AQUILES CORTES GUIMARÃES

Transcrição

AQUILES CORTES GUIMARÃES
JOSÉ MARIA DOS SANTOS
CONFRONTO ENTRE
O SEGUNDO REINADO E
A REPÚBLICA VELHA
A QUESTÃO MILITAR
CENTRO DE DOCUMENTAÇÃO DO
PENSAMENTO BRASILEIRO – CDPB
2011
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SUMÁRIO
Biobibliografia
O principal legado da obra de José Maria dos Santos
TEXTO DE JOSÉ MARIA DOS SANTOS
A POLÍTICA GERAL DO BRASIL (Primeira Parte)
Introdução
A OBRA DO SEGUNDO REINADO
Capítulo I – O Segundo Reinado em confronto com os períodos
de Pedro I e da Regência
Capítulo II – A maioridade e a política de conciliação
Capítulo III – A Lei dos Círculos
Capítulo IV – A situação geral no início da guerra do Paraguai
Capítulo V – As reações da batalha de Curupaiti na política interna
Capítulo VI – A crise ministerial de 1868
Capítulo VII – A Lei do Ventre Livre
Capítulo VIII – A Abolição
Capítulo X – O fim do Segundo Reinado
A QUESTÃOMILITAR
Nota Introdutória – Antonio Paim
TEXTO DE JOSÉ MARIA DOS SANTOS
Capítulo II – Pedra de tropeço
Capítulo III – A interferência Hispano-Americana
Capítulo IV – A héjira do caudilhismo
Texto sobre Quintino Bocaiuva
(*) Nota do editor: o capítulo IX consiste numa “visão do Brasil colonial”, distante
do objeto da transcrição.
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BIOBIBLIOGRAFIA
José Maria dos Santos (1877/1954) era natural da
Paraíba, tendo nascido em sua capital, João Pessoa. Adquiriu
sua formação acadêmica na Escola Militar do Rio de Janeiro,
considerado estabelecimento de ensino de alto nível, com a
singularidade de que nem todos os seus alunos seguiam a
carreira militar. Este seria o caso do nosso autor.
José Maria dos Santos preferiu a carreira de jornalismo,
na qual se destacaria como articulista renomado. Graças a isto,
viria a exercer a direção de import6antes periódicos em São
Paulo. Na capital paulista, seria, sucessivamente, diretor
destas publicações diárias: Jornal da Tarde, Tribuna
Paulista e Jornal do Comércio. Em que pese haja ascendido a
tais postos de direção nos mencionados órgãos paulistas,
manteve assídua colaboração em jornais do Rio de Janeiro.
Participou da Conferência de Paz que teve lugar em
Versalhes, no ano de 1919, evento que se tornaria marco
histórico, tendo em vista que estabeleceria as regras da
convivência européia posteriores à Primeira Guerra Mundial.
Durante algum tempo, residiu na França, onde tornar se-ia correspondente do jornal carioca Folha da Manhã e
colaborador de Le Figaro, um dos principais jornais da capital
francesa.
José Maria dos Santos ocupa lugar de primeiro plano na
historiografia brasileira, entre os autores que, no século XIX,
deram continuidade ao trabalho pioneiro dos fundadores. Seu
principal livro seria denominado de Política geral do Brasil
(1930). Figura na coleção que deu continuidade à Brasiliana,
3
na Editora Itatiaia (Belo Horizonte), chamada de Reconquista
do Brasil.
Ao Partido Republicano Paulista dedicou estes livros:
Os republicanos paulistas e a Abolição (1942) e Bernardino
de Campos e o Partido Republicano Paulista – Subsídios
para a História da República, publicado postumamente, em
1960.
É autor também desta obra de teoria política: Os
Fundamentos Reais da Liberdade, edição da Athena Editora
(São Paulo, 1942).
4
O PRINCIPAL LEGADO DA OBRA
DE JOSÉ MARIA DOS SANTOS
José Maria dos Santos ocupa um lugar especial na
historiografia brasileira porquanto não apenas se destaca como
um dos principais continuadores da obra dos fundadores como
o fez de forma original. Essa originalidade prende -se ao fato
de que haja efetivado o confronto da experiência liberal do
Segundo Reinado com a prática autoritária da República
Velha. Esse confronto encontra-se na obra fundamental que
nos legou: Política geral do Brasil.
Com o seu aparecimento data de 1930, não podia prever que os
traços que então destaca preservariam inteira atualidade ao
longo da experiência republicana subseqüente. Vejamos,
brevemente, como apresenta a questão.
Parte da tese de que as desordens morais e econômicas que
então assolavam o país começam exatamente com o regime
republicano. Veja-se qual o traço essencial que destaca: a seu
ver o que a nossa República tem de real e objetivo é o seu
sentido autoritário. e prossegue: o que tivemos com a
implantação da República não foi uma simples alteração na
forma de governo, de monárquico para republicano. Ocorreu
de fato “a substituição de um regime de livre consulta, na qual
o governo, dependente dos votos do parlamento, não podia
entrar em conflito permanente com a opinião pública, por um
outro regime intransigente e autoritário, todo baseado na
vontade exclusiva do Chefe do Estado.”
5
Com vistas a provar a sua tese, o autor procede a uma
caracterização detalhada do Segundo Reinado, confrontando -o
com os ciclos anteriores, para concluir que o Brasil em 1889
“era uma grande monarquia liberal representativa deforma
parlamentar, organizada no gênero dos Estados Modernos que
o historiador inglês H. G. Wells chama de repúblicas
coroadas”, tal qual existiam na Inglaterra, na Bélgica e nas
monarquias escandinavas. Segue-se a análise do que denomina
de “deformação republicana”.
A conclusão da obra corresponde a uma erudita síntese da
evolução do Ocidente, a fim de tornar patente que o governo
representativo de forma parlamentar equivale a um ponto alto
nesse processo evolutivo. Estão criticadas, de um ponto de
vista liberal, as alternativas propostas pelo positivismo e pelo
marxismo, que tanto sucesso, dizemos nós, vieram a alcançar
nos círculos republicanos brasileiros. É de assinalar-se a
perspicácia com que o autor aproxima o nacionalismo do
comunismo. Anteviu também que a ascensão do autoritarismo
e do totalitarismo, no primeiro pós-guerra, nada mais
significavam que surtos anti-liberais e anti-democráticos.
O espírito de sua análise está todo contido nesta afirmativa::
“A idéia de que a guerra, como terrível e ancestral reguladora
das relações humanas, viera sacudir o mundo do seu pobre
sonho de liberdade, para novamente trazê-lo à justa e
inevitável compreensão da força como fundamento único
possível da ordem social, não passou de uma transitória
perturbação do período militar. O exato sentido da fase atual
de evolução dos povos civilizados não pode ser descoberto
nem na Rússia da GPU nem na Itália dos “fasci de
combattimento”. É nas nações de alta e nobre consciência
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coletiva que, da imensa voragem da guerra ou das angústias da
neutralidade, conseguiram salvar intactos os seus direitos e as
suas liberdades, para segura e corajosamente enfrentar os
grandes problemas econômicos que a tremenda convulsão
devia abrir ao encerrar-se.”
Decorridos oitenta anos da publicação de Política geral do
Brasil, pelas breves indicações precedentes evidencia-se sua
enorme atualidade. Em boa hora a Editora Itatiaia, sediada em
Belo Horizonte, a incluiu na Coleção Reconquista do Brasil
(2ª série, volume 153), colocando-a, assim, no lugar que de
direito lhe cabe na Brasiliana.
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TEXTO DE JOSÉ MARIA DOS SANTOS
A POLÍTICA GERAL DO BRASIL
(Primeira Parte)
Introdução
A República de 15 de novembro, com os seus
antecedentes de propaganda de idéias subitamente rematada
por uma rebelião militar vitoriosa, teve a estranha virtude de
alterar por completo o senso político dos brasileiros. A
corrente liberal, que fora a característica predominante da
nossa evolução histórica desde as reivindicações municipais da
época colonial, e que, depois de atravessar atormentada e
revolta o primeiro reinado e a Regência, enchera com o seu
fluxo bem ordenado todo o período de Pedro II, estacou
violentada e surpresa no acidente de 1889. O Governo
Provisório, na sua feição de vontade pessoal predominante no
meio de conselheiros irresponsáveis e submissos, deu-nos
imediatamente uma nova e para nós desconhecida figura da
liberdade – a liberdade republicana da Bolívia de Melgarejo ou
do Equador de Garcia Moreno, liberdade simples e fácil, que
se objetiva apenas nas frases de uma proclamação ou nos
compassos de um hino, mas também só deixa de ser cômi ca
quando se faz sinistra...
A um povo como o nosso, longamente habituado a
identificar o poder pessoal como sendo a própria tirania, e que,
tenazmente e sob todas as formas, combatera esse poder em
Pedro I e no regente Feijó, seu próprio território e, mes mo
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para além das suas fronteiras, nos ditadores Oribe, Rosas ou
Solano Lopez, aquele forte aparelho do governo provisório não
podia deixar de parecer estranho e profundamente suspeito.
Dado porém o caráter de fulminante ocupação militar da
grande surpresa de 15 de Novembro, nenhum protesto eficaz
ou simples discussão foi imediatamente possível.
Na América pós-colonial, onde a ficção da investidura
divina chegou tarde demais para ter crédito, nunca pode o
despotismo dispensar os atavios da liberdade. OP esforço
principal e constante dos publicistas nesta parte do mundo,
tem quase exclusivamente consistido em demonstrar, entre
duas violências, quanto o poder pessoal absoluto se coaduna e
identifica com a mais perfeita democracia, desde que,
transmissível a períodos certos, não possa fundar-se em
direitos hereditários. Pouco importa que durante um desses
períodos ou no sucessivo decorrer de todos eles, venha a
sociedade a sofrer da ignorância, da maldade ou mesmo da
parvoice dos seus governantes. O essencial é que todo o filho
do Novo Mundo possa julgar-se legalmente habilitado a vir um
dia a tiranizar também os seus concidadãos. Neste igualitário
princípio é que se concretizam e resumem todos os
fundamentos da liberdade americana...
O Brasil, pela tradicional evolução das suas instituições
políticas anteriores, fora o único país que evitara aquela
compreensão especial da democracia. As palavras tinham para
nós outros uma significação diversa. Mas, a partir de 1889, na
imprensa, nas assembléias e, posteriormente, nas cátedras
universitárias, como elemento de consolidação doutrinária, as
expressões tão simples e claras que até então soubéramos
empregar no trato do direito público, foram sendo substituídas
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por um calão bárbaro, extraído do “Federalista” de Madison e
Jay, e das ingênuas proclamações dos libertadores hispano americanos... A liberdade assumiu também aqui o aspecto
local do continente. Fizemo-nos “presidencialistas” por nossa
vez, e o sistema do Governo Provisório, todo baseado no poder
pessoal do chefe do Estado, entrou para a constituição da
República e passou a ser a nossa forma definitiva de governo.
Pode-se dizer que, ao abalo dessa escandalosa inversão
histórica e doutrinária, a corrente liberal condutora da nossa
existência política anterior, iludida e desorientada, refluiu toda
para o passado. Tendo de aceitar nos fins do século XIX, como
a imagem fiel e mais perfeita da democracia moderna, um
governo praticamente moldado no velho Estado-Leviathan de
Thomaz Hobbes, nós perdemos imediatamente o senso exato
das coisas e o próprio sentido das palavras. A vida social e
econômica do Brasil assentou toda sobre um equívoco e,
partindo desse erro inicial, o nosso povo, como entidade
política, passou a caracterizar-se sobretudo pela mais profunda
e absoluta desorientação mental. Seja pelas decisões dos seus
governantes, seja pelas reações que estas produzam sobre os
sentimentos e os interesses coletivos, os brasileiros são sempre
levados a situações diametralmente opostas àquelas que
faziam, de início, o objeto de seus cuidados. Assim é em
política geral, em economia, em finanças ou em qualquer dos
demais ramos da nossa atividade coletiva. Tudo falha,
corrompe-se ou se desvirtua, podendo-se neste país contar
apenas como certo o ridículo, que natural e constantemente
decorre de um tal estado de coisas.
Há quem afirme, com a mais notável segurança, que
essas deploráveis condições são a conseqüência inevitável da
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ignorância e do atraso do nosso povo, e mesmo da sua própria
índole, que – ao que parece – é má, devido à intervenção de
certos elementos raciais ou étnicos, irremediavelmente
pejorativos. Outros, de conhecimentos não menos profundos,
procuram para os nossos desastres nacionais, já velhos de mais
de trinta anos, fatores recentes de ordem externa, como a
guerra de 1914, com as suas conseqüências sociais e
econômicas sobre certos países da Europa. Não obstante, se
reduzirmos as asas da nossa imaginação aos salutares limites
do senso comum, para prestarmos atenção apenas aos fatos
reais da nossa história política, facilmente nos aperceberemos
de que as desordens morais e econômicas de que hoje
sofremos, começaram exatamente com o regime da
constituição de 24 de fevereiro, constituição essa na qual se
fixaram em definitivo as disposições preliminares e a
orientação geral do Governo Provisório.
Ora, se as constituições políticas têm qualquer ação
sobre a vida dos povos que são chamadas a reger, e se a
observação honesta dos fatos serve de alguma cousa na
formação de um conceito histórico qualquer, força é ter como
ponto de partida da nossa situação atual, a lei pela qual
trocamos as nossas instituições anteriores.
Entretanto, a desordem mental a que atrás nos
referimos, tornou-se tão profunda e generalizada que, em face
de todas as nossas infelicidades nacionais, a maior
preocupação das oposições organizadas em partido, ainda hoje
se resume em procurar o melhor meio de manter e reforçar
aquela mesma constituição. Os libertadores do Rio Grande do
Sul querem-na com algumas alterações superficiais e de pura
forma, enquanto os democráticos de São Paulo a desejam
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retrocedida à pureza do seu texto primitivo. Todos porém,
unidos na idéia principal da sua conservação – no que ela tem
de real e objetivo que é o seu sentido autoritário –
evidentemente se acham de acordo com os círculos
governamentais que são, por ofício, os seus defensores
obrigatórios. Entre as três correntes, não existe diferença
essencial de propósitos. Existem simplesmente os pontos de
uma eventual conciliação, sobre uma mesma ordem de
interesses... É apenas um tríplice concurso, donde nenhuma
modificação séria pode surgir aos negócios deste país.
Os brasileiros precisam afinal se convencer de que a
marca essencial do acontecimento de 15 de Novembro, a
alteração jurídica que no futuro lhe deu sentido real e
significação prática, não foi a mudança da designação verbal
de monarquia para república, nem a troca de um imperador
vitalício e hereditário por um presidente mais ou menos eleito
para um certo período. Foi, sim, a substituição de um regime
de livre consulta, no qual o governo, dependente dos votos do
parlamento, não podia entrar em conflito permanente com a
opinião pública, por outro regime intransigente e autoritário,
todo baseado na vontade exclusiva do chefe do Estado. É isso,
no fundo e apesar de todos os disfarces mais ou menos
teóricos, o que unicamente estabelece e consagra a
constituição de 24 de fevereiro, não passando as suas excelsas
declarações de direitos, de leves e fulgurantes roupagens,
atiradas imprudentemente e sem muito jeito sobre um
grosseiro arcabouço de ferro.
Considerada a nossa revolução republicana sob esse
aspecto, que é o seu aspecto verdadeiro e exato, nós nunca nos
afastamos tanto da república, como no momento em que a
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proclamamos e constituímos. Este é o fato significativo e
essencial, que devemos fixar bem e ter como base de todas as
nossas cogitações, se realmente temos a vontade de encontrar
remédio aos males atuais da nossa pátria.
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PRIMEIRA PARTE
A OBRA DO SEGUNDO REINADO
CAPITULO I
O SEGUNDO REINADO EM CONFRONTO COM OS
PERÍODOS DE PEDRO I E DA REGÊNCIA
Quem quer conhecer, em toda a sua extensão, os
resultados do chamado sistema republicano presidencial no
Brasil, deve, antes de tudo, indagar das condições gerais deste
país em 1889.
O Brasil, nas vésperas da república, era realmente e em
todos os seus aspectos políticos, uma grande monarquia liberal
representativa de forma parlamentar, organizada no gênero dos
estados modernos que o historiador inglês H. G. Wells chama
de “repúblicas coroadas”(1), como a Inglaterra e cada um dos
países de governo próprio do império britânico, a Bélgica, a
Holanda e as monarquias escandinavas. Nós éramos
governados por um presidente do conselho, escolhido pelo
parlamento, pois, apesar da ativa interferência que a coroa se
reservava na formação dos ministérios, nenhum governo novo
ousaria apresentar-se aos corpos legislativos, sem ter a prévia
certeza da maioria dos votos destes. Pelo sistema das
negociações preliminares, entabuladas entre os encarregados
da formação de ministérios e os diversos grupos em que se
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dividia a representação nacional, era de fato o parlamento
quem indicava os programas governamentais, A essa regra
geral e obrigatória, só podiam fugir os gabinetes nomeados nos
momentos de grandes transições políticas, quando o Ch efe de
Estado, exercendo as suas funções legais de poder moderador,
era levado a dissolver a câmara dos deputados, para uma
consulta ampla e profunda à opinião do país por meio de novas
eleições gerais.
Sob esse regime, conquistado através das lutas
sangrentas e constantes, que mantivemos contra as pretensões
do poder pessoal durante todo o primeiro reinado e o
interregno da Regência, nós chegáramos a ser não somente o
primeiro e o “leader‟ incontestável dos povos sul-americanos,
como mesmo, sob certos aspectos particulares, a mais séria e
bem constituída de todas as nações do Novo Mundo. Havíamos
firmado definitivamente a nossa paz interna; estabelecido
vitoriosamente, pela diplomacia ou pelas armas, a nossa
situação internacional; formado o nosso direito privado sobre
bases de uma tão grande elevação moral, que já servia de
modelo à organização civil de outros Estados, e colocado as
finanças públicas em um tal pé de solidez e seriedade, que o
nosso país, com os seus doze milhões de habitantes e nos
limites dos seus recursos econômicos da época, gozava de um
crédito que honraria qualquer dos maiores povos da terra.
Se procurarmos saber qual foi a característica principal
e constante do período que realizou todo esse esplêndido
trabalho
de
organização
nacional,
facilmente
nos
aperceberemos de que essa característica foi a liberdade.
Efetivamente, de um extremo ao outro do reinado de Pedro II,
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na direção dos negócios públicos predominou sempre a
opinião coletiva.
Essa linha geral daquela grande época da nossa história
logo ressalta, desde que se estabeleça uma comparação,
mesmo abreviada, com os dezoito anos que a antecederam até
a Independência. Desde 1822 até 1840, o poder pessoal,
objetivado na faculdade assumida pelo Chefe de Estado de
escolher os ministérios de sua vontade exclusiva, atirando-os
em luta permanente contra os corpos legislativos, foi o eixo
em torno do qual girou tumultuariamente toda a nossa
atormentada existência política. Não foi outra senão a
preocupação de salvar o princípio desse poder que no dia 12
de novembro de 1823 levou Pedro I a dissolver violentamente
a primeira assembléia constituinte do Império. Os incidentes
de caráter nacionalista que se produziram no Rio de Janeiro, a
partir da noite de 5 daquele mês, quando dois oficiais de
artilharia, de origem portuguesa, espancaram o jornalista
David Pamplona Corte-Real, no Largo da Carioca, e que
depois se prolongaram até a dissolução do parlamento, foram
apenas a gota d´água que fez transbordar o vaso. A verdadeira
luta entre a coroa e o parlamento, abriu-se no dia 3 de maio,
quando o imperador inaugurando solenemente os trabalhos
legislativos, julgou oportuno ministrar alguns conselhos sobre
a
orientação
constitucional,
terminados
pela
frase
característica: “Espero que a constituição que f areis mereça a
minha imperial aceitação...”(2). Apenas Sua Majestade tinha se retirado, levantam-se entre os deputados os primeiros
protestos. O imperador não tinha regras a dar à Constituinte,
nem podia estabelecer condições de sua aceitação ao que ela
votasse, porque a constituição ia ser um ato soberano da
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vontade nacional, legitimamente expressada no parlamento. Os
irmãos Andrada fazem ouvir palavras de moderação. “A
nação”, exclama Antônio Carlos, “elegeu um imperador
constitucional, deu-lhe o poder executivo e o declarou chefe
hereditário. Nisto não podemos nós bulir”(3). José Bonifácio
apóia com veemência esse ponto de vista e adota-se afinal, na
resposta à fala do trono, o período do voto de graças, pelo qual
uma maioria de quarenta deputados contra vinte, dava a sua
confiança ao imperador e ao ministério, sem atender naquelas
palavras; Mas, com o ardor dos trabalhadores constituintes,
surge a questão de saber como seria promulgada a constituição
do Império. O trono esperava como seu o direito de prom ulgála; mas na constituinte levantou-se imediatamente a doutrina
da soberania nacional intransmissível. A nação livre se
organizava. O imperador só tinha que jurar a constituição,
dentro da qual encontraria estabelecidas e prescritas todas as
suas atribuições de chefe funcional do Estado.
Era o clássico “sine qua non” das altivas Cortes
Aragonesas do século XII, que os pares e comuns da
Inglaterra, após haverem destituído o rei Jayme II, retomaram
em face de Guilherme de Orange e que ficou sendo a base
condicional da coroação dos soberanos ingleses. A luta entre
Pedro I e a nação caracterizou-se claramente, e quanto
rebentam os incidentes do mês de novembro a que atrás nos
referimos, foram os próprios Andradas, Antônio Carlos e
Martim Francisco, os que com maior veemência trouxeram
para o seio do parlamento os ecos do tumulto popular das ruas.
O imperador manda avançar as tropas de São Cristóvão e o
brigadeiro Morais, de espada à cinta e retinindo as esporas,
penetra no recinto da Câmara com o decreto de dissolução,
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Mas entre Pedro I e o país a sorte estava lançada. Depois de
oito anos de guerra civil ininterrupta, durante os quais não
foram poupados os serviços dos pelotões de fuzilamento e do
carrasco, o primeiro imperador partia fugitivo a bordo de uma
fragata inglesa, deixando afinal os brasileiros senhores dos
seus destinos.
Quando, no dia 7 de abril de 1831, Pedro I entregou o
ato da sua abdicação ao major Miguel de Frias, para que este o
levasse aos revolucionários do Campo de Sant‟Anna,
tacitamente ficou provado que o Brasil jamais poderia viver
tranqüilamente sob qualquer governo de forma autoritária e
pessoal. O mês anterior se assinalara por uma séria de marchas
e contra-marchas entre os dois princípios extremos do
autoritarismo e da liberdade política concretizados no processo
de escolha dos ministérios. Pedro I, insistindo na afirmação da
sua qualidade de imperador constitucional, sempre que a
ocasião se lhe oferecia, achava, entretanto, que a nomeação
dos ministros era um ato do poder majestático, no qual não
cabia a interferência do parlamento. A constituição jurada a 25
de março de 1824 assim o entendia. Mas essa constituição fora
uma outorga sua, que não passara sem protestos
veementíssimos, como aquele grande e extraordinário voto de
frei Joaquim do Amor Divino Caneca, distribuído impresso,
por ocasião do juramento daquela carta aos habitantes de
Pernambuco. O povo e os seus representantes jamais
aceitavam a doutrina imperial sobre a escolha e a permanência
dos ministérios. A vida dos sucessivos governos foi, por isso,
uma luta permanente como a opinião pública e o parlamento,
até que em 20 de3 março de 1831, em face de uma situação
francamente revolucionária, o chefe do Estado viu-se levado a
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aceitar a demissão do ministério do Visconde de Alcântara,
para designar um outro no qual, com Bernardo José da Gama,
entravam os liberais Carneiro de Campos e Holanda
Cavalcanti. Mas, como poderia conter a exaltação popular um
governo que dela nascia? No dia 25, aniversário do juramento
da constituição, o imperador é ostensivamente mal recebido
numa numerosa manifestação aos gritos de “Viva Pedro II!...”
Os ministros que nesse momento se achavam ao lado do
monarca, limitam-se a convocar a assembléia para uma sessão
extraordinária, o que só podia vir dar maior prestígio ao
movimento popular, e no dia 5 de abril, Pedro I, abandonando
toda prudência, demite o ministério liberal, para organizar um
governo nitidamente reacionário, onde o Visconde de
Alcântara reaparece ao lado do Marquês de Inhambupe. A
agitação popular chega então ao seu cúmulo. No dia seguinte o
povo amotina-se no Campo de Sant”Anna e manda dizer ao
imperador, pelos seus juízes de paz eleitos, que era necessário
despedir aquele gabinete de áulicos, para imediatamente
reintegrar no poder o ministério anterior. O imperador
peremptoriamente recusa, proferindo então o dilema que
constituíra toda a orientação do seu reinado: “Tudo farei para
o povo; mas nada pelo povo!”. No dia 7, a operação militar de
12 de novembro de 823 ia recomeçar. Mas, desta vez , ela
desenvolvia-se em sentido inverso. As tropas avançariam da
cidade para São Cristóvão, cobrindo a marcha do povo
amotinado...
O governo da Regência, que se seguiu à abdicação
forçada de Pedro I, não teve a elevação necessária para
encarnar o espírito real e profundo do movimento de 7 de
abril. A bem dizer, a Regência tomou da revolução apenas o
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seu lado estreitamente nacionalista, sem conseguir o imperador
de origem estrangeira e afastados os elementos portugueses da
sua confiança imediata, os diretores da nova situação julgaram
que o principal estava feito. A revolução havia posto o
problema político nos seus termos exatos e insofismáveis: - os
ministros, isto é, o governo deve depender sempre da
confiança pública, expressada nos votos do parlamento.
Entretanto, os regentes e os seus ministros, sem
compreenderem que a agitação popular donde surgiram carecia
de um certo tempo para desaparecer completamente, foram
tomados de pânico ante os motins subseqüentes, e rapidamente
tenderam para a reação sistemática. O senado vitalício, ainda
nomeado por Pedro I, constitui-se em barreira contra a reforma
constitucional concebida pela câmara dos deputados. As
discussões eternizam-se entre as duas casas do parlamento, e
quando, em 1834, é afinal votado o “Ato Adicional” pelas duas
câmaras reunidas em constituinte, a única alteração
constitucional que integralmente se salvou da redução
sistemática a que todas as demais foram submetidas, foi a
supressão do Conselho de Estado.
Ora, o desaparecimento do Conselho de Estado, sem a
concomitante extinção do poder moderador, só podia servir
para tornar mais absoluto o exercício pessoal do poder
executivo, e quando, no ano seguinte, o padre Diogo Feijó
recebeu a alta investidura de regime único, o problema político
que continuara insolúvel, reassumiu nitidamente o seu caráter
específico. É na sessão legislativa de 1837 que se tem talvez o
espetáculo mais impressionante e sugestivo desse indomável
esforço do sentimento liberal contra o princípio autoritário.
Logo na abertura, no dia 3 de maio, a resposta à fala do trono
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apresenta-se clara e decisiva. Ela reconhece que a cooperação
do parlamento com o poder executivo é a base de uma situação
normal no regime representativo. “Mas esta cooperação
(textual), a câmara dos deputados faltaria aos seus mais
sagrados deveres se a prestasse a uma administração que não
goza da confiança nacional”. O deputado Visconde de Abaeté,
que defendia o ponto de vista governamental, levanta-se contra
aquelas expressões. “Fundando-se nas atribuições dos
poder5es
políticos,
declarados
independentes
pela
constituição, ele entendia que à coroa pertencia a exclusiva e
livre nomeação dos ministros, e que a doutrina apregoada pela
comissão do voto de graças (comissão que redigia na câmara
do império a resposta à fala do trono) tornava a câmara tão
onipotente, que os ministros não passariam de seus
pupilos”(4). Apesar de defendido assim por um dos mais
eloqüentes oradores daquele tempo, o ministério não pôde
resistir à maioria da câmara. No dia 16 daquele mês, o regente
Feijó, contra a sua vontade e todos os seus esforços, via -se na
contingência de assinar a demissão do ministério. Entretanto o
regente fora vencido apenas pela repugnância dos ministros em
voltarem perante a câmara. Ele achava que o gabinete, desde
que tinha a sua confiança pessoal, podia muito bem manter-se,
sem embargo da atitude hostil dos deputados, e, ao designar o
governo que se seguiu, ele o fez por si, sem querer contar com
o modo pelo qual o parlamento o recebesse.
Era uma personalidade bem curiosa a desse padre
regente do império... Amante da ordem, ele chegava a
confundi-la com a sua permanência no poder, dando
facilmente em conspirador quanto o apeavam. Sacerdote, ele
prezava tanto as suas funções que, para obter a dignidade
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episcopal, não vacilava em comprometer essa pretensão as
relações do Brasil com a Santa Sé, ao mesmo tempo que se
insurgia contra a regra da igreja, para o fim pessoal de poder
casar-se. O seu caráter, misto de violência brutal e felina
sinuosidade, manifesta-se todo na maneira pela qual organiza e
joga contra o parlamento aquele gabinete de 16 de maio. O
homem que ele escolhe para a empreitada, Manoel Alves
Branco, pretende, aplainar as dificuldades que o esperam por
meio de um prévio entendimento com a maioria. Mas Feijó se
opõe, concordando entretanto, em que o novo ministro declare
só aceitar o governo naquelas condições, forçado por motivos
de gratidão particular a sua pessoa. Essa declaração, aliada à
circunstância d ser Alves Branco um espírito sabidamente
liberal, podia ser tomada como esperança de uma atitude
governamental menos intransigente. O padre Feijó logo no dia
seguinte, destruiu, porém, essas ilusões. “Desejoso de dar uma
lição aos deputados, ele faz publicar no “Correio Oficial” a
notícia da nomeação dos novos ministros, acompanhada de um
artigo no qual se dizia que a perseverar a Câmara nas suas
veleidades de influir no governo, o regente a dissolveria, pois
o poder executivo era independente do legislativo e não podia
sujeitar-se a maiorias de câmaras, que eram várias e
caprichosas...”(5).
Essa estéril e especiosa discussão de atribuições
constitucionais, chegou a assumir aspectos de um cômico
irresistível. Nas sessões de 1 e 2 de julho, o almirante Tristão
Pio dos Santos, Ministro da Marinha do novo gabinete,
convidado por Bernardo de Vasconcelos a explicar à câmara a
necessidade de certos recursos militares que reclamava no seu
projeto de orçamento, entende de responder apenas o seguinte:
22
“Penso que o poder executivo é poder separado, delegado pela
nação, e não tem, pois, obrigação de apresentar ao corpo
legislativo senão o resultado das suas medidas.” Era sem
dúvida levar muito longe o princípio da independência dos
poderes, Bernardo de Vasconcelos responde com irônica
vivacidade, terminando pro declarar que não lhe pareciam
muito sérias nem aquela situação nem a própria pessoa do
ministro. Então Pio dos Santos, exaltado, lança estas palavras
realmente pitorescas: “O que se pretende é que o ministro,
entrando por aquela porta diga – Louvado seja Nosso Senhor
Jesus Cristo1! Sua benção meus senhores.(6) É isto o que se
pretende. Peço forças, e dizem-me que o governo não merece
confiança. E por que? Porque não venho aqui tomar a benção e
dizer – meus senhores não querem mais nada?” Compreendese a imensa gargalhada que acolheu este pequeno modelo de
eloqüência parlamentar...
Com debates desta natureza, nem os orçamentos
conseguiam ser votados, e assim se mantiveram, com pequenas
e rápidas variantes, as relações do governo com o parlamento,
até que, no dia 22 de junho de 1840, os deputados se amotinam
na câmara e conduzidos por Antônio Carlos, partem
incorporados para o edifício do senado. O povo das ruas, ao
vê-los acompanhados dos assistentes das galerias, que também
seguem aclamando-os, incorpora-se ao tropel, à medida que
vai passando. O senado é invadido e, no recinto das sessões,
confundidos senadores e deputados naquela vaga de exaltação,
a maioridade de Pedro II é revolucionariamente proclamada,
para que o jovem imperador assuma desde logo as suas
funções de chefe supremo do Estado.
23
A Regência, até aquele último momento, tenazmente
insistira pelo predomínio do poder pessoal nas decisões do
governo. Mas o nosso país, durante os nove anos da sua
permanência, não teve um só dia de tranqüilidade. As finanças
públicas foram apenas uma desoladora continuação da
incurável penúria orçamentária do primeiro reinado, e a guerra
civil foi o regulador de fato de todas as nossas relações
internas. O Rio de Janeiro, com a imprensa perseguida e as
prisões cheias, viveu sob o terror de motins sucessivos, e, nas
províncias, “as revoltas destacavam-se em datas vinculadas em
série: no Ceará (1831-1832), em Pernambuco (1832-1835), no
Pará (1835-1837), na Bahia (1837-1838), no Maranhão (18381841) e abrangendo-as, somando-as, a longa agitação no Rio
Grande (1835-1845)”(7).
A indomável reação do povo brasileiro contra as
pretensões do poder pessoa, durante a Regência, foi tão
grande, que chegou a extravasar cinco anos para além daquele
atormentado período!...
NOTAS
(1) Crowned republic. Vide A Short History of the World. cap. LXV, pág.
246, Ed. Tauchnitz, Leipzig, 1923. Aliás, a expressão república coroada,
já fora empregada muito antes de Wells, especialmente em relação ao
Brasil, por Victor Hugo (démocracie couronnée) e William Gladstone
(crowned democracy), em artigos na imprensa de Paris e de Londres,
quando da segunda visita de Pedro II à Europa. O presidente Rojas Paul,
da Venezuela, ao ter notícia da queda da monarquia brasileira, teve, por
sua vez, estas significativas palavras, citadas por Oliveira Lima, no
frontspício do seu livro “O Império Brasileiro”. Se há acabado la unica
republica que existia en America – el Império del Brasil...
24
(2) Fala do trono lida por Pedro I perante a constituinte, em 3 de maio de
1823.
(3) Anais da Câmara dos Deputados – 1823.
(4) PEREIRA DA SILVA, - História do Brasil de 1831 a 1840. Pág. 226.
Garnier Edit. Rio de Janeiro.
(5) PEREIRA DA SILVA, op. cit., págs. 219 a 230.
(6) Fórmula usual de saudação dos escravos aos senhores.
(7) EUCLIDES DA CUNHA – À margem da História, pág. 320 – Porto,
Editora Chardron, 1913.
CAPITULO II
A MAIORIDADE E A POLÍTICA
DE CONCILIAÇÃO
Nós somos de opinião que a maioridade de Pedro II,
proclamada revolucionariamente em 1840, foi um dos fatos
mais importantes e decisivos de toda a nossa história política.
A circunstância de havermos investido nas funções de chefe
supremo do Estado a um adolescente de quinze anos, que pela
sua própria idade não podia intervir sensivelmente nos
negócios públicos, fez com que a sede habitual do governo se
deslocasse do paço e dos conselhos privados para as duas
casas do parlamento. Cessou automaticamente a luta entre o
poder pessoal do imperante e os representantes do povo, que
tendo ocupado todo o reinado de Pedro I e provocado a
25
revolução de 1831, transmitira-se depois à Regência, sob a
forma daquela exaustiva e perturbadora discussão acadêmica
sobre divisão e independência dos poderes do Estado. Essa é a
verdadeira significação histórica da revolução parlamentar da
Maioridade. Infelizmente, o velho método de grupar os fatos
segundo as épocas, fazendo-os girar em torno de uma
individualidade preponderante, para deles extrair apenas o
elogio ou a condenação pessoal dessa individualidade, veio
prejudicar, nos nossos estudos históricos, o conceito que
devíamos formar daquele acontecimento, privando-nos dos
claros ensinamentos que ele nos pode oferecer. Basta ler um
dos maiores historiadores daquela época, o conselheiro Pereira
da Silva. Para ele, a conseqüência principal da M aioridade foi
“arrancar o país ao regime fraco das regências eleitas e a
exclusiva preponderância parlamentar, restituindo-o à ação
imediata do príncipe...”(8). Ora, foi precisamente o contrário o
que se produziu.
O próprio Pedro II desmentiu mais tarde a grade
influência pessoal a ele emprestada pelos historiadores no
início do seu reinado, afirmando com louvável exatidão que,
naquele tempo, as suas maiores preocupações não passavam
além dos estudos de Humanidades. Entretanto, a sua ação
pessoal direta, sobre o conjunto total dos negócios públicos,
tornou-se o ponto de resistência obrigatório de todos os
comentadores, tanto dos que empreenderam o seu elogio, como
daqueles que lançaram a cavilosa atoarda da sua prepotência,
mesmo disfarçada, para o fim de apresentá-lo com o caráter
antipático de um déspota. Impelidos por motivos diversos, mas
convergentes no processo, todos eles se empenharam em
ocultar o mérito principal do nosso grande imperador, que foi
26
sem dúvida o de ter sido entre nós o maior cidadão de sua
época. Nesse estreito modo de apreciar a personalidade de
Pedro II, os cronistas estão, aliás, de perfeito acordo com o
sentimento popular, que nele sempre enxergou a causa
evidente e necessária da grande tranqüilidade pública e da alta
moral daquele tempo, Mas é preciso considerar os indivíduos,
não como fontes de acontecimentos, mas sim como funções
mais ou menos importantes do meio social em que vivem.
Pedro II não foi o criador do espírito do seu tempo; foi uma
conseqüência dele. Separado da família aos seis anos de idade
e entregue aos cuidados dos revolucionários de 7 de abril, a
sua mentalidade formou-se naturalmente ao influxo das idéias
daqueles homens.
Há uma circunstância histórica, da qual hoje quase não
nos lembramos mais, que, entretanto, não escapou à
observação bem educada e arguta do inglês John Armitage, na
sua excelente “História do Brasil”. É a de que a revolução
brasileira de 1831, foi, espiritualmente, uma repercussão
imediata da revolução francesa de 1830, que depusera a Carlos
X, o segundo rei da monarquia instaurada em França após a
ruína de Napoleão Bonaparte. Vinda depois da imensa agitação
revolucionária que sacudira o mundo desde a queda da
Bastilha em 1789, até a batalha de Waterloo em 1815, a
presença dos Bourbons no trono de França, sobretudo com o
sentido que lhe dera a grande concentração reacionária do
Congresso de Viena, transformara-se evidentemente numa
espécie de testemunho universal e permanente da imprescri tibilidade do direito divino dos reis. A exaustoração de Ca rlos
X, seguindo-se ao repúdio total dos princípios do Congresso
de Viena por parte da Inglaterra e a célebre declaração do
27
presidente Monroe em 1823, surgira portanto como uma
demonstração definitiva e irrevogável de que a humanidade
não estava disposta a abandonar as grandes idéias do século
XVIII, que haviam produzido a revolução de 1789.
Foi naquele acontecimento de incalculável significação
moral, que os liberais brasileiros encontraram as últimas
energias para vencer as pretensões autoritárias do imperador
Pedro I. Os nossos compatriotas daquele tempo, apesar da
reação praticada pela Regência, sabiam muito bem em que
pensavam, quando se referiam aos princípios da sua revolução
de 1831.
Esses princípios eram, sem o menos sofisma, as grandes
idéias morais nascidas no século XVII com Bacon e Descartes,
que, através de Locke, Spinoza, Shaftesbury, Clarke, Leibniz,
Montesquieu, Adam Smith, David Hume e Jeremias Bentham,
vieram condensar-se, nas vésperas de 1789, no “Quadro
Histórico dos Progressos do Espírito Humano”, de Condorcet e
em todo o prestigioso conjunto da Enciclopédia. Eram bem a
liberdade política, expressada na participação permanente e
eficaz de todos os homens livres no poder público; isto é, a
substituição da obediência, nas relações políticas , pela
subordinação raciocinada e consentida.
José Bonifácio, o primeiro tutor que os revolucionários
de 7 de abril consentiram aos filhos de Pedro I, era um erudito
e um sábio, fortemente inclinado à “Enciclopédia”. Num
trabalho do Visconde de Cairú, publicado no Rio de Janeiro
em 1833, sob o título de “Manual de Política Ortodoxa”,
encontram-se transcritos dois exercícios de composição dos
pequenos príncipes imperiais, que mostram bem o sentido da
educação que lhes foi dada. O primeiro, assinado Pedro II, diz
28
o seguinte: “À proporção que o homem figura mais na
Sociedade maior obrigação tem de trabalhar na utilidade de
seus associados. É com esta condição que os homens sofrem
que um dos seus iguais transponha as balizas da igualdade
marcada pela natureza”. No segundo, é a princesa Fona
Francisca que desta maneira escreve: “Ninguém pode ser feliz
em um governo despótico. O despotismo é contrário aos fins
das Sociedades civis e oposto à vontade de Deus, que criou o
homem livre para ser feliz”. Aí estão, como se vê, as idéias do
“Contrato Social” de Jean Jacques Rousseau, combinadas com
o nobre utilitarismo de Jeremias Bentham. Não é provável que
aqueles conceitos fossem originais de Pedro II, então de sete
ou oito anos apenas, nem de Dona Francisca, que era pou co
mais velha. Mas esses dois ditados revelam claramente o
mé5todo de preparação cerebral a que os jovens príncipes
eram submetidos pelos seus preceptores. Foi nessa atmosfera,
nesse ambiente moral intensamente sensibilizado, que se
formou o caráter do nosso segundo imperador, e pôde-se dizer
com segurança que o “neto de marco Aurélio”, na expressão
romântica de Victor Hugo, foi sobretudo um produto mental da
filosofia do século XVIII.
A verdade é que jamais Pedro II tentou colocar a sua
vontade pessoal acima da opinião geral do seu país. No início
do seu reinado, não o permitiria a sua tenra idade. Depois, a
elevada cultura do seu espírito o foi tornando incompatível
com todas as idéias e processos de violência. Ele aprendera
que as instituições políticas, como fatores históricos, têm uma
missão peculiar e um período determinado, além dos quais não
subsistem, senão como acidentes mais ou menos
perturbadores. Ele sabia que o poder moderador, concebido na
29
reação autoritária do Congresso de Viena, não passava d e um
compromisso precário e insubsistente do velho direito divino
com sentimento moderno, não podendo portanto compreender
o governo e as suas funções, no mesmo sentido que lhes deram
Pedro I e o padre Diogo Antonio Feijó.
Entretanto, a visão falsa de Pereira da Silva, que
naquele velho conselheiro da coroa bem podia ter sido apenas
uma forma de reverencia palaciana, transmitiu-se depois aos
cronistas que o sucederam, tornando-se o ponto de partida de
todos os comentários feitos ao passado regime. Euclides da
Cunha leva esse modo de ver ao extremo de atribuir a escolha
de Antonio Carlos para organizar o gabinete de 1840, à
simples “gratidão” do imperador aos batedores da sua
maioridade inconstitucional...(9). O notável etnógrafo dos
jagunços de Canudos, cedendo aos preconceitos da propaganda
republicana na qual se viu envolto na sua juventude,
evidentemente careceu ali de perspicácia. Antonio Carlos não
seria elevado ao poder só pelos impulsos afetivos de um
adolescente. O que naturalmente o indicou para aquele posto,
foi o prestígio que lhe veio do fato de ter sido ele, entre todos
os parlamentares da câmara e do senado, o agente principal e
decisivo da Maioridade. Perante o entusiasmo popular daquele
momento, que provinha da realização de uma aspiração geral ,
nenhum outro político poderia disputar-lhe aquela primazia.
Ele subiu ao poder porque assim o indicavam a opinião pública
e a maioria do parlamento, das quais o governo
necessariamente passava a depender.
A tendência a personalizar todos os fatos no imperador,
acentua-se tanto no “à margem da História”, que chega a
descobrir naquele menino de quinze anos uma sinuosidade,
30
digna de um velho príncipe que longamente houvesse
manuseado e aceito ao pé da letra a “Educação” de Maquiavel.
Efetivamente, ali se encontra que o jovem Pedro II só escolheu
um ministério liberal em 24 de julho de 1840, para dar uma
momentânea e enganosa satisfação aos que mais se esforçaram
pela sua coroação imediata. A sua verdadeira política, aquela
que ele no íntimo tinha assentado, sem nada dizer aos seus
ministros, só se revela a 23 de março, quando, despedindo
aquele gabinete de menos de um ano, ele escolhe para
substituí-lo um outro de feição conservadora e francamente
autoritária. “A reação monárquica desmascarou -se logo; foi
exagerando-se até golpear o Ato Adicional”, diz Euclides da
Cunha.
A realidade porém, foi muito outra. Antonio Carlos,
apesar da sua orientação teoricamente liberal, sempre com
tanto brilho sustentada, no governo manifestou-se de uma
parcialidade intratável e absoluta. O novo ministério, como
arrastado pelo próprio espírito de combatividade dos
acontecimentos que o produziram, apenas concedida a anistia
pelos crimes políticos do período regencial, que aproveitava
sobretudo aos seus correligionários, logo entrou a perseguir os
adversários por toda parte onde pudesse atingi -los. Iniciou-se
uma derrubada geral nos postos da administração pública.
Quatorze presidentes de província foram imediatamente
demitidos, passando-se aos juízes de direito, os chefes de
polícia e os diretores de serviço de nomeação direta dos
ministros da coroa. Em seguida, através dos novos presidentes
enviados para as províncias, a derrubada prosseguiu inexorável
sobre os empregados menores e subalternos de todos os ramos
da organização administrativa, até atingir os próprios juízes de
31
paz eleitos pelo povo, que foram suspensos para não poderem
presidir as mesas das próximas eleições legislativas. Graças a
esse violento trabalho preparatório, as eleições para a
renovação da câmara dos deputados, realizadas a 13 de
outubro de 1840, resultaram numa completa vitória para o
governo.
Mas a reação contra essas processos de brutal
exclusivismo, avolumando-se nas queixas dos diretamente
prejudicados, rapidamente ganhou a unanimidade dos jornais,
indo profundamente alarmar as altas esferas políticas da corte.
Não era aquele governo que a nação esperava para encerrar a
campanha sangrenta e pertinaz sustentada até ali contra o
poder pessoal. A oposição levantou-se de todos os arraiais da
política, num desapontado e geral movimento de estranheza, e
quando o imperador lançou a sua assinatura sob o decreto de
23 de março de 1841, pelo qual foi demitido o gabinete,
apenas obedeceu aos conselhos dos maiores homens do
império, que sem distinções de partidos, lhe vieram
recomendar aquela medida como indispensável e urgentíssima.
Escreveu Euclides da Cunha que a partir daquele
momento “desmascarou-se a reação monárquica”. Depende
naturalmente do que o autor do “À Margem da História”
entendia como reação monárquica. Se o país, com o advento
do jovem imperador considerava encerrada a luta contra o
poder pessoal e sinceramente esperava a extinção dos últimos
movimentos armados que a Regência deixara, não era sem
dúvida para que aquele poder se transportasse do chefe
supremo do Estado para a pessoa secundária do presidente do
conselho. Antonio Carlos, com as suas eleições de fatura
administrativa e policial, pretendeu apenas estabelecer em seu
32
proveito um sistema de governo tão violento e unipessoal
como o de Pedro I ou o do regente Feijó. Foi esse o motivo
real da sua queda e não o desejo de Pedro II de reforçar aos
dezesseis anos de idade um poder imperial que de fato ainda
não exercia – nem jamais exerceu, no sentido que lhe
emprestaram os oradores e cronistas republicanos. É verdade
que o gabinete Paranaguá adotou, logo de entrada, toda uma
série de medidas que bem podiam ser tidas por draconianas.
Mas essas medidas foram livremente discutidas no parlamento,
reunido quarenta e um dias após a queda do ministério Antonio
Carlos, para a última sessão daquela legislatura, e aceitas com
evidente aplauso da opinião geral. O restabelecimento do
Conselho de Estado, tido como uma das provas mais
convincentes da ação reacionária do novo gabinete, foi um fato
que se produziu espontaneamente, quando os homens de
maiores responsabilidades morais daquela época acorreram ao
paço a solicitar a demissão do ministério da Maioridade. Esse
restabelecimento operou-se tacitamente antes de estar
empossado o gabinete conservador, e a melhor demon stração
do espírito que o determinou é a própria composição do
Conselho restaurado. Ao lado de conservadores como Honório
Hermeto, Bernardo de Vasconcelos e Araújo Lima, entram os
liberais Alves Branco, Lopes Gama e José Joaquim de Lima e
Silva, todos acompanhados de homens precisamente estimados
pela sua completa ausência de sentimento partidário, como
Silva Torres e Dom frei Pedro de Santa Mariana.
A câmara, eleita pelo escandaloso processo de
compressão de 1840, foi, como era inevitável, dissolvida,
ainda em sessão preparatória, a 2 de maio de 1842, tendo o
decreto da sua dissolução convocado uma outra para o mês de
33
novembro daquele último ano. Os fatos que determinaram a
crise ministerial de 1841, com a conseqüente dissolução do
parlamento, não deixam de ter sido bem penosos. Mas é
necessário reconhecer que, a partir daquele momento, o
governo definitivamente passou a depender da representação
parlamentar, Foi na câmara cujo mandato expirava no fim de
1841 que o gabinete Paranaguá, instalado em março dess e ano,
encontrou o apoio indispensável à sua enérgica e decidida ação
governamental. Não é possível portanto dar com propriedade à
política do Marquês de Paranaguá o qualificativo de “reação
monárquica”. Essa política, evidentemente baseada no
consentimento geral, teve como seu principal objeto a
pacificação interna. É precisamente na ação militar necessária
à extinção do vasto tumulto revolucionário herdado da
Regência, que melhor se revelam as tendências do gabinete de
23 de março de 1841. As operações de guerra, limitando-se a
colocar o adversário na impossibilidade de causar dano,
transformam-se, sob a generosa e sábia direção do general
Barão de Caxias, numa cordial solicitação de entendimento. As
forças que em 1842 partiram a dominar a revolta nas
províncias de São Paulo e Minas Gerais tomaram o nome de
Exército Pacificador, e, ao entrarem vitoriosas na cidade de
Mariana, o general manda retirar das ruas o empavesamento
festivo com que o esperavam e transformar o “Te Deum!” em
ação de graças pelo seu triunfo, em uma missa de “réquiem”,
por todos os irmãos brasileiros caídos sob qualquer das duas
bandeiras que se defrontaram na peleja.
Naturalmente, sempre será possível falar da áspera
energia do gabinete Paranaguá. Mas não resta a menor dúvida
de que, a partir dele, ficou definitivamente assentado o
34
processo de funcionamento das nossas instituições políticas.
Foram os votos do parlamento que passaram a regular a
escolha e a duração dos ministérios, e, se até as grandes e
memoráveis eleições de 1860, a nossa política manteve sempre
uma linha geral acentuadamente conservadora – mesma através
de gabinetes liberais – foi porque a grande maioria da nação
assim o entendeu por necessário. A opinião pública fora
dominada pela sábia preocupação de evitar qualquer aventura
capaz de comprometer a ordem pacífica e natural da nossa
evolução. Em face de toda uma América Latina convulsa e
arruinada, deliberadamente foram respeitadas as ultimas
fronteiras da monarquia para a república, porque se
reconhecera no império a melhor e mais segura garantia da paz
interna e da unidade do país.
Procurar as causas de um fato histórico de tão profundas
conseqüências como a política do Marquês de Paranaguá, no
simples capricho de uma criança, é apenas uma tendência. A
verdade é que, vencidas as pretensões ditatoriais da coroa com
o movimento parlamentarista da Maioridade e corrigidos os
excessos partidários do ministério Antonio Carlos, a vida
nacional passou a caracterizar-se por uma espécie de
concentração de todas as suas energias, no sentido de resistir
ao perigo do desmembramento do Império. Esse perigo do
esfacelamento da grande nacionalidade apresentava-se de duas
maneiras. De um lado, como extensão ulterior da resistência
ao poder pessoal, perdurava ainda a revolta das províncias
contra o centro. A atividade revolucionária, tendo perdido o
seu ponto objetivo de reação, transbordava tumultuariamente
para a negação imediata da monarquia, sem base para a
organização eficaz de um novo estado de coisas. De outro
35
lado, Buenos Aires continuava a cultivar com entusiasmo a
velha hostilidade castelhana contra a formação de uma grande
pátria de origem portuguesa no continente. Vivendo entre si na
mais fratricida e exasperada desordem, só numa coisa se
acordavam facilmente os antigos colonos espanhóis do rio da
Prata: na preocupação de destruir o Império do Brasil...
No Rio Grande do Sul aquelas duas formas do nosso
grande perigo nacional se conjugavam. Não é possível
desconhecer que a causa geral da guerra dos Farrapos tenha
sido o descontentamento dos liberais rio-grandenses, em face
dos processos autoritários do primeiro reinado, herdados pela
Regência. Filiando-se imediatamente às revoluções do Ceará e
de Pernambuco, que na sua sucessão cobriram o período de
1831 a 1835 ela coincidia com a violenta reação armada
surgida no Pará naquele último ao e que, emendando -se no seu
termo com a revolta baiana de 1837 a 1838, dali se mantivera
até 1841, na guerra dos Balaios, do Maranhão. Era parte de um
movimento generalizado de Norte a Sul, que tinha a sua
explicação lógica nas decepções da nossa política interna. Mas
logo a partir de 1836, devido à intervenção de elementos
estrangeiros vindos do Rio da Prata, a revolução rio-grandense
tomou um aspecto diverso, tendendo à separação.
Não seria possível estudar os nossos negócios internos
durante os dois primeiros decênios do segundo reinado, sem
fazer uma referência às relações que nesse período
mantivemos com a Confederação Argentina. Desde que, a 13
de dezembro de 1828, fora fuzilado em condições tão
dramáticas o presidente Manoel Dorrego, de Buenos Aires,
que reconhecera a independência do Uruguai, firmando
conosco o tratado de 27 de agosto daquele ano, era lícito supor
36
que as províncias argentinas não nos deixariam tranqüilos por
muito tempo. Dorrego, tendo-se desavindo com os seus amigos
“federales”, sem obter em câmbio a confiança dos “unitários”,
foi vítima sem dúvida das condições políticas internas do seu
país. Mas o fato de haver ele promovido um tratado de paz e
amizade com o Brasil, não deixou de muito concorrer para o
seu martírio. O presidente Bernardino Rivadavia, a quem ele
sucedera no poder em 1827, após o rápido governo Vicente
López, caíra precisamente por haver enviado o ministro
Manoel Garcia a tentar a paz no Rio de Janeiro. Os inimigos
de Dorrego certamente não se privaram de ligar aquelas duas
circunstâncias para, além de tudo, apresentá-lo como um
traidor à causa nacional.
Ora, se um desfalecimento no ódio ao Brasil podia ser
de tão graves conseqüências, é evidente que a demonstração de
uma irredutível e vigilante hostilidade contra nós fosse
também um título excelente à estima pública.
Assim o entendeu imediatamente o ditador Juan Manuel
Rosas. Apenas ele ascende ao governo da província de Buenos
Aires, em 1832, logo surge em Porto Alegre o propagandista
Manuel Ruedas, que, aproximando-se naturalmente dos
círculos da oposição, tem recursos para apossar-se do
“Recompilador Liberal”, mantido até ali pelos farrapos como
seu órgão. Em 1833, tendo deposto o governador Ramom
Belcarce que o substituíra, e estendido o seu poder a todas as
províncias, Rosas nos manda o seu amigo Tito Zambicari,
conde italiano e pregador da república, seguido em 1834 pelo
gênio agitado e intrigante de Dona Anna Monteroso, mulher
do general Lavalleja que, em 1827, comandara contra o
Marquês de Barbacena, na batalha de Ituzaingó. Em janeiro de
37
1835, afinal, Gregorio Lamas vem, pelos mesmos canais, a
porto Alegre...
Sobre todo o Brasil continuava a tresloucada política da
repressão “a outrance”, instituída pelo padre Feijó, em nome
do princípio extremo e absoluto da autoridade, caracterizada
no Rio de Janeiro pela incompatibilidade cada vez maior do
poder executivo com o parlamento. A revolta só se deixava
sufocar num ponto para rebentar mais adiante, e nessa
deplorável situação geral, a ação daqueles elementos
estrangeiros no Rio Grande, revelava-se de uma terrível
eficácia. No mês de maio, o governo provincial alarmado,
inicia uma decidida e violenta perseguição aos farrapos. Para
fins de destituição e encarceramento, são mandados processar
os juízes de paz eleitos pelo povo de Porto Alegre. Todos os
oficiais e funcionários conhecidos pelas suas idéias liberais
são arbitrariamente demitidos ou afastados. Na “campanha”,
aquela insólita atitude da presidência da província
imediatamente repercute em toda a sorte de violências pessoais
de que sabe ser tão fértil a política partidária do interior, e,
sob a impressão desses fatos, a assembléia abre-se a 20 de
abril num verdadeiro tumulto.
Era nesse ambiente que vinham ecoar as notícias da
revolução surgida no Para em janeiro daquele ano, na qual já
dois presidentes da província haviam perdido a vida. Ali,
como no Rio Grande do Sul, os partidários da reação
chamavam-se “caramurus”, e os motivos do descontentamento
geral eram idênticos. A sugestão revolucionária uniu portanto
os dois extremos do país e utilizando os recursos militares que
se lhes ofereciam bem mais fáceis pela fronteira, os liberais
rio-grandenses também partiram para a guerra.
38
Nada nos prova que a revolução gaúcha de 1835
envolvesse, no seu início, a idéia de instaurar no Rio Grande
do Sul, qualquer sistema político diferente ou destacado do
Império. Os seus promotores, a princípio, só falavam no
restabelecimento dos processos legais da monarquia, que a
reação autoritária esquecera para abolir as liberdades públicas,
O farto de homens como Manoel Luiz Osorio, depois o grande
general Marquês de Herval, haverem repudiado aquele
movimento após a proclamação de Piratini, mostra vem que a
república foi uma surpresa e, em grande parte, uma decepção.
O recurso extremo da separação, só foi aceito pelos farrapos
em outubro de 1836, depois da grande derrota por eles sofrida
na Ilha do Fanfa.
Não é difícil reconstituir a psicologia dos farrapos no
dia seguinte àquela batalha. Estavam destroçados. Os seus
mais hábeis chefes militares tinham caído prisioneiros e o
melhor das suas armas e munições estava perdido. Como
reorganizar, sem novos recursos, um exército do qual, a bem
dizer, só restavam feridos, recolhidos por caridade à casa dos
moradores, e extraviados pelas coxilhas? Não era provável que
o governo de Buenos Aires se mostrasse disposto a manterlhes ainda as suas simpatias, depois de assim desmoralizados;
tanto mais que a revolução pretendera, até aí, conservar -se fiel
à unidade do Brasil, quando só a separação realmente o
interessava. O tom de voz dos agentes argentinos deve mesmo
ter mudado muito naquele transe, passando das insinuações
amistosas a uma formal propositura de condições.,
Proclamassem a república, separassem-se do Brasil, e não lhes
seriam regateados os meios de resistência. Do contrário, a
simples regeneração dos costumes políticos do Império não
39
podia interessar seriamente a Don Juan Manuel. Tornou-se
necessário decidirem-se pela submissão imediata ou pela
república.
Tal foi o caminho pelo qual chegaram os farrapos a
Piratini. Desarmados entre ânimo de intransigente repressão do
padre Feijó e as solicitações de Buenos Aires, eles inclinaram se para estas, fugindo à tirania regencial pela separação. A
república era, afinal de contas, uma vela idéia que, naquele
momento de profunda perturbação, lhes parecia de certa forma
justificar o sacrifício da grande nacionalidade. Infelizmente
para os liberais do Rio Grande, a república que Rosas lhes
mandava era apenas a de João Facundo Quiroga, de Bustos ou
de Reinafé, cujos remanescentes ele mesmo então liquidava
em sua terra, na chacina lôbrega e permanente da Masorca.
Tratava-se somente de uma sangrenta alavanca, atirada por
cima da fronteira, para deslocar entre si os componentes da
grande nação luso-americana.
A obra de grande estadista do Marquês de Paranaguá
consistiu toda em neutralizar e destruir aqueles germes de
dissolução. Iniciada com o gabinete de 23 de março de 1841,
essa prudente e severa política foi rigorosamente mantida,
através dos diferentes governos conservadores ou liberais que
se seguiram, até 1862. A integridade nacional, a conservação
do patrimônio material do território e do patrimônio ainda
mais caro da língua, dos costumes e das tradições da raça, eis
o cuidado maior ao qual foram condicionadas todas as demais
preocupações daquele tempo. Essa foi para o povo brasileiro a
idéia predominante, até ver o seu país definitivamente
consolidado num sistema geral de fronteiras, que nunca mais
40
pôde ser alterado ou mesmo corrigido, num sentido qualquer
de restrição.
Mas uma tal política, que necessariamente exigia uma
forte tensão moral e uma energia inquebrantável, em momento
algum do seu transcurso, jamais chegou a objetivar-se na
imposição de uma vontade individual preponderante. Ela foi
sempre o resultado do sentimento geral, expressado nos votos
do parlamento. Foi o nosso grande parlamento do Segundo
Reinado, inspirando-se nobremente nos próprios deveres do
seu mandato, quem soube encontrar, na consciência pública,
toda a força de que então se serviram os nossos homens de
governo.
A questão da independência dos poderes do Estado, que
se mantivera tão especiosa e irritante com Pedro I e a
Regência, desapareceu completamente das relações da câmara
com o executivo. Ninguém mais pôs em dúvida que fossem os
corpos legislativos, como representação imediata do povo, a
fonte legítima e constante de toda autoridade pública. O
próprio ato de dissolução da câmara irregularmente eleita em
1840, tomou o caráter de uma solene consagração desse
princípio essencial. No relatório enviado à coroa no dia
primeiro de maio de 1842 para o fim daquela resolução, o
ministério, coletivamente, assim se expressava: “A salvação
do Estado, tal qual se acha constituído pela constituição e seu
ato adicional, exige portanto que a atual câmara dos deputados
seja substituída por outra, a quem a liberdade do voto dê o
caráter de representante da opinião nacional e a força moral
indispensável para firmar entre nós o sistema monárquico constitucional-representativo”. O governo, ao mesmo tempo
que desfazia um ajuntamento sem mandato regular, devolvia à
41
câmara a sua função de principal reguladora da vida do
Estado, reconhecendo e proclamando que era sobre ela e por
ela que se deviam firmar as instituições do Império. No dia 20
de janeiro de 1843 o gabinete Paranaguá é substituído por um
outro onde aparece a figura eminente de Honório Hermeto
Carneiro Leão. O novo ministério é apresentado à câmara no
dia 23, pelo titular da pasta da Marinha, Joaquim José
Rodrigues Torres, com as palavras seguintes: “Sinto a
necessidade que tem o governo de expor com toda a lealdade
os seus princípios, afim de que a Câmara possa dar-lhe ou
retirar-lhe o seu apoio. O ministério e o país têm necessidade
disto; o país tem necessidade de um ministério fortemente
organizado, fortemente apoiado pelo corpo legislativo, e não
deseja que a Câmara se mostre dúbia por considerações
quaisquer. Ela deve manifestar com muita energia o seu
pensamento, para que assim possamos ter o governo que,
sustentado pelas câmaras, possa promover a felicidade da
Nação.”
O regente Feijó dizia em 1837 que o poder executivo
devia ser independente do legislativo e não sujeitar -se a
maioria de câmaras, que eram várias e caprichosas... Pois bem:
a partir de 1841, passando aquele poder a depender do
parlamento, a política geral e a administração pública, através
dos ministérios que se sucedem ao sabor “vário e caprichoso”
daquelas maiorias, assumem um espírito de seqüência e eficaz
continuidade que jamais haviam conhecido. Em 1844, a
situação conservadora cede o lugar a um gabinete onde
novamente se divisa o grande perfil liberal de Manoel Alves
Branco. Mas a concentração nacional do Marquês de
Paranaguá ainda mais se acentua, pela anistia dos antigos
42
revolucionários das províncias do Norte e do Centro, já de
todo pacificadas. Generaliza-se então a designação sugestiva
de “política de conciliação”, adotada por Honório Hermeto ao
iniciar a vida do ministério anterior. O general Barão de
Caxias, que Paranaguá mandara a reduzir os farrapos no Rio
Grande, apesar de conservador pelas suas idéias, é mantido no
seu posto pelo governo liberal. Os clarins do seu exército, a
ecoarem pelas cochilhas, haviam despertado o sentimento
nacional no extremo Sul. E o governo Alves Branco pôde
assim encerrar a guerra dos Farrapos, sem vencedores nem
vencidos, num grande movimento de confraternidade
brasileira.
NOTAS
(8) PEREIRA DA SILVA – Op. cit., pág. 345.
(9) À Margem da História, pág. 320.
CAPÍTULO III
A LEI DOS CÍRCULOS
Havíamos conseguido a paz interna. Entretanto, a
política que vinha realizando aquele esplêndido trabalho de
consolidação do país, não pôde ser dada ainda por terminada.
A nova câmara, reunida nos primeiros meses de 1845,
43
imediatamente afirma a decisão de prossegui-la. Na sessão de
26 de maio, tendo-se verificado uma alteração no gabinete,
pela substituição de dois ministros, o deputado Silva Ferraz,
liberal dos mais avançados e intransigentes, pergunta qual era
afinal o programa novo que trazia aquele Governo assim
modificado. Reportando-se à situação anterior do ministério,
responde-lhe o Ministro da Marinha Holanda Cavalcanti:
- A política atualmente seguida, suponho que não
discrepa da política que então se seguia.
- Da inércia? ..., insiste o deputado.
- A inércia, na significação vulgar, obtempera o
ministro, não é nada. Porém, quando um matemático fala em
inércia, é alguma coisa...
Uma torrente de apoiados acolhe essa imagem
mecânica. Era bem aquilo. A força ova, que alterasse o
movimento de simples concentração iniciado em 1841, não
viera ainda da opinião pública. Em 2 de maio de 1846, esse
gabinete é substituído por um outro, no qual figura ainda
Holanda Cavalcanti, na pasta da Fazenda, mas onde não se vê
mais o nome de Manoel Alves Branco. A apresentação à
câmara é feita pelo Ministro da Justiça, José Joaquim
Fernandes Torres: - “Eu estou persuadido de que a política do
gabinete de 2 de fevereiro (1844) teve em vista a concórdia
entre todos os brasileiros, restabelecer a tranqüilidade púb lica
em todo o país, e para conseguir este fim teve sempre em vista
os princípios de justiça, a constituição do Estado e a pontual
execução da legislação do país. Estando persuadido de que
este é o programa do gabinete transacto, e do atual, digo que
não tem sofrido alteração ou modificação a política do
gabinete.”
44
Pode-se dizer que o único fato realmente novo na
política interna do Brasil, entre o fim da guerra dos farrapos e
as grandes eleições legislativas de 1860, é a criação do cargo
de presidente do conselho de ministros. Até então, a
preeminência de uma individualidade maior no seio do
gabinete, operava-se de si mesmo, por uma espécie de
reconhecimento tácito. Assim fora com Antonio Carlos, com
Paranaguá, com Honório Hermeto, o Marquês de Olinda, ou
Alves Branco. Mas, ao voltar este último ao poder, em 1847,
aparece o decreto de 20 de julho, que cria a figura legal do
presidente do conselho. As nossas instituições, pela
experiência adquirida, assumiam a sua estrutura. Entretanto, a
política geral mantinha-se imutável e constante. Dominava-a
sempre a preocupação da unidade do Império, com exclusão de
toda iniciativa que nos pudesse desviar desse extremo
objetivo. Em 1848, ainda surge uma perturbação da ordem
interna, na revolta praieira de Pernambuco. É porém, uma
agitação sem raízes profundas, nascida principalmente de erros
da política provincial. Os chefes mais notáveis do partido local
que a promove, nem bem a compreendem. Liquida-se em
algumas correrias cangaceiras pelo sertão, depois de, no
Recife, haver trazido a morte do grande tribuno Nunes
machado, num infeliz tiroteio de rua.
A prova final de resistência da nossa unidade nacional,
aquela que nos demonstraria podermos enfim abandonar sem
perigo a severa política de 1841, essa prova tinha que os s er
oferecida nas fronteiras do Sul. Ela veio das relações da
política interna do Uruguai com os estancieiros nossos
patrícios, que ali se conservaram após o tratado de 1828.
45
O insucesso da república de Piratini, não bastara ao
tirano Rosas como demonstração de irrevogável unidade do
Brasil. Don Juan Manuel havia-se lançado num plano de vasta
construção política, no qual a separação do Rio Grande era
apenas um detalhe subsidiário. O que ele visava em definitivo,
era a reabsorção do Uruguai, do Paraguai e talvez da Bolívia,
nas antigas fronteiras do vice-reinado de Buenos Aires, criado
pela monarquia espanhola em 1777, para combater a nossa
instalação nos planaltos interiores do continente. A hostilidade
contra nós decorria necessariamente do próprio sentido d a sua
política internacional. Repelindo o tratado de 1828 e ao
mesmo tempo ameaçando-nos no Rio Grande do Sul, no
Paraná e em mato Grosso, ele automaticamente reabria todas
as seculares questões continentais que aquele tratado
pretendera resolver. Estaríamos quase em face do remoto
espírito colonial do meridiano de Tordesilhas, pois Rosas teria
repudiado mesmo o princípio do “uti possidetis”,
posteriormente reconhecido pelas cortes de Lisboa e de Madri,
como fundamento de domínio sobre as terras do Novo Mundo.
É claro que, possuído de tão vertiginosas pretensões,
não podia o ditador de Buenos Aires desanimar logo ao
primeiro fracasso. A preparação da revolta dos farrapos
coincidira com uma ativa e veemente propaganda dos seus
projetos, nos meios governamentais de Montevidéu e de
Assunção. Os paraguaios o desatenderam, solicitando mesmo
contra ele a nossa ajuda. Outro tanto porém, não se deu com o
governo uruguaio do general Oribe, que se pôs ao seu serviço.
Não vale a pena recordar aqui as terríveis vicissitudes a
que, durante nove anos, o Uruguai se viu sujeito, em
conseqüência da aliança de Rosas e Oribe. Imagine -se somente
46
a situação em que fiaram os brasileiros ali residentes, com o
território da república, exclusão feita apenas da capital,
inteiramente ocupado pelos soldados argentinos... Os nossos
compatriotas foram logo despojados das suas estâncias, muitos
deles perdendo a vida no selvagem tumulto da confiscação. O
governo imperial, tratando-se de fatos que se passavam além
da fronteira estabelecida em 1828, sentiu-se obrigado a uma
atitude de extrema circunspecção. Mas os rio-grandenses não
puderam assistir impassíveis ao sacrifício de seus irmãos.
Organizaram-se expedições que fossem ao país vizinho
libertar os brasileiros, trazendo-os com os seus bens móveis e
os seus rebanhos ao território da província. Deram-se correrias
e escaramuças na margem direita do rio Uruguai, e o min istro
argentino no Rio de Janeiro, Thomaz Guido, comparece à
nossa Secretaria do Exterior, para exigir como representante
do general Oribe, a cessação daquelas incursões na fronteira
uruguaia.
Ora, a nossa chancelaria não podia admitir em Thomaz
Guido qualidade para falar em nome de Oribe, a quem, aliás,
ela nem sequer reconhecia como presidente legal da república
uruguaia. O governo estabelecido em Montevidéu, de onde
Oribe fora expulso pelos patriotas uruguaios, era, na espécie, o
unido a quem poderíamos atender. E, com esta resposta,
Thomaz Guido reclama os seus passaportes, retirando -se a
Buenos Aires.
A par de toda a enorme audácia das suas concepções,
não se pode negar ao tirano Rosas uma grande habilidade
política. O seu sonho de unificação geral dos países da bacia
do Prata sob um governo único, era certamente tão complicado
e perigoso que qualquer outro o teria abandonado logo ao
47
primeiro exame. Não era apenas a situação continental das
províncias argentinas, em face do Brasil, do Uruguai e do
Paraguai, que embaraçava a realização daquele projeto. Eram
também as próprias condições internas da confederação,
partilhada entre um poderoso grupo de caudilhos, cada qual
mais ferozmente imbuído de pretensões à soberania. Antes de
vencer a desconfiança sempre alerta dos brasileiros, ele
necessariamente tinha que sufocar pela força as ambições dos
seus concorrentes internos.
Entretanto, Rosas não desanimou. Durante dezessete
anos consecutivos, de 1833 a 1850, ele habilmente manobrou
entre aquelas duas mortais dificuldades Em 1845, esteve
prestes a ser colhido nas próprias armadilhas da sua astúcia.
Mas logo desvencilhou-se, com a rude solércia de um gaúcho
num rodeio.
O caudilhismo regional, que rosas fazia insuflar aos
farrapos do Rio Grande, sob o disfarce de propaganda
republicana, era evidentemente uma arma de dois gumes. Ele
cultivava nas fronteiras uma planta cuja extirpação no solo
argentino se tornara, para o seu governo, uma condição de vida
ou de morte. Com o tempo, os inconvenientes dessa diametral
dualidade de processos não podiam deixar de transbordar os
interesses daquele que a praticara. Evidentemente, em 1842, o
caudilho uruguaio Fructuoso Rivera e o seu confrade argentino
Paz Lopez, reuniam-se com o chefe farrapo Bento Gonçalves,
em Paissandu, e os três, juntos em conferência, estabeleciam
um plano geral de ação que constituía para Don Juan Manuel
uma severa e inquietante surpresa. Simultaneamente, em
oposição ao plano de restabelecimento do vice-reinado de
Buenos Aires e contra os interesses da unidade do Brasil, eles
48
decidiam bater-se pela formação de um novo Estado que
abrangesse o Rio Grande do Sul, o Uruguai e as províncias
argentinas de Corrientes e Entre-Rios. Era, para Rosas, a volta
do feitiço contra o feiticeiro...
O tirano inclinou-se então para o Brasil, autorizando o
seu representante no Rio de Janeiro a entender-se com o
governo imperial sobre a nova situação da margem esquerda
do Rio da Prata. Em janeiro de 1843, o ministro argentino, que
já era Thomáz Guido, manda à nossa chancelaria a nota que
serviu de base ao tratado de 24 de março no qual ficou
combinada uma ação conjunta dos dois governos contra os
rebeldes dos dois lados da fronteira.
Esse tratado de 1843, consentido pelo gabinete
conservador de Honório Hermeto, mereceu da oposiç ão liberal
os comentários mais acerbos e veementes. Na sessão da
câmara dos deputados de 21 de agosto de 1845, o deputado
Gabriel Rodrigues dos Santos ainda dizia: “Antes de tudo, sr.
presidente, cumpre ponderar que não pode escapar da acusação
de ter sujeito o país à maior das ignomínias, aquele governo
que julgou conveniente aliar o monarca brasileiro ao ditador
de Buenos Aires, para o fim de pacificar o Brasil...”
Certamente, uma aliança, para aquele fim, entre a
monarquia parlamentar e o grosseiro despotismo platino, não
era nenhum modelo de elegância. Mas é preciso reconhecer
que não ficáramos sendo nós os de pior partido naquele ajuste.
Tal como fora redigido pelos seus negociadores brasileiros, o
tratado de 1843 resumia-se afinal numa espécie de “termo de
bem viver”, a ser assinado pelo sinuoso caudilho do Rio da
Prata. Por ele, Rosas ratificava o tratado de paz de 1828,
aceitando pessoalmente a obrigação de respeitar e garantir a
49
independência do Uruguai, ao mesmo tempo que o nosso
governo, como direito de fiscalizar a atividade dos farrapos no
território argentino, ficava com os meios de sufocar a guerra
civil nas suas bases estratégicas, pois era ali que os
revolucionários encontravam todos os seus recursos militares.
Mas Rosas não poderia cumprir aquelas disposições,
sem renunciar por uma vez a sua velha política continental.
Era preciso abandonar os rosistas do Uruguai à sua sorte,
oferecendo também aos republicanos rio-grandenses a
revoltante impressão de uma felonia. Com o espírito anti brasileiro que o ditador não cessara de alimentar em todo o
Rio da Prata, não teriam sido menos comprometedoras para a
sua pessoa as reações morais daquele acordo, no interior da
Confederação Argentina. Ia-se talvez reacender nas ruas de
Buenos Aires a mesma impetuosa indignação que determinara
a queda de Rivadavia em 1827, e, dados os ódios que Rosas
fizera nascer com os seus processos de governo, era bem
possível que depressa o encontrasse, naquele caminho, o
antigo pelotão de fuzilamento do general Dorrego...
Don Juan Manuel não era homem a insistir num passo
perigoso, ainda mesmo que a esse passo conduzissem todas as
considerações de probidade internacional. Mais feliz que
Rivadavia, ele pôde, sem inconveniente, repudiar o tratado de
1843, dando o negociado por Thomaz Guido como excedente
das suas instruções. Aquele tratado talvez tenha servido ao
ditador para intimidar os políticos de Corrientes e Entre-Rios.
Para os fins da sua grande política continental, Rosas
jamais pôde conjugar, de uma forma oportuna e decisiva, as
condições por ele criadas no Uruguai, com a perturbação
revolucionária do Rio Grande. Não só a isso se opuseram os
50
contra-golpes da política imperial e as circunstâncias internas
da Argentina, como também as relações do ditador com as
principais potências da Europa, que se mantiveram sempre
incertas e oscilantes. Manobrando, irritado e teimoso, entre
todos aqueles embaraços, ele teve de assistir impassível, em
1845, à pacificação da nossa grande província do extremo Sul.
Mas, em 1850, ou porque julgasse mais sólida a sua
situação política interna, ou levado pelo temos de que se fosse
o tempo encarregado de queimar assim todos os seus trunfos,
fosse por cálculo refletido ou por simples exasperação, a
verdade é que Don Juan Manuel resolveu desferir contra nós o
seu golpe definitivo. A agitação dos nossos compatriotas da
fronteira serviu de oportunidade ao rompimento formal. A
chegada do ministro Thomaz Guido a Buenos Aires, de volta
do Rio de Janeiro, assinalou-se por uma inacreditável explosão
de entusiasmo guerreiro. Parecia que os portenhos, em face do
Império do Brasil, haviam chegado a um momento semelhante
àquele que conheceram os revolucionários franceses em 1792,
quando os imperadores e os reis da Europa coligados se
aproximavam da planície de Valmy...
Tudo aquilo, porém, concebido e montado pelos
familiares da Mazorca, era apenas um estrondoso apelo atirado
às províncias argentinas para que todas elas viessem cerrar
fileiras em torno do ditador, naquele decisivo e extremo
arranco do seu grande sonho continental. Rosas perdera toda
medida, proclamando franca e ostentosamente os seus
desígnios. Tratava-se simplesmente, como castigo a nós
outros, de fazer entrar também o Rio Grande do Sul na
projetada recomposição do vice-reinado, e de impor pelas
armas a república em todas as demais províncias do Brasil...
51
Dada a escassa população argentina daquela época e os
reduzidos meios econômicos de um país que viera da guerra
dos caudilhos para a tirania absoluta, não é possível que Rosas
pensasse em dominar o Brasil só com os recursos militares da
confederação. Ele julgou sem dúvida que os melhores
auxiliares estivessem dentro das fronteiras do Império.
O reconhecimento habitual da força, como base
universal de toda construção moral e política, tem o grave
inconveniente de nos privar de senso psicológico. Aquele
grande devoto da força, na atitude assumida para conosco em
1850, pretendeu entretanto fazer psicologia. Para ele, a nossa
paz interior fora um produto de contenção militar, que
necessariamente entraria em crise, desde que as forças
imperiais se distraíssem do policiamento interno para atender
ao primeiro ataque nas fronteiras. O tirano não se apercebera
de que a paz no Rio Grande fora-se tornando mais próxima à
medida que a revolução mais se distanciava do sentimento
nacional brasileiro. A idéia da república com a separação já
fora um início de debandada nas fileiras revolucionárias. O
resultado da conferência de Paissandu, com a projetada
absorção da província num novo estado castelhano, foi o sinal
da volta geral ao seio do império. Os separatistas
compreenderam que não havia lugar no continente para uma
pequena nação de origem portuguesa. Era preciso ser
brasileiro ou ser país anexado, abrindo mão imediatamente da
língua, das tradições, dos costumes; de tudo quanto constitui a
honra, o encanto e o próprio ser dos povos nacionalmente
caracterizados. Ao mesmo tempo que essas graves
considerações se elevavam no espírito dos farrapos, o Rio
grande do Sul, como as outras províncias do Império, era
52
levado à comparação do ambiente político criado entre nós
pela monarquia parlamentar, com a espantosa selvageria da
vida hispano-americana. Todos se convenceram de que os
sistemas políticos não estão nos apelativos verbais, mas sim na
maior ou menos soma de liberdade que possam assegurar.
Rosas acreditou que, ao ruidoso apelo das
manifestações de Buenos Aires, uma indomável e geral
montonera se alastrasse para o Norte, embaraçando e
absorvendo todo o poder militar do império, ante a invasão
republicana que ele se propunha a conduzir. Mas o Rio Grande
do Sul que, numa falsa compreensão das nossas condições
internas, foi precisamente o ponto no qual primeiro e com
maior veemência se manifestou a reação nacional dos
brasileiros contra aquelas pretensões. A chegada de Thomaz
Guido a Buenos Aires, com as demonstrações a que deu lugar,
verificou-se a 16 de outubro de 1850. Vinte e dois dias depois,
a 7 de novembro seguinte, a assembléia provincial de Porto
Alegre reunia-se e unanimemente votava uma mensagem ao
Imperador, na qual, para a defesa da pátria e da dignidade do
Império, eram ofertadas sem restrições nem limites, as vidas e
a fortuna de todos os filhos do Rio Grande. Os antigos
regimentos de voluntários, que se haviam defrontado nos
ásperos dias da guerra civil, rapidamente se recompuseram. O
general Caxias, mandado voltar à província para tomar o
comando das nossas forças que se organizavam, encontra
enfileirados sob a bandeira imperial as antigas glórias do
exército farrapo. Lá estavam Bento Gonçalves, Bento Manoel
e David Canabarro, todos ao lado do general Barão de Jacuí,
que fora o mais intratável e ferrenho dos seus antigos
53
contendores. Era a política de 1841, convertida em poder
militar uniforme, face à fronteira.
Rosas não se enganara somente quanto à fidelidad e das
províncias do Brasil à unidade do império. Ele igualmente
iludiu-se sobre a mútua solidariedade dos povos do Prata,
perante os perturbadores desígnios da sua política continental.
De início, nós podíamos contar apenas com um aliado, que era
o governo do Uruguai, sitiado em Montevidéu pelos soldados
argentinos às ordens de Oribe. Mas, apenas Caxias começa a
dispor as suas tropas para a passagem da fronteira, logo se nos
vêm juntar as forças dos caudilhos Urquiza e Virasoro,
respectivamente governadores de Entre-Rios e Corrientes. As
hostilidades perdem então o caráter de guerra internacional,
para tomar o feitio especial de uma grande operação de
polícia, contra o maior perturbador da paz no continente. Em
setembro de 1851, Oribe rendia-se incondicionalmente. Um
mês depois, era levantado o cerco de Montevidéu e a nossa
esquadra, vencendo a resistência do general Mansilla no Passo
de Tonelero, vai proteger a passagem dos aliados para a
margem direita do Paraná. A 24 de dezembro incorporam -se
ainda aos nossos soldados da província de Santa Fé, e a 3 de
fevereiro de 1852 fere-se a batalha final de Monte Caseros.
Rosas, pretendendo separar o Rio Grande do Sul do
Império do Brasil, colocara-se na situação do imprudente que
metesse a mão entre duas pedras. Esta foi a causa imediata e
principal da sua ruína.(10)
O fato de se haver completamente modificado a situação
política argentina, com um exército brasileiro acampado em
Palermo e a nossa esquadra estendida de Montevidéu a Rosário
de Santa Fé, foi de um efeito deveras excelente para a nossa
54
posição internacional. Nasceu no Rio da Prata uma nova
opinião a nosso respeito. Não só estava morta a temerária
veleidade de intervir nos nossos negócios internos, como
deixáramos de ser os inimigos inevitáveis e necessários, para
merecermos a cordial consideração de um grande vizinho, que
nada mais pedia além do mútuo respeito e do fiel cumprimento
das obrigações assumidas. Nós havíamos dado uma prova
simultânea da solidez da nossa grande construção nacional e
do leal desinteresse da nossa política exterior. Certo, na massa
geral da população platina, não foi possível apagar
subitamente seculares e profundas animosidades, cujas raízes
vinham das primeiras instalações de espanhóis e portugueses
no continente. Mas o fim da brutal tirania de Rosas,
promovido por nós, determinou o predomínio das classes mais
cultas da sociedade argentina no governo de Buenos Aires,
criando ali uma atmosfera melhor e mais inteligente.
O
nosso
país,
pacificado
internamente
pela
interpretação parlamentarista das suas instituições, e
considerando-se afinal consolidado na sua situação
internacional, pôde então voltar ao ritmo normal da sua
evolução política. Durante aqueles doze anos, conservadores e
liberais haviam-se confundido com o mesmo esforço de boa
vontade. Ressalvado o princípio essencial do mútuo
consentimento, pela constante subordinação do poder
executivo aos votos do parlamento, todos os demais pontos de
doutrina foram voluntariamente afastados, para dominar
sobretudo a preocupação da unidade nacional. Desde, porém,
que o perigo do desmembramento havia de todo desaparecido,
desapareceram também os motivos daquela trégua entre os
partidos. Entretanto, as alterações que dali por diante se
55
observam na nossa vida pública não são provocadas por
simples decisão pessoal daqueles que poderiam ser
considerados como chefes de grupo ou diretores da opinião.
Nem mesmo o governo tenta imprimir uma orientação nova à
atividade propriamente política do país. Contenta-se apenas
em aproveitar a folga que lhe vem da paz interna e da
tranqüilidade nas fronteiras, para um grande esforço de
construção, no terreno do progresso material. Além da
realização de todos os pontos do seu programa, a política
inaugurada em 1841 havia criado uma obrigação suplementar.
Nenhuma negociação ou entendimento teve sem dúvida lugar
para tal fim. Foi apenas a aceitação generosa e espontânea de
um dever de honra, que o próprio ambiente moral fizera nascer
e aos espíritos mais esclarecidos se apresentava como
evidente. Nenhum governo devia explorar as novas condições
gerais para romper apressadamente, em proveito dos seus
amigos, o equilíbrio partidário mantido até então na política
interna.
Foi esse o estado de espírito que sugeriu ao gabinete de
6 de setembro de 1835 a reforma eleitoral da “Lei dos
Círculos”.
Para não impor ao país uma nova orientação política,
que fosse apenas o ponto de vista particular dos detentores
ocasionais do poder, resolveu-se modificar o processo
eleitoral, no sentido de uma consulta cada vez mais ampla a
profunda ao sentimento do povo. Até então a escolha de
deputados à assembléia geral, segundo o sistema indireto da
eleição de dois graus, estabelecido na lei de 19 de agosto de
1846, fizera-se por províncias. O deputado representava a
província e não, dentro dela, uma determinada circunscrição
56
eleitoral. Procurou-se ligar mais intimamente a função
legislativa ao pensamento inicial do eleitorado. Pela lei de 19
de setembro de 1855, a eleição deixou de ser feita por
províncias, para obedecer ao sistema dos círculos de um
deputado. As eleições para a legislatura de 1857 a 1860 já se
realizaram por esse processo. Entretanto, a composição da
nova câmara não parece ter correspondido às esperanças dos
mais devotados promotores da reforma. Nenhuma alteração
sensível foi observada nas opiniões do parlamento. Era a
política de conciliação que novamente voltava numa câmara
quase sempre unânime. As queixas contra a lei de 1855 não se
fizeram esperar. A reforma fora um ludíbrio. Deslocada a
eleição do critério amplo e mais elevado da província para o
estreito ambiente dos círculos, a escolha dos deputados
passava a obedecer tão-somente à conveniência dos chefes
locais, sempre interessados nas boas relações com o governo,
pela posse dos pequenos cargos de administração nas suas
comarcas. De 1857 a 1859, tudo parecia conduzir ao repúdio
definitivo da lei dos círculos, pela volta ao sistema anterior.
Mas em 19 de agosto de 1859, com a retirada do gabinete
Abaeté de 10 de dezembro de 1858, vem ao poder um
ministério que traz como seu chefe, na pessoa do então
senador Silva Ferraz, o mais ardente e extremado liberal
daquele tempo.
Para compreender exatamente o que dali por diante se
passou, é necessário prestar ainda atenção a certas
circunstâncias anteriores. O autor principal da lei dos círculos,
como chefe do gabinete de 6 de setembro de 1853, fora
Honório Hermeto, o grande ministro conservador a quem
coubera, em 1843, a sucessão governamental do Marquês de
57
Paranaguá. Continuador imediato do programa de 1841,
ninguém melhor do que ele avaliava toda a extensão do
sacrifício estoicamente aceito pelos liberais na política de
conciliação. No momento em que aquela política, graças ao
esforço comum, havia produzido todos os seus frutos, era para
ele indispensável, mais que a qualquer outro, que a volta dos
partidos às suas antigas posições se operasse num ambiente de
eqüidade e de mútuo respeito. Na sessão de 25 de julho de
1855, a câmara sentiu-se tomada de surpresa ante a vigorosa
determinação com que ele, lançando a questão de confiança, a
obrigou sem demora a definir-se entre aquele dever de
lealdade e a demissão imediata do gabinete. Honório Hermeto
porém faleceu a 3 de setembro de 1856, antes da aplicação
prática da sua reforma, e como nessa primeira prova ela
automaticamente não produzisse os resultados desejados, os
nobres sentimentos que a ditaram, logo foram sendo
esquecidos. Muito se argumentava com a deletéria influência
dos pequenos interesses locais no funcionamento do novo
processo eleitoral. Mas em verdade, o que os elementos de
reação mais censuravam na lei de 1855, era a sua muito
acentuada orientação liberal. As individualidades médias do
parlamento esperavam apenas que aquela lei chegasse às
vésperas das novas eleições gerais bastante desmoralizada,
para que a sua revogação pura e simples se impusesse como
uma necessidade evidente.
Felizmente os homens mais diretamente ligados às
grandes responsabilidades da política de conciliação, tanto no
Conselho de Estado como nas duas câmaras, não tiveram
dificuldades em compreender tudo quanto havia de deselegante
e mesmo de perigoso naquela deplorável tendência. O
58
ministério de 19 de agosto nasceu claramente da preocupação
de contar e sustar tamanho deslize. A princípio ele parece
surgir quase sem programa determinado. O discurso com o
qual Silva Ferraz o apresenta é todo feito de prestigiosas
generalidades, destinadas muito mais a obter as boas graças
dos grupos parlamentares para a nova composição, que a
revelar o seu exato pensamento. “Saídos do seio da
representação nacional, diz Silva Ferraz, conhecemos
perfeitamente a nossa responsabilidade e as condições do
sistema representativo. Envidaremos, pois, todos os nossos
esforços, a fim de podermos manter a necessária harmonia
entre o poder executivo e as câmaras legislativas. Nesse
intuito, lançaremos mão de todos os meios legítimos para obter
a confiança que é essencial a um gabinete parlamentar que sai
do seio da representação nacional”. A esta reverência elegante
e bem colocada, o presidente do conselho acrescenta apenas
uma série de boas intenções, no gênero de “manter as
instituições juradas,(11) observar e fazer observar com
lealdade a legislação do país, promovendo ao mesmo passo o
seu melhoramento e perfeição como a experiência o
aconselhar...” Era muito pouco como programa objetivo de
administração. Mas para aquela câmara, produto de uma
corrente de idéias já passada e que não sabia bem o que ainda
fazia ali, era sem dúvida o suficiente. Silva Ferraz obteve a
maioria necessária à vida do seu governo. O seu verdadeiro
programa, aquele que ele realmente trazia, só se revela porém,
quando ele lança o seu projeto de reforma da lei de 1855,
propondo o alargamento dos círculos de um para três
deputados. De certa forma aquele projeto parecia atender às
críticas levantadas contra a lei de Honório Hermeto. O
59
alargamento dos círculos eleitorais traduzia-se afinal numa
certa restrição ao poder dos chefes locais, em benefício de um
critério mais selecionado e mais alto. A verdade, entretanto, é
que Silva Ferraz procurava apenas salvar o princípio liberal da
eleição direta, que, mantido em seus primeiros rudimentos, o
máximo possível, naquele instante, deveria triunfar
completamente muito mais tarde, na grande lei Saraiva de
1881. Quando a reforma, aprovada na câmara dos deputados,
entra na ordem do dia do senado, ele põe uma calma e segura
franqueza em defendê-la. Um senador lhe pergunta para que
alterar a lei dos círculos, se lhe parece tão sábia. Ele responde:
“Precisamente para que ela não morra!...” Na primeira casa do
parlamento, a discussão, conduzida pelo ministro liberal, já
assumira diante dos conservadores um caráter de extremo
apelo às solenes obrigações de um fideicomisso. Os
conservadores eram implicitamente chamados à compreensão
de que o respeito aos princípios do sistema eleitoral de 1855,
era para eles um dever de fidelidade à memória de Honório
Hermeto. Na câmara alta essa feição do debate ainda mais se
acentua. A maioria conservadora recorrera ao expediente
parlamentar da obstrução. Resistia-se pela simples inércia.
Mas, a um momento dado, o Visconde de Abaeté, com toda a
sua autoridade de presidente da assembléia, levanta-se ao lado
do chefe do governo. Dados os antecedentes do projeto, ele
severamente observa aos seus pares que aquela atitude era
indigna de senadores do Império. A discussão é encerrada
então rapidamente. Alguns dias depois, a 18 de agosto de
1860, levava Silva Ferraz a segunda lei dos círculos à sanção
do Imperador.
60
A ação do gabinete de 10 de agosto de 1859 evitou à
evolução política do nosso país, senão um grande desastre,
pelo menos uma deplorável e perturbadora suspensão. A
câmara de 1855, ao verificar, em 1857, que a primeira eleição
procedida segundo a reforma eleitoral de Honório Hermeto
redundara numa quase integral renovação do seu mandato,
apossou-se da convicção, sem dúvida excessiva e apressada, de
que a corrente de opinião por ela representada era ainda e seria
por muito tempo, a legítima e insofismável expressão do
sentimento brasileiro. Nela estava ali a política de conciliação,
a reafirmar-se tão oportuna e necessária como nos dias da
pacificação das províncias ou das lutas do Rio da Prata(12). Os
deputados porém, não haviam feito entrar nos seus cálculos um
elemento de grande significação prática. Era a lentidão com a
qual, são sabor dos meios de comunicação daquela época, uma
nova corrente de idéias se estabelecia sobre uma vasta
extensão territorial como a nossa. O país não havia tido ainda
o tempo de reagir convenientemente sob as novas condições
criadas pelo encerramento definitivo das questões do Prata.
Nos fins de 1855, a nação não se tinha ainda afeito à certeza
da sua perfeita segurança. Mas, a partir daquele instante,
começa a desenhar-se uma consciência diversa. Nas escolas,
na imprensa, nos clubes políticos, nos auditórios da justiça,
surgira uma geração nova a ansiar pelo reatamento imediato da
nossa ascensão democrática. Entretanto aquele parlamento de
fim de época, incapaz de abandonar a estreita prudência de
1841, queria ainda impor ao Brasil uma política, em falta de
melhor, exclusivamente voltada para os interesses materiais. A
lei eleitoral de 1860, salvando a obra generosa de Honório
61
Hermeto, veio evitar a insistência nesse estreito e insensato
ponto de vista.
A câmara eleita pelo sistema dos círculos de três
deputados, para a legislatura de 1861 a 1864, foi realmente
uma síntese luminosa e perfeita da alma brasileira daquele
instante. De todas as correntes doutrinárias ali se apresentaram
os homens mais brilhantes e expressivos. Joaquim Nabuco, ao
examinar no seu grande livro, “Um Estadista do Império”, as
conseqüências daquela eleição, exclama: “com ela recomeça a
encher a maré democrática”...” A princípio, conservadores e
liberais, segundo os caracteres doutrinários com que os
partidos passaram da Regência para o segundo reinado,
pareciam equilibrar-se no novo parlamento. O gabinete Silva
Ferraz demitira-se em fevereiro de 1861, sem esperar a
situação parlamentar preparada pela reforma. Na escolha do
governo que o substituiu, evidentemente influiu o prognóstico
de que a nova câmara, naquelas condições de equilíbrio
partidário, ainda continuaria a dispensar o seu apoio aos
programas neutros e de pura administração. Seria ainda, como
em 1857, um prolongamento da velha câmara cujo mandato
expirava, e desta forma todas as probabilidades , por uma
simples questão de lógica ou mesmo simpatia, deviam estar do
lado de um governo conservador. Foi assim que surgiu o
gabinete de 2 de março, presidido pelo Marquês de Caxias.
Os conservadores certamente acreditaram galvanizar
naquele momento a sua situação política, com o prestígio
nacional do novo presidente do conselho, e tudo indica que o
Marquês de Caxias aceitou satisfeito essa incumbência. As
palavras com que ele apresenta o gabinete ao senado, são
sobremodo elucidativas a tal respeito: “Os princípios do
62
gabinete, diz ele, estão bem indicados pelos precedentes das
pessoas que dele fazem parte. Os meus colegas e seu somos
conhecidos; por isso penso que me posso dispensar de dizer
qual o sentido em que dirigimos os negócios da governança”.
Nada de reformas. Apenas a observância fiel da constituição e
uma rigorosa economia no emprego dos recursos do Estado.
Era bem a velha política de conciliação garantida contra
acidentes parlamentares, nos seus últimos arrancos, pelo
grande nome do pacificador das províncias, tornado ainda mais
ilustre com a rápida liquidação militar dos negócios do Prata.
Caxias, a par da sua grande capacidade militar, não
dispunha desse fino trato das situações, que é o primeiro sinal
de um apurado senso político. Sem essa desvantajosa
circunstância, é provável que ele não houvesse esperado no
governo a inauguração da nova legislatura. Apenas a câmara
recém-eleita se reúne para as suas primeiras sessões
preparatórias, logo se revelam claramente as novas tendências
que a dominam. A esquerda dos conservadores, inclinando-se
fortemente para a direita dos liberais, fez surgir o
conglomerado intermediário da “Liga Progressista”. O
equilíbrio esperado estava roto em favor dos liberais. Não
havia como manobrar com o novo grupo como contrapeso,
entre as duas agremiações principais. O pensamento dos
progressistas, partindo do princípio que as liberdades
individuais são a base do sistema representativo, propunha -se
imediatamente a revogar a lei do processo criminal de 1841,
restringindo as faculdades da polícia em favor da autoridade
judiciária. Era para os liberais um programa mínimo, ao passo
que para os conservadores se apresentava como uma inovação
perigosa e inaceitável. Sob o ponto de vista prático da
63
formação de uma maioria no parlamento, era evidente que a
manifestação progressista se resolvia afinal num reforço do
partido liberal, pela súbita adição de uma dissidência
conservadora.
Apesar de toda a confiança depositada pelos
conservadores no prestígio pessoal do Marquês de Caxias, o
gabinete não pôde resistir ao seu primeiro contato com aquela
câmara. No dia 21 de maio de 1862, a comissão do voto de
graças submetida à aprovação do plenário a redação da
resposta à fala do trono, lida no dia 3, na abertura dos
trabalhos parlamentares. O presidente declara aberta a
discussão sobre o texto da comissão. Era o governo que
primeiro competia pronunciar-se, aceitando, pedindo a
modificação ou totalmente recusando a resposta redigida. Mas,
antes que o ministério revelasse seu pensamento, levanta-se o
deputado Francisco Octaviano e requer o encerramento
imediato da discussão. “A oposição prescinde de discutir com
os ministros...” explicou ele. E o requerimento foi aprovado. A
câmara voltava simplesmente as costas ao governo, e daí a
algumas horas, sem encontrar reparação àquele desastre,
Caxias entregada ao imperador a demissão coletiva do
ministério.
Perante a câmara saída da grande reforma eleitoral da
segunda Lei dos Círculos, a política de conciliação esvaíra -se
como uma sombra do passado. Não há a mínima dúvida de que
aquela política representara um formidável esforço de
contenção sobre as preferências doutrinárias dos partidos,
reduzindo todos eles aos limites de uma disciplina geral, que
se tornara indispensável à própria existência da pátria. Mas
não se poderia imaginar uma ilusão mais completa, um mais
64
grosseiro erro de psicologia do que atribuir aquele generoso
fenômeno social à imposição de qualquer vontade isolada
sobre o sentimento coletivo. Pretender que aquela espontânea
e impressionante concentração do país sobre si mesmo se
tenha operado por uma decisão pessoal do imperador ou de
qualquer dos seus ministros, nem mesmo chega a ser um erro:
- é apenas uma puerilidade. Foi a própria nação, desde que lhe
foi dado manifestar-se de uma forma adequada na representação coletiva das câmaras, quem soube descobrir e aplicar
a política mais natural e acertada. A circunstância da
orientação geral de 1841 só se haver modificado em virtude de
uma profunda renovação dos corpos legislativos, é a melho r e
mais segura prova de que o governo, de fato, esteve sempre no
parlamento e jamais na vontade pessoal do chefe do Estado.
NOTAS
(10) Ele mesmo o confessou na noite em Montes Caseros, dizendo ao
ministro da Inglaterra, em cuja legação se encontrava hom isiado: - A este
pueblo yo lo he montado, le he apretado la cincha, le he clavado las
espuelas, há corcoveado; no es él que me há volteado... son los macacos .
(Vide Lucio V. Mansilla, Rosas, pág. 133).
(11) Esta expressão – instituições jurados – na boca dos liberais que
nutriram sempre o íntimo desejo de reformar a constituição de Pedro I,
nunca deixava de ter um sabor todo especial...
(12) O gabinete de 6 de setembro de 1853, que fez a primeira lei dos
círculos, foi substituído pelo gabinete de 4 de mai o de 1857. O Marquês
de Olinda, ao apresentar este gabinete Pa nova câmara, como presidente,
teve de dizer que o seu programa era “a expressão franca e leal dessa
política, que, proclamada do alto do trono e levada à execução, tem
conseguido fazer tender os espíritos para a concórdia e moderação...”
65
CAPÍTULO IV
A SITUAÇÃO GERAL NO INÍCIO
DA GUERRA DO PARAGUAI
O progresso político que realizáramos de 1840 a 1862
fora de ordem puramente funcional, Os órgãos essenciais do
Estado conservaram-se inalterados, modificando-se apenas as
relações que mutuamente os ligavam na prática política e
administrativa. Mas a constituição do império continuou a ser
a mesma. Apesar do complemento que lhe fora dado em 1834
com o Ato Adicional, posteriormente alterado nas
modificações fora do texto de 1842, aquela constituição
conservou-se, na sua origem, a mesma carta de direitos
outorgada pela vontade soberana do primeiro imperador.
Pouco importava que nas suas disposições aparentes ela
refletisse o universal movimento de idéias provocado pela
revolução francesa de 1789. De maneira alguma teria sido
possível a Pedro I esquecer, ao encomendá-la, o formidável
fenômeno social cujas seqüências arremessaram em 1807 as
baionetas do general Junot sobre a sua pátria de origem,
forçando-o a fugir com os seus pais para o Brasil: No decreto
de dissolução da constituinte, ele bem dissera que por si
mesmo promoveria uma nova constituição, “duplamente mais
liberal” que a outra destruída no nascedouro. Mas o
liberalismo que Pedro I assim nos prometia duplicado, era o do
Congresso de Viena... Admitia-se que os diferentes órgãos do
poder público fossem de origem popular, mas com a inevitável
condição de, numa esfera mais alta, todos eles se submeterem
66
à autoridade maior da coroa. Sua Majestade, pe,a sabedoria
imanente da sua própria natureza real, pairava necessariamente
acima de todos os juízes. Essa era para o nosso primeiro
imperador a idéia central em torno à qual deviam girar todos
os dispositivos da constituição do império. A adaptabilidade
daquela “cata” aos costumes políticos do segundo reinado,
fora um simples resultado de interpretação. Desde porém, que
nela se mantinha o poder moderador, com regulador final das
relações do parlamento com o ministério, era evidente que não
estava afastada a hipótese de uma eventual superposição da
coroa à vontade dos corpos legislativos.
A reforma da constituição de 1824, retirando-lhe o
caráter de outorga real para transformá-la numa voluntária
declaração de direitos, voltou, portanto, a ser o objeto
principal das nossas cogitações políticas. Sob o ponto de vista
da legislação comum, era urgente revogar a lei do processo
criminal de 1841 e livrar os cidadãos do permanente atropelo
em que para eles se transformava a obrigatoriedade do serviço
na guarda nacional, regulada pelo simples arbítrio dos
presidentes de província. Mas a grande questão, aquela para a
qual conduziam todos os raciocínios e que estava virtualmente
ao fim de todas as discussões, era a da revisão constitucional.
A reabertura dos trabalhos parlamentares em 1862,
automaticamente repôs o problema político do Brasil nos
mesmos termos em que o colocara a dissolução da constituinte
de 1823, com a sua conseqüência da “carta” de 1824.
Entretanto, aquele problema tão evidente não logrou
naquele momento ser aceito com exatidão por todos os
elementos adiantados do nosso mundo político. Aqueles que
entraram a flutuar entre o partido liberal e o partido
67
conservador com o nome de progressistas entenderam de
limitar-se apenas ao ponto subsidiário da legislação ordinária,
deixando de lado a questão essencial da revisão., O programa
progressista limitava-se afinal a uma nova regulamentação dos
dispositivos constitucionais atinentes à liberdade individual,
sem em nada alterar a própria constituição do império. Era
apenas uma base de aproximação para moderados.
É fácil compreender que com aquele programa a liga
progressista não passasse de uma organização intermediária e
pouco numerosa, que jamais poderia formar um governo e,
sobretudo, mantê-lo por algum tempo, sem o apoio de um dos
dois grandes corpos partidários que de um lado e de outro a
extremavam. O gabinete de 24 de maio, presidido pelo senador
Zacarias de Gois, organizou-se na suposição de que a maioria
parlamentar do dia 21, que determinara a queda do ministério
Caxias, já fosse uma maioria definitiva, indicando a fusão de
progressistas e liberais num só partido. Bastou porém, que o
novo governo revelasse as suas idéias perante a câmara, para
aquela ilusão de todo desaparecer. Os liberais mantinham -se
rigorosamente fiéis aos seus princípios. A confusão com
homens de outras idéias no momento da crise ministerial fora
um ato espontâneo de tática parlamentar, sem nenhuma
conseqüência de ordem doutrinária; No dia 28, quatro dias
apenas do seu nascimento, o gabinete literalmente se
desmanchava. Os liberais deixaram-no morrer ante uma seca e
peremptória moção conservadora, aprovada com verificação
nominal de votação.
Veio então um gabinete presidido pelo Marquês de
Olinda. Naquele momento de transição, o velho regente trazia
o seu grande prestígio pessoal como um elemento de
68
ponderação e de equilíbrio. Uma rápida frase do discurso com
que se apresenta perante a câmara resume todo o seu
programa: “Esta solução pede estudo!...” Ele não vinha opor se às reformas. Pedia somente que se tomasse o tempo de
estudá-las. Mas, sem conseguir dominar a agitação
parlamentar, apesar de todo o seu valimento, ele teve de apelar
para novas eleições gerais. A câmara de 1862 foi dissolvida
em maio de 1863, fixando-se a reunião extraordinária de uma
outra para janeiro de 1864.
Não se pode propriamente dizer que o governo tenha
sido derrotado nas eleições que formaram a câmara de 1863. O
marquês de Olinda, pela situação moral que os seus grandes
serviços ao país lhe assinalavam no mundo político, não podia
ser naquele momento um agente de competições partidárias.
Assumindo o poder depois de duas quedas de gabinete, entre
as quais medeara apenas o tempo de uma semana, o seu
empenho foi imediatamente o de evitar que tão rápida
prosseguisse aquela dança de ministérios. De fato ele o
conseguiu durante sete meses. Vendo porém, esgotado o seu
prestígio pessoal, preferiu o apelo direto à opinião pública, a
entregar o poder a um governo previamente condenado a ruir
no seu primeiro contato com o parlamento. Era necessário uma
câmara na qual a corrente predominante se acentuasse bastante
para garantir um governo estável.
Com a reunião da nova câmara em janeiro de 1864
estava virtualmente terminada a missão do gabinete Olinda. O
governo ia resultar da proporção mantida por liberais,
progressistas e conservadores no novo parlamento. A princípio
manifestou-se o receio de que se reproduzisse a instável e
perturbadora situação anterior. As três correntes efetivamente
69
pareciam guardar entre si, sob o ponto de vista numérico, as
mesmas relações observadas na câmara dissolvida. No
intervalo operara-se entretanto uma sensível evolução dos
conservadores para a esquerda. Os progressistas haviam
consolidado as suas ideais, exclusivamente voltadas à garantia
das liberdades individuais, num grande programa escrito, que
se iniciava pelo repúdio da revisão constitucional, da eleição
direta e da descentralização política. Com ressalva de
modificação da lei do processo criminal de 1841 e de outras
medidas, liberais como aquela, mas de caráter puramente
administrativo, eram, em essência, as próprias idéias
conservadoras que eles proclamavam. Os conservadores assim
o compreenderam, tanto mais que naquele momento já não
pareciam indispensáveis nem mesmo necessárias as antigas
disposições policiais do Marquês de Paranaguá. Os dois
partidos não se fundiram. Mas para ver quanto mentalmente os
aproximou aquele concordante e simultâneo apego à
constituição de 1824, basta saber que naquele instante os
conservadores
adotaram
a
designação
de
“partido
constitucional”, enquanto os progressistas consentiram em ser
chamados de “liberais-conservadores...” Esse ambiente foi
propício ao aparecimento de um novo gabinete Zacarias de
Góis, Formado no dia 15 de janeiro, no dia 18 o ministério
comparecia perante a câmara. Zacarias, solenemente, o
apresentava nas seguintes palavras:
- “Sr. presidente, há quase dois anos que, encarregado
pela coroa da honrosa tarefa de organizar o gabinete de 24 de
maio, coube-me expender aqui um programa que então
mereceu, e que os acontecimentos ulteriores persuadem que
continua a merecer o assentimento do país. Chamado, pois,
70
agora, em conseqüência do desenlace desses acontecimentos, a
organizar o gabinete que no dia 15 do corrente sucedeu ao de
30 de maio, venho com os meus colegas declarar à câmara,
como nos cumpre, que as normas por que se tem de reger o
novo ministério na gerência dos negócios públicos estão em
geral designadas no programa aludido... Do mesmo modo que
em 1862, hoje entra no plano do governo alterar-se a lei de 3
de dezembro de 1841, no sentido de dar mais garantias à
liberdade individual, e separar a polícia judiciária da
administrativa; rever-se a legislação sobre a guarda nacional,
no intuito particularmente de aliviar o mais possível o ônus do
serviço ordinário... Tal é, senhores, o programa do gabinete.
Entre o programa do gabinete de 24 de maio de 1862 e o de 15
do corrente há uma diferença, que eu devo assinalar. Em 1862
o ministério aludiu ao concurso de duas opiniões com que
contava para levar por diante o seu pensamento político. As
duas opiniões políticas, porém, que este salão viu naquela
quadra após debates públicos e solenes, aliaram -se, sem
quebra de princípios, nem da dignidade de ninguém, formam
hoje uma só opinião, um só partido, cujo alvo é promover
sinceramente, sem nada alterar na Constituição do Império, a
prosperidade do país...”(13)
Referindo-se a duas opiniões que naquele instante se
reuniam “num só partido”, o presidente do conselho anunciava
certamente a fusão final dos liberais na liga progressista. A
aliança eventual e passageira da sessão da câmara de 21 de
maio de 1862, ali tornava-se definitiva, para garantir ao
gabinete uma maioria duradoura e eficaz. Mas Zacarias
enganava-se. Com o seu programa de inalterabilidade da
constituição, muito mais próximo estava ele dos
71
conservadores, dos “constitucionais”, a quem não solicitava,
que daqueles cuja aliança almejava até aquele ponto de iludir se. Entre “liberais-conservadores” e “constitucionais” não
houve nenhum ensaio de entendimento direto. A identidade de
idéias encarregou-se porém, de estabelecer entre eles uma
invisível ligação, que, para o governo, se transformava, mesmo
a contragosto, numa inevitável garantia de estabilidade. Não
era propriamente na câmara, onde eram reduzidos os
elementos nitidamente conservadores, que naquele fenômeno
se operava. Era do senado e do conselho de Estado que ele
vinha reagir sobre a conduta ainda incerta e flutuante dos
deputados. A decisão individual valia muito pouco em tudo
aquilo. Havia uma espécie de ambiente moral em evolução,
que insensivelmente ia preparando os acontecimentos. A fusão
liberal-progressista, apesar de combinada entre os chefes dos
dois grupos, na prática revelava-se impossível. Ao mesmo
tempo o governo, em manter-se, ia sentindo a influência
desdenhosa e distante, mas irrecusavelmente providencial dos
conservadores. Debalde o conselheiro Nabuco procurava da
tribuna do senado ativar aquela fusão, defendendo, com o
programa progressista, a preferência das liberdades individuais
sobre as liberdades políticas. À sua clara e incisiva dialética
ele juntava a citação de Laboulaye: “As liberdades políticas
são as garantias das liberdades individuais. Todas são
necessárias, mas o caráter do novo partido liberal, é ter enfim
compreendido que as liberdades políticas não são nada por si
mesmas; são formas vazias e enganadoras, se não há por trás
delas esses direitos individuais, que são o fundo e a substância
da liberdade”. O conceito era justo e certamente de uma
grande beleza. Mas dele mesmo os liberais brasileiros eram
72
forçados a deduzir que, para querer uma coisa no tempo, isto
é, para querê-la como um fato prolongado e constante, é
indispensável querer simultaneamente as suas garantias
necessárias. Nabuco, em 1862, ao ver os partidos emergirem,
mesclados e indecisos, da política de conciliação, dissera -lhes
com absoluta propriedade: “Legitimai-vos pelas idéias; só as
idéias podem gerar o antagonismo, só o antagonismo mantém
os partidos...” Foi esse o conselho seu que foi ouvido. A
esquerda liberal, restabelecendo a sua filiação com os
revolucionários do primeiro reinado e da Regência,
imediatamente caracterizou-se no grupo dos “liberais
históricos”, em torno à clara e nítida bandeira da revisão
constitucional.
É conveniente prestar uma grande atenção a esse evoluir
de “nuances” partidárias. É a própria vida das idéias que aí
observamos. O desconhecimento desse dado psicológico
fundamental, ou a incapacidade de com ele jogar na análise
social do segundo reinado, tem conduzido os escritores atuais
a conclusões de uma clamorosa superficialidade. Sem restituir
esse elemento moral constante à sua função exata, nós
seríamos fatalmente levados a considerar apenas o aspecto
material dos acontecimentos, tudo explicando por simples
interesses pessoais ou paixões imediatas. Muitos dos cronistas
posteriores a 1889 assim têm procedido. Mas eles não têm
feito mais que estabelecer uma lamentável confusão, pela
tendenciosa projeção da moral da sua época sobre homem e
coisas de um outro tempo...
Quando hoje cotejamos a feição doutrinária do gabinete
de 15 de janeiro com os esforços por ele empregados no
sentido de uma aliança com os liberais extremados,
73
imediatamente recebemos a sensação de uma profunda
incoerência. Zacarias de Góis, a pensar, em suma, com os
conservadores, pre5endia apesar disso basear no partido
adverso a sua política parlamentar. Esse contrasenso não era
entretanto tão irredutível quando nos possa à primeira vista
apresentar-se. O que separava Zacarias da intrépida e vigorosa
falange dos liberais históricos, eram simples diferenças de
processo. No terreno dos princípios, jamais ninguém foi no
Brasil mais liberal, mais segura e conscientemente liberal do
que ele. Conquanto entrasse na vida parlamentar em 1850 ao
lado dos conservadores – o que não admira, dado o ambiente
especial da política de conciliação – a sua estréia na câmara
dos deputados foi uma prova de convicções tão poderosa e
frisante, que, na sua esplêndida clareza, chegou a alterar
definitivamente a posição teórica da coroa no nosso conceito
do Estado. Nos papéis oficiais e nos discursos do parlamento,
até então fora atribuída ao imperador a designação de
“soberano”. Mas, dando a comissão do voto de graças esse
apelativo ao Chefe de Estado na resposta à fala do trono de
1850, Zacarias de Góis impugnou imediatamente a
qualificação, dizendo que, no Brasil, de acordo com a letra da
constituição, soberana era a nação e não o imperador que dela
era apenas o delegado. Desse momento em diante, nunca mais
entre nós alguém falou de “soberano”, referindo-se ao
imperante.(14) Para quem saiba dar às palavras o seu exato
valor, no direito público, esse fato não pode deixar de assumir
uma grande significação. Não seria possível negar de boa fé os
sentimentos liberais de Zacarias de Góis. O que se dava, é que
o professor de Direito Natural da antiga faculdade de Olinda,
era uma forte organização de jurista e homem de Estado, em
74
quem a preocupação lógica constantemente sujeitava todas as
idéias e pensamentos a um programa uniforme, rigorosamente
objetivo. O anacronismo que consistiria em pensar na cúpula
de um monumento, antes de lhe cuidar dos alicerces, parecia lhe sem dúvida uma heresia, não sendo portanto de estranhar
que a sua repugnância em aderir desde logo ao programa dos
liberais históricos se apoiasse em algum sólido e respeitável
motivo de ordem. Qual seria entretanto esse motivo? Que
obstáculo para Zacarias se interpunha entre as idéias
progressistas e a plataforma dos liberais históricos? Foi essa a
revelação que ele não pôde ou não quis fazer. Neste ponto, por
ora, seja-nos lícito supor apenas que talvez ele a houvesse
feito no decorrer de 1864, ou, o mais tardar, na fala do trono
de 1865, se as graves complicações que de novo surgiram nas
fronteiras do Sul, não lhe viessem perturbar e tolher toda ação
eficaz na política interna.
A situação do Rio da Prata, depois da queda de Rosas,
não se manteve infelizmente na calma que seria de desejar
para a nossa perfeita tranqüilidade internacional. Na República
Argentina instalara-se, é certo, um governo culto e nobremente
inspirado. A ascensão do presidente Bartolomeu Mitre, como
conseqüência da sua vitória sobre Urquiza na batalha de
Pavon, havia realmente iniciado a era do grande progresso
argentino. No Uruguai, porém, as coisas se passavam de
maneira diversa. Ali, a guerra dos caudilhos se mantivera, O
poder, arrebatado de mão em mão, continuava a ser o prêmio
de sangrentos torneios de cavalaria. O governo imperial,
constantemente incomodado nas suas fronteiras, via ainda,
com um sobressalto bem compreensível, que os uruguaios não
sabiam pensar nos seus negócios internos, sem colocá-los em
75
função dos seus sentimentos para com os Estados vizinhos. Ser
“colorado”, em Montevidéu, era ser amigo dos governos do
Rio de Janeiro e de Buenos Aires, desejando a manutenção da
República Oriental nos limites do tratado de 1828, como ser
“blanco” era inclinar-se para a irrequieta e rude gauchada de
Corrientes e Entre-Rios, estendendo a mão, através dela, ao
ditador Solano Lopez, do Paraguai.
Para admitir, como depois se tem pretendido, que o
governo do Brasil pudesse conservar-se indiferente àquela
tumultuosa e confusa situação, é necessário certamente
considerar a nossa política exterior daquele tempo pelo prisma
da mais cândida e delirante ideologia. Da viabilidade da nação
uruguaia dependia a paz na América do Sul, e para nos prender
à sorte daquele país vinham-se juntar aos interesses mais
imediatos da nossa defesa externa, as obrigações que
solenemente assumíramos em três sucessivos tratados
internacionais. O governo imperial não só era forçado a uma
incansável vigilância diplomática na bacia do Prata, como não
podia afastar de si a hipótese de uma nova intervenção militar,
segundo os fatos ali se apresentassem. Naquele ano de 1864,
estando os “blancos” no poder com o presidente Aguirre, a
luta deles com os “colorados” chefiados pelo general Venâncio
Flores, assumira um caráter de extrema gravidade
internacional. Os uruguaios encontravam-se positivamente
naquela especial situação dos povos que, segundo Maquiavel e
Montesquieu, estando a ferver internamente, não estão longe
de escaldar os seus vizinhos. A guerra civil ameaçava
estender-se às fronteiras do Brasil e da Argentina, atraindo
para sua área de ignição a considerável massa militar do
exército paraguaio. Do nosso lado, aquela ameaça já se
76
concretizara mesmo em várias incursões feitas pela gente de
Aguirre no município de Jaguarão, com sérios prejuízos, não
só para a propriedade privada, como para a segurança pessoal
dos habitantes. O governo imperial viu-se no dever de intervir,
tanto por aquelas razões de ordem moral, como principalmente
para obter a devida reparação daqueles agravos. O gabinete
Zacarias de Góis, começando por fazer cobrir a fronteira de
Jaguarão por uma força ao mando do general Barão de São
Gabriel, mandou em missão especial a Montevidéu o
conselheiro José Antônio Saraiva. A missão não era fácil.
Tratava-se de obter satisfações no presente e garantias para o
futuro, de um governo que, primeiro, não tinha para conosco a
mínima boa vontade, e, segundo, não sabia até quando
valeriam as suas decisões, dado que a revolução já ocupava a
maior parte do território da República. O nosso enviado
especial ia ser arrastado a discutir a própria situação política
interna do presidente Aguirre. O governo argentino mandou
então o seu secretário do exterior, Rufino de Elizalde, juntar se ao conselheiro Saraiva em Montevidéu, acompanhado pelos
bons ofícios do ministro Thornton, representante da Inglaterra
em Buenos Aires. Dessa tríplice intervenção, resultou, com
certa facilidade, um protocolo no qual Aguirre e Florez se
acordavam em pôr termo à guerra civil, reorganizando-se o
governo uruguaio para nele entrarem simultaneamente
“blancos” e “colorados”. Mas, por trás do presidente Aguirre,
elevava-se, lá de Assunção, a figura torva e misteriosa do
ditador Solano Lopez. Os “blancos”, avisados de que o
exército paraguaio se aprestava a marchar em seu favor,
brutalmente repudiaram o protocolo já firmado. Só restou ao
conselheiro Saraiva retirar-se a Buenos Aires, precipitando
77
todas as nossas reclamações num severo e vigoroso
“ultimatum”.
Estes fatos são de conhecimento corrente, para qualquer
pessoa medianamente versada em História sul-americana. Em
torno deles, porém, tem-se levantado depois de 1889 uma tão
intrincada e tendenciosa rede de interpretações, que não nos
seria possível examinar a influência que tiveram na nossa vida
daquele tempo, sem deles tentar previamente uma
recapitulação simples e clara.
O desfecho que teve a missão Saraiva não podia deixar
de traduzir-se, para o gabinete de 15 de janeiro, num insucesso
evidente. As condições da política interna agravaram-se de tal
maneira, que, no dia 31 de agosto, o ministério era substituído
por um outro sob a presidência do conselheiro Furtado. O nov o
gabinete apresentava-se ao parlamento com uma plataforma
rigorosamente progressista. Era a mesma limitação das
reformas desejadas ao estrito campo da legislação ordinária,
com menção especial da lei de 1841 e dos pesados
regulamentos da guarda nacional. Mas, se a segurança
doutrinária de Zacarias de Góis o permitia manter-se
independente do partido conservador, apesar de, na política
prática, dele aproximar-se pela moderação do seu programa
imediato, o mesmo não se deu com o novo presidente do
conselho. Furtado, aceitando o “minimum” das idéias
progressistas, sem a íntima polícia de uma firme reserva
mental para o futuro, facilmente confundiu-se com os
constitucionais, criando uma situação falsa que a ninguém
podia convir. Não digamos que ele estivesse na obrigação de
sistematicamente afastar do seu governo o concurso dos
conservadores, sobretudo nas funções públicas especializadas.
78
É porém, curial que esse concurso jamais poderia operar
eficazmente, se não fosse em condições de ressalvar todas as
susceptibilidades, evitando qualquer mal-entendido.
O desenvolvimento da missão do Prata, confiada pelo
governo anterior ao conselheiro Saraiva, era o que primeiro
solicitava os cuidados do gabinete. Saraiva, com a demissão de
Zacarias, considerava-se desautorizado. Era indispensável
substitui-lo. O governo dirigiu imediatamente as suas vistas
para um conservador, o conselheiro Silva Paranhos, depois o
grande Visconde do Rio Branco. A escolha era excelente. Não
resta porém, a menor dúvida de que o conselheiro Furtad o não
soube estabelecer entre si e o novo enviado extraordinário, o
ambiente de mútua e inalterável confiança que a ambos
conviria numa empresa tão difícil e delicada. Paranhos, ao
chegar ao Rio da Prata, encontrou-se diante de uma situação
de fato que em muitos pontos aberrava de todas as regras do
direito das gentes. Em frente a Montevidéu estacionava uma
esquadra brasileira ao mando do almirante Marquês de
Tamandaré. Apenas o governo de Aguirre recusou -se a aceitar
os termos do “ultimatum” apresentado pelo conselheiro
Saraiva, a nossa esquadra entrou logo a mover-se de concerto
com as forças do general Florez, ao mesmo tempo que o Barão
de São Gabriel levantava o seu acampamento de Jaguarão,
invadindo também por sua vez o território da república. Toda
esta atividade militar plenamente justificava-se, dado o ponto
a que haviam chegado as nossas relações com o governo de
Montevidéu, agravadas ainda naquele instante pela intervenção
formal do ditador paraguaio, a nos ameaçar, intratável e
sobranceiro, de um imediato rompimento de hostilidades. Não
havia realmente tempo a perder. Era urgente liquidar o nosso
79
diferendo com o Uruguai, antes que pudesse estabelecer -se a
conjugação militar de Aguirre com Solano Lopez. Mas as
indispensáveis formalidades jurídicas não haviam sido
observadas. Tamandaré chegara a decretar o bloqueio do porto
de Montevidéu, por um simples aviso às delegações
estrangeiras ali acreditadas, sem mesmo esperar que a guerra
estivesse oficialmente declarada. A vigorosa atividade dos
nossos chefes militares, determinando a queda de Paissandu e
a junção do exército partido de Jaguarão com as tropas do
general Flores, era, sob o ponto de vista estratégico,
providencial e necessária. Os “blancos”, sitiados em
Montevidéu, viram-se privados das suas comunicações
habituais, e portanto isolados do Paraguai. Mas a situação
geral tornara-se absurda e tanto mais incômoda quanto o
governo de Buenos Aires se dissolidarizara do governo
imperial, declarando a sua completa neutralidade naquela fase
nova do conflito. Os primeiros esforços de Paranhos
consistiriam em repor as coisas nos seus devidos lugares.
Depois, afastando os brasileiros dos postos avançados, para,
diretamente, deixar apenas uruguaios em face de uruguaios,
ele agiu com tamanha habilidade que, de parte interessada,
tornou-se árbitro na contenda. Montevidéu capitulou sem ser
investida, e os “blancos” entregaram o governo ao general
Florez que, nosso aliado, previamente reconhecera toda a
justiça das reclamações brasileiras. Considere-se que tudo isto
se passava quando Solano Lopez já invadira a nossa província
de Mato Grosso e tomava as últimas disposições para ameaçar nos na fronteira do Rio Grande do Sul, e compreende-se todo o
grande serviço prestado pelo conselheiro Silva Paranhos ao
seu país.
80
É claro entretanto que o novo enviado extraordinário
não podia alterara tão completamente a política uruguaia dos
nossos chefes militares, sem mais ou menos entrar com eles
em conflito. A substituição do fuzil e do canhão pelas notas
diplomáticas, pareceu ao Almirante Tamandaré uma estranha
maneira de compreender a dignidade do império, perante um
inimigo que havia violado criminosamente a nossa fronteira e
zombado de nós, repudiando um acordo no qual fôramos parte.
Silva Paranhos viu-se nas maiores dificuldades para evitar que
Montevidéu fosse bombardeada, num dia em que a bordo do
navio capitânea chegou a notícia de que a nossa bandeira fora
naquela cidade arrastada pela lama das ruas, num tropel
vociferador contra o Brasil. Os “blancos”, cansados pelo
bloqueio e já assustados com as conseqüências internacionais
da guerra civil, começavam a fraquear. Tamandaré não se
apercebia de que os amigos pessoais de Aguirre, praticando
aquele desatino, que aliás nunca foi bem apurado, procuravam
tão-somente prejudicar a ação do nosso representante
diplomático, levando-nos à prática de um ato violento e
irrefletido, que brutalmente ofendesse, sem distinção de
partidos, a todos os uruguaios, simultaneamente levantando
contra nós a indignação dos povos neutros. “Só um soldado
pode bem compreender o que seja uma ofensa à bandeira...”,
teria dito o velho e bravo marinheiro. Essa frase, trazida ao
Rio de Janeiro, exaltou profundamente o ânimo popular contra
os responsáveis diretos pela nossa política no Prata.
Sabe-se quanto, em todo o mundo, as massas populares
são sensíveis a frases como aquela, mesmo que não sejam
autênticas... Levando-se porém, em conta a circunstância de
ser o Almirante Tamandaré filiado ao partido liberal, logo se
81
vê quanto as preferências partidárias podiam naquele caso ter
reagido sobre os sentimentos do povo. O governo não soube,
como era seu dever indeclinável, cobrir a responsabilidade do
seu representante do Rio da Prata. Ante a irritação das ruas, os
membros do gabinete tardiamente se lembraram de que, no
fundo, eram liberais e não conservadores. O conselheiro Silva
Paranhos, depois de ter seus esforços coroados pela
capitulação incruenta de Montevidéu e a integral reparação de
todos os agravos recebidos, viu-se, sem explicações, destituído
do seu cargo e tão ostensivamente repudiado pelo governo, que
na sua volta à capital do império, a população julgou-se no
dever de apedrejá-lo!...
A mesma inconseqüente facilidade com a qual o
gabinete de 31 de agosto escolheu a Silva Paranhos para
substituto de Saraiva na missão do Prata, levou-o a ver no
general Marquês de Caxias o seu homem, assim que lhe
chegaram informações oficiais dos primeiros atos de guerra
praticados contra nós pelo governo do Paraguai. O Marquês de
Caxias, tanto pelas suas ligações com a velha política do
Marquês de Paranaguá, como por haver sofrido, na presidência
do gabinete conservador de 2 de maio de 1861, o sensacional
repúdio da câmara de 1862, tornara-se, por um natural
movimento de desagravo, o alvo de atenções especiais por
parte dos seus correligionários. As relações de estranhos com
o antigo pacificador das províncias, tornara-se politicamente
um ponto muito sensível, na epiderme dos constitucionais.
Essas delicadas circunstancias não impediram entretanto o
gabinete do conselheiro Furtado de mandar procurá-lo sem
mais cautelas. Na sua ausência de cor política exata e definida,
o governo não podia compreender toda a significação dos seus
82
gestos, nem prever as reações de ordem partidária que
provocariam.
Os liberais históricos e os conservadores, perfeitamente
seguros dos respectivos pontos de vista, não estavam, porém,
na mesma situação mental do gabinete progressista. Caxias,
muito bem disposto no primeiro instante a aceitar o comando
do exército em operações, logo depois faz saber ao governo
que a confiança militar oferecida, só podia ser aceita,
desdobrada em confiança política. Era sobre a guarda nacional
que se deviam organizar as forças para a campanha, e a guarda
nacional dependia dos presidentes de província. Logo, a
presidência da província do Rio Grande do Sul, teatro
principal das operações, era indispensável ao comandantechefe... O marechal Henrique de Beaurepaire Rohan, ministro
da guerra, que fora o emissário do gabinete junto ao marquês
achou natural e aceitou como justo aquele ponto de vista. Mas,
quando a exigência, que afinal se reduzia a substituir um
presidente da confiança dos liberais por um político
adversário, chegou ao conhecimento dos líderes do
parlamento, a repulsa foi tão imediata e peremptória que o
ministro da guerra, desautorizado, entregou o seu pedido de
demissão.
Depois de preencher com o general Visconde de
Camamu a vaga deixada pelo marechal Rohan no gabinete, o
conselheiro Furtado ainda abalou-se a uma última tentativa
junto ao Marquês de Caxias. A resposta onde o aguardava era
porém, a menos conciliatória. Caxias, além do mais, recusava se a servir sob as ordens do Visconde de Camamu,
notoriamente seu inimigo do conselho fez então ver que se
tratava de uma ordem do governo a um oficial general do
83
exército. A ordem não podia ser recusada sem evidente
indisciplina. O marquês obtemperou-lhe imperturbável, que
estava às ordens do governo, como soldado, mas, sendo
também senador do império, o governo não podia dele dispor
livremente, sem permissão da alta câmara à qual estava
incorporado...(15)
O conselheiro Furtado talvez tenha aceito essa doutrina
da neutralização da obediência militar pelas imunidades
parlamentares. Mas o gabinete estava desacreditado. Em m aio
de 1865, apenas reaberto o parlamento, ele viu-se forçado à
demissão coletiva.
Para o partido progressista, os ensaios de colaboração
direta com o partido conservador, tentados pelo gabinete
Furtado, foram apenas um desastre. A insuficiência do
programa progressista, como base de uma situação
governamental perdurável e mesmo digna, tornou-se evidente,
ficando os moderados, de um e outro lado, na rigorosa
necessidade de se definirem. A grande maioria liberal da
câmara dos deputados, trazida na legislatura 1864-66, mais
que até ali se mantivera nos limites de uma tolerância quase
inexplicável, afirmou-se então poderosamente. Em face da
influência retardatária e cautelosa da velha maioria
conservadora do senado e do conselho de Estado, os homens
novos, que as eleições pelo sistema dos círculos de 1860
mandara à vida pública, haviam afinal tomado conhecimento
do seu valor exato. O programa dos liberais históricos tivera
afinal o seu momento.
Entretanto, a situação internacional, com o ataque dos
paraguaios a Mato Grosso e o seu avanço sobre a margem
esquerda do rio Paraná, tornara-se bastante grave para não
84
deixar tempo a outros cuidados. Não era possível, naquelas
condições, pensar num gabinete tendo a reforma constitucional
com seu programa imediato. Mas os liberais estavam
firmemente decididos a não se deixaram desorientar pelas
dificuldades externas. O mais que eles podiam admitir, era a
preferência das medidas militares, na ordem administrativa,
sem contudo prejudicar ou interromper a nova ordem política
geral. A ameaça exterior, despertando o entusiasmo patriótico,
vinha apenas multiplicar a exaltação liberal na política interna.
Foi nesse ambiente especial que surgiu um novo
ministério presidido pelo marquês de Olinda. A volta do velho
estadista do primeiro reinado e da Regência mostrava bem que
se tratava de um governo de circunstância, formado sob a
premente preocupação da defesa externa. Mas o antigo
regente, caráter sisudo e imperturbável, fortemente dosado de
senso prático, não foi procurar apoio nem inspirações nos
conservadores, tentando acordos impossíveis naquele
momento. Perante a sólida maioria liberal da câmara
temporária, ele resolve com ela colaborar sem reservas nem
compromissos, escolhendo francamente no seio dela ou nos
elementos que lhe eram mais caros, os componentes do seu
governo. Foi o brilhante gabinete liberal de 12 de maio de
1865, o ministério das águias, como a admiração popular o
apelidou, no qual apareceu o grande ministro Silva Ferraz, da
Lei dos círculos de 1860, acompanhado de Nabuco de Araújo,
de José Antônio Saraiva e de Silveira Lobo.
naquele meio tempo, a nossa situação internacional
tinha-se modificado sensivelmente. O gabinete Furtado, depois
de haver substituído no Rio da Prata o liberal Saraiva pelo
conservador Silva Paranhos, para demitir este pela forma já
85
descrita, havia voltado aos liberais, enviando para ali o
deputado Francisco Otaviano. A República Argentina
continuara na sua neutralidade, prolongando-a do nosso
conflito militar com o governo de Aguirre à guerra com o
Paraguai. Apesar da sua grande sagacidade política, o
presidente Mitre parecia acreditar seriamente que Solano
Lopez, partindo em armas de Assunção, apenas pretendia
demonstrar o seu devotamento à soberania das repúblicas sul americanas, contra o nosso imperialismo. Lopez, entretanto,
bem pouco tinha a faze com a independência do Uruguai. O
que ele sonhava e a cujo fim de antemão consagrara todo o
sangue dos seus patrícios, era com a extensão dos seus
domínios até o mar, pela margem esquerda do Paraná até o
estuário do Prata, em detrimento imediato dos seus dois
vizinhos castelhanos. A luta com o Brasil, apesar de prometer
grandes compensações territoriais em mato Grosso, era afinal
um esforço de resultados indiretos, pois ele bem sabia que,
sem previamente nos vencer, jamais dilataria as fronteira s do
seu país. O seu grande objetivo eram as costas uruguaias do
oceano, através das províncias argentinas de Corrienes e
Entre-Rios. A traiçoeira brutalidade com a qual o ditador
paraguaio mandou aprisionar duas canhoneiras argentinas no
rio Paraná, no dia 13 de abril, fazendo ocupar no dia seguinte
a cidade de Corrientes, veio abrir os olhos ao presidente. Em
meio à grande exaltação nacional provocada em Buenos Aires
por aqueles atos de pirataria, Francisco Otaviano não
encontrou mais dificuldades em prender a Confederação
Argentina à sorte do Brasil na guerra contra Solano Lopez. As
duas nações, como o Uruguai sob o novo governo Venancio
Florez, firmaram então o tratado da “Tríplice-Aliança”. As
86
nossas condições estratégicas para com o Paraguai estavam
assim completamente alteradas. O nosso primeiro plano de
campanha, esboçado pelo Marquês de Caxias ao marechal
Rohan, quando do convite para o comando em chefe, previa a
formação de três exércitos, dos quais, um, marcharia de São
Paulo em socorro da província de Mato Grosso, outro, partindo
do Rio Grande do Sul e ganhando o vale do Iguassu, passaria
para o território paraguaio mais ou menos na confluência
daquele rio com o Paraná,(16) enquanto o último, finalmente,
se conservaria de observação, mesmo na província do Rio
Grande do Sul. É claro que esse plano primitivo, levando em
conta a neutralidade argentina, ao mesmo tempo que respondia
ao ataque paraguaio, procurava, com aquele exército de
observação, por-nos ao abrigo de qualquer surpresa nas
fronteiras do rio Uruguai. Nós não tínhamos certamente a
duvidar da neutralidade de Buenos Aires. Mas, na luta de um
terceiro com os guaranis de Assunção, não havia fiar nos
gaúchos de Corrientes e Entre-Rios. Era uma situação deveras
confusa e duvidosa, que a imperícia de Lopez, não sabendo
respeitar, pelo menos “si et in quantum”, aquela neutralidade,
veio esclarecer rapidamente, oferecendo-nos toda segurança na
grande via de comunicações do Prata e deixando-nos a
liberdade dos nossos movimentos nas duas províncias
argentinas.
Nestas ovas condições, o gabinete de 12 de maio tomou
em mãos os negócios do império, com a especial determinação
de promover rapidamente a guerra, para chegar o mais
depressa possível ao seu termo. Naquele instante da nossa vida
política e partidária, a agressão paraguaia transformava-se
para os liberais numa diversão extremamente incômoda, em
87
cujo encerramento imediato eles punham o máximo interesse.
Vinte e nove dias após a instalação do novo ministério, o
almirante Barroso destrói completamente a esquadra paraguaia
em Riachuelo. Os aliados estavam com o domínio absoluto das
comunicações fluviais até as ribanceiras do país inimigo. Em
terra, os paraguaios começam também a conhecer os seus
primeiros revezes. Já em Mato Grosso, a subida do rio
Paraguai até a foz do São Lourenço tinha-lhes custado
inúmeras vidas. A invasão, dirigida por Barrios e Resquin, ali
confessara-se impotente, a solicitar reforços de Assunção. Na
margem esquerda do Prata, em jataí, Pedro Duarte e aniquilado
pelas forças argentino-uruguaias de Paunero e Venancio
Florez, sem conseguir juntar-se a Estigarribia, que, flanqueado
de perto pelos brasileiros, vem deixar-se sitiar em Uruguaiana.
O gabinete liberal, no Rio de Janeiro, parecia realizar o
milagre da multiplicação dos recursos militares. Adquiriam-se
vasos de guerra no exterior e fundavam-se estaleiros para a
construção de outros aqui mesmo. Fabricávamos armas,
munições e equipamento de toda sorte, como se houvéssemos
descoberto dentro de nossas fronteiras uma capacidade
industrial até então insuspeitada, fornecendo ainda aos nossos
aliados os meios pecuniários de também de armarem. Pela
costa, desde a embocadura do Amazonas, os mais rápidos
navios a vapor se sucediam carregados de tropas, em direção
ao Prata. A guerra não podia durar muito...
Tudo aquilo porém, os liberais o faziam sem de maneira
alguma recorrer à experiência dos líderes conservadores.
Quando, no mês de julho, com o cerco da coluna Estigarribia
em Uruguaiana, o imperador resolveu transportar-se ao teatro
das operações, o Marquês de Caxias também seguiu no
88
numeroso estado-maior de Sua Majestade. O ministro Silva
Ferraz que, tendo no gabinete guardado a Pasta da Guerra, era
quem, junto a Pedro II, tudo dispunha e ordenava, jamais
consentiu em solicitar do velho general o mínimo alvitre sobre
as cosias da campanha. Caxias conhecia a região das operações
em todos os seus detalhes. A cidade sitiada fora fundada por
ele.
Afinal, a 18 de setembro, Estigarribia entrega-se com
armas e bagagens, e logo depois começa o avanço dos aliados
sobre o rio Paraná, em cuja margem direta se detivera, lento e
indeciso, o grosso da invasão paraguaia.
O que mais admira nos primeiros episódios da guerra de
1864, é a absoluta incapacidade de manobra do grande exército
de Lopez. Aquela imponente máquina militar, montada
longamente, desde Carlos Antonio Lopez, ao calor de tão
vastas ambições, apenas se mostrava pelas fronteiras inimigas,
para logo desaparecer fugidia e cautelosa por trás dos juncos
da Lagoa Pires. As mas profundas incursões tentadas pelo
estado-maior paraguaio não passaram de operações
subsidiárias, à procura de resultados mais políticos que
propriamente militares. A marcha de Estigarribia e Pedro
Darte não visava diretamente o Brasil nem procurava um
encontro sério com as forças aliadas. Tentava apenas uma
espécie de demonstração sobre Montevidéu, onde Lopez
supunha que a aproximação dos seus soldados, exaltando o
sentimento partidário dos “blancos”, determinasse a queda
imediata dos “colorados”. A invasão de Corrientes ob edeceu a
propósitos mais ou menos idênticos. A expedição do general
Robles destinava-se somente a cobrir a formação de um
exército corrientino, que operasse contra o governo de Buenos
89
Aires, sob o comando de Virasoro. Tudo leva a crer que
também sobre a província de Entre-Rios existissem projetos do
mesmogênero. O general Urquiza dispunha ali de forças então
consideradas as melhores da Confederação Argentina. Ele
solicitara mesmo a honra de com elas formar a vanguarda dos
aliados. Mas os fatos subseqüentes vieram demonstrar que
alguma grave surpresa esperava certamente a Tríplice-Aliança,
se de fato, entre os seus exércitos e os paraguaios, se houvesse
metido o permeio de tal vanguarda. Prejudicada a fase inicial
dos planos de Lopez sobre a margem esquerda do Prata, pela
fulminante ação naval de Riachuelo, combinada com a
vigorosa atividade desenvolvida pela guarda nacional portenha
às ordens do general Paunero, as belas tropas entre -rianas
desertaram quase por encanto, sumindo-se pelos matagais da
província, como um bando de gazelas assustadas. Urquiza teria
pensado apenas na sua revanche de Pavon... Eram desta
espécie as combinações estratégicas do potentado de
Assunção. Por todo o Rio da Prata ele esperava ter quem por
ele se batesse, de maneira a restar ao seu caro e poderoso
exército, como simples ação de retaguarda, uma irresistível e
final tomada de posse.
Diante de tais e tão cômodas esperanças do ditador,
compreende-se a princípio e de certa forma a exígua intrepidez
dos seus movimentos, nos primeiros dias da guerra. Quando,
porém, as etapas preliminares do seu programa entram todaa a
fracassar umas após outras, já não se pode mais entendê -lo.
Lopez, em agosto de 1865, já dispunha de 60 mil homens em
armas, dos quais 30 mil, trazendo sessenta bocas de f ogo,
seguiram o general Robles a Corrientes, enquanto 10 mil
outros acampavam na Tranquera de Loreto, em frente à
90
Candelaria,. Com tais elementos, não só imediatamente
disponíveis mas, na sua maior parte, já trazidos aos pontos de
partida para um avanço decisivo, como explicar que não se
tenha ele movido ao sacrifício de Pedro Duarte, em Jataí, nem
tentado socorrer a Estigarribia, cercado durante quarenta e
quatro dias dentro de Uruguaiana. Não é provável que só tarde
demais houvessem aqueles revezes chegado ao seu
conhecimento. Na milongada guarani, que, de parceria com
mercantis e aventureiros de toda espécie logo se acercou dos
acampamentos aliados, ele tinha um dedicado e incontável
corpo de observadores, que, em falta de melhor, não se teria
certamente privado de informá-lo. Como compreender tanta
passividade, quando o inimigo, reunindo tropas improvisadas e
quase sem preparo, energicamente tomada a iniciativa?
É que o déspota de Assunção nunca foi, como ele
mesmo se supôs e ainda pretendem os seus panegiristas atuais,
um grande chefe militar, ao serviço de nenhum ideal político
apreciável. Ele foi apenas o joguete mais ou menos consciente
de um trágico anacronismo, que tendo chegado a ser deveras
impressionante pelo número de vidas que sacrificou, não po dia
entretanto passar de um episódio acidental e passageiro na
história dos povos americanos.
O Paraguai, que o ditador Carlos Antônio Lopez, ao
falecer em 1862, deixara a seu filho Francisco Solano, era
pouco mais ou talvez menos que uma vasta “Redução Jesuíta”,
onde alguns políticos espertos, mas certamente grosseiros e
sem elevação, se haviam substituído aos padres da Companhia.
A pesada disciplina de feição monástica, na qual os dignos
religiosos haviam dominado a massa autóctone, tendo perdido
na vida nacional o seu sentido teocrático, transformara-se, em
91
proveito dos ditadores de Assunção, no mais completo e
absoluto fanatismo pessoal. Com a prática mais ou menos fiel
das formas aparentes ou simplesmente visuais do ritual
católico, a colonização jesuíta só conseguira legar à República
do Paraguai o uso das armas de fogo e um certo adiantamento
na cultura do solo. No mais, aquele país se conservara uma
nação de “índios”, não só indiferente, para seu uso, a tudo
quanto viesse do mundo exterior, como mesmo reprovando
com profundo ódio todo o interesse das nações do litoral pelas
idéias morais e políticas da civilização européia. Foi ness
ancestral e instintiva oposição da alma selvícola, consolidada
na intolerância religiosa, ao espírito adventício da Europ a
moderna, que os Lopez encontraram as bases morais e
psicológicas do seu poder militar. As simpatias que despertou
nos meios indígenas de Corrientes e Entre-Rios a política
internacional de Francisco Solano, confusamente fundada
naquelas origens e delas descendente, mostram bem a natureza
real da guerra de 1864, com toda a ingênua inconseqüência dos
seus aspectos político-estratégicos, misturada à sua torva
ferocidade. Os gaúchos entre si se aconselhavam a tomar
partido pelos paraguaios, por aqueles que falavam “a sua”
língua, “o guarani”, traindo a comunhão política argentina, à
qual se achavam legalmente incorporados, mas cujo sentido
não podiam ainda compreender.
É fácil de ver tudo quanto havia de paradoxal e absurdo
num programa de transformações internacionais, que, partindo
daqueles fundamentos, pretendia regular dali por diante a
existência dos povos mais cultos do continente. Lopez,
supondo-se o árbitro das relações do Brasil com as repúblicas
do Prata, era apenas o agente fatal de uma instintiva e confusa
92
revolta de índios. A sua grande significação internacional
reduzia-se, em última análise, a uma miragem do horizonte de
pântanos e florestas da sua terra, que não poderia jamais
projetar-se muito para além da entrada soturna e verde das
Três Bocas.
Ora, não teria sido possível escapar aos estadistas do
Rio de Janeiro e de Buenos Aires o verdadeiro caráter das
pretensões paraguaias, nem a absoluta inviabilidade de um tão
vasto plano político e militar, concebido no ambiente mental
daquele país. A vitória final, apesar do sangrento e pesado
esforço que exigiria, logo se lhes apresentou como rápida e
indubitável. De fato, em outubro de 1865, já os planos de
Lopez estavam inteiramente fracassados. Sem o grande
incêndio revolucionário que devia cobrir a sua marcha triunfal
sobre o oceano, ele nada mais viu de interessante na margem
esquerda do Paraná. O seu exército repassou o rio, deixando -se
abordar apenas em rápidos combates de retaguarda, como
assustado simplesmente de se haver tão longe aventurado...
O governo liberal do Rio de Janeiro tinha todos os
motivos para sentir-se satisfeito com o trabalho realizado até
ali. Desarmados no início da guerra, nós chegávamos às
barrancas do Paraná com um exército de 31 batalhões de
infantaria, 11 regimentos de cavalaria e 42 bocas de fogo,
enquanto um outro em formação se estendia de Uruguaiana a
São Borja. Esses exércitos eram comandados pelos generais
Osório e Porto Alegre, ambos liberais pela sua filiação
partidária, como liberal era também o Marquês de Tamandar é,
comandante em chefe da nossa esquadra de operações. O
gabinete de 12 de maio, no seu esplêndido esforço de
93
organização militar, pudera dispensar completamente o
concurso político dos conservadores.
Guardadas as proporções dos respectivos recursos
econômicos e demográficos, não foram menos brilhantes os
resultados da mobilização argentina. O general Mitre, a quem
o tratado de aliança, pela sua especial situação de chefe de
Estado, reservara, em primeiro lugar, o comando geral dos
aliados,(17) trouxera ao nosso lado as duas colunas dos
generais Paunero e Gely y Obes, mandando ainda para a frente
a cavalaria de Hornos e Caceres, que formaram a vanguarda do
exército, com o contingente uruguaio do general Venâncio
Flores.
Não é difícil imaginar as grandes esperanças que a
situação militar fazia nascer nos meios liberais do Brasil. A
terminação imediata da guerra ia ser a obra do partido. Eram
os liberais que haviam armado o país e promovido a tríplice
aliança, preparando e dispondo aquelas excelentes condições
estratégicas. Se o Marquês de Olinda, no discurso de
apresentação do gabinete fizera passar a defesa militar
imediata à frente das reformas políticas, aqueles que tinham
essas reformas como seu programa, iam poder, dentro em
breve, promover-lhes a realização final, cercados do imenso
prestígio da vitória. A guerra do Paraguai, ao invés de
retardar, viria assim dar segurança e maior velocidade à nossa
ascensão democrática.
Infelizmente, a partir do momento em que o território
argentino ficou livre dos invasores paraguaios, começaram a
surgir para os aliados as primeiras dificuldades. da sua
chegada às barracas do Paraná, seis meses levaram as nossas
tropas para se decidirem a transpor o rio e penetrar no
94
território inimigo. É verdade que a passagem da margem
esquerda para a margem direito do grande rio fronteiro, fora
uma esplêndida manobra, que deve ter compensado
brilhantemente o prejuízo moral daquela demora. Em quarenta
e oito horas o ditador viu-se privado de todas as posições
diante de Corrientes, e seis dias depois era forçado a
abandonar o campo entrincheirado de Tuiuti, incendiando, na
precipitação da fuga, os seus depósitos de víveres. mas os
aliados, uma vez instalados na margem direita, novamente
quedaram-se inativos, deixando aos paraguaios a liberdade de
organizarem o seu contra-ataque de grande estilo no dia 24 de
maio, no qual, envolvendo as nossas linhas pelo flanco
esquerdo, pretenderam precipitá-las, à direita, nos pantanais
do Estero Bellaço.
Uma tão grande lentidão da nossa parte, em face do
interesse político que o gabinete do Rio de Janeiro ligava a
uma terminação rápida da guerra, tinha necessariamente de
produzir uma certa desinteligência entre os generais brasileiros
e o presidente Mitre. Eram os nossos de opinião que se devia,
sem demora, prosseguir na marcha para a frente. Até ali, não
haviam os paraguaios conseguido resistir-nos eficazmente,
uma só vez, em campo aberto. Era portanto de toda
conveniência arremessá-los batidos sobre Humaitá, antes que
eles tivessem o tempo de neutralizar a sua evidente
inferioridade tática por meio de grandes trabalhos de
fortificação. Efetivamente, o formidável sistema de trincheiras
que os aliados encontraram depois em sua frente, levantado em
grande parte após a nossa chegada a Tuiuti, parece, até cert o
ponto, ter dado razão àquele raciocínio. entretanto, para
sermos justos, deveremos sempre convir em que o general
95
Mitre era forçado a ver as coisas por um prisma um pouco
diverso do adotado pelos nossos oficiais. Ele sem dúvida
estava certo de que, taticamente, o avanço imediato jamais
poderia resultar num desastre irreparável. Na hipótese de um
insucesso, bastaria uma retirada em boa ordem sobre o rio,
para deter a possível reação paraguaia no limite de ação das
baterias da esquadra. Mas ele precisava pensar antes de tudo
na repercussão que uma retirada em face do inimigo pudesse
produzir no interior da República Argentina. O presidente,
como já vimos, não podia confiar em grande parte da
população que lhe ficara à retaguarda. Logo da passagem do
Paraná, o seu primeiro cuidado consistira em transportar para
o Itapiru todos os víveres e munições acumulados naquele
instante em Corrientes, colocando-os sob a guarda imediata do
exército. Sem aquela medida, que ao primeiro exame poderia
parecer um detalhe protelatório, os aliados, numa noite de
revolta na outra margem, bem podiam ter visto o horizonte
iluminar-se ao clarão dos seus depósitos incendiados. O
abandono do território argentino pelos invasores paraguaios
foi logo seguido de uma ativa propaganda pela paz em
separado. Uma vez que Corrientes e Entre-Rios estavam livres
da invasão, dizia-se que, para a Argentina, haviam
completamente cessado os motivos da guerra, não passando
todo esforço militar subseqüente de um imprudente concurso
para o final predomínio do Brasil imperial sobre os seus
vizinhos republicanos.
Perante um tal estado de espírito, era natural que o
general em chefe sentisse a necessidade de uma grande
circunspecção nos seus movimentos. Qualquer insucesso
poderia transformar-se num argumento em favor dos seus
96
opositores internos, só lhe sendo portanto lícito atacar tendo
firmemente em suas mãos todos os elementos da vitória.
Nestas condições, o ataque unilateral, levado de Sula Norte,
tal como o desejavam os brasileiros, parecia-lhe uma
imprudência. Era melhor esperar que o exército do Barão de
Porto Alegre, já então na fronteira de Itapuã, estivesse em
condições de, simultaneamente com aquele ataque, invadir
também o Paraguai na direção de Leste a Oeste, para colocar o
inimigo entre duas ameaças, obrigando-o a dividir as suas
forças. Essa doutrina, entretanto, não logrou ser adotada. O
Barão de Porto Alegre foi mandado descer o rio Paraná.
Optou-se em conselho de guerra pelo avanço unilateral, não já
sobre as posições imediatamente fronteiras e Tuiuti, mas
acompanhando a margem esquerda do rio Paraguai.
Foi no desenvolvimento deste último plano que
encontramos o sangrento revés de Curupaiti. A miragem
paraguaia, restringindo-se ao seu ambiente próprio, parecia
singularmente adensar-se...
Pouco nos importa hoje a velha querela de saber quais
teriam sido os resultados do ataque de Curupaiti, se o general
Mitre o houvesse autorizado mais cedo, ou se o general
Polidoro, que ficara no acampamento de Tuiuti, o fizesse em
tempo secundado com uma demonstração eficaz sobre as
linhas de Rojas. Isso, tecnicamente, talvez ainda possa ocupar
às escolas de estado-maior, se o desenvolvimento ulterior da
campanha, com a áspera resistência paraguaia nas três
posições sucessivas de Humaitá, Lomas Valentinas e
Peribebui, não bastar à indagação. A nós, o que nos interessa
assinalar aqui, é que logo se verificaram todas as
eventualidades temidas pelo presidente Mitre. Os aliados,
97
apesar de haverem perdido 3.500 homens junto às trincheiras
de Curupaiti, dali se retiraram sem nada sofrer na volta às
posições de partida. Mas a revolução rebentou na República
Argentina, envolvendo rapidamente Jujui, San Juan, Mendoza,
Córdoba e San Luís. O caudilhismo regional ressuscitara como
nos belos tempos de Juan Facundo Quiroga, aos gritos de Viva
Urquiza!, Paz com o Paraguai!, enquanto os “blancos” em
Montevidéu retomavam a sua antiga e perigosa atividade...
Para salvar a civilização no rio da Prata, guardando a
retaguarda à Tríplice-Aliança, Mitre teve de voltar do teatro da
guerra a Buenos Aires, expedindo antes em sua frente o
general Paunero com a flor e a maior parte das tropas
argentinas. Flores também viu-se forçado, pelas condições
internas do seu país, a partir de Tuiuti com a sua cavalaria,
indo, menos feliz que o seu colega portenho, encontrar a morte
em Montevidéu, numa inglória e lamentável emboscada de
rua!...
NOTAS
(13) Os normandos são nossos.
(14) O próprio Zacarias recordou esse fato na sessão do Senado de 30 de
agosto de 1870, respondendo a Paulino de Sousa.
(15) Estas informações sobre os preliminares da organização do exercido
do Paraguai, são dadas pelo próprio Caxias, num discurso feito na sessão
do senado, de 15 de julho de 1870.
(16) É interessante observar que este exército deveria tomar o mesmo
caminho empregado elo capitão Luís Carlos Prestes, quando partiu de
Santo Ângelo, em 1925, para juntar-se às forças revolucionárias do
general Isidoro Lopes, na Foz do Iguaçu. Prestes invadiu precisamente
98
por ali o território paraguaio, infletindo, logo em seguida, a Leste, no seu
espantoso raid pelo interior do Brasil.
(17) O parlamento do Rio de Janeiro não se mostrara disposto a permitir
ao imperador do Brasil a passagem da fronteira. Sua Majestade, depois de
receber a rendição de Estigarribia, voltara de Urugua iana.
CAPÍTULO V
AS REAÇÕES DA BATALHA DE CURUPAITI
NA POLÍTICA INTERNA
O revés de Curupaiti veio aumentar consideravelmente as
responsabilidades do Brasil no prosseguimento da guerra. Até então,
o concurso militar dos dois principais aliados, a Argentina e o nosso
país, completara-se na proporção de, mais ou menos, 1 para 4. Essa
era a mútua situação das duas potências, contando-se a nosso favor a
força naval, que praticamente éramos os únicos a possuir. A
República Argentina deu, porém, em Curupaiti, o máximo do seu
esforço. Dali por diante, obrigada a empregar a quase totalidade das
suas tropas no combate à rebelião interna, ela teve que reduzir os
seus efetivos no Paraguai a uma simples representação. Assim
dizendo, ao pretendemos de maneira alguma reduzir a significação
dos argentinos na Tríplice Aliança. O concurso do governo de
Buenos Aires, se diminuiu no terreno imediatamente tático, cada vez
se revelou mais precioso sob o ponto de vista estratégico e político.
Sem ele, nós teríamos perdido a liberdade das nossas comunicações
99
pelo rio da Prata, e talvez não tivéssemos podido resistir eficazmente
à formidável pressão que se levantou na maioria das capitais
americanas em prol de uma paz imediata e de evidente vantagem
para o ditador do Paraguai. Foi mesmo a partir daquele momento que
melhor conhecemos e apreciamos a irrepreensível lealdade, a alta
nobreza moral desse grande homem de bem que foi o presidente
Mitre.
Era claro, entretanto, que tínhamos de aceitar o peso militar
da guerra quase por completo. Tornou-se necessário adaptar as
nossas forças à nova situação, não só engrossando-as
convenientemente, como nelas introduzindo diversas modificações,
entre as quais era a do comando a mais urgente e delicada.
Até a batalha de Curupaiti, não houve, propriamente, nas
forças brasileiras do Paraguai, um comando geral que lhes
centralizasse os serviços e as submetesse a uma orientação
uniforme.(18) A coordenação das disposições estritamente militares,
fazia-se através do comando em chefe aliado, entregue, como
sabemos, ao general Mitre. Os nossos dois corpos de exército só iam
articular-se, em última análise, na Junta de Guerra, presidida pelo
chefe argentino, gozando de uma independência ainda maior a nossa
esquadra, que dependia exclusivamente do almirante Tamandaré. Em
princípio, tudo devia ser decidido de comum acordo, sob a alta
orientação do general em chefe. Mas os inconvenientes daquele
sistema, que já se tinham revelado anteriormente, tornaram-se
absolutamente incompatíveis com a segurança do exército, a partir
do momento em que vieram recair sobre nós, moral e materialmente,
todas as responsabilidades da guerra. Foi necessário organizar um
comando em chefe brasileiro, que reunisse sob a sua autoridade,
todos os nossos elementos terrestres e navais, para eventualmente
englobar, como depois se deu, a totalidade das forças aliadas.
100
Tal foi a situação em face da qual se encontrou o gabinete do
Marquês de Olinda, à medida que foram sendo conhecidas as
conseqüências da batalha de Curupaiti. Entre os seus correligionários
do exército, o governo liberal dispunha de alguns generais de grande
bravura e de valor tático indiscutível. Porto Alegre fora mesmo o
chefe das forças brasileiras que da fronteira do Rio Grande,
obedecendo à orientação geral do Marquês de Caxias, seguiram até
Monte Caseros, na campanha contra o tirano Rosas. Osório, já bem
conhecido por feitos anteriores, havia dado toda a medida da sua
brilhante e impetuosa coragem, sendo o primeiro a desembarcar com
as suas divisões no Passo da Pátria e fazendo-se logo depois a alma
heróica da resistência do grande contra-ataque paraguaio de 24 de
maio. Em nenhum deles era porém, reconhecida a larga visão
estratégica e o forte senso administrativo, indispensáveis a quem tem
de manter grandes massas militares em boa ordem, e movê-las com
segurança e eficácia num vasto teatro de operações. Para isso, nós só
tínhamos, no consenso geral, um único homem. E esse homem era o
Marquês de Caxias...
Essa circunstância revela imediatamente as terríveis
dificuldades em que se viu o gabinete de 12 de maio. O Marquês de
Olinda, pessoalmente, não era político a deixar-se embaraçar em
incompatibilidades partidárias. Ele sabia, nas ocasiões oportunas,
colocar os interesses gerais acima dos partidos. Por duas vezes
presidente do conselho no período de 1841 a 1860, ele tinha a escola
da “política de conciliação”, não lhe podendo parecer inaceitável
nem antipática a idéia de chamar Caxias à atividade do exército em
1866. Os seus colegas do gabinete não estavam porém, na mesma
situação. Silva Ferraz era o mesmo ministro da Guerra que com tão
calculada indiferença tratara o general no cerco de Uruguaiana.
Nabuco de Araújo, Saraiva e Silveira Lobo, imediatamente ligados a
101
Silveira da Mota, Teófilo Otoni e Francisco Otaviano, eram no
ministério a direta representação do liberalismo histórico. Como
conciliar tudo aquilo? O gabinete sentiu-se na impossibilidade de dar
ao problema do comando em chefe a única solução tida como
recomendável. A demissão coletiva tornou-se portanto necessária.
Não foi a reorganização das forças em campanha o motivo declarado
da demissão. No Senado, pela palavra do presidente do conselho, e
na Câmara, pelo órgão do ministro da Fazenda, a retirada do gabinete
foi explicada pela profunda desinteligência surgida entre este
ministro e o da Agricultura, sobre a reforma do Banco do Brasil.
Efetivamente, a questão financeira, dado o progressivo aviltamento
do meio circulante, tornara-se naquele momento de uma grande
acuidade. Mas essa questão era conexa com a da defesa externa,
sendo evidente, apesar do que havia de real naquelas declarações,
que as finanças, pelo menos imediatamente, passavam em segundo
plano.
Não é possível recusar que o Marquês de Caxias, pela sua
dupla qualidade de grande cabo de guerra e prestigioso chefe
conservador, tornara-se no momento a chave da situação ministerial.
Não confundamos entretanto as coisas. Não se tratava, naquelas
dificuldades, de um desses casos de interferência do exército na
política, a que se dá comumente o nome de militarismo. Caxias era
considerado individualmente, na sua capacidade técnica pessoal, e
não como representante de uma certa classe. Afastado do serviço
ativo do exército pela função senatorial, a significação coletiva do
marquês na política, era a de membro do partido conservador, e
jamais a de parte integrante do exército. O exército, a classe militar,
nada tinha a ver em tudo aquilo. Era uma questão política, entre
políticos, girando em torno de um determinado indivíduo, e não em
torno da coletividade militar, ou do exército. Bem fixado este ponto,
102
que é essencial, como veremos mais adiante, convenhamos em que
qualquer passo no sentido de convidar o Marquês de Caxias para o
comando em chefe, necessariamente assumira o aspecto de uma
transação com o seu partido. Para nomeá-lo, sem abrir luta com a
maioria liberal da câmara e sem violência para os seus
correligionários, seria necessário um governo de concentração
nacional. Dada porém, a irredutibilidade de ânimo dos dois partidos
opostos, as combinações naquele sentido iam fracassando logo no
esboço.
Foi nestas especiais circunstâncias que Zacarias de Góis
voltou ao poder, formando o gabinete de 3 de agosto de 1866. A sua
posição em face dos conservadores, como progressista egresso
daquele partido em 1862, não era em nada melhor nem mais
simpática que a dos liberais no gênero Teófilo Otoni ou Silveira
Lobo. Se era possível argumentar, para fins conciliatórios, com a
moderação das suas idéias, em compensação persistia sempre na
mente dos conservadores a irritante lembrança da sua deserção,
enquanto, do lado dos liberais, um novo ministério progressista só
servia para imediatamente recordar os qüiproquós partidários do
gabinete Furtado. Talvez ninguém se encontrasse, na alta política da
corte, em condições menos favoráveis para assumir o governo e
enfrentar com eficácia o árduo problema perante o qual cedera o
gabinete Olinda.
Entretanto, o novo gabinete Zacarias precisou apenas de três
meses para surpreender todas aquelas incompatibilidades partidárias,
conquistando o Marquês de Caxias e expedindo-o rapidamente ao
Paraguai.
Cabem aqui, por necessárias, algumas considerações sobre o
exato papel do poder moderador na escolha dos ministérios, tal como
ficou sendo compreendido no segundo reinado, a partir da
103
espontânea recomposição do Conselho de Estado em 1841. A
constituição de 1824, no art. 142, combinado com o parágrafo 6º do
art. 101, estabelecia a nomeação e demissão dos ministros com a
única função do poder moderador que podia ser livremente exercida
pela coroa, sem audiência do Conselho de Estado. A revolução de
1831, vinda em conseqüência da nossa vigorosa e tenaz resistência
ao poder pessoal, não só deixou de eliminar do nosso direito público
aquele princípio, como lhe deu ainda maior força e maior extensão.
Efetivamente, a abolição pura e simples do Conselho de Estado,
consignada no Ato Adicional, não fez mais de que estender a todas as
demais atribuições do poder moderador o caráter pessoal e arbitrário
que ele já revelava naquele ponto.(19) Graças à cega e teimosa
reação autoritária, inaugurada logo nos primeiros dias da Regência
sob a inspiração principal do padre Feijó, o movimento liberal de 7
de abril fracassou lamentavelmente numa espécie de fusão do poder
moderador com o poder executivo, que só vinha tornar mais seguro e
incontrastável o exercício do poder pessoal, fosse que este poder
estivesse com o Chefe de Estado ou simplesmente com o primeiroministro, como se deu no gabinete Antônio Carlos. Com a reunião de
um grupo de homens notáveis no paço imperial, no dia 23 de março
de 1841, para o fim de obter do imperador a demissão de Antônio
Carlos como medida de salvação pública, o Conselho de Estado
inopinada e instantaneamente se recompôs, agindo exatamente sobre
aquele ponto que, com formal exclusão, lhe era vedado na letra
constitucional, antes da reforma. A lei de 23 de novembro, que
tornou legal e definitivo aquele restabelecimento ocasional do
Conselho de Estado, não podia mais ressuscitar a restrição do art.
142. O Conselho de Estado não somente reentrou na posse de todas
as suas antigas atribuições, como especialmente adquiriu mais a de
104
pronunciar-se sobre a escolha e a demissão dos ministérios, que antes
não tinha.
O caráter de evidente e providencial utilidade, com o qual
aquele complemento funcional do poder moderador ressurgiu em
1841, já é bastante para fazer ver a profunda e decisiva influência
que depois lhe coube em todo o segundo reinado. Quando um novo
chefe de gabinete, apresentando-se ao parlamento, afirmava, como
era de costume, que em tal dia e em tais circunstâncias, fora chamado
por Sua Majestade para formar o ministério ali presente, estava sem
dúvida a dizer uma verdade. Era realmente o imperador, que, fazendo
vir a São Cristóvão o político em evidência, pessoalmente o
convidava a organizar o novo governo. Mas a escolha daquele nome
para aquela missão, não fora inspiração única e pessoal de Pedro II.
Era obra do Conselho de Estado. Eram os conselheiros da coroa,
alguns, orientadores prestigiosos de grupos parlamentares, e todos
homens de grande prestígio social, que apontavam o estadista, a seu
ver, reunindo na ocasião as mais favoráveis condições para o
governo. O Conselho de Estado, como o senado ou a câmara
temporária, compunha-se indistintamente de representantes de todas
as opiniões. Entretanto, os seus membros, fossem reunidos em
conferência sob a presidência do imperador, fossem consultados cada
um de per si por Sua Majestade, nunca deixavam de dar aos seus
alvitres um profundo caráter de retidão, inspirando-se muito mais nos
interesses gerais que na conveniência imediata dos seus partidos. É
claro que, de tal forma, o fato de inclinar-se do lado de um
determinado político, para a formação de um novo ministério,
automaticamente significava para o conselho opinante um certo
compromisso de apoio no parlamento. Ele tacitamente oferecia ao
gabinete um projeto todo o seu valimento nos meios parlamentares a
que estivesse ligado, fosse que esse valimento se expressasse em
105
completa solidariedade política, quando se tratasse de um
correligionário, fosse que tomasse apenas a feição de uma discreta e
tolerante expectativa. Repitamos que a existência de um gabinete
dependia sempre e constantemente da confiança da câmara
temporária. Era no ambiente extremamente sensível e vibrátil
daquela casa do parlamento que tudo afinal se decidia, perante ela
unindo rápida e fragorosamente muitas vezes as combinações mais
cautelosas e bem estudadas, como se deu com Caxias e o próprio
Zacarias, nas duas crises ministeriais de 21 e 28 de maio de 1862.
Mas seria impossível ignorar a grande influência do Conselho de
Estado, desde que as iniciativas de organização ministerial partiam
de deliberações em consulta com os seus membros. Negá-lo, seria
negar a existência do próprio poder moderador.
Zacarias de Góis talvez tenha sido quem maior surpresa
recebeu com a escolha do seu nome para o governo em 1866.
Ninguém melhor do que ele podia conhecer e medir as complexas e
dificílimas condições políticas daquele momento, nem a menor
dúvida podia existir no seu espírito sobre os sentimentos reinantes
entre liberais históricos e conservadores. Convidado pelo imperador,
ele viu logo das suas primeiras démarches junto aos grupos
parlamentares da câmara, que lhe seria impossível manter-se no
poder, mesmo por alguns dias, sem aceitar a política da esquerda
liberal praticada no gabinete Olinda. Era a mesma situação insolúvel,
diante da qual não resistira a lúcida e calma tenacidade do velho
regente, que lhe era oferecida. Ele voltou a São Cristóvão para
declinar da honra de formar o gabinete. O imperador, porém, insistiu,
impelindo-o certamente a consultar as figuras principais do Conselho
de Estado, sem atender muito ao partido a que qualquer delas
pudesse pertencer. No meio circunspecto e muito mais tolerante dos
conselheiros da coroa, era bem outra a visão das coisas. Sentindo-se
106
encorajado indistintamente por homens de tão grandes
responsabilidades e de sentimentos tão diversos como Euzébio de
Queiroz, São Vicente, Abaeté, Olinda ou Nabuco de Araújo, Zacarias
pôde modificar as suas primeiras impressões.
É indispensável admitir que um compromisso tácito ou
formal se tenha estabelecido entre o novo presidente do conselho e a
alta política da corte, expressada no Conselho de Estado e nos
elementos mais ponderosos do senado, para o fim de dominar e
vencer toda e qualquer resistência à nomeação de Caxias para o
Paraguai. É isso o que parece claramente revelar-se no discurso de
apresentação do gabinete, proferido perante o senado, na sessão de 4
de agosto. O ministro Silva Ferraz, que ocupava a Pasta da Guerra no
gabinete Olinda, passara no mesmo posto para a nova organização
ministerial. Zacarias, explicando essa ligação do seu governo com o
ministério demissionário e relatando as relutâncias que teve de
vencer, da parte de Silva Ferraz, para obtê-la, conclui com esta frase:
- o senado avalia bem quais são as razões que me impeliram a dar
aquele passo... A presença do operoso autor da Lei dos círculos de
1860 no gabinete, era evidentemente uma garantia de fidelidade à
política da esquerda liberal. Mas o presidente do conselho, ao dizer
aquelas palavras não se esquecia – e certamente o recordava aos
senadores – que a câmara dos deputados, cuja maioria exaltadamente
liberal o impelira de dar aquele passo, terminava naquele ano o seu
mandato. Estava-se a 4 de agosto. No dia 16 de setembro
encerravam-se os trabalhos parlamentares. No dia 9 de outubro, o
chefe do governo tranqüilamente mandava o seu ministro da Justiça,
o visconde de Paranaguá, oferecera Caxias o comando em chefe do
nosso exército no Paraguai. Ao reunir Zacarias o gabinete para darlhe ciência do que fizera, com o anúncio da aceitação da oferta e da
iminente nomeação do general, o ministro da Guerra disse apenas:
107
“Faça-se a nomeação, mas eu me retiro...”(20) No dia seguinte, vinte
e quatro dias somente do encerramento das câmaras, estava firmado
o decreto de nomeação do general em chefe.
Zacarias de Góis empregara em tudo aquilo uma fulminante e
desenvolta habilidade. Os liberais da esquerda foram vítimas, sem
dúvida, de uma áspera surpresa. mas o presidente do conselho, não
somente havia dado ao exército o chefe que o livraria dos embaraços
de Curupaiti, como havia ao mesmo tempo amarrado solidamente os
conservadores à sorte do seu governo, com eles dividindo as
responsabilidades morais na conduta da guerra. O seu golpe talvez
mereça a increpação de astúcia. Mas, para julgá-lo com propriedade,
é indispensável considerar a nossa situação em face do inimigo
exterior, agravada ainda mais pelas grandes responsabilidades que
nos advinham perante os nossos próprios aliados. É necessário
avaliar bem as dificuldades que se opunham ao gabinete e o alto fim
nacional que ele visava. Naquelas sibilinas explicações fornecidas ao
senado, no dia 4 de agosto, sobre a conservação de Silva Ferraz na
pasta da Guerra, repetidas – com tendência certamente diversa – à
câmara dos deputados, no dia 6, Zacarias tocou sem dúvida, entre a
reserva e a franqueza, a linha que deve marcar o limite extremo do
sucesso e do fracasso, em transes parlamentares daquela natureza. As
discussões da apresentação do gabinete giraram na câmara em torno
à questão financeira. Mas, as simples expressões da moção com a
qual o deputado Franco de Almeida pretendeu responder ao discurso
do primeiro-ministro, mostram bem o acirrado ânimo partidário que
as dominou: - “Sendo para sentir que a organização do gabinete não
„correspondeu às exigências da situação‟, requeiro que se passe à
ordem do dia. Procedia a votação nominal, numa profunda exaltação,
foi apenas pela fugaz maioria de três votos que o ministério escapou
à queda imediata...”
108
Muito menor trabalho teve Zacarias de Góis em reduzir os
escrúpulos pessoais do marquês de Caxias. Deste lado, as condições
tinham mudado. Não se tratava mais de uma organização de forças
no território nacional, para cujo êxito a autoridade civil pudesse a
qualquer título ser reclamada. O comando transporta-se ao país
inimigo. Além disso – e sobretudo – o revés de Curupaiti colocara o
marquês, intimamente, numa situação deveras delicada. A opinião
pública reclamava naquele momento o seu concurso militar, e se esse
fato era sumamente agradável ao seu amor próprio de soldado, só
desvantagens lhe poderia trazer a divulgação de que esse concurso
ele o recusara no ano anterior, por motivos de ordem puramente
partidária. Zacarias de Góis era bom psicólogo, sabendo empregar a
palavra justa, no momento exato: “Se vossa excelência manifesta o
pensamento de não poder servir com o gabinete atual, os ministros
estão prontos a retirar-se”. Era um nobre e tocante desprendimento
que literalmente fazia transbordar a emoção do velho general. Veio a
sua linda frase: “A minha espada não tem partidos!...”
Os escritores brasileiros que se têm ocupado da guerra do
Paraguai, nas suas relações com a nossa política interna, são em geral
de uma extrema severidade, tanto para com a resistência dos liberais
à nomeação de Caxias para o comando do exército, como no
concernente à força pela qual Zacarias dominou e venceu essa
mesma resistência. No primeiro caso, afirma-se ainda hoje que os
liberais colocaram as mesquinhas conveniências do seu partido
acima do interesse primordial da defesa externa. No segundo,
pretende-se que Zacarias de Góis traiu, pela ambição do poder, os
seus correligionários do partido liberal. Desde, porém, que não se
escolha previamente um dos dois pontos de vista que esses alvitres
opostos representam, para considerar os fatos de um modo mais
109
imparcial e elevado, logo se verá que nenhum deles é justo nem
acertado.
Os liberais jamais se opuseram à ida do Marquês de Caxias
para o Paraguai. O que eles não aceitavam era uma volta à “política
de conciliação” naquele momento, sob o pretexto das necessidades
militares. O nosso país em 1864 já se sentia bastante coeso e forte
dentro das suas fronteiras, para resistir vitoriosamente à pressão
diplomática ou militar de qualquer dos seus vizinhos do continente,
sem alterar sensivelmente nas condições da sua vida interior. A
campanha contra Lozano Lopez jamais nos produziu as apreensões
que tivemos com a Argentina de Rosas ou de Rivadaria, e, apesar dos
consideráveis recursos de ataque longamente acumulados pelo
ditador, nunca nos passou pela mente que o futuro da nossa pátria
pudesse seriamente depender da gente de Assunção. A agressão
paraguaia, dadas as suas ligações com a política interna do Uruguai e
as simpatias que encontrou na população guarani de Corrientes e
Entre-Rios, causou muito maiores sobressaltos aos nossos aliados
que a nós outros, que a recebemos calmos e de todo confiantes na
nossa sólida estrutura nacional. O Brasil, de qualquer forma venceria
a guerra. Não se pode portanto compreender que o partido liberal
desertasse do poder ao primeiro alarme, falhando por simples
pusilanimidade à sua missão política, e traindo a solene confiança
com que o país se pronunciara pelas suas idéias, em duas grandes
eleições sucessivas. É preciso não exagerar a significação de certas
opiniões da época, no gênero das que se encontram na “Vida do
Duque de Caxias”, de Monsenhor Pinto de Campos,(21) e no “O
Governo e o povo do Brasil na guerra do Paraguai”, de Menenio
Agripa.(22) Essas opiniões, mais recentemente, têm servido de ponto
de apoio a numerosas crônicas e conferências e mesmo a trabalhos de
maior importância, como a “História da Guerra do Paraguai”, do
110
general Bernardino Bormann. Mas elas, ontem como hoje, outra
coisa não representam senão a eterna vaidade do espírito autoritário.
Se culpa havia na ausência de Caxias do Paraguai, ela decerto não
seria imputável aos liberais, que logo foram oferecer ao general
aquele posto, e sim aos conservadores, que pretenderam transformar
a sua nomeação em máquina ara arrombar as portas do poder,
expulsando de surpresa os que ali se achavam pela vontade expressa
da nação.
Quanto a supor que Zacarias de Góis de entendimento com o
Conselho de Estado, tenha sido realmente falso aos seus
correligionários liberais, no gabinete de 3 de agosto, a injustiça não é
menor. O provimento do comando em chefe do exército pelo
Marquês de Caxias, era uma medida com o mesmo empenho
desejada por liberais e conservadores, cada um e per si e todos eles
em conjunto lamentando sinceramente que a ela se opusessem os
mútiplos prejuízos do nosso meio partidário. Apesar da intensidade
com a qual esses prejuízos atuaram na queda do gabinete Furtado e
influíram depois nas disposições militares do gabinete Olinda, para
este o sentimento geral, sem dele isentar-se nem mesmo o ministro
Silva Ferraz. Concordando imediatamente com a nomeação proposta
pelo presidente do Conselho e retirando-se logo em seguida, Silva
Ferraz não fez mais do que tomas a si pessoalmente as
responsabilidades das suas antigas relações com o general Caxias,
para deixar uma mais completa liberdade de ação, não somente aos
seus correligionários do novo gabinete, como a todo o partido liberal.
Ele francamente sacrificou-se. Não se deve insistir muito na
circunstância de Zacarias de Góis haver em tudo aquilo procedido
muito mais por surpresa que mediante uma larga consulta preliminar.
O que se deve ver é que, assim fazendo, ele correspondia de fato ao
sentimento coletivo, realizando eficazmente uma medida que o país
111
inteiro reclamava. Não há a mínima prova de que Zacarias tenha, em
momento algum das suas negociações com os membros do Conselho
de Estado e com o novo chefe do exército, posto jamais em jogo o
termo ou a permanência da situação liberal. Mesmo quando oferecia
ao general a retirada do gabinete em troca dos seus serviços militares
ao país, o ministro de forma alguma pretendia dizer que o partido
liberal se deixaria substituir no poder pelos conservadores. Ele
mesmo explicou o seu exato pensamento ao próprio Marquês de
Caxias, no senado, em julho de 1870, afirmando-lhe que ao lhe fazer
aquela oferta – “não queria de certo dizer que lhe entregaria o poder.
Eu posso dispor de mim, e retirar-me quando me parecer, assim
como os meus colegas, mas não sei quem me sucederá”. Se a
nomeação do Marquês de Caxias para o Paraguai, pela forma porque
foi feita, houvesse realmente significado uma orientação
governamental contrária às idéias liberais, o gabinete de 3 de agosto
não teria sobrevivido ao seu primeiro contato com a câmara nova em
maio de 1867. Perante a forte maioria liberal que se reproduziu na
seguinte legislatura, nada teria podido, naquelas condições, evitar a
queda do ministério. Mas Zacarias de Góis não teve força apenas
para manter-se no poder, resolvendo, sempre com igual segurança e
propriedade, o problema total da nossa defesa externa. Ele a teve
ainda para organizar o partido liberal sobre bases inéditas,
concretizando o melhor e mais solidamente o seu programa e
descobrindo afinal a orientação clara e objetiva que até então nos
faltara na nossa nova política geral.
Na reabertura dos trabalhos legislativos, sobretudo no início
de uma nova legislatura, era na discussão da resposta à fala do trono
que se conhecia a exata posição do gabinete em face do parlamento.
A fala do trono, começando por uma recapitulação geral dos
negócios anteriores e da situação do país perante as potências
112
estrangeiras, terminava sempre pro uma espécie de rápido programa
governamental. O imperador chamava a atenção dos representantes
do país para uns tantos assuntos que lhe pareciam urgentes e de
maior interesse naquele instante. Era, de uma forma concisa, a ordem
dos trabalhos para aquele ano, tal como a compreendiam os membros
do gabinete. Da impressão causada por aquelas proposições dependia
a sorte do ministério. Se a câmara não as entendia por adequadas, a
discussão imediatamente assumia o caráter de uma severa e
veemente tomada de contas, ao fim da qual encontrava-se o voto
formal de desconfiança. A fala do trono de 1867 era curta e de uma
grande simplicidade. Da guerra, dizia-se apenas que ela continuava.
O Peru e outros vizinhos menores tinham querido intervir para a
abertura de negociações de paz. Os Estados Unidos, por sua vez,
também graciosamente se ofereceram. Tudo tinha sido recusado.
Porém, nada de detalhes. Nenhuma referência à reorganização dos
exércitos, nem às nossas novas responsabilidades na TrípliceAliança. O governo francamente evitava aqueles pontos. Havia a
menção de um acontecimento de grande significação moral e
econômica. O Império abrira o rio Amazonas ao comércio marítimo
internacional. Mas, ao fim, na recomendação de algumas reformas
administrativas de já velho conhecimento, vinha qualquer coisa de
inédito e formidável. O governo, em ato público e solene, falava pela
primeira vez no fim da escravidão...
Nós não temos elementos para precisar hoje, com exatidão,
desde quando viera o abolicionismo de Zacarias de Góis. É esta uma
indagação extremamente interessante, que talvez possa ainda ser feita
numa consulta mais ampla e detalhada da imprensa da época, ou no
exame da correspondência pessoal do grande ministro, se por acaso
dela restar, entre os seus descendentes atuais, alguma coisa. Tudo
leva entretanto a crer, dado o rigoroso e perfeito equilíbrio do seu
113
espírito, em confronto com a orientação geral do gabinete de 3 de
agosto, que o problema do cativeiro, ainda insolúvel, foi, de fato, o
largo e profundo valo que o impediu de chegar imediatamente ao
programa dos liberais históricos. Mas o que não se pode pôr em
dúvida, o que é seguro e evidente, é que na fala do trono de 1867 ele
atingir afinal a sua grande política, aquele que ele não conseguira
fixar na incerta e tumultuosa existência de quatro dias do seu
gabinete de 1862, que talvez calara por prudência no governo de
1864, e da qual nada pudera ainda dizer, ao apagar das luzes da
legislatura anterior, perante aquela câmara que o recebia inquieta,
com a exígua e desconfiada maioria de três votos. O grande
presidente do ministério de 3 de agosto, foi efetivamente o primeiro
estadista brasileiro que teve a coragem de, no governo, atribuir ao
trabalho livre, em oposição ao trabalho escravo, toda a profunda e
universal significação que ele tinha e devia ter no problema geral da
nossa ascensão moral e econômica. Não poderia certamente parecer
legítimo àquele cérebro todo feito de exatidão e clareza, que o nosso
país avançasse definitivamente para os processos mais adiantados da
grande democracia moderna, guardando na sua organização social
uma instituição diretamente copiada da Antigüidade clássica, e que o
deputado João Maurício Wanderley, no seu malogrado projeto de lei
de 1854, ainda pretendia apenas aproximar da fórmula feudal,
prendendo o escravo à província como o servo à gleba da Idade
Média.(23) Era por ali que deviam começar todas as nossas reformas
políticas. Bastava considerar aquelas reformas em todo o seu valor
social e econômico, para logo compreender quanto todas elas
dependiam da extinção do elemento servil e só por ela podiam ser
eficazmente iniciadas. A preocupação de elevar a liberdade política
às suas extremas e mais belas expressões modernas, conservando ao
lado a negação absoluta e ancestral da liberdade do homem, era de
114
fato um contrasenso, que por si mesmo se condenava. Não era
praticamente possível, de outro lado, reformar a milícia existente,
introduzindo no sistema da nossa defesa externa um processo
eqüitativo de recrutamento, quando os moços em idade militar ainda
se dividiam em livres e escravos. O mesmo fatal empecilho se
levantava no terreno econômico e financeiro. Não há questão neste
terreno que não se prenda, mais ou menos imediatamente, a uma
alternativa de consumo e produção,. As reformas que aí se façam
jamais serão válidas e pertinentes se não alterarem os termos daquela
relação, modificando-a sensivelmente. A situação financeira, com
representação numérica do estado econômico, só podia portanto
melhorar pelo desenvolvimento da nossa produção agrícola. Era
indispensável que a produção aumentasse continuamente, segundo as
nossas progressivas necessidades de grande nação em crescimento.
Seria preciso multiplicar a mão-de-obra dentro das nossas fronteiras,
o que não se podia obter pelo simples crescimento vegetativo da
população escrava, dadas as tristes condições da vida nas senzalas.
Impunha-se imperiosamente o apelo à imigração estrangeira. Mas o
trabalho escravo, por motivos morais e econômicos bem fáceis de
compreender, repele irresistivelmente o concurso do trabalho livre. A
abolição tinha que ser, portanto e a todos os títulos, a base inicial e
necessária de todas as reformas.
Nenhum dos grandes espíritos do nosso antigo regime deixou
de, mais ou menos ativamente, preocupar-se com o problema da
abolição. Ainda não atingíramos mesmo a nossa independência
política, e já Moniz Barreto oferecia a Dom João VI uma memória
sobre a extinção do tráfico africano e a completa eliminação do
trabalho escravo no Brasil. José Bonifácio, em 1823, tinha pronta
uma representação à primeira constituinte do império, na qual,
inspirado no intenso e claro humanismo da filosofia do século XVIII,
115
que formava o fundo constante das suas idéias, ele propunha a
suspensão do tráfico e o fim do cativeiro. A constituinte foi
violentamente dissolvida por Pedro I, e o trabalho de José Bonifácio
só pôde vir à publicidade em Paris, em 1852. Até 1867, passando
pela lei Euzébio de Queiroz de 1850 sobre o tráfico interoceânico,
que foi mais um produto da ação exterior da Inglaterra que outra
coisa não nos faltaram manifestações em prol da liberdade dos
negros. O Marquês de São Vicente, ministro da justiça do gabinete
Olinda, chegou mesmo a submeter à apreciação do imperador alguns
projetos de abolição lenta e gradual por ele estudados. Isto porém
passou-se, sem maiores conseqüências, no discreto silêncio de um
salão de São Cristóvão. Pode-se dizer que todas essas manifestações,
apesar de muito louváveis e profundamente sinceras, não passaram
afinal de tentativas isoladas e pessoais. Muito mais significativa foi
sem dúvida a resposta mandada dar pelo imperador a uma sociedade
francesa de emancipação, que lhe escrevera em prol da libertação dos
escravos. Sua Majestade mandou dizer que o governo brasileiro,
assim que o permitissem as circunstâncias criadas pela guerra,
consideraria a abolição como um objeto de importância primordial.
Pedro II foi realmente um dos maiores defensores da liberdade –
certamente o primeiro e o mais ardente de todos eles – segundo o
afirmou Joaquim Nabuco. Mas é preciso não esquecer a obrigação de
reserva e constante imparcialidade a que o Chefe de Estado se
sujeitava perante os interesses em luta. A resposta à carta da
sociedade francesa é de 22 de agosto de 1866. Ora, desde o dia 3
daquele mês, estava no poder o gabinete Zacarias. Aquela resposta,
que tanto consultava os nobres sentimentos pessoais de Sua
Majestade, foi, sem a mínima dúvida, resolvida em conselho de
ministros. Assim foi, nem doutra forma a teria consentido o próprio
imperador.
116
O primeiro que, com as responsabilidades do homem de
governo, encarou francamente o problema da abolição, aceitando-o
como base de programa governamental e de ação política geral, foi,
de fato, o grande ministro Zacarias de Góis. Foi ele quem soube
oferecer às aspirações liberais aquele ponto de apoio objetivo e
determinado, fazendo logo surgir a plêiade decidida e corajosa dos
radicais, que, mesmo sem o declarar e talvez sem o pensarem,
entraram a formar a vanguarda franco-atiradora da sua política.
O presidente do gabinete de 3 de agosto não podia entretanto
iludir-se sobre as dificuldades que se opunham aos seus projetos.
Fora das cidades do litoral e de certas zonas pastoris do Sul e do
Nordeste, a vida do Brasil estava nota nas grandes plantações de
cana-de-açúcar, de café e de algodão, servidas pelo braço escravo.
Ali estavam os ricos e poderosos interesses que no parlamento se
manifestavam pela palavra superior e decuriona dos líderes
conservadores... Mas o ministro também se apercebia de que naquele
instante se ia formando toda uma série de condições favoráveis às
suas idéias. É sabido que em toda parte e a todo o tempo as grandes
massas militares foram sempre recrutadas no meio numeroso e
paciente dos trabalhadores do solo. O trabalhador do solo, no Brasil,
era quase totalmente o escravo. Não admira portanto que os negros
figurassem em grande proporção nas fileiras do nosso exército do
Paraguai. Esta circunstância, ligando, muitas vezes com especial
destaque, os homens de cor aos episódios mais emocionantes da
guerra, vinha aumentar fortemente a sensação de injustiça que já se
prendia à idéia do cativeiro, nos grandes centros urbanos do litoral.
Junte-se a esse poderoso elemento afetivo o exemplo dos Estados
Unidos, a quem a libertação completa da escravatura, com tanto
esforço obtida numa áspera guerra de quatro anos, cobria de imensa
glória naquela época, e compreende-se que o ambiente moral não
117
deixasse de ser propício. Do ponto de vista imediatamente político ou
partidário, se a situação do gabinete não era perfeitamente clara,
também não era má. Os conservadores, com a ida do Marquês de
Caxias para o Paraguai, tinham ficado sujeitos a uma grande
circunspecção nas suas atitudes para com o governo. Do lado dos
liberais moderados ou progressistas, muitos havia certamente cujos
interesses pessoais as idéias do ministro profundamente ameaçavam.
Estes, porém, eram no mínimo obrigados a pautar as suas
manifestações na discreta conduta dos conservadores, enquanto os
mais adiantados, os liberais históricos e os radicais sobretudo,
recebiam as novas bases de programa com a intensa e maravilhosa
alegria de quem, ao fim de muita luta e sofrimento, vê afinal o
caminho direito abrir-se em sua frente.
Zacarias de Góis cercou de todas as cautelas a revelação da
sua grande política. A fala do trono de 1867 apenas sugere: “O
elemento servil no Império não pode deixar de merecer
oportunamente a vossa consideração, promovendo-se de modo que,
respeitada a propriedade atual e sem abalo profundo em nossa
primeira indústria – a agricultura – sejam atendidos os altos
interesses que se ligam à emancipação”. Foi porém o bastante. Tato
do lado dos que imediatamente formaram na corrente abolicionista,
como daquele que se opuseram, ninguém mais teve dúvidas. Todos
compreenderam que naquelas tão discretas expressões estava apenas
o anúncio do próximo fim da escravidão. Apesar de todas as
conveniências a que se sentiam presos, os conservadores da extrema
direita ainda tentaram reagir.
A comissão de redação da resposta à fala do trono dizia, de
volta, ao imperador: “A câmara dos deputados associa-se à idéia de
oportuna e prudentemente considerar a questão servil no Império,
como requerem a nossa civilização e verdadeiros interesses...” O
118
deputado Gavião Peixoto pretendeu emendar essa fórmula de adesão,
de maneira a transformá-la numa censura. O governo opôs-se. O
projeto de resposta à fala do trono redigido pela comissão foi
aprovado. Estava aceita pela câmara a orientação política geral de
Zacarias de Góis.
NOTAS
(18) Pelo art. III do tratado da Tríplice Aliança ficara estabelecido que o
general Osório seria o comandante geral das forças brasileiras,
obedecendo ao comando em chefe aliado, entregue ao general Mitre.
Osório, entretanto, jamais exerceu de fato o comando geral dos dois
corpos do exército que formavam o total das nossas forças, n o início da
campanha. Na passagem do Paraná, como nas lutas que se seguiram até a
batalha de 24 de maio, só figurou, da nossa parte, o 1º corpo, do seu
comando direito. O 2º corpo, sob as ordens do general Porto Alegre, ainda
estava em formação, na fronteira de São Borja. Quando o 2º corpo desceu
para o Passo da Pátria, já Osório, com parte de doente, tinha -se retirado
ao Brasil, donde só voltou no ano seguinte, à testa do 3º corpo, para
colocar-se sob o comando geral do Marquês de Caxias. O general Porto
Alegre, ao chegar ao Passo da Pátria, seguiu atacar Curuzu, onde ficou,
separado do 1º corpo, então às ordens do general Polidoro, por uma
grande distância e tendo de permeio a autoridade do general Mitre. De
uma maneira sólida e eficaz, as nossas forças só tiveram realmente um
comando geral com a chegada do Marquês de Caxias.
(19) Convém ler o nosso grande publicista J. A. Pimenta Bueno (Marquês
de São Vicente), no seu Direito Público Brasileiro, Cap. V, Do Conselho
de Estado; seção 1ª, pág. 285. – Tipografia Imp. e Const. de J. Villeneuve
& Cia., Rio de Janeiro, 1857.
(20) O gabinete deu provas de compreender bem o sacrifício imposto a
Silva Ferraz com aquela política. O ex-ministro da guerra, ao voltar do
governo para a sua cadeira no senado, viu -se logo incluído n Conselho de
Estado e promovido à dignidade de Barão de Uruguaiana. Mas o incidente
o abalou tão profundamente que a sua saúde, já alterada, não pode resistir.
Apesar de ainda relativamente moço, ele faleceu alguns meses depois.
119
(21) Vida do grande cidadão brasileiro Luís Alves de Lima e Silva, barão,
conde, marques, duque de Caxias, desde o seu nascimento em 1803 até
1878, pelo padre Joaquim Pinto de Campos, prelado doméstico da Sua
Santidade, deputado à Assembléia Geral pela Província de Perna mbuco,
etc. – Lisboa, Imprensa Nacional, 1878.
(22) É um eloqüente e apaixonado panfleto, publicado em 1868, no qual
todos os contratempos da guerra não afinal atribuídos ao fato dos liberais
não terem sabido abandonar o poder...
(23) O deputado J. M; Wanderley, depois senador e Barão de Cotegipe,
que tanto se opôs à abolição em 1888, apresentou à câmara em 1854 um
projeto de lei que proibia o comércio de escravos de província a
província. Esse projeto, de certa forma, criava no Brasil o vínculo do
trabalhador rural ao solo, vínculo este que foi, como é sabido, o
característico essencial da servagem medieval.
CAPÍTULO VI
A CRISE MINISTERIAL DE 1868
Antes da reabertura do parlamento, já o governo
designara, no dia 11 de abril, uma comissão presidida pelo
próprio chefe do gabinete e composta de Saraiva e Torres
Homem, para estudar os meios práticos e o encaminhamento
legal da abolição. Era portanto claro que, para o ministério, a
oportunidade de trazer de novo aquele assunto perante a
câmara, estava apenas no encerramento das hostilidades no
Paraguai. Bastaria talvez uma vitória decisiva sobre o inimigo
120
para que aquela oportunidade se considerasse realizada,
entrando imediatamente a abolição no seu período de execução
prática. Infelizmente, a situação conseqüente à batalha de
Curupaiti, terrivelmente agravada pelo aparecimento do
cholera-morbus nos acampamentos, não permitiu ao Marquês
de Caxias inaugurar o seu comando no Paraguai com qualquer
ação imediata de grande efeito. Foi necessário, antes de mais
nada, cuidar da saúde do exército e esperar os grandes reforços
em homens e em material que as novas condições exigiam.
Mas, no mês de julho, tendo o exército reorganizado e
acrescido de mais um grupo de divisões trazido do Rio Grande
do Sul pelo general Osório, o nosso comandante-chefe sentiuse em condições de tomar a ofensiva.
Cabem aqui alguns dados sobre as condições
estratégicas que o Marquês de Caxias foi encontrar no teatro
das operações. Para facilidade de compreensão, admitamos
que, a vol d’oiseau, os rios Paraná e Paraguai, vindo juntar-se
na sua confluência nas Três Bocas, formem, entre os portos de
Itapiru, na margem direita do primeiro, e Taii, na margem
esquerda do segundo, um grande arco, de uns quarenta
quilômetros de corda. Era ao longo desse arco que se elevavam
as fortalezas paraguaias. Como desembarque no Passo da
Pátria e a ocupação do Itapiru, seguida da tomada de Curuzu,
ao lado do Curupaiti, nós havíamos iniciado a conquista
daquele arco, avançando pelo seu ramo Sul. Detidos pela
corajosa e tenaz resistência apraguaia em Curupaiti, nós
ficáramos entretanto senhores do Paraná, em toda a sua
extensão, e do Paraguai, até as proximidades dessa última
posição. Lopez, das suas fortalezas restantes, sabiamente
conjugadas num largo sistema de obras exteriores, dentro do
121
qual se abrigava todo o seu exército, ficou a dominar todo o
interior para o Norte, tendo livres os seus transportes rio acima até Mato Grosso, e podendo comunicar-se ainda com as
fronteiras do Peru e da Bolívia. Tal foi a mútua situação
estratégica dos beligerantes, desde a batalha de Curupaiti, até
aquele mês de julho de 1867, quando o general Caxias
resolveu reencetar a marcha para a frente.
O
nosso
comandante-em-chefe,
abandonando
definitivamente o ataque frontal de Curupaiti, fracassado em
setembro do ano anterior, decidiu-se a operar imediatamente
em toda a extensão da corda Itapiru-Taii, ameaçando a fundo e
de uma vez todos os pontos da defesa paraguaia. No dia 21,
com uma forte coluna cuja vantagem é entregue ao general
Osório, ele contorna as linhas de Rojas, fronteiras ao
acampamento de Tuiuti, e avança deliberadamente para o
Norte, varando uma região de pântanos e florestas, tida até
então como intransitável para um exército. A 31 é atingida e
tomada Tuiú-Cué, São Solano cai no dia seguinte, e, através de
uma áspera série de escaramuças e combates, nos quais os
destacamentos inimigos tentam em vão sustar a sua marcha,
ele ocupa Taii, a 2 de agosto, privando o comando paraguaio
das suas últimas comunicações pelo rio.
Seguiu-se a consolidação da nova linha e a preparação
da parte naval daquela manobra. A missão reservada à
esquadra naquele plano geral de envolvimento do inimigo,
exigiu porém um longo e penoso trabalho preliminar. Tendo a
passagem de alguns navios a montante de Curupaiti
ocasionado a perda do couraçado Rio de Janeiro, além de
avarias graves em alguns outros, ficou patente a necessidade
de uma base para a esquadra, acima daquela fortaleza, servida
122
por uma linha de comunicações terrestres que escapasse ao
raio de ação dos fortes inimigos. Construiu-se então, na
margem direita, entre Curupaiti e Humaitá, o Porto Elisiário,
ligado à base primitiva das Três Bocas por uma via férrea. Só
quando estes trabalhos ficaram prontos foi possível prosseguir
na ação naval. Mas, nos primeiros dias de fevereiro de 1868, a
esquadra
punha-se
toda
em
movimento,
atacando
vigorosamente as posições paraguaias ao longo da margem
esquerda, para forçar, no dia 19, a passagem de Humaitá e
estabelecer em Taii a sua ligação terminal com as forças de
terra. Lopez tentou então reagir contra aquela vexatória
situação, mandando repetidos e furiosos ataques às nossas
posições. Todos porém foram inúteis. Com as suas linhas
enfraquecidas pela exagerada distensão a que teve de submeter
os seus efetivos naquela enorme frente de combate, o comando
paraguaio ficou à mercê da primeira concentração de forças
que o Marquês de Caxias, inteiramente senhor da manobra,
entendesse ordenar, no ponto que melhor lhe conviesse.
Essa eventualidade não tardou muito em chegar. No dia
21 de março, o general Argolo desarticula as defesas
paraguaias, tomando de assalto as trincheiras de Sauce, e
Lopez é forçado a abandonar em tumulto o seu quartel -general
do Passo Pocu, onde instantes depois surge o general Mena
Barreto, com a nossa terceira divisão de cavalaria. Foi uma
incursão rápida e fulminante. À direita e à esquerda da coluna
assaltante, o inimigo, com os seus flancos abertos, bei batendo
em retirada sobre Humaitá. As posições do Ângulo e de Passo
Espinilo são evacuadas, enquanto a famosa guarnição de
Curupaiti, que tão vigorosamente nos detivera em setembro de
1866, foge célere pela margem do rio, sem dar um tiro...
123
A queda de Sauce, com a conseqüente invasão do vasto
campo fortificado, do qual aquela bateria era um dos
principais elementos, teve para a defesa paraguaia o efeito de
um desmoronamento. Lopez encontrou-se com todo o seu
exército amontoado na área interior de Humaitá, só lhe
restando, como futuro próximo, render-se, sair de qualquer
forma para tentar ainda a guerra de movimento, ou morrer
dentro da sua última fortaleza. Mas, em qualquer destas
hipóteses, o comando aliado podia bem considerar o fim da
guerra como muito próximo.
No espírito do ministro Zacarias de Góis, o
contentamento de todas estas notícias, foi-se rapidamente
transformando numa firme, numa intrépida, numa generosa e
esplêndida decisão: - a de promover sem mais delongas a
abolição total do cativeiro. Dificilmente se poderá avaliar hoje
o efeito que teve sobre a opinião pública das grandes cidades
brasileiras a idéia abolicionista, lançada na fala do trono de
1867. Houve como que um levantamento geral da alma urbana
contra a imensa tristeza da vida humana nas fazendas e nos
engenhos. Foi como se vibrasse de um extremo ao outro do
litoral um profundo e ininterrupto grito de piedade. O Brasil
francamente tocara o limiar de um novo e grande período da
sua evolução histórica.
É possível que Zacarias, ao lançar tão cautelosamente o
princípio da abolição, não pensasse ir muito além de uma
libertação parcial, que melhor dispusesse as coisas para o
futuro. Não só não havia iludis-se com a inevitável resistência
dos interesses escravistas, como, do lado das operações de
guerra, nada se dera ainda, em maio de 1867, em condições de
assegurar imediatamente ao gabinete uma grande liberdade de
124
ação na política interna. Dada porém a formidável repercussão
obtida pela fala do trono, o governo foi naturalmente cedendo
àquela impetuosa e inesperada reação das suas próprias idéias.
O seu projeto inicial de abolição foi rapidamente evoluindo
para um ponto que não lhe era dado ainda fixar com exatidão,
mas que só podia concretizar-se racionalmente na extinção
completa do cativeiro. A oportunidade para a ação decisiva
naquele sentido, cada vez mais identificou-se, na mesma
ardente esperança, com a vitória final das nossas armas no
Paraguai. Mas esta, as comunicações do comando -em-chefe
em princípios de 1868, já prometiam para, de um instante a
outro, no assalto e conseqüente tomada de Humaitá. O governo
não via mais nenhum motivo para ocular o seu pensamento e a
sua intrépida decisão. A nova fala do trono, lida na reabertura
dos trabalhos parlamentares em 9 de maio daquele último ano,
já não se disfarça em frases vagas e tateantes; ela diz
claramente: “O elemento servil tem sido objeto de assíduo
estudo, e oportunamente submeterá o governo à vossa
sabedoria e conveniente proposta.” Os deputados responderam:
- “A câmara aguarda cheia de confiança a oportunidade em que
tem se der apresentado ao seu exame a conveniente pr oposta
sobre o elemento servil, objeto de assíduo estudo do governo.”
As emendas apresentadas a esta redação, e que o gabinete
mesmo recusou por excessivas ou desnecessárias, foram todas
na intenção de torná-la ainda mais incisiva e pressurosa. A
escravidão aproximava-se evidentemente do seu termo.
Apesar de continuamente solicitado no eterno sentido
da perfeição, o mundo moral, como o mundo sensível,
equilibra-se todo num vasto e inapreensível sistema de
reações. O momento do triunfo do Marquês de Caxias no
125
Paraguai, não fora previsto como a oportunidade ideal para
uma vitoriosa mutação da nossa política interna, apenas pelo
chefe do gabinete. A extrema direita dos conservadores
também assim o compreendera do seu ponto de vista especial.
A discreção que ela mais ou menos mantivera até ali perante
os atos do ministério, de maneira alguma significara uma
passiva aceitação das idéias liberais. Tratava-se apenas de não
criar embaraços ao Marquês de Caxias, provocando um
prematuro enfraquecimento do governo que obtivera elevá-lo
ao comando-em-chefe e se associara a sua ação militar. Mas,
se os conservadores assim condescendiam com as necessidades
da defesa externa, não lhes era possível entretanto admitir que
as vitórias do seu grande correligionário nos campos de
batalha, viessem a ser transformadas pelo governo liberal em
fontes de prestígio, para subverter a ordem social e econômica
estabelecida no interior. O trabalho anti-abolicionista começou
logo, com uma resposta imediata e quase automática à fala do
trono de 1867. Abafado na câmara com a recusa da emenda
Gavião Peixoto e afastado por circunspecta contenção dos
meios senatoriais, esse trabalho alastrou-se pelo interior das
províncias, numa exaltada e vigorosa arregimentação de todos
os interesses diretamente ligados à cultura do solo e à
exploração da mão-de-obra escrava. É fácil imaginar os meios
de que dispunham os barões fazendeiros e senhores de
engenho para reavivar nos grandes centros comerciais o
sentimento
conservador
entorpecido
pela
campanha
abolicionista. Eles se dirigiam aos seus clientes, aos seus
banqueiros, aos seus comissários e correspondentes, aos seus
advogados e jornalistas, falando portanto aos interesses mais
íntima e solidariamente ligados à prosperidade das suas
126
lavouras. Os elementos mais consideráveis do mundo
econômico, os detentores principais da riqueza, tanto no
interior como no litoral, ativamente se congregaram. A idéia
de arrebatar ao gabinete liberal os louros do Paraguai,
combinou-se assim na reação do interesse ferido com a terrível
obsessão da inveja partidária.
Nos seus aspectos gerais, a campanha conservadora
contra a abolição tomou a forma regular de um movimento de
idéias. Sem recusar o que havia de humano na libertação dos
cativos, argumentava-se entretanto com a fundamental
significação do direito de propriedade, apontando-se ao mesmo
tempo os desastrosos efeitos que a medida produziria em toda
a vida econômica e na própria organização social do império.
Só aqueles que nada tinham a perder, diziam os escravagistas,
podiam lançar-se de ânimo ligeiro e por simples idealismo
numa tão insensata e perigosa aventura...
Por tal caminho, tinha-se a impressão de que o partido
conservador, exercendo uma legítima atividade, apenas se
preparava a reconquistar a câmara nas próximas eleições
gerais. Dada porém a precipitação com que os fatos se foram
dispondo em bem dos projetos do gabinete, os conservadores
mais exaltados e, digamos mesmo, de menor escrúpulo, logo
se decidiram a empregas processos mais rápidos e expeditos,
ainda que muito menos elegantes. O primeiro esforço para a
abertura de uma crise capaz de provocar a queda do gabinete
de 3 de agosto, assumiu realmente um caráter de espantosa
inferioridade. Como a triunfal “marcha de flanco”, executada
pelo general Caxias, de 21 de julho a 2 de agosto de 1867,
desse a justa impressão de haver o nosso exército firmado
definitivamente a sua supremacia sobre o inimigo, em certos
127
meios políticos da corte estabeleceu-se a crença de que a nova
situação militar já eximia os conservadores de toda a reserva
por eles mantida até ali na política interna. Era claro, para
aqueles meios, que os motivos de tanta condescendência
haviam cessado, assim como evidente lhes parecia que, por
simples e automática reversão, a vida do gabinete passara a
depender da permanência de Caxias no Paraguai. Começou
então uma insidiosa urdidura no sentido de incompatibilizar o
presidente do Conselho com o general em chefe. Em cartas
particulares foi-se mandando dizer ao Marquês de Caxias que
o gabinete liberal, dominado pelas suas estreitas preocupações
partidárias, já não sabia corresponder à esplêndida
generosidade da sua colaboração militar. Zacarias de Góis
jamais deixava passar sem resposta qualquer censura ao
comando do exército, desde que partisse ela de pessoa
autorizada e merecedora de réplica. A sua palavra incisiva e
vigorosa, levantava-se no parlamento à primeira manifestação
de dúvida ou desalento, confundindo os impacientes,
reanimando os tímidos, fazendo cair vencidas as ultimas
animosidades. Entretanto, tudo quanto de mal informado ou
injusto pudesse divulgar a imprensa do Brasil ou mesmo do
estrangeiro, logo era expedido ao Paraguai, como prova
irretorquível da desleal indiferença do governo para com o
chefe das forças em operações. Esse lamentável trabalho,
dados os antecedentes da nossa vida política e partidária, não
podia deixar de produzir os seus efeitos. Tocado pela dolorosa
suspeita de que o gabinete já não lhe dispensava a perfeita e
inteira confiança do princípio, o Marquês de Caxias, no dia 4
de fevereiro de 1868, enviava do acampamento de Tuiu-Cuê o
128
seu pedido de demissão, sob o pretexto de um mau estado de
saúde.
Colhido pela desconcertante surpresa daquela resolução,
Zacarias de Góis só pensou em manter-se coerente com a
atitude que tivera ao convidar o marquês para o comando do
exército. A retirada do gabinete fora então oferecida a Caxias
como condição, se ele quisesse, da sua partida para o Paraguai.
Como ele pretendia exonerar-se naquele momento, o governo,
para dissuadi-lo e conservá-lo no seu posto, renovava e fazia
efetivo o antigo oferecimento. Mas o Conselho de Estado,
reunido para conhecer o incidente, peremptoriamente opôs -se a
que o governo assim se retirasse, só para atender às
susceptibilidades do general às suas ordens. O gabinet e foi
instantemente solicitado a manter-se no poder. Dezessete dias
após ter partido de Tuiu-Cué o pedido de demissão do
Marquês de Caxias, isto é, a 21 de fevereiro, o gabinete
expedia a sua resposta, na qual se lia: “... o governo imperial
deliberou não aceitar o pedido de V.Exa., confiando do seu
zelo e dedicação pelo serviço público, que continuará no seu
posto de honra”. Felizmente o general em chefe, que procurara
apenas uma reafirmação formal e indubitável de confiança,
submeteu-se sem replicar à solução, para trinta dias depois
cobrir-se de glória no esplêndido golpe estratégico de 21 de
março.
É preciso compreender, entretanto, que se o Conselho
de Estado, que já andava seriamente alarmado com a política
abolicionista de Zacarias de Góis, se opôs com tão rápida e
enérgica decisão à queda do gabinete naquele instante, foi
apenas por uma questão de forma. Não lhe pareceram dignos
os processos empregados na preparação da crise, nem podia
129
ele ter por legítimos, nem mesmo toleráveis, os motivos
invocados para a demissão do ministério, tais como no
momento se apresentaram. Dadas, porém, as tendências
partidárias da maioria dos seus membros e a sua própria
natureza institucional ele não podia ser de forma alguma
indiferente à profunda agitação provocada pelas disposições
redentoras do gabinete. Os conselheiros da coroa sentiram -se
desde o primeiro instante no dever, senão de sustar, pelo
menos de encaminhar a corrente abolicionista por vias mais
contornantes e demoradas. O indispensável para eles era
apenas que a ocasião regular se apresentasse.
Tudo indicava que o projeto de lei de abolição não
encontrasse dificuldades no seu encaminhamento regimental
na câmara temporária, desde que o governo resolvesse a sobre
ele apresentar a “conveniente proposta” prometid a. Só do
senado era possível esperar um trabalho mais detido e menos
entusiasta, que, retardando a vaga abolicionista e dando -lhe
sem dúvida outra forma, afastasse as ameaças à ordem pública
por ela trazidas e já visíveis no horizonte. Acontecia porém,
que, mesmo na câmara alta, a situação de Zacarias não estava
longe de poder ser tida por excelente. As últimas eleições
senatoriais haviam sido quase todas favoráveis ao Partido
Liberal, muito pouco faltando a que as forças dos dois partidos
ali se equilibrassem.(24) Junte-se a essas condições numéricas
o poder de sugestão de uma bancada onde figuravam as
inteligências mais prestigiosas daquele tempo, e ver -se-á
quanto seria possível a Zacarias de Góis, mesmo entre os
senadores, dominar a votação no momento decisivo.
Uma circunstância entretanto sobreviera que vinha pôs
entre as mãos dos conselheiros de Estado os meios de agir
130
sobre o ambiente parlamentar, criando o incidente inicial de
uma nova situação. O Partido Liberal, com a morte de Dom
Manoel de Assis Mascarenhas, senador pela Província do Rio
Grande do Norte, havia perdido na segunda câmara um dos
seus elementos mais fiéis e devotados. D. Manoel fora mesmo
a prestimosa individualidade em torno a qual giraram
anteriormente quase todos os esforços no sentido de fundir
progressistas e liberais num só partido. Fora em sua residência
que se realizaram todas as reuniões e conferências para aquele
fim; ali fora redigido, por Nabuco, Dias Vieira e Zacarias de
Góis, o programa progressista lido por Silveira da Mot a, no
senado, em 1864.(25) A conservação da cadeira vaga pelo seu
desaparecimento era uma necessidade, uma condição prática e
moral de prestígio e de sucesso, para a política liberal e para o
governo.(26) Pois foi aquele o ponto que se ofereceu ao
espírito conservador do Conselho de Estado, para pôr em
cheque o gabinete de 3 de agosto e conter a vaga montante do
abolicionismo.
A eleição para o preenchimento da vaga de D. Manoel
de Assis Mascarenhas no senado tomou imediatamente a
feição de um prejulgamento das idéias do gabinete sobre o
elemento servil. Liberais e conservadores tomaram logo
posições extremas, tendo sido necessárias medidas militares de
caráter extraordinário, para manter a ordem pública na
província. O eleitorado foi sensivelmente favorável aos
liberais. Os votos mais numerosos recaíram sobre o candidato
Amaro Bezerra Cavalcanti, que o gabinete preferia. Mas, ao
chegar à corte a lista tríplice, sobre a qual se produzira a
votação geral, o Conselho de Estado pronunciou-se pela
escolha de Sales Torres Homem, dela o nome que menor
131
número de sufrágios conseguira. Zacarias de Góis tinha as
mais sólidas razões para impugnar a preferência do Conselho
de Estado. A inclusão de Torres Homem na lista de candidatos
não obedecera à certas prescrições legais indispensáveis, como
depois o reconheceu o próprio senado, invalidando a eleição
no reconhecimento de poderes. Mas, além disso, Sales Torres
Homem, pondo a sua esplêndida inteligência ao serviço das
idéias conservadoras, após ter surgido no mundo polític o com
a verdadeira explosão liberal do seu “Libelo do Povo”(27),
tornava-se profundamente antipático aos homens adiantados.
Podia-se dizer que o Partido Liberal lhe reservava os mesmos
sentimentos que o Partido Conservador nutria pelo chefe do
gabinete, pois, inversamente, ambos haviam evoluído de um
partido para o outro, causando nos dois campos e cada um de
per si igual irritação. É preciso notar ainda que, escolhendo a
Sales Torres Homem, que com José Antônio Saraiva fizera
parte da primeira comissão de estudos do problema da
escravidão, o Conselho de Estado de certa forma parecia
indicar ao gabinete até onde lhe seria permitido levar as suas
disposições libertadoras.. O projeto daquela comissão, como
depois foi revelado, limitava-se de fato à redenção dos
nascituros, quando um horizonte muito mais amplo já via o
governo abrir-se em sua frente.
Zacarias de Góis correu ao paço, a fazer ver ao
imperador a impossibilidade legal e a irritante e perturbadora
significação política daquela escola. Era indispensável
repudiá-la. Pedro II, entretanto, não concordou. Zacarias
insistiu, e, insistindo, automaticamente pôs em questão todo o
processo funcional e das próprias bases do poder moderador. O
que ele pedia, era apenas que Sua Majestade, relegando os
132
pareceres do Conselho de Estado à sua função meramente
consultiva, negasse-lhes força decisória, para mandar lavrar a
carta senatorial pelo Rio Grande do Norte em favor, não de
Torres Homem, mas sim do candidato mais votado.
Ao modo de ver do primeiro ministro opunham-se no
entanto alguns poderosos embargos. A escolha do poder
moderador nas listas senatoriais sufragadas pelos eleitores, de
maneira alguma estava sujeita ao critério da maior votação. A
preferência do nome de Torres Homem era tão lícita como a de
qualquer dos outros dois, não se opondo a ela nem mesmo a
argüição de inelegibilidade legal do candidato, pois essa era,
segundo o art. 21 da constituição de 1824, matéria da
exclusiva competência do senado, ao conhecer da validade do
pleito. O caráter facultativo das consultas ao Conselho de
Estado, no qual parecia apoiar-se o chefe do gabinete para
negar força obrigatória à escolha do novo senador, era um
ponto de doutrina que os nossos publicistas do segundo
reinado aceitavam apenas em princípio, como uma espéci e de
reverência mental à coroa, mas sempre destituído de toda e
qualquer significação no terreno praticamente legal. Não há na
lei de 28 de setembro de 1841, que restabeleceu o Conselho de
Estado, nem no seu regulamento, expedido em 5 de fevereiro
de 1842, nenhuma disposição que autorizasse o imperador a
desprezar os pareceres do Conselho, para resolver a seu
arbítrio os assuntos consultados. O regulamento dizia no seu
art. 13: “As conferências do Conselho de Estado terão lugar
nos paços imperiais, e quando o imperador houver por bem
convocá-lo”. Logo adiante, no art. 16, ele insistia ainda em
submeter as manifestações do conselho à iniciativa do
imperador ordenar”. Está muito bem. Pode-se supor que, se o
133
Conselho de Estado só se reunia e os conselheiros só falavam
quando assim o entendia o imperador, bastava a este deixar de
convocar o Conselho ou, mesmo convocando-o, conservar
mudos os conselheiros, para ficar com o direito de por si só
resolver qualquer assunto. Mas, veja-se a lei, razão e causa
daquele regulamento. No parágrafo 1º do seu art. 7, ela
estabelece que o imperador deve ouvir o Conselho de Estado
“em todas as ocasiões em que se propuser a exercer qualquer
das atribuições do poder moderador”. Ora, os nove parágrafos
em que o art. 101 da constituição do império capitulada as
atribuições do poder moderador, a escolha de senadores era,
pela própria disposição ordinal daqueles parágrafos, a primeira
de todas elas. Como poderia então Pedro II resolver sobre a
eleição senatorial do Rio Grande do Norte, sem audiência do
Conselho de Estado, e como poderia ele ainda, depois de ouvi lo, desprezar a sua escolha, para expedir o título de senador a
Amaro Bezerra e não a Sales Torres Homem. A lei não
declarava explicitamente que os pareceres do Conselho de
Estado necessariamente obrigassem o imperador. Mas ela,
indicando, de uma forma bem determinada e categórica, os
casos em que a obtenção daqueles pareceres tornava-se
indispensável, também não dizia que o imperador pudesse
desprezá-los na sua decisão final. O próprio espírito no qual o
Conselho de Estado espontaneamente se recompôs em 1841,
estaria a demonstrar a força e a natureza real daqueles
pareceres, se a Pedro II não bastasse a praxe constante e
invariável dos vinte e sete anos do seu reinado. O imperador
não podia deixar de compreender que aquilo que lhe vinha
propor o chefe do gabinete, era apenas um golpe de Estado...
134
Ninguém poderá supor que Zacarias de Góis, hábil
político e notável professor de Direito, ignorasse o exato
sentido da medida que reclamava. Por sua vez membro do
Conselho de Estado ele vivia no completo segredo das relações
daquele organismo com a coroa, não podendo portanto iludir se sobre o grave precedente que pretendia estabelecer. O que
se dava realmente, é que, naquele momento, ele compreendera
a impossibilidade prática de separar a questão do elemento
servil do problema constitucional contido no programa dos
liberais históricos. Não era fácil trabalhar eficazmente num
campo sem tocar fortemente as raias do outro. A ocasião
porém, não se apresentava propícia a uma reabertura ostensiva
do debate constitucional. Ele portanto quis daquela forma
contornar a dificuldade, por uma nova interpretação do poder
moderador. Voltar-se-ia ao espírito do Ato Adicional,
anulando o papel político do Conselho de Estado, sem
restabelecer os conflitos de poderes da época da Regência,
pois dada a evolução operada em 1840 até ali, já ninguém
punha em dúvida a completa supremacia do parlamento sobre
as outras partes do nosso sistema político e constitucional. Em
condições diversas, muito mais lógicas e favoráveis, era a
ressurreição da política de Antônio Carlos... Zacarias,
sustentando a sua tese, qualificava os conselheiros de Estado
que se lhe opunham, de “verdadeiros autores do governo
pessoal, porque há”, dizia ele, “governo pessoal, sempre que
afasta-se dos atos da realeza uma justa interferência dos
ministros e sua conseqüente responsabilidade”.(28) Pedro II
não podia porém, concorrer pessoalmente para aquela espécie
de revolução tácita. Seria abandonar a norma geral de conduta
que aceitara perante os grandes estadistas dos primeiros anos
135
do seu reinado, e que a prática até ali se encarregara de
mostrar como a mais digna e acertada. Ele deixaria de ser o
regulador moral das funções do Estado, para tomar partido
entre dois interesses sociais em luta. Fosse um desses
interesses o mais nobre e respeitável, o mais santo, aquele cujo
triunfo se voltassem todos os seus votos, lícito nem prudente
lhe seria entretanto impô-lo daquela forma,sobretudo com o
país ainda a braços com uma guerra externa, e, exatamente por
via daqueles interesses, a dois passos da guerra civil.
Pedro II, que, com carinhosa solicitude, acompanhava
os esforços do seu ministro em prol da redenção dos cativos,
deve tê-lo instantemente solicitado a não sacrificar a marcha
da abolição ao seu ponto de vista na eleição senatorial do Rio
Grande do Norte.(29) Mas Zacarias de Góis se apercebia muito
bem de que, fosse qual fosse a sua atitude no caso Torres
Homem, ela já em nada alteraria o fato essencial daquela
formal resistência do Conselho de Estado à sua política. A
marcha da abolição estava, naquele fato, de si mesma
comprometida. A democracia brasileira, com tudo quanto a ela
se prendesse, seria sempre assim precária e vacilante,
enquanto o poder moderador, com o seu indefectível
complemento funcional do Conselho de Estado, pudesse
semear de escolhos imprevistos o caminho do gabinete. Eram
os liberais históricos, na sua velha intransigência, os que
afinal tinham razão, e, sentindo-se humilhado e moralmente
diminuído, ele preferiu que, perante o país e perante o futuro,
cada um guardasse naquela crise as suas responsabilidades. E
no dia 14 de agosto, o imperador convocava o Conselho de
Estado para consultá-lo sobre a demissão coletiva do
ministério.
136
É bem possível que os conselheiros da coroa não
esperassem uma solução tão radical do seu conflito com o
gabinete, pois, do ponto de vista da administração geral, nada
naquele momento aconselharia uma mudança de situação. Eles
apenas se opunham a que o governo fosse longe demais nos
seus projetos de abolição. Desde porém, que Zacarias de Góis
assim o entendia, já não podiam eles descobrir grandes
inconvenientes na sua retirada. A formidável cabala fazendeira
e reacionária desencadeada nos meios capitalistas e comerciais
das grandes cidades, já havia produzido os seus efeitos. Ali
mesmo, no Conselho, estava o sr. Visconde de Itaboraí, que,
senador pela Província do Rio de Janeiro e intimamente ligado
aos agricultores fluminenses, muito poderia informar a ta l
respeito. Era só entregar-lhe o governo... O novo gabinete
formou-se assim sob a presidência do mais eminente e mais
legítimo representante da reação conservadora e antiabolicionista.
É preciso não nos esquecermos de que o eleitorado
daquele tempo, recrutado segundo o critério de um mínimo e
renda líquida, não podia deixar de ser extremamente sensível a
uma propaganda que, propondo-se a defender o direito de
propriedade, falava sobretudo às classes abastadas e aos que
delas imediatamente dependiam. Basta saber que o alistamento
eleitoral, em escala de valor econômico descendente, parava
nos guarda-livros e primeiros caixeiros das casas comerciais,
para ter-se uma idéia dos múltiplos e vários meios de sugestão
de uma tal propaganda, sobre a massa geral daquele eleitorado.
Não são portanto de admirar as conseqüências que teve a
veemente e impetuosa moção de desconfiança, com a qual a
câmara liberal recebeu o gabinete Itaboraí, logo à sua
137
apresentação no dia 17.(30) Aceito o desafio para um novo
apelo à opinião do eleitorado, que aquela moção necessariamente significava, e procedida à nova eleição geral, o
governo conservador encontrava-se na reabertura do parlamento, a 11 de maio de 1869, em face de uma câmara
triunfalmente correligionária. Os agricultores haviam convencido nas urnas. Estava pedida a evidente e grande
oportunidade para a eliminação rápida e total do cativeiro, na
qual para nós se combinaram as reações sociais da guerra do
Paraguai com a libertação dos escravos nos Estados Unidos.
NOTAS
(24) Referindo-se a essa circunstância, dizia a Opinião Liberal, em 1868:
Agora que pouco faltava a um partido contrário (ao conservadorismo)
passar o Rubicon da 2ª Câmara...
(25) Vide Américo Brasiliense, Os programas dos Partidos e o Segundo
Império, Partido Progressista, pág. 14. Edic. Jorge Seckler, São Paulo,
1878.
(26) É preciso notar que a vaga deixada por D. Manoel não era a única
existente na câmara alta. Havia várias outras. O Partido Liberal naquele
momento esteve realmente a dois passos de comp letar a sua excelente
situação parlamentar com uma indiscutível maioria no senado.
(27) Panfleto terrivelmente antidinástico, publicado em 1848, sob o
pseudônimo de Timandro.
(28) Vide a sua brochura Questões Políticas, pág. 4 – Tipografia da
“Reforma”, Rio de Janeiro, 1872.
(29) Realmente o imperador só muito a contragosto concordou com a
retirada do gabinete. Zacarias teve de repetir três dias seguidos o seu
pedido de demissão, para que ele se resolvesse a comunicá -lo ao Conselho
de Estado.
138
(30) O moção apresentada pelo deputado paulista José Bonifácio (o moço)
era do teor seguinte: “A câmara viu com profundo pesar e geral surpresa o
estranho aparecimento do atual gabinete, gerado fora do seu seio e
simbolizando uma nova política, sem que uma questão parlamentar tivesse
provocado a queda do seu antecessor. Amiga sincera do sistema
representativo e da monarquia constitucional, a câmara lamenta este fato
singular, não tem e não pode ter confiança no governo.”
CAPÍTULO VII
A LEI DO VENTRE LIVRE
Apesar de traduzir-se numa suspensão, ou antes numa
demora do progresso humano no Brasil, a queda do gabinete
Zacarias de Góis não deixou de ser um fato de política normal,
perfeitamente lógico no conjunto das circunstâncias que o
produziram. Com o tempo, veio, porém, a formar-se sobre esse
acontecimento uma tão complicada e confusa teia de prejuízos
mentais, que até hoje ele ainda a muitos se apresenta com a
feição de um profundo e angustioso problema histórico.
Elevaram-se duas escolas. Segundo a primeira, surgida
imediatamente com a natural reação liberal contra o gabinete
Itaboraí, o ministério de 3 de agosto teria sido vítima de um
surto violento e inesperado da vontade pessoal de Pedro II, que
tendo sido a reguladora de fato de toda a nossa existência
política no segundo reinado, a si mesma se satisfazia naquele
instante, insistindo, teimosa, na escolha de Torres Homem
para o senado. A outra, morta naquela época no nascedouro,
mas ressuscitada depois do pronunciamento militar de 15 de
139
novembro, pretende que Zacarias de Góis foi apenas
sacrificado aos brios do general Caxias, que, pedindo a sua
demissão do comando do exército, tacitamente impôs a
retirada do gabinete como condição obrigatória de sua
permanência naquele posto. De acordo com esta última versão,
a crise ministerial de 1868 teria sido o primeiro arranco do
irresistível e fatal militarismo, que explodiu afinal na
proclamação da república, em 1889.
São duas opiniões que decorrem, não do acontecimento
a que, propriamente, se referem, mas de disposiçõe s mentais e
conceitos surgidos posteriormente.
Os que aceitam a queda de Zacarias como uma
exclusiva e brutal manifestação do poder pessoal do
imperador, procuram apoiar essa hipótese nos ataques, a partir
daquele momento, lançados à coroa pelos liberais, a quem a
crise ministerial fizera entrar em extremada e violenta
oposição. Efetivamente, o poder pessoal, o inevitável
predomínio individual do chefe do Estado, voltou a fazer
objeto de todas as críticas e comentários, quase com a mesma
intensidade da época de Pedro I e da Regência. Falava-se
todos os dias de despotismo, de opressão, de maquiavelismo
corruptor, com uma clara e bela veemência, que, para ser
intrépida e corajosa, só faltava corresponder exatamente à
realidade dos fatos... Mas, para não cairmos hoje em
lamentáveis confusões, é indispensável compreendermos o
verdadeiro espírito daquelas purgatórias e o exato fim por elas
visado. Ninguém fazia a Pedro II a injustiça de supô-lo
realmente um tirano, ainda mesmo que amável e disfarçado,
como alguns mais insistentes o pretenderam. O que se
procurava ferir era o poder moderador, isto é, o elemento
140
central de coordenação dos diferentes órgãos do Estado,
elemento esse que tinha no príncipe a sua alta e solene
representação visual. A proposição de Zacarias de Góis sobre
os conselheiros da coroa, qualificando-os de “autores do poder
pessoal” e mostrando como esse poder existia nascente nas
mãos deles, deve ser hoje para nós de um grande valor
instrutivo. Os homens daquele tempo davam às coisas uma
significação que os políticos atuais já não conhecem. Senhores
de uma cultura profunda e sempre renovada, que as exigências
do seu meio político e social tornavam indispensável, quando
eles falavam de uma instituição ou de um fenômeno político
qualquer, logo e naturalmente os identificavam pelos seus
tipos clássicos. Bem sabemos quanto eles se inspiravam na
vida constitucional dos ingleses e como procuravam, pelo
estudo, fixar a espécie, o caráter histórico e jurídico dos
problemas de que se ocupavam. O que eles temiam, era que no
Brasil, por meio de uma tonificante evolução do Conselho de
Estado, viesse a instalar-se qualquer coisa no gênero daquele
governo dos “amigos do rei”, característico da época de Jorge
III da Inglaterra, que consistia num grupo de áulicos,
emboscado nos bastidores do trono, a manejar, contra a
opinião pública e o parlamento, o irresistível espantalho da
prerrogativa real.(31) Era esse o sistema que eles não queriam
e a cujo aparecimento se opuseram vigorosamente. Nele
consistia aquele misterioso e célebre “reposteiro”, ao qual
tanto e com tão irônica insistência se referiam nos seus
discursos parlamentares. Era enfim a velha e perigosa ficção
da “prerrogativa”, que se tornara necessário repelir e pôr fora
do alcance daqueles “autores do governo pessoal”, ainda
141
mesmo descobrindo nesse esforço a pessoa legalmente
inviolável do imperador.
Mas, não nos esqueçamos de que o nosso Conselho de
Estado não era uma organização parasitária e extra-legal como
o foi o círculo palaciano de Lord Bute, na velha corte de St.
James, nem percamos de vista que Pedro II jamais revelou a
educação e os impulsos de Jorge III, o único rei da casa de
Hanover que ainda pretendeu restaurar na Inglaterra os
métodos anti-parlamentares, pelos quais perdeu a vida Carlos I
e foi expulso Jayme II, no tempo dos Stuarts. Tratava-se de
uma campanha essencialmente teórica, visando mais uma
probabilidade ou uma tendência d que um fato real existente. É
portanto indispensável saber ler certos trabalhos, no gênero da
“História Política Contemporânea”(32), do conselheiro Tito
Franco, e não aceitar incauto proposições como a célebre
“sorites”(33) do conselheiro Nabuco. O que se nota em Tito
Franco, com a sua criação do “Imperialismo”, é sobretudo o
desapontamento dos progressistas do conselheiro Furtado, pro
não terem conseguido, no gabinete de 31 de agosto de 1864,
conciliar as resistências dos liberais históricos com as
susceptibilidades do partido Conservador. Para compreender
tudo aquilo e interpretar a fragmentária citação e discursos
parlamentares, que constitui a maior parte do livro, é
necessário, por um conveniente esforço mental, nos
transportarmos às idéias e às lutas partidárias daquele tempo,
guardando muito mais das intenções que das palavras. A
sorites do conselheiro Nabuco, com pretensões a oferecer uma
síntese pitoresca da nossa vida constitucional, constava mais
ou menos do seguinte: - O imperador nomeia o ministério, o
ministério faz a eleição, a eleição forma a câmara, a câmara
142
apóia o ministério, que obedece ao imperador. É uma frase de
espírito, sem dúvida excelente como recurso de oratória
parlamentar, mas destituída certamente de toda significação
prática efetiva. Nabuco de Araújo, senador, ex -ministro e
conselheiro de Estado, devia estar, no fundo, tão certo da
exatidão desse jogo de palavras, como o seu contemporâneo
José Antônio Saraiva, que, tendo ocupado os mesmos postos
na monarquia, afirmava depois da república, jamais haver
encontrado, em toda a sua carreira, o poder pessoal de Pedro
II. O poder pessoal não foi para a oposição liberal, como o não
fora anteriormente para os conservadores, uma convicção: - foi
apenas uma decisão. Deliberou-se tomar aquela fórmula
abstrata como base teórica de reação política e partidária, e os
que se propõem ainda hoje a demonstrar a predominante e
capital influência daquele poder no segundo reinado, como o
sr. Oliveira Viana no seu “O ocaso do Império”(34), o fazem
simplesmente para lisonjear o nosso sistema político atual,
repelindo as tradições liberais do Brasil e o próprio mérito da
democracia.
A tese de que a crise ministerial de 1868 tenha vindo
em conseqüência da tácita imposição militar contida no pedido
de demissão do Marquês de Caxias, imediatamente pressupõe a
hipótese de que, se o gabinete Zacarias ainda se conservou no
poder, de fevereiro a julho daquele ano, foi apenas à espera de
uma saída mais plausível e menos desairosa, do que aquela de
um mandato de expulsão intimado ao governo pelo comando
do exército. O primeiro ministro, para salvar as aparências,
teria assim combinado com o imperador e o Conselho de
Estado, guardar a posição ainda por algum tempo, apesar de
exautorado e virtualmente demitido. É preciso convir que, para
143
o rijo caráter de Zacarias de Góis, teria sido o mais espantoso
e terrível dos sacrifícios...
Não se pode entretanto recusar que essa tenha sido no
momento a impressão de certos elementos liberais. Nos
pesados ataques de que foi alvo o Marquês de Caxias no
senado, após a queda do gabinete, principalmente por parte de
Silveira Lobo, Teófilo Ottoni e Francisco Otaviano, esse modo
de sentir parece realmente não deixar dúvidas. Mas o próprio
Caxias encarregou-se depois de demonstrar tudo aquilo como
falso e sem o menos fundamento, repelindo com energia a
injúria que naquela versão se continha contra a sua honra de
soldado, constantemente fiel aos seus deveres de disciplina.
Efetivamente, na sessão da câmara alta de 15 de julho de 1870,
ele, já de volta do Paraguai, elevado à extrema dignidade de
duque e reintegrado nas suas funções parlamentares, teve
ocasião de provocar sobre aquele ponto uma explicação tão
ampla e completa, que se viram todos os que o atacaram por
tal suspeita, na rigorosa obrigação de publicamente se
desculparem. Não podemos fugir à tentação de transcrever
aqui o trecho do seu discurso, no qual ele explicou os motivos
de consciência que o levaram ao pedido de demissão em
fevereiro de 1868, e o modo pelo qual o incidente foi por si
considerado como findo. Disse o antigo general em chefe:
“Julguei que o ministério, tendo-me confiado o
comando de nossas forças no Paraguai, exigindo de mim com
instância o aceitar essa comissão, sentia vexar-me em
exonerar-me dela, mas que, entretanto, desejara ver-se livre de
mim por motivos que de todo ignorava, mas que nem por isso
deixariam de existir para ele. Nesta persuasão (note-se que já
estava doente), dirigi uma carta particular ao sr. ministro da
144
guerra, em que fazia minhas queixas por essas pequenas coisas
que me fizeram desconfiar e pedia a exoneração do comando.
Dizia ou comigo: se o ministro não está contente, me demite;
mas se estou enganado, se ele está satisfeito com os meus
serviços, recusa a demissão e então continuares a cumprir meu
dever enquanto minhas forças o permitirem ........... ..................
...............................................................................................
“O ministro recusou a demissão pedida; recebi
explicações que me satisfizeram completamente e continuei a
cumprir meu dever com a mesma dedicação e lealdade”.
Depois de contar assim toda a história do seu pedido de
demissão do comando do exército, o Duque de Caxias afirmou:
“O ministério de 3 de agosto deixou o poder a 16 de julho, por
motivos que eu inteiramente ignorava”. O seu discurso foi tão
claro, tão emocionante na sua generosa e profunda sinc eridade,
que, quanto ele o terminou, o senado estava quase todo de pé.
Francisco Otaviano foi o primeiro a dar o sinal dos
estrepitosos aplausos que cobriram as suas derradeiras
palavras, e Silveira Lobo, num belo gesto de lealdade que bem
dizia do seu caráter franco e impetuoso, a ele se dirigiu,
começando por esta simples expressão: - Perdôe-me! ...
Zacarias de Góis não podia deixar de ser por diversas
vezes interpelado no correr da oração do ex-comandante do
exército. Caxias, fazendo notar que, antes da crise ministerial,
nunca ministro algum (textuais) lhe fizera os elogios que
recebera do nobre ex-presidente do gabinete de 3 de agosto,
estranhou que, depois de julho de 1868, ele também se tivesse
posto ao lado dos que, sem motivo, tanto o atacaram. Zacarias,
tendo imediatamente procurado responder em apartes, na
sessão do seguinte dia 18, dedicou todo um grande discurso ao
145
esclarecimento das dúvidas reveladas pelo duque a tal respeito.
Se, depois de abandonar o poder, ele por vezes criticara
acerbamente a orientação do nosso comando em chefe no
Paraguai, não o fizera por atribuir-lhe responsabilidades na
queda do seu governo, Fora isto apenas devido ao modo pelo
qual, a partir da batalha de Lomas Valentinas, o comandante em-chefe e o próprio governo entraram a considerar a guerra
como terminada.
Efetivamente, depois dos sucessivos triunfos de Itororó,
Avaí, Piquiciri, Lomas Valentinas e Angostura, nos dias 6, 11,
21, 27 e 30 de dezembro de 1868, nos quais foi virtualmente
anulada a sorrateira manobra empregada por Solano Lopez
escapando de Humaitá pela ponta do Chaco com a maior parte
das suas forças, o general Caxias, já instalado na capital de
Assunção, fez publicar a ordem do dia 14 de janeiro de 1869,
na qual a nossa vitória era dada por definitiva e a guerra por
encerrada. No dia 3 de fevereiro seguinte o gabinete Itaboraí
por sua vez fazia aparecer no “Diário Oficial” uma
comunicação em que se lia: “O sr. Marquês de Caxias,
considerando finda a guerra e achando-se adoentado, havia
pedido a sua demissão e aguardava a decisão do governo
imperial, quando, no dia 17, estando a ouvir missa na matriz
de Assunção, foi acometido de um ataque de cabeça, que podia
ter sérias conseqüências, mas que, felizmente, cedeu aos
imediatos socorros da medicina”. Era evidente que o governo
conservador estava a dispor as coisas para uma próxima
abertura de negociações de paz. Entretanto, o ditador
paraguaio, terrivelmente destroçado nos laranjais de Lomas
Valentinas, ainda conseguira fugir, para ir tentar uma última
reorganização de forças em cerro Leon. Ora, o tratado da
146
Tríplice Aliança, negociado em Buenos Aires pelo liberal
Francisco Otaviano, ainda no governo Furtado, estabelecia que
o Brasil, o Uruguai e a Argentina só se ocupariam da paz,
conjuntamente, quando o governo de Lopez não existisse mais.
Lopez ainda se mantinha em armas no território do Paraguai.
Zacarias de Góis e o Partido Liberal não podiam portanto se
conformar com aquele modo de considerar o fim da guerra. Ele
parecia prematuro e incorreto, e os liberais tinham tanto mais
motivos de se alarmarem, quanto os conservadores nunca
esconderam a sua antipatia à política da guerra por eles
praticada. O próprio Visconde de Itaboraí, no início das
hostilidades, dera entrevistas de imprensa francamente
favoráveis a uma paz imediata, e o tratado de aliança merecera
dele e dos seus correligionários as mais ásperas censuras,
como as que ainda hoje se podem ler na “Vida do Duque de
Caxias”, de monsenhor Pinto de Campos, onde a cláusula de
um comando único, confiado em primeiro lugar ao presidente
Mitre, foi considerada como uma manobra inferior, destinada
apenas a afastar Caxias da direção das forças brasileiras.,
Explicava-se perfeitamente a atitude dos senadores liberais,
em face da ordem do dia de 14 de janeiro, e tanta razão tinham
eles de se oporem àquele ponto de vista, que o ministério
conservador acabou abandonando o seu apressado pacifismo,
para observar fielmente o tratado de aliança e prosseguir na
guerra até o seu termo previsto e necessário.
De Zacarias de Góis – sem dúvida o principal
interessado – não se poderá dizer que tenha pretendido atirar a
Caxias as culpas da crise na qual o seu gabinete sossobrou.
Não lhe teria sido possível com tanta segurança explicar, só
pelos motivos que acabamos de ver, as referências
147
desvantajosas que fez ao general no correr de 1869, se
realmente guardasse contra ele aquela mágoa. Mas há ainda
um documento que só por si bastaria para completamente
inutilizar a hipótese do militarismo de 1868. É uma carta
escrita por Zacarias de Góis ao comandante das forças em
operações, em 4 de março daquele ano,(35) quando já estava
de todo encerrado o incidente do pedido de demissão do
general, na qual se encontram estas sugestivas expressões:
“E, pois que aludo à lealdade que folgo de reconhec er
em V. Exa., permita-me que aproveite o ensejo para dizer-lhe
que a mesma lealdade tem constantemente observado e
continuará a observar o governo para com V. Exa. Sei que
inexatas apreciações de uma parte da imprensa da Corte e
cartas particulares de pessoas que não conheciam a fundo as
coisas, abalaram em V. Exa. a persuasão de que continuasse
inalterável a confiança que determinou, em outubro de 1866, a
nomeação de V. Exa. para comandar as forças brasileiras em
operações contra o governo do Paraguai”.
“E felizmente um engano ..............................................
............................................................................................. ..
“Essa inteira confiança V. Exa teve-a ao partir, teve-a
enquanto circunstância extraordinária, imprevistas, retardaram
os golpes decisivos contra o inimigo, como tem-na hoje, que
tudo conspira a fazer acreditar que se aproxima o termo da
guerra sob a direção de V. Exa.”
“Falo assim porque tenho consciência de que, estudados
os fatos e reconhecidas as intenções para com V. Exa. é igual à
lealdade de V. Exa. para com o governo, não tendo jamais
variado a confiança que nos fez escolher a V. Exa. para tão
importante comissão”.
148
Quem poderá suporque Zacarias de Góis houvesse
escrito tais coisas ao general Caxias, depois de haver, num
deprimente conchavo, aceitado sacrificar-lhe a existência e a
honra do seu governo? Nabuco, tratando do grande presidente
do gabinete de 3 de agosto, dele nos deixou, como um raro e
feliz modelo de representação literária, este alto e poderoso
perfil: “Não havia nele traço de sentimentalismo; nenhuma
afeição, nenhuma fraqueza, nenhuma condescendência íntima
projetava a sua sombra sobre os fatos, as palavras, o
pensamento mesmo do político. A sua posição lembrava um
navio de guerra, com os portalós fechados, o convés limpo, os
fogos acesos, a equipagem a postos, solidário, inabordável,
pronto para a ação”. Quem admitirá que este homem, o caráter
que aí se fotografa, tenha jamais descido àquela subalterna e
maculante transação?
A crise ministerial de 1868 não teve realmente nenhuma
relação efetiva com o incidente do pedido de demissão do
marquês de Caxias, incidente este aberto e de todo encerrado
cinco meses antes da data em que ela se produziu. Se dúvidas
a tal respeito existiram naquele tempo, elas foram inteira e
completamente destruídas nas sessões do senado de 15, 17 e
18 de julho de 1870, delas nada mais restando senão o
generoso caráter de exame geral de consciência daquelas
explicações a que deram ensejo. Não nos pertu rbemos com o
fato de cronistas como o sr. Batista Pereira(36) ainda hoje
pretenderam ressuscitar aquelas dúvidas. Eles procedem por
extensão retrospectiva da impressão que lhes causa o
predomínio dos militares nos primeiros anos da república,
tornando-se apenas vítimas de uma espécie de miragem dessa
149
especial visão política hispano-americana, que ficou sendo
também a nossa, a partir de 1889...
Tem-se tentado fazer um certo cabedal de prova com a
circunstância de haver dito Zacarias, num dos seus artigos da
“Reforma”, em 1869, que estava escrito que a espada vitoriosa
nos campos do Paraguai traria no interior o triunfo do seu
partido. Porém, quem diz “estava escrito”, refere-se ao
destino, à fatalidade, a seja lá o que for, mas certamente não
procura estabelecer uma responsabilidade pessoal determinada
Zacarias de Góis, sem a mínima dúvida, recordava a luta que
se abriu em torno do poder, logo que este foi sendo cercado
pelas condições evidentemente vantajosas e por certo
invejáveis, de uma situação militar vitoriosa. Daí porém, a
dizer, que “foi a espada de Caxias que apontou a Zacarias a
escada pela qual se desce do poder”, como o faz o sr. Batista
Pereira, vai apenas a distância que medeia entre uma simples
figura de retórica e um fato real existente. É possível que o
Marquês de Caxias, ao endereçar ao ministro da Guerra em
fevereiro de 1868 a carta d seu pedido de demissão, o fizesse
por ter ficado deveras convencido de já por demais haver
sacrificado aos liberais o seu partido e a sua própria dignidade
de grande chefe conservador. Mas, se ele mesmo solenemente
negou àquele seu gesto todo e qualquer caráter de reação
política e partidária, se os seus contemporâneos mais
interessados no incidente, num tocante movimento geral de
sinceridade que constituiu um dos instantes mais belos do
nosso velho parlamento do império, aceitaram as suas
explicações e sem reserva as aplaudiram, porque insistir ainda
hoje numa suposição antipática e deprimente, em favor da qual
nenhum elemento novo de prova se apresentou?(37)
150
Com toda segurança pode-se afirmar ser tão falso haver
sido Zacarias de Góis sacrificado aos brios militares do
Marquês de Caxias, quando é inexato ter ele caído por uma
imposição pessoal do imperador Pedro II. A verdadeira causa
da crise ministerial de 1868 foi a reação conservadora contra a
idéia da abolição, disfarçada na escolha de Sales Tooores
Homem ara o senado. O deputado Teixeira Junior, ao
pretender reabrir a questão abolicionista perante a câmara, em
julho de 1870, deixou esclarecido esse fato com perfeita e
absoluta evidência, na forma pela qual justificou aquela sua
iniciativa. Já não se tratava de considerações “de meritis”
sobre o problema do cativeiro, mas sim dos meios de remediar
à profunda e perigosa agitação lançada no espírito público,
com os projetos do governo anterior. Dizia o representante da
província do Rio de Janeiro: “A inserção da questão do
elemento servil na fala do trono trouxe para o Brasil grande
calamidade, porque a idéia da emancipação foi por diante,
sendo que ministros e representantes da nação, pobres e
abastados, todas as classes, em suma, apossaram-se dela”.
Apontando o grande mal que a reação conservadora, no
desfecho da crise ministerial, já não conseguira prevenir, o
deputado fluminense deixava bem patentes as razões p elas
quais fora Zacarias de Góis afastado do poder. Dias depois,
sendo as suas palavras, ainda com ares de censura, repetidas
num discurso do senado, Francisco Otaviano retorquiu com
veemência: - Mas é o elogio do gabinete”... Então o expresidente do Conselho, na sua imperturbável e constante
serenidade obtemperou: “O ministério de 3 de agosto, quando
aventou a idéia da emancipação do elemento servil na fala do
trono, estudava a matéria; continuou a estudá-la, e, quando
151
saiu, tinha o projeto pronto para ser apresentado às câmaras,
logo que cessasse a guerra”.
Foi para evitar aquela marcha tão rápida da abolição
que o Conselho de Estado resolveu combater a situação dos
liberais na câmara alta, arrebatando-lhe a cadeira de D.
Manoel de Assis Mascarenhas, como início de uma política
nitidamente conservadora, no preenchimento das outras vagas
ali existentes. Daí a retirada do gabinete, a dissolução da
câmara dos deputados e a vitória dos conservadores nas
conseqüentes eleições gerais, com resultado natural da fu riosa
propaganda desenvolvida pelos agricultores, nos meios
capitalistas e comerciais urbanos, desde maio de 1867:
Mas, se a grande lavoura, ao favor do alistamento
eleitoral de critério econômico, conseguiu por um momento
levantar o conjunto dos interesses materiais contra a abolição
imediata, não lhe foi possível entretanto modificar a nova
consciência moral da nação, como também ressalta daquele
trecho do deputado Teixeira Junior. A câmara conservadora,
como produto eleitoral, representava apenas o terro r de uma
ruína geral do snegócios. Os meios agrários haviam procedido
sobretudo por intimidação, vaticinando a suspensão imediata
da produção agrícola, como conseqüência do abandono dos
engenhos e das fazendas pelos escravos, a acarretar o
desmoronamento do câmbio monetário, a falência geral do
comércio e a desvalorização completa da propriedade. O
exemplo da emancipação nos Estados Unidos era habilmente
retomado, não nos seus aspectos finais, mas nos seus efeitos
intermediários de guerra civil e desmembramento nacional.
Prometia-se uma violenta revolta da propriedade rural contra
aquele esbulho dos seus direitos. Seria a desordem, o incêndio
152
e o massacre no interior, a prenunciar a ruína total e a fome
nas grandes cidades. Seria o fim do império... Foi port anto no
pânico dessas emoções provocadas que se fizeram as novas
eleições gerais. A chapa conservadora fora sufragada ao
simples apertar dos cordões da bolsa. Dentro, porém, de alguns
meses, a grande opinião coletiva e popular tinha, com mais
calma, reagido. Tornou-se indispensável e necessário satisfazê-la de qualquer forma.
A corrente democrática, naquele atropelo, não deixou de
ressentir-se de algumas defecções. Diversos políticos, os ais
ronceiros da “nuance” progressista destacada do velho partido
conservador, dela se afastaram, no empenho de acautelar os
seus interesses de senhores rurais e proprietários de escravos.
Estes porém, não fizeram falta. A sua ausência foi muito mais
uma depuração do que um desfalque. O belo movimento de
solidariedade de princípios, provocado em torno do gabinete
demissionário no último dia da câmara de 1868, pela palavra
elegante e sugestiva do deputado José Bonifácio, não resultou
numa manifestação puramente platônica, e como tal não se
perdeu. O ano de 1869, graças à propaganda liberal, marcou
realmente o início de um dos períodos mais ativos e brilhantes
de toda a nossa história política.
Os primeiros esforços tentados pelos progressistas
isentos da eiva escravista e os liberais históricos no sentido de
uma reação prática partidária contra a violenta compressão
conservadora da crise de 1868, determinaram a publicação do
manifesto de 4 de maio de 1869, sob o qual pela primeira vez,
se confundiram intimamente os nomes principais daqueles dois
grandes ramos do Partido Liberal. Ao lado de Zacarias de Góis
e Nabuco de Araujo, a estrema-esquerda liberal, representada
153
por Francisco Otaviano e Teófilo Ottoni, fazia-se dosar pela
cautelosa moderação do Conselheiro Furtado e do Visconde de
Paranaguá. Faltavam porém, Silveira da Mota e Silveira
Lobo...
O manifesto liberal de 1869 era um documento longo,
sabiamente argumentado. Era uma ampla e correta dissertação
doutrinária de feitio acadêmico, muito de molde a satisfazer o
círculo ilustre do Clube da Reforma,(38) mas destituído da
veemência e do desprezo de conseqüências, que seriam
necessários a uma verdadeira proclamação de combate. Como
programa de ação política, era de uma evidente exigüidade.
Estava
perfeitamente
de
acordo
comas
grandes
responsabilidades políticas e sociais dos homens que o
firmavam, mas não conseguiu despertar a forte e numerosa
concentração partidária, que seria indispensável opor aos
conservadores vitoriosos. O documento político que devia
fazer vibrar com profunda e larga intensidade a alma popular
naquele momento, era outro. Foi o manifesto radical, lançado
nos primeiros dias do mês de novembro, com o novo jornal de
propaganda democrática, “O Correio Nacional”.
Os fundadores do “Correio Nacional” e autores desse
manifesto, foram Francisco Rangel Pestana e Henrique Limpo
de Abreu, dois jovens jornalistas liberais, que, desde 1865,
tinham-se feito na imprensa do Rio de Janeiro os mais
avançados propagandistas dos princípios democráticos. Rangel
Pestana, advogado de formatura recente, era discípulo e
companheiro de escritório do grande chefe liberal Joaquim
Saldanha Marinho, que se constituíra em defensor incansável e
extremado da liberdade dos africanos aqui introduzidos, de
contrabando, após a proibição do tráfico interoceânico de
154
1850. Limpo de Abreu formara a sua mentalidade política ao
lado do seu pai, o visconde de Abaeté, que, ministro já em
1835, viera desde a época da Regência a prestar à nossa
evolução social o concurso da sua calma e constante atividade
de parlamentar e homem de Estado. Em 1865, aqueles dois
jovens democratas haviam fundado, com José Luis Monteiro
de Sousa, “A Opinião Liberal”, um outro jornal que reuniu em
sua redação os espíritos mais audazes daquela geração, como
Teófiloe Christiano Ottoni, José Maria do Amaral, Liberato
Barroso, Sousa Pitanga, Godoy e Vasconcelos e Felício dos
Santos. A “Opinião Liberal”, apesar de ter entrado em
oposição aos cautelosos métodos do progressismo, admitidos
por Zacarias de Góis até 1866, no fundo, nunca deixou de mais
ou menos inspirar-se nas idéias precisas e exatas do grande
chefe do gabinete de 3 de agosto. Quando, porém, a fala do
trono de 1868 lançou definitivamente a questão do elemento
servil, como base de programa governamental, os seus
redatores logo secundaram com entusiasmo a orientação do
gabinete, publicando o primeiro manifesto radical, onde as
idéias práticas da abolição já apreciam coordenadas nos
princípios gerais da antiga plataforma liberal. Em torno à
“Opinião Liberal” fundou-se então o esforçado núcleo de
propaganda política que tomou o nome de Clube Radical. Dada
porém, a verdadeira depuração das correntes liberais operada
pela idéia abolicionista, Rangel Pestana e Limpo de Abreu
partiram do seu antigo centro de atividade, onde se haviam
introduzido elementos evidentemente suspeitos como Martinho
Campos, para irem fincar a sua tenda muito mais adiante, nas
últimas vanguardas do liberalismo.
155
O manifesto radical de 1869 teve a extrema felicidade
de condensar numa síntese clara e absolutamente completa
tudo quanto de aspirações liberais pudesse conter a
consciência brasileira daquela época. A sua parte propriamente
programa, continha-se toda em dezesseis artigos. Desses
artigos, os doze primeiros, dispostos em quatro negações as
quais se opunham oito afirmações nítidas e exatas, eram tudo,
eram a solução de todos os nossos problemas sociais e
econômicos, ou, pelo menos, a chave de todos eles. No
entanto, em nenhum deles poderiam ser contadas mais de seis
palavras! Tomemos o trecho final da introdução, onde se
resumia toda a explanação histórica e doutrinária contida nos
períodos anteriores para dá-lo aqui como preâmbulo
explicativo àqueles doze artigos:
- “Emancipemos: - o indivíduo, garantindo-lhe a
liberdade de culto, de associação, de voto, de ensino e de
indústria; - o município, reconhecendo-lhe o direito de eleger a
sua polícia, de prover as suas necessidades peculiares, de fazer
aplicação de suas rendas e de criá-las nos limites de sua
autonomia; - a província, libertando-a da ação esterilizadora e
tardia do centro, respeitando-lhe a vida própria, garantindo-lhe
o pleno uso e gozo de todas as franquezas com a eleição de
seus presidentes, de sorte que elas administrem-se por si sem
outras restrições além das estritamente reclamadas pela união
e interesse geral. Trabalhando por esse “desideratum” propugnemos pelas seguintes reformas:
ABOLINDO: O poder moderador; A guarda nacional;
O Conselho de Estado; O elemento servil.
156
ESTATUINDO: Ensino livre; Polícia eletiva; Liberdade
de associação e de culto; Sufrágio direto e generalizado;
Separação da judicatura da polícia; Senado temporário e
eletivo; Derrogação de toda jurisdição administrativa;
Eletividade dos presidentes de província”.
Se temos bem em mente a recapitulação da nossa
história política feita até aqui, imediatamente nos apercebemos
de que este rápido programa continha em súmula fiel e perfeita
todas as reivindicações pelas quais se bateram os liberais
brasileiros desde a primeira constituinte de 1823, que armaram
o braço aos republicanos de Pernambuco em 1824, em nome
das quais agiram os revolucionários de 1831, e que tendo
vigorosamente clamado nas lutas do período da Regência, até a
guerra dos Farrapos, ali se apresentavam completadas em
todos os seus aspectos morais e econômicos pela indispensável
e necessária extinção do cativeiro. Pense-se no que de exato
significava a supressão do poder moderador com o seu
Conselho de Estado, a transformação do senado de câmara, de
senhores com direitos vitalícios, numa assembléia temporária,
livre e diretamente eleita pelo povo, considere-se no sentido
democrático e federativo que daria à organização geral do
império o reforço efetivo e prático da vida municipal e o
direito das províncias elegerem os seus governos – e
compreenda-se que a constituição de Pedro I ali não seria
apenas reformada: seria uma nova constituição, inteiramente
depurada do seu velho caráter de outorga real,para apresentar se claramente como a expressão voluntária e consciente de um
povo, de fato e de direito, soberano. Seria a república...
157
O antigo núcleo da “Opinião Liberal”, escoimando-se
dos elementos atemorizados pela idéia da abolição imediata e
acrescido de um grande número de jovens inteligências que
então surgiram, veio muito mais numeroso reconstruir-se em
torno do programa do “Correio nacional”. Apareceram
Lafayete Pereira, Silveira Martins, Aristides Lobo, Salvador
de Mendonça, Flávio Farnese. Em São Paulo iniciou a sua
publicação “O Radical Paulistano”, com Luís Gama,
Bernardino Pamplona. Américo Brasiliense, Américo de
Campos, Glicério e Jorge de Miranda, enquanto da velha
Faculdade de Direito saía o concurso dos estudantes, trazendo
à propaganda liberal e abolicionista a pena preciosa e florida
de Rui Barbosa e o irresistível encanto da lira de Castro Alves.
Mas não foi apenas nos meios intelectuais e escolares
que se exerceu a larga e dominadora influência do programa
radical. Ela alastrou-se por todas as classes da população
urbana, não lhes sendo insensíveis nem mesmo os graves e
circunspectos signatários do manifesto de 4 de maio. É fácil de
compreender que, senadores e quase todos membros do
Conselho de Estado, não podiam estes propor a subversão de
uma das corporações de que faziam parte e a anulação
completa da outra, com a mesma facilidade com que o fizeram
Rangel Pestana e Limpo de Abreu. Basta, porém, considerar
nos incidentes da queda do gabinete de 3 de agosto, no que
eles se entenderam com a eleição senatorial de Torres Homem
e a correspondente ação do Conselho de Estado, para logo ver se que os líderes liberais e progressistas, afirma também
tinham de considerar aqueles dois pontos do programa radical
como legítimos e necessários. Teófilo Ottoni chegou mesmo a
ser tido como chefe ostensivo dos radicais. Nabuco não lhes
158
dissimulava as suas simpatias e foram notadas as íntimas
relações que na época se estabeleceram entre Zacarias de Góis
e Rangel Pestana. A manifestação radical tinha afinal
conseguido que a propaganda democrática deixasse de
parcelar-se em dois programas distintos e de obtenção
sucessiva – o primeiro adstrito apenas a medidas de caráter
administrativo e à emancipação dos escravos, e o segundo
contido nas liberdades políticas dos antigos históricos – para
fundir-se num esforço único, tendendo à realização uniforme e
simultânea de todas aquelas aspirações, tomadas como partes
integrantes e inseparáveis de um só corpo de doutrina. A
democracia brasileira adotara a visão geral solidária, que
surpreendera a Zacarias de Góis nas angústias da crise
ministerial. Ela enfim concebera o seu plano ou a sua forma
ideal definitiva.
O manifesto de 4 de maio não obteve, como já vimos,
reunir sob uma mesma e única disciplina partidária, a
totalidade dos elementos contrários ao partido conservador. Do
ponto de vista administrativo, para fins de estatística e cabala
eleitoral, não foi possível estabelecer a concentração de todos
os liberais dentro de um só quadro diretor. Mas essa reunião
dos espíritos adiantados, que aquele documento não chegou a
provocar no terreno estritamente partidário, o programa radical
a conseguiu com muito mais segurança e eficiência no amplo e
claro domínio das idéias. A política liberal, sustentada de um
extremo ao outro do país, em numerosos jornais, em panfletos,
em conferências, em múltiplas organizações locais de grande
atividade, tornou-se, sem necessidade de boletins diretores ou
de ordens de serviço, tão poderosa e imperativa, que os
conservadores só se mantiveram no poder dali por diante com
159
a tácita condição de obedecê-la. A organização constitucional
do país, servida pelo sistema eleitoral que já examinamos,
facilitou ao partido conservador a posse do poder. Ele teve
porém de aceitar contínua e progressivamente as idéias dos
seus adversários, nos últimos limites que, ao seu apego às
coisas estabelecidas, ainda permitiu a estrita manutenção da
ordem pública.
O Conselho de Estado, pelos diferentes elementos
partidários da sua composição, formava uma entidade coletiva
por demais bem equilibrada, para não compreender a perigosa
inutilidade de uma resistência intransigente e absoluta ao
princípio da abolição, em face da poderosa corrente em favor
desse princípio despertada pelo governo Zacarias de Góis. Os
conselheiros da coroa quiseram demorar, é certo, mas não
podia entrar nas suas deliberações a pretensão de
indefinidamente sustar o movimento emancipador. Ao próprio
gabinete Itaboraí foi sugerida a conveniência de uma
manifestação qualquer que não deixasse entender a questão
como fechada.(39) Esse conselho de prudência não pôde ser
atendido no auge da reação antiabolicionista que fora
precisamente a origem daquele governo. Desde porém que o
deputado Teixeira Junior, por um gesto de inteligente e
corajosa renúncia, veio denunciar do parlamento a verdadeira
temeridade da resistência, os chefes conservadores foram bem
forçados a se renderem ao ponto de vista do Conselho de
Estado. O Visconde de Itaboraí eclipsou-se, para dar lugar a
um novo ministério evidentemente conservador-abolicionista,
pois trazia, sob a presidência bem característica do Marquês de
São Vicente, a colaboração moderada e esclarecida de João
Alfredo e Sales Torres Homem. Esse governo não pôde ainda
160
nada obter. Mas, em março de 1871, o conselheiro Silva
Paranhos, de volta do Paraguai, cercado do grande prestígio de
haver promovido a liquidação diplomática da guerra e elevado
à dignidade de Visconde do Rio Branco, chega por sua vez ao
poder.(40) A câmara estava fechada. Quando porém reabriu -se
o parlamento, no dia 3 de maio seguinte, revelou-se na fala do
trono o programa do ministério. O novo gabinete conservador
propunha-se a trazer as liberdades individuais reclamadas
desde 1862 pelos progressistas, e a retomar o problema do
elemento servil, no ponto em que o entregara à comissão de
estudos nomeada pelo gabinete liberal de Zacarias de Góis.
Os deputados compreenderam logo que o governo, com
clara determinação, os vinha colocar entre os interesses da
grande lavoura e os impulsos da opinião geral do país. Repelir
aquele programa ministerial, significava imediatamente aceitar
a grande prova de novas eleições gerais... Ora, o eleitorado,
profundamente trabalhado pelo elemento moral da propaganda
democrática e abolicionista, já não acreditava muito nas
profecias comas quais, dois anos antes, o intimidavam. Seria
talvez a queda do partido conservador e a entrega de tudo à
decisão precipitada e imprevisível de um novo governo de
liberais. As responsabilidades eram muito grandes e o futuro
por demais incerto...
A resposta à fala do trono, em termos que a pudesse
aceitar o ministério, só saiu, acerba e emperrada, no dia
primeiro do mês seguinte. Dali por diante, as sessões se
precipitaram num verdadeiro tumulto de consciências. Os
deputados, sob a direção sagaz e atropelante de João Mendes
de Almeida, pareciam votar assediados pela nação. Mas. ao
chegar o mês de setembro, o Visconde do Rio Branco, depois
161
de obter a reforma do processo criminal de 1841. Arrebatava
daquela câmara, eleita pela reação escravocrata, a Lei do
Ventre Livre!
Tem-se pretendido sustentar que Zacarias de Góis opôs se, no Senado, à passagem da grande lei do Visconde do Rio
Branco. Não é verdade. Quando o projeto chegou aprovado
pela camada dos deputados, Zacarias de Góis logo declarou
que o votaria. Não podia entretanto eximir-se de criticá-lo,
para fazer ver que ele apenas representava, como aliás lhe
pareciam todas as outras reformas do gabinete, uma solução
falha e simplesmente protelatória. Realmente, isentando da
condição servil os filhos de mulher escrava nascidos dali por
diante, mas deixando-se até os vinte e um anos sob a tutoria
dos senhores, com a obrigação de prestarem serviços, a lei
necessariamente admitia a permanência da escravidão no
Brasil, ainda por duas gerações. Como o grande chefe liberal
no seu discurso se referisse ao parecer da comissão de estudos
que nomeara, o Visconde do Rio Branco lhe perguntou: “V.
Exa. aceita o parecer da comissão?” A pergunta não teve
resposta. Era precisamente aquele parecer que ali estava sendo
convertido em lei. Mas a muito tempo que Zacarias de Góis
fora levado a tê-lo por insuficiente. A medida justa a ser
adotada, deveria ir muito além do que conseguira prever
aquele trabalho. A nação, disse Zacarias, reclamava ansiosa
“reformas profundas e radicais”, e o partido conservador vinha
trazer apenas sombras de reformas...(41)
Quando o senador Sales Torres Homem proferiu o seu
grande discurso de encaminhamento final da votação, a câmara
alta, sem que o orador talvez o suspeitasse, recebeu dos seus
lábios a visão exata da grande oportunidade que se perdera.
162
Arrebatado na sonora torrente da sua própria eloqüência,
Torres Homem pôs em tão claro e poderoso relevo a absoluta
incompatibilidade de qualquer forma ou modalidade da
escravidão com o sentimento nacional brasileiro daquele
instante, que no recinto vibrou com profundo e maravilhado
espanto esta exclamação: “Mas isto é a abolição imediata!...”
Zacarias de Góis deve ter pensado consigo mesmo: bem
poderia ter sido, certamente o teria sido, se a reação dos
senhores de escravos, determinando a crise ministerial de
1868, não houvesse trazido os conservadores ao poder. Assim
pensou ele desde que conheceu o projeto de lei concebido pelo
gabinete conservador – e nós não sabemos qual será a alma
adamantina e inquebrantável que sinceramente o possa
censurar por haver, nos seus discursos, revelado, com um
pouco de amargura, este pensar.
A lenda da oposição formal de Zacarias de Góis à lei do
ventre livre, faz parte desse tecido de inexatidões, através do
qual nos procuram fazer ver os homens e as coisas do segundo
reinado. De fato, seria impossível a um método de exposição
histórica que se destina a justificar por confusão de defeito s do
nosso regime político atual, deixar ver em toda a sua grandeza
um dos mais belos e impressionantes perfis daquele tempo. É
necessário diminuir as suas proporções, porque assim se terá
quebrado a harmonia do quadro geral da sua época, para tudo
reduzir à visão falsa e sem grandes perspectivas, que se torna
indispensável a uma perfeita conformação mental com o
presidencialismo. Quem não pode exalçar o objeto dos seus
cuidados, trata naturalmente de anular por nivelamento os
pontos de referência, para que se lhe não observe a exigüidade.
163
Estas são as tendências que, mesmo insensivelmente,
levam os nossos cronistas republicanos a negar a Zacarias de
Góis uma grande consciência política, apesar dele ter sido o
estadista de visão objetiva e profunda, sob cujo programa
governamental vieram condensar-se, em 1867, todas as nossas
velhas aspirações liberais, para formar, através do programa
radical de 1869, a poderosa corrente de opinião que, mesmo
nos governos conservadores, devia conduzir a política geral do
Brasil, até os últimos dias da monarquia. “Vê-se que faltava a
Zacarias a mentalidade de um estadista”, diz por exemplo o sr.
Oliveira Viana.(42) E esse conceito fácil e displicente, parece
tão natural, tanto agrada e se ajusta à mentalidade corrente,
que o sr. João Pandiá Calógeras, antigo parlamentar e ex ministro o adota em conferência pública, repetindo com
particular veemência: “Personagem de segunda plana... cabo
eleitoral... nunca seria e nunca foi homem de Estado”.(43)
Uma tal rudeza de expressões, na boca de alguém com
as responsabilidades políticas e intelectuais do sr. Pandiá
Calógeras, em se tratando de um dos vultos mais nobres e
respeitáveis da nossa história, é deveras surpreendente. Mas
não nos espantemos em demasia – porque há circunstâncias de
ordem moral, que de todo inutilizam os nossos políticos atuais,
para qualquer juízo exato sobre os grandes homens da
monarquia.
NOTAS
(31) Vide a História Constitucional da Inglaterra, de T. Erskine May, vol.
I, cap. I. Jorge III foi mesmo considerado como o modelo da reação
autoritária nos últimos anos do século XVIII e nos primeiros do século
164
XIX. Assim ele aparece nos “Ensaios sobre o governo popular”, de
Summer Maine, nos “Estudos de Direito Constitucional”, de Boutmy, e
nas “Fontes da Constituição dos Estados Unidos”, de Stevens.
(32) O Conselheiro Francisco José Furtado – Biografia e estudo de
História Política Contemporânea, pelo Conselheiro Tito Franco de
Almeida – E. de H. Laemmert, editores, Rio de Janeiro, 1867.
(33) Sorites, genitivo sorita. Segundo Constâncio, “Argumento que
contém muitas proposições acumuladas umas sobre as outras”.
(34) Vide a edição da Comp. Melhoramentos de São Paulo.
(35) Correspondência trocada entre a presidência do Conselho e o
comando brasileiro no Paraguai, sobre um oferecimento de fundos feito
diretamente ali pelo banqueiro Mauá, em dezembro de 1867, para
pagamento dos soldos do exército e da esquadra, Mauá que estava em más
relações com o gabinete liberal, pretendia dar assim uma lição a Zacarias
de Góis, suprindo com a sua capacidade financeira os defeitos que dizia
existirem na nossa pagadoria militar em Buenos Aires. Caxias recusou,
afirmando que o governo jamais deixara faltar coisa alguma às tropas de
seu comando, e fazendo sentir a Mauá quanto o seu oferec imento, pelo
canal que emprestara, tinha de desusado e incorreto.
(36) Vide A queda de Zacarias, do sr. Batista Pereira, do Jornal do
Commercio do Rio de Janeiro, de 30 de outubro de 1927.
(37) Os últimos defensores atuais da tese do militarismo de 1868, mesmo
sem o dizerem, muito se inspiraram nas Reminiscências, do Visconde de
Taunay, publicadas depois da república e reeditadas ultimamente pela
Companhia Melhoramentos de São Paulo. É preciso notar, porém, que o
fino romancista da Inocência e brilhante cronista militar da Retirada da
Laguna, não se revela nas Reminiscências um historiador, com as
qualidades de análise sempre indispensáveis ao exercício eficaz desta
função. No seu livro, o que se nota, sobretudo, é a perene mágoa que lhe
causou o golpe de 15 de Novembro, pelo caráter de injustiça que nele
descobriu o seu grande afeto pelo velho imperador. Ali falaram mais os
sentimentos afetivos do que a pesquisa histórica. Aliás, Taunay,
gentilhomem da corte e antigo membro do estado -maior do Marechal
Conde d‟Eu, não esconde as suas preferências pelo poder pessoal, como
verdadeira e indefectível expressão do Estado, exagerando, naturalmente,
165
por essa velha tendência do seu espírito, a ação direta de Pedro II sobre os
negócios do seu tempo. Os fatos, confuso s e mal relacionados, são ali
apresentados muito mais como o autor desejaria que eles fossem do que
realmente como se deram.
(38) O Clube da Reforma foi o centro no qual se congregaram os vultos
maiores do Partido Liberal, após a crise ministerial de 1868 . Dali partiu o
jornal A Reforma no qual escreveram Zacarias, Nabuco, Paranaguá e
quase todos eles.
(39) Zacarias de Góis, nas Questões Políticas, cap. I, chega mesmo a
dizer que o ministério de Itaboraí, como o que se lhe seguiu do Marquês
de São Vicente, tinha o encargo de resolver de alguma forma o problema
do elemento servil.
(40) O fato de Paranhos, que tão mal tratado foi pelos progressistas à
volta da sua primeira missão no Prata, ter sido encarregado de representar
novamente o governo imperial no final da longa questão que começou no
Uruguai, com a revolta de Florez e terminou no Paraguai, com a morte de
Solano Lopez, também é lembrado como uma prova do poder pessoal de
Pedro II. Dizem os que sustentam a tese desse poder no segundo reinado,
que o imperador quis daquela forma reparar a injustiça praticada pelo
gabinete Furtado em 1865. É preciso não esquecer, porém, que Pedro II
jamais dispôs das comissões oficiais para distribui -las como vantagens ou
favores individuais a quem quer que fosse, como h oje se dá com os
presidentes da República. Rio Branco voltou ao Prata devido à excelência
do seu trabalho na primeira missão, depois publicamente reconhecida,
combinada com a circunstância de encontrar -se o seu partido no poder ao
fim da guerra. Foi um caso de interesse político geral, e não um incidente
de conveniência individual ou de amabilidade pessoal do chefe de Estado.
(41) Vide Questões Políticas, já cit., cap. I.
(42) O Ocaso do Império, pág. 18.
(43) Conferência proferida perante o Instituto Hi stórico e Geográfico de
São Paulo, a 6 de setembro de 1928, publicada em dois ou três números
seguidos do Estado de São Paulo daquela época, e reproduzida em parte
na revista A Defesa Nacional, do Rio de Janeiro, nº 178, do mês de
outubro.
166
CAPÍTULO VIII
A ABOLIÇÃO
No estudo que aqui vamos conduzindo, o que
principalmente nos interessa é o sentido geral dos
acontecimentos, tomados no seu conjunto, segundo as épocas,
e não as considerações de detalhe, que mais particularmente se
liguem a um certo fato ou a uma pessoa determinada. Se nos
demoramos um pouco mais na crise ministerial de 1868,
ensaiando ao mesmo tempo uma restauração do perfil histórico
de Zacarias de Góis, foi por uma necessidade de exatidão, à
qual imediatamente veio prender-se um natural e espontâneo
sentimento de justiça. Era um esforço indispensável, a não
termos de aceitar como um enigma abstruso e desgracioso,
também por nossa vez, um dos trechos mais interessantes da
nossa história política. Mas, trazendo à sua justa evidência a
ação inicial de Zacarias de Góis no movimento emancipador,
não foi nossa intenção separas os homens públicos do segundo
reinado em abolicionistas e escravocratas, como se os
atribuíssemos, respectivamente e sem remédio, aos dois
princípios opostos e absolutos do bem e do mal. Praticamente
seria ocioso, sem oferecer o mínimo interesse de ordem moral.
O que nos importa conhecer no seu conjunto, é a forma pela
qual a sociedade brasileira se comportou em face do problema
do cativeiro, e as conseqüências que daí vieram a nossa
evolução política geral.
167
Não deixa de impressionar a quem por alto examina a
história dos povos americanos, a circunstância do brasileiro ter
sido o último a banir do seu território a imensa tristeza da
escravidão. Entretanto, se aqueles que por tal atraso ainda nos
condenam, observarem que o Brasil não herdou, do velho
regime colonial do trabalho, nem o feroz preconceito de raças
dos Estados Unidos, nem o sistema de castas que ainda hoje
aflige em grande parte a vida hispano-americana, talvez não
encontrem grandes dificuldades em rever a tal respeito as suas
idéias. O nosso processo foi certamente o que melhor se
adaptava às nossas condições sociais, se não lhe bastar o
evidente caráter de ter sido o mais racional e o mais humano.
Seria preciso saber, antes de mais nada, se ao Brasil teria sido
possível imitar as nações do continente, que fizeram da
abolição uma subseqüência mais ou menos imediata da
independência política.
Com a calma e a isenção de ânimo que só o tempo sabe
trazer aos juízos humanos, seria necessário estabelecer isto
com exatidão, para vermos depois se realmente poderíamos
haver conseguido uma emancipação anterior, ou mesmo
contemporânea, da dos Estados Unidos.
Em relação ao grave e doloroso problema da escravidão,
os povos do Novo Mundo, ao se separarem das metrópoles
respectivas, viram-se, pela própria força das suas condições
sociais e econômicas, colocadas em dois grupos distintos e
bem caracterizados. De um lado estavamos países como a
Colômbia, a Venezuela, o Peru ou as províncias argentinas,
que, sem trabalho agrícola solidamente organizado e ainda
incipientes nos seus aspectos econômicos, não encontraram
dificuldade em libertar o número de escravos relativamente
168
reduzido que possuíam. Não havia grandes e profundos
interesses materiais, a se oporem a essa obra de dignificação
nacional, de maneira que a abolição do cativeiro pôde, nesses
países, decorrer da própria noção da liberdade civil, obtida
com a independência do território. De outro lado, porém,
estavam as nações que, sobre a base de uma numerosa mão-deobra escrava, já haviam na independência atingido um
considerável desenvolvimento agrícola e comercial, como era
o caso do Brasil e dos Estados Unidos.
É fácil de compreender que os mesmos motivos de
ordem econômica que facilitaram a abolição nos países do
primeiro grupo, dela fizessem, nos do segundo, uma questão
espinhosa e extremamente irritante. Aí a extinção imediata do
cativeiro ameaçava de
frente os interesses locais mais
poderosos e bem organizados.
Nos Estados Unidos, entretanto, encontraram-se certas
condições de natureza geográfica e, principalmente, geológica,
que não só foram desde o início colocando aquela questão em
termos mais vantajosos, como depois lhe trouxeram uma
rápida e violenta solução definitiva, como vamos ver.
Enquanto os estados do Sul, magnificamente dispostos
para as culturas tropicais e com toda a sua riqueza nas grandes
plantações servidas pelo trabalho dos negros, tornavam -se o
centro mais forte e irredutível do escravismo, nos estados do
Norte, de clima diverso e mais propício às culturas européias,
a influência de colonos livres foi assentando a economia geral
sobre interesses mais humanos e elevados. As considerações
morais – apesar de não excluírem a hostilidade étnica – aí
prevaleceram. O resultado destas predisposições do Norte foi
que, em 1817, já existiam oito Estados onde, ou a escravidão
169
havia sido de todo extinta, ou os mais sérios embaraços e
restrições lhe haviam sido criados. Assim deviam manter-se as
coisas até 1861. Mas, nesse meio tempo, o aparecimento de
grandes jazidas de ferro e carvão de pedra no território da
União, justo quando no mundo se revelava a grande metalurgia
moderna, determinou a formação de um poderoso concurso de
interesses industriais, que, por sua própria natureza, tinham de
entrar em luta com o velho regime de trabalho das plantações.
Ninguém que se tenha, mesmo ligeiramente, ocupado
com assuntos de História e Sociologia, ignora a profunda e
poderosa influência que ao acidentes geológicos, de grandes
conseqüências industriais, sempre tiveram na evolução das
sociedades humanas. Descoberta a utilização em grande escala
de um determinado minério, está mudado o cenário do mudo
em favor dos povos que o possuem. As minas de cobre da
Espanha, unidas às minas de estanho das Ilhas Britânicas e dos
montes da Bohemia, fizeram da Europa, dez séculos antes da
nossa primeira era histórica, um vasto império do bronze, sob
essas luguras, cujos perfis já nem nos recorda a arqueologia,
mas cuja língua ainda hoje falamos, na nomenclatura dos rios,
das florestas e das montanhas, entre as costas portuguesas do
Atlântico e o Vale do Danúbio. O caldeamento do ferro deu
depois aos celtas, com a primitiva posse das minas de Styria,
da Carniola e da Coríntia, o domínio completo de toda a
metade ocidental do mundo antigo. “Regiões pobres até então,
e de importância secundária, populações conservadas obscuras,
tomaram subitamente a preponderância, pelo simples fato de
possuírem o ferro.”(44)
Reconhecida essa constante influência da composição
geológica do solo sobre os aspectos sociais dos povos, não os
170
admiremos de que simples condições mineralógicas tenham
podido, nos Estados Unidos, decidir mais cedo da sorte do
cativeiro. No momento em que a combinação da hulha com o
minério de ferro nos altos fornos, logo seguida da máquina a
vapor, vinha tão poderosamente transformar a economia do
mundo, os norte-americanos não podiam fugir à necessidade
de adaptar o seu regime geral do trabalho ás maravilhosas
condições técnico-industriais que as suas minas lhe ofereciam.
A mão-de-obra escrava, limitada à sua evolução puramente
vegetativa pela abolição do tráfico transoceânico, podia bastar
aos plantadores do Sul. Mas não poderia ser jamais suficiente
aos industriais do Norte. Estes anteviam a imensa prosperidade
que brotaria daquele solo maravilhosamente dotado, ao contato
de uma poderosa corrente de trabalhadores europeus.
Não há porém como assegurar uma numerosa imigração
livre par um país em cujos limites ainda existe a escravidão,
ou mesmo coisa que com ela se pareça. Os hábitos e as
atitudes do senhor dos escravos tornam o próprio ambiente
ultrajante. Foi necessário portanto limpar a América ime diatamente do cativeiro, formando-se assim o irresistível
concurso de interesses industriais, no qual a política
abolicionista do presidente Abrahão Lincoln pôde encontrar
apoio moral e recursos militares, para vencer o egoísmo
rotineiro e desumano dos “Cotton Staes”.
Foram essas condições naturais e econômicas, a
reagirem poderosamente sobre o meio social americano, que
determinaram a guerra de secessão e abolição precipitada e
total dos escravos nos Estados Unidos.
No Brasil, entretanto, nada disto se verificou. De um
extremo ao outro do nosso território, com exceção apenas das
171
regiões pastoris que não careciam de mão-de-obra,
predominou o regime econômico da Virgínia ou da Geórgia,
inteiramente baseado na exploração do braço escravo. Nenhum
interesse material considerável pôde ser oposto às
conveniências dos barões fazendeiros e senhores de engenho,
que eram os reguladores de fato da nossa economia geral. Se o
governo do Rio de Janeiro tem pretendido imitar a política
decidida e enérgica do presidente Lincoln, os dias do império
estariam talvez contados, com todas as desastrosas
conseqüências para a unidade nacional, que então atribuíamos
a essa eventualidade. Não dizemos que o escravismo houvesse
aqui triunfado em definitivo e de uma maneira completa. O
sentimento popular, profundamente liberal e abolicionista,
como já vimos, o não teria afinal permitido. Mas, sem a forte
base de reação que o presidente americano encontrou na
grande metalurgia da sua terra, o nosso governo central não
teria tido elementos para manter-se, e muito menos para
restabelecer a unidade nacional, quebrada pela guerra civil. A
nossa secessão, muito mais numerosa pela dispersão dos
núcleos populosos, teria talvez sido irremediável.
A questão do elemento servil teve, portanto, de entrar
para o programa geral de preparação política, que foi a missão
histórica do segundo reinado. Sem podermos acabar
imediatamente com a escravidão, tratamos de acabar com os
escravocratas. A ação do gabinete Zacarias de Góis não
chegou, é certo, ao seu fim procurado; mas tornou -se o início
de um movimento geral de opinião, tão claro, livre e
consciente nas suas manifestações, como igual não se conhece
na história de nenhum dos outros povos americanos. Foi uma
verdadeira campanha de humanidade. Na imprensa, no
172
parlamento, na praça pública, nos clubes políticos, nas igrejas,
nas escolas, no seio das famílias, por toda parte, abriu-se uma
propaganda devotada e tenaz, na qual se pedia aos senhores de
escravos, em nome dos altos interesses morais da nação, que
se resignassem apenas ao abandono imediato dos seus direitos
legais sobre os cativos. naturalmente, a esta corrente,
estabeleceu-se logo, como era inevitável, a
oposição
correspondente. Mas, se esta oposição, pelas suas origens,
representava o interesse prático e material dos proprietários
rurais, nos meios políticos e parlamentares ela jamais foi
aceita no mesmo terreno. Aí, tratou-se apenas de uma questão
de ordem pública e segurança do império. Foi uma
preocupação moral, como o não pode deixar de ser o
patriotismo, que regulou portanto todas as atitudes dos nossos
parlamentares e homens de governo.
O fato da câmara eleita pela reação de 1868, ter sido a
mesma a votar a lei do ventre livre, em 1871, mostra bem o
terreno no qual os nossos políticos souberam, desde o
princípio, colocar o problema do elemento servil. Resistir ou
ceder à corrente emancipadora, ficou sendo para eles um caso
de simples oportunidade, pois, no fundo, todos eles estavam
certos da absoluta necessidade moral da abolição. Entretanto, a
adoção da grande reforma Rio Branco veio dar a muitos, tanto
conservadores como liberais moderados, a ilusão de que a
política estava quites com o abolicionismo. Desde que o
contingente de escravos existente não podia mais ser
reformado pelos nascimentos, o tempo se encarregaria do
resto...
Efetivamente, entre 1872 e os últimos dias de 1877, a
nossa política geral parece dominada pela preocupação de
173
evitar qualquer reabertura de discussão em torno às idéias
liberais. O advento de um governo presidido pelo Duque de
Caxias, em 1875, poderia ser mesmo tomado como o sinal
evidente de uma deliberação em tal sentido, pois teve como
destino marcar um largo tempo de parada ou de repouso no
nosso avanço para a democracia.
Não se deve porém dar uma exagerada importância
àquelas auras de reação. Os círculos do Conselho de Estado
sentiam muito bem a poderosa evolução que continuava a
processar-se nas camadas profundas da nacionalidade. O
próprio Caxias, declarando no discurso de apresentação do
gabinete, no dia 25 de junho, que vinha para ser “moderado e
justo, observando religiosamente as leis e resolvendo as
questões internas com ânimo desprevenido”, logo voltou as
suas vistas para as leis eleitorais, de que já se ocupava o
governo anterior, procurando assegurar na representação das
minorias, um contato mais fiel e constante do governo com as
diferentes faces da opinião. O que se dava realmente, era que o
nosso país não se tinha ainda adaptado perfeitamente às novas
condições gerais, surgidas ao fim da campanha do Paraguai.
Para que o governo imperial pudesse guardar a conveniente
autoridade nas negociações internacionais daquele momento,
era-lhe indispensável uma grande liberdade na política interna.
Desde, porém, que os negócios decorrentes da guerra foram
convenientemente regulados, sobretudo pela substituição do
tratado de paz argentino-paraguaio por outras disposições mais
de acordo com as nossas vistas, a missão do gabinete Caxias
estava virtualmente terminada. Tendo ainda encerrado a luta
religiosa da questão dos bispos, pela concessão da anistia aos
prelados nela implicados, e reorganizado sobre novas bases a
174
força militar do império, o governo conservador retirava-se
nos primeiros dias de janeiro de 1878, para dar lugar ao
gabinete liberal do visconde de Sinimbu.
Se o leitor tem observado com atenção, terá visto que o
nosso regime eleitoral da monarquia adaptou-se tão bem às
condições gerais do país que chegou a fornecer sempre um
exato denominador comum das nossas várias correntes de
opinião. O processo indireto da eleição de dois graus, apoiado
inicialmente no alistamento selecionado, constituía um tríplice
sistema de comportas, através do qual o sentimento nacional
atingia o parlamento e o governo, no seu mais justo e perfeito
equilíbrio. Em absoluto, não se poderia dizer que aquele fosse
o ideal, pois não admitindo o embate universal e simultâneo de
todas as opiniões, no plano imediato e precipitado da eleição
direta, naturalmente atenuava esse caráter de grande comício
popular, que devem ter sempre os pleitos eleitorais. Mas não
se pode negar que ele tenha sido extremamente hábil, pois, se,
de certa forma, funcionava como aparelho de contenção,
também as modificações que lhe foram sendo introduzidas,
poderiam ser marcadas pelas diferentes etapas do nosso
progresso
social.
Fornecendo
parlamentos
que
irredutivelmente se opuseram aos governos ditatoriais do
primeiro reinado e da Regência, ele, no segundo reinado,
conseguiu rigorosamente condicionar, tanto a revolução liberal
como a reação conservadora, à estrita e constante manutenção
da ordem material.
É claro que uma instituição, por mais evolutiva que
seja, pode sempre chegar a um momento em que não
corresponda mais às necessidades do espírito público. A partir
da crise ministerial de 1868 e das eleições que lhe seguiram,
175
tornou-se evidente que o processo eleitoral já não tinha
condições para estabelecer o justo equilíbrio entre os meios
dirigentes e os impulsos da opinião geral. A câmara de 1871,
ao votar a lei do ventre livre, era francamente forçada a perder
o contato com o eleitorado que a nomeou, para atender
diretamente à grande voz popular que se levantava muit o além
do estreito quadro do alistamento. Foi certamente uma grande
felicidade que se encontrasse o gênio político do Visconde do
Rio Branco, para conduzi-la àquele resultado. Mas não seria
possível acreditar na repetição indefinida de tais soluções. O
fato do parlamento, encerrado em outubro de 1877, só poder
reabrir-se em dezembro de 1878, após uma preventiva
dissolução da câmara dos deputados no mês de abril, mostra
vem as dificuldades que se vinham acumulando e as perigosas
circunstâncias a que o país poderia ser levado, se não se
atendesse rapidamente àquela situação.
Foram estas considerações que determinaram o
programa do gabinete Sinimbu. Era indispensável quebrar a
espécie de separação estanque em que o sistema eleitoral se
constituíra entre a nação e o seu governo. Em torno deste
programa fizeram-se as eleições de 1878, e ao abrir-se o
parlamento, no dia 15 de dezembro, a fala do trono acentuava
com exatidão: “Reconhecida a necessidade de substituir o
sistema vigente pela eleição direta, cumpre que, mediante
reforma constitucional, a decreteis, a fim de que o concurso de
cidadãos devidamente habilitados a exercer tão importante
direito, contribua eficazmente para a realidade do sistema
representativo”. Cinco dias depois, o Visconde de Sinimbu,
falando aos deputados, mais diretamente, vinha dizer-lhes:
“Creio não haver neste país quem desconheça que, nas
176
circunstâncias atuais, com as provas repetidas que temos tido,
as nossas instituições não podem marchar com segurança para
um futuro tranqüilizador, se não conseguirmos efetuar a
reforma eleitoral pelo sistema de eleição direta.”
Aquela câmara havia tacitamente recebido um mandato
especial para aquele fim. Apesar da sua composição restrita e
selecionada, o eleitorado, fundamente trabalhado desde 1869
pelapropaganda radical, não pudera fugir ao sentimento geral
do país. A pressão da grande opinião popular fora tão forte,
que a separação estanque a que nos referimos tornara-se
permeável. Mas quando a reforma eleitoral, votada pela
câmara chegou ao senado, no início de 1880, aí ainda a
esperava a reação conservadora.
O Visconde de Sinimbu não se julgou com forças para
vencer a resistência dos senadores. No próprio interesse da
reforma, a retirada do gabinete lhe pareceu indispensável, nada
podendo melhor dizer dos seus sentimentos naquele instante,
do que a carta que então dirigiu ao conselheiro José Antonio
Saraiva, chamando-o a substitui-lo no governo. Esta carta, que
Saraiva recebeu na Bahia, onde se achava, no dia 4 de março,
dizia assim:
“Sua Majestade, no pensamento de evitar, quanto se
possa, repetidas eleições, honrando a V. Exa. com a mais plena
confiança, encarrega-me de me dirigir a V. Exa. para consultálo se pode V. Exa., nas atuais circunstâncias, prestar um
grande serviço ao país, assumindo a direção dos negócios
públicos, com o intuito de obter do senado o projeto de
reforma, com as bases com que foi adotado pela camada dos
srs. deputados, poupando-se a dissolução desta.
177
“V. Exa. sem dúvida terá lido o último discurso que
sobre a reforma proferi no senado; aí fiz novas concessões,
Tais foram: a maioridade civil para gozo dos direitos políticos
e capacidade dos católicos.
“O novo projeto poderá conter essas concessões e assim
se tornará talvez mais aceitável, opiniões estas que creio serem
também as de V. Exa”.
Note-se que a oposição do senado, à primeira vista, não
se dirigia especialmente contra o sistema de eleição direta. O
que aparentemente repugnava aos senadores era a feição de
reforma constitucional que o projeto da primeira câmara trazia,
envolvendo questões de liberdade religiosa e de consciência.
Era esse o ponto no qual eles resistiam, tendo arrancado a
Sinimbu aquela concessão da “capacidade dos católicos”, que
significava apenas só poderem ser votados os cidadãos adeptos
da religião oficial. Mas no fundo, todos sentiam muito bem
que era uma transformação completa do país o que estava em
jogo naquele momento, compreendendo todas as antigas
aspirações do liberalismo histórico e as idéias do período
governamental de Zacarias de Góis, tudo junto, como depois
se consolidara no programa dos radicais. Bastara abrir uma
brecha, e a corrente se precipitaria. Quando Saraiva percebeu o
governo nas mãos de Sinimbu, os mais alarmados não se
privaram de lhe abrir bem os olhos sobre aquele temeroso
aspecto do conjunto. Era a revolução!... Mas o novo presidente
do conselho muito vem o sabia. Era precisamente por sabê-lo
que ele ali vinha procurar um terreno de conciliação – pois
muito mais sensato era avançar para ela legalmente, do que se
deixar por ela surpreender.
178
Mesmo de um rápido exame da atividade política
brasileira, desenvolvida de janeiro de 1878 a junho de 1881,
logo se percebe que a grande preocupação dos gabinetes
Sinimbu e Saraiva consistiu toda em evitar que a vaga
democrática, resultante com temos visto da nossa própria
evolução histórica, pudesse chegar ao seu instante final de
deflagração sem encontrar no nosso aparelho político e
constitucional os meios de pacificamente canalizar-se para o
terreno das soluções legais. Quando Sinimbu iniciou em 1878
o seu esforço nesse sentido, o anseio pelas reformas decisivas
aumentava cada vez mais na consciência coletiva, sem
entretanto poder, pelos motivos já examinados, ecoar com
força no seio do parlamento. Dado porém o caráter da reação
democrática da seguinte eleição legislativa, em 1879 a
situação já era outra. Apenas aberta a discussão sobre a
reforma eleitoral, logo na câmara se manifesta, com Saldanha
Marinho, Joaquim Nabuco, José Mariano, Rui Barbosa,
Jerônimo Sodré, João Brígido, uma extrema esquerda
democrática, tão ativa e inpetuosa como aquela de 1861 a
1867, em que figuravam Teófilo Ottoni, Francisco Otaviano e
Silveira Lobo, mas certamente muito mais segura nos seus
propósitos, pela coordenante intervenção anterior do
radicalismo. Primeiro, é a sonora e grande voz de Joaquim
Nabuco, a exigir, em nome da própria lógica dos princípios,
que a reforma não se restrinja apenas ao processo eleitoral,
mas seja a reforma constitucional completa, capaz de cobrir
todas as velhas aspirações do liberalismo histórico. Logo em
seguida vem o representante baiano Jerônimo Sodré a recordar
que, sem compreender a abolição total do elemento servil,
nenhum programa de governo liberal podia ser legítimo nem
179
sincero. O gabinete Saraiva consegue afinal, em janeiro de
1881, fazer promulgar a lei do novo processo eleitoral, que
conciliando as vistas do senado com os da câmara, evitava a
reforma constitucional. Mas a situação parlamentar tinha -selhe tornado extremamente difícil. Joaquim Nabuco, com os
veementes aplausos de toda a esquerda liberal, respondera à
iniciativa de Jerônimo Sodré. A campanha pela abolição total
imediata, que de 1871 até ali andara apenas na grande alma do
povo, viera colocar-se enfim dentro do parlamento,
imediatamente em face do governo. Saraiva, embaraçado na
execução da lei eleitoral, obtém o adiamento da assembléia
geral para 15 de agosto. Mas o simples adiamento era, como
solução, muito precário. A necessidade de evitar que aquela
câmara voltasse a reunir-se foi-se tornando patente,. No dia 30
de julho, o adiamento era revogado, para dar lugar ao decreto
final de dissolução.
É claro que o conselheiro José Antônio Saraiva, em
princípio, não podia ser contrário à abolição. Mas ele via
claramente que o momento de obtê-la, sem profundos abalos
para a nação, não chegara ainda. A maioria da câmara não
escondia a sua impaciência ante os intrépidos e eloqüentes
apelos de Joaquim Nabuco. No senado não era certamente
mais propícia a atmosfera. Era preciso esperar. Era
indispensável dar à reforma eleitoral o tempo de produzir os
seus efeitos, trazendo grande opinião popular, em maioria, ao
seio do parlamento. O único resultado da iniciativa Sodré Nabuco, que ao governo liberal se afigurava, era o de acordar,
sem resultado prático provável, a desordenada e perigosa
exaltação das ruas.
180
O decreto de dissolução de 30 de junho, convocava a
nova câmara, em sessão extraordinária, para o dia 31 de
dezembro. A lei Saraiva, a exemplo do que se dera com a
reforma eleitoral de Honório Hermeto, na sua primeira
aplicação não operou imediatamente no sentido que lhe
quiseram dar os seus promotores. Graças ao intenso esforço
desenvolvido por aqueles que, no problema da abolição,
pretendiam deter-se indefinidamente na lei do ventre livre, a
eleição de 1881 deu em resultado uma câmara cujo espírito de
moderação excedia a todas as previsões. Nela, quase não se via
mais nem um só daqueles que na legislatura anterior formavam
na extrema esquerda, O conselheiro Saraiva, fosse pela
surpresa daquele resultado, fosse porque considerasse, como o
disse, encerrada a sua missão, não tardou então em demitir -se.
No dia 21 de janeiro subia ao poder o gabinete Martinho
Campos.
Martinho Campos era um destes gênios de ecletismo,
em cuja dialética os princípios só aparecem para
imediatamente se equilibrarem numa displicente e elegante
comodidade pessoal. Sem deixar jamais perceber com muita
clareza qual era realmente o seu partido, ele entretanto sabia
muito bem se definir, quando se tratava de um destes
interesses predominantes, sobre os quais era evidente a opinião
do maior eleitorado. Aceitando em grande número os pontos
de vista do partido liberal, em relação ao problema do
elemento servil, não punha dúvidas em proclamar-se “um
escravocrata da gema...” Não se poderia dizer que fosse um
simples oportunista, pois mais ou menos sempre esteve em
oposição. Era sobretudo um observador para gozo próprio, a
181
quem uma boa dose de ceticismo conferia uma grande
liberdade de crítica e comentário.
Tudo parecia indicar que não fosse possível encontrar
homem mais bem talhado a governar com aquela câmara. O
seu discurso de apresentação do gabinete, cuidadosamente
escoimado de pontos de vista extremos, é uma maravilha de
tato. Dir-se-ia não existir no Brasil daquele instante coisa
alguma de monta a dividir as opiniões, Tudo ia pelo melhor,
no melhor dos mundos possível, teria obtemperado o dr.
Pangloss, se ali estivesse, Os costumes políticos eram quase
perfeitos. A ética geral fizera os mais assinalados progressos e
nada poderia perturbar seriamente o desenvolvimento de um
grande surto de boa vontade entre os homens. Só a imprensa,
com uma inexplicável virulência, desmandava-se ainda em
demonstrações de impaciência. Mas mesmo a esta, ele ali
estava para, revestido de toda tolerância, aceitar-lhe “as
injúrias, os insultos, as críticas as mais amargas, como um
auxílio à administração”. O governo cuidaria da situação
financeira, que muito mal andava com tanto papel -moeda. Era
necessário equilibrar o orçamento do império, promovendo ao
mesmo tempo a redução lenta e cautelosa do meio circulante.
No mais, o novo gabinete não tinha programa, pois tudo lhe
parecia estar direito e na ordem desejável.
Nesse verdadeiro cântico de otimismo, a incurável
ironia do presidente do conselho, porém, transparecia. Ela
chegava mesmo a raiar, em certos pontos, por uma
involuntária e sorridente crueldade. Naquela câmara liberal
havia um grande número de conservadores. Isto era
indispensável à própria dignidade do parlamento e, depois, não
importava, porque: “Hoje é que se pode dizer como o finado
182
Visconde de Albuquerque (Holanda Cavalcanti) – são duas
coisas muito parecidas, um liberal e um conservador – e podia
mesmo acrescentar-se, um republicano; porque têm todos os
mesmos ares de família...”
Sim; no tempo de Holanda Cavalcanti era a suprema
preocupação da unidade nacional que amalgamava liberais e
conservadores, dentro da política de conciliação. Na maioria
que o devia apoiar no parlamento, Martinho Campos também
não enxergava distinções partidárias. Via apenas uma coalizão
em favor do “status quo”, na questão do elemento servil...
Homem de espírito sutil, ele o não afirmava com franqueza,
mas todos assim o entendiam.
Entretanto, o novo chefe de gabinete, evocando no seu
belo discurso os métodos políticos da Inglaterra, para mais
uma vez oferecê-los como modelo aos parlamentares
brasileiros, talvez não se lembrasse de uma coisa, É que na
Inglaterra, como em todas as nações livres e de organização
parlamentar, periodicamente os partidos se fragmentam e
confundem, na luta em torno a certos grandes problemas,
avançando em formidável corpo a corpo até as soluções
definitivas, para depois se reorganizarem nitidamente muito
mais adiante, numa nova situação geral e inspiradas num novo
sistema de idéias.(45) Aquela uniformidade de vistas, que se
comprazia em assinalar o orador, só existia ali dentro, graças à
cabala eleitoral no último pleito. Lá fora a confusão partidária
também se estabelecia mas não era para a defesa do “status
quo”. Era precisamente na grande luta por uma transformação
radical e profunda. Dos dois lados, o meio naturalmente
circunscrito das organizações partidárias, de fragmentava. Os
espíritos mais esclarecidos e corajosos delas se afastavam,
183
para momentaneamente se encontrarem todos no irresistível
tumulto da grande opinião popular, em porfia da solução
definitiva do cativeiro, isto é, em demanda de uma nova
situação social, do novo e próximo período da nossa evolução
histórica, que imediatamente se anunciava e não poderia mais
tardar.
Daqui por diante, não vale mais à pena nos determos
nos incidentes que particularmente determinaram as
posteriores mudanças de gabinete. A extinção total do
elemento servil, era, mesmo sem que dela se falasse, a grande
questão que condicionava todas as manifestações da nossa
existência política. Os círculos parlamentares resultantes da
eleição de 1881, apesar da sua tácita deliberação de ignorar a
campanha abolicionista, não podiam fugir à pressão exterior
da opinião geral. Pesava sobre eles uma atmosfera de indizível
inquietação, senão de vago e inafastável remorso. O cauteloso
ministério Martinho Campos não chegou a durar seis meses.
No dia 3 de julho vinha ao poder um novo gabinete, trazendo
na presidência o Visconde de Paranaguá, um dos antigos
ministros do governo Zacarias de Góis, que no seu discurso de
apresentação imediatamente abordava o problema da abolição
para dizer: “O ministério favorecerá, sem quebra do respeito à
propriedade, a evolução que se opera no trabalho escravo para
o trabalho livre, evolução que se pode conseguir naturalm ente,
pela melhor execução da sábia lei de 28 de setembro”. O
ministro preconizava para tal fim a elevação do fundo de
emancipação, o imposto sobre transmissão na venda de
escravos e a proibição desse comércio entre as províncias. Era
um programa de extrema moderação, que, partindo de um
184
liberal da escola de Zacarias, só servia para indicar as
dificuldades da situação.
No dia 14 de maio de 1883, um requerimento do
deputado José Mariano, sobre as coisas da administração nas
províncias, determinava a retirada do ministério Paranaguá.
Foi então chamado ao governo o senador Lafayete Rodrigues
Pereira. Lafayete Pereira era um radical, que chegara a firmar
o manifesto republicano de 1870, tendo depois reconsiderado
aquela sua decisão, sem dúvida movido pela ulterior
inconseqüência das atitudes qu foi tomando o partido fundado
naquele documento. A sua chamada ao poder, aproximando a
administração dos princípios do radicalismo naquele momento,
procurava naturalmente oferecer uma satisfação |às correntes
populares. Mas o novo presidente do conselho não se fez
ilusões sobre as inúmeras dificuldades que o esperavam. Em
face da câmara que na visível inquietação com que aguardava
o seu programa, mostrava bem os sentimentos antagônicos que
nela se defrontavam, ele foi logo declarando: “Senhores, um
programa não é uma invenção, uma criação arbitrária do
espírito humano; um programa é um complexo de idéias que
corresponde à realidade da situação do país em um momento
dado.” Acalmando os impacientes, o ministro procurava
desarmar os prevenidos. Ele falava na imperiosa necessidade
de prestar atenção às coisas imediatas da administração
financeira, sem o que não existe crédito público nem ordem
nos negócios do Estado. O seu discurso é quase uma lição de
direito administrativo. É em nome do interesse da boa
administração que se reporta às idéias do radicalismo,
advogando o alargamento da autonomia das províncias e
apontando como necessárias diversas outras reformas na
185
legislação existente. Mas, se em tudo aquilo a sua dialética de
grande jurista e professor de Direito podia ir-se desenvolvendo
com cera segurança, ao abordar o problema fatal do elemento
servil, ela suspende-se logo numa angustiosa interrogação: o
não será possível adotar alguma medida no sentido de auxiliar,
de facilitar a ação da lei de 28 de setembro?...
Ali estava, evidentemente, um governo de simples
contemporização. O gabinete que se lhe seguiu, em 6 de junho
de 1884, presidido pe3lo conselheiro Souza Dantas, procurou
com notável energia responder pela afirmativo àquela
interrogação. Colocado em face da câmara, Souza Dantas foi
logo declarando: “Chegamos a uma quadra em que o governo
carece intervir com a maior seriedade na solução progressiva
deste problema, trazendo-o francamente para o seio do
parlamento, a quem compete dirigir-se a solução. Neste
assunto nem retroceder, nem parar, nem precipitar.”
O
ministro pedia que fossem postas em prática as medidas
preconizadas pelo gabinete Paranaguá, ampliadas pela
libertação imediata de todos os escravos maiores de ses senta
anos.
No dia 15 de julho o governo apresentava à câmara o
seu projeto complementar da lei de 28 de setembro. O
resultado imediato foram duas moções de desconfiança, das
quais a mais áspera e peremptória lograva ser votada por uma
maioria de sete votos, sobre cento e onze votantes. Mas Souza
Dantas viera decidido a lutar. A câmara foi dissolvida,
convocando-se uma outra em sessão extraordinária, para o dia
4 de março de 1885.
Não há dúvida de que a reforma eleitoral de 1881, como
esforço no sentido de melhor adaptar as manifestações das
186
urnas aos sentimentos da grande massa popular, foi muito
lenta em seus efeitos. A sua principal virtude consistiu no
avanço da eleição de dois graus para o voto direto. Mantendose porém, no alistamento segundo o critério econômico, ela
não conseguiu libertar convenientemente o eleitorado da
pressão predominante e inevitável dos interesses agrários. A
câmara de 1885 era mais ou menos uma reprodução da
anterior. Convocada na sessão extraordinária de 4 de março
para o fim especial de conhecer do projeto Souza Dantas sobre
a abolição, ela, logo no dia 13 de abril, se bipartia em duas
votações iguais em face da moção seguinte: “A Câmara dos
Deputados, não aceitando o sistema de resolver sem
indenização o problema do elemento servil, nega seu apoio a
política do gabinete.” Cinqüenta deputados votavam a favor,
cinqüenta votaram contra.
O presidente do conselho, sabendo muito bem que a
opinião pública gera, entre aquela negativa e a afirmação
correspondente, não se distribuía na mesma proporção, não
quis aceitar o empate como motivo bastante para a retirada do
gabinete. Ele ainda esperava obter o número de votos
indispensável à passagem do seu projeto. Desde, porém que
ele recolocara o debate abolicionista no terreno concreto da
ação governamental imediata, a atenção popular no Rio de
Janeiro voltara-se toda a câmara dos deputados. As galerias
enchiam-se de espectadores cujas manifestações a presidência
da assembléia mal podia conter. Ao fim das sessões, a
multidão aguardava os deputados à saída da câmara, festejando
ruidosamente os que apoiavam o gabinete e com igual
veemência significando aos outros a sua reprovação. A tensão
de ânimos tornava-se ameaçadora. A 3 de maio, a exaltação
187
popular contra os deputados da oposição ameaça d egenerar em
vias de fato. No dia seguinte a câmara reúne-se numa
atmosfera quase de pânico, e, por cinqüenta e dois votos
contra cinqüenta, adota esta moção: “A camada dos
Deputados, convencida de que o ministério não pode garantir a
ordem e segurança pública, que é indispensável à resolução do
elemento servil, nega-lhe a sua confiança.” À noite, Souza
Dantas, já demissionário, respondia,
numa imensa
manifestação popular, em frente à sua casa: “Caio nos braços
do povo!..”
Voltou então ao poder o especial preparador de
ambientes que era o conselheiro José Antônio Saraiva.
Modificando o projeto Sousa Dantas em diversos pontos e
ampliando de sessenta para sessenta e cinco anos a idade para
a emancipação compulsória, o novo chefe do governo sempre
conseguiu o número de votos necessário a fazê-lo aprovar na
câmara dos deputados. Mas, convencido de não poder obter no
senado idêntico resultado, ele retirava-se logo depois, subindo
no dia 20 de agosto um novo gabinete sob a presidência do
Barão de Cotegipe. Era um governo conservador...
O novo presidente do conselho apresentou-se à câmara
quase exclusivamente para significar-lhe que com ela não
havia situação governamental possível: “No fim de uma sessão
tão trabalhosa como tem sido a atual, pouco por certo podia
fazer um governo, mesmo liberal que fosse, e muito menos o
partido conservador. Há porém, duas medidas que acredito se
poderão conseguir da atual câmara dos srs. deputados, ou
antes, uma já está conseguida. Essas duas medidas são o
projeto de emancipação gradual dos escravos e a obtenção de
meios para constituir o governo em condições regulares de
188
poder governar.” Mas tendo-se-lhe perguntado, em aparte, se
aceitava o projeto de emancipação tal como já fora ali
aprovado, ele logo se reservou, para responder apen as: “No
senado eu direi...” Era uma franca provocação. Seguiu -se um
intenso e acalorado debate, que teve o seu epílogo na seguinte
moção, aprovada por sessenta e três votos contra quarenta e
nove: “A Câmara dos Deputados, ouvindo as explicações do
sr. presidente do Conselho, nega ao ministério de 2 de agosto a
sua confiança, e passa à ordem do dia.”
O Barão de Cotegipe não procurava outra coisa.
Convencido de que o Partido Liberal não tinha condições para
legalmente precipitar o fim do cativeiro, ele aceita ra o poder
no firme propósito de criar uma forte situação conservadora,
que resistindo à exaltação das ruas, energicamente se opusesse
a qualquer solução revolucionária, em desacordo com o
processo lento e gradual instituído na lei Rio Branco. Aquela
moção dava-lhe o pretexto para dissolver a câmara e procurar
em novas eleições um parlamento que eficazmente o
secundasse em tal propósito. Na aparência, e de acordo com os
velhos aspectos da nossa vida partidária, o presidente do
Conselho não deixou de levar a melhor no início deste seu
programa. Tendo, com a aprovação do senado, convertido o
projeto Dantas-Saraiva na lei de 28 de setembro de 1885, na
reabertura da assembléia geral em 3 de maio do ano seguinte,
ele encontrava-se em face de uma câmara aupiciosamente
correligionária, a qual comunicava as suas últimas vistas sobre
o elemento servil, neste confiante e tranqüilo trecho da fala do
trono: “A lei de 28 de setembro de 1885 vai sendo fiel e
lealmente executada. Com ela prende-se a questão da
introdução de imigrantes, aos quais dever-se-ão proporcionar
189
meios de empregarem-se como pequenos proprietários do solo,
ou como trabalhadores agrícolas. Para este fim, é
indispensável a revisão do decreto de 15 de março de 1879
sobre locação de serviços e da lei de terras de 18 de setembro
de 1850.” A abolição era portanto um caso tão
irrevogavelmente liquidado no tempo, que, à medida que
fossem operando os dispositivos daquela lei final e definitiva,
ela já se transformava na simples e gradual substituído da
mão-de-obra escrava pelo novo regime do braço imigratório...
Mas, apesar de toda a sua habitual sagacidade, o
estadista conservador enganava-se profundamente. Pouco
importava que ele pudesse ver correligionários, homens do
partido conservador, na maioria dos deputados. Naquele
momento, a opinião pública do Brasil, em qualquer das suas
esferas, não se dividia mais em liberais e conservadores,
segundo os antigos limites doutrinários do dois partidos. O que
se tratava de saber, era apenas se era-se pela abolição
imediata, ou se ainda se pretendia a manutenção do cativeiro
sobre aquela última geração de escravos. Era esta a linha real
de separação, porque tudo mais fora afastado como assunto de
cogitação ulterior. A agitação abolicionista, vencendo todas as
resistências do interesse privado, havia avançado dos meios
propriamente populares para os círculos eleitorais, vindo
afinal manifestar-se irresistível na maioria do parlamento. Na
terceira eleição procedida segundo a lei Saraiva quebraram -se
as últimas barreiras. A câmara na qual o Barão de Cotegipe
contava apoiar-se para ter a questão abolicionista como
encerrada na lei do ventre livre, foi a mesma que aprovou, por
oitenta e três votos contra nove, a grande lei de 13 de maio de
1888, concebida neste texto rápido e peremptório:
190
“Art. 1º - É declarada extinta, desde a data desta lei, a
escravidão no Brasil.”
“Art. 2º - Revogam-se as disposições em contrário.”
Se este capítulo tem sido bem raciocinado, certamente
teremos visto que a extinção do cativeiro foi no Brasil u m
produto da vontade coletiva. Foi um destes movimentos
populares, nacionais, tão profundos e generalizados, que a
ação individual neles inteiramente desaparece como decisão,
para não ser mais que obediência. Posteriormente à lei de 13
de maio, têm-se feito várias tentativas para saber a quem
reverte a maior glória daquele fato. Uni cuique suum.(46) O
padre Rafael Galanti, estabelecendo esta indagação no Tomo
V, pág. 30, da sua correta e conscienciosa História do
Brasil,(47) cita Joaquim Nabuco, para quem a coroa de louros
da abolição deve ser atribuída a uma plêiade de homens
eminentes, cuja figura central é o imperador Pedro II.
Naturalmente, seria quase impossível fazer a história dos
grandes acontecimentos humanos, sem ver as individualidades
que os atravessam em maior destaque. É preciso notar
entretanto que o esforço dos políticos e homens de Estado, no
nosso fenômeno abolicionista, aparece constantemente subor dinado a uma individualidade maior, que é o país, o povo
brasileiro, a consciência nacional do Brasil. É esta
individualidade oculta, mais onipresente, que a todos eles
impele e precipita. A ação dos meios políticos, propriamente
ditos. consistiu muito mais em compensar o grande movimento
popular, dando-lhe feição mais calma, do que mesmo em
secundá-lo. No período que vai dos últimos meses de 1866 a
191
julho de 1868, o governo imperial, sujeito às circunstâncias
que já examinamos, esteve a dois passos de se ver arrastado à
abolição imediata. Mudada, porém, a situação governamental e
reduzidas as aspirações do momento à lei do ventre livre, a
preocupação das classes dirigentes assentou toda em guardar
aquela medida como suficientemente resolutiva. Mas, naquele
instante, a determinação coletiva ganhara um tal volume e uma
tão grande velocidade que não era mais possível esperar o
transcurso médio de duas gerações, para que o cativeiro
atingisse a sua última etapa, segundo as disposições daquela
lei. As alforrias voluntárias, iniciadas em favor dos escravos
da coroa, no decorrer da guerra do Paraguai, fizeram-se de uso
corrente entre os particulares. “A manumissão tornou-se para
nós a forma preferida da caridade pública e privada, a
inscrição essencial de todo acontecimento feliz, o tributo de
saudade aos mortos queridos, a polidez para com o estrangeiro
e o hóspede, em uma palavra, o uso nacional por
excelência.”(48) No dia 25 de março de 1884, o Ceará declara
extinta a escravidão no seu território, sendo, a 10 de julho
seguinte, acompanhado pelo Amazonas. No Rio Grande do
Sul, no dia 18 de setembro daquele ano, para comemorar o
aniversário da rendição de Estigarribia às tropas aliadas em
1865, são alforriados todos os escravos nos municípios de
Uruguaiana, São Borja, Viamão e Conceição do Arroio. No dia
16 de outubro, os cidadãos de Pelotas, reunidos numa grande
festa pública, libertam de uma só vez cinco mil cativos, e
quando, no ano seguinte, o ministro Saraiva faz ampliar de
sessenta para sessenta e cinco anos a idade para a emancipação
compulsória, brada uma voz no recinto da câmara dos
deputados: - Pouco importa o prazo fixado à agonia da
192
escravidão, porque ela decerto não acabará junto à cova do
último escravo!...(49)
A grande opinião pública, assumindo as suas expressões
mais nítidas e claras na palavra de tribunos e jornalistas como
Luiz Gama, Joaquim Nabuco, José do Patrocínio, Joaquim
Serra, Lopes Trovão, Bezerra de Menezes, João Clap, Silva
Jardim ou Antônio bento, fizera seu esplêndido trabalho. Os
escravocratas desapareciam, e com eles a escravidão. mesmo
nos centros mais poderosos da grande propriedade agrícola, do
Rio Grande do Norte às divisas do Paraná, começaram as
numerosas alforrias voluntárias. Em São Paulo, um gentil
homem fazendeiro e chefe conservador, o conselheiro Antônio
Prado,(50) dando por si o exemplo, convida os seus colegas da
lavoura a saírem ao encontro do sentimento geral do país, pela
imediata concessão da liberdade aos seus escravos. Nem todos
o atenderam. Mas o gesto de Antônio Prado produziu no meio
urbano da capital da província uma tão agradável impressão,
que um grupo de cidadãos reuniu por cotização o dinheiro
necessário à libertação dos últimos escravos existentes na
cidade, e, no dia do seu aniversário, a 25 de fevereiro de 1887,
foi levar-lhe duzentas e tantas cartas de alforria, como o mais
precioso e grato dos presentes de festa. Dessa época em diante,
começa nas fazendas e nos engenhos a evasão em massa dos
escravos, sem que se encontre mais um único soldado que
consinta em opor-se a sua livre passagem pelas estradas. Na
fuga, que às vezes assume aspectos verdadeiram ente triunfais,
todo mundo os ajuda, ampara e lhes fornece meios de
prosseguir, Enfim, “a classe agrícola compreendeu que ficava
inútil e sem valia uma propriedade que nem era mais
susceptível de posse,(51) e quando a 13 de maio do ano
193
seguinte vem a lei que declara extinta a escravidão no Brasil,
ela não traz mais do que a consagração jurídica de uma
evidente e indiscutível situação de fato.
Agora, se compararmos as duas abolições, a norteamericana e a brasileira, nos seus fundamentos morais e
psicológicos, havemos de chegar necessariamente à conclusão
de que o Brasil de Pedro II foi muito mais uma democracia, do
que os Estados Unidos de 1865. Não seria possível negar todo
idealismo a um movimento nacional que produziu essa grande
e radiosa flor da sentimentalidade humana, que é A cabana de
pai Thomz, de Mrs. Beecher Stowe, e que determinou o
generoso e formidável sacrifício de centenas de milhares de
vidas. Mas a diferença é evidente e essencial. A extinção do
cativeiro nas antigas colônias inglesas, por mais que a sua
antecedência sobre a do Brasil pareça dar-lhe a primazia
liberal, não deixou de apoiar-se de uma forma decisiva, em
interesses tangíveis e imediatos, e de vir imposta pela força
das armas. Entre nós ela parte de considerações puramente
morais e humanas e atinge o seu termo com a feição altamente
democrática de uma esplêndida e universal vitória de opinião.
NOTAS
(44) Vide Albert Grenier – Les Gaulois, págs. 37, 38 e 42. Ed. Payot,
Paris, 1923.
(45) O sr. Albert Milhand, no número de 1º d e junho deste ano, do jornal
L’Ere Nouvelle, de Paris, tratando das últimas edições inglesas, diz que,
na Inglaterra “é-se sempre whig ou tory, mesmo se se muda de etiqueta de
tempo em tempo, de século em século. Há uma centena de anos a
esquerda, se se ousa exprimir-se assim, deixou no vestiário o nome de
whig e chamou-se partido liberal. Era a moda continental, A direita,
194
outra denominação abusiva, pôs de lado a apelação desusada de partido
tory e tomou o nome de partido conservador. Por sua vez ela imitava
assim certos países europeus. Hoje os novos whigs são os trabalhistas e os
neo-torys são os eleitores do sr. Baldwin e de seus amigos”. Parece -nos
que o sr. A. Milhand conseguiu dar aí um quadro muito justo dessas
transformações pelas quais vão passando os partidos, através da evolução
social dos povos.
(46) A cada um o que lhe pertence.
(47) Edic. Duprat & Cia., São Paulo, 1910.
(48) Carta de Joaquim Nabuco ao cardeal secretário de Estado do
Vaticano, em 10 de janeiro de 1888, pedindo a intervenção m oral do papa
Leão XIII em favor da abolição. Vide O Paíz, do Rio de Janeiro, de 20 de
março do mesmo ano.
(49) Frase divulgada nos jornais da época e citada pelo R. P. Rafael
Galanti. Vide op. cit., Tomo V, pág. 45.
(50) Antônio Prado, como ministro da Agricultura dos gabinetes Cotegipe
e João Alfredo, teve a felicidade de sucessivamente referendar as duas
leis emancipadoras de 28 de setembro de 1885 e de 13 de maio de 1888.
(51) Fala do trono do imperador Pedro II, lida na abertura da Assembléia
Geral, a 3 de maio de 1889.
195
CAPÍTULO X( * )
O FIM DO SEGUNDO REINADO
A abdicação e a partida de Pedro I marcam realmente o
instante em que o governo do Brasil perde os seus últimos
contatos com a velha corte de Lisboa. Daí por diante o nosso
país se organiza segundo o seu espírito próprio, orientando-se
exclusivamente nos livres e igualitários sentimentos da sua
primeira formação.
Sob este aspecto, o Brasil é, completamente e sem a
mínima dúvida, um país novo. As fórmulas democráticas e
parlamentares, nas quais as idéias da Revolução se vão
condensando nos meios mais cultos da Europa, aqui não
encontram resistências invencíveis. Enquanto os países de
origem castelhana, despedaçados pela guerra civil, só obtêm
um pouco de sossego pelo restabelecimento da autoridade
absoluta dos antigos vice-reis, em mãos dos seus novos
governantes,e as pequenas repúblicas municipais da América
do Norte, para viverem unidas, precisam submeter-se ao poder
anacrônico e excessivo de um grande monarca eletivo, o Brasil
logo se organiza no sistema constitucional representativo de
(*) Nota do editor: o capítulo IX consiste numa “visão do Brasil colonial”,
distante do objeto da transcrição, sendo por isso suprimido neste trabalho,
e consequentemente também suas notas (52 a 60) referentes ao capítulo.
196
forma parlamentar, o único no qual se manifestam eficazmente
os princípios fundamentais do moderno direito público.
Considerada assim, no conjunto dos seus fatores morais
e psicológicos, a história do nosso país apresenta-se como
profundamente lógica e bem ordenada. Cada fato aí se
manifesta no seu momento exato, quando se tornam patentes
todas as suas condições de ambiência e de equilíbrio.
Obedecendo a essa constante harmonia da nossa vida
social, a idéia abolicionista não se desenvolveu isolada. Ela
estava inclusa na nossa orientação política geral, como uma
grande função, e o seu triunfo definitivo não podia verificar -se
sem que, paralelamente, outras modificações profundas se
operassem. É precisamente nessa íntima penetração do abolicionismo na universalidade das preocupações éticas e sociais,
que deve ser encontrada a diferença essencial entre a abolição
do Brasil e a dos Estados Unidos. Na América do Norte, a
extinção do cativeiro nasceu das considerações que o branco
pôde fazer sobre o negro, em vista do seu interesse exclusivo.
A raça escrava foi o objeto mais ou menos direto do esforço
abolicionista, mas dele, tanto que ação política, de maneira
alguma participou, visto não haver tido jamais ingresso na
massa deliberante. A emancipação não se processou portanto
como um interesse comum ao branco e ao negro, dentro da
nação, mas como uma medida unilateral, tomada de um só
ponto de vista. Apesar de realizada, no momento, com alta e
vigorosa decisão, ela não pôde reagir sobre a vida moral e
política do país. As suas conseqüências foram apenas de ordem
industrial e econômica, por haver quebrado a barreira mental
que se opunha à grande imigração européia. Mas, no domínio
ético e social, ela nada produziu, pois não determinou a
197
mínima alteração nas idéias anteriores, nem coincidiu com a
menor modificação das práticas estabelecidas(61). Os Estados
Unidos, na civilização greco-latina, constituem mesmo, a este
respeito, um caso unido. É conhecida a profunda influência
que as manumissões tiveram na vida social da Antigüidade
clássica, sobretudo no grande período que vem dos ultimos
dias da república romana à sistematização final do imperador
Justiniano. Da Idade Média aos tempos modernos, através da
Renascença, a evolução dos métodos políticos, nos países do
Sul da Europa, coincidiu com a gradual e completa fusão do
grande número de escravos negros, bérberes e tártaros, que
aqueles países tiveram, na massa geral das populações. Na fase
final dessa longa evolução, bastaram três séculos aos
europeus, para completamente absorverem na sua composição
étnica e nas suas novas organizações jurídicas, todas as
incontáveis levas exóticas, lançadas ao continente pelas
guerras religiosas ou pela sua fatal e inseparável companheira,
a escravidão. Os Estados Unidos fugiram a essa regra geral
dos povos ocidentais. Passado o formidável conflito da
secessão, o americano, na sua vida moral e política, ignorou
completamente a abolição do cativeiro, deixando-a evoluir,
nas suas conseqüências ulteriores, pela constituição da raça
liberta em corpo estranho, dentro da nacionalidade.
O processo da abolição no Brasil tinha que ser diverso
do das antigas colônias inglesas. No eleitorado que elegia o
parlamento estavam representados todos os elementos raciais
do império. No senado e na câmara aquela perfeita união
étnica se reproduzia. Homens de cor, pelo cruzamento de
brancos com índios, de brancos com negros, de índios com
negros ou pela presença simultânea das três raças num só tipo,
198
eram Zacarias de Góis, o Visconde do Rio Branco, Sales
Torres Homem (Visconde de Inhomirim), o senador Francisco
Otaviano, o Barão de Cotegipe. Os três ramos da mossa
constituição demográfica intimamente se associavam em todas
as esferas da atividade social, sentindo as mesmas aspirações,
confundindo-se
nos
mesmos
esforços
e
tendendo
conjuntamente para os mesmos objetos de ordem nacional e
coletiva. A abolição não poderia portanto processar-se como
um violento conflito de interesses, no mundo étnico dos
senhores, para só indiretamente refletir-se no meio racional da
outra classe, tal como se deu nos Estados Unidos. Não era uma
liquidação transitória e subsidiária, apesar de indispensável,
nem podia, uma vez realizada, isolar-se ou ser simplesmente
esquecida na vida moral e política da nação. Aqui, a mudança
da condição de escravos para a de homens livres, no círculo
dos trabalhadores do solo, foi um dos principais aspectos de
um fenômeno muito maior e infinitamente mais amplo, que
naquele momento chegava à sua produção completa. Por
motivos de natureza quase mecânica, teria sido impossível ao
Brasil, no caminho das transformações daquela época. ficar
apenas na lei de 13 de maio de 1888. Ao que assistíamos
naquele instante, era ao complemento e ao termo da nossa
formação democrática ou republicana, tal como a
esboçáramos, no projeto de constituição de 1823, em nome da
qual fizéramos a revolução de 1831 e a Maioridade, e que,
retardada pela reação autoritária da Regência e severamente
subordinada às exigências da nossa segurança externa, na
política de conciliação, viera após a lei dos círculos, fixar as
suas linhas definitivas no manifesto radical de 1869, para
depois precipitar-se na lei do ventre livre à abolição completa
199
do cativeiro – e daí enfim ao programa do gabinete de 7 de
junho de 1889.
Esse programa, lido pelo Visconde de Ouro Preto,
presidente do Conselho, na sessão da câmara dos deputados,
de 11 daquele mês, é extremamente interessante e sugestivo
sob o ponto de vista histórico. Extintas as últimas resistências
do passado, perante o abolicionismo vitorioso, seria talvez de
supor que uma trégua se abrisse no nosso avanço para a
democracia integral, como reação natural do grande esforço
despendido até ali. Entretanto, apenas liqüidada a época
abolicionista, pelo desaparecimento do gabinete que a
encerrara a 13 de maio do ano anterior, o novo ministério
inaugura-se a proclamar pelo órgão do seu chefe, que “a
situação do país define-se por uma frase: - necessidade urgente
e imprescindível de reformas liberais...”
Essas reformas, o ministro não as anuncia emocionado e
a medo. Não o assusta o escândalo da novidade nem ele teme
reações, porque sabe que todas elas estão na consciência
pública, a mais de vinte anos, perfeitamente compreendidas e
fixadas em fórmulas nítidas e exatas. No meio da atmosfera de
tumulto que se estabelece no recinto da câmara, a sua voz de
velho parlamentar e homem de Estado, alteia-se segura e clara:
“Esta tempestade não me assusta; ao contrário, alegro-me com
ela. Eu prefiro esta agitação, sinal de vida e movimento...” E,
quando as reformas vão sendo enunciadas – “alargamento
maior do direito de voto, plena autonomia dos municípios e
províncias, efetividade do direito de reunião, liberdade de
culto e seus consectarios, temporariedade do senado, anu lação
das funções políticas do Conselho de Estado – tudo numa
ordem perfeita e quase cronológica, como a disposição
200
metódica dos materiais de uma construção imediata, ouve -se a
voz do deputado Pedro Luís: “É o começo da república”...” O
presidente do conselho protesta: “Não; é a inutilização da
república. Sob a monarquia constitucional representativa,
podemos obter, com maior facilidade e segurança, a mais
ampla liberdade...”
É preciso meditar com atenção estas palavras do
Visconde de Ouro Preto, evocando, com o auxílio da rápida
recapitulação de antecedentes que temos feito, o especial e
ultra-sensibilizado ambiente em que elas vibravam. A
inutilização da república, pela mais ampla liberdade!... O
ministro não diz – a destruição ou a morte da república. Ele
deseja somente que as reformas a realizar sejam tão completas,
tão amplas, tanto avancem para a república, que, perante elas,
a proclamação formal do novo regime se torne inútil,
desnecessária, salvando-se assim as formas aparentes da
monarquia, ao mesmo tempo que se reforça e amplia, até as
suas últimas conseqüências práticas, tudo quanto o nosso
velho aparelho institucional e os nossos hábitos políticos já
possuíam de real e verdadeiramente republicano.
A plataforma do gabinete Ouro Preto não tontinha um
dos artigos principais do programa radical de 1869. Era a
extinção do poder moderador. Mas dado o estado geral dos
ânimos no momento, nada poderia impedir que, mais ou menos
imediatamente, aquela medida se impusesse. O poder
moderador era como a árvore mais alta, sobre a qual o raio
desce, apenas desencadeada a tormenta. Se o seu fim não
viesse, por natural e imperiosa extensão, com a simples
abertura dos debates sobre o programa do ministério Ouro
Preto, ele não sobreviveria sem dúvida aos três anos da
201
legislatura seguinte. A nova câmara e o senado temporário que
resultassem do alargamento do direito de voto recomendado
pelo gabinete, talvez não o tolerassem além da sua primeira
sessão. Como limite extremo à permanência daquela função no
nosso aparelho político, poder-se-ia portanto admitir, quando
muito, o ano de 1895.(62)
E, a partir daí, a nossa família não teria muito mais o
que fazer, no seu patriarcal e modesto paço de São Cristóvão...
Seria extremamente interessante podermos hoje saber
quais eram as íntimas disposições e o fundo real do
pensamento do velho Afonso Celso, no momento em que ele,
destruindo os últimos fundamentos essenciais da monarquia,
pela adoção final das doutrinas radicais de 1869, ainda se
esforçava em defender e salvar os sinais visíveis do império.
Dirão que esse era o seu dever de coerência e lealdade. Sem
dúvida... Mas, em política, nem sempre o cumprimento de um
dever de coerência nos isenta da íntima e trágica certeza da
sua inutilidade.
A realeza é um aparato multimilenário que, nas nações
verdadeiramente evoluídas do mundo moderno, só se mantém
ainda, nas suas formas puramente visuais, pelo prestígio
mental da tradição. Ora, num país descoberto pela Renascença,
com todas as suas tradições políticas iniciais fundadas no
século XVIII e na revolução francesa, esse milagre de
persistência era necessariamente impossível. Como poderia o
trono, depois de perder toda a sua significação prática, manter se ainda, como uma inútil e suntuosa relíquia, num império
que jamais concebeu o amor do rei e suntuosa relíquia, num
mistério que jamais concebeu o amor do rei como artigo de fé
religiosa e onde a nobreza da corte não podia pensar, nem
202
sorrir, na antiguidade da sua formação? Os estadistas daquele
momento, a começar pelo próprio imperador, não nutriam
ilusões a tal respeito. Neste ponto, a crônica do tempo nos
oferece indicações as mais várias e preciosas. O dito do Barão
de Cotegipe, o imperador é o império e o império é o
imperador, significando que o trono não subsistiria ao seu
último ocupante, tornara-se corrente. A presença de Pedro II
era o derradeiro obstáculo à proclamação do novo estado de
coisas. Não que o velho imperador pudesse materialmente
opor-se a uma decisão coletiva em tal sentido, mas porque a
grata e afetuosa consideração da maioria se concertava em dele
afastar tão rude comoção. A monarquia, em todo caso, já não
se apresentava como tolerável, senão com Pedro II...
Entre os documentos que mais facilmente podemos hoje
consultar sobre aquele estado de ânimo, parece-nos um dos
mais interessantes, A República na América Latina,(63) de A.
Coelho Rodrigues. Apesar de não concordarmos com o ponto
de vista em que o autor se coloca, no seu cap. I, para descobrir
as causas da proclamação da república no Brasil, não lhe
poderíamos negar a qualidade de excelente e autorizada
testemunha de vista. Ele pode ter errado nas conclusões a que
pretendeu chegar, mas não nos fatos a que se refere. Membro
da câmara dos deputados na monarquia, e senador nos
primeiros anos da república, ele esteve intimamente ligado à
vida política das duas épocas, no seu período de interseção,
dando ao depoimento que oferece naquele trabalho um
impressionante caráter de veracidade.
Conta Coelho Rodrigues: “Em dezembro de 1888, Silva
Jardim, fazendo-se encontradiço com o velho barão (o Barão
de Cotegipe, cujo ministério cedera o lugar ao gabinete
203
abolicionista do conselheiro João Alfredo) no hotel das
Paineiras, procurou sondá-lo sobre o advento da república e
ouviu dele esta profecia: - não se apresse a correr para ela, que
ela está correndo para nós. O meu ministério caiu por uma
conspiração do Palácio; o meu sucessor há de cair na lama das
ruas, e o sucessor do meu sucessor cairá na ponta das
baionetas e, talvez, com ele, a monarquia. Os nossos
ministérios duram pouco e, portanto, V. não terá muito que
esperar”. E Coelho Rodrigues acrescenta: “Ouvimos esta
referência ao próprio Silva Jardim, em dezembro de 1889, um
ano depois do fato, e um mês depois da proclamação da
república”. A República na América do Sul contém várias
informações desta natureza, com indicação de lugar, de
pessoas e de datas. mas onde o testemunho do seu autor nos
parece mais sugestivo, é onde conta(64) uma conferência que
se teria realizado entre o imperador e o conselheiro José
Antônio Saraiva, em março de 1889. Tendo Pedro II
encorajado Saraiva a assumir o poder, em substituição ao
gabinete João Alfredo, cuja demissão próxima era esperada, o
velho estadista “declarara ao imperador parecer-lhe próximo e
inevitável o advento da república, e necessário preparar o país
para ela, fazendo a federação das províncias e abdicando em
seguida a coro nas mãos do parlamento”. O imperador
pergunta a Saraiva se, em tais condições, não lhe parecia mais
possível o terceiro reinado. Sua Majestade referia-se à
coroação da princesa Dona Isabel, Condessa d‟Eu, após a sua
morte. Coelho Rodrigues coloca então na boca dos dois
interlocutores este rápido e impressionante diálogo, começado
por Saraiva:
- O reino de Sua Alteza não é deste mundo...(65)
204
- Pois bem, sr. Saraiva; organize o ministério e governe
como entender, que eu não lhe oporei embaraços”.
Sobre as disposições de espírito com as quais Pedro II
encarava uma eventual transformação política e constitucional
do seu país, existe um documento escrito de seu própri o
punho. É uma nota por ele lançada no livro, Império e
República Ditatorial, de Alberto de Carvalho, no seu exílio de
Versalhes, com data de 1º de junho de 1891. Aí se encontra a
maravilhosa explicação de toda a sua grande vida de rei e de
incomparável cidadão. Diz o monarca destronado: “Desejaria,
repito, que a civilização do Brasil já admitisse o sistema
republicano, que, para mim, é o mais perfeito, como podem sê lo as coisas humanas. Creiam que eu só desejava contribuir
para um estado social em que a república pudesse ser
“plantada”, para assim dizer, por mim, e dar sazonados
frutos. Como seria ela produção natural, não poderiam
preocupar-me os direitos de minha filha e netos”.(66)
Na história de nenhuma das monarquias do mundo
moderno poderia ser encontrado um documento semelhante.
Pedro II, educado pelos seus compatriotas que haviam
revolucionariamente
encerrado
o
primeiro
reinado,
inteiramente escapou às influências da tradição monárquica,
trazida da Europa com o seu avô, Dom João VI, e transmitida
ao seu pai, com a coroa do novo império. Essa tradição, que
em outras circunstâncias teria formado o fundo e a base
sentimental do seu caráter, depois de uma precária instalação
de trinta e sete anos, daqui partira em 1831, com Pedro I e as
damas da corte, todos recambiados de volta e de uma vez ao
velho mundo. Quem ficou no paço de São Cristóvão foi apenas
um pequeno brasileiro, sobre cuja inteligência, ainda não
205
formada, entrou logo a trabalhar uma educação de forte
espírito local, toda inspirada nos costumes e nas idéias do
nosso povo.
Posta ao lado destas considerações necessárias, aquela
nota, lançada à margem de uma leitura evocativa num instante
de saudade, assume imediatamente para nós um intenso poder
de revelação. Aí, como à súbita claridade de um r elâmpago,
projeta-se em síntese toda a grande missão histórica do
segundo reinado. Passados aqueles trinta e sete anos – da
chegada de Dom João VI à partida de Pedro I – acrescidos do
indeciso e tumultuário período da Regência, essa missão
consistiu toda em reatar completamente as livres tradições da
nossa primitiva formação nacional, para conduzi-las, em
segura e metódica evolução, até as fórmulas mais perfeitas e
adiantadas
da
grande
república
moderna.
Assim
compreendemos o sentido exato e profundo daquelas palavras
do imperador e a sua absoluta sinceridade. A transformação
final da monarquia representativa em república democrática,
dentro do sistema parlamentar, era o termo natural do segundo
reinado. Pedro II, como qualquer dos grandes espíritos do seu
tempo, não escapava a esta convicção, nem tinha a fraqueza
de tentar iludi-la. Os últimos anos da família imperial do Rio
de Janeiro chegam mesmo a ser um melancólico e tocante
exemplo de resignação. Contemplando com enlevo os
progressos do Brasil, desejando ardentemente que eles fossem
sempre maiores, mais amplos e mais completos, todo mundo
nos círculos de São Cristóvão sentia muito bem que o império
se extinguia. Lá fora, na agitação dos meios partidários, já se
discutia francamente a quem caberia a proclamação formal do
novo regime. O Barão de Cotegipe afirmava com veemência: 206
a república deverá ser feita por nós conservadores, porque, se
o for pelos liberais, desunidos e desorientados com estão, não
serão capazes de manter a integridade deste colosso, a qual
vale mais do que a sua forma de governo.(67) Era fato previsto
para muito breve, e logicamente considerado como inevitável.
Ora, não é crível, em face de todos estes elementos de
informação, que o Visconde de Ouro Preto, ao apresentar ao
parlamento o gabinete de 7 de junho de 1889, estivesse
realmente certo de poder protelar indefinidamente a
proclamação da república. Já era mesmo conhecido o seu
pensamento sobre a forma a dar à transferência final da
soberania da coroa para os representantes do povo. Falando no
senado em 1883, ele realmente se referira à possibilidade da
câmara dos deputados votar a mudança do regime. Em meio à
sensação produzida pelas suas palavras, o Barão de Cotegipe
perguntou-lhe se achava então que a câmara tivesse capacidade
para tanto. Ele respondeu com perfeita segurança: “A câmara
atual não; mas uma outra que haja recebido poderes para tal
fim, certamente o poderá fazer”. O mais provável portanto é
que o velho ministro da marinha da campanha do Paraguai,
depois de ouvir a Pedro II e entender-se com o Conselho de
Estado, tenha aceitado o árduo e extremo encargo dos últimos
retoques na grande obra do segundo reinado, dispondo o Brasil
definitivamente para a completa democracia, na sua forma
normal de expressão: a república.
A abolição do elemento servil, pela sua universal
significação social e econômica, era, sem a menor dúvida, o
artigo primeiro e de mais urgente aplicação do programa
radical de 1869. Apesar dessa medida não haver merecido esse
lugar na disposição ordinal daquela relação de princípios, sem
207
ela realizada, as demais reformas não encontrariam ambiente,
tornando-se portanto prematuras. Mas, a própria sucessão
cronológica tendo-se encarregado de restituir-lhe essa
colocação necessária, uma vez ela obtida, estava aberta sem
parada ou retrocesso possível a fase final da nossa evolução
democrática. A plataforma do gabinete de 7 de junho, a
conjugar as suas reformas políticas com as disposições
econômicas e financeiras que inauguravam o novo regime do
trabalho livre, era bem o testamento de uma época. A situação
que convertesse em lei aquelas sugestões só podia ser
substituída por uma situação republicana. O programa radical
de 1869, que lograra converter-se ali em programa de governo,
era tanto e tão completamente a república, que o partido
republicano, organizado em 1870, jamais encontrou, em toda a
sua propaganda, coisa alguma de positivo a acrescentar-lhe. O
manifesto inicial dessa agremiação política, apesar de traçado
pela pena percuciente e vivaz de Aristides Lobo e aceito com
entusiasmo pelas mais ativas inteligência do radicalismo, nada
lhe pôde aduzir, limitando-se tão-somente a uma longa e
eloqüente dissertação abstrata. A ação do novo partido, em
face das demais correntes da opinião nacional, ressente-se
constantemente dessa completa ausência de base objetiva e
mesmo de fiel orientação doutrinária. O manifesto do
congresso republicano de São Paulo, reunido a primeiro de
julho de 1873, fala da abolição nestes termos indecisos e
francamente suspeitos: “Sendo certo que o partido republicano
não pode ser indiferente a uma questão altamente social, é
mister entretanto ponderar que ele não tem nem terá a
responsabilidade de tal solução, pois que antes de ser governo
estará ela definida por um dos partidos da monarquia”. Os
208
deputados republicanos, quando o partido chega a mandar ao
parlamento os seus representantes não destoam muito dessa
atitude oportunista e de cautelosa e deselegante passividade
moral. Eles vacilam constantemente entre os liberais e os
conservadores, pendendo com mais freqüência para os
segundos.
A propaganda nascida com o manifesto republicano de
1870, como lançamento e difusão de novas idéias, é
absolutamente nula. Ela apenas acompanha a nossa evolução
anterior, sem nada lhe adiantar e a ela subordinad a, como um
canal que se destacasse de uma caudalosa torrente, para a ir
seguindo paralelamente, sem jamais ultrapassá-la em nível
nem em velocidade. Num percurso que já nos permitimos
extremar mais ou menos no ano de 1895, esse canal teria de
ser necessariamente reabsorvido na grande caudal primitiva,
quando os princípios radicais de 1869 se encontrassem
integralmente realizados, com todas as suas previstas e
inevitáveis conseqüências de forma de governo.
Mas, essa corrente subsidiária da propaganda
nominalmente republicana, ou especialmente designada com
esse nome, veio cair a ebulição insólita e tumultuária da
questão militar.
E sobreveio o acidente de 15 de novembro...
NOTAS
(61) Não valeria a pena mencionar a transitória e infeliz participação dada
aos negros, logo depois da abolição, na política de alguns Estados do Sul,
participação essa donde nasceram, sob a inspiração inferior dos carpet
baggers, os chamados governos dos saturnaes. Tudo aquilo, vindo após o
assassinato do presidente Lincoln, não passou de uma vingança dos
209
políticos do Norte contra os vencidos do Sul. Era evidente que os negros
americanos, recém-extraídos do cativeiro, não poderiam, sem o mínimo
preparo intelectual e moral anterior, ocupar decentemente funções
governativas. Foi preconceito de raça e surgiu a vergonha nacional da Ku Klus-Klan.
(62) Por decreto de 15 de junho de 1889 foi a câmara dos deputados
dissolvida, convocando-se uma outra para 20 de novembro do mesmo ano,
em sessão extraordinária. Essa nova câmara terminaria o s eu mandato em
1892. A nova legislatura seria a de 1893 -1895.
(63) Existem duas edições desse livrinho. A última foi feita em 1906, nos
estabelecimentos gráficos de Benzinger & Cia., de Einsiedeln, na Suíça.
(64) Pág. 8, da edição Benzinger.
(65) Saraiva, ao mesmo tempo que confirmava a sua certeza na
inviabilidade do terceiro reinado, também prestava, empregando o texto
evangélico, uma homenagem ao bom coração da Condessa d‟Eu, que,
ardente defensora da abolição, firmara com imensa alegria, como regente
do Império, a lei de 13 de maio de 1888.
(66) O exemplar do Império Ditatorial, de Alberto de Carvalho, onde está
escrita esta nota, encontra-se hoje no arquivo do Instituto Histórico e
Geográfico do Rio de Janeiro.
(67) Coelho Rodrigues, op.cit., pág. 6.
CONCLUSÃO (Parte Final)
Transportando agora este conceito geral da democracia
moderna ao quadro das atuais condições políticas do Brasil,
resta atender à consideração tão insistentemente formulada de
que o nosso povo ainda não apresenta os requisitos
210
indispensáveis à posse de um muito adiantado sistema de
governo.
Este modo de ver é a conseqüência natural do completo
falseamento de idéias e de fatos em que entre nós se
transformaram os estudos políticos e a exposição histórica, a
partir de 1889, e ao qual já longamente nos temos referido em
todo o correr deste trabalho. A história do Brasil, como país
independente, divide-se muito exatamente em três períodos
sucessivos e muito vem caracterizados, dos quais os dois
extremos, mantendo de um para o outro as mais íntimas
relações de semelhança, inteiramente se diferenciam do outro
que lhes fica de permeio. O primeiro destes três períodos,
começando na proclamação da Independência, em 7 de
setembro de 1822, e abrangendo a fase da Regência, termina a
22 de junho de 1840, com o golpe da Maioridade. O segundo
compreende, sem interrupção alguma, todo o grande reinado
do imperador Pedro II, consistindo o terceiro, finalmente, na
república de 15 de novembro, que, partindo da rebelião militar
de 1889, vem até os dias atuais, no governo discricionário do
sr. Getúlio Vargas.
Nos dois períodos extremos, o governo, praticamente e
por princípio, assenta na vontade pessoal do chefe do Estado.
A vida do país é uma desordem permanente, marcada por
sucessivos golpes de força que, sendo a anulação progressiva
da liberdade, no domínio das relações políticas, é também, no
terreno dos interesses econômicos, uma desoladora e constante
marcha para a bancarrota e para a miséria. O Brasil, a viver
inquieto e perturbado no interior, como a grande nação que
realmente é. No período intermediário, transportadas as fontes
iniciais do poder público na pessoa do chefe do Estado à
211
autoridade coletiva do parlamento, tudo se transforma. A paz
interna se restabelece com a liberdade, imediatamente
resultando, desse alto conjunto de condições morais, o
equilíbrio financeiro e a prosperidade econômica geral, O país
tem uma política externa baseada em vistas próprias, que
nobre e eficazmente faz valer no conceito internacional,
enquanto o seu alto câmbio monetário vai revelando a honrosa
e justa medida do seu crédito nos mercados do exterior. Pela
liberdade, assegurada nos métodos parlamentares, automa ticamente nos aproximamos da fórmula socrática do bom
governo: aquele que assegura a confiança no interior e o
respeito no exterior.
O simples cotejo desses três períodos históricos,
tomados mesmo como termos de relação matemática, já seria o
bastante para nos fazer nitidamente ver onde está a justa e
necessária solução de todo esse terrível e angustioso problema
que é hoje a nossa política geral. Uma vez que não tenhamos
completamente renunciado aos métodos comuns do raciocínio,
impossível será fugir à lógica desta simples dedução. Dizem nos porém, como último argumento da passividade e do
desânimo, que hoje não temos mais os grandes e nobres
estadistas que o segundo reinado produziu. A crise é de
caráter, segundo afirmam, nada de melhor sendo possível, no
baixo nível moral a que descemos. Fala-se da desolante
mediocridade dos homens públicos, do analfabetismo geral da
população, e deixa-se cair os braços de puro desalento, sem
excluir uma certa dose de irônico e superior desinteresse...
Ora, se o Brasil, quando contava apenas dez, doze,
quatorze ou dezesseis milhões de habitantes, ligados entre si
através do seu imenso território por meio de transportes e
212
comunicações que estavam bem longe de ser satisfatórios;
quando dispunha apenas de cinco escolas superiores, com um
serviço de instrução primária que, existindo nas cidades e nas
vilas, desprezada as povoações e os arraiais do interior; se, em
tais condições, já podia realizar um verdadeiro modelo de
moral política e de seriedade administrativa sob o governo
representativo de forma parlamentar, porque não pode4ria ele
agora, se o restabelecessem naquelas bases tradicionais da sua
evolução, fazer qualquer coisa de aceitável, quando a sua cifra
demográfica iguala a da França, da Itália ou da Inglaterra;
quando os seus serviços ferroviários, a sua navegação
marítima e fluvial, as suas estradas, automóveis e as linhas de
navegação aéreos que o atravessa, ligam os centros populosos
entre si mais afastados de toda a sua extensão territorial, em
tempo máximo de um mês e mínimo de apenas quatro dias;
quando em uma ou duas horas nos comunicamos pelo telégrafo
com os nossos compatriotas de qualquer ponto, desde as
grandes florestas do Amazonas às extremas do Rio Grande do
Sul e de Mato Grosso; quando a radiotelefonia, no mesmo
instante, faz ouvir em Santo Antônio do Rio madeira, em Brejo
de Areia ou em Santa Rita do Araguaia a mesma ária cantada
ou a mesma exortação proferida nos estúdios do Rio de Janeiro
e de São Paulo; quando as faculdades de Direito se contam
pelo número dos Estados, com diversas escolas de Engenharia,
de Medicina e múltiplos outros institutos científicos de criação
pública e particular de todo gênero, sendo especialmente de
notar que a instrução primária já vai, na sua grande difusão
pelo país inteiro, muito além do que ainda, a tal respeito,
deixam supor as nossas queixas habituais? ...
213
Não temos estadistas?... Isso não prova que se haja
alterado o velho caráter do nosso povo, em que o grau da
cultura brasileira tenha diminuído. Prova apenas que o regime
de 15 de novembro, pela sua natureza despótica e opressora,
exclui necessariamente as formas superiores da inteligência,
pois transforma a vida pública num baixo concurso de
interesses, para cuja promoção e em cuja defesa a insídia e a
sobrevivência, aliadas a uma proporcional arrogância para com
os fracos, são as qualidades mais preciosas e eficazes. Não
faltam ao Brasil homens cultivados e de grande inteligência. O
que falta é o ambiente político no qual os seus predicados
possam manifestar-se em função da vida coletiva. O próprio
analfabetismo, de que tanto nos falam como irrecusável
motivo de protelação mais ou menos indefinida de um regime
de liberdade, é um argumento que, lançado por muitos sem a
mínima reflexão, da parte dos beneficiários das atuais
condições políticas, constitui uma simples artimanha.
Certamente o Brasil não tem, ainda uma organização de
instrução primária em satisfatória correspondência com a sua
cifra demográfica e a sua extensão territorial. Dizer, porém,
que o seu coeficiente de analfabetos se eleve a 90 ou 80%, é
uma alegação que, para fundar-se de alguma forma, precisa
recorrer a dados estatísticos do primeiro recenseamento feito
pela República, quando ainda influíam muito de perto as
condições sociais da passada escravidão. Não só a instrução
pública e particular se desenvolveu, daí para cá, em proporção
muito acima do crescimento geral da população, isto é,
determinando um número sempre muito maior de alfabetização
para um igual número de habitantes, como a nossa organização
escolar e os nossos métodos de ensino, em alguns Estados,
214
chegaram a ultrapassar o que, no gênero, exista mesmo em
alguns países europeus. Não há mais das jovens gerações
brasileiras a espécie de aversão supersticiosa do alfabeto, que
ainda se nota nas classes rurais e mais pobres de certos povos
que conhecemos. Não saber ler e escrever constitui aqui, n o
consenso geral do povo, a inferioridade, por assim dizer,
inicial dos indivíduos, sendo, confessadamente, a maior
vergonha para aqueles que em tais condições se reconhecem.
A não ser em habitações isoladas pelos sertões ou em certos
ermos do litoral, não há lugar privado de escolas regulares
onde não se encontre um professor de fazenda, um velho
padre, uma tia velha mais sabida, enfim, qualquer pessoa que,
mais ou menos, não se dedique ao nobre dever de ensinar os
primeiros rudimentos da leitura e da escrita. O analfabetismo,
com a extensão que lhe querem dar certos sociólogos
indígenas, não existe. Os mato-grossenses afirmam que no seu
Estado a porcentagem de analfabetos não vai além de 15. Em
Goiás, ela é calculada em 20. Trata-se de duas das nossas
regiões de território mais extenso e de menos e mais
disseminada população. Que motivos haveria para que as
coisas se passassem de modo diferente nos Estados mais
povoados e de maior adiantamento como São Paulo, Minas
Gerais, Rio Grande do Sul, Bahia, ou Pernambuco?... Mesmo
dando todos os descontos imagináveis, pode-se seguramente
garantir que a média do analfabetismo no Brasil, representada
sobretudo por indivíduos maiores de 50 anos e imigrantes
estrangeiros, não ultrapassa nunca a cifra de 30, sobre cada
centena de habitantes.
Não há nas condições sociais do Brasil atual coisa
alguma que se oponha realmente à sua volta imediata a um
215
regime político de liberdade. O essencial é que, enfim, nos
convençamos de que a liberdade política não é um voto
abstrato ou um simples motivo a meras dissertações teóricas –
mas uma coisa prática, que concretamente se expressa e
praticamente se realiza num sistema de leis claras e objetivas,
cujo mérito inicial esteja exatamente em prevenir e vedar com
vigilante intransigência toda e qualquer intervenção dos
processos governamentais e administrativos que lhe são
contrários. A técnica deste sistema, nós, para encontrá -la, não
temos mais que recorrer à nossa própria formação política
anterior, desprezando as pobres e lamentáveis fantasias nas
quais nos perdemos a partir de 1889. O trabalho que se oferece
a nossa inteligência nem mesmo chega a ser uma criação nova:
- é uma simples reparação. Reparemos o grande erro de 15 de
novembro, que se espelha no pretensioso e vazio documento
de 24 de fevereiro, erro imenso, cujas conseqüências nos
vieram arrastando até ao ponto de duvidarmos da grandeza de
nossa pátria, da sua esplêndida coesão nacional, do seu futuro
e da nossa própria dignidade de homens.
Trazido a um plano mais vasto e em muito maiores
proporções pelo seu crescimento vegetativo ou pela simples
ação do tempo, o Brasil ainda se encontra nas mesmas
condições para a revelação definitiva das suas grandes
faculdades nacionais, em que o deixou a monarquia em 1889.
A não serem os sofrimentos da última geração do império e
das que se lhe seguiram até agora, nada de realmente concreto
e profundo se perdeu. O nosso patrimônio nacional está intacto
e moralmente ainda somos uma das mais vividas e maiores
nações da terra. As grandes dificuldades que ora se nos
apresentam nos devem servir exatamente para nos dar a
216
consciência dos desvios em que caímos e a firma e clara
decisão de corrigi-los. Socialmente, não temos problemas
profundos a resolver, e, economicamente, os embaraços atuais
não resistiriam certamente a simples mudanças dos métodos
administrativos que o produziram. A bem dizer, não há aqui
nenhum problema econômico, porque problema econômico não
pode existir racionalmente num país de oito milhões e meio de
quilômetros quadrados de terras férteis e imensamente ricas,
para 41 milhões de habitantes. O que há é apenas um problema
político, isto é, uma política geral profundamente errada,
donde resultou uma política econômica evidentemente
absurda, que nos faz viver contra os nossos interesses naturais
e fora do próprio senso comum. Faça-se desaparecer essa
causa inicial, e veremos como tudo se resolverá pela simples
reposição das coisas na sua ordem justa e natural. Para isto
precisamos realmente de novos hábitos políticos e de novos
métodos administrativos; precisamos de uma nova cons tituição, cujo espírito se funde nas qualidades práticas do
nosso povo e na índole da nossa evolução histórica, e não em
maravilhas de concepção abstrata, como se pretende a 24 de
fevereiro. Basta que ela se concretize, no ambiente
republicano, que, feita a Abolição, se destinava a realizar
quase integralmente o grande programa radical de 1869 – que
este era verdadeiramente a república, a nossa república, a
grande e livre República Brasileira, herdeira legítim a e
imediata da monarquia liberal, da nobre “democracia coroada”
do imperador Pedro II.
Na crítica que, no nosso Cap. XIII, nos permitimos
fazer da constituição de 24 de fevereiro, já deixamos indicada,
em suas linhas gerais, qual deveria ter sido, racionalmente, a
217
nossa evolução constitucional, na passagem da monarquia para
a república. Pela transformação do Brasil, de império
hereditário, em grande país republicano, devia-se tratar apelas
de conjugar a “plena autonomia dos municípios e províncias”
pedida pelo ministro Ouro Preto no seu discurso de 11 de
junho de 1889, com “a abdicação da coroa nas mãos do
parlamento”, tal como o conselheiro Saraiva a aconselhara ao
imperador, na entrevista que tiveram em março daquele ano.
Esta deveria ter sido a nossa entrada inteligente e natural no
regime republicano. A autonomia dos municípios e províncias
(ou Estados, como depois se resolveu chamar...) estaria
regulada com exatidão na constituição geral do país, de modo
a nela encontrar as suas garantias eficazes, com ela
intimamente se harmonizando, pelo emprego obrigatório do
sistema parlamentar, em qualquer das três esferas da nova
organização política. Ao invés disto, a abdicação da coroa,
tacitamente obtida na generosa submissão de Pedro II ao golpe
de 15 de novembro, deu-se nas mãos do presidente da
República que, pela redução do parlamento a uma assembléia
de simples funções orçamentárias, imediatamente revestiu -se
de todos os caracteres essenciais do déspota, na exata
compreensão antiga. O sistema tinha necessariamente que
generalizar-se ao país inteiro, pela submissão, de fato e de
princípio, dos congressos estaduais e das câmaras municipais
aos presidentes de Estado e aos prefeitos de municípios. Este
foi o erro; este é o erro que precisamos, que devemos
urgentemente reparar. E aí está a revolução que todos
desejamos e ainda não fizemos, a única a fazer, a revolução
necessária.
218
(Transcrito da edição da Coleção Reconquista do Brasil, vol. 153; Belo
Horizonte, 1989)
219
A QUESTÃO MILITAR
Nota introdutória de Antonio Paim
Além dos aspectos antes destacados, José Maria dos
Santos notabiliza-se pela forma original como interpretou a
chamada Questão Militar. Naturalmente, não se requer maior
acuidade para dar-se conta de que, justamente aquele evento
definiu a forma pela qual seria implantada a República: através
de um golpe de Estado que, de pronto, asseguraria a
hegemonia do Exército no novo regime.
Apesar disto, passaria desapercebido o fato de que não
havia, no seio da alta hierarquia militar, qualquer
predisposição naquele sentido. O desfecho verificado deve-se,
basicamente, à capacidade demonstrada por Quintino Bocaiuva
(1836/1912) de obstar, sistematicamente, as diversas tentativas
de minimizar os desencontros entre alguns oficiais do Exército
e as instituições.
Como demonstra o notável historiador, Quintino estava
convencido de que o encaminhamento dado à campanha
republicana não propiciaria a antecipação do que, a que tudo
indica, seria a busca de uma alternativa para o Terceiro
Reinado. Como sua atuação deixa entrever claramente,
perseguiu obstinadamente a solução militar.
O desenvolvimento que José Maria dos Santos
facultaria à sua tese encontra-se na parte introdutória do livre
Bernardino de Campos e o Partido Republicano Paulista
(Rio de Janeiro, José Olímpio, 1960), adiante transcrita.
220
Precede-se uma breve caracterização do processo da
Independência e da fase em que se estruturaram as instituições
do governo representativo. A nota dominante desse período é a
evidência de que elite passou a dar preferência à solução
pacífica dos problemas emergentes, encontrando sempre a
maneira adequada de alcançá-la.
Escreve, a esse propósito: “É evidente entretanto que os
estadistas e os homens de pensamento no Brasil, com a
educação política dos oitenta e um anos (quase um s éculo) da
independência, que vêm de 1808 a 1889, não podiam
compreender a ascensão final do seu país à democracia
completa, no regime republicano, senão por evolução legal das
instituições anteriores. Dentro das condições históricas que
temos examinado, o Brasil – caso único, na América – tivera a
ventura de operar o seu desenvolvimento político em paralelo
com os povos mais cultos e adiantados do Velho Mundo,
passando do poder absoluto para a liberdade, por transferência
progressiva da soberania do rei para a nação, segundo o
processo representativo parlamentar. Depois da penosa e longa
experiência do primeiro Império e da Regência, de maneira
alguma chegavam eles a pensar na extinção da Monarquia por
um golpe de força, mais ou menos assemelhado aos
desconcertantes e intermináveis pronunciamentos do mundo
hispano-americano. As mutações políticas daquele gênero,
havendo sempre falhado aqui, não estavam na nossa índole
histórica nem era dos nossos hábitos.” (págs. 19/19, da edição
citada).
Segue-se a transcrição da caracterização que
empreende, da Questão Militar, no livro mencionado.
221
TEXTO DE JOSÉ MARIA DOS SANTOS
CAPÍTULO II
PEDRA DE TROPEÇO
A Questão Militar, a nosso ver, não foi senão uma das
muitas conseqüências psicológicas da longa luta política da
Abolição. O permanente estado de exaltação em que viveu o
Brasil desde que se tornou patente a insuficiência da Lei do
Ventre Livre, não podia deixar de ir mais ou menos atingindo e
comprometendo os vários fundamentos da autoridade. Não é
fácil a muito rigorosa observância de regulamentos e estatutos,
num país em contínua agitação, tocando com freqüência às
raias da rebeldia ou da revolta. Dada a grande flexibilidade das
nossas instituições e dos nossos costumes políticos daquele
tempo, sempre capazes de iludir ou contornar os mais agudos
pontos de fricção, a estrita ordem material, na vida pública,
não deixou de ser mantida. Não se poderia entretanto evitar o
constante e crescente desassossego dos espíritos, a manifestar se com maior ou menor evidência nas naturezas mais sensíveis
e exaltadas. A disciplina coletiva é sempre função de um certo
estado mental de conjunto, envolvendo as diferentes camadas
sociais, e por aí interessando imediatamente o poder público.
Sem uma certa calma dos espíritos não há correto
entendimento dos vários interesses, pois a predisposição geral
é continuamente reatora. Este é sem dúvida o sinal
222
característico desses grandes períodos de evolução, sem os
quais talvez não houvesse progresso na vida das nações. Mas,
por isso mesmo que se trata de romper um certo equilíbrio, em
procura de um outro sobre novas bases, tudo passa a tender
facilmente ao debate ou à discussão. A constante agitação dos
meios políticos e partidários, com as suas fáceis imputações de
violência e as suas mútuas invectivas, diminuindo a confiança
nas soluções justas e adequadas, vai comunicando-se aos
vários ramos da vida coletiva, por toda parte instigando às
atitudes de réplica ou de defesa. É o próprio processus da
oposição, nos seus momentos decisivos...
Este foi o estão de ânimo que se foi transmitindo, não
dizemos às fileiras do Exército, mas pelo menos aos elementos
mais ativos e destacados do seu corpo de oficiais em quase
todas as guarnições, a começar pela da corte.
A primeira manifestação da chamada Questão Militar
vem certamente do gabinete Sinimbu, de 5 de janeiro de 1878.
O mundo político e parlamentar, partindo sempre da questão
fundamental da Abolição, agitava-se fortemente em torno ao
projeto do voto direto, que devia completar, com progresso
eleitoral, a lei do terço ou das minorias, de 20 de outubro de
1874. A Câmara dos Deputados havia sido dissolvida em 1877,
só tendo sido possível reunir-se uma outra, em sessão
extraordinária, a 15 de dezembro de 1878. Nos primeiros dias
de 1879 a Comissão de Marinha e Guerra dessa nova Câmara
propôs um aditivo à lei de fixação de forças, mandando
diminuir o número das praças de pré nas várias unidades do
Exército, extinguindo um posto de alferes em cada companhia,
fundindo os vários corpos científicos em um só e eliminando
em todas as armas o posto de tenente-coronel e as graduações
223
de furriel e anspeçada. Na Marinha, o mesmo aditivo
prescrevia a supressão do Conselho naval, a redução dos
quadros de combatentes e comissários, a diminuição dos
vencimentos dos maquinistas e a extinção do Batalhão Naval.
Tudo leva a crer que se tratava de medidas de heróica e
rigorosa economia Já estavam estas disposições aprovadas em
segunda discussão quando se deu, exatamente no dia 11 de
maio e no prédio nº 83, da Rua 7 de Setembro, uma grande
reunião de oficiais de terra e mar que, condenando essas
reformas, como foi dito, por ferirem de morte as corporações
militares, resolveu nomear uma comissão que as viesse
analisar e combater pelos jornais... Foram designados, pelo
Exército, o general Francisco Carlos da Luz, o Major Sena
Madureira, os engenheiros militares Jacques Ourique, Luís
Mendes d Morais e Garcez Palha e, pela Marinha, o Capitão de-Mar-e-Guerra Eduardo Wandenkolk, o Comandante
Saldanha da Gama, os Primeiros-Tenentes Pinto Bravo e
Garcez Palha, o oficial de Fazenda Lima Franco e o
maquinista Gabriel Ferreira da Cruz. A discussão abriu-se logo
e com grande sensação pelos Apedidos do Jornal do
Comércio.(14)
Ora, além de um aviso já existente desde 1859, um
outro fora expedido a 14 de setembro de 1878 vedando aos
militares a faculdade de manifestar-se pela imprensa sobre
objeto de serviço, sem prévia autorização do ministro
respectivo. Seguiram-se portanto várias reações de caráter
administrativo, dando em resultado algumas sanções
disciplinares que, regularmente, puseram termo ao incidente.
Mas o aditivo parlamentar foi abandonado, sendo os artigos do
224
Jornal do Comércio logo depois reeditados em volume, sob o
título característico e muito sugestivo de Questões Militares...
Este foi realmente o início. Em 1883 o caso reproduziuse. Tendo deixado a 23 de maio daquele ano a presidência do
gabinete de 3 de julho de 1882, substituído pelo gabinete
Lafaiete no dia 24, o Senador Visconde de Paranaguá
apresentou à sua Câmara, no mês de junho, um projeto de lei
criando um montepio de contribuição obrigatória para os
militares e alterando as condições da reforma no Exército e na
Marinha. Deu-se imediatamente uma reunião no gênero da de
11 de maio de 1879, com designação de uma nova comissão
que, recebendo desta vez o nome de Diretório de Resistência,
delegou os seus poderes individualmente ao já então Tenente Coronel Sena Madureira. Dada a habitual impetuosidade desse
oficial, que era realmente um brilhante polemista, a discussão
impressa assumiu logo um caráter de grande veemência(15).
Seguiram-se as mesmas reações administrativas, mas, não
tendo ido por diante o projeto Paranaguá, não advieram
maiores conseqüências. Com este renovo, entretanto, ficou
definitivamente lançada perante o público a questão do livre
direito dos militares de discutir, como quaisquer outros
cidadãos, os negócios governamentais de qualquer espécie que
os tocassem de perto(16).
No ano seguinte os ânimos inflamavam-se novamente,
desta vez partindo de um incidente imediatamente ligado à
Abolição. No mês de abril, a Confederação Abolicionista
acolhia em grande festa no Rio de Janeiro o jangadeiro
cearense Francisco do Nascimento que, ajudado pelo Clube do
Cumpim de Pernambuco, muito se distinguira a passar
escravos de vários pontos do Nordeste para a sua província.
225
Levado a visitar a Escola de Tiro de Campo Grande,
Nascimento recebe dos alunos uma manifestação estrepitosa,
com tácito assentimento do comandante, que era muito
exatamente o Coronel Sena Madureira. Noticiado o fato pelos
jornais, manda o ajudante-general do Exército ao comandante
que o informe do ocorrido para fins disciplinares. Sena
Madureira responde que nada tem a informar àquela
autoridade, uma vez que a sua escola depende diretamente do
diretor-geral da artilharia, o marechal Conde d‟Eu... O
Ministro da Guerra interessa-se pelo assunto, mandando
demitir e repreender em ordem do dia o comandante. Este em
seguida é transferido da corte para o Rio Grande do Sul.
Sena Madureira, naturalmente, não se esqueceu de
trazer o incidente para os jornais, determinando um grande
interesse entre os seus camaradas que definitivamente o
passaram a ver como o herói dos seus direitos civis,
esquecidos pelos políticos. A atmosfera de agitação em torno a
essas pretensões não fez senão se acentuar. No decorrer de
1885 surge um novo caso. O Coronel Cunha Matos, em serviço
de inspeção, descobre irregularidade nos fornecimentos a uma
companhia isolada com sede no Piauí. Imediatamente dá parte
às autoridades superiores, pedindo o afastamento do respectivo
comandante, o Capitão Pedro José de Lima, e a nomeação de
um conselho de guerra que devidamente apure as
responsabilidades. No fundo, tratava-se de um caso bem
simples, no qual Cunha Matos apenas cumpria muito
regularmente o seu dever. Mas surgiram complicações
incalculáveis. Tendo o Capitão Lima retorquido com uma
queixa contra o coronel, a quem acusava de parcialidade de
inspiração política, o Deputado Coelho de Resende quis tomar 226
lhe as dores no Parlamento, dirigindo ao Ministro da Guerra,
Alfredo Chaves, um pedido de informações. O deputado
concitava o ministro a ser discreto e cauteloso, porque,
segundo disse na tribuna, os militares que se imiscuem na
política, não só conhecem as regras da estratégia como têm
ainda a argúcia da raposa. O Coronel Cunha Matos resolve
então – e aí começa o verdadeiro caso – contestar pela
imprensa as observações do deputado, dizendo entretanto não
pretender levantar os insultos que este lhe dirigira na tribuna
irresponsável... Nesta primeira publicação, Coelho de Resende
era dado como parceiro habitual do Capitão Lima no jogo do
solo, na vida provinciana de Teresina. O deputado volta à
tribuna para atacar desabridamente o coronel, acusando-o de,
quando prisioneiro de Lopes, haver-se posto a serviço do
ditador, dirigindo o fogo das baterias paraguaias contra as
nossas posições(17). As cousas tomaram então um curso
francamente lamentável. Treplicando em novos artigos pela
imprensa. Cunha Matos critica o Ministro da Guerra por não
haver sabido dominar o incidente. O ministro chamado à fala
por esta forma, o manda censurar e prender disciplinarmente.
Em tais condições, era natural que no Parlamento alguém
surgisse também em defesa de Cunha Matos. Com todo o seu
prestígio de incontestável herói do Paraguai e grande chefe
liberal na sua província, levantou-se no Senado o general
Visconde de Pelotas. para ele não havia como recusar o direito
de defesa a um oficial ofendido em sua honra. O Senador
Barros Barreto aparteia: se as leis o permitissem... O velho
soldado exalta-se e retruca: Eu não digo que as nossas leis o
permitam: estou dizendo ao nobre Ministro da Guerra o que
eu entendo que deve fazer um militar quando é ferido em sua
227
honra, e que fique sabendo o nobre senador por Pernambuco
que quem está falando assim, assim procederá sem se
importar que haja lei que o vede. Eu ponho a minha honra
acima de tudo! Alfredo Chaves então observa ao orador que o
Coronel Cunha Matos havia sido punido, não pelo que
escrevera em revide aos ataques do deputado, mas por haver
discutido pela imprensa assuntos militares, sem prévia licença,
contra todas as disposições legais.
Apesar de tudo, o incidente parecia terminado. Estava se na segunda metade de 1886. Ressurge porém do Sul o
Tenente-Coronel Sena Madureira. Na edição de 16 de agosto
do jornal A Federação, de Porto Alegre, ele faz uma longa
publicação para comentar o caso Cunha Matos, em função de
tudo quanto com ele mesmo se passara. A sua tese era a de que
os avisos ministeriais, sobre os quais se basearam as sançõe s
tomadas contra Cunha Matos e contra ele próprio, eram
constitucionais, pois feriam de frente a Constituição de 1824
na parte em que assegurava a todos os brasileiros o direito de
livre manifestação do pensamento. Reproduzido o seu artigo
no Jornal do Comércio, do Rio de Janeiro, o ministro da
Guerra, em data em ordem do dia do exército. Não se
conformando, Sena Madureira replica com um memorial
pedindo um conselho de guerra, perante o qual espera firmar a
sua doutrina da inconstitucionalidade dos avisos ministeriais,
para o fim de tornar nulas e fazer cancelar todas as sanções
daquela espécie. As questões de ordem disciplinar escapam
entretanto à alçada dos conselhos de guerra O conselho pedido
é recusado, mantendo-se não somente a punição como sendo
ainda o requerente demitido do comando da Escola
Preparatória e Tática do Rio Pardo, no qual se achava. A
228
Questão Militar precipita-se então no seu período mais intenso
e agitado. Com assentimento declarado do Marechal Deodoro
da Fonseca, comandante das armas e vice-presidente em
exercício na província do Rio Grande do Sul, os oficiais da
guarnição de Porto Alegre realizam uma reunião de classe para
aderir publicamente à doutrina dos avisos ministeriais
sustentada por Sena Madureira. A atitude do Marechal
Deodoro era tanto mais estranha e inexplicável quanto
anteriormente, no exercício das mesmas funções, havia
mandado submeter a processo um oficial subalterno por haver
recorrido à imprensa na defesa de seus interesses particulares.
Interpelado pelo governo e aceitando a responsabilidade do
que se dera, Deodoro é logo retirado daquelas funções e
chamado ao Rio de Janeiro. Mas a sua chegada à corte não faz
senão aumentar a agitação. Recebido em triunfo pelos oficiais
da guarnição, com integral comparecimento da Escola Militar
da Praia Vermelha, ele, ao lado do Visconde de Pelotas, entra
a desenvolver uma grande atividade no sentido de provocar
uma intervenção direta da coroa contra a política seguida no
caso pelo governo. De posse de numerosas adesões enviadas
de todas as guarnições das províncias, menos a de
Pernambudo, onde comandava o Coronel Mallet, ele convoca
para o dia 2 de janeiro de 1887 uma grande reunião de oficiais
no Teatro Recreio Dramático, para tomar deliberações. Era um
verdadeiro meeting popular, bem no gênero e em um dos locais
mais preferidos dos naquele momento tão em voga a favor da
Abolição... A reunião realizou-se com a sala cheia de oficiais
do Exército e da Marinha, e repleta de espectadores civis todas
as demais dependências do teatro. A mesa diretora dos
trabalhos, disposta no palco, sentaram-se, ladeando o marechal
229
os Coronéis Cunha Matos e José Simeão e os Tenentes Coronéis Sena Madureira e Benjamim Constant. Ai foi
aprovada a seguinte resolução: - 1º) Os oficiais de terra e mar,
presentes a esta reunião, não julgam terminado com honra
para a classe militar o conflito suscitado entre esta e o
governo, enquanto perdurarem os efeitos dos avisos
inconstitucionais, que foram justamente condenados pela
imperial resolução de 3 de novembro último, tomada sobre
consulta do venerando Conselho Supremo Militar(18). – 2º)
Pensam também que só a cessação de qualquer medida,
tendente a perseguir os oficiais pelo fato de terem aderido à
Questão Militar, poderá acalmar a irritação e o desgosto que
reinam nas fileiras do Exército. – 3º) Recorrem confiantes à
alta justiça do Augusto Chefe da Nação, para pôr termo ao
estado de agitação em que se acha ainda a classe militar, que
só provas de resignação e disciplina até hoje tem dado. – 4º)
resolvem dar plenos poderes ao Exmo, Sr. Marechal-deCampo Manuel Deodoro da Fonseca, presidente desta
reunião, para representá-los junto ao governo de S. M. o
Imperador, no intuito de conseguir uma solução completa do
conflito, digna do mesmo governo e dos brios da classe
militar.
Esta resolução, tentando colocar-se entre a coroa e o
governo do Parlamento, procurava forçar naturalmente um
golpe de estado... Pero II, entretanto, sempre fiel aos seus
deveres de rei constitucional, negou-se a dela tomar
conhecimento. Não há dúvida porém de que nos meios
políticos e governamentais foi feito um certo trabalho para, de
alguma forma, a ela dar satisfação. Oficiosamente foi
entendido que o governo mandasse trancar as notas referentes
230
a todas as sanções disciplinares oriundas da Questão Militar,
uma vez que os respectivos interessados individualmente o
requeressem. A maioria dos oficiais, no Rio de Janeiro,
pronunciou-se por essa solução, achando-a correta e suficiente.
Mas Sena Madureira e Cunha Matos discordaram. Parecia -lhes
que, se o trancamento das notas era cabível, devia ser
ordenado ex-officio, sem a nova humilhação de um pedido
pessoal. Ao governo cabia portanto penitenciar-se... Trazida
esta objeção para os jornais, com o caráter que não podia
deixar de ter, aquele acordo discreto e tolerante fracassou,
aumentando, por contragolpe, o mal-estar e a irritação. A
declaração do Recreio Dramático, pretendendo dirigir-se ao
imperador por cima do Parlamento e do governo, seguira
evidentemente um caminho errado. O Marechal Deodoro
resolveu mudar de direção. Rui Barbosa foi encarregado de
redigir sobre a questão um longo Manifesto ao Parlamento e à
Nação, que, assinado a 14 de maio pelo marechal, e pelo
general Visconde de Pelotas, logo encontrou publicidade nas
colunas dO País. Os meios parlamentares então emocionaramse, decidindo-se a intervir. Por iniciativa do verdadeiro gênio
de conciliação que era o Conselheiro José Antônio Saraiva,
Silveira Martins subia à tribuna do Senado seis dias depois,
para dizer:
“Sr. Presidente: o governo imperial, por resolução de 3
de novembro do ano passado, tomada sobre consulta do
Conselho Supremo Militar de Justiça, firmou este princípio:
“É livre ao militar, como a qualquer cidadão, o
exercício do direito de liberdade de imprensa sem prévia
censura, e contrária à disciplina qualquer discussão entre
militares sobre objetos de serviço.
231
“Deste princípio deduz-se:
“Que todas as penas disciplinares anteriormente a esta
resolução impostas a militares por uso indevido da imprensa,
fora do caso específico na consulta, constituem outros abusos,
cujos efeitos devem cessar.
“A ordem social não tem mais nobre e elevado fim do
que a justiça, e não haverá justiça enquanto haja militares que
sofram apenas por terem exercitado direitos que o governo
reconhece aos seus camaradas.
“Para que justiça se faça mando à mesa a indicação
seguinte:
“Requeiro que, à vista da imperial resolução de 3 de
novembro de 1886, tomada sobre consulta do Conselho
Supremo Militar, de 18 de outubro do mesmo ano, o Senado
convide o governo a fazer cessar os efeitos das penas
disciplinares, anteriores à resolução, impostas a militares por
uso indevido da imprensa, fora do caso especificado na
consulta do Conselho Supremo como contrária à disciplina do
Exército.”
A interpretação aí dada à resolução de 3 de novembro
aceitava o destinguo, certamente curioso, levantado por Sena
Madureira e Cunha Matos de que as discussões que haviam
mantido pela imprensa não haviam sido discussões entre
militares, mas entre militares e civis, não podendo, portanto,
serem consideradas como contrárias à disciplina, apesar de
versarem, como realmente versaram, sobre exclusivo objeto de
serviço. Mas, posto a votos, o requerimento de Silveira
Martins foi aprovado por 33 votos sobre 34. Contra, votou
apenas o Senador Silveira da Mota. Cotegipe concordou,
232
exigindo apenas que a expressão o Senado aconselha, como
fora escrito anteriormente, fosse substituída pela o Senado
convida, como ficou. Entretanto, tudo encerrado, não pode ele
deixar de confessar que o governo saia da refrega com alguns
arranhões na dignidade...
Mas, assim, tentava-se abafar de uma vez a
inconseqüente e áspera questão.
***
Força será reconhecer que, tanto da parte de Pelotas e
Deodoro, como do lado da oficialidade que se considerava sob
a proteção deles, nenhuma idéia política, compreendida
propriamente no sentido partidário, podia haver em tudo
aquilo. Tratava-se de uma questão de puro espírito de classe,
tendente a uma equiparação desusada e arbitrária dos militares
aos civis, no direito de livre manifestação do pensamento. O
anseio inquieto e mais ou menos absurdo de elevação civil que
ali se nota, era apenas produto do ambiente especial daquele
instante em que todo mudo discutia e perorava, tomado de
irresistíveis propensões para tribuno popular(19). Era a
atmosfera geral da Abolição...
Numa velha sociedade, com as suas várias categorias
solidamente definidas por longa tradição, as cousas talvez se
passassem de outra forma, melhor guardando cada um a sua
exata posição. Mas num país americano recém -egresso da
colônia, que precisamente revia no momento as suas bases
econômicas ou os próprios fundamentos da sua vida social,
233
não havia muito como consolidar certos deveres na defesa
consciente e determinada de dados interesses. A reclamar
como uma prerrogativa de classe o direito de agir como toda
gente, os militares apenas demonstravam que no Brasil
daquele instante não havia classe alguma, tudo encontrando -se
em fase aguda de solução. não se pode negar entretanto que,
devido ao modo peculiar de evolução que nos coubera em
meio aos grandes acontecimentos do início do século passado,
nós já tínhamos uma certa consciência pública, um certo modo
de ser político e sociológico, muito diferente do reservado aos
outros povos do continente. Nem no Exército nem nos meios
políticos verdadeiramente responsáveis alguém pensava em
soldar a Abolição à República, ao calor de uma revolta de
quartéis. A Questão Militar, até a sua penúltima hora, não teve
realmente este caráter, sobre isto havendo provas e
testemunhas irrecusáveis. Em junho de 1890, o general
Visconde de Pelotas, que a ela tanto se ligara, como temos
visto, escrevia ao Visconde de Ouro Preto: O pronunciamento
da guarnição do Rio, que deu um resultado a proclamação da
República, me surpreendeu mais do que a V. Exa. que dele
teve aviso horas antes. Eu, porém, de nada soube até o
momento em que o telégrafo nos transmitiu essa notícia (o
general estava em Porto Alegre); recebendo nessa mesma
ocasião a nomeação de governador deste Estado, que aceitei
para evitar perturbação da ordem pública e talvez mesmo a
guerra civil no Rio Grande do Sul. Não julgava possível a
República enquanto vivesse o imperador, e daí a minha
surpresa(20). Em 1900 foi dado à publicidade o Volume IV da
Década Republicana. O Fascículo IX, no qual se estuda a
administração do Exército no período republicano, foi
234
confiado ao Coronel Cunha Matos, já então elevado ao
generalato. Examinando a mútua situação dos militares nos
dois regimes, aí está como ele recorda a Questão Militar: Sob
o Império, as prerrogativas de que gozavam os oficiais do
Exército, “ex-vi” da Constituição e das leis, jamais foram
violadas por quem mais alto estivesse (pág. 11)... Em 1886, o
Exército do Império, unido, teve bastante força e ombridade
para, levantando a Questão Militar, alcançar notável vitória
parlamentar contra o governo(21). Tratava-se do direito que
tinham os oficiais do Exército de recorrer à imprensa, fora
dos casos não permitidos por disposições expressas (pág. 13).
Insistindo ainda no direito dos militares a manifestarem-se
livremente pela imprensa, o General Cunha Matos mostra bem
as agitações em que tomou parte não iam além de uma formal
afirmação daquele suposto direito, sem outras nem maiores
pretensões políticas. Não deixa também de ser interessante
recordar que o Tenente-Coronel Sena Madureira, para eximirse em 1884 às explicações que lhe ordenava o ajudante-general
do Exército sobre o incidente do jangadeiro Nascimento, na
Escola de Tiro de Campo Grande, se procurava cobrir coma
autoridade do marechal Conde d‟Eu, diretor-geral da artilharia,
de certa forma defendendo senão mesmo exaltando essa
autoridade. Ora, o príncipe consorte, por vários motivos que
de tão propalados na época não vale a pena relembrar, era nos
meios republicanos o menos estimado de todos os membros da
família imperial. Uma das mais freqüentes alegações de
inviabilidade da Monarquia, após a morte do Imperador Pedro
II, era exatamente a possível influência que ele viesse a ter no
reinado de sua esposa. Como explicar então que Sena
Madureira, se já era republicano e realmente agia no sentido
235
da revolução antimonárquica, se quisesse precisamente
acobertar com o prestígio de tão detestada e característica
entidade? Dirão talvez que ele assim fazia por simples
estratagema. Força será porém reconhecer que tal suposição de
nenhum modo se coadunaria com o caráter do impetuoso
oficial, no qual tudo se poderá encobrir, menos uma irredutível
e quase feroz sinceridade.
Ora, a Questão Militar, nem para os homens do
Exército, nem para aqueles outros que por sua posição nela se
viram envolvidos, nunca teve o caráter de uma conspiração
política, preparada com exata consciência e com método
conduzida. Para uns como para outros, foi sempre um caso de
disciplina, disciplina que os primeiros pretendiam rel axar ou
tornar mais flexível, e os outros queriam manter nos limites
legais estabelecidos. A própria resolução do Senado,
convidando o governo a cancelar as sanções anteriores, serve
para demonstrar a completa ausência de um real senso político
em tudo aquilo. Estando no poder um governo conservador e
partindo a moção de senadores liberais, poder-se-ia talvez
descobrir na iniciativa um golpe partidário contra o Gabinete.
Mesmo no Senado houve quem a quisesse assim considerar.
Lançada a idéia da moção por Silveira Martins, com o apoio de
Saraiva, Outro Preto e Francisco Otaviano, logo Sousa Dantas,
Franco de Sá e Cândido de Oliveira discordaram, sob o
fundamento de não desejarem o poder por aqueles meios. Tudo
porém foi explicado. Não se tratava de um ataque ao gabinete,
mas, bem ao contrário, de facilitar-lhe uma saída daquele
impasse. Ouro Preto, para não deixar qualquer suspeita,
insistiu em que realmente o Partido Liberal não poderia voltar
ao governo por um caminho aberto pelas baionetas, sendo
236
secundado por Silveira Martins que ajuntou: O Partido Liberal
não assalta o poder por meio de pronunciamentos militares.
Estas declarações eram profundamente sinceras, pois além dos
motivos morais que as ditavam, havia para as apoiar ainda as
mais sérias razões de caráter partidário. Realmente, entre a
demissão do último gabinete Saraiva e a Abolição, não podiam
os chefes liberais pretender a sucessão do governo Cotegipe. O
esforço que eles faziam no sentido de resolver a Questão
Militar era, portanto, sem o mínimo egoísmo e animado do
mais nobre desinteresse, entrando aliás naquela tendência à
intimidade interpartidária que temos estudado como uma das
manifestações mais características daquele instante. Cotegipe
foi de tudo previamente ouvido e consultado, tendo resu mido o
seu assentimento nesta frase: Sim pois não me viriam propor o
que não fariam se, como eu, fossem governo.
Se a Questão Militar não tinha caráter político nem para
os oficiais que a lançaram, nem para os estadistas da
Monarquia que a tiveram de enfrentar, restaria saber como a
viram os políticos republicanos. Desse lado existe um
documento extremamente conclusivo. É um discurso
pronunciado por Bernardino de Campos na Assembléia
Legislativa de São Paulo no dia 6 de fevereiro de 1888, sobre
cousas da propaganda, imediatamente ligadas à política do
tempo. Mas, aqui, sobretudo para o leitor que ainda não teve
em mãos Os Republicanos Paulistas e a Abolição devemos
intercalar um pequeno retrospecto.
O Partido Republicano Paulista, logo ao nascer em
1873, dividiu-se em dois ramos em torno ao problema da
extinção do cativeiro. De um lado, ficaram, em seu maior
número, os membros do antigo Clube Radical, que, havendo
237
sempre considerado a Abolição como o ponto principal do
seuprogama, mantiveram-se inquebrantavelmente fieis à
campanha libertadora. De outro, tomaram posição os homens
da lavoura, todos proprietários de escravos em suas terras,
que, tendo aderido às idéias republicanas em represália à lei de
28 de setembro de 1871 que libertou os nascituros do ventre
escravo, não podiam aceitar os princípios contra os quais
exatamente se revoltavam. Entre estes dois grupos maiores,
ficou um terceiro, composto de radicais que resolveram
respeitar as reservas antiabolicionistas dos fazendeiros, em
nome da prosperidade ou da pujança do partido.
Dado que o lado dos senhores agrários, somado ainda
aos radicais condescendentes, era o mais numeroso e mais
rico, foi naturalmente o que logo predominou nos pontos
diretores, levando o partido, nas suas manifestações oficiais, a
totalmente desinteressar-se das cousas da Abolição. O outro
lado, a lutar bravamente pela emancipação dos negros, foi
mantido em segundo plano, não merecendo lugares na
comissão diretora nem cadeiras no Parlamento. Mas, tendo a
campanha abolicionista chegado a tudo dominar e absorver na
vida do país, o partido foi caindo num certo esquecimento,
tendendo a minguar, senão mesmo a dissolver-se. Depois de
haver logrado enviar dois deputados ao Parlamento nacional, o
Partido Republicano Paulista, nos fins de 1887, já não sabia
como guardar dignamente a sua posição na Assembléia da
província. Foi então resolvido, a título de salvação, abdicar
francamente perante o abolicionismo. Por decisão conjunta dos
elementos principais do lado agrário, foi eleito deputado ara a
próxima legislatura provincial e elevado à presidência da
comissão diretora o advogado Bernardino de Campos, no
238
momento, a figura mais notável e de maior prestígio do ramo
abolicionista(22).
Muito acatado não só pelos seus antigos companheiros
do Radicalismo como por um grande número de homens novos
recém-chegados à vida pública, não foi difícil ao presidente
recém-eleito imprimir ao partido uma vida nova. Pondo logo
em ação intensiva todos os meios usuais de propaganda da
imprensa diária e da tribuna popular, ele promoveu ainda uma
representação de várias câmaras municipais ao Parlamento do
Império, pedindo a imediata reforma da Constituição de 1824,
nos seus dispositivos sobre a forma do governo. O Barão de
Cotegipe, presidente do Conselho de Ministros, manda ao
presidente da província que faça proceder judicialmente contra
os vereadores tornados responsáveis. Naquele dia 6 de
fevereiro, Bernardino de Campos, já empossado na sua cadeira
de deputado, vem à tribuna da Assembléia defender as câmaras
inculpadas. Da discussão geral então aberta, resultou uma
moção de censura à presidência da província, que, aprovada
por grande maioria com participação dos representantes do
Partido Conservador, que sustentava o gabinete, se converteu
numa demonstração de rompimento da seção paulista daquele
partido com o presidente do Conselho. Ali começou realmente
a crise ministerial que, no dia 7 do mês seguinte, determinava
a demissão do gabinete Cotegipe, abrindo a porto ao governo
João Alfredo, para, dois meses depois, trazer a Abolição. No
seu veemente requisitório contra o Ministério Cotegipe,
Bernardino de Campos não se limitou apenas ao caso
especialmente republicano das câmaras municipais. Abrangeu
toda a vida do gabinete, envolvendo com as suas atitudes
239
perante a campanha abolicionista as suas recentes medidas
sobre os últimos incidentes da Questão Militar.
Mas, avocando ao seu partido a defesa das câmaras
municipais, ao mesmo tempo que oficialmente o articulava ao
movimento abolicionista, ele não pôs menor empenho nem
menor veemência em escoimá-lo de qualquer sombra de
interesse ou simpatia pela escandalosa manifestação de
indisciplina partida dos quartéis. Perante os conceitos que
então emitiu sobre a posição na qual se colocou o governo
Cotegipe ao aceitar a moção de cancelamento das sanções
disciplinares, não há realmente como admitir qualquer ligação
de princípio entre a Questão Militar e a propaganda
republicana. Para ele, tão abusiva e reprovável era a atitude
dos militares, quanto deprimente e lamentável a tolerân cia
contida naquela decisão. Ao concluir o seu discurso, ele
insistiu ainda. Será necessário que eu rememore outra vez as
capitulações aviltantes do poder público, toda vez que o poder
armando se ergue diante dele?... Bernardino de Campos não
somente condenava ser reservas a rebeldia militar, como tinha
por indignos de exercer o poder público aqueles que com ela
condescendiam. Considerando-se que tais idéias partiam do
presidente do PRP, isto é, do elemento naquele instante mais
representativo e autorizado do único partido republicano
realmente existente, temerário não seria admitir que os
verdadeiros republicanos - os vindos ara a República por
evolução consciente e normal do liberalismo – não podiam ver
a hipótese de uma ascensão ao poder ao sabor de um
pronunciamento militar com menor repulsa que Ouro Preto,
Silveira Martins ou qualquer outro dos grandes chefes liberais.
240
Dentro das condições históricas e sociais do povo
brasileiro, a Questão Militar foi bem uma das várias
manifestações do ambiente mental da Abolição. Igual na
origem à confusão dos partidos, e dessa confusão participando
a todo instante, ela naturalmente se resolveria, uma vez
cessada a causa geral da agitação. Só quem não calcular
quando a escravidão se entranhava na vida brasileira, terá
como desarrazoado ou excessivo este conceito. Quando, com a
subversão das bases econômicas da sociedade, as várias
relações se alteram e se deslocam, como manter intangível
uma instituição como o Exército, que, destinada a
materialmente garantir aquelas relações, sobretudo repousa na
obediência? Mas o abolicionismo era apenas um grande
momento de transição. Passado ele, tudo se restabeleceria na
ordem normal da nossa evolução, segundo os nossos velhos
hábitos políticos. Os partidos tradicionais automaticamente se
recomporiam em plano diferente, restabelecendo-se com o
novo equilíbrio das idéias a disciplina geral correspondente.
Assim, devia operar-se a passagem da Monarquia ara a
República, se o fenômeno abolicionista se tem encerrado
normalmente, em todas as suas faces e repercussões, sem
qualquer intervenção estranha ou acidental.
A todos era patente que a Monarquia portuguesa,
naturalizada brasileira na pessoa do Imperador Pedro II,
inevitavelmente se extinguiria com a morte do grande neto de
D. João VI. Todos assim pensavam, todos desta fatalidade
histórica estavam certos. Mas a ninguém ocorria que a grande
transição, aliás bem pouco significativa em sua ausência, se
operasse por um golpe militar. Ninguém queria nem mesmo
acreditava que assim fosse. Para admitir uma possível
241
transformação política do Brasil sob a forma sumária e
primitiva de uma revolta de quartéis, seria indispensável estar
fora da mentalidade brasileira, sentindo contra a nossa índole e
pensando para além das nossas fronteiras nacionais.
Ora, esta era exatamente a posição, ou, melhor, este era
o exótico e forasteiro ponto de vista de Quintino Bocaiúva...
NOTAS
(14) Havendo as autoridades da Marinha concentrado as suas atenções um
pouco especialmente sobre o Comandante Saldanha da Gam a, os seus
companheiros de comissão, apesar de ele não concordar, resolveram
exclui-lo, dando-lhe como substituto o 1º Tenente Pinheiro Guedes.
(15) Aliás, no seu perpétuo conflito com as exigências da disciplina
militar, o Coronel Sena Madureira fôra certamente um predestinado. Já
em 1868, quando ainda oficial subalterno servindo na guerra do Paraguai,
ele chegou, num momento de irritação, a pedir demissão do Exército.
Enviado o seu requerimento ao Marquês de Caxias, para informar, aqui
está o que disse o grande general em chefe dos exércitos aliados: “É
oficial de inteligência e tem mostrado valor, mas é muito insubordinado,
pelo que acaba de cumprir uma sentença, imposta pela Junta Militar, em
conseqüência de ter falado a respeito a um general deste Exér cito,
debaixo de cujas ordens servia. Talvez seja por despeito que agora pede
demissão e parece-me que ela lhe não deve ser concedida, não só porque
não o julgo com direito adquirido, como mesmo porque tal concessão iria
ofender diretamente a disciplina do Exército, além de ser falso que tenha
numerosa família, pois é moço e solteiro.”
(16) No Cap. XI da Política Geral do Brasil, págs. 189 a 201, demos o
projeto Paranaguá como sendo o ponto de partida da Questão Militar.
Orientados porém pelas Efemérides Navais, do Comandante José E.
Garcez Palha (supomos que aquele mesmo 1º Tenente da comissão de
1879), pág. 43, ed. da Tipografia da Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro,
1891, conseguimos agora restabelecer os dados daquele verdadeiro
incidente inicial.
242
(17) Essa acusação, trazida do Paraguai como simples suspeita por
desafetos do coronel, nunca teve a menor confirmação nem o menor
fundamento sério Na segunda batalha de Tuiuti, a 3 de novembro de 1867,
os paraguaios conseguiram apoderar-se, logo no início da ação, de toda a
artilharia de três fortins argentinos, aprisionando ainda o nosso 4º
batalhão de artilharia, com a bandeira e o comandante, que era o então
Major Cunha Matos. Com o material de artilharia assim adquirido, eles
apossaram-se de numerosas peças raiadas, atirando com obuses
cilíndricos, o que representava um grande progresso sobre a sua velha
artilharia de campanha, de alma lisa e bala esférica. Foi daí que lhes veio
o fogo de maior alcance e mais justo que nos puderam dirigir nos dias
subseqüentes, e não da circunstância de terem o oficial brasileiro entre os
seus prisioneiros. O fato de o general Visconde de Pelotas, um dos nossos
chefes mais ilustres em toda a campanha do Paraguai, ter ficado do lado
de Cunha Matos naquela discussão, já é bastante para tirar àquelas
suspeitas qualquer caráter de verossimilhança.
(18) Essa resolução fôra realmente formulada, apoiando -se num parecer
do Conselho Supremo Militar de Justiça, de 30 de outubro daquele ano,
provocado pelo próprio governo.
(19) Numa comunicação feita ao governo em 11 de novembro de 1889,
sobre o recente embarque do 22º de Infantaria para o Amazonas, dizia o
general Barão de Rio Apa: ...antepor a popularidade à disciplina (hoje
um mal de que são atacadas todas as classes)... Vide Ouro Preto, Advento
da Ditadura Militar no Brasil, Imprimerie Pichon, Paris, 1891, págs. 37 e
38.
(20) Vide Tobias Monteiro, Pesquisas e Depoimentos para a História , ed.
Alves, Rio de Janeiro, 1913, págs. 146, 146, 148.
(21) O general faz aí a tácita apologia daquilo que, quando coronel,
chamava a tribuna irresponsável. A liberdade, em qualquer das suas
formas, é realmente como a saúde, cujo valor só conhecemos depois que a
perdemos.
(22) O núcleo inicial do Partido Republicano Paulista foi o Clube Radical,
fundado em São Paulo em 1868 e do qual faziam parte Luís Gama,
Américo de Campos, Bernardino de Campos, Campos Sales, Prudente de
Morais, Francisco Glicério, Martinho Prado Júnior, Jorge de Miranda,
243
Luís Quirino dos Santos, Jaime Serva, Antônio Lôbo e muito s outros. O
Clube Radical, calcado sobre o de igual nome do Rio de Janeiro e
seguindo a orientação local de José Bonifácio (o moço), era abolicionsita.
Em 1870, com o aparecimento, a 3 de dezembro, do jornal A República,
trazendo o Manifesto Republicano, o clube do Rio mudou o nome para
Clube Republicano, no que foi imitado logo pelo de São Paulo, com
adesão de todos os seus membros às idéias do manifesto. Ao mesmo
tempo declararam-se também pelas mesmas idéias o Dr. Américo
Brasiliense e os jovens fazendeiros João Tibiriçá Piratininga, José
Vasconcelos de Almeida Prado e Carlos Vasconcelos de Almeida Prado,
sem entretanto pedirem a sua inclusão no clube. Ficaram um pouco à
parte. Em 1871, como reação à Lei do Ventre Livre, numerosos
fazendeiros da província entraram também a declarar-se republicanos,
com tanto mais decisão quanto Quintino Bocaiúva, nas colunas d A
República, mostrava-se adversário daquela lei. João Tibiriçá e os irmãos
Almeida Prado começaram então a pleitear a fusão dos fazendeiros com
os antigos radicais num só partido, recorrendo para esse fim a Américo
Brasiliense que em ambos os grupos dispunha de grande estima. Américo
Brasiliense aceitou o encargo, promovendo uma primeira conferência que
teve lugar a 17 de janeiro de 1872. Dadas porém a s ressalvas sobre o
problema do cativeiro que os lavradores quiseram fazer incluir nas bases
de programa do futuro partido, a segunda conferência, marcada para dali a
poucos dias, não se realizou, por não haverem comparecido os radicais.
Uma nova reunião foi marcada para 24 de outubro, sem melhores
resultados, o mesmo acontecendo ainda numa outra fixada para 25 de
dezembro. Mas, nas noites de 27 e 28 de fevereiro de 1873 dá -se no Rio
qualquer cousa que profundamente irrita os meios republicanos de São
Paulo. A redação dA República, na Rua do Ouvidor, foi violentamente
apedrejada à visa da polícia, que de nenhum modo de opôs, daí resultando
o fechamento do jornal. Os antigos radicais fizeram então saber aos
fazendeiros que estavam prontos a com eles reunir -se quando quisessem.
Resultou daí a convenção de Itu, de 18 de abril, onde se teve por fundado
o Partido Republicano Paulista, sem contudo tratar -se do programa a
adotar, o que foi reservado para uma nova reunião a realizar -se em São
Paulo, no dia 1 de julho. O novel partido quase aí se despedaça. Luís
Gama não quis aceitar as restrições antiabolicionistas incluídas no
programa, no que foi acompanhado pelos irmãos Campos e muitos outros
dos seus amigos. Graças porém ao hábil e intenso trabalho desenvolvido
por Francisco Glicério ao correr da noite, a reunião pôde recompor -se no
dia seguinte, sendo o programa afinal aceito tal como fôra apresentado. É
evidente entretanto que Luís Gama e seus mais fiéis companheiros na
244
campanha abolicionista, se consentiram em manter-se nos quadros da
nova agremiação, evitando a sua imediata dissolução, só o fizeram com as
mais sólidas e tenazes reservas de consciência. De modo algum se
desinteressaram do movimento libertador, a ele dedicando sem cessar o
melhor das suas energias. Falecido Luís Gama em 1882, Bernardino de
Campos ficou sendo o centro daquele grupo que, associando -se ao
trabalho heróico de Antônio Bento para a evasão dos escravos das
fazendas, enriqueceu-se de um grande número de homens novos, como os
advogados Adolfo Gordo e Muniz de Sousa, os engenheiros Bueno de
Andrada e Garcia Redondo, o médico Silva Pinto e os estudantes Carlos
Garcia, Júlio de Mesquita, Paula Novais e Hipólito da Silva. Foi
exatamente nestes que, em 1887, Bernardino de Campos assentou a parte
mais vivaz e impetuosa do seu esforço de regeneração do PRP. Os leitores
que não leram Os Republicanos Paulistas e a Abolição , onde vem a
história detalhada de todos esses fatos, devem reter esses nomes porque
de muitos deles nos ocuparemos a seguir.
CAPÍTULO III
A INTERFERÊNCIA
HISPANO-AMERICANA
Um dos aspectos mais desconcertantes da Questão Militar,
para quem hoje a examina, é a sua grande capacidade de resistência a
todas as tentativas de solução, renascendo a ressurgindo
continuamente de novos e inesperados incidentes. Entretanto, se bem
se consideram as mútuas disposições de ânimo, nota-se que, tanto do
lado dos militares como dos políticos civis, o sentimento
predominante nunca deixou de ser um grande desejo de a encerrar e
concluir, como se a ninguém escapasse o escabroso e a gravidade da
sua prolongação indefinida. Esse sentimento é evidente e geral
245
sobretudo no período em que as maiores patentes se resolvem a
intervir, entre fins de 1886 e princípios de 1887. De uma parte como
de outra apela-se para a prudência, insiste-se na necessidade de
preservar a ordem pública, invocam-se os altos interesses da nação,
sem esquecer jamais um gesto reverente na direção do imperador...
Qual seria porém o persistente germe de inquietação, a mola ágil e
bem tendida que de cada vez provocava nos novos choques,
determinando novos sobressaltos? Para o saber com segurança basta
recordar que, entre a partida de Sena Madureira para o Rio Grande e
a chegada de Cunha Matos do Piauí, se coloca o lançamento dO
País, a 1º de outubro de 1884.
Ricamente montado com maior e petrechos de que talvez nem
mesmo o Jornal do Comércio dispusesse naquela época, o novo
diário não aparece como órgão republicano, nem se declara por
qualquer das correntes partidárias existentes no momento. A titulo de
programa, dizem os seus lançadores: “O País” tem a sua origem no
comércio; nele assenta particularmente o apoio das simpatias a que
deve a sua existência; com ele se honra de associar-se na devoção
dos eminentes interesses nacionais que essa nobre classe representa.
A inscrição do nome de Joaquim José dos Reis Júnior no cabeçalho,
como proprietário, corroborava essa declaração de ofício, precisando
um pouco mais quais eram aqueles interesses. Eram sobretudo os do
comércio de importação de secos e molhados... Reis, homem de
íntimas ligações de família e de negócios com o Norte de Portugal,
depois elevado pelo governo de Lisboa a Conde de São Salvador de
Matosinhos, era um dos maiores representantes daquele ramo na
praça do Rio de Janeiro. Possuidor de um grande trapiche no bairro
Saúde, o Trapiche Reis, ele justamente saía de uma longa querela
com o Ministério da Fazenda sobre classificação de certos vinhos na
pauta aduaneira. Esse programa um tanto específico não impedia
246
entretanto a folha de ostentar na sua primeira coluna um artigo
magnificamente político, no qual se lia esta sonora e clara apologia:
Enquanto o regime parlamentar for, como até hoje, a mais perfeita
expressão da inteligência humana aplicada à administração das
sociedades civilizadas, os partidos que constituem a alma desse
regime, continuarão a ser necessidades nacionais da ordem mais
elevada... Compreende-se: era Rui Barbosa o chefe da redação. O
brilhante tradutor de O Papa e o Concílio, sendo um escritor
maravilhoso, não era entretanto um verdadeiro jornalista, com todas
as pequenas qualidades que, ao lado do talento, completam os
homens dessa classe.Faltava-lhe o gosto dos detalhes, esse igual
interesse por todas as seções da folha, que vela o bom jornalista a por
tanta arte num grande artigo de fundo, quanto numa crônica qualquer
ou numa simples notícia de polícia. Para isto, lá estava Quintino
Bocaiúva. Rui Barbosa, nos dois números seguintes, deu dois
esplêndidos artigos sobre a Abolição. Raramente, em espaço tão
pequeno, a questão fora estudada com tanta elevação e tanto brilho.
Mas, tanto no jornalismo concorrente como nos vários meios
políticos e parlamentares cresciam as indagações sobre o verdadeiro
programa do jornal. Falava-se em órgão do Trapiche Reis, surgiam
maliciosas expressões como esta, empregada pelo Correio
Paulistano ainda em 1887: arauto de excelência das vinhas do Alto
Douro... Fosse pelos incômodos dessa maledicente curiosidade, fosse
por discrepância de doutrina ou qualquer outro motivo não sabido,
Rui Barbosa, ao quarto dia, deixava a redação. Quintino Bocaiúva,
desde o primeiro número, havia inaugurado uma coluna permanente
sob o título de Resenha Diária, onde com grande sagacidade ia
comentando tudo quanto em política se passava. Fora aí que
aparecera aquele programa, tido por indiscreto e pitoresco, da
solidariedade com os interesses do comércio. Com a saída de Rui
247
Barbosa, a Resenha Diária saltou para a primeira coluna, aceitando
bravamente a discussão sobre a alegada insuficiência de programa e
vivamente metendo à bulha os que se compraziam em tais
futilidades...
Nestes dados sobre a fundação e os primeiros dias dO País,
ninguém veja entretanto, da parte de Quintino Bocaiúva, a menor
sombra de interesse pecuniário ou qualquer propósito de lucro. Tais
preocupações nunca existiram para ele. Extremamente sóbrio e de
uma grande austeridade para consigo mesmo, ele tinha as maneiras e
os hábitos de um asceta. O dinheiro, como garantia de bem-estar e
fonte de prazeres, jamais teve sobre ele a mínima influência. Discreto
e comedido, qualquer coisa lhe bastava. O seu único luxo consistia
na correção do traje, sempre igual e sempre o mesmo, fazendo-se
porém notar por um aprumo irrepreensível e um asseio meticuloso.
José do Patrocínio chegou a dizer que aquele homem extraordinário
não precisava de dinheiro para viver. Bem cedo casado e pai de
filhos, a sua vida doméstica, cercada de um grande recato, era de
uma sobriedade que tocava de perto a parcimônia. Muitas vezes
mortificado por exigências de credores, sempre por somas em
extremo moderadas, ele, para livrar-se de tais dificuldades, nunca
consentiu em afastar-se do que julgava ser a sua honra ou o seu dever
profissional. O gozo, a ostentação, a simples comodidade, não
tinham presa sobre ele. Só uma coisa o movia e realmente
interessada. Era a sua idéia política, concretizada sobretudo, senão
exclusivamente, na substituição pura e simples da Monarquia pela
República. O jornalismo nunca lhe fora uma indústria deveras
proveitosa, nem mesmo um passável meio de existência. Privado do
seu primeiro jornal, A República, cuja publicação suspendera a
contragosto em fevereiro de 1873, ele sujeitou-se a trabalhar a
módico salário e por vários anos em empresas nas quais não tinha a
248
menor parte. De todas estas, do O Globo aquela em que mais se
demorou. Na última fase dessa folha, em 1881, chegou a ser o seu
principal editor, senão mesmo o seu proprietário. Nesse posto
faltava-lhe porém o tino comercial indispensável. Certos aspectos da
publicidade jornalística, onde em geral se encontram os mais pingues
resultados, não eram para ele os mais dignos de atenção. O Globo
não se manteve... De cada vez caia-lhe assim das mãos o grande
instrumento com o qual sonhava realizar a sua eterna aspiração,
Dados estes antecedentes, como admitir que ele pudesse abandonar,
tal como o fazia Rui Barbosa, já notável advogado, o grande jornal
que se lhe oferecia, com aquela montagem magnífica e os sólidos
meios inerentes ao seu programa imediato ou declarado? Os
interesses do comércio de secos e molhados!... Não há dúvida. Mas,
se esses interesses eram legítimos e na sua significação coletiva
podiam ser tidos por nacionais, por que não assentar sobre eles, pelo
menos de início, a grande obra nacional da pregação republicana: Ele
não teve indecisões...
O grande jornalista, entretanto, nunca conseguiu ver os
negócios do Brasil do ponto de vista realmente brasileiro, isto é,
dentro da nossa evolução política normal, segundo aquela forma
peculiar luso-americana. Ele pensava e escrevia como se a redação
do seu jornal se colocasse, não na Rua do Ouvidor, no Rio de
Janeiro, mas na Calle Flórida ou na Calle Corrientes de Buenos
Aires. Era no rio da Prata, com os seus tribunos lidadores e as suas
agitadas mutações governamentais, que ele se inspirava, de lá vindo
os seus padrões políticos mais sugestivos e recomendados. Ali sim,
havia convicções, havia caráter, havia coragem nas idéias e firmeza
nas atitudes... A sua preferência por aqueles costumes e processos era
toa insistente e acentuada que com freqüência foi posta em dúvida a
sua nacionalidade. Durante a sua permanência em Buenos Aires, no
249
correr da guerra do Paraguai, encontrando-se ele ligado às nossas
forças navais, como funcionário da Fazenda, a sua assiduidade nos
meios argentinos chegou a irritar seriamente os brasileiros. Daí lhe
vieram mesmo alguns desagradáveis incidentes. Uma vez, estando
ele na companhia de vários argentinos no camarote de um teatro
onde se dava um baile de carnaval, um dominó, do camarote ao lado,
entrou a perguntar-lhe com motejada insistência se afinal de contas
era ele argentino ou brasileiro... O dominó era o Primeiro Tenente
Antônio Pedro Alves de Barros, do couraçado Silvado, que ali estava
com alguns outros jovens oficiais da nossa esquadra. Não há dúvida
entretanto de que Quintino fosse brasileiro. Por uma certidão de
batismo expedida pela igreja paroquial do Sacramento da Sé, no Rio
de Janeiro, já várias vezes publicada, é hoje sabido que ele era
carioca, tendo nascido a 4 de dezembro de 1836, numa casinha
existente no lugar onde agora se eleva o Gabinete Português de
Leitura, à Rua Luís de Camões. Tendo porém muito cedo perdido o
seu pai, de nome Quintino Ferreira de Sousa, deve ter sofrido uma
influência muito grande de sua mãe, D. Maria Candelária Moreno
d‟Alargon, que era argentina. Até uma certa idade, pode-se mesmo
supor que falasse de preferência o castelhano. Pelo menos, são nesta
língua as primeiras produções literárias que se lhe conhecem(23).
Eram certamente grandes o seu amor e a sua filial admiração pela
Argentina...
Assentadas as suas idéias nestas bases sentimentais, não podia
Quintino Bocaiúva conceber a nossa passagem da Monarquia para a
República, segundo os nossos métodos habituais de evolução legal.
O problema era por ele colocado nos seus dados iniciais do princípio
do século XIX, quando a noção de liberdade se resumia para os
povos hispano-americanos no simples repúdio do poder absoluto,
representado no rei de Espanha, tomando portanto a forma de um
250
conflito irreconciliável, solúvel apenas pelas armas. O processo
evolutivo aqui desenvolvido entre a chegada de D. João VI e a
Abolição, era por ele eliminado, para serem tomados os oitenta anos
correspondentes como simples expressão do nosso atraso perante as
várias Repúblicas do continente. Admitir que a nossa Monarquia
parlamentar indicasse um progresso qualquer sobre as confusas e
atormentadas instituições hispano-americanas, parecia-lhe uma
desprezível heresia, senão uma pura falsidade. O nosso
aparelhamento legal, com as suas garantias liberais, era uma simples
simulação, por trás da qual existia apenas o irresistível poder pessoal
do imperador... A história do Brasil, entre o encerramento da era
colonial e o advento da República, tinha de ser revista, ara adaptar-se
por amputação à história geral dos nossos irmãos americanos. Este
era o seu programa!...
É claro que, de semelhante ponto de vista, a nossa
transformação política só podia ser de caráter militar. Não havia
como fazer do presente uma transação entre o passado e o futuro,
pois tratava-se de uma ruptura essencial e absoluta. Retomando a
tradição continental dos Bolívar, dos San Martin, dos O‟Higgins, dos
Miranda, era indispensável fazer surgir também aqui o herói de
brilhante armadura que enfrentasse e abatesse a hidra da Monarquia,
sendo óbvio que, em se tratando de heróis, logo se lançasse os olhos
para a mais próxima caserna... E aí está como O País, no qual a fácil
malícia dos contemporâneos quis ver o órgão do Trapiche Reis, foise constituindo sobretudo em órgão da Questão Militar!
Podemos hoje aceitar com segurança que, se não fosse O
País, jamais a Questão Militar se teria arrastado tão persistente e
teimosa até o golpe de 15 de Novembro. Quintino Bocaiúva, da
redação do seu jornal, foi o guarda vigilante e o incansável animador
daquela chama. Era ele que destacava as posições e punha em relevo
251
as circunstâncias, determinando, por via de conseqüência, os novos
incidentes.É preciso notar entretanto que o hábil e tenaz
propagandista não ligava diretamente a agitação militar à sua
revolução republicana. Tratava apenas de incompatibilizar o Exército
com o governo imperial, como se abrisse uma fenda na qual a idéia
da República se introduzisse como uma cunha, para fazer ruir a
Monarquia. Ele nunca teve os militares como suficientemente
preparados para uma conspiração consciente e decidida. Não é que
não encontrasse oficiais republicanos. Entre os signatários de um
severo e curioso Termo de Compromisso e Adesão, firmado nos dias
20 de setembro e 27 de outubro de 1877, para revigoramento da
propaganda republicana no Rio de Janeiro(24), encontram-se alguns
oficiais bem conhecidos como Moreira César, Dantas Barreto e
Vespasiano de Albuquerque, dos quais os dois últimos chegaram ao
generalato no período republicano. O fato de pertencer ao Exército,
não os eximia entretanto de pensar sobre a matéria como em geral
pensavam todos os brasileiros, fossem ou não republicanos. Nenhum
deles naquele documento figurou como soldado, pondo em jogo a
sua espada, mas como homem livre, capaz de aceitar livremente uma
idéia e por ela sinceramente comprometer-se. Em perfeita identidade
de sentimentos com Aristides Lôbo, promotor daquele ato, nenhum
deles cuidava em mudar as instituições do seu país por um golpe
militar de estilo hispano-americano. Obrigados a freqüentes contatos
com o rio da Prata, tanto pelas exigências militares da nossa recente
política exterior no Paraguai como pelas condições das nossas
comunicações com a província de Mato Grosso, eles por demais
conheciam aqueles métodos, não guardando por eles nenhuma
admiração nem a mínima simpatia. Para supor o contrário, será
indispensável ignorar como eles se referiam às que então chamavam
as republiquetas do sul...
252
Coerente com suas preferências pelo caudilhismo
republicano, de caráter necessariamente militar, Quintino Bocaiúva
aplicou-se especialmente a exaltar o amor-próprio dos militares,
opondo aos escrúpulos tradicionais da disciplina a noção nova do
cidadão fardado ou soldado-cidadão por ele criada. O ambiente
especial do abolicionismo, que temos examinado, não só lhe
facilitava como mesmo inspirava-lhe esse programa auxiliar de
forma indireta e provisória. O País foi-se tornando em órgão
declarado da classe militar, que nele passou a ter a sua melhor fonte
de informações e o eco mais seguro das suas aspirações e das suas
queixas. Não havia pelas províncias um batalhão, um regimento ou
uma companhia isolada onde não se encontrasse pelo menos um
assinante dO País, que, lendo-o, em atenta roda de camaradas, o
devia ainda passar de mão em mão, até a chegada do próximo
correio. Devido à orientação acentuadamente erudita e filosófica
impressa por Benjamim Constant ao ensino militar, havia no
Exército um grande número de jovens oficiais com fortes e mesmo
brilhantes tendências literárias. Firmassem eles ou não as suas
produções jubilosamente se lhes abriam as colunas dO País. Para dar
uma idéia exata da influência que o grande jornal chegou a adquirir
nos meios militares, basta dizer que, entre os vários motivos de
felicitar um companheiro que de uma guarnição qualquer partia para
o Rio de Janeiro, havia o de ir poder ler O Pais do mesmo dia!...
Este foi, a partir do caso Sena Madureira de 1884, o segredo,
o fermento constante e inesgotável da Questão Militar, em todas as
suas fases e nos seus mínimos e mais remotos incidentes. Entretanto,
muito bem guardou-se Quintino Bocaiúva de revelar aos seus amigos
aonde realmente os conduzia., Uma proposta clara e direta de tomar
armas contra o imperador naquele instante teria sido de uma insigne
imprudência. Primeiro, provocaria no seio do Exército, na grande
253
maioria dos oficiais, a natural indignação que jamais deixamos de
sentir por quem nos pretenda embair ou ludibriar, fazendo-nos ir
mais longe do que sinceramente o desejamos. Em seguida, tirando as
autoridades da Monarquia e a própria sociedade brasileira da
constante perplexidade em que viveram ante a inconseqüência e o
absurdo daqueles fatos, logo indicaria o ponto exato sobre o qual se
deveria agir para por ordem em tudo aquilo. Na preparação do
cancelamento das sanções disciplinares, em 1877, o fim visado por
Quintino Bocaiúva no seu entranhado zelo pelos brios do uniforme
não deixou de ser apontado pelo Barão de Cotegipe. Escrevendo ao
Visconde de Ouro Preto sobre os termos da resolução senatorial,
dizia o presidente do Conselho: O Ministério aceita o meio lenbrado
por V.Exa., mas parece-me que devemos acordar previamente nos
termos da moção; e quem melhor a pode redigir do que V. Exa.? É o
que lhe peço. Não aprovo que dela se possa concluir que o Senado
se constitua procurador para requerer em nome de terceiros.
Zelando tanto a dignidade deste quanto zelo a do governo, desejo
que a de ambos fique intata. Leu o que disse “O País”? É natural
que desaponte (o cancelamento visou afrouxar a tensão entre os
militares e o governo) e por isso já de prevenção atava os partidos e
o parlamentarismo. A razão é clara: perde a oportunidade de
embarcar a República em águas revoltas(25). Um fracasso dos
planos subversivos de Quintino Bocaiúva, perante a decisão tomada
pelo Senado, era tanto mais aceitável por Cotegipe quanto mais certo
estava ele de que o Exército realmente não participasse das idéias do
direito dO País nem de nenhum modo concordasse como seus
métodos. O ministro não deixava de ter bons motivos para assim
pensar, pois não há dúvida de que, até aquele momento, os militares
de nenhum modo admitiam qualquer intimidade da sua questão
profissional com a propaganda republicana. Quando, após a reunião
254
do Recreio Dramático, se tratou do requerimento individual do
cancelamento das sanções, tanto a maioria dos oficiais tinha aquela
solução por boa e perfeitamente aceitável que, em face das últimas
resistências de Sena Madureira e Cunha Matos, Benjamim Constant
foi solicitado a dissuadi-los de tanta intransigência. Para isto
combinou-se uma entrevista dos três no escritório do advogado
Alfredo Madureira(26). Ao ver que eles não cediam, o prestigioso e
festejado professor da Escola Militar severamente retrucou-lhes: Os
senhores são uns turbulentos que querem fazer a República. E,
dando por finda a entrevista, levantou-se, confirmando com
veemência: Devem requerer o trancamento das notas...
Ora, por aí se vê que a articulação da Questão Militar com a
revolução republicana, sonhada por Quintino Bocaiúva , não só não
era aceita nem mesmo conhecida nos meios militares, como podia
ainda a sua simples suspeita provocar indignação. Desde porém que a
anulação dos atos disciplinares era tida como questão de honra para
os dois interessados, com eles tendo-se considerado todos solidários,
só eles tinham afinal o direito de decidir. Foi assim que se chegou ao
remédio heróico do Manifesto ao Parlamento e à Nação, com a sua
conseqüência da moção senatorial, É claro, é evidente que os
militares obtiveram todas as satisfações, nos limites máximos em que
as quiseram e formularam, nenhum resíduo devendo restar das suas
amarguras. Cotegipe portanto não deixava de estar certo, dando os
planos dO País como frustrados.
***
Mas Quintino Bocaiúva não era homem a desnortear-se
facilmente. Emprestando logo à resolução senatorial o caráter de um
desses arranjos interpartidários de moral suspeita e somenos
255
importância, muito de gosto no sistema parlamentar, como pensava,
ele tratou de ir pondo em guarda os militares contra todas as
surpresas. O governo da Monarquia, não esquecendo certamente a
humilhação recebida em tudo aquilo, apenas estava a ganhar tempo.
A reação não tardaria muito... Nessa forma nova ou nessa segunda
fase da sua grande manobra, o direito dO País revelava-se um
excelente psicólogo. O orgulho, por sua própria natureza, é
progressivo, crescendo sempre na razão direta das satisfações que lhe
sejam oferecidas. Aquela solução não podia deixar de ser precária e
provisória, tendendo a desdobrar-se com o tempo em novos
incidentes. Na grande exaltação do amor-próprio ou do prestígio do
uniforme em que se sentiram, os militares facilmente entrariam em
novos conflitos com o poder civil, automaticamente tomando
qualquer reação por este ainda tentada como o início previsto e
deliberado do grande ajuste de contas esperado. Foi o que se deu...
O próprio Cotegipe, conjugando oito meses depois a retirada
do gabinete com o caso Leite Lôbo, vinha concorrer para a
acentuação maior de tais disposições. Já o governo João Alfredo, no
mês de novembro, seguiu-se o conflito dos oficiais do 17º de
Infantaria com o chefe de polícia de São Paulo. Se no mês de março
um incidente do mesmo gênero determinada a demissão de todo um
Ministério, a demissão do chefe de polícia imediatamente se
impunha como a solução mais indicada. Assim foi feito. Mas daí por
diante não houve mais contacto algum do governo com a tropa que
não desse em mal-entendido, mantendo o público em constante
sobressalto. Ninguém dirá com exatidão os motivos pelos quais o
gabinete João Alfredo, tendo de nomear o comandante de uma forte
coluna de observação, a enviar às fronteiras de Mato Grosso,
escolheu precisamente o Marechal Deodoro da Fonseca. Era um
velho e enérgico soldado, com longa prática das condições
256
estratégicas daquela região(27). Mas a verdade é que a sua partida
determinou uma geral inquietação nos meios militares. espalhou-se
que o governo, desviando o marechal com tão numerosos efetivos
para tão longe, apenas procurava ter as mãos livres para contra o
Exército agir como quisesse. Ao desassossego dos que ficaram,
correspondeu uma grande irritação dos que partiram. Mudou o
governo em junho de 1889, subindo com o gabinete Ouro Preto o
Partido Liberal. Os motivos oficiais do envio da coluna a Mato
Grosso, que tinham sido a eminência de um conflito armado entre a
Bolívia e o Paraguai, pareciam terminados. A volta da coluna e do
seu chefe foi logo aconselhada como uma medida capaz de melhor
dispor o Exército para com a nova situação e os seus ministros. A 13
de setembro o marechal desembarcava no Rio de Janeiro. Para os
militares, entretanto, ele era apenas restituído, no lugar próprio, à sua
função de gênio tutelar da classe, para o fim de conjurar as graves
ameaças que sobre ela se adensavam...
Quem hoje consulta os números dO País, entre 13 de
setembro e 15 de novembro de 1889, examina apenas o
desenvolvimento metódico e seguro de um processo de intimidação.
O Exército, a não deixar dúvidas, tinha que escolher entre a reação
armada e a sua dissolução! Os menores atos do governo eram
habilmente apresentados como os sinais mais evidentes desta
temerosa alternativa... Por motivos disciplinares, o Coronel Mallet é
demitido a bem do serviço público do comando da Escola Militar do
Ceará. O país de 23 de outubro logo põe o caso em cotejo com o
incidente da demissão do chefe de polícia de São Paulo, em
novembro do ano anterior, para mostrar que entre militares e civis o
governo tem sempre dois pesos e duas medidas. O chefe de polícia,
tendo sido – como pelo menos ele asseverava – o único causador dos
distúrbios e das desinteligências que ali se deram, não foi demitido a
257
bem do serviço público, mas apenas convidado a pedir a sua
demissão. Isso se fez, continuava, porque se tratava de um
funcionário civil, de um camarada político a quem não se queria
magoar. Com os militares, porém, seja qual seja a graduação e os
seus serviços e a sua honrosa fé de ofício, o governo imperial não
gasta sedas nem faz cerimônias. Basta a resistência de qualquer
funcionário militar ao capricho ou à prepotência de um ministro,
basta que ele não seja servil ou condescendente com as exigências
de qualquer mandão eleitoral, para ser ele demitido a bem do
serviço público ou transferido peremptoriamente para o Amazonas
ou para Mato Grosso. O artigo conclui que, sem a menor dúvida, o
Exército é mal visto atualmente nas altas regiões. Segue-se, num
verdadeiro crescendo de inquietação, toda uma série de outros artigos
de grande veemência. No dia 26, os Planos do Governo; o dia 28, O
Poder é Poder... Na atmosfera de indisfarçável e perigosa agitação
que se vai acentuando, o gabinete resolve afastar muitos oficiais da
guarnição da corte, sendo alguns mandados servir em Mato Grosso.
Vem então As Energias do Poder! Estamos no dia 30 de outubro.
Entretanto, ainda até ali, se o Exército, fugindo às tradições
gerais da nossa vida pública e esquecendo as suas proprias tradições,
já havia adotado a visão extrafronteiras de Quintino Bocaiúva, só em
parte o havia feito. Estava aceita entre os oficiais a eventualidade do
recurso às armas, em defesa própria, uma vez que realmente
andavam convencidos da intenção dos políticos civis de abater senão
mesmo de dissolver o próprio Exército(28). Avançávamos portanto
para um pronunciamento militar. Mas nenhum dos chefes naturais
desse possível movimento se conformava com a hipótese de uma
ação direta contra o imperador(29).
Eles supunham mesmo que o monarca estivesse do seu lado,
não se manifestando francamente por encontrar-se prisioneiro dos
258
seus ministros. Falando na sessão do Senado de 6 de junho de 1887,
quando se discutia a moção do cancelamento das sanções, o
Visconde de Pelotas manifestou com grande insistência esse modo de
pensar. Pedro II não havia recebido a Deodoro que lhe pretendera
entregar em mão a resolução votada no Recreio. Cotegipe explicou
que o imperador, doente e retirado à Tijuca, estava, por prescrição
médica, impedido de dar audiência e receber visitas, mesmo de
simples cortesia. Os que iam a saber de sua saúde, contentavam-se
em deixar os seus cartões. A declaração do ministro entretanto não
satisfez, persistindo entre os militares a idéia da segregação do
imperador. Depois, havendo Pedro II, de volta da sua viagem para
tratamento de saúde pela Europa (22 de agosto de 1888), se
demorado pouco tempo em São Cristóvão, subindo para Petrópolis, o
boato da segregação continuou. Para a maioria dos oficiais, a
começar por Deodoro e Benjamim Constant, o comandante nato e o
chefe supremo das forças armadas, o primeiro soldado do Brasil,
assediado pelos casacas e contra todas as suas inclinações, estava na
impossibilidade de vir em socorro dos seus melhores amigos, dos
seus verdadeiros sustentáculos, que eram naturalmente os portadores
dos mesmos uniformes por ele usados. Dentro dessas condições
psicológicas, as reações que as circunstâncias lhes sugeriam tinham
muito mais de extrema defesa da Monarquia ou do monarca, que de
conspiração republicana. Era Quintino Bocaiúva que do seu jornal os
manobrava, insensivelmente precipitando-os a um passo além do
qual só houvesse o pelotão de fuzilamento ou a mudança do regime!
Mas não eram apenas os militares que, mais ou menos
constrangidos, seguiam por um caminho em cujo termo forçosamente
teriam de escolher entre dois males o menor... A posição dos meios
republicanos, tanto na corte como em São Paulo, não era muito
diferente. Em fase de exclamações como o não era esta a República
259
dos meus sonhos, do velho Saldanha Marinho, ou o fato foi deles,
deles só, de Aristides Lôbo, não seria possível admitir que os antigos
radicais do Rio de Janeiro se deixassem comprometer realmente
numa conjura militar. Do lado dos paulistas, os elementos de
informação são ainda mais precisos e mais claros. O primeiro homem
do PRP a identificar com segurança a mola real da Questão Militar,
vendo com decisão onde era conduzida a agitação, foi Francisco
Glicério. Em dezembro de 1887, após o seu devotado trabalho pela
eleição de Bernardino de Campos, tido como reconciliação do
partido com o movimento abolicionista, ele quis pessoalmente
informar-se do que havia. Tudo o levava a supor que, se alguma
cousa realmente se tramava, a arte mais adiantada ou mais densa
desse trama se encontrasse para o Sul. Era no Rio Grande que a
Questão Militar tivera afinal as suas manifestações mais veementes e
expressivas, necessariamente determinando não pequenas emoções
em Buenos Aires. A grande capital platina, centro clássico de intriga
em todas as agitações do Sul do continente, não podia deixar de ser
um excelente campo de observação. Os políticos argentinos nunca
deixaram de experimentar o mais vivo interesse por tudo quanto
significasse um progresso qualquer das idéias republicanas no Brasil.
Com ou sem razão, eles sempre tiveram o nosso governo imperial
como responsável por ceras decepções da sua política na bacia do
Prata, não podendo portanto ser indiferente a uma nossa possível
transfrormação interna que o viesse a destruir. No tempo de Rosas,
ao famoso grito de Viva la santa federación; mueran los selvajes
unitarios, seguia-se sempre o complemento: abajo el infame
gobierno del Brasil… Com o correr dos anos, amenizaram-se as
atitudes e poliram-se as expressões. Mas os sentimentos não se
modificaram muito. As nossas agitações militares tinham que ser ali
observadas com a máxima atenção, tanto mais segura e facilmente
260
havendo a dirigi-las alguém tão voltado às cousas argentinas como
Quintino Bocaiúva(30).
Era portanto do Sul que o vento soprava mais firme e mais
constante. Glicério dirigiu-se para lá. Informado pelo seu amigo
Bento Quirino dos Santos de que o antigo convencional de Itu e
zeloso presidente da Câmara Municipal de São Vicente, Antônio
Carlos da Silva Teles e Domingos Neto (ambos sócios de Quirino) na
grande firma comissária de Santos, Teles Neto & Cia), projetava uma
próxima excursão a Buenos Aires, ele imediatamente fez saber que
os acompanharia. No dia 22 de dezembro, doze dias após as eleições,
Glicério partia de Campinas para Santos, onde tomava um vapor com
os dois comerciantes em direção ao Prata. Que observações teria ele
feito em Buenos Aires? Com quem teria falado? De nada
encontramos traço no que pudemos ver da sua correspondência.
Apenas, numa carta dirigida ao seu companheiro de escritório,
Antônio Lôbo, ele elogia muito a beleza e os bons serviços de polícia
da capital platina. Pode-se, porém ter como certo que Glicério, pelo
menos daquela vez, não se interessava muito pelas atrações comuns
de uma grande e alegre cidade. Sem seguir com freqüência os seus
companheiros de viagem nas suas visitas e excursões, um mês
depois, de lá partia para Porto Alegre, a encontrar Júlio de Cstilhos.
O severo e brilhante diretor dA Federação, bem homem da fronteira,
fortemente versado nos princípios autoritários de fundo positivista
dos quais Alberto Sales era em São Paulo o principal doutrinador,
estava em cheio dentro do ponto de vista de Quintino Bocaiúva. No
período mais grave ou mais aceso do segundo caso Sena Madureira e
da manifestação coletiva dos oficiais de Porto Alegre, e, entre 23 de
setembro e 30 de outubro do ano anterior, escrevera toda uma série
de artigos a incitar francamente os militares à revolta. No dia 27
daquele mês, sob o título O Império e o Exército, dizia sem rebuços
261
nem cautelas: Em qualquer caso, pertença a principal
responsabilidade a quem pertencer, os fatos que ocorrem são um
salutar aviso ao Exército, que deve saber qual é a posição que lhe
está destinada nesta derradeira fase do segundo reinado... Para ele
que, da vizinhança da fronteira, também via os negócios do Brasil
pelo mesmo prisma porteño do seu grande colega dO País, a
República brasileira devia elevar-se sobre um mar de baionetas, com
completa e eficaz anulação dos velhos e falsos processos da
Monarquia. No ponto em que as coisas se encontravam, bastava
lisonjear convenientemente o estado de ânimo dos militares. A
desejada eventualidade não tardaria... Foi o que, de boa fonte, ficou a
saber o chefe campineiro.
***
Glicério, sendo um político sagaz e um dos mais ardentes
partidários da República, não tinha entretanto os mesmos escrúpulos
doutrinários de outros membros do seu partido, como Bernardino de
Campos ou Américo Brasiliense. A hipótese de uma grande vitória
política de base militar não lhe deixava de sorrir. Mas, ao chegar do
Rio Grande em fins de fevereiro, vinha conhecer a posição oficial do
PRP na Questão Militar , segundo a fixara Bernardino de Campos no
seu discurso do dia 6. Entre os planos que lhe haviam sido
transmitidos e aquelas idéias, não havia conciliação possível nem
arranjo algum a concertar. Não podemos saber hoje com exatidão
que expedientes deu ele à sua perplexidade. Tratava-se de
conspiração, e evidentemente a discrição era de rigor. O certo é
porém que Quintino Bocaiúva, no correr de março, apesar da
acuidade da situação política com a mudança de gabinete do dia 10,
precipitava-se do Rio de Janeiro para São Paulo. A sua viagem
262
cercou-se de grande reserva. Glicério nem veio de Campinas a
recebê-lo. Na capital paulista ele avistou-se apenas com Bernardino
de Campos, Américo Brasiliense e Campos Sales. O que entre eles se
passou, tanto pelos motivos do momento como por conveniências
posteriores bem fáceis de compreender, não foi divulgado ao maior
número. É certo entretanto que, para o diretor dO Páis, a entrevista
esteve longe de ser satisfatória. Bernardino de Campos, presidente do
partido, de maneira alguma concordava com a proclamação da
República ao sabor de um levante militar. Procurar a maior elevação
política do país, simplesmente destruindo no Exército o sentimento
do dever e os últimos escrúpulos da disciplina, parecia-lhe de um
inadmissível contra-senso e de um perigo incalculável. Américo
Brasiliense imediatamente pronunciou-se pelas suas idéias, Campos
Sales, visivelmente perturbado, manteve-se indeciso e reservado.
Terminada a entrevista, Quintino Bocaiúva recolheu-se à casa de um
parente, onde pernoitou, voltando ao Rio logo no dia seguinte.
Campos Sales ficou de consultar ainda alguns outros dois líderes do
PRP. Mas, no dia 3 de maio, Bernardino de Campos dirigia uma
carta à comissão permanente, na pessoa de Glicério, declinando da
presidência dela própria e do partido. Ele tomava a si pessoalmente
todas as responsabilidades do seu discurso de 6 de fevereiro.
Disposto a não ceder naquele ponto, também não queria criar
dificuldades aos seus amigos, deixando-lhes toda a liberdade.
Entretanto, a retirada de Bernardino de Campos da
presidência do PRP, naquele instante, após o brilhante e
oportuníssimo trabalho de harmonização final da propaganda
republicana com a campanha abolicionista por ele realizado, era para
o partido de uma evidente desvantagem. Como reagiriam os radicais
que só por ele e à sua voz haviam voltado à atividade das fileiras?
Entrara-se no mês da Abolição; a grande vitória anunciava-se
263
imediata e inevitável. À luz daquele dia, não haveria sobre o PRP a
sombra de um desgosto, a inconvenientemente recordar os seus
velhos prejuízos escravocratas? Foi sob o peso de tais considerações
que se leu em Campinas a carta de Bernardino. Entre a sua recepção
e a confecção da resposta houve três dias de consultas. Afinal, no dia
6, Glicério respondia: Acho, porém, que você não tem razão quando
se considera impossibilitado, pelas circunstâncias todas pessoais, de
conduzir o partido pelo caminho acidentado que ele agora é forçado
a percorrer. Pelo contrário, entendo que por isso mesmo deves ficar
à frente do partido. A agitação deve ser feita por mim,C. Sales,
Prudente, Pestana e outros companheiros. Você é o chefe, cuja
missão é velar, aconselhar, deliberar e cobrir com a autoridade
moral do seu nome e do seu cargo os atos dos agitadores...Prudente
de Morais, prevenido em Piracicaba do que se passava,
imediatamente escreve a Bernardino de Campos, reforçando o pedido
de Campinas: Se você se demite agora, era uma vez o Partido
Republicano... Mas, como velar, deliberar, cobrir com a
responsabilidade do nome e do cargo, e, sobretudo, como
aconselhar, se o primeiro conselho, que era o de não comprometer,
não misturar a propaganda republicana com a insubordinação militar,
não era ouvido? Ele insistia em que a demissão lhe fosse concedida.
Glicério correu porém de Campinas a completamente dissuadi-lo,
chamando ainda a Prudente de Morais que também se abalou de
Piracicaba. Como da vinda de Quintino Bocaiúva, houve nova
conferência, desta vez, entre seis, comparecendo ainda Rangel
Pestana, além de Américo Brasiliense e Campos Sales. Glicério, a
empregar os mesmos argumentos com os quais, na noite de 1º de
julho de 1873, reduzira a resistência dos radicais antes as reservas
antiabolicionistas dos fazendeiros, apelou para a unidade do partido e
para o interesse capital do mais próximo advento da República, que a
264
tudo devia sobrepujar e preterir. Os princípios morais ou os
escrúpulos doutrinários não podiam ser mantidos até ao ponto de se
contraporem às necessidades práticas do partido, levantando
embaraços ao objeto no qual todo o seu programa afinal se resumia.
Foi admitido o critério da votação. Com as restrições de Bernardino
de Campos ficava apenas Américo Brasiliense. Era um voto contra
quatro. A demissão foi retirada.
Como de propósito, o primeiro repiquete da Questão Militar,
com caráter de correria e distúrbio sangrento na via pública, vinha
produzir-se exatamente em São Paulo, determinando a demissão do
chefe de polícia, Cardoso de Melo Júnior, e profundamente
emocionando os meios sociais e políticos da província.
É preciso notar porém que o programa novo e
verdadeiramente estranho de chegar à República numa vaga de
baionetas sublevadas não foi comunicado propriamente ao PRP nem
fora dele se estendeu a quaisquer outros núcleos republicanos do
país. Zelosamente guardado e promovido só individualmente por
Quintino Bocaiúva, no Rio de Janeiro, para ser conhecido apenas do
pequeno círculo dA Federação, de Porto Alegre, ele em São Paulo
restringiu-se tão-somente àqueles seis principais dirigentes do
partido. Não houve aliciamento nem procura de adesões. Conservouse no estrito caráter de conspiração, mas uma conspiração sui generis
e jamais vista, onde o maior número ou a massa geral dos
conspiradores, que eram os militares, devia avançar para o momento
decisivo sem bem saber o que fazia nem perceber o ponto exato ao
qual se conduzia. Na sessão de 15 de janeiro de 1889 da Assembléia
Legislativa de São Paulo, Campos Sales chegou a defender em
discurso a doutrina especial do cidadão fardado ou do soldadocidadão. Não lhe deu porém nenhum caráter de preparação
265
republicana, conservando-se no terreno das provocações vagas e
indefinidas, tal como no Rio a levava Quintino Bocaiúva.
Para dizer a verdade, é preciso reconhecer que a grande
emoção nacional da Abolição, determinado como um geral
abaixamento de tensão, reduziu de muito as preocupações com uma
imediata mudança do regime. José do patrocínio, filiado ao Clube
Republicano do Rio de Janeiro desde os dias da sua fundação e
signatário daquele severo Termo de Compromisso e Adesão, de 1877,
chegou mesmo a romper com a corrente republicana, constituindo-se
por um momento em grande defensor do trono, em reconhecimento
pelo que ele mesmo classificou como a Lei Áurea. Na Gazeta da
Tarde ele fulminava sem piedade os republicanos de negreiros e
escravocratas. Foi por sua inspiração e com o seu auxílio que o
Ministro João Alfredo veio a criar a célebre Guarda Negra, para
defesa pessoal da Redentora. Essa guarda especial e certamente
pitoresca, pretendendo opor-se a manifestações republicanas, chegou
mesmo a provocar vários distúrbios, tornando-se incômoda e
françamente comprometedora. Foi ela que, a 30 de dezembro de
1888, determinou um forte charivari na Sociedade Francesca de
Ginástica, à Travessa da Barreira(31), onde Silva Jardim fazia uma
conferência republicana, depois de haver cassado ao tribuno a
faculdade de manifestar-se de um teatro, com a ameaça de deitar
fogo àquele que lhe fosse cedido para tal fim. Aliás, essa pressão
redutora do abolicionismo sobre a propaganda republicana, como já a
reconhecem um artigo da Província de São Paulo de 19 de novembro
de 1887, não esperou 13 de Maio para manifestar-se. Tal como se
deu com o próprio Rangel Pestana nas eleições provinciais de 10 de
dezembro daquele ano, nas quais deixou de ser eleito, ela também
chegou a envolver pessoalmente a Quintino Bocaiúva, ao apresentarse candidato a senador pela corte, nas eleições de 19 de abril do ano
266
seguinte. Em oposição à candidatura do diretor dO País, a
Confederação Abolicionista lançou a de Ferreira Viana, que levantou
1.346 votos contra apenas 110 por ele conseguidos. O fato foi
jocosamente comentado por Ângelo Agostini, na Revista Ilustrada.
Quintino Bocaiúva, armado de rede, foi mostrado como pescador
numa canoa, dizendo a legenda em referência ao seu pequeno
número de votos, que tinha apenas pescado 110, entre sardinhas
republicanas e baiacus negreiros, perante a brilhante votação do
outro candidato...
A queda do gabinete João Alfredo e do Partido Conservador,
no dia 6 de junho de 1889, com a subida dos liberais no gabinete
Ouro Preto, veio concorrer ainda mais para aquela atmosfera de
desinteresse, senão mesmo de repulsa por uma imediata e mais forte
agitação republicana. A plataforma do novo Ministério, apresentada
à Câmara dos Deputados a 11 daquele mês, era, em suma, a
preparação normal, digamos mesmo. O encaminhamento regular da
nossa ascensão ao regime republicano, segundo o nosso velho
processo – o processo brasileiro ou luso-americano – de revoluções
por livre modificação das leis no Parlamento. Quem hoje lê o
programa do gabinete Ouro Preto, nos anais da Câmara de 1889,
compreende que o Deputado Pedro Luís, a exclamar admirado, é o
começo da República!, tinha bem razão, como do seu lado também a
tinha o presidente do Conselho em responder-lhe: Não, é a
inutilização da República... Entenda-se: a inutilização da República
como conspiração, como levante ou como desordem, porque a
transformação legal para o novo regime, no momento apropriado e já
previsto, claramente ali se encontra. Reflita-se um pouco sobre estes
dispositivos; Alargamento do direito de voto, considerando-se como
prova de renda legal o fato de o cidadão saber ler e escrever
(sufrágio universal); plena autonomia dos municípios e províncias.
267
como elegibilidade dos respectivos administradores (federação);
efetividade do direito de reunião; liberdade de culto a seus
consectários (separação da Igreja do Estado); temporariedade do
Senado e, finalmente, reforma do Conselho de Estado, para
constitui-lo meramente administrativo, tirando-lhe todo caráter
político (extinção do poder moderador)... Para ser totalmente a
República faltava apenas a eliminação da coroa. Mas, esta, todos já a
tinham como intransferível da cabeça do Imperador Pedro II.
O fim da Monarquia brasileira, com o desaparecimento do
neto de D. João VI, não é apenas uma hipótese que hoje possamos
estabelecer por simples deduções. Era uma certeza, senão mesmo
uma firme decisão dos homens daquele tempo. Feita a Abolição,
ninguém mais tinha dúvidas a respeito, de tal convicção chegando a
participar e com ela nobremente conformando-se o próprio
imperador(32). Os republicanos de boa e clara orientação doutrinária
estavam dentro destas idéias e firmes nestas esperanças. Da mesma
forma pensavam os militares, não se compreendendo portanto que se
lançassem aos riscos de uma rebelião, rompendo com os seus hábitos
de disciplina, com o respeito que sempre tiveram pelo imperador e
com as próprias tradições de sua pátria e do seu povo, só para
fazerem uma coisa que todos tinham como certa e inevitável. É
mesmo lícito afirmar que raramente se terá visto em qualquer parte
uma tão completa unanimidade de opiniões e sentimentos como era a
nossa daquele instante. Por mais que, por simples oposição ou fácil
empenho de deprimir, se tenha depois criticado a composição
esmagadoramente liberal da Câmara eleita a 31 de agosto de 1889,
não se pode ter a menor dúvida de que os votos que a sufragaram,
expressavam bem a vontade nacional daqueles dias. Por decreto de
15 de junho havia sido dissolvida a Câmara anterior que pusera o
governo em minoria. Foi sobre aquele programa, por ela repudiado,
268
que se fizeram as novas eleições. O eleitorado quase unânime o
aplaudira e confirmara.
Aquele era o sentimento geral, aquela era realmente a opinião
do povo brasileiro, tanto quanto possa um povo ter opinião e meios
eficazes de a expressar. Só uma discrepância, só uma falha havia
nessa geral harmonia de pensar e de sentir, nessa verdadeira ordem
política do país. Era a sombria desconfiança dos militares de que o
governo estivesse a tudo dispor para dissolução do Exército e a
completa ruída de todos eles. Mas, ainda aí, há provas evidentes de
que, nos seus projetos de reação contra essa ameaça suposta ou
verdadeira, de nenhum modo eles se propunham a substituir a
opinião nacional, precipitando à força e por sua conta a grande
transformação. Neste ponto há um fato que supera todos os
argumentos. Logo após as eleições e naturalmente fortalecido com o
prestígio que delas lhe resultou, o presidente do Conselho foi
tratando de tomar certas precauções contra a crescente inquietação
dos militares. Os corpos de polícia e de bombeiros foram
consideravelmente reforçados, dando-se os primeiros passos para
uma grande reorganização da Guarda Nacional. Nesse meio tempo
veio a São Paulo o jovem jornalista Medeiros e Albuquerque, muito
ligado aos meios republicanos do Rio de Janeiro. Em visita ao Clube
Republicano, ele disse que, em reciprocidade àquelas medidas do
governo, o levante dos militares estava por poucas semanas ou
poucos dias. Campos Sales quis então certificar-se pessoalmente das
relações que essa possível ação dos militares pudesse ter com o
movimento republicano. Partiu para o Rio, solicitando e obtendo
uma entrevista com o Marechal Deodoro, o Visconde de Pelotas e o
Tenente-Coronel Benjamim Constant. Qual não foi o seu enleio ao
deles ouvir que de maneira alguma se preocupavam com a
269
proclamação da República, tratando apenas de resolver de uma forma
exemplar e definitiva os velhos dissídios do Exército com o governo?
Nenhum deles esqueceu-se mesmo de reafirmar a sua
convicção de que a República só seria possível após a morte do
imperador(33). Tão desapontado voltou Campos Sales da sua
excursão informativa, que, atropelado de perguntas pelo seu amigo
Glicério. logo na estação do Norte, acabou por familiar e
estouvadamente concluir. Seu Chico, eu agora quero que a
República se lixe (ou coisa semelhante)!...(34)
Mas, os negócios iam rapidamente precipitar-se muito para
além das reservas dos três chefes militares e dos desânimos do líder
republicano. Na cidade de Ouro Preto, então capital da província de
Minas Gerais, abria-se no dia 9 de outubro uma série de sangrentas
arruaças entre soldados do 9º de Cavalaria e praças de polícia,
surgindo daí um sério conflito de autoridade entre o chefe de polícia
e o comandante daquele corpo. Negando-se a usar a mesma solução
empregada pelo Conselheiro João Alfredo no caso idêntico de São
Paulo em novembro do ano anterior, o ministro manda que para lá
siga a manter a ordem uma numerosa força composta do 23º de
Infantaria e de um esquadrão de cavalaria. Como da expedição a
Mato Grosso, a medida é logo encarada como desfalcamento
premeditado da guarnição da corte, para o fim de enfraquecê-la.
Havia no momento seca no Nordeste, determinando um grande
afluxo de retirantes para o extremo Norte. Fala-se que o governo, no
intuito de prevenir perturbações possíveis, vai destacar mais um
corpo de infantaria para Manaus. A atmosfera no Rio de Janeiro
carrega-se ainda mais. O Visconde de Ouro Preto reage, ordenando
as transferências de oficiais para guarnições distantes a que já nos
referimos. O País entra violenta e francamente a pôr em guarda os
militares contra qualquer cousa que tem por iminente e muito séria...
270
NOTAS
(23) Vide conferência do Ministro Rodrigo Otávio sobre o primeiro
centenário do nascimento de Quintino Bocaiúva, no Vol. 171 da Rev. do
Inst. Hist. e Geog. Bras., págs. 422, 443.
(24) Vide Os Republicanos Paulistas e a Abolição , Cap. VII, págs. 163 a
166.
(25) Vide Tobias Monteiro, op. cit., págs. 154, 155.
(26) Essa entrevista, minuciosamente relatada depois por Cunha Matos,
em publicações feitas no Jornal do Comércio e confirmadas por Alfredo
Madureira, merece uma larga referência às págs. 140 e 141 das Pesquisas
e Depoimentos de Tobias Monteiro.
(27) Na época, pretendeu-se que a idéia partiu do Ministro da Guerra, o
Conselheiro Tomás Coelho, e que exatamente visou afastar do Rio de
Janeiro o esteio mais forte da Questão Militar.
(28) Expressões de Deodoro a Ouro Preto, na manhã de 15 de Novembro.
(29) No caso do chefe de polícia de São Paulo com os oficiais do 17º de
Infantaria, a medida da demissão daquela autoridade completou -se com a
retirada do batalhão que foi transferido para outra guarnição. Na noite de
24 de novembro, véspera da partida dos soldados, um grupo de 3 00 ou
400 pessoas entendeu de fazer-lhes uma manifestação de despedida, à
porta do quartel. Tendo-se levantado do meio do grupo alguns vivas à
República, o comandante chegou à janela e disse da manifestação que a
agradecia, ao Exército rejeitando-a absolutamente, se porventura visava
algum outro fim. (Relatório da polícia dirigido ao presidente da província,
Dr. Pedro Vicente de Azevedo, em data de 25).
(30) Uma das provas mais sugestivas do grande interesse com o qual a
nossa política interna era, em todo aquele período, observada na
República Argentina, encontra-se nas extraordinárias demonstrações de
simpatia com as quais a imprensa de Buenos Aires comemorou o quinto
aniversário da fundação dO País, a 1 de outubro de 1889. La Nación, El
271
Censor, El Nacional, El Globo, El Sud América, El Rio de La Plata , todos
publicaram grandes artigos realmente encomiásticos. El Censor, saudando
a Quintino e Matosinhos, classificou o O País de principal campeão das
idéias democráticas no Brasil, La Nación dizia: “jornal que honra
sobremodo a América Latina e que em prosperidade e influência
adquiridas no curto espaço de um lustro, tornou -se um verdadeiro
fenômeno na imprensa periódica deste lado do Atlântico”. Mas não foi
tudo. Bartholomey Mitre y Vedia, diretor de La Nación, filho do general,
reuniu em sua redação, no correr do dia, os diretores e vários redatores
dos principais jornais portenhos numa grande recepção em honra de
Quintino Bocaiúva e de O País, na qual, com entusiásticos brindes ao
nosso patrício e ao seu jornal, bebeu-se também à República e ao
progresso cívico da América do Sul...
(31) Hoje, Rua Silva Jardim.
(32) Repitamos que existem neste sentido documentos absolutamente
concludentes. Como indicação, pode-se consultar A Política Geral do
Brasil, no seu Cap. X, O Fim do Segundo Reinado, págs. 180 a 182.
(33) Indicação ainda melhor dos verdadeiros sentimentos do Marechal
Deodoro sobre a República encontra -se numa carta por ele escrita a um
seu sobrinho, aluno da Escola Militar do Rio Grande do Sul, em se tembro
de 1888, na qual há o seguinte trecho: “Não te metas em questões
republicanas, porquanto – República no Brasil e desgraça é a mesma
coisa”... Vide Ernesto Sena, Deodoro, Imprensa Nacional, Rio de Janeiro,
1910.
(34) O próprio Glicério, recordando depois as vicissitudes, os momentos
de esperança e desalento por que passaram, contava a sorrir esse incidente
às pessoas de sua intimidade.
CAPÍTULO IV
A HÉJIRA DO CAUDILHISMO
272
Quintino Bocaiúva tenazmente continua a meter a sua cunha
nas articulações da Monarquia. Todo mundo compreende
naturalmente o que ele procura, Mas ninguém quer ainda acreditar
que os soldados se prestem realmente à sua manobra. Em todo caso,
alguém há de tudo bem informado e prevenido. É Dom Henrique
Moreno, ministro da República Argentina no Rio de Janeiro. No dia
10 de outubro ele inesperadamente parte para Bueno Aires a
entender-se com o seu governo. No dia 30 a corveta La Argentina
lança ferros na baía de Guanabara. Vem ficar às ordens do bemavisado e cauteloso diplomata. Aliás, ali já está um outro navio de
guerra sul-americano. É o couraçado chileno Almirante Cochrane.
Este porém vem numa excursão toda ocasional e inteiramente
descuidada. Partindo em primeira viagem dos seus estaleiros de
construção da Europa, aproveita a passagem pelas nossas costas para
uma homenagem ao governo e ao povo do Brasil. Grandes festas
foram-lhe preparadas. Dando-se, porém no dia 18 o falecimento do
Rei D. Luís de Portugal, o luta da corte de São Cristóvão impõe o
adiamento da maior parte do programa. A permanência se prolonga
até o mês seguinte. Naquele instante da nossa vida interna, a
presença daquelas duas bandeiras no porto do Rio de Janeiro, por
motivos tão diversos, não deixa de assumir uma involuntária e
profunda significação na psicologia política do continente...
As notícias do afastamento de mais um batalhão da guarnição
da corte se confirmam. Na manhã de 10 de novembro, o 22º de
Infantaria embarca para o Norte. Tudo correu bem. Mas, dois dias
antes, Aristides Lôbo, fortemente alarmado, incluída nos autógrafos
da sua crônica cotidiana para o Diário Popular de S. Paulo, um
bilhete para Américo de Campos, cautelosamente tudo enviando, em
mão própria, pelo seu sobrinho Francisco José da Silveira Lôbo. O
273
levante militar estava por dias ou por horas. Ele, propriamente, não
se considerava dentro da agitação: não fôra para ela convidado nem
tivera com os seus promotores, até então, qualquer aproximação ou
qualquer contato. Mas, bem informado, achava do seu dever prevenir
os seus amigos do Diário. Américo precipita-se para o escritório do
seu irmão. Bernardino lá estava com Campos Sales. A pequena
missiva de Aristides é lida com intraduzível ansiedade. Bernardino,
com a fisionomia fortemente carregada, fica a olhar absorto pela
janela. Mas Campos Sales escreve rapidamene um telegrama e corre
a entregá-lo na próxima agência de São Paulo Railway: Francisco
Glicério – Campinas – Venha já. Glicério, no seu escritório de
advocacia, leu aquele recado telegráfico num ligeiro sobressalto,
ficando a refletir alguns segundos. Mas, como se procedesse por
enérgica eliminação de tudo quanto ao seu espírito se apresentasse
naquele instante, para pensar apenas no mais urgente, tirou de uma
gaveta o seu diário, que pôs em ordem e encerrou naquela data.
Depois, chamando o seu companheiro Antônio Lôbo, o pôs ao
corrente dos meios de que a sua família disporia, se por acaso lhe
viesse a acontecer alguma cousa. Em seguida, foi-se à sua residência,
e munindo-se da sumária bagagem de quem, por um dia ou dois, vai
a uma pequena viagem de negócios, partiu para São Paulo. Aí,
depois de uma rápida conferência com Bernardino de Campos,
Rangel Pestana e Campos Sales, que o esperavam, tomou logo o trem
para o Rio de Janeiro.
É muito difícil guardar recordações minuciosas de momentos
como aquele. Tudo se passa num turbilhão, sem que se possam ligar
logicamente os fatos, discernindo claramente a influência positiva ou
negativa que neles hajam tido os diferentes indivíduos e os vários
incidentes. Ninguém, a não ser os mais fortes e obstinados, os mais
raros ou raríssimos, chega mesmo a guardar constantemente uma
274
certa unidade de pensar e de sentir. Tudo se confunde, tudo se
emaranha no contraditório torvelinho das emoções sucessivas, que
nem todas são agradáveis de recordar. Há conveniências opostas e
pontos de vista diferentes, tudo concorrendo para que os
depoimentos da época, mesmo os daqueles a quem supúnhamos mais
unidos e solidários, freqüentemente se acusem de esquecimento,
senão mesmo de infidelidade. A quem queira ver as cousas com certa
clareza, é indispensável portanto não dar um crédito absoluto à
espécie de toilette geral do acontecimento, à qual logo em seguida se
procede, a título de versão oficial para os vindouros... Só há um
método seguro: é o de isolar o que haja de constante e permanente
nos vários elementos contraditórios. Ora, se há uma constante nos
dados formativos da crônica de 15 de Novembro, é, de um lado, a
ignorância na qual estava o governo de que realmente se tratasse de
um movimento republicano, e, de outro, a incerteza dos militares
sobre as verdadeiras conseqüências do levante.
Entre 23 de agosto de 1911 e a mesma data de 1912, Ernesto
Sena, o velho e popular repórter do Jornal do Comércio, do Rio de
Janeiro, publicou em sua folha toda uma longa série de informações
sobre o 15 de Novembro, onde um jovem leitor dos dias atuais já
encontraria, sem a menor dúvida, uma grande e profusa fonte de
surpresas(35). O primeiro motivo de admiração seria que, entre os
vários documentos da época, provindos dos meios militares e ali
citados ou reproduzidos, não há um só onde a palavra República
apareça. Em todos eles fala-se apenas dos brios do Exército
conspurcados por políticos inconscientes ou insensatos, contra os
quais era imperioso e urgente reagir. Em nenhum se encontra a
mínima referência a organizações políticas ou formas de governo.
Não é assim tão-somente nos destinados a imediata divulgação, onde
uma certa reserva ou discrição seria compreensível. O mesmo se dá
275
com os mais íntimos ou mais secretos, vindos a público só muito
depois de a conjuração haver triunfado e produzido todos os seus
efeitos. Em seguida, fica-se a saber que a articulação efetiva da
agitação militar com a propaganda republicana só se deu no dia 11
de novembro, isto e, quatro dias antes do levante do Campo de
Santana. Foi realmente naquela tarde, depois de uma conferência
entre alguns oficiais, realizada na casa de Deodoro, que o Tenente
Sebastião Bandeira partiu a procurar Quintino Bocaiúva e Aristides
Lôbo, em falta de melhores referências, pelos cafés da Rua do
Ouvidror(36), enquanto Benjamim Constant seguia a entender-se
com Rui Barbosa, que, não sendo filiado à propaganda, era contudo
da íntima confiança dos chefes militares, que o tinham de reserva
para uma eventual mudança de gabinete, como solução final do
momento. Menos espanto não causa a informação de que, em todo o
desenrolar da grande parada do dia 15, Deodoro decididamente se
opôs a qualquer palavra ou a qualquer gesto que se pudesse traduzir
em ato proclamatório da República. À direita da 2ª Brigada,
estendida em frente ao quartel-general, formara-se, curioso e mais ou
menos inquieto, um certo magote de populares. Aristides Lôbo e
Sampaio Ferraz, que ali vieram, tomaram a palavra para dar conta
àqueles homens da imensa honra que lhes tocava se serem as
primeiras testemunhas do grande fato histórico do advento da
República no Brasil. Logo o marechal mete a trote o seu cavalo para
vir dizer-lhes que o que estavam a fazer não era ainda oportuno ou
ainda não cabia. Entretanto, das baterias do 2º Regimento de
Artilharia um Viva a República! se levanta. É o Tenente Saturnino
Cardoso que assim se manifesta. Deodoro, a agitar energicamente o
braço, vem sobre ele, fazendo-o calar, com a áspera observação de
que aquela atitude não era digna de um oficial em forma. Deixe isto
para os civis, acrescentou. Mas, aos civis, ele vinha de acoimar de
276
inoportunos... A preocupação de salvar a Monarquia torna-se tão
evidente no chefe da revolta que, quando tudo parecia terminado, um
dos principais elementos da tropa, o Major Sólon Ribeiro,
comandante do 9º Regimento de Cavalaria, dele se aproxima para
dizer-lhe, segundo menciona Ernesto Sena, que a sua espada não se
embainharia enquanto não fosse proclamada a República! Dessa tão
inesperada e tão característica declaração ainda nos ocuparemos mais
adiante.
O trabalho de Ernesto Sena, todo no gênero do homem
habituado a apenas compor rápidas notas sobre fatos da vida
cotidiana, não chega a ser bem uma narrativa. É apenas um copioso
repositório de dados e documentos, completado um pouco
estouvadamente por alguns traços anedóticos. Mas, na mesma época
da sua edição definitiva, aparece um outro livro que traz em si tidos
os sinais de um verdadeiro trabalho de escritor. São as Pesquisas e
Documentos para a História, de Tobias Monteiro, a que por vezes já
nos temos referido.
O trabalho de Tobias Monteiro, sobretudo nos quatro
capítulos enfeixados sob a rubrica geral de Quinze de Novembro, é
realmente um modelo de crônica minuciosa e bem elaborada.
Catorze meses após a queda da Monarquia, o autor consegue ouvir
pessoalmente quase todos os figurantes ainda vivos daquele drama.
Lá estão o Visconde de Ouro Preto, o Barão de Lucena, Francisco
Glicério, Serzedelo Correia, o General Cunha Matos e vários outros,
sem esquecer alguns dos já então desaparecidos, que ele não logra
mais atingir, como Deodoro e Floriano, mas dos quais ainda fixa
alguns aspectos inteiramente novos, em notas inéditas e de grande
efeito sugestivo.
Mas, de todos os instrumentos de informação ali
apresentados, aqueles nos quais o autor menos parece acreditar, a
277
mesma impressão transmitindo aos seus leitores, são exatamente os
destinados a emprestar ao advento da República naquele dia o caráter
de um ato seriamente deliberado e conduzido com clara e perfeita
consciência. Só de uma cousa se fica certo: é de que o Visconde de
Ouro Preto, depois de haver afirmado na noite de 14 ao Conselheiro
Sousa Ferreira, diretor do Jornal do Comércio, que o governo
dispunha de todos os meios necessários a defender a ordem e manter
a autoridade, na manhã do dia seguinte se encontrava sitiado no
quartel-general, com todos os seus companheiros de gabinete,
inteiramente à mercê da tropa sublevada.
A simples disposição das forças no local já é de um grande
valor informativo(37). No campo fronteiro ao edifício, trazendo à
frente o Marechal Deodoro, estendiam-se o 1º e o 9º Regimento de
Cavalaria, o 2º da Artilharia (toda a 2ª Brigada) e os alunos da Escola
Superior de Guerra, vindos de São Cristóvão. No pátio interno e ao
lado, em frente à estação da estrada de ferro, sob as ordens imediatas
do Marechal Floriano Peixoto, ajudante-general do Exército, estavam
os contingentes com os quais o governo contava para a resistência. A
relação numérica dos dois grupos em presença era de um para quatro,
pois a tropa trazida por Deodoro apenas excedia de quinhentos
homens, enquanto a mais de dois mil se elevavam os defensores da
autoridade. Mas eram estes que, ao lado do quartel acabaram
fechando o cerco... Só um soldado se alteia a reagir: é o almirante
Barão do Ladário, ministro da Marinha. Intimado de prisão ainda na
rua, o bravo marinheiro duas vezes dispara a sua pistola sobre o
chefe sublevado, sem o conseguir tocar ou atingir, recebendo em
resposta uma descarga de clavinas que o prostra por terra todo
ensangüentado. O Marechal Deodoro penetra então no edifício e,
subindo ao salão onde se encontrava o presidente do Conselho,
notifica-lhe simplesmente... a demissão do gabinete!
278
Sobre o que realmente se passou naquele instante, nenhum
testemunho poderá jamais ser anteposto ao do próprio Visconde de
Ouro Preto, que, emocionado e sincero, o exarou no seu livro A
Ditadura Militar no Brasil, saído alguns meses após aqueles fatos.
Assim resume ele o que então lhe disse o chefe da revolta: No meio
do mais profundo silêncio, cientificou-me de que se pusera à frente
do Exército para vingar as gravíssimas injustiças e ofensas por ele
recebidas do governo... Só o Exército, afirmou, sabia sacrificar-se
pela pátria e, no entanto, maltrataram-no os homens políticos que
até então haviam dirigido o país. Apesar de enfermo, não se pudera
escusar a dirigir seus camaradas por não ser homem que recuasse
diante de cousa alguma, temendo só a Deus. Aludiu aos seus
serviços no campo de batalha, rememorando que pela pátria estivera
durante três dias e três noites combatendo no meio de um lodaçal,
sacrifício que eu não podia avaliar. Declarou que o Ministério
estava deposto e que se organizaria outro de acordo com as
indicações que iria levar ao imperador. Disse que todos os ministros
podiam retirar-se para suas casas, exceto eu – homem teimosíssimo,
mas não tanto como ele (assim se exprimiu) – e o Sr. Ministro da
Justiça, que ficaríamos presos até sermos deportados para a Europa.
Quanto ao imperador, concluiu, tem a minha dedicação; sou seu
amigo, devo-lhe favores. Seus direitos serão respeitados e
garantidos.
Essa narração do Visconde de Ouro Preto concorda no fundo
com as palavras de aspectos textuais, atribuídas ao Marechal
Deodoro pela imprensa da época, através dos repórteres ali presentes:
Vossa Excelência e seus colegas estão demitidos, por haverem
perseguido oficiais do Exército e revelarem o firme propósito em que
estavam de abater ou mesmo dissolver o próprio Exército. Nesta fase
de pretensões lapidares, recomposta ainda na forte emoção do
279
acontecido, resume-se afinal todo o programa dos militares naquele
dia. Segundo os dados tão fiéis recolhidos depois por Tobias
Monteiro, tudo quanto se passa dali por diante toma o aspecto de um
tumulto precipitado e constrangido, onde apenas o temos das
responsabilidades pelo ato praticado regula as decisões. Nas
narrativas depois apresentadas, não há duas que realmente se
assemelhem. Mesmo entre os principais interessados, militares ou
civis, não há afirmações coerentes nem concordância de
apontamentos. Glicério, por exemplo, depois de dizer a Tobias
Monteiro que Deodoro, à última hora, sempre chegara a consentir na
proclamação da República, conta ter-se visto à tarde do grande dia na
necessidade de juntar gente pelas ruas para ir em cortejo à casa do
marechal a saber do que afinal se proclamara ou fôra proclamado no
Campo de Santana. As dez horas da noite Benjamin Constant ainda
se encontra na obrigação de recordar ao comandante da grande
parada da manhã, que, naquelas alturas, não era mais tempo de
vacilar. O tenente-coronel observa cruamente ao marechal que este
tem bem o direito de arriscar ou pôr em jogo a sua cabeça, mas não
as dos seus amigos e companheiros(38). Entretanto, ele mesmo,
Benjamim, ainda na véspera, não somente ignorava que o movimento
se fizesse naquele dia, como estava mesmo na firma convicção de
não ser ainda o momento de o fazer(39).
***
Muito se tem querido esconder ou velar as indecisões do 15
de Novembro. A versão de haver o Marechal Deodoro penetrado no
pátio interno do quartel-general a lançar um Viva Sua Majestade o
Imperador!, que tão bem concorda e se harmoniza com aquelas
declarações por ele feitas ao Visconde de Ouro Preto, é sobretudo
280
apontada como digna somente de ser repelida e cancelada(40). Para a
boa apresentação histórica dos fatos, só um viva podia ele haver
levantado naquele instante: um Viva a República! Assim pode não
ter sido, mas é assim que o devemos ter por verificado e
indiscutível... A história seria porém uma bem pobre fantasia, se só
em convenções desta natureza a tivéssemos de assentar. Aliás, a
simulação de bem pouco serviria, pois de completamente arruiná-la
se encarregou o próprio Quintino Bocaiúva...
Partindo naturalmente dos boletins iniciais do 15 de
Novembro (o Exército e Armada em nome da Nação...), o quadro da
proclamação, logo apresentado pelos cronistas oficiais, só podia ser o
de um arranco espontâneo e irresistível das forças militares, a trazer
o Marechal Deodoro como espírito e centro vivo da apoteose, com
inevitável esbatimento ou atenuação de outras figuras. Uma das
primeiras vítimas da penumbra assim formada, ao favor da qual
muitas individualidades de menor significação entraram a empurrarse para a aura luminosa, foi o Major Sólon Ribeiro. Entretanto, se à
última hora alguma ligação real se estabeleceu entre a Questão
Militar e a propaganda republicana, dela foi esse oficial certamente o
agente mais eficaz e mais seguro. Foi ele, do ponto de vista militar, o
braço direito, poderíamos mesmo dizer o chefe de estado-maior de
Quintino Bocaiúva na jornada de 15 de Novembro. mas, homem
sisudo e um tanto severo de atitudes, não conseguiu depois as
vantagens e brilhantes posições com as quais outros se premiara,.
Caído no desagrado do Marechal Deodoro da Fonseca ainda no
período do Governo Provisório, ele era mandado recolher a uma
prisão militar pelo Marechal Floriano Peixoto durante a revolta naval
de 1893, para vir a falecer alguns anos depois, mais ou menos
esquecido, como general de brigada reformado. Em 1902, tão
malparada andava a sua memória na glorificação literária dos heróis
281
republicanos, que a sua viúva, D. Túlia Sólo Ribeiro, resolveu pedir a
Quintino Bocaiúva que lhe quisesse dizer como pensava do papel do
seu marido na jornada memorável. O velho propagandista, então
presidente do Estado do Rio de Janeiro, não se fez rogado. Em uma
longa missiva(41), firmada em Petrópolis no dia 31 de julho daquele
ano, é assim que ele começa: Tenho lido tantas historias sobre o
movimento revolucionário de 15 de Novembro de 1889 e sobre a
proclamação da República, que, afinal receoso de baralhar as
minhas reminiscências, deliberei reconcentrar-me na minha
memória, esquivando-me a fornecer o meu testemunho, quando o
caso o reclamasse... Depois de tão claramente infirmar de inexatidão
a crônica corrente, com as suas arbitrárias atribuições de méritos e
glórias, Quintino Bocaiúva firmemente declara que o antigo Major
Sólon Ribeiro foi o elemento decisivo no levante do Campo de
Santana: Entre todos quantos tomaram parte na revolução de 15 de
Novembro, nenhum foi mais abnegado do que o General Sólon,
nenhum exerceu mais decisiva influência na proclamação da
República do que ele. O episódio daquela interpelação feita pelo
major ao marechal perante as tropas sublevadas, atrás referido, ele
não somente o confirma, como avoca a si a sua inspiração,
acrescentando com detalhe: O que o então Major Sólon disse, no
exaltamento do seu entusiasmo ao Marechal Deodoro, quando este
voltou a colocar-se à frente das tropas, depois de haver intimado a
demissão do Ministério Imperial, foi que não embainhava a sua
espada antes de proclamada a República. Como eu estava ao seu
lado e me recordo do incidente não duvido descobrir-me a mim
próprio, confessando que fui o instigador desse movimento, por
circunstâncias que alguns conhecem, mas que eu peço licença de
guardar em reserva.
282
As circunstâncias que alguns conheciam mas que ele pedia
licença à sra. Sólon Ribeiro para guardar em reserva, a esta altura da
nossa exposição, já deixaram de ser secretas. Eram os evidentes
esforços do marechal para limitar as conseqüências do levante à
simples demissão do Ministério, ressalvando os direitos do
imperador, e, portanto, a Monarquia, em perfeita coerência, aliás,
com as origens, a evolução e a própria natureza da Questão Militar,
que, não tendo sido jamais uma questão política, não era de fato um
movimento republicano. Quintino Bocaiúva tanto não se iludia a este
respeito que nunca procurou o menor entendimento ou o menor
contato direto com os meios militares, onde tinha todos os motivos
para supor não ser bem recebido com os seus projetos de ação ou as
suas idéias. Ele deixou a Questão Militar evoluir isoladamente. Mas,
compreendendo bem que, como permanente e progressiva rebelião
contra a autoridade, ela não podia deixar de, mais hoje, mais amanhã,
vir a chocar-se diretamente com a coroa, tomou a si de
sistematicamente ampliá-la, oferecendo-lhe em seu jornal uma
espécie de superfície irradiante ou de centro de ressonância, donde
ela, argumentada e mais viva refluísse mais diretamente e mais
intensa sobre os quartéis.
Entretanto, ele não podia esperar toda a sua vida que os
militares se resolvessem enfim a tomar armas e sair à rua. Dado o
espírito estreito e inconseqüente da sua agitação, adstrito apenas a
reivindicações profissionais nem muito precisas nem jamais
claramente enunciadas, era muito possível que eles, ante a gravidade
e os perigos daquela hipótese, fossem a recuar indefinidamente as
suas decisões, até virem as cousas a amortecer por si mesmas, ou de
alguma forma se arranjassem. No dia 20 de novembro reabria-se o
Parlamento. Era sabido que o governo já tinha pronto a apresentar às
Câmaras um projeto de completa reorganização das forças militares,
283
com aumento geral do soldo e grande aquisição de novos
armamentos. Estava-se no mês de outubro. O momento era a todos os
títulos decisivos. Se o deixassem passar, estaria tudo comprometido
para o futuro. Iremos ao 3º, ao 4º, e ao 5º reinados, observava com
tristeza o incansável propagandista(42).
Foi nesse instante realmente psicológico que, ao azar de uma
relação comum, ele veio a encontrar o Major Sólon Ribeiro. Estatura
esbelta e um pouco acima da média, fronte alta, cabelos curtos
totalmente voltados para trás, olhos pequenos e brilhantes, tocados de
uma forte expressão de vontade inteligente e inflexível, nariz afilado
e um tanto adunco, barba toda, um pouco loura, com o farto bigode a
esconder os lábios energicamente cerrados, era o Major Sólon
Ribeiro um desses homens que logo à primeira vista impressionam
fortemente. De volta de uma comissão ao Sul do país, para a qual
fora escolhido a contragosto, estada adido ao 9º Regimento de
Cavalaria que, por motivos de indisciplina e distúrbios na via
pública, havia sido transferido da cidade de Ouro Preto para o quartel
do 1º da mesma arma, em São Cristóvão. Um pouco parecidos no
perfil e nos modos severos e reservados, Quintino Bocaiúva e aquele
oficial eram dois homens feitos para entenderem-se. A partir daquele
dia, os processos de agitação militar modificaram-se, passando a
solicitar principalmente a cadetes e sargentos, na imediata intimidade
das casernas. Sólon Ribeiro, muito mal disposto pelas suas últimas
relações com a Secretaria da Guerra, pensava que aos grandes chefes
militares faltavam sobretudo energia e decisão. Entre os dois foi logo
resolvido precipitar os acontecimentos, atropelando e empurrando
para a frente os indecisos. Afora os alunos militares, já longamente
inquietados pelas dissertações teóricas do Tenente-Coronel
Benjamim Constant, mas sem a obediência mecânica e o
conseqüente desprezo de conseqüências dos soldados das fileiras, os
284
corpos mais bem dispostos para um rápido e eficaz golpe de audácia
eram os da 2ª Brigada, o 2º Regimento de Artilharia e os 1º e 9º de
Cavalaria, todos aquartelados em São Cristóvão. O plano de ação
concretizou-se imediatamente em levantá-los e trazê-los em armas à
praça pública, forçando todos os demais a uma pronta e extrema
decisão. Ante a ingrata e inevitável perspectiva do mútuo massacre
de camaradas, o espírito de classe, já tão exaltado no momento, faria
o resto...
Eles tiveram razão, pois tudo se passou como previram. Na
sua carta à Sra. Sólon Ribeiro, Quintino Bocaiúva conta que na noite
de 14 de novembro Benjamim Constant (este ilustre e legendário
companheiro, tão nobre e desprendido quanto ingênuo e sincero...)
ainda não sabia quando o levante se daria – porque na noite seguinte
ao dia 14 devia conferenciar com alguns amigos do Clube Naval, e
que só depois disso é que poderia fixar o dia do movimento
revolucionário. Eu tinha na minha opinião que estava abortada a
revolução, se ela não explodisse na manhã de 15 de Novembro. A
discussão aí indicada teve lugar num escritório que o diretor dO País
tinha na Rua do Carmo, ali bem perto da redação. Naquela noite
pairava sobre toda a cidade do Rio de Janeiro uma pesada atmosfera
de apreensões. O governo havia dado ordem de prontidão a todos os
corpos da guarnição, nenhum soldado podendo sair à rua após a
revista do recolher. O Major Sólon Ribeiro estava presente ao
colóquio do jornalista com o professor da Escola Militar. naquele
instante, aproveitando a própria ordem de prontidão expedida pelo
governo, ele já havia concertado com os sargentos dos quartéis de
São Cristóvão que à meia-noite os três regimentos, armados e
municiados estivessem em forma. Quando Benjamim Constant, com
expressões tranqüilizadoras de quem está certo de não haver motivos
de precipitação, se retirou da Rua do Carmo, ele também se despediu
285
de Quintino Bocaiúva, mas o fez com o ar severo e decidido de
quem, apesar de tudo, já sabe muito bem o que fazer. Daí a pouco, no
Largo de São Francisco de Paula, ele atravessava os grupos de
curiosos que à luz do gás comentavam os acontecimentos daquele
dia, deixando atrás de si como um rastilho a notícia de que o
governo, entre várias medidas de extrema severidade, acabava de
mandar prender o Marechal Deodoro da Fonseca e o Dr. Benjamim
Constant. Ele descobrira o melhor serviço que, no momento, ainda
podiam aqueles dois prestar à conspiração. No largo havia vários
oficiais vestidos à paisana. Em poucos segundos, quase todos os
tílburis do habitual estacionamento em frente à Escola Politécnica,
tinham desaparecido em furiosa disparada...
A passagem do Major Sólon pelo Largo de São Francisco de
Paula deu-se mais ou menos às sete e meia da noite. À uma hora da
madrugada começaram os oficiais a afluir aos quartéis de São
Cristóvão, onde se foram incorporando aos esquadrões e baterias, já
metidos em forma pelos sargentos. Benjamim Constant e Deodoro,
até então, de nada sabiam nem suspeitavam. O primeiro só apareceu
às cinco e meia da manhã, trazido por dois oficiais da Escola
Superior de Guerra, que, alertados como os outros, o foram procurar.
Deodoro, tendo mesmo passado mal a noite com um dos seus
freqüentes acessos de dispnéia, estava ainda na cama quando um seu
sobrinho e mais dois oficiais o vieram avisar de que a coluna de São
Cristóvão já vinha em marcha sobre a cidade. Levantando-se
surpreso e visivelmente agita, ele fardou-se em grande pressa e,
acompanhado pelos três, partiu numa caleça ao encontro da tropa
sublevada, levando num saco, ao lado do cocheiro, os seus arreios de
montar. Depois de uma volta inútil até o quartel do 1º de Cavalaria,
ele veio dar com a coluna já na Rua Senador Eusébio, em frente à
companhia do gás. Daí, sempre de carro, a veio acompanhando até a
286
esquina da Rua Visconde de Itaúna, onde desceu. Foram então
trocados os arreios do cavalo do Alferes Eduardo Barbosa, do 1º
Regimento. O marechal, que até ali parecia ofegante e mais ou
menos abatido, como que recobrou todo o seu ânimo. Montou a
cavalo e, muito ereto e firme sobre a sela, mandou a tropa tomar
posições para combate, em frente ao quartel-general.
Foi assim, inopinadamente e mais ou menos compelidos, que
os dois chefes principais do movimento foram trazidos ao Campo de
Santana. Mas não foi apenas a eles dois que se reservaram as
surpresas daquele dia. Com a súbita corrida de oficiais aos quartéis
de São Cristóvão, determinada pela discreta manobra do major Sólon
Ribeiro, a polícia também quis saber do que se passava por ali. As
três horas da madrugada, as tropas com as quais o governo supunha
contar para sua defesa também eram alertadas, partindo a ocupar as
posições que lhes haviam sido previamente indicadas pelo ajudantegeneral do Exército. Entre as destinadas ao quartel-general estava
uma brigada de Marinha, que ficou estendido à direita do edifício,
cobrindo a pequena praça fronteira à estação e tendo à retaguarda um
batalhão de polícia, disposto em colunas de companhia. Foi dado o
comando desse grupo ao Brigadeiro Almeida Barreto. Quando a
força vinda de São Cristóvão entrou a estender-se, o Capitão-deFragata Frederico Lorena, vendo aproximar-se o Contra-Almirante
Eduardo Wandenkolk, perguntou-se com certa ansiedade: Chefe, de
que lado está o inimigo?...(43)
Foi aquele o momento exato no qual de tudo decidiu o
espírito de classe. O Marechal Deodoro mandou ordem ao Brigadeiro
Almeida para trocar de campo. Houve um rápido e aflitivo instante
de incerteza. A ordem, duas vezes, teve de ser energicamente
repetida. Mas o brigadeiro moveu-se. Ouviram-se vozes de comando.
Fuzileiros navais e marinheiros, seguidos docilmente pelas
287
companhias de polícia, vieram alinhar-se como convinha, à esquerda
da gente de São Cristóvão. O inimigo estava do outro lado, ou,
melhor, estava no cerco. Era apenas o Conselho de Ministros...
***
O que se dera afinal fôra que os militares, arrastados na
crescente irritação do seu conflito com os sucessivos gabinetes, não
chegaram a perceber que, a partir do aparecimento dO País, não
eram mais donos dos seus movimentos nem senhores das suas
decisões. Uma idéia viera associar-se à simples paixão de classe que
os dominava, aó resumindo-se toda a psicologia do golpe de 15 de
Novembro. não caberia certamente a Quintino Bocaiúva a pública e
franca revelação deste segredo, no qual se incluíam e comportavam
todas aquelas circunstâncias por ele referidas como secretas. O
elogio aí implícito não deixaria de ser grande demais em boca
própria. Entretanto, seria justo afirmar não ter havido um único
oficial para sentir ou compreender onde o direitor dO País os
conduzia? Certamente não. Entre os signatários daquele áspero e
severo Termo de Compromisso e Adesão, promovido por Aristides
Lôbo em 1877 como reação ao amortecimento da propaganda
republicana conseqüente ao grande interesse pela campanha
abolicionista, há vários oficiais. Lá estão, com mais uns quatro ou
cinco de menor notoriedade, Moreira César, Siqueira de Meneses,
Dantas Barreto e Vespasiano de Albuquerque. Nenhum deles,
entretanto, se faz notar em toda aquela, ao mesmo tempo, tão ativa e
tão discreta conspiração. Como velhos brasileiros, dentro da nossa
tradicional compreensão da vida pública, outro era também o modo
pelo qual esperavam a nossa ascensão à forma republicana. Se
chegaram a ver realmente as cousas, tal como elas se dispunham e
288
preparavam, certamente contentaram-se em dar de ombros, já que
nem as autoridades da Monarquia nem os seus companheiros de
uniforme as sabiam ver e interpretar com exatidão.
Benjamim Constant, do seu lado, fosse qual fosse a firmeza
dos seus princípios filosóficos, não escapava aos mesmos e
confessados escrúpulos de consciência que prendiam o Marechal
Deodoro e o Visconde de Pelotas à pessoa do imperador, fazendo da
duração da vida do monarca um obrigatório motivo de protelação da
Monarquia. O próprio Major Sólon, ainda nos fins de 1888, não era
republicano. Solicitado como todos os seus camaradas pela sua
questão de classe, teve muito a queixar-se naquele ano contra o
gabinete João Alfredo, por haver sido enviado a contragosto, como já
dissemos, a servir no Paraná. Na viagem, entre os portos do Rio de
Janeiro e Paranaguá, mostrava-se desgostoso e apreensivo. Mas,
amistosa e paternalmente interpelado sobre os motivos das suas
preocupações por um dos seus companheiros de bordo, o Rev.
Carvalhosa, da Igreja Presbiteriana de São Paulo, apenas queixou-se
dos políticos civis, constituídos a seu ver em barreira prejudicial
entre o Exército e o imperador. Foi só na sua volta à corte e a menos
de dois meses do levante do Campo de Santana que o seu interesse
pela República se manifestou, como conseqüência daquele primeiro
encontro com Quintino Bocaiúva. O ardoroso e tenaz propagandista
facilmente lhe fez compreender que, naquela altura, não havia mais
como reconciliar o Exército com o princípio de autoridade
expressado na Monarquia. O Exército tinha que arrebatar para si
mesmo a representação total daquele princípio, proclamando a
República em nome do povo, ou aceitar as inevitáveis conseqüências
daquele seu incoerente e indefinido estado de sedição. Colocadas as
cousas nesse plano terrivelmente prático. O Major Sólon não teve
289
dúvidas em jogar tudo por tudo, constituindo-se em realizador in
extremis das velhas e sagazes previsões de Quintino Bocaiúva(44).
Compreende-se portanto que o ardoroso propagandista tenha
vindo dizer depois que nenhum exerceu mais decisiva influência na
proclamação da República do que ele. O que não oferece dúvida
entretanto é que foi por um verdadeiro plano inclinado, no qual não
podiam mais recuar nem conseguiam mais se deter, que os militares
chegaram ao 15 de Novembro.
Para encarar despreocupadamente e com fácil entusiasmo a
transfiguração final da Questão Militar em revolução republicana,
houve apenas um pequeno grupo de jovens oficiais e alunos
militares, entre os quais é justo destacar o Capitão Mena Barreto, os
Tenentes Sebastião Bandeira e Saturnino Cardoso e o Alferes
Joaquim Inácio que se fizeram, a partir do dia 11 de novembro, os
exaltados e espontâneos ajudantes do Major Sólon. Na noite de 14
para 15, os três últimos, havendo recebido do major a falsa notícia da
prisão de Benjamim Constant e Deodoro, acrescida ainda de um
iminente ataque da polícia e da Guarda Negra aos regimentos de São
Cristóvão, foram de tal boato os propagadores mais ativos e eficazes,
não só correndo os quartéis em grande agitação, como indo mesmo
de porta em porta a levantar os oficiais já recolhidos às suas
residências. Fora daquele grupo certamente reduzido, só houve para
aceitar a República, deliberadamente e sponte sua, um único homem
– o Marechal, Floriano Peixoto. Mas este aí chegou por um caminho
não somente oposto ao de todos os outros da sua classe, como
totalmente estranho aos sentimentos ou à própria alma do Brasil
daquele tempo.
Tipo de soldado clássico, ou, melhor, tipo clássico do homem
de tropa, aferrado por instinto às normas e obrigações da disciplina, o
Marechal Floriano Peixoto jamais consentiu em se comprometer na
290
Questão Militar, terminantemente recusando participar dos seus
conciliábulos. Foi exatamente a grande condescendência do
cancelamento ex-officio das sanções disciplinares o que, aos seus
olhos, desacreditou por uma vez o governo da Monarquia. Aqui está
como, em carta dirigida das Alagoas ao Coronel João Soares Neiva
em 10 de julho de 1888, ele julgava aquela extrema concessão do
poder público aos soldados sediciosos: Fato unido que prova
exuberantemente a podridão que vai por este pobre país e portanto a
necessidade da “ditadura militar” para expurgá-la. Como liberal
que sou, não posso querer para meu país o governo da espada; mas
não há quem desconheça e aí estão os exemplos de que é ele o que
sabe purificar o sangue do corpo social, que como o nosso está
corrompido...(45) Dizendo como liberal que sou, Floriano Peixoto
referia-se à circunstância de pertencer ao Partido Liberal, ao qual
servira como presidente da província de Mato Grosso de maio de
1883 a outubro de 1884. Desiludido com o lamentável expediente
dos seus correligionários do Senado, em lamentável associação com
o governo conservador, ele rompia não só com o seu partido, mas
com a própria Monarquia. Entretanto, prevendo a substituição do
governo legal pela incapacidade revelada de manter a disciplina, ele
evidentemente esperava combater o mal levando-o simplesmente ao
paroxismo... Foi exatamente pelo seu notório apego às regras
disciplinares que o Visconde de Ouro Preto, logo após a constituição
do gabinete de 11 de junho, o chamou ao posto de ajudante-general
do Exército, promovendo-o ainda de general-de-divisão a marechalde-campo. Mas o chefe liberal não podia saber as estranhas reações
que o desrespeito àquelas regras, no qual ele tanto se comprometera,
havia produzido no espírito do seu taciturno e severo correligionário,
por aí se explicando bem todas as surpresas que veio a ter na manha
de 15 de Novembro...
291
A página 118 das suas Pesquisas e Depoimentos põe Tobias
Monteiro a seguinte informação: “Não há muito tempo, em artigo
publicado na imprensa, referiu o General Cunha Matos que,
voltando de assistir ao desfecho do Aquidabã em que Lopes morreu
recusando render-se, dizia Floriano Peixoto, então major da coluna
expedicionária: De um homem daqueles é que nos carecemos no
Brasil”. As preferências do ajudante-general do gabinete de 7 de
junho pela ditadura militar, como terapêutica no tratamento das
demopatologias, eram portanto muito anteriores às suas decepções na
Questão Militar, desde que a receita lhe vinha assim da guerra do
Paraguai. Segundo aquela informação, ele estaria também em
condições de ver os negócios do Brasil pelo prisma especial hispanoamericano, com a agravante de escolher uma das suas faces mais
grosseiras e mais sombrias... Em todo caso, não se poderá dizer que
ele haja tido qualquer influência na Questão Militar, que tão
profundamente repudiava, nem há prova alguma de se ter jamais
posto em contato com Quintino Bocaiúva. A sua ação em tudo aquilo
foi portanto indireta e sempre solitária. Pode mesmo dizer-se que foi
apenas negativa, pois restringiu-se a imobilizar no quartel-general as
tropas com as quais contava o governo para se defender. A chamada
para ali dos corpos de polícia e de bombeiros, para colocá-los sob a
imediata vigilância dos batalhões do Exército e a uma distância que
não permitisse a mínima veleidade de reação, foi dessa manobra
secreta e toda pessoal a parte mais astuta. Dos dados reunidos por
Tobias Monteiro se depreende que, depois de haver assumido o posto
de ajudante-general do Exército, várias vezes foi instado pelo
Marechal Deodoro a tomar posição na pura questão de classe,
comprometendo-se num possível levante destinado apenas a
satisfazê-la. De cada vez a sua recusa foi imediata e peremptória.
Não; não contassem com ele para um simples ato de indisciplina,
292
sem a mínima significação política. Se fosse para fazer a República,
então sim!
Por aí se vê a enorme diferença de mentalidade que os
separava. Deodoro, em que pesasse o seu acidental e estranho modo
de compreender as relações do Exército com o poder civil, ainda de
certa forma se mantinha fiel às tradições políticas do seu país. Ele,
não. Admitindo, a título de corretivo, a completa invasão da política
pela tropa, delas já se havia totalmente libertado.
Superficial e bem ligeiro em seus juízos seria entretanto
aquele que, sumariamente ou sem maior exame, a um ou outro
daqueles dois homens condenasse em absoluto. Para tanto seria
indispensável negar-lhes preliminarmente a natureza humana ou a
qualidade de serem homens. Nas indecisões do Marechal Deodoro
nunca deixou de haver uma certa nobreza ou uma certa elevação. Era
entre o respeito ao próprio espírito político da sua terra e o afeto
pelos seus companheiros de sofrimentos e de glórias no Paraguai que
continuamente ele oscilava. Na sua posição, que poderia ele temer
pessoalmente da possível animosidade de políticos civis? Tudo
fariam eles para tê-lo do seu lado. Tudo lhe foi oferecido. O Barão de
Cotegipe, seu correligionário no Partido Conservador, quis fazê-lo
Visconde de mato Grosso, e bastaria uma palavra sua para que um
lugar se lhe abrisse no governo. Tudo ele recusou, tudo deixou de ver
porque apenas o dominavam os seus sentimentos afetivos, nos quais,
confusamente, mas com grande intensidade, chegava a compreender
o próprio imperador. A vida do velho soldado em todo aquele
período foi uma tremenda luta interior, na qual às reações do seu
cérebro continuamente se opunham as suas fraquezas, senão as suas
melhores qualidades de coração. Quem negará que seja em lutas
desta natureza que se gerem e concretizem em geral as grandes ações
humanas? Tudo está na escolha da última decisão, mas, para que esta
293
seja a mais feliz e mais correta, é indispensável ainda que o permitam
as circunstâncias, entre as quais se incluem as nossas próprias
disposições psicológicas no momento decisivo... A história dos
povos está naturalmente cheia de casos como aquele. O herói,
sobretudo no último instante ou na hora final, não tem mais o
controle dos seus passos. É apenas um acessório do fato heróico, que
o será principalmente segundo se projete na mente dos vindouros... O
Marechal Floriano Peixoto, do seu lado, também não poderia fugir
aos seus imperativos ontológicos, em face do seu tempo. Soldado – e
sobretudo ou unicamente soldado – o respeito à disciplina militar
parecia-lhe a pedra de toque das instituições políticas e o espelho da
boa ordem em todo o conjunto da vida social. Que valor podiam ter
para ele governos que consentiam em sofismar os regulamentos
militares para fugir aos incômodos ou às ameaças de uma sedição
tumultuária e inconsciente? Como poderia ele servir esses governos e
que espécie de fidelidade poderiam eles reclamar de um soldado e
um patriota como ele se estimava?... A única cousa a tentar era a
regeneração do Brasil, a purificação do sangue do corpo social, por
uma autoridade inflexível e mesmo inexorável, que, como expressão
de força irresistível, só podia ser de caráter militar. A revolução
republicana, fazendo ruir a velha e apodrecida construção da
Monarquia, era o caminho natural e imediato para aquela autoridade
– que só ela restabeleceria a disciplina, na exata compreensão dos
deveres de todos e de cada um! Assim pensava ele...
Tendo em conta as profundas diferenças de caráter que
mutuamente distinguiam aqueles dois homens, entretanto tão
semelhantes pelos recursos de educação e os dotes de cultura,
imediatamente compreende-se as suas respectivas posições naquele
instante, como conseqüências obrigatórias e inevitáveis das várias
circunstâncias. Não resta porém a menor dúvida de que seja em
294
momentos como aquele que mais preciosos se tornem para os
indivíduos – para eles como para o meio sobre o qual sejam
chamados a reagir – essas grandes qualidades de claro entendimento
e visão justa que só uma boa dose de cultura geral, aliada a uma certa
experiência da vida pública, sabe em política fornecer. Nem um nem
outro explicava ou compreendia com clareza as cousas do seu tempo.
Nem Deodoro, constituído em grande protetor da Questão Militar,
nem Floriano tendo-a por insensata e monstruosa, chegada a perceber
que tudo aquilo não passava de um reflexo, de um puro reflexo, cuja
origem, sendo a árdua e longa agitação abolicionista, já estava de
todo encerrada em 1888. Perante a Câmara a abrir-se a 20 de
novembro de 1889, a confusão dos partidos e das idéias em geral, na
qual nasceram tanto os ímpetos panfletários dos militares como as
condescendências disciplinares do governo, seria um fato do
passado. A atenção pública estaria voltada para outras preocupações
e outros assuntos, com uma nova definição de posições que
automaticamente restabelecesse na política geral a mútua e bem
determinada oposição de idéias e princípios, sem a qual não há
partidos nem possível equilíbrio nos países de organização
parlamentar. A posição do Exército desse novo ambiente rarefeito e
saneado pela precipitação ou pela grande descarga da Abolição, não
seria naturalmente muito diferente da que tivera na Independência,
no dia 7 de Abril e na Maioridade, como em última análise também a
teve na Abolição. Na passagem final da Monarquia para a República,
os soldados não teriam certamente de substituir a opinião pública do
seu país ou a ela violentamente se suporporem, salvando-se portanto
os nossos costumes políticos e os nossos métodos tradicionais de
evolução.
***
295
Perante as considerações aqui trazidas até agora que
necessariamente decorrem da nossa norma peculiar de evolução, da
própria natureza ou da própria índole da nossa formação histórica no
continente, é que se compreende bem o imenso trabalho
empreendido e executado pro Quintino Bocaiúva. Circunscrito a
exagerar os incidentes, até levá-los a exceder e dominar
completamente os fatos essenciais, esse trabalho constitui certamente
o mais escandaloso e formidável artifício jamais montado na história
de qualquer povo. O diretor de O País não podia realmente
compreender e muito menos se associar a uma proclamação da
República por ato regular do Parlamento, como expressão de um
voto previamente pedido ao eleitorado ou à nação, tal como o
sonhavam os estadistas do Império, fossem eles conservadores, como
Cotegipe ou Francisco Belisário, ou fossem liberais, como Ouro
Preto ou José Antônio Saraiva. A República, vazada nestes moldes,
seria um lógico e puro desdobramento da Monarquia, a manter e
consolidar o Brasil no seu velho caráter de democracia parlamentar,
em necessária contradição com a democracia autoritária ou
simplesmente caudilhesca dos seus vizinhos castelhanos. Ora, o
programa de Quintino Bocaiúva visava exatamente a contração do
Brasil ao nível comum do continente. Mais de espécie internacional
que de caráter interno, ele procurava sobretudo resolver a latente e
inevitável oposição em que até então vivêramos com aqueles povos,
excetuada apenas a República do Chile, que, como nós, era também
um país de organização parlamentar.
Não há política internacional que não seja uma projeção
exterior de uma dada situação interna. Só a liberdade, a manter a
confiança no interior e o respeito no exterior, garante e assegura a
paz naqueles dois planos da vida pública dos povos. Esse princípio
296
imutável, vindo da velha Atenas com Sócrates e a Dialética, tem
mais de dois mil e trezentos anos de irrecusável e constante
experiência. Colocai em vizinhança ou em contato de qualquer sorte
dois povos de níveis políticos diferentes, e, no nível mais baixo, os
motivos de conflito logo se acusarão. É sobretudo no domínio do
direito internacional privado que esses motivos imediatamente se
concretizam, pela fatal incapacidade dos governos antiliberais de
reconhecer em súditos estrangeiros, direitos que só muito
precariamente admitem nos seus nacionais. As nossas lutas no Prata
e no Paraguai, durante o Segundo Reinado, tiveram suas origens
invariáveis no sistemático desprezo à vida e aos bens dos nossos
estancieiros além das fronteiras do Uruguai, assim como a guerra do
Pacífico, de 1879, surgiu dos ataques do ditador Hilarión Daza, da
Bolívia aos direitos dos salitreiros chilenos de Antofagasta. Dada a
final e inevitável superioridade militar dos governos livres sobre os
chamados governos fortes, apesar da maior e aparentemente mais
eficaz preocupação desses com os armamentos e as atitudes
militares, os dois povos parlamentaristas da América haviam
conseguido sair-se excelentemente de todas as suas querelas com os
seus turbulentos vizinhos autoritários, daí nascendo, com uma natural
e clara simpatia entre o Chile e o Brasil, uma não menos lógica e
evidente desconfiança dos outros para com eles.
Para penetrar fundo na psicologia política de Quintino
Bocaiúva, sentimentalmente fundada no seu grande pendor pelos
homens e pelas cousas do rio da Prata, é preciso recorrer a todos
estes dados, interpretando-a no quadro político geral da América
Latina. Ele foi certamente um grande sul-americano, com um
profundo senso de fraternidade continental, dentro do espírito
republicano peculiar a esta parte do Novo Mundo. Mas esse espírito
republicano necessariamente era o mesmo daqueles extremados e
297
rudes patriotas, que, de 1810 a 1826, furiosamente lutaram pela
República desde os alcantis do México aos llanos da Venezuela e aos
pampas argentinos, como simples meio de transferirem-se a si
mesmos o primitivo poder absoluto conferido pelos reis de Espanha
aos seus governadores e vice-reis. Era um espírito político simples e
inteiriço, totalmente isento de gradações ou de nuanças, no qual
passava-se imediatamente da noite para o dia sem crepúsculos e sem
auroras, mas onde, em verdade, mudança havia apenas nas origens da
tirania, tornada mais grosseira e mais próxima com os novos
emblemas e os novos ocupantes do poder.
Na mais íntima e perfeita identidade com aquele espírito, o
nosso grande propagandista da República nunca se preocupou com
fórmulas constitucionais ou instrumentos legais da liberdade na
possível construção jurídica do seu novo Estado. As relações muito
sábias e detalhadas de direitos e franquias, talo com tanto as
estimavam os radicais até 1879, sempre o deixaram frio e de todo
indiferente. Tendo-se uma primeira vez candidatado a senador pelo
Município Neutro, em 1880, quiseram os positivistas, por
solidariedade de princípios, trazer-lhe o apoio dos seus votos. Dadas
porém as vagas expressões do Manifesto de 70 e as contínuas
flutuações doutrinárias da propaganda, Miguel Lemos entendeu que
já era tempo de, na matéria, assentar qualquer cousa de mais sério e
mais concreto. Em uma assembléia geral republicana realizada para
fins eleitorais, a 15 de agosto,na Travessa da Barreira, o chefe
positivista veio submeter ao candidato este claro e expressivo
mínimo de programa: 1º) Afirmar o alvo da transformação
republicana; 2º) Condensar as reformas necessárias e oportunas em
um certo número de medidas políticas, como o registro civil de
nascimentos, casamentos e óbitos e a secularização dos cemitérios,
como preparação para a completa separação do poder espiritual do
298
temporal; 3º) Indicar medidas complementares da obra iniciada pela
lei Paranhos ou do Ventre Livre. Quintino Bocaiúva protelou,
divagou, contornou e de modo algum se comprometeu. Na Primeira
Circular Anual do Apostolado Positivista no Brasil (1881), Miguel
Lemos dá conta do incidente, sem grande amenidade pelas idéias e
mesmo pela própria pessoa do candidato...
Não menos expressivo foi outro incidente verificado com
Silva Jardim nos primeiros dias de janeiro de 1889. No último 30 de
dezembro, o ardoroso tribuno santista havia-se visto às voltas com a
Guarda Negra e os secretas da polícia numa conferência que proferiu
na Sociedade Francesa de Ginástica. Houve grande tumulto, com
vários tiros de revólver e certo número de feridos e contusos, sem
que entretanto o bravo orador descesse da tribuna. Cercado por um
grupo de estudantes que espontaneamente tomou a sua defesa, ele,
apesar de tudo, levou até ao fim o seu discurso. Disposto a dar larga
divulgação àquele escândalo, Jardim preparou então um inflamado e
longo manifesto, cheio de duras e implacáveis invectivas contra o
trono e contra José do patrocínio, levando-o a Quintino Bocaiúva
para ter publicidade. O diretor dO País não deixou de inserir a
terrível objurgatória nas colunas do seu jornal. Mas, a sorrir calmo e
condescendente, achou de melhor instruir o seu jovem
correligionário sobre o verdadeiro caminho que as cousas iam
tomando. Não gastasse tanto a sua brilhante dialética nem tanto se
arriscasse, pois a República, por meios muito mais simples e
eficazes, bem depressa chegaria... Ao conhecer por esta forma o
plano de Quintino Bocaiúva, baseado apenas no progressivo
incitamento dos soldados à revolta, Silva Jardim tomou-se de uma
irrefreável indignação condenando-o com grande veemência de
expressões. Para um homem intimamente filiado, como ele era, à
escola política de Martim Francisco e José Bonifácio, aqueles
299
projetos pareciam simplesmente detestáveis. O rompimento daí
resultante entre os dois foi tão profundo e definitivo que, no seguinte
13 de novembro, lembrando Glicério a conveniência de chamar Silva
Jardim para as conferências daquela noite, Bocaiúva
peremptoriamente recusou. Tinha-o por um ideólogo aéreo e um
tanto incômodo que só poderia perturbar(46). O ardente companheiro
dos abolicionistas fundadores do quilombo do Jabaquara, o intrépido
e sincero pregador da Abolição e da República só veio a saber, a 15
de Novembro, do que se passara no Campo de Santana, ao receber os
bons dias do primeiro conhecido que encontrou ao sair ao meio-dia, à
porta da sua casa.
Dado o fato da proclamação da República, tal como
realmente se deu e aqui o temos apresentado, era inevitável que o
verdadeiro papel de Quintino Bocaiúva em tudo aquilo não deixasse
de vir mais ou menos velado ou contrafeito nas crônicas do tempo,
ou nas tantas histórias, como ele mesmo o diz na sua carta à Sra,
Sólon Ribeiro. Por várias vezes tentaram amigos seus marcar-lhe
melhor a posição no acontecimento memorável. Mas de cada vez
levantaram-se verdadeiras torrentes de protestos, tendentes a manter
inalterada aquela grande visão de apoteose, fixada pelo pintor
Henrique Bernardelli, no seu grande e conhecido quadro de
remomoração oficial. O período presidencial de 1910 a 1914,
preenchido pelo Marechal Hermes da Fonseca, sobrinho de Deodoro,
foi especialmente propício a tais pesquisas e controvérsias. Foi então
que apareceram os trabalhos de Ernesto Sena. Na mesma época, o
Dr. Ferreira Viana Filho, assinando-se Suetônio, procurava, em
artigos publicados nO País, pôr em maior destaque a posição de
Quintino Bocaiúva. Saiu-lhe em oposição o antigo Tenente Sebastião
Bandeira, já então general reformado, a reclamar para o Marechal
Deodoro não somente a ação decisiva como mesmo a principal
300
inteligência de todo o acontecido. Relegando a um plano de todo
insignificante a parte atribuível ao Marechal Floriano Peixoto na
preparação e nos resultados do levante, ele também só admitia a
Bocaiúva uma intervenção mais ou menos indireta senão mesmo
platônica ou de pura forma.
Mas, se se trata de saber quais eram as reais disposições do
Marechal Deodoro para com a eventualidade da mudança do regime,
o próprio General Sebastião Bandeira, nas suas contestações a
Suetônio, naturalmente sem querer, muito bem nos esclarece: O
General (Deodoro) preferia realizar a revolução unicamente com o
elemento militar de que dispunha, e que na sua opinião, naquela
época, era tudo. Graças porém à sua natural docilidade (sic),
conseguimos convencê-lo da vantagem da intervenção dos chefes
republicanos prestigiosos, para dar feição mais ampla ao movimento
com o concurso pelo menos aparente do elemento civil, a fim de não
parecer que se tratava simplesmente de uma revolta de quartéis(47).
Esta indicação, combinada com as resistências do general a
quaisquer manifestações proclamativas da República no Campo de
Santana, com o viva ao imperador e com as declarações feitas ao
Visconde de Ouro Preto no ato de sua deposição, tornam-se
imensamente preciosas...
Durante os festejos oficiais pela proclamação da República,
nos primeiros dias de dezembro de 1889, isto é, menos de um mês
após o desenlace de 15 de Novembro, Emiliano Perneta, escritor e
jornalista de segura visão das cousas do seu tempo, discursando
numa sessão cívica o Teatro S. Teodoro, de Curitiba, onde por sinal
falou também o brigadeiro e então jovem poeta paranaense Leôncio
Correia, teve estas características palavras: Se não fosse uma cabeça
como a de Quintino Bocaiúva... Sim, em todo o Brasil não se
encontraria outra em condições de conceber e conduzir até o fim uma
301
revolução naqueles moldes. Já se tornou célebre a crônica de
Aristides Lôbo para o Diário Popular sobre o 15 de Novembro.
Escrevendo ainda sob a forte emoção do que acabara de assistir,
assim falou ele da ação ou do papel dos militares naquele dia: - O
fato foi deles, deles só, porque a colaboração do elemento civil foi
quase nula... O primeiro Ministro do Interior do Governo Provisório,
na sua evidente desconfiança para com as intervenções dos militares
na política e com elas certamente perturbado, não foi exato e
sobretudo não foi justo. Se alguém havia a quem se pudesse atribuir
qualquer exclusividade de autoria em tudo aquilo, esse alguém era
certamente Quintino Bocaiúva. Ele foi não somente o cérebro, a
alma, o indiscutível autor do grande acontecimento, como, num
verdadeiro golpe de teatro, chegou mesmo a constituir-se, no último
instante, em seu símbolo perfeito...
No Cap. III, pág. 65 do nosso livro Os Republicanos
Paulistas e a Abolição, tratando do aparecimento do grande
propagandista no mundo político do Rio de Janeiro, na sua volta da
República Argentina ao fim da guerra do Paraguai, assim traçamos o
seu perfil: “Até nos modos de vestir e nas mais simples atitudes a sua
preocupação com o rio da Prata se revelava. No meio severo e
formalístico da corte daquele tempo, onde o chapéu de pelo luzidio e
a gravata preta de laço eram de rigor, ele apareceu toucado de um
chapéu mole de grandes abas, com um amplo e frouxo laço à
Lavalière a flutuar-lhe no colarinho baixo e rebatido. Muito esguio e
ereto de busto, todo abotoado numa elegante sobrecasaca preta, com
as mãos finas enluvadas em pelica negra e a barba toda, ligeiramente
talhada em ponta, ele expunha um perfil sem dúvida curioso e
original para o nosso velho mundo carioca e cortesão dos barões e
conselheiros. Aquele era, ao que parece, o tipo clássico do homem
público nas nações do Sul, misto oscilatório de demagogo erudito e
302
intrépido caudilho, segundo as atividades cívicas se desenvolvessem
nos torneios oratórios da paz ou nos recontros eqüestres da guerra
civil...” Com uma pequena variante no colarinho, que se tornou um
pouco mais alto, e na gravata, substituída por um plastron negro
fixado por um artístico alfinete, a sua toilette conservou-se sempre a
mesma.
Na manhã de 15 de Novembro, foi assim vestido que ele veio
ao Campo de Santana. Mas, desta vez, era bem a segunda alternativa
do seu misto oscilatório que se apresentava: ele vinha a cavalo!...
Quintino Bocaiúva, nas suas idéias, no seu trajar característico, nos
seus processos e nas suas atitudes, em toda a sua pessoa, era um
programa. Naquele instante, a avançar assim, ereto e altaneiro, ao
passo da montaria, na emocionante perspectiva de um mavórtico
desenlace pelas armas, o programa heroicamente se completava...
Partindo talvez do seu centro político da Rua do Carmo, para onde o
desconhecimento oficial das articulações de última hora da agitação
militar com a propaganda republicana não dispusera nem previra a
mínima vigilância, ele veio tranqüila e lentamente a subir a Rua da
Alfândega. Ao aproximar-se do campo, desceu a trote um piquete de
clavineiros que o envolveu. Mas o comandante, reconhecendo-o,
pôs-se à sua disposição, rendendo-lhe a continência da ordenança.
Esse comandante era o cadete Raimundo de Abreu Filho que, na
aliciação dos inferiores dos três regimentos de São Cristóvão, fôra o
principal agente do Major Sólon Ribeiro. O diretor dO País, sem
qualquer sinal de emoção ou de estranheza, perguntou-se onde estava
o Marechal Deodoro da Fonseca. Dando-lhe passagem a
acompanhando-o a passo até a esquina, o cadete mostrou-lhe no
centro do campo o grupo formado pelo marechal e o seu piquete.
Bocaiúva continuou sozinho no seu cavalo, a olhar interessado as
303
linhas de soldados com a naturalidade e a segurança de um velho
chefe militar com longo hábito daquelas cousas.
Daí a pouco o drama já descrito estava consumado. O
Marechal Deodoro, saindo do quartel-general seguido pelas tropas
que lá estavam, manda ao clarim do seu piquete tocar ajudantes para
as ordens da nova formatura e do desfile. É nesse instante que o
Major Sólon Ribeiro, instigado por Quintino Bocaiúva, deixa a trote
o centro da linha do 9º Regimento de Cavalaria, em cujo comando
estava, e vem trazer ao marechal aquela informação de não
embainhar a sua espada enquanto não estivesse a República
proclamada... Deodoro, ouvindo-o num ligeiro sobressalto, olha-o
por um instante e responde-lhe lentamente algumas palavras.
Rodando o seu cavalo pela direita, o major volta ao seu posto, mas,
detendo-se junto a Quintino Bocaiúva, dá-lhe com um ligeiro sorriso
de inteligência este aviso certamente inesperado: O marechal deseja
tê-lo no seu estado-maior durante o desfile!... Quintino Bocaiúva não
vacila. Dá de rédeas e vai calmamente postar-se um pouco por trás
do marechal, à esquerda do Tenente-Coronel Benjamim Constant...
Nenhum dos nossos políticos civis daquele tempo ousaria
fazer aquilo. Nenhum resistiria ao intraduzível exotismo de desfilar a
cavalo, à paisana, de sobrecasaca e chapéu mole, à testa de uma
coluna de tropas regulares, pelas ruas de uma grande cidade como o
Rio de Janeiro. Qualquer outro a quem a inédita exibição fosse
oferecida, se teria escusado com verdadeiro espanto e certamente
confuso e embaraçado. Ele, não. Cofiada a barba nazarena,
levemente rebatida a aba direita do chapéu e bem seguras as rédeas
nas duas mãos calçadas de luvas pretas, lá foi como num sonho, ao
clangor estridente e triunfal das bandas militares. Entretanto, ele nada
tinha de ridículo nem canhestro. Era apenas estranho... Resumindo-se
naquela hora todas as suas lutas, todas as suas esperanças, toda a sua
304
vida, era dele mesmo, a avançar assim com o olhar perdido no
horizonte, que nascia e irradiava o próprio ambiente daquele dia. Era
o dia santo do Caudilhismo! Com Quintino Bocaiúva lá iam a pairar
sobre aquele mar de baionetas sublevadas, em desconcertante e
espantosa procissão evocativa, as sombras de todos os heróis
clássicos da história hispano-americana, desde Bolívar e Miranda,
desde O‟Higgins e San Martin, desde Rosas e Garcia Moreno, até
Oribe e Melgarejo, senão mesmo ate Solano Lopes...
Não importa... No seu triunfo tão sugestivo e tão completo,
não deixava de passar um friso de tragédia. Porque, segundo Teodoro
Mommsen nas suas severas meditações sobre a passagem do
Rúbicon e a batalha de Farsália, o povo que muda de instituições pela
força das armas, só muito dificilmente ou nunca mais endireita(48).
NOTAS
(35) Em 1913 esses trabalhos foram reunidos em volume, abun dantemente
ilustrado com gravuras, sob o título Deodoro, composto e impresso nas
oficinas da Imprensa Nacional.
(36) O próprio Sebastião Bandeira, em carta dirigida a Ernesto Sena,
assim o conta: - Depois de infrutíferas diligências em procura de
Bocaiúva n’“O País” e no “Hotel Paris”, à rua da Uruguaian a,
encontrando Trovão em frente ao “Diário de Notícias”, pedi -lhe me
informasse onde acharia os aludidos chefes (Bocaiúva e Aristides)...
Trovão, depois de indicar-me os lugares em que eu já havia procurado
Bocaiúva, guiou-me ao “Café Londres”, onde estava Aristides Lôbo... A
carta onde se encontra este trecho vem à pág. 99 do livro Deodoro.
(37) Intercalado no texto do livro de Ernesto Sena, págs. 78 e 79,
encontra-se, assinado por S. Fabrizzi, um mapa do local, com a exata
posição das forças na manhã de 15 de Novembro.
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(38) Vide Max Fleiuss, História Administrativa do Brasil, 2ª ed., pág.
434.
(39) Informação pessoal de Quintino Bocaiúva, em carta dirigida à viúva
do General Sólon Ribeiro a 31 de julho de 1902.
(40) O primeiro a revelar publicamente es se detalhe característico foi o
Capitão José Bevilacqua, em discurso feito no Rio de Janeiro a 10 de
julho de 1890. Tendo-se levantado a respeito uma acesa discussão, veio à
imprensa, em defesa do capitão, o chefe do Apostolado Positivista, R.
Teixeira Mendes, que disse haver também presenciado aquela
manifestação do marechal, no que foi confirmado pelo Capitão Ximeno de
Villeroy, pelo Tenente Pantoja Rodrigues e pelos civis Benjamim
Constant Filho e Agilberto Xavier, todos figurantes ou testemunhas do
drama de 15 de Novembro. Agilberto Xavier, falando em nome do Clube
Benjamim Constant, de cuja diretoria fazia parte, fez pela edição d O País
de 21 de setembro daquele ano uma declaração na qual se lê: “ Quanto ao
fato de ter o Marechal Deodoro dado vivas a D. Pedro II, a 15 de
Novembro, é fato ainda bem recente na memória de muitos companheiros
dessa memorável jornada. Dentre muitos nomes que poderíamos
apresentar, se nos quiséssemos dar ao ingrato trabalho de indagar,
podemos indicar de momento os dos Srs. Serejo, Saturnino Cardoso, Ivo
do Prado e Tasso Fragoso (todos oficiais do Exército). Seria inútil dizer
igualmente que diversos, entre os quais o Sr. Capitão Villeroy, ouviram o
Marechal Deodoro proibir aos alunos da Escola Militar darem vivas à
República.”
(41) É a mesma a que nos referimos em nota à pág. 77. Ela vem na íntegra
às págs. 90 e 91 do livro de Ernesto Sena. Por iniciativa do Dr. Nestor
Ascoli, antigo secretário de Quintino Bocaiúva, ela foi publicada no
jornal carioca O Imparcial, de 11 de julho de 1913, tendo sido inserta nos
Anais da Câmara dos Deputados do mesmo dia, a requerimento do
deputado Maurício Lacerda. Na comemoração do primeiro centenário do
nascimento do grande diretor dO País, em 1936, Rodrigo Otávio a leu na
sua conferência sobre as efemérides, no Instituto Histórico e Geográfico
do Rio de Janeiro, conferência esta que, como já notamos, se encontra
reproduzida no Vol. 171, págs. 422 a 433 da Revista do Instituto.
(42) Palavras textuais. Vide E. Sena, Deodoro, pág. 113.
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(43) Esta informação nós a tivemos pessoalmente, em Manaus, no ano de
1909, do Capitão-de-Mar-e-Guerra Nóbrega de Vasconcelos, que, tendo
feito parte da oficialidade daquela brigada, era então comandante da
flotilha do Amazonas.
(44) Aqui retifica-se um pouco o papel do Tenente-Coronel Benjamim
Constant no desenlace de 15 de Novembro, tal como o apresentamos no
Cap. IV. pág. 200, da Política Geral do Brasil. O papel dele, na
preparação da revolta, foi bem o ali indicado. É certo entretanto que
jamais chegou a dominar completamente os sentimentos de fidelidade
para com o imperador que o faziam desejar a República somente para
depois do falecimento do monarca, tal como igualmente se dava com
Deodoro, Pelotas e os demais chefes militares. Foram sem dúvida esses
sentimentos que o levaram a vacilar à última hora, tornando decisiva e
mesmo indispensável a enérgica intervenção do Major Sólon Ribeiro.
(45) Essa carta, confiada a Tobias Monteiro, após a morte de João Neiva,
pelo seu sobrinho, o Tenente-Coronel Neiva de Figueiredo, foi inserta em
nova às págs. 118 e 119 das Pesquisas e Depoimentos.
(46) Comentando os desentendimentos de Silva Jardim e Quintino
Bocaiúva sobre os meios de chegar à República, num artigo publicado no
Jornal do Comércio de 4 de dezembro de 1936, o Sr. A. Tavares de Lira
pronuncia-se francamente pelos métodos do segundo contra as idéias do
primeiro Emprestando a Quintino Bocaiúva uma segurança doutrinária
nos princípios da democracia liberal que o grande jornalista nunca
revelou, ele acha que a República não teria sido proclamada em 1889 sem
a intervenção decisiva do Exército e da Marinha. Uma revolução de
caráter exclusivamente civil (conclui o ilustre escritor e homem público)
seria com facilidade esmagada. Não tenhamos ilusões. A verdade porém
é que, em 1889, ou um pouco mais adiante, essa revolução de caráter
exclusivamente civil teria de chegar. Nas dimensões naturalmente
reduzidas de um artigo de jornal não deixa de ser fácil fechar assim a
discussão. Mas, num trabalho mais longo, servido de ma is abundantes
elementos de informação, já é um pouco mais difícil. Basta notar que
naquela convicção geral do próximo advento da República por evolução
normal da opinião pública se compreendiam os próprios meios
positivistas. Teixeira Mendes, a págs. 362 e 363 do seu livro sobre a vida
de Benjamim Constant, segundo o seu modo de ver, diz o seguinte: Para
acelerar semelhante desfecho bastava que a influência social e moral do
Apostolado Positivista crescesse. Ora, todos podem calcular o grau de
307
prestígio a que não teríamos atingido se Benjamim Constant em vez de
operar o movimento de 11 de Frederico (15 de Novembro) viesse trazer nos o apoio decidido de todos os que entusiasticamente o seguiam. Em
vez de uma admirável revolução militar ter-se-ia operado uma
surpreendente evolução pacífica, pela transformação voluntária da
ditadura imperial em ditadura republicana, sob a pressão de uma forte
opinião pública. No dia seguinte não estaríamos a braços com as
exigências de um exército revoltado, e nem o governo assa ltado com o
receio de subversões na ordem pública... Assim pensavam os homens
essencialmente práticos do Apostolado Positivista, lançando de tudo nas
culpas ao ânimo emperrado do Imperador Pedro II. Naturalmente, em
apoio do ponto de vista do Sr. Tavares de Lira restará sempre o velho
adágio, o que tem de ser tem muito força. Mas aí estaremos em pleno
fatalismo oriental ou muçulmano, não havendo mais a mínima utilidade
em pesquisar, pela crítica histórica, a influência dos homens e das idéias
nos grandes acontecimentos humanos, pois previamente teremos
renunciado a todo princípio de liberdade do espírito ou de livre arbítrio...
(47) Consignado à pág. 101 do livro Deodoro, de Ernesto Sena.
(48) Devia estar nesta mesma ordem de idéias o Professor Reinaldo
Porchat quando, a 26 de dezembro de 1925, renunciou à sua cadeira no
Senado do Estado de São Paulo, após um longo discurso sobre as
condições políticas do Brasil, encerrado por esta frase: Roma também foi
assim, e Roma não teve remédio...
(Transcrito de Bernardino de Campos e o Partido Republicano Paulista .
Rio de Janeiro. Editora José Olimpio, 1960, págs. 27 -100).
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QUINTINO BOCAIUVA
(1836/1912)
Quintino Bocaiuva seguiu a carreira jornalística, desde
muito jovem, trabalhando em diversos jornais, na Capital do
Império. Acabou radicando-se no periódico O País, do qual
sria um dos fundadores, evento que teve lugar em 1884, vindo
a ser o seu grande inspirador. Nessa altura já se consagrara
como prócer republicano, ideal a que aderira desde a criação
do Partido Republicano, em 1870. Graças à sua atuação no
desfecho do movimento, caracterizado no texto antes transcrito
de José Maria dos Santos, pertenceu ao governo provisório,
ocupando a pasta das Relações Exteriores.
Entre as primeiras tarefas de que se incumbiu, nessa
condição, seria encetar negociações com a Argentina no
tocante a litígio territorial. Entretanto, o Tratado que firmou
com o país vizinho foi considerado danoso aos interesses
nacionais, por conter demasiadas concessões à Argentina,
sendo rejeitado pelo Congresso Nacional. Devido a isto,
demitiu-se do governo.
Eleito senador pelo Estado do Rio de Janeiro,
participaria da Assembléia Constituinte. Com a promulgação
da Carta (24 de fevereiro de 1991), renunciou ao mandato,
voltando à direção de O País.
Em 1889, foi reeleito senador, sendo subseqüentemente
escolhido para governar o Estado do Rio de Janeiro. Maçom,
seria Grão Mestre da Loja Grande Oriente do Brasil, entre
1901 e 1904. Retornou ao Senado em 1909.
Tornou-se aliado do conhecido caudilho gaúcho
Pinheiro Machado (1851/1915), que o colocou na Presidência
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do partido Republicano Conservador, uma das tentativas
frustradas de organizar um partido nacional.
Faleceu em 1912, aos 76 anos de idade.
A Fundação Casa de Rui Barbosa editou, em 1986, livro
intitulado Idéias políticas de Quintino Bocaiuva.
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