sobre os projetos arquitetônicos
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SOBRE OS PROJETOS ARQUITETÔNICOS DOS NOVOS PRESÍDIOS FEDERAIS E ESTADUAIS Parecer de Marcos Rolim Consultor da UNESCO1 Introdução: O projeto arquitetônico de um estabelecimento prisional é o resultado de um conceito de pena privativa de liberdade. Antes do projeto que orientará a nova instituição, deve existir uma idéia clara do que deve ser a experiência de privação da liberdade, do que se espera alcançar com ela, dos cuidados que se deve ter com a segurança, da forma como desejamos organizar o cotidiano da instituição, do fluxo dos internos, da relação destes com os funcionários e o corpo técnico, do tratamento que será dispensado aos visitantes, da relação da própria instituição com o mundo exterior, etc. Um projeto arquitetônico para uma nova instituição prisional deve ser o resultado das respostas que se oferece a estas e outras perguntas. Por isso, não há projeto arquitetônico para um estabelecimento prisional sem um “conceito” de execução penal. 1 Este texto foi produzido no contexto da cooperação da UNESCO com o Ministério da Justiça. As opiniões aqui expostas são de responsabilidade do autor e não refletem necessariamente a visão da UNESCO sobre o assunto. O autor, a pedido do Ministério da Justiça, produziu este parecer após estudar o ante-projeto e as plantas dos novos estabelecimentos. O trabalho foi entregue ao Ministério ao final de abril de 2005. 2 Para elaborar este texto, tive acesso, apenas, a duas plantas baixas: uma dos novos presídios federais e, outra, do “modelo” de presídio que o DEPEN está propondo aos estados. Ainda assim, com a limitação de visualizá-las só na tela de meu computador, o que me obrigou a um vai-e-vem infinito de aproximações e recuos no “zoom”, para tentar apreender o que, de fato, se está propondo. Não tive acesso a qualquer texto explicativo, nem a um memorial descritivo que me permitisse, com certeza, identificar cada espaço, saber de sua função, etc. Certamente estes documentos existem e podem revelar uma idéia diferenciada de execução penal ou, pelo menos, a intenção de garanti-la com as novas instituições. A impressão que se tem, entretanto, em um primeiro exame dos dois projetos arquitetônicos oficiais do DEPEN (e, portanto, do Ministério da Justiça e do Governo Federal), é que eles surgem como decorrência do mesmo conceito de execução penal construído pela insensibilidade histórica de nossas elites, que revelam a mesma compreensão da prisão como um espaço institucional vocacionado a maximizar o sofrimento inerente à privação da liberdade, que estimulam uma idéia de execução penal totalmente desvinculada dos desafios da profissionalização e da educação dos internos, que oferecem um modelo de execução essencialmente retributivo e que apostam no mesmo modelo de relacionamento entre internos e funcionários observado, como regra, nos presídios brasileiros. Três Princípios específicicos norteadores da crítica Sustento - com apoio de consistente produção teórica internacional comprometida com a execução penal humanista - que, qualquer que seja o conceito de execução penal, deve-se exigir dele a materialização de alguns básicos. princípios 3 a) O primeiro e o mais importante de todos é resumido quando afirmamos que a prisão se constitui no espaço onde o preso irá cumprir a punição que recebeu – no caso, a privação da liberdade - e não em um espaço onde ele será punido. Dito de outra forma: a privação da liberdade é a punição. Não há qualquer outra punição que possa ser executada e que ultrapasse a privação da liberdade, ou que possa ser justificada à margem da sentença judicial. b) O segundo princípio básico que antecede este parecer é aquele que a literatura especializada consagrou como “princípio da abertura”. Com este princípio procurase garantir que a sociedade civil tenha presença dentro das instituições prisionais e que o cumprimento da pena, mesmo que em regime fechado e em presídios de segurança máxima, não se realize de uma forma totalmente isolada da comunidade. c) Em terceiro lugar: a execução penal deve ser concebida, desde o projeto individualizador, para a integração do condenado à sociedade. Por esta razão, entre a atenção mais importante a ser assegurada pelo Estado aos internos devese destacar o compromisso de assegurar-lhes o acesso à educação e à formação profissionalizante. Os “novos” Presídios: Os projetos dos novos presídios federais e estaduais são distintos, mas a concepção que os anima parece ser a mesma. Só por isso, em que pese suas diferenças, irei analisá-los conjuntamente. Em primeiro lugar, ambos mantém a peculiar concepção do isolamento celular que vigora historicamente no Brasil: aquele realizado em “alas” ou “galerias”. No caso, serão 4 módulos, com duas alas cada. Nestas alas, as celas são alinhadas, uma ao lado da outra, de forma que os internos, quando alojados em suas celas, 4 não podem visualizar os demais. No projeto para os Presídios Federais, há, pelo que se pode deduzir, um segundo piso em cada módulo. Não está claro, entretanto, se haverá celas também neste segundo pavimento. Tal arquitetura produziu no sistema prisional tradicional o contato visual entre os detentos por espelhos e a comunicação por bilhetes conduzidos, não raras vezes, por um complexo sistema de fios e roldanas improvisadas. Mais do que isso, entretanto, tal disposição arquitetônica tem sido muito funcional ao isolamento dos presos em áreas fechadas, longe da vigilância dos responsáveis pela custódia. As galerias nos presídios superlotados se transformam, rapidamente, em “territórios livres”, administrados, verdadeiramente, pelos próprios internos, cuja contenção efetiva passa a ser o espaço maior da galeria ou da ala. Como a disposição arquitetônica alinhou as celas e as colocou fora do campo de vigilância situado à entrada das galerias, o que ocorre “no fundo da cadeia” é algo que jamais é testemunhado. Alas pequenas, com um preso em cada cela, em uma instituição com um projeto de execução penal humanista, ainda poderiam “funcionar”. O que ocorre, entretanto, é que as alas ficam cada vez maiores, recebem cada vez mais presos e, rapidamente, se transformam em “alojamentos coletivos”. Esta é a tendência maior que acompanha este modelo arquitetônico há décadas, no Brasil e no mundo. Este mesmo modelo arquitetônico tem negligenciado completamente a dinâmica de deslocamento dos presos dentro da instituição prisional. Nossos presídios são caixotes de cimento e ferro, construídos sempre às pressas e sem qualquer consideração pelos desafios de uma execução penal que se pretenda, de fato, “ressocializadora” (ou “socializadora”). Não dispomos de uma verdadeira “tecnologia prisional”. O improviso, inclusive na formulação de projetos arquitetônicos, tem sido a regra. Quando muito, os arquitetos recebem como “orientação” algumas normas básicas de segurança a serem observadas. Como todos, entretanto, operam dentro de um mesmo paradigma de contenção, sequer os cuidados mais importantes com a segurança prisional são observados. Via de 5 regra, a tendência de se pensar a segurança começa e termina nas medidas cautelares a serem tomadas frente ao internos. O medo, é claro, são as fugas e rebeliões. Pouco se faz, entretanto, para que as instituições prisionais estejam protegidas de investidas externas, seja por estratégias organizadas e profissionais de “resgate” de presos, seja através das extraordinárias possibilidades de infiltração criminosa entre os fornecedores do presídio, entre seus agentes de segurança ou em seu corpo técnico. Por outro lado, ainda hoje no Brasil e contrariando todas as normas internacionais, a grande maioria dos presídios permite que agentes ou guardas prisionais portem armas de fogo em seu interior, prática que assinala, em si mesma, uma das maiores ameaças à segurança da instituição. Em um Presídio de Segurança Máxima, deve-se evitar, tanto quanto possível, o contato direto e corporal dos agentes de segurança com necessário, então, independentes para que sejam previstos corredores os detentos. É de deslocamento os internos em seus deslocamentos cotidianos, controles de passagem sejam centralizados eletronicamente. Cada cujos passagem deve possuir duas cancelas, com mecanismo automático que impeça a segunda abrir enquanto a primeira estiver aberta. Mecanismos do tipo devem, também possuir um programa diferenciado para situações excepcionais onde se faça necessária a rápida evacuação do módulo como, por exemplo, no caso de incêndio, o que exigiria uma área segura de “recuo” para estas hipóteses, etc. Os canais de deslocamento dos internos devem ser totalmente permeáveis à vigilância, o que exigiria uma atenção especial do projeto para os materiais empregados (aramado, vidro blindado, circuito integrado de TV, etc.) Cabe ao projeto arquitetônico prever, também, salas específicas para que os internos possam efetuar a troca da roupa para a passagem à sala de visitas e no retorno dessa. Com essa sala, um único agente de segurança postado atrás de um vidro especial observa o preso tirar sua roupa em um lado do recinto, autoriza o seu deslocamento até o lado oposto onde lhe será entregue roupa especial para a ocasião (peça única, tipo macacão, sem bolsos, ou dobras), com a qual terá 6 acesso à sala de visitas. Este “detalhe” arquitetônico e os procedimentos que lhe são correspondentes significam mais segurança e, ao mesmo tempo, reduzem bastante os riscos e os abusos muitas vezes presentes nas revistas corporais e, como regra, nos deslocamentos. No caso do projeto que estamos examinando, não identifiquei uma visão mais bem desenvolvida a respeito do deslocamento e fluxo interno. Há, entretanto, muitas outras limitações. Um acerto: espaço regular para visita íntima: De positivo, devo destacar a previsão para visitas íntimas entre os internos e seus familiares. O que me surpreendeu pois, ainda no ano passado, em audiência mantida com o diretor do DEPEN, recebi a informação de que os presídios federais não permitiriam a “visita íntima”. Mas, segundo as plantas que examinei, haverá um espaço específico para elas, fora da área celular, ao lado da sala de visitas (o que me parece uma solução simples e criativa). Seria conveniente lembrar que estamos tratando de instituições prisionais para presos com um perfil mais agravado e que, seguramente, terão pela frente muitos anos de penas privativas de liberdade a cumprir. Para a grande maioria desses presos, a melhor chance – às vezes a única chance – que temos de que eles possam ter um prognóstico melhor é aquela produzida pelo contato com seus familiares, destacadamente com suas companheiras e filhos. Mas se as visitas íntimas fossem proibidas – como se pretendeu com o Regime Disciplinar Diferenciado (RDD) – estes presos experimentariam, além da privação sexual e do sofrimento desnecessário resultante, uma distância cada vez maior frente a suas famílias. Os presídios federais, como se sabe, terão um perfil “regional” (a previsão inicial são 5 presídios, cada um em uma região do Brasil), uma opção que me parece equivocada exatamente por implicar que os familiares dos internos estarão muito 7 distantes. Tal circunstância, já grave em si mesma, seria ainda muito pior caso não houvesse a possibilidade da visita íntima. Com o passar do tempo, teríamos a desconstituição das unidades familiares dos internos, porque a maior parte das mulheres faria a opção de iniciar novos relacionamentos. Assim, estaríamos condenando os internos mais uma vez. Além de privá-los da liberdade por muitos anos, iríamos privá-los do regular exercício da sexualidade e da convivência com seus familiares. Isolados, sem contato e sem notícias a respeito dos seus, sem o consolo que apenas uma relação afetiva verdadeira pode propiciar, sem o estímulo de recuperar legalmente a liberdade para privar com os seus, os detentos se tornariam um grupo bem mais difícil de se lidar. Muito provavelmente, estas circunstâncias todas tensionariam permanentemente as novas instituições. Antes que se imaginasse, teríamos rebeliões e novas cenas de horror. O que a norma restritiva produziria, então, seria contrário ao interesse público porque tendente a tornar o prognóstico deste preso pior e não melhor. A propósito, privar um detento do exercício da sua sexualidade é também uma forma de estender a pena para além do condenado, o que nosso ordenamento constitucional veda explicitamente. Deve-se acompanhar, de qualquer maneira, a forma como os internos farão jus à visita íntima. Na tradição prisional brasileira, este momento de contato reservado dos presos com suas companheiras tem se dado nos dias normais de visita, a partir da entrada das mulheres nos pátios internos e de seu acesso às celas. Assim, ao longo do dia de visita, os próprios presos organizam o necessário “rodízio” para que todos os que recebem visita possam privar com suas companheiras durante um determinado tempo. Como os novos presídios estabelecem quartos específicos para este fim, presume-se que não haverá visita íntima na área celular. O que é mais correto, inclusive sob uma ótica de preservação da segurança. Mas, a utilização dos quartos deverá ser planejada com muito critério de modo que todos os presos possam receber suas companheiras, regularmente e em rodízio. Esta dinâmica, entretanto, exigirá que 8 as visitas íntimas sejam distribuídas ao longo da semana, e não em um único dia. Caso contrário, a nova planta se prestará a uma restrição extraordinária e não à garantia de um direito que, assinale-se, não é apenas do preso, mas também de sua companheira. As acomodações: espaço celular abaixo do padrão mínimo da ONU O modelo arquitetônico escolhido para os novos Presídios Federais propõe uma cela onde o espaço destinado ao interno é, descontado o minúsculo “banheiro”, 4 (quatro) metros quadrados. O projeto desrespeita, assim, as dimensões mínimas propostas pelas Nações Unidas para a privação de liberdade (6 metros quadrados). Não está claro se este mesmo espaço não será utilizado por dois presos, ao invés de um. Seja como for, mantida a atual legislação penal brasileira, a tendência é que isso ocorra em pouco tempo. Teríamos, então, nesta hipótese, o espaço de 2 (dois) metros quadrados para cada preso. Ora, 2 (dois) metros quadrados para cada preso é, exatamente, o que o projeto “padrão” para os presídios estaduais está propondo. A ilegalidade aqui torna-se ainda mais evidente e deve ser compreendida como um impedimento incontornável do projeto. No projeto destinado aos estados, se estabeleceu que as celas deverão abrigar 8 (oito) presos (sic). Tal previsão assinala, também, um risco de segurança extraordinário e deverá ser muito funcional a ameaças, agressões, abusos sexuais e homicídios entre os internos 2. 2 Em Blumenau, a Lei Complementar 466/04, que dispõe sobre o controle e a proteção de populações animais e determina providências correlatas - uma das mais modernas e avançadas do país - estabelece que, em um canil, as dimensões mínimas em um alojamento individual para cães de grande porte deverá ser de 4m2 (quatro metros quadrados) com solário de 6 metros quadrados. Assegura, ainda, entre outras disposições para a higiene do espaço, que o telhado do canil deva ter isolamento térmico. No Brasil, se oferece menos do que isso aos seres humanos encarcerados. 9 O ambiente prisional começa a ser definido no projeto arquitetônico. Apenas o acesso aos detalhes sobre o projeto poderia permitir o exame de aspectos essenciais como, por exemplo, as condições de aeração e iluminação natural. Pelo que se pode perceber, entretanto, há razões suficientes para se duvidar que os parâmetros mínimos para uma acomodação saudável tenham sido observados. Nas Regras Mínimas para o Tratamento dos Reclusos3 (RMTR), assinalam na Regra 9: “As celas ou locais destinados ao descanso noturno não devem ser ocupadas por mais que um recluso. Se, por razões especiais, tais como excesso temporário de população prisional, for necessário que a administração penitenciária central adote exceções a esta regra, deve evitar-se que dois reclusos sejam alojados numa mesma cela ou local”. Comentando esta regra, o Manual Internacional Para uma Boa Prática Prisional (“Making Standarts Work”), da Penal Reform International 4 (PRI), admite que embora as celas devam preferencialmente alojar um único preso, a experiência tem demonstrado que é possível alojar dois presos neste espaço de contenção, “desde que o espaço, a ventilação, a mobília e as instalações sanitárias sejam compatíveis“. Já a Regra 10, assinala: “Toda a acomodação fornecida para uso de pessoas presas e, particularmente, toda a acomodação para dormir, deverá 3 4 Adotadas pela ONU em 1955. ONG internacional com status de consultora da ONU, fundada em 1989, com sede na Inglaterra e trabalho em mais de 60 países. 10 atender a todos os requisitos de saúde, com a devida consideração das condições climáticas e, particularmente, cubagem de ar, área útil mínima, iluminação, aquecimento e ventilação.” Esta última regra nos permite questionar outro aspecto dos projetos: teremos um modelo de presídio federal e um modelo de presídio estadual válidos para todas as regiões do País, sem qualquer consideração às variáveis climáticas? Então, um presídio para o Amazonas – com um clima úmido e quente e temperaturas que chegam aos 40° ao longo de todo o ano – será o mesmo a ser construído no RS, onde são comuns temperaturas próximas de 0° durante os meses de inverno? Sobre as condições de aeração e iluminação natural, é preciso ter em mente a Regra 11: “Em todos os locais destinados aos reclusos, para viver ou trabalhar: a) As janelas devem ser suficientemente amplas, de modo a que os reclusos possam ler e trabalhar com luz natural e devem ser construídas de forma a permitir a entrada de ar fresco, haja ou não ventilação artificial; b) A luz artificial deve ser suficiente para permitir aos reclusos ler ou trabalhar sem prejudicar a vista” Segundo o Manual da PRI, já citado, se deveria considerar como inaceitável a existência de estabelecimentos prisionais que não assegurem a devida aeração e insolação. Procedimentos que impeçam os detentos de terem algum contato visual com o mundo exterior, “blinds” nas janelas, entre outros, constituem violência institucional e não podem ser tolerados. 11 Da mesma forma, o hábito bastante arraigado em muitas prisões brasileiras de impor a iluminação artificial em todas as celas, durante toda a noite, como “medida necessária à segurança prisional” assinala violação aos Direitos Humanos dos apenados e submete a saúde de todos eles a risco. Seria preciso, assim, ter acesso a muitas outras especificações técnicas dos projetos como, por exemplo, onde ficarão os interruptores de luz, se dentro das celas ou fora delas, etc. Ambiente prisional e saúde Todos estes detalhes deveriam ser escrutinados para que se pudesse, ainda, minorar os problemas que certamente serão propiciados pela estrutura projetada, seja para os presídios federais, seja para o novo modelo aos estados. No documento já citado, a PRI sustenta, entre os seus princípios, que: “O dever primário de cuidado é o de garantir a segurança das pessoas privadas de liberdade. O dever de cuidado compreende também um dever de garantir o bem estar da pessoa (...) Nessa conformidade, os serviços prisionais têm o dever de velar para que os estabelecimentos prisionais sejam locais de segurança, tanto para a população reclusa que aí é obrigada a viver, como para o pessoal prisional que aí tem de trabalhar. Ambos devem estar protegidos contra todas as formas de violência e contra todo o tipo de ameaça à vida e á saúde, venham elas de onde vierem. Também a comunidade tem o direito de ver os seus membros protegidos das atividades perniciosas dos reclusos, isso, no entanto, deve ser feito com recurso ao mínimo possível de medidas restritivas, respeitando-se as disposições do Art. 3 da Declaração Universal e as Regras Mínimas”. 12 Ora, as condições de encarceramento, o tipo de disciplina exigidas dos internos, o contato com os familiares e muitos outros elementos modulam o cotidiano da vida nas prisões. Mas se as instalações prisionais não são adequadas, se elas oferecem aos internos um sofrimento adicional, além da pena de restrição de liberdade, temos o início de todo um processo que fará da execução um encadeamento de atos de desrespeito e violência. Sim, porque se tais instalações não são capazes de amparar uma vida digna, se elas simplesmente isolam os internos e os submetem, isso será vivido pelos presos como uma agressão e uma injustiça e o resultado desta experiência de dor nada terá a ver com a idéia de ressocialização, conceito mais relevante da LEP. Todos estão suficientemente bem informados a respeito das péssimas condições de saúde em geral encontradas entre os detentos. Embora não exista um levantamento ou estudo nacional sobre o tema, todos os indicadores de saúde disponíveis coletados randomicamente em prisões brasileiras demonstram que é muito alto o índice de contaminação com o vírus HIV e que doenças como a tuberculose já deveriam constituir, desde há muito, uma preocupação de saúde pública. Em se tratando do tema da saúde prisional, aliás, penso que seja importante reproduzir o argumento da Baronesa Vivien Stern 5 : “Prisões são muito ruins para a saúde – não apenas para a saúde dos prisioneiros e dos funcionários, mas para a saúde das pessoas que estão fora das prisões. Na Rússia, 10% dos 900 mil prisioneiros são tuberculosos. 350 mil prisioneiros deixam as prisões russas todos os anos, muitos deles no meio de um tratamento de TB. Quando o tratamento é interrompido isso pode conduzir a uma forma muito perigosa de TB resistente à medicação. TB, HIV, 5 Stern, Vivien (2002) Discurso em Latin American Conference on Penal Reform and Alternatives to Imprisonment, Costa Rica, 5 e 11 de novembro de 2002. Disponível em http://www.kcl.ac.uk/depsta/rel/icps/costa_rica_speech.doc 13 Hepatite B e C são entre 30 a 100 vezes mais comuns nas prisões do que na vida em sociedade. Na Europa, um quarto dos prisioneiros usuários de drogas começam a usar drogas injetáveis enquanto estão nas prisões. Eles compartilham agulhas e as infecções se espalham rapidamente. Temos, então, claras evidências sobre o impacto das prisões na saúde pública. Os micróbios que causam a TB podem agora ser analisados pelo DNA. Cada um deles é diferente. Pesquisadores do Tennessee, nos EUA, e em Londres, no Reino Unido, analisaram casos de TB e descobriram o quanto rapidamente o mesmo micróbio pode se mover dos prisioneiros para as pessoas que estão em contato com as prisões e para as pessoas que não possuem qualquer contato com elas. Assim, um elevado uso do encarceramento aumenta os riscos de segurança e produz danos à comunidade porque dissemina doenças e ameaças à saúde pública”. Ora, parece evidente que presídios planejados para uma lotação de 800 detentos, com 8 presos em cada cela – como no caso do modelo oferecido aos estados – trazem consigo, inevitavelmente, a ameaça de serem novos e importantes vetores para a disseminação de moléstias contagiosas. Opção equivocada por “mega” presídios A lotação planejada para os presídios estaduais é totalmente não recomendável. Presídios desse tamanho tendem a ser muito mais difíceis de se administrar e, muito freqüentemente, inviabilizam a individualização na execução penal. No meio de quase mil internos, as chances de se projetar uma execução adequada ao perfil de cada sentenciado e de se acompanhar a execução, são rigorosamente nulas. Todos serão tratados, indistintamente, como “massa carcerária” e passarão 14 pela instituição não como indivíduos, mas como gado em um matadouro. A desumanização dos internos, é claro, começa nesta indiferenciação e a criminogênese do encarceramento terá nela um terreno ainda mais propício. Confinamento Nem os presídios federais, nem o modelo oferecido aos estados permitem aos presos a possibilidade de qualquer período em áreas abertas dentro da instituição. O espaço entre as celas, um pequeno pátio fechado, não pode substituir a necessidade de um contato, ainda que visual, com o mundo exterior. A experiência resultante deste “confinamento” por longos anos será produtora de novo e desnecessário sofrimento. Não me parece justificável esta limitação, ainda mais que a área de construção prevista para as novas instituições possui significativos espaços abertos que, entretanto, não serão acessados pelos internos, nem pelos funcionários, nem por ninguém. Espaços como um campo de futebol ou uma horta ofereceriam a chance de atividades muito importantes para a execução penal e, seguramente, distensionariam a vida nos estabelecimentos. Mas eles não foram sequer considerados embora, repito, os espaços existam. Também por isso, muito provavelmente – ainda mais se as regras internas de disciplina forem aquelas que a experiência com o RDD tem propiciado – os novos presídios serão também novos manicômios. Espaços onde não se produzirá apenas o crime, mas a loucura. Não identifiquei nos projetos o espaço para a venda de produtos e objetos permitidos e não fornecidos aos presos pela administração – tradicionalmente conhecido como “cantina”, previsto pelo art. 13 da LEP como parte da assistência material. 15 Penso que seria adequado que os Presídios pudessem dispor de alguma salas de observação, acolchoadas, para o acompanhamento de internos em risco de suicídio. Educação e formação profissionalizante Não está claro em ambos os projetos qual o peso e a importância que as alternativas de formação profissionalizante (incluindo o trabalho prisional) e de educação formal terão nas novas instituições. Não me parece, entretanto, que qualquer uma delas tenha, de fato, alguma relevância nos projetos. Não identifiquei entre os espaços sinalizados como “de apoio” ou como “oficinas” as dimensões mínimas para que programas amplos de natureza educacional e profissionalizante sejam cumpridos (no modelo para os estados, por exemplo, projetados para uma lotação de 800 presos, há a previsão de, apenas, 3 pequenas salas de aula). Os presídios projetados poderão oferecer, ao que tudo indica, os espaços necessários para o apoio jurídico e para as ações básicas de saúde (caso assegurem a presença dos profissionais necessários). Os itens “educação” e “formação profissionalizante” , entretanto, parecem claramente subestimados. Outro modelo é possível A planta dos novos presídios poderia ter optado por um “módulo” mais funcional ao convívio dos presos, mais seguro e mais humano. Assim, por exemplo, ainda dentro de um modelo de contenção celular, poderíamos utilizar o modelo arquitetônico da Curran-Fromhold Correction Facility da Philadelphia, um moderno complexo prisional norte-americano que optou por módulos de dois andares em forma de meia-lua. Em cada cela, dois presos. Uma média de 70 presos por módulo. O presídio é de segurança máxima e não há fugas registradas, mas os 16 presos passam quase todo o dia fora de suas celas em uma área de convivência comum, coberta, em frente à “meia-lua”. Ali há mesas de jogos, um telefone público, sala de aula, refeitório e uma saída para um espaço aberto à insolação com uma quadra de basquete. Toda esta área está sob a observação de um pequeno “aquário” de vidro, postado de frente para a meia lua de celas e isolado a uma altura que impede o acesso por dentro do módulo. Toda a movimentação dos internos está, sempre, sob acompanhamento neste modelo arquitetônico. O que é reforçado por um competente sistema de gravação e monitoramento por câmeras de TV. A critica mais fácil veria aqui o modelo do “Panopticon” de Benthan. Não penso que ela possa ser aceita, entretanto. Primeiro, porque a privacidade dos internos é assegurada no interior de suas celas. Segundo, porque em se tratando de execução penal em regime de privação de liberdade, cabe ao Estado, primeiramente, assegurar a vida e a integridade física dos sentenciados. Não se fará isso, entretanto, sem vigilância profissional. No caso brasileiro, especialmente, ela significaria muito mais uma garantia do que um risco. Com ela todos poderiam estar de fato, protegidos e nenhuma agressão ou atentado à vida seria produzido impunemente, por membros do staff, contra eles ou por disputas entre os próprios internos. Se não houvesse outro motivo para se repensar completamente os projetos aqui examinados, apenas este já seria mais do que suficiente. Porto Alegre, 28 de abril de 2005.
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