícias palacianas para viver modestamente, em
peregrinação e contemplação. Ainda mais tendo sido instigado a isso pelo próprio Buda naquela
divina aparição.
Sendo assim, numa bela manhã de verão, com o consentimento conformado do pai e os
sentimentos chorosos da mãe, deixou o palácio onde sempre tinha vivido. Atravessou os portões
da Cidade Sagrada em busca do mundo exterior imenso e desconhecido. Mas não andou a esmo,
como uma borboleta mística e desnorteada, arrostando os perigos. Mesmo porque levava uma
bolsa cheia de ouro, uma pequena escolta, um passaporte diplomático com o selo do próprio
imperador e a recomendação que toda legação da China que fosse procurada pelo rapaz prestasse
a ele integral assistência. Quer dizer, o jovem peregrino estava insatisfeito com o seu mundinho
mas não era louco de enfrentar os perigos do mundão lá fora só com a fé e a perseverança. Pelo
menos até adquirir mais experiência e fortalecer a convicção de que era aquilo mesmo que queria.
Também havia um plano muito bem traçado: iria direto para a Índia, o berço da religião por onde
pretendia aperfeiçoar sua formação teológica e aprofundar os seus estudos, aperfeiçoando seu
acesso às revelações da divindade. E assim foi. Não era muito longe e o jovem Chin chegou ao
seu destino inicial sem maiores percalços embora tivesse que cruzar altíssimas montanhas, áridas
e geladas. Também não teve dificuldade em ser admitido como noviço no templo de BodhGaya,
quer dizer, no local exato em que Buda havia sido iluminado. Também ele precisava de um pouco
disso, daí o destino escolhido. Parece estranho que um jovem chinês tivesse conseguido tão
facilmente uma vaga tão disputada. Explico: é que ele foi ajudado pela cartinha de recomendação
que prudentemente tinha trazido de casa e essas coisas já funcionavam naquele tempo, até porque
o magnífico templo havia sido construído e era mantido pelo estado imperial da Índia, sempre
carente de uma política de boa vizinhança com a China. E lá se quedou o jovem Yun Tsan Chin,
trabalhando duro em posição iogue, à espera da revelação prometida.
Em pouco tempo tornou-se monge graduado, mestre nas interpretações dos textos divinos.
Mas quinze anos se passaram sem que o piedoso monge conseguisse obter a revelação de que
carecia para levar sua missão a bom termo, embora não fizesse outra coisa a não ser jejuar, rezar,
meditar e pedir inspiração. Mas nada do Buda aparecer.
Por mais piedosa que seja uma missão e por mais tenaz que sejamos em levá-la adiante, há
dias em que a paciência fraqueja e questiona o sentido do denodo. Foi num dia desses que mestre
Chin ficou conhecendo um monge italiano que lhe inspirou um caminho alternativo em busca da
ansiada revelação. Falo do frei Giuseppe de Sasso-Ferrato. Era ele de origem nobre, nascido em
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Veneza e que ultimamente tentava ganhar a vida como capelão de navios mercantes, especialista
em rezas para acalmar mar bravio. Já havia feito inúmeras viagens da Europa à Ásia e gostava do
mar. Mas agora estava estacionado ali na Índia, em situação precária, vivendo quase como
indigente. É que vinha encontrando certa dificuldade em conseguir trabalho. Sua fama de
beberrão, trambiqueiro e mulherengo já havia se espalhado pelos portos. Mas frei Giuseppe era
também muito erudito. Tinha estudado em Paris e em Salamanca. Cultivava grande interesse pelas
religiões orientais e falava bem os idiomas eruditos de chineses e indianos. Justamente aqueles dos
textos sagrados das crenças orientais.
Um belo dia o frade cristão estava perambulando pelo templo budista à procura da
biblioteca quando, por uma daquelas maravilhosas obras do acaso que viabilizam as lendas, acabou
conhecendo mestre Chin e, em pouco tempo, se tornaram bons amigos. Não podia ser diferente,
já que frei Giuseppe, de há muito se interessava pelo budismo e mestre Chin acabou se
interessando pelo cristianismo, esperançoso de que talvez conseguisse descobrir alternativas em
outras religiões que pudessem ajudá-lo a captar a inspiração divina de que estava carecendo. De
sorte que eles resolveram fazer uma parceria ecumênica. Para o frade foi também uma salvação
terrena imediata pois conseguiu cama e comida boa e de graça, hospedando-se no próprio templo
como convidado especial. Mas o frei italiano não tinha o sangue de um monge oriental. Ao
contrário, tinha sangue italiano e, agitando ainda mais sua índole, já havia adquirido sangue de
marinheiro também. Assim, depois de meia dúzia de meses naquela pachorra espiritual
improdutiva, achou que já estava na hora de tentar se fazer ao mar novamente. Tinha tido notícia
de que uma nau portuguesa estava prestes a zarpar de Bombaim com destino à Europa. Mas havia
um problema: não tinha um níquel na bolsa. Foi aí que teve uma grande ideia. Ele e mestre Chin
poderiam ir juntos para a Europa. Poderiam visitar mosteiros, conversar com grandes mestres da
igreja católica. Quem sabe recorrendo aos teólogos cristãos o bom monge budista não encontrasse
sua fugidia inspiração?
Com essa ideia na cabeça o frade foi procurar o monge e, para encurtar a narrativa, a
proposta foi aceita com entusiasmo, melhor dizer com um pequeno aceno de aprovação, pois
monge budista não se entusiasma com facilidade. Parece incrível que em tempos tão remotos um
budista aceitasse buscar inspiração na igreja católica. Mas assim foi de fato e posso fundamentar
os motivos. Em primeiro lugar nunca houve disputas políticas entre cristãos e budistas, vai daí que
não havia impedimentos históricos. Em segundo lugar, não havia nenhuma incompatibilidade de
fé entre os seguidores de Buda e de Cristo. Terceiro: mestre Chin estava desesperado, já temeroso
que o próximo passo fosse um mergulho tenebroso no abismo da descrença. No princípio parecia
que a ideia era inviável pois não havia dinheiro, essa vil dificuldade de sempre. Todo aquele ouro
que o jovem peregrino tinha trazido de casa havia sido doado ao mosteiro. Mas Yun Tsan Chin
não teve dificuldade de encontrar a solução. Aliás, ela estava sempre ao alcance da mão. Poderia
simplesmente procurar a legação da China com aquela poderosa carta de recomendação do
imperador, pedindo ajuda para visitar a Europa. Assim foi feito e assim o problema foi resolvido
com atenção e presteza. Teria ajuda não só para a viagem como também para tudo que fosse
necessário durante a estadia. Obter uma licença para se afastar do templo por uns tempos foi até
mais difícil, mas também foi conseguido pois todos no templo tinham muita expectativa em
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relação ao sucesso da missão de mestre Chin. De sorte que, com tudo devidamente arranjado,
numa bela manhã de domingo, com vento inteiramente favorável, lá foram os bons homens,
embarcados na nau portuguesa em direção a Europa.
Chegaram em Lisboa, sem maiores incidentes e dali, também sem maiores percalços, se
puseram a percorrer o continente escorados no valioso apoio incondicional das legações
diplomáticas chineses. Quanto mais sentia apoio mais frei Giuseppe se entusiasmava e mais visitas
ia incluindo no roteiro. Desta forma a peregrinação parecia meio desnorteada e certamente estava
sendo improdutiva, confundido intenções piedosas com um pouco de turismo. Mas mestre Chin
seguia paciente e esperançoso, talvez confiando muito mais do que devia.
Mas eis que um dia, depois de uma viagem verdadeiramente penosa, o monge e o frade
foram ter num mosteiro isolado, plantado no alto dos Alpes Italianos. Era o lugar certo,
finalmente. Ali vivia recluso um frade de avançada idade chamado frei Damien. Dizem que o
próprio papa havia determinado que ele vivesse confinado sem se comunicar com o mundo
exterior e era por isso que vivia ali, tão longe de tudo. O religioso tinha se tornado famoso pela
sabedoria e inteligência nas sagradas escrituras e na teologia revelada pelos doutores da igreja. Era
tido como um santo homem que, pelas suas virtudes, costumava ter visões em que Jesus Cristo
lhe aparecia e lhe fazia revelações teológicas e litúrgicas absolutamente inovadoras. Tão inovadores
que, a baixa voz, se comentava que o papa temeu pelo futuro da igreja se elas fossem reveladas.
Teria sido por isso que resolvera encerrar frei Damien naquele remoto convento. Ultimamente o
frade se encontrava muito doente e, por suas condições de saúde e obediente às determinações
do papa, num primeiro momento recusou receber os visitantes. Mas acabou concordando depois
de muita insistência e persuasão de frei Giuseppe que nisso era muito habilidoso. Contudo o velho
frade só poderia receber um dos dois viajantes. Claro que o frei italiano tinha que ser o escolhido
pois mestre Chin, mesmo sendo o pivô da história, não dominava as línguas europeias.
A conversa entre os dois frades durou apenas dez minutos, tempo que o monge budista
gastou contemplando admirado as abóbodas góticas da capela do convento. Quando frei
Giuseppe voltou da entrevista com o velho frei Damien trazia estampado no rosto um sorriso
estranho que, de qualquer forma, devia indicar que a conversa havia sido proveitosa. E de fato foi.
Tanto que os dois homens resolveram partir imediatamente em direção a Roma, pois era lá que
estava a solução do problema que dera moto àquela peregrinação. Finalmente a busca parecia estar
caminhando para um final de sucesso. É que o velho frade moribundo tinha feito uma incrível
revelação: havia simplesmente descoberto uma forma infalível de comunicação direta com Deus.
Mas o mais incrível ainda é que ele tinha concordado em contar o segredo a frei Giuseppe. Parece
estranho tanta confiança assim de repente, mas foi exatamente isso que o frei cristão contou ao
monge budista. O segredo revelado era simplesmente surpreendente. A chave era um sino! Sim,
um sino. Não um sino qualquer, evidentemente. Mas um sino de predicados divinos que quando
tocado emitia um som tão transcendental que invadia os sentidos, abria a alma de forma
exuberante e predispunha a inteligência às reflexões mais profundas. Está certo que havia um
macete importantíssimo que funcionava como um complicador, mas também isso frei Damien
havia concordado em revelar naquele acesso repentino de confiança e compulsão falastrona. O
tal macete é que o sino só funcionava para gerar a conexão divina quando tocado em elevadas
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altitudes. Isso porque a rarefação do ar era fator indispensável para se atingir o timbre certo do
toque elevador.
Finalmente. Era exatamente o que mestre Chin procurava. Claro que não havia certeza se
aquilo funcionaria com um não católico e numa atmosfera budista, mas carecia experimentar.
Rumo a Roma, portanto! Mas, para ser mais exato, não foram para Roma propriamente atrás de
um sino, já que o único exemplar que existia tinha sido confiscado pelo vaticano. Contudo – mais
um lance de sorte - frei Damien também havia revelado o nome da fundição que tinha fabricado
o sino. Já havia se passado muito tempo, mas pode ser que ela ainda existisse e se dispusesse a
fabricar outro sino com a mesma especificação. E era para lá que tinham que ir. E foram tão
céleres quanto puderam. Chegando à Cidade Eterna combinaram que o monge budista ficaria
rezando pedindo proteção divina para o sucesso da empreitada enquanto o frade cristão iria tentar
encontra a tal fundição.
Três longos dias se passaram e, ao final deste tempo, as orações e jejum do chinês e a
tenacidade do italiano acabaram dando bom resultado. Frei Giuseppe voltou na madrugada do
quarto dia e encontrou mestre Chin acocorado numa esteira, sonolento tentando rezar. Contou
ao parceiro que havia encontrado a fundição. Na verdade tinha acontecido um verdadeiro milagre:
encontrou um sino já pronto, exatamente como o que havia pertencido a frei Damião. Contudo,
lamentava relatar que um grande problema poderia dificultar as coisas: o fundidor estava pedindo
uma verdadeira fortuna pelo raríssimo sino. Ao ouvir isso mestre Chin sorriu satisfeito. Na
verdade, se não fosse um monge budista teria saído pulando. Claro que a questão do preço não
seria problema, possuindo ele aquela poderosa carta do imperador. E era isso mesmo que o frade
italiano esperava. Das minúcias do resto, cuidou a embaixada da China.
Não houve mais procura nem delongas, a missão estava cumprida. De sorte que, poucos
dias depois daqueles alvissareiros fatos, o monge embarcava para o oriente com o sino a bordo,
cuidadosamente embalado. Carregava enorme carga de fé e nem deu bola para a estranha inscrição
estampada no sino: Ora pro nobis pecatoribu. No cais ficava frei Giuseppe sorridente e com a bolsa
cheia de dinheiro. É que ele havia pago uma verdadeira ninharia pelo sino, comprando-o de um
conhecido ladrão de capelas do interior da França. Assim, o lucro da revenda ao monge extasiado,
tinha sido substancial. O suficiente para permitir que frei Giuseppe de Sasso-Ferrato,
trambiqueiro, beberrão e mulherengo pudesse viver folgadamente por muitos e muitos anos. E
assim foi nessa vida. Na outra, não sei.
Mestre Yun Tsan Chin mudou-se para o Tibet em busca do ar rarefeito necessário a fazer
o sino funcionar com correção. Construiu uma capelinha em lugar não sabido e lá instalou o sino.
Nunca mais se soube dele. Mas há quem diga que naquelas altas montanhas em dias sem ventos
e borrascas ainda é possível se ouvir um sino tocando ao longe cheio de melancolia e esperança.
OPALINA
No ano de 2222 o mundo tinha virado um só. Não que acabassem as nacionalidades, mas
a globalização tinha chegado a extremos. Tudo estava à porta de casa qualquer que fosse a
distância. Ainda havia governos locais, mas sua função era meramente administrativa. Quase não
havia mais diferenças étnicas embora ainda houvesse resquícios daqueles traços hereditários que
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costumavam diferenciar grupos de pessoas como cor da pele, proeminência dos lábios ou da
fronte, consistência e cor dos cabelos. Mas graças aos triunfos da engenharia genética aplicada aos
humanos isso estava caminhando para a extinção. O estado, como tal, havia se tornado único e
onipresente e alcançava todos os recônditos do planeta. Criava as normas e garantia sua execução
com total eficiência e completa eficácia. Havia uma cúpula mundial – “O Comitê” – zelando por
tudo e por todos, vitalícia e hereditariamente. O foco era o bem estar total dos cidadãos. Quer
dizer, saúde, conforto, segurança, ocupação, lazer e educação. Com relação a esta última, cabe
algumas observações específicas. O estado onipresente era populista e autoritário. Sim, pois só
assim tinha se tornado possível garantir conforto a toda a humanidade, sem nenhuma exceção. O
modelo tinha triunfado, contrariando todos os prognósticos advindos de terríveis experiências
com tiranias passadas ao norte e ao sul. Ainda, como no passado, a educação era o ponto mais
infame: restrita no conhecimento, na análise e na crítica. Mas, fora isso era tudo quase perfeito:
não havia doenças, as pessoas tinham emprego garantido e não havia escassez de nada. E o povo
aceitava e seguia as regras estabelecidas, pleno de saúde, conforto, segurança, lazer e tolerante para
com a educação que lhe davam e conformado com o controle quase absoluto das formas de
pensar. Decorre daí que não havia nenhum tipo de rebeldia, pelo menos que fosse dado conhecer.
Mesmo porque, resquícios nocivos da natureza humana eram tenazmente controlados através de
propaganda intensiva e, sobretudo, de doses suaves de Opalina. Está certo que até existia a pena
de morte para crimes contra o estado, mas ela nunca chegou a ser aplicada e seria até um
contrassenso se isso chegasse a ser necessário.
Difícil dizer se o povo era feliz pois esse conceito já havia sido banido há muito tempo, no
bojo de uma reforma que também extinguira a filosofia e a religião do acervo das conquistas
espirituais da civilização. Enfim, havia uma espécie de acordo tácito entre a sociedade e o estado,
e ele não se rompia. Era assim a nação, em seu novo conceito. Desta forma, a lealdade era plena
e a contestação parecia inexistente. No geral, de fato não havia crises, até porque o estado era
extremamente eficaz como provedor das necessidades essenciais do ser humano e no fundo era
isso que a grande maioria queria. E essa vontade prevalecia para contentamento geral.
E aqui prevejo que os leitores mais inquietos já devem estar perguntando, como tinha sido
possível tanta perfeição. A resposta é simples. É que tinha sido alcançado um equilíbrio absoluto
dos fatores que compõem a dinâmica das mudanças sociais. Finalmente se tinha alcançando o fim
da História. Quer dizer, não havia mais necessidade do progresso, pois ele já era pleno e
exuberante. A fórmula de tão retumbante conquista se baseava na simples estabilização do
crescimento populacional, ou seja, numa política demográfica absolutamente matemática, tão
singela quanto a própria lógica dos cálculos mais elementares. Desta forma, tinha sido decretado
pelo “O Comitê” que o número de pessoas que nasciam tinha que ser igual ao mesmo número de
pessoas que morriam. E mais: devia ser mantida a estabilidade das faixas etárias. Desta forma era
totalmente possível controlar o número de empregos, aposentadorias, demandas de saúde e
educação que tinham que ser providos pelo estado. Simples assim! Claro que tiveram que ser
adotadas algumas medidas pragmáticas que seriam inadmissíveis no passado, vale dizer naquele
tempo em que o mundo era cheio de governos fracos e pessoas assustadas. Por exemplo, seria
inimaginável pensar em 2012 que as pessoas pudessem ser sumariamente exterminadas quando
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completassem oitenta e cinco anos de idade. Mas assim era no ano 2222, nesse admirável mundo
que acabo de esboçar. Isso posto, tem começo a nossa breve história.
O pivô da história é do sexo feminino e se chama Maria Dededado Vintesete. Acaba de
completar oitenta e cinco anos de idade. Goza de perfeita saúde pois doença não há mais e o
envelhecimento é muito um mero registro cronológico do que uma decadência cruel. Mas isso
não importa, ela atingiu a idade limite, vale dizer, tornou-se elegível ao extermínio. Contudo não
está nem um pouco receosa da sua inexorável condenação. Foi preparada para isso desde que
nasceu. Foi exaustivamente doutrinada e é uma cidadã exemplar, como aliás todos são. Além disso,
tomou disciplinadamente suas doses de Opalina e passou todos os dias da sua vida serena e
confortável. Acha que o preço valeu. Sabe exatamente o que lhe vai acontecer já que isso é público
e notório e é tudo encarado como uma coisa normal tal como ir para a escola, começar a trabalhar,
casar, ter filhos e se aposentar. Meras rotinas da vida.
O processo de extermínio é maravilhosamente racional e até poderíamos dizer
perfeitamente “humanizado”. Maria vai ser internada numa instituição especializada e passará a
tomar doses aumentadas de Opalina. Em consequência vai entrar num processo crescente de bem
estar e sonolência até que num dia incerto receberá a dose fatal. Morrerá serena e confortável e
sabe que não irá nem para o céu nem para o inferno, apenas dormirá para sempre.
Tudo começa com uma visita de um agente do estado denominado eufemisticamente de
“Agente da Terminação” e que, se fosse hoje, o povo certamente apelidaria de “Anjo
Exterminador”. Mas naquele tempo já não havia mais sarcasmo e nem piadas políticas. O leitor
até pode achar estranho que num futuro tão espetacular ainda se transmitissem mensagens através
de visitas pessoais. A dúvida é pertinente, mas há uma explicação. Digamos que tal expediente era
raro, porém ainda usado em situações especiais. Afinal era uma forma do estado imprimir mais
formalidade às coisas muito importantes. Há de se concordar que a morte é uma dessas situações
e então ainda era, apesar da nova conotação. Desta forma, na mesma semana em que Maria
completara a idade limite, lá estava o Agente da Terminação batendo à sua porta. Ela o atendeu
com um mínimo de emoção, tal como hoje atendemos a um carteiro que traz uma conta atrasada.
Tinha tudo planejado, como aliás era o costume: teria uma semana para se despedir da família e
amigos, depois era seguir para o local destinado e aguardar o desfecho, simples, inconsciente e
indolor. Mas ela teve uma grande surpresa. Havia novidades que mudavam tudo no seu futuro
sem futuro. É que o “O Comitê” havia decidido recentemente que a idade limite do extermínio
seria aumentada de oitenta e cinco para noventa anos. Alguns leitores podem achar que ela devia
ter ficado feliz, mas posso assegurar que, no primeiro momento, o que ela ficou mesmo foi
perplexa. Sim, não contava com aquilo. Não estava preparada para viver um pouco mais. Quis
saber detalhes. O agente, contudo, não sabia deles e apenas informou que eles seriam enviados
em seguida, pela via eletrônica. De fato, assim que retornou à sala, já encontrou uma mensagem
do ministério competente naquele assunto. Informava que por questões estratégias o “O Comitê”
havia decidido aumentar provisoriamente a idade limite da terminação em cinco anos. Explicava
que estava havendo problemas com a taxa de natalidade e não era conveniente reduzir a população
pois isso implicaria numa redução do nível da produção mundial. Era uma situação provisória já
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que em cinco anos o número de nascimento seria normalizado. Essa havia sido a política adotada
pois o “O Comitê” repudiava uma intervenção mais radical no processo.
No princípio ela até sorriu, pois achou irônico que os velhos tivessem sido escolhidos para
manter o equilíbrio populacional simplesmente porque os jovens estavam com preguiça de
procriar espontaneamente. Mas, rapidamente o sorriso inicial deu lugar a uma contração facial,
denotando enorme contrariedade. Na verdade Maria Dededado Vintesete estava começando a
entrar num estado de desalento profundo, coisa desconhecida para ela. Antigamente esse estado
seria diagnosticado como depressão, contudo essa doença então já era considerada erradicada,
como aliás todas as outras. Afinal a Opalina dava remédio a todos os males da alma, conhecidos
e ocultos. A droga tinha sido descoberta depois de anos de pesquisas com cruzamentos genéticos
de papoula com peiote. O resultado, depois de sintetizado, vinha sendo usado há um século com
sucesso absoluto. Assim o médico consultado sobre aquela anomalia mental de Maria ficou
desnorteado e a prescrição não podia ser outra que senão o aumento da dosagem do fármaco
maravilhoso. Mas, por incrível que pareça, o mau não desapareceu. Ao contrário, o estado da
paciente se agravou rapidamente. De sorte que a pobre senhora teve que se virar sozinha com
aquele mal súbito e estranho: vontade de morrer antes da hora determinada pelas razões do estado.
Coitada, assim abandonada e desacostumada a procurar soluções por sua própria conta, não teve
sucesso. Só declinou e em pouco tempo entrou em desespero, coisa já banida da existência humana
e suprimida dos compêndios médicos. Um mês depois do início do mal foi encontrada morta,
eletrocutada na banheira eletrônica. A desativação do sistema de segurança da tal banheira
mostrava sua patente intenção de se matar daquele jeito. O fato, claro, foi mantido oculto.
Convenhamos que não podia ser diferente. Afinal como explicar um acontecimento que já não
ocorria há mais de cem anos? Ato contínuo o “O Comitê” nomeou uma comissão especial para
estudar a questão com trinta dias de prazo para apresentar um relatório, sem chance de
prorrogação pois a questão era urgente. A dita comissão tocou a trabalhar de forma insana e,
dentro do prazo, produziu um relatório competente, exato e... assustador. Foi taxativo e sincero.
Concluía que as medidas de controle social do estado através da Opalina e da propaganda
intensiva, ao contrário do que parecia, era falho. O motivo era simples. É que, como mostravam
os antigos manuais de ciências sociais, havia traços da natureza humana impossíveis de serem
anulados tais como: o livre-arbítrio, o desejo de autor realização e o medo do incerto. Forçoso
reconhecer que o modelo de organização que havia sido implantado e que vinha sendo mantido
pelo o “O Comitê” há mais de dois séculos sufocava e anulava todos os esses poderosos impulsos
naturais tendendo a causar nas pessoas uma enorme frustração. Essa frustração, todavia, até então
tinha permanecido latente. Isso devido a dois fatores. Em primeiro lugar o próprio bem estar
proporcionado pelo estado e em segundo lugar a certeza de que a vida não seria muito longa o
que prevenia o temor das pessoas de que esse bem estar paradisíaco viesse a ser tornar
terrivelmente enfadonho. Maria Dededado Vintesete tinha se auto exterminando porque, mesmo
de forma inconsciente, não tolerou a ideia de que teria que viver mais tempo naquele mundo
confortável, mas ao mesmo tempo vazio e frustrante. Ou seja, qualquer que fosse o grau de
conforto, havia um ponto de ruptura após o qual a vida tendia a se tornar intolerável. Era uma
contradição autodestrutiva incrustada no modelo como uma bomba relógio. Pode ser até que
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algum membro do conselho tenha achado que aquele ponto crítico insanável era um castigo divino
para a tentativa de criação de um paraíso na terra. Mas isso é pouco provável pois, naquele tempo,
a crença na existência do céu já estava inteiramente em desuso.
O relatório era extremamente objetivo, competente e útil. Mas não se pode dizer que o “O
Comitê” o recebeu agradecido e sereno. Deu-se, na verdade, o contrário. Aqueles senhores sempre
seguros e arrogantes quase entraram em pânico. A primeira providência que tomaram foi dar um
sumiço nos membros da comissão. Não era uma simples questão de matar o mensageiro que havia
trazido a notícia ruim. É que o relatório era explosivo demais para que seus autores continuassem
vivos.
Tomada a drástica e urgente providência o “O Comitê” ficou quieto como se nada tivesse
acontecido, fiado no aforismo de que “o que não tem solução, solucionado está”. Leviana atitude,
contudo, pois logo chegaram notícias de que novos suicídios estavam pipocando aqui e ali entre
os idosos beneficiados com a prorrogação dos cinco anos. Pensaram em ameaçá-los com a pena
máxima para crimes contra o estado. A ideia não prosperou pois não tinha sentido ameaçar aplicar
a pena de morte em pessoas para impedi-las de se matarem quando era exatamente isso que elas
queriam.
Alguns meses se passaram, os altos dirigentes do estado continuam amargando o problema
e os suicídios ocorrendo. Até já está contaminando faixas etárias mais jovens. Dizem que alguém
do “O Comitê” está pensando em propor a reabilitação da religião, incentivando a formação de
padres, pastores, pregadores e rabinos e a criação de alguns templos. Parece um retrocesso, mas
faz algum sentido. Quem sabe um pouco de fé possa ajudar a preencher alguns vazios?
O TRIUNFO DE GRETA GARBO
O acontecimento teve ampla repercussão, até pelo inusitado. Seis meses antes da data marcada
para seu início já ocupava muito espaço na mídia e suscitava assunto nos falatórios domésticos
das copas e cozinhas. A despeito disso, na televisão teve impacto restrito. Nem podia ser de outra
forma pois era exatamente uma rede de televisão que promovia o evento e as partes concorrentes
fingiram que ele não existia. Era assim a reciprocidade daquela gente, direta e grosseira. O resto
ficava com o povo e seus controles remotos. De toda forma o acontecimento pôde ser taxado de
incomum com toda a propriedade e estava fadado a ser inesquecível. Despertou muita curiosidade
desde o começo. Sim, pois o propósito entusiasmou muito algumas figuras conhecidíssimas do
mundo artístico e elas aderiram em peso. Não todas, pois havia critérios rígidos de seleção, a
começar pela quilometragem rodada nas estradas do sucesso. Era esperada a grande adesão que
de fato aconteceu. Afinal, tudo foi feito para essas tais figuras e elas precisavam mesmo daquele
bendito estímulo. E acertaram: o público em geral quis seguir de perto os lances do evento. De
fato assim foi e depois de tudo o que aconteceu, pode-se dizer que foi mesmo um festival
memorável.
No eixo da ideia da promoção estava a comemoração dos cento e vinte anos do notável
comunicador e empresário bem sucedido Celso dos Anjos. Exatamente o dono da tal rede de
televisão patrocinadora do encontro. Mas não era só isso. Muito mais nobreza estava por trás de
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um simples natalício. Tratava-se, em essência, de um encontro memorável de artistas. E artistas
muito especiais, distinguidos pela sua notável persistência, ou talvez insistência. Mas havia gente
maldosa que os classificavam como: “a turma que não quer largar o osso”. Seja como for, o evento
tinha um belo fundamento filosófico que estava expresso na seguinte frase: “o talento é eterno”.
O dístico parece óbvio e simples. Mas não é. Custou caro chegar a essa coisa tão criativa. De certo
pois, para a campanha promocional do evento, havia sido contratada a melhor agência publicitária
do país e, dentro dela, mobilizada a melhor equipe de criação e inovação. “O talento é eterno”. De
fato a ideia era provar que os artistas verdadeiramente talentosos podiam produzir e encantar seus
públicos indefinidamente, vale dizer, anos e anos a fio, pois eles não tinham idade. Cabe salientar
que o conceito de artista adotado no caso tinha significado estritamente popular, ou seja, abrangia
apenas músicos e atores. Mas também escritores, pintores e até esportistas adeptos do espírito da
coisa iriam participar como convidados especiais. Claro que, como os participantes principais,
também tinham que ser tenazmente agarrados ao escorregadio osso da fama. Mas, adicionalmente,
o acontecimento tinha uma certa motivação política e um endereço certo. Era um desagravo. Não
a desfeitas que pudessem ter sido feitas diretamente ao Celso dos Anjos e seu 1,2 centenário de
vida, dos quais noventa e cinco tentando animar um programa de auditório. Mas indiretamente
sim, pois mirava aqueles artistas que já tinham mais de sessenta ou setenta anos de estrada e
continuavam firmes perseguindo o público com seus eternos remarques de si mesmos. E a
motivação do ato era plenamente justificada. É que essa turma pertinaz vinha sendo muito criticada
por uma nova geração independente que os satirizavam e ironizavam, alegando que estavam se
tornando enfadonhos e não conseguiam produzir mais do que marmitas requentadas. E mais: eram
dignos de pena e era por pura piedade que o público os via e ouvia e por isso ainda os tolerava.
Passional e contundente. Exagerado, por certo, pois os fãs costumam ser conservadores e fieis aos
seus ídolos passados. De sorte que com um retoque aqui, uma cerzida acolá a turma ia levando
garbosa, migalhando o sucesso e ajudando a prole de seus peixinhos. Devo jurar que não tomei
partido na controvérsia e estou apenas fazendo um registro do que ia de um lado e do outro. Assim
seria justo mencionar que, na contrapartida, os tais da nova geração eram chamados de frustrados,
incapazes, herméticos, difíceis, bichas, dependentes de subsídios públicos e coisas assim. De fato
não tinham a simpatia da grande mídia e nem do chamado grande público. Esses, sempre muito
sentimentais e tolerantes. Mas o espaço dos jovens mordazes vinha crescendo e começava a
preocupar. Mesmo porque o talento não é mesmo eterno e, no fundo, aqueles sobreviventes já
começam de fato a talhar como leite de gamela. Sendo assim, a ideia do evento era mais do que
oportuna, pelos menos aos seus propósitos e propositores, Celso dos Anjos à frente. Falemos um
pouco dele. Como dito, estava completando cento e vinte anos. Mais precisamente no dia do
encerramento do evento. Incontáveis foram as plásticas pois essa gente depende muito da imagem
e essa não se congela como se fosse um videoteipe. Após cada plástica aumentava a boca e
diminuam os olhos do Celso. Já estava parecendo um peixe. Mas tudo bem, julgava-se amado e
sobretudo eterno. Para manter os órgãos vitais - aqueles que não aparecem - em bom
funcionamento, também estava cercado de cuidados. Atualmente alimenta-se exclusivamente de
complexos vitamínicos especialíssimos, importados a peso de ouro. Mas funcionam pois ele
continuava firme no seu programa de auditório, a despeito da pífia audiência. Aos seus negócios
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não se dedica mais pois aí a coisa já é um pouco diferente, as aparências não importam e peroração
não resolve problemas. Mas continuava rico e podia se dará aos luxos. De sorte que resolveu
patrocinar aquele evento um tanto insensato e, cá pra nós, sem nenhuma importância.
A programação previa que na abertura lá estaria ele com seu sorriso escancarado estampado na
cara de peixe. O traje escolhido para a fala inaugural seria um jaquetão azul marinho sóbrio, daqueles
que enchem de autoridade um gangster ou um senador. O dia: véspera de seu aniversário. O local:
um hotel badalado à beira mar. Os participantes: centenas dos tais artistas decrépitos e insistentes e
os convidados oficias, além evidentemente de milhares de curiosos ali e acolá
O evento havia sido estruturado por categoria e desde modo distribuído pelos espaços do hotel.
No complexo lilás do centro de convenções compositores e cantores da década de setenta ainda em
atividade. Um misto de shows, palestras e debates. Prometiam velhos sucessos e canções – chamadas
eufemisticamente – de novas. No complexo azul-piscina se reuniriam os atores de teatro, cinema e
televisão. Mas havia também um espaço destinado a exposição de produtos pertinentes à natureza do
encontro, tais como clínicas de rejuvenescimento e plástica, aparelhos de fitness do tipo mais light,
turismo para a terceira idade, complexos vitamínicos, venda antecipada de ingressos para shows dos
novos-velhos baianos, de uma sambista centenária, de um cantor romântico nonagenário. Sem falar
numa ex-modelo setuagenária e seus programas infantis.
O acontecimento começou com um imprevisto: a abertura teve que ser adiada. O pretexto foi
que Celso dos Anjos teve que atender a um compromisso urgente, importantíssimo. Chegou a circular
rumores de que tinha sido convocado ao planalto. Mas no dia seguinte bem cedo, quando ele chegou,
ficou evidente que o motivo era bem outro. É que o cara estava bastante baleado, por imposição
mesmo da idade. Desceu do carro e caminhou escorado nos seus assistentes, arrastando as pernas
meio cambaleante. Claro que mesmo assim não deixou de acenar aos fãs e brindá-los com o infalível
sorriso largo cheio de dentes, plantando no meio da cara de peixe. A abertura seria à noite. Assim o
resto do dia foi só de badalação e fotos para a imprensa. E nessa hora havia de tudo, pois exposição
à mídia é uma compulsão inata a todo brasileiro independente de cultura ou idade. Havia de tudo
como dito: filhos de famosos em pleno processo de promoção nepótica, um escritor famoso exibindo
sua plástica recente e evidente, o famoso jogador de futebol idem, um compositor centenário
enlaçado como uma mocinha de tenra idade, uma atriz de televisão igualmente centenária arrastando
uma cabeleira loura enorme e coisas quitais.
Mas o mais sensacional da chegada de Celso dos Anjos não foi a chegada dele propriamente e
sim a aparição, naquele exato momento, de uma outra pessoa que, como se diz, acabou roubando
a cena. Mas foi tudo uma absurda coincidência. Até porque a dita pessoa não sabia daquele evento
e se soubesse certamente teria evitado aquela aparição pois prezava como ninguém o recato e a
discrição. E sempre foi assim, não obstante a enorme fama de que gozava em todo o mundo havia
muito tempo. Na verdade tinha aparecido por força das circunstâncias, levada pelo propósito de
fazer uma singela transação cambial. Estava visitando a região e precisava converter dólares na
moeda local para pequenas despesas de viagem. O veículo estacionou um pouco afastado do
epicentro da apoteose, exatamente para não chamar atenção. A pessoa em questão nem desceu do
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carro. A porta do veículo se abriu, o motorista desceu apressado e entrou no hotel em busca do
setor de câmbio. As janelas do carro estavam com as cortinas cerradas tentando preservar a
intimidade do interior. Mas em se tratando da hora e local o detalhe foi contraproducente. Teve
efeito contrário: o detalhe atraiu a curiosidade dos fãs. Acresceu-se a isso o fato do carro ser um
modelo da década de trinta e estar em incrível estado de conservação, com pintura e cromos
luzentes e uma faixa branca sem manchas contornando os pneus. De sorte que o impacto foi
grande na multidão suscetível. Um se aproximou, outro o seguiu e mais outro. Enquanto isso Celso
dos Anjos já entrava no elevador, liberando todos para buscarem uma nova atração por enquanto.
O carro acabou cercado. Alguém mais ousado e insolente tentou abrir a porta traseira. Não foi
impedido pela frágil criatura que estava sentada no banco de couro vermelho e olhava tudo aquilo
assustada e imóvel. Nem teve a iniciativa de travar a porta. De sorte que a dita porta se abriu e
todos puderam ver quem estava dentro. Era uma moça belíssima. O impacto causado pela figura
descortinada foi imediato e surpreendente. Não podia ser diferente: além da beleza incomum a
moça não tinha cores, era em preto e branco. Num primeiro momento estupefação e
deslumbramento. Mas ninguém a reconheceu de imediato. Quem era aquela afinal. O branco da
dúvida durou apenas alguns segundos. É que um fotógrafo presente – para sorte dele e minha também era um cinéfilo apaixonado e conseguiu identificá-la com muita facilidade. Abriu a boca
incrédulo e gritou estupefato: É Greta Garbo! Muitos não sabiam quem era a dona daquele nome.
O detalhe não fez diferença, todavia. A multidão urrou e os flashes espocaram com fúria. Infeliz
Greta Lovisa Gustafson, a imortal atriz hollywoodiana nascida em Estocolmo em 1905: aquilo era
o que mais procurava evitar. Mas não teve jeito. Foi cercada e, ato contínuo, um tumulto se
estabeleceu rapidamente. Eis, porém, que um grupo de seguranças altamente treinados para essas
eventualidades se aproximou rapidamente e controlou a situação com truculenta habilidade. Nem
tiveram muito tempo de saber quem era ela e agiram quase que por extinto. Cercaram-na, a
conduziram ao interior do hotel e a encerraram na sala de imprensa como uma prisioneira. Ao
saber do incidente Celso dos Anjos ficou encantado. Ele também era um grande fã de Greta. Mas
também havia um lado mais prático a instigar seu interesse. Podia fazer dela a própria
personificação do eterno talento. Afinal até hoje ela ainda provoca paixão naqueles que assistem
seus filmes. Assim pensando deu ordens para que a estrela fosse instalada numa suíte especial,
cercada de flores, champanhe e chocolates. Ela quis recusar o convite mas não teve como, não
tinha como sair dali em segurança. Muito a contragosto, mas com serenidade e elegância deixouse conduzir a suíte. Lá tomou um banho morno e procurou relaxar. Não conseguiu, mas ao
observar a multidão ainda agitada da janela achou melhor se conformar e aguardar com paciência.
Seja como for, estava muita assustada e chorou um pouquinho sentindo-se só, bem no meio do
fim do mundo. Ironia do destino: estava ali exatamente para procurar um refúgio. Há décadas que
se escondia do mundo e agora se expunha daquele jeito. Mas enfim, tinha que enfrentar aquele
pesadelo e desempenhar o papel da sua vida da melhor maneira possível.
Passado o impacto imediato daquela incrível surpresa o assunto tomou a pauta do dia. Contudo,
não chegou a estorvar a programação e as coisas seguiram como estava previsto. Enquanto isso a
equipe de Celso se reunia em caráter extraordinário e procurava encontrar a melhor forma de
aproveitar aquela raríssima oportunidade para engrandecer o evento e dar-lhe repercussão mundial.
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Claro que, na cabeça, deles Greta tinha que aparecer ao lado do patrão. Finalmente, aos cento e
vinte anos de idade, surgia a grande chance para a glória de Celso dos Anjos alcançar o mundo
inteiro. A primeira incumbência que a equipe recebeu do chefe foi pesquisar mais coisas sobre a
atriz. Isso foi rapidíssimo, bastou consultar o Wikipédia. Então todo mundo ficou sabendo dos
detalhes do exílio voluntário que Greta Garbo se decretou em pleno viço dos seus trinta e três anos
de idade, riquíssima e idolatrada pelo mundo inteiro. Sentindo o enorme potencial do que tinha
caído em seu colo o próprio Celso resolveu coordenar os trabalhos pessoalmente. A primeira coisa
em que pensou foi fazer um acordo com ela. Seria, evidentemente, um acordo todo ao estilo dele:
ele levaria as vantagens e ela deixaria de levar as desvantagens. Coitada, ter que se submeter a tal
vexação àquela altura da vida.
A primeira providência determinada por Celso foi a realização de um jantar com a estrela, opíparo,
com certeza. Determinou que o dito fosse providenciado para aquela mesma noite. Seria muito
íntimo só com a presença dos dois. Ela não se surpreendeu. Não teve como recusar o convite. Ao
contrário até se sentiu aliviada com ele. Tinha que encontrar uma solução para a situação surreal
em que se encontrava. Preparou-se da melhor maneira que pôde. Vestiu o vestido branco que tinha
usado em “A dama das Camélias” e às oito horas em ponto lá estava ela na suíte de Celso, honrando
o compromisso e pronta para o que fosse preciso, dentro de certos limites. Foi logo abrindo seu
coração e extravasando a enorme angústia que sentia com aquela situação. Ele fingiu sensibilidade
e se disse solidário com ela. Explicou que sabia da opção dela de viver reclusa e que, em respeito a
isso, desde o princípio já havia tomado providências para manter a presente situação debaixo do
maior sigilo possível. Tinha mandado confiscar imagens e estabelecer censura sobre toda a matéria
jornalística que saísse do hotel. Não era difícil pois só a equipe dele fazia a cobertura do evento.
Além disso havia telefonado para os dirigentes das redes de televisão e agências de notícia e
acertado a manutenção do segredo. Fora disso qualquer notícia que vazasse seria tratada como
delírio de fãs contaminado pelo clima da fantasia armado como parte do evento. Ela ouviu tudo
aquilo com atenção e gratidão. Até ficou impressionado com a esperteza do seu interlocutor por
detrás daquela aparência tão decrépita. Mas sabia que alguma coisa ia ser pedido em troca e
aguardou. Celso fez um intervalo nesse ponto e mandou servir o jantar, afetadíssimo por sinal. Ela
comeu como um passarinho. Estava mais tranquila mas muito pouco conversou. Apenas ouviu
educada a verborragia habitual do seu interlocutor. Quando não queria esticar um ponto da
conversa respondia em francês, obrigando o infeliz do Celso a insistir no seu inglês macarrônico
que ele então fingia não entender. Ao final do memorável – e ligeiramente hilário encontro - já nas
despedidas, ele beijou elegantemente as mãos dela e foi ao ponto que verdadeiramente interessava
a ele e lhe motivara promover o encontro. Disse que precisava de um pequeno favor dela. Queria
que ela lhe concedesse duas honras pelas quais lhe renderia eterna gratidão. Com certa apreensão
ela perguntou quais eram e ele arrematou satisfeito, sibilando pelas fendas do sorriso repleto de
dentes. Em primeiro lugar gostaria que ela lhe concede-se uma pequena entrevista ao final do
evento que estava promovendo naqueles dias. Em segundo lugar suplicava para que ela participasse
do grande baile de encerramento. Greta ouviu o preito com atenção e respondeu de imediato.
Concordava com os pedidos e se dizia honrada. Porém impunha algumas pequenas condições. Em
relação ao primeiro pedido exigiu que ela tivesse a prerrogativa de encerrar a entrevista a qualquer
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momento que desejasse. Além disso, não haveria anúncio externo da entrevista e ela só seria
divulgada trinta dias depois de concedida. Em relação ao baile também tinha um condicionante:
participaria por apenas dez minutos. Cumprida sua parte no trato, Celso cuidaria para que ela
deixasse imediatamente o hotel a bordo de um helicóptero que seria pilotado por ela mesma. E
mais: até lá ficaria encerrada em sua suíte, sem ser incomodada nem assediada por ninguém, sem
qualquer tipo de exceção. Ele concordou de imediato, mesmo porque não tinha nenhuma intenção
de cumprir sua parte no trato. Mas garantiu que o faria. Ela agradeceu e saiu dali arrastando uma
grande angústia pelos corredores vazios daquele andar privativo do hotel pois, no fundo, duvidava
da sinceridade de um homem que fazia plásticas sucessivas e pintava os cabelos. Suprema
humilhação depois de tantos anos empenhada em viver reclusa longe dos olhos do mundo.
Mas trato é trato e no dia do encerramento do evento lá estava Greta Garbo pronta para
conceder uma entrevista ao Celso dos Anjos. Pobre Greta, em toda a sua vida tinha evitado
conceder entrevistas e agora uma, embrulhada em chantagem. O ambiente do encontro
inverossímil entre a atriz e o apresentador tinha sido montado no palco do grande salão azul.
Arremedava uma sala de estar decorada com gosto duvidoso cheia de cortinas, almofadas e vasos
de flores. A produção também havia montado uma numerosa claque de adolescentes que nunca
tinham ouvido falar na atriz, mas ali estavam prontas e empenhadas. Seu papel principal era
pressionar Greta com histeria se ele tentasse encerrar a entrevista prematuramente. Além,
evidentemente de ovacionar a dupla por qualquer motivo indicado, mantendo a animação geral, à
critério da direção do programa. Fez direitinho o seu papel quando Celso dos Anjos entrou. Mas
falhou clamorosamente quando Greta Garbo pisou o palco e caminhou em direção ao
apresentador. A estrela olhou o público, sorriu seu sorriso enigmático e se deixou levar por seu
andar de gazela. Tudo isso, para surpresa geral e minha e para desespero da equipe de produção
ocorreu debaixo do mais absoluto silêncio. Não era o que havia sido programado pois o clima era
para ser aquele típico de auditório. Mas a claque não gritou, a orquestra não tocou, o público não
aplaudiu. Quedaram todos comportados olhando a atriz, submissos e fascinados com o
deslumbrante preto e branco que ela irradiava. E isso acontecia mesmo não havendo uma luz spot
a persegui-la enquanto andava. Celso ficou meio sem graça. Não esperava aquele ambiente solene,
religioso, contraproducente aos seus propósitos. Mas continuou estampando o sorriso largo
grudado na parte inferior da sua grande cara de pau. A atriz se assentou no sofá e o apresentador
a seguiu. O dito cujo sofá parecia uma cama de motel de tão grande e enfeitado. Mas ambos
conseguiram se ajeitar com as almofadas cafonas e se manter empertigados. Atrás havia um telão
com a imagem dos dois, adornado com legendas para o público menos letrado entender o inglês.
Greta Garbo vestia o mesmo vestido branco do jantar, de ombros nus e adornos em rosas
delicadas. Celso dos Anjos vestia um “três botões” cinza listrado, de corte magnífico. Desses que
a gente morre de inveja de não ter e raiva de não poder comprar. A bem da verdade, ambos faziam
boa figura. Isso, evidentemente, se tivermos a coragem de desprezar o chocante contraste do rosto
harmonioso de Greta, adornado por sua pele de pêssego, suave e primaveril; contra a cara de peixe
do Celso dos Anjos, ainda mais violentada pela sua pele com consistência de papel de arroz
parafinado.
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Os aplausos não vieram e a entrevista começou debaixo de um clima solene, mais de templo
do que de auditório. Celso dos Anjos consultou a papeleta que trazia nas mãos, fez suspense, olhou
para a plateia um instante, impostou a voz vibrante e perguntou a Greta Garbo o que ela fazia para
manter-se tão jovem e fazer sucesso depois de tantos anos. A resposta a atriz já havia decorado há
muito tempo. Quer dizer desde o tempo em que havia resolvido abandonar o cinema no auge da
carreira e da fama. Assim, respondeu sem pensar um só segundo. Disse, com toda a simplicidade,
que a única forma do ser humano permanecer eternamente jovem era interrompendo o ciclo
natural do envelhecimento. E completou dizendo que para os artistas havia somente dois caminhos
para se conseguir isso: ou morrendo jovem ou não permitindo que o mito ou talento entrassem
em decadência. Isso dito, sorriu e se calou deixando tudo em suspenso. Celso teve que fazer força
para esconder um enorme mal estar diante da resposta simples e direta. O mesmo acontecia com
a fatia mais perspicaz da plateia. Eram poucos, mesmo porque, muita gente ali já tinha perdido o
senso da própria realidade. O apresentador olhou mais uma vez a papeleta que tinha na mão em
busca de uma saída para aquela situação bastante constrangedora que a estrela havia criado com
sua sinceridade. Constrangedora sem dúvida, pois a receita da eternidade de Greta Garbo batia de
frente com a essência daquele evento insensato de glorificação da decrepitude. Celso dos Anjos
esperava uma resposta mais glamorosa, mais cinematográfica, mais televisa. Enfim mais
sintonizada com a causa do “eterno talento”. Coisa rara havia acontecido, ele tinha sido ingênuo.
Acabava de dar um tiro no próprio pé. Todavia, grande parte do público não se deu conta disso e
era nisso que ele espertamente tentaria se apegar. De toda forma a plateia não sabia se aplaudia ou
se ficava quieta esperando. Na dúvida ficou quieta esperado. Celso tentou colocar o trem de volta
aos trilhos. Quis retocar a pergunta e induzir uma nova resposta, desta vez mais palatável. Mas não
teve tempo. Greta - aliás usando do seu direito no trato - se levantou, olhou o público com uma
certa complacência e se retirou devagar, dando a entrevista por encerrada e deixando Celso dos
Anjos sozinho e em posição lamentável, como um pinto perdido na chuva. Mas foi só uma fração
de segundos. Alguém da produção agiu com rapidez e mandou descer as cortinas do palco. Outro
alguém conseguiu que a orquestra despertasse da sua letargia e atacasse com uma música animada.
Mas, no geral, tudo ficou incompleto e muito mal costurado. O público foi saindo devagar, meio
acabrunhado. Celso sentiu-se mal, foi acudido com alguns calmantes e levado para seu camarim.
Tomou literalmente uma injeção de ânimo. Mas não bastou, estava um tanto extenuado. Também,
com cento e vinte anos bem vividos, como havia de ser diferente? Mas a fiel equipe do apresentador
não entrou em pânico. Traçou rapidamente um plano de emergência, desesperado e truculento.
Dali a pouco o baile de encerramento do evento já iria começar. Greta Garbo teria que participar
dele nem que fosse à força, submetida a uma chantagem qualquer. Cantaria os parabéns e ergueria
um brinde a ele e ao eterno talento de todos os participantes do evento. Se Celso dos Anjos
conseguisse estar presente teria que dançar uma valsa com ele. Também teria que pedir a palavra e
explicar melhor aquela sua resposta enquadrando-a aos propósitos do evento, como era esperado.
O combalido apresentador aprovou o plano e pediu empenho na sua exata execução. Não
fez diferença. O plano não pôde ser mesmo executado. É que ninguém conseguiu encontrar Greta
Garbo. A divina e eterna estrela havia desaparecido mais uma vez. Tão misteriosamente que
ninguém pôde dar notícia de nada. Sumiu no meio dos corredores, quiçá no elevador. O
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apresentador caiu de cama. Nunca mais se levantou. Mas, mesmo acamado e delirante, continuou
tentando administrar aquele triste revés. Entre um delírio e outro deu ordens para que as imagens
de Greta Garbo fossem divulgadas no mundo inteiro com todo o estrépito possível. Não deu certo.
Também as imagens dela haviam desaparecido dos registros gerados. O vídeo da entrevista ficou
patético: ele falando sozinho como se estivesse louco. Celso dos Anjos morreu pouco depois. A
família não sabe muito bem o motivo e nem quer comentar.
O CHÁ DAS AMIGAS
É verdadeiramente justo, razoável e salutar que as pessoas procurem ser felizes no
matrimônio. Mas quando elas começam a matar por conta disso, pode estar havendo um certo
exagero nessa busca. Principalmente quando chega a ser formado uma espécie de consórcio com
esse precípuo propósito. Nesse caso, se agregaria ao fato um componente macabro. Foi isso que
aconteceu em Horizonte Alegre, na década de vinte do século passado, conforme ilustrado na
sucessão de fatos que vamos narrar em seguida.
Havia um grupo de amigas, muito unido, que se conhecia desde sempre, pois é assim nas
pequenas cidades, embora essa não fosse tão pequena assim. Estavam sempre juntas e isso vinha
desde os tempos da escola fundamental. Fizeram juntas o curso primário, o ginásio e o curso
normal, crescendo juntas. Casaram-se quase todas ao mesmo tempo, exceto uma: Maria da
Consolação Borges Delgado. Nesse ponto cabe uma pequena retificação na história da
convivência das meninas. É que aquela que não casou acabou se distanciando do grupo, já que
sua rotina de vida tinha que ser outra, típica de moça solteira. No princípio não foi assim pois,
falando apenas pelo lado emocional, o grupo havia combinado não romper seu pacto natural de
união, só por causa daquele detalhe. Todavia, os usos e costumes impõem sua própria dinâmica
e as rotinas da vida nunca são como se quer ou se planeja. Enfim, não era só um detalhe. O
casamento não vinha e com isso se instalou o risco do distanciamento da solteira da convivência
com o grupo. Com o passar do tempo a coisa se acentuou: as amigas casadas frequentando suas
respectivas casas, compartilhando suas comemorações e a pobre solteirona no seu canto solitário
com suas novenas e suas pias ações. Não que ela não fosse convidada ao seio das famílias, já que
todas gostavam muito dela. Mas estabeleceu-se um círculo vicioso: o distanciamento foi se
agravando e os convites foram escasseando e vice-versa. Houve até uma tentativa tardia de
remediar a tendência. Quando as amigas sentiram que Maria da Consolação – a inevitável
Consola - ficava muito deslocada naquelas festas de família cheias de maridos e crianças,
resolveram inventar um chá semanal só para elas, onde pudessem conversar à vontade, como
nos velhos tempos. Chamaram a reunião pomposa e inocentemente de “O Chá das Amigas”.
Mas também não deu certo pois não havia mais assunto que pudesse manter unidas as casadas e
a solteira. O tal chá continuou existindo, mas a Consola se afastou logo no princípio. Até porque
o assunto dominante nas reuniões passou a ser a pouca-vergonha dos maridos. Desta forma,
tudo conspirou e houve a inevitável ruptura. Foi isso, enfim, que tornou impróprio dizer-se que
as moças do grupo sempre estavam juntas. Cancele-se, pois, o advérbio de tempo. As casadas, é
certo, continuaram muito unidas e o chá, criado com aquele nobre propósito de manter a união
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do passado, continuou existindo. Mas mudou o sentido. Passou a ser uma reunião pesada, cheia
de ódio, frustração e conspirações. Mas tornou-se dominante na vida daquelas mulheres, e as
uniu como nunca.
Maria da Consolação não vivia sozinha, mas amargava solidão. Nessa condição acabou triste e
doentia, distante dos tempos de infância e adolescência quando esbanjava otimismo, espiritualidade,
amabilidade e simpatia. Simpática e amável ainda era, mas de uma forma acanhada e sem graça,
lavada nas agruras da citada solidão. Na verdade, no quesito da personalidade diferia muito do resto
do grupo: pela meiguice, alegria, ingenuidade; essas coisinhas que fazem uma boa alma. Resumindo,
era boa e as outras más. Esse contraste é que explicava a atração que exercia sobre as outras amigas.
Era um atenuante, discreto e subliminar adoçando as consciências. Certo é que sentiam a sua falta.
Talvez até porque, com o passar dos anos, as pessoas começam a confundir o tempo com o espaço
e a achar que restaurando o ambiente do passado é possível fazer voltar a felicidade que havia nele.
Ledo engano. Mas a ilusão existe e ataca os infelizes com força. E aquelas mulheres, todas elas sem
exceção, eram tremendamente infelizes. Uma porque não se casou e as outras por seus matrimônios
tremendamente equivocados. Como o tal “Chá das Amigas” não conseguiu abrir lugar para a pobre
Consola, consolidou-se, enfim, como o conventículo dos matrimônios tremendamente equivocados
de Horizonte Alegre.
As amigas eram quatro. De Maria da Consolação já falamos. Das outras, pela ordem alfabética, há
de se começar falando de Angélica. Primogênita da ilustre e rica família Cavalcanti de Proença.
Nascida com veia de líder, também o era no seu grupo de infância. Sempre gorda sempre feia. Não
é diferente hoje. Arrogante e traiçoeira, ambiciosa e má. Casada com Ronaldo de Albuquerque jr.,
apelido Ronaldinho do Quecão, filho exatamente do Ronaldão de Albuquerque, apelido Quecão,
patriarca político da cidade. Ronaldinho acrescenta ao patrimônio moral da família constituída com
a consorte Angélica, a hipocrisia, uma propensão à prepotência e uma notória inclinação para a
malversação do patrimônio público, aprendida no berço. Prefeito da cidade por vários mandatos,
prefeito era quando os assassinatos começaram, aliás, sendo ele, a primeira vítima.
Depois desse breve perfil de Angélica, pela ordem alfabética como dito, cabe falar de Berenice de
Almeida Prado. Era a mais nova do grupo e talvez a mais inexpressiva como pessoa e amiga. Nunca
foi de ter iniciativa e sempre se contentou com papéis secundários ao longo da vida. Tinha uma
mórbida admiração por Angélica e esta retribuía com vilania fazendo dela o que queria. Talvez fosse
a mais mal casada do grupo. Casou-se com o bacharel Toninho de Almeida Prado, promotor da
comarca, nomeado com vinte seis anos por influência política da sua ilustre família. Alcoólatra,
devedor contumaz e com tendências pedófilas já inteiramente fora de controle. Passava dias sem
aparecer em casa, perdido em bordéis infames.
Para completar o grupo das amigas resta falar de Zenilde Guimarães Falcão. De família humilde
do lugar, famosa pela beleza que mostrava desde pequena e que ainda persiste. Pelos predicados
genéticos estampados com capricho na cara e no corpo, acabou casada com o herdeiro de uma
família de usineiros descendentes do Barão da Boa Cana. Chama-se Leopoldo. Dobrou a fortuna da
família antes de completar trinta e cinco anos. Tremendo empresário, dinâmico e ambicioso, espalhou
canaviais por todo o norte do estado, vencedor com seus métodos eficazes. Dele faziam parte
práticas ignóbeis como agiotagem, grilagem, falsificação de documentos e trabalho em regime de
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semiescravidão. Muitas mulheres e muitos filhos espalhados por ai, um autêntico coronel da primeira
república, um completo canalha.
Assim era a trinca das amigas casadas, esposas infelizes, viúvas antecipadas. Vivendo suas vidas
medíocres, embora cheia de festas e viagens. Gostavam de viajar juntas, deixando os torpes maridos
nos seus cotidianos de sujeira. Já era assim há pelo menos cinco anos. Verão no norte, inverno no
sul, num zig-zag festivo repleto de risos e traições. Mas era uma terapia: buscavam ficar longe dos
afazeres do lar, deixando-os entregues a tias, amas e babás. Mais do que terapia o hábito turístico
embutia uma certa vingança. Era o desleixo debitado em conta errada pois, pelos pulhas dos maridos,
acabavam pagando os filhos. Enfim, o tal “Chá das Amigas” havia extrapolado a condição de simples
reunião semanal de bebidas leves e bolinhos e tomado conta da falta de sentido de suas vidas.
Um dia aconteceu uma grande novidade. As três amigas indissolúveis tinham acabado de voltar
de uma daquelas viagens e estavam no meio de mais um chá semanal quando foram surpreendidas
com uma visita de Maria da Consolação, a distante amiga solteira. Como vimos, há muito tempo isso
não acontecia. A presença inusitada causou algum reboliço. Ficaram exultantes em vê-la, já que o
impacto da grata surpresa remeteu-as todas direto aos sentimentos do passando, voando por sobre
os anos. Beijaram e se abraçaram com espontaneidade e excitação. Devia haver um forte motivo para
aquela inusitada e, convenhamos, até despropositada aparição. De fato havia. O motivo da visita não
podia ser mais surpreendente: um convite de casamento. Sim, finalmente as judiações do pobre santo
Antônio, tinham dado resultado. Maria da Consolação Borges Delgado finalmente estava noiva,
prestes a se tornar a senhora Silva. E quem era o senhor Silva? A pergunta foi feita quase em uníssono
pelas surpresas amigas. Maria da Consolação respondeu à pergunta com enorme alegria,
extravasando um orgulho belo e ingênuo. Ao ouvir a resposta as amigas olharam umas para as outras
e tentaram conter o riso. O sr. Silva era um joão-ninguém. Foi essa a conclusão unânime e imediata
do grupo. Nem podia ser diferente. José da Silva – mulato de quarenta anos de idade - era novo na
cidade. Tinha sido nomeado para a função de atendente dos correios e havia tomado posse há alguns
meses. Tinham se conhecido há pouco tempo. Mas foi uma espécie rara de paixão fulminante. Logo
ficaram noivos, de casamento marcado para daqui oito meses. Como não tinham dúvidas, tinham
pressa. Até porque a noiva já havia entrado na casa dos trinta e seis anos de idade, quer dizer, estava
no fim da capacidade de procriar. Revelados os predicados do noivo houve um certo resfriamento
no calor inicial do reencontro. Com o tempo e o afastamento as diferenças entre elas tinham se
consolidado de vez, como era natural. Claro que as amigas tentaram mostrar alegria com a notícia.
Não era justo agir diferente, afinal havia resquício daquela velha amizade. E, coitada, ela sempre foi
tão boa, tão ingênua e amável. De sorte que as amigas, não só mostraram alegria, como prometeram
ajudar. Afinal, devia restar um pouco de bondade no fundo daquelas almas, decantadas do ódio que
destinavam aos maridos. Pois, como disse o filósofo num dia de pouca inspiração: as pessoas não
são más, o mundo é que as faz assim.
Maria da Consolação saiu do chá transbordante de alegria. Já havia desistido daquela bemaventurança de poder amar e viver com alguém até o fim dos seus dias. Precipitou-se, pois Deus não
havia dado ainda o veredito sobre a sua solteirice. Estaria agora, tão tardiamente, no pico da
realização da sua vida. Uma vida de casada e ainda o reenlaçamento com as velhas amigas. É natural
que a moça, debaixo de tanto elevo, estivesse vendo, ou revendo, o mundo mais cor-de-rosa do que
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realmente era. Mas naquele momento era, pois a felicidade é assim, feita de breves momentos.
Maria da Consolação Borges Delgado virou Maria da Consolação Borges Delgado e Silva,
montou um lar singelo e foi levando uma vidinha simples e feliz. Mas a reaproximação com as amigas
não veio, nem era mais possível e ninguém de fato queria, pois o passado tinha de fato passado e
nisso ninguém dá jeito. As esposas infelizes, continuaram infelizes, tentando se divertir na espuma
da amargura e se encontrando toda semana a pretexto do chá da amizade que, na verdade, era mais
uma liturgia do ódio e da peçonha. Enquanto isso Maria da Consolação ia vivendo feliz com o
marido, namorando no cinema, fazendo pic-nic no bosque e passando ao largo do sofrimento dos
outros, de mãos dadas com seu mulato sem ambição e sem futuro. Veio o primeiro filho e a felicidade
dobrou. Foi aí que a trinca de mulheres mal-amadas, intrincada com tanta felicidade matrimonial
resolveu investigar o casal. Como era possível tanta felicidade, sendo elas tão infelizes, embora lindas
ou ricas, prendadas, inteligentes e gozando de destacada posição social? Não foi difícil chegar a uma
conclusão, aliás, a que mais lhes convinha e mais claro parecia. O motivo era o marido. Sim, pois o
pobre José da Silva, na verdade, não era uma triste figura como pensaram a princípio. Ao contrário,
era um mulato alto, sestroso e bonitão; inteligente e, sobretudo carinhoso e atencioso para com a
esposa. Para completar, até ficaram sabendo dos predicados do Silva nos aconchegos da alcova.
Predicado ainda mais precioso pela férrea fidelidade. Era pobre, mas isso não fazia diferença para
quem não o fosse. Eis, enfim, o marido perfeito. Tinham descoberto o que já sabiam mas queriam
comprovar. Foi nesse ponto que uma coisa perigosa começou a se gestar. Um novo sentimento
mesquinho e perigoso veio se alojar no conjunto dos outros sentimentos infames já incrustados
dentro da trinca de amigas: a inveja. Aquela felicidade tão singela da outra se tornou intolerável para
as esposas frustradas, as viúvas prematuras. Não levou muito tempo pra maldade crescer e tomar
conta da agenda do chá das amigas. Começaram então a tecer as teias negras que, às vezes, envolvem
os matrimônios. Menos de um ano depois de prometerem ajudar a velha amiga no seu casamento
retardatário. Com Angélica à frente, a trinca das viúvas prematuras começou a traçar um pacto
macabro escorado em dois assassinatos que depois virariam três e podiam trazer mais na sequência
do plano. O projeto era diabólico, mas pode ser resumido de forma muito singela: escolheriam uma
delas para ficar viúva, matando-lhe o marido. Em seguida matariam Maria da Consolação e a
escolhida do grupo se casaria com José da Silva – o tal marido perfeito. Se aparecessem outros
maridos perfeitos o plano se repetiria com outra escolhida até que as três fossem beneficiadas com
a troca dos maridos podres por melhores exemplares. A ideia era verdadeiramente insana e por ela o
leitor pode avaliar o quanto aquelas mulheres estavam desesperadas com seus miseráveis casamentos.
Tanto que, rapidamente e sem muito titubear, a famigerada trinca passou do papel para a ação.
A escolhida para iniciar o processo, sem nenhuma surpresa, foi Angélica Cavalcante de Proença e
Albuquerque. Como se recorda era líder do grupo e exercia forte influência sobre as restantes, em
especial sobre Berenice de Almeida Prado. De sorte que ela manipulou o resultado sem muita
dificuldade. Também era a que mostrava maior ânsia de se ver livre do marido e tentar uma nova
sorte matrimonial, com chances muito mais risonhas. Pela própria lógica intrínseca do fato, os passos
seguintes seriam: assassinar Ronaldinho do Quecão e depois a pobre Consola. Mas como dar cabo
dos dois quase simultaneamente sem levantar suspeitas? Esse foi o assunto do Chá das Amigas da
segunda semana de agosto. Era o ápice do clima doentio que vinha tomando conta daqueles
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encontros ultimamente. Para elas, todavia, tudo aquilo parecia banal. Um projeto de felicidade como
outro qualquer, legítimo pela própria natureza. Começaram estabelecendo algumas diretrizes. A
primeira delas determinava que o próprio grupo devia cuidar dos extermínios, evitando o
envolvimento de terceiros. Os crimes deveriam ter conotação doméstica e parecer acidentes infelizes
ou provocados por causas naturais. Nada de emboscadas e atiradores de elite. Quanto ao agente
propriamente dito das execuções, depois de muita discussão e palpites tresloucados, concluiu-se que
a melhor forma seria o envenenamento. Angélica foi a patrona da ideia. Defendeu o ponto de vista
de que esta velhíssima forma de assassinato é a que mais oferece condições de simulação de mortes
naturais. No caso do Ronaldinho ela própria se oferecia para a execução. Seria mais fácil. Claro,
convivendo com ele no dia-a-dia do lar, tinha mil opções para envenená-lo. Mas aí surgiu uma
dificuldade: como conseguir o veneno apropriado. Os raticidas eram fáceis de conseguir, contudo, o
seu uso deixava um rastro forte de suspeitas devido ao estrago inconfundível que provocam no
aparelho digestivo. Seu uso só era recomendado em simulações de suicídio, mas esse não era o caso.
Fora isso, era de todo inconveniente que uma delas fosse à farmácia e simplesmente comprasse um
pouco de estricnina ou coisa assim. Pensaram um pouco, chegaram a cogitar de mudar a forma da
morte para sufocamento, atropelamento, afogamento ou coisa do gênero. Contudo, nada disso era
factível considerando que elas próprias, frágeis e dissimuladas mulheres, é que executariam a macabra
missão. Tinha mesmo que ser veneno. Na falta de opção o impasse persistiu. Mas elas não
desanimaram pois o mal nunca cede facilmente. Resolveram, então, suspender a reunião para pensar
melhor até a próxima semana. Já iam se levantar quando Zenilde as deteve revelando que tinha se
lembrado de uma coisa incrível. Sim, uma maldita lembrança lhe tinha vindo à mente naquele exato
instante. Maldita na medida em que desenterrava um assunto que tinha se tornado tabu na família
da moça. E disso ela sabia desde pequenininha. Mas no momento tal melindre não importava.
Nenhum problema em tirar alguns esqueletos do armário naquela circunstância. Desta forma, sem
nenhuma vacilação, Zenilde proclamou que tinha encontrado a solução. As outras olharam para ela
com toda a atenção. Sem qualquer constrangimento a moça confessou que certas maledicências que
circulavam antigamente na boca do povo, apregoando que sua avó era uma feiticeira, tinham um
fundo de verdade. Não propriamente uma feiticeira mas uma espécie de “raizeira”. Pelo menos é
certo que ela deixou um baú cheio de livros carcomidos que, conforme a família sempre soube e
procurou guardar segredo, contem receitas de poções mágicas. Esse baú está guardado por sua mãe
a sete chaves, mas não seria difícil ter acesso a ele. Essa revelação encheu o grupo de entusiasmo.
Saíram dali saltitantes como se tivessem acabado de combinar um convescote risonho para uma
manhã de domingo no meio da primavera. Zenilde ficou encarregada de conseguir o tal livro das
poções e levá-lo no chá da semana seguinte. Certamente encontrariam nele várias fórmulas de
veneno, para diferentes aplicações, conforme as necessidades. Mas ela protestou num detalhe. Não
podia levar o livro pois, segundo a tradição da família, havia uma maldição para quem subtraísse
aquela rara peça sem autorização do seu guardião designado e o fizesse chegar em mãos erradas, e,
no caso, não havia nenhuma meia dúzia de mãos tão erradas quanto aquelas. Mas poderia copiar
algumas páginas escolhidas. E assim foi feito. Estava tudo lá muito bem explicadinho no capítulo da
alquimia do mal. Fácil encontrar as poções indicadas para os casos, tão simples de manipular como
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se fossem remédios caseiros, acrescidos de uma ou outra raiz forte de fundo de brejo ou entulho de
cemitério.
Passadas três semanas, três chás das três amigas macabras e o plano estava pronto nos detalhes,
acabado no capricho como pedem os crimes perfeitos que se prezam. Tinham duas poções de
veneno prontas: uma para provocar um enfarte fulminante em Ronaldinho do Quecão e outro para
Maria da Consolação ter um derrame fatal. Ambas com espertos efeitos retardados para afastar
suspeitas das circunstâncias de ministração das malignas poções. Caberia a Angélica tocar a execução
do marido, perpetrando a sua mórbida auto viuvez. Quanto a pobre Consola, acertaram que ela seria
convidada para um chá com bolinhos envenenados sob medida.
A execução de Quecão foi simples como uma rotina doméstica, embora não fosse nem um
pouquinho limpa. Bastou a infame esposa misturar um pozinho insípido no leite gordo da manhã e
em menos de doze horas as veias do pobre homem estavam entupidas em todos os calibres,
bloqueando a circulação e fazendo explodir o seu pobre coração. Diagnóstico rápido e rasteiro:
enfarte fulminante. Consternação geral e irrestrita e no obituário o registro das virtudes do grande
prefeito, sua relevante obra pública e grandeza de coração. Deixa filhos menores e uma esposa
desconsolada.
Seis meses depois era a vez de Maria da Consolação Borges Delgado e Silva. Como planejado foi
numa prosaica seção do Chá das Amigas, numa tarde de verão, tendo ela como convidada especial.
Atenciosa como era até teve o cuidado em levar uns papos-de-anjo para enriquecer a mesa do chá.
Famosa nessa arte quis fazer um obséquio. Compareceu inocente transbordando toda aquela
felicidade que grudara nela desde o dia do casamento. Nem teve que se conter, receando estar sendo
indelicada com a dor de Angélica, viúva de pouco tempo pois dor mesmo não havia nenhuma, muito
antes pelo contrário. De sorte que reinou a alegria e a descontração. Sendo assim, Consola nem
reparou no detalhe de que só a ela eram servidos uns bolinhos com cobertura cor-de-rosa, raros e
atrativos. Resultado: às duas horas da madrugada o marido era acordado com sussurros agoniados
de Maria da Consolação, seguidos de uma convulsão fatal. Para registro devo informar que ela deixa
um filho menor, uma memória limpa, o respeito de quem a conheceu, o choro exagerado das três
velhas amigas e um marido verdadeiramente desconsolado, mas que o seria somente por pouco
tempo pois a vida continua.
Passados mais seis meses o plano macabro entrava em sua fase final. Agora restava juntar os dois
viúvos. A viúva de Quecão e o viúvo de Consola. Tudo foi feito com muita habilidade e delicadeza.
Angélica se aproximou de Zé da Silva chorando a memória de Consola e do imbecil do Quecão.
Sedutora e abastada, conseguiu o seu intento. O bom viúvo se esqueceu do próprio desconsolo e
gostou da ideia de consolar a rica viúva. Estão casados há um ano e parece que tudo está correndo
muito bem na vida do novel casal. Quer dizer, está provado: José da Silva nasceu para bom marido
e nisso as amigas foram muito perspicazes. Até onde eu sei, nem tem havido reuniões do Chá das
Amigas pois Angélica anda sem tempo, chamegando o seu mulato amoroso e cumpridor.
Tem circulado a notícia de que há um novo enfermeiro no hospital municipal. É casado, feliz e
fiel. Meio baixo e meio gordo, mas isso é só um detalhe. Parece que as amigas vão se reunir
novamente na próxima semana. Agora é a vez de Zenilde ser a beneficiada. Ela é aquela do marido
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alcoólatra, devedor contumaz e com tendências pedófilas. Que Deus se apiede dos que vão morrer,
mas ela também merece ser uma esposa feliz.
O PRESTIDIGITADOR
Nasceu no seio de uma família de analfabetos crônicos e sucessivos, num lugar perdido do interior
do país, cheio de pobreza e aridez. Recebeu o nome de Luiz Loiola da Silva. Homenagem ao avô Luís
e ao fundador da Cia de Jesus Santo Ignácio de Loiola, devoção da família. A mãe – dona Clementina tinha mais filhos do que galinhas no quintal. Todos magros e famintos, tantos os plumes quanto os
implumes. Pouco depois dele nascer o pai foi para o sul tentar melhorar de vida e nunca mais voltou.
Morreu na mesma miséria em que tinha nascido e foi enterrado como indigente. A pequena criatura
passou a infância patinando nas miudezas da penúria, ajudando a mãe para não morrer de fome. Tudo
ali era tristeza, da aurora ao anoitecer. Com as crianças era um pouco diferente pois criança vê
divertimento onde não tem nenhum. Mas só um pouco. É que desnutrição e verminose também abatem
o ânimo. E assim era lá. Mas o lado lúdico de uma latinha, um passarinho, uma lagarta asquerosa já eram
suficientes, para fazer o mundo mais suportável aos barrigudinhos de d. Clementina. De vez em quando
o mundo parecia bem melhor. Então não havia desânimo que abatesse a alegria daquelas pobres
crianças. Foi assim numa tarde qualquer de agosto. Um circo havia chegado ao povoado. Circo é força
de expressão. Era apenas uma pequena trinca maltrapilha que se apresentava debaixo de uma barraca
de lona mal armada, arqueada e cheia de buracos. O espetáculo era de graça pois a função se destinava
tão somente a ancorar os reclames para venda de um xarope de óleo de cobra, bom pra tosse seca e pra
curar desânimo em geral, especialmente a dos machos que fraquejam na cama. Velho e insolúvel
problema, até então.
A música quase inaudível de um disco velho vazava pelo alto falante e soava como uma trombeta
divina a anunciar o paraíso no meio infiel da ranhura vinílica dos chiados. Luiz Loiola e os irmãos,
estavam entre os primeiros a atender ao chamado. Muito céu para tão cresta terra. Mas, mesmo assim,
a maravilha estava ali, pertinho. E carecia ir para mais junto dela.
Para aperreio da mãe, a prole da Clementina largou o que estava fazendo e correu atrás do barulho
da música. Juntou gente depressa, especialmente crianças. Logo em seguida já começava a função, que
era para isso que todo mundo estava ali. Uma pequena corda esticada entre dois bancos separava os
artistas e o público. Artistas no caso eram o mágico e sua assistente um tanto avançada em anos mas
ainda graciosa, se tivermos boa vontade. Havia um terceiro membro: o apresentador. Fechava o grupo
mambembe e era dele a função de convencer das propriedades do xarope milagroso.
Luiz Loiola se encantou com as mágicas, singelas mas competentes. Era a primeira vez que via um
coelho branco na vida e ainda mais tirado do fundo de um chapéu. O truque das espadas deixou-o
maravilhado. Mais ainda o dos lenços que viravam flores, que viravam passarinhos. Que poder era
aquele? O pequeno ficou fascinado.
O espetáculo agradou, mas a venda do xarope foi pífia, pois dinheiro ali era raro. No máximo umas
trocas primitivas: ovos contra tecidos, batatas contra um retrós, milho contra um serrote cego e inútil.
Prevalecia o fiado, com a fiança do Criador.
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O grupo se foi logo em seguida mas a magia ficou. Durante muito tempo Luiz Loiola não falava
noutra coisa, também queria ser mágico. Mas teve que guardar o sonho por alguns anos mais. Mesmo
porque, naquele lugar e naquela situação não restava às pessoas outra coisa do que conformar-se com
a porca miséria e continuar fazendo o que se podia só pela glória suprema de continuar vivendo. Mas
o pequeno Luiz era diferente, não havia nascido para aquela vida maldita. Era vivo, inteligente e tenaz.
Achou que aquilo não era para ele. Queria ser mágico, ou talvez coisa melhor. Faria como o pai: iria para
o sul tentar melhorar de vida. Mal chegado à adolescência não conseguiu mais esperar. A hora era agora.
Convenceu a mãe de que toda a família devia sair dali e tentar uma vida melhor. Ela não tinha nenhuma
ambição e poderia encerrar ali os seus dias e esperar de Deus alguma compensação. Mas um ou outro
irmão era mais atirado do que a mãe. Juntaram coro com Luiz e o plano prosperou. Alguns meses
depois já estavam no sul, no ponto que tinham mirado. Foi penosa a jornada, mas chegaram enfim e se
sentiram alegres, pois a vida é assim. Encontraram o pai, mas isso em nada ajudou. O velho já tinha
outra família à qual, mais uma vez, não podia dar sustento. Nem uma, muito menos duas. De sorte que
d. Clementina e os filhos continuaram ao deus dará. Mas ali era outro mundo e havia mais
oportunidades para quem quisesse trabalhar de verdade. Os filhos mais capazes trataram de correr atrás
delas, com Luiz Loiola à frente. Aprendeu a ler e escrever minimamente. Com isso arranjou uns
empreguinhos. Paralelamente nunca deixava de assistir aos espetáculos dos circos que passavam por ali,
pois o sonho ainda existia, o de ser mágico um dia.
Mas a melhora era lenta e Luiz Loiola se inquietou, não queria viver de biscates sonhando um sonho
distante. Juntou mãe e irmãos, mais uma vez, e resolveu se mudar para a grande capital que era li perto.
Foi uma das decisões mais acertadas da sua vida, pois então tudo começou a mudar de verdade. Logo
arranjou um emprego razoavelmente decente numa pequena fábrica de parafusos. Carteira assinada. O
salário melhorou e a primeira coisa que fez foi se matricular numa escola de mágicos, no curso elementar
de prestidigitação. E ficou uns tempos ocupando seu tempo naquele duplo empenho: aprendiz de
metalúrgico e aprendiz de ilusionista. Em ambos prosperava, era esperto, inteligente, perspicaz.
Ampliando seus horizontes, logo descobriu-se dotado de alguns preciosos talentos: era um líder natural
e tinha grande facilidade para se comunicar. Passava coragem e confiança aos companheiros de
infortúnio naquele labor intensivo. Adicionava a esses predicados uma grande capacidade de
convencimento, de persuasão. Coisas naturais que não se aprende em escolas. Esperto como era, em
pouco tempo entendeu que esses dons poderiam lhe ser de grande utilidade no rumo da prosperidade.
E tinha razão. Tanto que logo foi convidado para se filiar ao sindicato. Habilidades e atitudes como as
dele resultavam muito úteis para movimentar trabalhadores e intimidar patrões. Mas naquela época ele
ainda não havia perdido seu antigo sonho de ser mágico. Em sendo assim, continuou centrando seu
alvo nas aulas de prestidigitação, dividindo-as com o trabalho do dia-a-dia. Mas o destino não queria
que fosse desta forma. Quer dizer, a fortuna não queria que ele fosse mágico, pelo menos não um
magicozinho mambembe fazendo truques com as mãos. Resultou daí que num dia aziago como poucos
na sua vida, o destino se cumpriu. Luiz teve um terrível acidente na fábrica de parafusos. Esmagou o
dedo mínimo da mão esquerda num torno. A demora no socorro acabou por custar-lhe o dedo
acidentado. Claro que ele ficou tremendamente abatido. Principalmente porque acabava ai seu antigo e
precioso sonho de ser mágico. Seu professor de magia explicou que a prestidigitação decorre,
essencialmente, da habilidade no manuseio das mãos para criar ilusões. Daí, era impossível se alcançar
187
a habilidade mínima necessária com a falta de um dedo. Coitado de Luiz Loiola da Silva entrou em
depressão. Abandonou o emprego na fábrica e ficou uns tempos vagabundeando sem ânimo para nada.
Mas acabou cansando daquele ócio mortal e das incertezas da sobrevivência numa cidade tão grande,
cheia de exigências e perigos. Também não tinha andado tanto para ficar na mesma em que estava antes
no interior do sertão. Lembrou-se do sindicato e dos amigos que tinha lá. Com a ajuda deles acabou
arranjando um novo emprego. Era modesto mas era um bom recomeço, a empresa era grande e ele
podia crescer. Os tempos também eram de recomeço. O país vinha de um longo período de
autoritarismo e repressão e todos queriam mudar. Foi aí que ele encontrou um campo fértil para os seus
talentos e os seus sonhos: de orador e líder nato e até... de prestidigitador. Logo se tornou muito popular.
Tinha voz de comando e poder de convencer. Orador nato, eloquente e seguro. Descobriu que a forma
de dizer era muito mais importante do que o que estava sendo dito. A fórmula era batida mas ela deu a
ela um certo verniz pragmático. Munido dessa singela e crucial ferramenta mergulhou de cabeça no
movimento sindical e foi bem acolhido por ele. Acabou encontrando uma vaga se suplente numa chapa
que prometia renovação na luta sindical, melhores salários, mais poder. Nunca mais parou de prosperar
como líder dos trabalhadores e não demorou muito para chegar a presidente do sindicato mais
importante do país. Inteligente e intuitivo, não foi nem um pouco prejudicado pela baixa escolaridade,
irremediável, aliás, pela falta de interesse de que não fosse assim. Calejado pela vida, aprendeu a ser
objetivo e jogar o jogo das oportunidades como ele devia ser jogado. Reunindo tantos predicados era o
homem certo, no lugar certo, na hora certa e por aí vai.
E foi nesse bojo de tantas circunstâncias favoráveis que, num belo dia de sol, ele se descobriu
poderoso. Estava na praia, havia tomado meia dúzia de caipirinhas e outras tantas talagadas mais
calientes. Estava inspirado. Sentia-se orgulhoso como um pavão. De dedo em riste gritava para o mar.
Gritava que ninguém havia subido tão rapidamente quanto ele na carreira sindical. Há poucos anos era
um aprendiz de torneiro e hoje já era presidente do mais importante sindicato do país, conhecido
nacionalmente, em trajetória ascendente. O entusiasmo era grande. Caminhou em direção as ondas
revoltas e teria se afogado se não tivesse caído desacordado na areia, derrubado por um providencial
coma alcoólico, nesse caso benfazejo. Os companheiros ajeitaram Luiz no banco de trás do fusquinha
67 de um deles. Subiram a serra perigosamente, distraídos nas curvas e no excesso de veículos cheios
de crianças e outros tantos bêbados como eles. Demorada e alegre súbita. Finalmente, ao cair da noite
o entregaram em casa ainda desacordado. E assim ficou até a manhã do dia seguinte. O episódio da
praia, contudo, não caiu no olvido, nem entrou num ouvido e saiu pelo outro. Ao contrário, logo que
Luiz Loiola acordou e se recuperou da maldita ressaca, a primeira coisa em que pensou foi na questão
do seu sucesso como dirigente sindical. Agora estava sóbrio mas a sensação era a mesma. Doce,
enlevante. Haviam de lhe tirar o chapéu. Um simples rapaz do interior de um árido sertão do norte,
maior líder sindical do país! Mas, podia ir além? Tinha talento para isso? Devia ampliar o seu projeto?
Redobrar o seu esforço?
Antes da hora do almoço ele já tinha se dado a resposta às perguntas supracitadas pois, em verdade,
já as tinha elaborado antes e as trazia guardadas para aquela ocasião. Sim, tinha talento para ir muito
além! Era persistente, era predestinado, radical quando preciso, flexível quando conveniente. Faria tudo
para seguir em frente. Ato contínuo, dispôs-se a passar a tarde analisando o segredo do seu sucesso até
ali e o caminho para continuar assim. Mas em pouco tempo já havia alcançado a resposta pois essa
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também já tinha, guardada para a mesma ocasião. Não havia dúvida de que o seu sucesso pessoal advinha
do seu enorme poder de convencimento, de indução, de persuasão, de domínio sobre as massas. Possuía
um discurso eloquente, direto, simples. Sabia usar as palavras como ninguém.
Luiz Loiola da Silva regozijou-se. Recostou-se melhor na cadeira, cofiou a barba hirsuta, negra e um
tanto suja, cruzou as mãos atrás da cabeça e esticou os pés enfiados na sandália nordestina cheia de
chulé. As ideias vieram aos borbotões, fáceis e febris. Seu projeto de vida tinha que ser ampliado, sua
biografia enriquecida. Não tinha porque parar. Talvez quem sabe, um pouco mais de conforto e
segurança materiais, a mulher mais bem tratada, os filhos mais bem sucedidos, malgrado as limitações.
Alinhavou um plano com rapidez e competência. No processo - pensou Luiz com coragem -não seria
mal se passasse uns tempos na cadeia. Duro mas necessário. Seria um débito eloquente e suportável, a
sacramentar suas audácias como líder sindical. Com certeza, uma parte da imprensa o adotaria como
figura proeminente da resistência nacional ao autoritarismo vigente. O cavalo estava selado tocava
cavalgá-lo nos planaltos, longe da caatinga. Então partiria para um segundo passo grandioso: a fundação
de um partido político de projeção nacional. Almejava o poder, como não? Ele seria o presidente da
nova agremiação. Não teria dificuldades de impor seu estilo pessoal. O partido seria a sua cara. Ele! Mas,
claro, sem deixar de dar lugar a tanta gente heroica e valorosa ainda que, muitas vezes ingênua: exilados
políticos, padres perseguidos, intelectuais de esquerda, simpatizantes do mundo artístico, negros e
minorias. Todos muito cheios de nobres intenções, ou parecendo isso. Um belo festival. Muita falação,
entusiasmo, determinação e, de vez enquanto, umas pequenas e inocentes mentiras, pois política era
assim.
Inebriado pelo próprio entusiasmo Luiz Loiola adormeceu. E se pôs a sonhar. Mas no princípio o
sonho não foi propriamente agradável. Em lugar de sonhar com o sucesso sonhou com o fracasso.
Sonhou que estava no centro de um picadeiro, tentando fazer mágicas. Mas elas não funcionavam. Os
lenços não viravam flores e as flores não viravam pássaros. O público começou a rir e a vaiar. Mas ele
não se intimidou. Encarou a multidão, pegou a cartola, subiu numa cadeira, abriu os braços e... começou
um discurso. Mas o palavreado não saia da sua boca e sim da cartola. Saía sob a forma de palavras
coloridas que subiam e formavam frases cintilantes no ar. Indescritível maravilha: ele podia fazer o que
quisesse com as palavras e as frases decorrentes. Mágica, incomum e poderosa mágica. Podia florear,
adoçar, adornar o discurso como quisesse. Podia travestir a mentira, anular as evidências, fantasiar os
significados das frases. Magnífico e raro poder ilusionista. Em pouco tempo as vaias e risos se
transforaram em aplausos entusiasmados. Depois enlevo e sedução. Estrepitoso sucesso. Um grande
mágico, enfim. O final do delírio era estranho: a multidão botava fogo no circo. Mas ele não deu relevo
a essa parte enigmática, preferiu acordar.
Luiz Loiola acordou, mas o sonho não acabou. A bem da verdade, era agora que tudo ia começar,
com peso e conteúdo. O resto que sonhou, sonhou com os olhos bem abertos. Diante deles passou um
futuro brilhante. Vislumbrou que em poucos anos o partido que pensava fundar iria eleger uma mulher
como prefeita de uma importante capital, depois mais uma, numa capital maior ainda. Depois vários
prefeitos. Em seguida elegeria um senador por um grande estado. Governadores e mais senadores. E
nesse crescendo finalmente a presidência da república e o respaldo de uma ampla maioria no congresso.
Na sequência, uma Copa do Mundo, uma Olimpíada... enfim The World! E o principal: um povo
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encantado e grato. A permanência no poder por vinte anos, no mínimo. Com certeza tudo isso era
possível. Bastava um pouco de mágica. Palavras coloridas, frases delirantes, a anulação da história do
país, a flexibilização da ética, a reinvenção da lógica. Enfim, a boa prestidigitação da cartola que fala
colorido e forma frases incríveis no ar. Era a receita do sonho muito bem aprendida e pronta para
aplicação.
Antes que a noite caísse Luiz Loiola da Silva chamou a mulher, pediu uma garrafa de pinga, serviu a
primeira dose e levantou um brinde a si próprio. Era justo, convenhamos. Afinal, estava muito feliz. Ia
começar uma nova e fantástica aventura. Mais do que isso: no bojo dela iria realizar aquele inocente e
doce sonho de infância. Podia, enfim, tornar-se um grande mágico; como nunca antes houvera outro
na história deste país.
Faltava apenas montar um grande circo. A noite vai ser longa. Saúde!
INRI EM NOVA YORK
Um sujeito de mochila, sandálias, calça jeans surrada, casaco de lona e aspecto geral de
penúria nem sempre chama atenção no cosmopolita aeroporto JFK da cosmopolita cidade de
Nova York. Exceto se ele tiver uma indefectível cara de árabe o que o remeteria inapelavelmente
à condição de suspeito de estar maquinando maldades imperdoáveis contra a boa gente dos States.
E esse era o caso de Yeshua Náserat. Estatura mediana, delgado e descarnado, barba e cabelos um
tanto crespos e descuidados. Olhos absolutamente negros e serenos. Mãos grossas, pés crestados
pelas areias do deserto. Imagem autêntica, displicentemente escolhida para a missão que o levara
a um dos aeroportos mais movimentado do mundo. Talvez feio para os padrões ocidentais
modernos. Nenhum charme ou, sequer, alguma beleza exótica. Genericamente falando, tipo de
árabe da raiz dos cabelos até a macuco dos cotovelos. Enfim, protótipo físico purificado da gente
rude da arenosa Judeia. Não podia ser de outro modo para um descendente direto de David, o rei
divino em cujos canais das entranhas se moviam os fluidos que semearam aquelas terras desde os
tempos remotos do rescaldo do dilúvio e que depois se misturaram com as sementes aparentadas
dos verdadeiros árabes e outros povos vizinhos. E a boa genética resultante da feliz promiscuidade
se preservou pelos séculos seguintes, povoando aquelas plagas áridas do médio oriente com gente
laboriosa, belicosa e poética; cheia de conquistas, glórias, derrotas e sofrimentos. Como tinha sido
e é, afinal, com todo povo que Deus espalhou pela terra.
E lá estava Yeshua sorridente vagando a esmo pelos corredores atulhados do JFK, inocente
filho de uma moça chamada Maria; com sua mochila, sandálias, calça jeans surrada, casaco de lona
e aspecto geral de penúria, chamando uma certa atenção. Não dos transeuntes e passageiros, mas
das vigilantes autoridades imigratórias e dos caps em geral acantonados no aeroporto. Tinha vindo
numa missão de paz encomendada pelo Pai. Era a segunda vez. A primeira ocorreu há dois mil e
treze anos atrás, também sob encargo do Pai. Esse segundo mandado, de certa forma, era um
complemento do primeiro. É que o Pai andava meio aborrecido com a forma com que as coisas
vinham correndo no mundo, fazia já algum tempo. Não podia ser diferente mesmo para uma
190
paciência infinita. Os homens teimavam em contrariar cada vez mais o que Yeshua havia sido
encarregado de ensinar na sua primeira missão. Convenhamos, aquela ideia do “amai ao próximo
como a ti mesmo” que tanto havia entusiasmado seus discípulos nos primeiros tempos nunca
pegou de verdade e já anda inteiramente fora de moda, sepultada na febre do egoísmo e da
competição dos frenéticos tempos modernos, cheios de falta de sentido e de desnorteios. Nunca
se matou tanto, se roubou tanto, se mentiu tanto quanto agora. Pecar contra a castidade e desejar
a mulher do próximo então, liberou geral. De sorte que o Pai não estava nem um pouco
confortável e andava mais para um Josué severo e raivoso do que para aquele doce pai dos
primórdios do cristianismo. Vai daí, tinha resolvido botar um final na sua quase inesgotável
misericórdia. Afinal, a bandalheira instalada nos quatro cantos do mundo soava para ele como um
insolente abuso de confiança, pois ele criara os homens à sua própria semelhança, lhes dera o livre
arbítrio e não esperava que eles o fossem usar de forma tão vil como vinham fazendo. Chegou a
pensar numa solução radical, tipo aquela do Dilúvio ou de Sodoma e Gomorra. E foi aí que seu
filho Yeshua Náserat resolveu interceder. Pediu uma segunda chance para o seu rebanho. Talvez
não tivesse sido suficientemente convincente da primeira vez. Ou talvez a humanidade estivesse
precisando de uma reciclagem, pois é natural do ser humano ir esquecendo as coisas ao longo do
tempo. Também era evidente que a mensagem primitiva tinha que ser modernizada e melhor
adaptada aos tempos atuais. O Pai, em princípio, não gostou da ideia do retorno. Lembrou-se
amargurado daquela horrível história da crucifixão. Não queria aquilo de novo. No fundo guardava
uma certa mágoa de não ter interferido naquela carnificina mancomunada por judeus e por
romanos. Mas não podia. Eram as regras que havia se imposto, até a pedido do próprio Yeshua
que achava indispensável lastrear sua mensagem em cima das dores lacerantes de uma paixão
monumental, tão dramática e impactante que tivesse força para perdurar pelos séculos seguintes.
Infelizmente com pífios resultados, pensava o Pai sem comentar com o Filho amado. Difícil,
portanto, aceitar aquela frustrante experiência de novo. Mas Yeshua era jeitoso, doce e
desprendido. Seduziu o Pai com sua fala mansa e todo aquele seu jeito de santo, transbordante de
amor. Assim seu ponto de vista acabou prevalecendo. A humanidade teria mais uma chance. Mas
o Pai não queria dar qualquer moleza para a cambada desgarrada cá da Terra. Combinaram, então,
que as regras dessa segunda missão seriam mais rigorosas ainda do que as da primeira. Yeshua
voltaria à terra feito homem como outro qualquer, pobre e humilde. Viveria da caridade pública.
Mas, nada de milagres ou qualquer outro apoio espetacular para convencimento de fieis. Deveria
usar única e exclusivamente o dom da palavra, no velho estilo dos profetas. Depois de tantos
séculos a humanidade não podia mais ser tratada de forma infantil, paciente e dócil. Nem merecia.
Tinha que ouvir e entender o que ouviu direta e prontamente. Yeshua aceitou os termos sorridente
e cheio de entusiasmo. Estava pronto outra vez para o que desse e viesse. Mas tranquilo. Com
razão não esperava uma segunda paixão. Pelo menos não naqueles termos cruéis com que o
império romano se impunha sobres os povos batidos e que sobrou para ele injustamente naquela
sexta-feira de aziaga memória.
Desembarcou direto no Aeroporto de Nova York, como vimos. Pensava em começar nos
bairros negros e latinos periféricos formando o grupo básico de discípulos. Depois concentraria
sua nova catequese nas verduras do Central Park pois desertos são muito edificantes mas
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extremamente extenuantes. Mas não seria fácil chegar à cidade. Até porque, como dito, logo
chamou a atenção das autoridades da imigração e do FBI, quer dizer, já estava marcado.
Nesse instante o nazareno está sendo monitorado por câmaras de televisão e observado
por duas duplas de guardas à distância. Mera rotina aplicada a um sujeito como ele com aquela
notória cara de árabe, ainda mais desleixado. Pela rotina policial terá que ser abordado. Mas isso
terá que ser feito com muito cuidado, de preferência no banheiro. Teme-se o acionamento de uma
bomba suicida no meio da multidão. Ele não sabe de nada, contido nas regras do jogo com todas
as limitações que a sua condução humana lhe impunha de novo. Assim, nessa condição, sentiu
vontade de ir exatamente ao banheiro. Levantou-se, pegou a mochila e se dirigiu ao sanitário. Lá,
dois agentes já o esperavam. Outros dois ficaram à porta impedindo a entrada de novos
necessitados. Quem estava dentro foi convidado a sair, de sorte que o pobre rapaz foi detido
discretamente. Revistaram os bolsos e a mochila. Nada nos bolsos e na sacola só uns pedaços de
pão duro. Em seguida, na condição de fortemente suspeito, foi levado a uma sala da Imigração
para interrogatório. Não tinha nenhum documento. Duplicava-se a sua suspeição. Explicou que
era de Belém na Judeia, atual Palestina. Pronto: estava triplicada a sua suspeição. Ao responder com toda a candura que lhe era peculiar - à pergunta a respeito do que tinha ido fazer nos Estados
Unidos a situação complicou ainda mais. Ninguém acreditou realmente naquele papo de que tinha
vindo numa missão de paz e amor para tentar salvar a humanidade. Uns o taxaram de cínico,
outros de desequilibrado. Não faltaram safanões e cotoveladas. Coisa pouca, diante do que já
estava acostumado. Ao final de uma série de interrogações mais ou menos rudes e debochadas foi
fichado como louco e terrorista em potencial. Acabou internado numa solitária à disposição do
FBI e de uma junta de psiquiatras e psicólogos judiciais. Coitado, não contava com essa. Mas
permaneceu sereno, à espera não sei bem de que, pois milagres não haveria, conforme o
combinado.
Esqueceram-se dele por uns tempos, período de que ele se aproveitou para rezar ao Pai e
pedir inspiração. Esse estava bastante aborrecido com aquilo tudo e o próprio filho teve que lhe
pedir paciência e perseverança.
Passaram-se alguns meses. O humilde nazareno permanecia sereno, rezando, fazendo
penitência e repassando seus sermões. Numa madrugada fria de novembro foi acordado por um
ruidoso tropel de passos militares. Enfraquecido pelo jejum estava meio zonzo e sonolento e
chegou a pensar que fosse um resgate comandado pelo anjo Gabriel. Nada disso, claro. Ao
contrário era a vil guarda pessoal do coronel Stallone estalando os cascos no piso duro do corredor
da prisão. Lembram-se dele? É aquele cara durão, especialista em resgatar soldados americanos na
selva e punir atrevimentos de cucarachas aqui e acolá. Graças aos seus relevantes serviços à
consolidação do orgulho americano havia sido promovido a chefe das forças especiais
antiterroristas. No momento o garboso coronel estava com um grande pepino nas mãos e tinha
tido uma grande ideia. Nela o doce Yeshua seria peça fundamental e por isso Stallone estava ali
pessoalmente. Queria conversar com o prisioneiro. Apenas para confirmar que ele era o cara
perfeito para o que vinha maquinando. Precisava de um bode expiatório e o nazareno parecia
talhado para o papel. Vou explicar com mais vagar. É que há quatro dias tinha havido um atentado
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terrorista na cidade de Boston, num evento esportivo. Três pessoas inocentes morreram e o
orgulho americano foi a zero sob críticas do mundo inteiro. Mister President havia telefonado
pessoalmente para Stallone determinando que os responsáveis pelo famigerado ato fossem presos
em quarenta e oito horas. O experto coronel não viu nenhum problema. Era só recorrer ao plano
clássico do bode expiatório. Quer dizer botar a culpa num árabe, russo, cubano ou coisa parecida.
Depois caçá-lo como a um animal. Em seguida matá-lo por não ter querido se render. Pobre do
moço de Nazaré, era perfeito para assumir o papel. Palestino, sem documentos e louco. Seria fácil
transformá-lo num clandestino fanático e alucinado. Stallone conversou com ele alguns minutos
e deixou o recinto da prisão entusiasmado. Além de louco, também era manso e ingênuo, quer
dizer, fácil de ser levado. Melhor do que a encomenda. De sorte que o plano começou a ser
colocado imediatamente em andamento. O prisioneiro foi encapuzado e metido dentro de um
carro, cercado por quatro homens corpulentos e grosseiros. Percorreram os trezentos e cinquenta
quilômetros de Nova York a Boston em quatro horas, tempo em que os tais homens iam fazendo
piadinhas aterrorizantes sobre o que estava para acontecer. Ao chegar, buscaram uma rua deserta
na periferia, tiraram o capuz de Yeshua Náserat e o atiraram fora do carro. Ele se levantou zonzo
tentando entender o que estava ocorrendo. Não teve tempo de nada. Foi alvejado com quatro
tiros no peito vindos de cima, partidos da arma precisa de um atirador de elite. Em seguida os
quatro homens desceram do carro e disparam tiros de metralhadora no próprio veículo em que
estavam. Depois fizeram um sorteio macabro e o perdedor foi alvejado com dois dolorosos tiros:
um no ombro e outro no braço. Isso feito deitaram o colega alvejado no banco de trás do carro
com todo cuidado e foram examinar o corpo de Yeshua. Estava morto, estirado numa poça de
sangue. Acenderam uns benditos cigarros, se assentaram na calçada calmamente e aguardaram.
Dez minutos depois chegava Stallone com sua bela boina azul de campanha. Deu uns telefonemas
risonhos, cumprimentou todos com satisfação e também se assentou na calçada dando uma de
bom companheiro. O corpo do pobre nazareno foi colocado num saco e levado ao necrotério da
polícia. Lá alguém examinou os ferimentos das balas e depois encerrou o corpo numa gaveta
gelada. Enquanto isso o coronel aguardava a imprensa no local do acidente. Chegaram todos ao
mesmo tempo. Stallone pediu para abrirem um círculo e passou a contar o que houve com empáfia
e canastrice. Explicou que tinham acabado de abater o terrorista responsável pelo atentando. Era
um palestino que havia sido preso quando tentava entrar nos Estados Unidos clandestinamente.
Havia fugido da prisão há alguns meses, tendo sido localizado em Boston recentemente. Em
pouco tempo conseguiram reunir amplas evidências de que ele tinha sido responsável pelo ato
terrorista. Tentaram prendê-lo, ele resistiu alucinadamente, feriu um agente e teve que ser abatido.
A entrevista foi encerrada debaixo de grande tumulto. Os jornalistas queriam ver o corpo
do famigerado terrorista, o que era natural e justo para corroborar a versão oficial. O coronel
Stallone, com toda descontração, informou que iria em seguida ao necrotério e que quem quisesse
poderia acompanhá-lo e fotografar o corpo. Isso dito, abriu caminho na multidão e entrou na sua
camionete de campanha. Seguiu espalhafatosamente com as sirenes ligadas e as luzes piscando,
rumo ao necrotério comboiando os furgões da imprensa. Lá chegando dividiu os grupos em
subgrupos e pediu disciplina. Entrou na sala das gavetas geladas e seguiu em frente, trotando no
seu passo militar. Posicionou os fotógrafos em círculo e mandou abrir a gaveta onde estava o
193
morto. Os fleches espocaram em luminoso frenesi e em nervoso frisson. Inútil. Não havia nada a
fotografar, não havia corpo algum. No princípio todos acharam tratar-se de mero engano. Era a
gaveta errada. Houve até piadinha. O coronel, porém, não achou graça nenhuma. Pediu respeito
e espinafrou severamente o médico legista que havia aberto a tal gaveta. Este ficou perplexo. Tinha
certeza que a gaveta era aquela. Coitado teve que abrir várias gavetas e conferir o conteúdo
inutilmente. Quanto mais abria gavetas geladas e examinava o conteúdo inutilmente mais suava e
se espavoria. A coisa foi ficando hilária e o coronel Stallone foi ficando apoplético e espumante.
Para resumir: o corpo havia sumido, esfumaçado.
Cabeças rolaram, o caso ficou inconcluso e está assim até hoje. Teme-se até que Mister
President não consiga fazer seu sucessor, tal a repercussão negativa da história mal arranjada.
Stallone foi obrigado a se aposentar e hoje se dedica a uma companhia de teatro infantil. Mas está
felicíssimo pois acha que, finalmente, encontrou algo à altura do seu talento dramático. Mero
autoconsolo, por certo.
Yeshua Náserat voltou à casa paterna e reocupou seu lugar e seu mandato perpétuo. Anda
meio macambúzio. Tem evitado tocar no assunto com o Pai. Mas suspeita que ele vem pensando
em disparar uns asteroides de raspão na torre do Empire State. Por enquanto, só para assustar. O
bom Yeshua desaprova a ideia, mas permanece calado.
AVENIDA ADOLF HITLER
Joaquim Eugênio de Freitas jr. conheceu Adolf Hitler pela internet. Conheceu é exagero
pois o filho único de J. Freitas - o alcaide da cidadezinha latino-americana de Coração de Mãe - já
conhecia razoavelmente bem o ditador alemão. Mas foi então que começou a se interessar
vivamente por ele. Foi por absoluto acaso, contudo marcante. Freitinhas – como é conhecido no
seu meio – estava navegando a esmo pela web quando se deparou com a foto de um grupo
empertigado, em fardas escuras engomadíssimas reverenciando uma bandeira negra com a cruz
suástica estampada agressivamente no centro. Também não era a primeira vez que tomava
conhecimento da existência de tentativas pontuais de fazer renascer as ideias e práticas do nazismo.
Nunca havia dado muita atenção. Desta vez, porém, o assunto lhe despertou interesse. Gostou da
aura de disciplina, devoção e determinação que o gestual e as vestimentas do grupo exalavam.
Havia distinção. Muito diferente daqueles grupelhos de skinhead, com suas cabeças raspadas e
seus adereços ridículos, querendo chamar a atenção pelo grotesco. Esse novo grupo era de peso,
congregando importantes empresários e financistas. Gostou também da majestade da bandeira
enorme e negra, esvoaçando triunfalmente contra um céu cinzento ameaçador. Surreal e
impressionante. Tocou a esmiuçar melhor as ilustrações e o texto. Clicou aqui e acolá e descobriu
que a foto mostrava o momento mais solene da fundação recente, na Alemanha, do novo
Nationalsozialistische Deutsche Arbeiterpartei ou no vernáculo mais preguiçoso Partido Nazista, ou
Neonazista pela temporalidade. Descobriu que era a primeira vez que se fundava uma agremiação
política com o nome exato do partido fundando pelo próprio Adolf Hilter e achou que isso dava
uma autenticidade a mais àquela tentativa de reviver a herança do ex-pintor austríaco, medíocre
194
como artista; intolerante, traiçoiro e sanguinário como político, mas sedutor como líder das massas
prontas para serem seduzidas. Pasquisou mais e o entusiasmo de Freitinhas foi crescendo.
Naquela altura da vida o rapaz vegetava uma existência sem sentido, preguiçosa e plena de
alienação. Mas não era ignorante e, muito menos, burro. Na escola passava de ano sem estudar.
Gostava particularmente de História e essa era a única matéria a que dedicava um pouco de
atenção. Resultava disso possuir razoáveis conhecimentos sobre as peripécias de Hitler, como dito
a pouco. Possuia pendão para línguas e, sem esforço ou aplicação, já dominava razoalvelmente o
inglês e o francês. Meticuloso, sempre fazia bem o pouco que se empenhava em fazer. Lia uma
coizinha ou outra no seu tablet, mas sua fonte básica de informação era mesmo a internet e as sua
esfuziantes generalidades. Recebia uma confortável mesada do pai e achava que a vida era fácil.
Pouca coisa canalizava o seu entusiasmo e as suas energias. Solitário, passava dias sem sair do seu
quarto, navegando as águas de um mundo cada vez mais virtual, contido num oceano miudo,
facilmente conquistável, sem lutas e sem glórias. Até pra mulher e futebol dava pouca atenção.
Quer dizer o vazio que tomava conta da alma, dos neurônios, das veias e dos nervos do Freitinhas
era enorme e grave. Agora, aos vinte e seis anos de idade, seu modo de ser e de viver já tomava
uma dimensão psiquiatricamente preocupante, até pelo tamanho da mediocridade do sentido que
imprimia em sua intrinsecamente preciosa existência. Como não era estúpido tinha consciência
disso e, no fundo, se achava incomodado. Então, ultimamente vinha sentindo que estava
precisando se envolver num projeto qualquer, fixar uma meta, comprar um desafio. Mas não
queria nada que viesse do escaninho dos modismos piegas, pois também se ocupava em matar o
pai de desgosto, um pouquinho a cada dia, numa espécie de vingança, surda e sem sentido. Mas
enfim, porque não se enganjar pra valer numa causa marginal, contundente como um chute no
saco? Nada mais marginal do que se enganjar num partido nazista na era do politicamente correto.
O chute no saco seria a consequência natural do processo de engajamento. Tocado por esse moto
um tanto imbecil, mais existencial do que propriamente político, foi em frente. Aprofundou mais
a pesquisa e descobriu um link que o conectou diretamente ao site do tal partido neonazista. Era
um site originalmente em alemão mas com opção multilínguie. Optou pelo inglês e conferiu no
francês. Entre fotos de Hitler e da glória iconográfica do terceiro Reich, no meio das figuras de
Himmler e Goebbels com seus aspectos macabros e Goring com sua pança ridícula e sua cara de
sapo; descobriu o programa do partido nazista mais uma vez ressuscitado. Pareceu-lhe inovador,
flexível e interessante pela racionalidade e pragmatismo. Achou até que havia um toque de
tolerância em relação às questões raciais e das preferências sexuais alternativas. Havia metas de
curto, médio e longo prazo. Nada de sair caçando e liquidando as outrora chamas “minorias”.
Também nada de “putsch de cervejaria” acontecendo por aí. Claro que certas coisas parmaneciam
intocadas, pois eram a essência da ideologia nazista, tais como o totalitarismo e a legitimidade
intrínseca do tanque do estado passar sobre os campos de flores da nação, sempre que um fuher
achasse necessário. Enfim, a semente amarga das crueldades continuava intocada, mas isso não
incomodou Freitinhas nem um pouco. Foi em frente mantendo o entusiasmo e procurando uma
vaga para si no meio daquele projeto, extemporâneo desde sempre. Constatou que, ao contrário
do que defendiam as raízes nazistas primitivas, o lado ativista do projeto partidário embutia um
certo internacionalismo leninista calcado na ideia de que a ação do partido deveria ter ramificaçoes
195
de militância supranacional. Quer dizer, espalhar partidos nazistas pelo mundo, cada qual
concliando seus próprios nacionalismos com os nacionalismos dos outros, numa exótica salada
ideológica. Esse revisionismo seguramente faria Hitler rebolar no túmulo. Foda-se! Afinal, simples
pragmatismo imposto pelas particularidades atuais, sessenta anos depois do fiasco. Nada que
decepcionasse Freitinhas. Continuou examinado o programa do novel partido. Despertou-lhe
especial interesse um ítem do capítulo das prioridades imediatas. Fixava uma meta interessante: a
reversão urgente da entnazifizierung ou denazification em todos os cantos do mundo. Não sabia bem
o que era isso mas apelou para o Google e descobriu que se tratava do movimento mundial,
ocorrido logo após a derrota de Hitler, destinado a apagar os vestígios históricos da sua passagem
pelo mundo. Foi então que as tantas “Praças Terceiro Reich” e as tantas “Avenidas Hitler”
espalhadas pelo mundo, desapareceram do mapa. Eis algo concreto e leve e em que podia se
engajar a título de experiência, pensou Freitinhas, inegavelmente com sensatez. Compensava
muito se engajar na empreitada pois o prêmio para o militante que conseguisse alguma marca
nazista num logradouro público, em qualquer lugar, seria agraciado com a “Cruz de Ferro”,
comenda máxima do partido. Seria um belo salto na carreira, logo de cara. E foi aí que começou
de fato a carreira de militante neonazista de Freitinhas, versão light contemporânea terceiromundista. Um plano de ação explodiu em sua cabeça, imediato e pronto. O pai era alcaide, tinha
a câmara municipal da pequenina Coração de Mãe na palma da mão, não teria dificuldades em
obter apoio para construir um novo, moderno, largo e ajardinado logradouro e dar-lhe o nome de
Avenida Adolf Hitler. Mas, vamos por etapa na narração. Primeiro o rapaz se inscreveu no partido,
categoria postulante, área sul-americana com taxa de filiação de 45 Euros, fora taxas. No espaço
destinado a digitar informações sobre a forma de engajamento, explicou: militar na política de
reversão da entnazifizierung. Enviou a proposta de filiação e aguardou a resposta ansioso, tempo
em que já foi mostrando uma inusitada e discreta simpatia para com o pai. Este estranhou mas
gostou da mudança de humor do filho. De fato, havia algum tempo que a relação entre eles vinha
difícil. Na verdade, desde a morte da mãe, seis anos atrás. Acusava o pai de ter sido o causador do
suicídio. Pode ser um exagero, mas nem toda mulher tem forças para superar o trauma de ter
apanhado o marido com uma vagabunda resfolegando nos linhos egípcios da sua própria cama.
Fato é que a acusação tem lá o seu sentido e pai e filho romperam. O pai morria de desgosto e
Freitinhas tinha resolvido se servir disso agora o que, também, tem lá o seu sentido. Enfim, o
diálogo foi se restabelecendo aos poucos. De sorte que, quando chegou a resposta de que a
proposta de filiação tinha sido aceita, Freitinhas pôde logo colocar seu plano em andamento com
todo dinamismo.
A reconciliação propriamente dita foi emblemática. Aconteceu num almoço, o primeiro
juntos depois de muitos anos. O pai estranhou a presença do filho no outro lado da mesa
patriarcal. Não perguntou nada, deixou correr. A conversa foi sem graça, sem propósito, inócua,
de aproximação, de aquecimento. Mas ao final os dois se sentiram inteiramente satisfeitos. Na
verdade, o pai quase exultante. No dia seguinte Freitinhas procurou o velho no gabinete da
prefeitura e foi reto ao assunto que interessava, sem nenhum constrangimento. Contou a história
da sua filiação ao partido nazista, explicou os seus propósitos. Justificou daqui e dali. Falou do
projeto da Avenida. O pai ouviu calado. Achou a ideia esdrúxula mas não quis retrucar. Encheu196
se de ansiedade e achou que o filho estava sendo capcioso. Mas via um lado positivo naquilo tudo.
Pelo menos Freitinhas havia tirado a bunda da cadeira e traçado um objetivo na vida. O luto tinha
acabado. Assim, prometeu pensar no assunto. E foi sincero, passou a noite em claro pensando
no dito assunto. Tinha duas pedras colocadas na balança. De um lado a repercussão negativa que
o fato podia alcançar e que ele não sabia mensurar, até por ignorância. Do outro lado a chance de
recuperar o respeito e o amor do filho, coisa verdadeiramente impagável. Pela manhã o coração
de pai tinha falado mais alto. Chamou o filho e disse que iria tocar a ideia adiante. Mas que tivesse
paciência pois não sabia das resistências que iria ter pela frente. Freitinhas agradeceu com um
arremedo de abraço, quase terno e quase sincero. Ato seguinte o alcaide chamou o Mello - seu
chefe de gabinete - e pediu um estudo sobre o assunto, com prazo de vinte quatro horas para
conclusão. O dedicado assessor, não só cumpriu o prazo como produziu um relatório
competentíssimo, como era seu estilo. Por ele J. Freitas ficou sabendo dos propósitos do novo
partido nazista, bem como das repercussões da criação de uma Avenida Hitler em Coração de
Mãe. O competente Mello alinhou os aspectos negativos da iniciativa, mas também não deixou de
enxergar coisas positivas naquele atrevimento. Política é assim: é sempre bom chamar a atenção
seja de que forma for, pois tem sempre jeito de justificar o injustificável. A repercussão, ainda que
negativa, poderia dar um empurrão à direita na pretensão do velho alcaide J. Freitas rumo à Câmara
Federal, seu projeto final de carreira e que já caminhava para a lata de lixo por falta de
oportunidade e de mais tempo de saúde e vida. Com essas cartas na mesa, o jogo foi em frente.
O Alcaide chamou a parentalha explicou a situação. Tocou no lado sentimental e não deu outra, a
família apoiou e mexeu os cordéis da política local como fazia há mais de meio século. Resultado
previsível: o projeto de lei foi levado à edilidade em tempo curto e aprovado sem dificuldade
apesar dos protestos da oposição, atuante, encrenqueira mas diminuta e manietada. Um mês
depois de ter acionado o pai amoroso, Freitinhas recebeu dele uma cópia da lei municipal Nº
014/13 que criava a Avenida Adolf Hitler, dava outras providências e revogava as disposições em
contrário. Foi como um presente de sonho, literalmente de pai para filho. O povo, claro, não ficou
sabendo de nada e só se daria conta do que estava acontecendo quando o caso estourou na
imprensa, levado pela oposição; como dito, manietada mas atuante e encrenqueira. Nessa altura
uma cópia da lei já tinha sido enviada para a Alemanha e Freitinhas já tinha recebido um despacho
oficial dando conta de que a cúpula do Partido estaria presente à inauguração. Outra cópia vazou
para a imprensa. Foi então que o caso estourou pra valer e velhas diferenças voltaram a acirrar os
ânimos, instigadas pela mídia. Coitado do velho Freitas, logo ficou sob fogo cruzado. Não
esperava tanta reação negativa. É que, de repente, a tranquila Coração de Mãe foi tomada por
hordas fanáticas contrárias à ideia. Índios invadiram o canteiro de obras, ecologista plantaram
mudas de árvores nas áreas terraplanadas, gays e lésbicas, sapatearam sobre monturos de terra.
Uma loucura. Somado a tudo isso as ironias da imprensa e as perguntas constrangedoras dos
repórteres. O alcaide estava a ponto de desistir da ideia quando recebeu uma discreta visita de um
representante do Partido Neonazista vindo direto da Alemanha. Falava português com perfeição
e estava acompanhado do Freitinhas, cheio de determinação. O alemão prometia amplo apoio
financeiro ao andamento da obra. Além disso, acenava com a construção de uma grande fábrica
na cidade se a avenida viesse mesmo a ser inaugurada, conforme estava previsto. E mais: garantia
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o financiamento da campanha para eleição dos representantes do partido no Congresso Nacional.
Tudo isso debaixo do maior sigilo e discrição. Era muito, mas o velho Freitas queria mais. Queria
certeza de que a sua iniciativa era perfeitamente legal e que teria apoio substancial do partido. O
alemão esclareceu que o apoio do partido era total. Quanto ao lado legal afiançou que não havia
nenhum dispositivo que impedisse que qualquer logradouro daquele país pudesse ter o nome de
Adolf Hitler. Isso dito tirou da pasta o parecer da assessoria jurídica sobre o assunto e passou-o
ao Freitinhas que estava ao seu lado. Esse leu o papel e balançou a cabeça num gesto de aprovação.
J. Freitas, o velho alcaide de Coração de Mãe, era determinado e ambicioso e havia o lado filial da
questão. Além disso, como político, era teimoso como uma mula. Resumindo: pesou os prós e os
contras mais uma vez e decidiu levar o caso adiante apesar dos percalços. Até mostrou serenidade
quando recebeu um telefonema do gabinete da presidência da república falando das preocupações
do presidente com possíveis repercussões negativas da sua iniciativa nos países amigos. Freitas
chegou mesmo a ser sondado sobre a possibilidade de abortar a ideia. Mostrou firmeza e
descartou essa possibilidade. Mas prometeu que a cerimônia de inauguração seria simples e que
não haveria nenhum monumento ou placa comemorativa adornando a avenida. Apenas as placas
de canto de rua.
Intercalando medidas judiciais e outras não muito lícitas. Uma ameaça aqui, um mandado
ali, uma cotovelada acolá; o alcaide afastou os manifestantes contrários, retomou o controle e a
obra pôde seguir. Não que as, outrora chamadas “minorias”, tivessem desistindo do radicalismo
do protesto. Ao contrário, a turma continuou sapateando por lá, mas o Freitas mandou cercar e
policiar o canteiro de obras. Assim a obra seguiu. Ainda sob protestos, mas mais à distância sem
o estorvo de atrevimentos maiores. A população ficou olhando de banda aquilo tudo sem
participar. A maioria até estava gostando daquela agitação. Movimentou o comércio e muita casa
de família virou pensão, com tanta gente precisando de pousada e de alimentação.
A obra atrasou um pouco e muita gente falou em superfaturamento, mesmo sem saber que
o partido tinha assumido todas as despesas enviando dinheiro a fundo perdido. Eu pessoalmente
nem sei se o J. Freitas tentou levar alguma vantagem não combinada. Nesse tempo o protesto não
parou, muito antes pelo contrário, tinha virado mania nacional. No dia da inauguração o circo
estava montado. Partidários de ambos os lados, alguns autênticos outros a soldo. Todos dispostos
a cumprir o seu papel. Policiamento reforçado. Máxima prontidão. Mas, a bem da verdade, tudo
correu relativamente bem e em paz. É que havia muito mais simbologia do que ameaças concretas
à direita ou à esquerda. Aliás, nesses tempos, ninguém já sabia mais o que isso significava.
Também, como prometido, a cerimônia foi relativamente simples e minimamente agressiva. A
cúpula do Nationalsozialistische Deutsche Arbeiterpartei estava lá no palanque com seus belos
uniformes engomados. Tinham protestado contra a decisão do alcaide de não colocar nenhuma
placa comemorativa ou monumento na avenida. Mas nesse caso o velho Freitas também mostrou
firmeza e a alemãozada teve que concordar com essa castração pois era a única reversão da
entnazifizierung que tinham conseguido em todo o mundo. De qualquer forma, uma enorme e
ameaçadora bandeira com a cruz suástica foi solenemente hasteada, debaixo do bater de botas e
de saudações ao fuher do bigodinho ridículo. Mas não infundiu temor. Ao contrário, caiu no
simples deboche, confrontada que foi por mil bandeirinhas de arco-íris agitadas alegremente pela
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ala GLS. Bem no meio da avenida danças e convescotes de protesto, entremeados de muito beijo
homo na boca. Isso sim, foi um verdadeiro sucesso. Aliás, tanto deboche fez a turma dos nazistas
deixar o local mais cedo do que o esperado, sob a mira insolente de flechas indígenas e vociferando
contra tanta liberalidade.
Foi assim, o frenético dia de inauguração da peculiaríssima avenida, oficialmente Avenida
Adolf Hitler. Decorrido três anos, a tal fábrica prometida pelos nazistas continua uma promessa,
assim como a promessa de financiamento de campanha. Mas a avenida permanece movimentada
pois o deboche continua. É um desfile atrás do outro, com destaque para a parada gay e o concurso
nacional de drag-queens. O lugar virou moda e Coração de Mãe virou ponto turístico nãoconvencional. O velho Freitas decepcionado com as quebras de promessa dos nazistas e cansado
dos escárnios da imprensa, está pensando em mudar o nome da avenida. Mas teme que isso
espante os eventos e prejudique o turismo inesperado que está alavancando a cidade. Por isso está
pensando em fazer um plebiscito de SIM ou NÃO. Se ganha o SIM o nome permanece. Na minha
opinião o SIM vai ganhar. É que a maioria da população continua não tendo a menor ideia de
quem foi Adolf Hitler, mas adora o progresso que ele trouxe para a cidade, assim de repente.
Portanto nem sonha em mudar o nome da avenida.
Quanto ao Freitinhas, recebeu a sua comenda da Cruz de Ferro pelo correio e a jogou numa
gaveta. Desanimou de tudo novamente e voltou para a clausura do seu quarto.
O CARTÓRIO
Não havia bagunça mais ordenada do que a do Cartório das Serventias Notariais de
Carapinhaca, núcleo urbano antigo e populoso, nas cercanias da capital da província. A despeito
do entulho aparente, documentos encerrados nos recônditos de livros e fólios empoeirados de
mais de oitenta anos de idade podiam ser localizados e resgatados em minutos, com mínima
margem de erro. Podiam estar em cima do balcão, numa gaveta, no último andar da prateleira,
empilhados contra a parede. Não havia erro, sabiam exatamente onde encontrar. Autores dessa
façanha de notável eficiência? Justamente o oficial do cartório e seu fiel assistente notário, ou mais
exatamente suas prodigiosas memórias fotográficas para nomes, locais, letras, pontos e vírgulas.
Vinha sendo assim há gerações. Vale dizer, desde que o bisavô do atual oficial titular instalou o
cartório e inaugurou a profícua parceria com o bisavô do atual tabelião. Depois os avós, os pais e
os atuais, todos na mesma lida cartorial ao antigo estilo luso-colonial. Uma ordenada e benfazeja
sucessão de bons parceiros, estável e profícua. Na verdade havia um método naquela aparente
desordem, mínimo mas efetivo. É que um e outro haviam estabelecido uma divisão de tarefas: um
cuidava do registro de imóveis e documentos e o outro cuidava do registro civil.
Mas vamos dar nome aos bois. Hoje o oficial é o dr. Antônio Olegário Bisneto e o tabelião
é o dr. Pedro Belizário Bisneto. Os dois são bacharéis em direito. Mera formalidade por conta das
exigências de uma nova legislação que impôs essa titulação aos profissionais capitulares dos
cartórios. Mas nada mudou em relação aos seus velhos ancestrais: em essência continuam dois
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dedicados notários que metem a mão na massa todo dia, pois a organização das rotinas ainda
continua dependendo de suas notáveis memórias e seus cérebros dotados de escaninhos naturais.
Antes de seguirmos cabe um esclarecimento aos eventuais futuros biógrafos dessas sumidades
burocráticas: nunca houve um Pedro Belizário Filho. Essa descontinuidade na ordem de sucessão
dos nomes é singularmente devido ao fato de que, quando o primeiro assistente foi trabalhar com
o primeiro dono do cartório, seu filho já havia nascido e só na geração seguinte é que se pôde
estabelecer a homonímia dos sucessores de Pedro Belizário. Aliás por pura imitação ao
pernosticismo nobiliárquico do patrão, leviano mesmo sendo suas raízes autenticamente antigas e
inquestionavelmente distintas. Mas isso deve ser tratado como um detalhe irrelevante. O que
interessa mesmo à compreensão da meada desse caso é dizer que, hodiernamente, já não existe
mais a figura propriamente de dono de cartório, bela sinecura que encantava e contentava os
coronéis da velha política pós-colonial. A lei mudou há alguns anos e deu novos nomes aos velhos
vícios.
Como dito, o atual oficial registrador é o dr. Antônio Olegário Bisneto e o tabelião é o dr.
Pedro Belizário Bisneto, e é com eles que a história começa. Na verdade começa com Antônio
Olegário Trineto – o Trinetinho - cheio de planos para modernizar o cartório do pai, debaixo de
pesados investimentos. Antônio, como primogênito, tinha direito de assumir a gestão do cartório
depois que o pai quisesse parar. Nunca se interessou por aquela parafernália de papéis. Sua paixão
era a informática, ou seja, exatamente a técnica anti-parafernália-de-papeis por excelência. Assim,
num primeiro momento, pensou em abrir mão do belo patrimônio que fatalmente herdaria. Mas
o pai foi taxativo: teria que se bacharelar em direito e se preparar para assumir a gestão do cartório.
Houve contraditórios. Tiveram que negociar. Mas não foi difícil chegarem a um acordo pois, em
princípio, não havia tanto conflito assim. Pelo acordo ficou acertado que o filho estudaria direito
e informática ao mesmo tempo e quando se formasse iniciariam um processo gradativo de
transferência da gestão da massa da papelada. Num segundo momento o pai se afastaria em
definitivo e o filho assumiria o controle dando partida a um grande processo de mudança centrado
em um plano de gestão informatizada de todos os registros do cartório. Depois da morte do
Bisneto tentariam, claro, que o Trineto mantivesse a bela dádiva do Estado como novo registrador
oficial. Aliás, para isso, já se tinha iniciado um processo de cartas marcadas em todo o país pois
ninguém se conformava em ter que abrir mão da velha hereditariedade cartorial que a nova lei
quis impor.
E o trato seguiu como havia sido combinado, pelo menos no princípio. Antônio Olegário
Trineto matriculou-se em direito e em informática em duas renomadas faculdades muito bem
pagas da capital. Cinco anos depois, com os canudos debaixo do braço, instalou-se em
Carapinhaca, dedicação exclusiva; para dar sequência ao plano da sua preparação para modernizar
e assumir a gestão do cartório.
Em duas semanas já entrava em linha de colisão com o pai. É que este queria que o processo
de informatização só fosse iniciado depois que o filho tivesse dominado todas as antigas rotinas
de gestão, vale dizer, dominado a velha prática de conhecer a papelada do cartório em toda a sua
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intimidade, profusão e aparente desordem. De fato, esse era o trato. Mas o filho achava aquilo
uma absurda perda de tempo. Calculou que levaria cinco anos nessa aprendizagem insensata.
Lembrou que atualmente o velho cartório de Carapinhaca era um dos poucos ainda não
informatizados de todo o país, mesmo estando instalado na periferia de uma grande capital. Daqui
a cinco anos já teria virado uma piada nacional. O processo deveria começar já. Até por uma
questão estratégica: o tabelião Pedro Belizário Bisneto não tinha tido um filho para sucedê-lo. E
pior, recentemente havia sido diagnosticado nele o início de uma doença neurológica degenerativa.
Ou seja, em pouco tempo estaria incapacitado para exercer sua atividade tradicional. Isso poderia
deixar o cartório em situação crítica enquanto estivesse dependente daquela providencial
capacidade de achar documentos recorrendo apenas à memória. Ademais cabia uma reforma
muita mais ampla no próprio conceito cartorial até agora adotado, com modernização das
instalações e melhoria da capacitação dos recursos humanos.
Acabaram fazendo um novo acordo. Desta vez não tão pacífico. Muito antes pelo contrário,
cheio de amargura e sequelas, especialmente para Pedro Belizário Bisneto que se sentiu traído e
descartado, depois de tantos anos de bons serviços em parceria de família. Justo agora, que havia
ficado doente e vislumbrava um triste horizonte pela frente. Mas foi assim mesmo. O processo de
informatização começaria já e estava previsto para durar um ano. Os Bisnetos participariam dele
ajudando na localização da documentação e depois se afastariam definitivamente da gestão,
marcando presença por mera formalidade, apenas para assinar documentos, como oficiais que
eram de direito, na forma da lei.
A ampla reforma começou numa segunda-feira, como convém aos projetos arrojados. O
jovem Antônio Olegário Trineto havia formado uma equipe para digitar e fotocopiar os dados,
conforme as linhas de um programa pirateado e adaptado por ele ainda na faculdade. Para a parte
das instalações encarregou uma arquiteta que estava paquerando com fúria libidinosa. Até uma
curadora havia sido contratada. É que o jovem Trineto tinha tido uma ideia, interessante é forçoso
admitir, como veremos a seguir. Não se esperava maiores dificuldades na execução do projeto,
mero trabalho braçal. O pai e o tabelião se revezariam na tarefa de atender as rotinas do cartório
e alimentar as necessidades da equipe na localização de dados. E assim seguiu-se o cronograma,
sem incidentes de monta. Apenas um pequeno atraso no lançamento de dados, mas nada que
prejudicasse o todo. De sorte que cerca de dois anos depois do início do processo surgia o Novo
Cartório das Serventias Notariais de Carapinhaca. Tudo novo, inclusive o prédio construído para
os fins precípuo da destinação do negócio. Os papéis velhos, foram aninhados no porão, numa
espécie de museu com entrada independente e aberto à visitação guiada. Na verdade, uma réplica
perfeita do velho cartório com seu caos organizado. Era uma espécie de homenagem do jovem
Trineto aos seus respeitáveis ancestrais que tinham mantido assim o cartório por quase cem anos
e enriquecido com ele. O pai não comentou a ideia. Talvez alguma coisa doesse.
O padrão arquitetônico do edifício primava pela racionalidade. Vale a pena descrever os
detalhes. Após atravessar um exuberante jardim tropical a clientela dava com uma ampla porta de
vidro fumê, armada em metal escovado. Depois adentrava uma espécie de vestíbulo onde uma
recepcionista muito bem treinada, repleta de dentes perfeitos e pesada maquiagem orientava o
201
pessoal e distribuía senhas. Daí entrava-se numa sala de espera com fileiras de cadeiras
confortáveis, fixadas em frente ao balcão de atendimento. Atrás do dito balcão alguns
funcionários, cada qual tendo à frente um moderno computador para consultas, dedilhavam
competentemente seus respectivos teclados, acessando em tempo micrométrico os registros
desejados. Infelizmente em relação a colagem de selos e bateção de carimbos não foi possível
introduzir muita inovação. É verdade também que, volta e meia, alguém tinha que pedir ajuda aos
velhos e ir até o porão consultar um ou outro documento, mas isso era exceção e, no geral, podese afirmar com certeza que o avanço inovador havia sido notável e coroado de sucesso. Porque
não? Assim já tinha sido em todos os cantos do mundo. Mas continuou não havendo como inovar
em relação a conclusão dos processos: tinha que terminar com os velhos Bisnetos chamegando
os documentos para lhes dar a competente autenticidade. Esses o faziam com as expressões cheias
de melancolia e tédio, coitados. Sentiam-se como dois idiotas engravatados, sem nenhuma
serventia. Nem o luxo exagerado dos seus escritórios conseguiu dar-lhes ânimo. Ao contrário,
olhavam aqueles exageros inúteis e suspiravam saudosos da antiga anarquia que havia passado de
pai para filho com tanta dignidade e tão pura tradição. O tal museu não os seduzia: era como
contemplar um ente querido embalsamado e exposto a pública visitação.
Mas como tudo é assim, pleno de sucessos e frustrações, a rotina do cartório seguiu seu
curso, sereno e rentável. Até que um dia apareceram os primeiros indícios de um problema
monumental. Em princípio discreto, depois assustador. Foi quando um arquivista digitou uma
procura no sistema de buscas atrás de uma velha escritura e o resultado foi completamente
ininteligível. Caiu num registro de óbito. Várias tentativas se seguiram, sem sucesso. O trineto foi
chamado e também não conseguiu superar o inesperado travamento. Tiveram que apelar à velha
rotina de consulta aos papéis para resolver esse caso. Belizário teve que ser acionado, pois
escrituras antigas eram seu departamento. Deixou o conforto do seu belo escritório, desceu ao
porão e em poucos minutos encontrou a velha escritura: livro C - pag. 89, arquivado no meio da
terceira prateleira da estante maior. Lugar precípuo onde já estava há dezenas de anos. O velho
voltou com o livro nas mãos erguidas triunfalmente acima da cabeça. Cabeça esta, guarnecida de
uma boca iluminada por um sorriso largo, misto de sarcasmo e alegria. Foi, contudo, o último
triunfo da sua vida. No dia seguinte o tabelião Pedro Belizário Bisneto amanheceria morto,
fulminado por um acidente cerebral arrasador. Certamente um fato não teve nada a ver com o
outro mas, enfim, o velho estava morto. Faria muita falta nos dias seguintes pois o problema do
travamento do novo sistema de buscas do cartório se agravou. Estabeleceu-se uma crise logo de
imediato pois o Registrador sozinho não dava conta de ficar localizando papeis do registro de
imóveis e documentos já que sua especialidade era o registro civil. A situação tornou-se crítica
mas Antônio Olegário Trineto agiu rápido, como a gravidade do problema pedia. Encomendou
uma consultoria especializadíssima para diagnosticar a razão da pane do sistema. A turma
trabalhou umas duas semanas agitadíssimas – no meio das dificuldades da rotina notarial - e ao
final... não deu conta do recado. Não acharam nada de errado com o software, nenhum vírus ou
defeito no programa. Na verdade o problema era com o hardware e só foi descoberto por acaso,
e pela própria perspicácia do Trinetinho. Vou contar. Tinha ele ficado até tarde no cartório
matutando em cima do problema quando ocorreu uma queda de energia. Demorou alguns
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minutos para voltar. Tempo em que ele permaneceu sentado esperando a entrada do gerador de
emergência de que era dotado o moderno edifício. Nesse lapso algo chamou sua atenção. Notou
uma discreta fluorescência do teclado do PC onde estava trabalhando. Num lance de olhos
percebeu o mesmo fenômeno em outras máquinas. No meio desse exame a energia voltou.
Trinetinho desligou o interruptor das luzes e seguiu examinando os computadores de outras salas.
Todos apresentavam o mesmo fenômeno. Ficou intrigado mas não conseguiu formular qualquer
explicação. Na noite posterior fez a mesma inspeção e lá estava a estranha fluorescência. E o mais
surpreendente: a tal luminância era maior no porão e provinha, exatamente, dos livros e papéis
dos velhos arquivos. Passou a semana matutando no problema. Enquanto isso os computadores
continuavam travando e a precariedade da fluência dos serviços aumentando. A irritação dos
usuários também ia num crescendo e reclamações acabaram chegado ao órgão de inspeção geral
dos cartórios, braço fiscal do Ministério da Justiça. Por fim, na crista de grande aflição, Trinetinho
teve uma ideia sensata e objetiva: resolveu mandar uma máquina para exame detalhado no
laboratório de eletrônica e informática da universidade mais renomada da província. O relatório
chegou após aflitivos noventa dias de pesquisas. Era surpreendente: a máquina estava contaminada
por um vírus biológico desconhecido. Preste atenção, caro leitor, eu disse a máquina e não o
software. Disse ainda que o vírus era de natureza biológica. Por isso o caso era surpreendente e
sem precedentes. Tão surpreendente que quem descobriu o problema foi o pessoal do
departamento de bioquímica da tal universidade, chamado para dar um ajuda à atordoada turma
do laboratório de informática. Tão surpreendente que o relatório foi entregue pessoalmente pelo
chefe do departamento de bioquímica ao atordoado Trinetinho. Ele até teve o cuidado de trazer
uma equipe de cientista para realizar uma contraprova in loco. Esta concluiu que o vírus havia, de
fato, atacado todas as máquinas do cartório e que era da mesma espécie encontrada nos papéis
antigos do porão. A notícia ganhou repercussão internacional e em poucos dias o governo
interditou o cartório em nome da ciência.
Hoje, passados cinco anos, Antônio Olegário Trineto já se encontra em condições de nos
contar o fim do caso com toda serenidade. Uma funda depressão o obrigou a ficar uns tempos
sob severo tratamento psiquiátrico, mas a crise já passou. Isso começou depois que ele resolveu
botar fogo no cartório com tudo que havia dentro. Ainda está respondendo a processo pelo crime,
mas, no geral, como dito, já está bom da cabeça. Conta ele que a equipe de cientistas descobriu
que o misterioso vírus teve origem nos papéis velhos do cartório antigo e que provavelmente se
desenvolveu devido a mudanças das condições de armazenamento dos papéis. Mas isso é só o que
se sabe até agora. Algumas hipóteses estão sendo testadas, contudo não há ainda nenhuma
formulação aceitável para explicar como um vírus biológico pôde atacar o software de uma
máquina. Felizmente parece que o caso do vírus é único e isolado e não preocupa as autoridades.
Até porque, quase toda a colônia virótica morreu no incêndio e as amostras que existem para
pesquisa estão armazenadas em laboratório sob condições controladas e seguras.
Quanto ao ataque pirótico de Trinetinho, ele não sabe muito bem o porquê da sua ira
desmedida. Simplesmente perdeu o controle e entrou em estado de fúria. Foi então que resolveu
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tocar fogo no cartório sem medir consequências. O pai morreu de desgosto quinze dias depois
do acidente incendiário. Mais uma desgraça associada ao triste final da história do cartório.
O passado notário de Carapinhaca está sendo reconstruído aos poucos, graças à
honestidade de seus velhos moradores respaldada, naturalmente, na fiança de duas testemunhas
idôneas juramentadas. Infelizmente tem havido mortes devido a desavenças sobre propriedades
de imóveis. São casos isolados, contudo. Mas o futuro deve ser tranquilo: o novo cartório já nasceu
inteiramente informatizado. Não há papéis arquivados.
A DIGNIDADE DO MORTO
E lá estava o morto em local de destaque. Aliás, só faltava o morto não estar em local de
destaque em seu próprio velório. Ainda mais sendo ele quem era, ou tinha sido. Desde os tempos
das cavernas que os funerais são ritos de respeito e tolerância. Respeito e tolerância ao que o
morto fez, não fez, deixou de fazer quando devia ter feito. Rituais de benevolência, perdão,
compreensão. Teria sido assim também nesse caso? Pelo lado externo, no visual, no iconográfico;
certamente que sim. Pois lá estava ele no meio da sala, deitado no seu caixão de mogno classe AA,
brilhante e cheio de acabamentos em metal dourado, começando pelas alças e terminando num
enorme crucifixo em resplendores, gravado na tampa da urna, encostada ao lado, enriquecendo a
fúnebre decoração do velório mais luxuoso da cidade, ou do país. De cada lado da cabeceira da
urna, coroas de flores exuberantes enviadas em nome de distintas instituições da república e do
mundo empresarial. Sentidas condolências à família e antecipadas saudades do ilustre deputado
Eugênio Severiano, decano do Congresso Nacional, dono de inúmeras fazendas, indústrias e
instituições financeiras. A rigor também dono de um robusto histórico processual, cheio de
acusações de corrupção ativa e passiva, lavagem de dinheiro, constrangimento ilegal e evasão de
divisas. Inócuo, contudo. Nunca havia sido condenado, pois os caminhos dos foros privilegiados
são longos, labirínticos e nunca vão dar nas galés.
Mas voltemos ao ambiente do velório. No estacionamento do notável complexo fúnebre
dezenas de carros pretos com placas oficiais e motoristas espigados, em seus ternos escuros. O
salão era o nobre, de formato oval e com cadeiras de veludo vermelho circundando o cadafalso
baixo de mármore cinza que sustentava o caixão. Deitado no caixão, meio que sufocado pelo
excesso de lindos e cheirosos cravos brancos, o morto. Além da cara do falecido, o que se via a
mais era apenas o peito do mesmo adornado com uma camisa de linho branco, uma gravata
discreta de seda e as abas do jaquetão escuro de casimira. Cabelos brancos fartos e lisos, penteados
elegantemente para trás fechavam o conjunto cadavérico dado à vista na urna mortuária. O resto,
como dito, era um denso tapete de cravos brancos viçosos, mais brancos do que o morto e
condenados a serem encerrados junto com ele no carneiro escuro do mausoléu da família
Severiano. O resto era silêncio? Não! Do lado de fora do salão mortuário - e até nos cantos mais
afastados do recinto - rolavam conversas animadas e, vez em quando, até escapava uma risada em
decibéis um pouquinho acima do que recomendava a contrição da hora e lugar. Nesses instantes,
um ou outro membro da família chegava a dirigir um olhar reprovador na direção do grupo
barulhento, mas o efeito era de curta duração. Mas o morto não se incomodava com as conversas
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e risos. Até, muito antes pelo contrário, estava atentíssimo a tudo que passava a sua volta,
especialmente nas conversas dos grupos mais distantes pois era ali que o assunto parecia mais
interessante. Atento sim, pois queria conferir algumas coisas, em especial em relação ao verdadeiro
conceito que tinham dele, agora que sua obra era finita e podia ser avaliada no total.
O leitor que me conteste se puder, mas vou fazer uma revelação: os mortos não morrem
tão fácil como imaginamos. Sempre acreditamos que se a pessoa desfalece de todo e o coração
para de bater, então ela está morta e ponto final. Mas não é bem assim. A desencarnação, quer
dizer, a separação entre o corpo e alma é muito mais lenta do que dizem por aí simploriamente.
É um processo gradativo em que o morto vai perdendo suas habilidades de ser vivo e vai assumido
gradativamente as faculdades peculiares a sua nova condição de espírito. Enfim, é devagar que vai
deixando essa vida e entrando na outra, mesmo depois do passamento propriamente dito. Se
querem detalhes, voltemos ao velório do deputado Severiano. Dizia eu que ele estava deitado no
seu suntuoso caixão atentíssimo às conversas à sua volta. De fato pois havia conversas do seu mais
alto interesse rolando. Talvez não mais tanto de interesse político mas, com certeza, de altíssimo
interesse pessoal, ou melhor dizendo, interesse espiritual.
Nesse preciso instante ele está de olho... “Estar de olho” é força de expressão pois as novas
faculdades já dominadas pelo morto prescindem inteiramente dos sentidos e habilidades mentais
da condição pregressa. Assim o falecido não ouve e não vê, mas enxerga e escuta como ninguém,
usando novos canais alternativos de percepção. É um pouco complexo mas é vero. Digamos
simplesmente que, nesse momento, ele está com a atenção voltada para um grupo animado,
reunindo no meio do jardim, em frente a porta de entrada da sala oval do velório. Normalmente,
da distância entre o caixão e o grupo, seria impossível ouvir alguma coisa. Mas, na nova condição,
o falecido deputado Severiano consegue fazê-lo. E se sente indignado com que o que ouve. Filhos
da puta, exclama (força de expressão mais uma vez). Como podem vilipendiá-lo a tão poucos
metros do seu cadáver ainda quente. Por força do hábito pede a palavra, tenta protestar. Mas não
está na tribuna. Não tem como replicar a desfeita, essa é uma faculdade e um direito que já perdeu.
Também nem deveria se agastar tanto assim pois, aqui pra nós, ele nem estava sendo tão
vilipendiado como se sentia. Até porque, as pessoas do grupo que estava falando mal dele agora,
o conheciam muito bem. Um era o presidente do partido, companheiro de velhos carnavais. Juntos
fizeram muito malfeito com requintes de perfeição. O outro era um ex-prefeito de grande capital,
atualmente com os bens bloqueados por conta de uma investigação federal. O terceiro era um
empresário enrolado, muito amigo das autoridades atuais, cheio de fortunas virtuais e corno.
Todos conheciam muito bem o velho deputado Severiano e estavam falando exatamente das suas
espertezas e das suas mãos cheias de dedos e anéis caros e ridículos. Mas não era isso propriamente
que estava incomodando o morto e sim o tom de escárnio e deboche com que se referiam a ele.
Coisa inimaginável quando ele era vivo e estava por perto. Por um lado o tratavam como se só
ele fosse um corrupto miserável, o mais sujo e inescrupuloso de todos. Por outro lado o tratavam
como um ingênuo que matava o galo e só ficava com as esporas para fazer a sopa. Quis jogar uma
praga, mas isso lhe era vedado na nova condição, como logo descobriu. Assim tratou de acalmarse. Achou melhor trocar a ira pela curiosidade. Largou o grupo dos companheiros ingratos e foi
assuntar outros. Passeou, ou melhor, flanou pelos cantos da sala e do jardim. Constatou, um tanto
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melancólico, que poucos falavam ou pensavam bem dele, especialmente nas rodas dos colegas de
política. Uns o achavam desonesto e corrupto outros o achavam traiçoeiro e desleal e um terceiro
grupo o achava meio babaca por não ter sabido transformar em money o valor do real poder
político que tinha. De fato, depois de quarenta anos de deputação, várias presidências da câmara
e alguns ministérios; só havia conseguido chegar a uma meia dúzia de bilhão, enquanto hoje um
presidente de partido meia-boca consegue chegar ao primeiro bilhão ao fim de oito anos de
política esperta.
“Canalhas!” exclamou Severiano etérea e silentemente, usando os recursos das suas novas
faculdades. No seu conceito até se considerava o mais santinho de todos os famigerados
malfeitores que identificava em cada canto do seu velório. Não era assim, contudo, que o tratavam,
relegando os méritos e relevando os deméritos. Mas não é exatamente o contrário que se deve
fazer com os mortos, em respeito a sua memória? Pobre deputado, devia estar descansando em
paz. Mas não, estava ali; sendo aborrecido no seu próprio velório. Todavia, como não podia
mesmo fazer nada a respeito, pelos menos por enquanto, resolveu relaxar um pouco e mudar a
amostragem da pesquisa. Que tal sapear as rodas de parentes e amigos? Ali, provavelmente, sua
memória estaria sendo tratada com mais respeito. Tocado por esse novo e sentimental propósito,
elevou-se até o alto do salão e deu uma nova farejada na multidão. Maravilhou-se com o fato de
conseguir enxergar em trezentos e sessenta graus sem virar a cabeça. Bobo raciocínio,
convenhamos, pois nem cabeça ele tinha para usar daquela operação, já que a sua estava morta
assim como todo o resto do corpo. Falta de costume para raciocinar na nova condição: espíritos
não têm cabeça. Mas enfim, isso são detalhes. O que importa é que ele conseguia abranger um
campo de visão absoluto. Maravilhou-se mais ainda quando percebeu que também podia captar
pensamentos, vale dizer, podia escutar o que algumas pessoas falavam sem que elas estivessem
movendo os lábios. Nenhuma dúvida. O que podia captar eram mesmo pensamentos. Até pela
liberalidade do conteúdo e pela desordem da forma. Pensamentos, com certeza. Tocou, então, a
explorar melhor essa extraordinária condição. Foi quando um certo tumulto desviou-lhe a atenção.
Era a presidenta da república que vinha para prestar respeitos a sua memória. Avançava com
lentidão tentando dar conta dos tantos cumprimentos que recebia. Todo mundo queria mostrar
intimidade. A grande mandatária, considerada uma das mulheres mais poderosas do mundo,
aproximou-se da família. Beijou a viúva assepticamente, disse uma meia dúzia de palavras
indefectíveis para essas horas, deu um passo em direção a urna e olhou o morto com expressão
desolada. Pela expressão todos deduziram que ela estivesse pensando algo como: “que grande
político o mundo perdeu. Era um grande líder, fará imensa falta à nação. Oh perda irreparável!”
Mas não era assim. Bem o sabia o infeliz deputado Severiano, e só ele, pois era o único morto no
recinto e, portanto, o único capaz de ler pensamentos. “Grandessíssimo filho da mãe” era o que
verdadeiramente estava dizendo em silêncio a presidenta a respeito do morto. “Grandessíssima
filha da puta”, respondeu ele ao ataque gratuito e traiçoeiro, inaudível contudo. A mandatária,
alheia ao retruque do falecido, continuou olhando-o com aquele mesmo olhar de dor e saudade
por alguns minutos, tempo em que, contudo, manteve firme o mesmo pensamento desairoso
sobre ele. Ele também continuou retrucando na mesma moeda, inaudível porém enfática. “Quem
essa baranga pensa que é. Saiu do anonimato graças ao apoio do seu predecessor e se não fosse o
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empenho forte do meu partido no Nordeste ela jamais teria sido eleita.” Tudo pura verdade. Sem
serventia porém, nessa altura do campeonato. Então, só lhe restou cozinhar de raiva e ferver de
ódio, mesmo falto de calor e de sangue como estava.
Mais alguns minutos, mais alguns comprimentos e recados e a presidenta se retirou
impoluta, com seu jalequinho vermelho mal ajambrado e a mesma dignidade teatral com que havia
entrado. O pobre morto teve que engolir mais essa desfeita. E engoliu, pois afinal estava morto e
não tinha mais muito o que fazer. Assim, achou melhor voltar ao que estava fazendo quando a
puta da presidenta entrou naquele jeito fingido de mater dolorosa. Severiano, cheio de esperança
de melhorar aquele dia aziago em todos os sentidos, voltou pois ao plano de sondar o que os
amigos e parentes estavam falando ou pensando dele. Viu um cunhando e uns primos formando
uma roda. Pela falta de circunspeção resolveu passar ao largo. Sabia que ali não encontraria
consolo. Evitou também a viúva e os filhos. Sabia que estava sendo covarde, mas não queria levar
para o outro mundo tanta decepção, caso encontrasse desafeto onde tinha direito de encontrar o
mais puro e sincero amor. Nunca se sabe. Filhos costumam ser ingratos por mais que façamos
por eles. E viúvas, nem sabe se as tinha verdadeiramente depois do quarto casamento, todos de
conveniência. Ia assim, meio choramingas, quando avistou um irmão, encostado na parede,
sozinho e com cara de desconsolo. O irmão mais velho, Bentinho; mal vestido como sempre e
com sua indisfarçável cara de roceiro. Eram muito ligados quanto crianças, passando necessidades
juntos lá nos cafundós do sertão. Mas sendo felizes no mundo encantado das crianças. Depois se
separaram. O irmão ficou cuidando da família e ele foi para a capital tentar a sorte. Ficaram muitos
anos distantes, sem se ver, sem se falar. Em quarenta e cinco anos só se viram uma vez, foi quando
ele voltou a casa paterna para revolver um problema, nem se lembra mais qual. Então o pai já
tinha morrido. A mãe morreu poucos meses depois, também nem se lembra mais de que. Mas há
cinco anos Betinho o procurou pedindo ajuda, pois estava no topo da miséria, aquela porca, que
deixa o cara sem ter o que comer e o que vestir. E ele não deixou o pobre irmão na mão. Arranjoulhe um belo emprego de ascensorista terceirizado de Assembleia Legislativa. Era tudo que podia
fazer. Coitado do irmão, não tinha estudo, não sabia fazer nada além de plantar milho no agreste
e ordenhar vaca de escasso leite. Mas o salário não era ruim, considerando a absoluta inutilidade
de um ascensorista de elevador na era digital. Sim, o irmão saberia lhe dar valor, ser grato, honrar
sua memória. Assim confiante o deputado Eugênio Severiano se preparou para se acercar dos
pensamentos do irmão Bento Severiano. Mas não teve tempo de concluir o processo singular. É
que, mais uma vez, a contrita - tanto quanto possível – condição do velório era quebrada. Desta
vez o responsável foi o padre. Entrou no recinto com toda a solenidade para fazer a encomenda
do morto, impondo silêncio. Aliás, padre não, pois não se tratava de um velório qualquer mas do
velório do ilustre deputado Eugênio Severiano, decano do Congresso Nacional, dono de inúmeras
fazendas, indústrias e instituições financeiras. Quem entrou para fazer a sagração das exéquias, na
verdade, foi nada menos do que o núncio apostólico, cardeal Farcete. Mas não era uma deferência
do Vaticano. O deputado e o cardeal eram amigos, vizinhos. Compartilhavam cem metros do
mesmo alto e belo muro de eras que separava os jardins das respectivas mansões. O deputado
Severiano até ficou feliz com a surpresa. Mais um amigo, mais um voto certo a favor da glória
excelsa da sua memória, ainda mais vindo de um alto prelado. Senão vejamos. O cardeal se
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aproximou do caixão e todos os demais capricharam na contrição. Fez uma oração, falou das
qualidades do morto e aspergiu uma aguinha na cara do dito. E foi aqui que o deputado Severiano
se deparou com uma questão crítica na qual, até então não havia pensado. Estava muito
preocupado com sua memória, sua biografia, seu legado à posteridade e havia se esquecido de
coisa mais premente: sua qualidade de vida depois de morto. Iria para o céu ou... Sentiu um frio
na espinha já prá lá de fria, depois de doze horas do passamento. Mas logo se acalmou, afinal o
panegírico do cardeal havia sido muito positivo e abonador. Por certo teria muito peso na sua
encomendação sendo ele um homem de Deus de alta patente. A única crítica - em pensamento que o prelado fez foi quanto ao excesso de festas que ele costumava dar em sua mansão nos fins
de semana. Principalmente, o seu péssimo gosto musical lastreado unicamente em músicas
sertanejas tocadas na maior altura. Ninharias pensou Severiano, mesmo concordando que aquele
excesso de alegria pudesse perturbar os retiros espirituais e as orações do núncio. Mas, com
certeza, não era coisa que pudesse prejudicar a encomendação da sua alma. Finalmente o morto
havia se conscientizado da sua nova, inevitável e irremediável condição. Mais ainda quando o
cardeal terminou sua benzeção e a viúva e os filhos se aproximaram do caixão e se despediram do
falecido. Então fecharam a luxuosa urna e baixou um escuro que, mais uma vez, colocou o
deputado Severiano em estado de tensão. Não conseguia mais ver o que se passava no mundo dos
vivos. Trevas absolutas. Seria esse o primeiro rompimento efetivo com o mundo dos vivos?
Pensou o morto tentando ficar sereno e conservar a dignidade que achava que tinha. E era, de
fato, o primeiro estágio efetivo do processo do desenlace. Daí pra frente começou o tenebroso
desconhecido da passagem para a, chamada, outra vida. Mas Severiano percebeu que o processo
não estava ainda completo pois podia escutar o que diziam a sua volta. Assim pôde identificar
quem tinha se oferecido para pegar nas alças do caixão. Um era o presidente do partido. Nem quis
ler seus pensamentos. Já o tinha feito e não gostou. Seguiu adiante na pesquisa e encontrou o
irmão segurando a alça seguinte. O bom e sofrido mano Bentinho. Esse valia a pena escutar.
Haveria de ser grato pelo que havia feito por ele pouco tempo atrás. Mais pontos positivos, por
certo melhorando suas credenciais para o paraíso. Nem completou o raciocínio. Pura e dorida
decepção O irmão estava gotejando ódio contra ele. Mais que isso estava lhe lançando uma terrível
maldição, dadas as circunstâncias. “Que vá para o inferno” dizia, ou melhor pensava, o
primogênito da família Severiano. E olha que essa maldição era a parte mais light da praga que
Bentinho rogava. O deputado ficou perplexo mais uma vez, procurou uma explicação. Mais não
foi difícil encontrá-la. E foi nessa hora que se lembrou do motivo pelo qual tinha ido visitar a
família, depois de dez anos de ausência, seguidos de mais trinta e cinco anos de ausência
subsequente e absoluto desinteresse por notícias. Tinha ido roubar o pai, a mãe e o pobre
Bentinho. Esse não esqueceu e o estava lembrando agora, no pior momento. Porque não reclamou
antes, pensou o deputado.
O irmão não reclamou, mas não se esqueceu de nenhum detalhe daquela sórdida visita. E
está gora e repassá-la na mente. Lembrava-se de tudo. Tudo estava estampado a ferro na sua alma.
Lembrava-se da imensa alegria que havia causado a chegada inesperada do irmão mais novo depois
de tantos anos. A mãe não conteve as lágrimas, ao vê-lo e mais ainda ao contar que o pai tinha
morrido e que nunca havia se esquecido dele. Falava nele todo dia. Todos tinham sofrido muito
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com tanto tempo de ausência. Eram muitas as perguntas. Como estava ele? Estava casado? Tinha
filhos, um bom emprego? Mas o irmão não satisfez a justa curiosidade. Ficou pouco. O propósito
da sua vinda era outro. Apenas pegar a assinatura dele e da mãe num documento que não explicou
muito bem pra que era. Feito isso foi-se embora novamente. Depois vieram as consequências.
Perderam as poucas terras que tinham. Eugênio Severiano as vendeu como se fossem dele.
Tiveram que abandonar a casa e a roça. A mãe morreu de desgosto logo depois. Ele caiu no
mundo vagabundo, miserável de pai e mãe e roubado pelo irmão.
Dessa absurda maldade o nobre deputado havia se esquecido. Sentiu uma agonia ao
reencontrá-la bem no meio de uma praga de irmão. Quis explicar, pedir perdão ou coisa assim.
Inútil, não podia nem era ao irmão agora que tinha que fazer isso. Também não havia mais tempo,
sua sorte já estava selada e carimbada.
Seguiu-se um silêncio, longo e atemporal. Depois o som de uma trombeta. Depois uma luz,
vinda debaixo. O nobre deputado sentiu que seu corpo descia na vertical, em queda livre. Depois
estancou e ficou flutuando. O calor era insuportável, assustadora a gritaria. Pronto, estava
concluído o processo. Era o destino final. Justa paga pela pífia dignidade daquele morto.
E aqui quase termina o caso. Digo, quase, pois há um pequeno esclarecimento. Sim, o ilustre
deputado Eugênio Severiano, decano do Congresso Nacional, dono de inúmeras fazendas,
indústrias e instituições financeiras hoje pena nas tenebras do inferno. Hoje e sempre pois não há
embargos que deem jeito nesses casos. Mas o motivo que mais pesou na condenação não foram
as suas maldades convencionais e sim aquela mania que ele tinha de perturbar o recolhimento do
santo Cardeal Farcete com suas horríveis músicas sertanejas. Não tanto pela música, pois o Senhor
é muito tolerante com todos os gostos. Mas detesta que perturbem as meditações dos seus
pastores.
A FÁBRICA DE BONECAS
O prefeito de Paris não tinha vergonha de gostar de bonecas. Nem tinha motivos para isso.
Pelo menos no conceito dele, plenamente justificável. Sim pois ele nasceu e cresceu cercado de
bonecas de todos os feitios e é daí que vinha a inclinação. Mas sua fascinação acabou descambando
para o exagero, depois de um longo período de atavismo e acabou custando-lhe uma carreira
brilhante. Mas antes disso Jean Nuitbelle gozou por muito tempo do enlevo de ser um cidadão
respeitável, adorado pelos eleitores de Paris, eleito duas vezes para comandar a prefeitura da capital
dos franceses, precisamente aquela antiga aldeiazinha implantada por um punhado de bárbaros
no exíguo espaço de duas ilhas contíguas cercadas de pântanos insalubres. O pai havia sido
fabricante de brinquedos, com estabelecimento em Lyon. Era um artesão talentoso e dedicado.
Chamava-se Louis Nuitbelle. Trabalhava bem a madeira, o gesso, o papelão. Jeitoso nos arranjos
de tecidos, delicado nas pinturas e carnações, minucioso nos arremates. Tinha especial apreço pela
produção de bonecas e era aí onde mais aparecia a força do seu talento. Suas peças eram apreciadas
em toda a região do vale do Rhône e nunca faltavam encomendas. Mesmo porquê cobrava muito
menos do que suas bonecas valiam. Também tinha raridade pois a produção era intermitente e
um tanto melindrosa, perpassada de capricho e, por isso mesmo, individualizada e lenta. Além
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disso, Louis costumava passar longos períodos de inexplicável inatividade e não era incomum
encontrá-lo ocioso sentado calmamente na oficina... conversando com as bonecas.
O pequeno Jean tornou-se um aprendiz do ofício paterno, mas logo ficou provado que ele
não havia herdado os dotes do velho. Também não teve tempo de provar nada pois o pai o
abandonou aos doze anos, inviabilizando o domínio do ofício. Foi para a Suíça e nunca mais
voltou, deixando o filho aos cuidados forçados dos tios maternos: os austeros Lacroix. A fábrica
de brinquedos, claro, não sobreviveu à fuga do artesão Nuitbelle pois ela era ele e sem ele não
havia sustentação. Foi fechada e o imóvel vendido. Jean teve uma convivência com os tios, difícil
e cheia de desencanto. Era para eles somente uma obrigação, zelosa mas inteiramente vazia de
amor e de afeto. Aos vinte anos, Jean resolveu tentar a sorte em Paris. Deu-se muito bem, graças
ao bom Deus dos franceses e, afinal, também à rigorosa educação que havia recebido dos tios,
frios mas muito exigentes quanto a aplicação aos estudos. Formou-se em direito, montou uma
banca em parceria com os melhores advogados da França. Enriqueceu. Depois meteu-se na
política, foi deputado por duas legislaturas e acabou se elegendo prefeito. Nunca voltou a Lyon
para rever os tios. Os Lacroix acompanharam o sucesso do sobrinho a distância, sem queixas
sabidas, como era do seu feitinho, fechados na austeridade proverbial e muda dos Lacroix de Lyon.
Do velho Nuitbelle, Jean nunca teve qualquer notícia, nem tinha se dado ao trabalho. De certa
forma, vivia distante das recordações da sua infância na cidade natal, cheio de mágoa e absorto
totalmente em suas responsabilidades para com o povo de Paris.
Até que um dia o acaso reintroduziu na vida de Jean Nuitbelle as bonecas e a memória do
velho pai. E com toda a contundência possível. Foi numa tarde de domingo chuvosa e fria.
Celibatário jurado, o prefeito de Paris costumava passar as tardes dos dias de folga sozinho
encerrado na biblioteca. O mordomo bateu de leve na porta e anunciou que um certo sr. August
Lacroix queria lhe falar e se identificava como sendo seu tio. O anúncio lhe causou enorme
surpresa e não menos apreensão. O que o trazia agora à sua casa depois de tantos anos? Lembrouse sem dificuldades dos tempos de Lyon, quase quarenta anos passados. Especialmente da
austeridade e da frieza missionária da criação que os tios lhe impuseram. Distantes lembranças,
carentes de afeto e emoção. Recebeu-o de forma fria e protocolar. Quase como se cumprisse uma
obrigação oficial. Perguntou pela tia, os primos e outros tios. Mera formalidade. Uns haviam
morrido, outros haviam se dado razoavelmente na vida e outros nem tanto. Nada diferente da
história de qualquer família, pois a vida é assim. Do pai nada perguntou. Não conversaram muito.
O tio alegou que estava atrasado e que tinha ido ali apenas para lhe entregar uma coisa que havia
pertencido ao seu pai. Quinze minutos depois já estava de saída, por pressa e por falta de assunto.
Deixou um velho baú no hall de entrada. Despediu-se da mesma forma fria com que havia sido
recebido, revelando, com certeza, algum ressentimento recôndito. Talvez tivesse razão – pensou
o prefeito – considerando que havia se afastado radicalmente da família depois que se mudou para
Paris. Pode até ser que tivesse com eles alguma uma dívida não paga, mas nem tinha essa certeza.
Nunca havia pensado nisso e nem o queria fazer agora. Suspirou um suspiro de ligeira indiferença
e olhou pela janela para ver se ainda via o tio. Mas esse já havia sumido, partido para nunca mais.
Então o prefeito virou-se na direção oposta à janela, olhou para o baú que havia ficado no meio
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do hall e pediu que um criado o levasse para a biblioteca. Não reteve por muito tempo a
curiosidade em abri-lo. A tampa era pesada mas as dobradiças se flexionaram sem reclames.
Cheirava a mofo, denunciando a antiguidade do segredo que continha. Um manto de veludo
vermelho com pontas em borlas franjadas envolvia o conteúdo com serventia de embrulho. Jean
abriu o invólucro sem nenhum cuidado atirando as pesadas abas do tecido para os lados. Então
vislumbrou o conteúdo. Nenhuma surpresa de verdade. O baú continha um monte de bonecas.
Óbvia herança do pai, sendo ele, essencialmente, um talentoso fabricante desses preciosos
brinquedos. De qualquer forma o prefeito de Paris sentiu uma profunda nostalgia encher-lhe
ternamente o coração por alguns minutos, vendo aqueles objetos. Velha infância perdida numa
profunda desilusão na fase mais marcante da vida e na contundência do presente, enfiado no novo
Hôtel de Ville até quinze horas por dia sustentando os problemas de Paris sob os ombros
arqueados. Passado esse fugaz tempo de nostalgia e dor, Jean se pôs a remexer lentamente o
conteúdo do baú. Lá estava toda a prova do talento do velho pai. Capricho e arte, especialmente
nas bonecas de feição adulta. Bonecas é uma generalização pois os havia machos e fêmeas.
Graciosas eram, mesmo com suas barrigas salientes, suas carecas, seus óculos e pincenês, seus
coques de velhas, seus bigodes e seus rostos balofos. Os sorrisos eram o grande diferencial do
notável artesão. Passavam bonomia, felicidade e ternura sem parecer rostos infantis costurados
desajeitadamente em corpos adultos, como era o mais comum. Mas o que mais seduzia mesmo
na arte de Nuitbelle eram as belas bonecas louras de sorriso sensual, sedutoras nos seus trajes de
noite. No fundo do baú encontrou uma carta do pai. Pedia perdão por ter partido, mas não
explicava o motivo. Leu a mensagem com indiferença dobrou o papel, enfiou-o nervosamente no
envelope e o atirou no meio das bonecas sem nenhuma emoção especial. Era uma mensagem
tardia que perdera o sentido depois de tanto tempo.
Jean Nuitbelle dormiu mal naquela noite. Não tanto pela novidade trazida pela visita do tio,
mas sim porque logo pela manhã ia ter uma difícil reunião com uma comissão de moradores de
Paris, rotina imposta pelas modas da nova república e que ele nunca enfrentava sem desconforto.
Depois de um café apressado foi até a biblioteca apanhar algumas notas que havia preparado para
a tal reunião. Quase tropeçou no baú de bonecas. Até havia se esquecido dele. Passou ao largo
com indiferença, apanhou as notas e rumou para a prefeitura. A reunião correu pior do que
imaginava, perpassada que foi por cobranças, plenas do velho radicalismo jacobino que nunca saía
de moda. Ao final sentiu-se exausto e desanimado. Resolveu fazer um almoço frugalíssimo e andar
um pouco pela margem do Sena para desanuviar e tocar o resto do dia. Foi aí que se lembrou do
pai de forma diferente depois de tantos anos. Embora tivesse sido vítima de uma
irresponsabilidade indelével, a lembrança foi terna. Afinal tinha que reconhecer que havia passado
uma infância feliz com ele, eterna enquanto durou. Talvez pelo estado fragilizado da sua alma
naquele instante, quis investir nessa parte boa da lembrança e relegar o resto, amargado durante
tanto tempo e ocupando tudo. Invejou o pai. O respeitável artesão Nuitbelle, tranquilo em sua
oficina, fabricando brinquedos com paciência e maestria, longe de preocupações pragmáticas, feliz
com a obra que fazia, mais para si mesmo do que para crianças desconhecidas, boas e más. Como
o próprio mundo enfim. Estaria vivo ainda? Velhinho em algum canto da Suíça fabricando
bonecas? Essa pergunta povoou o resto do dia do prefeito de Paris. Na verdade muito mais do
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que isso, operou nele uma profunda transformação. No princípio poucos notaram. Exceto por
um detalhe: seu súbito gosto exagerado por bonecas, público e notório. Sim pois elas começaram
a ocupar muito espaço nos negócios da administração da cidade de Paris. Maravilhosa cidade,
cosmopolita e eclética, mas não a ponto de mostrar indiferença quando verbas destinadas a
manutenção de bibliotecas e museus começaram a ser direcionadas pelo prefeito para a realização
de feiras de brinquedos todos os meses. O pretexto era incentivar os pequenos artesãos do ramo
de brinquedos de toda a França. Aceitável, claro, mas dentro de certos limites. Porém, a coisa foi
se exacerbando. E tudo isso com enorme desgaste político, para desespero dos correligionários
do prefeito, desacostumados com esse tipo de coisa. Começou com feirinhas em praças mais
afastadas. Depois foi tomando as praças principais: Concorde, Bastille, Vosges. Expandiu-se sem
motivo pois o sucesso era relativo: não havia tanto artesão e nem público interessado para tanto
espaço ocupado. Não obstante, o prefeito ainda planejava promover uma grande feira nacional na
Gare Dorsey, então ainda uma estação de trem, plena de barulho e ferro. Seria um grande
transtorno e uma despesa absolutamente injustificável. Felizmente não houve tempo para se
perpetrar o desatino. O prefeito teve que renunciar antes e a grande feira foi cancelada sob aplauso
geral. Não podia ser diferente com o tom veemente que a oposição e a imprensa passaram a
criticar a estranha inclinação do outrora sensato e austero prefeito de Paris. Foi um prato cheio
para seus inimigos. Como explicar tanta insensatez? Uns falavam em taras e outros em interesses
comerciais escusos. Realmente ninguém podia entender a intimidade de seus motivos, perpassados
de nostalgia e coisas mal resolvidas mofando no fundo da alma.
A renúncia não chegou a ser dramática o que denota que o próprio prefeito tinha
consciência da sua insensatez e já estava em processo de fuga desde o princípio do desatino.
Aconteceu numa tarde de domingo chuvosa e fria. Coincidentemente do mesmo formato daquele
dia em que recebera a visita do tio Lacroix, irmão de sua mãe. Foi então que seu velho amigo
Antoine Bonhôme – presidente da assembleia municipal – foi procurá-lo, trazendo na pasta o
pedido de renúncia já pronto para ser assinado. Colocou-o sob a mesa e começou uma curta
exposição de motivos. Simplesmente ninguém queria que ele continuasse, nem seus velhos amigos
de tribuna. Isso dito sacou a pena do tinteiro e mostrou-a Jean. Ele assinou o documento sem
nenhuma resistência, nenhum condicionante. Apenas comentou que tinha tido fortes motivos
pessoais para ter agido daquele modo, mas reconhecia que o pedido de renúncia era justo. Havia
sido insensato e pediu desculpas. Avisou que deixaria Paris em um mês e se despediu do amigo
com um emocionado aperto de mão. Dirigiu-se a biblioteca e fechou a porta deixando Bonhôme
na sala principal da residência, como se quisesse significar com esse abandono, que devolvia a ele
a casa que, na verdade, pertencia ao povo de Paris. Fechada a porta o ex-prefeito sentou-se numa
poltrona e contemplou a sala apinhada de bonecas, disputando espaço com livros e fólios.
Um mês depois da renúncia, o probo cidadão Jean Nuitbelle estava de volta a Lyon,
instalado num amplo sobrado em companhia das quatro mil e seiscentas bonecas da sua coleção,
quase todas compradas freneticamente naquelas feiras que ele próprio havia promovido em Paris.
Gastou mais seis meses para catalogar e organizar a coleção em escaninhos e estantes, dando
sequência ao seu projeto de montar um museu. Criou uma sala especial para as bonecas do velho
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Nuitbelle e outra contígua para exemplares de magnífica qualidade, tão bons quanto as próprias
obras do pai. De muitos desses exemplares era possível identificar a origem. Vinham exatamente
da Suíça.
A abertura do dito museu era uma das partes daquela compulsão avassaladora. A outra
parte era um complemento natural da primeira. Planejava uma viagem à Suíça em busca de notícias
do pai. Havia reservado todo o tempo do mundo para isso, mas não tardou em por o plano em
movimento. Começaria por Gèneve, local de onde vinham alguns notáveis exemplares da sua
coleção, comprados em Paris. Nem era longe de Lyon, portanto duplamente um bom lugar para
se começar a busca. Acertada decisão pois, logo após se instalar no melhor hotel da cidade,
descobriu que ali havia uma copiosa produção de bonecas, notável pela qualidade. De sorte que,
já na manhã seguinte, ele se movimentava animado em busca do objeto que o levara a Gèneve.
Depois de alguma pesquisa teve notícia que o nome Nuitbelle estava ligado à tradição de
fabricação de bonecas na cidade e que as melhores peças vinham da oficina do manicômio local.
Importante e curiosa descoberta que o levou a redobrar o esforço investigativo. Na sequência,
descobriu o endereço de uma certa sra. Marie Nuitbelle. Grande achado, estava chegando perto.
Procurou-a sem demora. Era uma senhora de mais de oitenta anos, lúcida e vivaz. A velha recebeuo com visível emoção. Ao anunciarem que estava sendo procurada por um francês de Lyon
chamado Jean Nuitbelle, de aproximadamente cinquenta e cinco anos, alto e de olhos azuis; já
adivinhou quem era ele. Ao vê-lo entrar na sala não teve nenhuma dúvida: era o filho de Louis
Nuitbelle, seu falecido marido. A velha abraçou o enteado com surpreendente carinho. Ele
respondeu com um olhar de respeito e doçura. Sentiu, de imediato, que ela era alguém que o
conhecia bem e talvez já o esperasse há muito tempo. Trocaram ternos e respeitosos
cumprimentos. Depois Jean tomou um assento ao lado da velha senhora Nuitbelle, disse o motivo
da visita e apresentou um pequeno resumo da sua vida. Passaram o resto do dia conversando,
tocados pelo enlevo de um amor espontâneo e instantâneo havido por conta da memória de Louis
Nuitbelle, pai e marido. Jean perguntou o que quis e descobriu tudo o que queria saber. Descobriu
que o pai havia morrido há muito tempo, internado num hospício da cidade. Descobriu que ele
havia partido de Lyon sob coação do cunhado Lacroix que o induziu a acreditar que estava ficando
demente e precisava de tratamento intensivo. Teria ameaçado interditá-lo, tomar-lhe o filho e o
negócio. Foi isso que levou o pai a ir para a Suíça. Tinha a intenção de se estabelecer lá por uns
tempos, obter um laudo comprovando sua saúde mental num prestigioso manicômio local e
depois voltar para Lyon. Mas o pobre Louis não obteve sucesso. Muito antes pelo contrário. Lá
mais se convenceram que ele era louco e o meteram num hospício pra valer. Se ele não era louco,
ficou. Marie Nuitbelle contou que era enfermeira no manicômio. Tiveram um filho e se casaram
pouco tempo antes dele morrer. O casamento, porém, não teve valor legal, já que ele era
considerado incapaz. Mesmo assim ela conseguiu adotar o nome dele e passá-lo ao filho.
Chamava-se Maurice Nuitbelle. Como o pai, também era fabricante de bonecas e, também como
ele, havia enlouquecido. Aquela mania que ele tinha herdado do pai de ficar inativo longos
períodos sentado na oficina conversando com as bonecas não era aceito, afinal, como
comportamento de uma pessoa normal. Mas muita gente mais arguta atribuía exatamente a essa
mania o segredo da perfeição das bonecas dos Nuitbelle: pareciam vivas! Maurice sucedeu o velho
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na direção da fábrica de bonecas do manicômio. A fábrica havia sido criada pelo pai aproveitando
os recursos de uma das oficinas de terapia ocupacional do hospício. Maurice manteve a tradição,
mantendo viva a glória da perfeição do artesanato e as estranhas manias do velho Nuitbelle de
conversar com bonecas. Também manteve aquele lento ritmo de produção que era o modo do
pai. De sorte que a raridade continuava ainda sendo um fator de valorização agregado às peças.
Depois da conversa com a madrasta Jean voltou para o hotel debaixo de forte emoção.
Toda a parte obscura da sua vida havia passado sob seus olhos numa única tarde. Levou a noite
em claro, quase febril fazendo planos retumbantes, a começar por uma visita ao meio-irmão nas
primeiras horas da manhã seguinte. E assim foi. Maurice recebeu-o sem nenhuma emoção
particular. Não porque não havia entendido a situação e sim porque estava muito absorto no seu
trabalho, maquiando uma magnífica boneca loura, de coque e diadema, trajando um belo vestido
azul de veludo. Uma autêntica peça Nuitbelle. Jean se encantou com o trabalho, pediu para ver
outros. Maurice o atendeu com grande satisfação. Agora sim, haviam estabelecido uma verdadeira
empatia. As obras não decepcionaram. Ao contrário, eram verdadeiramente dignas do nome
Nuitbelle. O ex-prefeito de Paris quis comprá-las todas. Eram apenas seis. Mas Maurice se recusou
a vendê-las pois eram encomendas, já haviam sido vendidas. Além disso, ainda não estavam
prontas. Pareciam prontas, mas não estavam, insistiu Maurice. Acrescentou que as bonecas só
poderiam ser consideradas prontas depois de nove meses de iniciada a fabricação. Não era o caso
daquelas peças. Jean estranhou a explicação, mas ficou calado. Acabaram acertando que todas as
próximas peças produzidas no hospício de Gèneve seriam compradas por Jean, com exclusividade.
Ao se despedirem - formalmente - o ex-prefeito de Paris perguntou ao meio-irmão se poderia
fazer alguma coisa por ele. Recebeu um seco “não” como resposta. O mesmo ouviu do diretor do
hospício, acompanhado da explicação de que ali era o melhor lugar do mundo para Maurice viver.
Não havia pressa e isso era fundamental para ele e sua arte.
Jean voltou para Lyon elevado por um forte sentimento de satisfação. Havia descoberto tudo
sobre a parte obscura da sua vida e recobrado a boa velha admiração pelo pai. Além disso havia
identificado um fantástico mercado para abastecer seu museu, incluso as notáveis peças
Nuitbelle. Anda muito solitário pois rompeu definitivamente com a família Lacroix. Tem escrito
a Maurice, mas sem retorno. Ainda está aguardando o envio das primeiras peças que o meioirmão prometeu. Anda muito ansioso com a demora. Enquanto isso, tenta mitigar a ansiedade
conversando com uma ou outra boneca da sua magnífica coleção.
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