licantropo
Transcrição
licantropo
Excertos das obras “Bem no meio da ponte, os dois homens desensarilharam as telas e as varas. As mãos tremiam-lhe de entusiasmo, à medida que o Charuto se afivelava todo e ganhava ares de condor. Os carros que passavam na ponte abrandavam a marcha, e as pessoas colavam o nariz no vidro dos autocarros para verem o bizarro homem com as enormes asas amarradas aos braços e às costas. Até que Mestre Charuto tendeu pela última vez as correias e se deu por satisfeito. Colou os olhos no céu, sobre a foz do rio. As nuvens faziam castelos estranhos, ao mesmo tempo calmos e revoltos. Vistoriou todos os recessos e turbilhões das massas de nuvens grossas, em translação lenta, naquele movimento subtil e imparável que parece suspender-nos pelos olhos. Procurou em vão a imagem da Virgem que tinha sonhado. Nada. Mas tinha quase a certeza, era aquele novelo grande, em baixo, meio aberto, sim, era aquele mesmo. Era ali que vira aquela imagem branca, a sorrir para ele… Abraçou o Manecas com calor e despediu-se: - Bom, agora é que é. Até logo, amigo. Deseja-me sorte. - Sorte, Mestre Charuto, e boa viagem! Charuto galgou o corrimão da ponte, ajudado pelo engraxador, e esperou por um golpe de vento, até sentir as asas enfunar. - Quando eu disser, Manecas, mandas-me um empurrão, com toda a força, percebes? - Certo, Mestre, entendido. O vento assobiava-lhe aos ouvidos, e desalinhava-lhe o cabelo, mas Charuto não queria olhar para baixo. Fixou os olhos na nuvem, a tal, e lembrou-se da cara branquinha da Nossa Senhora, com um ar de paz e confiança a alumiar-lhe os olhos negros, a dizer-lhe: «voa, Charuto, voa; não tenhas medo…» Sentiu uma última vez as asas inchadas de vento a suspender-lhe o corpo, e gritou para o engraxador: - É agora, é agora! Empurra!” (“As Asas do Sonho”, Contos à Moda do Porto) “- Está a acordar. A Irmã Benedita passou-lhe uma compressa molhada no rosto. Tinham trazido o homem para a Irmandade do Perpétuo Socorro, parecia ter sido agredido e roubado na estação. As outras freiras cirandavam em volta do enfermo, murmurando. A Irmã Jacinta, um pouco mais velha, achou-se com direito ao comando das operações enxotando as outras, que pareceram enciumadas por esse despropósito. Naquele convento nada acontecia e agora que algo se passava, ninguém queria ser passado para trás. Sahid descerrou os olhos, meio cego pela luz crua do candeeiro de esmalte que pendia do tecto. Não cabia em si de contente por estar no paraíso. Talvez fosse da emoção, mas as mulheres pareciam-lhe demasiado velhas e desdentadas. Só as vestes pareciam a preceito, embora se apresentassem de rosto descoberto. Ainda confuso, perguntou: - Estais aqui para cuidar de mim? Uma risada lasciva correu no aposento, a resposta formou-se de um coro de gargantas sequiosas. - Siiiim. Sahid estava prestes a atingir a felicidade, devia sentir-se contente, mas o ar descabelado das mulheres confundia-o. Devia estar com qualquer problema de visão, talvez a explosão lhe tivesse afectado os olhos, talvez… Perguntou, tentando uma última confirmação: - É verdade que sois setenta virgens? Jacinta gargalhou, secundada por Benedita. Desenvencilharam-se dos hábitos, estavam nuas e, embora definhadas, de peitos secos descaídos, poderiam considerar-se esplendorosas em todo o seu horror. - Bem, pelo menos, setenta somos…” (“O último passageiro”, Como se fosse o último) “- Acredita, mulher, que eu já vi o que aconteceu em Caniçada e em Paradela do Rio. É como vem nas Escrituras, mas sem o auxílio das chuvas do Dilúvio. Tudo será alagado, como uma maldição. Mariana benzeu-se, meditando na maldição divina, nas Escrituras, cerrando os olhos com força até ver cores, quase imaginava a força das águas alagando Dornelos, submergindo os muros que delimitavam propriedades, enxurrando as medas de palha, formando remoinhos nos portais das casa, arrastando carolos de espigas de milho num rasto flutuante de destruição, um espigueiro vogando no meio da corrente com duas cabras, três galinhas empoleiradas na arca de Noé improvisada, os patos nadariam no espelho de água como patinadores sonolentos, seguidos ao sabor da corrente por uma porca e três leitões, o cemitério desaparecido debaixo do lençol de água, no seu lugar vogavam agora grinaldas de gladíolos, pavios de estearina ardendo em tigelas de barro ondulando na corrente. Mariana limpou os olhos secos, chorara já todas as lágrimas que uma mulher pode chorar. Não havia futuro em Dornelos e o presente já tinha acontecido quase todo. Sonhara acordada noites repetidas com o Dilúvio em Dornelos, com as campas de José Mário, Lúcio e de Maria da Anunciação desaparecidas no fundo do lago, o encolher de ombros de Zé Mano, o moleiro, os impropérios de Tonho, o olhar impotente e cansado de Jusias, o ferreiro, o cenho franzido de Lili Carracas, a jornaleira, o desespero contido de Nel, o capador, o riso tresloucado da velha Dorinda, sonhara com o desespero de Adélia e Josefina, as carpideiras da aldeia, no dia dos Fiéis, amputadas dos seus mortos, amputadas dos lares, dos lugares, dos objectos que faziam reviver as memórias. Numa dessas noites, Mariana sobressaltou-se com um restolho vindo da cama da filha. Levantou-se, acendeu a candeia, e encontrou Susana torcida na cama, com sezões. Tremebundo e escorrendo rios de suor, o vulto esquálido da criança encapelou-se na cama em violenta convulsão. Mariana segurou-lhe os membros retesados, e entalou-lhe uma colher de pau entre os dentes. Esperou que o demónio se cansasse e deixasse de lhe agitar o corpo da filha por dentro. Os grunhidos roucos na garganta da criança, a cara arroxeada e tumefacta, o novelo de espuma escorrendo da boca, eram sinais de estertor do danado, antes de se espantar das carnes para fora. Quando o corpo de Susana lhe murchou nos braços, estendeu-a na cama, com todo o cuidado. Vigiando a respiração de Susana, Mariana pensou outra vez no Dilúvio, na maldição que caíra sobre Dornelos. Os ataques nocturnos de Susana não tinham outra explicação, tudo estava contaminado naquela aldeia, o ar, a terra, as gentes. Talvez só uma forte camada de água fosse solução, talvez jolo tivesse razão.” (O Silêncio das Carpideiras) “«E se o homem aparece um dia sem avisar e a placa não está lá?» «Diz-se que foi derrubada por um carro, está para arranjar. E, logo a seguir, ela aparece no sítio.» Assim se pensou, assim se fez. João Boa Morte, nas idas e vindas anuais entre França e Vilar das Almas, nunca deu por nada. Nunca se saberá o que aconteceria se ele tivesse conhecimento do vai e vem da placa. Talvez ficasse irado, talvez percebesse que essa atitude era uma manifestação de respeito pelo povo de Vilar, não de afronta. Deixara de querer regressar a Vilar das Almas. Não sabia bem porquê. Vinte anos em França no bulício da cidade faziam-no sentir-se deslocado na quietude da aldeia. Demasiado silêncio, demasiada calma arrasavam-lhe os nervos, acordava de noite todo suado, cheio de angústias. Só regressava para mostrar aos amigos e vizinhos que agora era gente, mas estava a tornar-se cada vez mais penoso suportar a paz do campo. Ao fim e ao cabo, regressava não por saudades, não porque lhe apetecesse muito. Chegara a um ponto que já não sabia de onde era, se de Vilar das Almas, se da França. Um e outro lugar tomavam-lhe posse da alma, das memórias. Esquecia propositadamente a língua pátria, falava um francês mascavado que o tornava às vezes ininteligível, e por isso importante. Como rezas de padre em latim, ou conversa de médico. Mas agora, como toda esta confusão em Clichy, já não sabia o que pensar. Estava a germinar qualquer coisa de muito mau dentro daquela sociedade, e ele começava a ter medo. E agora sentia-se perdido, não se sentia bem nem em Vilar das Almas nem em Clichy, a vida estava a ficar muito complicada.” (O Rei do Volfrâmio) “- E tem cura? O psiquiatra olhou para o paciente. Não era seu hábito mentir. - Terá tratamento. Cura, não. O clínico rabiscou uma receita, de forma lenta e pausada. Mantinha o hábito de usar uma caneta de tinta permanente para escrever as prescrições, o que dava um toque arcaico ao gesto, uma mensagem subliminar de sabedoria. Não que isso fosse importante para os seus clientes. Por contingência da especialidade, só lhe apareciam na consulta alienados, loucos, maníacos, obsessivos, psicóticos, deprimidos, tarados, desaparafusados, já tinha saudades de falar com alguém que tivesse o cérebro normal. Talvez a caneta fosse apenas importante para ele, um objeto onírico onde via a representação do pai… Passou a mão na testa, afastando esses pensamentos, às vezes começava a psiquiatrizar-se a ele mesmo e isso não era bom, e logo em plena consulta em que não podia baixar a guarda. Concentrou-se de novo no receituário que o caso que estava à sua frente merecia. «Quantas vezes é preciso repetir que é uma pessoa, não um caso? Esta forma desapiedada de exercer a profissão perturba-me, estou a ficar embotado dos sentimentos, aos poucos criei uma carapaça que me torna frio e insensível aos problemas do outro. Talvez eu tenha medo do contágio, de ficar também louco ou perturbado, ou de transportar comigo os problemas num fardo cada vez maior, até se tornar insuportável.» O licantropo olhou o psiquiatra e percebeu-lhe a indecisão ao escrevinhar a receita. O médico parecia nervoso, o seu caso devia ser demasiado estranho para a sua formatação escolástica. O modo como coçava a testa não augurava nada de bom e ele decidiu nesse mesmo momento que não tomaria os medicamentos. Pegou na receita, levantou-se e perguntou: - Quanto lhe devo?” (“A fome do Licantropo”, A Fome do Licantropo)