Josué de Castro: Vida e Obra

Transcrição

Josué de Castro: Vida e Obra
JOSUÉ DE CASTRO
Vida e obra
BERNARDO MANÇANO FERNANDES
CARLOS WALTER PORTO GONÇALVES (ORGS.)
JOSUÉ DE CASTRO
Vida e obra
2a edição - revista e ampliada
EXPRESSÃO
POPULAR
São Paulo, 2007
Copyright © 2000, by Editora Expressão Popular
Projeto gráfico, diagramação e capa: ZAP Design
Impressão: Cromosete
Ilustração da capa: Josué de Castro por Cândido Portinari
Revisão: Miguel Cavalcanti Yoshida
Agradecemos aos familiares de Josué pela liberação dos textos e das fotos
para esta publicação
Todos os direitos reservados.
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ou reproduzida sem a autorização da editora.
2ª edição: revista e ampliada: maio de 2007
EDITORA EXPRESSÃO POPULAR
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"Esta presença constante da fome sempre fora
a grande força modeladora do comportamento
moral de todos os homens desta comunidade:
dos seus sentimentos dominantes. Vê-los agir,
falar, lutar, sofrer, viver e morrer era ver a
própria fome modelando, com suas despóticas
mãos de ferro, os heróis do maior drama da
humanidade - o drama da fome".
Josué de Castro
Sumário
Apresentação - Josué de Castro, fome de Justiça ...........................9
Bernardo Mançano Fernandes e Carlos Walter Porto Gonçalves
Biografia .......................................................................................21
Maria Yedda Leite Linhares
Josué de Castro: semeador de idéias .............................................27
Anna Maria de Castro
Principais obras de Josué de Castro ..............................................81
Textos escolhidos de Josué de Castro
1. O ciclo do caranguejo ........................................................103
2. Prefácio da primeira edição de Geografia da Fome .............. 107
3. A reivindicação dos mortos ................................................125
4. A descoberta da fome .........................................................141
5. Fome como força social: fome e paz ...................................153
6. Subdesenvolvimento: causa primeira da poluição ..............165
A P R E S E N TA Ç Ã O *
J O S U É D E C A S T RO,
FOME DE JUSTIÇA
Nesta segunda edição, ampliada e revisada, reforçamos a importância da obra de Josué de Castro para a compreensão da realidade
brasileira. Para melhor compreender a sua obra, incorporamos belos
textos sobre a sua vida, com o apoio de Anna Maria de Castro, tornando o livro ainda mais interessante para conhecer o pensamento e
o pensador que dedicou sua vida para compreender e explicar a questão da fome.
As pessoas que se preocupam com o tema fome e em sua superação, não podem deixar de conhecer as obras de Josué. As organizações que lutam contra a questão fome, têm o pensador como referência fundamental. Por essa razão, uma das atividades desenvolvidas nas reuniões dos movimentos sociais é a mística. Nesses momentos, as pessoas realizam reflexões a respeito de seus princípios, tomando como referências diversos pensadores e lutadores do povo
que se dedicaram a pensar a sociedade e a lutar para transformá-la,
objetivando torná-la mais justa, generosa e solidária.
Conhecer pessoas e pensamentos, refletir sobre atos e ações, pensar o futuro são procedimentos essenciais para animar a luta popular.
· Bernardo Mançano Fernandes - Geógrafo, professor e pesquisador da Universidade Estadual Paulista – UNESP, campus de Presidente Prudente
· Carlos Walter Porto Gonçalves - Geógrafo, professor e pesquisador da Universidade Federal Fluminense.
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JOSUÉ DE CASTRO - VIDA E OBRA
Os movimentos sociais que vivem intensamente suas convicções, tendo por base as suas experiências construídas a partir do saber histórico, avançam e se consolidam. Nesse sentido, a mística é uma experimentação em que se valorizam mulheres, homens e crianças, idéias e
práticas na comemoração do fazer-se de cada dia.
As reflexões sobre as experiências de luta e resistência, associadas
ao pensamento de diferentes autores, sustentam a práxis e são elementos fundamentais da mística. Essas atividades contribuem para a
consistência dos movimentos sociais. Não basta a imagem na parede,
não basta repetir frases de diversos pensadores, é necessário conhecer
suas idéias, criticá-las, concordar ou discordar, ou seja: é preciso pensar sobre o pensado, para superar e construir novos conhecimentos
desde a realidade que se transforma.
Assim, a mística é leitura da realidade e da teoria. É poesia declamada e cantada, quando a vida é pensada e valorizada em todas as suas
dimensões. Desse modo se planta no coração e na mente as raízes da
luta popular. Planta-se a rebeldia, a indignação, a irreverência, a solidariedade e a sabedoria entre outras virtudes que vão semear a consciência, cujos frutos serão colhidos nas vitórias dos movimentos sociais.
A mística é um alimento para o pensamento e para o coração,
uma forma de nutrir as esperanças, porque aproxima as pessoas de
hoje e de ontem. Os que fizeram e os que fazem. A mística é um
momento político e cultural em que se recupera e se mantêm na
memória os pensamentos de pessoas como Josué de Castro, Paulo
Freire, Florestan Fernandes, Marx, Lenin entre tantos outros. Agora
com essa publicação, os lutadores do povo poderão conhecer um
pouco mais da vida e da obra de Josué de Castro. Lendo mais, podese aprender e compreender melhor as razões da luta popular. Assim é
possível superar dificuldades, construir esperanças e novas perspectivas, fazendo a história e a geografia, transformando realidades.
Josué de Castro foi um lutador do povo. Recuperar, conhecer
suas idéias e propostas é fundamental para compreender o mundo
hoje. Josué foi pioneiro na luta contra a fome. Seu pensamento con-
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tinua atual, principalmente por causa do empobrecimento da maior
parte da população brasileira, com a intensificação do desemprego
estrutural e da não realização da reforma agrária. Conhecer a obra de
Josué de Castro é uma possibilidade de recuperarmos suas referências
teóricas para analisarmos a realidade hoje.
O chamado globalitarismo, o fortalecimento do neoliberalismo
e os processos de privatização estão aumentando a miséria na maior
parte do mundo. O desemprego na cidade e no campo, as famílias
que moram na rua, o aumento do número de sem-terra e de semteto são exemplos da intensificação da exclusão social.
No Brasil do começo do século 21, conforme dados do Instituto
Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), a parcela constituída
por 1% dos mais ricos da população detém 13,8% da renda total,
enquanto os 50% mais pobres detém somente 13,5%. Ou seja, uma
pessoa rica ganha mais que 50 pessoas pobres. Trinta e dois milhões
de brasileiros estão abaixo da linha de pobreza e enfrentam a cada dia
o problema da fome. Ainda, os dados do IBGE (2006) registram que
40% da população brasileira ou 72 milhões de brasileiros vivem em
situação de insegurança alimentar.
A fome é a questão central dos estudos e da luta de Josué de
Castro. Por meio desse eixo principal, o autor dimensiona suas análises em diversos outros temas como, por exemplo: a reforma agrária,
a questão ecológica, o subdesenvolvimento e as desigualdades sociais.
Afirma, explicitamente, que a fome é o problema ecológico número
um na medida que todo ser vivo deve se alimentar para se manter
vivo. O homem como ser biológico que é não foge à regra. Ele também faz parte da cadeia alimentar e deve mantê-la (e manter-se) viva
(vivo). No caso dos seres humanos a questão ecológica, antecipa Josué
de Castro, incorpora a dimensão social (estrutura fundiária, por exemplo) e a questão cultural (os regimes alimentares, por exemplo). Ele
vê o ambiente inteiro.
Uma leitura atenta deste livro levará o leitor a compreender as
diferentes dimensões que o conceito de fome tem para Josué de Cas-
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JOSUÉ DE CASTRO - VIDA E OBRA
tro. Fome como resultado da exploração econômica; fome como produto da dominação política; fome como conseqüência da injustiça;
fome como dependência, fome física, fome espiritual, fome como
alienação. Fome como sede de lutar.
A obra de Josué de Castro é um marco no processo de compreensão da fome. E neste sentido, o seu livro Geografia da Fome é um dos
principais estudos dessa questão. A opção pelo método geográfico
possibilitou ao autor uma análise mais ampla. Assim, analisou o fenômeno da fome orientado
pelos princípios fundamentais da ciência geográfica, cujo objetivo básico é
localizar com precisão, delimitar e correlacionar os fenômenos naturais e
culturais que ocorrem à superfície da terra. É dentro desses princípios geográficos, da localização, da extensão, da causalidade, da correlação e da
unidade terrestre que pretendemos encarar o fenômeno da fome. Por outras palavras, procuraremos realizar uma sondagem de natureza ecológica,
dentro desse conceito tão fecundo de “Ecologia”, ou seja, do estudo das
ações e reações dos seres vivos diante das influências do meio. Nenhum
fenômeno se presta mais para ponto de referência no estudo ecológico
destas correlações entre os grupos humanos e os quadros regionais que eles
ocupam, do que o fenômeno da alimentação – o estudo dos recursos naturais que o meio fornece para subsistência das populações locais e o estudo
dos processos através dos quais essas populações se organizam para satisfazer as suas necessidades fundamentais de alimentos. (Castro, 1984, pp.
34-35).
Nessa perspectiva ecológica observamos o conjunto dos conhecimentos de Josué, que rompe com uma visão economicista e
reducionista e expressa uma visão interativa entre as pessoas e o espaço geográfico que habitam. Ampliando seus estudos geográficos, depois de Geografia da Fome, este importante estudo sobre o Brasil,
publicou Geopolítica da Fome, analisando a questão da fome no mundo. Sem dúvida, Josué de Castro foi um importante geógrafo, médico e sociólogo, tornando-se um grande pensador brasileiro e reconhecido como cidadão do mundo.
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Josué de Castro cunhou conceitos importantes, como fome
epidêmica e fome endêmica. A fome epidêmica compreendida como
a fome global, a mais aguda e violenta, a verdadeira inanição, que
se constitui na fome total. A fome endêmica compreendida como
a fome parcial, a fome oculta, pela falta permanente de determinados elementos nutritivos nos regimes alimentares, em que populações inteiras morrem lentamente de fome. Com essa distinção Josué nos esclarece que a fome no Sertão nordestino é epidêmica ficando restrita aos períodos de seca, enquanto na Zona da
Mata, onde a água é abundante, a fome é endêmica, isto é, é permanente. Com isso nos permite superar uma imagem forte
construída desde há muito que associa a fome à seca. Josué não
deixa dúvidas de que é na Zona da Mata que a fome se constitui
num fenômeno estrutural. Deixa claro, portanto, que o problema é da cerca e não da seca.
Com os esforços do autor, a fome deixou de ser tabu e esses conceitos foram sendo incorporados nos estudos e políticas de diversas
instituições, como a FAO – Organização das Nações Unidas para a
Agricultura e a Alimentação –, cujo Conselho, Josué presidiu nos
anos de 1952-1955. Todavia, admitir a fome como questão política
não era suficiente. Os limites da FAO para resolver o problema da
fome estavam representados nos interesses dos países ricos. Assim,
Josué se desiludiu com o trabalho desenvolvido, defendendo ações
sobre as instituições internacionais.
Durante os quatro anos que esteve na presidência do Conselho
Executivo da FAO, Josué de Castro lutou para implantar princípios
essenciais que desempenhassem os objetivos da organização. Todavia, o que verificou foi que os interesses de países ricos e de grupos
econômicos impediam a proposição de políticas públicas como a reforma agrária, a criação de reservas alimentares de emergência, bem
como programas de segurança alimentar.
Assim, ao deixar a presidência do Conselho da FAO, fez o seguinte pronunciamento:
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JOSUÉ DE CASTRO - VIDA E OBRA
Longe de mim menosprezar a obra realizada pela FAO mas desejo dizer
com toda a sinceridade – e peço que me perdoem por falar com uma sinceridade um tanto brutal – que me sinto decepcionado diante da obra que
realizamos. Decepcionado pelo que fizemos porque, a meu ver, não elaboramos até hoje uma política de alimentação realista perante às desesperadas necessidades do mundo e aos nossos objetivos. Não fomos suficientemente ousados para encarar de frente o problema e buscar as suas soluções.
Apenas afloramos a sua superfície, sem penetrar em sua essência. (Castro,
1966, p. 55).
Em 1954, Josué de Castro recebeu o Prêmio Internacional da
Paz. Essa atribuição significou também o reconhecimento do empenho de Josué por um mundo mais justo sem fome, ou seja: um mundo com fome de Justiça. Nesse mesmo ano foi eleito deputado federal pelo Partido Trabalhista Brasileiro e reeleito em 1958 com o maior
número de votos do Estado de Pernambuco, até então.
Como político e cientista, Josué realizou diversos estudos e elaborou vários projetos. Participou das primeiras pesquisas sobre alimentação no Brasil, realizadas no Rio de Janeiro, em São Paulo e no
Recife. O que resultou na sua expulsão do Recife, acusado de subversivo por denunciar as condições de miséria dos trabalhadores de sua
cidade. Com seus estudos, o autor mostrou para as elites da época
como morria de fome a maior parte da população. Em 1955, apresentou um projeto para a criação de uma reserva alimentar na região
Nordeste, que implicava necessariamente na realização da reforma
agrária e da redistribuição de renda.
Em sua produção científica, Josué de Castro registrou as causas da
fome. A concentração de renda e as desigualdades sociais estão no princípio da questão. A concentração da estrutura fundiária, a expropriação dos trabalhadores rurais e a utilização da terra para uma agricultura de exportação em detrimento da agricultura familiar também estão
entre as principais causas da fome. Igualmente analisou como os investimentos de enormes somas de recursos financeiros para a produção
bélica poderiam ser canalizados para eliminar a fome no mundo.
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A fome é questão presente no campo e na cidade. A exclusão
social está crescendo e é impossível não ver a expansão desse problema. De acordo com Josué de Castro não é necessária uma análise
profunda para identificá-la. A fome é evidente nas ruas, nas beiras
das estradas, onde estão as mansões e os latifúndios.
Portanto, a luta contra a fome e sua superação é uma luta contra
a concentração de riquezas e as desigualdades sociais. É fundamental
tomar consciência de que a fome é um flagelo que precisa ser suprimido. É preciso atacar as raízes do problema em vez de elaborar políticas paternalistas que recriam relações de dependência e fazem os
flagelados suportarem a fome. É preciso enfrentar o tabu da reforma
agrária e efetivá-la.
Aliás, esse é um tema que está muito presente no conjunto de sua
obra. No livro Geografia da Fome, apresenta sua compreensão do que
seria uma verdadeira reforma agrária:
O tipo de reforma que julgamos um imperativo da hora presente não é um
simples expediente de desapropriação e redistribuição de terra para atender às aspirações dos sem-terra. Processo simplista que não traz solução
real aos problemas da economia agrária. Concebemos a reforma agrária
como um processo de revisão das relações jurídicas e econômicas, entre os
que detêm a propriedade agrícola e os que trabalham nas atividades rurais.
Traduz, pois, a reforma agrária uma aspiração de que se realizem, através
de um estatuto legal, as necessárias limitações à exploração da propriedade
agrária, de forma a tornar seu rendimento mais elevado e principalmente
melhor distribuído em benefício de toda a coletividade rural. (Castro, 1984,
p. 300).
Por suas pesquisas, projetos sociais e campanhas políticas, ficou
conhecido como o maior lutador contra a fome. Exerceu cargos políticos no Brasil e no exterior, tornou-se reconhecido por suas posições contra as políticas imperialistas que condenavam os países pobres ao subdesenvolvimento. Por suas ações e por suas obras, Josué
teve seus direitos cassados, juntamente como Celso Furtado entre
outros, e foi exilado em 1964.
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JOSUÉ DE CASTRO - VIDA E OBRA
Viveu em Paris, onde trabalhou em várias universidades da França. Trabalhou também em universidades da Espanha, Bélgica, Estados Unidos, Chile, Argentina, Peru e Venezuela. Em 1973, aos 65
anos, no dia 23 de setembro, Josué de Castro faleceu. Tinha esperança de voltar ao Brasil com vida, o que não se realizou. Antes de falecer disse para um de seus amigos: “não se morre só de doença, morrese também de saudade”. Seu corpo foi trazido ao Brasil e enterrado
na cidade do Rio de Janeiro. Alguns jornais apresentaram notas a
respeito de sua morte, mas os militares não permitiram que sequer
colocassem fotos.
Muitas pessoas nunca ouviram falar de Josué de Castro. Esse fato
não é de se estranhar no Brasil, onde nos últimos 50 anos a mídia
tratou de mostrar uma realidade virtual. Aos que se propõem enfrentar a realidade e se deparam com a miséria, com o desemprego, com
a inexistência da reforma agrária e com o problema da fome, com
certeza se defrontarão com a obra desse importante cientista e político brasileiro.
Na tentativa de romper com essa distância entre a “realidade
fantástica da mídia global” e a realidade do Brasil, selecionamos
alguns textos clássicos para oferecer ao leitor uma visão da expressiva obra do autor. A razão pela qual escolhemos esses textos
é pela representatividade que possuem e pela atualidade que representam.
Na parte biográfica, para conhecermos um pouco da vida de Josué
de Castro, utilizamos textos de Anna Maria de Castro e Maria Yedda
Leite Linhares. Por meio deles, podemos compreender as dimensões da
vida do pensador, tanto por meio das leituras das autoras, quanto pelo
próprio Josué, além de uma entrevista e depoimentos sobre sua vida.
Na parte bibliográfica, apresentamos os textos escolhidos. O primeiro texto é um clássico de sua obra. Em “O Ciclo do Caranguejo”,
Josué defronta-se com o problema da fome e traduz para o leitor o
drama dos habitantes dos mangues. Narra a situação de homens,
mulheres e crianças no sofrimento em encontrar o que comer. É uma
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descrição do ciclo triste da miséria e da fome. Mas este texto também
inspirou os jovens, como o saudoso Chico Science, com o Movimento Mangue Beat.
O “Ciclo do Caranguejo” é um conto literário, em que descreve
os fatos sem retocá-los. O estudo desse ciclo levou o autor a uma
análise das relações entre as pessoas e o ambiente em que vivem,
exploradas, espicaçadas. Esse texto nos possibilita a reflexão de até
onde as formas de miséria e as lutas pela sobrevivência humana podem chegar.
O texto seguinte é o prefácio da primeira edição de Geografia da
Fome, publicado em 1947. Nesse texto, Josué faz uma reflexão sobre
a sua produção científica como contribuição para a superação do
problema da fome. É um trabalho que nos permite conhecer parte
importante de suas idéias: as definições dos conceitos de fome
endêmica e epidêmica, bem como o diálogo com seus principais
interlocutores.
Geografia da Fome é um marco na produção literária do autor. O
prefácio apresentado contém uma linguagem radical para os escritos
da época. Nesse texto, Josué demonstra sua postura crítica em relação aos rumos da economia e da política brasileira e denuncia as
verdadeiras causas da fome no Brasil.
O terceiro texto é o primeiro capítulo do livro Sete Palmos de
Terra e um Caixão, da edição publicada em Portugal, em 1975,
intitulado “A Reivindicação dos Mortos”. Neste belo capítulo dedicado às Ligas Camponesas, Josué analisa a formação das Ligas e o
discurso da imprensa que afirmava que as mesmas eram um perigo
iminente influenciadas por China e Cuba. Critica o jornalismo tendencioso e sensacionalista que encobre as verdadeiras causas da miséria do campesinato nordestino: a secular concentração da estrutura
fundiária e a extrema desigualdade social e política.
Dessa forma, o autor recupera parte importante da história da
invasão do território brasileiro pelos colonizadores e da expansão do
capitalismo. É um texto importante para entender a questão agrária
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JOSUÉ DE CASTRO - VIDA E OBRA
do Nordeste. Nesse belo texto, Josué mostra como os trabalhadores
foram tomando consciência da realidade, desde suas condições de
vida e de fome.
Ao tratar da morte, os camponeses do Engenho Galiléia aprenderam como lutar pela vida. Como lutar pela terra, contra as injustiças, contra a fome. Josué de Castro admirou a organização dos trabalhadores e viu nela uma força vigorosa para a transformação de suas
realidades na superação da miséria.
O quarto texto é o prefácio do livro Homens e caranguejos, da
edição portuguesa de 1966. É outro escrito literário de beleza singular. De modo sublime, Josué relata o cotidiano de sua infância e da
vida da população do mangue. O autor retira da geografia dessa realidade a miséria do povo. E a explicita como descoberta de uma consciência crítica a respeito das desigualdades presentes nos mangues
lamacentos do Capibaribe.
O texto é, em certa medida, a apresentação de um retrato, de
uma paisagem da miséria e da fome da população excluída, esmagada
por estruturas de poder: o latifúndio e a monocultura da cana. Josué
relata por meio da cultura popular do bumba-meu-boi a vida sofrida
da população faminta. Das lições retiradas das leituras dessa paisagem, construiu a geografia da fome, onde o autor descobriu que a
fome não era somente um fato presente e persistente dos mangues,
mas que era parte da realidade mundial.
O quinto texto é “Fome como força social: fome e paz”, publicado na França em 1967. Nessas páginas, Josué expressa sua crítica à
postura descomprometida dos que procuram ignorar a realidade da
fome. Reforça a questão da fome como “fenômeno geograficamente
universal, a cuja ação nefasta nenhum continente escapa. Toda a terra dos homens foi, até hoje, a terra da fome”.
O autor apresenta as conseqüências físicas da fome sobre a vida
em todas as suas dimensões, transformando e destruindo consciências
e esperanças. A fome destrói a todos e a tudo. As populações famélicas são destituídas de perspectivas, de modo que, por causa da fome,
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não conseguem lutar contra o flagelo e por essa razão permanecem
na mesma condição.
Para a superação da fome, o autor propõe o aumento da produção de alimentos e uma reestruturação política e econômica de caráter humanista. De acordo com a sua tese a fome é fato em todo o
mundo, e, portanto, é uma preocupação de todas as nações. Assim,
todos os países deverão tratar da questão conjuntamente, porque em
caso contrário significa que: “desde que uma dessas partes sofra de
fome e esteja ameaçada de morrer e apodrecer na miséria, todo organismo está ameaçado pela mesma infecção”.
O último texto é: “Subdesenvolvimento: causa primeira da poluição”*, publicado na revista O Correio da Unesco, ano 1, nº 3, março de 1973. Nesse trabalho, Josué discute o conceito de desenvolvimento em todas as suas dimensões: social, econômica, política e
ambiental. Mostra a relação intrínseca entre os países desenvolvidos
e os países dependentes e critica esse modelo gerador de desigualdades entre as nações.
Desse modo, enfatiza que o subdesenvolvimento é resultado do
desenvolvimento desigual. É resultado da exploração econômica e
da dominação política dos países ricos sobre os países pobres. A degradação ambiental e a poluição gerada nos países subdesenvolvidos
são produtos do desenvolvimento e da exploração dos países ricos.
Deste ponto de vista, é um texto atualíssimo, principalmente por
causa da intensificação da exploração dos territórios dos países do
Terceiro Mundo pelos Estados Unidos, União Européia e Japão.
Esses textos são referências importantes para conhecermos o pensamento de Josué de Castro. Mas cabe ao leitor, conferir a beleza dos
seus escritos e a riqueza de suas idéias. Numa época como a nossa,
onde tudo parece se medir pelo critério da eficácia, do rendimento,
da produtividade, da competência, enfim de uma racionalidade
*
Trabalho apresentado no “Colóquio sobre o Meio”, em junho de 1972, em Estocolmo.
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JOSUÉ DE CASTRO - VIDA E OBRA
centrada no econômico, na quantidade, no dinheiro, não é destituído de sentido que os limites, as fronteiras estejam difusas e, assim, a
política enquanto tal. É que política, desde os gregos, é a arte de
definir limites. Afinal, polis era o nome originariamente dado ao muro,
ao limite entre cidade e campo. Só depois se passou a designar polis
ao que estava contido nos muros, nos limites. A economia deixada a
si mesma, enquanto lógica do mercado, exige o fim das fronteiras,
dos limites, enfim da política que é, como vimos, a arte de definir
limites. Josué de Castro soube perceber esses nexos sutis entre as fronteiras, isto é, a política e a ecologia, os destinos das espécies do planeta. Talvez por isso tenha buscado a Geografia que é exatamente a arte
de grafar (marcar) a terra, de lhe atribuir sentido.
Diante da grande produção de Josué de Castro, os textos selecionados são representativos. Quiçá esses textos sejam motivações que
levem o leitor a se interessar ainda mais pelo problema da fome, da
miséria e pela participação na luta dos trabalhadores.
BIOGRAFIA*
Nasceu Josué Apolônio de Castro em 5 de setembro de 1908, na
cidade do Recife, e faleceu em Paris, no exílio a que fora condenado
pelo regime militar brasileiro, ao completar 65 anos, em 1973. Fez
seu curso de Medicina na Bahia e no Rio de Janeiro onde colou grau
aos 21 anos de idade. Mas foi em Recife que começou a exercer a
medicina, nessa mesma cidade que havia despertado no menino pobre que nela nascera e crescera a atenção para a realidade social de
uma região marcada por profundos contrastes econômicos e humanos. O seu interesse pela sorte dos deserdados numa sociedade desigual levou-o, ainda recém-formado, a promover o primeiro inquérito sobre as condições de vida da classe operária em Recife, estudo
pioneiro no país e que serviria de modelo para investigações semelhantes, nos anos 1930 e 1940, em outros Estados da federação, no
bojo do movimento que se desenvolvia pela fixação do salário mínimo e pelo reconhecimento dos direitos dos trabalhadores. Em 1935,
transferia-se para o Rio de Janeiro onde se vinculou à equipe de educadores e cientistas que pugnavam pela transformação do ensino
universitário. Assim, integrou-se à experiência renovadora que era
representada pela Universidade do Distrito Federal, na qualidade de
professor de Antropologia Física. Interessava-lhe, sobretudo, por sua
*
Texto de Maria Yedda Leite Linhares.
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JOSUÉ DE CASTRO - VIDA E OBRA
formação cientifica e inquietação intelectual de acentuada sensibilidade humanística, buscar na Medicina respostas concretas para o
problema da fome e da subnutrição que afligia milhões de brasileiros. Da sua primeira docência em Fisiologia e da sua experiência
clínica nos bairros operários de Recife, passou a realizar, no Rio de
Janeiro, pesquisas bioquímicas que constituiriam o embrião do futuro Instituto de Nutrição da Universidade do Brasil, por ele idealizado e concretizado. Tais estudos levaram-no, ainda, ao seu primeiro
contato com a Europa, tendo estagiado, em 1938, no Instituto
Bioquímico de Roma e dado cursos nas universidades de Roma,
Nápoles e Gênova. Dessa experiência resultou a publicação, em 1939,
do estudo Alimentazione e Acclimatazione Umana nei Tropici. De volta
ao Brasil, em 1939, integrou o corpo docente da recém-criada Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade do Brasil, atual
Universidade Federal do Rio de Janeiro, tendo conquistado, por concurso, a Cátedra de Geografia Humana, em 1947, com a tese “A
Cidade do Recife, Ensaio de Geografia Urbana”.
Entre 1939 e 1945, promoveu cursos sobre Alimentação e Nutrição no Departamento Nacional de Saúde Pública e na Faculdade
de Medicina da Universidade do Brasil; foi eleito, em 1942, presidente da Sociedade Brasileira de Nutrição; criou o Serviço de Alimentação da Previdência Social (Saps); foi chefe do Departamento
Técnico de Alimentação da Coordenação da Mobilização Econômica e membro, entre outras atividades não menos profícuas, da Comissão Organizadora da Comissão do Bem-Estar Social. Distinguiuse nos anos que se situaram entre a sua formação em Medicina e o
final da II Guerra Mundial pela publicação de numerosos livros, destacando-se, além dos já mencionados estudos sobre as condições de
vida da classe operária no Recife, salário mínimo e alimentação nos
trópicos, os seguintes: O Problema da Alimentação no Brasil, Alimentação e Raça, Documentário do Nordeste, A Alimentação Brasileira à
Luz da Geografia Humana, Fisiologia dos Tabus. Tais trabalhos constituíram a fase preparatória das duas obras que o lançariam como o
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autor mundialmente lido e admirado, a Geografia da Fome (1946) e
a Geopolítica da Fome (1951), livros esses que produziram um grande impacto praticamente em todos os países do mundo, daí terem
sido traduzidos, em edições sucessivas, em 24 idiomas. Pela primeira
vez, era a opinião pública internacional alertada sobre o problema da
fome, estigma do subdesenvolvimento e resíduo das estruturas
socioeconômicas herdadas do colonialismo.
Além de sua extraordinária produção científica e editorial, Josué
de Castro, professor, administrador, trabalhador incansável,
dinamizador de idéias, insubmisso aos dogmas e a qualquer ortodoxia, manteve, até 1955, no Rio de Janeiro, seu consultório médico,
como clínico e especialista em doenças de nutrição. Já internacionalmente conhecido por sua obra e sua luta implacável contra as desigualdades econômicas e a miséria dos povos que sofreram a exploração colonial do mundo capitalista, denunciando a fome e a
subnutrição como os males sociais do subdesenvolvimento e do
colonialismo, foi eleito presidente do Conselho da Organização para
a Alimentação e a Agricultura das Nações Unidas (FAO), Roma
(1952-1955). Em 1960, presidiu a Campanha de Defesa contra a
fome promovida pelas Nações Unidas, advogando como primeiro
direito do homem o de não passar fome. De 1955 a 1963, exerceu,
pelo Partido Trabalhista Brasileiro, o mandato de deputado federal
por Pernambuco, ao qual renunciou para assumir o posto de Embaixador brasileiro junto aos organismos internacionais das Nações
Unidas em Genebra (1963-1964); demitiu-se em virtude do golpe
militar de 31 de março de 1964 que lhe cassaria os direitos políticos
no dia 9 de abril do mesmo ano. Criou e dinamizou a Associação
Internacional de Luta contra a Fome, ao lado do Abbé Pierre e do
Padre Joseph Lebret e dirigiu, até sua morte, a Associação Internacional das Condições de Vida e Saúde. Foi membro participante de
inúmeras associações científicas na Europa, nos Estados Unidos e na
União Soviética. Recebeu, em 1952, a menção anual da “American
Library Association”; em 1955, o “Prêmio Franklin D. Roosevelt”
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JOSUÉ DE CASTRO - VIDA E OBRA
da Academia Americana de Ciência Política; em 1954, o “Prêmio
Internacional da Paz” do Conselho Mundial da Paz e, ainda, a Grande Medalha da Cidade de Paris, o grau de Oficial da Legião de Honra da França, o título de Professor Honoris Causa das Universidades
de San Marcos (Peru) e Santo Domingo, a medalha do Mérito Médico do Brasil, o prêmio da Associação Brasileira de Escritores, o
prêmio da Academia Brasileira de Letras.
Nos últimos anos de vida, em Paris, deu continuidade à sua obra,
criando o Centro Internacional de Desenvolvimento, participando
ativamente do movimento intelectual europeu em defesa dos povos
do Terceiro Mundo, realizando conferências em vários países da
América, da Europa, da Ásia e da África, organizando congressos e
simpósios internacionais, lecionando na qualidade de professeur associé
a cadeira de Geografia Humana na Universidade de Paris-Vincennes.
No primeiro ano de exílio, sua sensibilidade diversificada levou-o a
repensar a infância passada em Recife, inspirando-lhe uma incursão
na área da literatura de que resultou um romance escrito com paixão, Homens e Caranguejos. Traduzido em várias línguas, foi, ainda,
adaptado para o teatro por Gabriele Cousin com o título Le Cycle du
Crabe ou Les Aventures de Zé Luis, Maria et Leurs fils João (Gallimard,
1969). Nesse mesmo período, elaborou reedições atualizadas de seus
principais trabalhos e publicou, além de numerosos artigos na imprensa especializada européia e americana, Sete Palmos de Terra e Um
Caixão (Brasiliense, 1965) cuja tradução inglesa recebeu o título Death
in the Northesast (Random House, 1966). Participou também da
edição de Où en Est la Révolution en Amérique Latine?, debate público que travou com Claude Julien, Juan Arrocha e Mario Vargas Llosa
(1965) com John Geressi e Irving Louis Horowitz, escreveu Latin
American Radicalism: a Documentary Report on Left and Nationalist
Movements (Random House, 1968); com vários colaboradores, publicou os seguintes livros: El Hambre, Problema Universal (Editorial
La Pleyade, 1969), O Drama do Terceiro Mundo (Publicações Dom
Quixote, 1970), A China e o Ocidente (Cadernos do Século XXI,
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1971), América Latina y los Problemas del Desarrollo (Monte Avila
Editores, 1974).
Ao falecer em Paris, dele escreveu Le Figaro de 25 de setembro de
1973: “Cheio de flama e de paixão pela grande causa a que ele servia,
ajudando, por suas fórmulas marcantes, a tocar de perto as realidades do subdesenvolvimento, a tomar consciência do círculo vicioso
no qual se encerrou o mundo, exerceu ele uma influência profunda e
duradoura.” Mais do que no Brasil, a imprensa mundial rendeu uma
sentida homenagem ao brasileiro e pernambucano que dedicou sua
vida, sua inteligência inquieta e sua extraordinária capacidade de trabalho a denunciar a pobreza como criação dos sistemas sociais historicamente gerados e a alertar à opinião pública brasileira e do Terceiro Mundo contra as falácias das políticas de desenvolvimento econômico que enfatizavam o crescimento industrial e ignoravam a agricultura voltada para a produção de alimentos, bem como os angustiantes problemas do homem do campo – o agricultor expropriado da
terra e de seus instrumentos de trabalho. O dilema pão ou aço, a que
aludia no final da década de 1950, e o aniquilamento progressivo
dos recursos naturais, sem atentar para o equilíbrio ecológico,
levariam, não ao extermínio da pobreza e, sim, à ampliação da miséria e da desigualdade social. A atualidade de sua obra aí está, mais
viva do que antes: o desnudamento, nos últimos anos, do mito da
industrialização e da urbanização a qualquer preço.
Josué de Castro deixou viúva Glauce Pinto de Castro, com quem
se casara em 1934, e três filhos, Josué Fernando de Castro, economista, Anna Maria de Castro, socióloga, e Sônia de Castro Durval,
geógrafa.
JOSUÉ DE C ASTRO:
SEMEADOR DE IDÉIAS*
O médico
Com algum sacrifício de seus pais, Josué partiu para a faculdade
de medicina da Bahia, onde permaneceu por três anos. Concluiu o
curso no Rio de Janeiro, com 20 anos de idade.
Certa vez, diante da pergunta sobre que impressão lhe causara a
Faculdade de Medicina da Bahia, assim respondeu:
A princípio uma impressão de deslumbramento e de veneração por seus
velhos muros, pela austera fachada da sua escola. Depois de desencanto no
que diz respeito ao ensino ali ministrado. Aliás, não só a Faculdade da Bahia,
mas depois a do Rio, também me desapontou por completo. Entrei com um
grande entusiasmo e saí com o interesse quase morto pela maioria dos assuntos, na forma em que eram apresentados. Poucos professores me entusiasmaram. Na Bahia, destaco o velho mestre Pirajá da Silva, figura veneranda de
homem de estudo, e o professor de Fisiologia, Aristides Novis, que me arrebatou muitas vezes com o brilho literário de suas preleções. Virei “fisiólogo”
em dois tempos. Estudei com furor, conquistei uma distinção na cadeira e a
amizade do mestre que perdurou até a sua morte. Na Faculdade do Rio, a
grande figura que me encheu de encantamento foi a do Prof. A. Austregésilo,
sem dúvida uma das maiores vocações que teve o ensino médico brasileiro.
*
Este capítulo é parte do trabalho Josué de Castro – semeador de idéias, de Anna
Maria de Castro, editado pelo Iterra em 2003.
28
JOSUÉ DE CASTRO - VIDA E OBRA
Mas, devo honestamente confessar, que maior influência do que os professores tiveram em minha formação, foi o convívio com alguns colegas de talento. Na Bahia, influenciaram muito no rumo de meus estudos e indagações a
presença na mesma pensão em que morava, de dois colegas com os quais
muito me liguei: Arthur Ramos e Theotônio Brandão. Theotônio com mais
intimidade, Ramos com uma certa distância e reserva diante de sua maior
maturidade intelectual, do seu prestígio de veterano, com três anos de curso
na frente. Com Theotônio, discutíamos, com Ramos, ouvíamos. E ouvíamos coisas esmagadoras. Nomes arrevesados de venerandos sábios alemães,
teorias frescas trazidas diretamente dos centros europeus por misteriosos caminhos para o sisudo discípulo de Freud na baixa do sapateiro. Ficamos de
queixo caído diante da imponência da sua cultura. Um dia ele nos fez a
revelação suprema que sairia um estudo seu sobre Augusto dos Anjos e a
Psicanálise, num dos suplementos dominicais do O Jornal. Isto na província
em 1925, meu caro, me pareceu a glória. Fomos comovidos até o Plano
Inclinado comprar o número do O Jornal, desdobramos as páginas com
unção e lá encontramos o artigo com título e nome do autor. Tudo aureolado
pela letra de forma em tipo grosso. Não me contive. Veio-me a alma uma
inveja doida de tanta glória. Fui também ao Freud – um Freud de terceira
classe, já comentado em tradução – e lancei um ensaio tremendo, meu primeiro ensaio, intitulado “A Literatura Moderna e a Doutrina de Freud”, que
saiu flamejante na Revista de Pernambuco. Senti-me como um igual e no
ano seguinte passei a ir ao cinema junto com o mestre Ramos.
Quando estudante, era extremamente vaidoso, e para demonstrar erudição, saia à rua com o mais grosso de seus livros de estudo,
conforme relata em seu diário. Na verdade, foi um jovem impetuoso
que não via fronteiras sociais nem culturais que não pudessem ser
ultrapassadas. Acreditava em sua inteligência e competência para
conquistar o reconhecimento de seu trabalho.
Formado, retorna ao Recife para trabalhar na Secretaria de Educação do Estado de Pernambuco. Olívio Montenegro, Sílvio Rebelo
e Gilberto Freyre participavam do grupo de José Maria Belo que
seria governador. Por todos eles, estava reservado um cargo para Josué.
B E R N A R D O M . F E R N A N D E S E C A R L O S W A L T E R P . G O N Ç A L V E S (ORGS.)
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Contudo, não houve posse e a coisa gorou. Abri, então um consultório
para fazer nutrição. Eu, na realidade queria ser psiquiatra, mas o Ulhoa
Cintra (outro médico) tinha dois aparelhos de metabolismo. Me vendeu
um e resolvi fazer nutrição. Um só livro O Tratado de Umber figurava na
biblioteca. As doenças da nutrição eram cinco, na época, obesidade, magreza, diabete, gota e reumatismo. Como era coisa nova, consegui ter uma
boa clientela, apesar de minha cara de menino, que às vezes, assustava os
clientes.
Comecei, também, a trabalhar numa grande fábrica e a verificar que os
doentes não tinham uma doença definida, mas não podiam trabalhar. Eram
acusados de preguiça. No fim de algum tempo, compreendi o que se passava com os enfermos. Disse aos patrões: sei o que meus clientes têm. Mas
não posso curá-los porque sou médico e não diretor daqui. A doença desta
gente é fome. Pediram que eu me demitisse. Saí. Compreendi, então, que
o problema era social. Não era só do Mocambo, não era só do Recife, nem
só do Brasil, nem só do continente. Era um problema mundial, um drama
universal.
O escritor
Eu sonho sonhos distantes,
em barcos ausentes, velozes, ondeantes,
paisagens vivas, longe, diferentes.
Eu sonho sempre. Sonho…
Josué de Castro
Desde jovem, Josué foi um apaixonado pela literatura. Suas ambições literárias se revelam no período em que estudava medicina,
quando começa a publicar contos, ensaios e poemas em diversos periódicos como o Diário da Manhã e a Revista de Antropofagia. Modernistas como Mário de Andrade e Oswald de Andrade, além de
amigos, foram referências marcantes do ambiente cultural de sua
geração.
Através das teorias de Freud, interessou-se na possibilidade de
relacionar a literatura com a medicina.
30
JOSUÉ DE CASTRO - VIDA E OBRA
Em 1935, reúne contos de sua autoria no volume Documentário
do Nordeste. Entre os contos então publicados, encontra-se o “Ciclo
do caranguejo”, que só bem mais tarde desenvolveu como um romance sob o título de Homens e caranguejos.
Os mangues do Capibaribe são o paraíso do caranguejo. Se a terra foi
feita pro homem, com tudo para bem servi-lo, também o mangue foi
feito especialmente pro caranguejo. Tudo aí é, foi ou está para ser caranguejo, inclusive a lama e o homem que vive nela. A lama misturada com
urina, excremento e outros resíduos que a maré traz, quando ainda não é
caranguejo, vai ser. O caranguejo nasce nela, vive dela. Cresce comendo
lama, engordando com as porcarias dela, fazendo com lama a carninha
branca de suas patas e a geléia esverdeada de suas vísceras pegajosas. Por
outro lado, o povo daí vive de pegar caranguejo, chupar-lhe as patas,
comer e lamber os seus cascos até que fiquem limpos como um copo. E
com a sua carne feita de lama fazer a carne do seu corpo e a carne do
corpo de seus filhos. São cem mil indivíduos, cem mil cidadãos feitos de
carne de caranguejo. O que o organismo rejeita, volta como detrito para
a lama do mangue, para virar caranguejo outra vez.
Todos os cientistas que em seu ofício estudam as diferentes manifestações da realidade, quer física, quer sociocultural, gostariam
de poder descrever seu objeto de estudo como conseguem fazê-lo
os grandes escritores. Contudo são ofícios diversos e, se o escritor
não tem pretensões de se tornar cientista ao descrever com tanta
acuidade a realidade, dificilmente os cientistas conseguem se desligar da realidade que procuram entender para se transportar para o
mundo irreal do pensamento, do romance, da novela. Josué de
Castro sempre admirou os escritores capazes de, melhor que os cientistas, com uma linguagem universal, contar dos homens e das coisas dos homens. Assim é que, ao escrever seu principal livro, a Geografia da Fome, dedicou-o a dois escritores, Rachel de Queiroz e
José Américo de Almeida, “romancistas da fome no Brasil”, e à
memória de Euclides da Cunha e Rodolfo Teófilo, “sociólogos da
fome no Brasil.”
B E R N A R D O M . F E R N A N D E S E C A R L O S W A L T E R P . G O N Ç A L V E S (ORGS.)
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O cientista
Vivendo no Rio de Janeiro, Josué, a despeito do sucesso da clínica médica, resultado da viagem de estudos realizada a Roma, começa, paulatinamente a se afastar da medicina exercida em seu consultório.
Ao regressar, eu era o homem que tinha chegado da Europa. A clínica
abarrotou. Fui convidado para dirigir um departamento de nutrição. Não
pude aceitar. Ainda assim, a clínica já não me satisfazia. Faltava 15 dias em
cada 30 de trabalho, no consultório. O que eu queria era escrever a Geografia da Fome.
Durante a guerra, participou da Comissão de Mobilização Nacional, escreveu uma grande quantidade de artigos sobre alimentação e
pesquisou o que havia sido até então publicado sobre alimentação e
fome.
Neste momento, Josué mostrava grande amadurecimento, não
só quanto a seus objetivos, como também do ponto de vista científico. Indagado sobre se a ciência deve estar a serviço do social, assim se
expressou:
Claro que sim. A ciência e a técnica são duas outras expressões do mesmo
rosto da cultura e só significam alguma coisa como traços componentes
deste mesmo rosto. Isoladas, perdem toda a expressão. Temos uma comprovação desta verdade no que se passou nestes últimos anos. A ciência
pura em sua expressão máxima de aparente alheamento ao mundo das
realidades sociais, – a física teórica – em suas transcendentes especulações
deu lugar a descobertas que estão subvertendo, por completo, todos os
princípios e valores de nossa civilização, com ameaças e esperanças que
abalam a consciência social do mundo inteiro. A bomba atômica derrubou os últimos muros que ainda podiam separar os homens de laboratório
dos homens da rua.
A Geografia da Fome: um novo método geográfico
Em 1946, publicou sua obra capital, a Geografia da Fome, uma
geografia diferente. Inaugurava um método geográfico que apresen-
32
JOSUÉ DE CASTRO - VIDA E OBRA
tava um Brasil distante dos discursos oficiais. Em pleno período de
crescimento, de industrialização, não havia muitos trabalhos sobre
fome, um tema ainda proibido:
O assunto deste livro é bastante delicado e perigoso. A tal ponto delicado
e perigoso que se constitui num dos tabus de nossa civilização. É realmente estranho, chocante, mesmo a observação, o fato de que num mundo
como o nosso, caracterizado por tão excessiva capacidade de se escrever e
se publicar, haja até hoje tão pouca coisa escrita acerca do fenômeno da
fome, em suas diferentes manifestações.
Ao que acrescentava:
Trata-se de um silêncio premeditado pela própria alma da cultura: foram os
interesses e os preconceitos de ordem moral e de ordem política e econômica
de nossa chamada civilização ocidental que tornaram a fome um tema proibido ou, pelo menos, pouco aconselhável de ser abordado publicamente.
Refere-se à fome como a expressão biológica do subdesenvolvimento – efeito do modelo de desenvolvimento escolhido: “Ao retratarmos a fome no Brasil estamos evidenciando o seu subdesenvolvimento econômico porque fome e subdesenvolvimento são a mesma
coisa”.
Demonstrou com este importante trabalho que era possível construir uma ciência que teria por objeto de estudo problemas específicos de países pobres e que fosse capaz de explicar a situação destes
países sem recorrer ao mito da inferioridade racial, do fatalismo, do
determinismo geográfico, ou até do acaso.
Um dos grandes obstáculos ao planejamento de soluções adequadas ao
problema da alimentação dos povos reside exatamente no pouco conhecimento que se tem do problema em conjunto, como um complexo de
manifestações simultaneamente biológicas, econômicas e sociais. A maior
parte dos estudos científicos sobre o assunto se limita a um de seus aspectos parciais, projetando uma visão unilateral do problema. São quase
sempre trabalhos de fisiólogos, de químicos ou de economistas, especialistas em geral, limitados por contingência profissional ao quadro de suas
especializações.
B E R N A R D O M . F E R N A N D E S E C A R L O S W A L T E R P . G O N Ç A L V E S (ORGS.)
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Foi diante desta situação que resolvemos encarar o problema sob uma nova
perspectiva, de um plano mais distante, donde se possa obter uma visão
panorâmica de conjunto, visão onde alguns pequenos detalhes certamente
se apagarão, mas na qual se destacarão, de maneira compreensiva, as ligações, as influências e as conexões dos múltiplos fatores que interferem nas
manifestações do fenômeno. Para tal fim pretendemos lançar mão do método geográfico no estudo do fenômeno da fome. Único método que, a
nosso ver, permite estudar o problema em sua realidade total, sem arrebentar-lhe as raízes que o ligam subterraneamente a inúmeras outras manifestações econômicas e sociais da vida dos povos.
Utilizou o método geográfico, no estudo do fenômeno da fome.
“Não o método descritivo da antiga geografia, mas o método
interpretativo da moderna ciência geográfica”.
Neste nosso ensaio de natureza ecológica tentaremos, pois, analisar os hábitos alimentares dos diferentes grupos humanos, ligados a determinadas
áreas geográficas, procurando, de um lado, descobrir as causas naturais e as
causas sociais que condicionaram o seu tipo de alimentação, com suas
falhas e defeitos característicos, e, de outro lado, procurando verificar até
onde esses defeitos influenciam a estrutura econômico-social dos diferentes grupos estudados.
Assim, quando indagado sobre quais os motivos que o levaram
ao planejamento desta obra, respondeu:
A convicção a que fomos conduzidos em nossos estudos da importância
categórica do fenômeno da fome na formação e evolução dos grupos humanos, importância que cresceu tremendamente em nossos dias de tão
acirradas lutas econômicas e sociais no mundo inteiro. Temos a impressão
de que não é possível promover-se a reconstrução do mundo dividido por
blocos antagônicos, sem limpar do mundo estas terríveis manchas negras
representadas por grupos de populações subnutridas e famintas,
inferiorizadas ao máximo, pela falta permanente de uma alimentação adequada. E todo plano para remediar esta angustiosa situação na qual se
encontra, segundo dados estatísticos bem apurados, mais da metade de
seres humanos só surtirá efeito se for baseado num conhecimento intensi-
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JOSUÉ DE CASTRO - VIDA E OBRA
vo e extensivo do fenômeno da fome, em suas causas remotas e imediatas
e em seus efeitos humanos.
Para abordar seu tema, Josué precisou atacar velhas e insustentáveis teorias, falsas interpretações, deploráveis preconceitos raciais
e climáticos, bem como as doutrinas que justificavam a fome como
conseqüência do crescimento populacional (malthusianismo) praticadas, ainda hoje, em detrimento das populações subdesenvolvidas.
A sua obra permanece como grande instrumento de informação
para a formação de uma política voltada para problemas tão graves
para a segurança de nossa sociedade, inclusive de nossas elites dirigentes que permaneceram surdas ao grito de alerta deste grande cientista brasileiro.
Seguiu-se em 1951 o livro Geopolítica da Fome, na qual o autor
dá continuidade a seu método, documentando a fome em âmbito
mundial. Os livros Geografia da Fome e Geopolítica da Fome foram
traduzidos para mais de 20 diferentes idiomas.
O professor
O exercício do magistério iniciou-se como atividade complementar ao trabalho do médico. Entretanto, ao longo do tempo, não só
Josué foi tomando gosto pelas aulas como também percebeu a importância das mesmas para o desenvolvimento de seus estudos. Gostava, também, do contato com os jovens. Assim, o magistério foi
ocupando um espaço cada vez maior em sua vida.
Fundou, na década de 1930, com vários companheiros, uma
Faculdade de Filosofia em Recife. Neste período foi professor da
Faculdade de Medicina (Fisiologia) e da de Filosofia (Geografia
Humana).
Um ensaio produzido em 1948 para o concurso de professor
titular em Geografia Humana, “Fatores da localização da cidade do
Recife”, demonstra sua vocação didática. Acrescente-se o livro Geografia Humana voltado para o curso secundário.
B E R N A R D O M . F E R N A N D E S E C A R L O S W A L T E R P . G O N Ç A L V E S (ORGS.)
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Era a atividade que melhor expressava o seu modo de ser. Começou e terminou a vida como professor. Orgulhava-se ao ser chamado
de Professor. Sempre acreditou nos jovens, únicos capazes de transformar este mundo que recebemos.
Afeito a concepções globais, que não demarcavam limites para o
conhecimento, lecionou, além de disciplinas ligadas à medicina, outras, aparentemente distantes da área médica. Em seu currículo, assinalam-se:
• Professor de Geografia Humana, da Faculdade Nacional de
Filosofia da Universidade do Brasil;
• Diretor do Instituto de Nutrição, da Universidade do Brasil
(hoje, Instituto de Nutrição Josué de Castro, da Universidade
Federal do Rio de Janeiro);
• Professor de Alimentação e Nutrição dos cursos de pós-graduação da Faculdade de Medicina da Universidade do Brasil;
• presidente da Sociedade Brasileira de Nutrição;
• Professor assistente de Fisiologia da Faculdade de Medicina
de Recife;
• Professor Catedrático de Geografia Humana, da Faculdade
de Filosofia e Ciências Sociais do Recife;
• Vice-diretor da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras do
Recife;
• Professor de Antropologia da Universidade do Distrito Federal (hoje, Universidade do Estado do Rio de Janeiro);
• Professor Visitante da Universidade de Roma e Nápoles;
• Professor Estrangeiro Associado ao Centro Experimental de
Vincennes, Universidade de Paris.
Criou o Curso de Nutrição da antiga Universidade do Brasil,
onde foram desenvolvidas pesquisas sobre alimentos regionais. Divulgou através de um Guia da Alimentação os principais conceitos
ligados à importância de cada um dos alimentos.
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JOSUÉ DE CASTRO - VIDA E OBRA
ALIMENTO COMO MELHOR VACINA
Guia da Alimentação organizado pelo Instituto de
Nutrição da Universidade do Brasil, sob a supervisão de
Josué de Castro. Campanha de Educação de Adultos,
Ministério da Educação e Cultura, 1947.
Todo animal precisa de alimento para poder se
desenvolver. O Homem como qualquer outro animal
não é diferente. A vida depende da alimentação.
Assim, uma vaca bem alimentada e bem nutrida,
produz muito mais leite do que as que não têm o
que comer e muitas vezes do que beber.
O homem bem alimentado quase não fica doente, já que a principal causa geradora de doenças é a
falta de alimentos, que gera um organismo sem forças para agir, quando entra em contato com algum
micróbio. Muitas crianças que morrem de sarampo,
na verdade, estão morrendo de fome porque não
conseguiram reagir à ação da doença. As crianças
que podem comer os alimentos que seu organismo
necessita crescem mais e, sobretudo podem desenvolver seu cérebro, podem pensar e aprender melhor. E, quando adultos poderão trabalhar melhor e
continuar aprendendo.
Precisamos, contudo, saber que comer muito não
significa comer bem e estar bem alimentado. Cada
alimento tem mais ou menos as qualidades, vitaminas, sais minerais que o homem precisa em seu
desenvolvimento. Os alimentos não têm o mesmo
valor. Alguns valem mais do que outros,
Os alimentos são as substâncias que comemos
para viver e que farão bem ao organismo do homem.
B E R N A R D O M . F E R N A N D E S E C A R L O S W A L T E R P . G O N Ç A L V E S (ORGS.)
Os alimentos servem para diferentes funções:
1. formam toda a matéria do organismo – a pele,
os ossos, o sangue, os dentes, as unhas e o cabelo;
2. ajudam o crescimento do organismo e dão
força para o trabalho;
3. asseguram a reprodução do organismo;
4. defendem o organismo contra as doenças.
Existem alimentos que só servem para dar calor
ao organismo. São uma espécie de combustível, para
manter a máquina trabalhando. Assim, como uma
máquina sem o combustível, ela pára.
A mesma coisa acontece ao homem quando ele
usa certos alimentos, como gorduras, doces e farináceos, ele emagrece, perde energia e trabalha
menos.
Mas, quando não come os chamados “alimentos protetores”, não terá forças de lutar contra os
micróbios (doenças).
Chamamos de alimentos protetores as carnes,
os peixes, os ovos, o leite, o queijo, a manteiga, as
frutas, as verduras e os legumes, porque contêm
em sua composição substâncias da maior importância para a saúde do homem; as proteínas, as vitaminas e os sais minerais.
Existe uma relação entre alimentação e trabalho,
já que a quantidade de alimentos que uma pessoa
deve comer depende de quanto necessita para realizar um trabalho. O esforço de um rachador de lenha
é maior que o de um cabeleireiro. Quanto mais pesado o trabalho, mais alimentos são necessários.
O motor do homem, para poder funcionar precisa de combustível. A máquina precisa de carvão, o
caminhão de óleo diesel e o trator de gasolina.
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JOSUÉ DE CASTRO - VIDA E OBRA
Quanto melhor a qualidade do combustível, melhor
a máquina funciona, e também dura mais. O mesmo
acontece com o homem.
Além disto, existe relação direta entre a alimentação e o crescimento. No período da infância e da
adolescência, o alimento é importante para o crescimento e desenvolvimento. (Ver o desenvolvimento do cérebro). É também neste período, que se
adquire hábitos e conhecimentos que permanecem
na cultura de cada um.
A criança sadia vai crescer e se desenvolver de
forma sadia, se tornando um adulto com saúde. Os
hábitos alimentares que lhe forem ensinados quando criança, serão mantidos na vida adulta. O mesmo ocorre com os erros, que, em muitos casos, não
poderão ser reparados.
Como a criança está crescendo, construindo seus
ossos, mudando os seus dentes, fortalecendo seus
músculos, mais do que ninguém necessita de bons
alimentos.
ALIMENTAÇÃO E GRAVIDEZ
Normalmente, a mulher come menos que o homem, mas, quando a mulher está grávida precisa
comer por ela e pelo filho que se desenvolve por
nove meses em sua barriga.
Depois, quando nasce a criança, a mulher deve
alimentar seu filho pela amamentação. O leite materno é o alimento mais completo para a criança em
sua primeira idade. E, para poder alimentar seus
filhos, a mulher tem que procurar se alimentar com
bons alimentos. (Ver os dados sobre o leite de vacas bem alimentadas e nutridas).
B E R N A R D O M . F E R N A N D E S E C A R L O S W A L T E R P . G O N Ç A L V E S (ORGS.)
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A maioria das doenças decorre da subnutrição;
a tuberculose, por exemplo. O organismo precisa de
força para resistir aos micróbios, vírus e outras ações
da natureza. O chamado organismo fraco é conseqüência de uma alimentação defeituosa.
A PRODUÇÃO DE ALIMENTOS
A terra no Brasil. A concentração na mão de poucos. O latifúndio improdutivo e a monocultura. Os
terrenos para plantio podem ser mais pobres ou
ricos. A terra precisa ser tratada para poder produzir
bem e continuadamente. Precisa ser adubada e
molhada. A água e o adubo são os alimentos da
terra, fazem a terra viver. Precisamos saber como
preparar o terreno e os canteiros. Hoje, também é
importante saber escolher as sementes.
Além das carências alimentares, apontava para a carência em educação como outro aspecto característico do subdesenvolvimento. No
livro Estratégia do desenvolvimento, assim se manifestou:
Na minha opinião, uma das mais altas prioridades para o Terceiro Mundo
é a formação humana, a formação de homens responsáveis e capazes de
pôr em ação esta estratégia global. (…)
Nesta nova cultura, a ciência e a técnica terão certamente um grande papel
a desempenhar, mas elas não podem ser as únicas componentes desta cultura. Existem muitos outros valores que são igualmente importantes. É
preciso não esquecer que ciência não é sabedoria. A ciência é o conhecimento. A sabedoria implica o conhecimento e o juízo. E sobre este ponto
– o do juízo dos valores – estamos muito longe de possuir uma idéia clara
das hierarquias dos fatores a serem acionados para construir uma estratégia
global do desenvolvimento que não separe o econômico do humano, mas
que, ao contrário, considere o homem, os grupos humanos, toda a humanidade, como objetivo final do desenvolvimento (…) É esta nova ótica do
40
JOSUÉ DE CASTRO - VIDA E OBRA
desenvolvimento – a do ensino, da educação e da formação humana – que
deve constituir o investimento prévio e seguramente o mais rentável para
desencadear o impulso do desenvolvimento (…)
O problema mais grave dos países subdesenvolvidos continua a ser, ainda
hoje, o do baixo nível de educação dos seus habitantes…
Neste contexto, o trabalho dos educadores é decisivo, pois deve
preparar pessoas capazes de participar ativamente das transformações em curso:
A simples transferência de cultura – isto é, as utopias de exportação em
matéria de educação – jamais pode pôr à disposição um meio de formação
de tipos de homens de que o Terceiro Mundo tem necessidade para desenvolver a sua economia num sentido humano que respeite as raízes culturais
destes povos. (…) Procurar encontrar o meio de integrar os valores científicos e tecnológicos no patrimônio dos valores representativos de outras
civilizações não ocidentais – eis o único meio de desenvolver o mundo
com equilíbrio, e não sob o signo perigoso de uma dominação que provoca em toda parte a revolta. Uma educação que liberte o homem, eis ao que
aspiram os povos do Terceiro Mundo. E isto supõe uma pedagogia da
liberdade que os liberte da dominação da natureza, mas também da dominação de outros grupos humanos – de todo os tipos de dominação. Quer
isto dizer que é preciso educá-los para se libertarem econômica, política e
espiritualmente.
Denunciava o interesse político que orientava o tipo de ensino
das universidades do terceiro mundo, “incapaz de um impulso criativo e renovador”.
Ministrar um tipo de educação popular seria desencadear um movimento
irreversível de transformação social, ao qual se oporiam as minorias dominantes, hostis às idéias de reformas educacionais válidas. Os verdadeiros
reformadores dos métodos de ensino de numerosos países subdesenvolvidos são vistos como elementos perigosos, subversivos da ordem estabelecida,
perigosos para a manutenção destas democracias sem povo, em que um
punhado de homens deve tudo saber e tudo dirigir, e as massas devem
tudo ignorar e obedecer sempre.
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O político
Na década de 1950, Josué candidata-se à Câmara Federal pelo
Estado de Pernambuco. Não consegue eleger-se na primeira tentativa. Insiste, e em 1954, consegue sua primeira eleição. Resultado que
se repete em 1958.
Fui deputado duas vezes. Oito anos. Na segunda eleição, em 1958, tive a
maior votação no Estado. Só na capital, vinte e tantos mil votos. Sabe a
que devo essa vitória? Ao povo votando numa idéia, a luta contra a fome.
Assim justificou sua candidatura durante seu segundo ano de
mandato:
Quando me candidatei, fi-lo com a grande esperança de poder trazer ao
Parlamento Nacional a modesta experiência que tenho dos problemas de
nosso povo, das suas condições de vida, que venho estudando há 25 anos.
Aqui chegando, verifiquei a minha falta de preparo. Foi por isso que durante um ano, em lugar de apresentar projetos, tratei de aprender, de estudar, de observar e de me preparar para realizar, dentro de minhas modestas
possibilidades o que penso fazer este ano: apresentar uma série de projetos
interdependentes sobre os problemas agrários do Brasil.
No exercício dos mandatos pôde desenvolver sua já brilhante
oratória, reconhecida até por adversários. Entretanto, embora gostasse da polêmica e da provocação, que lhe proporcionavam a oportunidade de exibir sua oratória, não conseguia inserir-se no jogo de
interesses pessoais e às vezes mesquinhos que a vida partidária acaba
exigindo. Era um idealista, um sonhador, além de um homem de
ciência.
Vale a pena relembrar parte de seu discurso por ocasião das comemorações do dia panamericano:
O panamericanismo que no dia de hoje comemoramos, constitui, sem
sombra de dúvida, um movimento de ação política internacional, que, por
suas origens merece a simpatia e a consideração de todos os povos deste
continente sinceramente interessados numa política de autêntica solidariedade e de ajuda mútua para superar as dificuldades continentais. Não se
pode esquecer que este movimento se originou e tomou consistência como
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JOSUÉ DE CASTRO - VIDA E OBRA
expressão de uma política de emancipação do jugo do colonialismo. Foi a
política anticolonialista do século passado que deu origem a este sentimento, chamado de panamericanismo; tanto assim que, quando se busca
as raízes vamos encontrá-las fincadas na grande obra política de Bolívar, o
grande pioneiro da emancipação política e econômica das repúblicas latino-americanas… (…)
Tenho esperanças de que o panamericanismo tome um rumo novo,
dentro deste sentido de admitir que a cooperação entre os povos não se
deve fazer apenas nos termos vagos daquela assistência técnica e financeira que as grandes potências dispensam aos países pobres e subdesenvolvidos.
É desta época um curioso e importante documento elaborado
por Josué, o “Programa de 10 pontos para vencer a fome”..
1.
2.
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5.
6.
PROGRAMA DE 10 PONTOS PARA VENCER A FOME
Combate ao latifúndio.
Combate à monocultura em largas extensões sem as
correspondentes zonas de abastecimento dos grupos
humanos nela empregados.
Aproveitamento racional de todas as terras cultiváveis circunvizinhas dos grandes centros urbanos para
a agricultura de sustentação, principalmente de substâncias perecíveis como frutas, legumes e verduras
que não resistem a longos transportes, sem os recursos técnicos da refrigeração.
Intensificação do cultivo de alimentos sob forma de
policultura nas pequenas propriedades.
Mecanização intensiva da lavoura, da qual dependem
os destinos produtivos de toda nossa economia agrícola.
Financiamento bancário adequado e suficiente da agricultura assim como garantia da produção pela fixação de bom preço mínimo.
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7. Progressiva diminuição até a absoluta isenção de impostos da terra destinada inteiramente ao cultivo dos
produtos de sustentação.
8. Amparo e fomento ao cooperativismo, que poderá
servir de alavanca impulsionadora à nossa incipiente
agricultura de produtos alimentares.
9. Intensificação dos estudos técnicos de Bromatologia
e Nutrologia no sentido de que se obtenha um conhecimento mais amplo do valor real dos recursos
alimentares.
10. Planejamento de uma campanha de âmbito nacional
para a formação de bons hábitos alimentares, o qual
envolva não só o conhecimento dos princípios históricos de higiene como o amor à terra, os rudimentos
de economia agrícola e doméstica, os fundamentos
da luta técnica contra a erosão.
Seguindo os mesmos princípios, Josué apresenta à Câmara dos
deputados, o projeto de Lei nº 11, de 1959, que “define os casos de
desapropriação por interesse social e dispõe sobre sua aplicação”, uma
bem elaborada proposta de reforma agrária:
Com este Projeto, que define os casos de desapropriação por interesse social, visamos a tornar exeqüível no país a implantação de uma reforma das
estruturas agrárias, tornando-as mais adequadas e consentâneas com a evolução econômico-social brasileira.
Há consenso acerca do arcaísmo das estruturas agrárias existentes pelo menos
em certas regiões do país as quais entravam de maneira significativa as
forças produtivas da zona rural, agravando o desnível entre as áreas industriais e as agrícolas.
Urge, pois, modificar essas estruturas através de uma reforma técnica e racionalmente concebida. Esta reforma deve ser planejada como um processo de
revisão das relações jurídicas e econômicas entre os que detêm a propriedade
rural e os que nela trabalham. Deve, pois, representar um estatuto legal que
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JOSUÉ DE CASTRO - VIDA E OBRA
ponha as justas e necessárias limitações à exploração da propriedade agrária
de forma a tornar o seu rendimento mais elevado e principalmente melhor
distribuído em benefício de toda a coletividade rural.
O possível conjunto de leis que comporiam esse código deverá regular
inúmeros problemas, tais como a desapropriação das terras, os arrendamentos rurais, os contratos de trabalho e vários outros aspectos complementares da herança da terra. Não se deve, pois, conceber a reforma agrária como simples expediente primário de desapropriação e redistribuição
da propriedade, mas sim como um instrumento técnico de utilização racional da terra na defesa do bem estar coletivo.
O Projeto que temos a honra de submeter ao Parlamento Nacional visa,
pois, a armar o Poder Público do necessário instrumento legal que permita
levar a efeito, nos casos indicados, a desapropriação por interesse social,
pré-requisito indispensável à concepção de uma reforma agrária no Brasil.
Outro Projeto de grande importância foi o de nº 904, também
de 1959, que dispõe “Sobre o Ensino Superior de Nutrição, regula o
exercício da profissão de dietista, e dá outras providências”, ao fim
transformado em lei. Em sua exposição de motivos, Josué, mais uma
vez, enfatiza a gravidade do problema da fome:
O problema da alimentação representa, no momento atual o número um
para o povo brasileiro. Todas as medidas que tendem a racionalizar e solucionar este grave problema devem merecer a máxima prioridade. Na solução deste complexo assunto, inclui-se como requisito essencial a formação
de pessoal habilitado tecnicamente nos diferentes setores englobados pelo
problema.
A formação de nutricionistas e auxiliares de nutrição constitui certamente
um elemento essencial na batalha contra a subnutrição e a fome, em que
estamos todos empenhados.
Embora várias instituições brasileiras possuam em funcionamento cursos de nutricionistas, faz-se necessária a sua melhor ordenação no sentido de encarar este aspecto do ensino superior de nutrição como fundamental.
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O pessoal habilitado através destes cursos deverá, por outro lado, possuir
garantias na execução de seu trabalho profissional, donde a necessidade de
uma regulamentação do exercício da profissão de dietista ou nutricionista.
Comentava-se à época que seu nome teria sido cogitado para
ocupar o Ministério da Agricultura, no lugar de Mário Menegueti.
Também há controvérsias sobre uma possível candidatura sua à Prefeitura do Recife.
Embora tenha declarado, em inúmeras oportunidades, que o trabalho no Parlamento não o encantou, sua passagem pelo Legislativo Federal foi significativa para a história das políticas públicas. Graças a seu
empenho como presidente da Comissão de Saúde da Câmara dos Deputados, foi implantada a Campanha Nacional de Merenda Escolar.
Nordeste, área explosiva
Em seu livro Sete Palmos de terra e um caixão, Josué descreve a
ebulição dos movimentos sociais no Nordeste brasileiro:
O agitador autodidata vinha agitar a própria agitação já reinante na região. Agitação levantada pela abusiva permanência de um sistema que
ofende a dignidade humana, sistema que mantém todos os poderes nas
mãos de uns poucos privilegiados. (…) Foi vendo este espetáculo que
Julião apareceu e lhe deu expressão, como, há vários séculos, Frei
Bartolomeu de Las Casas, assistindo à hecatombe dos índios, dizimados
pelos colonizadores espanhóis, passou a agitar o problema da escravidão
dos índios. Como Joaquim Nabuco, diante da escravidão do negro se fez
agitador da abolição. Como Antonio Silvino e Lampião, diante do desrespeito aos direitos do homem impostos pela prepotência dos latifundiários do sertão, se fizeram agitadores do cangaço. Sempre o mesmo processo: a agitação latente se exprimindo pela força consciente de uma forte personalidade humana. Joaquim Nabuco riscando a história com os
traços de sua pena e Lampião com os traços de sua bala. Mas para que a
História não seja falsificada é preciso colocar bem esses traços dentro das
linhas daquele tecido a que já fizemos referência: o tecido espiritual da
consciência coletiva.
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JOSUÉ DE CASTRO - VIDA E OBRA
Ao descrever a situação da propriedade rural no Nordeste, da
dominação da aristocracia rural controladora da vida agrícola, constata que “tratar de um assunto tão emocionalmente carregado de
tensão política é provocar inevitavelmente a agitação”.
O cidadão do mundo
A repercussão de Geografia da Fome, tornou seu autor o nome
mais cotado para representar o Brasil em organismos internacionais
ligados a questões alimentares. Ingressa na Organização para Alimentação e Agricultura das Nações Unidas (FAO) em 1948, como membro de seu Conselho Consultivo. Em pouco tempo será eleito presidente do Conselho Executivo da FAO, cargo que exerce por dois
mandatos consecutivos, de 1952 a 1955.
Meu competidor era Lord Bruce, da Inglaterra. Eu venci por 34 a 30 votos, depois de um empate no primeiro escrutínio (…) Imagine a emoção
de me ver sentado na cadeira da Presidência, olhar um a um os representantes das grandes potências e recordar os mocambos do Recife onde se
reproduzia o ciclo do caranguejo e onde vivem outros meninos de rua
iguais ao menino que eu tinha sido.
No exercício da presidência do conselho da FAO, Josué de Castro empreende uma série de trabalhos no combate à fome no mundo, sempre buscando articular os conhecimentos técnico-científicos
para a elaboração de planos de ação. Em sua concepção, qualquer
projeto de intervenção na sociedade deveria estar muito bem
alicerçado em estudos previamente realizados, e esta ação deveria ser
monitorada por estudos avaliativos constantes. Buscou intensificar a
ajuda aos países subdesenvolvidos, não só através de programas e
projetos de desenvolvimento, mas cobrando das nações desenvolvidas suas responsabilidades frente aos desequilíbrios regionais, traduzidos na formação de imensos bolsões de miséria em determinadas
áreas do planeta, contra as pequenas ilhas de abundância.
Na medida em que assumia a condição de porta-voz do Terceiro
Mundo, enfrentou forte oposição dos países desenvolvidos, especial-
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mente Estados Unidos e Inglaterra, para a concretização de suas propostas, dentre as quais se destacavam: a criação de uma reserva alimentar de emergência, o desenvolvimento de vários programas de
cooperação técnica para melhoria e aumento da produção agrícola
nos países do Terceiro Mundo, programas de capacitação de mãode-obra, além da batalha em se proceder a uma verdadeira reforma
agrária nas áreas mais pobres do planeta e, desta forma, poder
incrementar a produção de alimentos, combater a fome, gerar empregos e renda.
Lamentavelmente, os planos entusiasmados dos primeiros tempos, a despeito de todo seu empenho, não se efetivaram com a velocidade que Josué desejara. Assim, ao deixar a Presidência, mostrava
uma certa decepção frente às fraquezas operacionais do organismo:
Pode ser que quando aqui cheguei, com uma certa dose talvez exagerada
de idealismo, não tenha pensado bastante nas dificuldades, nos obstáculos
que sempre se encontram quando se quer fazer algo desinteressado, no
puro interesse da humanidade. Como eu ocupo uma função de presidente
do Conselho e a exerço de maneira independente, não representando nenhum país e sim um homem que aqui veio, um homem de boa vontade…
estou um pouco decepcionado com o que foi feito até agora, pois a meu
ver ainda não elaboramos uma política realista que leve em conta ao mesmo tempo as necessidades do mundo e nossos propósitos.
Longe de mim, menosprezar a obra realizada pela FAO, mas desejo dizer,
com toda sinceridade – e peço que perdoem por falar com uma sinceridade um tanto brutal – que me sinto decepcionado diante da obra que realizamos. Decepcionado pelo que fizemos porque, a meu ver, não elaboramos até hoje uma política de alimentação realista (…) Não fomos suficientemente ousados, não tivemos coragem suficiente para encarar, de frente,
o problema e buscar as suas soluções. Apenas afloramos a sua superfície,
sem penetrar em sua essência, sem querer, na verdade, resolvê-lo, por falta
de coragem de desagradar a alguns. Precisamos, a meu ver, ter a coragem
de discordar de certas opiniões para aceitarmos a imposição das circunstâncias, resolvendo o problema no interesse da humanidade.
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JOSUÉ DE CASTRO - VIDA E OBRA
Ao deixar a presidência do conselho da FAO, organizou e fundou a Associação Mundial de Luta Contra a Fome (Ascofam), visando a despertar a consciência do mundo para o problema da fome e
da miséria, e promover projetos demonstrativos de que a fome pode
ser vencida e abolida pela vontade dos homens. Tinha, entretanto,
uma clara visão do alcance de uma organização desta natureza frente
à magnitude do problema:
Não estamos, pois, diante de uma moléstia a ser combatida isoladamente pela ação fulminante de um remédio específico. Não existe um específico para a fome. O que existe são catalisadores capazes de apressar as
reações sociais que conduzirão o organismo social à depuração desta
impureza e não se pense que julgamos possível resolver o problema da
fome universal apenas com a criação de um organismo especializado que
viria, num passe de mágica, apagar da fisionomia da nossa civilização
este traço negro. Não somos tão ingênuos nem tão otimistas. Sabemos
que estão bem fincadas, nas estruturas econômicas do mundo, as raízes
desse problema, que só poderá ser extirpado revolvendo-se, profundamente, resíduos dos tempos do feudalismo e da escravidão. É esta ação
catalisadora que julgamos indicada para o organismo cuja criação preconizamos: agir como um catalisador que acelere a transformação de um
vasto conjunto ou complexo social no qual está indissoluvelmente englobado o fenômeno da fome. Para esta ação catalisadora, precisamos
como primeira condição que o nosso organismo possa agir com completa independência das injunções políticas de toda a ordem, que seja um
organismo capaz de pautar a sua linha de conduta e a diretriz das suas
atividades num plano acima dos interesses particulares de grupos, partidos, governos e blocos de países, no interesse exclusivo da humanidade.
A forma indicada, Fundação Internacional, instituição que, sem visar a
lucros ou proveitos individuais, concentrasse e coordenasse os esforços
de um certo número de indivíduos numa força coletiva, capaz de interferir de maneira construtiva na dinâmica social do mundo. Internacional,
pelo seu campo de atuação, mas supranacional no seu comportamento, a
Associação Mundial de Luta Contra a Fome – a Ascofam – poderia as-
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sim captar o interesse e os recursos postos à disposição de personalidades
e instituições realmente preocupadas pela solução de tão grave problema, em todos os países do mundo, sem nenhuma exceção.
A Associação terá por fim promover, encorajar e organizar no mundo a
luta contra a fome, notadamente despertando, desenvolvendo, apoiando,
difundindo, preparando, supervisionando, realizando, direta ou indiretamente, estudos, pesquisas, iniciativas, atividades e ações de natureza a fazer conhecer, diminuir ou eliminar, a fome no mundo, isto sem nenhuma
limitação. A palavra fome é tomada aqui no seu sentido mais amplo, compreendendo tanto a fome aguda, como a fome crônica, mesmo oculta, a
fome quantitativa como a fome energética e a fome epidêmica, como a
fome endêmica.
Para realização de suas finalidades, procurará concentrar a sua ação em
quatro setores de atividades:
1. atividades visando a sensibilizar e despertar a consciência universal acerca da significação e da expressão social do problema da fome;
2. realização de pesquisas, investigações e inquéritos que permitam o conhecimento integral do problema da fome, de suas causas e efeitos, em
diferentes quadros geográficos e dos meios mais eficazes para remover os
fatores que intervêm nesta calamidade;
3. formação de pessoal capacitado para as múltiplas tarefas que se impõem
aos planos de desenvolvimento das regiões subdesenvolvidas do mundo,
onde grassa a fome em massa;
4. elaboração de projetos específicos de âmbito nacional ou regional, visando a incrementar o desenvolvimento econômico e melhorar as condições de vida e de alimentação dos grupos humanos mal alimentados.
O homem
Cresci ouvindo falar de fome desde a mais tenra idade. A princípio como mera e atenta ouvinte, depois como jovem interessada e
finalmente como cientista social, fascinada pelo tema e por suas idéias.
Ao longo de minha vida sempre tive grande dificuldade de escrever
sobre Josué de Castro, na condição de sua filha. Talvez pela formação
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JOSUÉ DE CASTRO - VIDA E OBRA
como cientista social, que me obrigava a uma visão excessivamente
técnica sobre sua obra, ou temerosa de que, invadida pelo sentimento de orgulho, faltasse com a isenção. Entretanto, meu pai sempre
me estimulou a escrever. Guardo com imenso carinho os termos de
sua carta, datada de 1964, início de seu exílio.
8 de setembro de 1964
Minha filha:
Li as duas cartas que você mandou para sua
mãe de 1 e de 2 de agosto. Gostei muito do tom das
mesmas. Tom de revolta certamente, mas de uma
revolta consciente de tudo o que se está passando,
das razões que determinam todos os atos de vandalismo de uma reação desesperada por ter sido
desmascarada pelo processo social em marcha. Gostei muito de sua disposição de participar do processo, de pagar a sua quota pela emancipação do povo
contra o clique dos seus aproveitadores, associados aos parasitas militares. Gostei, também, do seu
estado de espírito no que diz respeito a minha situação pessoal e à situação dos meus nas circunstâncias
do momento. Estou com você, não só tudo irá passar, mas capitalizaremos a única forma de capital
que deve ser acumulado ao máximo – o respeito à
dignidade humana. Seremos cada vez mais respeitados. Pelo menos no mundo, onde o respeito que
nos votam compensa o desrespeito em que se vive
hoje no Brasil, conspurcado e aviltado aos olhos do
mundo.
Recebi, também, sua carta de parabéns pelo aniversário, a qual me deu grande alegria. Senti você
toda nesta carta. Nela você insiste no mesmo ponto,
que a vida é para ser vivida com o bom e o mau, mas
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sempre com grandeza, nunca com mesquinhez, com
coisas pequeninas. Temos, pois, que reagir e a reação se está formando contra o exército de pigmeus,
este formigueiro de mediocridade que hoje morde o
Brasil em toda a sua pele com um apetite e uma
ferocidade de formigas esfomeadas, mas que não
passam de formigas – cegas, agitadas, inconscientes
do mal que estão fazendo ao país, ao seu povo, ao
mundo.
Na verdade, considero minha vida atribulada
como um fato positivo, não cheia de glórias como
você diz. Não as alcancei. Mas alcancei o respeito
do mundo e a consagração de algumas de minhas
idéias a serviço da humanidade. E, isto já é muito.
Por isso tem-se e deve-se pagar um preço. O preço
que a imbecilidade brasileira me cobra, pelo menos
até hoje, com toda a inflação da moeda e da estupidez militarista, não é caro. E, sobre este aspecto me
sinto feliz. O que me contriste, o que me revolta são
as notícias que leio de perseguições mesquinhas e
miseráveis, onde a mediocridade recalcada se desforra contra os homens de pensamento, de caráter
e de coragem que se deram ao serviço da emancipação econômica e social de nosso povo. O Correio
da Manhã publica artigos e informações que são de
estarrecer. Informações sobre os métodos de tortura que os novos nazistas brasileiros estão usando e
que certamente receberiam efusivas congratulações
de Hitler e seus seguidores. E, tudo isto feito para
nada, na defesa de uma causa perdida: a do
reacionarismo feudal brasileiro, apodrecido no clima decadente dos seus privilégios desumanos. É
isto que me revolta. Esta agressão vergonhosa con-
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JOSUÉ DE CASTRO - VIDA E OBRA
tra a grandeza do povo, humilhado, traído e vilipendiado.
Não sei o que fazer à distância para ajudar este
povo. Talvez tentar mostrar ao mundo que o Brasil
não é apenas um país de vândalos, ineptos e insaciáveis de lucros e de vinganças, mas, também, um
país onde há homens que pensam e que sentem
como criaturas humanas.
Tenho trabalhado muito, mas trabalho útil. O
CID (Centro Internacional para o Desenvolvimento)
toma forma e consistência. Esta semana, ampliaremos o seu quadro de pessoal e em outubro será o
seu lançamento público com a divulgação de documentos de base sobre seus objetivos e sua filosofia
de ação. Como decorrência de meu encontro com
Robert Oppenheimer nos Estados Unidos e de sua
visita ao CID em Paris, nasceu a idéia que me parece extraordinária, de fazer da cidade de Canisy, ora
em construção em Deauville, a Universidade Internacional do Desenvolvimento. A idéia foi aceita e
trabalho ferozmente nestes planos. Será a primeira
Universidade do Desenvolvimento no mundo e conterá um Instituto de Generalização da Ciência e um
Instituto de Técnicas da Paz, para promover a
reconversão psicossociológica e econômica do mundo de sua estrutura atual de guerra para uma de
paz. É qualquer coisa de grande e creio que realizável. Entendi-me com Oppenheimer como com ninguém até hoje. O seu entusiasmo pelas mesmas
idéias que defendo é extraordinário. Exprime-se sobre o meu livro com uma admiração que me comove. Esta semana, preparei o anteprojeto da universidade e sexta-feira vou a Genève encontrá-lo para
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discutirmos sua viabilidade. Sua dedicação à causa
da humanidade faz com que ele se interesse vivamente pelo que se está passando no Brasil, movendo o Congresso da Liberdade pela Cultura para protestar energicamente contra as perseguições que
estão sofrendo os intelectuais brasileiros. O seu plano neste sentido me parece extremamente válido e
útil ao nosso país. Noutra carta mandarei mais detalhes sobre os projetos para o Brasil e para o mundo, concebidos com Oppenheimer.
Em sua carta você diz que vive sem planos e
sem projetos. Tem um apenas: o de vir à Europa no
ano que vem para estarmos juntos. Isto será bom,
mas isto é muito pouco. Você precisa ao lado deste
projeto bem fácil de realizar, ter outros projetos
maiores e mais difíceis de alcançar. Se até setembro
do ano que vem não estivermos ainda aí, num país
já libertado da bota nazista, bem antes, com o desenvolvimento e crescimento naturais do que
estamos criando na Europa, todos vocês da família
virão certamente para cá, para me ajudarem pelo
menos por algum tempo, neste enorme projeto em
execução.
O que eu quero nesta carta é sugerir-lhe um
projeto seu. Um projeto para dar sentido à sua vida
nos próximos anos. É o seguinte: lendo suas cartas
sinto a força que você dá a tudo o que escreve.
Uma grande força afirmativa, uma violência de expressão que convence. E, isto constitui qualidades
de escritor. Por que não experimentar, por que não
tentar, por que não triunfar? Aproveite estas qualidades espontâneas, procure aperfeiçoar outras no
próprio treino de escrever e faça um plano de ser
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JOSUÉ DE CASTRO - VIDA E OBRA
escritora (…) Para você escrever a História do Golpe
de Estado brasileiro, com um prefácio de Josué de
Castro. (…) Mande dizer o que acha do projeto e,
principalmente, quando começa seu novo trabalho.
Passei um bom aniversário. Recebi sua carta,
trabalhei no CID de 9 da manhã às 8 da noite e
neste dia fiz o anteprojeto da Universidade do Desenvolvimento. Dia bom e produtivo. Como você vê
se nem tudo é bom, tudo é grande: em matéria de
amigos, de projetos, de sonhos. A vida é isto.
Lembranças ao Célio, beijos no Márcio e um
aperto de mão na futura colega escritora,
Do seu colega e pai
Josué
Alimento, ainda hoje, passados muitos anos, uma profunda e sentida sensação de tristeza quando recordo o homem afetuoso com quem
convivi, e o cientista incansável a quem admirei em razão de suas claras
e entusiasmadas explanações feitas, quase todas as noites, em torno da
mesa em que realizávamos nossas refeições. Discorria sobre suas descobertas, sobre suas propostas que poderiam solucionar, se implementadas,
parte dos problemas mais agudos da sociedade. Foi por intermédio de
suas palavras que pude reconhecer o quanto é difícil viver neste mundo de homens que são capazes de criar infinitas belezas, capazes tecnicamente de controlar a natureza, capazes de cantar a paz, mas, também, diversamente de outros animais que só atacam para saciar a fome,
praticar atrocidades inomináveis contra seus semelhantes. São capazes
de aprisionar, torturar e escravizar outros homens, produzir alimentos
e não distribuí-los para todos, romper com o equilíbrio ecológico, poluir rios e mares, destruir florestas, gerando a desigualdade, aumentando a pobreza, e tudo em busca de mais riqueza.
Até hoje, apesar dos anos, qualquer trabalho que realizo sobre
meu pai é muito dolorido, ainda mais quando trabalho, também,
B E R N A R D O M . F E R N A N D E S E C A R L O S W A L T E R P . G O N Ç A L V E S (ORGS.)
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com suas fotografias. Mas, trabalhos como este me entusiasmam,
sobretudo, tendo em vista o público a que se destina. Josué de Castro
sempre acreditou que era possível modificar a realidade de nosso país
e para isto semeou todas as suas idéias sobre as causas da fome, da
miséria, do subdesenvolvimento e apresentou suas propostas para
modificar esta realidade tão bem retratada em seus livros.
A história da humanidade tem demonstrado que, na maioria das
vezes, os que semeiam propostas de mudança nem sempre colhem o
fruto. Josué semeou o suficiente para que possamos colher os frutos
de um Brasil mais justo e igualitário.
Josué de Castro morreu em um país distante, a França, em 1973.
Tinha 65 anos e não podia voltar ao seu país porque não recebeu o
visto necessário. Assim eram tratados os brasileiros exilados pela ditadura militar. Hoje, mais de 30 anos depois de sua morte, seu pensamento continua atual. Acreditamos que ainda é possível fazer nascer na nossa sociedade um novo tipo de homem capaz de “ousar
pensar, ousar refletir e de ousar passar à ação” e, assim, realizar seu
sonho de um verdadeiro desenvolvimento humano e equilibrado.
Meio ambiente – entrevista com Josué de Castro
O professor Josué de Castro, conhecido principalmente como presidente do Conselho da FAO (Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura) de 1952 a 1955, e como autor de várias obras sobre
os problemas dos países em vias de desenvolvimento (Geopolítica da Fome
foi traduzido em 25 idiomas), muitas vezes afirmou suas convicções
mundialistas. Ademais, ele foi o primeiro delegado eleito por um corpo
transnacional de eleitores “cidadãos do mundo” que, assim, lançaram as
bases do futuro “Congresso dos Povos”.
Nossos amigos mundialistas da equipe “Mundo Unido” o entrevistaram algum tempo após a Conferência de Estocolmo (junho de 1972),
conferência esta durante a qual os representantes dos países membros
das Nações Unidas chegaram a um acordo sobre os problemas do meio
ambiente.
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JOSUÉ DE CASTRO - VIDA E OBRA
Suas respostas mostram claramente que certas tarefas que se impõem
não poderão ser levadas a bom termo se não reinventarmos o
internacionalismo. “A Conferência de Estocolmo”, diz ele, “foi a reunião
de Estados soberanos e poluidores”.
Mundo Unido – Em poucos anos, os problemas ambientais se
colocaram à frente da atualidade. De todos os lados, anunciam-se
catástrofes a curto prazo se o homem perseverar em sua imprevidência.
Será preciso aceitar com toda seriedade esses avisos ou considerar
que eles correspondem a uma nova moda?
Josué de Castro – Sim, o problema está muito em moda. Há
10 anos, a ecologia era apenas assunto de especialistas. Atualmente,
a questão da poluição, da contaminação do ambiente natural e
dos seus perigos para o homem está em toda parte. Mas, se lhes
digo que a ecologia está em moda, não acreditem que considero a
moda como uma coisa fútil! Imagina-se, injustamente, que ela
corresponde a escolhas arbitrárias. Ao contrário, é uma manifestação cujas raízes são profundas e que é orientada por fenômenos
fundamentais. A moda traduz o inconsciente coletivo e só se impõe quando recebe o apoio das massas. Quanto à ecologia e aos
problemas da poluição, pode-se efetivamente constatar que a paixão excessiva não tem nada de superficial e que os problemas assumem a maior gravidade.
Por quê? Há milhões de anos, quando o primeiro ser vivo se
alimentou e excretou os resíduos da sua alimentação, o ambiente
natural começou a ser conspurcado: onde existe vida, sempre há poluição. Certamente, os vegetais desempenham mais um papel de construtores na natureza, porém, os animais são destruidores. E entre
eles, o homem é o mais destruidor. Entretanto, quando os homens
eram pouco numerosos, eles podiam dar-se ao luxo de agredir a natureza; eles podiam, movidos por um instinto natural, transformar
seu meio ambiente para construir, arrumar, melhorar seu “nicho”,
como se diz no jargão ecológico.
B E R N A R D O M . F E R N A N D E S E C A R L O S W A L T E R P . G O N Ç A L V E S (ORGS.)
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Desde então, as populações têm-se multiplicado (várias vezes no
decorrer dos dois últimos séculos); elas se concentram em cidades
gigantescas, sua capacidade de consumo aumentou e se estendeu a
produtos novos, de modo que os resíduos do consumo de massa são
lançados no ambiente natural, os quais contaminam, degradam e
poluem em proporções até então desconhecidas. Foi a partir da segunda revolução industrial que o Homem se tornou um agente
poluidor incomparável e perigoso para sua própria existência. Ele
tem cometido tantas agressões à natureza que desencadeou uma espécie de revolta da natureza contra ele. E, agora, ele está ameaçado. É
evidente que o que chamamos de ambiente natural, o meio ambiente,
a biosfera, é dotado de elasticidade e tem podido suportar sem desastres muitas mudanças provocadas pelo homem. Contudo, a elasticidade do ambiente natural tem limites – o que chamamos de “limites
de nocividade” – além dos quais o impacto do homem sobre a natureza é negativo e perigoso. Ora, as radiações atômicas, a fumaça das
usinas e dos meios de transporte, o barulho, o consumo abusivo, o
desperdício de matérias-primas não renováveis, conduzem nossa geração ao limiar dos prejuízos globais. Este drama é a característica de
uma civilização frenética, a civilização ocidental que, em seu culto da
produção e do lucro, não tomou cuidado nem com o meio ambiente
nem com o homem. Na civilização do lucro, isto é, na civilização
mais poluidora do mundo, a poluição não tem sido levada em conta
porque se admitia que a natureza seria sempre capaz de restabelecer
os equilíbrios ameaçados. Atualmente sabemos que não é assim, que
rupturas nos ecossistemas podem acontecer e que essas rupturas podem ser fatais. Por exemplo, quem fala em “guerra atômica” fala em
suicídio da humanidade porque, neste caso, a natureza é incapaz de
restabelecer um nível de radiação compatível com a vida humana.
Tendo ultrapassado de maneira irreversível o limiar da nocividade,
os homens – mesmo os que não tenham sido atingidos pelo calor ou
pelo impacto direto da bomba morrerão todos sob os efeitos da ação
letal das radiações atômicas. Admitindo-se que alguns sobrevivam,
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JOSUÉ DE CASTRO - VIDA E OBRA
estes não serão mais que monstros ou, em virtude das mutações que
surgirão, pais de monstros.
É inevitável que eu apresente um quadro da situação de um pessimismo negro. Contudo, apresso-me a acrescentar que, se o perigo é
sério, a ameaça que pesa sobre nós é apenas latente. E, se afastarmos
a hipótese do conflito atômico, pode-se considerar que essa elasticidade da natureza de que lhes falei há pouco, ainda está muito longe
de estar totalmente ameaçada. A hipótese de um desaparecimento
do homem, da civilização, não passa de uma hipótese remota.
Mundo Unido – Devemos deduzir que o Terceiro Mundo tem de
preocupar-se com coisas mais urgentes do que a poluição?
Josué de Castro – A poluição é uma doença universal que interessa a toda humanidade, mas existem tipos de poluição diferentes no
mundo inteiro. Os países ricos conhecem a poluição direta, física,
material, a do ambiente natural. Os países subdesenvolvidos são presas da fome, da miséria, das doenças de massa, do analfabetismo. O
Homem do Terceiro Mundo conhece essa forma de poluição chamada “subdesenvolvimento”. E devo dizer que esta é a forma mais grave, mais terrível de todas.
Os países do Terceiro Mundo vivem numa economia de dependência. Todos eles são produtores de matérias-primas e de produtos
básicos exportados para os países industrializados. Os Estados Unidos,
por exemplo, consomem 75% de toda a produção do continente latino-americano. Como os preços dos produtos industrializados sobem
continuamente e o distanciamento entre esses preços e os preços irrisórios dos produtos básicos se acentua cada vez mais a cada dia que passa,
um abismo cada vez maior separa os pobres dos ricos. A riqueza dos
trabalhadores norte-americanos só existe graças à exploração dos trabalhadores e camponeses dos países em vias de desenvolvimento, graças às condições miseráveis e desumanas em que estes são mantidos. É
evidente que o estatuto colonial foi praticamente abolido em toda parte, mas a economia do tipo colonial permanece viva.
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Insisto na necessidade de esclarecer bem esta natureza do subdesenvolvimento. Não se trata de uma simples ausência ou insuficiência de desenvolvimento. Não: é um produto – um produto negativo
– do próprio desenvolvimento. O desenvolvimento traz consigo, de
um lado, suas riquezas, suas novas fabricações e, de outro, seus dejetos.
O Terceiro Mundo está no lado dos dejetos.
Eis porque os países subdesenvolvidos estão essencialmente preocupados com os problemas ambientais e da poluição. Eles estão preocupados porque o subdesenvolvimento que sofrem é a secreção de
um tipo de desenvolvimento, concebido sem respeito pela natureza e
no qual o homem não passa de um instrumento da produção.
Mundo Unido – O próprio Ocidente não acaba de contestar seu
tipo de desenvolvimento quando o “Clube de Roma” se apóia nos
relatórios do Instituto de Tecnologia de Massachussetts (MIT) para
denunciar os malefícios do crescimento?
Josué de Castro – Veja bem! Não estou totalmente de acordo com
os que fazem declarações apocalípticas do gênero: “... Estamos correndo tal perigo de morte, totalmente ameaçados pela técnica, em suma,
pelo ‘desenvolvimento’, que devemos detê-lo imediatamente”. É mais
ou menos isto que diz o grupo de Roma, que prescreve a interrupção
do crescimento sob pena de catástrofe. Evidentemente, o relatório do
MIT sobre os limites do crescimento tem uma função ao sensibilizar a
opinião. Ele teve grande sucesso, pode-se perceber isto, sobretudo depois da Conferência de Estocolmo sobre o meio ambiente. Populações
inteiras se alarmaram. Nos lugares onde a indiferença era a regra, cada
um começou a sentir-se ameaçado e, portanto, preocupado.
Isto é muito positivo. Em compensação, ao nível do seu significado global, o documento é falso. O MIT constitui um modelo matemático abstrato no qual cinco parâmetros foram levados em conta
como fatores fundamentais do crescimento: 1. os recursos naturais;
2. a produção agrícola; 3. a produção industrial; 4. o crescimento
demográfico; 5. a poluição.
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JOSUÉ DE CASTRO - VIDA E OBRA
Alimentou-se o computador com dados sobre esses cinco fatores
e sobre as relações que podiam existir sobre eles... E ele levou o MIT
a tirar conclusões falsas! Por quê? Porque, em toda essa pesquisa, não
se fez uma única referência às estruturas sociais, econômicas e políticas. Os fatores anunciados pelo MIT foram estruturados como se
suas relações e suas variações fossem indiferentes a essas estruturas.
Entretanto, no momento em que estas mudam, tudo muda na evolução das diferentes variáveis. Por conseguinte, o MIT utilizou como
tema de estudo um mundo petrificado, fossilizado. Partindo disso,
ele só pode dedicar-se a projeções lineares e ingênuas, nas quais a
realidade da vida em sociedade está ausente. O mundo real, este, é
um mundo de fases de descontinuidades – de descontinuidades nos
fatores estruturais, com todas as mudanças de ritmos delas decorrentes em todos os domínios. O mais espantoso neste caso é a segurança
com que os criadores desse modelo artificial e falso escrevem sem
rodeios: “Nosso modelo é o único modelo à luz dos nossos conhecimentos atuais”.
Modelo único é também a afirmação de uma solução única para
o futuro: aí está a segunda falha que se deve assinalar. Todos nós que
nos dedicamos a este exercício delicado que é a futurologia, sabemos
muito bem que não existe apenas um futuro. Existe todo um leque
de possíveis futuros, entre os quais podemos apenas escolher o mais
favorável aos nossos desejos. O futuro que se imagina espontaneamente nos Estados Unidos é o que deixa intacto o sistema de domínio econômico do mundo. Alhures, no Oriente, na China, por exemplo, esse futuro poderia ser o de uma integração mais perfeita do
homem na natureza. Seja ele definido com ou sem o recurso aos
computadores, o futuro desejado pelo homem oriental harmonioso
estará, portanto, em contradição com o futuro desejado pelo homem faustiano do Ocidente.
Em suma, estou de acordo com a consideração que os tipos atuais
de desenvolvimento ameaçam a civilização, a vida do homem, o planeta, e se aprovo o Clube de Paris por ter posto estes problemas em
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evidência, em compensação, rejeito todas as conclusões extraídas de
modelos artificiais e abstratos. Não creio que se tenha o direito de
prescrever a interrupção do crescimento. Querer uma economia sem
expansão, uma economia morta... para um mundo do qual dois terços da população estão muito longe do mínimo necessário à vida,
mas isto seria um absurdo! Ademais – vimos isso em Estocolmo – os
representantes do Terceiro Mundo só podem contestar violentamente essas prescrições. Para eles, o crescimento é, por excelência, a esperança de poder sair da fome e da miséria.
Mundo Unido – Por mais compreensíveis que sejam essas reações
do Terceiro Mundo, não contém elas uma certa ambigüidade?
Josué de Castro – É verdade que a tomada de consciência de certo
número de países é mais emocional do que racional e que eles agem,
antes de tudo por instinto de autodefesa. Até então, eles ainda não
estavam totalmente marginalizados: se lhes concedia uma ajuda, aliás
notoriamente insuficiente. Agora, eles temem que se lhes venha a
dizer “a ajuda terminou, pois vocês não precisam mais buscar o crescimento”. É como se se dissesse a uma criança que está crescendo:
“Permaneça criança por toda a vida”. Para ela, isto seria o desespero.
De qualquer maneira, esta ordem de interromper o crescimento
é muito inquietante, pois como se poderia aplicá-la nos países em
plena expansão? O desenvolvimento, onde existe, não se interrompe
de repente como que por um passe de mágica. Portanto, receia-se
que sejam as economias já estagnadas do Terceiro Mundo, as que,
bem ou mal, haviam escapado do “crescimento zero”, que monopolizavam a operação.
Por último, é evidente que os mercados dos países em vias de
desenvolvimento estão ameaçados se os países com civilização técnica se puserem a desenvolver uma produção de reciclagem, isto é, de
reutilização de velhos materiais. Temos, então, um impasse. E os países pobres têm razões muito sérias de se inquietarem quando se formulam regras para uso dos países desenvolvidos sem se preocupar
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JOSUÉ DE CASTRO - VIDA E OBRA
com os outros, ao passo que os problemas ambientais e da poluição –
expliquei isto há pouco – são realmente problemas universais.
Para enfrentar essa situação e para que cada um crie seu tipo de
desenvolvimento, que devem fazer os países do Terceiro Mundo? Eles
devem dedicar uma parte da renda nacional à pesquisa, não apenas
pesquisa técnica, mas também pesquisa sociológica, a que permitiria
encontrar as estruturas sociais, econômicas e políticas que seriam
implantadas neles. Não parece que o que chamamos de “uma democracia liberal” imitada dos Estados Unidos seja o que mais lhes convém neste momento. A democracia é uma palavra sem sentido quando em qualquer país do mundo, seja ele qual for, uma minoria ínfima de cidadãos participa realmente da elaboração e da tomada de
decisões. No Brasil, por exemplo, essa minoria não passa de 2% da
população. Portanto, é preciso buscar novas formas de estruturas
políticas, e essas pesquisas para o Terceiro Mundo só podem ser realizadas por eles próprios. Se os países ricos devem contribuir com sua
ajuda, que não seja mais, em todo caso, pelo envio de especialistas
para os países subdesenvolvidos, mas que ignorem toda a realidade
dos países pobres! É preciso que a pesquisa vise ao essencial, isto é,
aos problemas humanos, e que, quanto aos fatores de produção, na
maioria das vezes, volte-se primeiramente para a terra. Realmente,
nada será possível, num país agrícola como o Brasil, por exemplo,
enquanto 80% da terra pertencer a 5% da população.
Mundo Unido – O senhor criticou a civilização da produção frenética e do lucro como civilização poluidora por excelência, mas, ao
mesmo tempo, recusa toda a interrupção do crescimento.
Josué de Castro – Não há contradição nisso. Atualmente, o que se
torna mais importante é a qualidade da vida, a qualidade do meio
ambiente, mas se pode aumentar a produção, contanto que seja com
técnicas não poluidoras. Até aqui elas não foram utilizadas, por obsessão dos lucros e dos preços competitivos. Neste aspecto, multiplicam-se os produtos inúteis, procurou-se estimular o consumo para
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além das necessidades reais, mas, em compensação, descuidou-se das
necessidades essenciais. Nos Estados Unidos, podemos ler à entrada
de um supermercado: “se você não sabe o que quer, entre, nós o
temos”. Não obstante, nesse país, o mais rico do mundo, existem 20
milhões de famintos e 50 milhões de subnutridos, não obstante a
caridade organizada (mal organizada) pelo Estado.
Eis porque é preciso, ao mesmo tempo, rejeitar a idéia de uma
interrupção do crescimento enquanto houver necessidades de satisfazer e, ao mesmo tempo, rejeitar um tipo de desenvolvimento sem
objetivo (exceto o do lucro) e modos de produção que poluem e
degradam a vida e o meio ambiente.
Mundo Unido – Ouvindo-o comentar o relatório do MIT, este
ponto de vista, sem se confundir com o de Sicco Mansholt, não parece tão distante assim. O fracasso do controle de natalidade.
Josué de Castro – Na verdade, creio que Mansholt tem uma visão
mais matizada e mais realista que os autores do documento do MIT
exceto num ponto: ele é dos que ficam estupefatos com o crescimento da população e querem detê-lo a qualquer preço. Ora, para deter
a explosão demográfica, a pior das soluções seria interromper a produção. Ao contrário, a educação e a formação humana são os únicos
meios válidos que exigem uma economia viva, ativa.
Não é com engenhocas ou pílulas que se interromperá o crescimento da população no Terceiro Mundo. Não se inocula desse modo,
nas civilizações tradicionais, uma característica isolada de um tipo de
civilização técnica, que, por ser isolada, não serve para associar-se às
características dessas civilizações tradicionais. O controle de natalidade que se queria impor dessa maneira, nos lugares onde a civilização, as culturas, não podem aceitá-lo, se transformaria em qualquer
coisa de abominável que revoltaria a população.
Mundo Unido – Pode-se afirmar que as tentativas de controle de
natalidade têm sido ineficazes em todo o Terceiro Mundo?
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JOSUÉ DE CASTRO - VIDA E OBRA
Josué de Castro – Estou convencido disso. Vejam o caso da Índia.
É o país por excelência, onde se depositou suas esperanças num controle da natalidade e onde o governo, querendo sair de uma situação
dramática, despendeu muito dinheiro. Com que resultado? A Sra.
Indira Gandhi o anunciou na Conferência de Estocolmo declarando: “Não esperem a solução do problema demográfico pelo controle
da natalidade”. O fracasso se deve ao fato de que os métodos empregados não podem ser aplicados às massas de populações enormes.
Com muitos esforços, se submeteu ao controle um milhão de mulheres da Índia, ao passo que elas são 200 ou 250 milhões. Não se
pode impor uma idéia desse modo. Seria preciso mudar a tradição, o
estilo de vida, as estruturas.
Mundo Unido – Da sua viagem a Estocolmo, por ocasião da
Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e das conferências concomitantes realizadas por diversas organizações não governamentais, o senhor observou o sentimento de que medidas eficazes seriam tomadas para conter a deterioração ambiental?
Josué de Castro – Como a poluição é um problema universal,
seria bom discuti-lo em âmbito internacional. Na verdade, as poluições dificilmente podem ser combatidas por regulamentações nacionais. Se um país tiver a coragem de aplicar sozinho toda a regulamentação necessária, sua produção logo cessaria de escoar-se a preços competitivos e ele logo iria à falência. É preciso obter uma regulamentação em escala mundial. Então, os delegados da conferência
de Estocolmo atacaram o problema... mas, veja bem, não o resolveram. E, sobre questões essenciais – a guerra e os armamentos, entre
outras – as discussões andaram em círculos, como era de se prever.
Todos nós sabemos que o melhor que se pode obter de um quadro
assim é uma boa recomendação que cada país, depois, tem a liberdade de adotar ou não.
Para dominar realmente o problema do meio ambiente, seria
preciso, além de uma ampla consulta geral indispensável, a autorida-
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de de um “governo mundial”, ou, se a expressão o incomoda, de uma
instância planetária soberana a ser definida. Apesar de tudo, na falta
desta, é preciso tomar medidas indispensáveis. Ou poder-se-ia frear
seriamente a poluição se, neste campo, a ONU votasse uma resolução que limitasse a soberania nacional. De resto, a revisão da Carta
de São Francisco está na ordem do dia da próxima assembléia das
Nações Unidas na qual é preciso esperar que pelo menos se reflita
sobre o direito de veto das grandes potências, o que constitui uma
espécie de desafio a todos os outros países.
Mundo Unido – Podemos realmente reacender a esperança de
vermos a ONU iniciar uma mudança, ainda que pequena, no domínio sacrossanto da soberania dos Estados?
Josué de Castro – Acalento essa esperança. Leibnitz dizia que “nada
acontece sem razão suficiente”, mas hoje a poluição constitui essa
razão suficiente para que finalmente o mundial obtenha suas primeiras vitórias sobre o nacional.
Terre Entière – Numero Double, Spet. – 1972.
(Entrevista feita por Jean Prédine e Roger Wellhoff ).
Tradução – Anna Maria de Castro.
Depoimentos
Lord John Boyd Orr
(Prêmio Nobel da Paz)
Ex-Reitor da Universidade de Glasgow
Ex-Diretor Geral da FAO
Fome e Política (1951)
O professor Josué de Castro bem poderia ter dado ao seu livro de
alcance mundial Geopolítica da Fome, o título de “Fome e política”
porque, nesta obra, surgem perspectivas políticas de primeira grandeza. Mas, como salienta o próprio autor, sempre foi considerado
pouco conveniente, entre os povos bem alimentados, discutir-se a
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JOSUÉ DE CASTRO - VIDA E OBRA
fome dos menos afortunados – fome que nunca foi assunto muito
popular em matéria de política. E, no entanto, a fome tem sido,
através dos tempos, a mais perigosa das forças políticas. Foi a fome
que precipitou a Revolução Francesa. Uma multidão de mulheres
dos cortiços de Paris marchou até a sede do Parlamento, bradando
por pão. Os políticos fugiram. As mulheres, com suas hostes reforçadas pelos homens, rumaram para a Bastilha. A queda da Bastilha foi
o golpe de morte contra o sistema feudal na França, iniciando uma
nova era. Na atual crise mundial, um livro como a Geopolítica da
Fome é de vital importância. Se os políticos de todas as nações do
mundo pudessem esquecer por um momento os seus conflitos políticos e lessem Geopolítica da Fome, sem idéias preconcebidas, adquiririam certamente uma visão mais sadia dos problemas universais e
teriam, assim, maior possibilidade de salvar nossa civilização de perecer numa terceira guerra mundial. (…)
A palavra “fome”, usada pelo autor, precisa ser bem definida. No
passado, empregava-se a palavra “fome” para exprimir a falta de alimentos para a satisfação do apetite e o número de mortos pela fome
restringia-se então aos indivíduos esquálidos que morriam por completa inanição. Josué de Castro, porém, usa essa palavra no seu sentido moderno, no sentido da falta de quaisquer dos 40 ou mais elementos nutritivos indispensáveis à manutenção da saúde. A falta de
qualquer deles ocasiona morte prematura, embora não acarrete, necessariamente, a inanição por falta absoluta de alimento. A carência
total de alimento, tal como se verifica nas épocas de fome em massa,
sempre constituiu uma causa importante de mortalidade. Mesmo
nos últimos tempos, a fome tem matado mais gente do que a própria
guerra. Mas o número dos que assim morrem ainda é pequeno, em
comparação com os que vivem num regime alimentar inadequado
para manter a saúde e que, por isso mesmo, sofrem, em maior ou
menor grau, de doenças da nutrição. Dando-se à palavra “fome” essa
acepção, de acordo com as estimativas feitas antes da guerra, dois
terços da população do mundo vivem em regime de fome (…)
B E R N A R D O M . F E R N A N D E S E C A R L O S W A L T E R P . G O N Ç A L V E S (ORGS.)
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Pode a Terra fornecer alimentos num nível satisfatório para essa
população assim aumentada? O autor cita fatos bem comprovados,
demonstrando não haver dificuldade de ordem física para dobrar-se
ou redobrar-se o abastecimento de alimentos do mundo.
Olívio Montenegro
Escritor e crítico literário
O Sentido Humano da Obra de Josué de Castro (1958)
Em Josué de Castro o escritor deu sempre o melhor relevo ao
homem de ciência que nunca deixou de ser. Geografia da Fome e
Geopolítica da Fome foram, sem dúvida, nos últimos tempos, os
dois livros brasileiros mais traduzidos nos países do velho e do novo
continente. Em ambos, essas obras conquistaram, quer nos Estados Unidos, quer na Rússia, prêmios magníficos, que constituíram, para o seu autor, título de uma excepcional consagração e que
tanto havia de dar um luminoso relevo aos seus 50 anos de idade
com grande parcela de trabalhos a serviço do homem, deste ou de
outros continentes. A crítica estrangeira, na sua maior parte, foi de
louvor, de rasgado louvor à obra deste ainda moço cientista brasileiro (…)
No livro Geografia da Fome, o que sobretudo nos mostra o autor
é o cemitério enorme, essa desolação infernal em que o egoísmo do
homem ameaça transformar toda a natureza física do mundo. E daí,
certamente, a nova e estranha geografia, chamada da fome, que abarca quase todo o globo terrestre, e que vemos agora, depois de minuciosamente estudada por Josué de Castro, ser objeto de interesse nos
quatro cantos do mundo. Um dos quadros que o autor pinta em
cores de um pungente, mas justo realismo é o da vida da Amazônia
no Brasil. Um quadro trágico.
Mas o autor revela-se de uma segurança admirável quando chega o
momento de apontar os meios racionais, os meios práticos de reduzir a
um mínimo de sacrifícios os horrores da tragédia amazônica, senão
mesmo de transformar essa tragédia num maravilhoso surto de vida.
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JOSUÉ DE CASTRO - VIDA E OBRA
Não são impossíveis aos homens esses meios, ainda que requeiram
um vigoroso programa: “Os melhoramentos – diz o autor – das condições alimentares regionais exigem todo um programa de transformações econômicas e sociais. As soluções dos aspectos parciais do problema estão ligadas à solução geral de um método de colonização adequada. Sem alimentação suficiente, a Amazônia será sempre um deserto
demográfico”. É que, na Amazônia, como bem acrescenta ainda o autor: “as águas e a floresta é como se tivessem feito um pacto ecológico
para se apossar de todas as riquezas da região”. Um traço simpático dos
livros do Sr. Josué de Castro é o de que, embora sendo de especialização, o leitor nem por isto está menos à vontade dentro deles, sem
passar a todo instante, em face de nomes agressivamente técnicos, pelo
vexame de sentir-se mais ignorante do que convém à sua humildade
cristã. Porque, em geral, um dos vícios mais comuns dos nossos livros
de ciência é serem eruditos demais, de um saber muito pesado nas
palavras ainda que muito leve no espírito que os conduz, como se fosse
uma ciência menos para instruir do que para “espichar” o leitor…
Nos livros de Josué de Castro negue-se o que quiser, menos, porém essa sensibilidade humana que os penetra como uma flama generosa, exaltando em dramática realidade o problema da fome no
Brasil e no mundo.
O crítico de La revue des auteurs et des livres marca bem essa força
humana da obra de Josué de Castro quando põe em alto relevo o que
nela existe “de um humanismo superior ao humanismo da maioria
dos romances (caso da Geografia da Fome) por isto mesmo que se
trata aqui de uma humanidade mais verdadeira”. E não é esta uma
opinião isolada. Este sentido humano da obra de Josué de Castro é,
da mesma maneira, exaltado por vários outros críticos franceses que
se ocuparam deste escritor. Compreende-se, daí, que esses livros tenham sido traduzidos em várias línguas – no francês, tanto como no
espanhol, no polonês, no sueco. E este poder enorme de comunicação decerto que vem menos do temperamento científico da obra que
do temperamento humano do autor.
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Max Sorre
Professor da Universidade de Sorbonne, Paris, França
A Fome sem o Véu Discreto da Fantasia (1953)
Em seu livro Geopolítica da Fome, o professor Josué de Castro apresenta um dos aspectos mais prementes, e sem dúvida, o mais trágico
desta geografia da alimentação que é o capitulo inicial de toda a geografia humana. Realmente, a importância de tais problemas não era
desconhecida dos entendidos do assunto. Existe muito de humanidade profunda na obra de um E. Réclus ou de um Vidal de La Blache,
para que não se tivesse deles uma clara consciência. Na verdade, nossos
antigos mestres não estavam enganados a respeito dos tabus que Josué
de Castro denuncia. Todavia, ele tem muita razão quando afirma que
o comum dos geógrafos, e, principalmente, o comum dos homens,
preferia nada dizer a propósito desse assunto. E muitos há que lançavam um véu discreto sobre essas feias perspectivas. Eis que, apesar disso, nós, civilizados, vimos levantar-se, à nossa frente, o espectro horrível da fome. Coisa que não se imaginaria há 20 anos passados: temos
tido fome como nossos avós tiveram fome. Os quadros mais sombrios,
os quais estávamos inclinados a não encontrar senão na literatura, retomaram, a nossos olhos, cor e realidade. Viram os médicos o aparecimento, nos hospitais da Europa ocidental, de moléstias estranhas, cujas
causas mal conheciam. Não foi preciso menos para que uma verdade
elementar se tornasse, enfim, sensível: as necessidades alimentares jamais foram satisfeitas de um modo permanente, senão para uma
pequeníssima parte da humanidade. Os demais têm vivido de maneira
precária, à margem da subalimentação. Enquanto as grandes fomes
flagelavam regiões que são como que as terras clássicas da fome, a ameaça
da escassez periódica rondava em torno de numerosos grupos, e a ação
insidiosa dos desequilíbrios dos regimes e das carências atingia profundamente os outros em sua vitalidade. Datam apenas de ontem nossos
conhecimentos sobre as moléstias de carência – o que vale dizer, sobre
as formas menos espetaculares, porém não menos perigosas, duma certa
espécie de fome.
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JOSUÉ DE CASTRO - VIDA E OBRA
O livro de Josué de Castro, em que são estudadas, em seu quadro
geográfico, as insuficiências de alimentação dos grupos humanos vem,
de certo modo, ao encontro de várias ordens de preocupações. Primeiro, uma angústia despertada em todas as almas pela lembrança
de misérias recentes e pela consciência que temos, agora, de sua persistência em várias regiões. Depois, o sentimento de uma contradição entre duas séries de fatos, o crescimento demográfico atual da
espécie humana e a possibilidade de aceleração deste crescimento
pela generalização das observâncias higiênicas, dum lado, e de outro
lado, o balanço dos recursos alimentares. A velha fórmula de Malthus
já não é aceitável, mas a inquietação que a inspira ainda perdura.
Enfim, os progressos da fisiologia da alimentação orientaram para
esses problemas todos aqueles que, a um título ou outro, se têm interessado pela ecologia humana. Seja permitido dizer que este é o meu
caso. O movimento natural do pensamento do ecologista o conduz
para o estudo das condições de nutrição dos grupos humanos no seu
quadro geográfico, independentemente de toda preocupação de atualidade. A convergência destas três linhas de pensamento é sensível no
livro de Josué de Castro. Médico e geógrafo especializado, tem ele
contribuído pessoalmente nas atividades da Organização das Nações
Unidas, no setor de alimentação e agricultura (FAO), de cujo Conselho é hoje o presidente. Sua colaboração nessa grande obra internacional permitiu-lhe avaliar com maior exatidão a significação universal e a importância do problema da alimentação. Primaciais, do
ponto de vista científico, são esses problemas, de imenso alcance para
a política geral da humanidade. (…) Os neomalthusianos oferecem
soluções pessimistas do problema da alimentação. O livro de Josué
de Castro é um extenso requisitório, apaixonante e apaixonado, contra essas doutrinas que humilham a humanidade. Ele aponta os erros
dos homens, o espírito de ganância, a imprevidência, como responsáveis por todo o mal. Constitui, ainda, esse livro um libelo contra os
malefícios do imperialismo e do colonialismo – libelo constantemente
justificado. (…) Ter-se-á o direito de censurar Josué de Castro por
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falar tão acaloradamente sobre temas que são fundamentais para a
humanidade? Eu, por mim, julgo que ele realizou um trabalho benéfico, insistindo, com uma força persuasiva, sobre a gravidade da situação. Seja de quem for o acervo de responsabilidade e de culpas, é
salutar que nos defrontemos com esses problemas. E a própria veemência de Josué de Castro aproveitará o seu desígnio, que é forçar a
atenção dos indiferentes sobre este paradoxo mortal: a humanidade,
em sua grande massa, à margem da subalimentação, sofrendo fome,
ao passo que as técnicas modernas de produção, aplicadas aos solos
disponíveis, permitiriam, não só que todos os homens tivessem o
que comer, de modo suficiente, como também afastariam, por algum tempo, ao menos, a inquietação que traz o crescimento das
populações. E se digo “por algum tempo” é para não prejulgar a solução de um problema atualmente teórico, que, entretanto, não se suprime com o negar. Somos homens e vivemos no tempo. É preciso
desfazermo-nos de fantasmas. Urge crermos em nós mesmos e em
nossa própria capacidade. Não preciso seguir toda a argumentação
de Josué de Castro contra os neomalthusianos, para subscrever sua
conclusão: “O caminho exato da sobrevivência está ainda ao alcance
do homem. Ele é marcado pela confiança que deve sentir em sua
própria força”. É a verdadeira linguagem de um homem.
Russel Lord
Escritor e jornalista, Nova York, Estados Unidos
Não Há Necessidade de Malthusianismo (1958)
O Dr. Josué de Castro, fundador do Instituto de Nutrição da
Universidade do Brasil, na sua vibrante réplica aos neomalthusianos,
escolheu William Vogt, cujo Road to survival (Caminho da sobrevivência), foi publicado em 1948, como seu principal antagonista. Ele
apresenta provas, das quais algumas são novas, para demonstrar que
embora 2/3 da humanidade sofram fome, no momento atual, este
regime de fome e desnutrição não pertence à categoria dos incuráveis
ou inevitáveis.
72
JOSUÉ DE CASTRO - VIDA E OBRA
Ao contrário: “o mundo possui à sua disposição bastante recursos para providenciar uma dieta adequada para cada um e em cada
lugar(…) O caminho da sobrevivência não se encontra nas prescrições do neomalthusianismo de eliminação da população supérflua,
nem no controle da natalidade. Estas concepções derrotistas e
desintegradoras mostram o caminho da morte, das revoluções e das
guerras – o caminho da perdição”.
William Vogt quando escreveu seu livro estava chefiando a parte
conservadora da União Panamericana. Ele advogou a ajuda, segundo
o Plano Marshall, somente aos países inclinados a adotar o sistema
de controle de nascimentos. No momento atual, ele está chefiando a
liga da Paternidade Planejada, com sede em Nova York.
Além dos católicos, outras pessoas também vão aprovar e ler com
simpatia a réplica humanitarista com a qual o Sr. Josué de Castro rejeita o dogma científico dos que, com sangue frio, consideram a elevada
mortalidade com calma e, talvez, com aprovação, quando a infelicidade atinge a terceiros, pertencentes às classes menos favorecidas. É fácil
para os privilegiados dar de ombros à desesperada fome dos seus semelhantes e considerá-la inevitável, quando, de fato, as condições de morte
e penúria estão arraigadas não no solo e no clima, mas decorrem da
colonial e exploradora política imperialista. (…)
Na sua réplica ao malthusianismo, o autor lembra um outro “intuitivo” profeta do passado, Thomas Doubleday, que, em 1853, declarou que a “verdadeira lei da população” baseia-se no fato de que a
maior riqueza de filhos sai sempre da classe pobre e mal alimentada.
Deste modo, não é a fome que resulta da superpopulação, esta é que
se origina da fome. Desenvolvendo este argumento, o autor cita recentes experiências realizadas para demonstrar que os ratos mantidos
com a dieta altamente protéica revelam-se com menor capacidade
reprodutora do que os subalimentados. Baseado nestes ensaios, o autor
estabelece analogias com o gênero humano, apresentando tabelas com
índices de natalidade em ascensão na medida do decréscimo da
ingestão protéica. (…)
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As suas estatísticas e observações, quanto às imensas áreas que
ainda podem ser utilizadas nos países superpopulosos e mal nutridos, impressionam muito mais. O mesmo se pode dizer dos capítulos referentes à possibilidade produtiva dos solos atualmente ocupados, porém inadequadamente aproveitados. A Geografia da Fome é
um livro corajoso, escrito de uma bela e impressionante maneira,
contrabalançando os lamentos e as previsões fatídicas. *
Rachel de Queiroz
Escritora e jornalista
Fome, Ciência e Ficção (1946)
Diante de certos livros é que a gente vê como é fácil e sem importância o ofício de literato. Sim, são realmente os cientistas que nos
botam complexo de inferioridade. Porque afinal de contas fazer literatura não é mais do que coisa gratuita e à toa, anotar impressões,
traduzir um estado de alma, ou relatar algum sucesso havido, sempre
deformado. Em suma: tudo improvisação, falsificação, fingimento.
Mas escrever um livro que informe, ensine, descubra verdades
encobertas ou controvertidas, isso sim, representa, na realidade, um
mundo de honestidade, esforço, labuta, rigor – além do talento natural que exige em grandes doses.
E é pois o sentimento da minha inidoneidade que me afeta ao
tentar um comentário em torno do livro do ilustre professor Josué de
Castro: o Geografia da Fome.
É essa obra um estudo da fome no Brasil – aliás o primeiro volume de uma série de estudos do fenômeno “fome” no mundo inteiro.
Assunto pouco explorado, pouco discutido, pois como diz o autor
no prefácio, é tema bastante delicado, perigoso, que repugna – um
dos tabus da nossa civilização. Entre gente como nós, os ditos “artistas da pena”, quando se fala em fome e miséria, ou carência endêmica
*
O jornalista refere-se ao livro Geopolítica da Fome, inicialmente publicado nos
EUA sob o título de Geography of hunger [Geografia da Fome].
74
JOSUÉ DE CASTRO - VIDA E OBRA
ou epidêmica, só nos ocorre fazer um romance bem chorado sobre o
assunto, ou compilar um anedotário pitoresco, ou, no melhor dos
casos, uma antologia do folclore ou da literatura da fome no Brasil.
Mais não se dá.
Os estudiosos já são outra casta de gente. Vão em pessoa para o
local que interessa, levam máquinas e fichários, alugam auxiliares,
colhem o material na fonte, e lá mesmo o examinam por todos os
lados, sejam homens, micróbios, cereais ou caça de pena.
Ai, secos algarismos, duros nomes científicos de raízes gregas,
como falais, como sabeis arrancar lágrimas! Quando Josué de Castro
nos conta que os caboclos amazônicos têm “déficit” protéico – isso
quer dizer, senhores, panela sem carne, sem ovo e sem leite, a pura
farinha d’água com algum feijão e, sem mesmo o peixe abundante
que é deixado para dia de festa. E meninos amarelos, e cabrochas de
quinze anos já sem dentes, e homens cansados, e preguiça, e derrota.
Quando, em simples números, nos dá conta do índice de mortalidade infantil nas capitais do Brasil e assinala aquelas em que esse
índice é mais alto (Aracaju com 357 por mil, Maceió com 343, Natal
com 282), a gente vê logo o morticínio desadorado das criancinhas
pobres que se acabam como pinto quando dá um ar na criadeira. A
frutificação inútil das mulheres, os penosos meses da gestação sofridos à toa, as dores do parto, as noites de insônia com o menino
doente que chora, a caminhada sem fim para os raros ambulatórios
de socorro – e tudo isso para dar de comer à terra do cemitério. (…)
Não se pense, entretanto que num livro como este, Geografia da
Fome, vamos encontrar apenas magras enfiadas de números, seguidas de uma tonelada de palavrões técnicos. O autor segue a escola
criada no Brasil pelo nosso grande Gilberto Freyre: a de completar o
artista o trabalho do estudioso, e dizer em linguagem bela, compreensível e inteligente, as suas descobertas, conclusões ou hipóteses científicas. Por isso mesmo falei acima que eles nos botam complexos,
porque não nos deixam sequer o gozo exclusivo da nossa cidadela,
que sempre foi a forma artística, o “verbo”. Em geral, têm prosa tão
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boa, ou melhor do que a nossa, mais bonita e de muito mais interesse, porque enunciam fatos enquanto nós apenas bordamos divagações. Que nos sobra, afinal? Que nos vale fazer como eles dizem um
“romance de fome” se esses nossos rivais nos levam toda vantagem,
contando autênticas histórias de fome, coisas acontecidas, medidas e
pesadas, e com um interesse de narrativa que a gente jamais consegue igualar? (…)
Engraçado é que eles nos cortejam, nos citam, nos dão importância. Obra de excessiva modéstia, ou mesmo de ironia, não sei.
Depois que nos esmagam profissionalmente, tornam a nos esmagar
com gentilezas. Vejam o professor Josué de Castro, por exemplo:
dedica o seu livro, além de a Euclides da Cunha, a três romancistas
que ele chama de “romancistas da fome” no Brasil: Rodolfo Teófilo,
José Américo de Almeida e esta sua humilde criada. E fica a gente tão
radiante e honrada, que nem se apercebe do esbulho.”
Marcel Niedergang
Jornalista, Paris, França
A Fome dos Outros (1953)
No começo, havia a fome. Através dos séculos, o homem se bate
com a natureza para dela arrancar a própria subsistência. Hoje, contempla, com orgulho, o universo mecanizado que ele domesticou e
no entanto, a fome permanece. Está cientificamente demonstrado
que cerca de dois terços da população do mundo vivem num estado
permanente de fome, mas as classes bem nutridas e os povos saciados
não gostam de falar acerca da fome dos outros.
Neste sentido é que vem muito a propósito o aparecimento da
Geopolítica da Fome, de Josué de Castro. Nunca, na verdade, se falou
tanto de paz, de justiça social e de liberdade em escala universal, mas
também nunca foi tão esquecido o fato de que essas grandes palavras
não têm sentido para aqueles cuja única liberdade é, muitas vezes, a
de morrer lentamente de fome. Felicitações calorosas devem ser dadas ao ilustre sociólogo brasileiro, ex-presidente do Conselho da
76
JOSUÉ DE CASTRO - VIDA E OBRA
Organização para a Alimentação e Agricultura das Nações Unidas,
por ter relembrado, duramente, essas verdades elementares. (…)
Vê-se, desta forma, que a obra começa por um titulo que é um
desafio e continua por quadros pessimistas e por avisos que podem parecer a muitos um tanto desabusados. No entanto, a sua conclusão é otimista. A fome não é uma fatalidade e pode ser vencida. Há uma condição: a cooperação internacional nesta luta pacífica pela aceleração de
uma revolução autêntica na qual, como diz o sociólogo brasileiro, seja
obtido o triunfo do homem social, isto é, de uma era que se preocupe
mais em produzir para satisfazer as necessidades de toda a humanidade e
não apenas para ver crescer o poderio econômico de alguns.
Seu leit-motiv poderia ser este: “Se quiser a paz, declare guerra à
fome”. De fato, já foi dado o toque de clarim. Durante a última guerra, a que foi total, a Europa conheceu esta arma que não era nova, mas
se revelava mortífera – a fome organizada. E um dos objetivos da Carta
do Atlântico, firmada em 1941, foi a luta contra a miséria.
Ao lado de milhões de mortes causadas pelas grandes fomes espetaculares e de milhões de seres humanos degradados por uma
subnutrição crônica e insidiosa, a bomba atômica aparece quase como
uma arma ridícula de destruição. E todo o poder dos armamentos
modernos é ineficaz para combater esta crise desconhecida de uns e
mantida e desejada por outros: a imensa fome do mundo. Uma tarefa positiva e comum se oferece às ideologias que pretendem, por caminhos diferentes, trazer a paz e a felicidade aos homens.
Eis a verdadeira mensagem deste panfletário humanista. Utopia
de sonhador solitário, dirão alguns. Talvez, mas sem estes solitários,
nós nos sentiríamos ainda mais sós…
Luís da Câmara Cascudo
Escritor, folclorista e jornalista
O Historiador da Fome (1947)
O amor e a fome governam este mundo, dizia Schiller. Toda atividade humana ou maior percentagem dela corre para um desses pólos:
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amor e pão. A fome – assunto, tema de livro, material de estudo e de
sistematização – é que não tem atraído muita gente. Bibliografia pobre
e nomes escassos para uma indicação bibliográfica. (…)
O professor Josué de Castro enfrentou justamente esse assunto
tabu, difícil, negaceado, escondido nos relatórios e coberto com os
retalhos de sinônimos bonitos como mentiras. É um sentimento primário que humilha a nossa cultura de raciocínio. Não humilha a
concepção instintiva de civilização, mas os elementos formadores,
minando-lhes o interior com denúncia de uma desolante e diária
verdade natural.
Certo também é que a generalização é sugestiva para o homem
inteligente. A fome pode explicar o impulso inicial de todo movimento de progresso e de indústria como a simples curiosidade, o
arrojo cristão da catequese, o próprio instinto pessoal de um líder
que sacode o seu povo, seu grupo, seu clã para acima da cordilheira,
procurando terra-onde-não-se-morre, independente do problema da
alimentação parca ou menos suficiente.
Indiscutível é que a fome é um elemento decisivo, um dos mais
fortes, irresistíveis e poderosos na dispersão humana e no processo
seletivo da massa. Seletivo está aplicado num plano biológico e não
sociológico, ou, se me permitem, fora dos modelos da Antropologia
Cultural. A fome mantém em nomadismo concêntrico os árabes do
deserto, como enrijou, disciplinou, secou as gorduras, enxugou os
músculos, afilou o perfil agudo do sertanejo nordestino, sacudindo-o
para o Pará, Amazonas, Acre, com um teor de alimentação que é a
fome endêmica, mas politicamente empurrando os limites do Brasil,
espalhando o conhecimento geográfico, industrializando os métodos indígenas de caça e pesca, determinando mesmo uma mentalidade sugestiva e viril que resiste até ir cedendo, devagar, aos assaltos
de todas as febres que credenciam a majestade do paludismo.
Josué de Castro, com a Geografia da Fome, iniciou seu grande
estudo num plano de monumento, de extensão, de esforço continuado. Não apenas trouxe para o estudo dos aspectos brasileiros da fome,
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JOSUÉ DE CASTRO - VIDA E OBRA
a capitalização de leituras, viagens, observações e intuições surpreendentes, mas articulou todo este material em esquemas lógicos de uma
campanha de inteligência e de humanismo radical.
Uma boa atitude desse livro, primeiro de uma série, é ser objetivo. Está voltado para o Brasil. É possível discordar, aplaudir ou
negar porque o ambiente ficou ao alcance da verificação. Todas as
virtudes de análise foram mobilizadas para atender aos reclamos
mais modernos na espécie. Divisão de áreas, subáreas, características alimentares, resultados, sugestões, comentários, críticas. História, Sociologia, Folclore, Antropogeografia trazem seus afluentes
para o rio imenso. O assunto, velho mas amedrontado pelo medo
de desentocá-lo, aparece novo e vivo, situado com as cores reais e
verídicas de uma constatação positiva. É um inquérito que se inicia
nesse depoimento, rico de notícia e de informação, exigindo o endosso ou a negativa.
Ninguém simpatizará, ideal e romanticamente, com esse assunto. Estudar a fome, indicá-la, riscar no mapa do Brasil suas moradas
e cottages de vilegiatura, é um desaforo que devia ter sido impresso há
muitos anos para fixar o problema, colocá-lo perto dos olhos e das
resoluções sucessivas dos técnicos. O aspecto psicológico da fome
continua sendo, em sua enunciação bem educada e palaciana, o mesmo tabu do sexo de antes de Freud, como notou agudamente Josué
de Castro. A palavra fome é humilhante, inferior, indigna de todos
os códigos da boa educação. Dizer que se tem fome, quando o almoço se eterniza, é um primor de deseducação. Ainda uma das atitudes
de absoluto bom gosto, é fingir saciedade, displicência, recusando
repetir o prato. Médicos e protocolistas domésticos ensinam: “saia
da mesa sem estar satisfeito”…
Ninguém no mundo aristocrático do Oriente tem o atrevimento
de ir para a mesa em primeiro lugar. Morrendo de fome, verdes, os
convidados dos príncipes árabes empurram uns aos outros, aparentando indisposição, superioridade, fartura. Nenhum menino brasileiro do meu tempo dizia: “Mamãe, tô cum fome!”, para não levar
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um beliscão espontâneo e reprimidor do desejo que atrapalhava o
complexus do bom comportamento.
Ainda hoje, com tanto século de marcha, a maior festa oficial é
dar-de-comer ao visitante, rei, barão, soldado, ladrão. A maior homenagem é o brinde-de-honra, no fim, de copo na mão, ao redor da
mesa. Ergamos as nossas taças…
Vou ficar aqui. Josué de Castro está, com um atrevimento que
merece sucesso, atravessando uma mata cheia de encanto e de mistério confuso. Chegando do outro lado, deixou, nas pegadas, a picada
que a marcha fará uma estrada real. Volumosa é a sua tarefa. Desejo
intelectual onde a imaginação pouco colabora: muito livro para ler,
muito mundo para ver, muito escuro para clarear. Este é um livro
que anuncia dedicação digna de um homem que ama o seu país sabendo a verdade.
P R I N C I PA I S O B R A S
DE JOSUÉ DE C ASTRO*
• “O problema fisiológico da alimentação no Brasil”. Tese de Livre
– Docência em Fisiologia. Faculdade de Medicina do Recife, 1932.
• “Metabolismo basal e clima.” Recife: Revista Médica de
Pernambuco nº 2, 1932.
• O problema da alimentação no Brasil. São Paulo: Cia. Editora
Nacional, 1933.
• Condições de vida das classes operárias do Recife. Recife: Departamento de Saúde Pública, 1935.
• Alimentação e raça. São Paulo: Civilização Brasileira, 1935.
• Alimentação brasileira à luz da geografia humana. Rio de Janeiro:
Edição da Livraria Globo, 1937.
• Documentário do Nordeste. Rio de Janeiro: J. Olympio, 1937.
• Fisiologia dos tabus. Rio de Janeiro: Edições Nestlé, 1939.
• Ensaios de Geografia Humana. Rio de Janeiro: Ed. Globo, 1939.
• Geografia da Fome. Rio de Janeiro: O Cruzeiro, 1947.
• Geopolítica da Fome. Rio de Janeiro: Casa do Estudante do Brasil,
1951.
• A cidade do Recife: Ensaios de Geografia Humana. Rio de Janeiro:
Casa do Estudante do Brasil, 1955.
*
Muitas de suas obras foram traduzidas e editadas em 25 idiomas.
82
JOSUÉ DE CASTRO - VIDA E OBRA
• Três personagens: Einstein, Fleming, Roosevelt. Rio de Janeiro: Casa
do Estudante do Brasil, 1955.
• O Livro Negro da Fome. São Paulo: Brasiliense, 1957.
• Ensaios de Biologia Social. São Paulo: Brasiliense, 1957.
• Sete palmos de terra e um caixão. São Paulo: Brasiliense, 1964.
• Ensayos sobre el Sub-Desarrollo. Buenos Aires: Siglo Veinte, 1965.
• Adonde va la América Latina? Lima: Latino Americana, 1966.
• Homens e caranguejos. São Paulo: Brasiliense, 1967.
• Explosão demográfica e a fome no mundo. Lisboa: Editora Itaú,
1968.
• El Hambre: problema universal. Buenos Aires: Editora La Pleyade,
1968.
• Latin American Radicalism. Nova York: Vintagem books, 1969.
• A estratégia do desenvolvimento. Lisboa: Editora Seara Nova, 1971.
• Mensagens. Bogotá: Ediciones Colibri, 1980.
Algumas obras sobre Josué de Castro
L’ABBATE, Solange. “Fome e desnutrição: os descaminhos da
política social” Dissertação (Mestrado em Sociologia) – Faculdade
de Filosofia, Universidade de São Paulo, 1982.
ABRAMOWAY, Ricardo. “A atualidade do método de Josué de
Castro e a situação alimentar mundial” Revista de Economia e Sociologia Rural, São Paulo, v. 34, n. 3-4, pp. 81-102, jul./dez. 1996.
ACADEMIA PERNAMBUCANA DE MEDICINA. Ciclo de estudos sobre Josué de Castro; depoimentos. Recife: Ed. Universitária, 1983.
ANDRADE, Manuel Correia de. “Atualização do pensamento
de Josué de Castro” Conjuntura Alimentos, São Paulo, v. 5, n. 2,
jun. 1993.
_________. “Josué de Castro: o homem, o cientista e o seu tempo” In: Fome: um tema proibido – últimos escritos de Josué de Castro. 3.
ed. rev. aum. Recife: Companhia Editora, 1996.
ANDRADE, Manuel Correia de (et al.). Josué de Castro e o Brasil. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2003.
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83
ARAÚJO, Tânia Bacelar de. Relendo a Geografia da fome. In:
Seminário de comemoração ao cinqüentenário da Geografia da Fome.
Anais. Recife: Centro Josué de Castro, 1996.
ARRUDA, Bertoldo K. Geografia da Fome: da lógica regional à
universalidade. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 13, n. 3,
p. 545-549, jul./set. 1997.
CARVALHO, Alfredo Teles de. “Josué de Castro na perspectiva
da geografia brasileira, 1956-1958”, dissertação (Mestrado em Geografia) – Centro de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal de Pernambuco, 2002.
CASCUDO, Luís da Câmara. História da alimentação no Brasil.
São Paulo: EDUSP, 1983.
CASTRO, Anna Maria de. Nutrição e desenvolvimento: análise de
uma política. Tese (Livre-docência em Sociologia) – Instituto de
Nutrição, Universidade Federal do Rio de Janeiro, 1977.
CASTRO, Anna Maria de (Org.). Fome: um tema proibido – últimos escritos de Josué de Castro. 4. ed. rev. aum. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.
COELHO, Tânia. “Fome: um combate de toda a vida”, Ecologia
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COSTA, Christiane, FRANÇA, Valdo (Org.). Alternativas contra a fome: soluções nutritivas, baratas e regionais para combater a fome.
São Paulo: Polis, 1993.
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LIMA, Eronides da Silva. Mal de fome e não de raça: gênese, constituição e ação política da educação alimentar – Brasil 1934-1946. Rio
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MONTENEGRO, Olívio. Retratos e outros ensaios. Rio de Janeiro: José Olympio, 1959.
NASCIMENTO, Renato Carvalheira do. “Josué de Castro: sociólogo da fome”, dissertação (Mesrado em Sociologia) – Departamento de Sociologia, Universidade de Brasília, 2002.
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SILVA, Tânia Elias M. “osué de Castro: para uma poética da
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TARANTO, Giuseppe A. di. Sociedade e subdesenvolvimento na
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CADERNO
DE
FOTOS
Josué com 2 anos
*
Aos 20 anos, 1926
Glauce e Josué, 1952
Laboratório do Instituto de Nutrição, 1947
Faculdade Nacional de Filosofia, posse da cadeira de Geografia Humana, 1948
Sede da FAO, Roma
Faculdade Nacional de Filosofia, posse da cadeira de Geografia Humana, 1948
Conferência 1960/1962
Câmara dos Deputados
Encarte UERJ
Com o Papa Pio XII, 1955
Paris, 1955
Feira de livros em Lisboa, 1972
Com o presidente Getúlio Vargas
Josué, 1953
Recebendo o título de professor Honoris Causa, Peru, 1954
Conferência, Bélgica
União Soviética, 1954
Discurso de posse do novo presidente da FAO, 1951
Campanha contra fome
1960
1964
1967
1969
TEXTOS ESCOLHIDOS
DE JOSUÉ DE CASTRO
1. O CICLO DO
CARANGUEJO
A família Silva mora nos “mangues” da cidade do Recife, num
“mocambo” que o chefe da família fez quando chegou de cima.
A família é originária do sertão. Desceu do Cariri, na seca, perseguida pela fome. Fez uma paradinha no brejo, para tentar o trabalho
das usinas, mas não se pode agüentar com os salários dessa zona, sem
ter direito a plantar senão cana. Sem ter, nem ao menos o recurso do
xiquexique e da macambira, como no sertão, para quando a fome
apertasse.
Nesse tempo espalharam pelo interior um boato que o governo
tinha criado um ministério para defender os interesses do trabalhador e que com os fiscais da lei, a vida na cidade estava uma beleza,
trabalhador ganhando tanto que dava para comer até matar a fome.
A família Silva ouviu esta história, acreditou piamente e resolveu
descer para a cidade, para gozar das vantagens que o governo bom
oferecia aos pobres.
Logo de chegada a família viu que a coisa era outra. Não havia
dúvida que a cidade era bonita, com tanto palácio e as ruas fervilhando de automóvel. Mas a vida do operário, apertada como sempre.
Muita coisa para os olhos, pouca coisa prá barriga.
O caboclo Zé Luis da Silva não quis desanimar. Adaptou-se:
“Quem não tem remédio remediado está”. Entrou na luta da cidade
com todas as forças de que dispunha, mas as forças dele não rendiam
104
JOSUÉ DE CASTRO - VIDA E OBRA
que desse para a família viver com casa, roupa e comida. Casa só de
80 mil réis para cima, para comida uns 150 e os salários sem passarem de 5 mil réis por dia.
Começou o arrocho. Só havia uma maneira de desapertar: era
cair no mangue. No mangue não se paga casa, come-se caranguejo e
anda-se quase nu. O mangue é um paraíso. Sem o cor-de-rosa e o
azul do paraíso celeste, mas com as cores negras da lama, paraíso dos
caranguejos.
No mangue o terreno não é de ninguém. É da maré. Quando ela
enche, se estira e se espreguiça, alaga a terra toda, mas quando ela
baixa e se encolhe, deixa descobertos os calombos mais altos. Num
deles, o caboclo Zé Luis levantou o seu mocambo. As paredes de
varas de mangue e lama amassada. A coberta de palha, capim seco e
outros materiais que o monturo fornece. Tudo de graça encontrado
ali mesmo numa bruta camaradagem com a natureza. O mangue é
um camaradão. Dá tudo, casa e comida: mocambo e caranguejo.
Agora, quando o caboclo sai de manhã para o trabalho, já o resto
da família cai no mundo. Os meninos vão pulando do jirau, abrindo
a porta e caindo no mangue. Lavam as ramelas dos olhos com a água
barrenta, fazem porcaria e pipi, ali mesmo, depois enterram os braços lama a dentro para pegar caranguejos. Com as pernas e os braços
atolados na lama, a família Silva está com a vida garantida. Zé Luis
vai para o trabalho sossegado, porque deixa a família dentro da própria comida, atolada na lama fervilhante de caranguejos e siris.
Os mangues do Capibaribe são o paraíso do caranguejo. Se a
terra foi feita para o homem, com tudo para bem servi-lo, também o
mangue foi feito especialmente para o caranguejo. Tudo aí, é, foi ou
está para ser caranguejo, inclusive a lama e o homem que vive nela. A
lama misturada com urina, excremento e outros resíduos que a maré
traz, quando ainda não é caranguejo, vai ser. O caranguejo nasce
nela, vive dela. Cresce comendo lama, engordando com as porcarias
dela, fazendo com lama a carninha branca de suas patas e a geléia
esverdeada de suas vísceras pegajosas. Por outro lado o povo daí vive
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105
de pegar caranguejo, chupar-lhe as patas, comer e lamber os seus
cascos até que fiquem limpos como um copo. E com a sua carne feita
de lama fazer a carne do seu corpo e a carne do corpo de seus filhos.
São cem mil indivíduos, cem mil cidadãos feitos de carne de caranguejo. O que o organismo rejeita, volta como detrito, para a lama do
mangue, para virar caranguejo outra vez.
Nesta placidez de charco, identificada, unificada no ciclo do caranguejo, a família Silva vai vivendo, com a sua vida solucionada,
como uma das etapas do ciclo maravilhoso. Cada elemento da família marcha dentro desse ciclo até o fim, até o dia de sua morte.
Nesse dia os vizinhos piedosos levarão aquela lama que deixou de
viver, dentro dum caixão para o cemitério de Santo Amaro, onde ela
seguirá as etapas do verme e da flor. Etapas demasiado poéticas, cheias
duma poesia que o mangue não comportaria. Parte-se aparentemente, nesse dia, o ciclo do caranguejo, mas os parentes que ficam, derramam caridosos as suas lágrimas no mangue para alimentar a lama
que alimenta o ciclo do caranguejo.
2. PREFÁCIO DA PRIMEIRA
EDIÇÃO DE GEOGRAFIA DA
FOME
O assunto deste livro é bastante delicado e perigoso. A tal ponto delicado e perigoso que se constituiu num dos tabus de nossa
civilização. É realmente estranho, chocante, mesmo à observação,
o fato de que, num mundo como o nosso, caracterizado por tão
excessiva capacidade de escrever e de publicar, haja até hoje tão
pouca coisa escrita acerca do fenômeno da fome, em suas diferentes manifestações.
Consultando a bibliografia mundial sobre o assunto, verifica-se
a sua extrema exigüidade. Extrema e estranha quando a pomos em
contraste com a minuciosa abundância de trabalhos sobre temas outros de muito menor significação. Tal pobreza bibliográfica se apresenta ainda mais estranha e mais chocante quando meditamos acerca
do conteúdo do tema da fome – de sua transcendental importância e
de sua categórica finalidade orgânica.
Já outros estudiosos se tinham espantado diante deste inexplicável
vazio bibliográfico: não há muito, Gregorio Marañon, recolhendo
material para a elaboração de um trabalho sobre a regulação hormonal
da fome,1 surpreendeu-se com o número insignificante de fichas que
conseguiu reunir acerca deste problema fundamental.
1
Marañon, Gregorio, “La Regulación Hormonal del Hambre”, in Estudios de
Endocrinología, 1938.
108
JOSUÉ DE CASTRO - VIDA E OBRA
Registrando o fato, não se deu, no entanto, o escritor espanhol,
interessado no momento noutra ordem de idéias, ao trabalho de
buscar as razões ocultas que determinaram esta quase que abstenção
de nossa cultura em abordar o tema da fome. Em examiná-lo mais a
fundo, não só em seu aspecto estrito de sensação – impulso e instinto
que tem servido de força motriz à evolução da humanidade (Spinosa)
– como em seu aspecto mais amplo da calamidade universal.
Sob este último aspecto, se fizermos um estudo comparativo da
fome com as outras grandes calamidades que costumam assolar o
mundo – a guerra e as pestes ou epidemias – verificaremos, mais
uma vez, que a menos debatida, a menos conhecida em suas causas e
efeitos, é exatamente a fome. Para cada mil publicações referentes
aos problemas da guerra, pode-se contar com um trabalho acerca da
fome e, no entanto, os estragos produzidos por esta última calamidade são maiores do que os das guerras e das epidemias juntas, conforme é possível apurar, mesmo contando com as poucas referências
existentes sobre o assunto.2 Havendo mais, a favor deste triste primado da fome sobre as outras calamidades, o fato universalmente comprovado de que ela constitui a causa mais constante e efetiva das
guerras e a fase preparatória do terreno, quase que obrigatória, para a
eclosão das grandes epidemias.
Quais são as causas ocultas desta verdadeira conspiração de silêncio em torno da fome? Será por simples obra do acaso que o tema
não tem atraído devidamente o interesse dos espíritos especulativos e
criadores dos nossos tempos? Não cremos. O fenômeno é tão
marcante e se apresenta com tal regularidade que, longe de traduzir
obra do acaso, parece condicionado às mesmas leis gerais que regulam as outras manifestações sociais de nossa cultura.
Trata-se de um silêncio premeditado pela própria alma da cultura: foram os interesses e os preconceitos de ordem moral e de ordem
política e econômica de nossa chamada civilização ocidental que tor2
Waldorf, Cornelius. The Famines of the World, 1878.
B E R N A R D O M . F E R N A N D E S E C A R L O S W A L T E R P . G O N Ç A L V E S (ORGS.)
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naram a fome um tema proibido, ou pelo menos pouco aconselhável
de ser abordado publicamente. O fundamento moral que deu origem a esta espécie de interdição baseia-se no fato de que o fenômeno
da fome, tanto a fome de alimentos como a fome sexual, é um instinto primário e por isso um tanto chocante para uma cultura
racionalista como a nossa, que procura por todos os meios impor o
predomínio da razão sobre o dos instintos na conduta humana.
Considerando o instinto como o animal e só a razão como o
social, a nossa civilização, em sua fase decadente, vem procurando
negar sistematicamente o poder criador dos instintos, considerandoos forças desprezíveis. Aí encontramos uma das imposições da alma
coletiva da cultura, que fez do sexo e da fome assuntos tabus – impuros e escabrosos – e por isto indignos de serem tocados.
Sobre o problema do sexo, foi mantido um silêncio opressor, até
o dia em que um homem de gênio, num gesto inconveniente e providencial, afirmou, diante do fingido espanto da ciência e da moral
oficiais, que o instinto sexual é uma força invencível, tão intensa que
atinge à consciência e a domina inteiramente. Freud demonstrou
com tal genialidade o primado do instinto, que é essencial, sobre o
racional, que é acessório, no desempenho do comportamento humano não houve remédio senão aceitar-se, mesmo a contragosto, a sua
teoria e deixar-se abrir os diques com que se procurava ingenuamente afogar as raízes da própria vida. Desde então foi possível debaterse em altas vozes o problema do sexo.
Quanto à fome, foram necessárias duas terríveis guerras mundiais
e uma tremenda revolução social – a revolução russa – na qual pereceram 17 milhões de criaturas, dos quais 12 milhões de fome, para
que a civilização ocidental acordasse do seu cômodo sonho e se apercebesse de que a fome é uma realidade demasiado gritante e extensa,
para ser tapada com uma peneira aos olhos do mundo.
Ao lado dos preconceitos morais, os interesses econômicos das
minorias dominantes também trabalhavam para escamotear o fenômeno da fome do panorama espiritual moderno. É que ao imperia-
110
JOSUÉ DE CASTRO - VIDA E OBRA
lismo econômico e ao comércio internacional a serviço do mesmo
interessava que a produção, a distribuição e o consumo dos produtos
alimentares continuassem a se processar indefinidamente como fenômenos exclusivamente econômicos – dirigidos e estimulados dentro dos seus interesses econômicos – e não como fatos intimamente
ligados aos interesses da saúde pública. É a dura verdade que as mais
das vezes esses interesses eram antagônicos.
Veja-se o caso da Índia, por exemplo. Segundo nos conta Réclus,3
nos últimos 30 anos do século passado morreram de inanição naquele país mais de 20 milhões de habitantes; só no ano de 1877 pereceram de fome cerca de quatro milhões. E, no entanto, de acordo com
a sugestiva observação de Richard Temple – “enquanto tantos infelizes morriam de fome, o porto de Calcutá continuava a exportar para
o estrangeiro quantidades consideráveis de cereais. Os famintos eram
demasiado pobres para comprar o trigo que lhes salvaria a vida”. É
lógico que os grandes importadores, negociantes de Londres,
Rotterdam e outras grandes praças européias, que tiravam grandes
proventos de suas importações da Índia, faziam o possível para abafar na Europa os rumores longínquos desta fome longínqua, a qual,
se tomada na devida consideração, poderia atrapalhar os seus lucrativos negócios.
Também os governos nazistas que se haviam apoderado do poder em vários países e de cuja política fazia parte obrigatória a propaganda intempestiva de prosperidades inexistentes, não podiam ver
com bons olhos quaisquer tentativas que viessem mostrar, às claras,
aos outros países, em que extensão a fome participava dos destinos
de seus povos.
A própria ciência e a técnica ocidentais, envaidecidas por suas brilhantes conquistas materiais, no domínio das forças da natureza, se
sentiram humilhados, confessando abertamente o seu quase absoluto
fracasso em melhorar as condições de vida humana no nosso planeta e,
3
Réclus, Elisée, Nouvelle Géographie Universelle, 1875-94.
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111
com o seu reticente silêncio sobre o assunto, faziam-se consciente ou
inconscientemente cúmplices dos interesses políticos que procuravam
ocultar a verdadeira situação de enormes massas humanas envolvidas
em caráter permanente no círculo de ferro da fome.
Hoje, tendo sido possível realizar com a aquiescência oficial4 uma
série de pesquisas bem orientadas nas mais diferentes regiões da terra, acerca das condições de nutrição dos povos e tendo-se evidenciado dentro de um critério rigorosamente científico, o fato de que cerca de dois terços da humanidade vivem num estado permanente de
fome, começa a mudar a atitude do mundo.
É claro que para essa mudança de atitude, muito tem contribuído
a pressão de fatos inexoráveis. Há a consciência universal de que atravessamos uma hora decisiva na qual só reconhecendo os grandes erros
de nossa civilização podemos reencontrar o caminho certo e fazê-la
sobreviver à catástrofe. Desses erros, um dos mais graves é, sem nenhuma dúvida, este de termos deixado centenas de milhões de indivíduos
morrendo à fome num mundo com capacidade quase infinita de
aumento de sua produção, dispondo de recursos técnicos adequados à
realização desse aumento. Mundo capaz de produzir alimentos para
cinco e meio bilhões de homens, segundo os cálculos de East, oito
bilhões, segundo os de Penk, e 11 bilhões, segundo os de Kucszinski;
portanto, pelo menos, para o dobro da população atual.5
A demonstração mais efetiva da mudança radical da atitude universal, em face do problema, encontra-se na realização da Conferência de Alimentação de Hot Springs, a primeira das conferências
convocadas pelas Nações Unidas para tratar de problemas fundamentais à reconstrução do mundo de após-guerra.
4
5
Desde 1929 a liga das Nações inscreveu o problema da alimentação no programa de seus trabalhos, fazendo realizar, sob o patrocínio de sua Organização de
Higiene, estudos detalhados em diferentes países e dando publicidade a uma
série de valiosos relatórios sobre o assunto.
Ferenczi, Imre, L’Optimum Synthétique du Peuplement, Paris, Institut International
de Coopération Intelectuelle, Societé des Nations, 1938.
112
JOSUÉ DE CASTRO - VIDA E OBRA
Nesta conferência, reunida em 1943, 44 nações, através dos
depoimentos de eminentes técnicos no assunto, confessaram, sem
constrangimento, quais as condições reais de alimentação dos seus
respectivos povos e planejaram as medidas conjuntas a serem levadas a efeito para que sejam apagadas ou pelo menos clareadas, nos
mapas mundiais de demografia qualitativa, estas manchas negras
que representam núcleos de populações subnutridas e famintas,
exteriorizando, em suas características de inferioridade antropológica, em seus alarmantes índices de mortalidade e em seus quadros
nosológicos de carências alimentares – beribéri, pelagra, escorbuto,
xeroftalmia, raquitismo, osteomalácia, bócios endêmicos, anemias
etc.– a penúria orgânica, a fome global ou específica de um, de
vários e, às vezes, de todos os elementos indispensáveis à nutrição
humana.
Para que as medidas projetadas possam atingir o seu objetivo,
faz-se, no entanto, necessário intensificar e ampliar cada vez mais os
estudos sobre a alimentação no mundo inteiro; donde a obrigação
em que se encontram os estudiosos deste problema, de apresentarem
os resultados de suas observações pessoais, como contribuições parciais para o levantamento do plano universal de combate à fome, de
extermínio à mais aviltante das calamidades, uma vez que a fome
traduz sempre um sentimento de culpa, uma prova evidente de que
as organizações culturais vigentes, em satisfazer a mais fundamental
das necessidades humanas, a necessidade de alimentos.
Um dos grandes obstáculos ao planejamento de soluções adequadas ao problema da alimentação dos povos, reside exatamente no
pouco conhecimento que se tem do problema em conjunto, como
um complexo de manifestações simultaneamente biológicas, econômicas e sociais. A maior parte dos estudos científicos sobre o assunto
se limita a um dos seus aspectos parciais, projetando uma visão unilateral do problema. São quase sempre trabalhos de fisiólogos, de
químicos, de economistas, especialistas em geral limitados por contingência profissional ao quadro de suas especializações.
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113
Foi diante desta situação que resolvemos encarar o problema sob
uma nova perspectiva, de um plano mais distante, donde se possa
obter uma visão panorâmica de conjunto, visão em que alguns pequenos detalhes certamente se apagarão, mas na qual se destacarão
de maneira compreensiva as ligações, as influências e as conexões dos
múltiplos fatores que interferem nas manifestações do fenômeno.
Para tal fim, pretendemos lançar mão do método geográfico, no
estudo do fenômeno da fome. Único método que, a nossa ver, permite estudar o problema em sua realidade total, sem arrebentar-lhe
as raízes que o ligam subterraneamente a inúmeras outras manifestações econômicas e sociais da vida dos povos. Não o método descritivo da antiga geografia, mas o método interpretativo da moderna ciência geográfica, que se corporificou dentro dos pensamentos fecundos
de Ritter, Humboldt, Jean Brunhes, Vidal de La Blache, Griffith
Taylor e tantos outros.
Não queremos dizer com isto que o nosso trabalho seja estritamente uma monografia geográfica da fome, em seu sentido mais
restrito, deixando à margem os aspectos biológicos, médicos e higiênicos do problema; mas que, encarando esses diferentes aspectos, o
faremos sempre, orientados pelos princípios fundamentais da ciência geográfica, cujo objetivo básico é localizar com precisão, delimitar e correlacionar os fenômenos naturais e culturais que se passam à
superfície da terra. É dentro desses princípios geográficos, da localização, da extensão, da causalidade, da correlação e da unidade terrestre, que pretendemos encarar o fenômeno da fome. Por outras palavras, procuraremos realizar uma sondagem de natureza ecológica,
dentro deste conceito tão fecundo de “Ecologia”, ou seja, do estudo
das ações e reações dos seres vivos diante das influências do meio.
Nenhum fenômeno se presta mais para ponto de referência no
estudo ecológico destas correlações entre os grupos humanos e os
quadros regionais que eles ocupam, do que o fenômeno da alimentação – o estudo dos recursos naturais que o meio fornece para subsistência das populações locais e o estudo dos processos através dos
114
JOSUÉ DE CASTRO - VIDA E OBRA
quais essas populações se organizam para satisfazer as suas necessidades fundamentais em alimentos. Já Vidal de La Blache havia afirmado há muito tempo “que entre as forças que ligam o homem a um
determinado meio, uma das mais tenazes é a que transparece quando
se realiza o estudo dos recursos alimentares regionais”.6
Neste nosso ensaio de natureza ecológica tentaremos, pois, analisar os hábitos alimentares dos diferentes grupos humanos ligados a
determinadas áreas geográficas, procurando, de um lado, descobrir
as causas naturais e as causas sociais que condicionaram o seu tipo de
alimentação, com suas falhas e defeitos característicos e, de outro
lado, procurando verificar até onde esses defeitos influenciam a estrutura econômico-social dos diferentes grupos estudados. Assim fazendo, acreditamos poder trazer alguma luz explicativa a inúmeros
fenômenos de natureza social até hoje mal compreendidos, por não
terem sido levados na devida conta os seus fundamentos biológicos.7
6
7
Blache, Vidal de La, Príncipes de Géographie Humaine, 1922.
Não se pense daí, que num exagero descabido de especialista obcecado pela importância de seus problemas, iremos tentar a criação de qualquer nova teoria alimentar
das civilizações, num novo broto desta Escola biossocial de inesgotável fecundidade.
Estamos longe desta maneira de ver, de tentativas como a do famoso escritor e jornalista mexicano Francisco Bulnes, que, no fim do século passado, um tanto influenciado
pelas idéias das hierarquias raciais, procurou explicar todas as diferenças entre os
grupos culturais por seus tipos de alimentação. “A humanidade, de acordo com sua
severa classificação econômica deve ser dividida em três grandes raças – a raça do
trigo, a raça do milho e a raça do arroz. Qual delas é indiscutivelmente superior?”
Com esta pergunta iniciava Bulnes o desenvolvimento de seu raciocínio para
demostrar que só a raça do trigo é capaz de atingir as etapas da alta civilização. No
seu livro extraordinariamente interessante, se anotarmos a época do seu aparecimento no século passado – “El porvenir de las naciones hispano-americanas ante las conquistas de Europa y Estados Unidos” – 1889, Bulnes revela-se um paciente investigador e inteligente renovador do panorama mental americano, mas também um apaixonado de suas próprias idéias, capaz de forçar os argumentos para demonstrar a
mais absurda de suas teses. No nosso ensaio não pretendemos provar nada de parecido. Não queremos convencer ninguém de que a fome seja a mola única da evolução social, nem que sejam os alimentos a única matéria-prima para fabricação das
tintas com que são coloridos os diferentes quadros culturais do mundo, mas tão
somente destacar desses quadros os traços negros da fome e da miséria que tarjam
quase todos eles com um friso mais ou menos acentuado.
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115
Acreditamos que já é tempo de precisar bem o nosso conceito de
fome – conceito demasiado extenso e, portanto, suscetível de grandes
confusões. Não constitui objeto deste ensaio o estudo da fome individual, seja em seu mecanismo fisiológico, já hoje bem conhecido graças
aos magistrais trabalhos de Schiff, Lucciani, Turró, Cannon e outros
fisiólogos; seja em seu aspecto subjetivo de sensação interna, aspecto
este que tem servido de material psicológico para as magníficas criações dos chamados romancistas da fome. Escritores corajosos que resolveram violar o tabu e nos legaram páginas geniais e heróicas, como
as de um Knut Hamsun, no seu romance “Fome” – verdadeiro relatório minucioso e exato das diferentes, contraditórias e confusas sensações que a fome produziu no espírito do autor; como as de um Panait
Istrati, vagando esfomeado nas luminosas planícies da Romênia, como
as de um Felekhov e um Alexandre Neverov, narrando com dramática
intensidade a fome negra da Rússia em convulsão social; como as de
um George Fink, sofrendo fome nos subúrbios cinzentos e sórdidos de
Berlim; e como as de um John Steinbeck, contando, em Vinhas da Ira
a epopéia da fome da “família Joad”, através das mais ricas regiões do
país mais rico do mundo – os Estados Unidos da América.
Não é esse tipo excepcional de fome, simples traço melodramático no emaranhado desenho da fome universal que interessa ao nosso
estudo. O nosso objetivo é analisar o fenômeno da fome coletiva –
da fome atingindo endêmica ou epidemicamente as grandes massas
humanas. Não só a fome total, a verdadeira inanição que os povos de
língua inglesa chamam de “starvation”, fenômeno, em geral, limitado a áreas de extrema miséria e a contingências excepcionais, mas
sim como o fenômeno muito mais freqüente e mais grave, em suas
conseqüências numéricas, da fome parcial, da chamada fome oculta,
na qual pela falta permanente de determinados elementos nutritivos,
em seus regimes habituais, grupos inteiros de populações se deixam
morrer lentamente de fome, apesar de comerem todos os dias.
É principalmente o estudo dessas coletivas fomes parciais, dessas
fomes específicas, em sua infinita variedade, que constitui o objetivo
116
JOSUÉ DE CASTRO - VIDA E OBRA
nuclear do nosso trabalho. Com a sua publicação visamos contribuir
com uma parcela infinitesimal para a construção do plano de ressurgimento de nossa civilização, através da revalorização fisiológica do
homem.
Poderá, à primeira vista, parecer uma desmedida pretensão que o
autor de um estudo de categoria tão modesta como este, atribua-lhe
qualquer interferência – por mínima que seja – nos destinos universais da humanidade. Encontramos, porém, uma explicação e uma
justificativa para esta nossa atitude, na afirmativa recente do filósofo
inglês Bertrand Russell de que “nunca houve momento histórico no
qual o concurso do pensamento e da consciência individuais fosse
tão necessário e importante para o mundo como em nossos dias”. E
mais ainda “que todo homem, qualquer homem comum, poderá
contribuir para a melhoria do mundo”. É com esta mesma crença na
obra de cooperação de cada um, de co-participação ativa na busca de
um mundo melhor, que planejamos esta obra abordando o tema da
fome em sua expressão universal, mostrando com que intensidade e
em que extensão o fenômeno se manifesta nas diferentes coletividades humanas.
De fato, o conhecimento exato da situação alimentar dos povos,
dos recursos de que poderão dispor para satisfazer suas necessidades
de nutrição é absolutamente indispensável para que se leve a bom
termo a revolução social que se processa com incrível velocidade nos
dias em que vivemos. Revolução que, segundo se vislumbra pelas
transformações já processadas, está criando universalmente um novo
sistema de vida política, que poderemos chamar, como sugere Julian
Huxley,8 a era do homem social, em contraposição a essa outra era
que terminou com a II Guerra Mundial, a era do homem econômico. O que caracteriza fundamentalmente esta nova era é uma localização muito mais intensa do homem biológico como entidade concreta e a prioridade concedida aos problemas humanos sobre os pro8
Huxley, Julian, On Living in a Revolution, 1944.
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blemas de categoria estritamente econômica no sentido da clássica
economia do lucro.
Realmente, enquanto até a última guerra, a nossa civilização
ocidental, em seu exagero de economismo, quase esquecera o homem e seus problemas, preocupando-se morbidamente em conquistar pela técnica todas as forças naturais, pondo todo o seu interesse nos problemas de exploração econômica e de produção de
riqueza, o que se vê hoje por toda a parte é o sacrifício obrigatório
dos interesses econômicos aos interesses sociais. É a tentativa cada
vez mais promissora de pôr o dinheiro a serviço do homem e não o
homem escravo do dinheiro. De dirigir a produção de forma a satisfazer as necessidades dos grupos humanos e não deixar o homem
se matando estupidamente para satisfazer os insaciáveis lucros da
produção.
Aparecendo na aurora dessa nova era social, onde a trágica noite
do fascismo ainda projeta as suas sombras, este livro pretende ser um
documentário científico desta tragédia biológica, na qual inúmeros
grupos humanos morreram e continuam morrendo à fome, ao finalizar-se esta tenebrosa era do homem econômico.
Para que se compreenda bem e se possa perdoar o uso que faz o
autor, em certas passagens do seu livro, de tintas um tanto negras,
é bom que o leitor se lembre de que esta obra, documentário de
uma era de calamidades, foi pensada e escrita sobre a influência
psicológica da pesada atmosfera que o mundo vem respirando nos
últimos 10 anos. Atmosfera abafada pela fumaceira das bombas e
dos canhões, pela pressão das censuras políticas, pelos gritos de terror e de revolta dos povos oprimidos e pelos gemidos dos vencidos
e aniquilados pela fome. Atmosfera que o sociólogo Sorokin pinta
com as seguintes palavras: “vivemos e agimos numa era de grandes
calamidades. A guerra, a revolução, a fome e a peste cavalgam novamente em nosso planeta. Novamente elas cobram seu mortífero
tributo da humanidade sofredora. Novamente elas influenciam cada
momento da nossa existência: nossa mentalidade e nossa conduta,
118
JOSUÉ DE CASTRO - VIDA E OBRA
nossa vida social e nossos processos culturais.”9 Devemos confessar
honestamente que não nos foi possível fugir na elaboração do nosso trabalho a tão dominadora influência.
Várias foram as razões que nos levaram a planejar a realização
desta obra em diferentes volumes. A primeira delas é a desmedida
extensão do seu campo de observação, abrangendo todos os continentes, investigando as condições de vida nos mais variados recantos
da superfície da terra. Por mais impressionista que seja o retrato que
tentamos pintar de cada uma das regiões estudadas, não é possível
sintetizar os seus traços característicos além de certos limites. Toda
tentativa de concentrar tão abundante e variado material num só
volume seria um fracasso por despojar a realidade de toda a sua riqueza de conteúdo vital, anulando desta forma os propósitos do estudo projetado.
A segunda razão se fundamenta na evidência de que um estudo
de tal envergadura, mesmo quando as condições são as mais favoráveis à sua execução, leva vários anos para ser completado e a paciente
espera para publicar todo o trabalho em conjunto tornaria um tanto
antiquadas certas indicações bibliográficas e certos aspectos de atualidade do problema em suas manifestações regionais.
Evidencia-se, assim, a vantagem em dividir didaticamente o trabalho em vários volumes, realizando a sua publicação imediata à proporção que sejam ultimadas as análises das várias áreas geográficas
incluídas e encadeadas dentro do plano geral da obra completa. Foi
este o partido que tomamos, o de projetar a obra em cinco volumes
a serem publicados separada e sucessivamente.
O primeiro deles que hoje aparece estuda as diferentes áreas de
fome no Brasil, as manifestações de subnutrição neste país e a sua
influência como fator biológico na formação e evolução dos nossos
grupos humanos. Estudando o fenômeno da fome no nosso meio,
9
Sorokin, Pitirim A., Man and Society in Calamity, 1942.
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daremos um balanço geral das influências de categoria biológica que
têm interferido e pesado na modelagem de nossa cultura e de nossa
civilização.
Buscando essa valorização dos fatores de categoria biológica, não
quer dizer que desprezemos a importância dos fatores de natureza
cultural, fatores da categoria do latifundismo agrário-feudal que tanto deformou o desenvolvimento da sociedade brasileira. Isto é inegável. O que tentaremos mostrar é que, mesmo quando se trata da
pressão modeladora de forças econômicas ou culturas, elas se fazem
sentir sobre o homem e sobre o grupo humano, em última análise,
através de um mecanismo biológico: é através da deficiência alimentar que a monocultura impõe, é através da fome que o latifúndio
gera e assim por diante.
Não defenderemos, pois, nenhuma primazia na interpretação da
evolução social brasileira. Nem o primado do biológico sobre o cultural, nem o do cultural sobre o biológico. O que pretendemos é por
ao alcance da análise sociológica certos elementos do mecanismo biológico de ajustamento do homem brasileiro aos quadros naturais e
culturais do país.10
Não temos a pretensão de investigar a fundo, numa sondagem
definitiva, a influência de todos os fatores dessa categoria: raça, clima, meio biótico etc., que constituem a base orgânica da estrutura
social dos nossos grupos humanos, mas, estudando os recursos e os
hábitos alimentares de várias regiões, teremos forçosamente que levar em consideração todos esses fatores ecológicos que participam
10
Sobre a participação do biológico no mecanismo social consulte-se a série de
interessantes estudos reunidos pelo eminente antropólogo R. Redfield, no livro
Levels of Integration in Biological and Social Systems (1942). De grande valia para
uma orientação firme nesse campo científico é também a obra de G. F. Gause –
The Struggle for Existence (1934). Alexander Lipschütz, no seu interessante livro
El Indo-americanismo y el Problema Racial en las Américas, apresenta-nos um
bom exemplo de aplicação bem orientada dos mais modernos conceitos de sociologia, na análise do biológico e do social na organização dos diferentes grupos de
população deste continente.
120
JOSUÉ DE CASTRO - VIDA E OBRA
ativamente na interação do elemento humano e dos quadros geográficos brasileiros.
Caracterizando o tipo de alimentação e os variados tipos de fome
que tem sofrido a nossa gente, estamos certos de que faremos refletir
nessas características biológicas, com maior exatidão do que através
do estudo de quaisquer outras manifestações de natureza ecológica,
o grau de adaptação e ajustamento dos diferentes grupos regionais
de nossas populações às variadas zonas geográficas do país. E são
exatamente as expressões dessas variadas formas de adaptação que
dão relevo à fisionomia cultural de uma nação. É por isso que julgamos ser este volume, até certo ponto, uma tentativa de interpretação
biológica de determinados aspectos da formação e da evolução histórico-sociais brasileiras.
Num segundo volume, estudaremos as manifestações de fome
nas outras áreas do continente americano, tanto da América Espanhola, onde o fenômeno apresenta aspectos locais ainda mais alarmantes do que no Brasil, como da América Inglesa, com suas zonas
de fome bem definidas e caracterizadas – o Sul dos Estados Unidos,
Porto Rico, Trinidad, Barbados etc.
Os grupos humanos da África, culturalmente tão dessemelhantes,
povos sedentários do vale do Nilo, nômades do deserto saariano, agricultores do oásis, negritos das florestas equatoriais, caçadores e pastores bosquímanos – quase todos precariamente alimentados e acossados
pela fome – constituirão material de estudo do terceiro volume.
No quarto volume, abordaremos o estudo da fome no Oriente:
nas terras asiáticas com seus quadros de extrema miséria e de fome
endêmica, já bem estudados dentro deste mesmo critério ecológico
por investigadores penetrantes como Radhaikamal Mukerjee, que
escreveu, em 1926, a primeira obra publicada no mundo sob o título
de Sociologia Regional, ou de um Walter Mallory, autor dessa magistral monografia da fome no Oriente, intitulada China: Land of
Famine e nas distantes ilhas da Oceania onde a alimentação dos seus
primitivos habitantes que fora das mais equilibradas é hoje, em con-
B E R N A R D O M . F E R N A N D E S E C A R L O S W A L T E R P . G O N Ç A L V E S (ORGS.)
121
seqüência dos contatos e das influências culturais dos povos do Ocidente, das mais degradas e inferiorizadas do mundo.
Guardamos para o fim, para o quanto volume, o estudo da epidemia de fome que vem atravessando a Europa durante os últimos
anos, a qual, longe de terminar com o fim da guerra, parece recrudescer em certas zonas, constituindo uma das mais sérias ameaças à
paz, tão inquietante quanto o segredo da bomba atômica.
Deixamos propositadamente este estudo para o último volume, a
fim de aguardar que seja possível uma visão menos confusa do problema e uma interpretação mais serena dos fatores que continuam mantendo o fenômeno da fome nesse continente. Qualquer tentativa atual
de análise à distância de tão complexa situação, sob a ação dessa tremenda carga emocional que ainda perdura na atmosfera européia, envolveria um grande risco de que fosse deformada a realidade dos fatos.
Deformação bem possível pela paixão política, pela insuficiência de
documentação rigorosamente científica, pela impossibilidade de seleção dos informes e pelo exagero de tragédia e de dramaticidade que
envolve emocionalmente o fenômeno biológico e social. Deste último
volume, fará também parte uma análise crítica do problema numa
tentativa de fixação dos limites em que o fenômeno da fome interfere
na conduta humana, com as conclusões objetivas a que sejamos levados através dessa sondagem de categoria universal do problema.
Acreditamos dever ainda ao leitor, principalmente ao leitor estrangeiro, uma explicado e uma última advertência. A explicação visa a
esclarecer as razões que levaram o autor a dedicar dois volumes de sua
obra ao estudo de um só país, o Brasil, quando projeta concentrar em
algum dos outros volumes o estudo de continentes inteiros. Não foram razões de ordem sentimental, nem de supervalorização patriótica
que nos ditaram essa conduta: foram razões de ordem didática.
O Brasil constituiu o nosso campo de observação e de experimentação diretas do problema. De comprovação de inúmeros aspectos doutrinários da questão e de ensaio e verificação de muitas hipóteses que formulamos sob aspectos particulares nesse setor científico.
122
JOSUÉ DE CASTRO - VIDA E OBRA
O seu vasto território com diferentes categorias de climas tropicais, desde o equatorial superúmido da Amazônia até o tropical seco
e semi-árido do sertão do Nordeste e o subtropical com seus variados
tipos de organização econômica, apresenta condições excepcionais
para uma larga investigação do problema da alimentação tropical.
Nenhum país do mundo se prestaria, tanto quanto o nosso, para
funcionar como um verdadeiro laboratório de pesquisa social deste
problema.
Os resultados das observações e investigações que aqui procedemos durante 15 anos, e que são apresentados neste ensaio, poderão
permitir, pela aplicação do método comparativo, generalizações até
certo ponto válidas para inúmeras outras regiões tropicais do mundo.
Acentuar, pois, certos detalhes do caso brasileiro, nesse estudo da
geografia da fome, significa procurar ilustrar com exemplos concretos,
o estudo do fenômeno em diferentes áreas geográficas que apresentem
condições naturais ou culturais mais ou menos semelhantes às deste
país. Ademais, desenvolvendo neste primeiro volume certos aspectos
doutrinários da questão para sua melhor compreensão por parte dos
não iniciados na matéria, poderemos nos poupar de voltar ao assunto
nos volumes seguintes, os quais, aliviados no seu conteúdo de digressões doutrinárias, apresentarão em forma mais densa traços e fatos
objetivos que caracterizem áreas geográficas de maior extensão.
Há no entanto um perigo em publicar separadamente esse estudo
das áreas de fome no Brasil destacado das outras áreas de fome do
continente. Perigo de que por desconhecimento ou por má fé possa
alguém julgar serem as condições de vida no nosso país, na hora atual,
mais graves e mais difíceis do que no resto da América. Afirmativa que
está longe de ser verdadeira. Na maioria dos países da América Latina,
conforme pudemos verificar em visitas locais e através de documentos
estatísticos e informes científicos obtidos, as condições de vida são ou
idênticas ou ainda mais precárias do que as do Brasil.
Ao publicarmos o segundo volume desta obra, apresentando as
manchas da fome da América Espanhola, o assunto ficará claramen-
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123
te exposto e afastado o perigo das interpretações errôneas. Até lá, será
conveniente não se tirar conclusões de qualquer paralelo entre a situação do Brasil e a de outros países da América, senão tomando por
base de comparação trabalhos que apresentem um retrato fiel da realidade social desses países, destacando os seus traços mais significativos com o mesmo realismo isento de preconceitos com que estudamos a situação alimentar no Brasil.
3. A
DOS
REIVINDICAÇÃO
M O RTO S
Em 1955, João Firmino, morador do Engenho Galiléia, fundava
a primeira das Ligas Camponesas no Nordeste brasileiro. Não fora
seu objetivo principal, como muita gente pensa, o de melhorar as
condições de vida dos camponeses da região açucareira ou de defender os interesses desses bagaços humanos, esmagados pela roda do
Destino, como a cana é esmagada pela moenda dos engenhos de
açúcar. O objetivo inicial das ligas fora o de defender os interesses e
os direitos dos mortos, não os dos vivos. Os interesses dos mortos de
fome e de miséria: os direitos dos camponeses mortos na extrema
miséria da bagaceira. E para lhes dar o direito de dispor de sete palmos de terra, onde descansar os seus ossos e o de fazer descer o seu
corpo à sepultura dentro de um caixão de madeira de propriedade
do morto, para com ele apodrecer lentamente pela eternidade afora.
Para isso é que foram fundadas as Ligas Camponesas. De início, tinham assim muito mais a ver com a morte do que com a vida, mesmo porque com a vida não havia muito que fazer... Só mesmo a
resignação. A resignação à fome, ao sofrimento e à humilhação. Mas,
se já não havia interesse dessa gente em lutar pela vida, em lutar por
uma vida melhor e mais decente, por que este obstinado empenho
em reivindicar direitos na morte? Reivindicação de mortos que nunca tiveram direito em vida! Por que esta desvairada aspiração de possuir depois de morto, sete palmos de terra, por parte de quem, na
126
JOSUÉ DE CASTRO - VIDA E OBRA
vida não dispusera, de seu, nem de uma polegada de solo, pertencendo quase todos aos imensos batalhões dos sem-terra que povoam o
Nordeste brasileiro? E por que este desespero em possuir um caixão
próprio para ser enterrado, quando em vida esses deserdados da sorte
nunca foram proprietários de nada – nem de terra nem de casa nem
mesmo do seu próprio corpo e de sua própria alma, alugados, a vida
inteira, aos senhores da terra? Por que esta conduta aparentemente
tão estranha, tão em contradição com o conformismo, a apatia, a
resignação desta pobre gente? Tudo isto só tem sentido, quando a
gente compreende que, para os camponeses do Nordeste, a morte é
que conta; não a vida, desde que, praticamente, a vida não lhes pertence. Dela, eles nada tiram, além do sofrimento, do trabalho estafante
e da eterna incerteza do amanhã: da ameaça constante da seca, da
polícia, da fome e da doença. Para eles só a morte é uma coisa certa,
segura, garantida. Um direito que ninguém lhes tira: o seu direito de
escapar um dia pela porta da morte, do cerco da miséria e das injustiças da vida. Tudo o mais é incerto, improvável ou impossível. Daí o
interesse do camponês do Nordeste pelo cerimonial da morte, que
ele encara como o da sua libertação à opressão e ao sofrimento da
vida. “Aos pobres, em espírito, pertence os reinos dos céus”, dizem as
Escrituras Sagradas. Palavras consoladoras para aqueles que há muito já tinham perdido toda a esperança de conquistar um lugar decente nos reinos da Terra.
A larga experiência de mais de quatro séculos de um regime agrário de tipo feudal – ali implantado pelos colonos portugueses sob a
forma do latifúndio escravocrata, produtor de açúcar1 – e a resistência invencível deste regime em ceder a qualquer exigência ou reivindicação dos camponeses para melhorar um pouco as suas trágicas
condições de vida, acabaram por dar a esta gente, o sentimento da
inutilidade de qualquer esforço para sair do atoleiro de sua miséria.
A poesia popular, os abecês dos cantadores, a tradição e a História
1
Prado Jr., Caio: História Econômica do Brasil, 1945.
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sempre se referiram às antigas revoltas camponesas como a “Balaiada”,
“A República de Palmares”, “Canudos”, nas quais, camponeses desesperados lutaram inutilmente contra os senhores prepotentes.
É verdade que, para sermos justos, não podemos esquecer que os
escravos descendentes dos negros trazidos da África pelos portugueses, tinham obtido em 1888 a sua libertação. A libertação da sua
“galé perpétua” de que falava Castro Alves, o poeta da Abolição. Mas,
ter-se-iam mesmo libertado os escravos, da escravidão? Ou apenas se
tinham libertado do opróbio de serem chamados escravos, para continuarem os mesmos escravos com o nome de moradores – de servos
de seus antigos senhores feudais? A verdade é que, escravos ou servos,
moradores ou foreiros, o que lhes tocara até hoje era sempre a mesma
cota de sacríficios, de trabalhos forçados, de fome e de miséria: a
mesma herança que lhes havia legado a escravidão. Deixando de ser
escravos de um dono para serem escravos de um sistema: escravos do
latifúndio açucareiro.
Para serem triturados como bagaço pela engrenagem deste sistema econômico dos mais desumanos que ainda perduram na superficie
da Terra. Mas que foi, sem nenhuma dúvida, há quatro séculos, o
sistema que deu consistência política e base econômica ao país em
formação. Que permitiu que se implantasse neste Nordeste, a primeira organização econômica de além-mar, que daria no século 16 à
metrópole portuguesa o monopólio da plantação da cana, da indústria e do comércio açucareiro. Tudo isto é feito à base do trabalho
escravo. Da total escravidão do homem e da terra, submetidos incondicionalmente ao serviço da ambição dos grandes senhores feudais, de enriquecerem depressa, plantando sempre mais cana, e produzindo sempre mais açúcar. E entregando-se de corpo e alma a esta
audaciosa aventura açucareira, sem medir suas consequências e sem
atender a qualquer sentimentalismo, obedecendo apenas ao insaciável apetite do ouro e ao desadorado apetite da cana, objeto de sua
adoração. Ao feroz apetite desta planta, de dispor sempre de novas
terras para serem engolidas pelos canaviais e de dispor sempre de
128
JOSUÉ DE CASTRO - VIDA E OBRA
mais braços humanos para serem quebrados ou esgotados, no eito,
plantando, limpando e colhendo cana ou, nas estradas, puxando e
empurrando os carros de cana ou nas moendas ou na esteira das
fábricas ou nos cais, carregando e descarregando os sacos de açúcar.
Se com o tempo a paisagem da região parece ter mudado um pouco
– a grande fábrica moderna tomando o lugar do velho engenho de
água ou de lenha, o palacete do dono da fábrica erguendo-se no lugar da casa grande do engenho – a paisagem humana permaneceu
quase que a mesma. Os antigos escravos que então viviam na senzala,
agora espalhados pelas choças e pelos casebres no campo e nas aldeias
ou amontoados nas favelas dos mocambos das cidades, verdadeiras
senzalas remanescentes, fracionadas em torno das novas casas-grandes, os palacetes dos novos senhores da terra. Nenhuma força capaz
de quebrar o sistema opressor do latifúndio, que vem pesando há
séculos, como uma fatalidade sobre a vida do camponês.
Os cantadores de feira sempre exaltaram a coragem indômita
dos líderes populares, sacrificados nas ondas violentas da repressão.
Mas de que serviu todo este esforço, toda esta violência? Não serviu
para nada. Nem a força da bala dos cangaceiros nem a força da fé dos
místicos e dos beatos deram fim ao sofrimento e à opressão, de que
até hoje padecem camponeses. Nem Antônio Silvino e Lampião,
heróis do banditismo, cantados pela poesia popular. Nem o padre
Cícero de Juazeiro e seus místicos adoradores, puderam mudar o
rumo do destino dessa pobre gente, condenada por seu destino histórico, a permanecer sempre no fundo do abismo. A se sentirem
impotentes, como se o carro de seus destinos se tivesse atolado até o
eixo no barro mole das estradas da cana, no massapé fofo e pegajoso,
onde se atolam os carros de boi. E quanto mais força se faz, mais o
carro se atola, como se o Diabo ou o Destino ou os dois juntos,
agarrassem, de dentro do barro, os raios da roda do carro. Ou como
se todos os companheiros de infortúnio tivessem sido empurrados
pelo mesmo destino, para dentro de um redemoinho, que fosse como
um inferno de água, com a força da miséria puxando sempre, como
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a correnteza, mais para o fundo. O atoleiro da vida ou redemoinho
da fatalidade são imagens populares com que a gente do Nordeste
exprime, em seu linguajar simples, a sua revelação de um fenômeno
social, a que os cientistas de hoje, chamaram com Wislow “processo
circular cumulativo”.2 Processo social no qual uma constelação de
fatores negativos atua de tal forma imbricados, que os grupos pobres
ficam sempre cada vez mais pobres, enquanto os ricos cada vez enriquecem mais. É a mesma noção do chamado “círculo vicioso da pobreza” de Nurkse,3 no qual a fome e a pobreza, agindo e reagindo
como dois fatores de ação cumulativa, fazem com que os famintos
não possam comer porque não são capazes de produzir e não produzem porque são famintos. O homem do Nordeste ignora estas sutilezas dos sociólogos, estes brilhantes jogos de palavras nos quais se fala
de fatores negativos agindo como causa e efeito, dentro do processo
social, mas sente na sua carne a realidade da miséria estagnante, e vê
sempre crescer diante dos seus olhos a riqueza descomunal dos que
enriquecem cada vez mais à custa de sua fome. E é esta revelação que
lhe faz dizer, sem exteriorizar a sua revolta, que é assim mesmo, que
a água só corre para o mar. E correndo sempre para o mar, a água
deixa na miséria a terra seca do sertão, e na angústia, a alma ressequida do homem do Nordeste. Tão ressequida que, de vez em quando,
esta vira pedra – a alma e o coração de pedra dos cangaceiros. Na sua
visão fatalista do mundo, estes seres primitivos chegam à conclusão
de que não há barragens que possam estancar esta tendência inevitável do Destino, que leva sempre a água para o mar, onde menos falta
ela faz. Um sentimento de total impotência e da própria desvalia se
apoderou da alma do camponês nordestino. Daí a sua humildade e o
seu aparente conformismo, diante dessa conspiração invencível das
forças naturais e das forças sociais, associadas ambas, para o esmaga2
3
Winslow, E. A.: The Cost of Sickness and the price of Health, Genevè, 1951.
Nurkse, Ragnar: Some aspects of Capital Accumulation in Underdeveloped Countries,
Cairo, 1952.
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JOSUÉ DE CASTRO - VIDA E OBRA
rem em suas pretensões de obter qualquer melhoria de suas condições de vida.
Não foi portanto pensando em reivindicações dos direitos
expoliados nem com o desejo de se organizar para lutar contra a
exploração do regime agrário reinante, que os humildes camponeses
do Engenho Galiléia fundaram as Ligas Camponesas. Não se chamava o seu engenho Galiléia? O mesmo nome da Terra Santa, onde
o doce Jesus pregou pela primeira vez a doutrina da igualdade e da
fraternidade humanas, doutrina revolucionária que, durante 2 mil
anos, ainda não conseguiu, entretanto, penetrar de verdade, na alma
empedernida dos falsos cristãos que dominam uma grande parte do
mundo? Portanto, quem melhor armado para entender o profeta da
Galiléia, do que essa pobre gente do Engenho Galiléia, nesse Nordeste do Brasil? Pobres como os amou Cristo, que por eles se deixou
crucificar para que o reino dos céus se estabelecesse na Terra. Quem
melhor para sentir os sentimentos e as lições de amor do grande profeta da Galiléia, do que esta gente destituída de tudo, sem maiores
ambições neste Mundo? Apenas ambicionando um dia se apresentarem bem, diante dos olhos de Deus. E foi neste ponto que as suas
aspirações pareceram um tanto excessivas aos olhos dos outros cristãos, os cristãos-proprietários de terras, donos de engenho, senhores
do Nordeste. A aspiração dos associados da liga era de se prepararem
para sua apresentação no juízo final, em condições que não lhe fossem totalmente desvantajosas, de forma a serem ouvidos pela Autoridade Suprema. A primeira condição seria, sem dúvida a de se apresentarem diante de Deus com as mãos limpas de crimes e com a alma
limpa de vícios. E isto seria difícil para a maioria deles. Mas no seu
entender simplista, seria também necessário apresentar-se com um
mínimo de decência, numa hora de tamanha importância e de tanta
solenidade: a hora do juízo final. E é ai que a sua extrema miséria não
lhe permitia este mínimo de decência. É um hábito nessas terras miseráveis que os pobres lavradores, no termo de suas vidas de miséria,
sejam levados ao cemitério num caixão “de caridade”, que a Prefeitu-
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ra empresta, mas que tem de ser restituído na boca da cova, para
servir a outros defuntos. Ora, ser enterrado desta forma constitui a
humilhação suprema para essa pobre gente, cuja vida não passa de
um rosário de humilhações. Mas esta é a maior de todas, porque é
uma humilhação que passará para o outro lado da vida – uma humilhação que durará toda a eternidade. A liga foi criada para evitar esta
suprema humilhação.
Quando, em 1960, um jornalista entrevistou um dos principais
dirigentes da liga, o velho José Francisco de Sousa, e lhe perguntou o
que tinha a liga feito em benefício dos pobres camponeses, ele respondeu tranqüilamente: “Veja, moço. Antes da liga, quando um de
nós morria, o caixão era emprestado pela prefeitura. Depois que o
corpo era levado à vala comum, o caixão voltava para o depósito
municipal. Hoje a liga paga o enterro e o caixão desce com o morto.”
Ali estava o primeiro resultado patente da iniciativa que haviam
tomado João Firmino e seus companheiros do Engenho Galiléia, ao
fundarem, nessas terras de tanta pobreza, uma sociedade civil beneficente de auxílio-mútuo, para ajudar seus moradores a morrer com decência: com uma vela na mão, com os olhos fitos na chama desta vela
que os ajudaria a orientar seus primeiros passos na escuridão do além,
e com a confortadora certeza de que dispunham dos seus sete palmos
de terra onde pousar o seu caixão e nele esperar tranqüilo o juízo final.
Esta instituição beneficente foi denominada “Sociedade Agrícola e
Pecuária dos Plantadores de Pernambuco”. Mas o nome não pegou. O
que pegou foi o apelido. É que logo em seguida à sua criação, começaram a chamar à sociedade liga. Liga Camponesa. O apelido foi botado
para desfazer dela. Para lhe dar uma origem considerada suspeita pelos
conservadores, com ocultas ligações com o movimento revolucionário
iniciado há muitos anos noutros pontos do Nordeste, sob a forma de
organizações camponesas, visando reunir os trabalhadores da cana numa
espécie de sindicato que lhes desse força política suficiente para reclamar e para reivindicar. E estas primeiras tentativas tinham sido chamadas de Ligas Camponesas, provavelmente sob a remota inspiração das
132
JOSUÉ DE CASTRO - VIDA E OBRA
Ligas Camponesas da Idade Média, criadas pelo campesinato europeu
como instrumento de luta dos servos da gleba, contra a opressão intolerável dos príncipes e dos barões feudais. Não se pode esquecer que a
colonização brasileira se iniciou no Nordeste sob o signo do
medievalismo feudal, no qual se inspirou Portugal, para introduzir nestas
terras o regime das Capitanias Hereditárias, entregues de mão beijada
aos donos dos feudos, os barões do Novo Mundo. É que, embora no
começo do século 16, quando o Brasil foi colonizado, já estávamos em
plena Renascença européia, a Península Ibérica, desviada da sua rota
histórica por sua interminável luta com o Islã, e isolada geograficamente do resto da Europa pela barreira dos Pirineus, continuava
encastelada no seu feudalismo agrário, caracteristicamente medieval.4
E Portugal, ainda mais do que a Espanha, separado do grande mundo
por toda a espessa muralha da Meseta Castelhana. Este secular retardamento histórico fez com que a colonização ibérica do Novo Mundo se
constituísse como uma empresa de tipo medieval, como uma sobrevivência das Cruzadas, impregnada de um espírito ao mesmo tempo
religioso e guerreiro, místico e de desenfreada cobiça. Sob este aspecto,
bem diferente da colonização inglesa da América, mais de índole burguesa e de espírito moderno, pós-renascente e pós-luteriano. Dentro
do patrimônio medieval trazido pelos colonos portugueses, com seus
hábitos arraigados no complexo do latifúndio feudal, é bem possível
que tenham os camponeses do Nordeste, também herdado a tradição
das Ligas Camponesas do Medievo europeu, que um dia iria repontar
com inesperada violência no processo da evolução social do Nordeste.
Como herdeiros presumíveis desta tradição secular, as 140 famílias que
habitavam as terras do Engenho Galiléia, criaram a sua liga Camponesa e depois de eleger sua primeira diretoria, convidaram, num gesto de
tradicional humildade do servo para com o senhor, o próprio senhorde-engenho para ser seu presidente de honra. E ele aceitou. E fez-se a
4
Sanches, Albornoz, Claudio: La Edad Média y la Empresa de America, La Plata,
1934.
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sua posse com solenidade, com festas e com foguetes. E registrou-se o
estatuto da sociedade, no qual, além da ajuda funerária, figuravam
como objetivos mais remotos, a aquisição de sementes e de instrumentos agrícolas e a possível obtenção de uma ajuda governamental. Mas
não durou muito esta “lua-de-mel” do senhor das terras com os seus
servos, associados da liga. É que outros latifundiários da redondeza,
senhores-de-engenho como ele, se apressaram em alertá-lo da loucura
que ele tinha feito em se deixar envolver por esta perigosa aventura.
Em ter consentido a instalação em suas terras deste perigoso instrumento de agitação social. Desta espécie de cavalo de Tróia, introduzido disfarçadamente dentro dos seus domínios de portas fechadas, para
abrir na calada da noite todas as portas ao comunismo. E o homem
assombrou-se e não quis mais ser o presidente da sociedade. E exigiu
mesmo o seu fecho imediato. Foi aí que a história mudou de rumo. A
maioria dos camponeses resistiu ao fecho e a partir deste momento,
sob a pressão dos acontecimentos, a sociedade mutualista funerária
virou mesmo uma liga camponesa para lutar pelos direitos dos camponeses contra a opressão dos senhores da terra. Criada para defender os
direitos dos mortos, ela iria, agora, constituir-se como instrumento de
reivindicação dos direitos dos vivos. Mas não é mesmo morrendo que
melhor se aprende a viver? Pelo menos no Nordeste brasileiro. Foi tratando dos problemas da morte, que os componentes do Engenho
Galiléia, abriram seus olhos para a vida. E viram melhor, e melhor
compreenderam as injustiças da vida e quais eram os autores dessas
injustiças. Era a tomada de consciência da sua realidade social, fenômeno que vem ocorrendo em nossos dias por todo o mundo chamado
subdesenvolvido – mundo escravizado e espoliado – e que naquele dia
se cristalizava como uma força nova na sociedade fechada e primitiva
dos moradores do Engenho Galiléia. E com esta força eles enfrentaram o patrão. Não se submeteram como faziam até então com sua
costumada docilidade, às suas ordens absurdas. Contam que o senhor
do engenho, como revide à obstinação do grupo em não querer fechar
a liga, determinou a suspensão de uma ordem que tinha dado para que
134
JOSUÉ DE CASTRO - VIDA E OBRA
fosse retirada de suas matas a madeira necessária à construção de uma
capela. Os camponeses protestaram contra esta suspensão e o patrão
ameaçou-os com a polícia sob o pretexto de que eles pretendiam devastar as suas matas. Seguem-se as intimidações, as chamadas à delegacia e as ameaças dos capangas. Mas, diante de tudo isto, aumentou
cada vez mais a hostilidade dos camponeses. Surgem então os processos judiciários contra os mais responsáveis, responsabilizados como
agitadores e terroristas. E, finalmente, apareceram as ações de despejo,
a expulsão sumária dos camponeses da terra onde sempre viveram,
feita em nome da lei. Nesta altura da luta, os camponeses fincaram o
pé. Não sairiam em paz da terra onde nasceram, onde sofreram todas
as agruras da vida e onde esperavam ver enterrados os seus ossos. É que
nenhum povo do mundo, se mostra mais enraizado à terra, mais profundamente ligado ao seu solo natal, do que o povo do Nordeste. Sondando a alma complexa e singular do povo chinês, o qual, embora
sofrendo há milênios as agruras periódicas de todos os tipos de cataclismos naturais, com que os brinda a sua terra martirizante – as secas,
as inundações os terremotos, as nuvens de gafanhotos – se mostram
sempre tão indissoluvelmente ligados a essa terra. Keyserling5 escreveu
as seguintes palavras: “Não há outro camponês no mundo que dê tal
impressão de identificação total com a terra... De participar tão intensamente da vida da terra. Tudo na China – toda a vida e toda a morte
– se desenrola na terra herdada. É o homem que pertence à terra, não
a terra que pertence ao Homem”. Mas há. Há outro camponês no
mundo, tão identificado com a terra quanto o chinês: é o camponês
do Nordeste brasileiro, que Keyserling nunca conheceu e do qual o
mundo inteiro sempre teve bem pouco conhecimento, vivendo o Nordeste à margem do mundo, relegado em sua obscuridade e em sua
solidão. Mas por isso mesmo por sua solidão forçada, o homem do
Nordeste, abandonado do resto do país e do mundo, se voltou para a
sua paisagem circundante e nela fincou as raízes de sua alma. Mesmo o
5
Keyserling, Herman: Journal de Voyage d’un Philosophe, 1952.
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homem do sertão semi-árido, que vive uma vida de seminômade,
escorraçado de vez em quando pelo cataclismo das secas, é extremamente apegado à sua terra e a ela aspira voltar, sempre que o cataclisma
passa. Até os seus nomes são nomes da terra – dos lugares, das aldeias,
dos povoados, onde nasceram: Antônio Pedro do Juazeiro, Juca da
Serra Talhada, Manuel João da Lagoa Grande... nomes de homens e de
terra, como na Idade Média, afirma com certo orgulho o escritor sertanejo Luiz de Câmara Cascudo.6 Este desadorado amor à terra, que
sempre o fez sofrer, faz com que o homem do Nordeste a defenda
sempre, até o extremo limite de suas forças e tenha sempre desta terra
um ciúme tão intenso, como se ela fosse uma mulher. É como se ele
não pudesse viver longe dela, exilado deste amor. E se agora, no meio
desta luta intensa, queriam expulsar de suas terras, os moradores do
Engenho Galiléia em nome da lei, usando contra eles os subterfúgios
da lei, que eles candidamente ignoravam era necessário, para que eles
pudessem defender-se e resistir, que fosse consultado um advogado
versado na lei. Mas um advogado custa muito dinheiro e a caixa da liga
estava bem pouco provida de recursos. Pressionados pelas circunstâncias, procuram os dirigentes da liga um advogado modesto, até então
obscuro, mas que já havia aceitado defender outras causas de camponeses escorraçados pelos donos de latifúndio noutras terras: este advogado chamava-se Francisco Julião. Aceitando patrocinar a sua causa,
Julião deu inicio à luta judiciária pela permanência dos camponeses na
Galiléia. Seu instrumento de luta era o Código Civil, que ele cedo
verificou ser uma arma de pouca serventia para defender os interesses
dos pobres, tendo sido elaborado para defender os direitos do rico,
enquanto o Código Penal é que fora concebido para ser aplicado aos
pobres.7
Perdendo terreno na arena judiciária, Julião apelou para outro
campo de luta, usando, ao lado da tribuna do Foro, a tribuna políti6
7
Cascudo, Luiz da Câmara: Viajando pelo Sertão, s.l.n.d.
Julião, Francisco: Que São as Ligas Camponesas, Rio de Janeiro, 1962.
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JOSUÉ DE CASTRO - VIDA E OBRA
ca, aproveitando a circunstância de dispor de um mandato de deputado estadual na Assembléia do Estado de Pernambuco. E foi assim
que o advogado Julião se foi transformando pouco a pouco em agitador social. Em denunciador público dos crimes hediondos do
latifundiarismo. E foi assim que as Ligas Camponesas começaram a
espalhar-se por toda a região, com a criação de novos núcleos, que se
constituíram sob a pressão das circunstâncias – da violência e da opressão desbragadas do latifundiarismo – num instrumento de ação política libertadora, esgrimindo a ideologia, o proselitismo, a doutrinação. Nesta fase de acesa luta, a imprensa começou a tomar conhecimento das escaramuças mais importantes, relatadas sempre com violentos ataques aos “terroristas” na página policial dos jornais. Depois
o assunto passou para a página política, fornecendo matéria para os
artigos de fundo. E as Ligas Camponesas foram assim tomando corpo e ganhando nova alma. Começaram a assustar seriamente o Nordeste inteiro, como se fossem uma espécie de dragão ameaçando engolir toda a terra dos grandes proprietários do Nordeste e destruir a
paz, a ordem e a riqueza de que sempre gozaram esses proprietários,
tão amantes da ordem. Nessa onda de violências, de mistificações e
de falsas interpretações, no choque entre as aspirações populares e as
resistências conservadoras, ambas radicalizadas ao extremo, as ligas
foram criando raízes, projetando a sombra de suas verdes esperanças
e de suas negras ameaças, pelo país inteiro. Falava-se delas como se
fosse o próprio Apocalipse e de Julião, como se fosse o anticristo. Foi
neste momento que os Estados Unidos da América redescobriram o
Nordeste. E esta descoberta deve-se em grande parte ao obscuro e
incipiente movimento das Ligas Camponesas. Em fins de 1960, com
o seu povo extremamente sensível aos perigos da revolução comunista de Fidel Castro em Cuba, e a sua possível propagação para o continente, a imprensa norte-americana lançou-se com um dramático
interesse sobre o Nordeste brasileiro explosivo e ameaçador. E os Estados Unidos, que tinham descoberto vagamente o Nordeste brasileiro durante a Segunda Guerra Mundial, quando os aviões de trans-
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porte, em viagem para a África e a Europa faziam pouso na região,
principalmente no aeroporto de Natal, que se transformou na época
no maior aeroporto do mundo, voltaram a descobrir, desta vez com
atônita e perplexa curiosidade, essa terra ignota. Esse estranho mundo que parecia uma nova Cuba em formação: a Cuba continental.
Como Cuba, região de monocultura açucareira e de latifúndio agrário. Como Cuba, possuindo um líder considerado um marxista, conduzindo à revolução, essa massa de deserdados e fanatizados, dispostos a tudo, como foi mostrado em várias reportagens, publicadas nos
grandes jornais dos Estados Unidos, e mostrada em imagem de um
colorido impressionante, num filme apresentado numa grande cadeia de televisão. Era o Nordeste na ordem do dia, como “vedete”,
como uma espécie de novo far-west a acender a imaginação de milhares de indivíduos que poucos dias antes ignoravam mesmo a sua
existência geográfica.8
Alfred O. Hirschman escreve o que se segue no seu interessante
livro Journal Toward Progress, publicado em 1963: “Nestes dois últimos anos, o Nordeste brasileiro torna-se familiar para os leitores de
jornais e espectadores de televisão nos Estados Unidos, como uma
zona na qual 20 milhões de criaturas, quase um terço da população
do Brasil, vivem numa extrema miséria e, talvez, em perigo iminente
de serem levados à convulsão social pelas Ligas Camponesas de inspiração comunista”. Um outro autor norte-americano, o economista
Stefan Robock, numa obra de real valor publicada no mesmo ano,
Northeast Brazil: a Developing Economy exprime-se da seguinte maneira: “No fim de 1960, no entanto, quando os Estados Unidos se
tinham tornado hipersensíveis à ameaça do Castro-comunismo através da América Latina produziu-me uma dramática “redescoberta”
do Nordeste brasileiro. E, durante um certo período de 18 meses, o
Nordeste foi novamente projetado, como um foguetão, da obscuridade para a fama mundial.”
8
Hirschman, Alfred: Journey Toward Progress, New York, 1963.
138
JOSUÉ DE CASTRO - VIDA E OBRA
Esta inesperada revelação de um mundo tão estranho à mentalidade do norte-americano médio, levada pela imprensa sem a menor preparação ou apresentação ao seu público, criou uma grande perplexidade e certa confusão nos Estados Unidos. De um lado, um sentimento
de pânico pelos perigos desta nova explosão social tão ameaçadora, e
do outro lado, um grande desejo de ajudar, de fazer alguma coisa para
evitar a explosão. Mas a falta de uma serena visão dos fatos, o desconhecimento total da realidade social do Nordeste e das raízes históricas
que tinham dado origem a essa aberração social, tornavam bem difícil
um approach razoável do problema, que não fosse o da simplificação
apressada e deformante, ou o da fantasmagoria histórica das manchetes apocalípticas. E assim, o Nordeste, descoberto quando ajudava os
Estados Unidos na última guerra e agora redescoberto, quando parecia
ajudar os inimigos dos Estados Unidos no continente, continuou, na
verdade, como um desconhecido dos Estados Unidos. E, por que não
dizer a verdade, como um desconhecido do mundo. Embora no cartaz, o que dele se apresenta por toda a parte é, em geral, uma falsa
imagem do seu papel histórico, tanto no passado como no futuro.
Falsa imagem tanto das suas possibilidades como das suas deficiências
e dificuldades. Do que é possível fazer-se de bem pelo Nordeste, como
do que é possível que o Nordeste venha a fazer de mal ao mundo: à sua
segurança e à sua tranqüilidade.
Se dedicamos ao estudo das Ligas Camponesas o primeiro capítulo deste livro, foi com a premeditada intenção de mostrar, como
uma iniciativa brotada das tradições do feudalismo agrário, aí reinante com objetivos humanitários e pacíficos, se pode transformar
num instrumento revolucionário, de explosiva agitação social, em
face da cega incompreensão e da obstinada resistência da própria
estrutura feudal. E mostrar também como pode um fenômeno social
ser totalmente distorcido em sua realidade pelas falsas interpretações
do jornalismo tendencioso ou sensacionalista. De fato, a imagem das
Ligas Camponesas difundida pela imprensa de certos países, como
sendo um instrumento do comunismo internacional, fabricado em
B E R N A R D O M . F E R N A N D E S E C A R L O S W A L T E R P . G O N Ç A L V E S (ORGS.)
139
Moscou e implantado no Nordeste brasileiro para repetir nessa área
o episódio de Cuba e comunizar o continente inteiro, é uma imagem
totalmente falsa, que não resiste a uma análise fria dos fatos. Uma
análise que ponha em linha de conta, como estamos tentando fazer,
os principais personagens e os episódios centrais das origens desse
movimento.
Criadas dentro do espírito do cristianismo primitivo que até hoje
impregna a alma coletiva da população nordestina, as Ligas Camponesas foram mesmo, em certa fase, mal vistas e tenazmente combatidas pelos líderes marxistas da região. E, se posteriormente se aliaram
as ligas aos comunistas, na luta comum pela emancipação da massa
camponesa, não quer isto dizer que sua inspiração brotara da doutrina de Marx ou da ação política de Lenin ou de Fidel Castro, mas da
experiência vivida e sofrida por essa massa humana em sua luta desigual por um mínimo de aspirações, em face ao máximo de resistências
dos seus opressores feudais. Tem toda a razão o jornalista Robert
Goughlan da revista Life, quando afirma, com excepcional lucidez,
que atribuir o descontentamento social da América Latina “a um
‘complô’ forjado em Moscou, como fazem muitos, é ser perigosamente ingênuo. Suas raízes mergulham fundo no seu passado, que
conta como ingredientes, a conquista, a exploração, a fome e a extrema miséria”.
Outra razão da prioridade dada às Ligas Camponesas no plano
deste livro, deriva do fato incontestável de que foram elas que projetaram o Nordeste na imprensa norte-americana, provocando a
redescoberta desta região e determinando em parte a criação da “Aliança para o Progresso” como uma tentativa dos E.U.A de evitar a suposta bolchevização do continente.
Antes de terminar este capítulo, julgamos indispensável deixar
bem claro que, a nosso ver, as Ligas Camponesas nunca alcançaram
uma importância política destacada: uma estruturação funcional e
uma liderança suficientemente vigorosa para desencadearem um verdadeiro processo revolucionário. Longe disso. Sempre foram, como
140
JOSUÉ DE CASTRO - VIDA E OBRA
instrumento revolucionário, uma arma quase infantil. E se esta arma
de brinquedo assustou tanto aos grandes senhores feudais e seus associados, é que eles se encontram há muito tempo num estado de
pavor permanente. Pavor que os leva a ver no menor gesto ou atitude
de inconformismo das massas espoliadas, um perigo tremendo para
a manutenção dos seus privilégios. O perigo das líricas Ligas Camponesas sempre fora pequeno, o medo delas é que era grande e continua a crescer cada vez mais.
4 . A D E S C O B E RTA
FOME*
DA
Nas terras pobres e famintas do Nordeste brasileiro, onde nasci, é
hábito servir-se um pedacinho de carne seca com um prato bem cheio
de farofa. O suficiente de carne – quase um nada – para dar gosto e
cheiro a toda uma montanha de farofa feita de farinha de mandioca,
escaldada com sal. Foi, talvez, por força deste velho hábito da minha
terra que resolvi servir ao leitor deste livro muita farofa com pouca carne.
Sentindo que a história que vou contar é uma história magra,
seca, com pouca carne de romance, resolvi servi-la com uma introdução explicativa que engordasse um pouco o livro e pudesse, talvez,
enganar a fome do leitor – a sua insaciável fome de romance. Foi, no
fundo, como uma espécie de sublimação deste complexo de um povo
inteiro de famintos, sempre preocupado em esconder ou, pelo menos, em disfarçar a sua fome eterna, que acabei fazendo uma copiosa
introdução a este magro romance que tem por personagem central o
drama da fome. Assim, por força das circunstâncias, encontrará o
leitor, neste livro, muita explicação e pouco romance. Pouco, mas o
suficiente para dar ao livro o gosto e o cheiro fortes do drama da
fome, que é, no fundo, a carne desta obra.
Mas será mesmo este livro um romance? Ou será mais um livro
de memórias? Talvez, sob certos aspectos, uma autobiografia? Não
*
Prefácio ao livro Homens e Caranguejos, Lisboa, 1966.
142
JOSUÉ DE CASTRO - VIDA E OBRA
sei. Tudo o que sei é que, neste livro, se conta a história de uma vida
diante do espetáculo multiforme da vida. A história da vida de um
menino pobre abrindo os olhos para o espetáculo do mundo, numa
paisagem que é, toda ela, um braço de mar – um longo braço de um
mar de misérias.
O tema deste livro é a história da descoberta da fome nos meus
anos de infância, nos alagados da cidade do Recife, onde convivi
com os afogados deste mar de miséria. Procuro mostrar neste livro
de ficção que não foi na Sorbonne, nem em qualquer outra universidade sábia, que travei conhecimento com o fenômeno da fome.
O fenômeno se revelou espontaneamente a meus olhos nos mangues do Capibaribe, nos bairros miseráveis da cidade do Recife:
Afogados, Pina, Santo Amaro, Ilha do Leite. Esta é que foi a minha
Sorbonne: a lama dos mangues do Recife, fervilhando de caranguejos e povoada de seres humanos feitos de carne de caranguejos,
pensando e sentindo como caranguejo. Seres anfíbios – habitantes
da terra e da água, meio homens e meio bichos. Alimentados na
infância com caldo de caranguejo: este leite de lama. Seres humanos que se faziam assim irmãos de leite dos caranguejos. Que aprendiam a engatinhar e a andar com os caranguejos da lama e que
depois de terem bebido na infância este leite de lama, de se terem
enlambuzado com o caldo grosso da lama dos mangues, de se terem impregnado do seu cheiro de terra podre e de maresia, nunca
mais se podiam libertar desta crosta de lama que os tornava tão
parecidos com os caranguejos, seus irmãos, com as suas duras carapaças também enlambuzadas de lama.
Cedo me dei conta deste estranho mimetismo: os homens se assemelhando em tudo aos caranguejos. Arrastando-se, acachapandose como os caranguejos para poderem sobreviver. Parados como os
caranguejos na beira da água ou caminhando para trás como caminham os caranguejos.
É por isso que os habitantes dos mangues, depois de terem um
dia saltado dentro da vida, nesta lama pegajosa dos mangues, dificil-
B E R N A R D O M . F E R N A N D E S E C A R L O S W A L T E R P . G O N Ç A L V E S (ORGS.)
143
mente conseguiam sair do ciclo do caranguejo, a não ser saltando
para a morte e, assim, afundando-se para sempre dentro da lama.
A impressão que eu tinha era que os habitantes dos mangues –
homens e caranguejos nascidos à beira do rio – à medida que iam
crescendo, iam cada vez se atolando mais na lama. Parecia que a vegetação densa dos mangues com seus troncos retorcidos, com o emaranhado de seus galhos rugosos e com a densa rede de suas raízes
perfurantes os tinha agarrado definitivamente como um polvo, enfiando tentáculos invisíveis dentro de sua pele, pelos olhos, pela boca,
pelos ouvidos.
E, assim, ficavam todos eles afogados no mangue, agarrados pelas ventosas com as quais os mangues insaciáveis lhes sugavam todo o
suco de sua carne e da sua alma de escravos. Com uma força estranha, os mangues iam, assim, apoderando-se da vida de toda aquela
gente, numa posse lenta, tenaz, definitiva. Estas estranhas plantas
que, em eras geológicas passadas, se tinham apoderado de toda essa
área de terra – esta fossa pantanosa onde hoje assenta a cidade do
Recife – estendia agora sua posse também aos seus habitantes. E tudo
nesta região passava a pertencer ao mangue conquistador e dominador:
a Terra e o Homem.
Na verdade, foram os mangues os primeiros conquistadores desta terra. Foram mesmo em grande parte os seus criadores, Toda esta
vasta planície inundável formada de ilhas, penínsulas, alagados e pauis,
fora em tempos idos uma grande fossa, uma baía em semicírculo,
cercada por uma cinta de colinas. Nela vindo a desaguar, através da
muralha dessas colinas, dois grandes rios – o Capibaribe e o Beberibe
– foram entulhando a fossa com materiais aluvionais: com a terra
arrancada de outras áreas distantes e trazida na enxurrada das suas
águas. Pouco a pouco foram surgindo, dentro da baía marinha, pequenas coroas lodosas, formadas através da precipitação e deposição
dos materiais trazidos dos rios. E foi sobre estes bancos de solo ainda
mal consolidados, mistura incerta de terra e água, que se apressaram
a proliferar os mangues – esta estranha vegetação capaz de viver den-
144
JOSUÉ DE CASTRO - VIDA E OBRA
tro de água salgada, numa terra frouxa, constantemente alagada.
Agarrando-se com unhas e dentes a este solo para sobreviver, através
de um sistema de raízes que são como garras fincadas profundamente no lodo e amparando-se, umas nas outras, para resistirem ao ímpeto das correntezas da maré e ao sopro forte dos ventos alíseos, que
arrepiam sua cabeleira verde, os mangues foram pouco a pouco entrelaçando suas raízes e seus braços numa amorosa promiscuidade, e
foram assim consolidando a sua vida e a vida do solo frouxo das
coroas de lodo donde brotaram. Com os depósitos aluvionais que se
foram acumulando na trama do labirinto de raízes dos mangues e
debaixo das suas copadas sombras verdes, foi progressivamente subindo o nível do solo e alargando sua área sob a proteção desse denso
engradado vegetal. Não há, pois, a menor dúvida de que toda esta
terra que hoje flutua à flor das águas, na baía entulhada do Recife, foi
uma criação dos mangues.
Os mangues vieram com os rios e, com os materiais por estes
trazidos, foram os mangues laboriosamente construindo seu próprio
solo, batendo-se em luta constante contra o mar. Vieram como se
fossem tropas de ocupação e, em contato com o mar, edificaram silenciosamente e progressivamente esta imensa baixada aluvional hoje
cortada por inúmeros braços de água dos rios e densamente povoada
de homens e caranguejos, seus habitantes e seus adoradores.
Tendo os mangues realizado esta obra ciclópica, não admira que,
hoje, sejam eles divinizados pelos habitantes desta área, embora não
saibam os homens explicar como o mangue realiza este milagre de
criar terra como se fosse um deus. Mas os homens vêem, até hoje,
crescer diante dos seus olhos as coroas lodosas e transformarem-se,
pela força construtora dos mangues, em ilhas verdejantes, fervilhantes
de vida.
E vêem, assombrados, proliferarem em torno das ilhas maiores
outras pequeninas, como que saídas durante a noite do seu próprio
ventre, em misteriosos partos da terra que o mangue milagrosamente
ajuda.
B E R N A R D O M . F E R N A N D E S E C A R L O S W A L T E R P . G O N Ç A L V E S (ORGS.)
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Nasci na cidade do Recife, que é sob certos aspectos a HongKong da América, com a sua miséria acumulada, empastada neste
grupo de ilhas que flutuam, sonolentas, entre os braços dos rios: o
Capibaribe e o Beberibe.
A primeira sociedade com que travei conhecimento foi a sociedade dos caranguejos. Depois, a dos homens habitantes dos mangues, irmãos de leite dos caranguejos. Só muito depois é que vim a
conhecer a outra sociedade dos homens – a grande sociedade. E devo
dizer com franqueza que, de tudo o que vi e aprendi na vida, observando estes vários tipos de sociedade, fui levado a reservar, até hoje, a
maior parcela de minha ternura para a sociedade dos mangues – a
sociedade dos caranguejos e dos homens, seus irmãos de leite, ambos
filhos da lama.
É a história da sociedade desses seres anfíbios que eu conto neste
livro. Desta sociedade que, economicamente, também é anfíbia, pois
que vegeta nas margens ou bordas de duas estruturas econômicas
que a história até hoje não costurou num mesmo tecido: a estrutura
agrária feudal e a estrutura capitalista. Estruturas que persistem no
Nordeste do Brasil, lado a lado, sem se fundirem, sem se integrarem
até hoje num mesmo tipo de civilização.
A sociedade dos mangues é uma sociedade imprensada entre estas duas estruturas esmagantes. É uma sociedade que, comprimida
pelas outras duas, escorre como uma lama social na cuba dos alagados do Recife, misturando-se com o caldo grosso da lama dos mangues.
Nasci numa rua que tinha o nome ilustre de Joaquim Nabuco, o
grande abolicionista dos escravos, nos tempos do Império. A casa em
que nasci tinha ao lado um grande viveiro de peixes, de caranguejos
e de siris. Se não nasci mesmo dentro do viveiro, com os caranguejos,
já com dois anos estava dentro dele. Escorreguei um dia no barro de
suas margens e fui retirado de dentro de suas águas meio afogado.
Daí em diante, mergulhar nas águas do mangue tornou-se um hábito. Mudei-me depois para outro bairro mais perto do rio. Fomos
146
JOSUÉ DE CASTRO - VIDA E OBRA
morar na Madalena, numa velha casa colonial de um só andar, com
seis grandes janelas de frente. Casa grande, acachapada, com sua pesada massa arquitetônica, montada como uma fortaleza em seus altos batentes, por onde subiam os caranguejos em tempo de cheia até
o terraço, os mais ousados entrando mesmo nas salas. Nas épocas de
cheia, a casa virava uma arca de Noé, e todo o sítio virava um mar.
Quando as águas baixavam, uma lama preta ficava recobrindo durante dias toda a paisagem. A frente da casa era voltada para o rio
porque fora construída nos velhos tempos em que todo o transporte
da cidade se fazia em botes e barcaças, os homens do comércio do
açúcar indo para os seus escritórios de sobrecasaca preta e cartola,
com negros de torso nu remando pelo Capibaribe acima.
O sítio era cheio de árvores e bichos. Mangueiras e sapotizeiros
que davam frutos maravilhosos. Maravilhosos eram, também, os frutos
de outras árvores que não existiam no nosso sítio, mas que nele apareciam espalhados pelo chão. Eram frutos colhidos durante a noite
nos sítios vizinhos, pelos morcegos que os deixavam cair dos seus
braços, nos seus vôos apressados. Eram goiabas, jambos e araçás, todos meio roídos, mas que eu saboreava com gosto nos meus passeios
matinais pelo sítio, parasitando, assim, o trabalho noturno dos morcegos, meus sócios circunstanciais. Havia também no sítio vacas, cavalos, carneiros e cabras, que, durante as épocas de cheia, eram amontoados no terraço da casa. E pássaros de toda espécie, cantando em
grandes gaiolas penduradas por toda parte. Meu pai tinha trazido
para o Recife toda a paisagem viva da sua terra, com seus bichos,
com os seus pássaros. Dentro do sítio eu respirava uma paisagem
transplantada do sertão distante e em frente à casa eu contemplava a
paisagem da costa – a paisagem negra do mangue.
Bem ao lado da casa começava a zona compacta dos mocambos,
das choças de palha e de barro, amontoadas umas por cima das outras num enovelado de ruelas, numa anarquia desesperadora. As casas entrando por dentro da maré, a maré invadindo as casas. Os braços do rio passando pelo meio da rua e a lama envolvendo tudo.
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Criei-me nos mangues lamacentos do Capibaribe, cujas águas,
fluindo diante dos meus olhos ávidos de criança, pareciam estar sempre a contar-me uma longa história. O romance das longas aventuras
de suas águas descendo pelas diferentes regiões do Nordeste: pelas
terras cinzentas do sertão seco, onde nasceu meu pai e de onde emigrou na seca de 1877 com toda família, e pelas terras verdes dos
canaviais da zona da mata, onde nasceu minha mãe, filha de senhor
de engenho. Esta era a história que me sussurava o rio com a linguagem doce de suas águas passando assustadas pelo mar de cinza do
sertão, caudalosas pelo mar verde dos canaviais infindáveis e
remansosas pelo mar de lama dos mangues, até cair nos braços do
mar. Eu ficava horas e horas imóvel sentado no cais, ouvindo a história do rio, fitando as suas águas correrem como se fossem uma fita de
cinema.
Foi o rio meu primeiro professor de história do Nordeste, da
história desta terra quase sem história. A verdade é que a história dos
homens do Nordeste me entrou muito mais pelos olhos do que pelos
ouvidos. Entrou-me por dentro dos meus olhos ávidos de criança
sob a forma destas imagens que estavam longe de serem sempre claras e risonhas.
Foi com estas sombrias imagens dos mangues e da lama que comecei a criar o mundo de minha infância. Nada eu via que não me
provocasse a sensação de uma verdadeira descoberta. Foi assim que
eu vi e senti formigar dentro de mim a terrível descoberta da fome.
Da fome de uma população inteira escravizada à angústia de encontrar o que comer. Vi os caranguejos espumando de fome à beira da
água, à espera que a correnteza lhes trouxesse um pouco de comida,
um peixe morto, uma casca de fruta, um pedaço de bosta que eles
arrastariam para o seco matando a sua fome. E vi, também, os homens sentados na balaustrada do velho cais murmurarem
monossílabos, com um talo de capim enfiado na boca, chupando o
suco verde de capim e deixando escorrer pelo canto da boca uma
saliva esverdeada que me parecia ter a mesma origem da espuma dos
148
JOSUÉ DE CASTRO - VIDA E OBRA
caranguejos: era a baba da fome. Pouco a pouco, por sua obsessiva
presença, este vago desenho da fome foi ganhando relevo, foi tomando forma e sentido em meu espírito. Fui compreendendo que toda a
vida dessa gente girava sempre em torno de uma só obsessão – a
angústia da fome. Sua própria linguagem era uma linguagem que
quase não fazia alusão a outra coisa. A sua gíria era sempre carregada
de palavras evocando comidas. As comidas que desejavam com desenfreado apetite. A propósito de tudo se dizia: é uma sopa, é uma
canja, é um tomate, é uma ova, é um abacaxi, é uma batata, é pãopão, é queijo-queijo. Era como se esta gíria fosse uma espécie de
compensação mental de um povo sempre faminto. De um povo inteiro de barriga vazia, mas com a cabeça cheia de comidas imaginárias.
É que a comida lhes havia subido à cabeça, como o sexo sobe a cabeça dos impotentes, estes famintos de amor.
Esta presença constante da fome sempre fora a grande força moderadora do comportamento moral de todos os homens desta comunidade: dos seus sentimentos dominantes. Vê-los agir, falar, lutar,
sofrer, viver e morrer era ver a própria fome modelando, com suas
despóticas mãos de ferro, os heróis do maior drama da humanidade
– o drama da fome.
Foi o que viram, assustados e sem compreender bem todo o drama, os meus olhos de criança. Pensei, a princípio, que a fome era um
triste privilégio desta área onde eu vivia – a área dos mangues. Depois verifiquei que, no cenário da fome do Nordeste, os mangues
eram uma verdadeira terra de promissão que atraía os homens vindos de outras áreas de mais fome ainda. Da área das secas e da área da
monocultura da cana-de-açúcar, onde a indústria açucareira esmagava, com a mesma indiferença, a cana e o homem: reduzindo tudo a
bagaço.
Era um curso inteiro que eu fazia sobre a fome, quando ouvia,
com um interesse sempre crescente, as intermináveis histórias contadas por meu pai sobre as agruras sofridas pela nossa família, na seca
de 1877. Da presença da fome na zona do açúcar, tomei conheci-
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149
mento mais detalhado através do relato monótono de dois velhos
negros que tinham sido escravos na juventude e que desfilavam suas
lembranças da época enquanto serravam grama para os cavalos de
meu pai.
Mesmo quando me ia distrair, assistindo aos cantadores de feira
ou ao espetáculo do bumba-meu-boi – auto popular representado
na zona dos mocambos – o que encontrava diante de mim, representando, falando, gesticulando, era sempre a fome em seus numerosos
disfarces. Eram os violeiros cantando:
Triste vida de posseiro
junto à Alagoa Amarela.
Vinte anos sobre a terra
cavando o faltoso pão,
vinte anos de promessa
com a mesma enxada na mão,
catorze filhos no mundo
fora os que estão no caixão
Peguei na espingarda velha
como quem pega o enxadão
com a força que a fome dá
pra quem defende seu pão
E no bumba-meu-boi, o que eu via era um estranho boi de
duas pernas apenas, o mais humano dos bois que eu tinha encontrado na vida, sofrendo como um homem, chorando e revoltandose como gente. E eu me tomava de amores por aquele boi magro e
seco, tão magro e tão seco que, na verdade, era só cabeça e na cabeça era só chifres. Enormes chifres balançando no ar como um fantasma de boi. Realmente o boi era só chifres e pêlo, porque carne
não tinha, como afirmava em sua cantoria o vaqueiro que, palpando
o boi por toda parte, nunca encontrava em parte alguma sinal de
carne:
150
JOSUÉ DE CASTRO - VIDA E OBRA
Eu fui ver na cabeça
Eh! Bumba!
Achei ela bem lefa
Eh! Bumba!
Eu fui lá na ponta
Eh! Bumba!
Ela de mim não fez conta
Eh! Bumba!
Eu fui ver no pescoço
Eh! Bumba!
Achei ele bem torto
Eh! Bumba!
Eu fui ver nas apá
Eh! Bumba!
Não achei nada lá
Eh! Bumba!
Eu fui ver lá na mão
Eh! Bumba!
Não achei nada não
Eh! Bumba!
Eu fui ver nas costelas
Eh! Bumba!
Não achei nada nelas
Eh! Bumba!
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Eu fui ver no vazio
Eh! Bumba!
Achei o boi bem esguio
Eh! Bumba!
Eu fui ver no chambari
Eh! Bumba!
Não achei nada ali
Eh! Bumba!
Eu fui ver no cocotó
Eh! Bumba!
Achei bem ao redor
Eh! Bumba!
Eu fui ver na rabada
Eh! Bumba!
Não achei ali nada
Eh! Bumba!
O Bumba-meu-boi era apenas um pesadelo de faminto. De faminto sonhando com o fantasma de um boi, que cresce diante dos
seus olhos compridos, mas cujas carnes desaparecem sob as apalpadelas de suas mãos.
E foi assim que, pelas histórias dos homens e pelo roteiro do rio,
fiquei sabendo que a fome não era um produto exclusivo dos mangues. Que os mangues apenas atraíram os homens famintos do Nordeste: os da zona da seca e os da zona da cana. Todos atraídos por esta
terra de promissão, vindo se aninhar naquele ninho de lama,
construído pelos dois rios e onde brota o maravilhoso ciclo do caranguejo. E quando cresci e saí pelo mundo afora, vendo outras paisagens, me apercebi com nova surpresa que o que eu pensava ser um
fenômeno local, um drama do meu bairro, era um drama universal.
152
JOSUÉ DE CASTRO - VIDA E OBRA
Que a paisagem humana dos mangues se reproduzia no mundo inteiro. Que aqueles personagens da lama do Recife eram idênticos aos
personagens de inúmeras outras áreas do mundo, assoladas pela fome.
Que aquela lama humana do Recife, que eu conhecera na infância,
continua sujando até hoje toda a paisagem do nosso planeta como
negros borrões de miséria: as negras manchas demográficas da geografia da fome.
Mas isto já mostrei noutros ensaios que escrevi sobre a fome.
Ensaios de natureza científica, de análise sociológica do problema. O
que não tinha contado, até hoje, foi o meu encontro com o drama da
fome. Hoje, resolvi contá-lo. Não só o encontro, como o pavor que
ele me provocou. Tomei conhecimento do monstro nos mangues do
Capibaribe, e nunca mais me pude libertar de sua trágica fascinação.
É esta fascinação e esta marca que a fome provocou na minha alma
de criança, que procuro hoje invocar neste romance – o romance do
Ciclo do Caranguejo.
Algumas das coisas que conto neste livro hoje desapareceram,
mas outras – a maioria delas – permanecem intactas, tais como as
viram os meus olhos de criança. É que o tempo conta pouco nas
terras da miséria, nas terras subdesenvolvidas do Terceiro Mundo,
onde a fome e a morte com sua presença constante estão sempre a
tecer o destino dos homens.
5. FOME COMO FORÇA
SOCIAL: FOME E PAZ*
Apesar do terrível esforço despendido pelos países da Europa
durante a última guerra mundial e do sensível aumento do nível de
vida no mundo do após-guerra, os povos desenvolvidos continuam
ignorando o que significa, em toda sua crueza e realidade, a fome
considerada como fator social, agindo sobre grandes massas humanas. É verdade que, através de filmes documentários, assistimos a
cenas impressionantes de fome, tomadas em diversas regiões da terra: quer imagens das regiões superpovoadas do extremo Oriente, com
seus coolies descarnados ou indianos ascéticos, em luta permanente
contra o espectro da fome, quer imagens dos campos de concentração na Europa, com suas figuras trágicas e angustiadas de homens,
mulheres e crianças esfomeadas e amontoadas como lixo, à beira das
grandes valas onde eram jogados seus corpos, reduzidos tão-somente
a esqueletos envolvidos de pele.
Essas imagens cinematográficas, com toda a sua carga de horror
e sofrimento, despertam, quando muito, na consciência dos povos
bem alimentados, um sentimento de piedade e desencanto pela condição humana. Vista à distância e esquematizada até certo ponto, em
uma série de simples imagens visuais, a tragédia da fome exprime
*
Trabalho publicado na revista Pourquoi, número especial, março de 1967, Paris.
154
JOSUÉ DE CASTRO - VIDA E OBRA
apenas uma pequena parcela de sua terrível significação social e de
suas repercussões econômicas e políticas.
A noção que se tem, corretamente, do que seja a fome é, assim,
uma noção bem incompleta. E este desconhecimento, por parte das
elites européias, da realidade social da fome no mundo e dos perigos
que este fenômeno representa para a sua estabilidade social, constitui
uma grave lacuna tanto para a análise dos acontecimentos políticos
da atualidade, que se produzem em diversas regiões da terra, como
no que se refere à atitude que os países da abundância deveriam ter
face aos países subdesenvolvidos, permanentemente perseguidos pela
penúria e pela miséria alimentar.
Neste ensaio, gostaríamos de tentar apresentar uma visão realista
da fome enquanto calamidade social, procurando corrigir algumas
idéias correntes que não correspondem à realidade dos fatos. Procuraremos, também, demonstrar até que ponto a fome pode intervir
como força social, capaz de modificar a conduta e o comportamento
do homem, agindo, assim, em conseqüência, como um fator de
desajuste entre indivíduos, povos e nações.
Inicialmente, gostaríamos de destacar o fato relativamente pouco
conhecido de que a fome não é um fenômeno de expressão puramente
regional, limitado a determinadas zonas do mundo – o extremo Oriente
e a África. A fome é um fenômeno geograficamente universal, a cuja
ação nefasta nenhum continente escapa. Toda a terra dos homens foi,
até hoje, a terra da fome. As investigações científicas, realizadas em
todas as partes do mundo, constataram o fato inconcebível de que dois
terços da humanidade sofre, de maneira epidêmica ou endêmica, os
efeitos destruidores da fome. E que, até mesmo no continente americano – a terra prometida que atraiu, apenas no decorrer do último
século, cerca de 100 milhões de imigrantes europeus, que procuravam
escapar das garras da pobreza e da fome, ainda hoje existem aproximadamente 100 milhões de indivíduos morrendo de fome.
É claro que são computados nessa cifra não apenas os casos de
fome total, de verdadeira inanição, mas também os casos mais fre-
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155
qüentes e muito mais generalizados de fome parcial, de fome oculta
ou específica, resultante da carência, no regime normal, de certos
princípios nutritivos indispensáveis à vida. É que existem duas maneiras de morrer de fome: não comer nada e definhar de maneira
vertiginosa até o fim, ou comer de maneira inadequada e entrar em
um regime de carências ou deficiência específicas, capaz de provocar
um estado que pode também conduzir à morte. Mais grave ainda
que a fome aguda e total, devido às suas repercussões sociais e econômicas, é o fenômeno da fome crônica ou parcial, que corrói silenciosamente inúmeras populações do mundo.
Para que se possa compreender todas as implicações da fome coletiva, no domínio das atividades econômico-sociais, é necessário ter, antes
de tudo, uma idéia objetiva de sua ação sobre a personalidade humana,
tanto sobre seu corpo quanto sobre seu espírito. É possível, hoje em dia,
fazer uma síntese dessa ação aniquilante da fome, com base nas observações científicas realizadas nos campos de concentração da Europa durante a última guerra, ou nas zonas de fome que subsistem,
independetemente da guerra, em países pouco desenvolvidos ou sujeitos
a calamidades meteorológicas, como as secas e as inundações, ou, finalmente, a partir de experiências de laboratório realizadas por especialistas.
Como exemplo deste último tipo de observações, podemos citar as do
grupo de pesquisadores da Universidade de Minnesota, dirigida pelo
Dr. A. Keys, onde voluntários foram submetidos experimentalmente a
um regime de semi-inanição durante um período de 6 meses. É verdade
que neste tipo de experiência os observadores obtêm resultados relativos
no que se refere aos efeitos psicológicos da fome, porque os indivíduos
com os quais as experiências foram feitas não estavam submetidos à angústia e à pressão inerentes à verdadeira miséria e à impossibilidade material de obter alimentos para satisfazer sua fome, como ocorre nas zonas
de fome existentes no mundo. Apesar de tudo, numerosos resultados
observados nos laboratórios da Universidade de Minnesota coincidem
com as observações feitas na Europa e com as que pudemos recolher em
certas zonas de fome na América Latina.
156
JOSUÉ DE CASTRO - VIDA E OBRA
As conseqüências físicas da fome são, de maneira geral, bem conhecidas: diminuição ou parada de crescimento, perda de peso, perda de forças, anemia etc. Não é necessário, portanto, dedicar a esta
parte um estudo mais detalhado. Os aspectos psicológicos do fenômeno, contudo, são bem mais complexos e bem mais obscuros e
constituirão um dos pontos tratados neste ensaio.
Nesta análise da influência da fome e da subalimentação sobre o
comportamento humano, traremos como contribuição efetiva as
observações pessoais que fizemos em zonas de fome epidêmica no
Brasil. No Nordeste deste país, em tempos normais, as populações
locais têm um regime equilibrado, baseado em carne, leite, queijo e
milho, produtos obtidos graças a um sistema de economia mista,
agricultura e criação de gado. Mas, como se trata de uma região sujeita a secas periódicas, quando se produz este cataclismo
meteorológico toda a economia regional se desorganiza e a fome aguda
aparece, matando parte de sua população e expulsando a outra parte,
obrigando-a a emigrar para zonas de clima mais regular. Nós tivemos
oportunidade de seguir, em muitos destes episódios de seca, as transformações violentas que surgem na vida humana desta região.
A fome age não apenas sobre os corpos das vítimas da seca, consumindo sua carne, corroendo seus órgãos e abrindo feridas em sua
pele, mas também age sobre seu espírito, sobre sua estrutura mental,
sobre sua conduta moral. Nenhuma calamidade pode desagregar a
personalidade humana tão profundamente e num sentido tão nocivo quanto a fome, quando atinge os limites da verdadeira inanição.
Excitados pela imperiosa necessidade de se alimentar, os instintos
primários são despertados e o homem, como qualquer outro animal
faminto, demonstra uma conduta mental que pode parecer das mais
desconcertantes.
Seu comportamento se modifica como o de outros seres vivos
atingidos nesta mesma zona pelo flagelo da fome: o do gado, o dos
morcegos e o das serpentes. O gado parece perder toda sensibilidade
à dor e chega a comer plantas espinhosas (como o cactus) que ferem
B E R N A R D O M . F E R N A N D E S E C A R L O S W A L T E R P . G O N Ç A L V E S (ORGS.)
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sua boca a ponto de o sangue correr, misturado à sua baba. Os morcegos e as serpentes, que em tempos normais vivem longe das habitações humanas, invadem as casas no período de seca e atacam o homem para acalmar sua fome desesperada.
A ação da fome, no homem, não se manifesta como uma sensação contínua, mas como um fenômeno intermitente, com acessos e
melhoras periódicas. No começo, a fome provoca uma excitação nervosa anormal, uma extrema irritabilidade e, principalmente, uma
exaltação dos sentidos que se animam num elã de sensibilidade ao
serviço quase exclusivo das atividades que permitem obter alimentos
e, portanto, satisfazer o instinto mortificado da fome. Entre os sentidos, os que sofrem o máximo de excitação são os da visão e do olfato,
os que podem melhor orientar o faminto na procura de alimento.
Neste momento, o homem se apresenta, mais do que nunca, como
um verdadeiro animal de rapina, obstinado na procura de uma presa
qualquer para acalmar sua fome. É nessas ocasiões que surgem, nessa
região do Brasil, seus famosos bandidos. Nesta fase desaparecem todos os outros desejos e interesses vitais, e o pensamento se concentra
exclusivamente nas possibilidades de encontrar alimento, não importa por que meio nem com que riscos. É a obsessão do espírito
polarizado para um único desejo, concentrado em uma única aspiração: comer. A esse período de exaltação se segue um período de apatia, de depressão, de náusea e de extrema dificuldade de concentração mental. Nesses limites, já muito perigosos para a segurança do
espírito, a personalidade se desagrega, e as reações normais a todas as
outras solicitações do meio exterior sem relação com o fenômeno da
fome se extinguem pouco a pouco. Nessa desintegração do eu desaparecem as atividades de autoproteção e controle mental, e, finalmente, o indivíduo perde totalmente todos os escrúpulos e inibições
de ordem moral. Assim, com a consciência extinta, o conflito inconsciente prossegue, entre as forças de satisfação do instinto de nutrição e as forças dirigidas pelos outros interesses humanos. Um dos
dois grupos de elementos superará o outro, segundo o que o sociólo-
158
JOSUÉ DE CASTRO - VIDA E OBRA
go Sorokin chama de “lei de diversificação e de polarização dos efeitos”, permitindo assim o aparecimento, em períodos de catástrofes,
de bandidos e de santos. É desta forma que as secas e fomes periódicas contribuem para provocar a cristalização de dois tipos característicos da vida social desta região do Brasil: os cangaceiros e os místicos
fanáticos. Tipos tão característicos desta zona, que muitas vezes são
representados em um mesmo indivíduo, em uma mesma personalidade. Exemplo disso é o famoso cangaceiro e beato Bento da Cruz,
originário da cidade de Juazeiro, que assassinou seu próprio pai e,
com uma cruz em uma mão e um punhal na outra, fez justiça à sua
maneira, nesta pequena localidade.
O cangaceiro, que emerge como uma serpente transtornada da
imundície social, freqüentemente significa a vitória do instinto da
fome sobre as barreiras sociais que o meio levanta.
O místico fanático traduz a vitória da exaltação moral que faz
apelo às forças sobrenaturais a fim de dominar o instinto desordenado
da fome. Nos dois casos, assistimos a um uso desproporcional e inadequado da força – da força física ou da força mental – para lutar
contra o flagelo ou contra seus trágicos efeitos.
Além desta ação direta sobre a personalidade dos homens da região, desorientando-os ou desajustando-os, as fomes periódicas agem
desorganizando ciclicamente a economia regional e criando um meio
social extremamente receptivo às atividades tanto do banditismo
quanto do misticismo. Sob esta ação desintegradora das fomes periódicas, esta região só progride lentamente, sob o ponto de vista social
e, no entanto, em tempos normais, o grupo humano que aí vive é
disciplinado, trabalhador, industrioso e de uma honestidade a toda
prova. Todas estas belas qualidades desaparecem como que por encanto nos períodos de fome.
Tomando esta região como exemplo, queremos mostrar qual o
efeito da fome como verdadeira força social. Seu primeiro efeito
desagregador reside no fato de que o grupo humano submetido à sua
ação periódica ou permanente perde sua capacidade criadora, mes-
B E R N A R D O M . F E R N A N D E S E C A R L O S W A L T E R P . G O N Ç A L V E S (ORGS.)
159
mo que os indivíduos que o compõem sejam hereditária e constitucionalmente capazes, mesmo que sejam intelectualmente superiores.
Investigações realizadas entre estudantes de diversas regiões do
Oriente e da América Latina demonstraram que as crianças possuem
muitas vezes quociente de inteligência de média elevada, mas que
seu rendimento escolar é precário porque são incapazes de uma atenção mais prolongada ou de um esforço mental contínuo. Esta rápida
fadiga e esta incapacidade de concentração são produzidos exclusivamente pela fome. Da mesma forma, a produção per capita dos trabalhadores de certas zonas equatoriais e tropicais é baixa porque o regime de fome sob o qual eles vivem não lhes fornece energia suficiente
para um trabalho intensivo. Cria-se, assim, um terrível círculo vicioso: nas zonas de fome, a produção não aumenta, por falta de trabalho suficiente e disciplinado, e sem aumentar a produção, a fome
continua sabotando os planos de trabalho construtivo.
Para agravar a situação e fechar ainda mais o círculo de ferro,
aparecem as doenças comumente ligadas à fome e à pobreza. A fome
e o paludismo, por exemplo, são flagelos que se associam. Estima-se
em 300 milhões o número de pessoas atingidas pelo paludismo e em
3 milhões o número de mortes devido a esta doença, cada ano. Em
diversas regiões, o paludismo é grave e mata em grandes proporções,
porque ataca pessoas famintas, sem nenhuma resistência. Além disto, como a produção destas regiões é terrivelmente fraca, sempre faltam recursos financeiros para o seu saneamento. Aviltando as populações e diversos países, entravando sua produção, restringindo seu
poder de compra, provocando a instabilidade política e a inquietação social, a fome tornou-se, sem nenhuma dúvida, o sabotador mais
ativo da paz no mundo atual. Sua ação social negativa não se limita
às regiões onde ela se vicia, mas seus efeitos vão bem mais longe e
repercutem com intensidade sobre a economia e a vida política de
todos as nações.
As populações cronicamente famintas, por sua fraca capacidade
de produção e por seu poder de compra quase nulo, constituem massas
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JOSUÉ DE CASTRO - VIDA E OBRA
parasitas que pesam bastante em um dos pratos da balança da economia mundial. Além disto, constituem centros de agitação social contínua e de explosões desordenadas de revoltas improdutivas, de verdadeiras crises de nervos de populações neurastênicas e carentes de
vitaminas.
Qual deve ser o comportamento político do mundo diante deste
terrível caos social? Para que nosso mundo possa sobreviver com suas
instituições e seus princípios fundamentais, somente um caminho é
praticável: maximização de esforços para restringir ao mínimo essas
zonas de fome. Trata-se de uma luta difícil e a longo prazo, mas perfeitamente realizável com as possibilidades naturais da terra e os atuais
conhecimentos do homem. O primeiro passo neste sentido consiste
em obter um aumento progressivo da produção de alimentos nas
diferentes partes do mundo. Não existem para isso obstáculos geográficos. Podemos aproveitar 52% da superfície da terra para a produção de alimentos e, no entanto, até hoje só foram ativamente explorados 10% deste total. Restam assim 42% do solo para ser utilizado visando à expansão da agricultura, à luta contra a fome. E são
exatamente as zonas de fome que, em geral, possuem as maiores superfícies de terras inexploradas. Na América Latina – que é uma das
zonas de fome do mundo – a extensão de terras exploradas não alcança 5% do total do território. No Brasil, com uma grande extensão territorial de mais de 7 milhões de km2, a superfície cultivada
não chega a 2% da superfície total.
Assim, não são os obstáculos naturais – nem o solo, nem o clima
– que tornam esta tarefa difícil, como tampouco são os fatores de
natureza geográfica que produzem geralmente as fomes. Em regra
geral, são fatores sociais, conseqüência de estruturas econômicas defeituosas.
O caminho para a salvação do mundo, segundo nossa opinião,
deve consistir em facilitar progressivamente sua reestruturação econômica e social a partir de princípios mais humanitários – princípios
que coloquem o homem como o centro do pensamento e do interes-
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se social. Desta forma, será possível utilizar recionalmente os inúmeros recursos naturais ainda inexplorados e obter alimentos para acalmar a fome de toda a humanidade.
A solução preconizada pelos pessimistas desencorajados, com
Vogt, em seu livro Road to Survival, é a de considerar preferível deixar morrer inúmeros indivíduos nas regiões mais pobres, como a
China, para restabelecer o equilíbrio econômico ameaçado pela relação entre população e produção mundial. Contudo, esta solução nos
parece ser um falso caminho para a sobrevivência, já que, nessas zonas de fome, quanto mais gente morre, mais gente nasce. É curioso
notar que as regiões onde a miséria alimentar é maior, os índices de
natalidade também o são, como por exemplo, a Índia, o extremo
Oriente. As populações do mundo não se comportam estatisticamente como as moscas de laboratório, que regulam suas curvas de
crescimento demográfico segundo a quantidade de alimento que lhes
é fornecida pelo pesquisador. Com os homens é bem diferente. Como
se tratasse de uma forma de revolta da espécie contra a pressão da
fome, o homem aumenta sua capacidade de reprodução nas regiões
onde a morte dizima com mais violência. Além disto, Vogt se engana, também, quando preconiza a extinção forçada destas massas humanas nas regiões mais atrasadas, com a intenção egoísta de defender as condições de vida, aprovisionamento e a segurança social dos
habitantes das regiões mais civilizadas porque, deste modo, o que se
consegue é aumentar a insegurança social e as dificuldades econômicas do mundo inteiro. Com efeito, estas massas humanas não se deixam sacrificar assim passivamente, como gado dócil, ao contrário,
elas se revoltam, se agitam e constituem um verdadeiro foco de elaboração de idéias revolucionárias. Seria muito mais indicado ajudar
essas populações a se nutrir melhor, para que assim pudessem ter
capacidade e força para produzir melhor. Não existe perigo em se ver
dobrar a população do mundo, se esta população se compõe de indivíduos capazes de uma ação social, capazes de produzir para sua subsistência e a dos seus. A afirmativa do grupo neomalthusianista, que
162
JOSUÉ DE CASTRO - VIDA E OBRA
admite ser necessário prescrever o controle da natalidade para salvar
o mundo, não tem muito sentido, porque o mundo está longe de
estar muito povoado. O que ocorre é que não existe gente suficiente
para produzir e existe gente demais para comer.
O conceito de excedente de população, que serve de base aos
adeptos da doutrina do controle da natalidade, é um conceito muito
relativo. Três homens em uma zona desértica, sem produção de espécie alguma, superpovoam esta zona. Três mil homens trabalhando na
sua transformação, irrigando-a e cultivando-a de maneira adequada,
podem constituir uma população ótima para esta mesma zona. Os
três bilhões de habitantes que representam atualmente a população
do mundo e assustam os neomalthusianos como se se tratasse de
uma nuvem de gafanhotos ameaçando devorar toda a produção desse pequeno pomar que só cobre um décimo da superfície terrestre,
talvez, no futuro, correspondam apenas a uma pequena população
facilmente alimentável, desde que o pomar se estenda pelas terras
semi-áridas dos trópicos, às zonas de floresta equatorial e mesmo às
tundras geladas das regiões subpolares, graças aos métodos e técnicas
de que dispõe hoje a agricultura científica. O mundo pode até duplicar a sua população atual, desde que dê prova de bom senso e procure
o caminho adequado para a sobrevivência.
A chave desse caminho se encontra na concepção fundamental
de que vivemos atualmente num mundo que é um organismo vivo,
unitário, onde todas as partes estão indissoluvelmente ligadas, o que
significa que, desde que uma dessas partes sofra de fome e esteja
ameaçada de morrer e apodrecer na miséria, todo organismo está
ameaçado pela mesma infecção.
Uma frase pronunciada diante dos delegados da oitava reunião
da FAO há alguns anos por Truman, então presidente dos Estados
Unidos, nos parece muito sensata e oportuna. “A fome não tem nacionalidade; a abundância tampouco deve tê-la”.
Acalmar a fome do mundo é a política mais sadia para aplacar a
fúria guerreira que sopra neste momento, como uma terrível tem-
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163
pestade, sobre a superfície deste mundo, ameaçando-o com um novo
e terrível tipo de erosão: a erosão total da magnífica obra humana
que as sucessivas civilizações esculpiram sobre a terra.
6 . S U B D E S E N V O LV I M E N TO :
CAUSA PRIMEIRA
DA POLUIÇÃO *
Os chamados países subdesenvolvidos devem se preocupar com
os problemas do meio? À primeira vista, esses problemas são muito
mais graves e complexos nos países desenvolvidos, onde a industrialização e a gigantesca concentração urbana provocam diretamente
um desequilíbrio inevitável e uma acentuada degradação do contorno natural, isto é, do meio. Desta forma, os problemas de poluição
parecem se circunscrever e interessar quase exclusivamente aos países
do alto nível de industrialização e, em muito escassa medida, aos
países pobres, meros fornecedores de matérias-primas.
Esta é uma análise errônea, originada da imprecisão de alguns
conceitos básicos, como as acepções habituais de “meio” e “desenvolvimento”. O meio não é apenas o conjunto de elementos materiais
que, interferindo continuamente uns nos outros, configuram os
mosaicos das paisagens geográficas. O meio é algo mais do que isso.
As formas das estruturas econômicas e das estruturas mentais dos
grupos humanos que habitam os diferentes espaços geográficos também são partes integrantes dele.
Considerado globalmente, o meio tanto compreende fatores de ordem física ou material quanto fatores de ordem econômica e cultural.
*
Trabalho apresentado no “Colóquio sobre o Meio”, em junho de 1972, em Estocolmo. Publicado na revista O Correio da Unesco, ano 1, nº 3, março de 1973.
166
JOSUÉ DE CASTRO - VIDA E OBRA
Uma análise correta do meio deve abarcar o impacto total do
homem e de sua cultura sobre os elementos restantes do contorno, e
o impacto dos fatores ambientais sobre a vida do grupo humano
considerado como uma totalidade. Desse ponto de vista o meio abrange aspectos biológicos, fisiológicos, econômicos e culturais, todos
combinados na mesma trama de uma dinâmica ecológica em transformação permanente.
Esse conceito é mais amplo e mais objetivo que o resultante de
uma concepção do meio como sistema de relações mútuas entre os
seres vivos e o contorno natural, considerados ambos como fenômenos isolados.
Igualmente falso é o conceito de desenvolvimento avaliado unicamente à base da expansão da riqueza material, do crescimento econômico. O desenvolvimento implica mudanças sociais sucessivas e
profundas, que acompanham inevitavelmente as transformações
tecnológicas do contorno natural. O conceito de desenvolvimento
não é meramente quantitativo, mas compreende os aspectos qualitativos dos grupos humanos a que concerne. Crescer é uma coisa; desenvolver, outra. Crescer é, em linhas gerais, fácil. Desenvolver
equilibradamente, difícil. Tão difícil que nenhum país do mundo
conseguiu ainda. Desta perspectiva, o mundo todo continua mais
ou menos subdesenvolvido.
Atualmente está na moda falar dos defeitos nocivos que o crescimento econômico produz sobre o meio, sobre os componentes
do contorno natural; entretanto, costuma-se referir apenas e precisamente aos efeitos que não são os mais ameaçadores para o futuro
da humanidade. Ouvem-se gritos de alarme condenando o crescimento da população, a poluição do ar, dos rios e dos mares e a
degradação do patrimônio animal e vegetal das regiões mais desenvolvidas do mundo; mas tudo isso revela uma visão limitada do
problema, já que o clamor se refere apenas aos efeitos diretos da
expansão econômica, enquanto deixa na sombra e reduz ao silêncio a insidiosa ação indireta do desenvolvimento sobre a totalidade
B E R N A R D O M . F E R N A N D E S E C A R L O S W A L T E R P . G O N Ç A L V E S (ORGS.)
167
dos grupos humanos. E é evidente que esta ação indireta é mais
determinante que a ação direta.
O primeiro erro grave, a primeira conclusão falsa que deriva desta visão parcial do problema é a afirmativa muito generalizada de
que nas regiões mais ricas é que apareceram, por causa do crescimento econômico, os primeiros efeitos da poluição e da degradação do
meio ambiente. A realidade é diferente: os primeiros e mais graves
efeitos do desenvolvimento manifestaram-se precisamente naquelas
regiões que estão hoje economicamente subdesenvolvidas e que ontem eram politicamente colônias. O subdesenvolvimento que existe
nessas regiões é o primeiro produto do desenvolvimento desequilibrado do mundo. O subdesenvolvimento representa um tipo de poluição humana localizado em alguns setores abusivamente explorados pelas grandes potências industriais do mundo.
O subdesenvolvimento não é, como muitos pensam equivocadamente, insuficiência ou ausência de desenvolvimento. O subdesenvolvimento é um produto ou um subproduto do desenvolvimento, uma derivação inevitável da exploração econômica colonial
ou neocolonial, que continua se exercendo sobre diversas regiões
do planeta.
Há os que afirmam, convictos, que a problemática do meio nos
países subdesenvolvidos é diferente da dos países ricos e industrializados. Assim, diz-se que nas regiões subdesenvolvidas não existe preocupação com os aspectos qualitativos da vida, mas apenas com a possibilidade de sobreviver, isto é, com a luta contra a fome, contra as
epidemias e contra a ignorância generalizada. Esta posição esquece
que estes são apenas sintomas de uma grave doença social: o subdesenvolvimento como um produto do desenvolvimento. Os países
subdesenvolvidos que lutam pela sobrevivência devem se preocupar
com os problemas do meio e do desenvolvimento em escala mundial,
para se defenderem das agressões que seu próprio meio sofre há séculos por parte das metrópoles colonialistas, destruidoras da condição
humana nas áreas subdesenvolvidas.
168
JOSUÉ DE CASTRO - VIDA E OBRA
Se só ultimamente é que se vem falando com insistência da
poluição e degradação provocadas pelo crescimento econômico, isso
se deve a que a civilização ocidental, com seu repertório científico
etnocêntrico, sempre se negou a aceitar esta evidência: que a fome
e a miséria de algumas regiões distantes fazem parte do custo social
do seu próprio progresso, um progresso que a humanidade inteira
paga para que o desenvolvimento econômico avance no pequeno
número de regiões dominantes política e economicamente no mundo.
A escamoteação desta verdade provocou a implantação em escala
planetária de uma estratégia de luta contra o subdesenvolvimento
que estava irremediavelmente fadada ao fracasso: a do Decênio para
o Desenvolvimento, de 1960 a 1970. Fracasso que se tornará a produzir enquanto as estruturas econômicas do mundo continuarem
sustentadas pelos falsos suportes do seu edifício social: a economia
de guerra, a economia do lucro máximo e a política de esmagamento
econômico do Terceiro Mundo.
Na sua luta por emancipação e sobrevivência, os países subdesenvolvidos terão de obter a qualquer preço uma sensível diminuição
do impacto econômico negativo que a economia de mercado provoca no seu sistema de economia de dependência. Esses países vão combater a ação indireta e distante dos grandes pólos de concentração de
capital, que alimentam por todos os meios, inclusive pela negativa à
estabilidade do custo das matérias-primas, o subdesenvolvimento da
periferia econômica do mundo.
Para que não reste a menor dúvida de que o subdesenvolvimento
é, na civilização de consumo, um produto do desenvolvimento, basta verificar que antes da explosão capitalista e industrial do nosso
século não existia esta divisão entre países desenvolvidos e subdesenvolvidos, separados uns dos outros por um largo fosso econômico.
Foi depois da segunda revolução industrial que se exteriorizaram as
disparidades extremas dos ritmos de crescimento e dos níveis econômicos de ambos os grupos de países.
B E R N A R D O M . F E R N A N D E S E C A R L O S W A L T E R P . G O N Ç A L V E S (ORGS.)
169
Tomemos um exemplo concreto: a renda média por habitante,
em dois países representativos dos dois grupos, Estados Unidos da
América e Índia. Antes da I Guerra Mundial, a renda média por
habitante era na Índia oito vezes inferior à dos Estados Unidos; antes
da II Guerra Mundial, era 15 vezes inferior; atualmente a renda de
um hindu é 50 vezes menor que a de um norte-americano.
É preciso considerar a degradação da economia dos países subdesenvolvidos como uma poluição do seu meio humano, causada pelos
abusos econômicos das zonas de domínio da economia mundial; a
fome, a miséria, os altos índices de freqüência de enfermidades evitáveis com um mínimo de higiene, a curta duração média da vida,
tudo isto é produto da ação destruidora da exploração do mundo
segundo o modelo da economia de domínio.
A fome na Índia, no Peru, em São Domingos, no Nordeste do
Brasil, embora apareça como manifestação local de zonas subdesenvolvidas, exprime na verdade formas paradoxais de doenças da civilização, na medida em que são o produto indireto do crescimento
econômico desequilibrado, da mesma forma que são também indiretamente produzidas por ele as doenças cardiovasculares e
degenerativas. No fundo, ambos os grupos de doenças, as da civilização e as da penúria, são causadas por um só despotismo, o da frenética civilização do lucro. Umas surgem ali, diretamente sobre o próprio terreno desse despotismo; outras, indiretamente, longe dele.
A estratégia que considerava a realidade social do Terceiro Mundo separada do mundo como totalidade foi fatal para a melhoria
das condições do meio. Toda a biosfera é um só ecossistema composto de múltiplos subsistemas. O ecossistema da biosfera possui
enorme plasticidade estrutural, devido ao jogo dos mecanismos de
compensação utilizados para equilibrar os impactos negativos da
ação humana.
Mas essa plasticidade, que é um importante triunfo do homem,
na medida em que permite transformar a biosfera e utilizar seus elementos para satisfazer as necessidades, não pode ultrapassar certos
170
JOSUÉ DE CASTRO - VIDA E OBRA
limites fixados pelas leis dos equilíbrios naturais, sob pena de provocar graves e, às vezes, fatais rupturas nos ecossistemas.
Os desequilíbrios extremos a que foi arrastado o Terceiro Mundo
constituem, por causa do jogo das inter-relações ecológicas, uma
ameaça para toda a biosfera e assim, ipso facto, para toda a espécie
humana. A fome do Terceiro Mundo pode um dia chegar a provocar
uma peste generalizada, e a sublevação dos famintos pode levar o
mundo inteiro à guerra, se consideramos estes dois problemas: fome
e guerra, como formas de um desequilíbrio dinâmico do meio
soioeconômico.
Não devemos considerar apenas a ação indireta do desenvolvimento sobre o Terceiro Mundo, ação que é mais econômica e cultural do que puramente física ou natural; devemos nos inquietar também com a ação direta: o esbanjamento inconsiderado dos recursos
naturais não renováveis e as rupturas biológicas dos subsistemas ecológicos.
O Terceiro Mundo está sob a ameaça permanente de ver introduzidos tipos de desenvolvimento tecnológicos que, desdenhada a dimensão ecológica, podem provocar uma desagregação total de sua estrutura. Se levarmos em conta a relativa fragilidade de alguns
ecossistemas equatoriais e tropicais, onde se agrupa a maior parte dos
países do Terceiro Mundo, este perigo adquire maior gravidade ainda.
Ninguém ignora a grande fragilidade do solo nestas regiões devido, sobretudo, à erosão provocada pela exploração abusiva do manto
vegetal. Ninguém ignora que os transbordamentos dos rios tropicais
são controlados por diques vegetais de diversos tipos que orientam o
curso. Por conseguinte, a destruição dessa vegetação provoca inundações e estancamentos de águas, que acarretam graves conseqüências:
da perda dos cultivos agrícolas inundados até a disseminação endêmica
de algumas doenças transmitidas por insetos que proliferam nas águas
estancadas.
Será que basta a constatação de que o progresso tecnológico e o
crescimento econômico atualmente destroem o meio ambiente do
B E R N A R D O M . F E R N A N D E S E C A R L O S W A L T E R P . G O N Ç A L V E S (ORGS.)
171
Terceiro Mundo para justificar o que alguns preconizam: a saber, a
interrupção do crescimento nestas regiões? Não acredito. É absurdo preconizar a interrupção do desenvolvimento econômico nos
países do Terceiro Mundo, quando os povos destas regiões vêem
nele a sua última esperança de sair do estado de miséria que os
oprime. Não creio que os chamados “oponentes do desenvolvimento” tenham razão ao propugnar uma interrupção, pois o que se
impõe é uma mudança, ou melhor dito, uma reconversão do tipo
de desenvolvimento.
A tecnologia não é boa nem má. É a sua utilização que lhe dá
sentido ético. Se nos países do Terceiro Mundo a tecnologia age contra os povos subdesenvolvidos é porque foi utilizada unicamente para
produzir o máximo de vantagens e lucros para os grupos da economia dominante. É a exploração neocolonialista que leva estes países
ao estado de desespero em que hoje se encontram, agravado pela
nova ameaça desta ordem de interromper o escasso progresso que
conseguiram nos últimos decênios.
Fala-se muito do relatório que o Instituto de Tecnologia de
Massachusetts (M.I.T) preparou, por inspiração do Clube de Roma,
à base de trabalhos de computadores. Este relatório determina limites de crescimento, avaliados levando-se em conta os efeitos nocivos
da civilização tecnológica e industrial, ou seja, propõe a fixação de
um ponto de estabilização da população e da economia mundiais.
Ora, embora aparentemente o relatório tenha razão – pois a todos
nós inquieta a poluição e a degradação do meio – a realidade é que,
considerado, globalmente, torna-se inaceitável porque suas conclusões estão falseadas por uma metodologia pouco científica. O relatório considera que o modelo de desenvolvimento que apresenta, com
sua imagem do mundo dentro de um século, é o único válido, o
único possível de ser armado com os dados hoje disponíveis sobre a
realidade mundial. Este exclusivismo, muito característico da cultura etnocentrista dos países desenvolvidos, demonstra por si só o caráter pouco científico do relatório.
172
JOSUÉ DE CASTRO - VIDA E OBRA
Todos sabemos que não se pode prever um só tipo de modelo do
futuro. Os que estudam a ciência do porvir, a prospectiva, sabem
que não é possível ater-se a um futuro único, determinado pelas diferentes condições que reinam no momento de realizar o estudo. O
que cabe fazer é imaginar uma série de futuros prováveis em função
do princípio da probabilidade, que substituiu já há tempos o antigo
princípio do determinismo, que foi a norma antes da formulação da
teoria da relatividade.
Pode-se, pois, conceber vários modelos do mundo de amanhã e,
com grande risco de erro, prever quais as probabilidades de cada um
se transformar em realidade. De forma alguma devem-se limitar as
previsões científicas a um só modelo. Quando se fazem projeções
lineares, como as do relatório sobre os limites do crescimento, cai-se
inevitavelmente em ingênuas tentativas que não levam em conta a
ruptura de estruturas, normal no processo histórico de nossa época.
Vivemos uma época de descontinuidade e não de continuidade.
O erro mais grave do relatório do MIT é omitir, entre os fatores
que determinam o crescimento, o problema das estruturas econômicas, sociais e políticas.
Na introdução do relatório, os autores levam em conta apenas cinco fatores de desenvolvimento: a população, a produção agrícola, os
recursos naturais, a produção industrial e a poluição. Nem uma palavra sobre as estruturas socioeconômicas. No entanto, ninguém ignora
que o nível de produção e o nível de poluição, isto é, o desenvolvimento e o meio, dependem essencialmente do tipo de estruturas em jogo.
Omitindo o homem e sua cultura, o projeto torna-se alienado,
porque não leva em conta as realidades do mundo atual e, por conseguinte, o modelo do mundo de amanhã.
Se o Terceiro Mundo, na sua maior parte, recusa as conclusões
deste relatório, é porque desconfia da prescrição sobre a interrupção
do crescimento, interrupção apenas para as regiões pobres, pois é
bem sabido que os países ricos não obedecerão a tal ordem. E o fosso
que separa ambos os mundos se alargará ainda mais.
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Se isto é a verdade, todo o paternalismo caritativo do Clube de
Roma para com o Terceiro Mundo transforma-se num engodo. Este
tipo de medida não ajuda em nada os países do Terceiro Mundo,
mas, ao contrário, prende-os definitivamente ao subdesenvolvimento
e à miséria.
Conseqüentemente, estes países devem reagir e tentar encontrar
um tipo de desenvolvimento independente do desenvolvimento
neocolonial. Para isso precisarão procurar fórmulas que lhes permitam a aplicação de técnicas oriundas da prática e que serão as únicas
válidas para desenvolvê-los de maneira racional. É indiscutível que o
tipo de desenvolvimento atual é um fracasso, mas é indiscutível também que se pode chegar a desenvolver o mundo com estruturas
socioeconômicas e instrumentos de produção diferentes dos que se
usam agora.
É imprescindível retransformar a economia de guerra em que
vivemos numa economia de paz, e utilizar a enorme poupança que
resultar do desarmamento parcial na obtenção de um tipo de desenvolvimento pacífico mais igualitário e não poluidor.
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