O pENSAR fILOSófICO SEGUNDO MARTIN HEIDEGGER

Transcrição

O pENSAR fILOSófICO SEGUNDO MARTIN HEIDEGGER
O PENSAR FILOSÓFICO SEGUNDO MARTIN HEIDEGGER
Maria Luzia Dantas
Walter Moreira
Maria Luzia Dantas
Mestre em Filosofia (PUC–SP). Especialista em Filosofia
da Existência (Universidade Católica de Brasília). Docente e membro do Comitê de Ética (Fatea).
Walter Moreira
Doutorando em Ciência da Informação (ECA/USP).
Mestre em Biblioteconomia e Ciência da Informação
(PUCCamp). Docente e Coordenador do Núcleo de
Publicações (Fatea).
resumo
Este artigo pretende refletir sobre os três modos de pensar segundo
Heidegger e o que é para ele o pensar filosófico. O filosofar acontece
no ser humano, não é algo que se deixa apreender por conceitos. Por
isso o pensamento de Heidegger permanece como um desafio para o
mundo contemporâneo.
Palavras-Chave
Heidegger; Filosofia; Essência; Metafísica
abstract
This paper’s objective is to research how Heidegger conceives philosophy’s
essence. What’s metaphysics for him? The word philosophy in Greek means pathways and Heidegger invite to ingress on it. So that is possible
be back at the origin of the Greek thinking, moreover, back to the presocratic. The end of the paper shows that philosophy happens in human
being. The Heidegger’s thinking is a challenge for contemporary word.
It’s important to remain in meditation.
Keywords
Heidegger; Philosophy; Essence; Metaphysics.
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Introdução
Algumas questões têm sido colocadas a respeito do pensamento de
Heidegger, dentre elas: o que caracteriza seu pensamento? Em que consiste o pensar tipicamente filosófico para Heidegger? Já não se sustenta
mais na filosofia o pensar metafísico da filosofia tradicional, o qual foi
assumido pela ciência. Segundo o filósofo o pensar típico da metafísica
acabou e a filosofia não pode competir com a ciência.
Como conceber um novo modo de pensar que seja típico da filosofia?
Heidegger se debruça sobre essa questão de modo muito sério, como
testemunham diversas palestras e escritos. Afinal de contas, o que é pensar? Heidegger escreve um livro com este título: Que significa pensar?
O que há de novo na concepção de pensar proposta por Heidegger?
Sempre se falou do saber filosófico, mas sabemos o que é filosofia? Parece
que todo mundo sabe o que ela é, mas Heidegger quer ir mais fundo na
questão e fazer ver o que é filosofia em sua vigência essencial. Por isso,
ele pergunta no título de um de seus escritos: Que é isto, a filosofia?
Nesse escrito, Heidegger reflete sobre a superação da metafísica. Mas o
que significa, filosofia após a superação da metafísica? Nos dois primeiros capítulos de seu livro: Os conceitos fundamentais da Metafísica:
mundo, finitude, solidão, volta a refletir sobre a essência da filosofia,
admitindo-lhe uma essência dúbia.
Neste texto, busca-se compreender como Heidegger, filósofo contemporâneo, procura responder a estas questões e qual o desafio que lança para
o mundo contemporâneo. Esse filósofo é referência imprescindível para
quem pretenda tratar da questão da essência da filosofia. Será abordada
aqui a questão das três formas de pensar em Heidegger.
Três formas do pensar em Heidegger
Heidegger distingue três formas de pensar. Seu livro Que significa
pensar?, segundo Stein (2002), pode ser lido como uma introdução
à filosofia que traz algumas das características principais de toda obra
heideggeriana. Mas quando Heidegger fala em aprender a pensar ou
que “ainda não pensamos”, estas afirmações, podem se referir àquilo
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que o filósofo chamará “fim da filosofia e o começo do pensar” (STEIN,
2002, p. 29).
Stein (2002) afirma ainda que para que compreendamos a abordagem
do pensar em Heidegger é importante conhecer aquilo que o filósofo
escreveu, sobretudo depois dos anos 40. Além de elaborar as condições
da pergunta pelo sentido do ser e realizar incursões pela história do esquecimento do ser, importa descobrir as conseqüências das duas etapas
anteriores que são apresentadas como fazendo parte do Heidegger I e II,
quando o filósofo afirma que “a ciência não pensa, porque, segundo o
modo de seu procedimento e de seus recursos, ela jamais pode pensar”
(HEIDEGGER, 2002, p. 115).
Em “Que significa pensar?”, Heidegger aborda as diferentes formas do
pensar que não se identificam propriamente com o pensar que constitui o
objeto de sua investigação. Stein (2002) identifica três formas de pensar
na obra do filósofo. Nosso objetivo é, então, procurar compreender o que
Heidegger quer expor, analisando os três modos de pensar propostos.
Primeiro modo de pensar: da psicologia
De início, é importante ressaltar que o primeiro tipo de pensar foi apresentado de muitas formas na história da filosofia e das ciências ocidentais.
Esta é uma atividade que é atribuída ao ser humano, na sua condição
própria, específica. Nos últimos séculos, esse pensar foi convertido à
dimensão física e sensível de um ser biológico dotado de psiquismo.
Desse modo, o pensar é objeto da psicologia, da antropologia e se tornou
tema central nas ciências biológicas na atualidade. Esse pensar, que se
refere à animalidade, é então uma característica do ser vivo que, como
organismo, chegou a uma forma determinada da evolução.
Heidegger não vê, nessa primeira forma do pensar, a essência do animal
racional, como fazia a metafísica, embora esse pensar seja imprescindível
para que possamos juntar as determinações atuais em que se fala do
animal racional. Neste ponto Heidegger (2002) recorre à afirmação de
Nietzsche: “O homem é o animal que ainda não foi constatado”. Tenta
mostrar que a afirmação de Nietzsche pode ser compreendida como
introdução a uma posição em que situa a essência do ser humano, no
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movimento de o homem atual ser levado para além de si mesmo. Temos
então algumas conseqüências dessa primeira forma de pensar: a) o ser
humano é remetido para uma esfera em que sua definição não resulta
da junção entre animal e racional. Fica, portanto na indefinição sobre
si mesmo e não pode ser definido como os outros entes e b) no modo
de ser humano, há uma forma de ser-no-mundo que não se reduz à
definição de animal racional.
Heidegger em sua obra Os conceitos fundamentais da metafísica,
(2005, p. 205) afirma que “A pedra não tem mundo, o animal é pobre
em mundo e o ser humano é formador de mundo”.
O que se pode aprender dessa afirmação, tendo presente a primeira
forma de pensar? Podemos concluir que o ser humano não é animal.
Ao afirmar que o ser humano é formador de mundo, se acentua o fato
de que esse ente foge de qualquer catalogação e exige, portanto, uma
nova forma de explicitação – a fenomenológica, que deve ser descrita
e descoberta em seu modo de existir. Essa nova forma, porém não leva
o homem à sua essência. Essa primeira forma de pensar, de acordo
com Heidegger, envolve todo o modo de existir, incluindo o biológico,
e recebe, desde o início, uma dimensão de transcendência, a qual difere, porém, das formas de transcendência da metafísica que buscavam
sempre uma fuga da sensibilidade, uma fuga da condição de organismo
do ser humano.
Segundo modo de pensar: da lógica
Na segunda forma de pensar aparece a tentativa de resolver os paradoxos do primeiro pensar (STEIN, 2002, p. 33-34). Foram introduzidos
conceitos, como espírito, intelecto, alma, consciência, na tentativa de
criar lugar para a sensibilidade.
A tradição analisa esse modo de pensar, afirmando que o ser humano
possui racionalidade. Esta linha de pensamento é tributária de Aristóteles,
o qual, por meio das definições que separam gênero próximo e diferença
específica, distingue o homem do animal em três aspectos: o homem
é um animal político, é um animal racional e é o único animal que ri.
Nietzsche questiona essa definição e se opõe à tradição que sustenta a
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racionalidade absoluta.
Além disso, tradicionalmente a segunda forma de pensar na metafísica
ocidental se reduz à lógica. Pensar, segundo esse modelo é ser capaz de
raciocínio e argumentação. Esse pensar, no entanto, é um modo singular
de pensar. Essa dimensão da racionalidade contida na lógica não se diferencia daquela que cabia nos lugares encontrados para a sensibilidade,
a mente, a consciência. A questão do ser humano, enquanto “formador
do mundo”, não foi resolvida.
A lógica passou a predominar no segundo tipo de pensar. Daí decorre
a história da metafísica ocidental, em suas diversas épocas e, em todas
as culturas que por ela foram marcadas. Esse é o modo de pensar que
passou a caracterizar a filosofia e as ciências. Ao surgir a questão: “o
que significa pensar?”, essa segunda forma de pensar era apresentada
como solução.
Quando Heidegger se coloca a questão “que significa pensar?”, faz
crítica a esta forma de pensar. Afirma então que, com a prisão a essa
forma de pensar, a essência dos domínios da cultura ocidental cai no
vazio. O mesmo acontece com as ciências que se movem nesse domínio.
Heidegger (2002, p. 115) critica essa queda no vazio e remete a uma
nova forma de pensar, a partir da qual ele pode afirmar “que as ciências
não pensam”.
Terceiro modo de pensar: da filosofia
Para Heidegger, portanto, existe uma terceira forma de pensar e esta não
se identifica com um pensar que possa ser colocado ao lado dos outros
dois modos como mais um pensar ligado a um objeto. Por isso, apresenta
esta terceira forma como a tarefa do pensar e designa-a como a mais
digna de se pensar. Afirma: “O mais grave é que nós ainda não pensamos:
ainda não, apesar de que a situação do mundo continuamente dá mais
o que pensar” (HEIDEGGER, 2005, p. 126). Este pensar para Heidegger
envolve as outras duas formas, trata-se do pensar não metafísico ou pósmetafísico. O pós-metafísico é um mundo sem fundamentos absolutos.
Quem dá a moldura onde se dá o acontecer do que revela os limites da
objetivação da ciência é o ser humano, no seu “modo-de-ser-no-mundo”
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que a filosofia pode descrever como sentido.
Podemos afirmar então com Stein (2002, p. 36) que, “com sua filosofia,
Heidegger introduz as condições de possibilidade, ou a moldura onde
se situa o ser humano, enquanto pensa as duas primeiras formas de
pensar”.
Essa terceira forma de pensar é a que serve de elemento substitutivo
para a definição de homem como animal racional e procura determinar
a essência do ser humano para um modo de existir, em que ele já é um
além de si. Introduz desse modo uma transcendência ligada à existência.
Essa transcendência de acordo com o pensamento heideggeriano está
ligada à condição formadora do mundo. Este terceiro modo de pensar
é, então, o pensar propriamente filosófico.
Desse modo, podemos afirmar que a filosofia é responsável pelo sentido.
Sentido aqui tem o significado de condição de possibilidade, abertura
que sustenta o contato com o real. Stein (2002, p. 24) afirma que sentido
pode identificar-se com a transcendência, ou seja, o sentido é a própria
capacidade de transcendência do ser humano, é a força que permite
que ele tome distância do real, experimente a separação, o corte que o
confirma em sua condição única no universo.
Se considerarmos que pensamento é somente aquele capaz de sentido e
em oposição a ele a formulação e o cálculo, então “a ciência não pensa”.
O pensamento que calcula recolhe dados e os organiza.
É por isso que, nessa tarefa, os computadores substituem,
com progressiva eficiência, a mente humana. Quanto mais
matematizável o universo, tanto mais cientificamente conquistável. Essa conquista a filosofia jamais poderá disputar.
Se ela o pretendeu algum dia, sob este ponto de vista, ela
terminou hoje como filosofia. [...] (STEIN, 2002, p. 25).
A filosofia emerge numa dimensão diferente daquela do cálculo. Situase numa dimensão que o cálculo não atinge. Onde se revela o limite de
possibilidade de sistematização do pensamento operatório, começa o
verdadeiro lugar da filosofia. A transcendência é essa força, esse poder de
ruptura de todo cálculo. É esse o pensamento que a ciência não pensa e
é próprio da filosofia. A linguagem calculadora e operatória prende-o ao
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limite, já o pensamento que dá o sentido (abertura) é capaz de assumir,
constantemente seus limites; nele (no não limite) surge a consciência
do limite.
Nesse terceiro modo de pensar, Heidegger nos remete a um modo prático de ser-no-mundo, a uma familiaridade na relação com os entes. Isso
aparece de modo claro em seu pensamento quando ele afirma:
Estamos situados fora da ciência. Em vez disso, por exemplo, estamos diante de uma árvore florida – e a árvore está
diante de nós.Ela se apresenta a nós. A árvore e nós nos
apresentamos mutuamente à medida que a árvore aí está,
e nós diante dela. Na relação mútua – aí estar colocados
um em frente ao outro. A árvore e eu somos (HEIDEGGER,
2005, p. 146-147).
Ainda: que significa pensar?
Schneider (2005) destaca a pergunta de Heidegger que aparece como
título de seu livro: “Que significa pensar?”. Afirma, então, que com
esta interrogação somos convidados a embarcar na própria pergunta e
navegar com as palavras numa determinada direção. A própria tradução do título das conferências de Heidegger sobre o pensar, provoca a
possibilidade de sentidos diferentes. O pensar é apresentado como um
verbo substantivado sugerindo atividade, exercício. Vejamos algumas das
possibilidades de leitura da questão ou do texto em estudo.
Primeira possibilidade
Pensar seria algo que estaria apontando para outra coisa, ou seja, seria
o signo de algo. Desse modo teríamos o pensar – pensamento – que
poderia representar algo que já é e que, então poderia ser captado em
sua forma de ser. O pensamento sob esta ótica seria então uma atividade
interpretativa posterior ao que capta. Seria uma atividade observadora
e descritiva. Consequentemente surge a necessidade de um observador
capaz de perceber as duas coisas: o exercício do pensar enquanto descrição e aquilo que é descrito.
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Segunda possibilidade
A pergunta poderia expressar a intenção de definir ou denominar o que
é o pensar por alguém que já distingue o pensar do não pensar; o pensar
correto e o incorreto, ou seja, nomear o que na realidade é e deve ser.
Essa possibilidade supõe alguém que pensa ao falar e ao mesmo tempo
define e nomeia a atividade do pensar. Para que isso aconteça existe ainda
a suposição da existência de algo além do próprio pensar, ou seja, uma
duplicação de sentido de, ao pensar, julgar o pensar de acordo com os
critérios supostamente escolhidos como corretos.
Terceira possibilidade
O que manda ou convoca ao pensar. Aqui de acordo com o sentido do
verbo em alemão heissein, que pode também significar befehlen, mandar;
segundo Schneider (2005, p.71) algo estaria mandando, ou poderia mandar, convocar e possibilitar o pensar. Assim a pergunta seria pelo wasm
(o que), ou Es (isso), ou ainda Selbe (o mesmo). O pensamento aparece
assim como algo inevitável, como facticidade, exigência, urgência, que
se manifesta à procura do que envia, manda ou provoca.
Quarta possibilidade
Esta surge como manutenção provisória de indefinição de escolha entre
as possibilidades anteriores, uma vez que se trata do pensar, como algo
que está em nosso poder de mando e de aplicação; está sempre conosco
pelo exercício de juízos, proposições e argumentos e muitas vezes avesso
ao comando central denominado Eu, em épocas de crise.
Schneider (2005, p. 72) justifica estas possibilidades de interpretação da
questão, afirmando que “o título das conferências provém do fato de
que a investigação de Heidegger sobre o pensar direciona-se em grande
parte pelo que as próprias palavras utilizadas sugerem ou indicam”. Observamos que o texto quase que se auto-elabora pela demora insistente
em alguns núcleos centrais.
Nesta e em outras conferências, podemos observar que a frase inicial
nos remete a nós mesmos. No caso desta conferência, Que significa
pensar?, não é possível saber o que significa, ou manda pensar, sem
que participemos do pensar, sem nos remetermos a essa experiência. O
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pensar aparece como algo a que se chega quando deixamos de lado as
fórmulas e conteúdos teóricos. O fato de estarmos muito comprometidos com os resultados teóricos e de os carregarmos como garantia de
certeza de sentido pode ser uma dificuldade. Estes nos comprometem
pela fixidez de suas amarras e impedem nossos movimentos. A compreensão objetivada com as áreas do saber, com as quais nos identificamos,
limita, impede o pensar próprio. As teorias fora e independentes do
pensar, nos impedem de nos voltar para o que nós mesmos pensamos.
Ficamos então numa prisão construída por nós e diante disso podemos
afirmar que o que manda pensar, é nossa prisão autoconstruída pelas
explicações aceitas muitas vezes de forma inconsciente. Explicações
objetivadas dos diferentes setores do senso comum e do mundo científico e cultural pensam em nós e por nós levando-nos, muitas vezes, a
afazeres automatizados.
Para chegar ao pensar próprio, faz-se necessária a disposição para a
tentativa de uma caminhada em direção a um centro desconhecido.
Precisamos deixar de lado as explicações que derivam da divisão sujeitoobjeto. O próprio Heidegger (2005, p. 150) indica o caminho: “Que
significa pensar? Guardemo-nos da cega avidez que para essa pergunta
deseja alcançar uma resposta na forma de uma fórmula. Prestemos
atenção ao modo pelo qual ela pergunta”. O ser humano encontra-se
fora da esfera do pensar e se envolve com construções vagas, dispersas.
Isso dificulta uma visão clara e a possibilidade da ocorrência imediata
do pensar próprio. No entanto,
o homem denomina-se aquele que pode pensar – e isso
com razão. Pois ele é o ser vivo [animal] racional. A razão,
a ratio, desdobra-se no pensar. Como o ser vivo racional o
homem deve poder pensar, desde que queira. Entretanto,
talvez o homem queira pensar e, mesmo assim, não pode
(HEIDEGGER, 2005, p. 125).
É o pensar que caracteriza o ser humano, pois de acordo com sua denominação deve poder pensar sempre que deseje. O acúmulo de explicações
construídas pode impedir esse pensar. “No fim das contas, nesse querer
pensar ele quer demais e, por isso, pode muito pouco” (HEIDEGGER,
2005, p. 125).
O homem pode pouco pelo seu querer. Suas decisões podem ser decor-
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rência do que ainda não foi pensado ou efeito de compreensões sedimentadas. Faz-se necessário fazer a distinção entre querer e pensar. E,
além disso, outra pergunta se coloca: podemos administrar o pensar?
O homem pode pensar à medida que tem possibilidade
para tanto. Esse possível, porém, ainda não nos garante
que somos capazes disso [vermögen], pois apenas somos
capazes do que desejamos [mögen] . Por outro lado, nós
desejamos verdadeiramente apenas aquilo que, por sua
vez, apetece [mag] a nós mesmos, e, com efeito, a nós
em nossa essência à medida que à nossa essência concede
aquilo que nos mantém nela (HEIDEGGER, 2005, p. 126).
A possibilidade do pensar (SCHNEIDER, 2005) está ligada, portanto, ao
desejo à apetência, à tendência. Estas são condicionantes da capacidade
de pensar, e nos mantém na essência à medida que a memória reúne o
que por nós foi pensado.
O que nos mantém na essência, porém, apenas nos mantém enquanto nós mesmos, a partir de nós – man – temos
o que mantém. Nós o mantemos se não permitimos que
fuja da memória. A memória é a reunião do pensar. Em
que? No que nos mantém, à medida que isso em nós foi
pensado, isto é, pensado pelo fato de que isso permanece
o que deve dar o que pensar (HEIDEGGER, 2005, p. 126).
A essência do homem como seu ser mais próprio é um demorar-se no
acontecer do pensar. Existe um elo entre os termos usados por Heidegger. O pensar não pode ser separado do que sobre ele se pensa, nem
do pensado, nem da memória que o reúne, nem da recordação que o
mantém, nem da possibilidade que representa, nem da procura constante. É necessário aprender a pensar. Só aprendemos a pensar quando
começamos a prestar atenção a tudo que dá o que pensar.
O mais grave a ser pensado, não é uma condenação ou privilégio de nossa
época. Nosso tempo deve ser pensado, pois é carente de meditação. Essa
questão não é um convite para fazer uma análise exaustiva dos problemas
de nosso tempo, comparando-o com outros, servindo-nos de sistemas
teóricos de diferentes áreas do saber que temos à disposição. Enfatiza-se
no mundo contemporâneo sempre a necessidade da ação, do agir e o
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fato de haver um interesse pela filosofia não significa necessariamente
disposição para pensar.
E mesmo assim – talvez o homem habitual [bisheig] durante séculos tenha obrado demais e pensado de menos.
Mas como pode alguém hoje afirmar que nós ainda não
pensamos, quando em todos os lugares o interesse pela
Filosofia está vivo e se torna cada vez mais ruidoso, quando
quase todo mundo quer saber sobre o que há de especial
na Filosofia? Os filósofos são “os” pensadores. Eles são denominados assim porque o pensar efetua-se propriamente
na Filosofia (HEIDEGGER, 2005, p. 127).
Heidegger (2005) concorda que existe realmente um interesse pela
filosofia no mundo contemporâneo, porém é importante procurar compreender o que se entende por “interesse” e afirma (p. 127):
Inter-esse significa: estar misturado entre as coisas, estar no
meio a uma coisa e nela permanecer. Mas para o interesse
de hoje vale apenas o interessante. Isso é de tal modo
verdadeiro que permite ser indiferente já no próximo instante e ser substituído por outra coisa que, então nos diz
tão pouco respeito quanto o anterior. Hoje em dia muitas
vezes se crê apreciar algo de maneira especial pelo fato
de se achá-lo interessante. Por intermédio desse juízo na
verdade já se descartou o interessante para o campo do
indiferente e, de imediato, do aborrecimento.
Existe em nossa sociedade a busca do que é rápido e lucrativo. Há um
retorno igual em forma de mudança rápida em tudo e o fato de se mostrar
interesse pela Filosofia não significa necessariamente que existe disposição para o pensar. Em outros termos, todo esforço feito, toda pesquisa
realizada em relação à história da filosofia é muito significativo, mas o
fato de muitos se ocuparem com os escritos de grandes pensadores,
ainda não nos dá a garantia de que nós pensamos.
De acordo com Heidegger (2005), recordemos, “em nosso tempo o que
é grave é que ainda não pensamos.” Isso presumivelmente deve-se ao
fato de que nós homens ainda não nos volvemos suficientemente para
aquilo que deva ser pensado. Então, o fato de nós ainda não pensar-
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mos seria meramente uma negligência, um retardamento do pensar, ou
quando muito, um descuido por parte do homem (HEIDEGGER, 2005,
p. 128-129).
Heidegger (2005, p. 129) continua seu texto afirmando que o fato de ainda não pensarmos “provém da circunstância, de que esse a ser pensado
mesmo se desvia do homem, de há muito tempo se desviou”. Surge então
a necessidade de saber quando aconteceu esse desvio e a necessidade
de uma reflexão sobre o significado de tempo e história para se chegar
à compreensão do que significa pensar. Sobre o tempo, ensina-nos Schneider (2005, p. 83): “o ordenamento do tempo em linha histórica como
desenho em figura geométrica esfacela-se enquanto garantia absoluta,
e permanece como propriamente se diz: um ordenamento”.
Em nossa história, constata Heidegger, o homem sempre pensou de
algum modo e fez isso até com muita profundidade. Confiou isso à
memória. Será necessário então conservar distância em relação a tudo
que foi dito até agora.
É bom que nós nos aferremos o maior tempo possível
nessa atitude de rejeição do que foi dito, pois só assim
conservaremos a distância necessária para um arranque,
a partir do qual talvez um ou outro tenha sucesso no salto
para o pensar (HEIDEGGER, 2005, p. 130).
O salto para o pensar exige ruptura, destruição, reconsideração de certeza e critérios cristalizados. Sabemos que o que foi dito até aqui não
se relaciona à ciência uma vez que “a ciência não pensa e não pode
pensar”, pois, recordemos mais uma vez, o pensar ao qual Heidegger
se refere é o pensar filosófico, a persistência e insistência na pergunta
pelo significado do pensar.
Considerações finais
O texto de Heidegger aparece como um constante pensar em exercício,
demorando num determinado ponto, provocando uma reflexão sobre
os conceitos que usamos com freqüência, insiste numa determinada
afirmação. A afirmação se transforma em pergunta.
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Ao formular a pergunta sobre o que significa pensar, Heidegger não
pretende definir um objeto ou produzir uma nova ciência do pensar;
a pergunta pretende provocar um exercício desse próprio pensar. Este
questionamento, tal como outros, é testemunho da pedagogia heideggeriana, conforme Stein (2000, p. 45) que “socraticamente faz participar
do processo interrogador aquele a quem se dirige”.
De acordo com Heidegger, o pensar propriamente filosófico se identifica
com o pensar sem utilidade, sem objeto. É um pensar que está antes
do agir e fazer humanos, descrito como “não tendo um âmbito que lhe
tenha sido atribuído pela tradição” (STEIN, 2002, p. 79). Este é o pensar
não metafísico.
Ainda segundo Stein (2002) esse pensar de Heidegger não se situa
como disciplina, de objeto com os outros dois modos de pensar e seus
desdobramentos na área do conhecimento. Pode-se dizer que o pensar
filosófico transforma os outros modos de pensar, para que não sejam mais
vistos como simples exercício de objetivação. Em vários textos de Heidegger podemos perceber a presença do apelo aos filósofos pré-socráticos.
Antes da relação sujeito-objeto, o ser se apresentava como emergência.
Não havia dualidade. Por isso, Heidegger vê, nos pré-socráticos, um pensar originário ou principial. Nele pode acontecer o jogo de luz e sombra,
em que os entes podem aparecer. O que o filósofo pretende é caminhar
em direção à experiência do pensamento, ao pensamento inicial. Não
pretende com isso fazer renascer o pensamento pré-socrático, pois esse
projeto não teria sentido.
Procuramos conhecer qual é o caminho percorrido por Heidegger em
direção á essência da filosofia. Essa questão foi discutida a partir da necessidade da superação do pensamento metafísico tradicional. Chama
a atenção para três diferentes formas de pensar, que se entrelaçaram
ao longo da história. Aponta o novo modo de pensar ou o pensar da
filosofia que responde pelo sentido e não pelo cálculo.
Para Heidegger, o a consciência do caminho é essencial, sendo assim
“tanto a pergunta como a resposta fazem parte do caminho”, pois, “da
pergunta e da resposta podem surgir novas questões” (DANTAS, 2006,
p. 17). Não se pode, então, falar simplesmente sobre filosofia, estando
do “lado de fora”; é preciso que nos deixemos envolver por ela.
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REFERÊNCIAS
DANTAS, Maria Luzia. Caminho e círculo no pensamento de Martin
Heidegger. Lorena: Santa Teresa, 2006.
HEIDEGGER, Martin. Que significa pensar? Ijuí: Unijuí, 2002.
______. Os conceitos fundamentais da metafísica: mundo, finitude,
solidão. Rio de Janeiro: Forense, 2003.
SCHNEIDER, Paulo Rudi. O outro pensar: sobre Que significa pensar? e
A época da imagem do mundo de Heidegger. Ijuí: Unijuí, 2005.
STEIN, Ernildo. Nota do tradutor. In: OS PENSADORES: Martin Heidegger.
São Paulo: Nova Cultural, 2000.
______. Pensar é pensar a diferença. Ijuí: Unijuí, 2002.
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