Josué de Castro: Vida e Obra
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Josué de Castro: Vida e Obra
JOSUÉ DE CASTRO Vida e obra BERNARDO MANÇANO FERNANDES CARLOS WALTER PORTO GONÇALVES (ORGS.) JOSUÉ DE CASTRO Vida e obra 2a edição - revista e ampliada EXPRESSÃO POPULAR São Paulo, 2007 Copyright © 2000, by Editora Expressão Popular Projeto gráfico, diagramação e capa: ZAP Design Impressão: Cromosete Ilustração da capa: Josué de Castro por Cândido Portinari Revisão: Miguel Cavalcanti Yoshida Agradecemos aos familiares de Josué pela liberação dos textos e das fotos para esta publicação Todos os direitos reservados. Nenhuma parte deste livro pode ser utilizada ou reproduzida sem a autorização da editora. 2ª edição: revista e ampliada: maio de 2007 EDITORA EXPRESSÃO POPULAR Rua Abolição, 266 – Bela Vista CEP 01319-010 – São Paulo-SP Fone/Fax: (11) 3112-0941 [email protected] www.expressaopopular.com.br "Esta presença constante da fome sempre fora a grande força modeladora do comportamento moral de todos os homens desta comunidade: dos seus sentimentos dominantes. Vê-los agir, falar, lutar, sofrer, viver e morrer era ver a própria fome modelando, com suas despóticas mãos de ferro, os heróis do maior drama da humanidade - o drama da fome". Josué de Castro Sumário Apresentação - Josué de Castro, fome de Justiça ...........................9 Bernardo Mançano Fernandes e Carlos Walter Porto Gonçalves Biografia .......................................................................................21 Maria Yedda Leite Linhares Josué de Castro: semeador de idéias .............................................27 Anna Maria de Castro Principais obras de Josué de Castro ..............................................81 Textos escolhidos de Josué de Castro 1. O ciclo do caranguejo ........................................................103 2. Prefácio da primeira edição de Geografia da Fome .............. 107 3. A reivindicação dos mortos ................................................125 4. A descoberta da fome .........................................................141 5. Fome como força social: fome e paz ...................................153 6. Subdesenvolvimento: causa primeira da poluição ..............165 A P R E S E N TA Ç Ã O * J O S U É D E C A S T RO, FOME DE JUSTIÇA Nesta segunda edição, ampliada e revisada, reforçamos a importância da obra de Josué de Castro para a compreensão da realidade brasileira. Para melhor compreender a sua obra, incorporamos belos textos sobre a sua vida, com o apoio de Anna Maria de Castro, tornando o livro ainda mais interessante para conhecer o pensamento e o pensador que dedicou sua vida para compreender e explicar a questão da fome. As pessoas que se preocupam com o tema fome e em sua superação, não podem deixar de conhecer as obras de Josué. As organizações que lutam contra a questão fome, têm o pensador como referência fundamental. Por essa razão, uma das atividades desenvolvidas nas reuniões dos movimentos sociais é a mística. Nesses momentos, as pessoas realizam reflexões a respeito de seus princípios, tomando como referências diversos pensadores e lutadores do povo que se dedicaram a pensar a sociedade e a lutar para transformá-la, objetivando torná-la mais justa, generosa e solidária. Conhecer pessoas e pensamentos, refletir sobre atos e ações, pensar o futuro são procedimentos essenciais para animar a luta popular. · Bernardo Mançano Fernandes - Geógrafo, professor e pesquisador da Universidade Estadual Paulista – UNESP, campus de Presidente Prudente · Carlos Walter Porto Gonçalves - Geógrafo, professor e pesquisador da Universidade Federal Fluminense. 10 JOSUÉ DE CASTRO - VIDA E OBRA Os movimentos sociais que vivem intensamente suas convicções, tendo por base as suas experiências construídas a partir do saber histórico, avançam e se consolidam. Nesse sentido, a mística é uma experimentação em que se valorizam mulheres, homens e crianças, idéias e práticas na comemoração do fazer-se de cada dia. As reflexões sobre as experiências de luta e resistência, associadas ao pensamento de diferentes autores, sustentam a práxis e são elementos fundamentais da mística. Essas atividades contribuem para a consistência dos movimentos sociais. Não basta a imagem na parede, não basta repetir frases de diversos pensadores, é necessário conhecer suas idéias, criticá-las, concordar ou discordar, ou seja: é preciso pensar sobre o pensado, para superar e construir novos conhecimentos desde a realidade que se transforma. Assim, a mística é leitura da realidade e da teoria. É poesia declamada e cantada, quando a vida é pensada e valorizada em todas as suas dimensões. Desse modo se planta no coração e na mente as raízes da luta popular. Planta-se a rebeldia, a indignação, a irreverência, a solidariedade e a sabedoria entre outras virtudes que vão semear a consciência, cujos frutos serão colhidos nas vitórias dos movimentos sociais. A mística é um alimento para o pensamento e para o coração, uma forma de nutrir as esperanças, porque aproxima as pessoas de hoje e de ontem. Os que fizeram e os que fazem. A mística é um momento político e cultural em que se recupera e se mantêm na memória os pensamentos de pessoas como Josué de Castro, Paulo Freire, Florestan Fernandes, Marx, Lenin entre tantos outros. Agora com essa publicação, os lutadores do povo poderão conhecer um pouco mais da vida e da obra de Josué de Castro. Lendo mais, podese aprender e compreender melhor as razões da luta popular. Assim é possível superar dificuldades, construir esperanças e novas perspectivas, fazendo a história e a geografia, transformando realidades. Josué de Castro foi um lutador do povo. Recuperar, conhecer suas idéias e propostas é fundamental para compreender o mundo hoje. Josué foi pioneiro na luta contra a fome. Seu pensamento con- B E R N A R D O M . F E R N A N D E S E C A R L O S W A L T E R P . G O N Ç A L V E S (ORGS.) 11 tinua atual, principalmente por causa do empobrecimento da maior parte da população brasileira, com a intensificação do desemprego estrutural e da não realização da reforma agrária. Conhecer a obra de Josué de Castro é uma possibilidade de recuperarmos suas referências teóricas para analisarmos a realidade hoje. O chamado globalitarismo, o fortalecimento do neoliberalismo e os processos de privatização estão aumentando a miséria na maior parte do mundo. O desemprego na cidade e no campo, as famílias que moram na rua, o aumento do número de sem-terra e de semteto são exemplos da intensificação da exclusão social. No Brasil do começo do século 21, conforme dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), a parcela constituída por 1% dos mais ricos da população detém 13,8% da renda total, enquanto os 50% mais pobres detém somente 13,5%. Ou seja, uma pessoa rica ganha mais que 50 pessoas pobres. Trinta e dois milhões de brasileiros estão abaixo da linha de pobreza e enfrentam a cada dia o problema da fome. Ainda, os dados do IBGE (2006) registram que 40% da população brasileira ou 72 milhões de brasileiros vivem em situação de insegurança alimentar. A fome é a questão central dos estudos e da luta de Josué de Castro. Por meio desse eixo principal, o autor dimensiona suas análises em diversos outros temas como, por exemplo: a reforma agrária, a questão ecológica, o subdesenvolvimento e as desigualdades sociais. Afirma, explicitamente, que a fome é o problema ecológico número um na medida que todo ser vivo deve se alimentar para se manter vivo. O homem como ser biológico que é não foge à regra. Ele também faz parte da cadeia alimentar e deve mantê-la (e manter-se) viva (vivo). No caso dos seres humanos a questão ecológica, antecipa Josué de Castro, incorpora a dimensão social (estrutura fundiária, por exemplo) e a questão cultural (os regimes alimentares, por exemplo). Ele vê o ambiente inteiro. Uma leitura atenta deste livro levará o leitor a compreender as diferentes dimensões que o conceito de fome tem para Josué de Cas- 12 JOSUÉ DE CASTRO - VIDA E OBRA tro. Fome como resultado da exploração econômica; fome como produto da dominação política; fome como conseqüência da injustiça; fome como dependência, fome física, fome espiritual, fome como alienação. Fome como sede de lutar. A obra de Josué de Castro é um marco no processo de compreensão da fome. E neste sentido, o seu livro Geografia da Fome é um dos principais estudos dessa questão. A opção pelo método geográfico possibilitou ao autor uma análise mais ampla. Assim, analisou o fenômeno da fome orientado pelos princípios fundamentais da ciência geográfica, cujo objetivo básico é localizar com precisão, delimitar e correlacionar os fenômenos naturais e culturais que ocorrem à superfície da terra. É dentro desses princípios geográficos, da localização, da extensão, da causalidade, da correlação e da unidade terrestre que pretendemos encarar o fenômeno da fome. Por outras palavras, procuraremos realizar uma sondagem de natureza ecológica, dentro desse conceito tão fecundo de “Ecologia”, ou seja, do estudo das ações e reações dos seres vivos diante das influências do meio. Nenhum fenômeno se presta mais para ponto de referência no estudo ecológico destas correlações entre os grupos humanos e os quadros regionais que eles ocupam, do que o fenômeno da alimentação – o estudo dos recursos naturais que o meio fornece para subsistência das populações locais e o estudo dos processos através dos quais essas populações se organizam para satisfazer as suas necessidades fundamentais de alimentos. (Castro, 1984, pp. 34-35). Nessa perspectiva ecológica observamos o conjunto dos conhecimentos de Josué, que rompe com uma visão economicista e reducionista e expressa uma visão interativa entre as pessoas e o espaço geográfico que habitam. Ampliando seus estudos geográficos, depois de Geografia da Fome, este importante estudo sobre o Brasil, publicou Geopolítica da Fome, analisando a questão da fome no mundo. Sem dúvida, Josué de Castro foi um importante geógrafo, médico e sociólogo, tornando-se um grande pensador brasileiro e reconhecido como cidadão do mundo. B E R N A R D O M . F E R N A N D E S E C A R L O S W A L T E R P . G O N Ç A L V E S (ORGS.) 13 Josué de Castro cunhou conceitos importantes, como fome epidêmica e fome endêmica. A fome epidêmica compreendida como a fome global, a mais aguda e violenta, a verdadeira inanição, que se constitui na fome total. A fome endêmica compreendida como a fome parcial, a fome oculta, pela falta permanente de determinados elementos nutritivos nos regimes alimentares, em que populações inteiras morrem lentamente de fome. Com essa distinção Josué nos esclarece que a fome no Sertão nordestino é epidêmica ficando restrita aos períodos de seca, enquanto na Zona da Mata, onde a água é abundante, a fome é endêmica, isto é, é permanente. Com isso nos permite superar uma imagem forte construída desde há muito que associa a fome à seca. Josué não deixa dúvidas de que é na Zona da Mata que a fome se constitui num fenômeno estrutural. Deixa claro, portanto, que o problema é da cerca e não da seca. Com os esforços do autor, a fome deixou de ser tabu e esses conceitos foram sendo incorporados nos estudos e políticas de diversas instituições, como a FAO – Organização das Nações Unidas para a Agricultura e a Alimentação –, cujo Conselho, Josué presidiu nos anos de 1952-1955. Todavia, admitir a fome como questão política não era suficiente. Os limites da FAO para resolver o problema da fome estavam representados nos interesses dos países ricos. Assim, Josué se desiludiu com o trabalho desenvolvido, defendendo ações sobre as instituições internacionais. Durante os quatro anos que esteve na presidência do Conselho Executivo da FAO, Josué de Castro lutou para implantar princípios essenciais que desempenhassem os objetivos da organização. Todavia, o que verificou foi que os interesses de países ricos e de grupos econômicos impediam a proposição de políticas públicas como a reforma agrária, a criação de reservas alimentares de emergência, bem como programas de segurança alimentar. Assim, ao deixar a presidência do Conselho da FAO, fez o seguinte pronunciamento: 14 JOSUÉ DE CASTRO - VIDA E OBRA Longe de mim menosprezar a obra realizada pela FAO mas desejo dizer com toda a sinceridade – e peço que me perdoem por falar com uma sinceridade um tanto brutal – que me sinto decepcionado diante da obra que realizamos. Decepcionado pelo que fizemos porque, a meu ver, não elaboramos até hoje uma política de alimentação realista perante às desesperadas necessidades do mundo e aos nossos objetivos. Não fomos suficientemente ousados para encarar de frente o problema e buscar as suas soluções. Apenas afloramos a sua superfície, sem penetrar em sua essência. (Castro, 1966, p. 55). Em 1954, Josué de Castro recebeu o Prêmio Internacional da Paz. Essa atribuição significou também o reconhecimento do empenho de Josué por um mundo mais justo sem fome, ou seja: um mundo com fome de Justiça. Nesse mesmo ano foi eleito deputado federal pelo Partido Trabalhista Brasileiro e reeleito em 1958 com o maior número de votos do Estado de Pernambuco, até então. Como político e cientista, Josué realizou diversos estudos e elaborou vários projetos. Participou das primeiras pesquisas sobre alimentação no Brasil, realizadas no Rio de Janeiro, em São Paulo e no Recife. O que resultou na sua expulsão do Recife, acusado de subversivo por denunciar as condições de miséria dos trabalhadores de sua cidade. Com seus estudos, o autor mostrou para as elites da época como morria de fome a maior parte da população. Em 1955, apresentou um projeto para a criação de uma reserva alimentar na região Nordeste, que implicava necessariamente na realização da reforma agrária e da redistribuição de renda. Em sua produção científica, Josué de Castro registrou as causas da fome. A concentração de renda e as desigualdades sociais estão no princípio da questão. A concentração da estrutura fundiária, a expropriação dos trabalhadores rurais e a utilização da terra para uma agricultura de exportação em detrimento da agricultura familiar também estão entre as principais causas da fome. Igualmente analisou como os investimentos de enormes somas de recursos financeiros para a produção bélica poderiam ser canalizados para eliminar a fome no mundo. B E R N A R D O M . F E R N A N D E S E C A R L O S W A L T E R P . G O N Ç A L V E S (ORGS.) 15 A fome é questão presente no campo e na cidade. A exclusão social está crescendo e é impossível não ver a expansão desse problema. De acordo com Josué de Castro não é necessária uma análise profunda para identificá-la. A fome é evidente nas ruas, nas beiras das estradas, onde estão as mansões e os latifúndios. Portanto, a luta contra a fome e sua superação é uma luta contra a concentração de riquezas e as desigualdades sociais. É fundamental tomar consciência de que a fome é um flagelo que precisa ser suprimido. É preciso atacar as raízes do problema em vez de elaborar políticas paternalistas que recriam relações de dependência e fazem os flagelados suportarem a fome. É preciso enfrentar o tabu da reforma agrária e efetivá-la. Aliás, esse é um tema que está muito presente no conjunto de sua obra. No livro Geografia da Fome, apresenta sua compreensão do que seria uma verdadeira reforma agrária: O tipo de reforma que julgamos um imperativo da hora presente não é um simples expediente de desapropriação e redistribuição de terra para atender às aspirações dos sem-terra. Processo simplista que não traz solução real aos problemas da economia agrária. Concebemos a reforma agrária como um processo de revisão das relações jurídicas e econômicas, entre os que detêm a propriedade agrícola e os que trabalham nas atividades rurais. Traduz, pois, a reforma agrária uma aspiração de que se realizem, através de um estatuto legal, as necessárias limitações à exploração da propriedade agrária, de forma a tornar seu rendimento mais elevado e principalmente melhor distribuído em benefício de toda a coletividade rural. (Castro, 1984, p. 300). Por suas pesquisas, projetos sociais e campanhas políticas, ficou conhecido como o maior lutador contra a fome. Exerceu cargos políticos no Brasil e no exterior, tornou-se reconhecido por suas posições contra as políticas imperialistas que condenavam os países pobres ao subdesenvolvimento. Por suas ações e por suas obras, Josué teve seus direitos cassados, juntamente como Celso Furtado entre outros, e foi exilado em 1964. 16 JOSUÉ DE CASTRO - VIDA E OBRA Viveu em Paris, onde trabalhou em várias universidades da França. Trabalhou também em universidades da Espanha, Bélgica, Estados Unidos, Chile, Argentina, Peru e Venezuela. Em 1973, aos 65 anos, no dia 23 de setembro, Josué de Castro faleceu. Tinha esperança de voltar ao Brasil com vida, o que não se realizou. Antes de falecer disse para um de seus amigos: “não se morre só de doença, morrese também de saudade”. Seu corpo foi trazido ao Brasil e enterrado na cidade do Rio de Janeiro. Alguns jornais apresentaram notas a respeito de sua morte, mas os militares não permitiram que sequer colocassem fotos. Muitas pessoas nunca ouviram falar de Josué de Castro. Esse fato não é de se estranhar no Brasil, onde nos últimos 50 anos a mídia tratou de mostrar uma realidade virtual. Aos que se propõem enfrentar a realidade e se deparam com a miséria, com o desemprego, com a inexistência da reforma agrária e com o problema da fome, com certeza se defrontarão com a obra desse importante cientista e político brasileiro. Na tentativa de romper com essa distância entre a “realidade fantástica da mídia global” e a realidade do Brasil, selecionamos alguns textos clássicos para oferecer ao leitor uma visão da expressiva obra do autor. A razão pela qual escolhemos esses textos é pela representatividade que possuem e pela atualidade que representam. Na parte biográfica, para conhecermos um pouco da vida de Josué de Castro, utilizamos textos de Anna Maria de Castro e Maria Yedda Leite Linhares. Por meio deles, podemos compreender as dimensões da vida do pensador, tanto por meio das leituras das autoras, quanto pelo próprio Josué, além de uma entrevista e depoimentos sobre sua vida. Na parte bibliográfica, apresentamos os textos escolhidos. O primeiro texto é um clássico de sua obra. Em “O Ciclo do Caranguejo”, Josué defronta-se com o problema da fome e traduz para o leitor o drama dos habitantes dos mangues. Narra a situação de homens, mulheres e crianças no sofrimento em encontrar o que comer. É uma B E R N A R D O M . F E R N A N D E S E C A R L O S W A L T E R P . G O N Ç A L V E S (ORGS.) 17 descrição do ciclo triste da miséria e da fome. Mas este texto também inspirou os jovens, como o saudoso Chico Science, com o Movimento Mangue Beat. O “Ciclo do Caranguejo” é um conto literário, em que descreve os fatos sem retocá-los. O estudo desse ciclo levou o autor a uma análise das relações entre as pessoas e o ambiente em que vivem, exploradas, espicaçadas. Esse texto nos possibilita a reflexão de até onde as formas de miséria e as lutas pela sobrevivência humana podem chegar. O texto seguinte é o prefácio da primeira edição de Geografia da Fome, publicado em 1947. Nesse texto, Josué faz uma reflexão sobre a sua produção científica como contribuição para a superação do problema da fome. É um trabalho que nos permite conhecer parte importante de suas idéias: as definições dos conceitos de fome endêmica e epidêmica, bem como o diálogo com seus principais interlocutores. Geografia da Fome é um marco na produção literária do autor. O prefácio apresentado contém uma linguagem radical para os escritos da época. Nesse texto, Josué demonstra sua postura crítica em relação aos rumos da economia e da política brasileira e denuncia as verdadeiras causas da fome no Brasil. O terceiro texto é o primeiro capítulo do livro Sete Palmos de Terra e um Caixão, da edição publicada em Portugal, em 1975, intitulado “A Reivindicação dos Mortos”. Neste belo capítulo dedicado às Ligas Camponesas, Josué analisa a formação das Ligas e o discurso da imprensa que afirmava que as mesmas eram um perigo iminente influenciadas por China e Cuba. Critica o jornalismo tendencioso e sensacionalista que encobre as verdadeiras causas da miséria do campesinato nordestino: a secular concentração da estrutura fundiária e a extrema desigualdade social e política. Dessa forma, o autor recupera parte importante da história da invasão do território brasileiro pelos colonizadores e da expansão do capitalismo. É um texto importante para entender a questão agrária 18 JOSUÉ DE CASTRO - VIDA E OBRA do Nordeste. Nesse belo texto, Josué mostra como os trabalhadores foram tomando consciência da realidade, desde suas condições de vida e de fome. Ao tratar da morte, os camponeses do Engenho Galiléia aprenderam como lutar pela vida. Como lutar pela terra, contra as injustiças, contra a fome. Josué de Castro admirou a organização dos trabalhadores e viu nela uma força vigorosa para a transformação de suas realidades na superação da miséria. O quarto texto é o prefácio do livro Homens e caranguejos, da edição portuguesa de 1966. É outro escrito literário de beleza singular. De modo sublime, Josué relata o cotidiano de sua infância e da vida da população do mangue. O autor retira da geografia dessa realidade a miséria do povo. E a explicita como descoberta de uma consciência crítica a respeito das desigualdades presentes nos mangues lamacentos do Capibaribe. O texto é, em certa medida, a apresentação de um retrato, de uma paisagem da miséria e da fome da população excluída, esmagada por estruturas de poder: o latifúndio e a monocultura da cana. Josué relata por meio da cultura popular do bumba-meu-boi a vida sofrida da população faminta. Das lições retiradas das leituras dessa paisagem, construiu a geografia da fome, onde o autor descobriu que a fome não era somente um fato presente e persistente dos mangues, mas que era parte da realidade mundial. O quinto texto é “Fome como força social: fome e paz”, publicado na França em 1967. Nessas páginas, Josué expressa sua crítica à postura descomprometida dos que procuram ignorar a realidade da fome. Reforça a questão da fome como “fenômeno geograficamente universal, a cuja ação nefasta nenhum continente escapa. Toda a terra dos homens foi, até hoje, a terra da fome”. O autor apresenta as conseqüências físicas da fome sobre a vida em todas as suas dimensões, transformando e destruindo consciências e esperanças. A fome destrói a todos e a tudo. As populações famélicas são destituídas de perspectivas, de modo que, por causa da fome, B E R N A R D O M . F E R N A N D E S E C A R L O S W A L T E R P . G O N Ç A L V E S (ORGS.) 19 não conseguem lutar contra o flagelo e por essa razão permanecem na mesma condição. Para a superação da fome, o autor propõe o aumento da produção de alimentos e uma reestruturação política e econômica de caráter humanista. De acordo com a sua tese a fome é fato em todo o mundo, e, portanto, é uma preocupação de todas as nações. Assim, todos os países deverão tratar da questão conjuntamente, porque em caso contrário significa que: “desde que uma dessas partes sofra de fome e esteja ameaçada de morrer e apodrecer na miséria, todo organismo está ameaçado pela mesma infecção”. O último texto é: “Subdesenvolvimento: causa primeira da poluição”*, publicado na revista O Correio da Unesco, ano 1, nº 3, março de 1973. Nesse trabalho, Josué discute o conceito de desenvolvimento em todas as suas dimensões: social, econômica, política e ambiental. Mostra a relação intrínseca entre os países desenvolvidos e os países dependentes e critica esse modelo gerador de desigualdades entre as nações. Desse modo, enfatiza que o subdesenvolvimento é resultado do desenvolvimento desigual. É resultado da exploração econômica e da dominação política dos países ricos sobre os países pobres. A degradação ambiental e a poluição gerada nos países subdesenvolvidos são produtos do desenvolvimento e da exploração dos países ricos. Deste ponto de vista, é um texto atualíssimo, principalmente por causa da intensificação da exploração dos territórios dos países do Terceiro Mundo pelos Estados Unidos, União Européia e Japão. Esses textos são referências importantes para conhecermos o pensamento de Josué de Castro. Mas cabe ao leitor, conferir a beleza dos seus escritos e a riqueza de suas idéias. Numa época como a nossa, onde tudo parece se medir pelo critério da eficácia, do rendimento, da produtividade, da competência, enfim de uma racionalidade * Trabalho apresentado no “Colóquio sobre o Meio”, em junho de 1972, em Estocolmo. 20 JOSUÉ DE CASTRO - VIDA E OBRA centrada no econômico, na quantidade, no dinheiro, não é destituído de sentido que os limites, as fronteiras estejam difusas e, assim, a política enquanto tal. É que política, desde os gregos, é a arte de definir limites. Afinal, polis era o nome originariamente dado ao muro, ao limite entre cidade e campo. Só depois se passou a designar polis ao que estava contido nos muros, nos limites. A economia deixada a si mesma, enquanto lógica do mercado, exige o fim das fronteiras, dos limites, enfim da política que é, como vimos, a arte de definir limites. Josué de Castro soube perceber esses nexos sutis entre as fronteiras, isto é, a política e a ecologia, os destinos das espécies do planeta. Talvez por isso tenha buscado a Geografia que é exatamente a arte de grafar (marcar) a terra, de lhe atribuir sentido. Diante da grande produção de Josué de Castro, os textos selecionados são representativos. Quiçá esses textos sejam motivações que levem o leitor a se interessar ainda mais pelo problema da fome, da miséria e pela participação na luta dos trabalhadores. BIOGRAFIA* Nasceu Josué Apolônio de Castro em 5 de setembro de 1908, na cidade do Recife, e faleceu em Paris, no exílio a que fora condenado pelo regime militar brasileiro, ao completar 65 anos, em 1973. Fez seu curso de Medicina na Bahia e no Rio de Janeiro onde colou grau aos 21 anos de idade. Mas foi em Recife que começou a exercer a medicina, nessa mesma cidade que havia despertado no menino pobre que nela nascera e crescera a atenção para a realidade social de uma região marcada por profundos contrastes econômicos e humanos. O seu interesse pela sorte dos deserdados numa sociedade desigual levou-o, ainda recém-formado, a promover o primeiro inquérito sobre as condições de vida da classe operária em Recife, estudo pioneiro no país e que serviria de modelo para investigações semelhantes, nos anos 1930 e 1940, em outros Estados da federação, no bojo do movimento que se desenvolvia pela fixação do salário mínimo e pelo reconhecimento dos direitos dos trabalhadores. Em 1935, transferia-se para o Rio de Janeiro onde se vinculou à equipe de educadores e cientistas que pugnavam pela transformação do ensino universitário. Assim, integrou-se à experiência renovadora que era representada pela Universidade do Distrito Federal, na qualidade de professor de Antropologia Física. Interessava-lhe, sobretudo, por sua * Texto de Maria Yedda Leite Linhares. 22 JOSUÉ DE CASTRO - VIDA E OBRA formação cientifica e inquietação intelectual de acentuada sensibilidade humanística, buscar na Medicina respostas concretas para o problema da fome e da subnutrição que afligia milhões de brasileiros. Da sua primeira docência em Fisiologia e da sua experiência clínica nos bairros operários de Recife, passou a realizar, no Rio de Janeiro, pesquisas bioquímicas que constituiriam o embrião do futuro Instituto de Nutrição da Universidade do Brasil, por ele idealizado e concretizado. Tais estudos levaram-no, ainda, ao seu primeiro contato com a Europa, tendo estagiado, em 1938, no Instituto Bioquímico de Roma e dado cursos nas universidades de Roma, Nápoles e Gênova. Dessa experiência resultou a publicação, em 1939, do estudo Alimentazione e Acclimatazione Umana nei Tropici. De volta ao Brasil, em 1939, integrou o corpo docente da recém-criada Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade do Brasil, atual Universidade Federal do Rio de Janeiro, tendo conquistado, por concurso, a Cátedra de Geografia Humana, em 1947, com a tese “A Cidade do Recife, Ensaio de Geografia Urbana”. Entre 1939 e 1945, promoveu cursos sobre Alimentação e Nutrição no Departamento Nacional de Saúde Pública e na Faculdade de Medicina da Universidade do Brasil; foi eleito, em 1942, presidente da Sociedade Brasileira de Nutrição; criou o Serviço de Alimentação da Previdência Social (Saps); foi chefe do Departamento Técnico de Alimentação da Coordenação da Mobilização Econômica e membro, entre outras atividades não menos profícuas, da Comissão Organizadora da Comissão do Bem-Estar Social. Distinguiuse nos anos que se situaram entre a sua formação em Medicina e o final da II Guerra Mundial pela publicação de numerosos livros, destacando-se, além dos já mencionados estudos sobre as condições de vida da classe operária no Recife, salário mínimo e alimentação nos trópicos, os seguintes: O Problema da Alimentação no Brasil, Alimentação e Raça, Documentário do Nordeste, A Alimentação Brasileira à Luz da Geografia Humana, Fisiologia dos Tabus. Tais trabalhos constituíram a fase preparatória das duas obras que o lançariam como o B E R N A R D O M . F E R N A N D E S E C A R L O S W A L T E R P . G O N Ç A L V E S (ORGS.) 23 autor mundialmente lido e admirado, a Geografia da Fome (1946) e a Geopolítica da Fome (1951), livros esses que produziram um grande impacto praticamente em todos os países do mundo, daí terem sido traduzidos, em edições sucessivas, em 24 idiomas. Pela primeira vez, era a opinião pública internacional alertada sobre o problema da fome, estigma do subdesenvolvimento e resíduo das estruturas socioeconômicas herdadas do colonialismo. Além de sua extraordinária produção científica e editorial, Josué de Castro, professor, administrador, trabalhador incansável, dinamizador de idéias, insubmisso aos dogmas e a qualquer ortodoxia, manteve, até 1955, no Rio de Janeiro, seu consultório médico, como clínico e especialista em doenças de nutrição. Já internacionalmente conhecido por sua obra e sua luta implacável contra as desigualdades econômicas e a miséria dos povos que sofreram a exploração colonial do mundo capitalista, denunciando a fome e a subnutrição como os males sociais do subdesenvolvimento e do colonialismo, foi eleito presidente do Conselho da Organização para a Alimentação e a Agricultura das Nações Unidas (FAO), Roma (1952-1955). Em 1960, presidiu a Campanha de Defesa contra a fome promovida pelas Nações Unidas, advogando como primeiro direito do homem o de não passar fome. De 1955 a 1963, exerceu, pelo Partido Trabalhista Brasileiro, o mandato de deputado federal por Pernambuco, ao qual renunciou para assumir o posto de Embaixador brasileiro junto aos organismos internacionais das Nações Unidas em Genebra (1963-1964); demitiu-se em virtude do golpe militar de 31 de março de 1964 que lhe cassaria os direitos políticos no dia 9 de abril do mesmo ano. Criou e dinamizou a Associação Internacional de Luta contra a Fome, ao lado do Abbé Pierre e do Padre Joseph Lebret e dirigiu, até sua morte, a Associação Internacional das Condições de Vida e Saúde. Foi membro participante de inúmeras associações científicas na Europa, nos Estados Unidos e na União Soviética. Recebeu, em 1952, a menção anual da “American Library Association”; em 1955, o “Prêmio Franklin D. Roosevelt” 24 JOSUÉ DE CASTRO - VIDA E OBRA da Academia Americana de Ciência Política; em 1954, o “Prêmio Internacional da Paz” do Conselho Mundial da Paz e, ainda, a Grande Medalha da Cidade de Paris, o grau de Oficial da Legião de Honra da França, o título de Professor Honoris Causa das Universidades de San Marcos (Peru) e Santo Domingo, a medalha do Mérito Médico do Brasil, o prêmio da Associação Brasileira de Escritores, o prêmio da Academia Brasileira de Letras. Nos últimos anos de vida, em Paris, deu continuidade à sua obra, criando o Centro Internacional de Desenvolvimento, participando ativamente do movimento intelectual europeu em defesa dos povos do Terceiro Mundo, realizando conferências em vários países da América, da Europa, da Ásia e da África, organizando congressos e simpósios internacionais, lecionando na qualidade de professeur associé a cadeira de Geografia Humana na Universidade de Paris-Vincennes. No primeiro ano de exílio, sua sensibilidade diversificada levou-o a repensar a infância passada em Recife, inspirando-lhe uma incursão na área da literatura de que resultou um romance escrito com paixão, Homens e Caranguejos. Traduzido em várias línguas, foi, ainda, adaptado para o teatro por Gabriele Cousin com o título Le Cycle du Crabe ou Les Aventures de Zé Luis, Maria et Leurs fils João (Gallimard, 1969). Nesse mesmo período, elaborou reedições atualizadas de seus principais trabalhos e publicou, além de numerosos artigos na imprensa especializada européia e americana, Sete Palmos de Terra e Um Caixão (Brasiliense, 1965) cuja tradução inglesa recebeu o título Death in the Northesast (Random House, 1966). Participou também da edição de Où en Est la Révolution en Amérique Latine?, debate público que travou com Claude Julien, Juan Arrocha e Mario Vargas Llosa (1965) com John Geressi e Irving Louis Horowitz, escreveu Latin American Radicalism: a Documentary Report on Left and Nationalist Movements (Random House, 1968); com vários colaboradores, publicou os seguintes livros: El Hambre, Problema Universal (Editorial La Pleyade, 1969), O Drama do Terceiro Mundo (Publicações Dom Quixote, 1970), A China e o Ocidente (Cadernos do Século XXI, B E R N A R D O M . F E R N A N D E S E C A R L O S W A L T E R P . G O N Ç A L V E S (ORGS.) 25 1971), América Latina y los Problemas del Desarrollo (Monte Avila Editores, 1974). Ao falecer em Paris, dele escreveu Le Figaro de 25 de setembro de 1973: “Cheio de flama e de paixão pela grande causa a que ele servia, ajudando, por suas fórmulas marcantes, a tocar de perto as realidades do subdesenvolvimento, a tomar consciência do círculo vicioso no qual se encerrou o mundo, exerceu ele uma influência profunda e duradoura.” Mais do que no Brasil, a imprensa mundial rendeu uma sentida homenagem ao brasileiro e pernambucano que dedicou sua vida, sua inteligência inquieta e sua extraordinária capacidade de trabalho a denunciar a pobreza como criação dos sistemas sociais historicamente gerados e a alertar à opinião pública brasileira e do Terceiro Mundo contra as falácias das políticas de desenvolvimento econômico que enfatizavam o crescimento industrial e ignoravam a agricultura voltada para a produção de alimentos, bem como os angustiantes problemas do homem do campo – o agricultor expropriado da terra e de seus instrumentos de trabalho. O dilema pão ou aço, a que aludia no final da década de 1950, e o aniquilamento progressivo dos recursos naturais, sem atentar para o equilíbrio ecológico, levariam, não ao extermínio da pobreza e, sim, à ampliação da miséria e da desigualdade social. A atualidade de sua obra aí está, mais viva do que antes: o desnudamento, nos últimos anos, do mito da industrialização e da urbanização a qualquer preço. Josué de Castro deixou viúva Glauce Pinto de Castro, com quem se casara em 1934, e três filhos, Josué Fernando de Castro, economista, Anna Maria de Castro, socióloga, e Sônia de Castro Durval, geógrafa. JOSUÉ DE C ASTRO: SEMEADOR DE IDÉIAS* O médico Com algum sacrifício de seus pais, Josué partiu para a faculdade de medicina da Bahia, onde permaneceu por três anos. Concluiu o curso no Rio de Janeiro, com 20 anos de idade. Certa vez, diante da pergunta sobre que impressão lhe causara a Faculdade de Medicina da Bahia, assim respondeu: A princípio uma impressão de deslumbramento e de veneração por seus velhos muros, pela austera fachada da sua escola. Depois de desencanto no que diz respeito ao ensino ali ministrado. Aliás, não só a Faculdade da Bahia, mas depois a do Rio, também me desapontou por completo. Entrei com um grande entusiasmo e saí com o interesse quase morto pela maioria dos assuntos, na forma em que eram apresentados. Poucos professores me entusiasmaram. Na Bahia, destaco o velho mestre Pirajá da Silva, figura veneranda de homem de estudo, e o professor de Fisiologia, Aristides Novis, que me arrebatou muitas vezes com o brilho literário de suas preleções. Virei “fisiólogo” em dois tempos. Estudei com furor, conquistei uma distinção na cadeira e a amizade do mestre que perdurou até a sua morte. Na Faculdade do Rio, a grande figura que me encheu de encantamento foi a do Prof. A. Austregésilo, sem dúvida uma das maiores vocações que teve o ensino médico brasileiro. * Este capítulo é parte do trabalho Josué de Castro – semeador de idéias, de Anna Maria de Castro, editado pelo Iterra em 2003. 28 JOSUÉ DE CASTRO - VIDA E OBRA Mas, devo honestamente confessar, que maior influência do que os professores tiveram em minha formação, foi o convívio com alguns colegas de talento. Na Bahia, influenciaram muito no rumo de meus estudos e indagações a presença na mesma pensão em que morava, de dois colegas com os quais muito me liguei: Arthur Ramos e Theotônio Brandão. Theotônio com mais intimidade, Ramos com uma certa distância e reserva diante de sua maior maturidade intelectual, do seu prestígio de veterano, com três anos de curso na frente. Com Theotônio, discutíamos, com Ramos, ouvíamos. E ouvíamos coisas esmagadoras. Nomes arrevesados de venerandos sábios alemães, teorias frescas trazidas diretamente dos centros europeus por misteriosos caminhos para o sisudo discípulo de Freud na baixa do sapateiro. Ficamos de queixo caído diante da imponência da sua cultura. Um dia ele nos fez a revelação suprema que sairia um estudo seu sobre Augusto dos Anjos e a Psicanálise, num dos suplementos dominicais do O Jornal. Isto na província em 1925, meu caro, me pareceu a glória. Fomos comovidos até o Plano Inclinado comprar o número do O Jornal, desdobramos as páginas com unção e lá encontramos o artigo com título e nome do autor. Tudo aureolado pela letra de forma em tipo grosso. Não me contive. Veio-me a alma uma inveja doida de tanta glória. Fui também ao Freud – um Freud de terceira classe, já comentado em tradução – e lancei um ensaio tremendo, meu primeiro ensaio, intitulado “A Literatura Moderna e a Doutrina de Freud”, que saiu flamejante na Revista de Pernambuco. Senti-me como um igual e no ano seguinte passei a ir ao cinema junto com o mestre Ramos. Quando estudante, era extremamente vaidoso, e para demonstrar erudição, saia à rua com o mais grosso de seus livros de estudo, conforme relata em seu diário. Na verdade, foi um jovem impetuoso que não via fronteiras sociais nem culturais que não pudessem ser ultrapassadas. Acreditava em sua inteligência e competência para conquistar o reconhecimento de seu trabalho. Formado, retorna ao Recife para trabalhar na Secretaria de Educação do Estado de Pernambuco. Olívio Montenegro, Sílvio Rebelo e Gilberto Freyre participavam do grupo de José Maria Belo que seria governador. Por todos eles, estava reservado um cargo para Josué. B E R N A R D O M . F E R N A N D E S E C A R L O S W A L T E R P . G O N Ç A L V E S (ORGS.) 29 Contudo, não houve posse e a coisa gorou. Abri, então um consultório para fazer nutrição. Eu, na realidade queria ser psiquiatra, mas o Ulhoa Cintra (outro médico) tinha dois aparelhos de metabolismo. Me vendeu um e resolvi fazer nutrição. Um só livro O Tratado de Umber figurava na biblioteca. As doenças da nutrição eram cinco, na época, obesidade, magreza, diabete, gota e reumatismo. Como era coisa nova, consegui ter uma boa clientela, apesar de minha cara de menino, que às vezes, assustava os clientes. Comecei, também, a trabalhar numa grande fábrica e a verificar que os doentes não tinham uma doença definida, mas não podiam trabalhar. Eram acusados de preguiça. No fim de algum tempo, compreendi o que se passava com os enfermos. Disse aos patrões: sei o que meus clientes têm. Mas não posso curá-los porque sou médico e não diretor daqui. A doença desta gente é fome. Pediram que eu me demitisse. Saí. Compreendi, então, que o problema era social. Não era só do Mocambo, não era só do Recife, nem só do Brasil, nem só do continente. Era um problema mundial, um drama universal. O escritor Eu sonho sonhos distantes, em barcos ausentes, velozes, ondeantes, paisagens vivas, longe, diferentes. Eu sonho sempre. Sonho… Josué de Castro Desde jovem, Josué foi um apaixonado pela literatura. Suas ambições literárias se revelam no período em que estudava medicina, quando começa a publicar contos, ensaios e poemas em diversos periódicos como o Diário da Manhã e a Revista de Antropofagia. Modernistas como Mário de Andrade e Oswald de Andrade, além de amigos, foram referências marcantes do ambiente cultural de sua geração. Através das teorias de Freud, interessou-se na possibilidade de relacionar a literatura com a medicina. 30 JOSUÉ DE CASTRO - VIDA E OBRA Em 1935, reúne contos de sua autoria no volume Documentário do Nordeste. Entre os contos então publicados, encontra-se o “Ciclo do caranguejo”, que só bem mais tarde desenvolveu como um romance sob o título de Homens e caranguejos. Os mangues do Capibaribe são o paraíso do caranguejo. Se a terra foi feita pro homem, com tudo para bem servi-lo, também o mangue foi feito especialmente pro caranguejo. Tudo aí é, foi ou está para ser caranguejo, inclusive a lama e o homem que vive nela. A lama misturada com urina, excremento e outros resíduos que a maré traz, quando ainda não é caranguejo, vai ser. O caranguejo nasce nela, vive dela. Cresce comendo lama, engordando com as porcarias dela, fazendo com lama a carninha branca de suas patas e a geléia esverdeada de suas vísceras pegajosas. Por outro lado, o povo daí vive de pegar caranguejo, chupar-lhe as patas, comer e lamber os seus cascos até que fiquem limpos como um copo. E com a sua carne feita de lama fazer a carne do seu corpo e a carne do corpo de seus filhos. São cem mil indivíduos, cem mil cidadãos feitos de carne de caranguejo. O que o organismo rejeita, volta como detrito para a lama do mangue, para virar caranguejo outra vez. Todos os cientistas que em seu ofício estudam as diferentes manifestações da realidade, quer física, quer sociocultural, gostariam de poder descrever seu objeto de estudo como conseguem fazê-lo os grandes escritores. Contudo são ofícios diversos e, se o escritor não tem pretensões de se tornar cientista ao descrever com tanta acuidade a realidade, dificilmente os cientistas conseguem se desligar da realidade que procuram entender para se transportar para o mundo irreal do pensamento, do romance, da novela. Josué de Castro sempre admirou os escritores capazes de, melhor que os cientistas, com uma linguagem universal, contar dos homens e das coisas dos homens. Assim é que, ao escrever seu principal livro, a Geografia da Fome, dedicou-o a dois escritores, Rachel de Queiroz e José Américo de Almeida, “romancistas da fome no Brasil”, e à memória de Euclides da Cunha e Rodolfo Teófilo, “sociólogos da fome no Brasil.” B E R N A R D O M . F E R N A N D E S E C A R L O S W A L T E R P . G O N Ç A L V E S (ORGS.) 31 O cientista Vivendo no Rio de Janeiro, Josué, a despeito do sucesso da clínica médica, resultado da viagem de estudos realizada a Roma, começa, paulatinamente a se afastar da medicina exercida em seu consultório. Ao regressar, eu era o homem que tinha chegado da Europa. A clínica abarrotou. Fui convidado para dirigir um departamento de nutrição. Não pude aceitar. Ainda assim, a clínica já não me satisfazia. Faltava 15 dias em cada 30 de trabalho, no consultório. O que eu queria era escrever a Geografia da Fome. Durante a guerra, participou da Comissão de Mobilização Nacional, escreveu uma grande quantidade de artigos sobre alimentação e pesquisou o que havia sido até então publicado sobre alimentação e fome. Neste momento, Josué mostrava grande amadurecimento, não só quanto a seus objetivos, como também do ponto de vista científico. Indagado sobre se a ciência deve estar a serviço do social, assim se expressou: Claro que sim. A ciência e a técnica são duas outras expressões do mesmo rosto da cultura e só significam alguma coisa como traços componentes deste mesmo rosto. Isoladas, perdem toda a expressão. Temos uma comprovação desta verdade no que se passou nestes últimos anos. A ciência pura em sua expressão máxima de aparente alheamento ao mundo das realidades sociais, – a física teórica – em suas transcendentes especulações deu lugar a descobertas que estão subvertendo, por completo, todos os princípios e valores de nossa civilização, com ameaças e esperanças que abalam a consciência social do mundo inteiro. A bomba atômica derrubou os últimos muros que ainda podiam separar os homens de laboratório dos homens da rua. A Geografia da Fome: um novo método geográfico Em 1946, publicou sua obra capital, a Geografia da Fome, uma geografia diferente. Inaugurava um método geográfico que apresen- 32 JOSUÉ DE CASTRO - VIDA E OBRA tava um Brasil distante dos discursos oficiais. Em pleno período de crescimento, de industrialização, não havia muitos trabalhos sobre fome, um tema ainda proibido: O assunto deste livro é bastante delicado e perigoso. A tal ponto delicado e perigoso que se constitui num dos tabus de nossa civilização. É realmente estranho, chocante, mesmo a observação, o fato de que num mundo como o nosso, caracterizado por tão excessiva capacidade de se escrever e se publicar, haja até hoje tão pouca coisa escrita acerca do fenômeno da fome, em suas diferentes manifestações. Ao que acrescentava: Trata-se de um silêncio premeditado pela própria alma da cultura: foram os interesses e os preconceitos de ordem moral e de ordem política e econômica de nossa chamada civilização ocidental que tornaram a fome um tema proibido ou, pelo menos, pouco aconselhável de ser abordado publicamente. Refere-se à fome como a expressão biológica do subdesenvolvimento – efeito do modelo de desenvolvimento escolhido: “Ao retratarmos a fome no Brasil estamos evidenciando o seu subdesenvolvimento econômico porque fome e subdesenvolvimento são a mesma coisa”. Demonstrou com este importante trabalho que era possível construir uma ciência que teria por objeto de estudo problemas específicos de países pobres e que fosse capaz de explicar a situação destes países sem recorrer ao mito da inferioridade racial, do fatalismo, do determinismo geográfico, ou até do acaso. Um dos grandes obstáculos ao planejamento de soluções adequadas ao problema da alimentação dos povos reside exatamente no pouco conhecimento que se tem do problema em conjunto, como um complexo de manifestações simultaneamente biológicas, econômicas e sociais. A maior parte dos estudos científicos sobre o assunto se limita a um de seus aspectos parciais, projetando uma visão unilateral do problema. São quase sempre trabalhos de fisiólogos, de químicos ou de economistas, especialistas em geral, limitados por contingência profissional ao quadro de suas especializações. B E R N A R D O M . F E R N A N D E S E C A R L O S W A L T E R P . G O N Ç A L V E S (ORGS.) 33 Foi diante desta situação que resolvemos encarar o problema sob uma nova perspectiva, de um plano mais distante, donde se possa obter uma visão panorâmica de conjunto, visão onde alguns pequenos detalhes certamente se apagarão, mas na qual se destacarão, de maneira compreensiva, as ligações, as influências e as conexões dos múltiplos fatores que interferem nas manifestações do fenômeno. Para tal fim pretendemos lançar mão do método geográfico no estudo do fenômeno da fome. Único método que, a nosso ver, permite estudar o problema em sua realidade total, sem arrebentar-lhe as raízes que o ligam subterraneamente a inúmeras outras manifestações econômicas e sociais da vida dos povos. Utilizou o método geográfico, no estudo do fenômeno da fome. “Não o método descritivo da antiga geografia, mas o método interpretativo da moderna ciência geográfica”. Neste nosso ensaio de natureza ecológica tentaremos, pois, analisar os hábitos alimentares dos diferentes grupos humanos, ligados a determinadas áreas geográficas, procurando, de um lado, descobrir as causas naturais e as causas sociais que condicionaram o seu tipo de alimentação, com suas falhas e defeitos característicos, e, de outro lado, procurando verificar até onde esses defeitos influenciam a estrutura econômico-social dos diferentes grupos estudados. Assim, quando indagado sobre quais os motivos que o levaram ao planejamento desta obra, respondeu: A convicção a que fomos conduzidos em nossos estudos da importância categórica do fenômeno da fome na formação e evolução dos grupos humanos, importância que cresceu tremendamente em nossos dias de tão acirradas lutas econômicas e sociais no mundo inteiro. Temos a impressão de que não é possível promover-se a reconstrução do mundo dividido por blocos antagônicos, sem limpar do mundo estas terríveis manchas negras representadas por grupos de populações subnutridas e famintas, inferiorizadas ao máximo, pela falta permanente de uma alimentação adequada. E todo plano para remediar esta angustiosa situação na qual se encontra, segundo dados estatísticos bem apurados, mais da metade de seres humanos só surtirá efeito se for baseado num conhecimento intensi- 34 JOSUÉ DE CASTRO - VIDA E OBRA vo e extensivo do fenômeno da fome, em suas causas remotas e imediatas e em seus efeitos humanos. Para abordar seu tema, Josué precisou atacar velhas e insustentáveis teorias, falsas interpretações, deploráveis preconceitos raciais e climáticos, bem como as doutrinas que justificavam a fome como conseqüência do crescimento populacional (malthusianismo) praticadas, ainda hoje, em detrimento das populações subdesenvolvidas. A sua obra permanece como grande instrumento de informação para a formação de uma política voltada para problemas tão graves para a segurança de nossa sociedade, inclusive de nossas elites dirigentes que permaneceram surdas ao grito de alerta deste grande cientista brasileiro. Seguiu-se em 1951 o livro Geopolítica da Fome, na qual o autor dá continuidade a seu método, documentando a fome em âmbito mundial. Os livros Geografia da Fome e Geopolítica da Fome foram traduzidos para mais de 20 diferentes idiomas. O professor O exercício do magistério iniciou-se como atividade complementar ao trabalho do médico. Entretanto, ao longo do tempo, não só Josué foi tomando gosto pelas aulas como também percebeu a importância das mesmas para o desenvolvimento de seus estudos. Gostava, também, do contato com os jovens. Assim, o magistério foi ocupando um espaço cada vez maior em sua vida. Fundou, na década de 1930, com vários companheiros, uma Faculdade de Filosofia em Recife. Neste período foi professor da Faculdade de Medicina (Fisiologia) e da de Filosofia (Geografia Humana). Um ensaio produzido em 1948 para o concurso de professor titular em Geografia Humana, “Fatores da localização da cidade do Recife”, demonstra sua vocação didática. Acrescente-se o livro Geografia Humana voltado para o curso secundário. B E R N A R D O M . F E R N A N D E S E C A R L O S W A L T E R P . G O N Ç A L V E S (ORGS.) 35 Era a atividade que melhor expressava o seu modo de ser. Começou e terminou a vida como professor. Orgulhava-se ao ser chamado de Professor. Sempre acreditou nos jovens, únicos capazes de transformar este mundo que recebemos. Afeito a concepções globais, que não demarcavam limites para o conhecimento, lecionou, além de disciplinas ligadas à medicina, outras, aparentemente distantes da área médica. Em seu currículo, assinalam-se: • Professor de Geografia Humana, da Faculdade Nacional de Filosofia da Universidade do Brasil; • Diretor do Instituto de Nutrição, da Universidade do Brasil (hoje, Instituto de Nutrição Josué de Castro, da Universidade Federal do Rio de Janeiro); • Professor de Alimentação e Nutrição dos cursos de pós-graduação da Faculdade de Medicina da Universidade do Brasil; • presidente da Sociedade Brasileira de Nutrição; • Professor assistente de Fisiologia da Faculdade de Medicina de Recife; • Professor Catedrático de Geografia Humana, da Faculdade de Filosofia e Ciências Sociais do Recife; • Vice-diretor da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras do Recife; • Professor de Antropologia da Universidade do Distrito Federal (hoje, Universidade do Estado do Rio de Janeiro); • Professor Visitante da Universidade de Roma e Nápoles; • Professor Estrangeiro Associado ao Centro Experimental de Vincennes, Universidade de Paris. Criou o Curso de Nutrição da antiga Universidade do Brasil, onde foram desenvolvidas pesquisas sobre alimentos regionais. Divulgou através de um Guia da Alimentação os principais conceitos ligados à importância de cada um dos alimentos. 36 JOSUÉ DE CASTRO - VIDA E OBRA ALIMENTO COMO MELHOR VACINA Guia da Alimentação organizado pelo Instituto de Nutrição da Universidade do Brasil, sob a supervisão de Josué de Castro. Campanha de Educação de Adultos, Ministério da Educação e Cultura, 1947. Todo animal precisa de alimento para poder se desenvolver. O Homem como qualquer outro animal não é diferente. A vida depende da alimentação. Assim, uma vaca bem alimentada e bem nutrida, produz muito mais leite do que as que não têm o que comer e muitas vezes do que beber. O homem bem alimentado quase não fica doente, já que a principal causa geradora de doenças é a falta de alimentos, que gera um organismo sem forças para agir, quando entra em contato com algum micróbio. Muitas crianças que morrem de sarampo, na verdade, estão morrendo de fome porque não conseguiram reagir à ação da doença. As crianças que podem comer os alimentos que seu organismo necessita crescem mais e, sobretudo podem desenvolver seu cérebro, podem pensar e aprender melhor. E, quando adultos poderão trabalhar melhor e continuar aprendendo. Precisamos, contudo, saber que comer muito não significa comer bem e estar bem alimentado. Cada alimento tem mais ou menos as qualidades, vitaminas, sais minerais que o homem precisa em seu desenvolvimento. Os alimentos não têm o mesmo valor. Alguns valem mais do que outros, Os alimentos são as substâncias que comemos para viver e que farão bem ao organismo do homem. B E R N A R D O M . F E R N A N D E S E C A R L O S W A L T E R P . G O N Ç A L V E S (ORGS.) Os alimentos servem para diferentes funções: 1. formam toda a matéria do organismo – a pele, os ossos, o sangue, os dentes, as unhas e o cabelo; 2. ajudam o crescimento do organismo e dão força para o trabalho; 3. asseguram a reprodução do organismo; 4. defendem o organismo contra as doenças. Existem alimentos que só servem para dar calor ao organismo. São uma espécie de combustível, para manter a máquina trabalhando. Assim, como uma máquina sem o combustível, ela pára. A mesma coisa acontece ao homem quando ele usa certos alimentos, como gorduras, doces e farináceos, ele emagrece, perde energia e trabalha menos. Mas, quando não come os chamados “alimentos protetores”, não terá forças de lutar contra os micróbios (doenças). Chamamos de alimentos protetores as carnes, os peixes, os ovos, o leite, o queijo, a manteiga, as frutas, as verduras e os legumes, porque contêm em sua composição substâncias da maior importância para a saúde do homem; as proteínas, as vitaminas e os sais minerais. Existe uma relação entre alimentação e trabalho, já que a quantidade de alimentos que uma pessoa deve comer depende de quanto necessita para realizar um trabalho. O esforço de um rachador de lenha é maior que o de um cabeleireiro. Quanto mais pesado o trabalho, mais alimentos são necessários. O motor do homem, para poder funcionar precisa de combustível. A máquina precisa de carvão, o caminhão de óleo diesel e o trator de gasolina. 37 38 JOSUÉ DE CASTRO - VIDA E OBRA Quanto melhor a qualidade do combustível, melhor a máquina funciona, e também dura mais. O mesmo acontece com o homem. Além disto, existe relação direta entre a alimentação e o crescimento. No período da infância e da adolescência, o alimento é importante para o crescimento e desenvolvimento. (Ver o desenvolvimento do cérebro). É também neste período, que se adquire hábitos e conhecimentos que permanecem na cultura de cada um. A criança sadia vai crescer e se desenvolver de forma sadia, se tornando um adulto com saúde. Os hábitos alimentares que lhe forem ensinados quando criança, serão mantidos na vida adulta. O mesmo ocorre com os erros, que, em muitos casos, não poderão ser reparados. Como a criança está crescendo, construindo seus ossos, mudando os seus dentes, fortalecendo seus músculos, mais do que ninguém necessita de bons alimentos. ALIMENTAÇÃO E GRAVIDEZ Normalmente, a mulher come menos que o homem, mas, quando a mulher está grávida precisa comer por ela e pelo filho que se desenvolve por nove meses em sua barriga. Depois, quando nasce a criança, a mulher deve alimentar seu filho pela amamentação. O leite materno é o alimento mais completo para a criança em sua primeira idade. E, para poder alimentar seus filhos, a mulher tem que procurar se alimentar com bons alimentos. (Ver os dados sobre o leite de vacas bem alimentadas e nutridas). B E R N A R D O M . F E R N A N D E S E C A R L O S W A L T E R P . G O N Ç A L V E S (ORGS.) 39 A maioria das doenças decorre da subnutrição; a tuberculose, por exemplo. O organismo precisa de força para resistir aos micróbios, vírus e outras ações da natureza. O chamado organismo fraco é conseqüência de uma alimentação defeituosa. A PRODUÇÃO DE ALIMENTOS A terra no Brasil. A concentração na mão de poucos. O latifúndio improdutivo e a monocultura. Os terrenos para plantio podem ser mais pobres ou ricos. A terra precisa ser tratada para poder produzir bem e continuadamente. Precisa ser adubada e molhada. A água e o adubo são os alimentos da terra, fazem a terra viver. Precisamos saber como preparar o terreno e os canteiros. Hoje, também é importante saber escolher as sementes. Além das carências alimentares, apontava para a carência em educação como outro aspecto característico do subdesenvolvimento. No livro Estratégia do desenvolvimento, assim se manifestou: Na minha opinião, uma das mais altas prioridades para o Terceiro Mundo é a formação humana, a formação de homens responsáveis e capazes de pôr em ação esta estratégia global. (…) Nesta nova cultura, a ciência e a técnica terão certamente um grande papel a desempenhar, mas elas não podem ser as únicas componentes desta cultura. Existem muitos outros valores que são igualmente importantes. É preciso não esquecer que ciência não é sabedoria. A ciência é o conhecimento. A sabedoria implica o conhecimento e o juízo. E sobre este ponto – o do juízo dos valores – estamos muito longe de possuir uma idéia clara das hierarquias dos fatores a serem acionados para construir uma estratégia global do desenvolvimento que não separe o econômico do humano, mas que, ao contrário, considere o homem, os grupos humanos, toda a humanidade, como objetivo final do desenvolvimento (…) É esta nova ótica do 40 JOSUÉ DE CASTRO - VIDA E OBRA desenvolvimento – a do ensino, da educação e da formação humana – que deve constituir o investimento prévio e seguramente o mais rentável para desencadear o impulso do desenvolvimento (…) O problema mais grave dos países subdesenvolvidos continua a ser, ainda hoje, o do baixo nível de educação dos seus habitantes… Neste contexto, o trabalho dos educadores é decisivo, pois deve preparar pessoas capazes de participar ativamente das transformações em curso: A simples transferência de cultura – isto é, as utopias de exportação em matéria de educação – jamais pode pôr à disposição um meio de formação de tipos de homens de que o Terceiro Mundo tem necessidade para desenvolver a sua economia num sentido humano que respeite as raízes culturais destes povos. (…) Procurar encontrar o meio de integrar os valores científicos e tecnológicos no patrimônio dos valores representativos de outras civilizações não ocidentais – eis o único meio de desenvolver o mundo com equilíbrio, e não sob o signo perigoso de uma dominação que provoca em toda parte a revolta. Uma educação que liberte o homem, eis ao que aspiram os povos do Terceiro Mundo. E isto supõe uma pedagogia da liberdade que os liberte da dominação da natureza, mas também da dominação de outros grupos humanos – de todo os tipos de dominação. Quer isto dizer que é preciso educá-los para se libertarem econômica, política e espiritualmente. Denunciava o interesse político que orientava o tipo de ensino das universidades do terceiro mundo, “incapaz de um impulso criativo e renovador”. Ministrar um tipo de educação popular seria desencadear um movimento irreversível de transformação social, ao qual se oporiam as minorias dominantes, hostis às idéias de reformas educacionais válidas. Os verdadeiros reformadores dos métodos de ensino de numerosos países subdesenvolvidos são vistos como elementos perigosos, subversivos da ordem estabelecida, perigosos para a manutenção destas democracias sem povo, em que um punhado de homens deve tudo saber e tudo dirigir, e as massas devem tudo ignorar e obedecer sempre. B E R N A R D O M . F E R N A N D E S E C A R L O S W A L T E R P . G O N Ç A L V E S (ORGS.) 41 O político Na década de 1950, Josué candidata-se à Câmara Federal pelo Estado de Pernambuco. Não consegue eleger-se na primeira tentativa. Insiste, e em 1954, consegue sua primeira eleição. Resultado que se repete em 1958. Fui deputado duas vezes. Oito anos. Na segunda eleição, em 1958, tive a maior votação no Estado. Só na capital, vinte e tantos mil votos. Sabe a que devo essa vitória? Ao povo votando numa idéia, a luta contra a fome. Assim justificou sua candidatura durante seu segundo ano de mandato: Quando me candidatei, fi-lo com a grande esperança de poder trazer ao Parlamento Nacional a modesta experiência que tenho dos problemas de nosso povo, das suas condições de vida, que venho estudando há 25 anos. Aqui chegando, verifiquei a minha falta de preparo. Foi por isso que durante um ano, em lugar de apresentar projetos, tratei de aprender, de estudar, de observar e de me preparar para realizar, dentro de minhas modestas possibilidades o que penso fazer este ano: apresentar uma série de projetos interdependentes sobre os problemas agrários do Brasil. No exercício dos mandatos pôde desenvolver sua já brilhante oratória, reconhecida até por adversários. Entretanto, embora gostasse da polêmica e da provocação, que lhe proporcionavam a oportunidade de exibir sua oratória, não conseguia inserir-se no jogo de interesses pessoais e às vezes mesquinhos que a vida partidária acaba exigindo. Era um idealista, um sonhador, além de um homem de ciência. Vale a pena relembrar parte de seu discurso por ocasião das comemorações do dia panamericano: O panamericanismo que no dia de hoje comemoramos, constitui, sem sombra de dúvida, um movimento de ação política internacional, que, por suas origens merece a simpatia e a consideração de todos os povos deste continente sinceramente interessados numa política de autêntica solidariedade e de ajuda mútua para superar as dificuldades continentais. Não se pode esquecer que este movimento se originou e tomou consistência como 42 JOSUÉ DE CASTRO - VIDA E OBRA expressão de uma política de emancipação do jugo do colonialismo. Foi a política anticolonialista do século passado que deu origem a este sentimento, chamado de panamericanismo; tanto assim que, quando se busca as raízes vamos encontrá-las fincadas na grande obra política de Bolívar, o grande pioneiro da emancipação política e econômica das repúblicas latino-americanas… (…) Tenho esperanças de que o panamericanismo tome um rumo novo, dentro deste sentido de admitir que a cooperação entre os povos não se deve fazer apenas nos termos vagos daquela assistência técnica e financeira que as grandes potências dispensam aos países pobres e subdesenvolvidos. É desta época um curioso e importante documento elaborado por Josué, o “Programa de 10 pontos para vencer a fome”.. 1. 2. 3. 4. 5. 6. PROGRAMA DE 10 PONTOS PARA VENCER A FOME Combate ao latifúndio. Combate à monocultura em largas extensões sem as correspondentes zonas de abastecimento dos grupos humanos nela empregados. Aproveitamento racional de todas as terras cultiváveis circunvizinhas dos grandes centros urbanos para a agricultura de sustentação, principalmente de substâncias perecíveis como frutas, legumes e verduras que não resistem a longos transportes, sem os recursos técnicos da refrigeração. Intensificação do cultivo de alimentos sob forma de policultura nas pequenas propriedades. Mecanização intensiva da lavoura, da qual dependem os destinos produtivos de toda nossa economia agrícola. Financiamento bancário adequado e suficiente da agricultura assim como garantia da produção pela fixação de bom preço mínimo. B E R N A R D O M . F E R N A N D E S E C A R L O S W A L T E R P . G O N Ç A L V E S (ORGS.) 43 7. Progressiva diminuição até a absoluta isenção de impostos da terra destinada inteiramente ao cultivo dos produtos de sustentação. 8. Amparo e fomento ao cooperativismo, que poderá servir de alavanca impulsionadora à nossa incipiente agricultura de produtos alimentares. 9. Intensificação dos estudos técnicos de Bromatologia e Nutrologia no sentido de que se obtenha um conhecimento mais amplo do valor real dos recursos alimentares. 10. Planejamento de uma campanha de âmbito nacional para a formação de bons hábitos alimentares, o qual envolva não só o conhecimento dos princípios históricos de higiene como o amor à terra, os rudimentos de economia agrícola e doméstica, os fundamentos da luta técnica contra a erosão. Seguindo os mesmos princípios, Josué apresenta à Câmara dos deputados, o projeto de Lei nº 11, de 1959, que “define os casos de desapropriação por interesse social e dispõe sobre sua aplicação”, uma bem elaborada proposta de reforma agrária: Com este Projeto, que define os casos de desapropriação por interesse social, visamos a tornar exeqüível no país a implantação de uma reforma das estruturas agrárias, tornando-as mais adequadas e consentâneas com a evolução econômico-social brasileira. Há consenso acerca do arcaísmo das estruturas agrárias existentes pelo menos em certas regiões do país as quais entravam de maneira significativa as forças produtivas da zona rural, agravando o desnível entre as áreas industriais e as agrícolas. Urge, pois, modificar essas estruturas através de uma reforma técnica e racionalmente concebida. Esta reforma deve ser planejada como um processo de revisão das relações jurídicas e econômicas entre os que detêm a propriedade rural e os que nela trabalham. Deve, pois, representar um estatuto legal que 44 JOSUÉ DE CASTRO - VIDA E OBRA ponha as justas e necessárias limitações à exploração da propriedade agrária de forma a tornar o seu rendimento mais elevado e principalmente melhor distribuído em benefício de toda a coletividade rural. O possível conjunto de leis que comporiam esse código deverá regular inúmeros problemas, tais como a desapropriação das terras, os arrendamentos rurais, os contratos de trabalho e vários outros aspectos complementares da herança da terra. Não se deve, pois, conceber a reforma agrária como simples expediente primário de desapropriação e redistribuição da propriedade, mas sim como um instrumento técnico de utilização racional da terra na defesa do bem estar coletivo. O Projeto que temos a honra de submeter ao Parlamento Nacional visa, pois, a armar o Poder Público do necessário instrumento legal que permita levar a efeito, nos casos indicados, a desapropriação por interesse social, pré-requisito indispensável à concepção de uma reforma agrária no Brasil. Outro Projeto de grande importância foi o de nº 904, também de 1959, que dispõe “Sobre o Ensino Superior de Nutrição, regula o exercício da profissão de dietista, e dá outras providências”, ao fim transformado em lei. Em sua exposição de motivos, Josué, mais uma vez, enfatiza a gravidade do problema da fome: O problema da alimentação representa, no momento atual o número um para o povo brasileiro. Todas as medidas que tendem a racionalizar e solucionar este grave problema devem merecer a máxima prioridade. Na solução deste complexo assunto, inclui-se como requisito essencial a formação de pessoal habilitado tecnicamente nos diferentes setores englobados pelo problema. A formação de nutricionistas e auxiliares de nutrição constitui certamente um elemento essencial na batalha contra a subnutrição e a fome, em que estamos todos empenhados. Embora várias instituições brasileiras possuam em funcionamento cursos de nutricionistas, faz-se necessária a sua melhor ordenação no sentido de encarar este aspecto do ensino superior de nutrição como fundamental. B E R N A R D O M . F E R N A N D E S E C A R L O S W A L T E R P . G O N Ç A L V E S (ORGS.) 45 O pessoal habilitado através destes cursos deverá, por outro lado, possuir garantias na execução de seu trabalho profissional, donde a necessidade de uma regulamentação do exercício da profissão de dietista ou nutricionista. Comentava-se à época que seu nome teria sido cogitado para ocupar o Ministério da Agricultura, no lugar de Mário Menegueti. Também há controvérsias sobre uma possível candidatura sua à Prefeitura do Recife. Embora tenha declarado, em inúmeras oportunidades, que o trabalho no Parlamento não o encantou, sua passagem pelo Legislativo Federal foi significativa para a história das políticas públicas. Graças a seu empenho como presidente da Comissão de Saúde da Câmara dos Deputados, foi implantada a Campanha Nacional de Merenda Escolar. Nordeste, área explosiva Em seu livro Sete Palmos de terra e um caixão, Josué descreve a ebulição dos movimentos sociais no Nordeste brasileiro: O agitador autodidata vinha agitar a própria agitação já reinante na região. Agitação levantada pela abusiva permanência de um sistema que ofende a dignidade humana, sistema que mantém todos os poderes nas mãos de uns poucos privilegiados. (…) Foi vendo este espetáculo que Julião apareceu e lhe deu expressão, como, há vários séculos, Frei Bartolomeu de Las Casas, assistindo à hecatombe dos índios, dizimados pelos colonizadores espanhóis, passou a agitar o problema da escravidão dos índios. Como Joaquim Nabuco, diante da escravidão do negro se fez agitador da abolição. Como Antonio Silvino e Lampião, diante do desrespeito aos direitos do homem impostos pela prepotência dos latifundiários do sertão, se fizeram agitadores do cangaço. Sempre o mesmo processo: a agitação latente se exprimindo pela força consciente de uma forte personalidade humana. Joaquim Nabuco riscando a história com os traços de sua pena e Lampião com os traços de sua bala. Mas para que a História não seja falsificada é preciso colocar bem esses traços dentro das linhas daquele tecido a que já fizemos referência: o tecido espiritual da consciência coletiva. 46 JOSUÉ DE CASTRO - VIDA E OBRA Ao descrever a situação da propriedade rural no Nordeste, da dominação da aristocracia rural controladora da vida agrícola, constata que “tratar de um assunto tão emocionalmente carregado de tensão política é provocar inevitavelmente a agitação”. O cidadão do mundo A repercussão de Geografia da Fome, tornou seu autor o nome mais cotado para representar o Brasil em organismos internacionais ligados a questões alimentares. Ingressa na Organização para Alimentação e Agricultura das Nações Unidas (FAO) em 1948, como membro de seu Conselho Consultivo. Em pouco tempo será eleito presidente do Conselho Executivo da FAO, cargo que exerce por dois mandatos consecutivos, de 1952 a 1955. Meu competidor era Lord Bruce, da Inglaterra. Eu venci por 34 a 30 votos, depois de um empate no primeiro escrutínio (…) Imagine a emoção de me ver sentado na cadeira da Presidência, olhar um a um os representantes das grandes potências e recordar os mocambos do Recife onde se reproduzia o ciclo do caranguejo e onde vivem outros meninos de rua iguais ao menino que eu tinha sido. No exercício da presidência do conselho da FAO, Josué de Castro empreende uma série de trabalhos no combate à fome no mundo, sempre buscando articular os conhecimentos técnico-científicos para a elaboração de planos de ação. Em sua concepção, qualquer projeto de intervenção na sociedade deveria estar muito bem alicerçado em estudos previamente realizados, e esta ação deveria ser monitorada por estudos avaliativos constantes. Buscou intensificar a ajuda aos países subdesenvolvidos, não só através de programas e projetos de desenvolvimento, mas cobrando das nações desenvolvidas suas responsabilidades frente aos desequilíbrios regionais, traduzidos na formação de imensos bolsões de miséria em determinadas áreas do planeta, contra as pequenas ilhas de abundância. Na medida em que assumia a condição de porta-voz do Terceiro Mundo, enfrentou forte oposição dos países desenvolvidos, especial- B E R N A R D O M . F E R N A N D E S E C A R L O S W A L T E R P . G O N Ç A L V E S (ORGS.) 47 mente Estados Unidos e Inglaterra, para a concretização de suas propostas, dentre as quais se destacavam: a criação de uma reserva alimentar de emergência, o desenvolvimento de vários programas de cooperação técnica para melhoria e aumento da produção agrícola nos países do Terceiro Mundo, programas de capacitação de mãode-obra, além da batalha em se proceder a uma verdadeira reforma agrária nas áreas mais pobres do planeta e, desta forma, poder incrementar a produção de alimentos, combater a fome, gerar empregos e renda. Lamentavelmente, os planos entusiasmados dos primeiros tempos, a despeito de todo seu empenho, não se efetivaram com a velocidade que Josué desejara. Assim, ao deixar a Presidência, mostrava uma certa decepção frente às fraquezas operacionais do organismo: Pode ser que quando aqui cheguei, com uma certa dose talvez exagerada de idealismo, não tenha pensado bastante nas dificuldades, nos obstáculos que sempre se encontram quando se quer fazer algo desinteressado, no puro interesse da humanidade. Como eu ocupo uma função de presidente do Conselho e a exerço de maneira independente, não representando nenhum país e sim um homem que aqui veio, um homem de boa vontade… estou um pouco decepcionado com o que foi feito até agora, pois a meu ver ainda não elaboramos uma política realista que leve em conta ao mesmo tempo as necessidades do mundo e nossos propósitos. Longe de mim, menosprezar a obra realizada pela FAO, mas desejo dizer, com toda sinceridade – e peço que perdoem por falar com uma sinceridade um tanto brutal – que me sinto decepcionado diante da obra que realizamos. Decepcionado pelo que fizemos porque, a meu ver, não elaboramos até hoje uma política de alimentação realista (…) Não fomos suficientemente ousados, não tivemos coragem suficiente para encarar, de frente, o problema e buscar as suas soluções. Apenas afloramos a sua superfície, sem penetrar em sua essência, sem querer, na verdade, resolvê-lo, por falta de coragem de desagradar a alguns. Precisamos, a meu ver, ter a coragem de discordar de certas opiniões para aceitarmos a imposição das circunstâncias, resolvendo o problema no interesse da humanidade. 48 JOSUÉ DE CASTRO - VIDA E OBRA Ao deixar a presidência do conselho da FAO, organizou e fundou a Associação Mundial de Luta Contra a Fome (Ascofam), visando a despertar a consciência do mundo para o problema da fome e da miséria, e promover projetos demonstrativos de que a fome pode ser vencida e abolida pela vontade dos homens. Tinha, entretanto, uma clara visão do alcance de uma organização desta natureza frente à magnitude do problema: Não estamos, pois, diante de uma moléstia a ser combatida isoladamente pela ação fulminante de um remédio específico. Não existe um específico para a fome. O que existe são catalisadores capazes de apressar as reações sociais que conduzirão o organismo social à depuração desta impureza e não se pense que julgamos possível resolver o problema da fome universal apenas com a criação de um organismo especializado que viria, num passe de mágica, apagar da fisionomia da nossa civilização este traço negro. Não somos tão ingênuos nem tão otimistas. Sabemos que estão bem fincadas, nas estruturas econômicas do mundo, as raízes desse problema, que só poderá ser extirpado revolvendo-se, profundamente, resíduos dos tempos do feudalismo e da escravidão. É esta ação catalisadora que julgamos indicada para o organismo cuja criação preconizamos: agir como um catalisador que acelere a transformação de um vasto conjunto ou complexo social no qual está indissoluvelmente englobado o fenômeno da fome. Para esta ação catalisadora, precisamos como primeira condição que o nosso organismo possa agir com completa independência das injunções políticas de toda a ordem, que seja um organismo capaz de pautar a sua linha de conduta e a diretriz das suas atividades num plano acima dos interesses particulares de grupos, partidos, governos e blocos de países, no interesse exclusivo da humanidade. A forma indicada, Fundação Internacional, instituição que, sem visar a lucros ou proveitos individuais, concentrasse e coordenasse os esforços de um certo número de indivíduos numa força coletiva, capaz de interferir de maneira construtiva na dinâmica social do mundo. Internacional, pelo seu campo de atuação, mas supranacional no seu comportamento, a Associação Mundial de Luta Contra a Fome – a Ascofam – poderia as- B E R N A R D O M . F E R N A N D E S E C A R L O S W A L T E R P . G O N Ç A L V E S (ORGS.) 49 sim captar o interesse e os recursos postos à disposição de personalidades e instituições realmente preocupadas pela solução de tão grave problema, em todos os países do mundo, sem nenhuma exceção. A Associação terá por fim promover, encorajar e organizar no mundo a luta contra a fome, notadamente despertando, desenvolvendo, apoiando, difundindo, preparando, supervisionando, realizando, direta ou indiretamente, estudos, pesquisas, iniciativas, atividades e ações de natureza a fazer conhecer, diminuir ou eliminar, a fome no mundo, isto sem nenhuma limitação. A palavra fome é tomada aqui no seu sentido mais amplo, compreendendo tanto a fome aguda, como a fome crônica, mesmo oculta, a fome quantitativa como a fome energética e a fome epidêmica, como a fome endêmica. Para realização de suas finalidades, procurará concentrar a sua ação em quatro setores de atividades: 1. atividades visando a sensibilizar e despertar a consciência universal acerca da significação e da expressão social do problema da fome; 2. realização de pesquisas, investigações e inquéritos que permitam o conhecimento integral do problema da fome, de suas causas e efeitos, em diferentes quadros geográficos e dos meios mais eficazes para remover os fatores que intervêm nesta calamidade; 3. formação de pessoal capacitado para as múltiplas tarefas que se impõem aos planos de desenvolvimento das regiões subdesenvolvidas do mundo, onde grassa a fome em massa; 4. elaboração de projetos específicos de âmbito nacional ou regional, visando a incrementar o desenvolvimento econômico e melhorar as condições de vida e de alimentação dos grupos humanos mal alimentados. O homem Cresci ouvindo falar de fome desde a mais tenra idade. A princípio como mera e atenta ouvinte, depois como jovem interessada e finalmente como cientista social, fascinada pelo tema e por suas idéias. Ao longo de minha vida sempre tive grande dificuldade de escrever sobre Josué de Castro, na condição de sua filha. Talvez pela formação 50 JOSUÉ DE CASTRO - VIDA E OBRA como cientista social, que me obrigava a uma visão excessivamente técnica sobre sua obra, ou temerosa de que, invadida pelo sentimento de orgulho, faltasse com a isenção. Entretanto, meu pai sempre me estimulou a escrever. Guardo com imenso carinho os termos de sua carta, datada de 1964, início de seu exílio. 8 de setembro de 1964 Minha filha: Li as duas cartas que você mandou para sua mãe de 1 e de 2 de agosto. Gostei muito do tom das mesmas. Tom de revolta certamente, mas de uma revolta consciente de tudo o que se está passando, das razões que determinam todos os atos de vandalismo de uma reação desesperada por ter sido desmascarada pelo processo social em marcha. Gostei muito de sua disposição de participar do processo, de pagar a sua quota pela emancipação do povo contra o clique dos seus aproveitadores, associados aos parasitas militares. Gostei, também, do seu estado de espírito no que diz respeito a minha situação pessoal e à situação dos meus nas circunstâncias do momento. Estou com você, não só tudo irá passar, mas capitalizaremos a única forma de capital que deve ser acumulado ao máximo – o respeito à dignidade humana. Seremos cada vez mais respeitados. Pelo menos no mundo, onde o respeito que nos votam compensa o desrespeito em que se vive hoje no Brasil, conspurcado e aviltado aos olhos do mundo. Recebi, também, sua carta de parabéns pelo aniversário, a qual me deu grande alegria. Senti você toda nesta carta. Nela você insiste no mesmo ponto, que a vida é para ser vivida com o bom e o mau, mas B E R N A R D O M . F E R N A N D E S E C A R L O S W A L T E R P . G O N Ç A L V E S (ORGS.) sempre com grandeza, nunca com mesquinhez, com coisas pequeninas. Temos, pois, que reagir e a reação se está formando contra o exército de pigmeus, este formigueiro de mediocridade que hoje morde o Brasil em toda a sua pele com um apetite e uma ferocidade de formigas esfomeadas, mas que não passam de formigas – cegas, agitadas, inconscientes do mal que estão fazendo ao país, ao seu povo, ao mundo. Na verdade, considero minha vida atribulada como um fato positivo, não cheia de glórias como você diz. Não as alcancei. Mas alcancei o respeito do mundo e a consagração de algumas de minhas idéias a serviço da humanidade. E, isto já é muito. Por isso tem-se e deve-se pagar um preço. O preço que a imbecilidade brasileira me cobra, pelo menos até hoje, com toda a inflação da moeda e da estupidez militarista, não é caro. E, sobre este aspecto me sinto feliz. O que me contriste, o que me revolta são as notícias que leio de perseguições mesquinhas e miseráveis, onde a mediocridade recalcada se desforra contra os homens de pensamento, de caráter e de coragem que se deram ao serviço da emancipação econômica e social de nosso povo. O Correio da Manhã publica artigos e informações que são de estarrecer. Informações sobre os métodos de tortura que os novos nazistas brasileiros estão usando e que certamente receberiam efusivas congratulações de Hitler e seus seguidores. E, tudo isto feito para nada, na defesa de uma causa perdida: a do reacionarismo feudal brasileiro, apodrecido no clima decadente dos seus privilégios desumanos. É isto que me revolta. Esta agressão vergonhosa con- 51 52 JOSUÉ DE CASTRO - VIDA E OBRA tra a grandeza do povo, humilhado, traído e vilipendiado. Não sei o que fazer à distância para ajudar este povo. Talvez tentar mostrar ao mundo que o Brasil não é apenas um país de vândalos, ineptos e insaciáveis de lucros e de vinganças, mas, também, um país onde há homens que pensam e que sentem como criaturas humanas. Tenho trabalhado muito, mas trabalho útil. O CID (Centro Internacional para o Desenvolvimento) toma forma e consistência. Esta semana, ampliaremos o seu quadro de pessoal e em outubro será o seu lançamento público com a divulgação de documentos de base sobre seus objetivos e sua filosofia de ação. Como decorrência de meu encontro com Robert Oppenheimer nos Estados Unidos e de sua visita ao CID em Paris, nasceu a idéia que me parece extraordinária, de fazer da cidade de Canisy, ora em construção em Deauville, a Universidade Internacional do Desenvolvimento. A idéia foi aceita e trabalho ferozmente nestes planos. Será a primeira Universidade do Desenvolvimento no mundo e conterá um Instituto de Generalização da Ciência e um Instituto de Técnicas da Paz, para promover a reconversão psicossociológica e econômica do mundo de sua estrutura atual de guerra para uma de paz. É qualquer coisa de grande e creio que realizável. Entendi-me com Oppenheimer como com ninguém até hoje. O seu entusiasmo pelas mesmas idéias que defendo é extraordinário. Exprime-se sobre o meu livro com uma admiração que me comove. Esta semana, preparei o anteprojeto da universidade e sexta-feira vou a Genève encontrá-lo para B E R N A R D O M . F E R N A N D E S E C A R L O S W A L T E R P . G O N Ç A L V E S (ORGS.) discutirmos sua viabilidade. Sua dedicação à causa da humanidade faz com que ele se interesse vivamente pelo que se está passando no Brasil, movendo o Congresso da Liberdade pela Cultura para protestar energicamente contra as perseguições que estão sofrendo os intelectuais brasileiros. O seu plano neste sentido me parece extremamente válido e útil ao nosso país. Noutra carta mandarei mais detalhes sobre os projetos para o Brasil e para o mundo, concebidos com Oppenheimer. Em sua carta você diz que vive sem planos e sem projetos. Tem um apenas: o de vir à Europa no ano que vem para estarmos juntos. Isto será bom, mas isto é muito pouco. Você precisa ao lado deste projeto bem fácil de realizar, ter outros projetos maiores e mais difíceis de alcançar. Se até setembro do ano que vem não estivermos ainda aí, num país já libertado da bota nazista, bem antes, com o desenvolvimento e crescimento naturais do que estamos criando na Europa, todos vocês da família virão certamente para cá, para me ajudarem pelo menos por algum tempo, neste enorme projeto em execução. O que eu quero nesta carta é sugerir-lhe um projeto seu. Um projeto para dar sentido à sua vida nos próximos anos. É o seguinte: lendo suas cartas sinto a força que você dá a tudo o que escreve. Uma grande força afirmativa, uma violência de expressão que convence. E, isto constitui qualidades de escritor. Por que não experimentar, por que não tentar, por que não triunfar? Aproveite estas qualidades espontâneas, procure aperfeiçoar outras no próprio treino de escrever e faça um plano de ser 53 54 JOSUÉ DE CASTRO - VIDA E OBRA escritora (…) Para você escrever a História do Golpe de Estado brasileiro, com um prefácio de Josué de Castro. (…) Mande dizer o que acha do projeto e, principalmente, quando começa seu novo trabalho. Passei um bom aniversário. Recebi sua carta, trabalhei no CID de 9 da manhã às 8 da noite e neste dia fiz o anteprojeto da Universidade do Desenvolvimento. Dia bom e produtivo. Como você vê se nem tudo é bom, tudo é grande: em matéria de amigos, de projetos, de sonhos. A vida é isto. Lembranças ao Célio, beijos no Márcio e um aperto de mão na futura colega escritora, Do seu colega e pai Josué Alimento, ainda hoje, passados muitos anos, uma profunda e sentida sensação de tristeza quando recordo o homem afetuoso com quem convivi, e o cientista incansável a quem admirei em razão de suas claras e entusiasmadas explanações feitas, quase todas as noites, em torno da mesa em que realizávamos nossas refeições. Discorria sobre suas descobertas, sobre suas propostas que poderiam solucionar, se implementadas, parte dos problemas mais agudos da sociedade. Foi por intermédio de suas palavras que pude reconhecer o quanto é difícil viver neste mundo de homens que são capazes de criar infinitas belezas, capazes tecnicamente de controlar a natureza, capazes de cantar a paz, mas, também, diversamente de outros animais que só atacam para saciar a fome, praticar atrocidades inomináveis contra seus semelhantes. São capazes de aprisionar, torturar e escravizar outros homens, produzir alimentos e não distribuí-los para todos, romper com o equilíbrio ecológico, poluir rios e mares, destruir florestas, gerando a desigualdade, aumentando a pobreza, e tudo em busca de mais riqueza. Até hoje, apesar dos anos, qualquer trabalho que realizo sobre meu pai é muito dolorido, ainda mais quando trabalho, também, B E R N A R D O M . F E R N A N D E S E C A R L O S W A L T E R P . G O N Ç A L V E S (ORGS.) 55 com suas fotografias. Mas, trabalhos como este me entusiasmam, sobretudo, tendo em vista o público a que se destina. Josué de Castro sempre acreditou que era possível modificar a realidade de nosso país e para isto semeou todas as suas idéias sobre as causas da fome, da miséria, do subdesenvolvimento e apresentou suas propostas para modificar esta realidade tão bem retratada em seus livros. A história da humanidade tem demonstrado que, na maioria das vezes, os que semeiam propostas de mudança nem sempre colhem o fruto. Josué semeou o suficiente para que possamos colher os frutos de um Brasil mais justo e igualitário. Josué de Castro morreu em um país distante, a França, em 1973. Tinha 65 anos e não podia voltar ao seu país porque não recebeu o visto necessário. Assim eram tratados os brasileiros exilados pela ditadura militar. Hoje, mais de 30 anos depois de sua morte, seu pensamento continua atual. Acreditamos que ainda é possível fazer nascer na nossa sociedade um novo tipo de homem capaz de “ousar pensar, ousar refletir e de ousar passar à ação” e, assim, realizar seu sonho de um verdadeiro desenvolvimento humano e equilibrado. Meio ambiente – entrevista com Josué de Castro O professor Josué de Castro, conhecido principalmente como presidente do Conselho da FAO (Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura) de 1952 a 1955, e como autor de várias obras sobre os problemas dos países em vias de desenvolvimento (Geopolítica da Fome foi traduzido em 25 idiomas), muitas vezes afirmou suas convicções mundialistas. Ademais, ele foi o primeiro delegado eleito por um corpo transnacional de eleitores “cidadãos do mundo” que, assim, lançaram as bases do futuro “Congresso dos Povos”. Nossos amigos mundialistas da equipe “Mundo Unido” o entrevistaram algum tempo após a Conferência de Estocolmo (junho de 1972), conferência esta durante a qual os representantes dos países membros das Nações Unidas chegaram a um acordo sobre os problemas do meio ambiente. 56 JOSUÉ DE CASTRO - VIDA E OBRA Suas respostas mostram claramente que certas tarefas que se impõem não poderão ser levadas a bom termo se não reinventarmos o internacionalismo. “A Conferência de Estocolmo”, diz ele, “foi a reunião de Estados soberanos e poluidores”. Mundo Unido – Em poucos anos, os problemas ambientais se colocaram à frente da atualidade. De todos os lados, anunciam-se catástrofes a curto prazo se o homem perseverar em sua imprevidência. Será preciso aceitar com toda seriedade esses avisos ou considerar que eles correspondem a uma nova moda? Josué de Castro – Sim, o problema está muito em moda. Há 10 anos, a ecologia era apenas assunto de especialistas. Atualmente, a questão da poluição, da contaminação do ambiente natural e dos seus perigos para o homem está em toda parte. Mas, se lhes digo que a ecologia está em moda, não acreditem que considero a moda como uma coisa fútil! Imagina-se, injustamente, que ela corresponde a escolhas arbitrárias. Ao contrário, é uma manifestação cujas raízes são profundas e que é orientada por fenômenos fundamentais. A moda traduz o inconsciente coletivo e só se impõe quando recebe o apoio das massas. Quanto à ecologia e aos problemas da poluição, pode-se efetivamente constatar que a paixão excessiva não tem nada de superficial e que os problemas assumem a maior gravidade. Por quê? Há milhões de anos, quando o primeiro ser vivo se alimentou e excretou os resíduos da sua alimentação, o ambiente natural começou a ser conspurcado: onde existe vida, sempre há poluição. Certamente, os vegetais desempenham mais um papel de construtores na natureza, porém, os animais são destruidores. E entre eles, o homem é o mais destruidor. Entretanto, quando os homens eram pouco numerosos, eles podiam dar-se ao luxo de agredir a natureza; eles podiam, movidos por um instinto natural, transformar seu meio ambiente para construir, arrumar, melhorar seu “nicho”, como se diz no jargão ecológico. B E R N A R D O M . F E R N A N D E S E C A R L O S W A L T E R P . G O N Ç A L V E S (ORGS.) 57 Desde então, as populações têm-se multiplicado (várias vezes no decorrer dos dois últimos séculos); elas se concentram em cidades gigantescas, sua capacidade de consumo aumentou e se estendeu a produtos novos, de modo que os resíduos do consumo de massa são lançados no ambiente natural, os quais contaminam, degradam e poluem em proporções até então desconhecidas. Foi a partir da segunda revolução industrial que o Homem se tornou um agente poluidor incomparável e perigoso para sua própria existência. Ele tem cometido tantas agressões à natureza que desencadeou uma espécie de revolta da natureza contra ele. E, agora, ele está ameaçado. É evidente que o que chamamos de ambiente natural, o meio ambiente, a biosfera, é dotado de elasticidade e tem podido suportar sem desastres muitas mudanças provocadas pelo homem. Contudo, a elasticidade do ambiente natural tem limites – o que chamamos de “limites de nocividade” – além dos quais o impacto do homem sobre a natureza é negativo e perigoso. Ora, as radiações atômicas, a fumaça das usinas e dos meios de transporte, o barulho, o consumo abusivo, o desperdício de matérias-primas não renováveis, conduzem nossa geração ao limiar dos prejuízos globais. Este drama é a característica de uma civilização frenética, a civilização ocidental que, em seu culto da produção e do lucro, não tomou cuidado nem com o meio ambiente nem com o homem. Na civilização do lucro, isto é, na civilização mais poluidora do mundo, a poluição não tem sido levada em conta porque se admitia que a natureza seria sempre capaz de restabelecer os equilíbrios ameaçados. Atualmente sabemos que não é assim, que rupturas nos ecossistemas podem acontecer e que essas rupturas podem ser fatais. Por exemplo, quem fala em “guerra atômica” fala em suicídio da humanidade porque, neste caso, a natureza é incapaz de restabelecer um nível de radiação compatível com a vida humana. Tendo ultrapassado de maneira irreversível o limiar da nocividade, os homens – mesmo os que não tenham sido atingidos pelo calor ou pelo impacto direto da bomba morrerão todos sob os efeitos da ação letal das radiações atômicas. Admitindo-se que alguns sobrevivam, 58 JOSUÉ DE CASTRO - VIDA E OBRA estes não serão mais que monstros ou, em virtude das mutações que surgirão, pais de monstros. É inevitável que eu apresente um quadro da situação de um pessimismo negro. Contudo, apresso-me a acrescentar que, se o perigo é sério, a ameaça que pesa sobre nós é apenas latente. E, se afastarmos a hipótese do conflito atômico, pode-se considerar que essa elasticidade da natureza de que lhes falei há pouco, ainda está muito longe de estar totalmente ameaçada. A hipótese de um desaparecimento do homem, da civilização, não passa de uma hipótese remota. Mundo Unido – Devemos deduzir que o Terceiro Mundo tem de preocupar-se com coisas mais urgentes do que a poluição? Josué de Castro – A poluição é uma doença universal que interessa a toda humanidade, mas existem tipos de poluição diferentes no mundo inteiro. Os países ricos conhecem a poluição direta, física, material, a do ambiente natural. Os países subdesenvolvidos são presas da fome, da miséria, das doenças de massa, do analfabetismo. O Homem do Terceiro Mundo conhece essa forma de poluição chamada “subdesenvolvimento”. E devo dizer que esta é a forma mais grave, mais terrível de todas. Os países do Terceiro Mundo vivem numa economia de dependência. Todos eles são produtores de matérias-primas e de produtos básicos exportados para os países industrializados. Os Estados Unidos, por exemplo, consomem 75% de toda a produção do continente latino-americano. Como os preços dos produtos industrializados sobem continuamente e o distanciamento entre esses preços e os preços irrisórios dos produtos básicos se acentua cada vez mais a cada dia que passa, um abismo cada vez maior separa os pobres dos ricos. A riqueza dos trabalhadores norte-americanos só existe graças à exploração dos trabalhadores e camponeses dos países em vias de desenvolvimento, graças às condições miseráveis e desumanas em que estes são mantidos. É evidente que o estatuto colonial foi praticamente abolido em toda parte, mas a economia do tipo colonial permanece viva. B E R N A R D O M . F E R N A N D E S E C A R L O S W A L T E R P . G O N Ç A L V E S (ORGS.) 59 Insisto na necessidade de esclarecer bem esta natureza do subdesenvolvimento. Não se trata de uma simples ausência ou insuficiência de desenvolvimento. Não: é um produto – um produto negativo – do próprio desenvolvimento. O desenvolvimento traz consigo, de um lado, suas riquezas, suas novas fabricações e, de outro, seus dejetos. O Terceiro Mundo está no lado dos dejetos. Eis porque os países subdesenvolvidos estão essencialmente preocupados com os problemas ambientais e da poluição. Eles estão preocupados porque o subdesenvolvimento que sofrem é a secreção de um tipo de desenvolvimento, concebido sem respeito pela natureza e no qual o homem não passa de um instrumento da produção. Mundo Unido – O próprio Ocidente não acaba de contestar seu tipo de desenvolvimento quando o “Clube de Roma” se apóia nos relatórios do Instituto de Tecnologia de Massachussetts (MIT) para denunciar os malefícios do crescimento? Josué de Castro – Veja bem! Não estou totalmente de acordo com os que fazem declarações apocalípticas do gênero: “... Estamos correndo tal perigo de morte, totalmente ameaçados pela técnica, em suma, pelo ‘desenvolvimento’, que devemos detê-lo imediatamente”. É mais ou menos isto que diz o grupo de Roma, que prescreve a interrupção do crescimento sob pena de catástrofe. Evidentemente, o relatório do MIT sobre os limites do crescimento tem uma função ao sensibilizar a opinião. Ele teve grande sucesso, pode-se perceber isto, sobretudo depois da Conferência de Estocolmo sobre o meio ambiente. Populações inteiras se alarmaram. Nos lugares onde a indiferença era a regra, cada um começou a sentir-se ameaçado e, portanto, preocupado. Isto é muito positivo. Em compensação, ao nível do seu significado global, o documento é falso. O MIT constitui um modelo matemático abstrato no qual cinco parâmetros foram levados em conta como fatores fundamentais do crescimento: 1. os recursos naturais; 2. a produção agrícola; 3. a produção industrial; 4. o crescimento demográfico; 5. a poluição. 60 JOSUÉ DE CASTRO - VIDA E OBRA Alimentou-se o computador com dados sobre esses cinco fatores e sobre as relações que podiam existir sobre eles... E ele levou o MIT a tirar conclusões falsas! Por quê? Porque, em toda essa pesquisa, não se fez uma única referência às estruturas sociais, econômicas e políticas. Os fatores anunciados pelo MIT foram estruturados como se suas relações e suas variações fossem indiferentes a essas estruturas. Entretanto, no momento em que estas mudam, tudo muda na evolução das diferentes variáveis. Por conseguinte, o MIT utilizou como tema de estudo um mundo petrificado, fossilizado. Partindo disso, ele só pode dedicar-se a projeções lineares e ingênuas, nas quais a realidade da vida em sociedade está ausente. O mundo real, este, é um mundo de fases de descontinuidades – de descontinuidades nos fatores estruturais, com todas as mudanças de ritmos delas decorrentes em todos os domínios. O mais espantoso neste caso é a segurança com que os criadores desse modelo artificial e falso escrevem sem rodeios: “Nosso modelo é o único modelo à luz dos nossos conhecimentos atuais”. Modelo único é também a afirmação de uma solução única para o futuro: aí está a segunda falha que se deve assinalar. Todos nós que nos dedicamos a este exercício delicado que é a futurologia, sabemos muito bem que não existe apenas um futuro. Existe todo um leque de possíveis futuros, entre os quais podemos apenas escolher o mais favorável aos nossos desejos. O futuro que se imagina espontaneamente nos Estados Unidos é o que deixa intacto o sistema de domínio econômico do mundo. Alhures, no Oriente, na China, por exemplo, esse futuro poderia ser o de uma integração mais perfeita do homem na natureza. Seja ele definido com ou sem o recurso aos computadores, o futuro desejado pelo homem oriental harmonioso estará, portanto, em contradição com o futuro desejado pelo homem faustiano do Ocidente. Em suma, estou de acordo com a consideração que os tipos atuais de desenvolvimento ameaçam a civilização, a vida do homem, o planeta, e se aprovo o Clube de Paris por ter posto estes problemas em B E R N A R D O M . F E R N A N D E S E C A R L O S W A L T E R P . G O N Ç A L V E S (ORGS.) 61 evidência, em compensação, rejeito todas as conclusões extraídas de modelos artificiais e abstratos. Não creio que se tenha o direito de prescrever a interrupção do crescimento. Querer uma economia sem expansão, uma economia morta... para um mundo do qual dois terços da população estão muito longe do mínimo necessário à vida, mas isto seria um absurdo! Ademais – vimos isso em Estocolmo – os representantes do Terceiro Mundo só podem contestar violentamente essas prescrições. Para eles, o crescimento é, por excelência, a esperança de poder sair da fome e da miséria. Mundo Unido – Por mais compreensíveis que sejam essas reações do Terceiro Mundo, não contém elas uma certa ambigüidade? Josué de Castro – É verdade que a tomada de consciência de certo número de países é mais emocional do que racional e que eles agem, antes de tudo por instinto de autodefesa. Até então, eles ainda não estavam totalmente marginalizados: se lhes concedia uma ajuda, aliás notoriamente insuficiente. Agora, eles temem que se lhes venha a dizer “a ajuda terminou, pois vocês não precisam mais buscar o crescimento”. É como se se dissesse a uma criança que está crescendo: “Permaneça criança por toda a vida”. Para ela, isto seria o desespero. De qualquer maneira, esta ordem de interromper o crescimento é muito inquietante, pois como se poderia aplicá-la nos países em plena expansão? O desenvolvimento, onde existe, não se interrompe de repente como que por um passe de mágica. Portanto, receia-se que sejam as economias já estagnadas do Terceiro Mundo, as que, bem ou mal, haviam escapado do “crescimento zero”, que monopolizavam a operação. Por último, é evidente que os mercados dos países em vias de desenvolvimento estão ameaçados se os países com civilização técnica se puserem a desenvolver uma produção de reciclagem, isto é, de reutilização de velhos materiais. Temos, então, um impasse. E os países pobres têm razões muito sérias de se inquietarem quando se formulam regras para uso dos países desenvolvidos sem se preocupar 62 JOSUÉ DE CASTRO - VIDA E OBRA com os outros, ao passo que os problemas ambientais e da poluição – expliquei isto há pouco – são realmente problemas universais. Para enfrentar essa situação e para que cada um crie seu tipo de desenvolvimento, que devem fazer os países do Terceiro Mundo? Eles devem dedicar uma parte da renda nacional à pesquisa, não apenas pesquisa técnica, mas também pesquisa sociológica, a que permitiria encontrar as estruturas sociais, econômicas e políticas que seriam implantadas neles. Não parece que o que chamamos de “uma democracia liberal” imitada dos Estados Unidos seja o que mais lhes convém neste momento. A democracia é uma palavra sem sentido quando em qualquer país do mundo, seja ele qual for, uma minoria ínfima de cidadãos participa realmente da elaboração e da tomada de decisões. No Brasil, por exemplo, essa minoria não passa de 2% da população. Portanto, é preciso buscar novas formas de estruturas políticas, e essas pesquisas para o Terceiro Mundo só podem ser realizadas por eles próprios. Se os países ricos devem contribuir com sua ajuda, que não seja mais, em todo caso, pelo envio de especialistas para os países subdesenvolvidos, mas que ignorem toda a realidade dos países pobres! É preciso que a pesquisa vise ao essencial, isto é, aos problemas humanos, e que, quanto aos fatores de produção, na maioria das vezes, volte-se primeiramente para a terra. Realmente, nada será possível, num país agrícola como o Brasil, por exemplo, enquanto 80% da terra pertencer a 5% da população. Mundo Unido – O senhor criticou a civilização da produção frenética e do lucro como civilização poluidora por excelência, mas, ao mesmo tempo, recusa toda a interrupção do crescimento. Josué de Castro – Não há contradição nisso. Atualmente, o que se torna mais importante é a qualidade da vida, a qualidade do meio ambiente, mas se pode aumentar a produção, contanto que seja com técnicas não poluidoras. Até aqui elas não foram utilizadas, por obsessão dos lucros e dos preços competitivos. Neste aspecto, multiplicam-se os produtos inúteis, procurou-se estimular o consumo para B E R N A R D O M . F E R N A N D E S E C A R L O S W A L T E R P . G O N Ç A L V E S (ORGS.) 63 além das necessidades reais, mas, em compensação, descuidou-se das necessidades essenciais. Nos Estados Unidos, podemos ler à entrada de um supermercado: “se você não sabe o que quer, entre, nós o temos”. Não obstante, nesse país, o mais rico do mundo, existem 20 milhões de famintos e 50 milhões de subnutridos, não obstante a caridade organizada (mal organizada) pelo Estado. Eis porque é preciso, ao mesmo tempo, rejeitar a idéia de uma interrupção do crescimento enquanto houver necessidades de satisfazer e, ao mesmo tempo, rejeitar um tipo de desenvolvimento sem objetivo (exceto o do lucro) e modos de produção que poluem e degradam a vida e o meio ambiente. Mundo Unido – Ouvindo-o comentar o relatório do MIT, este ponto de vista, sem se confundir com o de Sicco Mansholt, não parece tão distante assim. O fracasso do controle de natalidade. Josué de Castro – Na verdade, creio que Mansholt tem uma visão mais matizada e mais realista que os autores do documento do MIT exceto num ponto: ele é dos que ficam estupefatos com o crescimento da população e querem detê-lo a qualquer preço. Ora, para deter a explosão demográfica, a pior das soluções seria interromper a produção. Ao contrário, a educação e a formação humana são os únicos meios válidos que exigem uma economia viva, ativa. Não é com engenhocas ou pílulas que se interromperá o crescimento da população no Terceiro Mundo. Não se inocula desse modo, nas civilizações tradicionais, uma característica isolada de um tipo de civilização técnica, que, por ser isolada, não serve para associar-se às características dessas civilizações tradicionais. O controle de natalidade que se queria impor dessa maneira, nos lugares onde a civilização, as culturas, não podem aceitá-lo, se transformaria em qualquer coisa de abominável que revoltaria a população. Mundo Unido – Pode-se afirmar que as tentativas de controle de natalidade têm sido ineficazes em todo o Terceiro Mundo? 64 JOSUÉ DE CASTRO - VIDA E OBRA Josué de Castro – Estou convencido disso. Vejam o caso da Índia. É o país por excelência, onde se depositou suas esperanças num controle da natalidade e onde o governo, querendo sair de uma situação dramática, despendeu muito dinheiro. Com que resultado? A Sra. Indira Gandhi o anunciou na Conferência de Estocolmo declarando: “Não esperem a solução do problema demográfico pelo controle da natalidade”. O fracasso se deve ao fato de que os métodos empregados não podem ser aplicados às massas de populações enormes. Com muitos esforços, se submeteu ao controle um milhão de mulheres da Índia, ao passo que elas são 200 ou 250 milhões. Não se pode impor uma idéia desse modo. Seria preciso mudar a tradição, o estilo de vida, as estruturas. Mundo Unido – Da sua viagem a Estocolmo, por ocasião da Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e das conferências concomitantes realizadas por diversas organizações não governamentais, o senhor observou o sentimento de que medidas eficazes seriam tomadas para conter a deterioração ambiental? Josué de Castro – Como a poluição é um problema universal, seria bom discuti-lo em âmbito internacional. Na verdade, as poluições dificilmente podem ser combatidas por regulamentações nacionais. Se um país tiver a coragem de aplicar sozinho toda a regulamentação necessária, sua produção logo cessaria de escoar-se a preços competitivos e ele logo iria à falência. É preciso obter uma regulamentação em escala mundial. Então, os delegados da conferência de Estocolmo atacaram o problema... mas, veja bem, não o resolveram. E, sobre questões essenciais – a guerra e os armamentos, entre outras – as discussões andaram em círculos, como era de se prever. Todos nós sabemos que o melhor que se pode obter de um quadro assim é uma boa recomendação que cada país, depois, tem a liberdade de adotar ou não. Para dominar realmente o problema do meio ambiente, seria preciso, além de uma ampla consulta geral indispensável, a autorida- B E R N A R D O M . F E R N A N D E S E C A R L O S W A L T E R P . G O N Ç A L V E S (ORGS.) 65 de de um “governo mundial”, ou, se a expressão o incomoda, de uma instância planetária soberana a ser definida. Apesar de tudo, na falta desta, é preciso tomar medidas indispensáveis. Ou poder-se-ia frear seriamente a poluição se, neste campo, a ONU votasse uma resolução que limitasse a soberania nacional. De resto, a revisão da Carta de São Francisco está na ordem do dia da próxima assembléia das Nações Unidas na qual é preciso esperar que pelo menos se reflita sobre o direito de veto das grandes potências, o que constitui uma espécie de desafio a todos os outros países. Mundo Unido – Podemos realmente reacender a esperança de vermos a ONU iniciar uma mudança, ainda que pequena, no domínio sacrossanto da soberania dos Estados? Josué de Castro – Acalento essa esperança. Leibnitz dizia que “nada acontece sem razão suficiente”, mas hoje a poluição constitui essa razão suficiente para que finalmente o mundial obtenha suas primeiras vitórias sobre o nacional. Terre Entière – Numero Double, Spet. – 1972. (Entrevista feita por Jean Prédine e Roger Wellhoff ). Tradução – Anna Maria de Castro. Depoimentos Lord John Boyd Orr (Prêmio Nobel da Paz) Ex-Reitor da Universidade de Glasgow Ex-Diretor Geral da FAO Fome e Política (1951) O professor Josué de Castro bem poderia ter dado ao seu livro de alcance mundial Geopolítica da Fome, o título de “Fome e política” porque, nesta obra, surgem perspectivas políticas de primeira grandeza. Mas, como salienta o próprio autor, sempre foi considerado pouco conveniente, entre os povos bem alimentados, discutir-se a 66 JOSUÉ DE CASTRO - VIDA E OBRA fome dos menos afortunados – fome que nunca foi assunto muito popular em matéria de política. E, no entanto, a fome tem sido, através dos tempos, a mais perigosa das forças políticas. Foi a fome que precipitou a Revolução Francesa. Uma multidão de mulheres dos cortiços de Paris marchou até a sede do Parlamento, bradando por pão. Os políticos fugiram. As mulheres, com suas hostes reforçadas pelos homens, rumaram para a Bastilha. A queda da Bastilha foi o golpe de morte contra o sistema feudal na França, iniciando uma nova era. Na atual crise mundial, um livro como a Geopolítica da Fome é de vital importância. Se os políticos de todas as nações do mundo pudessem esquecer por um momento os seus conflitos políticos e lessem Geopolítica da Fome, sem idéias preconcebidas, adquiririam certamente uma visão mais sadia dos problemas universais e teriam, assim, maior possibilidade de salvar nossa civilização de perecer numa terceira guerra mundial. (…) A palavra “fome”, usada pelo autor, precisa ser bem definida. No passado, empregava-se a palavra “fome” para exprimir a falta de alimentos para a satisfação do apetite e o número de mortos pela fome restringia-se então aos indivíduos esquálidos que morriam por completa inanição. Josué de Castro, porém, usa essa palavra no seu sentido moderno, no sentido da falta de quaisquer dos 40 ou mais elementos nutritivos indispensáveis à manutenção da saúde. A falta de qualquer deles ocasiona morte prematura, embora não acarrete, necessariamente, a inanição por falta absoluta de alimento. A carência total de alimento, tal como se verifica nas épocas de fome em massa, sempre constituiu uma causa importante de mortalidade. Mesmo nos últimos tempos, a fome tem matado mais gente do que a própria guerra. Mas o número dos que assim morrem ainda é pequeno, em comparação com os que vivem num regime alimentar inadequado para manter a saúde e que, por isso mesmo, sofrem, em maior ou menor grau, de doenças da nutrição. Dando-se à palavra “fome” essa acepção, de acordo com as estimativas feitas antes da guerra, dois terços da população do mundo vivem em regime de fome (…) B E R N A R D O M . F E R N A N D E S E C A R L O S W A L T E R P . G O N Ç A L V E S (ORGS.) 67 Pode a Terra fornecer alimentos num nível satisfatório para essa população assim aumentada? O autor cita fatos bem comprovados, demonstrando não haver dificuldade de ordem física para dobrar-se ou redobrar-se o abastecimento de alimentos do mundo. Olívio Montenegro Escritor e crítico literário O Sentido Humano da Obra de Josué de Castro (1958) Em Josué de Castro o escritor deu sempre o melhor relevo ao homem de ciência que nunca deixou de ser. Geografia da Fome e Geopolítica da Fome foram, sem dúvida, nos últimos tempos, os dois livros brasileiros mais traduzidos nos países do velho e do novo continente. Em ambos, essas obras conquistaram, quer nos Estados Unidos, quer na Rússia, prêmios magníficos, que constituíram, para o seu autor, título de uma excepcional consagração e que tanto havia de dar um luminoso relevo aos seus 50 anos de idade com grande parcela de trabalhos a serviço do homem, deste ou de outros continentes. A crítica estrangeira, na sua maior parte, foi de louvor, de rasgado louvor à obra deste ainda moço cientista brasileiro (…) No livro Geografia da Fome, o que sobretudo nos mostra o autor é o cemitério enorme, essa desolação infernal em que o egoísmo do homem ameaça transformar toda a natureza física do mundo. E daí, certamente, a nova e estranha geografia, chamada da fome, que abarca quase todo o globo terrestre, e que vemos agora, depois de minuciosamente estudada por Josué de Castro, ser objeto de interesse nos quatro cantos do mundo. Um dos quadros que o autor pinta em cores de um pungente, mas justo realismo é o da vida da Amazônia no Brasil. Um quadro trágico. Mas o autor revela-se de uma segurança admirável quando chega o momento de apontar os meios racionais, os meios práticos de reduzir a um mínimo de sacrifícios os horrores da tragédia amazônica, senão mesmo de transformar essa tragédia num maravilhoso surto de vida. 68 JOSUÉ DE CASTRO - VIDA E OBRA Não são impossíveis aos homens esses meios, ainda que requeiram um vigoroso programa: “Os melhoramentos – diz o autor – das condições alimentares regionais exigem todo um programa de transformações econômicas e sociais. As soluções dos aspectos parciais do problema estão ligadas à solução geral de um método de colonização adequada. Sem alimentação suficiente, a Amazônia será sempre um deserto demográfico”. É que, na Amazônia, como bem acrescenta ainda o autor: “as águas e a floresta é como se tivessem feito um pacto ecológico para se apossar de todas as riquezas da região”. Um traço simpático dos livros do Sr. Josué de Castro é o de que, embora sendo de especialização, o leitor nem por isto está menos à vontade dentro deles, sem passar a todo instante, em face de nomes agressivamente técnicos, pelo vexame de sentir-se mais ignorante do que convém à sua humildade cristã. Porque, em geral, um dos vícios mais comuns dos nossos livros de ciência é serem eruditos demais, de um saber muito pesado nas palavras ainda que muito leve no espírito que os conduz, como se fosse uma ciência menos para instruir do que para “espichar” o leitor… Nos livros de Josué de Castro negue-se o que quiser, menos, porém essa sensibilidade humana que os penetra como uma flama generosa, exaltando em dramática realidade o problema da fome no Brasil e no mundo. O crítico de La revue des auteurs et des livres marca bem essa força humana da obra de Josué de Castro quando põe em alto relevo o que nela existe “de um humanismo superior ao humanismo da maioria dos romances (caso da Geografia da Fome) por isto mesmo que se trata aqui de uma humanidade mais verdadeira”. E não é esta uma opinião isolada. Este sentido humano da obra de Josué de Castro é, da mesma maneira, exaltado por vários outros críticos franceses que se ocuparam deste escritor. Compreende-se, daí, que esses livros tenham sido traduzidos em várias línguas – no francês, tanto como no espanhol, no polonês, no sueco. E este poder enorme de comunicação decerto que vem menos do temperamento científico da obra que do temperamento humano do autor. B E R N A R D O M . F E R N A N D E S E C A R L O S W A L T E R P . G O N Ç A L V E S (ORGS.) 69 Max Sorre Professor da Universidade de Sorbonne, Paris, França A Fome sem o Véu Discreto da Fantasia (1953) Em seu livro Geopolítica da Fome, o professor Josué de Castro apresenta um dos aspectos mais prementes, e sem dúvida, o mais trágico desta geografia da alimentação que é o capitulo inicial de toda a geografia humana. Realmente, a importância de tais problemas não era desconhecida dos entendidos do assunto. Existe muito de humanidade profunda na obra de um E. Réclus ou de um Vidal de La Blache, para que não se tivesse deles uma clara consciência. Na verdade, nossos antigos mestres não estavam enganados a respeito dos tabus que Josué de Castro denuncia. Todavia, ele tem muita razão quando afirma que o comum dos geógrafos, e, principalmente, o comum dos homens, preferia nada dizer a propósito desse assunto. E muitos há que lançavam um véu discreto sobre essas feias perspectivas. Eis que, apesar disso, nós, civilizados, vimos levantar-se, à nossa frente, o espectro horrível da fome. Coisa que não se imaginaria há 20 anos passados: temos tido fome como nossos avós tiveram fome. Os quadros mais sombrios, os quais estávamos inclinados a não encontrar senão na literatura, retomaram, a nossos olhos, cor e realidade. Viram os médicos o aparecimento, nos hospitais da Europa ocidental, de moléstias estranhas, cujas causas mal conheciam. Não foi preciso menos para que uma verdade elementar se tornasse, enfim, sensível: as necessidades alimentares jamais foram satisfeitas de um modo permanente, senão para uma pequeníssima parte da humanidade. Os demais têm vivido de maneira precária, à margem da subalimentação. Enquanto as grandes fomes flagelavam regiões que são como que as terras clássicas da fome, a ameaça da escassez periódica rondava em torno de numerosos grupos, e a ação insidiosa dos desequilíbrios dos regimes e das carências atingia profundamente os outros em sua vitalidade. Datam apenas de ontem nossos conhecimentos sobre as moléstias de carência – o que vale dizer, sobre as formas menos espetaculares, porém não menos perigosas, duma certa espécie de fome. 70 JOSUÉ DE CASTRO - VIDA E OBRA O livro de Josué de Castro, em que são estudadas, em seu quadro geográfico, as insuficiências de alimentação dos grupos humanos vem, de certo modo, ao encontro de várias ordens de preocupações. Primeiro, uma angústia despertada em todas as almas pela lembrança de misérias recentes e pela consciência que temos, agora, de sua persistência em várias regiões. Depois, o sentimento de uma contradição entre duas séries de fatos, o crescimento demográfico atual da espécie humana e a possibilidade de aceleração deste crescimento pela generalização das observâncias higiênicas, dum lado, e de outro lado, o balanço dos recursos alimentares. A velha fórmula de Malthus já não é aceitável, mas a inquietação que a inspira ainda perdura. Enfim, os progressos da fisiologia da alimentação orientaram para esses problemas todos aqueles que, a um título ou outro, se têm interessado pela ecologia humana. Seja permitido dizer que este é o meu caso. O movimento natural do pensamento do ecologista o conduz para o estudo das condições de nutrição dos grupos humanos no seu quadro geográfico, independentemente de toda preocupação de atualidade. A convergência destas três linhas de pensamento é sensível no livro de Josué de Castro. Médico e geógrafo especializado, tem ele contribuído pessoalmente nas atividades da Organização das Nações Unidas, no setor de alimentação e agricultura (FAO), de cujo Conselho é hoje o presidente. Sua colaboração nessa grande obra internacional permitiu-lhe avaliar com maior exatidão a significação universal e a importância do problema da alimentação. Primaciais, do ponto de vista científico, são esses problemas, de imenso alcance para a política geral da humanidade. (…) Os neomalthusianos oferecem soluções pessimistas do problema da alimentação. O livro de Josué de Castro é um extenso requisitório, apaixonante e apaixonado, contra essas doutrinas que humilham a humanidade. Ele aponta os erros dos homens, o espírito de ganância, a imprevidência, como responsáveis por todo o mal. Constitui, ainda, esse livro um libelo contra os malefícios do imperialismo e do colonialismo – libelo constantemente justificado. (…) Ter-se-á o direito de censurar Josué de Castro por B E R N A R D O M . F E R N A N D E S E C A R L O S W A L T E R P . G O N Ç A L V E S (ORGS.) 71 falar tão acaloradamente sobre temas que são fundamentais para a humanidade? Eu, por mim, julgo que ele realizou um trabalho benéfico, insistindo, com uma força persuasiva, sobre a gravidade da situação. Seja de quem for o acervo de responsabilidade e de culpas, é salutar que nos defrontemos com esses problemas. E a própria veemência de Josué de Castro aproveitará o seu desígnio, que é forçar a atenção dos indiferentes sobre este paradoxo mortal: a humanidade, em sua grande massa, à margem da subalimentação, sofrendo fome, ao passo que as técnicas modernas de produção, aplicadas aos solos disponíveis, permitiriam, não só que todos os homens tivessem o que comer, de modo suficiente, como também afastariam, por algum tempo, ao menos, a inquietação que traz o crescimento das populações. E se digo “por algum tempo” é para não prejulgar a solução de um problema atualmente teórico, que, entretanto, não se suprime com o negar. Somos homens e vivemos no tempo. É preciso desfazermo-nos de fantasmas. Urge crermos em nós mesmos e em nossa própria capacidade. Não preciso seguir toda a argumentação de Josué de Castro contra os neomalthusianos, para subscrever sua conclusão: “O caminho exato da sobrevivência está ainda ao alcance do homem. Ele é marcado pela confiança que deve sentir em sua própria força”. É a verdadeira linguagem de um homem. Russel Lord Escritor e jornalista, Nova York, Estados Unidos Não Há Necessidade de Malthusianismo (1958) O Dr. Josué de Castro, fundador do Instituto de Nutrição da Universidade do Brasil, na sua vibrante réplica aos neomalthusianos, escolheu William Vogt, cujo Road to survival (Caminho da sobrevivência), foi publicado em 1948, como seu principal antagonista. Ele apresenta provas, das quais algumas são novas, para demonstrar que embora 2/3 da humanidade sofram fome, no momento atual, este regime de fome e desnutrição não pertence à categoria dos incuráveis ou inevitáveis. 72 JOSUÉ DE CASTRO - VIDA E OBRA Ao contrário: “o mundo possui à sua disposição bastante recursos para providenciar uma dieta adequada para cada um e em cada lugar(…) O caminho da sobrevivência não se encontra nas prescrições do neomalthusianismo de eliminação da população supérflua, nem no controle da natalidade. Estas concepções derrotistas e desintegradoras mostram o caminho da morte, das revoluções e das guerras – o caminho da perdição”. William Vogt quando escreveu seu livro estava chefiando a parte conservadora da União Panamericana. Ele advogou a ajuda, segundo o Plano Marshall, somente aos países inclinados a adotar o sistema de controle de nascimentos. No momento atual, ele está chefiando a liga da Paternidade Planejada, com sede em Nova York. Além dos católicos, outras pessoas também vão aprovar e ler com simpatia a réplica humanitarista com a qual o Sr. Josué de Castro rejeita o dogma científico dos que, com sangue frio, consideram a elevada mortalidade com calma e, talvez, com aprovação, quando a infelicidade atinge a terceiros, pertencentes às classes menos favorecidas. É fácil para os privilegiados dar de ombros à desesperada fome dos seus semelhantes e considerá-la inevitável, quando, de fato, as condições de morte e penúria estão arraigadas não no solo e no clima, mas decorrem da colonial e exploradora política imperialista. (…) Na sua réplica ao malthusianismo, o autor lembra um outro “intuitivo” profeta do passado, Thomas Doubleday, que, em 1853, declarou que a “verdadeira lei da população” baseia-se no fato de que a maior riqueza de filhos sai sempre da classe pobre e mal alimentada. Deste modo, não é a fome que resulta da superpopulação, esta é que se origina da fome. Desenvolvendo este argumento, o autor cita recentes experiências realizadas para demonstrar que os ratos mantidos com a dieta altamente protéica revelam-se com menor capacidade reprodutora do que os subalimentados. Baseado nestes ensaios, o autor estabelece analogias com o gênero humano, apresentando tabelas com índices de natalidade em ascensão na medida do decréscimo da ingestão protéica. (…) B E R N A R D O M . F E R N A N D E S E C A R L O S W A L T E R P . G O N Ç A L V E S (ORGS.) 73 As suas estatísticas e observações, quanto às imensas áreas que ainda podem ser utilizadas nos países superpopulosos e mal nutridos, impressionam muito mais. O mesmo se pode dizer dos capítulos referentes à possibilidade produtiva dos solos atualmente ocupados, porém inadequadamente aproveitados. A Geografia da Fome é um livro corajoso, escrito de uma bela e impressionante maneira, contrabalançando os lamentos e as previsões fatídicas. * Rachel de Queiroz Escritora e jornalista Fome, Ciência e Ficção (1946) Diante de certos livros é que a gente vê como é fácil e sem importância o ofício de literato. Sim, são realmente os cientistas que nos botam complexo de inferioridade. Porque afinal de contas fazer literatura não é mais do que coisa gratuita e à toa, anotar impressões, traduzir um estado de alma, ou relatar algum sucesso havido, sempre deformado. Em suma: tudo improvisação, falsificação, fingimento. Mas escrever um livro que informe, ensine, descubra verdades encobertas ou controvertidas, isso sim, representa, na realidade, um mundo de honestidade, esforço, labuta, rigor – além do talento natural que exige em grandes doses. E é pois o sentimento da minha inidoneidade que me afeta ao tentar um comentário em torno do livro do ilustre professor Josué de Castro: o Geografia da Fome. É essa obra um estudo da fome no Brasil – aliás o primeiro volume de uma série de estudos do fenômeno “fome” no mundo inteiro. Assunto pouco explorado, pouco discutido, pois como diz o autor no prefácio, é tema bastante delicado, perigoso, que repugna – um dos tabus da nossa civilização. Entre gente como nós, os ditos “artistas da pena”, quando se fala em fome e miséria, ou carência endêmica * O jornalista refere-se ao livro Geopolítica da Fome, inicialmente publicado nos EUA sob o título de Geography of hunger [Geografia da Fome]. 74 JOSUÉ DE CASTRO - VIDA E OBRA ou epidêmica, só nos ocorre fazer um romance bem chorado sobre o assunto, ou compilar um anedotário pitoresco, ou, no melhor dos casos, uma antologia do folclore ou da literatura da fome no Brasil. Mais não se dá. Os estudiosos já são outra casta de gente. Vão em pessoa para o local que interessa, levam máquinas e fichários, alugam auxiliares, colhem o material na fonte, e lá mesmo o examinam por todos os lados, sejam homens, micróbios, cereais ou caça de pena. Ai, secos algarismos, duros nomes científicos de raízes gregas, como falais, como sabeis arrancar lágrimas! Quando Josué de Castro nos conta que os caboclos amazônicos têm “déficit” protéico – isso quer dizer, senhores, panela sem carne, sem ovo e sem leite, a pura farinha d’água com algum feijão e, sem mesmo o peixe abundante que é deixado para dia de festa. E meninos amarelos, e cabrochas de quinze anos já sem dentes, e homens cansados, e preguiça, e derrota. Quando, em simples números, nos dá conta do índice de mortalidade infantil nas capitais do Brasil e assinala aquelas em que esse índice é mais alto (Aracaju com 357 por mil, Maceió com 343, Natal com 282), a gente vê logo o morticínio desadorado das criancinhas pobres que se acabam como pinto quando dá um ar na criadeira. A frutificação inútil das mulheres, os penosos meses da gestação sofridos à toa, as dores do parto, as noites de insônia com o menino doente que chora, a caminhada sem fim para os raros ambulatórios de socorro – e tudo isso para dar de comer à terra do cemitério. (…) Não se pense, entretanto que num livro como este, Geografia da Fome, vamos encontrar apenas magras enfiadas de números, seguidas de uma tonelada de palavrões técnicos. O autor segue a escola criada no Brasil pelo nosso grande Gilberto Freyre: a de completar o artista o trabalho do estudioso, e dizer em linguagem bela, compreensível e inteligente, as suas descobertas, conclusões ou hipóteses científicas. Por isso mesmo falei acima que eles nos botam complexos, porque não nos deixam sequer o gozo exclusivo da nossa cidadela, que sempre foi a forma artística, o “verbo”. Em geral, têm prosa tão B E R N A R D O M . F E R N A N D E S E C A R L O S W A L T E R P . G O N Ç A L V E S (ORGS.) 75 boa, ou melhor do que a nossa, mais bonita e de muito mais interesse, porque enunciam fatos enquanto nós apenas bordamos divagações. Que nos sobra, afinal? Que nos vale fazer como eles dizem um “romance de fome” se esses nossos rivais nos levam toda vantagem, contando autênticas histórias de fome, coisas acontecidas, medidas e pesadas, e com um interesse de narrativa que a gente jamais consegue igualar? (…) Engraçado é que eles nos cortejam, nos citam, nos dão importância. Obra de excessiva modéstia, ou mesmo de ironia, não sei. Depois que nos esmagam profissionalmente, tornam a nos esmagar com gentilezas. Vejam o professor Josué de Castro, por exemplo: dedica o seu livro, além de a Euclides da Cunha, a três romancistas que ele chama de “romancistas da fome” no Brasil: Rodolfo Teófilo, José Américo de Almeida e esta sua humilde criada. E fica a gente tão radiante e honrada, que nem se apercebe do esbulho.” Marcel Niedergang Jornalista, Paris, França A Fome dos Outros (1953) No começo, havia a fome. Através dos séculos, o homem se bate com a natureza para dela arrancar a própria subsistência. Hoje, contempla, com orgulho, o universo mecanizado que ele domesticou e no entanto, a fome permanece. Está cientificamente demonstrado que cerca de dois terços da população do mundo vivem num estado permanente de fome, mas as classes bem nutridas e os povos saciados não gostam de falar acerca da fome dos outros. Neste sentido é que vem muito a propósito o aparecimento da Geopolítica da Fome, de Josué de Castro. Nunca, na verdade, se falou tanto de paz, de justiça social e de liberdade em escala universal, mas também nunca foi tão esquecido o fato de que essas grandes palavras não têm sentido para aqueles cuja única liberdade é, muitas vezes, a de morrer lentamente de fome. Felicitações calorosas devem ser dadas ao ilustre sociólogo brasileiro, ex-presidente do Conselho da 76 JOSUÉ DE CASTRO - VIDA E OBRA Organização para a Alimentação e Agricultura das Nações Unidas, por ter relembrado, duramente, essas verdades elementares. (…) Vê-se, desta forma, que a obra começa por um titulo que é um desafio e continua por quadros pessimistas e por avisos que podem parecer a muitos um tanto desabusados. No entanto, a sua conclusão é otimista. A fome não é uma fatalidade e pode ser vencida. Há uma condição: a cooperação internacional nesta luta pacífica pela aceleração de uma revolução autêntica na qual, como diz o sociólogo brasileiro, seja obtido o triunfo do homem social, isto é, de uma era que se preocupe mais em produzir para satisfazer as necessidades de toda a humanidade e não apenas para ver crescer o poderio econômico de alguns. Seu leit-motiv poderia ser este: “Se quiser a paz, declare guerra à fome”. De fato, já foi dado o toque de clarim. Durante a última guerra, a que foi total, a Europa conheceu esta arma que não era nova, mas se revelava mortífera – a fome organizada. E um dos objetivos da Carta do Atlântico, firmada em 1941, foi a luta contra a miséria. Ao lado de milhões de mortes causadas pelas grandes fomes espetaculares e de milhões de seres humanos degradados por uma subnutrição crônica e insidiosa, a bomba atômica aparece quase como uma arma ridícula de destruição. E todo o poder dos armamentos modernos é ineficaz para combater esta crise desconhecida de uns e mantida e desejada por outros: a imensa fome do mundo. Uma tarefa positiva e comum se oferece às ideologias que pretendem, por caminhos diferentes, trazer a paz e a felicidade aos homens. Eis a verdadeira mensagem deste panfletário humanista. Utopia de sonhador solitário, dirão alguns. Talvez, mas sem estes solitários, nós nos sentiríamos ainda mais sós… Luís da Câmara Cascudo Escritor, folclorista e jornalista O Historiador da Fome (1947) O amor e a fome governam este mundo, dizia Schiller. Toda atividade humana ou maior percentagem dela corre para um desses pólos: B E R N A R D O M . F E R N A N D E S E C A R L O S W A L T E R P . G O N Ç A L V E S (ORGS.) 77 amor e pão. A fome – assunto, tema de livro, material de estudo e de sistematização – é que não tem atraído muita gente. Bibliografia pobre e nomes escassos para uma indicação bibliográfica. (…) O professor Josué de Castro enfrentou justamente esse assunto tabu, difícil, negaceado, escondido nos relatórios e coberto com os retalhos de sinônimos bonitos como mentiras. É um sentimento primário que humilha a nossa cultura de raciocínio. Não humilha a concepção instintiva de civilização, mas os elementos formadores, minando-lhes o interior com denúncia de uma desolante e diária verdade natural. Certo também é que a generalização é sugestiva para o homem inteligente. A fome pode explicar o impulso inicial de todo movimento de progresso e de indústria como a simples curiosidade, o arrojo cristão da catequese, o próprio instinto pessoal de um líder que sacode o seu povo, seu grupo, seu clã para acima da cordilheira, procurando terra-onde-não-se-morre, independente do problema da alimentação parca ou menos suficiente. Indiscutível é que a fome é um elemento decisivo, um dos mais fortes, irresistíveis e poderosos na dispersão humana e no processo seletivo da massa. Seletivo está aplicado num plano biológico e não sociológico, ou, se me permitem, fora dos modelos da Antropologia Cultural. A fome mantém em nomadismo concêntrico os árabes do deserto, como enrijou, disciplinou, secou as gorduras, enxugou os músculos, afilou o perfil agudo do sertanejo nordestino, sacudindo-o para o Pará, Amazonas, Acre, com um teor de alimentação que é a fome endêmica, mas politicamente empurrando os limites do Brasil, espalhando o conhecimento geográfico, industrializando os métodos indígenas de caça e pesca, determinando mesmo uma mentalidade sugestiva e viril que resiste até ir cedendo, devagar, aos assaltos de todas as febres que credenciam a majestade do paludismo. Josué de Castro, com a Geografia da Fome, iniciou seu grande estudo num plano de monumento, de extensão, de esforço continuado. Não apenas trouxe para o estudo dos aspectos brasileiros da fome, 78 JOSUÉ DE CASTRO - VIDA E OBRA a capitalização de leituras, viagens, observações e intuições surpreendentes, mas articulou todo este material em esquemas lógicos de uma campanha de inteligência e de humanismo radical. Uma boa atitude desse livro, primeiro de uma série, é ser objetivo. Está voltado para o Brasil. É possível discordar, aplaudir ou negar porque o ambiente ficou ao alcance da verificação. Todas as virtudes de análise foram mobilizadas para atender aos reclamos mais modernos na espécie. Divisão de áreas, subáreas, características alimentares, resultados, sugestões, comentários, críticas. História, Sociologia, Folclore, Antropogeografia trazem seus afluentes para o rio imenso. O assunto, velho mas amedrontado pelo medo de desentocá-lo, aparece novo e vivo, situado com as cores reais e verídicas de uma constatação positiva. É um inquérito que se inicia nesse depoimento, rico de notícia e de informação, exigindo o endosso ou a negativa. Ninguém simpatizará, ideal e romanticamente, com esse assunto. Estudar a fome, indicá-la, riscar no mapa do Brasil suas moradas e cottages de vilegiatura, é um desaforo que devia ter sido impresso há muitos anos para fixar o problema, colocá-lo perto dos olhos e das resoluções sucessivas dos técnicos. O aspecto psicológico da fome continua sendo, em sua enunciação bem educada e palaciana, o mesmo tabu do sexo de antes de Freud, como notou agudamente Josué de Castro. A palavra fome é humilhante, inferior, indigna de todos os códigos da boa educação. Dizer que se tem fome, quando o almoço se eterniza, é um primor de deseducação. Ainda uma das atitudes de absoluto bom gosto, é fingir saciedade, displicência, recusando repetir o prato. Médicos e protocolistas domésticos ensinam: “saia da mesa sem estar satisfeito”… Ninguém no mundo aristocrático do Oriente tem o atrevimento de ir para a mesa em primeiro lugar. Morrendo de fome, verdes, os convidados dos príncipes árabes empurram uns aos outros, aparentando indisposição, superioridade, fartura. Nenhum menino brasileiro do meu tempo dizia: “Mamãe, tô cum fome!”, para não levar B E R N A R D O M . F E R N A N D E S E C A R L O S W A L T E R P . G O N Ç A L V E S (ORGS.) 79 um beliscão espontâneo e reprimidor do desejo que atrapalhava o complexus do bom comportamento. Ainda hoje, com tanto século de marcha, a maior festa oficial é dar-de-comer ao visitante, rei, barão, soldado, ladrão. A maior homenagem é o brinde-de-honra, no fim, de copo na mão, ao redor da mesa. Ergamos as nossas taças… Vou ficar aqui. Josué de Castro está, com um atrevimento que merece sucesso, atravessando uma mata cheia de encanto e de mistério confuso. Chegando do outro lado, deixou, nas pegadas, a picada que a marcha fará uma estrada real. Volumosa é a sua tarefa. Desejo intelectual onde a imaginação pouco colabora: muito livro para ler, muito mundo para ver, muito escuro para clarear. Este é um livro que anuncia dedicação digna de um homem que ama o seu país sabendo a verdade. P R I N C I PA I S O B R A S DE JOSUÉ DE C ASTRO* • “O problema fisiológico da alimentação no Brasil”. Tese de Livre – Docência em Fisiologia. Faculdade de Medicina do Recife, 1932. • “Metabolismo basal e clima.” Recife: Revista Médica de Pernambuco nº 2, 1932. • O problema da alimentação no Brasil. São Paulo: Cia. Editora Nacional, 1933. • Condições de vida das classes operárias do Recife. Recife: Departamento de Saúde Pública, 1935. • Alimentação e raça. São Paulo: Civilização Brasileira, 1935. • Alimentação brasileira à luz da geografia humana. Rio de Janeiro: Edição da Livraria Globo, 1937. • Documentário do Nordeste. Rio de Janeiro: J. Olympio, 1937. • Fisiologia dos tabus. Rio de Janeiro: Edições Nestlé, 1939. • Ensaios de Geografia Humana. Rio de Janeiro: Ed. Globo, 1939. • Geografia da Fome. Rio de Janeiro: O Cruzeiro, 1947. • Geopolítica da Fome. Rio de Janeiro: Casa do Estudante do Brasil, 1951. • A cidade do Recife: Ensaios de Geografia Humana. Rio de Janeiro: Casa do Estudante do Brasil, 1955. * Muitas de suas obras foram traduzidas e editadas em 25 idiomas. 82 JOSUÉ DE CASTRO - VIDA E OBRA • Três personagens: Einstein, Fleming, Roosevelt. Rio de Janeiro: Casa do Estudante do Brasil, 1955. • O Livro Negro da Fome. São Paulo: Brasiliense, 1957. • Ensaios de Biologia Social. São Paulo: Brasiliense, 1957. • Sete palmos de terra e um caixão. São Paulo: Brasiliense, 1964. • Ensayos sobre el Sub-Desarrollo. Buenos Aires: Siglo Veinte, 1965. • Adonde va la América Latina? Lima: Latino Americana, 1966. • Homens e caranguejos. São Paulo: Brasiliense, 1967. • Explosão demográfica e a fome no mundo. Lisboa: Editora Itaú, 1968. • El Hambre: problema universal. Buenos Aires: Editora La Pleyade, 1968. • Latin American Radicalism. Nova York: Vintagem books, 1969. • A estratégia do desenvolvimento. Lisboa: Editora Seara Nova, 1971. • Mensagens. Bogotá: Ediciones Colibri, 1980. Algumas obras sobre Josué de Castro L’ABBATE, Solange. “Fome e desnutrição: os descaminhos da política social” Dissertação (Mestrado em Sociologia) – Faculdade de Filosofia, Universidade de São Paulo, 1982. ABRAMOWAY, Ricardo. “A atualidade do método de Josué de Castro e a situação alimentar mundial” Revista de Economia e Sociologia Rural, São Paulo, v. 34, n. 3-4, pp. 81-102, jul./dez. 1996. ACADEMIA PERNAMBUCANA DE MEDICINA. Ciclo de estudos sobre Josué de Castro; depoimentos. Recife: Ed. Universitária, 1983. ANDRADE, Manuel Correia de. “Atualização do pensamento de Josué de Castro” Conjuntura Alimentos, São Paulo, v. 5, n. 2, jun. 1993. _________. “Josué de Castro: o homem, o cientista e o seu tempo” In: Fome: um tema proibido – últimos escritos de Josué de Castro. 3. ed. rev. aum. Recife: Companhia Editora, 1996. ANDRADE, Manuel Correia de (et al.). Josué de Castro e o Brasil. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2003. B E R N A R D O M . F E R N A N D E S E C A R L O S W A L T E R P . G O N Ç A L V E S (ORGS.) 83 ARAÚJO, Tânia Bacelar de. Relendo a Geografia da fome. In: Seminário de comemoração ao cinqüentenário da Geografia da Fome. Anais. Recife: Centro Josué de Castro, 1996. ARRUDA, Bertoldo K. Geografia da Fome: da lógica regional à universalidade. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 13, n. 3, p. 545-549, jul./set. 1997. CARVALHO, Alfredo Teles de. “Josué de Castro na perspectiva da geografia brasileira, 1956-1958”, dissertação (Mestrado em Geografia) – Centro de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal de Pernambuco, 2002. CASCUDO, Luís da Câmara. História da alimentação no Brasil. São Paulo: EDUSP, 1983. CASTRO, Anna Maria de. Nutrição e desenvolvimento: análise de uma política. Tese (Livre-docência em Sociologia) – Instituto de Nutrição, Universidade Federal do Rio de Janeiro, 1977. CASTRO, Anna Maria de (Org.). Fome: um tema proibido – últimos escritos de Josué de Castro. 4. ed. rev. aum. 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Guedes de. Do homem-caranguejo ao homem-gabiru: uma interpretação da trajetória da fome no Brasil. Saúde em Debate, Rio de Janeiro, n. 44, pp. 9-13, set. 1994. CADERNO DE FOTOS Josué com 2 anos * Aos 20 anos, 1926 Glauce e Josué, 1952 Laboratório do Instituto de Nutrição, 1947 Faculdade Nacional de Filosofia, posse da cadeira de Geografia Humana, 1948 Sede da FAO, Roma Faculdade Nacional de Filosofia, posse da cadeira de Geografia Humana, 1948 Conferência 1960/1962 Câmara dos Deputados Encarte UERJ Com o Papa Pio XII, 1955 Paris, 1955 Feira de livros em Lisboa, 1972 Com o presidente Getúlio Vargas Josué, 1953 Recebendo o título de professor Honoris Causa, Peru, 1954 Conferência, Bélgica União Soviética, 1954 Discurso de posse do novo presidente da FAO, 1951 Campanha contra fome 1960 1964 1967 1969 TEXTOS ESCOLHIDOS DE JOSUÉ DE CASTRO 1. O CICLO DO CARANGUEJO A família Silva mora nos “mangues” da cidade do Recife, num “mocambo” que o chefe da família fez quando chegou de cima. A família é originária do sertão. Desceu do Cariri, na seca, perseguida pela fome. Fez uma paradinha no brejo, para tentar o trabalho das usinas, mas não se pode agüentar com os salários dessa zona, sem ter direito a plantar senão cana. Sem ter, nem ao menos o recurso do xiquexique e da macambira, como no sertão, para quando a fome apertasse. Nesse tempo espalharam pelo interior um boato que o governo tinha criado um ministério para defender os interesses do trabalhador e que com os fiscais da lei, a vida na cidade estava uma beleza, trabalhador ganhando tanto que dava para comer até matar a fome. A família Silva ouviu esta história, acreditou piamente e resolveu descer para a cidade, para gozar das vantagens que o governo bom oferecia aos pobres. Logo de chegada a família viu que a coisa era outra. Não havia dúvida que a cidade era bonita, com tanto palácio e as ruas fervilhando de automóvel. Mas a vida do operário, apertada como sempre. Muita coisa para os olhos, pouca coisa prá barriga. O caboclo Zé Luis da Silva não quis desanimar. Adaptou-se: “Quem não tem remédio remediado está”. Entrou na luta da cidade com todas as forças de que dispunha, mas as forças dele não rendiam 104 JOSUÉ DE CASTRO - VIDA E OBRA que desse para a família viver com casa, roupa e comida. Casa só de 80 mil réis para cima, para comida uns 150 e os salários sem passarem de 5 mil réis por dia. Começou o arrocho. Só havia uma maneira de desapertar: era cair no mangue. No mangue não se paga casa, come-se caranguejo e anda-se quase nu. O mangue é um paraíso. Sem o cor-de-rosa e o azul do paraíso celeste, mas com as cores negras da lama, paraíso dos caranguejos. No mangue o terreno não é de ninguém. É da maré. Quando ela enche, se estira e se espreguiça, alaga a terra toda, mas quando ela baixa e se encolhe, deixa descobertos os calombos mais altos. Num deles, o caboclo Zé Luis levantou o seu mocambo. As paredes de varas de mangue e lama amassada. A coberta de palha, capim seco e outros materiais que o monturo fornece. Tudo de graça encontrado ali mesmo numa bruta camaradagem com a natureza. O mangue é um camaradão. Dá tudo, casa e comida: mocambo e caranguejo. Agora, quando o caboclo sai de manhã para o trabalho, já o resto da família cai no mundo. Os meninos vão pulando do jirau, abrindo a porta e caindo no mangue. Lavam as ramelas dos olhos com a água barrenta, fazem porcaria e pipi, ali mesmo, depois enterram os braços lama a dentro para pegar caranguejos. Com as pernas e os braços atolados na lama, a família Silva está com a vida garantida. Zé Luis vai para o trabalho sossegado, porque deixa a família dentro da própria comida, atolada na lama fervilhante de caranguejos e siris. Os mangues do Capibaribe são o paraíso do caranguejo. Se a terra foi feita para o homem, com tudo para bem servi-lo, também o mangue foi feito especialmente para o caranguejo. Tudo aí, é, foi ou está para ser caranguejo, inclusive a lama e o homem que vive nela. A lama misturada com urina, excremento e outros resíduos que a maré traz, quando ainda não é caranguejo, vai ser. O caranguejo nasce nela, vive dela. Cresce comendo lama, engordando com as porcarias dela, fazendo com lama a carninha branca de suas patas e a geléia esverdeada de suas vísceras pegajosas. Por outro lado o povo daí vive B E R N A R D O M . F E R N A N D E S E C A R L O S W A L T E R P . G O N Ç A L V E S (ORGS.) 105 de pegar caranguejo, chupar-lhe as patas, comer e lamber os seus cascos até que fiquem limpos como um copo. E com a sua carne feita de lama fazer a carne do seu corpo e a carne do corpo de seus filhos. São cem mil indivíduos, cem mil cidadãos feitos de carne de caranguejo. O que o organismo rejeita, volta como detrito, para a lama do mangue, para virar caranguejo outra vez. Nesta placidez de charco, identificada, unificada no ciclo do caranguejo, a família Silva vai vivendo, com a sua vida solucionada, como uma das etapas do ciclo maravilhoso. Cada elemento da família marcha dentro desse ciclo até o fim, até o dia de sua morte. Nesse dia os vizinhos piedosos levarão aquela lama que deixou de viver, dentro dum caixão para o cemitério de Santo Amaro, onde ela seguirá as etapas do verme e da flor. Etapas demasiado poéticas, cheias duma poesia que o mangue não comportaria. Parte-se aparentemente, nesse dia, o ciclo do caranguejo, mas os parentes que ficam, derramam caridosos as suas lágrimas no mangue para alimentar a lama que alimenta o ciclo do caranguejo. 2. PREFÁCIO DA PRIMEIRA EDIÇÃO DE GEOGRAFIA DA FOME O assunto deste livro é bastante delicado e perigoso. A tal ponto delicado e perigoso que se constituiu num dos tabus de nossa civilização. É realmente estranho, chocante, mesmo à observação, o fato de que, num mundo como o nosso, caracterizado por tão excessiva capacidade de escrever e de publicar, haja até hoje tão pouca coisa escrita acerca do fenômeno da fome, em suas diferentes manifestações. Consultando a bibliografia mundial sobre o assunto, verifica-se a sua extrema exigüidade. Extrema e estranha quando a pomos em contraste com a minuciosa abundância de trabalhos sobre temas outros de muito menor significação. Tal pobreza bibliográfica se apresenta ainda mais estranha e mais chocante quando meditamos acerca do conteúdo do tema da fome – de sua transcendental importância e de sua categórica finalidade orgânica. Já outros estudiosos se tinham espantado diante deste inexplicável vazio bibliográfico: não há muito, Gregorio Marañon, recolhendo material para a elaboração de um trabalho sobre a regulação hormonal da fome,1 surpreendeu-se com o número insignificante de fichas que conseguiu reunir acerca deste problema fundamental. 1 Marañon, Gregorio, “La Regulación Hormonal del Hambre”, in Estudios de Endocrinología, 1938. 108 JOSUÉ DE CASTRO - VIDA E OBRA Registrando o fato, não se deu, no entanto, o escritor espanhol, interessado no momento noutra ordem de idéias, ao trabalho de buscar as razões ocultas que determinaram esta quase que abstenção de nossa cultura em abordar o tema da fome. Em examiná-lo mais a fundo, não só em seu aspecto estrito de sensação – impulso e instinto que tem servido de força motriz à evolução da humanidade (Spinosa) – como em seu aspecto mais amplo da calamidade universal. Sob este último aspecto, se fizermos um estudo comparativo da fome com as outras grandes calamidades que costumam assolar o mundo – a guerra e as pestes ou epidemias – verificaremos, mais uma vez, que a menos debatida, a menos conhecida em suas causas e efeitos, é exatamente a fome. Para cada mil publicações referentes aos problemas da guerra, pode-se contar com um trabalho acerca da fome e, no entanto, os estragos produzidos por esta última calamidade são maiores do que os das guerras e das epidemias juntas, conforme é possível apurar, mesmo contando com as poucas referências existentes sobre o assunto.2 Havendo mais, a favor deste triste primado da fome sobre as outras calamidades, o fato universalmente comprovado de que ela constitui a causa mais constante e efetiva das guerras e a fase preparatória do terreno, quase que obrigatória, para a eclosão das grandes epidemias. Quais são as causas ocultas desta verdadeira conspiração de silêncio em torno da fome? Será por simples obra do acaso que o tema não tem atraído devidamente o interesse dos espíritos especulativos e criadores dos nossos tempos? Não cremos. O fenômeno é tão marcante e se apresenta com tal regularidade que, longe de traduzir obra do acaso, parece condicionado às mesmas leis gerais que regulam as outras manifestações sociais de nossa cultura. Trata-se de um silêncio premeditado pela própria alma da cultura: foram os interesses e os preconceitos de ordem moral e de ordem política e econômica de nossa chamada civilização ocidental que tor2 Waldorf, Cornelius. The Famines of the World, 1878. B E R N A R D O M . F E R N A N D E S E C A R L O S W A L T E R P . G O N Ç A L V E S (ORGS.) 109 naram a fome um tema proibido, ou pelo menos pouco aconselhável de ser abordado publicamente. O fundamento moral que deu origem a esta espécie de interdição baseia-se no fato de que o fenômeno da fome, tanto a fome de alimentos como a fome sexual, é um instinto primário e por isso um tanto chocante para uma cultura racionalista como a nossa, que procura por todos os meios impor o predomínio da razão sobre o dos instintos na conduta humana. Considerando o instinto como o animal e só a razão como o social, a nossa civilização, em sua fase decadente, vem procurando negar sistematicamente o poder criador dos instintos, considerandoos forças desprezíveis. Aí encontramos uma das imposições da alma coletiva da cultura, que fez do sexo e da fome assuntos tabus – impuros e escabrosos – e por isto indignos de serem tocados. Sobre o problema do sexo, foi mantido um silêncio opressor, até o dia em que um homem de gênio, num gesto inconveniente e providencial, afirmou, diante do fingido espanto da ciência e da moral oficiais, que o instinto sexual é uma força invencível, tão intensa que atinge à consciência e a domina inteiramente. Freud demonstrou com tal genialidade o primado do instinto, que é essencial, sobre o racional, que é acessório, no desempenho do comportamento humano não houve remédio senão aceitar-se, mesmo a contragosto, a sua teoria e deixar-se abrir os diques com que se procurava ingenuamente afogar as raízes da própria vida. Desde então foi possível debaterse em altas vozes o problema do sexo. Quanto à fome, foram necessárias duas terríveis guerras mundiais e uma tremenda revolução social – a revolução russa – na qual pereceram 17 milhões de criaturas, dos quais 12 milhões de fome, para que a civilização ocidental acordasse do seu cômodo sonho e se apercebesse de que a fome é uma realidade demasiado gritante e extensa, para ser tapada com uma peneira aos olhos do mundo. Ao lado dos preconceitos morais, os interesses econômicos das minorias dominantes também trabalhavam para escamotear o fenômeno da fome do panorama espiritual moderno. É que ao imperia- 110 JOSUÉ DE CASTRO - VIDA E OBRA lismo econômico e ao comércio internacional a serviço do mesmo interessava que a produção, a distribuição e o consumo dos produtos alimentares continuassem a se processar indefinidamente como fenômenos exclusivamente econômicos – dirigidos e estimulados dentro dos seus interesses econômicos – e não como fatos intimamente ligados aos interesses da saúde pública. É a dura verdade que as mais das vezes esses interesses eram antagônicos. Veja-se o caso da Índia, por exemplo. Segundo nos conta Réclus,3 nos últimos 30 anos do século passado morreram de inanição naquele país mais de 20 milhões de habitantes; só no ano de 1877 pereceram de fome cerca de quatro milhões. E, no entanto, de acordo com a sugestiva observação de Richard Temple – “enquanto tantos infelizes morriam de fome, o porto de Calcutá continuava a exportar para o estrangeiro quantidades consideráveis de cereais. Os famintos eram demasiado pobres para comprar o trigo que lhes salvaria a vida”. É lógico que os grandes importadores, negociantes de Londres, Rotterdam e outras grandes praças européias, que tiravam grandes proventos de suas importações da Índia, faziam o possível para abafar na Europa os rumores longínquos desta fome longínqua, a qual, se tomada na devida consideração, poderia atrapalhar os seus lucrativos negócios. Também os governos nazistas que se haviam apoderado do poder em vários países e de cuja política fazia parte obrigatória a propaganda intempestiva de prosperidades inexistentes, não podiam ver com bons olhos quaisquer tentativas que viessem mostrar, às claras, aos outros países, em que extensão a fome participava dos destinos de seus povos. A própria ciência e a técnica ocidentais, envaidecidas por suas brilhantes conquistas materiais, no domínio das forças da natureza, se sentiram humilhados, confessando abertamente o seu quase absoluto fracasso em melhorar as condições de vida humana no nosso planeta e, 3 Réclus, Elisée, Nouvelle Géographie Universelle, 1875-94. B E R N A R D O M . F E R N A N D E S E C A R L O S W A L T E R P . G O N Ç A L V E S (ORGS.) 111 com o seu reticente silêncio sobre o assunto, faziam-se consciente ou inconscientemente cúmplices dos interesses políticos que procuravam ocultar a verdadeira situação de enormes massas humanas envolvidas em caráter permanente no círculo de ferro da fome. Hoje, tendo sido possível realizar com a aquiescência oficial4 uma série de pesquisas bem orientadas nas mais diferentes regiões da terra, acerca das condições de nutrição dos povos e tendo-se evidenciado dentro de um critério rigorosamente científico, o fato de que cerca de dois terços da humanidade vivem num estado permanente de fome, começa a mudar a atitude do mundo. É claro que para essa mudança de atitude, muito tem contribuído a pressão de fatos inexoráveis. Há a consciência universal de que atravessamos uma hora decisiva na qual só reconhecendo os grandes erros de nossa civilização podemos reencontrar o caminho certo e fazê-la sobreviver à catástrofe. Desses erros, um dos mais graves é, sem nenhuma dúvida, este de termos deixado centenas de milhões de indivíduos morrendo à fome num mundo com capacidade quase infinita de aumento de sua produção, dispondo de recursos técnicos adequados à realização desse aumento. Mundo capaz de produzir alimentos para cinco e meio bilhões de homens, segundo os cálculos de East, oito bilhões, segundo os de Penk, e 11 bilhões, segundo os de Kucszinski; portanto, pelo menos, para o dobro da população atual.5 A demonstração mais efetiva da mudança radical da atitude universal, em face do problema, encontra-se na realização da Conferência de Alimentação de Hot Springs, a primeira das conferências convocadas pelas Nações Unidas para tratar de problemas fundamentais à reconstrução do mundo de após-guerra. 4 5 Desde 1929 a liga das Nações inscreveu o problema da alimentação no programa de seus trabalhos, fazendo realizar, sob o patrocínio de sua Organização de Higiene, estudos detalhados em diferentes países e dando publicidade a uma série de valiosos relatórios sobre o assunto. Ferenczi, Imre, L’Optimum Synthétique du Peuplement, Paris, Institut International de Coopération Intelectuelle, Societé des Nations, 1938. 112 JOSUÉ DE CASTRO - VIDA E OBRA Nesta conferência, reunida em 1943, 44 nações, através dos depoimentos de eminentes técnicos no assunto, confessaram, sem constrangimento, quais as condições reais de alimentação dos seus respectivos povos e planejaram as medidas conjuntas a serem levadas a efeito para que sejam apagadas ou pelo menos clareadas, nos mapas mundiais de demografia qualitativa, estas manchas negras que representam núcleos de populações subnutridas e famintas, exteriorizando, em suas características de inferioridade antropológica, em seus alarmantes índices de mortalidade e em seus quadros nosológicos de carências alimentares – beribéri, pelagra, escorbuto, xeroftalmia, raquitismo, osteomalácia, bócios endêmicos, anemias etc.– a penúria orgânica, a fome global ou específica de um, de vários e, às vezes, de todos os elementos indispensáveis à nutrição humana. Para que as medidas projetadas possam atingir o seu objetivo, faz-se, no entanto, necessário intensificar e ampliar cada vez mais os estudos sobre a alimentação no mundo inteiro; donde a obrigação em que se encontram os estudiosos deste problema, de apresentarem os resultados de suas observações pessoais, como contribuições parciais para o levantamento do plano universal de combate à fome, de extermínio à mais aviltante das calamidades, uma vez que a fome traduz sempre um sentimento de culpa, uma prova evidente de que as organizações culturais vigentes, em satisfazer a mais fundamental das necessidades humanas, a necessidade de alimentos. Um dos grandes obstáculos ao planejamento de soluções adequadas ao problema da alimentação dos povos, reside exatamente no pouco conhecimento que se tem do problema em conjunto, como um complexo de manifestações simultaneamente biológicas, econômicas e sociais. A maior parte dos estudos científicos sobre o assunto se limita a um dos seus aspectos parciais, projetando uma visão unilateral do problema. São quase sempre trabalhos de fisiólogos, de químicos, de economistas, especialistas em geral limitados por contingência profissional ao quadro de suas especializações. B E R N A R D O M . F E R N A N D E S E C A R L O S W A L T E R P . G O N Ç A L V E S (ORGS.) 113 Foi diante desta situação que resolvemos encarar o problema sob uma nova perspectiva, de um plano mais distante, donde se possa obter uma visão panorâmica de conjunto, visão em que alguns pequenos detalhes certamente se apagarão, mas na qual se destacarão de maneira compreensiva as ligações, as influências e as conexões dos múltiplos fatores que interferem nas manifestações do fenômeno. Para tal fim, pretendemos lançar mão do método geográfico, no estudo do fenômeno da fome. Único método que, a nossa ver, permite estudar o problema em sua realidade total, sem arrebentar-lhe as raízes que o ligam subterraneamente a inúmeras outras manifestações econômicas e sociais da vida dos povos. Não o método descritivo da antiga geografia, mas o método interpretativo da moderna ciência geográfica, que se corporificou dentro dos pensamentos fecundos de Ritter, Humboldt, Jean Brunhes, Vidal de La Blache, Griffith Taylor e tantos outros. Não queremos dizer com isto que o nosso trabalho seja estritamente uma monografia geográfica da fome, em seu sentido mais restrito, deixando à margem os aspectos biológicos, médicos e higiênicos do problema; mas que, encarando esses diferentes aspectos, o faremos sempre, orientados pelos princípios fundamentais da ciência geográfica, cujo objetivo básico é localizar com precisão, delimitar e correlacionar os fenômenos naturais e culturais que se passam à superfície da terra. É dentro desses princípios geográficos, da localização, da extensão, da causalidade, da correlação e da unidade terrestre, que pretendemos encarar o fenômeno da fome. Por outras palavras, procuraremos realizar uma sondagem de natureza ecológica, dentro deste conceito tão fecundo de “Ecologia”, ou seja, do estudo das ações e reações dos seres vivos diante das influências do meio. Nenhum fenômeno se presta mais para ponto de referência no estudo ecológico destas correlações entre os grupos humanos e os quadros regionais que eles ocupam, do que o fenômeno da alimentação – o estudo dos recursos naturais que o meio fornece para subsistência das populações locais e o estudo dos processos através dos 114 JOSUÉ DE CASTRO - VIDA E OBRA quais essas populações se organizam para satisfazer as suas necessidades fundamentais em alimentos. Já Vidal de La Blache havia afirmado há muito tempo “que entre as forças que ligam o homem a um determinado meio, uma das mais tenazes é a que transparece quando se realiza o estudo dos recursos alimentares regionais”.6 Neste nosso ensaio de natureza ecológica tentaremos, pois, analisar os hábitos alimentares dos diferentes grupos humanos ligados a determinadas áreas geográficas, procurando, de um lado, descobrir as causas naturais e as causas sociais que condicionaram o seu tipo de alimentação, com suas falhas e defeitos característicos e, de outro lado, procurando verificar até onde esses defeitos influenciam a estrutura econômico-social dos diferentes grupos estudados. Assim fazendo, acreditamos poder trazer alguma luz explicativa a inúmeros fenômenos de natureza social até hoje mal compreendidos, por não terem sido levados na devida conta os seus fundamentos biológicos.7 6 7 Blache, Vidal de La, Príncipes de Géographie Humaine, 1922. Não se pense daí, que num exagero descabido de especialista obcecado pela importância de seus problemas, iremos tentar a criação de qualquer nova teoria alimentar das civilizações, num novo broto desta Escola biossocial de inesgotável fecundidade. Estamos longe desta maneira de ver, de tentativas como a do famoso escritor e jornalista mexicano Francisco Bulnes, que, no fim do século passado, um tanto influenciado pelas idéias das hierarquias raciais, procurou explicar todas as diferenças entre os grupos culturais por seus tipos de alimentação. “A humanidade, de acordo com sua severa classificação econômica deve ser dividida em três grandes raças – a raça do trigo, a raça do milho e a raça do arroz. Qual delas é indiscutivelmente superior?” Com esta pergunta iniciava Bulnes o desenvolvimento de seu raciocínio para demostrar que só a raça do trigo é capaz de atingir as etapas da alta civilização. No seu livro extraordinariamente interessante, se anotarmos a época do seu aparecimento no século passado – “El porvenir de las naciones hispano-americanas ante las conquistas de Europa y Estados Unidos” – 1889, Bulnes revela-se um paciente investigador e inteligente renovador do panorama mental americano, mas também um apaixonado de suas próprias idéias, capaz de forçar os argumentos para demonstrar a mais absurda de suas teses. No nosso ensaio não pretendemos provar nada de parecido. Não queremos convencer ninguém de que a fome seja a mola única da evolução social, nem que sejam os alimentos a única matéria-prima para fabricação das tintas com que são coloridos os diferentes quadros culturais do mundo, mas tão somente destacar desses quadros os traços negros da fome e da miséria que tarjam quase todos eles com um friso mais ou menos acentuado. B E R N A R D O M . F E R N A N D E S E C A R L O S W A L T E R P . G O N Ç A L V E S (ORGS.) 115 Acreditamos que já é tempo de precisar bem o nosso conceito de fome – conceito demasiado extenso e, portanto, suscetível de grandes confusões. Não constitui objeto deste ensaio o estudo da fome individual, seja em seu mecanismo fisiológico, já hoje bem conhecido graças aos magistrais trabalhos de Schiff, Lucciani, Turró, Cannon e outros fisiólogos; seja em seu aspecto subjetivo de sensação interna, aspecto este que tem servido de material psicológico para as magníficas criações dos chamados romancistas da fome. Escritores corajosos que resolveram violar o tabu e nos legaram páginas geniais e heróicas, como as de um Knut Hamsun, no seu romance “Fome” – verdadeiro relatório minucioso e exato das diferentes, contraditórias e confusas sensações que a fome produziu no espírito do autor; como as de um Panait Istrati, vagando esfomeado nas luminosas planícies da Romênia, como as de um Felekhov e um Alexandre Neverov, narrando com dramática intensidade a fome negra da Rússia em convulsão social; como as de um George Fink, sofrendo fome nos subúrbios cinzentos e sórdidos de Berlim; e como as de um John Steinbeck, contando, em Vinhas da Ira a epopéia da fome da “família Joad”, através das mais ricas regiões do país mais rico do mundo – os Estados Unidos da América. Não é esse tipo excepcional de fome, simples traço melodramático no emaranhado desenho da fome universal que interessa ao nosso estudo. O nosso objetivo é analisar o fenômeno da fome coletiva – da fome atingindo endêmica ou epidemicamente as grandes massas humanas. Não só a fome total, a verdadeira inanição que os povos de língua inglesa chamam de “starvation”, fenômeno, em geral, limitado a áreas de extrema miséria e a contingências excepcionais, mas sim como o fenômeno muito mais freqüente e mais grave, em suas conseqüências numéricas, da fome parcial, da chamada fome oculta, na qual pela falta permanente de determinados elementos nutritivos, em seus regimes habituais, grupos inteiros de populações se deixam morrer lentamente de fome, apesar de comerem todos os dias. É principalmente o estudo dessas coletivas fomes parciais, dessas fomes específicas, em sua infinita variedade, que constitui o objetivo 116 JOSUÉ DE CASTRO - VIDA E OBRA nuclear do nosso trabalho. Com a sua publicação visamos contribuir com uma parcela infinitesimal para a construção do plano de ressurgimento de nossa civilização, através da revalorização fisiológica do homem. Poderá, à primeira vista, parecer uma desmedida pretensão que o autor de um estudo de categoria tão modesta como este, atribua-lhe qualquer interferência – por mínima que seja – nos destinos universais da humanidade. Encontramos, porém, uma explicação e uma justificativa para esta nossa atitude, na afirmativa recente do filósofo inglês Bertrand Russell de que “nunca houve momento histórico no qual o concurso do pensamento e da consciência individuais fosse tão necessário e importante para o mundo como em nossos dias”. E mais ainda “que todo homem, qualquer homem comum, poderá contribuir para a melhoria do mundo”. É com esta mesma crença na obra de cooperação de cada um, de co-participação ativa na busca de um mundo melhor, que planejamos esta obra abordando o tema da fome em sua expressão universal, mostrando com que intensidade e em que extensão o fenômeno se manifesta nas diferentes coletividades humanas. De fato, o conhecimento exato da situação alimentar dos povos, dos recursos de que poderão dispor para satisfazer suas necessidades de nutrição é absolutamente indispensável para que se leve a bom termo a revolução social que se processa com incrível velocidade nos dias em que vivemos. Revolução que, segundo se vislumbra pelas transformações já processadas, está criando universalmente um novo sistema de vida política, que poderemos chamar, como sugere Julian Huxley,8 a era do homem social, em contraposição a essa outra era que terminou com a II Guerra Mundial, a era do homem econômico. O que caracteriza fundamentalmente esta nova era é uma localização muito mais intensa do homem biológico como entidade concreta e a prioridade concedida aos problemas humanos sobre os pro8 Huxley, Julian, On Living in a Revolution, 1944. B E R N A R D O M . F E R N A N D E S E C A R L O S W A L T E R P . G O N Ç A L V E S (ORGS.) 117 blemas de categoria estritamente econômica no sentido da clássica economia do lucro. Realmente, enquanto até a última guerra, a nossa civilização ocidental, em seu exagero de economismo, quase esquecera o homem e seus problemas, preocupando-se morbidamente em conquistar pela técnica todas as forças naturais, pondo todo o seu interesse nos problemas de exploração econômica e de produção de riqueza, o que se vê hoje por toda a parte é o sacrifício obrigatório dos interesses econômicos aos interesses sociais. É a tentativa cada vez mais promissora de pôr o dinheiro a serviço do homem e não o homem escravo do dinheiro. De dirigir a produção de forma a satisfazer as necessidades dos grupos humanos e não deixar o homem se matando estupidamente para satisfazer os insaciáveis lucros da produção. Aparecendo na aurora dessa nova era social, onde a trágica noite do fascismo ainda projeta as suas sombras, este livro pretende ser um documentário científico desta tragédia biológica, na qual inúmeros grupos humanos morreram e continuam morrendo à fome, ao finalizar-se esta tenebrosa era do homem econômico. Para que se compreenda bem e se possa perdoar o uso que faz o autor, em certas passagens do seu livro, de tintas um tanto negras, é bom que o leitor se lembre de que esta obra, documentário de uma era de calamidades, foi pensada e escrita sobre a influência psicológica da pesada atmosfera que o mundo vem respirando nos últimos 10 anos. Atmosfera abafada pela fumaceira das bombas e dos canhões, pela pressão das censuras políticas, pelos gritos de terror e de revolta dos povos oprimidos e pelos gemidos dos vencidos e aniquilados pela fome. Atmosfera que o sociólogo Sorokin pinta com as seguintes palavras: “vivemos e agimos numa era de grandes calamidades. A guerra, a revolução, a fome e a peste cavalgam novamente em nosso planeta. Novamente elas cobram seu mortífero tributo da humanidade sofredora. Novamente elas influenciam cada momento da nossa existência: nossa mentalidade e nossa conduta, 118 JOSUÉ DE CASTRO - VIDA E OBRA nossa vida social e nossos processos culturais.”9 Devemos confessar honestamente que não nos foi possível fugir na elaboração do nosso trabalho a tão dominadora influência. Várias foram as razões que nos levaram a planejar a realização desta obra em diferentes volumes. A primeira delas é a desmedida extensão do seu campo de observação, abrangendo todos os continentes, investigando as condições de vida nos mais variados recantos da superfície da terra. Por mais impressionista que seja o retrato que tentamos pintar de cada uma das regiões estudadas, não é possível sintetizar os seus traços característicos além de certos limites. Toda tentativa de concentrar tão abundante e variado material num só volume seria um fracasso por despojar a realidade de toda a sua riqueza de conteúdo vital, anulando desta forma os propósitos do estudo projetado. A segunda razão se fundamenta na evidência de que um estudo de tal envergadura, mesmo quando as condições são as mais favoráveis à sua execução, leva vários anos para ser completado e a paciente espera para publicar todo o trabalho em conjunto tornaria um tanto antiquadas certas indicações bibliográficas e certos aspectos de atualidade do problema em suas manifestações regionais. Evidencia-se, assim, a vantagem em dividir didaticamente o trabalho em vários volumes, realizando a sua publicação imediata à proporção que sejam ultimadas as análises das várias áreas geográficas incluídas e encadeadas dentro do plano geral da obra completa. Foi este o partido que tomamos, o de projetar a obra em cinco volumes a serem publicados separada e sucessivamente. O primeiro deles que hoje aparece estuda as diferentes áreas de fome no Brasil, as manifestações de subnutrição neste país e a sua influência como fator biológico na formação e evolução dos nossos grupos humanos. Estudando o fenômeno da fome no nosso meio, 9 Sorokin, Pitirim A., Man and Society in Calamity, 1942. B E R N A R D O M . F E R N A N D E S E C A R L O S W A L T E R P . G O N Ç A L V E S (ORGS.) 119 daremos um balanço geral das influências de categoria biológica que têm interferido e pesado na modelagem de nossa cultura e de nossa civilização. Buscando essa valorização dos fatores de categoria biológica, não quer dizer que desprezemos a importância dos fatores de natureza cultural, fatores da categoria do latifundismo agrário-feudal que tanto deformou o desenvolvimento da sociedade brasileira. Isto é inegável. O que tentaremos mostrar é que, mesmo quando se trata da pressão modeladora de forças econômicas ou culturas, elas se fazem sentir sobre o homem e sobre o grupo humano, em última análise, através de um mecanismo biológico: é através da deficiência alimentar que a monocultura impõe, é através da fome que o latifúndio gera e assim por diante. Não defenderemos, pois, nenhuma primazia na interpretação da evolução social brasileira. Nem o primado do biológico sobre o cultural, nem o do cultural sobre o biológico. O que pretendemos é por ao alcance da análise sociológica certos elementos do mecanismo biológico de ajustamento do homem brasileiro aos quadros naturais e culturais do país.10 Não temos a pretensão de investigar a fundo, numa sondagem definitiva, a influência de todos os fatores dessa categoria: raça, clima, meio biótico etc., que constituem a base orgânica da estrutura social dos nossos grupos humanos, mas, estudando os recursos e os hábitos alimentares de várias regiões, teremos forçosamente que levar em consideração todos esses fatores ecológicos que participam 10 Sobre a participação do biológico no mecanismo social consulte-se a série de interessantes estudos reunidos pelo eminente antropólogo R. Redfield, no livro Levels of Integration in Biological and Social Systems (1942). De grande valia para uma orientação firme nesse campo científico é também a obra de G. F. Gause – The Struggle for Existence (1934). Alexander Lipschütz, no seu interessante livro El Indo-americanismo y el Problema Racial en las Américas, apresenta-nos um bom exemplo de aplicação bem orientada dos mais modernos conceitos de sociologia, na análise do biológico e do social na organização dos diferentes grupos de população deste continente. 120 JOSUÉ DE CASTRO - VIDA E OBRA ativamente na interação do elemento humano e dos quadros geográficos brasileiros. Caracterizando o tipo de alimentação e os variados tipos de fome que tem sofrido a nossa gente, estamos certos de que faremos refletir nessas características biológicas, com maior exatidão do que através do estudo de quaisquer outras manifestações de natureza ecológica, o grau de adaptação e ajustamento dos diferentes grupos regionais de nossas populações às variadas zonas geográficas do país. E são exatamente as expressões dessas variadas formas de adaptação que dão relevo à fisionomia cultural de uma nação. É por isso que julgamos ser este volume, até certo ponto, uma tentativa de interpretação biológica de determinados aspectos da formação e da evolução histórico-sociais brasileiras. Num segundo volume, estudaremos as manifestações de fome nas outras áreas do continente americano, tanto da América Espanhola, onde o fenômeno apresenta aspectos locais ainda mais alarmantes do que no Brasil, como da América Inglesa, com suas zonas de fome bem definidas e caracterizadas – o Sul dos Estados Unidos, Porto Rico, Trinidad, Barbados etc. Os grupos humanos da África, culturalmente tão dessemelhantes, povos sedentários do vale do Nilo, nômades do deserto saariano, agricultores do oásis, negritos das florestas equatoriais, caçadores e pastores bosquímanos – quase todos precariamente alimentados e acossados pela fome – constituirão material de estudo do terceiro volume. No quarto volume, abordaremos o estudo da fome no Oriente: nas terras asiáticas com seus quadros de extrema miséria e de fome endêmica, já bem estudados dentro deste mesmo critério ecológico por investigadores penetrantes como Radhaikamal Mukerjee, que escreveu, em 1926, a primeira obra publicada no mundo sob o título de Sociologia Regional, ou de um Walter Mallory, autor dessa magistral monografia da fome no Oriente, intitulada China: Land of Famine e nas distantes ilhas da Oceania onde a alimentação dos seus primitivos habitantes que fora das mais equilibradas é hoje, em con- B E R N A R D O M . F E R N A N D E S E C A R L O S W A L T E R P . G O N Ç A L V E S (ORGS.) 121 seqüência dos contatos e das influências culturais dos povos do Ocidente, das mais degradas e inferiorizadas do mundo. Guardamos para o fim, para o quanto volume, o estudo da epidemia de fome que vem atravessando a Europa durante os últimos anos, a qual, longe de terminar com o fim da guerra, parece recrudescer em certas zonas, constituindo uma das mais sérias ameaças à paz, tão inquietante quanto o segredo da bomba atômica. Deixamos propositadamente este estudo para o último volume, a fim de aguardar que seja possível uma visão menos confusa do problema e uma interpretação mais serena dos fatores que continuam mantendo o fenômeno da fome nesse continente. Qualquer tentativa atual de análise à distância de tão complexa situação, sob a ação dessa tremenda carga emocional que ainda perdura na atmosfera européia, envolveria um grande risco de que fosse deformada a realidade dos fatos. Deformação bem possível pela paixão política, pela insuficiência de documentação rigorosamente científica, pela impossibilidade de seleção dos informes e pelo exagero de tragédia e de dramaticidade que envolve emocionalmente o fenômeno biológico e social. Deste último volume, fará também parte uma análise crítica do problema numa tentativa de fixação dos limites em que o fenômeno da fome interfere na conduta humana, com as conclusões objetivas a que sejamos levados através dessa sondagem de categoria universal do problema. Acreditamos dever ainda ao leitor, principalmente ao leitor estrangeiro, uma explicado e uma última advertência. A explicação visa a esclarecer as razões que levaram o autor a dedicar dois volumes de sua obra ao estudo de um só país, o Brasil, quando projeta concentrar em algum dos outros volumes o estudo de continentes inteiros. Não foram razões de ordem sentimental, nem de supervalorização patriótica que nos ditaram essa conduta: foram razões de ordem didática. O Brasil constituiu o nosso campo de observação e de experimentação diretas do problema. De comprovação de inúmeros aspectos doutrinários da questão e de ensaio e verificação de muitas hipóteses que formulamos sob aspectos particulares nesse setor científico. 122 JOSUÉ DE CASTRO - VIDA E OBRA O seu vasto território com diferentes categorias de climas tropicais, desde o equatorial superúmido da Amazônia até o tropical seco e semi-árido do sertão do Nordeste e o subtropical com seus variados tipos de organização econômica, apresenta condições excepcionais para uma larga investigação do problema da alimentação tropical. Nenhum país do mundo se prestaria, tanto quanto o nosso, para funcionar como um verdadeiro laboratório de pesquisa social deste problema. Os resultados das observações e investigações que aqui procedemos durante 15 anos, e que são apresentados neste ensaio, poderão permitir, pela aplicação do método comparativo, generalizações até certo ponto válidas para inúmeras outras regiões tropicais do mundo. Acentuar, pois, certos detalhes do caso brasileiro, nesse estudo da geografia da fome, significa procurar ilustrar com exemplos concretos, o estudo do fenômeno em diferentes áreas geográficas que apresentem condições naturais ou culturais mais ou menos semelhantes às deste país. Ademais, desenvolvendo neste primeiro volume certos aspectos doutrinários da questão para sua melhor compreensão por parte dos não iniciados na matéria, poderemos nos poupar de voltar ao assunto nos volumes seguintes, os quais, aliviados no seu conteúdo de digressões doutrinárias, apresentarão em forma mais densa traços e fatos objetivos que caracterizem áreas geográficas de maior extensão. Há no entanto um perigo em publicar separadamente esse estudo das áreas de fome no Brasil destacado das outras áreas de fome do continente. Perigo de que por desconhecimento ou por má fé possa alguém julgar serem as condições de vida no nosso país, na hora atual, mais graves e mais difíceis do que no resto da América. Afirmativa que está longe de ser verdadeira. Na maioria dos países da América Latina, conforme pudemos verificar em visitas locais e através de documentos estatísticos e informes científicos obtidos, as condições de vida são ou idênticas ou ainda mais precárias do que as do Brasil. Ao publicarmos o segundo volume desta obra, apresentando as manchas da fome da América Espanhola, o assunto ficará claramen- B E R N A R D O M . F E R N A N D E S E C A R L O S W A L T E R P . G O N Ç A L V E S (ORGS.) 123 te exposto e afastado o perigo das interpretações errôneas. Até lá, será conveniente não se tirar conclusões de qualquer paralelo entre a situação do Brasil e a de outros países da América, senão tomando por base de comparação trabalhos que apresentem um retrato fiel da realidade social desses países, destacando os seus traços mais significativos com o mesmo realismo isento de preconceitos com que estudamos a situação alimentar no Brasil. 3. A DOS REIVINDICAÇÃO M O RTO S Em 1955, João Firmino, morador do Engenho Galiléia, fundava a primeira das Ligas Camponesas no Nordeste brasileiro. Não fora seu objetivo principal, como muita gente pensa, o de melhorar as condições de vida dos camponeses da região açucareira ou de defender os interesses desses bagaços humanos, esmagados pela roda do Destino, como a cana é esmagada pela moenda dos engenhos de açúcar. O objetivo inicial das ligas fora o de defender os interesses e os direitos dos mortos, não os dos vivos. Os interesses dos mortos de fome e de miséria: os direitos dos camponeses mortos na extrema miséria da bagaceira. E para lhes dar o direito de dispor de sete palmos de terra, onde descansar os seus ossos e o de fazer descer o seu corpo à sepultura dentro de um caixão de madeira de propriedade do morto, para com ele apodrecer lentamente pela eternidade afora. Para isso é que foram fundadas as Ligas Camponesas. De início, tinham assim muito mais a ver com a morte do que com a vida, mesmo porque com a vida não havia muito que fazer... Só mesmo a resignação. A resignação à fome, ao sofrimento e à humilhação. Mas, se já não havia interesse dessa gente em lutar pela vida, em lutar por uma vida melhor e mais decente, por que este obstinado empenho em reivindicar direitos na morte? Reivindicação de mortos que nunca tiveram direito em vida! Por que esta desvairada aspiração de possuir depois de morto, sete palmos de terra, por parte de quem, na 126 JOSUÉ DE CASTRO - VIDA E OBRA vida não dispusera, de seu, nem de uma polegada de solo, pertencendo quase todos aos imensos batalhões dos sem-terra que povoam o Nordeste brasileiro? E por que este desespero em possuir um caixão próprio para ser enterrado, quando em vida esses deserdados da sorte nunca foram proprietários de nada – nem de terra nem de casa nem mesmo do seu próprio corpo e de sua própria alma, alugados, a vida inteira, aos senhores da terra? Por que esta conduta aparentemente tão estranha, tão em contradição com o conformismo, a apatia, a resignação desta pobre gente? Tudo isto só tem sentido, quando a gente compreende que, para os camponeses do Nordeste, a morte é que conta; não a vida, desde que, praticamente, a vida não lhes pertence. Dela, eles nada tiram, além do sofrimento, do trabalho estafante e da eterna incerteza do amanhã: da ameaça constante da seca, da polícia, da fome e da doença. Para eles só a morte é uma coisa certa, segura, garantida. Um direito que ninguém lhes tira: o seu direito de escapar um dia pela porta da morte, do cerco da miséria e das injustiças da vida. Tudo o mais é incerto, improvável ou impossível. Daí o interesse do camponês do Nordeste pelo cerimonial da morte, que ele encara como o da sua libertação à opressão e ao sofrimento da vida. “Aos pobres, em espírito, pertence os reinos dos céus”, dizem as Escrituras Sagradas. Palavras consoladoras para aqueles que há muito já tinham perdido toda a esperança de conquistar um lugar decente nos reinos da Terra. A larga experiência de mais de quatro séculos de um regime agrário de tipo feudal – ali implantado pelos colonos portugueses sob a forma do latifúndio escravocrata, produtor de açúcar1 – e a resistência invencível deste regime em ceder a qualquer exigência ou reivindicação dos camponeses para melhorar um pouco as suas trágicas condições de vida, acabaram por dar a esta gente, o sentimento da inutilidade de qualquer esforço para sair do atoleiro de sua miséria. A poesia popular, os abecês dos cantadores, a tradição e a História 1 Prado Jr., Caio: História Econômica do Brasil, 1945. B E R N A R D O M . F E R N A N D E S E C A R L O S W A L T E R P . G O N Ç A L V E S (ORGS.) 127 sempre se referiram às antigas revoltas camponesas como a “Balaiada”, “A República de Palmares”, “Canudos”, nas quais, camponeses desesperados lutaram inutilmente contra os senhores prepotentes. É verdade que, para sermos justos, não podemos esquecer que os escravos descendentes dos negros trazidos da África pelos portugueses, tinham obtido em 1888 a sua libertação. A libertação da sua “galé perpétua” de que falava Castro Alves, o poeta da Abolição. Mas, ter-se-iam mesmo libertado os escravos, da escravidão? Ou apenas se tinham libertado do opróbio de serem chamados escravos, para continuarem os mesmos escravos com o nome de moradores – de servos de seus antigos senhores feudais? A verdade é que, escravos ou servos, moradores ou foreiros, o que lhes tocara até hoje era sempre a mesma cota de sacríficios, de trabalhos forçados, de fome e de miséria: a mesma herança que lhes havia legado a escravidão. Deixando de ser escravos de um dono para serem escravos de um sistema: escravos do latifúndio açucareiro. Para serem triturados como bagaço pela engrenagem deste sistema econômico dos mais desumanos que ainda perduram na superficie da Terra. Mas que foi, sem nenhuma dúvida, há quatro séculos, o sistema que deu consistência política e base econômica ao país em formação. Que permitiu que se implantasse neste Nordeste, a primeira organização econômica de além-mar, que daria no século 16 à metrópole portuguesa o monopólio da plantação da cana, da indústria e do comércio açucareiro. Tudo isto é feito à base do trabalho escravo. Da total escravidão do homem e da terra, submetidos incondicionalmente ao serviço da ambição dos grandes senhores feudais, de enriquecerem depressa, plantando sempre mais cana, e produzindo sempre mais açúcar. E entregando-se de corpo e alma a esta audaciosa aventura açucareira, sem medir suas consequências e sem atender a qualquer sentimentalismo, obedecendo apenas ao insaciável apetite do ouro e ao desadorado apetite da cana, objeto de sua adoração. Ao feroz apetite desta planta, de dispor sempre de novas terras para serem engolidas pelos canaviais e de dispor sempre de 128 JOSUÉ DE CASTRO - VIDA E OBRA mais braços humanos para serem quebrados ou esgotados, no eito, plantando, limpando e colhendo cana ou, nas estradas, puxando e empurrando os carros de cana ou nas moendas ou na esteira das fábricas ou nos cais, carregando e descarregando os sacos de açúcar. Se com o tempo a paisagem da região parece ter mudado um pouco – a grande fábrica moderna tomando o lugar do velho engenho de água ou de lenha, o palacete do dono da fábrica erguendo-se no lugar da casa grande do engenho – a paisagem humana permaneceu quase que a mesma. Os antigos escravos que então viviam na senzala, agora espalhados pelas choças e pelos casebres no campo e nas aldeias ou amontoados nas favelas dos mocambos das cidades, verdadeiras senzalas remanescentes, fracionadas em torno das novas casas-grandes, os palacetes dos novos senhores da terra. Nenhuma força capaz de quebrar o sistema opressor do latifúndio, que vem pesando há séculos, como uma fatalidade sobre a vida do camponês. Os cantadores de feira sempre exaltaram a coragem indômita dos líderes populares, sacrificados nas ondas violentas da repressão. Mas de que serviu todo este esforço, toda esta violência? Não serviu para nada. Nem a força da bala dos cangaceiros nem a força da fé dos místicos e dos beatos deram fim ao sofrimento e à opressão, de que até hoje padecem camponeses. Nem Antônio Silvino e Lampião, heróis do banditismo, cantados pela poesia popular. Nem o padre Cícero de Juazeiro e seus místicos adoradores, puderam mudar o rumo do destino dessa pobre gente, condenada por seu destino histórico, a permanecer sempre no fundo do abismo. A se sentirem impotentes, como se o carro de seus destinos se tivesse atolado até o eixo no barro mole das estradas da cana, no massapé fofo e pegajoso, onde se atolam os carros de boi. E quanto mais força se faz, mais o carro se atola, como se o Diabo ou o Destino ou os dois juntos, agarrassem, de dentro do barro, os raios da roda do carro. Ou como se todos os companheiros de infortúnio tivessem sido empurrados pelo mesmo destino, para dentro de um redemoinho, que fosse como um inferno de água, com a força da miséria puxando sempre, como B E R N A R D O M . F E R N A N D E S E C A R L O S W A L T E R P . G O N Ç A L V E S (ORGS.) 129 a correnteza, mais para o fundo. O atoleiro da vida ou redemoinho da fatalidade são imagens populares com que a gente do Nordeste exprime, em seu linguajar simples, a sua revelação de um fenômeno social, a que os cientistas de hoje, chamaram com Wislow “processo circular cumulativo”.2 Processo social no qual uma constelação de fatores negativos atua de tal forma imbricados, que os grupos pobres ficam sempre cada vez mais pobres, enquanto os ricos cada vez enriquecem mais. É a mesma noção do chamado “círculo vicioso da pobreza” de Nurkse,3 no qual a fome e a pobreza, agindo e reagindo como dois fatores de ação cumulativa, fazem com que os famintos não possam comer porque não são capazes de produzir e não produzem porque são famintos. O homem do Nordeste ignora estas sutilezas dos sociólogos, estes brilhantes jogos de palavras nos quais se fala de fatores negativos agindo como causa e efeito, dentro do processo social, mas sente na sua carne a realidade da miséria estagnante, e vê sempre crescer diante dos seus olhos a riqueza descomunal dos que enriquecem cada vez mais à custa de sua fome. E é esta revelação que lhe faz dizer, sem exteriorizar a sua revolta, que é assim mesmo, que a água só corre para o mar. E correndo sempre para o mar, a água deixa na miséria a terra seca do sertão, e na angústia, a alma ressequida do homem do Nordeste. Tão ressequida que, de vez em quando, esta vira pedra – a alma e o coração de pedra dos cangaceiros. Na sua visão fatalista do mundo, estes seres primitivos chegam à conclusão de que não há barragens que possam estancar esta tendência inevitável do Destino, que leva sempre a água para o mar, onde menos falta ela faz. Um sentimento de total impotência e da própria desvalia se apoderou da alma do camponês nordestino. Daí a sua humildade e o seu aparente conformismo, diante dessa conspiração invencível das forças naturais e das forças sociais, associadas ambas, para o esmaga2 3 Winslow, E. A.: The Cost of Sickness and the price of Health, Genevè, 1951. Nurkse, Ragnar: Some aspects of Capital Accumulation in Underdeveloped Countries, Cairo, 1952. 130 JOSUÉ DE CASTRO - VIDA E OBRA rem em suas pretensões de obter qualquer melhoria de suas condições de vida. Não foi portanto pensando em reivindicações dos direitos expoliados nem com o desejo de se organizar para lutar contra a exploração do regime agrário reinante, que os humildes camponeses do Engenho Galiléia fundaram as Ligas Camponesas. Não se chamava o seu engenho Galiléia? O mesmo nome da Terra Santa, onde o doce Jesus pregou pela primeira vez a doutrina da igualdade e da fraternidade humanas, doutrina revolucionária que, durante 2 mil anos, ainda não conseguiu, entretanto, penetrar de verdade, na alma empedernida dos falsos cristãos que dominam uma grande parte do mundo? Portanto, quem melhor armado para entender o profeta da Galiléia, do que essa pobre gente do Engenho Galiléia, nesse Nordeste do Brasil? Pobres como os amou Cristo, que por eles se deixou crucificar para que o reino dos céus se estabelecesse na Terra. Quem melhor para sentir os sentimentos e as lições de amor do grande profeta da Galiléia, do que esta gente destituída de tudo, sem maiores ambições neste Mundo? Apenas ambicionando um dia se apresentarem bem, diante dos olhos de Deus. E foi neste ponto que as suas aspirações pareceram um tanto excessivas aos olhos dos outros cristãos, os cristãos-proprietários de terras, donos de engenho, senhores do Nordeste. A aspiração dos associados da liga era de se prepararem para sua apresentação no juízo final, em condições que não lhe fossem totalmente desvantajosas, de forma a serem ouvidos pela Autoridade Suprema. A primeira condição seria, sem dúvida a de se apresentarem diante de Deus com as mãos limpas de crimes e com a alma limpa de vícios. E isto seria difícil para a maioria deles. Mas no seu entender simplista, seria também necessário apresentar-se com um mínimo de decência, numa hora de tamanha importância e de tanta solenidade: a hora do juízo final. E é ai que a sua extrema miséria não lhe permitia este mínimo de decência. É um hábito nessas terras miseráveis que os pobres lavradores, no termo de suas vidas de miséria, sejam levados ao cemitério num caixão “de caridade”, que a Prefeitu- B E R N A R D O M . F E R N A N D E S E C A R L O S W A L T E R P . G O N Ç A L V E S (ORGS.) 131 ra empresta, mas que tem de ser restituído na boca da cova, para servir a outros defuntos. Ora, ser enterrado desta forma constitui a humilhação suprema para essa pobre gente, cuja vida não passa de um rosário de humilhações. Mas esta é a maior de todas, porque é uma humilhação que passará para o outro lado da vida – uma humilhação que durará toda a eternidade. A liga foi criada para evitar esta suprema humilhação. Quando, em 1960, um jornalista entrevistou um dos principais dirigentes da liga, o velho José Francisco de Sousa, e lhe perguntou o que tinha a liga feito em benefício dos pobres camponeses, ele respondeu tranqüilamente: “Veja, moço. Antes da liga, quando um de nós morria, o caixão era emprestado pela prefeitura. Depois que o corpo era levado à vala comum, o caixão voltava para o depósito municipal. Hoje a liga paga o enterro e o caixão desce com o morto.” Ali estava o primeiro resultado patente da iniciativa que haviam tomado João Firmino e seus companheiros do Engenho Galiléia, ao fundarem, nessas terras de tanta pobreza, uma sociedade civil beneficente de auxílio-mútuo, para ajudar seus moradores a morrer com decência: com uma vela na mão, com os olhos fitos na chama desta vela que os ajudaria a orientar seus primeiros passos na escuridão do além, e com a confortadora certeza de que dispunham dos seus sete palmos de terra onde pousar o seu caixão e nele esperar tranqüilo o juízo final. Esta instituição beneficente foi denominada “Sociedade Agrícola e Pecuária dos Plantadores de Pernambuco”. Mas o nome não pegou. O que pegou foi o apelido. É que logo em seguida à sua criação, começaram a chamar à sociedade liga. Liga Camponesa. O apelido foi botado para desfazer dela. Para lhe dar uma origem considerada suspeita pelos conservadores, com ocultas ligações com o movimento revolucionário iniciado há muitos anos noutros pontos do Nordeste, sob a forma de organizações camponesas, visando reunir os trabalhadores da cana numa espécie de sindicato que lhes desse força política suficiente para reclamar e para reivindicar. E estas primeiras tentativas tinham sido chamadas de Ligas Camponesas, provavelmente sob a remota inspiração das 132 JOSUÉ DE CASTRO - VIDA E OBRA Ligas Camponesas da Idade Média, criadas pelo campesinato europeu como instrumento de luta dos servos da gleba, contra a opressão intolerável dos príncipes e dos barões feudais. Não se pode esquecer que a colonização brasileira se iniciou no Nordeste sob o signo do medievalismo feudal, no qual se inspirou Portugal, para introduzir nestas terras o regime das Capitanias Hereditárias, entregues de mão beijada aos donos dos feudos, os barões do Novo Mundo. É que, embora no começo do século 16, quando o Brasil foi colonizado, já estávamos em plena Renascença européia, a Península Ibérica, desviada da sua rota histórica por sua interminável luta com o Islã, e isolada geograficamente do resto da Europa pela barreira dos Pirineus, continuava encastelada no seu feudalismo agrário, caracteristicamente medieval.4 E Portugal, ainda mais do que a Espanha, separado do grande mundo por toda a espessa muralha da Meseta Castelhana. Este secular retardamento histórico fez com que a colonização ibérica do Novo Mundo se constituísse como uma empresa de tipo medieval, como uma sobrevivência das Cruzadas, impregnada de um espírito ao mesmo tempo religioso e guerreiro, místico e de desenfreada cobiça. Sob este aspecto, bem diferente da colonização inglesa da América, mais de índole burguesa e de espírito moderno, pós-renascente e pós-luteriano. Dentro do patrimônio medieval trazido pelos colonos portugueses, com seus hábitos arraigados no complexo do latifúndio feudal, é bem possível que tenham os camponeses do Nordeste, também herdado a tradição das Ligas Camponesas do Medievo europeu, que um dia iria repontar com inesperada violência no processo da evolução social do Nordeste. Como herdeiros presumíveis desta tradição secular, as 140 famílias que habitavam as terras do Engenho Galiléia, criaram a sua liga Camponesa e depois de eleger sua primeira diretoria, convidaram, num gesto de tradicional humildade do servo para com o senhor, o próprio senhorde-engenho para ser seu presidente de honra. E ele aceitou. E fez-se a 4 Sanches, Albornoz, Claudio: La Edad Média y la Empresa de America, La Plata, 1934. B E R N A R D O M . F E R N A N D E S E C A R L O S W A L T E R P . G O N Ç A L V E S (ORGS.) 133 sua posse com solenidade, com festas e com foguetes. E registrou-se o estatuto da sociedade, no qual, além da ajuda funerária, figuravam como objetivos mais remotos, a aquisição de sementes e de instrumentos agrícolas e a possível obtenção de uma ajuda governamental. Mas não durou muito esta “lua-de-mel” do senhor das terras com os seus servos, associados da liga. É que outros latifundiários da redondeza, senhores-de-engenho como ele, se apressaram em alertá-lo da loucura que ele tinha feito em se deixar envolver por esta perigosa aventura. Em ter consentido a instalação em suas terras deste perigoso instrumento de agitação social. Desta espécie de cavalo de Tróia, introduzido disfarçadamente dentro dos seus domínios de portas fechadas, para abrir na calada da noite todas as portas ao comunismo. E o homem assombrou-se e não quis mais ser o presidente da sociedade. E exigiu mesmo o seu fecho imediato. Foi aí que a história mudou de rumo. A maioria dos camponeses resistiu ao fecho e a partir deste momento, sob a pressão dos acontecimentos, a sociedade mutualista funerária virou mesmo uma liga camponesa para lutar pelos direitos dos camponeses contra a opressão dos senhores da terra. Criada para defender os direitos dos mortos, ela iria, agora, constituir-se como instrumento de reivindicação dos direitos dos vivos. Mas não é mesmo morrendo que melhor se aprende a viver? Pelo menos no Nordeste brasileiro. Foi tratando dos problemas da morte, que os componentes do Engenho Galiléia, abriram seus olhos para a vida. E viram melhor, e melhor compreenderam as injustiças da vida e quais eram os autores dessas injustiças. Era a tomada de consciência da sua realidade social, fenômeno que vem ocorrendo em nossos dias por todo o mundo chamado subdesenvolvido – mundo escravizado e espoliado – e que naquele dia se cristalizava como uma força nova na sociedade fechada e primitiva dos moradores do Engenho Galiléia. E com esta força eles enfrentaram o patrão. Não se submeteram como faziam até então com sua costumada docilidade, às suas ordens absurdas. Contam que o senhor do engenho, como revide à obstinação do grupo em não querer fechar a liga, determinou a suspensão de uma ordem que tinha dado para que 134 JOSUÉ DE CASTRO - VIDA E OBRA fosse retirada de suas matas a madeira necessária à construção de uma capela. Os camponeses protestaram contra esta suspensão e o patrão ameaçou-os com a polícia sob o pretexto de que eles pretendiam devastar as suas matas. Seguem-se as intimidações, as chamadas à delegacia e as ameaças dos capangas. Mas, diante de tudo isto, aumentou cada vez mais a hostilidade dos camponeses. Surgem então os processos judiciários contra os mais responsáveis, responsabilizados como agitadores e terroristas. E, finalmente, apareceram as ações de despejo, a expulsão sumária dos camponeses da terra onde sempre viveram, feita em nome da lei. Nesta altura da luta, os camponeses fincaram o pé. Não sairiam em paz da terra onde nasceram, onde sofreram todas as agruras da vida e onde esperavam ver enterrados os seus ossos. É que nenhum povo do mundo, se mostra mais enraizado à terra, mais profundamente ligado ao seu solo natal, do que o povo do Nordeste. Sondando a alma complexa e singular do povo chinês, o qual, embora sofrendo há milênios as agruras periódicas de todos os tipos de cataclismos naturais, com que os brinda a sua terra martirizante – as secas, as inundações os terremotos, as nuvens de gafanhotos – se mostram sempre tão indissoluvelmente ligados a essa terra. Keyserling5 escreveu as seguintes palavras: “Não há outro camponês no mundo que dê tal impressão de identificação total com a terra... De participar tão intensamente da vida da terra. Tudo na China – toda a vida e toda a morte – se desenrola na terra herdada. É o homem que pertence à terra, não a terra que pertence ao Homem”. Mas há. Há outro camponês no mundo, tão identificado com a terra quanto o chinês: é o camponês do Nordeste brasileiro, que Keyserling nunca conheceu e do qual o mundo inteiro sempre teve bem pouco conhecimento, vivendo o Nordeste à margem do mundo, relegado em sua obscuridade e em sua solidão. Mas por isso mesmo por sua solidão forçada, o homem do Nordeste, abandonado do resto do país e do mundo, se voltou para a sua paisagem circundante e nela fincou as raízes de sua alma. Mesmo o 5 Keyserling, Herman: Journal de Voyage d’un Philosophe, 1952. B E R N A R D O M . F E R N A N D E S E C A R L O S W A L T E R P . G O N Ç A L V E S (ORGS.) 135 homem do sertão semi-árido, que vive uma vida de seminômade, escorraçado de vez em quando pelo cataclismo das secas, é extremamente apegado à sua terra e a ela aspira voltar, sempre que o cataclisma passa. Até os seus nomes são nomes da terra – dos lugares, das aldeias, dos povoados, onde nasceram: Antônio Pedro do Juazeiro, Juca da Serra Talhada, Manuel João da Lagoa Grande... nomes de homens e de terra, como na Idade Média, afirma com certo orgulho o escritor sertanejo Luiz de Câmara Cascudo.6 Este desadorado amor à terra, que sempre o fez sofrer, faz com que o homem do Nordeste a defenda sempre, até o extremo limite de suas forças e tenha sempre desta terra um ciúme tão intenso, como se ela fosse uma mulher. É como se ele não pudesse viver longe dela, exilado deste amor. E se agora, no meio desta luta intensa, queriam expulsar de suas terras, os moradores do Engenho Galiléia em nome da lei, usando contra eles os subterfúgios da lei, que eles candidamente ignoravam era necessário, para que eles pudessem defender-se e resistir, que fosse consultado um advogado versado na lei. Mas um advogado custa muito dinheiro e a caixa da liga estava bem pouco provida de recursos. Pressionados pelas circunstâncias, procuram os dirigentes da liga um advogado modesto, até então obscuro, mas que já havia aceitado defender outras causas de camponeses escorraçados pelos donos de latifúndio noutras terras: este advogado chamava-se Francisco Julião. Aceitando patrocinar a sua causa, Julião deu inicio à luta judiciária pela permanência dos camponeses na Galiléia. Seu instrumento de luta era o Código Civil, que ele cedo verificou ser uma arma de pouca serventia para defender os interesses dos pobres, tendo sido elaborado para defender os direitos do rico, enquanto o Código Penal é que fora concebido para ser aplicado aos pobres.7 Perdendo terreno na arena judiciária, Julião apelou para outro campo de luta, usando, ao lado da tribuna do Foro, a tribuna políti6 7 Cascudo, Luiz da Câmara: Viajando pelo Sertão, s.l.n.d. Julião, Francisco: Que São as Ligas Camponesas, Rio de Janeiro, 1962. 136 JOSUÉ DE CASTRO - VIDA E OBRA ca, aproveitando a circunstância de dispor de um mandato de deputado estadual na Assembléia do Estado de Pernambuco. E foi assim que o advogado Julião se foi transformando pouco a pouco em agitador social. Em denunciador público dos crimes hediondos do latifundiarismo. E foi assim que as Ligas Camponesas começaram a espalhar-se por toda a região, com a criação de novos núcleos, que se constituíram sob a pressão das circunstâncias – da violência e da opressão desbragadas do latifundiarismo – num instrumento de ação política libertadora, esgrimindo a ideologia, o proselitismo, a doutrinação. Nesta fase de acesa luta, a imprensa começou a tomar conhecimento das escaramuças mais importantes, relatadas sempre com violentos ataques aos “terroristas” na página policial dos jornais. Depois o assunto passou para a página política, fornecendo matéria para os artigos de fundo. E as Ligas Camponesas foram assim tomando corpo e ganhando nova alma. Começaram a assustar seriamente o Nordeste inteiro, como se fossem uma espécie de dragão ameaçando engolir toda a terra dos grandes proprietários do Nordeste e destruir a paz, a ordem e a riqueza de que sempre gozaram esses proprietários, tão amantes da ordem. Nessa onda de violências, de mistificações e de falsas interpretações, no choque entre as aspirações populares e as resistências conservadoras, ambas radicalizadas ao extremo, as ligas foram criando raízes, projetando a sombra de suas verdes esperanças e de suas negras ameaças, pelo país inteiro. Falava-se delas como se fosse o próprio Apocalipse e de Julião, como se fosse o anticristo. Foi neste momento que os Estados Unidos da América redescobriram o Nordeste. E esta descoberta deve-se em grande parte ao obscuro e incipiente movimento das Ligas Camponesas. Em fins de 1960, com o seu povo extremamente sensível aos perigos da revolução comunista de Fidel Castro em Cuba, e a sua possível propagação para o continente, a imprensa norte-americana lançou-se com um dramático interesse sobre o Nordeste brasileiro explosivo e ameaçador. E os Estados Unidos, que tinham descoberto vagamente o Nordeste brasileiro durante a Segunda Guerra Mundial, quando os aviões de trans- B E R N A R D O M . F E R N A N D E S E C A R L O S W A L T E R P . G O N Ç A L V E S (ORGS.) 137 porte, em viagem para a África e a Europa faziam pouso na região, principalmente no aeroporto de Natal, que se transformou na época no maior aeroporto do mundo, voltaram a descobrir, desta vez com atônita e perplexa curiosidade, essa terra ignota. Esse estranho mundo que parecia uma nova Cuba em formação: a Cuba continental. Como Cuba, região de monocultura açucareira e de latifúndio agrário. Como Cuba, possuindo um líder considerado um marxista, conduzindo à revolução, essa massa de deserdados e fanatizados, dispostos a tudo, como foi mostrado em várias reportagens, publicadas nos grandes jornais dos Estados Unidos, e mostrada em imagem de um colorido impressionante, num filme apresentado numa grande cadeia de televisão. Era o Nordeste na ordem do dia, como “vedete”, como uma espécie de novo far-west a acender a imaginação de milhares de indivíduos que poucos dias antes ignoravam mesmo a sua existência geográfica.8 Alfred O. Hirschman escreve o que se segue no seu interessante livro Journal Toward Progress, publicado em 1963: “Nestes dois últimos anos, o Nordeste brasileiro torna-se familiar para os leitores de jornais e espectadores de televisão nos Estados Unidos, como uma zona na qual 20 milhões de criaturas, quase um terço da população do Brasil, vivem numa extrema miséria e, talvez, em perigo iminente de serem levados à convulsão social pelas Ligas Camponesas de inspiração comunista”. Um outro autor norte-americano, o economista Stefan Robock, numa obra de real valor publicada no mesmo ano, Northeast Brazil: a Developing Economy exprime-se da seguinte maneira: “No fim de 1960, no entanto, quando os Estados Unidos se tinham tornado hipersensíveis à ameaça do Castro-comunismo através da América Latina produziu-me uma dramática “redescoberta” do Nordeste brasileiro. E, durante um certo período de 18 meses, o Nordeste foi novamente projetado, como um foguetão, da obscuridade para a fama mundial.” 8 Hirschman, Alfred: Journey Toward Progress, New York, 1963. 138 JOSUÉ DE CASTRO - VIDA E OBRA Esta inesperada revelação de um mundo tão estranho à mentalidade do norte-americano médio, levada pela imprensa sem a menor preparação ou apresentação ao seu público, criou uma grande perplexidade e certa confusão nos Estados Unidos. De um lado, um sentimento de pânico pelos perigos desta nova explosão social tão ameaçadora, e do outro lado, um grande desejo de ajudar, de fazer alguma coisa para evitar a explosão. Mas a falta de uma serena visão dos fatos, o desconhecimento total da realidade social do Nordeste e das raízes históricas que tinham dado origem a essa aberração social, tornavam bem difícil um approach razoável do problema, que não fosse o da simplificação apressada e deformante, ou o da fantasmagoria histórica das manchetes apocalípticas. E assim, o Nordeste, descoberto quando ajudava os Estados Unidos na última guerra e agora redescoberto, quando parecia ajudar os inimigos dos Estados Unidos no continente, continuou, na verdade, como um desconhecido dos Estados Unidos. E, por que não dizer a verdade, como um desconhecido do mundo. Embora no cartaz, o que dele se apresenta por toda a parte é, em geral, uma falsa imagem do seu papel histórico, tanto no passado como no futuro. Falsa imagem tanto das suas possibilidades como das suas deficiências e dificuldades. Do que é possível fazer-se de bem pelo Nordeste, como do que é possível que o Nordeste venha a fazer de mal ao mundo: à sua segurança e à sua tranqüilidade. Se dedicamos ao estudo das Ligas Camponesas o primeiro capítulo deste livro, foi com a premeditada intenção de mostrar, como uma iniciativa brotada das tradições do feudalismo agrário, aí reinante com objetivos humanitários e pacíficos, se pode transformar num instrumento revolucionário, de explosiva agitação social, em face da cega incompreensão e da obstinada resistência da própria estrutura feudal. E mostrar também como pode um fenômeno social ser totalmente distorcido em sua realidade pelas falsas interpretações do jornalismo tendencioso ou sensacionalista. De fato, a imagem das Ligas Camponesas difundida pela imprensa de certos países, como sendo um instrumento do comunismo internacional, fabricado em B E R N A R D O M . F E R N A N D E S E C A R L O S W A L T E R P . G O N Ç A L V E S (ORGS.) 139 Moscou e implantado no Nordeste brasileiro para repetir nessa área o episódio de Cuba e comunizar o continente inteiro, é uma imagem totalmente falsa, que não resiste a uma análise fria dos fatos. Uma análise que ponha em linha de conta, como estamos tentando fazer, os principais personagens e os episódios centrais das origens desse movimento. Criadas dentro do espírito do cristianismo primitivo que até hoje impregna a alma coletiva da população nordestina, as Ligas Camponesas foram mesmo, em certa fase, mal vistas e tenazmente combatidas pelos líderes marxistas da região. E, se posteriormente se aliaram as ligas aos comunistas, na luta comum pela emancipação da massa camponesa, não quer isto dizer que sua inspiração brotara da doutrina de Marx ou da ação política de Lenin ou de Fidel Castro, mas da experiência vivida e sofrida por essa massa humana em sua luta desigual por um mínimo de aspirações, em face ao máximo de resistências dos seus opressores feudais. Tem toda a razão o jornalista Robert Goughlan da revista Life, quando afirma, com excepcional lucidez, que atribuir o descontentamento social da América Latina “a um ‘complô’ forjado em Moscou, como fazem muitos, é ser perigosamente ingênuo. Suas raízes mergulham fundo no seu passado, que conta como ingredientes, a conquista, a exploração, a fome e a extrema miséria”. Outra razão da prioridade dada às Ligas Camponesas no plano deste livro, deriva do fato incontestável de que foram elas que projetaram o Nordeste na imprensa norte-americana, provocando a redescoberta desta região e determinando em parte a criação da “Aliança para o Progresso” como uma tentativa dos E.U.A de evitar a suposta bolchevização do continente. Antes de terminar este capítulo, julgamos indispensável deixar bem claro que, a nosso ver, as Ligas Camponesas nunca alcançaram uma importância política destacada: uma estruturação funcional e uma liderança suficientemente vigorosa para desencadearem um verdadeiro processo revolucionário. Longe disso. Sempre foram, como 140 JOSUÉ DE CASTRO - VIDA E OBRA instrumento revolucionário, uma arma quase infantil. E se esta arma de brinquedo assustou tanto aos grandes senhores feudais e seus associados, é que eles se encontram há muito tempo num estado de pavor permanente. Pavor que os leva a ver no menor gesto ou atitude de inconformismo das massas espoliadas, um perigo tremendo para a manutenção dos seus privilégios. O perigo das líricas Ligas Camponesas sempre fora pequeno, o medo delas é que era grande e continua a crescer cada vez mais. 4 . A D E S C O B E RTA FOME* DA Nas terras pobres e famintas do Nordeste brasileiro, onde nasci, é hábito servir-se um pedacinho de carne seca com um prato bem cheio de farofa. O suficiente de carne – quase um nada – para dar gosto e cheiro a toda uma montanha de farofa feita de farinha de mandioca, escaldada com sal. Foi, talvez, por força deste velho hábito da minha terra que resolvi servir ao leitor deste livro muita farofa com pouca carne. Sentindo que a história que vou contar é uma história magra, seca, com pouca carne de romance, resolvi servi-la com uma introdução explicativa que engordasse um pouco o livro e pudesse, talvez, enganar a fome do leitor – a sua insaciável fome de romance. Foi, no fundo, como uma espécie de sublimação deste complexo de um povo inteiro de famintos, sempre preocupado em esconder ou, pelo menos, em disfarçar a sua fome eterna, que acabei fazendo uma copiosa introdução a este magro romance que tem por personagem central o drama da fome. Assim, por força das circunstâncias, encontrará o leitor, neste livro, muita explicação e pouco romance. Pouco, mas o suficiente para dar ao livro o gosto e o cheiro fortes do drama da fome, que é, no fundo, a carne desta obra. Mas será mesmo este livro um romance? Ou será mais um livro de memórias? Talvez, sob certos aspectos, uma autobiografia? Não * Prefácio ao livro Homens e Caranguejos, Lisboa, 1966. 142 JOSUÉ DE CASTRO - VIDA E OBRA sei. Tudo o que sei é que, neste livro, se conta a história de uma vida diante do espetáculo multiforme da vida. A história da vida de um menino pobre abrindo os olhos para o espetáculo do mundo, numa paisagem que é, toda ela, um braço de mar – um longo braço de um mar de misérias. O tema deste livro é a história da descoberta da fome nos meus anos de infância, nos alagados da cidade do Recife, onde convivi com os afogados deste mar de miséria. Procuro mostrar neste livro de ficção que não foi na Sorbonne, nem em qualquer outra universidade sábia, que travei conhecimento com o fenômeno da fome. O fenômeno se revelou espontaneamente a meus olhos nos mangues do Capibaribe, nos bairros miseráveis da cidade do Recife: Afogados, Pina, Santo Amaro, Ilha do Leite. Esta é que foi a minha Sorbonne: a lama dos mangues do Recife, fervilhando de caranguejos e povoada de seres humanos feitos de carne de caranguejos, pensando e sentindo como caranguejo. Seres anfíbios – habitantes da terra e da água, meio homens e meio bichos. Alimentados na infância com caldo de caranguejo: este leite de lama. Seres humanos que se faziam assim irmãos de leite dos caranguejos. Que aprendiam a engatinhar e a andar com os caranguejos da lama e que depois de terem bebido na infância este leite de lama, de se terem enlambuzado com o caldo grosso da lama dos mangues, de se terem impregnado do seu cheiro de terra podre e de maresia, nunca mais se podiam libertar desta crosta de lama que os tornava tão parecidos com os caranguejos, seus irmãos, com as suas duras carapaças também enlambuzadas de lama. Cedo me dei conta deste estranho mimetismo: os homens se assemelhando em tudo aos caranguejos. Arrastando-se, acachapandose como os caranguejos para poderem sobreviver. Parados como os caranguejos na beira da água ou caminhando para trás como caminham os caranguejos. É por isso que os habitantes dos mangues, depois de terem um dia saltado dentro da vida, nesta lama pegajosa dos mangues, dificil- B E R N A R D O M . F E R N A N D E S E C A R L O S W A L T E R P . G O N Ç A L V E S (ORGS.) 143 mente conseguiam sair do ciclo do caranguejo, a não ser saltando para a morte e, assim, afundando-se para sempre dentro da lama. A impressão que eu tinha era que os habitantes dos mangues – homens e caranguejos nascidos à beira do rio – à medida que iam crescendo, iam cada vez se atolando mais na lama. Parecia que a vegetação densa dos mangues com seus troncos retorcidos, com o emaranhado de seus galhos rugosos e com a densa rede de suas raízes perfurantes os tinha agarrado definitivamente como um polvo, enfiando tentáculos invisíveis dentro de sua pele, pelos olhos, pela boca, pelos ouvidos. E, assim, ficavam todos eles afogados no mangue, agarrados pelas ventosas com as quais os mangues insaciáveis lhes sugavam todo o suco de sua carne e da sua alma de escravos. Com uma força estranha, os mangues iam, assim, apoderando-se da vida de toda aquela gente, numa posse lenta, tenaz, definitiva. Estas estranhas plantas que, em eras geológicas passadas, se tinham apoderado de toda essa área de terra – esta fossa pantanosa onde hoje assenta a cidade do Recife – estendia agora sua posse também aos seus habitantes. E tudo nesta região passava a pertencer ao mangue conquistador e dominador: a Terra e o Homem. Na verdade, foram os mangues os primeiros conquistadores desta terra. Foram mesmo em grande parte os seus criadores, Toda esta vasta planície inundável formada de ilhas, penínsulas, alagados e pauis, fora em tempos idos uma grande fossa, uma baía em semicírculo, cercada por uma cinta de colinas. Nela vindo a desaguar, através da muralha dessas colinas, dois grandes rios – o Capibaribe e o Beberibe – foram entulhando a fossa com materiais aluvionais: com a terra arrancada de outras áreas distantes e trazida na enxurrada das suas águas. Pouco a pouco foram surgindo, dentro da baía marinha, pequenas coroas lodosas, formadas através da precipitação e deposição dos materiais trazidos dos rios. E foi sobre estes bancos de solo ainda mal consolidados, mistura incerta de terra e água, que se apressaram a proliferar os mangues – esta estranha vegetação capaz de viver den- 144 JOSUÉ DE CASTRO - VIDA E OBRA tro de água salgada, numa terra frouxa, constantemente alagada. Agarrando-se com unhas e dentes a este solo para sobreviver, através de um sistema de raízes que são como garras fincadas profundamente no lodo e amparando-se, umas nas outras, para resistirem ao ímpeto das correntezas da maré e ao sopro forte dos ventos alíseos, que arrepiam sua cabeleira verde, os mangues foram pouco a pouco entrelaçando suas raízes e seus braços numa amorosa promiscuidade, e foram assim consolidando a sua vida e a vida do solo frouxo das coroas de lodo donde brotaram. Com os depósitos aluvionais que se foram acumulando na trama do labirinto de raízes dos mangues e debaixo das suas copadas sombras verdes, foi progressivamente subindo o nível do solo e alargando sua área sob a proteção desse denso engradado vegetal. Não há, pois, a menor dúvida de que toda esta terra que hoje flutua à flor das águas, na baía entulhada do Recife, foi uma criação dos mangues. Os mangues vieram com os rios e, com os materiais por estes trazidos, foram os mangues laboriosamente construindo seu próprio solo, batendo-se em luta constante contra o mar. Vieram como se fossem tropas de ocupação e, em contato com o mar, edificaram silenciosamente e progressivamente esta imensa baixada aluvional hoje cortada por inúmeros braços de água dos rios e densamente povoada de homens e caranguejos, seus habitantes e seus adoradores. Tendo os mangues realizado esta obra ciclópica, não admira que, hoje, sejam eles divinizados pelos habitantes desta área, embora não saibam os homens explicar como o mangue realiza este milagre de criar terra como se fosse um deus. Mas os homens vêem, até hoje, crescer diante dos seus olhos as coroas lodosas e transformarem-se, pela força construtora dos mangues, em ilhas verdejantes, fervilhantes de vida. E vêem, assombrados, proliferarem em torno das ilhas maiores outras pequeninas, como que saídas durante a noite do seu próprio ventre, em misteriosos partos da terra que o mangue milagrosamente ajuda. B E R N A R D O M . F E R N A N D E S E C A R L O S W A L T E R P . G O N Ç A L V E S (ORGS.) 145 Nasci na cidade do Recife, que é sob certos aspectos a HongKong da América, com a sua miséria acumulada, empastada neste grupo de ilhas que flutuam, sonolentas, entre os braços dos rios: o Capibaribe e o Beberibe. A primeira sociedade com que travei conhecimento foi a sociedade dos caranguejos. Depois, a dos homens habitantes dos mangues, irmãos de leite dos caranguejos. Só muito depois é que vim a conhecer a outra sociedade dos homens – a grande sociedade. E devo dizer com franqueza que, de tudo o que vi e aprendi na vida, observando estes vários tipos de sociedade, fui levado a reservar, até hoje, a maior parcela de minha ternura para a sociedade dos mangues – a sociedade dos caranguejos e dos homens, seus irmãos de leite, ambos filhos da lama. É a história da sociedade desses seres anfíbios que eu conto neste livro. Desta sociedade que, economicamente, também é anfíbia, pois que vegeta nas margens ou bordas de duas estruturas econômicas que a história até hoje não costurou num mesmo tecido: a estrutura agrária feudal e a estrutura capitalista. Estruturas que persistem no Nordeste do Brasil, lado a lado, sem se fundirem, sem se integrarem até hoje num mesmo tipo de civilização. A sociedade dos mangues é uma sociedade imprensada entre estas duas estruturas esmagantes. É uma sociedade que, comprimida pelas outras duas, escorre como uma lama social na cuba dos alagados do Recife, misturando-se com o caldo grosso da lama dos mangues. Nasci numa rua que tinha o nome ilustre de Joaquim Nabuco, o grande abolicionista dos escravos, nos tempos do Império. A casa em que nasci tinha ao lado um grande viveiro de peixes, de caranguejos e de siris. Se não nasci mesmo dentro do viveiro, com os caranguejos, já com dois anos estava dentro dele. Escorreguei um dia no barro de suas margens e fui retirado de dentro de suas águas meio afogado. Daí em diante, mergulhar nas águas do mangue tornou-se um hábito. Mudei-me depois para outro bairro mais perto do rio. Fomos 146 JOSUÉ DE CASTRO - VIDA E OBRA morar na Madalena, numa velha casa colonial de um só andar, com seis grandes janelas de frente. Casa grande, acachapada, com sua pesada massa arquitetônica, montada como uma fortaleza em seus altos batentes, por onde subiam os caranguejos em tempo de cheia até o terraço, os mais ousados entrando mesmo nas salas. Nas épocas de cheia, a casa virava uma arca de Noé, e todo o sítio virava um mar. Quando as águas baixavam, uma lama preta ficava recobrindo durante dias toda a paisagem. A frente da casa era voltada para o rio porque fora construída nos velhos tempos em que todo o transporte da cidade se fazia em botes e barcaças, os homens do comércio do açúcar indo para os seus escritórios de sobrecasaca preta e cartola, com negros de torso nu remando pelo Capibaribe acima. O sítio era cheio de árvores e bichos. Mangueiras e sapotizeiros que davam frutos maravilhosos. Maravilhosos eram, também, os frutos de outras árvores que não existiam no nosso sítio, mas que nele apareciam espalhados pelo chão. Eram frutos colhidos durante a noite nos sítios vizinhos, pelos morcegos que os deixavam cair dos seus braços, nos seus vôos apressados. Eram goiabas, jambos e araçás, todos meio roídos, mas que eu saboreava com gosto nos meus passeios matinais pelo sítio, parasitando, assim, o trabalho noturno dos morcegos, meus sócios circunstanciais. Havia também no sítio vacas, cavalos, carneiros e cabras, que, durante as épocas de cheia, eram amontoados no terraço da casa. E pássaros de toda espécie, cantando em grandes gaiolas penduradas por toda parte. Meu pai tinha trazido para o Recife toda a paisagem viva da sua terra, com seus bichos, com os seus pássaros. Dentro do sítio eu respirava uma paisagem transplantada do sertão distante e em frente à casa eu contemplava a paisagem da costa – a paisagem negra do mangue. Bem ao lado da casa começava a zona compacta dos mocambos, das choças de palha e de barro, amontoadas umas por cima das outras num enovelado de ruelas, numa anarquia desesperadora. As casas entrando por dentro da maré, a maré invadindo as casas. Os braços do rio passando pelo meio da rua e a lama envolvendo tudo. B E R N A R D O M . F E R N A N D E S E C A R L O S W A L T E R P . G O N Ç A L V E S (ORGS.) 147 Criei-me nos mangues lamacentos do Capibaribe, cujas águas, fluindo diante dos meus olhos ávidos de criança, pareciam estar sempre a contar-me uma longa história. O romance das longas aventuras de suas águas descendo pelas diferentes regiões do Nordeste: pelas terras cinzentas do sertão seco, onde nasceu meu pai e de onde emigrou na seca de 1877 com toda família, e pelas terras verdes dos canaviais da zona da mata, onde nasceu minha mãe, filha de senhor de engenho. Esta era a história que me sussurava o rio com a linguagem doce de suas águas passando assustadas pelo mar de cinza do sertão, caudalosas pelo mar verde dos canaviais infindáveis e remansosas pelo mar de lama dos mangues, até cair nos braços do mar. Eu ficava horas e horas imóvel sentado no cais, ouvindo a história do rio, fitando as suas águas correrem como se fossem uma fita de cinema. Foi o rio meu primeiro professor de história do Nordeste, da história desta terra quase sem história. A verdade é que a história dos homens do Nordeste me entrou muito mais pelos olhos do que pelos ouvidos. Entrou-me por dentro dos meus olhos ávidos de criança sob a forma destas imagens que estavam longe de serem sempre claras e risonhas. Foi com estas sombrias imagens dos mangues e da lama que comecei a criar o mundo de minha infância. Nada eu via que não me provocasse a sensação de uma verdadeira descoberta. Foi assim que eu vi e senti formigar dentro de mim a terrível descoberta da fome. Da fome de uma população inteira escravizada à angústia de encontrar o que comer. Vi os caranguejos espumando de fome à beira da água, à espera que a correnteza lhes trouxesse um pouco de comida, um peixe morto, uma casca de fruta, um pedaço de bosta que eles arrastariam para o seco matando a sua fome. E vi, também, os homens sentados na balaustrada do velho cais murmurarem monossílabos, com um talo de capim enfiado na boca, chupando o suco verde de capim e deixando escorrer pelo canto da boca uma saliva esverdeada que me parecia ter a mesma origem da espuma dos 148 JOSUÉ DE CASTRO - VIDA E OBRA caranguejos: era a baba da fome. Pouco a pouco, por sua obsessiva presença, este vago desenho da fome foi ganhando relevo, foi tomando forma e sentido em meu espírito. Fui compreendendo que toda a vida dessa gente girava sempre em torno de uma só obsessão – a angústia da fome. Sua própria linguagem era uma linguagem que quase não fazia alusão a outra coisa. A sua gíria era sempre carregada de palavras evocando comidas. As comidas que desejavam com desenfreado apetite. A propósito de tudo se dizia: é uma sopa, é uma canja, é um tomate, é uma ova, é um abacaxi, é uma batata, é pãopão, é queijo-queijo. Era como se esta gíria fosse uma espécie de compensação mental de um povo sempre faminto. De um povo inteiro de barriga vazia, mas com a cabeça cheia de comidas imaginárias. É que a comida lhes havia subido à cabeça, como o sexo sobe a cabeça dos impotentes, estes famintos de amor. Esta presença constante da fome sempre fora a grande força moderadora do comportamento moral de todos os homens desta comunidade: dos seus sentimentos dominantes. Vê-los agir, falar, lutar, sofrer, viver e morrer era ver a própria fome modelando, com suas despóticas mãos de ferro, os heróis do maior drama da humanidade – o drama da fome. Foi o que viram, assustados e sem compreender bem todo o drama, os meus olhos de criança. Pensei, a princípio, que a fome era um triste privilégio desta área onde eu vivia – a área dos mangues. Depois verifiquei que, no cenário da fome do Nordeste, os mangues eram uma verdadeira terra de promissão que atraía os homens vindos de outras áreas de mais fome ainda. Da área das secas e da área da monocultura da cana-de-açúcar, onde a indústria açucareira esmagava, com a mesma indiferença, a cana e o homem: reduzindo tudo a bagaço. Era um curso inteiro que eu fazia sobre a fome, quando ouvia, com um interesse sempre crescente, as intermináveis histórias contadas por meu pai sobre as agruras sofridas pela nossa família, na seca de 1877. Da presença da fome na zona do açúcar, tomei conheci- B E R N A R D O M . F E R N A N D E S E C A R L O S W A L T E R P . G O N Ç A L V E S (ORGS.) 149 mento mais detalhado através do relato monótono de dois velhos negros que tinham sido escravos na juventude e que desfilavam suas lembranças da época enquanto serravam grama para os cavalos de meu pai. Mesmo quando me ia distrair, assistindo aos cantadores de feira ou ao espetáculo do bumba-meu-boi – auto popular representado na zona dos mocambos – o que encontrava diante de mim, representando, falando, gesticulando, era sempre a fome em seus numerosos disfarces. Eram os violeiros cantando: Triste vida de posseiro junto à Alagoa Amarela. Vinte anos sobre a terra cavando o faltoso pão, vinte anos de promessa com a mesma enxada na mão, catorze filhos no mundo fora os que estão no caixão Peguei na espingarda velha como quem pega o enxadão com a força que a fome dá pra quem defende seu pão E no bumba-meu-boi, o que eu via era um estranho boi de duas pernas apenas, o mais humano dos bois que eu tinha encontrado na vida, sofrendo como um homem, chorando e revoltandose como gente. E eu me tomava de amores por aquele boi magro e seco, tão magro e tão seco que, na verdade, era só cabeça e na cabeça era só chifres. Enormes chifres balançando no ar como um fantasma de boi. Realmente o boi era só chifres e pêlo, porque carne não tinha, como afirmava em sua cantoria o vaqueiro que, palpando o boi por toda parte, nunca encontrava em parte alguma sinal de carne: 150 JOSUÉ DE CASTRO - VIDA E OBRA Eu fui ver na cabeça Eh! Bumba! Achei ela bem lefa Eh! Bumba! Eu fui lá na ponta Eh! Bumba! Ela de mim não fez conta Eh! Bumba! Eu fui ver no pescoço Eh! Bumba! Achei ele bem torto Eh! Bumba! Eu fui ver nas apá Eh! Bumba! Não achei nada lá Eh! Bumba! Eu fui ver lá na mão Eh! Bumba! Não achei nada não Eh! Bumba! Eu fui ver nas costelas Eh! Bumba! Não achei nada nelas Eh! Bumba! B E R N A R D O M . F E R N A N D E S E C A R L O S W A L T E R P . G O N Ç A L V E S (ORGS.) 151 Eu fui ver no vazio Eh! Bumba! Achei o boi bem esguio Eh! Bumba! Eu fui ver no chambari Eh! Bumba! Não achei nada ali Eh! Bumba! Eu fui ver no cocotó Eh! Bumba! Achei bem ao redor Eh! Bumba! Eu fui ver na rabada Eh! Bumba! Não achei ali nada Eh! Bumba! O Bumba-meu-boi era apenas um pesadelo de faminto. De faminto sonhando com o fantasma de um boi, que cresce diante dos seus olhos compridos, mas cujas carnes desaparecem sob as apalpadelas de suas mãos. E foi assim que, pelas histórias dos homens e pelo roteiro do rio, fiquei sabendo que a fome não era um produto exclusivo dos mangues. Que os mangues apenas atraíram os homens famintos do Nordeste: os da zona da seca e os da zona da cana. Todos atraídos por esta terra de promissão, vindo se aninhar naquele ninho de lama, construído pelos dois rios e onde brota o maravilhoso ciclo do caranguejo. E quando cresci e saí pelo mundo afora, vendo outras paisagens, me apercebi com nova surpresa que o que eu pensava ser um fenômeno local, um drama do meu bairro, era um drama universal. 152 JOSUÉ DE CASTRO - VIDA E OBRA Que a paisagem humana dos mangues se reproduzia no mundo inteiro. Que aqueles personagens da lama do Recife eram idênticos aos personagens de inúmeras outras áreas do mundo, assoladas pela fome. Que aquela lama humana do Recife, que eu conhecera na infância, continua sujando até hoje toda a paisagem do nosso planeta como negros borrões de miséria: as negras manchas demográficas da geografia da fome. Mas isto já mostrei noutros ensaios que escrevi sobre a fome. Ensaios de natureza científica, de análise sociológica do problema. O que não tinha contado, até hoje, foi o meu encontro com o drama da fome. Hoje, resolvi contá-lo. Não só o encontro, como o pavor que ele me provocou. Tomei conhecimento do monstro nos mangues do Capibaribe, e nunca mais me pude libertar de sua trágica fascinação. É esta fascinação e esta marca que a fome provocou na minha alma de criança, que procuro hoje invocar neste romance – o romance do Ciclo do Caranguejo. Algumas das coisas que conto neste livro hoje desapareceram, mas outras – a maioria delas – permanecem intactas, tais como as viram os meus olhos de criança. É que o tempo conta pouco nas terras da miséria, nas terras subdesenvolvidas do Terceiro Mundo, onde a fome e a morte com sua presença constante estão sempre a tecer o destino dos homens. 5. FOME COMO FORÇA SOCIAL: FOME E PAZ* Apesar do terrível esforço despendido pelos países da Europa durante a última guerra mundial e do sensível aumento do nível de vida no mundo do após-guerra, os povos desenvolvidos continuam ignorando o que significa, em toda sua crueza e realidade, a fome considerada como fator social, agindo sobre grandes massas humanas. É verdade que, através de filmes documentários, assistimos a cenas impressionantes de fome, tomadas em diversas regiões da terra: quer imagens das regiões superpovoadas do extremo Oriente, com seus coolies descarnados ou indianos ascéticos, em luta permanente contra o espectro da fome, quer imagens dos campos de concentração na Europa, com suas figuras trágicas e angustiadas de homens, mulheres e crianças esfomeadas e amontoadas como lixo, à beira das grandes valas onde eram jogados seus corpos, reduzidos tão-somente a esqueletos envolvidos de pele. Essas imagens cinematográficas, com toda a sua carga de horror e sofrimento, despertam, quando muito, na consciência dos povos bem alimentados, um sentimento de piedade e desencanto pela condição humana. Vista à distância e esquematizada até certo ponto, em uma série de simples imagens visuais, a tragédia da fome exprime * Trabalho publicado na revista Pourquoi, número especial, março de 1967, Paris. 154 JOSUÉ DE CASTRO - VIDA E OBRA apenas uma pequena parcela de sua terrível significação social e de suas repercussões econômicas e políticas. A noção que se tem, corretamente, do que seja a fome é, assim, uma noção bem incompleta. E este desconhecimento, por parte das elites européias, da realidade social da fome no mundo e dos perigos que este fenômeno representa para a sua estabilidade social, constitui uma grave lacuna tanto para a análise dos acontecimentos políticos da atualidade, que se produzem em diversas regiões da terra, como no que se refere à atitude que os países da abundância deveriam ter face aos países subdesenvolvidos, permanentemente perseguidos pela penúria e pela miséria alimentar. Neste ensaio, gostaríamos de tentar apresentar uma visão realista da fome enquanto calamidade social, procurando corrigir algumas idéias correntes que não correspondem à realidade dos fatos. Procuraremos, também, demonstrar até que ponto a fome pode intervir como força social, capaz de modificar a conduta e o comportamento do homem, agindo, assim, em conseqüência, como um fator de desajuste entre indivíduos, povos e nações. Inicialmente, gostaríamos de destacar o fato relativamente pouco conhecido de que a fome não é um fenômeno de expressão puramente regional, limitado a determinadas zonas do mundo – o extremo Oriente e a África. A fome é um fenômeno geograficamente universal, a cuja ação nefasta nenhum continente escapa. Toda a terra dos homens foi, até hoje, a terra da fome. As investigações científicas, realizadas em todas as partes do mundo, constataram o fato inconcebível de que dois terços da humanidade sofre, de maneira epidêmica ou endêmica, os efeitos destruidores da fome. E que, até mesmo no continente americano – a terra prometida que atraiu, apenas no decorrer do último século, cerca de 100 milhões de imigrantes europeus, que procuravam escapar das garras da pobreza e da fome, ainda hoje existem aproximadamente 100 milhões de indivíduos morrendo de fome. É claro que são computados nessa cifra não apenas os casos de fome total, de verdadeira inanição, mas também os casos mais fre- B E R N A R D O M . F E R N A N D E S E C A R L O S W A L T E R P . G O N Ç A L V E S (ORGS.) 155 qüentes e muito mais generalizados de fome parcial, de fome oculta ou específica, resultante da carência, no regime normal, de certos princípios nutritivos indispensáveis à vida. É que existem duas maneiras de morrer de fome: não comer nada e definhar de maneira vertiginosa até o fim, ou comer de maneira inadequada e entrar em um regime de carências ou deficiência específicas, capaz de provocar um estado que pode também conduzir à morte. Mais grave ainda que a fome aguda e total, devido às suas repercussões sociais e econômicas, é o fenômeno da fome crônica ou parcial, que corrói silenciosamente inúmeras populações do mundo. Para que se possa compreender todas as implicações da fome coletiva, no domínio das atividades econômico-sociais, é necessário ter, antes de tudo, uma idéia objetiva de sua ação sobre a personalidade humana, tanto sobre seu corpo quanto sobre seu espírito. É possível, hoje em dia, fazer uma síntese dessa ação aniquilante da fome, com base nas observações científicas realizadas nos campos de concentração da Europa durante a última guerra, ou nas zonas de fome que subsistem, independetemente da guerra, em países pouco desenvolvidos ou sujeitos a calamidades meteorológicas, como as secas e as inundações, ou, finalmente, a partir de experiências de laboratório realizadas por especialistas. Como exemplo deste último tipo de observações, podemos citar as do grupo de pesquisadores da Universidade de Minnesota, dirigida pelo Dr. A. Keys, onde voluntários foram submetidos experimentalmente a um regime de semi-inanição durante um período de 6 meses. É verdade que neste tipo de experiência os observadores obtêm resultados relativos no que se refere aos efeitos psicológicos da fome, porque os indivíduos com os quais as experiências foram feitas não estavam submetidos à angústia e à pressão inerentes à verdadeira miséria e à impossibilidade material de obter alimentos para satisfazer sua fome, como ocorre nas zonas de fome existentes no mundo. Apesar de tudo, numerosos resultados observados nos laboratórios da Universidade de Minnesota coincidem com as observações feitas na Europa e com as que pudemos recolher em certas zonas de fome na América Latina. 156 JOSUÉ DE CASTRO - VIDA E OBRA As conseqüências físicas da fome são, de maneira geral, bem conhecidas: diminuição ou parada de crescimento, perda de peso, perda de forças, anemia etc. Não é necessário, portanto, dedicar a esta parte um estudo mais detalhado. Os aspectos psicológicos do fenômeno, contudo, são bem mais complexos e bem mais obscuros e constituirão um dos pontos tratados neste ensaio. Nesta análise da influência da fome e da subalimentação sobre o comportamento humano, traremos como contribuição efetiva as observações pessoais que fizemos em zonas de fome epidêmica no Brasil. No Nordeste deste país, em tempos normais, as populações locais têm um regime equilibrado, baseado em carne, leite, queijo e milho, produtos obtidos graças a um sistema de economia mista, agricultura e criação de gado. Mas, como se trata de uma região sujeita a secas periódicas, quando se produz este cataclismo meteorológico toda a economia regional se desorganiza e a fome aguda aparece, matando parte de sua população e expulsando a outra parte, obrigando-a a emigrar para zonas de clima mais regular. Nós tivemos oportunidade de seguir, em muitos destes episódios de seca, as transformações violentas que surgem na vida humana desta região. A fome age não apenas sobre os corpos das vítimas da seca, consumindo sua carne, corroendo seus órgãos e abrindo feridas em sua pele, mas também age sobre seu espírito, sobre sua estrutura mental, sobre sua conduta moral. Nenhuma calamidade pode desagregar a personalidade humana tão profundamente e num sentido tão nocivo quanto a fome, quando atinge os limites da verdadeira inanição. Excitados pela imperiosa necessidade de se alimentar, os instintos primários são despertados e o homem, como qualquer outro animal faminto, demonstra uma conduta mental que pode parecer das mais desconcertantes. Seu comportamento se modifica como o de outros seres vivos atingidos nesta mesma zona pelo flagelo da fome: o do gado, o dos morcegos e o das serpentes. O gado parece perder toda sensibilidade à dor e chega a comer plantas espinhosas (como o cactus) que ferem B E R N A R D O M . F E R N A N D E S E C A R L O S W A L T E R P . G O N Ç A L V E S (ORGS.) 157 sua boca a ponto de o sangue correr, misturado à sua baba. Os morcegos e as serpentes, que em tempos normais vivem longe das habitações humanas, invadem as casas no período de seca e atacam o homem para acalmar sua fome desesperada. A ação da fome, no homem, não se manifesta como uma sensação contínua, mas como um fenômeno intermitente, com acessos e melhoras periódicas. No começo, a fome provoca uma excitação nervosa anormal, uma extrema irritabilidade e, principalmente, uma exaltação dos sentidos que se animam num elã de sensibilidade ao serviço quase exclusivo das atividades que permitem obter alimentos e, portanto, satisfazer o instinto mortificado da fome. Entre os sentidos, os que sofrem o máximo de excitação são os da visão e do olfato, os que podem melhor orientar o faminto na procura de alimento. Neste momento, o homem se apresenta, mais do que nunca, como um verdadeiro animal de rapina, obstinado na procura de uma presa qualquer para acalmar sua fome. É nessas ocasiões que surgem, nessa região do Brasil, seus famosos bandidos. Nesta fase desaparecem todos os outros desejos e interesses vitais, e o pensamento se concentra exclusivamente nas possibilidades de encontrar alimento, não importa por que meio nem com que riscos. É a obsessão do espírito polarizado para um único desejo, concentrado em uma única aspiração: comer. A esse período de exaltação se segue um período de apatia, de depressão, de náusea e de extrema dificuldade de concentração mental. Nesses limites, já muito perigosos para a segurança do espírito, a personalidade se desagrega, e as reações normais a todas as outras solicitações do meio exterior sem relação com o fenômeno da fome se extinguem pouco a pouco. Nessa desintegração do eu desaparecem as atividades de autoproteção e controle mental, e, finalmente, o indivíduo perde totalmente todos os escrúpulos e inibições de ordem moral. Assim, com a consciência extinta, o conflito inconsciente prossegue, entre as forças de satisfação do instinto de nutrição e as forças dirigidas pelos outros interesses humanos. Um dos dois grupos de elementos superará o outro, segundo o que o sociólo- 158 JOSUÉ DE CASTRO - VIDA E OBRA go Sorokin chama de “lei de diversificação e de polarização dos efeitos”, permitindo assim o aparecimento, em períodos de catástrofes, de bandidos e de santos. É desta forma que as secas e fomes periódicas contribuem para provocar a cristalização de dois tipos característicos da vida social desta região do Brasil: os cangaceiros e os místicos fanáticos. Tipos tão característicos desta zona, que muitas vezes são representados em um mesmo indivíduo, em uma mesma personalidade. Exemplo disso é o famoso cangaceiro e beato Bento da Cruz, originário da cidade de Juazeiro, que assassinou seu próprio pai e, com uma cruz em uma mão e um punhal na outra, fez justiça à sua maneira, nesta pequena localidade. O cangaceiro, que emerge como uma serpente transtornada da imundície social, freqüentemente significa a vitória do instinto da fome sobre as barreiras sociais que o meio levanta. O místico fanático traduz a vitória da exaltação moral que faz apelo às forças sobrenaturais a fim de dominar o instinto desordenado da fome. Nos dois casos, assistimos a um uso desproporcional e inadequado da força – da força física ou da força mental – para lutar contra o flagelo ou contra seus trágicos efeitos. Além desta ação direta sobre a personalidade dos homens da região, desorientando-os ou desajustando-os, as fomes periódicas agem desorganizando ciclicamente a economia regional e criando um meio social extremamente receptivo às atividades tanto do banditismo quanto do misticismo. Sob esta ação desintegradora das fomes periódicas, esta região só progride lentamente, sob o ponto de vista social e, no entanto, em tempos normais, o grupo humano que aí vive é disciplinado, trabalhador, industrioso e de uma honestidade a toda prova. Todas estas belas qualidades desaparecem como que por encanto nos períodos de fome. Tomando esta região como exemplo, queremos mostrar qual o efeito da fome como verdadeira força social. Seu primeiro efeito desagregador reside no fato de que o grupo humano submetido à sua ação periódica ou permanente perde sua capacidade criadora, mes- B E R N A R D O M . F E R N A N D E S E C A R L O S W A L T E R P . G O N Ç A L V E S (ORGS.) 159 mo que os indivíduos que o compõem sejam hereditária e constitucionalmente capazes, mesmo que sejam intelectualmente superiores. Investigações realizadas entre estudantes de diversas regiões do Oriente e da América Latina demonstraram que as crianças possuem muitas vezes quociente de inteligência de média elevada, mas que seu rendimento escolar é precário porque são incapazes de uma atenção mais prolongada ou de um esforço mental contínuo. Esta rápida fadiga e esta incapacidade de concentração são produzidos exclusivamente pela fome. Da mesma forma, a produção per capita dos trabalhadores de certas zonas equatoriais e tropicais é baixa porque o regime de fome sob o qual eles vivem não lhes fornece energia suficiente para um trabalho intensivo. Cria-se, assim, um terrível círculo vicioso: nas zonas de fome, a produção não aumenta, por falta de trabalho suficiente e disciplinado, e sem aumentar a produção, a fome continua sabotando os planos de trabalho construtivo. Para agravar a situação e fechar ainda mais o círculo de ferro, aparecem as doenças comumente ligadas à fome e à pobreza. A fome e o paludismo, por exemplo, são flagelos que se associam. Estima-se em 300 milhões o número de pessoas atingidas pelo paludismo e em 3 milhões o número de mortes devido a esta doença, cada ano. Em diversas regiões, o paludismo é grave e mata em grandes proporções, porque ataca pessoas famintas, sem nenhuma resistência. Além disto, como a produção destas regiões é terrivelmente fraca, sempre faltam recursos financeiros para o seu saneamento. Aviltando as populações e diversos países, entravando sua produção, restringindo seu poder de compra, provocando a instabilidade política e a inquietação social, a fome tornou-se, sem nenhuma dúvida, o sabotador mais ativo da paz no mundo atual. Sua ação social negativa não se limita às regiões onde ela se vicia, mas seus efeitos vão bem mais longe e repercutem com intensidade sobre a economia e a vida política de todos as nações. As populações cronicamente famintas, por sua fraca capacidade de produção e por seu poder de compra quase nulo, constituem massas 160 JOSUÉ DE CASTRO - VIDA E OBRA parasitas que pesam bastante em um dos pratos da balança da economia mundial. Além disto, constituem centros de agitação social contínua e de explosões desordenadas de revoltas improdutivas, de verdadeiras crises de nervos de populações neurastênicas e carentes de vitaminas. Qual deve ser o comportamento político do mundo diante deste terrível caos social? Para que nosso mundo possa sobreviver com suas instituições e seus princípios fundamentais, somente um caminho é praticável: maximização de esforços para restringir ao mínimo essas zonas de fome. Trata-se de uma luta difícil e a longo prazo, mas perfeitamente realizável com as possibilidades naturais da terra e os atuais conhecimentos do homem. O primeiro passo neste sentido consiste em obter um aumento progressivo da produção de alimentos nas diferentes partes do mundo. Não existem para isso obstáculos geográficos. Podemos aproveitar 52% da superfície da terra para a produção de alimentos e, no entanto, até hoje só foram ativamente explorados 10% deste total. Restam assim 42% do solo para ser utilizado visando à expansão da agricultura, à luta contra a fome. E são exatamente as zonas de fome que, em geral, possuem as maiores superfícies de terras inexploradas. Na América Latina – que é uma das zonas de fome do mundo – a extensão de terras exploradas não alcança 5% do total do território. No Brasil, com uma grande extensão territorial de mais de 7 milhões de km2, a superfície cultivada não chega a 2% da superfície total. Assim, não são os obstáculos naturais – nem o solo, nem o clima – que tornam esta tarefa difícil, como tampouco são os fatores de natureza geográfica que produzem geralmente as fomes. Em regra geral, são fatores sociais, conseqüência de estruturas econômicas defeituosas. O caminho para a salvação do mundo, segundo nossa opinião, deve consistir em facilitar progressivamente sua reestruturação econômica e social a partir de princípios mais humanitários – princípios que coloquem o homem como o centro do pensamento e do interes- B E R N A R D O M . F E R N A N D E S E C A R L O S W A L T E R P . G O N Ç A L V E S (ORGS.) 161 se social. Desta forma, será possível utilizar recionalmente os inúmeros recursos naturais ainda inexplorados e obter alimentos para acalmar a fome de toda a humanidade. A solução preconizada pelos pessimistas desencorajados, com Vogt, em seu livro Road to Survival, é a de considerar preferível deixar morrer inúmeros indivíduos nas regiões mais pobres, como a China, para restabelecer o equilíbrio econômico ameaçado pela relação entre população e produção mundial. Contudo, esta solução nos parece ser um falso caminho para a sobrevivência, já que, nessas zonas de fome, quanto mais gente morre, mais gente nasce. É curioso notar que as regiões onde a miséria alimentar é maior, os índices de natalidade também o são, como por exemplo, a Índia, o extremo Oriente. As populações do mundo não se comportam estatisticamente como as moscas de laboratório, que regulam suas curvas de crescimento demográfico segundo a quantidade de alimento que lhes é fornecida pelo pesquisador. Com os homens é bem diferente. Como se tratasse de uma forma de revolta da espécie contra a pressão da fome, o homem aumenta sua capacidade de reprodução nas regiões onde a morte dizima com mais violência. Além disto, Vogt se engana, também, quando preconiza a extinção forçada destas massas humanas nas regiões mais atrasadas, com a intenção egoísta de defender as condições de vida, aprovisionamento e a segurança social dos habitantes das regiões mais civilizadas porque, deste modo, o que se consegue é aumentar a insegurança social e as dificuldades econômicas do mundo inteiro. Com efeito, estas massas humanas não se deixam sacrificar assim passivamente, como gado dócil, ao contrário, elas se revoltam, se agitam e constituem um verdadeiro foco de elaboração de idéias revolucionárias. Seria muito mais indicado ajudar essas populações a se nutrir melhor, para que assim pudessem ter capacidade e força para produzir melhor. Não existe perigo em se ver dobrar a população do mundo, se esta população se compõe de indivíduos capazes de uma ação social, capazes de produzir para sua subsistência e a dos seus. A afirmativa do grupo neomalthusianista, que 162 JOSUÉ DE CASTRO - VIDA E OBRA admite ser necessário prescrever o controle da natalidade para salvar o mundo, não tem muito sentido, porque o mundo está longe de estar muito povoado. O que ocorre é que não existe gente suficiente para produzir e existe gente demais para comer. O conceito de excedente de população, que serve de base aos adeptos da doutrina do controle da natalidade, é um conceito muito relativo. Três homens em uma zona desértica, sem produção de espécie alguma, superpovoam esta zona. Três mil homens trabalhando na sua transformação, irrigando-a e cultivando-a de maneira adequada, podem constituir uma população ótima para esta mesma zona. Os três bilhões de habitantes que representam atualmente a população do mundo e assustam os neomalthusianos como se se tratasse de uma nuvem de gafanhotos ameaçando devorar toda a produção desse pequeno pomar que só cobre um décimo da superfície terrestre, talvez, no futuro, correspondam apenas a uma pequena população facilmente alimentável, desde que o pomar se estenda pelas terras semi-áridas dos trópicos, às zonas de floresta equatorial e mesmo às tundras geladas das regiões subpolares, graças aos métodos e técnicas de que dispõe hoje a agricultura científica. O mundo pode até duplicar a sua população atual, desde que dê prova de bom senso e procure o caminho adequado para a sobrevivência. A chave desse caminho se encontra na concepção fundamental de que vivemos atualmente num mundo que é um organismo vivo, unitário, onde todas as partes estão indissoluvelmente ligadas, o que significa que, desde que uma dessas partes sofra de fome e esteja ameaçada de morrer e apodrecer na miséria, todo organismo está ameaçado pela mesma infecção. Uma frase pronunciada diante dos delegados da oitava reunião da FAO há alguns anos por Truman, então presidente dos Estados Unidos, nos parece muito sensata e oportuna. “A fome não tem nacionalidade; a abundância tampouco deve tê-la”. Acalmar a fome do mundo é a política mais sadia para aplacar a fúria guerreira que sopra neste momento, como uma terrível tem- B E R N A R D O M . F E R N A N D E S E C A R L O S W A L T E R P . G O N Ç A L V E S (ORGS.) 163 pestade, sobre a superfície deste mundo, ameaçando-o com um novo e terrível tipo de erosão: a erosão total da magnífica obra humana que as sucessivas civilizações esculpiram sobre a terra. 6 . S U B D E S E N V O LV I M E N TO : CAUSA PRIMEIRA DA POLUIÇÃO * Os chamados países subdesenvolvidos devem se preocupar com os problemas do meio? À primeira vista, esses problemas são muito mais graves e complexos nos países desenvolvidos, onde a industrialização e a gigantesca concentração urbana provocam diretamente um desequilíbrio inevitável e uma acentuada degradação do contorno natural, isto é, do meio. Desta forma, os problemas de poluição parecem se circunscrever e interessar quase exclusivamente aos países do alto nível de industrialização e, em muito escassa medida, aos países pobres, meros fornecedores de matérias-primas. Esta é uma análise errônea, originada da imprecisão de alguns conceitos básicos, como as acepções habituais de “meio” e “desenvolvimento”. O meio não é apenas o conjunto de elementos materiais que, interferindo continuamente uns nos outros, configuram os mosaicos das paisagens geográficas. O meio é algo mais do que isso. As formas das estruturas econômicas e das estruturas mentais dos grupos humanos que habitam os diferentes espaços geográficos também são partes integrantes dele. Considerado globalmente, o meio tanto compreende fatores de ordem física ou material quanto fatores de ordem econômica e cultural. * Trabalho apresentado no “Colóquio sobre o Meio”, em junho de 1972, em Estocolmo. Publicado na revista O Correio da Unesco, ano 1, nº 3, março de 1973. 166 JOSUÉ DE CASTRO - VIDA E OBRA Uma análise correta do meio deve abarcar o impacto total do homem e de sua cultura sobre os elementos restantes do contorno, e o impacto dos fatores ambientais sobre a vida do grupo humano considerado como uma totalidade. Desse ponto de vista o meio abrange aspectos biológicos, fisiológicos, econômicos e culturais, todos combinados na mesma trama de uma dinâmica ecológica em transformação permanente. Esse conceito é mais amplo e mais objetivo que o resultante de uma concepção do meio como sistema de relações mútuas entre os seres vivos e o contorno natural, considerados ambos como fenômenos isolados. Igualmente falso é o conceito de desenvolvimento avaliado unicamente à base da expansão da riqueza material, do crescimento econômico. O desenvolvimento implica mudanças sociais sucessivas e profundas, que acompanham inevitavelmente as transformações tecnológicas do contorno natural. O conceito de desenvolvimento não é meramente quantitativo, mas compreende os aspectos qualitativos dos grupos humanos a que concerne. Crescer é uma coisa; desenvolver, outra. Crescer é, em linhas gerais, fácil. Desenvolver equilibradamente, difícil. Tão difícil que nenhum país do mundo conseguiu ainda. Desta perspectiva, o mundo todo continua mais ou menos subdesenvolvido. Atualmente está na moda falar dos defeitos nocivos que o crescimento econômico produz sobre o meio, sobre os componentes do contorno natural; entretanto, costuma-se referir apenas e precisamente aos efeitos que não são os mais ameaçadores para o futuro da humanidade. Ouvem-se gritos de alarme condenando o crescimento da população, a poluição do ar, dos rios e dos mares e a degradação do patrimônio animal e vegetal das regiões mais desenvolvidas do mundo; mas tudo isso revela uma visão limitada do problema, já que o clamor se refere apenas aos efeitos diretos da expansão econômica, enquanto deixa na sombra e reduz ao silêncio a insidiosa ação indireta do desenvolvimento sobre a totalidade B E R N A R D O M . F E R N A N D E S E C A R L O S W A L T E R P . G O N Ç A L V E S (ORGS.) 167 dos grupos humanos. E é evidente que esta ação indireta é mais determinante que a ação direta. O primeiro erro grave, a primeira conclusão falsa que deriva desta visão parcial do problema é a afirmativa muito generalizada de que nas regiões mais ricas é que apareceram, por causa do crescimento econômico, os primeiros efeitos da poluição e da degradação do meio ambiente. A realidade é diferente: os primeiros e mais graves efeitos do desenvolvimento manifestaram-se precisamente naquelas regiões que estão hoje economicamente subdesenvolvidas e que ontem eram politicamente colônias. O subdesenvolvimento que existe nessas regiões é o primeiro produto do desenvolvimento desequilibrado do mundo. O subdesenvolvimento representa um tipo de poluição humana localizado em alguns setores abusivamente explorados pelas grandes potências industriais do mundo. O subdesenvolvimento não é, como muitos pensam equivocadamente, insuficiência ou ausência de desenvolvimento. O subdesenvolvimento é um produto ou um subproduto do desenvolvimento, uma derivação inevitável da exploração econômica colonial ou neocolonial, que continua se exercendo sobre diversas regiões do planeta. Há os que afirmam, convictos, que a problemática do meio nos países subdesenvolvidos é diferente da dos países ricos e industrializados. Assim, diz-se que nas regiões subdesenvolvidas não existe preocupação com os aspectos qualitativos da vida, mas apenas com a possibilidade de sobreviver, isto é, com a luta contra a fome, contra as epidemias e contra a ignorância generalizada. Esta posição esquece que estes são apenas sintomas de uma grave doença social: o subdesenvolvimento como um produto do desenvolvimento. Os países subdesenvolvidos que lutam pela sobrevivência devem se preocupar com os problemas do meio e do desenvolvimento em escala mundial, para se defenderem das agressões que seu próprio meio sofre há séculos por parte das metrópoles colonialistas, destruidoras da condição humana nas áreas subdesenvolvidas. 168 JOSUÉ DE CASTRO - VIDA E OBRA Se só ultimamente é que se vem falando com insistência da poluição e degradação provocadas pelo crescimento econômico, isso se deve a que a civilização ocidental, com seu repertório científico etnocêntrico, sempre se negou a aceitar esta evidência: que a fome e a miséria de algumas regiões distantes fazem parte do custo social do seu próprio progresso, um progresso que a humanidade inteira paga para que o desenvolvimento econômico avance no pequeno número de regiões dominantes política e economicamente no mundo. A escamoteação desta verdade provocou a implantação em escala planetária de uma estratégia de luta contra o subdesenvolvimento que estava irremediavelmente fadada ao fracasso: a do Decênio para o Desenvolvimento, de 1960 a 1970. Fracasso que se tornará a produzir enquanto as estruturas econômicas do mundo continuarem sustentadas pelos falsos suportes do seu edifício social: a economia de guerra, a economia do lucro máximo e a política de esmagamento econômico do Terceiro Mundo. Na sua luta por emancipação e sobrevivência, os países subdesenvolvidos terão de obter a qualquer preço uma sensível diminuição do impacto econômico negativo que a economia de mercado provoca no seu sistema de economia de dependência. Esses países vão combater a ação indireta e distante dos grandes pólos de concentração de capital, que alimentam por todos os meios, inclusive pela negativa à estabilidade do custo das matérias-primas, o subdesenvolvimento da periferia econômica do mundo. Para que não reste a menor dúvida de que o subdesenvolvimento é, na civilização de consumo, um produto do desenvolvimento, basta verificar que antes da explosão capitalista e industrial do nosso século não existia esta divisão entre países desenvolvidos e subdesenvolvidos, separados uns dos outros por um largo fosso econômico. Foi depois da segunda revolução industrial que se exteriorizaram as disparidades extremas dos ritmos de crescimento e dos níveis econômicos de ambos os grupos de países. B E R N A R D O M . F E R N A N D E S E C A R L O S W A L T E R P . G O N Ç A L V E S (ORGS.) 169 Tomemos um exemplo concreto: a renda média por habitante, em dois países representativos dos dois grupos, Estados Unidos da América e Índia. Antes da I Guerra Mundial, a renda média por habitante era na Índia oito vezes inferior à dos Estados Unidos; antes da II Guerra Mundial, era 15 vezes inferior; atualmente a renda de um hindu é 50 vezes menor que a de um norte-americano. É preciso considerar a degradação da economia dos países subdesenvolvidos como uma poluição do seu meio humano, causada pelos abusos econômicos das zonas de domínio da economia mundial; a fome, a miséria, os altos índices de freqüência de enfermidades evitáveis com um mínimo de higiene, a curta duração média da vida, tudo isto é produto da ação destruidora da exploração do mundo segundo o modelo da economia de domínio. A fome na Índia, no Peru, em São Domingos, no Nordeste do Brasil, embora apareça como manifestação local de zonas subdesenvolvidas, exprime na verdade formas paradoxais de doenças da civilização, na medida em que são o produto indireto do crescimento econômico desequilibrado, da mesma forma que são também indiretamente produzidas por ele as doenças cardiovasculares e degenerativas. No fundo, ambos os grupos de doenças, as da civilização e as da penúria, são causadas por um só despotismo, o da frenética civilização do lucro. Umas surgem ali, diretamente sobre o próprio terreno desse despotismo; outras, indiretamente, longe dele. A estratégia que considerava a realidade social do Terceiro Mundo separada do mundo como totalidade foi fatal para a melhoria das condições do meio. Toda a biosfera é um só ecossistema composto de múltiplos subsistemas. O ecossistema da biosfera possui enorme plasticidade estrutural, devido ao jogo dos mecanismos de compensação utilizados para equilibrar os impactos negativos da ação humana. Mas essa plasticidade, que é um importante triunfo do homem, na medida em que permite transformar a biosfera e utilizar seus elementos para satisfazer as necessidades, não pode ultrapassar certos 170 JOSUÉ DE CASTRO - VIDA E OBRA limites fixados pelas leis dos equilíbrios naturais, sob pena de provocar graves e, às vezes, fatais rupturas nos ecossistemas. Os desequilíbrios extremos a que foi arrastado o Terceiro Mundo constituem, por causa do jogo das inter-relações ecológicas, uma ameaça para toda a biosfera e assim, ipso facto, para toda a espécie humana. A fome do Terceiro Mundo pode um dia chegar a provocar uma peste generalizada, e a sublevação dos famintos pode levar o mundo inteiro à guerra, se consideramos estes dois problemas: fome e guerra, como formas de um desequilíbrio dinâmico do meio soioeconômico. Não devemos considerar apenas a ação indireta do desenvolvimento sobre o Terceiro Mundo, ação que é mais econômica e cultural do que puramente física ou natural; devemos nos inquietar também com a ação direta: o esbanjamento inconsiderado dos recursos naturais não renováveis e as rupturas biológicas dos subsistemas ecológicos. O Terceiro Mundo está sob a ameaça permanente de ver introduzidos tipos de desenvolvimento tecnológicos que, desdenhada a dimensão ecológica, podem provocar uma desagregação total de sua estrutura. Se levarmos em conta a relativa fragilidade de alguns ecossistemas equatoriais e tropicais, onde se agrupa a maior parte dos países do Terceiro Mundo, este perigo adquire maior gravidade ainda. Ninguém ignora a grande fragilidade do solo nestas regiões devido, sobretudo, à erosão provocada pela exploração abusiva do manto vegetal. Ninguém ignora que os transbordamentos dos rios tropicais são controlados por diques vegetais de diversos tipos que orientam o curso. Por conseguinte, a destruição dessa vegetação provoca inundações e estancamentos de águas, que acarretam graves conseqüências: da perda dos cultivos agrícolas inundados até a disseminação endêmica de algumas doenças transmitidas por insetos que proliferam nas águas estancadas. Será que basta a constatação de que o progresso tecnológico e o crescimento econômico atualmente destroem o meio ambiente do B E R N A R D O M . F E R N A N D E S E C A R L O S W A L T E R P . G O N Ç A L V E S (ORGS.) 171 Terceiro Mundo para justificar o que alguns preconizam: a saber, a interrupção do crescimento nestas regiões? Não acredito. É absurdo preconizar a interrupção do desenvolvimento econômico nos países do Terceiro Mundo, quando os povos destas regiões vêem nele a sua última esperança de sair do estado de miséria que os oprime. Não creio que os chamados “oponentes do desenvolvimento” tenham razão ao propugnar uma interrupção, pois o que se impõe é uma mudança, ou melhor dito, uma reconversão do tipo de desenvolvimento. A tecnologia não é boa nem má. É a sua utilização que lhe dá sentido ético. Se nos países do Terceiro Mundo a tecnologia age contra os povos subdesenvolvidos é porque foi utilizada unicamente para produzir o máximo de vantagens e lucros para os grupos da economia dominante. É a exploração neocolonialista que leva estes países ao estado de desespero em que hoje se encontram, agravado pela nova ameaça desta ordem de interromper o escasso progresso que conseguiram nos últimos decênios. Fala-se muito do relatório que o Instituto de Tecnologia de Massachusetts (M.I.T) preparou, por inspiração do Clube de Roma, à base de trabalhos de computadores. Este relatório determina limites de crescimento, avaliados levando-se em conta os efeitos nocivos da civilização tecnológica e industrial, ou seja, propõe a fixação de um ponto de estabilização da população e da economia mundiais. Ora, embora aparentemente o relatório tenha razão – pois a todos nós inquieta a poluição e a degradação do meio – a realidade é que, considerado, globalmente, torna-se inaceitável porque suas conclusões estão falseadas por uma metodologia pouco científica. O relatório considera que o modelo de desenvolvimento que apresenta, com sua imagem do mundo dentro de um século, é o único válido, o único possível de ser armado com os dados hoje disponíveis sobre a realidade mundial. Este exclusivismo, muito característico da cultura etnocentrista dos países desenvolvidos, demonstra por si só o caráter pouco científico do relatório. 172 JOSUÉ DE CASTRO - VIDA E OBRA Todos sabemos que não se pode prever um só tipo de modelo do futuro. Os que estudam a ciência do porvir, a prospectiva, sabem que não é possível ater-se a um futuro único, determinado pelas diferentes condições que reinam no momento de realizar o estudo. O que cabe fazer é imaginar uma série de futuros prováveis em função do princípio da probabilidade, que substituiu já há tempos o antigo princípio do determinismo, que foi a norma antes da formulação da teoria da relatividade. Pode-se, pois, conceber vários modelos do mundo de amanhã e, com grande risco de erro, prever quais as probabilidades de cada um se transformar em realidade. De forma alguma devem-se limitar as previsões científicas a um só modelo. Quando se fazem projeções lineares, como as do relatório sobre os limites do crescimento, cai-se inevitavelmente em ingênuas tentativas que não levam em conta a ruptura de estruturas, normal no processo histórico de nossa época. Vivemos uma época de descontinuidade e não de continuidade. O erro mais grave do relatório do MIT é omitir, entre os fatores que determinam o crescimento, o problema das estruturas econômicas, sociais e políticas. Na introdução do relatório, os autores levam em conta apenas cinco fatores de desenvolvimento: a população, a produção agrícola, os recursos naturais, a produção industrial e a poluição. Nem uma palavra sobre as estruturas socioeconômicas. No entanto, ninguém ignora que o nível de produção e o nível de poluição, isto é, o desenvolvimento e o meio, dependem essencialmente do tipo de estruturas em jogo. Omitindo o homem e sua cultura, o projeto torna-se alienado, porque não leva em conta as realidades do mundo atual e, por conseguinte, o modelo do mundo de amanhã. Se o Terceiro Mundo, na sua maior parte, recusa as conclusões deste relatório, é porque desconfia da prescrição sobre a interrupção do crescimento, interrupção apenas para as regiões pobres, pois é bem sabido que os países ricos não obedecerão a tal ordem. E o fosso que separa ambos os mundos se alargará ainda mais. B E R N A R D O M . F E R N A N D E S E C A R L O S W A L T E R P . G O N Ç A L V E S (ORGS.) 173 Se isto é a verdade, todo o paternalismo caritativo do Clube de Roma para com o Terceiro Mundo transforma-se num engodo. Este tipo de medida não ajuda em nada os países do Terceiro Mundo, mas, ao contrário, prende-os definitivamente ao subdesenvolvimento e à miséria. Conseqüentemente, estes países devem reagir e tentar encontrar um tipo de desenvolvimento independente do desenvolvimento neocolonial. Para isso precisarão procurar fórmulas que lhes permitam a aplicação de técnicas oriundas da prática e que serão as únicas válidas para desenvolvê-los de maneira racional. É indiscutível que o tipo de desenvolvimento atual é um fracasso, mas é indiscutível também que se pode chegar a desenvolver o mundo com estruturas socioeconômicas e instrumentos de produção diferentes dos que se usam agora. É imprescindível retransformar a economia de guerra em que vivemos numa economia de paz, e utilizar a enorme poupança que resultar do desarmamento parcial na obtenção de um tipo de desenvolvimento pacífico mais igualitário e não poluidor. 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