1 Presença negra na Lapa-Paraná: reconstruindo um passado

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1 Presença negra na Lapa-Paraná: reconstruindo um passado
Presença negra na Lapa-Paraná: reconstruindo um passado através da cultura material
Cláudia Bibas do Nascimento 1
Introdução
Por muito tempo a escravidão no Brasil foi sua característica nacional. Entre os
séculos XVI e XIX, estima-se que dos 15 milhões de africanos importados pelas Américas,
40% do contingente negro tenha desembarcado em portos brasileiros. No Paraná, a história
dos negros não foi objeto de estudo e nem um tema freqüente até a década de 1990, apesar
dos trabalhos de alguns grupos de pesquisadores que têm se empenhado em mostrar a
importância de bens materiais e imateriais da sociedade. O encobrimento de uma história que
não abrangia a sociedade européia fez com que os paranaenses desconhecessem a história dos
negros no estado. Atualmente, estão sendo revistos pela historiografia os fragmentos desse
passado oculto.
No final do século XIX, a chegada dos imigrantes acarretou uma mudança na
sociedade escravista paranaense. A visita do imperador Dom Pedro II em 1880, fez com que
um grande número de escravos foi alforriado em virtude da pressão dos movimentos
abolicionistas que estavam acontecendo no país, além desse fato, a destruição de um grande
número de documentos referentes à escravidão e a venda dos escravos em São Paulo, são
considerados alguns determinantes que deram início ao processo de europeização identificado
hoje, nos bens patrimoniais edificados. Como os afro-descendentes não possuíam bens
materiais e patrimoniais, as políticas públicas deixaram de lado o patrimônio popular afim de
preservar os monumentos e os artefatos relacionados à imigração européia. Sobre o caráter
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Mestranda em História das Sociedades Ibero-americanas, PUCRS.
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civilizado de Curitiba por exemplo, Rocha Pombo enfatizou que a composição étnica
européia foi um fator de progresso, para o município. Segundo ele,
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aos estrangeiros que têm encontrado naquela terra devemos o concurso mais
esforçado e mais eficaz, que um país novo pode esperar da imigração. As colônias
mais numerosas e importantes, incontestavelmente são a portuguesa, a alemã e a
italiana. A essas colônias cabe uma parte notável no progresso do Paraná (...)
muito devemos também a imigrantes de outras nacionalidades, menos notáveis
pelo número, mas tão operosos e dignos de nossa fraternidade como aqueles.
Os empreendimentos e a modernização da malha urbana nas cidades estão
causando reações adversas nos mais distintos ramos sociais. O crescimento populacional
desordenado, as obras para construção de rodovias, hidrelétricas e redes de telecomunicação,
o preenchimento das depressões com aterros e a organização de espaços públicos estão
contribuindo para a destruição de sítios arqueológicos. Com o crescimento da arqueologia
urbana nos últimos vinte anos, esses espaços têm sido utilizados para que o passado de grupos
antes subordinados seja reconstruído através da cultura material. A possibilidade de
reconhecer o passado pela cultura material, pode indicar novos caminhos para a compreensão
do processo histórico além de 3estudar conflitos e lutas sociais, na maneira de como a
interpretação do passado é construída pelas concepções modernas.
A construção de modelos que refletiam uma memória fragmentada baseada nos
documentos oficiais que homogeneizavam a sociedade acabou influenciando na determinação
de locais, objetos, monumentos e edifícios que se caracterizam principalmente pela ausência
de diversidades.
As manifestações da cultura negra como o folclore, as tradições orais, os ritos de
passagem, o vestuário, os instrumentos musicais, a alimentação e outros, combatidas pelo
processo de ocidentalização e de branqueamento foram aos poucos suplantadas, mas com o
alargamento do sentido de patrimônio, a preservação e a reconstrução do patrimônio afrobrasileiro passaram a ser entendidos como uma questão de cidadania, de memória e de
identidade cultural.
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O que nós denominamos reconstrução do passado é, de uma maneira ou de
outra, uma construção que varia com os autores e as épocas, as personalidades e
2
ROCHA, José Francisco da. O Paraná no Centenário (1500-1900). 2 ed. Rio de Janeiro: Jose Olympio,
Curitiba: SECE/PR, 1980, p.142.
3
FUNARI, Pedro Paulo A. Heterogeneidade e conflito na interpretação do Quilombo de Palmares. In: Revista de
História Regional, 6, 1, 2001, p.11-38.
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LAMING-EMPERAIRE, Anette. Prefácio. p. 7. In: PROUS, A. e PIAZZA, W. Documents pour la pré-historie
méridional. 2. L’Etat de Santa Catarina. Paris: 1997. Citada por KERN, Arno Alvarez; em conferência
intitulada “As práticas e as reflexões arqueológicas de Anette Laming-Emperaire: uma nova ‘Missão Francesa’
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o sistema cultural no qual ela nasce. Por relativa que ela possa ser, entretanto, a
reflexão sobre a significação continua indispensável, quer se trate da arte ou de
qualquer forma da atividade humana.
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Houve uma política de patrimônio que preservou a casa-grande, as igrejas
barrocas, os fortes militares, as câmaras e cadeias, como as referências para a construção de
nossa identidade histórica e cultural e que relegou ao esquecimento as senzalas, as favelas e
os bairros operários. O que foi escolhido para ser perenizado não reproduz a sociedade
paranaense, ao estudar um passado de presença negra torna-se indispensável reavaliar e
reconhecer que há uma dinamicidade social decorrente de intensas transformações em seus
costumes e sua memória, mas que não impede a reconstrução histórica.
Uma cidade histórica e sua memória oculta
Chamada anteriormente de Vila do Príncipe, a Lapa teve sua origem no
tropeirismo, atividade econômica que utilizava o caminho Viamão – Sorocaba para a
passagem das tropas de cavalos, éguas e mulas. Definida como o “País dos Tropeiros”, a
região eleita em 1769 com título de Freguesia foi crescendo economicamente e no final do
século XIX destacaram-se as grandes fazendas para a criação de gado na região. Negros
escravos e negros livres embora em pequena escala, participaram como mão-de-obra no
tropeirismo, geralmente os negros eram integrados no latifúndio como cultivadores nas roças
e nas lidas pecuárias.
As primeiras explorações na região começaram em 1731 com as tropas que
fixavam seus pontos de pouso, logo, foi estabelecida a primeira família e depois pequenas
unidades comerciais. Em meados de 1806, foi transformada em base das tropas legalistas,
contando com 6629 habitantes negros. De 1816 à 1822, o botânico inglês August de SaintHilaire, que percorreu o Brasil catalogando a fauna e a flora, fazendo anotações sobre a
cultura e os costumes dos povos que habitavam o país, chamou a região da Lapa em 1820 de
boca do sertão. Os Campos Gerais paranaenses foram caracterizados por Saint-Hilaire como
região tipicamente pecuária, onde o viajante encontrou escravos em todas as fazendas. 7Em
no Brasil”, ministrada no Encontro do Cinqüentenário do Centro de Estudos e Pesquisas Arqueológicas da
UFPR, em Curitiba, outubro de 2006.
5
FERNANDES, J. R. Educação Patrimonial e cidadania: uma proposta alternativa para o ensino de História,
Revista Brasileira de História, 1993, nº 13 25/26 p. 265-276, citado por FUNARI, Pedro Paulo A. Os desafios da
destruição e conservação do patrimônio cultural no Brasil. Porto, 2001, 41, p.23-32.
6
WESTPHALEN, Cecília Maria. Lapa, um pouso uma legenda. Curitiba: Editora da Secretaria de Estado da
Cultura, 1979.
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IANNI, Octavio. As metamorfoses do escravo. In: GORENDER, Jacob. O escravismo colonial. 6 ed. São
Paulo: Editora Ática, 1992.
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alguns municípios, a participação do grupo negro e pardo, escravos e livres, é maior que na
Capital da Província, como na Lapa, por exemplo, onde os cativos alcançam 34% dos
habitantes. Após cinqüenta anos, no mapa estatístico da população do Paraná de nº14, ano de
1854, a Lapa estava constituída por uma população de 5406 pessoas livres e 1884 escravos.
Através desse breve histórico, podemos analisar somente o que foi registrado pela
história demográfica, pois as fontes documentais pouco relatam sobre o que realmente existiu
como história dos negros na região. Na Lapa, foram preservados documentos que nos relatam
sobre a Revolução Federalista, o cerco ocorrido na cidade, a presença do imperador e sua
visita ao teatro, as correspondências dos tropeiros e da guarda nacional, nomeações de juízes,
inspetores e delegados, atas eleitorais e relações dos expedicionários da Segunda Guerra
Mundial. A falta de preservação da documentação referente à escravidão proporcionou uma
escassez de informações sobre os negros, resultando na construção de um cenário onde a
maioria da população lapeana tem ignorado a presença negra na formação histórica e cultural
da cidade.
Homologado em 1998, o tombamento do Centro Histórico da Lapa é tomado
como exemplo de preservação do patrimônio cultural no Paraná, juntamente com outras
cidades como Castro e Ponta Grossa por incluir a rota do caminho dos tropeiros. Um olhar
atento nos bens tombados observará que estes, refletem o patrimônio preservado de uma
sociedade homogênea ausente de diversidades.
As obras urbanísticas para a construção de uma praça no centro histórico,
suspensas por tempo indeterminado com a descoberta de uma fonte de água construída pelos
escravos com pedras da região, estão evidenciando na Lapa do século XXI, um passado com
presença negra. As evidências da cultura material podem nos fornecer dados sobre a
escravidão no município, conjugadas com a interpretação da pequena documentação escrita
ainda existente.
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O patrimônio cultural é um elemento de extrema importância para a construção
da cidadania. Contudo, para identificá-lo nas suas possibilidades é necessário
uma consciência crítica procurando analisar e interpretar seus significados.
Quando a população reconhecer que o seu patrimônio está sendo destruído, e que
uma vez ocorrido este processo ele é irreversível, certamente haverá uma
reivindicação para sua preservação e proteção.
As manifestações da cultura negra local estão sendo extintas lentamente e a
respeito sobre a importância da preservação do patrimônio muitas pessoas parecem fechar os
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OLIVEIRA, Alberto Tavares Duarte de. Um estudo em Arqueologia Urbana: a carta de potencial
arqueológico do Centro Histórico de Porto Alegre. Dissertação de Mestrado PUCRS, Porto Alegre:2005.
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olhos para tal questão. A falta de verbas para a manutenção de um bem patrimonial e o
processo de ocidentalização que não reconhece o valor de um povo e de uma cultura que não
seja a branca européia, tem dificultado as pesquisas sobre o negro na região.
Presença negra na Lapa
Os relatórios recentes do GT Clóvis Moura da Secretaria do Estado da Educação
do Paraná, revelaram a localização das comunidades remanescentes de quilombos no estado.
Os dados mostram que, na Lapa, há três comunidades: uma na cidade e duas no interior. No
Decreto Final da Reunião Carta dos Quilombos do Brasil, produzido em 2003, os
remanescentes de quilombos reivindicaram a inclusão das tradições culturais e a revitalização
dos sítios históricos na Agenda 21 local. A Secretaria Especial de Políticas e Promoção da
Igualdade Racial (SEPPIR), promoveu medidas estratégicas com o objetivo de preservar as
tradições das comunidades remanescentes de quilombos, assinalando o risco da cultura local
não ser respeitada.
As grandes fazendas de criação de gado na Lapa possuíam escravos negros. Os
dados fornecidos pelos viajantes e pelos jornais, confirmam sua presença na região. Sob o
regime escravista, o negro passou então a participar e influenciar a formação cultural e
histórica da Lapa. Sabe-se que os escravos construíram a antiga Capela onde se encontra hoje
a Igreja de São Benedito e os muros do cemitério municipal. As obras de urbanização na
antiga Rua da Fonte revelaram em 2004, um local característico dos negros do século XIX
confirmando a presença negra na região conhecida antes pelos testemunhos orais, étnicos e
históricos.
Fonte do Pote e as pesquisas iniciais
O ser humano sempre se estabeleceu próximo aos locais com água, recurso
essencial para que as necessidades básicas sejam supridas. As fontes foram construídas para
captação de água das bicas e tinham alta finalidade: abastecer a população. Eram nos fontes
que as mulheres buscavam água em seus tonéis, lavavam roupas, mantinham a limpeza da
casa dos senhores, nelas, as pessoas compartilhavam saberes, histórias de vida e trocavam
informações, práticas cotidianas e coletivas do século XIX. Ao mesmo tempo que eram úteis,
eram também decorativas.
Existem modelos de fontes por todo o Brasil, em Ouro Preto, Minas Gerais, há
inúmeras construções dessas bicas públicas, hoje pouco utilizadas, e secas, mas preservadas
para a memória. Paranaguá, no litoral do Paraná, possui uma fonte que remonta ao século
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XVII. No local onde a Fonte Velha foi construída, havia um manancial de água potável
utilizado pelos índios Carijós. Desativada com as obras de esgoto e saneamento em 1914, foi
tombada pelo Patrimônio Histórico e Artístico do Paraná. Na Lapa, a fonte construída em
1880, servia para a manutenção das casas da elite lapeana. Os discursos higienistas e as
práticas de limpeza dos locais de circulação dos pobres e escravos refletiram na Fonte,
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interditada pouco tempo depois pelo médico João Candido Ferreira, devido ao contágio de
uma epidemia de
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tifo na água, causadora de inúmeras mortes. Abandonada e coberta por
camadas de terra, a Fonte não foi incluída no processo de tombamento em 1972 e acabou
tornando-se um pequeno campinho de futebol onde as crianças brincavam, depois um lixão e
por fim, grande parte do terreno foi aterrado para a construção de casas no local.
O aparecimento da Fonte com as obras para a construção da praça, trouxe à tona a
questão de preservação dos vestígios da cultura material deixada pelos negros na região. A
falta de conhecimento das leis de preservação e a omissão temendo que as investigações
científicas viessem a prejudicar o ritmo de trabalho contribuíram para a destruição parcial do
sítio. Com os cortes e aterros para implantação do sistema de manilhas, os vestígios foram
expostos e novamente soterrados, descaracterizando o território e evidenciando fragmentos de
cerâmica, faiança, porcelana e telhas. Somente através de denúncia e com o embargo da obra
pelo IPHAN, as obras foram paralisadas para que fossem realizadas prospecções iniciais e a
elaboração de um projeto de salvamento arqueológico do local.
Atualmente, a preservação dos sítios arqueológicos urbanos depende do
envolvimento da comunidade local. O IPHAN tem sido visto de forma negativa pela
comunidade, por impedir ou dificultar empreendimentos, mas cabe ao órgão embargar e
denunciar o infrator ao ministério público por crime contra o patrimônio. A destruição ainda é
muito freqüente no Brasil e os culpados raramente são denunciados e punidos. O tombamento
reforça a proteção e impede a destruição ou descaracterização dos sítios e a paralisação das
obras é um dos principais motivos para a não notificação e a destruição proposital do
patrimônio.
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A tarefa de avaliar a relevância de sítios na arqueologia de salvamento é
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Informações transmitidas pelo senhor Sérgio Leone, ex-prefeito da Lapa e um grande estudioso da história
local.
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O tifo foi uma importante causa de epidemias, atingia particularmente os exércitos em campanha e as
populações prisionais. Doença epidêmica transmitida pelos piolhos comuns do corpo humano e causada pela
bactéria, hoje em dia está erradicada na Europa, mas existem casos esporádicos na Amércia do Sul, Ásia e
África. Epidemia de transmissão rápida, exige um grande número de pessoas e piolhos susceptíveis, como
exércitos e outras aglomerações.
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LIMA, Tânia Andrade. Por uma abordagem hipotético-dedutiva na Arqueologia de Salvamento: o caso da
Baía da Ribeira, Angra dos Reis, Rio de Janeiro. Curitiba: Centro de Estudos e Pesquisas Arqueológicas, 1986,
v.5, p.29-33.
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bastante complexa e deve estar baseada em critérios sólidos e sobretudo adequados a cada
situação, posto que esta relevância pode ter um caráter tanto social, quanto histórico ou
étnico. 12No que diz respeito a trabalhos de salvamento em sítios arqueológicos históricos, é
necessário focalizar um aspecto particular a essa especialidade: a consciência imediata que
tem uma comunidade da existência de uma edificação, já assimilada pela localidade. Tais
fatos, poderiam ter sido evitados ou pelo menos socorridos em tempo se houvesse um prévio
acordo e planejamento junto com a prefeitura municipal para efetuar a construção.
Mesmo sendo um estado pioneiro em pesquisas de arqueologia histórica, existem
poucos sítios pesquisados no Paraná com características da cultura material dos negros no
século XIX. Infelizmente a perturbação do sítio pode ser um problema para uma análise
estratigráfica, mas não pode deixar de ser analisada mesmo com um deslocamento de mais de
meio metro de terra para cima ou para baixo. Os
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sítios danificados são normalmente desdenhados pelos arqueólogos e
considerados imprestáveis para pesquisas sistemáticas, o que não é
necessariamente verdadeiro. Na maioria dos casos, nem todo o potencial de
pesquisa se esgota com os danos e diferentes estudos ainda têm condições de
serem desenvolvidos, dependendo do modo como se aborda o fenômeno
determinado.
Conforme o Plano de Preservação de Sítio Histórico Urbano do IPHAN é
essencial criar novos padrões de abordagem da preservação de sítios históricos, apoiados no
planejamento e gestão urbanos, na compatibilização entre desenvolvimento urbano e
preservação cultural. O patrimônio está estritamente relacionado com a arqueologia histórica
no Brasil. A tendência de uma arqueologia engajada no resgate das múltiplas vozes, que
incluem grupos étnicos e sociais, representando a pluralidade, começou a ser trabalhada para
que o patrimônio cultural auxilie no fortalecimento da identidade local.
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O registro
arqueológico pode fornecer evidências para muitos aspectos da vida inscritiva, mas a vasta
proporção do material recuperado é o produto de transitórias, mas contínuas, práticas
culturais, muitas das quais podem ter sido envolvidas no reconhecimento e expressão da
diferença étnica.
12
SILVA, Regina Coeli Pinheirada. Salvamento Arqueológico e comunidade. Curitiba: Revista do Centro de
Estudos e Pesquisas Arqueológicas, 1986, v.5, p.23-33.
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LIMA, Tânia Andrade. Por uma abordagem hipotético-dedutiva na Arqueologia de Salvamento: o caso da
Baía da Ribeira, Angra dos Reis, Rio de Janeiro. Curitiba: Centro de Estudos e Pesquisas Arqueológicas, 1986,
v.5, p.29-33.
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JONES, Siân. Categorias históricas e a práxis da identidade: a interpretação da etnicidade na arqueologia
histórica. In: FUNARI, Pedro Paulo A.; ORSER, Charles.; SCHIANETTO, Solange Nunes de Oliveira. (org).
Identidades, discurso e poder: estudos da arqueologia contemporânea. São Pauo: FAPESP & Anna Blume.
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Antes de iniciar os trabalhos de campo, a análise dos esparsos e pouco
preservados documentos escritos está sendo realizada. Os documentos históricos referem-se a
registros de compras e venda, aferições e licenças, procurações e fianças, processos de
liberdade, inventários, atas e matrículas, registros de casamento, batizado e óbito, entrada e
saída do dinheiro dos órfãos, depoimentos de escravos, comunicados de fugas e autos de
prisão, ofícios de anistia, processos de liberdade para o fundo de emancipação, cartas de
alforrias, classificação dos cônjuges que tiveram filhos nascidos livres, listas de habitantes,
correspondências, telegrama da escravatura e jornais. A conservação referente aos
documentos que abrangem o século XIX e mais especificadamente os documentos que dizem
respeito à presença de negros na região, está em estado lastimável e há pouco interesse por
parte dos órgãos municipais e dos descendentes das famílias que eram detentoras de escravos
que esta documentação seja preservada.
15
As fontes documentais poderiam ser consideradas
em termos de contextos políticos e sociais nos quais foram produzidas, as posições e
interesses dos autores e público, e o papel ativo que os textos podem ter desempenhado na
construção e negociação da identidade cultural.
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A pesquisa arqueológica é importante
porque permite a confrontação dos diversos tipos de documentos e, portanto, a critica
recíproca, visando testar as informações.
Uma metodologia qualitativa que tem sido empregada na pesquisa é a história oral.
Através dos depoimentos com os remanescentes de quilombos e com antigos moradores, tem
sido possível resgatar informações sobre a presença negra na Lapa e levantar detalhes sobre a
construção, utilização e desaparecimento da Fonte do Pote. A História Oral permite o acesso
às evidências materiais do grupo que não são fornecidas nos registros escritos e na cultura
material.
A pesquisa arqueológica na Fonte do Pote encontra-se ainda em fase inicial. Os
resultados preliminares sobre a pesquisa documental mostram que um grande número de
negros habitou a região nos Oitocentos. Compondo o sitio, há uma fonte edificada com pedras
extraídas na região e no ponto mais alto, conforme indicam as tradições orais há uma escada
que dá acesso a parte traseira da fonte e a bica de água. O sitio arqueológico é delimitado por
duas ruas de chão, terminando nas proximidades de três antigas casas-grandes. Foi realizada
uma prospecção superficial e uma coleta assistemática devido à interferência das obras para o
15
JONES, Siân. Categorias históricas e a práxis da identidade: a interpretação da etnicidade na arqueologia
histórica. In: FUNARI, Pedro Paulo A.; ORSER, Charles.; SCHIANETTO, Solange Nunes de Oliveira. (org).
Identidades, discurso e poder: estudos da arqueologia contemporânea. São Paulo: FAPESP & Anna Blume.
16
KERN, Arno Alvarez. A Carta Internacional da Arqueologia e os critérios básicos para a intervenção em sítios
arqueológicos. Porto Alegre: ICOMOS, VIII Reunião Científica 11 a 15 de setembro de 1995.
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sistema de manilhamento. Os fragmentos recolhidos são compostos por cerâmica, faiança,
porcelana e telhas.
O papel central dos objetos materiais no processo de rememoração
Assim como na História, os negros não foram tema de pesquisa arqueológica até
início dos anos 1990. Após esse período, a Arqueologia expandiu seu campo de atuação para
o estudo do outro, dos grupos subalternos, das culturas populares e da resistência. Nos
Estados Unidos, os estudos arqueológicos nas plantations revelaram a cultura material
escrava e através deles pode-se resgatar o que a sociedade produziu e consumiu nas grandes
fazendas norte-americanas. Já no Brasil, os primeiros estudos foram realizados nos quilombos
em Minas Gerais, em Goiás e no Nordeste. Em Palmares, o quilombo mais famoso, as
pesquisas mostraram a coexistência de vários grupos resultando em uma grande diversidade
cultural. Até dois anos atrás, um quilombo situado no Vale do Ribeira era o único tido como
referência no Paraná. 17Ainda que haja, todavia uma invisibilidade da cultura afro-americana,
a produção acadêmica brasileira recente trata uma grande diversidade de assuntos, como o
racismo, as fontes orais para a cultura negra, as revalorizações da presença de fazendas em
certas partes do país, e, por fim e não menos importantes, a resistência escrava e as revoltas.
No Paraná as pesquisas que evidenciam a presença negra foram somadas as
informações recolhidas por Guilherme Tiburtius, que registrou na primeira metade do século
XX uma grande quantidade de locais contendo cerâmica com características africanas nos
arredores de Curitiba. Em outros sítios também foram encontradas cerâmicas,
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algumas até
sobre a superfície de sambaquis e em ilhas.
Febvre alertava sobre a capacidade do historiador em seu ofício. Para ele, a
história fez-se de documentos, quando eles existem, mas se não existem, deverá utilizar o
historiador, de sua engenhosidade para fabricar o seu mel. Assim como há uma materialidade
no texto, ao tomar o artefato como texto, há uma comunicação entre o pesquisador e os dados.
Devemos levar em consideração todas as fontes, e quando coexistem documentos escritos e
documentos materiais, faz-se necessário uma análise cuidadosa para encontrar seus pontos
complementares e de oposição.
17
FUNARI, Pedro Paulo A. La arqueologia em Brasil: política y academia em uma encrucujada. In: POLITS,
Gustavo (org). Arqueologia em América latina hoy. Santa Fé de Bogotá: Biblioteca Banco Popular, 1992.
18
CHMYZ, Igor. Pesquisas de arqueologia histórica no Paraná. São Paulo: Dédalo, Revista do Museu de
Arqueologia e Etnologia – USP. 1985, nº.24, p.171-197.
9
19
Sobre os africanos, indígenas e quilombolas, contudo, nao há apenas fontes
escritas, mas tambem arqueológicas. De fato, os documentos escritos sao produto
de uma elite letrada, às vezes muito distante, tanto física como subjetivamente, dos
homens e mulheres descritos, cujas sociabilidades podiam ser muito diversas
daquelas do escritor. Os vestígios materiais, ao contrário, podem apresentar uma
diversidade muito mais ampla, dados sobre o cotidiano e a vida daqueles que
nunca escreveram ou deixaram qualquer relato escrito.
Ao rever seu ofício, os arqueólogos têm refletido sobre seu papel social, suas
responsabilidades e seus compromissos. Por que e para quem construímos passados?
Enquanto formadores de opiniões e reconstrutores de identidades, o que os grupos sociais irão
utilizar do conhecimento construído? Qual o papel político do arqueólogo ao definir que sítios
serão pesquisados? Em que medida nossos engajamentos sociais e políticos influenciam na
concepção da teoria arqueológica? Esses questionamentos ainda novos em nosso meio
acadêmico, contribuem para que o compromisso do pesquisador seja estabelecido com a
sociedade tornando-a mais justa e igualitária. Exemplos de parcerias estabelecidas com a
comunidade local nas pesquisas arqueológicas, principalmente as ações de educação
patrimonial juntamente com a atuação dos membros locais que moram ou atuam nas
circunvizinhanças dos sítios, fazem com que as pessoas reconheçam seu patrimônio cultural.
A arqueologia então, passa a ser memória, uma memória material com objetos, sendo estes,
ligados à lembrança.
A cultura material refere-se a todo segmento do universo físico socialmente
apropriado. Os objetos são 20fontes excepcionais para se entender a sociedade que os produziu
ou reproduziu (...) pode-se dizer que documento é um suporte de informação. No entanto,
qualquer objeto pode funcionar como documento e mesmo o documento de nascença pode
fornecer informações jamais previstas em sua programação.
Os artefatos possuem uma história, há um processo de criação, consumo e
circulação. O arqueólogo dá sentido ao objeto devido ao tempo, o significado social é
atribuído e possui variações, pois diferentes pessoas dão uma funcionalidade ao objeto.
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A
temporalidade do objeto pode também contribuir para o nosso senso de identidade, evocando
o passado de nossa própria sociedade. Assim, um monumento pode servir como foco para
19
FUNARI, Pedro Paulo A. E CARVALHO, Aline Vieira. Palmares, ontem e hoje. Coleçao Descobrindo o
Brasil. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed. 2005.
20
MENEZES, Ulpiano T. Bezerra. Memória e cultura material: documentos pessoais no espaço público.
Reflexões que surgiram como comentários às exposições de Maria Helena M. M. Garcia e Contardo Calligaris,
na sessão reservada ao tema “Documentos pessoais no espaço público” no Seminário Internacional sobre
Arquivos Pessoais, Rio / São Paulo, CPDOC/ FGV-IEB/USP, 1997.
21
MILLER. Daniel. Material culture and mass consumption. Oxford/ New York: Basil Blackweel, 1987.
Capitulo 7 Artefatos e seus contextos.
10
identificação da população com o Estado. A partir da análise dos fragmentos da cultura
material, é possível reconstituir hábitos alimentares, técnicas de decoração da cerâmica,
filiações culturais, enfim, as esferas da vida cotidiana, podendo ser empregada também nos
estudos dos conflitos e das lutas sociais aliada aos dados escritos na proposta de uma
interpretação que atenda uma demanda de documentos à espera de uma análise.
Os museus e as imagens nos livros nos mostram que a cultura material foi por
muito tempo utilizada para privilegiar as classes dominantes, num universo que é tanto de
palavras quanto de coisas. Ao trabalhar em conjunto, arqueólogos e comunidade
proporcionam uma melhor compreensão do passado e do mundo à sociedade.
A reconstituição do passado através da cultura material na cidade da Lapa, pode
reverter a situação exposta anteriormente onde o que foi escolhido para ser perenizado reflete
uma história homogênea. Ao questionar os espaços representativos da memória social
coletiva, deve-se avaliar o que foi eleito para ser perpetuado e o que foi escolhido para ser
silenciado. Houve um encobrimento da história dos negros na Lapa, o silêncio que habitou as
ruínas da Fonte do Pote transcendeu sua materialidade quando o barulho das máquinas
refletiu a memória negra, possibilitando assim, a resignificação da Fonte do Pote pela
comunidade afro-descendente.
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