Criança e Natureza: uma relação de sensibilidade e encantamento

Transcrição

Criança e Natureza: uma relação de sensibilidade e encantamento
INSTITUTO SUPERIOR DE EDUCAÇÃO VERA CRUZ
ANA CAROLINA THOMÉ PIRES
CRIANÇA E NATUREZA:
Uma relação de sensibilidade e encantamento
São Paulo
2011
ANA CAROLINA THOMÉ PIRES
CRIANÇA E NATUREZA:
Uma relação de sensibilidade e encantamento
Monografia apresentada no final
do Curso de Pós-Graduação Lato
sensu em “Educação Lúdica em
contextos escolares, não formais
e corporativos”, no Instituto
Superior de Educação Vera Cruz,
como requisito parcial para
obtenção do Certificado de
Conclusão.
São Paulo
2011
Autor: ANA CAROLINA THOMÉ PIRES
Título da monografia: CRIANÇA E NATUREZA – uma relação de sensibilidade e
encantamento.
TERMO DE APROVAÇÃO
Esta monografia foi considerada suficiente
para a obtenção do Certificado de
Conclusão da Pós-Graduação Lato Sensu,
em “Educação Lúdica em contextos
escolares, não formais e corporativos” do
Instituto Superior de Educação Vera Cruz
de São Paulo. O examinado foi aprovado
com a nota ___________________
BANCA EXAMINADORA
NOME
1.Rita Mendonça
2.Celine Lorthiois
3.Ricardo Ghelman
São Paulo, _____ de __________________ de ______.
ASSINATURA
AGRADECIMENTOS
À minha família, todo o meu percurso até aqui só foi possível pela
educação, formação e experiências que tive junto dela.
À minha amiga, Patrície, companheira de trabalho, estudos, viagens,
diversão. A conclusão desta pós não seria a mesma se nós não estivéssemos juntas!
À minha amiga e sócia no blog Aprendendo e Construindo, Bárbara
Trovão, pelas reflexões e conversas sobre educação.
À minha orientadora Rita Mendonça, atenciosa, sábia e sabida!
À todos os lúdicos, que tornaram cada momento deste curso único e
inefável.
Às pessoas que ajudaram diretamente ou indiretamente para que este
trabalho fosse possível.
Muito obrigada!
RESUMO
O presente trabalho tem como foco de estudo a relação entre criança e natureza. O
estudo foi desenvolvido por meio de revisão bibliográfica e pesquisa de
campo. Início descrevendo sobre ser criança: o desenvolvimento infantil, a
experiência de brincar e o brincar com a natureza. Continuo aprofundando sobre a
relação entre natureza e criança pequena: a interação com o mundo como ele é, sobre
a presença e a ausência do contato com a natureza e sobre políticas públicas em prol
deste contato. Finalmente, conto os resultados desta pesquisa de campo, na qual pais
e professores foram entrevistados sobre sua infância e a infância dos filhos, a relação
entre elas e o que pensam sobre brincar com a natureza. Estas respostas mostraram
que a realidade deste tema está no nosso cotidiano. Finalmente, menciono o que esta
pesquisa me ensinou.
Palavras-chave: Criança, Natureza, Brincar, Desenvolvimento Infantil
SUMÁRIO
1.
2.
3.
4.
Introdução
7
1.1
Ponto de partida
7
1.2
Conhecendo meu caminho neste trabalho
12
Ser criança é natural
16
2.1
Os primeiros seis anos: tempo de crescer
16
2.2
A experiência de brincar
21
2.3
Brincar com a natureza
27
Natureza e a criança pequena
37
3.1
Os primeiros contatos com o mundo como ele é
37
3.2
O contato com a natureza: ausência e presença
39
3.3
Políticas públicas em prol da relação criança e natureza
49
O contato com a natureza na escola e na família: a pesquisa de campo
52
4.1
As respostas
52
4.2
O que a pesquisa de campo me ensinou
58
5.
Considerações iniciais
63
6.
Referências
65
7.
Anexos
67
7
1. INTRODUÇÃO
1.1 Ponto de partida
O tema deste trabalho Criança e Natureza: uma relação de sensibilidade e
encantamento não foi escolhido por mim. Na verdade ele esteve comigo desde
sempre esperando a hora certa de desabrochar. Para isso ele precisou de tempo,
muito tempo. Foram necessários 26 anos de vivências e experiências para que eu
fosse preparada para este tema.
Quando nas aulas da pós graduação em Educação Lúdica começaram a
perguntas: “Sobre o que será sua monografia?”, eu não fazia ideia de que este seria o
tema. No início do curso eu até tinha um tema em mente, que aos poucos se tornou
totalmente sem sentido perto de tantas descobertas que eu estava realizando!
Confesso que fiquei preocupada por algum tempo sem saber sobre o que iria
escrever. Até que no seminário de Outubro de 2010, alguns dos orientadores estavam
presentes e falaram um pouco sobre cada área de pesquisa. E um deles me tocou: foi
uma das falas da Rita Mendonça. Ela comentou brevemente sobre um distúrbio
causado pela ausência de natureza, o nature déficit disorder. Foi então que minhas
ideias começaram a clarear. Dentre tantos orientadores, foi essa fala que me
provocou.
Você já se sentiu como se todos os caminhos te levassem para o mesmo
lugar? Foi assim que o tema me escolheu. Depois da provocação, todos os textos que
eu lia, as situações que aconteciam me direcionavam ao tema.
Na escola, enquanto professora, fui ameaçada por uma mãe de aluno que
disse que ele não poderia brincar na areia pra não tomar friagem e assim ficar doente.
Outra mãe reclamou do horário do parque, pois é um horário que venta muito. Então
eu comecei a me questionar: Será que essa criança fica doente por brincar na areia ou
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por não brincar? Será que esta criança adoece por estar exposto ao vento ou por não
se expor? Comecei a pensar sobre o meu percurso até hoje.
Sou fruto de uma infância de apartamento. Morei durante 25 anos num
condomínio composto por 8 prédios, cada um com 42 apartamentos. Até os meus 5
anos, o ponto de encontro das crianças era nos fundos da garagem, onde havia
pintada no chão uma amarelinha. As crianças, acompanhadas de suas mães, reuniamse naquele espaço para pular amarelinha, andar de patins, de bicicleta. Também
haviam alguns espaços que ficavam entre os prédios onde haviam alguns brinquedos
e até um tanque de areia. Lembro-me de ir ao tanque de areia brincar e procurar
aquelas margaridinhas bem miúdas que nasciam no muro que limitava o tanque.
Adorava fazer buquê com elas.
Quando eu tinha aproximadamente 5 anos, foi inaugurado um grande
espaço no condomínio, com uma quadra, um playground e um quiosque. Eu e
minhas irmãs acordávamos muito cedo e íamos para “a quadra” como o espaço era
chamado por todos. De lá gritávamos os nomes das outras crianças, para que viessem
também. E de quantas coisas nós brincávamos! Brincávamos no playground,
andávamos de bicicleta, de patins, jogávamos bola. Quando chovia nos reuníamos no
salão de festas, ou no apartamento de alguém. Após a chuva corríamos para a quadra
para pular nas poças. Lembro de ficar observando o reflexo dos prédios na água
parada, pular em cima e ficar esperando o reflexo se formar mais uma vez. Também
caçamos muito tatu bola. Alguns animais nós tentávamos criar e outros nós
tentávamos abrir para descobrir como eram por dentro.
Mas nem só no condomínio eu brinquei. Minha mãe sempre nos levou eu e minhas irmãs ao clube que éramos sócias. Adorávamos escalar barrancos, e
descê-los rolando ou sentadas em papelão. Fazíamos comidinha com folhas, barro,
areia e água. Subíamos em árvores.
Na casa da minha avó materna eu comia amora no pé, brincava com um
jaboti, mas nada que se compare aos dias de chuva de granizo, quando saíamos
correndo com pratos para pegar as pedras de gelo para chupar. Elas caiam sobre um
monte de areia de construção e permaneciam congeladas por mais tempo.
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Meus avós paternos tinham um apartamento em São Vicente, pra onde
íamos com frequência quando eu era menor. Na praia, adorava pegar conchinhas,
principalmente as fechadas vê-las abrir. Fazia castelos gigantes com rios em volta.
Cavava grandes buracos e enterrava os pés. Adorava caminhar com meu avô até as
pedras, observar peixinhos, ouriços e outros animais. Quando estava com meus pais,
sempre acordávamos cedo para ir a praia ver o Sol nascer.
E este é um hábito que eu preservo até hoje, esteja onde eu estiver: sou
amante de um nascer ou um pôr do Sol e coleciono fotos do céu.
Figura 1 – Algumas fotos da minha coleção de fotos de céu
Atualmente uma das minhas paixões é viajar, conhecer lugares novos,
novas culturas. E quantos lugares impressionantes existem no mundo e nós não
fazemos nem ideia! E é quando estamos num deserto, ou em meio a uma trilha na
mata que percebemos a nós mesmos e o quanto a natureza é surpreendente.
Minha história na escola, como professora, também foi fundamental pra
minha preparação para este trabalho.
A primeira escola em que fui professora era bem pequena, as crianças
tinham um espaço muito limitado para brincar e a diretora orgulhava-se de dizer que
a escola não tinha parque de areia para que as crianças não se sujassem.
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Mudei de emprego, para uma escola maior, associada a uma grande rede
de escolas de São Paulo. A escola era grande, um espaço enorme, e todo coberto com
gramado sintético. Havia um lago com carpas todo cercado de grades. Durante um
período eu fiquei responsável por uma turma de período integral. A sala ficava
localizada no fundo da escola, e poucas pessoas iam até lá. As crianças adoravam
brincar com água, afinal para a maioria era uma novidade poder se molhar! Até o dia
que a psicóloga da escola disse que era um absurdo brincar com água, além das
crianças correrem o risco de ficar doentes, brincar com água era um grande
desperdício!
Nesta mesma escola também fui responsável pela horta hidropônica, um
projeto muito interessante e que durou apenas enquanto haviam sementes a serem
plantadas. Eu tentei cuidar, mas a escola já não dava mais tanta importância e a horta
acabou esquecida nos fundos da escola.
Então, em 2007, após ser aprovada em um concurso público, comecei a
trabalhar na rede municipal de uma cidade do grande ABC paulista, como professora
de Educação Infantil. Logo no primeiro ano trabalhei em diferentes escolas e tive
muitas experiências com a natureza.
Na primeira delas, a turma de crianças tinha 5 anos. Nós saíamos para
fazer trilha pelos matos da escola. Eu chacoalhava a amoreira e as crianças ficavam
embaixo pegando as amoras que caiam. Algumas vezes parávamos para observar o
céu, as nuvens, o Sol.
Numa outra escola a turma de crianças era mais nova, 1 e 2 anos e o
espaço verde era imenso: toda a volta da escola era coberta de grama e muitas
árvores estavam em seu entorno. No entanto, as educadoras não permitiam que as
crianças corressem num morrinho que havia no parque, nem se aproximassem de
algumas plantas, como a roseira, e nem se embrenhassem em meio às árvores. Isso
não acontecia até eu chegar. Eu incentivava as crianças a correrem, dávamos a volta
na escola andando em meio as plantas e árvores. Plantamos sementes e fazíamos
trilhas com motocas.
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Na escola que estou atualmente o espaço verde é quase inexistente. O
pouco que existe é um jardim e as crianças não tem acesso. O parque é cimentado, os
brinquedos de plástico; o pouco contato com a natureza acontece no tanque de areia.
Trabalhava nesta escola quando iniciei o curso na pós graduação em
Educação Lúdica. Onde, pouco a pouco nas aulas os elementos naturais foram
mostrando-se cada vez mais importantes. Foi no módulo da Luisa Lameirão que eu
decidi trazê-los para dentro da sala de aula, afinal se nos outros espaços da escola
eles eram quase que inexistentes em algum local eles poderiam se fazer presentes. E
que presente para todos da nossa turma!
Montamos uma floresta e lá colocamos recipientes com sementes,
gravetos, pedras, folhas, penas, flores. A mãe de uma das crianças trabalhava numa
escola Waldorf e apoiou a iniciativa trazendo materiais constantemente. Este espaço
foi ambiente para muitas criações. De combinações que formavam desenhos no chão
utilizando os elementos, a histórias de faz de conta, bruxas, duelos de espadas (e),
chuva de penas.
Figura 2 - Fazendo uma poção mágica
12
Figura 3 - Chuva de penas
A floresta dentro da sala foi um aprendizado e tanto: mais para mim que
para as crianças. A importância da relação entre criança e natureza deu suas pistas
entre as observações das criações e das constatações das crianças que somada às
reclamações das mães configuraram as perguntas que permearam meu trabalho: Qual
a importância do contato com a natureza na primeira infância? Como este contato
deve acontecer? Quando ele acontece?
1.2
Conhecendo o meu caminho neste trabalho
Com as descoberta do meu tema os primeiros passos da concretização
deste trabalho foram dados. Primeiros passos de reflexões, pensamentos, a busca
pelas primeiras referências e leituras e os primeiros contatos com a parceira de
caminhada, Rita Mendonça.
Parceiro de caminhada está aí pra caminhar junto, rir junto, chorar junto,
passar pelas pedras do caminho junto. Chegar ao final da viagem com muitas coisas
para contar, muitas experiências para relembrar e se dar conta do quanto aprendeu e
cresceu.
13
No início, Rita ajudou-me a traçar um norte em um mapa repleto de
possibilidades.
O
caminho
teria
início
na
revisão
bibliográfica
sobre
desenvolvimento infantil, o ato de brincar, as brincadeiras com a natureza e
terminaria com uma pesquisa de campo com pais e professores de crianças de 0 a 5
anos.
Comecei a revisão bibliográfica por leituras indicadas pela orientadora e
por outros professores, como o trabalho de Joseph Cornell, o desenvolvimento do ser
humano segundo Joseph Chilton Pearce. Descobri que o Brasil não produziu até hoje
muito material sobre o assunto. Para tanto a internet foi fundamental na descoberta
de trabalhos e movimentos que acontecem internacionalmente, entre eles a pesquisa
de Richard Louv, que resultou no livro Last child in the Woods e a rede de
movimentos para reconectar criança e natureza, Children & Nature Network. Ambos
foram primordiais no embasamento deste trabalho.
Durante a estruturação do trabalho, mais autores juntaram-se nesta
conversa: alguns contribuíram quando o assunto foi desenvolvimento infantil, outros
quando falamos sobre a relação entre ser humano e natureza. Pouco a pouco o
trabalho cresceu, tomou forma.
O capítulo inicial conta um pouco sobre a infância: do desenvolvimento
infantil da criança durante os seis primeiros anos e suas características nesta faixa
etária, que é nosso foco neste trabalho; da experiência de brincar e o como durante a
brincadeira a criança está aberta para descobertas e neste momento acontecem
aprendizagens fundamentais para toda a vida e, sobre o brincar com a natureza, sua
importância, a experiência das atividades de Joseph Cornell. O capítulo seguinte
discursa sobre o brincar com a natureza nas crianças que são foco de nossa pesquisa:
de 0 a 6 anos. Neste capítulo falamos sobre a interação da criança pequena com o
mundo, as consequências de quando essa interação não acontece e trazemos
experiências de educação consideradas como alternativas: a educação infantil na TeArte, em São Paulo e a experiência do Núcleo Experimental de Atividades Sócioculturais de Salvador, na Bahia, e sobre a valorização da relação entre criança e
natureza dentro da Política Publica educacional brasileira.
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Encerro o trabalho com uma pesquisa de campo, onde entrevistei 12 pais
e 5 professores sobre a experiência deles e dos filhos sobre brincar com a natureza.
Para responder a entrevista foram selecionados pais e professores de
crianças de 0 a 6 anos, tendo em vista que são eles que estão em contato direto com
os protagonistas deste trabalho. O número previsto de entrevistados era de 5 a 10
pais, e a mesma quantidade para professores. Ao iniciar a entrevistas com os pais,
perdi o controle de quantas entrevistas havia realizado, o que resultou numa
ultrapassagem do número inicial.
Os pais e professores que responderam a pergunta fazem parte do meu
convívio social ou convívio social de amigos. Os pais entrevistados são profissionais
de diferentes áreas, assim podemos conhecer o perfil de pessoas que não estão
ligadas diretamente à educação. Os professores entrevistados trabalham com faixas
etárias diferentes e, tanto na rede publica de ensino quanto particular.
As perguntas foram pensadas para que os entrevistados refizessem seu
percurso enquanto crianças e percebessem qual a realidade da infância atual,
estabelecendo uma relação entre elas e por último, uma pergunta objetiva e direta
sobre o tema.
A partir das respostas foram traçados resultados qualitativos e
quantitativos, e o trabalho finaliza com uma análise que relaciona os resultados
obtidos com a revisão bibliográfica.
Finalmente, o trabalho ganhou um nome: Criança e Natureza: uma
relação de sensibilidade e encantamento. Sensibilidade e encantamento foram duas
palavras fundamentais dentro deste trabalho. É através da sensibilidade, em plena
atividade, que a criança está aberta para as descobertas, para conhecer o mundo. E o
encantamento? A palavra encantamento ganhou um sentido muito mais profundo
quando li a frase de Manoel de Barros “Que a importância de uma coisa não se mede
com fita métrica nem com balanças nem barômetros etc. Que a importância de uma
coisa há que ser medida pelo encantamento que a coisa produza em nós.” E quando
a sensibilidade está aflorada, quando a experiência acontece completamente, o
encantamento está presente. O significado de encantamento por Manoel de Barros foi
15
fundamental quando me deparei em minhas leituras com a palavra do inglês Awe,
que significa respeito gerado pelo encantamento. Assim sendo, o título deste trabalho
traz, junto com sensibilidade e encantamento, as descobertas, experiências,
aprendizagens e interações. Este trabalho fala sobre SER humano.
16
2.
SER CRIANÇA É NATURAL
2.1
Os primeiros seis anos: tempo de crescer
Começo este trabalho com uma pergunta a você leitor: “Quais foram suas
conquistas no último ano? Você consegue lembrar?” E se eu fizer a mesma pergunta
para uma criança de 1 ano de idade? Quantas conquistas ela teve durante seu
primeiro ano de vida? Ela nasceu, abriu os olhos, chorou, e então, no primeiro
trimestre ela começou a dominar os movimentos de cabeça e pescoço. O domínio se
estendeu para braços e mãos, no segundo trimestre. No terceiro trimestre as pernas
são descobertas e ela dá início às primeiras tentativas de ficar em pé e então ao final
do quarto trimestre, aproximadamente, ela arrisca os primeiros passos. A partir de
então ela domina seu corpo, afinal, para que um movimento aconteça todos os outros
músculos estão envolvidos. (König,1997)
UFA! Em um curto espaço de tempo tantas conquistas! Porém, não pára
por aqui. Enquanto ela conquistava o domínio sobre seu corpo até alcançar a postura
ereta, ela ainda ouviu muitos sons, descobriu que também os poderia produzir. Partiu
então para uma nova conquista: a linguagem. Esta aquisição permite que a criança
expresse seus desejos e sentimentos, de nome a objetos e seres externos, além de usála para comunicar-se socialmente, trocar idéias.
Com a conquista da linguagem, o domínio dos movimentos e as ações
sobre o mundo, o pensar se desperta. König afirma que andar ereto, linguagem e
pensar são os três sentidos superiores do ser humano e que se desenvolvem nos três
primeiros anos de vida.
Pare e reflita: O que significam estas conquistas pra você hoje? Estas
ações e conhecimentos que fazem parte do seu cotidiano hoje foram adquiridas ao
longo dos primeiros anos de vida, e não exclusivamente durante os três primeiros
anos, mas durante os seis primeiros anos.
17
Estes seis primeiros anos de vida são denominados primeira infância. E é
durante a primeira infância que o desenvolvimento humano é bastante acelerado.
Todo aprendizado acontece de maneira interdependente. Lev Vigotski (2007) mostra
em sua teoria de desenvolvimento na qual processos de aprendizagem e
desenvolvimento estão intimamente relacionados. Nesta teoria, Vigotski aponta três
fases de desenvolvimento: o Nível de Desenvolvimento Real, ou seja, aquele em que
o sujeito se encontra, com os processos de aprendizagens concluídos. As
aprendizagens
que
ainda
não
foram
alcançadas
compõem
o
Nível
de
Desenvolvimento Potencial. O caminho que o sujeito percorre do Nível de
Desenvolvimento Real até alcançar o que está no Nível de Desenvolvimento
Potencial faz parte da Zona de Desenvolvimento Proximal.
A zona de desenvolvimento proximal define aquelas funções que
ainda não amadureceram, mas que estão em processo de
maturação, funções que amadurecerão, mas que estão
presentemente em estado embrionário.
VIGOTSKI, 2007: 98
E o que faz parte desta Zona de Desenvolvimento Proximal? São todas as
ações que levam a criança a uma nova descoberta: as experimentações, tentativas,
com ou sem auxílio.
Pensando na perspectiva de Vigotski (2007), torna-se visível como uma
aprendizagem faz-se necessária para que outra aconteça. Quando algo que está no
Nível de Desenvolvimento Potencial é conquistado através de todo processo que
acontece na Zona de Desenvolvimento Proximal, e ao final esta aprendizagem passa
a fazer parte do Nível de Desenvolvimento Real. Acabou? É claro que não! Afinal,
esta nova aprendizagem tornou-se princípio para outra, gerando um ciclo de
aprendizagem e desenvolvimento.
Desde a vida intra-uterina a criança está aprendendo e se desenvolvendo.
Com o nascimento ela emerge no mundo social.
Segundo Piaget é através da
interação social que se desenvolve a inteligência humana. As ações da criança sobre
o outro, sobre o próprio corpo, sobre objetos, ou seja, sobre tudo que a rodeia e que
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compõe seu mundo, seu meio ambiente geram intercâmbios de informações entre
sujeito e meio. (SEBER, 2006).
É através da atividade da própria criança que a inteligência se
desenvolve. Sua principal fonte de conhecimentos é sua interação com o meio em
que vive. Para conhecer um objeto é preciso que ele aja sobre ele, transformando-o,
modificando-o, compreendendo-o. Quando um objeto é vivenciado, a criança
apropria-se dele, conhecendo-o. Este conhecimento é ponto de partida para a
ampliação de elementos sobre este objeto, cada vez que a criança transforma-o e
modifica-o. Desta forma a criança estrutura e reestrutura seus esquemas, construindo
seu conhecimento de mundo. (Friedmann, 2009)
Piaget divide o desenvolvimento da criança em três estágios, dentro dos
quais as interações com o meio acontecem de formas diferentes.
O primeiro estágio, nomeado sensório-motor, permanece do nascimento
a um ano e meio de idade. Durante este período as ações medeiam interações entre
criança e mundo.
O segundo estágio de desenvolvimento, conhecido como Pré-operatório,
compreende dos dois aos sete anos de idade. Neste estágio os esquemas de ação do
estágio anterior são interiorizados. O grande marco desta etapa é o surgimento da
função simbólica e da linguagem. Observamos um aumento do alcance do
pensamento e do egocentrismo.
Finalmente, no terceiro estágio, o Operatório, que abrange dos sete anos
em diante, as interações com o meio se dão através de operações. Este estágio é
dividido em duas fases: operatório concreto e operatório formal. Durante o período
operatório concreto, que dura dos sete aos doze anos, a criança consegue se colocar
no lugar de outro e considerar pontos de vista diferentes. As ações são interiorizadas,
ou seja, a criança para pensar consegue fazê-la mentalmente, sem a necessidade de
ações físicas. No período operatório formal as capacidades conquistadas na etapa
anterior são ampliadas e ela consegue pensar sobre hipóteses, formar esquemas de
conceitos abstratos e executa operações mentais. Durante esta fase também há uma
19
discussão sobre os valores morais e a construção dos seus próprios. Neste período,
alcançamos o padrão intelectual que permanece na vida adulta.
Porém para que estes estágios aconteçam, alguns fatores se fazem
necessário desde o nascimento. Após passar nove meses dentro do útero materno: um
ambiente seguro, repleto de possibilidades e que fornece ao bebê energia, através da
alimentação, para explorar estas possibilidades, o bebê nasce e passa a pertencer a
um ambiente novo, repleto de descobertas a se realizarem. O papel que até então era
desempenhado por um mecanismo biológico inconsciente passa a ser exercido
conscientemente pela mãe: ela se torna o ambiente seguro, a fonte de energia e que
apresenta as possibilidades do mundo para a criança. Pearce (1987) afirma que estas
são as condições que garantem o desenvolvimento da inteligência: um ambiente
seguro, energia e possibilidades. Este conjunto de características recebe o nome de
matriz. E é através do conhecimento, dos vínculos, da exploração das possibilidades
e das ações criativas sobre a matriz que a inteligência se desenvolve.
Inteligência é a capacidade de interagir com a matriz. Interação significa
intercambio dinâmico de energia. É por meio da interação que a inteligência se
desenvolve e amplia sua capacidade para uma interação maior. Todos os
acontecimentos, cotidianos ou improváveis, são oportunidades para aprender.
Ainda segundo Pearce (1987), uma inteligência madura deveria ser capaz
de interagir a três níveis que se originam de estágios do desenvolvimento biológico.
em primeiro lugar, a capacidade de interagir com a Terra viva, de
acordo com os princípios e leis naturais dela; em segundo lugar, a
capacidade de interagir com a Terra segundo os princípios da
lógica criativa circunstanciada no sistema mente-cérebro, e, em
terceiro lugar, a capacidade de interagir com os processos e
produtos do próprio sistema mente-cérebro, o que significa com os
pensamentos e criações da nossa própria mente, da mente dos
outros e com todo o sistema de pensamentos subjacente a nossa
realidade.
PEARCE, 1987:43
20
Ou seja, a criança estabelece um conhecimento das experiências que ele
tem sobre o mundo; das suas possibilidades e relações criativas sobre este mundo e
depois um conhecimento das suas próprias relações e possibilidades.
Enquanto criança, a inteligência desenvolve-se através do corpo, é
aprender concretamente. O corpo vive, sente, experimenta, responde a estas ações. A
criança está conhecendo seu corpo, suas possibilidades e limites: seu corpo é sujeito
e objeto de suas aprendizagens. Vivências e experiências concretas promovem a
aprendizagem através deste corpo, presente num sistema mente-cérebro-corpo. Se a
criança possui estas aprendizagens concretas, a transição ao pensamento abstrato
acontecerá de forma natural.
Forçar a criança a lidar prematuramente com o pensamento abstrato
do adulto pode danificar a capacidade infantil de pensar abstratamente
mais tarde. Os primeiros dez anos são planejados para a obtenção de
um amplo conhecimento do mundo como ele é para aprendermos a
lidar com ele física e mentalmente.
PEARCE, 1987:45)
É experimentar! E Larrosa (2011) propõe uma educação pensada na
relação entre experimentação e sentido. Ele define experiência como “aquilo que nos
passa, que nos acontece, que nos toca. Não o que se passa, o que acontece, ou o que
toca.” Componente fundamental da experiência é a capacidade de formação ou
transformação. A origem da palavra experiência fala de travessia e perigo. Durante
esta passagem pela existência e os perigos e imprevistos que nela encontramos temos
que estar abertos à nossa própria transformação.
Sob esta ótica, fortalecer a base biológica da criança permite que ela se
desenvolva com segurança e confiança, preparando-se para se lançar num mundo de
experiências e descobertas.
21
2.2
A experiência de brincar
A educação fundamentada na experimentação e no sentido é uma das
propostas de Larrosa. E como possibilitar a experiência pelas crianças? Por meio da
brincadeira! Segundo Santos:
o que é a brincadeira senão o ato recíproco de imbrincar dois ou
mais seres na mesma situação existencial? E o é que esse
imbrincamento senão o jogo lúdico de reconhecimento sem a outra
finalidade senão a experimentação de si e do outro?
SANTOS, 2009:19
Santos (2009) ainda afirma que a experimentação tem como base a
criação, a valorização do exercício de ser criativo, criar e recriar a si mesmo.
Referindo-se a palavra criança no português arcaico, Santos traz a definição de
creança:
Pois se trata de ser fiel ao Creador (...) continuando a creação. É
revelar a dimensão humanamente divina da criação na creação
divinamente humana. (...) Ela própria, criança como pessoa é uma
criação contínua, inacabada e ao mesmo tempo, criadora e criatura,
construção cotidiana de si mesma, creança.
(SANTOS, 2009:18)
Que sorte tem a criança! Ela vive em uma constante situação de
experiência através da brincadeira. Afinal, a experiência, nos dias atuais está se
perdendo. Excesso de informação, necessidade de constante opinião e a falta de
tempo, são fatores que, segundo LARROSA (2011), impedem que experiência
ocorra.
Estes fatores compõem o universo adulto de tal forma que penetram no
universo infantil, revelado através de brinquedos demasiadamente “educativos”, que
não permitem que a criança crie. A criança realiza as ações que o brinquedo pede
para ela fazer.
22
Figura 4 - Brinquedo para bebê
1
Figura 5 - Menino com celular
Figura 6 - Bonecos Antroposóficos
1
2
3
Disponível em: http://www.fisher-price.com/br/infanttoys/product.asp?s=bulnl&id=57144
Disponível em:
http://2.bp.blogspot.com/_SXAoaztR3BU/TRfEl7dlgSI/AAAAAAAAAVk/_zs9twVcxig/s1600/child+ipho
ne_star94.jpg
3
Disponível em: http://www.artesnatela.com.br/file/produtos/grande/0wo3wp07uulcubjtgDSC07644.JPG
2
23
Figura 7 - Observando com Lupa
4
A informação, ou melhor, o excesso dela é quase uma antiexperiência.
Uma preocupação atual de busca por informação constante e manter-se informado
cada vez mais e mais, não permite que experiência aconteça. Estamos informados, no
entanto nada nos aconteceu, nada nos tocou, nada nos sucedeu.
Além da informação, há também a opinião, e a necessidade permanente
de opinar sobre as coisas. Por possuir a informação, nos sentimos nos direito de
opinar sobre tudo aquilo que tem informação. Essa necessidade compulsória por
opinar também impede que nada nos toque, nos aconteça, nos suceda.
Outro desafio da experiência é superar a falta de tempo. As coisas são
feitas de maneira cada vez mais rápida e a pressa é cada vez mais frequente,
consequência do modo de vida que levamos. Estímulo, atrás de estímulo, quase que
substituído instantaneamente. Essa velocidade impede a conexão entre os
acontecimentos e a memória. Cada vez passamos mais tempo nos informando e cada
vez menos tempo sentindo. (LARROSA, 2011)
A criança imersa em sua brincadeira é imune a estes empecilhos. Na
brincadeira a criança se abre para um mundo de descobertas e sensações vivendo seu
próprio tempo. A criança se envolve de tal maneira que, aos olhos dos adultos, o
4
Disponível em: http://cache1.assetcache.net/xc/86533763.jpg?v=1&c=IWSAsset&k=2&d=82EB172C4407816C1F5235440B56A94F6154
D3DE86B108D56F95977DA0D37D6A
24
tempo parece imenso e injustificado. (LAMEIRÃO, 2007) A presença durante o ato
de brincar é revelada nesta frase de Schiller: “Pois, para dizer tudo de uma vez, o
homem joga somente quando é homem no pleno sentido da palavra, e somente é
homem pleno quando joga.” (SCHILER, 1990)
Brincar, para a criança, implica muito mais que a própria ação. Durante o
ato de brincar podemos conhecer a criança, suas emoções, a maneira como ela
interage com seus colegas, seu desempenho físico-motor, seu estágio de
desenvolvimento, seu nível linguístico, e sua formação moral. Sendo assim, estamos
reafirmando a sábia frase de Platão5 “Você pode descobrir mais a respeito de uma
pessoa numa hora de jogo do que num ano de conversação.”
A brincadeira, que inicia no próprio corpo, ao descobrir braços e pernas,
vai se modificando durante a infância, à medida que a criança desvenda novos
movimentos, novas posturas, novos objetos e amadurece a capacidade de perceber.
Lameirão (2007:15) afirma que “ao contemplar o mundo com total abertura e
entrega confiante a criança o incorpora pelas janelas que são os órgãos dos
sentidos.” Ela está imersa numa grande brincadeira de conhecer o mundo e a si
mesmo. Durante os primeiros três anos o movimento predomina e ao movimentar-se
a criança toma posse do seu corpo.
Enquanto a criança está imersa no brincar com o corpo, a atitude é
solitária. Assim, acaba sendo difícil a divisão daquilo que é completamente “Meu!”,
logo que nesta faixa etária a criança não estabelece relação de reciprocidade,
prevalecendo a referencia a si mesmo.
A partir dos três anos, após muitos
movimentos e percepções, o mundo foi interiorizado pela criança, o que permite que
ela institua trocas com ele: é o início da imaginação! É a imagem em ação! E a
amplitude dessa imaginação vai depender da relação que ela estabeleceu com o
mundo, somada a sua capacidade de movimentar-se. “Se o movimento é tolhido e a
percepção tranquila é comprometida, a imaginação não surge com tanta intensidade.”
(LAMEIRÃO, 2007:15)
5
Frase de Platão citada na aula da pós graduação em Educação Lúdica, pelo professor Jean Pasteur,
no módulo “O lúdico nas relações interpessoais”
25
Através do faz-de-conta a criança explora, descobre e aprende sobre sua
realidade. Não só desvenda o mundo ao seu redor, mas também comunica seus
sentimentos, ideias, fantasias, oscilando entre real e imaginário dentro do seu espaço
de brincadeira. (MACHADO, 1995:26)
Brincar beneficia o desenvolvimento interno, pois além de favorecer a
imaginação, como já foi citado, exercita a memória. Assim sendo brincar pode ser
considerado um processo de desenvolvimento da função simbólica durante a
infância, criando o acervo que será aproveitado ao longo de sua vida. (LIMA, 2007)
Assim como no corpo, na brincadeira a criança é sujeito e objeto de suas próprias
descobertas.
Raciocinar, descobrir, persistir e perseverar; aprender a perder
reconhecendo que haverá novas oportunidades e tentativas para ganhar; esforçar-se,
ter paciência, não desistindo facilmente (MACHADO, 1995:27) são ações que estão
implícitas no ato de brincar. Ações estas necessárias para toda a vida e começam a
ser construídas na infância.
Brincando a criança aprende a conhecer, aprender a fazer, aprende a
conviver e aprende a ser. Ao brincar a criança aprende na ação e não como mero
espectador. Não por acaso este são os pilares sobre os quais a educação deve ser
sustentada, segundo Delors (1996).
Remetendo-nos a palavra francesa para conhecimento: connaissance,
chegamos a um significado de co-nascimento, a possibilidade de nascer junto com o
que se conhece. Ao aprender a conhecer, a criança se surpreende e se enriquece com
o que se revela em cada nova experiência, cultivando a memória e o pensamento e
aprendendo que a curiosidade move a busca por novas descobertas, que o
conhecimento é inacabado. Brincando a criança conhece, observa o mundo que as
cerca e nas interações que são estabelecidas com ele a criança se torna curiosa,
questionadora, construindo conhecimento. (DELORS, 1996)
Segundo o dicionário Michaelis online6, a palavra fazer significa criar,
formar, compor. É criar, transformar a partir da necessidade da criança, é um fazer
6
Disponível em: http://michaelis.uol.com.br/moderno/portugues/index.php Acesso em: 23/06/2011
26
criador, transformador do homem e do mundo. Logo nos remetemos ao conascimento e criar a si mesmo nas suas criações. Delors (1996) apresenta o aprender
a fazer indissociado do aprender a conhecer. A criança está descobrindo, conhecendo
e não como espectador, ela está inserida na ação. Além do mais, na ação se trabalha
em equipe, desenvolve capacidade de iniciativa e arrisca-se.
Aprender a conviver é outro pilar da educação segundo Delors (1996).
Decompondo a palavra conviver temos COM-VIVER, ou VIVER-COM, e viver com
os outros implica em diversidade e em riqueza de cultura, saberes e conhecimentos
diferentes. José Pacheco, fundador da Escola da Ponte, em Portugal, diz que para
aprender é preciso haver heterogeneidade “ninguém aprende com quem tem a mesma
idade e ninguém aprende com quem sabe menos coisa”7. Aprender regras básicas de
convivência em sociedade, respeito frente à diversidade.
Todas as descobertas realizadas ao aprender a conhecer, fazer e conviver
contribuem no aprender a ser. Este quatro pilares da educação contribuem para o
desenvolvimento total da pessoa – espírito e corpo, inteligência, sensibilidade,
sentido estético, responsabilidade pessoal, espiritualidade.
Partindo desta perspectiva, brincar é uma necessidade da criança. É
brincando que a criança tem acesso a práticas culturais. Através das quais:
a criança se humaniza, apropria-se de formas de comunicação
familiariza-se com processos de interação social: ela aprende
ouvir, esperar a sua vez, negociar, a defender seu ponto de vista,
rir com as outras crianças, a criar. Brincar envolve emoção
humor, dimensões importantes na relação entre as pessoas.
e
a
a
e
LIMA, 2007:5
Através da brincadeira, a cultura é passada de geração em geração,
garantindo a sua manutenção. Mas e quando a criança brinca com a natureza?
7
Palestra com José Pacheco, realizada em 27 de Maio de 2011. Áudio disponível em:
http://veracruz.edu.br/?frame=paginas.php&id=111&unidade=5 Acesso em:23/06/2011
27
2.3 Brincar com a natureza
Sentimento de pertencimento à natureza, nossa posição como fios da teia
da vida. Será que temos consciência dessa nossa condição? Preservação da espécie?
Quantas vezes em nosso cotidiano corrido, apressado, paramos para pensar em nossa
condição enquanto espécie biológica deste mundo?
A partir da nossa biologia percebemos o quanto somos iguais a qualquer
outra espécie no mundo e quanto refazemos este percurso evolutivo durante nossa
vida.
Durante a vida intra-uterina estas etapas tornam-se ainda mais
perceptíveis. De um organismo unicelular aos pluricelulares, retomamos a evolução
da vida durante nossa própria criação. Mendonça (no prelo) afirma que a sequência
de formas que o feto toma durante o seu desenvolvimento realmente lembra os
estágios de vida dos peixes, anfíbios, répteis e mamíferos, conforme observamos
nesta gravura de Richardson.
Figura 8 - gravura de Richardson, representação da evolução fetal de diferentes espécies.
Desta forma, ainda citando Mendonça, podemos afirmar que toda
biodiversidade do planeta está encravada em nossa experiência biológica e em todas
as espécies de seres vivos.
Tal qual refazemos este percurso, biologicamente, também o fazemos
conscientemente. Quando nascemos, ainda bebês, permanecemos na posição
28
horizontal e pouca consciência temos do nosso entorno, predominando processos
básicos de sobrevivência. Crescemos um pouco e logo temos autonomia para
deslocarmos no espaço através do ato de rastejar e engatinhar. Nesta etapa,
reconhecemos objetos e pessoas podendo buscá-los quando quisermos, tal qual um
réptil ou um mamífero. Eis que tem início o processo de levantar-nos. Colocando-se
nesta posição a estrutura óssea dos pés começa a se modificar para garantir este
sustento, no entanto durante um período a base em quatro apoios ainda acontece
quando necessário, assim como nos primatas. Aproximadamente a um ano de idade,
a criança adquire a postura ereta e amplia sua percepção de mundo, ganhando a
possibilidade de ampliar a ocupação do espaço, fazer uso da linguagem e expressar
suas emoções. (MENDONÇA, no prelo)
A partir daí, a consciência tende a evoluir num caminho sem fim,
desde a percepção de si, dos outros e da riqueza de elementos de seu
mundo até conseguir transcender a si mesmo indo além das
possibilidades individuais.
MENDONÇA, no prelo)
Refletir dentro desta perspectiva aproxima-nos de todas as outras
espécies existentes. Este é um ponto de vista [que Capra (2006) mostra em seu livro
A teia da vida] que tem suas bases centralizadas na Terra e não no ser humano.
O paradigma que prevaleceu e prevalece sobre nossa cultura durante
séculos e consiste em um grupo de valores e ideias, dentre eles:
a visão do universo como um sistema mecânico composto de
blocos de construção elementares, a visão do corpo humano como
uma máquina, a visão da vida em sociedade como uma luta
competitiva pela existência, a crença no progresso material
ilimitado, a ser obtido por intermédio de crescimento econômico e
tecnológico, e – por fim, mas não menos importante – a crença em
que uma sociedade na qual a mulher é, por toda parte, classificada
em posição inferior à do homem.
CAPRA, 2006:25
29
Porém, as ideias e valores apontados acima estão sendo questionados e
criticados, sofrendo uma revisão radical.
Para tanto, um novo paradigma vem sendo revelado, é o que Capra
chama de ecologia profunda. Uma visão ecológica das relações que concebe o mundo
como um todo integrado, e não como uma coleção de partes dissociadas. (CAPRA,
2006:25)
A percepção ecológica profunda reconhece a interdependência
fundamental de todos os fenômenos, e o fato de que, enquanto
indivíduos e sociedades, estamos todos encaixados nos processos
cíclicos da natureza (e, em última análise, somos dependentes
destes processos).
CAPRA, 2006:25
A visão da ecologia profunda permite que, por exemplo, ao pensarmos
nesta folha de papel que você lê, não perceba apenas suas funções e propriedades,
mas que perceba a sua presença no ambiente social e natural, qual sua origem,
matérias-primas, como ela foi produzida, como seu uso afeta o meio ambiente
natural, a comunidade pela qual ela é usada, e assim por diante. Esta visão ecológica
evidencia uma rede de conexões vivas.
Sendo assim, inserido na visão de ecologia profunda, o ser humano é
apenas mais um fio particular da teia da vida, onde todos os seres vivos recebem
valores próprios e essenciais. (CAPRA, 2006:26)
O chefe Seattle, ao responder ao presidente americano sobre uma
proposta de compra de suas terras, escreveu em 1854:
Disso nós temos a certeza. Todas as coisas estão relacionadas
como o sangue que une uma família. Tudo está associado. O que
fere a terra fere também aos filhos da terra. O homem não tece a
teia da vida: é antes um dos seus fios. O que quer que faça a essa
teia, faz a si próprio.8
8
Chefe Seattle. Carta ao homem branco. Em anexo a carta na íntegra.
30
E assim, ao entrar em contato com a natureza estamos vivenciando esta
grande teia da vida e fortalecendo o sentimento de pertencimento a ela.
Capra (2006) fala sobre a necessidade de alfabetização ecológica, ou ecoalfabetização, que significa
entender os princípios de organização ecológica (ecossistemas) e
usar esses princípios para criar comunidades humanas
sustentáveis. Precisamos revitalizar nossas comunidades –
inclusive nossas comunidades educativas, comerciais e políticas –
de modo que os princípios da ecologia se manifestem nelas como
princípios de educação, de administração e de política.
CAPRA, 2006:231
Quando Capra fala de manifestar os princípios da ecologia em nossas
comunidades ele se refere à interdependência, fluxo cíclico de recursos, a
cooperação, parceria, flexibilidade e diversidade. Para entender estes princípios é
necessário estar em contato com a natureza.
No entanto, o contato com a natureza permite ir além da compreensão
dos princípios e da interdependência. Viver a natureza, estar imerso nela e sentir a
experiência acontecer são momentos que despertam a delicadeza e a sensibilidade,
transformam a conexão entre natureza e ser humano, tornando-nos seres mais
humanos proporcionando uma relação mais harmoniosa.
A compreensão mais profunda que o sensível nos possibilita
humanizar a reflexão, precisamente porque se trata de uma
sensibilidade como organização de nosso campo perceptivo
(permitindo a reversibilidade entre todos os sentidos: visão, olfato,
paladar, audição, cinestesia, intuição, etc.); ou seja, num
determinado estilo de configuração simbólica que nos permite ter
acesso, pela potência poética imaginante, a determinados estratos
de significação e sentidos.
SANTOS,
2009:23
Paul E. Knoop, na introdução do livro Vivências com a Natureza 1, de
Joseph Cornell, nos diz que um esforço para manter as pessoas em contato com a
31
natureza é indispensável no mundo de hoje dominado pela super população e alto
consumo. Só assim as pessoas são capazes de perceber seus ritmos naturais, a
mudança das estações, sua beleza e mistério (CORNELL, 2008). Para Knoop, nada
será suficiente a não ser que as pessoas sejam ensinadas a amar. Ele ainda cita a frase
de Henry David Thoreau: “A Terra é para ser mais admirada do que usada”.
Visando um aprofundamento da nossa percepção até que ela se torne
compreensão essencial sobre nosso lugar no mundo, Joseph Cornell, naturalista
americano,
desenvolveu
um
trabalho
com
atividades
que
correspondem,
individualmente, a uma profunda reflexão sobre nossas possibilidades de interação
com a natureza, experiência estas rotineiramente adormecidas, como Larrosa já nos
apontou anteriormente.
Este método foi nomeado por Cornell (1997) como Aprendizado
Sequencial. Cornell desenvolveu esta sequência baseado nas percepções que teve
durantes anos conduzindo atividades relacionadas à natureza. Partindo destas
observações, o naturalista compreendeu que a aprendizagem das crianças,
independente do grupo, lugar e idade, tornava-se mais produtiva quando seguia uma
sequência de atividades:
Estágio 1: Despertar o entusiasmo;
Estágio 2: Concentrar a atenção;
Estágio 3: Experiência direta;
Estágio 4: Compartilhar inspiração.
Estes estágios, que fluem naturalmente de um para outro, permitem que
sejam criadas inúmeras experiências com a natureza. Cada experiência acontece com
um grupo específico em um local distinto, portanto cada experiência se faz única. As
atividades podem durar desde trinta minutos até um dia inteiro, em ambientes
fechados e ao ar livre, em dias chuvosos e ensolarados, podendo ser adaptadas,
assumindo formatos diferentes. O sistema é bastante flexível, permitindo desenvolver
as atividades de acordo com as necessidades da ocasião.
32
O primeiro estágio, que Cornell (1997) chama de Despertar o
Entusiasmo, é um estágio bastante ativo. Nele a aproximação entre as pessoas é
estimulada, criando um ambiente de vivacidade e entusiasmo, propício para o
aprendizado mais sutil e significativo.
Este estágio compreende um momento muito significante, logo que se
trata dos primeiros momentos, quando as pessoas percebem se a experiência será
divertida ou não. Muitas pessoas apresentam resistência ao que é novo, e este estágio
pretende mostrar que o novo será divertido. É neste momento que se conquista a
pessoa para a experiência que está por vir.
Para as crianças a partir de sete anos, este estágio permite que elas
estruturem sua energia durante a atividade. Após atrair sua atenção neste estágio ela
estará preparada para um refinamento da percepção em atividades mais sutis. Cabe
ao mediador avaliar o grupo e sentir a atividade que será mais adequada para cada
experiência.
O segundo estágio, que Cornell (1997) nomeia Concentrar a Atenção,
consiste de jogos que propiciam calma e receptividade para as pessoas que estão se
sentindo alegres, descontraídas e renovadas após o primeiro estágio. Este estágio é
como uma ponte entre as brincadeiras mais ativas e os jogos que necessitam de mais
atenção e concentração para acontecer.
Atividades bastante simples compõem o repertório deste estágio, no
entanto elas são muito eficientes para tornar as pessoas mais observadoras. Para isso,
estas atividades buscam focar a atenção dos participantes em um dos sentidos. O
tempo de duração não precisa ser longo, basta sentir se o grupo já está preparado
para partir para o próximo estágio.
Experiência direta é como Cornell nomeia o terceiro estágio. Nestas
brincadeiras os participantes se envolvem diretamente com a natureza. Uma
experiência direta com a natureza nos possibilita adentrar inteiramente no espírito do
mundo natural. O sentimento de pertinência, compreensão das relações naturais,
sentimentos de amor e preocupação pela terra são conseqüências destas atividades,
por este motivo se fazem tão necessárias. Após estas experiências, a mente se torna
33
tranquila e receptiva, sorvida pelo acontecimento. O mundo em que vivemos é
ampliado.
A experiência direta desperta o sentido de admiração e nos
possibilita alcançar e sentir outras realidades. Quando aprendemos
por meio de experiência direta, passamos a conhecer com mais
amplitude o mundo que nos rodeia. Somente com essa empatia
teremos condições de começar realmente a conhecer a natureza
Cornell, 1997:39
Para explicar o quarto estágio, Cornell faz uso de uma frase de Goethe
“A alegria compartilhada é alegria dobrada”. O último estágio propõe que os
participantes compartilhem suas experiências.
Esta troca aproxima o grupo e
reafirma sua capacidade de admiração.
A sequência de atividades realizadas no processo do Aprendizado
Sequencial permite que a pessoa alcance uma estrutura mental que possibilita uma
experiência direta e profunda.
Para Kelleman (2001) o que descobrimos e vivemos durante uma
experiência direta fica guardado no nosso corpo.
Algumas pessoas ficam confusas porque sabem coisas sem saber
dizer como sabem. Chamamos isso de intuição. Algumas pessoas
têm medo de dizer que sabem a partir do feeling corporal. Saber a
partir do interior do nosso corpo é ser despertado por uma onda de
excitação. O corpo e as suas respostas são uma fonte de
conhecimento.
KELLEMAN, 2001:26
Experimentar diretamente é viver, aprender e saber a partir do corpo.
Pedro Bandeira nos diz sobre estas experiências diretas com a natureza no poema
“Vai já pra dentro menino!”
Vai já pra dentro menino!
Vai já pra dentro estudar!
É sempre essa lengalenga
Quando o que eu quero é brincar...
Eu sei que aprendo nos livros,
34
Eu sei que aprendo no estudo,
Mas o mundo é variado
E eu preciso saber tudo!
Há tempo pra conhecer,
Há tempo pra explorar!
Basta os olhos abrir,
E com o ouvido escutar.
Aprende-se o tempo todo,
Dentro, fora, pelo avesso,
Começando pelo fim
Terminando no começo!
Se eu me fecho lá em casa,
Numa tarde de calor,
Como eu vou ver uma abelha
A catar pólen na flor?
Como eu vou saber da chuva
Se eu nunca me molhar?
Como eu vou sentir o sol,
Se eu nunca me queimar?
Como eu vou saber da terra,
Se eu nunca me sujar?
Como eu vou saber das gentes,
Sem aprender a gostar?
Quero ver com os meus olhos,
Quero a vida até o fundo,
Quero ter barros nos pés,
Eu quero aprender o mundo!
BANDEIRA, 2001
O que Cornell busca em suas atividades pode ser definida por uma
palavra com a qual me deparei algumas vezes durante o levantamento bibliográfico
para a realização desta pesquisa, logo que entrei em contato com alguns sites e
autores internacionais. Awe, de acordo com dicionário, significa sentimento de
veneração e respeito originado pelo maravilhamento e encantamento e sua pronuncia
soa como “OH!”. Esta palavra remete-me a uma frase do poeta brasileiro Manoel de
Barros:
que a importância de uma coisa não se mede com fita métrica nem
com balanças nem barômetros etc. Que a importância de uma
coisa há que ser medida pelo encantamento que a coisa produza
em nós.
BARROS apud SANTOS, 2009:15
35
Tantas possibilidades ampliam os limites de descoberta pelas crianças, ou
melhor, as deixa sem limites para experimentar.
Richard Louv, em seu livro Last child in the woods (2008), refere-se à
natureza como nutriente para a criatividade. Nos contextos atuais, a natureza é
colocada para as crianças de maneira abstrata. Ela está presente na falas de educação
ambiental, porém colocam-na fora do alcance das crianças. Sob esta visão, a natureza
está sempre longe, dificultando esta aproximação. No entanto, por mais que
tenhamos o sentimento de estarmos separados na natureza, nós humanos, fazemos
parte dela e todos os elementos da natureza estão disponíveis fora e dentro de nós.
As crianças não devem visualizar a natureza como algo distante a ser
conquistado, por que ela está completamente em nossas vidas. Ser humano é ser
parte do mundo natural, disse Richard Louv no prefácio do livro I Love Dirt!, de
Jennifer Ward (2011).
A natureza inspira nas crianças a utilização total dos sentidos e a
criatividade. Para Louv (2008), ambientes naturais são essenciais para um
desenvolvimento saudável da criança por que eles estimulam todos os sentidos e
integram a brincadeira à aprendizagem. Experiências multissensoriais em ambientes
naturais
ajudam
a
desenvolver
estruturas
cognitivas
necessárias
para
o
desenvolvimento intelectual. Ambientes e materiais naturais propiciam nas crianças
uma imaginação sem limites. A criatividade é uma característica observada em
qualquer grupo de crianças que brinquem nestas condições.
Em escolas que possuem áreas verdes liberadas para a brincadeira, as
crianças criam novas formas de brincar. Estes espaços propiciam que as crianças
brinquem de faz-de-conta e trazem para a criança a sensação de maravilhamento. As
crianças são mais atentas, conhecem seu corpo e fazem melhor uso de suas
características, além de criar seus próprios jogos. Estes dados foram revelados em
uma pesquisa realizada em escolas da Suécia, Canadá e Estados Unidos e é
apresentada na obra de Louv (2008:88).
36
Elementos naturais podem ser caracterizados como materiais de largo
alcance. De acordo com Leontiev (2010:131), os materiais de largo alcance possuem
uma infinidade de possibilidades. São exemplos de materiais naturais de largo
alcance: pedras, areia, folhas, folhas, gravetos, água, terra, barro, madeira, conchas,
sementes, penas. Materiais deste tipo podem ser utilizados da maneira que a criança
escolher, podem ser adaptados e utilizados de inúmeras maneiras, favorecem a
criatividade e a imaginação.
No contato com a natureza a criança não só encontra-se com a
criatividade, mas também com a fantasia, liberdade e privacidade. É um lugar
distante do mundo adulto.
O respeito gerado pelo maravilhamento, Awe, é ocultado pelo
adormecimento decorrente do não uso dos sentidos. Segundo Louv (2008:57),
atualmente os nossos sentidos são eletrônicos, graças à contribuição de televisores,
computadores, outros gadgets tecnológicos e até os ambientes fechados e com ar
condicionado. O que Louv diz, retoma Larrosa argumentando sobre a nãoexperiência devido à falta de tempo, excesso de informação e necessidade de opinar
constantemente. Para que a experiência aconteça, Louv (2008) afirma que é
necessário ativar os sentidos. Como humanos, nós precisamos de experiências diretas
e naturais, afinal com nossos sentidos totalmente ativados podemos nos sentir
plenamente vivos.
37
3.
NATUREZA E CRIANÇA PEQUENA
3.1
Os primeiros contatos com o mundo como ele é
A criança até os sete anos de idade é programada pela natureza para fazer
suas coisas: estruturar um conhecimento de mundo tal como ele é, e por outro,
brincar com este mundo tal como ele não é. (PEARCE, 1987: 123)
Pearce (1987) define a mãe como sendo matriz após o nascimento: o
ambiente seguro, a fonte de energia e que apresenta as possibilidades do mundo para
a criança. Ou seja, apresentar para a criança o mundo como ele é e suas
possibilidades passam a ser atributos da mãe.
Que responsabilidade está nas mãos destas mães! Oferecer à criança a
possibilidade de conhecer o mundo como ele é uma tarefa árdua. Pearce afirma que a
estruturação do conhecimento do mundo leva pelo menos seis anos, “porque o
mundo está repleto de coisas, e seus processos e princípios são rigorosos”.
(PEARCE, 1987: 123) Quando Pearce cita o mundo real ele está falando de:
um lugar de pedras, árvores, insetos, sol, lua, vento, nuvens,
chuva, neve e milhões de coisas; um mundo guiado por princípios,
onde há um equilíbrio de causa e efeito, onde “caiu, fez bum” quer
dizer joelhos esfolados, onde o fogo queima e quente significa não
toque.
PEARCE, 1987:123
A natureza dota a criança de uma capacidade de interação incrível
através de seus movimentos corporais. E nada mais é preciso para que a criança
interaja com o mundo. Através desta interação prática com este mundo também
muito prático, são formados novos padrões de organização sensorial e ações
corporais. “Ao longo da infância, um conceito preciso e de amplas dimensões é a
internalização de um ato externo”. (PEARCE, 1987:123)
38
Para que a criança experimente o mundo como ele é, o adulto tem uma
tarefa importante: Pearce afirma que a maior dificuldade para os pais é apresentar o
mundo como ele é, sem acrescentar seus valores.
A criança pequena está descobrindo um novo mundo, com a ajuda de
todos seus sentidos em plena atividade e preparada para realizar muitas interações
com o meio. O mais maravilhoso de todas estas interações é que a criança não é
dotada de valores, significados, preconceitos, finalidades ou utilidades, o que permite
que ela entre na experiência completamente. Pearce (1987:125) diz que os adultos
“tendem a valorizar toda experiência e conhecimento de acordo com ideias culturais
sobre utilidade ou valor.” Este olhar encobre possibilidades e busca apenas aquilo
que pode ser utilizado.
A maior fonte de desentendimento entre pais e filhos talvez resida
na falta de preocupação da criança com relação ao valor e à
utilidade. Como a vida do adulto baseia-se nesse tipo de
preocupações, a despreocupação da criança torna-se uma fonte de
ansiedades para os pais. Só se permitirem que a criança
experimente o mundo sem preocupar-se com seus valores ou
utilidade é que ela poderá formar um conhecimento deste mundo
como ele é – uma vez que o mundo não tem valores.
PEARCE, 1987:126
Apresentar um mundo sem valores não é tarefa nada fácil, logo que os
valores estão intrínsecos no nosso cotidiano. No entanto, já falamos sobre a quebra
de paradigmas: da transição de um antigo paradigma (one cada parte é separada do
todo e exerce uma função independente), para um novo paradigma (no qual o mundo
é interligado e todas as partes são interdependentes). (CAPRA, 2006) Porém a
ausência de valores é intrínseco para a criança, ela nasce livre deles. Para o adulto
livrar-se dos valores é uma necessidade deste tempo e se faz fundamental para que
novos mundos floresçam, novas ideias apareçam e os paradigmas sejam vivos:
estejam em constante movimento e transformação.
39
3.2 – Ausência de contato com a natureza
Quanto nossos sentidos estão ativados? Quantos os sentidos das crianças
estão ativados? Quanto tempo estamos desconectados da tecnologia?
Louv (2008) cita falta de contato com a natureza e suas consequências e
fala sobre o que ele nomeia “Nature-deficit disorder”. Apesar de apontar questões
relativas à saúde, esta pesquisa não foi realizada por profissionais desta área.
Portanto, Louv não fala de um diagnostico médico, mas de um conjunto de
características entre elas diminuição da acuidade dos sentidos, dificuldades de
atenção, aumento do número de doenças físicas e emocionais. A identificação deste
transtorno possibilita a reflexão sobre um problema e suas probabilidades.
Um documento divulgado pela Children & Nature Network9, mostra
pesquisas do mundo que revelam dados como a diminuição do tempo que as crianças
brincam fora de casa, o aumento do tempo dedicado à mídias eletrônicas e até
mesmo a capacidade de identificar mais personagens do desenho japonês Pokemon
que espécies biológicas, as crianças são mais limitadas ao brincar livremente, tem
menos amigos. O documento também aponta danos à saúde como obesidade, miopia
e deficiência de vitamina D, causados principalmente por sedentarismo, não exercitar
a visão a longa distância durante a infância e não exposição ao Sol, respectivamente.
Dentre as pesquisas, uma aponta o Brasil entre os três países cujas as crianças
exploram a natureza com menos frequência. (C&NN, 2009)
Porém, o documento também traz os benefícios das experiências com
a natureza em que as crianças têm a oportunidade de serem livres e brincarem com
materiais não estruturados. As crianças desenvolvem-se psicológica, cognitiva e
criativamente, além de serem espertas, resolverem problemas com facilidade, são
mais cooperativas, felizes e saudáveis. Além de os efeitos do Transtorno de déficit de
atenção – hiperatividade serem amenizados quando a criança brinca nessas condições
regularmente. (C&NN, 2009)
9
C&NN é uma rede criada para encorajar e dar suporte à pessoas e organizações que trabalham em
todo o mundo para reconectar a criança com a natureza.
40
Louv (2008) evidencia que não basta discursar sobre o assunto. Para
atingirmos as crianças ações são necessárias.:
Pais, educadores, outros adultos e instituições – a própria cultura –
podem dizer uma coisa para as crianças sobre as dádivas da
natureza, mas muitas de nossas ações e mensagens –
especialmente aquelas que nós não nos ouvimos transmitir – são
diferentes. E as crianças ouvem muito bem.”
LOUV, 2008:1410
Quino, cartunista argentino, mostra através uma charge o mundo que os
adultos estão apresentando, mesmo que não intencionalmente, para as crianças
pequenas:
10
Tradução livre da autora
41
Figura 9: Tirinha de Quino.
11
Através desta tirinha irônica de Quino, percebemos a importância dos
pais durante a infância e o quanto os valores transmitidos por eles influenciam no
mundo que a criança constrói.
Para Pearce (1987) os pais são como um porto seguro para a criança. Eles
devem deixar as crianças livres e sozinhas para que ela explore o ambiente, uma
fonte principal de conhecimento inicial do mundo. Os pais cuidam da sobrevivência
da criança durante os anos de formação, esta é a razão da longa dependência humana.
Livre da preocupação com sua sobrevivência, a criança poderá construir um
conhecimento do mundo livre de valores.
A segurança de estar com os pais é primordial para que a experiência
aconteça, logo que a sobrevivência jamais será um problema. A criança poderá entrar
livremente nas experiências, sem preconceitos e avaliá-las em seguida. Preocupar-se
com a sobrevivência força uma avaliação antecipada da experiência. Tal preocupação
faz com que a inteligência fique atada a uma decisão baseada no valor da
11
Disponível em: http://2.bp.blogspot.com/_J4WdqdwQ0A/TJIkuykGM0I/AAAAAAAAAGU/Y7XAJNDBLyE/s1600/Somos+mais+do+querem+que+s
ejamos.JPG Acesso em: 13/07/2011
42
experiência. A criança que está vinculada à ansiedade questiona: “Estou seguro?”, já
a criança que não preocupa-se com sua sobrevivência questiona-se apenas: “Onde
estou?”. (PEARCE, 1987)
Cada criança tem seu tempo para entrar na experiência, até que ela se
sinta segura para conhecer as possibilidades ao seu redor. Na Educação Infantil é
bastante comum que crianças passem a integrar o grupo durante o ano letivo. Uma
destas crianças mostrou-me todo este processo de espera, segurança e conquista:
Esta garota iniciou na turma em meados do primeiro semestre de 2011 e
desde as primeiras semanas repudiava entrar no tanque de areia. Sempre que
brincávamos com areia ela preferia ficar do lado de fora. Enquanto a turma descobria
as possibilidades da areia, ela brincava pelo parque com crianças de outras turmas.
Porém após alguns meses ela se aproximava do tanque de areia e observava a
brincadeira de quem lá estava.
Para minha surpresa, em Agosto de 2011, ao comunicar que íamos ao
tanque de areia, a garota não retirou os sapatos como as outras, mas entrou no local e
sentou-se no murinho que limita o local e ficou observando as crianças. Esta ação se
repetiu nas nossas visitas seguintes, ela permanecia sentada e observando as outras
crianças brincarem. Cinco meses se passaram e desta vez ao convidar as crianças a
entrar no tanque de areia, a garota tirou o sapato junto com todas as outras e com
passos vagarosos ela pisou na areia. Ofereci minha mão para ajudá-la na caminhada.
De mãos dadas ela se aproximou do local que ela costumava permanecer sentada mas
desta vez apoiou as mãos enquanto mexia os pés sobre a areia. Ofereci um balde e
ela aceitou. Perguntei se queria encher de areia e ela fez que não com a cabeça, então
coloquei água. Ela mexeu com uma pá por alguns longos minutos até que uma outra
garota se aproximou com seu baldinho cheio de areia e despejou algumas pás de
areia no balde que havia apenas água. Após mexer a mistura de areia e água, a garota
que há alguns meses nem se aproximava do local agora estava completando seu
balde com muita areia e rindo com uma colega.
Esperar faz parte do processo da experiência. Somente respeitando seu
tempo a criança se sentirá segura e a experiência acontecerá completamente e não
mediada por receios e ansiedade.
43
Ao orientar-se pela ansiedade, a criança usará os sentidos da visão e da
audição como mediador entre o eu e a experiência. Ela tentará determinar
antecipadamente o valor e o resultado da experiência, empenhando-se para manter
distancia entre si e algum mal possível, afirma Pearce (1987:127)
Utilizando-se dos sentidos da visão e audição em busca de segurança, a
interação com o mundo não acontecerá em um nível sensorial total, eles atuam como
uma barreira entre o eu e o mundo. A criança segura entra na experiência e depois
define se ela é boa ou má, nunca antes. “Ela é neutra no que concerne à experiência
e simplesmente impelida à ela”. (PEARCE, 1987:129)
Da mesma maneira que os pais oferecem a criança qualquer oportunidade
para explorar o mundo, eles a limitam e estabelecem restrições. Os limites formam a
estrutura do seu mundo. Devem existir limites relativos a propriedades, pessoas,
direitos dos membros da família. Limites bem delineados são muito bem
compreendidos pelas crianças. (PEARCE, 1987)
Os pais apresentam à criança frequentes oportunidades para novas
experiências no mundo natural disponível e permitem que ela estabeleça seu próprio
ritmo exploratório. Esta exploração acontece através dos seus cinco sentidos.
Através dos encontros físicos com o mundo tangível das coisas, a
mente-cérebro estrutura seu conhecimento correspondente a este
mundo. Os pais não tentam construir esta aprendizagem porque
sabem que a aprendizagem é um processo não-consciente que
simplesmente tem de se desenvolver.
PEARCE, 1987:130
A criança, durante este período exploratório, conquista um grande
aprendizado: só se valoriza uma experiência entrando nela. Neste momento, nada é
mais importante do que a interação física com o mundo.
A criança esboçando um conhecimento do mundo, vagueia ao
acaso e brinca. Não tem nenhum objetivo, a não ser o momento, e
não existe nenhum outro tempo. Para a criança, o tempo é sempre
44
o agora, o lugar é sempre o aqui, o centro é sempre o “mim”. Pois
é desta forma que o mundo se estrutura.
PEARCE, 1987:136
As crianças pequenas em sua brincadeira estão experimentando o mundo,
e sob esta ótica, as atividades de Cornell se aplicam às crianças maiores, que já
possuem valores, significados, preconceitos, finalidades e utilidades definidos.
Nestas atividades elas são estimuladas a vivenciar algo semelhante às primeiras
descobertas realizadas pelos pequenos na natureza.
Ao brincar do lado de fora, em campos, quintais, parques, as crianças
estão desfrutando e apurando todos os seus sentidos, algo que eles não fazem na
frente de uma tela. (Louv, no prefácio de WARD, 2011).
Anna Marie Holm, artista dinamarquesa que desenvolve um trabalho
com arte para bebês, esteve no Brasil para um workshop com educadores 12, onde ela
apresentou um pouco do seu trabalho. Anna Marie contou que trabalha sempre do
lado de fora, faça chuva, faça sol, a temperatura esteja quarenta graus positivos ou
negativos. Ao ser questionada sobre o que a motivou a fazer arte com as crianças
sempre do lado de fora dos espaços onde visita, ela respondeu que as paredes limitam
as crianças, além de a natureza fornecer inúmeros materiais que permitem que as
crianças criem infinitamente. A artista também contou que as crianças a ensinaram a
fazer arte com o simples, e não há nada mais simples e profundo do que a natureza. É
neste ambiente que as crianças estão com todos seus sentidos abertos para
descobertas.
O livro “De volta ao quintal mágico” conta a experiência da Te-Arte, um
espaço de educação infantil em São Paulo onde o brincar é primordial. Um dos
princípios de Therezita, responsável pelo espaço, é trabalhar ao ar livre: um local de
liberdade, sensação, brincar, expressar, experimentar, olhar e mexer. São
aproximadamente sessenta crianças num quintal conhecendo o mundo e se
conhecendo.
12
O workshop Baby-art para educadores aconteceu no dia 12 de Agosto de 2011, no Centro Cultural
São Paulo
45
O espaço no qual o corpo é vivido nas delicadezas, nas durezas,
nas asperezas, nas sutilezas dos toques, dos sons, dos cheiros, dos
olhares, dos gostos. Cinco sentidos, sete sentidos, quantos mais
houver, para viver e sentir: terra, plantas, comida, bichos, gente
grande e gente pequena, água e fogo.
BUITONI, 2006:41
É preciso que as crianças tenham tempo para os três prazeres básicos: o
prazer das sensações, o prazer do sentir o movimento e o prazer da contemplação.
Atualmente, a sociedade fortemente consumista incita o prazer das sensações,
enquanto outros sentimentos como tristeza, aflição e dor ficam esquecidos. A
contemplação também não é valorizada. Mesmo sendo um dos maiores prazeres do
corpo, olhar, observar, ficar quieto são atos confundidos com passividade, preguiça e
solidão. É a falta de tempo, o excesso de informação e a necessidade de sempre
produzir algo, do qual Larrosa fala, que preenchem o nosso cotidiano e acabam
adentrando no universo infantil. Na Te-arte este espaço e tempo da contemplação são
respeitados: parar para observar uma flor, uma fila de formigas, atentar-se aos
movimentos das nuvens. O sentido dominante - olhar, ver e enxergar – necessita
ligar-se aos outros sentidos e voltar-se para o corpo. A criança, ávida em descobrir o
mundo, observa tudo, muito diferente do olhar do adulto, que carregado de seus
valores e sua história, torna-se mais direcionado. (BUITONI, 2006)
Refinar os sentidos é evidenciado sempre que se fala em brincar com a
natureza com os pequenos. A audição, por exemplo, é um sentido que na infância é
muito mais sensível que na idade adulta. A criança gosta de ouvir conversas e sons
no rádio, desde que em volume baixo, pois o barulho é uma sobrecarga sensorial,
tornando-se inimigo da criança.
Ela precisa de grandes espaços calmos e silenciosos,
principalmente em um ambiente natural de grama, árvores e flores.
Ela precisa ficar só para ouvir o mundo, sobretudo coisas que os
adultos não ouvem mais.
PEARCE, 1987:131
46
Por sua vez, o olfato é um sentido da infância. O recém-nascido busca o
seio da mãe orientado pelo olfato. É por intermédio deste sentido que ele reconhece
familiares e distingue os alimentos que come. Poluição, velocidade da vida moderna,
padronização de comidas congeladas são fatores que levam a uma dormência das
percepções olfativas. (BUITONI, 2006:150)
É muito comum lembrar-se dos cheiros da infância! Cheiro de terra
molhada, do bolo saindo do forno. E hoje? Que criança conhece o cheiro de salsinha
ou de estrume? É preciso despertar a atenção para os cheiros e cuidar para que ele
não adormeça. Os cheiros podem despertar a memória afetiva, remetendo-nos a
momentos e locais queridos ou desagradáveis. (BUITONI, 2006:150)
Outra experiência, que mostra a necessidade do contato com a natureza, é
relatada no livro “Uma experiência em educação”, do Núcleo Experimental de
Atividades Sócio-culturais de Salvador, Bahia (MAGALHÃES, 1982). A história
narrada no livro mostra a realidade de um bairro de periferia de Salvador, nas
proximidades do Parque da Cidade. As crianças de 3 a 6 anos eram o foco do
atendimento do programa, logo que no bairro não existia um atendimento
educacional que priorizasse a faixa etária. Ao conhecerem um pouco mais sobre a
comunidade, coletaram depoimentos que revelaram inúmeras necessidades de uma
comunidade onde a maneira de sobrevivência de mulheres e crianças geravam um
grande sentimento de angústia na equipe.
Uma equipe interdisciplinar foi formada pensando em atividades
realizadas através da sensibilidade: uniram-se pessoas ligadas à musica, ao teatro, às
artes plásticas, ao movimento, ao artesanato, à pedagogia. Desta forma, eles
pretendiam responder aos anseios da comunidade.
Para este atendimento, a equipe não quis utilizar-se dos modelos de
sistemas formais de educação, pois era de conhecimento deles que as instituições de
ensino encontravam-se num estágio em que a criança existia para a escola, mas a
escola não existia para a criança. “Há uma grande diferença entre uma ação que se
fundamenta no pensar sobre e aquela que procura conhecer realmente.”
(MAGALHÃES, 1982:19)
47
Ao finalizarem as matrículas, definiu-se o público: 40 crianças entre 3 e 6
anos atendidas por 2 professores; mais 40 pessoas entre crianças, jovens e adultos
para a oficina de tecelagem e 30 adolescentes formaram uma banda de música.
As instalações do núcleo eram preparadas para comportar um pequeno
número de crianças. Dentro das salas, as crianças se agrediam mutuamente, gritavam
umas com as outras, o desespero começou a tomar conta entre os professores. E
agora, o que fazer?
Foi um momento crítico, de confronto entre dois mundos. As crianças
estavam ali, comunicando algo através de sua violência. Em meio à crise, ou a equipe
enfrentava a situação, ou devolvia as crianças às ruas, justificando uma vez mais a
incapacidade de aprendizagem.
Era sobre-humano o esforço feito pelos professores visando manter a
concentração dos meninos, enquanto estes pediam para ir ao Parque, apontando o
lado para o qual queriam ir. Um dia, sem compromisso, um dos educadores abriu a
porta da sala e foi para o lado de fora. E então muita coisa começou a acontecer. “As
atividades do lado de fora deram-me a impressão de que eu não estava numa escola
fechada, mas na rua, fazendo educação na rua. Aos poucos fui percebendo que „o que
fazer‟ decorria de uma maneira natural(...)” relatou um professor (MAGALHÃES,
1982:24).
E assim, as atividades foram mudando de rumo: saíram do papel e das
propostas e seguiram o movimento das crianças. Através do brinquedo aconteceu o
encontro entre o adulto e a criança, abrindo caminhos para o convívio, delineando o
foco do trabalho: A necessidade da compreensão da criança – onde compreensão
pode ser entendida como conhecimento sempre mais profundo. Nesta experiência,
confirmou-se a ideia de que, “dentro do universo lúdico infantil se encontra toda a
sabedoria da natureza humana pronta para desabrochar.” (MAGALHÃES,
1982:25)
Uma das professoras relata a experiência que teve com as crianças na
natureza, e a define como um espaço de infinitos recursos para a educação:
48
“Uma vez conquistado pelos meninos o espaço de fora, ao
professor se oferecia para vivenciá-lo, percorrê-lo, guiado pelos
passos das crianças. Na ambiência natural do parque, a areia, o
gramado, o anfiteatro, os caminhos, as árvores, a mata, os frutos,
as flores, o chão, tudo se apresentava como rico material a ser
trabalhado pelas crianças. (...) Outras ainda permaneciam nas salas
e, à medida em que se sentiam seguras, iam saindo devagarinho
para o lado de fora (...).
No princípio, foram doados às crianças brinquedos velhos e
quebrados com os quais elas se entretinham. Percebemos logo,
porém que, na verdade elas pouco precisavam deles, pois sabiam
transformar qualquer elemento no brinquedo que sua imaginação
quisesse. (...)
Vivemos manhãs esplendidas onde as crianças escolhiam suas
atividades (...). Os meninos passavam horas a mexer na terra, a
fazer pirâmides, labirintos, buracos, torres, quintais, jardins e
rosáceas, desenhos reveladores. Como era bonito vê-los trabalhar
com as mãos, profundamente concentrados, recolhendo folhas,
frutos e capins, agregando-os ao seu trabalho, descobrindo cores e
formas variadas. (...)
Que oportunidade de pesquisa o parque nos ofereceu! A
descoberta de tantas coisas. O jenipapo que caiu ainda verde, o
dendê com que brincávamos e comíamos. Vimos que não
precisávamos nos preocupar em comprar tintas para os meninos e
sim vivenciarmos melhor o azul do céu, o verde do parque, o
amarelo do bem-me-quer, o vermelho das frutinhas e o branco
prateado da lua quando, as vezes, saíamos juntos a noitinha. (...)
Convivíamos com os ciclos da natureza através do ritmo das
plantas, sua época de flores, de frutos, de folhas secas. (...)
Durante todo esse período de intensa atividade com os meninos do
Parque, verificamos a mudança de seu comportamento. De
agressivos que eram, hoje lhes conhecemos a doçura, o
companheirismo, a afeição, a alegria. Vimos que a criança é
chamada e tocada pelo lugar onde sabe que pode se encontrar antes
de tudo consigo mesma. (...) Nesse caminhar do lado de fora,
sensíveis aos recursos que nos rodeavam e compreendendo a
importância que tem para a criança a areia, a água, as árvores, as
pedras – a NATUREZA, descobrimos que não são necessários os
materiais de custo alto para trabalhar-se em Educação.
Imprescindível se faz, porém, conscientizarmos o significado da
relação CRIANÇA/NATUREZA.”
MAGALHÃES, 1982: 38-41
Experiência única revelada através de um sábio depoimento que
evidencia a relação entre criança e natureza e que poucos documentos apontam.
Durante esta pesquisa, grande parte dos documentos e pesquisas
encontrados sobre o tema não eram nacionais. Quando sim, tratava-se de relatos de
49
experiências de educação que fogem dos padrões convencionais (como é o caso da
Te-Arte e do Núcleo Experimental de Atividades Sócio-culturais de Salvador).
3.3 Políticas públicas em prol da relação criança e natureza
Segundo a rede Children & Nature Network, nos Estados Unidos houve a
tentativa de criação de uma legislação nacional que dispunha recursos em prol da
Educação Ambiental e do contato com a natureza para estudantes do Elementary and
Second Education. Esta legislação, chamada No Child Left Inside13, está em seus
primeiro passos para ser aprovada pelo senado americano. O texto desta legislação
prevê verba para escolas públicas incentivarem a educação ambiental em seu
currículo preferencialmente em espaços abertos. No entanto, o texto não menciona a
primeira infância.
Para as crianças brasileiras o Ministério da Educação lançou, em 2009, o
documento “Critérios para um atendimento em Creches que respeite os Direitos
Fundamentais das crianças”, para Educação Infantil. O texto da Maria Malta
Campos, “Esta creche respeita a criança - Critérios para a unidade creche” aponta
entre os direitos o contato com a natureza. Inclui-se neste direito:
“• Nossa creche procura ter plantas e canteiros em espaços
disponíveis;
• Nossas crianças têm direito de brincar com água;
• Nossas crianças têm oportunidade de brincar com areia, argila,
pedrinhas, gravetos e outros elementos da natureza;
• Sempre que possível levamos os bebês e as crianças para passear
ao ar livre;
13
Texto disponível em: http://www.govtrack.us/congress/billtext.xpd?bill=h112-2547
50
• Nossas crianças aprendem a observar, amar e preservar a
natureza;
• Incentivamos nossas crianças a observar e respeitar os animais;
• Nossas crianças podem olhar para fora através de janelas mais
baixas e com vidros transparentes;
• Nossas crianças têm oportunidade de visitar parques, jardins e
zoológicos;
• Procuramos incluir as famílias na programação relativa à
natureza.
BRASIL, 2009
O texto traz nove itens que, segundo a autora, garantem o contato com a
natureza. No entanto, será que eles estão realmente garantindo este direito? Alguns
deles são tão vastos, um tanto quanto subjetivos e distante da criança. Muito
diferente do que já foi discutido neste trabalho. Por exemplo:
“Nossa creche procura ter plantas e canteiros em espaços disponíveis”:
disponíveis para quem? Para quê? Disponíveis como ornamentações, ou para que as
crianças possam pisar na terra, tocar, sentir os aromas, observar, sujar-se. Ter plantas
e canteiros disponíveis não garante um contato com a natureza. Apenas a coloca na
paisagem cotidiana da criança e não necessariamente que ela será protagonista da
interação.
“Sempre que possível levamos os bebês e as crianças para passear ao ar
livre”: O termo “sempre que possível” neste item coloca muitos empecilhos para que
os bebês possam estar ao ar livre. O que não torna esta ação possível? O que impede
que o bebê possa estar ao ar livre? Em que condições este bebê estará ao ar livre?
Deitado no carrinho ou num gramado explorando o seu entorno?
“Nossas crianças aprendem a observar, amar e preservar a natureza”:
Este é um item um tanto quanto idealista: como é possível ensinar a amar? Neste
item nós retomamos o AWE, o respeito pelo encantamento. Onde estão as situações
de encantamento com a natureza nestes direitos? Estão no olhar por uma janela ou
em se possível estar ao ar livre? O respeito que AWE nos revela é diferente do
expresso neste item recheado de clichês.
51
O contato previsto neste direito está distante do vivenciar.
No mesmo documento, o texto de Fúlvia Rosemberg, A política de
creche respeita a criança - critérios para políticas e programas de creche, também
aponta tópicos sobre a questão do contato com a natureza:
• O orçamento para construção, reforma e conservação das creches
prevê custos para manutenção de área verde no entorno ou dentro
da creche;
• As instâncias de arborização e jardinagem municipal incluem as
creches e seus espaços externos nos projetos locais;
• O projeto de construção e reforma dos prédios das creches prevê
espaços externos que comportem plantas;
• O programa prevê que as creches tenham condições para plantio
de pequenas hortas e árvores frutíferas de rápido crescimento;
• Os profissionais de creche recebem formação e orientação para
propiciar o contato e o respeito das crianças para com a natureza;
• A programação para as crianças dá especial atenção ao tema da
natureza;
• A programação das creches incentiva passeios e outras atividades
que favoreçam maior contato com a natureza
BRASIL, 2009
O que observamos neste texto? Ou melhor, alguma destas ações
acontece? Quantos são os profissionais de creche que já receberam formação e
orientação para propiciar o contato e o respeito das crianças para com a natureza? E
quanto a programação para as crianças dar especial atenção ao tema da natureza? A
escola privilegia conteúdos (mesmo na educação infantil) ou vivências?
Será que as creches brasileiras têm conhecimento deste documento? O
que este documento revela como direito ao contanto com a natureza realmente
propicia este contanto? E se as creches não validam tais direitos, será que a família o
faz?
52
4.
O CONTATO COM A NATUREZA NA ESCOLA E NA FAMÍLIA: A
PESQUISA DE CAMPO
Da mesma maneira que muitas vezes a natureza é conteúdo distante da
realidade na escola, e, na realidade ela está muito mais próximo que imaginamos,
quis trazer para este trabalho uma pesquisa, mostrando que seu conteúdo está no
nosso cotidiano e a criança do qual falamos são nossos alunos e filhos.
Para a realização da pesquisa quatro perguntas foram formuladas e
respondidas por 12 pais e 5 professores de crianças de 0 a 6 anos: “Quando, onde,
como você brincava quando era pequeno?”, “Quando, onde, como o seu aluno/filho
brinca hoje?”, “Qual relação você vê entre a sua infância e a infância atual?” e “O
que vocês pensa sobre brincar com a natureza?”.
4.1. As respostas
Grande parte de pais e professores ao responderem à pergunta: “Quando,
onde, como você brincava quando era pequeno?” afirmaram passar grande parte do
tempo fora de casa, em grupos de crianças, e em muitas respostas observou-se a
presença do contato com a natureza, principalmente com aqueles que tiveram sua
infância fora de São Paulo.
53
Pais e professores: onde brincavam?
6%
94%
Fora de casa
Dentro de casa
O contato com a natureza apresentou-se de diferentes formas: brincando
em cachoeiras, subindo em árvores para pegar frutas, reuniões para fazer fogueiras,
rodar Bombril, guerra de mamona. Algumas pessoas relataram que usaram flores
como maquiagem, cavou poços no quintal, brincou com animais, tomou chuva, quem
brincou de comidinha com folhas, barro e água, e também quem fez comida em
fogão de lenha de verdade, só que em tamanho menor.
Nos relatos da infância dos adultos predominam as brincadeiras ao invés
de brinquedos. Estas aconteciam fora de casa e sempre envolviam muitas crianças.
Muitos relataram que chegavam da escola e corriam para a rua chamar os amigos.
Quando uma criança era chamada pelo pai para entrar, todos entravam. Os relatos
também falam da despreocupação do adulto: não havia quem acompanhava as
aventuras, ou ficava observando. As crianças tinham liberdade para brincar, resolver
seus conflitos, eram mais independentes.
Ao falarem sobre a infância dos filhos, os pais citaram que maior parte
do seu tempo a criança está na escola, possuem poucos amigos (normalmente da
escola, ou do condomínio), muitos brinquedos e presença intensa da tecnologia no
cotidiano. Grande parte dos pais disse brincar com seus filhos enquanto estão em
casa, ou aproveitar trajetos entre casa e escola para conversar, brincar e cantar.
54
Pais e professores: Filhos/alunos que
brincam com a natureza
33%
67%
Sim
Não
Os brinquedos tiveram mais ênfase que as brincadeiras. Os pais citaram a
presença de uma variedade enorme de brinquedos – para cada brincadeira há um
brinquedo diferente e todos industrializados. Nas respostas os pais falaram mais
sobre os brinquedos que os filhos têm, o que demonstra o reforço que o consumismo
infantil recebe desde cedo dentro das famílias. Um dos pais disse inclusive que
acredita que o filho nunca fez um brinquedo, enquanto na infância dele esta ação era
muito mais presente.
A terceira pergunta revelou a relação entre as infâncias deles e dos filhos.
Alguns pais afirmaram que as mudanças foram boas quanto ao acesso das crianças a
uma variedade maior de brinquedos e aparelhos tecnológicos, como televisão, vídeo
game e DVD, e afirmam que estes são importantes no desenvolvimento das crianças.
O fator “falta de segurança” limitar o espaço que as crianças têm para
brincar atualmente também foi citado. Um dos pais citou que o espaço limitado para
a criança brincar tem dois lados: de um lado a criança é privada de aprender
brincadeiras que necessitam de espaços maiores, como andar de bicicleta, ou outras
que exercitam o corpo. Por outro lado os pais se sentem mais seguros, porque o filho
está sempre por perto.
“A criança poderia ser a mesma de diferentes épocas, mas o adulto e a
sociedade não são, então a criança acaba não sendo também.”, afirmou um dos pais.
55
Cada criança está imersa em uma família, uma sociedade, uma cultura diferente e, no
entanto o desenvolvimento é semelhante. O filme Babies, de Thomas Balmès (2010)
ilustra esta questão.
O documentário mostra o desenvolvimento de quatro bebês desde o
nascimento até os primeiros passos. No entanto estes quatro protagonistas vivem em
lugares muito peculiares e distantes um dos outros: Opuwo, na Namíbia; Tokio, no
Japão; Bayanchandmani, na Mongólia e São Francisco, nos Estados Unidos.
Todos os bebês se desenvolvem e fazem muitas descobertas durante o
filme, no entanto eles são mediados pelo ambiente e pela cultura na qual estão
inseridos. A bebê japonesa está imersa em tecnologias, muitos brinquedos. Uma das
cenas que chama a atenção é quando ela se irrita fortemente por não conseguir
encaixar um pino em um brinquedo, gritando e jogando-se no chão. Enquanto na
Namíbia, o bebê está a maior parte do tempo livre e em contato com a natureza o que
permite que ele realize suas descobertas de sua maneira: colocando na boca o que
encontra no chão, engatinhando sobre chão de terra. Na Mongólia, o bebê
frequentemente aparece envolto em panos que o imobilizam, especialmente quando
está sozinho. Ele vive em um ambiente rural com animais a sua volta, em uma das
cenas uma cabra bebe água da tina enquanto ele toma banho. Nos Estados Unidos, a
bebê é o centro do mundo dos pais. Eles estão sempre próximos à ela, seja brincando,
lendo ou realizando tarefas do cotidiano.
56
Figura 10 Os bebês de Babies (em sentido horário): Japão, Namíbia, Estados Unidos e Mongólia
Cada bebê vive em um ambiente único e ele reflete no seu
desenvolvimento. É perceptível como o bebê africano, por sua liberdade e o contato
com a natureza, se desenvolve com mais autonomia e desde pequeno ele já possui
maior destreza e propriedade de seus movimentos. Na cena que mostra o momento
da conquista do andar de todos os bebês, o africano aparece correndo com um objeto
na cabeça.
A liberdade para brincar foi um fator que apareceu nas respostas dos
professores. Eles falaram sobre a diferença na intenção da brincadeira atualmente. Na
infância deles a brincadeira era mais livre e autônoma, enquanto hoje as brincadeiras
são predominantemente dirigidas, os brinquedos possuem muitas funções que não
permitem que a criança crie, como já comentamos acima.
Quando perguntei sobre a opinião a respeito de brincar com a natureza,
em muitas respostas os pais disseram que é muito importante.
57
Pais: É importante brincar com a
natureza?
7%
93%
Sim
Não
No entanto, a importância que é foco dos pais é com o conteúdo sobre o
meio natural, como podemos observar em frases como “ele precisa aprender coisas
sobre a natureza”. Alguns afirmaram se esforçar para que este contato aconteça:
levam à parques, sítios, praças.
Um pai reconhece a natureza como fonte infinita de possibilidades para
exploração e dotada de uma diversidade que propicia um amadurecimento dos
sentidos, dos movimentos e do saber e afirma que mora em uma casa com espaço
pequeno, mas que esforça-se para que esta conexão mantenha-se viva. Outros
disseram que precisam esperar que as crianças cresçam um pouco mais para que seja
possível.
Um dos pais entrevistados demonstrou ter medo quanto às brincadeiras e
situações livres e que envolvem as crianças e a natureza. Ele diz que ao avaliar sua
infância percebe o quando era arriscada. Enquanto isso um outro pai afirmou que
pretende que seu filho ingresse no movimento escoteiro para fortalecer as
oportunidades desta relação entre criança/natureza.
Os professores falaram que a brincadeira na natureza é importante para a
construção de uma relação de respeito e admiração. Eles vêem o ambiente natural
como um espaço com muitas possibilidades, mas que nem sempre ele pode ser
vivido dentro da escola. Os professores ainda revelaram que as escolas em que
58
trabalham não têm um espaço natural disponível para as crianças explorarem, os
brinquedos dos parques são predominantemente de plástico e os gramados são
mediados por frases como “Não pisa aí que tem formiga!”, “Você vai se sujar!” que
criam uma barreira que permeia esta relação, impedindo-a de acontecer.
4.2
O que a pesquisa de campo me ensinou
Durante as entrevistas pude perceber o saudosismo presente nas falas dos
adultos. Relembrar os velhos tempos fez muita gente se emocionar. Algumas pessoas
foram sucintas em suas respostas, outras perguntavam se podiam falar mais um
pouco e contavam sobre brincadeiras que lhes vinham a mente com muitos detalhes.
Um fato que chamou a atenção foi a gritante diferença entre os adultos
enquanto crianças e as crianças atuais quanto a brincar fora de casa e a
predominância das brincadeiras ao invés de brinquedos. Esses fatores se fazem
importante não pelo saudosismo, mas por suas características. Enquanto crianças
estes adultos conviveram com muitas outras e eram livres para brincar pelas
redondezas de suas casas. Socialização e liberdade - aspectos essenciais à condição
humana e que segundo as respostas para a pergunta sobre como os filhos brincam,
correm risco de extinção.
Ao responder a segunda pergunta, referentes ao brincar para a criança de
hoje algumas pessoas deram risada antes de responder, ou fizeram cara de espanto.
Refazer o seu percurso enquanto criança e perceber a realidade desta criança que está
diante de você é triste, especialmente quanto aos aspectos citados anteriormente:
liberdade e socialização. As crianças atualmente não têm muitos amigos e passam a
maior parte de seu tempo ou em atividades extracurriculares, ou na escola ou em
casa, ao passo que o brincar livre não tem mais prioridade. Alguns dos entrevistados
mostraram-se preocupados com o que estas crianças vão levar de sua infância, o
quanto essas memórias serão diferentes deles. Alguns chegaram a afirmar que não
gostariam de nascer nos tempos de hoje. Enquanto outros adultos mostraram grande
interesse no desenvolvimento do filho através de brinquedos e da tecnologia. Sendo
59
assim, aspectos fundamentais a espécie humana, como socialização e liberdade,
ficam em segundo plano.
As duas últimas perguntas mostraram que os pais dizem achar importante
as crianças brincarem e terem contato com a natureza, mas nem todos se esforçam
ou vêem possibilidade para que isso aconteça. Esta informação reafirma os dados da
pesquisa apresentada pela C&NN, anteriormente citada, onde o Brasil é apontado
como um dos países que, segundo as mães, as crianças menos exploram a natureza.
No entanto, quando falamos sobre espaço, ficam aqui algumas perguntas:
realmente existe falta de espaço? Quem limita o espaço para brincar? Onde
pensamos em levar as crianças quando pensamos em levá-las para brincar fora de
casa?
Rusty Keeler14 é um especialista em design de espaços naturais para
brincar. Segundo Keeler, repensar os espaços para brincar começa conosco. Não são
necessários muitos recursos para criar um espaço destes. Aproveitar os espaços e
recursos disponíveis, disponibilizar materiais de largo alcance, possibilitar espaços
que as crianças possam se esconder. Ao reconfigurar estes espaços, Keeler diz pensar
em lugares que alimentem a imaginação e a alma das crianças. Para Keeler,
conscientizando a comunidade da importância e dos benefícios de brincar em
espaços naturais e ao ar livre é um ponto de partida para repensar um espaço coletivo
comum.
14
Rusty Keeler é australiano e seu trabalho está disponível no site: http://www.earthplay.net
60
Figura 11 Espaços naturais para brincar
15
Não só a criança aprende quando a criança está imersa nesta relação, o
adulto que oferece aos pequenos esta oportunidade se desenvolve como educador,
pois nos deparamos com uma rede de valores interligados que fogem dos moldes
tradicionais de educação. Estar em contato com a natureza é conviver com o
imprevisto e com o infinito, ao passo que a natureza comporta inúmeras
possibilidades e, quando estamos em um ambiente natural, não temos o controle da
situação em nossas mãos. O que vai acontecer, o que vamos encontrar... É conviver
com o inesperado! A já citada Anna Marie Holm, artista plástica dinamarquesa, diz
que professor organiza demais e gosta de estar no controle.
Por seu aspecto inesperado, imprevisível, os ambientes naturais acabam
recebendo a característica insegurança. Para driblar a insegurança um valor é
imprescindível: confiança. Confiar, significa acreditar plenamente. A insegurança
muitas vezes está relacionada ao querer antecipar as ações das crianças para que nada
aconteça de errado. Confiar é acreditar que a criança é capaz de realizar suas próprias
descobertas e aprender com elas. Ponijao, o bebê africano de Babies, é um exemplo
claro desta relação entre confiança, liberdade e as experiências no mundo.
15
Imagens disponíveis em: http://progressiveearlychildhoodeducation.blogspot.com/
61
Deixar a criança se expressar, agir, e confiar nessa liberdade são atitudes
que fazem oposição à situação de controle de cada passo, de cada ação dentro da
escola. Dentro desta condição de controle levantam-se inúmeras expectativas quanto
ao desenvolvimento das crianças, e numa relação entre criança e natureza o tempo da
criança é o que vale - nada pode ser antecipado ou prorrogado.
Todos estes valores são essenciais para que aconteça a experiência, ao
passo que, considerando que a origem da palavra experiência nos remete à travessia e
ao perigo. Ora, o que é preciso para enfrentar a travessia e o perigo senão confiança,
liberdade, conviver com o imprevisto e com a espera do tempo de cada um.?
Ao realizar esta pesquisa percebi a importância de dar vida a este
trabalho e não esquecê-lo na prateleira da biblioteca. É necessário divulgar seu
conteúdo para pais e educadores, na intenção de fazer nascer um movimento de
valorização da relação entre criança e natureza. Esta relação não precisa de muito
para acontecer. Simplicidade é a palavra chave. Um texto de um panfleto divulgado
em um congresso de Educação na Itália e divulgado por Rubem Alves, diz sobre os
“Dez direitos naturais das crianças” e em quase todos se observa a presença tão
simples e fundamental da relação criança/natureza.
1. Direito ao ócio: Toda criança tem o direito de viver momentos
de tempo não programado pelos adultos.
2. Direito a sujar-se: Toda criança tem o direito de brincar com a
terra, a areia, a água, a lama, as pedras.
3. Direito aos sentidos: Toda criança tem o direito de sentir os
gostos e os perfumes oferecidos pela natureza.
4. Direito ao diálogo: Toda criança tem o direito de falar sem ser
interrompida, de ser levada a sério nas suas idéias, de ter
explicações para suas dúvidas e de escutar uma fala mansa, sem
gritos.
5. Direito ao uso das mãos: Toda criança tem o direito de pregar
pregos, de cortar e raspar madeira, de lixar, colar, modelar o barro,
amarrar barbantes e cordas, de acender o fogo.
6. Direito a um bom início: Toda criança tem o direito de comer
alimentos sãos desde o nascimento, de beber água limpa e respirar
ar puro.
62
7. Direito à rua: Toda criança tem o direito de brincar na rua e na
praça e de andar livremente pelos caminhos, sem medo de ser
atropelada por motoristas que pensam que as vias lhes pertencem.
8. Direito à natureza selvagem: Toda criança tem o direito de
construir uma cabana nos bosques, de ter um arbusto onde se
esconder e árvores nas quais subir.
9. Direito ao silêncio: Toda criança tem o direito de escutar o
rumor do vento, o canto dos pássaros, o murmúrio das águas.
10. Direito à poesia: Toda criança tem o direito de ver o sol nascer
e se pôr e de ver as estrelas e a lua.
ALVES, 2011
O que é preciso para que as crianças tenham estes direitos?
63
7. CONSIDERAÇÕES INICIAIS
Quando comecei a fazer este trabalho não tinha ideia do que ele
significaria para mim. É meu terceiro trabalho acadêmico, desde a conclusão da
minha graduação.
Meu trabalho de conclusão de curso na graduação foi realizado em
grupo, com um tema comum a todos. A monografia da pós graduação em
Psicomotricidade foi realizada em duplas e o tema também foi comum às duas. Posso
dizer que este é o primeiro completamente meu. Como a Adriana Friedmann disse
este trabalho é um filho que está nascendo. E a sensação de parir um filho sozinha é
totalmente diferente. Oras, não estou dizendo que trabalhar em grupo não foi bom.
Foi no meu trabalho de conclusão de curso da graduação que eu fiz meu primeiro
trabalho verdadeiramente em grupo. No entanto, aqui neste trabalho posso dizer que
assim como diz Fayga Ostrower (apud Santos, 2009) “se criar é dar forma, dar
forma não seria então formar-se?”, neste trabalho eu criei, dei forma e me formei.
Coloquei um pouco de mim nestas páginas enquanto elas colocavam muito delas em
mim.
Quando fui escolhida por este tema para o trabalho não imaginei o
tamanho de sua importância. No entanto, neste momento de finalização não consigo
imaginar um final e para isto há uma razão: não existe final, pois este é um começo.
É um trabalho que mostra a importância da relação entre a criança
pequena e a natureza. É um trabalho que chama a atenção de todos para o que está
acontecendo com a infância: maior índice de doenças, menos amigos, mais tempo
dentro de casa e em frente a diferentes telas.
Foi triste, em meio a tantos dados das pesquisas, encontrar o Brasil entre
os países que as mães afirmam que as crianças exploram a natureza com menos
frequência. E foi isso que eu vi na minha pesquisa, mesmo os pais acreditando serem
importantes, estas oportunidades raramente acontecem.
64
Em um dos capítulos do livro Last Child in the Woods (2008), Richard
Louv fala sobre uma conversa que ele teve com pais em uma escola onde ele
perguntou se eles não acham que as crianças estão sentindo falta da natureza. E a
respostas de um dos pais foi: “As crianças não vão sentir falta daquilo que elas nunca
tiveram.” Será que não? Vimos neste trabalho que a natureza não está apenas do lado
de fora, mas também faz parte do nosso interior: nós somos a natureza. Será que não
vamos sentir falta daquilo do qual somos parte?
Durante a pesquisa encontrei muitos trabalhos, redes sociais, movimentos
e até mesmo legislações que estão acontecendo fora do Brasil que tem como
finalidade tirar a criança de casa, favorecer momentos de brincar livre e reconectá-la
com a natureza. E que contradição existe quando o assunto é o nosso país: enquanto
é um dos países dono das maiores biodiversidades do mundo, também está entre os
países em que a exploração da natureza é menos frequente! O único documento que
mostra um incentivo é tão superficial. Este trabalho mostra que não basta ser
superficial, é preciso ser profundo: atingir a sensibilidade e a delicadeza.
Este é o maior motivo do final deste trabalho ser considerado um
começo. É um impulso para atitudes em prol desta relação. É o início de um
movimento, de uma campanha, seja o que for. Algo precisa ser feito e será.
65
6.
REFERÊNCIAS
ALVES, Rubem. ... o melhor de tudo são as crianças.... Disponível em:
http://www2.uol.com.br/aprendiz/n_colunas/r_alves/id131002.htm Acesso em:
1/08/2011
BANDEIRA, Pedro. Vai já pra dentro menino. Em: Palavras de Encantamento.
Volume 1 – Poesias. São Paulo: Editora Moderna, 2001. P 46-47.
BRASIL, Ministério da Educação. Critérios para um atendimento em creches que
respeite os direitos fundamentais das crianças. Brasília : MEC, SEB, 2009.
BUITONI, Dulcilia Schroeder. De volta ao quintal mágico: A educação infantil na
Te-Arte. São Paulo: Ágora, 2006.
CAPRA, Fritjof. A teia da vida: uma nova compreensão cientifica dos sistemas
vivos. São Paulo: Cultrix, 2006.
CHILDREN & NATURE NETWORK. A report on the movement to reconect
children to the natural world, 2009. Disponível em:
http://www.childrenandnature.org/downloads/CNNMovement2009.pdf Acesso
em: 30/06/2011.
CORNELL, Joseph. Vivencias com a natureza 1: guia de atividades para pais e
educadores. São Paulo: Editora Aquariana, 2008. 3ª Ed.
CORNELL, Joseph. A alegria de aprender com a natureza – atividades ao ar livre
para todas as idades. São Paulo: Editora Melhoramentos, 1997.
DELORS, Jacques. Educação um tesouro a descobrir: Relatório para a UNESCO da
Comissão Internacional sobre Educação para o século XXI. São Paulo: Cortez,
1996.
FRIEDMANN, Adriana. O desenvolvimento da criança através do brincar. São
Paulo: Editora Moderna, 2009.
KELLEMAN, STANLEY. Mito e corpo – uma conversa com Joseph Campbell. 3ª
Ed. São Paulo:Summus Editorial, 2001.
KÖNIG, Karl. Os três primeiros anos da criança: A conquista do andar, do falar e
do pensar e o desenvolvimento dos três sentidos superiores. 3ªed. São Paulo: Editora
Antroposófica, 1997.
LARROSA. Jorge. Notas sobre a experiência e o saber de experiência. Disponível
em:
66
http://www.anped.org.br/rbe/rbedigital/RBDE19/RBDE19_04_JORGE_LARROSA_
BONDIA.pdf Acesso em: 17/03/2011
LAMEIRÃO, Luiza Helena Tannuri. Criança brincando! quem a educa? São Paulo:
Editora João de Barro, 2007.
LEONTIEV, Alexis N. Os princípios psicológicos da brincadeira pré-escolar.EM:
LEONTIEV, Alexis N., LURIA, Alexander Romanocivh, VIGOTISKII, Lev
Semenovich. Linguagem, desenvolvimento e aprendizagem. 11ª Ed.São Paulo:
Ícone, 2010.
LIMA, Elvira de Souza. Brincar para quê? São Paulo: Editora Inter Alia, 2007.
LOUV, Richard. Last child in the Woods: saving our children from nature-deficit
disorder. Updated and Expanded. New York: Algonquin Paperbacks, 2008.
MACHADO. Marina Marcondes. O brinquedo-sucata e a criança. Edições Loyola,
1995. 2ª Ed.
MAGALHÃES, Sônia Campos (Coord.). Uma experiência em educação. Salvador:
Prefeitura de Salvador, 1982. 127 p., il.
MENDONÇA, Rita. A biodiversidade que habita em nós. IN: Meio Ambiente e
Natureza. Editora Senac, no prelo.
PEARCE, Joseph Chilton. A Criança mágica: A redescoberta da imaginação na
natureza das crianças. Rio de Janeiro: Editora Francisco Alves, 1987.
SANTOS, Marcos Ferreira dos. Experimentação pelas creanças: a brincagogia
sensível. EM: Brincar: um baú de possibilidades. Instituto Sidarta, 2009. P. 17 23.
SCHILLER, Friedrich. XV carta. IN: A educação estética do homem. São Paulo:
Iluminuras, 1990.
SEBER, Maria da Glória. Piaget: o diálogo com a criança e o desenvolvimento do
raciocínio. São Paulo: Editora Scipione, 2006.
VIGOTSKI, Lev S. A Formação Social da Mente. São Paulo: Editora Martins
Fontes, 2007.
WARD, Jennifer. I Love Dirt! 52 activities to help you and your kids discover the
Wonders of nature. Kindle version. Boston: Trumpeter, 2011.
67
7. ANEXOS
1. Carta ao homem branco
Em 1855, o cacique Seattle, da tribo Suquamish, do Estado de
Washington, enviou esta carta ao presidente dos Estados Unidos (Francis Pierce),
depois de o Governo haver dado a entender que pretendia comprar o território
ocupado por aqueles índios. Faz mais de um século e meio. Mas o desabafo do
cacique tem uma incrível atualidade. A carta:
"O grande chefe de Washington mandou dizer que quer comprar a nossa terra. O
grande chefe assegurou-nos também da sua amizade e benevolência. Isto é gentil de
sua parte, pois sabemos que ele não necessita da nossa amizade. Nós vamos pensar
na sua oferta, pois sabemos que se não o fizermos, o homem branco virá com armas
e tomará a nossa terra. O grande chefe de Washington pode acreditar no que o chefe
Seattle diz com a mesma certeza com que nossos irmãos brancos podem confiar na
mudança das estações do ano. Minha palavra é como as estrelas, elas não
empalidecem.
Como pode-se comprar ou vender o céu, o calor da terra? Tal idéia é estranha. Nós
não somos donos da pureza do ar ou do brilho da água. Como pode então comprá-los
de nós? Decidimos apenas sobre as coisas do nosso tempo. Toda esta terra é sagrada
para o meu povo. Cada folha reluzente, todas as praias de areia, cada véu de neblina
nas florestas escuras, cada clareira e todos os insetos a zumbir são sagrados nas
tradições e na crença do meu povo.
Sabemos que o homem branco não compreende o nosso modo de viver. Para ele
um torrão de terra é igual ao outro. Porque ele é um estranho, que vem de noite e
rouba da terra tudo quanto necessita. A terra não é sua irmã, nem sua amiga, e depois
68
de exaurí-la ele vai embora. Deixa para trás o túmulo de seu pai sem remorsos.
Rouba a terra de seus filhos, nada respeita. Esquece os antepassados e os direitos dos
filhos. Sua ganância empobrece a terra e deixa atrás de si os desertos. Suas cidades
são um tormento para os olhos do homem vermelho, mas talvez seja assim por ser o
homem vermelho um selvagem que nada compreende.
Não se pode encontrar paz nas cidades do homem branco. Nem lugar
onde se possa ouvir o desabrochar da folhagem na primavera ou o zunir das asas dos
insetos. Talvez por ser um selvagem que nada entende, o barulho das cidades é
terrível para os meus ouvidos. E que espécie de vida é aquela em que o homem não
pode ouvir a voz do corvo noturno ou a conversa dos sapos no brejo à noite? Um
índio prefere o suave sussurro do vento sobre o espelho d'água e o próprio cheiro do
vento, purificado pela chuva do meio-dia e com aroma de pinho. O ar é precioso para
o homem vermelho, porque todos os seres vivos respiram o mesmo ar, animais,
árvores, homens. Não parece que o homem branco se importe com o ar que respira.
Como um moribundo, ele é insensível ao mau cheiro.
Se eu me decidir a aceitar, imporei uma condição: o homem branco deve
tratar os animais como se fossem seus irmãos. Sou um selvagem e não compreendo
que possa ser de outra forma. Vi milhares de bisões apodrecendo nas pradarias
abandonados pelo homem branco que os abatia a tiros disparados do trem. Sou um
selvagem e não compreendo como um fumegante cavalo de ferro possa ser mais
valioso que um bisão, que nós, peles vermelhas matamos apenas para sustentar a
nossa própria vida. O que é o homem sem os animais? Se todos os animais
acabassem os homens morreriam de solidão espiritual, porque tudo quanto acontece
aos animais pode também afetar os homens. Tudo quanto fere a terra, fere também os
filhos da terra.
Os nossos filhos viram os pais humilhados na derrota. Os nossos
guerreiros sucumbem sob o peso da vergonha. E depois da derrota passam o tempo
em ócio e envenenam seu corpo com alimentos adocicados e bebidas ardentes. Não
tem grande importância onde passaremos os nossos últimos dias. Eles não são
muitos. Mais algumas horas ou até mesmo alguns invernos e nenhum dos filhos das
grandes tribos que viveram nestas terras ou que tem vagueado em pequenos bandos
69
pelos bosques, sobrará para chorar, sobre os túmulos, um povo que um dia foi tão
poderoso e cheio de confiança como o nosso.
De uma coisa sabemos, que o homem branco talvez venha a um dia
descobrir: o nosso Deus é o mesmo Deus. Julga, talvez, que pode ser dono Dele da
mesma maneira como deseja possuir a nossa terra. Mas não pode. Ele é Deus de
todos. E quer bem da mesma maneira ao homem vermelho como ao branco. A terra é
amada por Ele. Causar dano à terra é demonstrar desprezo pelo Criador. O homem
branco também vai desaparecer, talvez mais depressa do que as outras raças.
Continua sujando a sua própria cama e há de morrer, uma noite, sufocado nos seus
próprios dejetos. Depois de abatido o último bisão e domados todos os cavalos
selvagens, quando as matas misteriosas federem à gente, quando as colinas
escarpadas se encherem de fios que falam, onde ficarão então os sertões? Terão
acabado. E as águias? Terão ido embora. Restará dar adeus à andorinha da torre e à
caça; o fim da vida e o começo pela luta pela sobrevivência.
Talvez compreendêssemos com que sonha o homem branco se
soubéssemos quais as esperanças transmite a seus filhos nas longas noites de inverno,
quais visões do futuro oferecem para que possam ser formados os desejos do dia de
amanhã. Mas nós somos selvagens. Os sonhos do homem branco são ocultos para
nós. E por serem ocultos temos que escolher o nosso próprio caminho. Se
consentirmos na venda é para garantir as reservas que nos prometeste. Lá talvez
possamos viver os nossos últimos dias como desejamos. Depois que o último homem
vermelho tiver partido e a sua lembrança não passar da sombra de uma nuvem a
pairar acima das pradarias, a alma do meu povo continuará a viver nestas florestas e
praias, porque nós as amamos como um recém-nascido ama o bater do coração de
sua mãe. Se te vendermos a nossa terra, ama-a como nós a amávamos. Protege-a
como nós a protegíamos. Nunca esqueça como era a terra quando dela tomou posse.
E com toda a sua força, o seu poder, e todo o seu coração, conserva-a para os seus
filhos, e ama-a como Deus nos ama a todos. Uma coisa sabemos: o nosso Deus é o
mesmo Deus. Esta terra é querida por Ele. Nem mesmo o homem branco pode evitar
o nosso destino comum."
70
2. Entrevistas
PAI 1
Idades dos filhos: 1/2 e 5/6
Formação: Ensino Superior
Idade: 29 anos
Quando você era criança, como era sua brincadeira? (Onde, com
quem, quando, por quanto tempo)
Eu morava em Campo Grande MS, era um bairro da "periferia" na
época. Era bem afastado da região central da cidade, cercado por fazendas. Na época
eram poucas ruas asfaltadas, praticamente só as principais. Eu brincava na rua, com
as crianças da vizinhança. Eram no mínimo cinco e em media umas 15 crianças.
Brincávamos de todas as brincadeiras imagináveis! Dependendo da brincadeira que
iríamos brincar, saíamos chamando a turma toda da rua. E eram brincadeiras de
época, às vezes ficávamos vidrados em bicicleta, formávamos uma turma, também
teve a época dos patins, mas gostávamos mesmo de jogar betes - que aqui é
conhecido como taco, pular elástico, amarelinha, caracol, alerta, cola-cola americano,
queimada, bandeirinha, mãe da rua, forno, elefante colorido, caiu no poço. A gente
também brincava na chuva, e fazíamos encontros para acender fogueiras, rodar
Bombril, preparar bolos de aniversários surpresa, para os amigos. Íamos roubar
goiaba, manga na casa dos vizinhos, pescar no rio. Ah! Eu brincava de tacar mamona
também. Era muito dinâmico, quase não parávamos. Televisão era só pra quando
estava chovendo ou quando estávamos doentes e até mesmo quando éramos
proibidos de sair pra rua.
Quando eu chegava da escola e nessa época eu estudava de manhã e
quase todo mundo estudava no mesmo colégio do próprio bairro, era o tempo de
trocar o uniforme e correr para chamar as amigas... Dependendo da brincadeira não
dava nem pra esperar o almoço! Também era engraçado que se um ou mais entravam
para as casas, por qualquer motivo, os outros entravam também.
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Como seus filhos brincam? (Onde, com quem, quando, por quanto
tempo)
Nós temos pouco espaço onde moramos, a casa é menor que a da minha
infância e não temos quase espaço no quintal, que dirá uma arvore para subir, terra
para manipular, folhas, frutas para apanhar. Os brinquedos de hoje são todos
industrializados, prontos, e o tempo dedicado ao brincar é outro. Eles querem um
adulto por perto, acho que pela falta de mais crianças. Eu estimulo elas a desenharem
no chão do quintal, coloco texturas diferenciadas: farinha de trigo, fubá, até terra
vermelha, mas é limitado. Não se brinca na chuva, ou fora de casa nos dias mais
frios, e a televisão é solicitada sempre que há pausa na brincadeira. A grande maioria
são brinquedos de plástico, prontos, com detalhes demais. Elas estranham quando
pegam uma boneca que não tenha o rosto desenhado, porque estão tão habituadas a
ver os detalhes que não são estimuladas a imaginar, criar.
Minhas filhas passam boa parte do tempo na escola, creio que este seja o
momento em que mais brincam, em casa, exploram objetos de encaixe, utilizam
tintas, lápis. Aos finais de semana, andamos de bicicletas, vamos a parques, e elas
exploram outras texturas, sementes, folhas.
Como você vê a relação entre a brincadeira na sua infância e a
brincadeira do seu filho/ alunos?
Pra mim eu acho que piorou muito. Há pouca exploração, pouco
interesse, brinca-se um pouco e logo já se cansou. A oferta de brinquedos é muito
grande e eu termino de brincar com um já quero o outro! Na minha infância tínhamos
poucos brinquedos, e mais opções de brincadeiras em grupo, criávamos nossas
brincadeiras. Os acessórios eram mais simples, mas era rico em experiências e
vivências, hoje noto que há muitos acessórios, e pouca exploração. As mães não
ficavam em cima da gente falando: “Menino você vai cair!”. Subíamos em arvore,
nos expúnhamos ao brincar na rua, e isso era bom, por que além de vivermos em
72
grupo, aprendermos a lidar com as frustrações, éramos responsáveis por nos mesmos,
e pelos outros do grupo.
O que você pensa sobre o brincar com a natureza?
É fundamental! A criança explora os espaços naturais, as folhas, as
sementes, as frutas... A natureza oferece tudo o que precisamos para construir um
brincar saudável! Temos altura, textura, barreiras, cores, cheiros, limites... Um
mundo infinito de possibilidades, uma diversidade, que propicia um amadurecimento
dos sentidos, dos movimentos e do saber. Os brinquedos de hoje imitam o que é real!
As crianças precisam experimentar para que os conceitos entrem realmente.
PAI 2
Idade dos filhos: 2/3 anos
Formação: Superior completo
Idade: 35 anos
Quando você era criança, como era sua brincadeira? (Onde, com
quem, quando, por quanto tempo)
Morei em São Paulo e em cidades do interior quando era criança. Quando
morava em apartamento, em São Paulo, o playground era a minha vida. Lá tinha
piscina, quadra, parquinho e amigos. Era onde acontecia de tudo. Eu brincava,
brigava, lia, machucava, conversava, fazia mais amigos e a piscina era a opção mais
alegre fazendo frio ou calor!
73
Quando morei no interior, andávamos muito de bicicleta, brincávamos na
rua de "taco", ouvíamos muita música, passeávamos bastante! Tinha um quintal em
casa com animais, muitas árvores, tinha parreira de uva, horta... Os encontros das
crianças aconteciam nas ruas mesmo ou nas casas dos amigos. De vez em quando os
amigos se juntavam para dormirem todos na casa de um e era a maior bagunça.
Tínhamos um clube de campo por perto com piscina natural e cachoeiras
e fazíamos lá caça ao tesouro, além de nadar e pular das cachoeiras sem a mínima
noção do perigo que corríamos.
Como seus filhos brincam? (Onde, com quem, quando, por quanto
tempo)
De certa forma eles tem mais recursos para direcionar as brincadeiras.
Hoje em dia tem brinquedo pra tudo! Tem panelinha com panelas específicas para
cozinhar cada comidinha diferente... Muitos livros específicos para a faixa etária. Eu
cresci com livros sim, mas sem tantos quantos minha filha e alunos tem hoje. Eu
coloco a leitura no patamar da brincadeira por que para a nossa sociedade que vive
fora do circuito escolar, bons livros parecem ser ainda artigo de luxo para que
crianças tão pequenas “estraguem"...
Eu noto que para a minha filha, brincar é subir nas coisas, ter desafios,
correr quando saímos de casa. Isso sem falar nos parques que ela ama. Escorregador
tem sido o seu desafio preferido.
Como você vê a relação entre a brincadeira na sua infância e a
brincadeira do seu filho/ alunos?
A criança poderia ser a mesma de diferentes épocas, mas o adulto e a
sociedade não são então a criança acaba não sendo também. Eu lembro que saía de
bicicleta com 4 anos, 6 anos, 10 anos e sumia. Eu literalmente me perdia e sempre
74
tive sorte de algum vizinho ou amigo dos meus pais passarem por ali, perceberem
que estava sozinha e me levarem de volta pra casa. E isso era tão habitual, que um
dia um policial me achou e me ajudou a encontrar o caminho de casa. Hoje, eu
honestamente faço de tudo para impedir que minha filha faça o mesmo! Chego a me
arrepiar quando penso nas minhas aventuras. Além de tudo, acho que para brincar,
antes a gente se virava com o que tinha e hoje as crianças precisam de ferramentas
para tudo. Talvez também por que o adulto não tenha tanto tempo para dedicar às
descobertas do mundo junto com as crianças pequenas.
O que você pensa sobre o brincar com a natureza?
O que dizer... Minha vida era o quintal dos 2 aos 6 anos... Lá a gente
brincava muito com terra, com os frutos da árvores, mesmo que ainda verdes, com
sementes, com água. Minha mãe vinha colher frutas e voltava com suco natural do
nosso quintal. Hoje eu morro de medo de cachoeira, rio e mar; mas e acredito que
esse medo tenha sido construído com a experiência e alguns escorregões de gelar a
barriga e ralar a bunda. Mas eu brincava muito em cachoeiras. Parece que a gente se
colocava nas mãos daquele poder e deixava a coisa acontecer. Hoje eu também tenho
pânico desses lugares que passaram a ser perigosos para mim. Tenho medo que
minha filha brinque também da maneira livre e desprotegida como eu brinquei. Não
sei se isso é bom ou ruim
PAI 3
Idade dos filhos: 0/1
Formação: Superior Completo
Idade: 40
Quando você era criança, como era sua brincadeira? (Onde, com
quem, quando, por quanto tempo)
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Morei em São José dos Campos, no vale do Paraíba, num condomínio
grande, Lá tinha árvores frutíferas, campo de beisebol, ruas sem saída... Eu brincava
o dia todo na rua e voltava para casa apenas para almoçar. O lanche era em cima de
árvores comendo goiaba, devorando laranjas. Eu brincava com os vizinhos. Nossa!
São lembranças lindas que tenho dos meus 7 aos 14 anos... Mesmo depois quando
mudei para São Paulo, passava todas as férias e muitos feriados lá. Nós brincávamos
de esconde-esconde, queimada, pega-pega...
Como seus filhos brincam? (Onde, com quem, quando, por quanto
tempo)
Meu filho de 8 meses brinca com brinquedos diversos: bolinhas,
carrinhos, ele adora as rodas... E outras coisas como garrafas plásticas e chaveiros.
Durante a manhã, ele brinca na sala, com a tv desligada.
Temos também um tapetão de EVA para colocar na rua. Eu moro numa
vila, e a rua é sem saída. Mas a babá aproveita pouco. À noite, ele também brinca na
sala, mas com a TV ligada, quase sem volume aproximadamente das 18h30min às
20h30min, parando pra tomar banho. À noite, eu quem brinco com ele, nós nos
divertimos muito pulando, fazendo movimentos das mãos, barulhos com a boca...
Enfim, sem brinquedos, explorando o corpo.
À tarde, brinca no berçário.Ele estuda na escola Recreio, na Vila
Madalena. A sala dele é super lúdica, tem brinquedos e imagens pelo teto, nas
paredes. Tem também um espaço grande de areia e a varanda para os dias de sol.
Como você vê a relação entre a brincadeira na sua infância e a
brincadeira do seu filho/ alunos?
As idades são muito diferentes... Se eu for comparar o que relatei da
minha infância e do meu filhote. Eu espero que meu filho brinque muito na rua
também... Mas não acho que terá muitos amigos para isto...
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O que você pensa sobre o brincar com a natureza?
Maravilhoso, tive uma infância assim e são lembranças deliciosas e
fortíssimas até hoje. Gostaria que meu filho participasse de um grupo de escoteiros
para poder conviver mais com os amigos e a natureza.
PAI 4
Idade dos filhos: 0-1
Formação: Superior Completo
Idade: 40
Quando você era criança, como era sua brincadeira? (Onde, com
quem, quando, por quanto tempo)
Eu morava no sudoeste Mineiro, na cidade de Passos, em uma casa.
Minha infância foi fantástica! Brincávamos de queimada, de pique-esconde, de
bolinha de gude... Eu gostava de brincar de casinha. Era quando eu cozinhava junto
com a babá comidinhas de verdade em um fogão de lenha de verdade, mas tudo
pequenininho. Também brincava de fazer roupinhas de bonecas, com minhas 3
amigas, todas da minha idade. Nadar no clube também era uma brincadeira bem
divertida. Eu brinquei até uns 10 anos... e acredito que brincaria mais se não fosse o
falecimento do meu pai nesta época.
Como seus filhos brincam? (Onde, com quem, quando, por quanto
tempo)
Com 10 meses e morando em prédio, fica mais difícil brincar. Como ela
já esta andando, eu brinco de bola: eu jogo e ela vai buscar e joga pra mim,. Ela anda
de motoquinha, que é um cavalinho que ela anda e também tem balanço. Nós
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brincamos de esconde esconde atrás da cortina, de encaixe de peças tipo lego, de
bonequinhos, cantamos músicas e dançamos principalmente o cd da "Galinha
pintadinha". Ela gosta de cantar parabéns. Quando o tempo está bom, ela vai no
playground do prédio e brinca de escorregador, e com as outras crianças, indo atrás
delas, e de "puti".
Consigo brincar com ela das 18:00 ate às 19:30... Depois vem o jantar e
brinco mais uns 40 minutos antes do ritual de soninho. Pela manhã brinco das 7h até
as 9h. De fim de semana fico mais tempo... junto com ela e com meu marido.
Como você vê a relação entre a brincadeira na sua infância e a
brincadeira do seu filho/ alunos?
Acho que o tempo mudou... Hoje a minha filha tem brinquedos que eu
não tinha na idade dela, que ajudam bastante no desenvolvimento e crescimento dela.
Brinquedos de encaixe, DVDs criativos mas bastante instrutivos, bonequinhos
coloridos e emborrachados, brinquedos onde você coloca bolachinhas e quando a
criança pega canta uma musiquinha para comer tudo, tem livrinhos de banho...
Eu também andei cedo com 9 meses...mas pelo que minha mãe conta eu
brincava empurrando cadeiras, de boneca e de bola com meu irmão mais velho. Vejo
as crianças no meu prédio brincar de bola, de boneca e de pique-esconde. Acho que o
que vale é não deixar morrer este lado infantil e estas lembranças que nós temos...
Assim podemos passar isso para nossos filhos.
Mas o lado tecnológico de hoje é muito bom para as crianças. Mas tudo
tem que ser regrado, os pais não podem esquecer que tem que impor limites na
questão de celular, computador, TV.
O que você pensa sobre o brincar com a natureza?
Acho ótimo. Mas como sempre precisamos ter bom senso. Ela adora
passear... Adora ir pra rua. Mas com o clima de São Paulo e a idade dela, ela é muito
78
novinha, fico perto de casa... Caso o clima mude. O tempo em São Paulo muda muito
rápido. Mas as poucas vezes que ela teve contato com a natureza ela adorou. Assim
que ficar mais velha vamos levá-la em parques e fazendinhas próximas de São Paulo
para ela ver tudo o que eu via de graça e a toda hora quando era criança. Todos os
bichinhos, tirar leitinho da vaquinha, essas coisas...
PAI 5
Idade dos filhos: 2/3
Formação: Superior completo
Idade: 31
Quando você era criança, como era sua brincadeira? (Onde, com
quem, quando, por quanto tempo)
Eu morava em São Paulo, mas todos os finais de semana viajava para o
interior, Cabreuva, onde meus pais tinham sítio e lá eu brincava com minhas as
minhas irmãs, meus primos e minhas primas. A gente andava de bicicleta, jogava
bola, nadava, sempre brincadeiras ao ar livre. Foi assim desde que nasci até mais ou
menos uns 16 anos.
Como seus filhos brincam? (Onde, com quem, quando, por quanto
tempo)
Minha filha hoje brinca mais na escola, onde tem o parque ao ar livre,
tem piscina, quadra. Isso no período da manha. A tarde ela brinca no quintal de casa,
na piscina, vai no parque do condomínio ou na casa de amigos. Ela tem bastante
contato com a natureza e brincadeiras ao ar livre.
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Como você vê a relação entre a brincadeira na sua infância e a
brincadeira do seu filho/ alunos?
Minha filha tem o privilégio de poder brincar com as mesmas coisas que
eu, porque nós moramos em um condomínio fechado de casas e há a possibilidade de
frequentar parques, ter contato com animais, com a natureza e de brincar na rua.
O que você pensa sobre o brincar com a natureza?
É extremamente importante para o desenvolvimento da criança. Estimula
a criatividade, a integração entre as crianças e, sobretudo ajuda no desenvolvimento
físico.
PAI 6
Idade dos filhos: 1/2 e 4/5 anos
Formação: Superior completo
Idade: 35
Quando você era criança, como era sua brincadeira? (Onde, com
quem, quando, por quanto tempo)
Eu brincava com minhas irmãs e amigas, de Barbie, por horas a fio. Mas
eu também brincava na rua, de esconde-esconde, ou inventava brincadeiras
diferentes - de teatrinho, de dança, de banco, de comidinha.
Como seus filhos brincam? (Onde, com quem, quando, por quanto
tempo)
80
Eles brincam muito na escola. Em casa, à noite, só temos pouco tempo
para jantar e se preparar para dormir. Quando dá, conversamos, brincamos de
procurar coisas ou cantamos no carro, no trajeto trabalho/escola para casa.
Nos finais de semana... O mais velho, de 4 anos e meio, brinca de lutas,
andar de bicicleta ou desenhar e pintar, ou ainda faz algumas atividades como
plantar, fazer pique-nique, vai na piscina, brincar com os bonequinhos dele - de luta e
ele gosta muito de ver filmes, desenhos. No geral, gosta de fazer coisas que
movimentem o corpo.
A mais novinha, de 1 ano e meio, brinca de cantar, de dançar, de fazer
cócegas, de "cadê o neném" e de andar de carrinho. Ela não é muito chegada à
bonecas e panelinhas, e imita muito o irmão mais velho.
Ah! Sempre eu e meu marido brincamos com eles. Nem que seja um
pouquinho no carro, na cama antes de dormir, na rua ou no chão.
Como você vê a relação entre a brincadeira na sua infância e a
brincadeira do seu filho/ alunos?
Eu brinquei muito. E curtia minha mãe, ela às vezes brincava conosco,
sobretudo de casinha. Infelizmente meus filhos não têm isso, mas pelo menos eles
podem brincar bastante com crianças da sua idade na escolinha.
As brincadeiras ainda são as mesmas. Eu brinco com meus filhos de
coisas que eu também brincava na minha infância. Às vezes eles me ensinam como
brincar do jeito deles. E outras vezes, inventamos na hora alguma coisa pra fazer. A
brincadeira é a coisa mais saudável e gostosa da infância. Eu acredito muito nela
como forma de se ensinar valores, conceitos e ainda entreter as crianças. Além disso,
ela fortalece o laço de amor e amizade entre os pais e as crianças.
O que você pensa sobre o brincar com a natureza?
81
Este ponto eu valorizo muito. Tive sítio na minha infância, e meus filhos
também têm. Podemos conhecer as plantas, pegar frutas no pomar, cuidar de
hortinhas e plantinhas, mexer na terra, se sujar. Fora a relação com animais que é
ótima, cria crianças felizes, saudáveis e seguras. Sem medo. Meus filhos adoram
tanto quanto eu e meu marido adorávamos.
PAI 7
Idade dos filhos: 5/6 anos
Formação: Superior Completo
Idade: 33 anos
Quando você era criança, como era sua brincadeira? (Onde, com
quem, quando, por quanto tempo)
Nós brincávamos de esconde-esconde, de queimada. Sempre na rua de
casa. Eu morava na cidade de Campinas, na Rua Roque de Março, na Vila Industrial.
Brincava com colegas de rua e de escola: Fábio, Cerezo, Patrícia, minha irmã Renata,
Angélica, vários amiguinhos de infância. Brincávamos praticamente todos os dias,
normalmente das 18h às 20h, quando chegávamos da escola e às tardes de finais de
semana.
Como seus filhos brincam? (Onde, com quem, quando, por quanto
tempo)
82
Minha filha fica na escola período quase integral. Ela entra as 10h e sai
as 18h. Brincamos com ela normalmente dentro de casa, embora eu more em
condomínio fechado de casa e ela consiga brincar na rua andando de bicicleta ou
brincando de bola. A maior parte das brincadeiras são de video game, onde ela passa
praticamente das 19h as 20h nessa atividade. Não há amigos vizinhos, seus amigos
são da escola e filhos dos meus amigos que frequentam nossa casa.
Como você vê a relação entre a brincadeira na sua infância e a
brincadeira do seu filho/ alunos?
Na verdade acho que tínhamos mais liberdade em virtude de não existir
tanta violência como nos dias de hoje. As brincadeiras são quase as mesmas,
brincávamos de bicicleta, de bola, bambolê, que são coisas que minha filha também
tem e brinca.
O que você pensa sobre o brincar com a natureza?
Talvez não tenha entendido direito a pergunta, mas se brincar com a
natureza significar ter contato saudável com a mesma é uma ótima idéia.
PAI 8
Idade dos filhos: 5/6 anos
Formação: Superior completo
Idade: 38 anos
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Quando você era criança, como era sua brincadeira? (Onde, com
quem, quando, por quanto tempo)
Eu brincava na rua, com os amigos do bairro, todo o período depois da
escola. Eram muitas brincadeiras: peão, bolinha de gude, pega-pega, futebol,
bicicleta. Eu morava em casa, e tinha bastante crianças no bairro. Brincávamos
todos juntos.
Como seus filhos brincam? (Onde, com quem, quando, por quanto
tempo)
Eu moro em apartamento, então meus filhos brincam basicamente dentro
do condomínio, ou no próprio apartamento. Eles se relacionam com as crianças do
condomínio, brincam no playground, na quadra de esportes de queimada, de pegapega, no salão de jogos eles jogam cartas – tipo UNO e super trunfo e vídeo game.
Como você vê a relação entre a brincadeira na sua infância e a
brincadeira do seu filho/ alunos?
Acho ruim o fato de as brincadeiras de hoje não exercitarem muito o
corpo, devido ao espaço limitado. Andar de bicicleta, por exemplo, é difícil da
criança aprender. Por outro lado os pais se sentem mais seguros, porque o filho está
sempre por perto. O vídeo game ajuda a desenvolver o raciocínio e o reflexo, mas
acredito que as brincadeiras de hoje em dia fiquem devendo às de antigamente.
Criança precisa de interação, movimento, coordenação motora, independência.
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O que você pensa sobre o brincar com a natureza?
Penso que é uma ótima maneira de desenvolver na criança a consciência
ecológica e ao mesmo tempo suprir parte daquilo que ela perdeu com este novo
modo de vida dos pais.
PAI 9
Idade dos filhos: 0/1 anos
Formação: Superior completo
Idade: 37
Quando você era criança, como era sua brincadeira? (Onde, com
quem, quando, por quanto tempo)
Eu brincava com bonecas e adorava ouvir minha mãe contar histórias
que ela inventava na hora. Também brincava de roda, amarelinha, pião, corre-corre,
esconde-esconde, bicicleta. Brincava muito com meus primos e meu irmão. Morava
no interior de São Paulo, mas nunca brinquei na rua, sempre na minha casa, na casa
dos meus primos, ou no sítio da família. Brinquei assim desde que eu me conheço
por gente até meus 12/14 anos.
Como seus filhos brincam? (Onde, com quem, quando, por quanto
tempo)
Minha filha tem hoje 8 meses, ela ainda brinca muito sozinha e comigo
ou meu marido. Na escolinha já perguntei e disseram que ela gosta de interagir com
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as demais crianças da faixa etária 1 a 1ano e meio. Mas acredito que brinque também
sozinha com as monitoras.
Como você vê a relação entre a brincadeira na sua infância e a
brincadeira do seu filho/ alunos?
Por enquanto acho que está no mesmo. Na verdade acho que é possível
ter o mesmo nível de brincadeiras, estimular que a criança goste de ouvir uma
história e brincar sem brinquedos, tipo corre-corre, esconde-esconde. É algo natural.
Acho que isso depende em boa parte dos pais, pois essas brincadeiras são mais
trabalhosas do que deixar a criança em frente a uma televisão, um computador e um
video game. É impossível dizer que minha filha não irá brincar com isso, até porque
isso faz parte da geração dela. Mas vou estimulá-la a se divertir e brincar sem isso
também.
O que você pensa sobre o brincar com a natureza?
Acho muito saudável. Não quero que minha filha não saiba que existe um
pé de laranja, e que é da vaca que vem o leite, e coisas do gênero.
PAI 10
Idade dos filhos: 2/3 anos
Formação: Superior Completo
Idade: 43 anos
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Quando você era criança, como era sua brincadeira? (Onde, com
quem, quando, por quanto tempo)
Até os 6 anos de idade, eu brincava com as crianças vizinhas, minha tia,
minhas irmãs e meus primos, pelo quintal da casa dos meus avós, lá tinha árvores
frondosas, frutíferas e era todo de terra. Tinha até um pequeno chiqueiro onde meu
avô criava os leitões, e era sempre muito limpo para não correr riscos, andávamos
descalços, comíamos amora direto no pé.
Mudamos para Santa Izabel no interior de São Paulo, ficamos pouco
tempo, meus pais eram caseiros de um sítio e lá, eu e minhas 2 irmãs, pescávamos,
tomávamos banho de rio e de cachoeira, íamos buscar o leite no curral e tudo o mais
natural possível, pois não havia tantas opções como hoje, só a natureza. Os vizinhos
mais próximos moravam em uma fazenda afastada e como não morávamos próximo
da cidade, tínhamos que brincar com o gado, os girinos, com os passarinhos.
Mudamos para Jandira, em São Paulo, e lá eu subia nas árvores que ficavam no
fundo do quintal... Tinha um pé de ameixa maravilhoso, um abacateiro bem alto que
eu gostava muito de subir... Eu tinha vários amiguinhos de infância, jogávamos bola,
andávamos de carrinho de rolemã, de esconde esconde...
Como seus filhos brincam? (Onde, com quem, quando, por quanto
tempo)
Meus filhos não tem tanto acesso a natureza como eu tive, eles ficam
mais é na escola, brincando com os amiguinhos de lá. Com a correria de hoje,
percebo que eu tinha contato com a natureza, não havia a tecnologia comandando
tudo dentro de casa e das escolas. Hoje, minha filha fica no computador, no video
game e quer um celular. Meu filho ainda não aprendeu a acessar estas ferramentas,
mas com o desenvolvimento das crianças nesta marcha acelerada, em breve as
brincadeiras de roda, pião, carrinhos de rolemã ficarão mais esquecidos ainda.
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Como você vê a relação entre a brincadeira na sua infância e a
brincadeira do seu filho/ alunos?
Eu vejo uma diferença enorme. Na minha infância, não tínhamos
informações em tempo real, ainda era a época de contato por cartas que levavam dias
para chegar e quando íamos para o quintal brincar, tínhamos que usar a criatividade.
Hoje vejo que as crianças ficam na frente de uma tela, se isolam e que a sociedade,
impõe que você se atualize todos os dias, já cobrando isso para o futuro.
O que você pensa sobre o brincar com a natureza?
É de extrema importância o contato com a natureza, seja pelo tempo que
for. É necessário aprender a respeitar, a conviver e principalmente a amar, uma vez
que tudo o que acontece no mundo, como as mudanças climáticas, a evolução dos
humanos, depende da maneira como você a vê e cuida da natureza. O mais
importante é brincar na natureza, valorizando tudo de melhor que ela puder nos
fornecer.
PAI 11
Idade do filho: 5/6 anos
Formação: Superior incompleto
Idade:
Quando você era criança, como era sua brincadeira? (Onde, com
quem, quando, por quanto tempo)
Eu morava em Ribeirão Pires e brincava dentro de casa, porque minha
mãe trabalhava e eu ficava em casa porque desde cedo eu já cuidava das coisas.
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Como seus alunos brincam? (Onde, com quem, quando, por quanto
tempo)
É bem diferente. Ela brinca no quarto dela com os brinquedos, com as
crianças da rua, ela brinca com tudo.
Como você vê a relação entre a brincadeira na sua infância e a
brincadeira do seu filho/ alunos?
Mudou muito, porque hoje minha filha tem brinquedos que eu não tinha,
que nem boneca. Eu sempre quis uma boneca e minha mãe não tinha condição de
comprar. Hoje a situação melhorou e eu compro pra ela. Eu compro tudo que ela
quer.
O que você pensa sobre o brincar com a natureza?
É importante pra eles conhecerem, aprenderem sobre os bichos, pra
poder preservar.
PAI 12
Idade dos filhos: 1/2 anos e 6/7 anos.
Formação: Ensino Fundamental
Idade: 32 anos
Quando você era criança, como era sua brincadeira? (Onde, com
quem, quando, por quanto tempo)
Eu morava em Belo Horizonte e brincava na rua, brincava de pião,
bolinha de gude, taco, rouba bandeira. Sempre com muita gente, todas as crianças da
rua.
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Como seus filhos brincam? (Onde, com quem, quando, por quanto
tempo)
(Risos) Dentro de casa, sozinhos e com brinquedos comprados em loja.
Nada parecido com o que a gente tinha em casa: boneca de pano, bola de meia,
brinquedos de madeira (que hoje são chamados de pedagógicos).
Como você vê a relação entre a brincadeira na sua infância e a
brincadeira do seu filho/ alunos?
Piorou. Antes era mais construtivo. Brincar com outras crianças é outra
vida.
O que você pensa sobre o brincar com a natureza?
Acho ótimo. Meus filhos só tem isso no final de semana, se eu e meu
marido levamos para algum lugar.
PROFESSOR 1
Idade dos alunos: 5/6 anos
Formação: Superior Completo
Idade: 27 anos
Quando você era criança, como era sua brincadeira? (Onde, com
quem, quando, por quanto tempo)
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Eu morava numa casa onde havia outras casas no mesmo quintal... As
vizinhas tinham filhas da minha idade e brincávamos neste quintal. Os melhores dias
era quando a mãe faxinava a casa e colocava cadeiras, tapete, almofadas, tudo no
quintal. Nós aproveitávamos estes momentos para soltar a imaginação. Estes objetos
viravam escritório, sala de aula, consultório médico... Gostava também de brincar de
casinha embaixo da mesa da cozinha...
Como seus alunos brincam? (Onde, com quem, quando, por quanto
tempo)
Os meninos brincam imitando os desenhos vistos na televisão, tipo de
Ben 10 e os outros de lutinha. Quando tem bola eles gostam de jogar futebol. Vamos
todos os dias para o parque, ficamos lá por 30 minutos. Levamos uma caixa com
potes e coisinhas de cozinha e as meninas gostam muito. Elas fazem bolinhos de
areia. Há momentos de brincadeiras na sala, estas são de forma mais dirigida,
fazemos uma brincadeira de roda, como batata-quente, ou outros jogos, como jogo da
memória e quebra-cabeça.
Como você vê a relação entre a brincadeira na sua infância e a
brincadeira do seu filho/ alunos?
Percebo as brincadeiras na minha infância era mais natural... Imitávamos
os mais velhos, brincávamos de boneca e de carrinho. As crianças de hoje ainda
brincam com estas coisas, mas as bonecas tem que falar, fazer xixi ou cantar para a
criança querer brincar, já os carrinhos precisam das pistas e do controle.
Na minha infância ter uma boneca ou carrinho já era a maior felicidade.
Com acesso a TV, internet e DVDs as crianças de hoje são muito ligadas a estas
mídias - se não estão assistindo TV estão imitando algo da TV. Acho que as crianças
menores ainda brincam de forma mais "natural", gostam de correr, de esconder, rir a
toa, quanto mais velha a criança fica mais ela se prende as mídias.
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O que você pensa sobre o brincar com a natureza?
Acredito que brincar é começar a respeitá-la e admira-la, você brinca de
fazer bolinho de terra, de castelo de areia, que delicia que é!!! Quando for adulto
continuará brincando e achando o Maximo! Brincar com a natureza dá prazer,
desperta curiosidades e faz descobertas do mundo!
PROFESSOR 2
Idade dos alunos: 3/4 anos
Formação: Pós graduação
Idade: 36 anos
Quando você era criança, como era sua brincadeira? (Onde, com
quem, quando, por quanto tempo)
Quando eu era bem pequena, eu era filha única, então eu brincava mais
em casa. A casa da minha avó era geminada com a minha. Então eu brincava muito
com a minha avó, ela era minha comadre. Como era só eu e minha mãe, quando ela
cansava de brincar comigo eu ia pra minha avó... Lá a gente fazia cabana, brincava
de comadre. Eu cresci, meu irmão nasceu e eu comecei afazer amizade com as
menininhas da rua. Minha avó chamava elas para ir na sua casa para brincar comigo.
Mas sempre dentro de casa, porque eu ainda era muito pequena.
Eu cresci, mudei de casa e fui morar longe da minha avó, e a brincadeira
mudou e as vezes meu irmão também brincava junto. Eu gostava muito de brincar de
boneca. Mas não era a boneca que era minha filha... As bonecas tinham vida. Uma
era fulana, outra era ciclana... Eu brincava assim. E minha mãe fala que ela me
esquecia enquanto eu brincava.
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Eu também brincava na rua, pois eu morava no interior de São
Paulo,numa cidade chamada Limeira. Lá os terrenos eram grandes, eu me lembro de
ficar no jardim, na garagem, na rua perto de casa. Eu morava na frente da escola que
eu estudava, e aos finais de semana ela também ficava aberta. Lá tinha uma quadra e
um gramadão bem grande, que até um dia meu irmão caiu lá e rachou a cabeça numa
vala.
Com 11 anos eu voltei a morar em São Caetano. Ai a brincadeira mudou,
porque aqui eu morava em um bairro mais tranquilo, só de casa e alguns prédinhos.
Tinha muita gente da mesma idade, então a turma era muito grande e a brincadeira
era só na rua. A gente jogava taco, fazia fogueira no terreno baldio, brincava de
polícia e ladrão valendo o quarteirão todo. Tinha também um parquinho no prédio,
mas não tinha muito brinquedo não, só um gira-gira, duas gangorras e um trepatrepa, estava até barrento, porque o prédio foram os primeiros a ser construídos no
bairro. Então a gente não ficava brincando muito nesses brinquedos não, a gente
ficava inventando muita brincadeira. A gente também andava de bicicleta, patins...
Como eu brinquei de patins! A gente tomava chuva, e em dia de aniversário tinha
ovada de enterrar o ovo antes e jogar café. A gente ficava o dia todo na rua. De vez
em quando que a gente ia pra casa de uma ou de outra brincar de desfile – pegava as
roupas da mãe. Mas a maioria das brincadeiras era molecagem: pular o muro pra
pegar cana... Às vezes na pracinha a gente brincava de escolinha, as professoras
pareciam umas loucas, porque era de final de semana, então tinha muita gente e os
meninos não queriam saber de brincar de escolinha. Eu lembro que a gente jantava e
saia pra rua de novo. Quando acabava a novela o primeiro pai assobiava e todo
mundo entrava. Essa minha segunda infância foi na rua e foi muito bom. Era muito
seguro, a gente não tinha problema com isso.
Quando eu não queria ir pra rua, eu tinha a coleção da Moranguinho e
fazia um predinho com as mesas de canto que tinham na sala da minha casa, e eu
fazia os andares e os apartamentos. A Moranguinho morava num andar, a
Limãozinho no outro, a Uvinha no outro e eu fazia as mímicas enquanto brincava.
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Como seus alunos brincam? (Onde, com quem, quando, por quanto
tempo)
Hoje? Ai que dó! O espaço que eles tem para brincar é a escola. Não são
todos, mas a maioria mora em apartamento e os pais trabalham, o irmão é mais
velho... Então quase não brincam em casa. Se vê pelas meninas, elas são mais
evoluídas, mais mocinhas, porque não brincam muito em casa... A brincadeira é
outra. Tem famílias que até levam de final de semana para passear para lugar aberto,
mas é minoria e bem raro este tipo de pais.
Como você vê a relação entre a brincadeira na sua infância e a
brincadeira do seu filho/ alunos?
Ainda bem que eu já cresci! É diferente, lógico! A gente não tinha
tecnologia do jeito que tem hoje. É diferente a brincadeira porque eles não conhecem
o que a gente conheceu e não dá pra sentir falta do que você não conhece. Mas eu
vejo a diferença das pessoas que são da nossa geração, que cresceram nesse convívio.
Eu vejo aqui na escola, quando a criança tem um problema, ou um desafio para
resolver ela me chama: eu resolvo pra ela... Na nossa época não... Ninguém que
estava na rua falava: “Vou chamar minha mãe pra resolver!” A gente fazia as regras
e decidia como ia ser a brincadeira, a gente punia quando alguém infringia as regras.
Era um trabalho de negociação. Sempre um ou outro tinha que ceder. As vezes não
era de acordo com a maioria, então falava “Não vou brincar!”. Mas você tinha esta
opção “Não quero brincar!”. E aqui como é um dos únicos espaços pra criança
brincar, a gente fica sempre mediando, e você percebe o tempo inteiro aquela criança
chamando “olha! Ele me bateu!”, “Eu peguei primeiro!”. Eles não trabalham o
negociar, e a gente trabalhava desde pequena. Na brincadeira de rua você não tem
um adulto presente a todo momento, por isso ela é um exercício de convivência e
forte, porque não tem mediador. É você que faz os acordos com as pessoas. Tomara
que isso mude... Que eles cresçam e possam conhecer um pouco da rua.
O que você pensa sobre o brincar com a natureza?
Como eu cresci no interior minhas comidinhas eram sempre folhas e
flores. Eu gostava de chupar o mel de tal flor, uma outra não podia pegar de jeito
nenhum. Era pé na grama, pé na terra, sobre na árvore... Eu acho que faz muita falta
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hoje um jardim. Por mais que no prédio que você more tenha um playground, você
vai olhar é de grama sintética, as àrvores estão em vasos, não pode trepar... Eu acho
que faz falta, por que pra você subir numa arvore, você precisa de uns procedimentos
que só subindo na àrvore se descobre quais são: o seu corpo, o que você tem que
fazer, como se equilibrar. E hoje não se tem isso... Pra que serve a árvore? Ela dá
sombra, ela dá fruto... Quando eu era pequena a gente pegava amora do pé, pegava
cana... É diferente quando você sabe o que a árvore pode te oferecer. A função da
árvore você aprendeu vivendo, ninguém precisou te ensinar. E é assim na natureza
geral... Andar descalço que é tão bom pra energia e hoje é difícil, pois andar descalço
gripa, a saúde é frágil, é a poluição... Hoje o contato com a natureza está tão
fraquinho e ele é tão necessário.
Quando você era criança, como era sua brincadeira? (Onde, com
quem, quando, por quanto tempo)
Como seus alunos brincam? (Onde, com quem, quando, por quanto
tempo)
Como você vê a relação entre a brincadeira na sua infância e a
brincadeira do seu filho/ alunos?
O que você pensa sobre o brincar com a natureza?
PROFESSOR 3
Idade dos alunos: 3/4 anos
Formação: Superior Completo
Idade: 30 anos
Quando você era criança, como era sua brincadeira? (Onde, com
quem, quando, por quanto tempo)
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Eu brincava normalmente com meus vizinhos nos nosso quintal ou cada
dia em uma casa diferente. Gostávamos de brincar de pega-pega, casinha e fazer
comidinha com folhas, barro e água.
Como seus alunos brincam? (Onde, com quem, quando, por quanto
tempo)
Normalmente com brinquedos eletrônicos, computadores e televisão. São
raros os casos de uma brincadeira em grupo a não ser quando estão na escola.
Como você vê a relação entre a brincadeira na sua infância e a
brincadeira do seu filho/ alunos?
Hoje é muito diferente. Eles pouco correm, pulam... Os jogos andam
muito violentos o que estimulam naturalmente essas atitudes no dia a dia deles
O que você pensa sobre o brincar com a natureza?
Acho maravilhoso e importantíssimo para o desenvolvimento motor e
emocional das crianças que deveriam ter maiores oportunidades de desbravar e
descobrir esse mundo.
PROFESSOR 4
Idade dos alunos 4/5 anos
Formação: Superior completo
Idade: 27 anos
Quando você era criança, como era sua brincadeira? (Onde, com
quem, quando, por quanto tempo)
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Eu morava em uma casa enorme, com um quintal cheio de terra no
fundo. Minha vida era fazer comidinha de barro, panelinha. Minha avó tinha horta e
eu pegava as coisas da horta pra fazer comidinha. Minha avó ficava doida! Tinha um
forno que fizeram para imitar uma churrasqueira e ele era meu fogão. Eu também
tinha boneca, dava banho nelas. A gente inventava muita coisa: médico, escritório...
tudo! Eu brinquei sozinha até uns sete anos e depois eu levava amigos em casa e
ficava brincando.
Como seus alunos brincam? (Onde, com quem, quando, por quanto
tempo)
Comigo eles gostam muito de brincar no tanque de areia. Eles
extravasam, ficam horas brincando. Mas brincam de bola, carrinho, pintam,
desenham... Brincam sozinhos.
Como você vê a relação entre a brincadeira na sua infância e a
brincadeira do seu filho/ alunos?
Eu acho que o que facilita pra eles brincarem com areia é o fato de eu ter
meu olhar pra isso, por que os pais não tem mais essa preocupação de levar na areia.
Leva porque é um espaço grande para brincar, mas não especificamente para brincar
na areia. Eu posso falar que eles tem uma certa relação co as brincadeiras que eu
brincava pois eu possibilito isso.
O que você pensa sobre o brincar com a natureza?
É importante e eu deixo a vontade. Deixo sujar, deixo pegar na terra. Ter
isso é uma forma de perder energia deles e colher novas energias, além de
possibilitar outras brincadeiras ao invés de ficar dentro de casa assistindo televisão. É
necessário pra eles.
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PROFESSOR 5
Idade dos alunos: 2/3 anos
Formação: Pós graduação
Idade: 35 anos
Quando você era criança, como era sua brincadeira? (Onde, com
quem, quando, por quanto tempo)
Eu brinquei de muitas coisas. O que eu mais gostava era brincar de
bandeirinha. Pra isso a gente se embrenhava no meio dos matos, por que a nossa
bandeirinha perfeita era feita de folha de mamona. E no fim da brincadeira tinha uma
guerra de mamona, era mamona pra todo lado! O problema era que a mão da gente
ficava amarela de tanta mamona. Na frente da minha tinha um terreno bem grande e
vazio e lá a gente pegava as mamonas e as folhas.
Outra coisa que eu fazia muito era se maquiar. Só que eu não podia pegar
a maquiagem da minha irmã e eu não tinha de verdade, eu e minha amiga fazíamos
maquiagem com uma planta que chama beijinho. Dela sai um suminho. A gente
espremia e passava em cima do olho, fazia batom. Outras vezes a gente fazia salada
de planta que era parecida com um coração. Segundo minha mãe chamava coração
de professor. A gente lavava na torneira, cortava e a gente comia... Não morria!
Tanto que estou aqui para dar o relato! Inclusive eu me lembro bem desta plantinha,
porque ela estava em cima do meu bolo de aniversário de 6 anos. Fizeram uma
surpresa pra mim na pré-escola. Era meu primeiro ano na escola e minha irmã
chegou com o bolo e cheio das florzinhas que eu adorava... Eu fiquei tão
emocionada!
E a gente gostava de brincar destas brincadeiras porque a gente preparava
tudo, não era nada pronto. Há algum tempo atrás, não muito, coisas como lápis de
cor era muito raro... Então a gente se virava com o que tinha.
Uma das coisas que eu coisas que eu gostava de fazer era brincar com
calcário. Uma época começaram a mexer no terreno perto da minha casa para vender,
então o trator arrancava terra. E era muito legar ver as cores da terra. Você já viu?
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Primeiro vinha a amarela, depois a branca e por cima tinha a vermelha. A gente
gostava de pegar a que era mais rara pra gente que era o calcário. A gente pegava um
pouco peneirava com uma peneira que eu “roubei” do meu pai e a gente fazia o bolo
de calcário. A gente fazia o bolo e misturava água com calcário para deixar branco
por cima. Ficava lindo nosso bolo.
Posso falar mais?
Também era muito legal fazer pocinhos. Mas não era de qualquer jeito, a
água tinha que ficar limpinha. Então a gente pegava colher da gaveta da minha mãe,
cavava ou no meu terreno ou no quintal da minha amiga. E tinha uma técnica. Depois
de cavar a gente tinha que procurar essas pedras de construção, que eu chamava de
brita – não sei se chama assim, ai você tem que colocar na parede do poço. Depois
pega uma folha de jornal e socava tudo junto, no fundo também. E quando você
colocar água, ela fica limpa! Era o nosso poço! Experimenta um dia pra você ver! Ai
a gente trazia as bonecas e outras coisas para brincar na água. Só que antes tinha que
fazer todo este processo. Isso foi muito marcante. O mais legal é que depois que você
fez o poço, brincou e foi fazer outra coisa, esqueceu, você volta no lugar o poço
estava seco. Mas se chovia e logo depois você ia ver, o poço já estava cheio denovo.
E a gente adorava brincar! Ficavam uns vermes também na água. Mas a gente nem
ligava! Não sei que bicho era aquele, eram umas minhoquinhas pretas... Se fosse hoje
era dengue! (risos) A gente não ligava, só ficava gritando: “Olha! Tem minhoca no
meu poço!”
Uma coisa frustrante foi nunca ter conseguido fazer um pipa na minha
vida. Porque todos os meninos brincavam e a gente queria também. Mas eles não
ensinavam a gente porque falavam que era coisa de menino. Eu e minha amiga a
gente fez, mas o pipa ficou tão pesado que não subia o pipa. A gente até investigou
porque tinha dado errado e tentar consertar, mas não conseguimos.
Na televisão a gente gostava de assistir vôlei. A gente até fazia
campeonato na rua. Até hoje sei algumas regras por causa disso. Só que nosso vôlei
era assim: o time vencedor ganhava chiclete, e eles vinham com adesivos. E a gente
sabia o time que estava vencendo o campeonato pela quantidade de adesivos nas
paredes das casas.
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Como seus alunos brincam? (Onde, com quem, quando, por quanto
tempo)
Eles brincam mais na escola. Em casa são poucos os pais que param para
brincar com as crianças. E eles falam pra gente que as crianças em casa ficam na
frente da televisão.
As crianças de hoje já tem tudo pronto, pra brincar de alguma coisa elas
não precisam de muito esforço, para fazer os brinquedos... Eles nem tem mais tanto
carinho com os brinquedos. Já que eles tem muitos, não há problemas se quebrar,
logo ele ganha outro!
Eu aprendi muito nos últimos anos. Antes eu fazia mais brincadeira
dirigida, não deixava a criança livre para brincar... E eu fui aprendendo que deixar a
criança criar é muito mais importante! Elas inventam muitas coisas e aprendem mais
do que se eu estivesse com brincadeiras dirigidas o tempo todo!
Como você vê a relação entre a brincadeira na sua infância e a
brincadeira do seu filho/ alunos?
Mudou muito. É uma pena ver como está a infância hoje. Elas não
brincam com outras crianças, não criam... Antigamente as crianças tinham mais
espaço, não tinha gente em cima o tempo todo, eram mais livres.
O que você pensa sobre o brincar com a natureza?
Eu acho muito importante. É ótimo observar as crianças brincando com a
natureza. Mesmo aqui na escola que a gente não tem muito espaço verde, o pouco
espaço as crianças não podem mexer, ou pisar na terra, quando eles têm a
oportunidade é muito legal. Uns dias atrás ventou muito e caíram muitas folhas do
abacateiro! As crianças juntaram tudo e brincaram muito: fizeram chuva de folhas, as
folhas viraram comida, sabão. Fizeram montanhas de folhas e pulavam em cima. Foi
muito legal!