volta às aulas! - Jornal Plástico Bolha

Transcrição

volta às aulas! - Jornal Plástico Bolha
plástico bolha
envolvendo palavras
Ano 3 - Número 19 - Março/2008
Distribuição Gratuita
vo l t a à s a u l a s !
Estalinho
ger
z Lan
Hein
Ano novo, vida nova, bolhas novas! O jornal mais emocionante do início
do século chega ao seu terceiro ano de vida com muito vigor. Para esta edição de
reestréia, temos uma entrevista que Marilena Moraes fez com Denise Bandeira,
sobre o mundo dos roteiros. Miriam Sutter vem mostrando como a Antigüidade
pode ser atual na coluna Oráculo.
Ana Chiara, da UERJ, estréia a nova coluna Quarto de despejo, que trará Maria
Carolina de Jesus para o Bolha. Santuza Cambraia Naves, prossegue Por dentro do
tom, sua coluna de observações e dicas musicais. Nastassja Pugliese apresenta um
Puzzles sobre os mistérios biográficos de Leibniz, na série em que investiga a vida
dos pensadores.
Ana Paula Kiffer assume a coluna Mulheres-Damas, agora ilustrada por Raïssa
Degoes. E, por falar em ilustração, temos o grande Angelo Abu, além de Heinz
Langer, que prossegue como nosso grande astro da capa. Temos também a nova
coluna Bolhetim — a meta-coluna que falará sobre o jornal.
Gregório Duvivier adentra uma das temáticas mais subjetivas: o amor.
Felipe Carvalho dos Santos apresenta a sabedoria do caracol nos Cen’átimos.
O Desafio poético está repleto de saborosas amêndoas e a coluna mineira das Bolhas
Geraes propõe um brinde à Biblioteca Nacional.
E nós propomos um brinde aos nossos leitores, novos e antigos, colaboradores
e apoiadores. Que o novo ano seja pretexto para muitos e muitos textos!
NESTA EDIÇÃO
denise bandeira
ana paula kiffer
clara passi
miriam sutter
jÚnio louback
dimitri merino
marilena moraes
gregÓrio duvivier
joÃo xavier
luiz coelho
gabriella lima
sabrina guedes de oliveira
Paulo Gravina
santuza cambraia naves
raÏssa degoes
felipe carvalho dos santos
A festa junina dos adultos é bem diferente da festa junina das
crianças. A das crianças tem barraquinhas, bandeirinhas, brincadeiras.
A dos adultos tem música alta, vozes ainda mais altas, ocasionalmente
interrompidas por goles de bebida. A das crianças tem doces, danças,
divertimentos. A dos adultos tem risadas, fofocas, política. A das crianças
tem pescaria, latas, boca do palhaço. A dos adultos, namoro, latas viradas,
filas no banheiro. Esta é uma festa junina dos adultos.
Há, porém, duas crianças largadas no meio do jardim: Miguel e
Sabrina. Ele de seis, ela de sete — vizinhos e amigos desde que conseguem
se lembrar. Ele loiro, ela de olhos puxados. Ela, filha dos donos da casa;
ele, no momento, segura uma bombinha em uma das mãos, pronta para
ser estourada.
— Vamos, vamos acender; vai ser legal.
— Não. Se a minha mãe descobrir, ela vai ficar furiosa.
— Ahh, Bina, vamos lá, tua mãe tá cuidando lá da festa.
— Mas seus pais tão aí também. Eles nunca mais vão deixar você
vir para cá...
— Olha, tem um formigueiro ali no canto; vamos botar ali... —
diz ele, já se dirigindo à lateral do jardim.
Ela, mais curiosa do que preocupada, o segue. Ele encaixa o
canudinho no formigueiro e acende. Bem depressa, os dois se escondem
atrás de uma árvore.
Ela pensa no fim da festa, na bronca, no castigo. Ele pensa no
fim da festa, numa explosão de formigas invadindo a casa. Ela pensa na
gritaria, nas orelhas doídas, em um mês sem brincar. Ele pensa na gritaria,
na correria, no fim do mundo. Ele, de súbito, no meio daqueles segundos
eternos olha para ela. Os olhos se tocam, as mãos se tocam, os lábios
se tocam. Primeiro é estranho, mas depois as duas bocas começam a se
acostumar ao beijo enquanto o mundo explode lá fora. Era o primeiro
beijo de ambos, com o gostinho de último.
Logo após a explosão, eles voltam ao jardim e observam que
tudo estava exatamente igual: até o formigueiro permanecia praticamente
intacto. A festa continuava a mesma, e os adultos apenas prestavam atenção
ao que estava em seu alto horizonte. A decepção de ambos é gigantesca,
até que, com um novo brilho nos olhos, ele propõe a ela:
— Vamos acender de novo?
heinz langer
alice sant’anna
angelo abu
pedro rajÃo
barbara hansen
nastassja pugliese
isabel wilker
pedro braga
ana chiara
paulo gravina
paulo renato porto filho
paloma espÍnola
mauro rebello
andrÉ sigaud
sueli rios
isabel diegues
letÍcia simÕes
Subjetivas
Bolhetim
Conheci recentemente o Jornal e escrevo para dar os
parabéns pela iniciativa, pela qualidade, e, é claro, pela
ousadia de realizar uma publicação de conteúdo no
mundo em que vivemos. A primeira edição que li foi a
de número 17, ano 2, e minha empolgação foi tremenda!
Junto a um amigo, organizo alguns eventos culturais e
gostaria de poder contar com alguns exemplares para
distribuição ao público que nos freqüenta enquanto
aguardo o meu texto ser publicado.
— Jay Gatsby, via e-mail.
2
Olá, Jay. Como você já falou, enviar seus textos ao
plástico bolha é só uma das formas de participar.
Muitos colaboram apenas distribuindo o jornal para
as pessoas próximas, na faculdade, em casa ou no
trabalho, pois o plástico bolha conta com uma
rede de leitores que leva a publicação onde estiver,
e, dessa forma, já chegamos a Belo Horizonte, à
Bahia, e até a França, com a ajuda da poeta Nicole
O’Hara. Então, se você é professor e quer distribuir
o jornal para sua turma, possui um estabelecimento
comercial ou, ainda, se quiser distribuir o jornal onde
quer que esteja, é só enviar um e-mail. Mandaremos
as edições, inclusive as antigas. Agradecemos o seu
interesse em participar; continue acompanhando o
jornal.
Eu não sei escrever, mas sei desenhar, o que faço?
— Frida Kahlo, via e-mail.
Bem, Frida, essa pergunta é um pouco estranha,
porque está escrita. Mas, de todo o modo, o
plástico bolha aceita não só textos, mas todo tipo
de produção visual, pictórica e desenhística. Desde
o ano passado, nós temos as ilustrações de Angelo
Abu. Agora, Raïssa Degoes ilustra a coluna mulheresdamas. Isso sem falar no nosso tradicional cartunista,
o querido Heinz Langer. Então, envie seus desenhos
e charges para analisarmos. Lembramos que, para
publicarmos, dependemos também da qualidade de
impressão da imagem.
por Gregório Duvivier
amor:
esboço de um roteiro.
CENA 1 – EXT./DIA – Escola Parque.
Esses sapatos amarelos são pequenos demais, apertam meus pés – ou são os pés que
apertam os sapatos, não sei. Você tem tic-tacs no cabelo. E uma camisa listrada, ou
listada, penso. Temos cílios, os dois, e grandes demais. Tentativa de vôo: pegar duas folhas
secas, uma em cada mão. Correr e agitá-las o mais rápido possível. Não funciona. Contentome com a gangorra. Sento-me no chão. Cato sementes de jaca e as enfio fundo na terra.
Depois as choco com a mão e cuspo em cima, para fertilizar. Lembro-me de voltar aqui
daqui a uns anos: faço um xis no chão para me lembrar onde foi. Você observa, perplexa,
a minha fuga.
CENA 2 – EXT./NOITE – Calçadão de Ipanema
Um bumbo explode ao longe, em descompasso com as ondas do mar. Minha cabeça
pesa e o mar estoura quase aos nossos pés. No ar, a ressaca em mil gotículas de sal.
Tropeço em latas e em costas suadas demais. Talvez a ressaca seja de ambos. No chão,
amêndoas secas (mortas?), tão boas de chutar. Entre confetes, e poças, e clara, você está:
de óculos escuros, talvez. Licença. Quero viver com você a vida inteira e mais um pouco,
quase disse. Mas há o bumbo, a ressaca e. Não estávamos sós (estaríamos prontos?).
Acho que não. Daqui a um ano, quem sabe se nós. Quem sabe: a semente continuava
sob o solo, fertilizada.
CENA 3 – EXT./DIA – Vargem Grande
Sob o som do sol e o céu a pino, descobrimo-nos do véu e expomo-nos ao mundo.
Lábios correram pela nuca como o gelo que escorre pelos ombros como a cânfora que
estoura no pulmão (nosso peito só explode, nosso peito). Enfim, fundimos nosso sangue
que agora borbulha ultravioleta ao som de um psy-trance. E aquela semente plantada
explode do fundo da terra: somos só terra, da cabeça aos pés. Só Terra. E o mundo é
êxtase.
CENA 4 – INT./DIA – Quarto
Em uma manhã mais clara que qualquer outra manhã, se plantará funda sob os lençóis
uma nova semente. E em outras manhãs ela vai florescer; e crescer; e permanecer
crescendo. Com dentes grandes, olhos enormes e cílios maiores ainda – cílios de pinçar
a realidade, capturá-la – ela terá pintinhas nas costas, dobrinhas nos dedos e correrá
pela terra, de onde saiu e a quem pertencerá eternamente – como toda semente. E terá,
assim, vontade de plantar sementes. E eu lhe darei, então, meus sapatos amarelos.
plástico bolha
produzido pelos alunos de Letras da PUC-Rio
Tiragem: 8.000
Impresso na CUT Graf
Distribuído no Rio de Janeiro e em Belo Horizonte
envie suas dúvidas, críticas e sugestões para
[email protected]
-------------------------------------------------------------Entre muitos outros lugares você encontra o plástico bolha em:
— Livraria Café com Letras
Av. Bartolomeu Mitre, 297, loja C, Leblon - RJ
— Restaurante Ettore Cucina Italiana
Av. Armando Lombardi, 800, loja C/D/E, Barra da Tijuca - RJ
— Livraria Argumento
Rua Barata Ribeiro, 502, Copacabana - RJ
Editores
Lucas Viriato
Paulo Gravina
Editora Assistente
Marilena Moraes
Conselho Editorial
Luiz Coelho
Gregório Duvivier
Isabel Diegues
Comissão Avaliadora
Constanza de Córdova
Carlos Andreas
Tomé Lavigne
Julia Barbosa
Isabel Wilker
Edson Santana
Projeto Gráfico
Lucas Viriato
Coordenação
Thiago Bento
Lucas Viriato
Revisão
Marilena Moraes
Rubiane Valério
Rafael Anselmé
Gabriel Matos
Equipe
Márcia Brito
Beatriz Pedras
Paloma Espínola
Fernando Fernandes
Agradecimentos
Heloisa Féo
Leo Carnevale
Envie seus textos para [email protected]
A caminho do trabalho
Na Rio Branco, tudo parado
Carros, ônibus, motos por todos os lados
Sinal abre, sinal fecha, abre, fecha...
Qualquer tentativa de fuga será inútil
Ele buzina, buzina, buzina, mas na Rio Branco
Continua tudo parado.
Gabriella Lima
Poema em estado bruto
A tristeza não é triste,
é só uma palavra.
A tristeza triste,
a poesia em estado bruto,
são lágrimas.
Pedro Braga
Quando tiver um filho, trate de
falar a verdade sobre as coisas do
mundo. Diga a ele que quem ri
por último é retardado, que os
últimos serão desclassificados e
que quem cedo madruga fica com
sono o dia todo. Ah, e também
que há males que vêm para pior.
Em caso de sol e chuva, não
esquecer de sair de guarda-chuva.
Antes tarde do que mais tarde ou
por que não antes nunca do que
tarde? Não se esqueça de dizer
que águas passadas já passaram e,
por falar em água, diga também
que depois da tempestade vem
a gripe, e que água mole em
pedra dura tanto bate até que
molha tudo. E, por último, – um
conselho para dar quando ele
for mais crescido: quem dá aos
pobres ainda tem que pagar o
motel.
Clara Passi
À palavra como existência primeira retorno. Fuga sem percurso e a volta ao ponto original. Cada saída, um
muro; cada retorno, um círculo. Os mesmos motivos vãos — amor de fuga colorida, que pula no terraço e a desperta
para a noite de sonho. Vozes indefinidas, cada vez mais distantes (em todas, o mesmo som), sopram irrelevâncias.
Faces tão desconhecidas quanto previsíveis, porque é sempre o mesmo final . E os meios. E o começo ao qual
voltarei. Encurralada no telhado. Lá fora a ficção iminente, não há realidade que não os sentimentos. Inelutável graça
de sós nascermos e morrermos. Tons vivos que desbotam no sol ríspido da manhã frugal — grand finale previsível na
solidão úmida de resto no copo vazio. Sôfrega e desesperada por carne viva. Encontrei apenas o telhado raso e vazio.
E o brilho metálico da palavra fria onde não há negação.
Barbara Hansen
Banca da PUC
Memórias Indianas
Tel.: 2512-7109
de Lucas Viriato de Medeiros
CONSULTORIA DE NEGÓCIOS E MARKETING ESPORTIVO
AGENCIAMENTO DE CARREIRAS DE ATLETAS
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CEP: 22.775-055. Tel.55 21 2112 – 4909 / Fax. 55 21 2112 – 4601 / www.kpaz.net
Uma viagem em 108 fragmentos poéticos
À venda na Banca da PUC - Ed. Cardeal Leme - PUC/Rio
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3
Por dentro do tom
por Santuza Cambraia Naves
Björk. Volta, o disco
4
Volta, o mais recente álbum
de Björk (Polydor/Universal. 2007), é
conceitual. Como o show, o disco tem
um clima ao mesmo tempo apocalíptico
e comemorativo. A sensação de pós-tudo
convive paradoxalmente com a idéia de um
mundo novo a ser desbravado, ou de algo a
ser modificado. Se Volta não nos convida a
pensar em atos revolucionários, as situações
que sugere, entretanto, não são propriamente
apaziguadoras, dando a entender que há algo
de rebelião no ar.
A faixa que abre o disco, por
exemplo, “Earth intruders”, que Björk faz em
parceria com T. Mosley e N. Hills, tematiza
poética e musicalmente a instauração do caos
no planeta por sujeitos que se autoproclamam
“invasores da Terra”. As imagens evocadas por
música e letra lembram situações inusitadas
que vivenciamos no mundo contemporâneo,
em que figuras associadas à modernidade,
como pára-quedistas e franco-atiradores,
nos remetem muito mais à barbárie do
que à civilização. Os conquistadores são
descritos como seres “lamacentos com
gravetos e galhos” que promovem “confusão”
e “carnificina”. Musicalmente, como nas
demais faixas, os instrumentos metálicos da
orquestra feminina Wonder Brass convivem
com a percussão eletrônica realizada por
Timbaland, produtor e rapper norte-americano.
E a interpretação ofegante de Björk reforça o
tom de tensão criado pela letra.
O clima épico de “Earth intruders”
é de certa forma repetido na última faixa,
a composição “Declare independence”, de
Björk e Mark Bell. Nesta música, Björk assume
um tom exortativo para com o interlocutor,
dizendo-lhe de maneira imperativa para
“declarar independência”, “criar sua própria
moeda” e “seu próprio selo”, “proteger sua
linguagem”, “fazer sua própria bandeira” e
levantá-la bem alto. A música atinge o clímax
com a seguinte passagem:
Damn colonists
Ignore their patronizing
Tear off their blindfolds
Open their eyes
Declare independence
Don’t let them do that to you
With a flag and a trumpet
Go to the top of your highest mountain
O espírito apocalíptico do disco
é reforçado por “Vertebrae”, composição
povoada de bestas-feras e outras figuras
aterradoras. A letra de “Vertebrae”, como
outras do álbum, foi escrita por Björk em
inglês, idioma que ela não domina por
completo, e apresenta diversas passagens
estranhas, a começar pelo título (literalmente
“Vértebras por vértebras”).
The beast is back!
On four legs
Set her clock to the moon
Raises her spine
Vertebrae by vertebrae
Não só do épico trata o disco.
“Wanderlust”, a segunda faixa (composta
por Björk and Sjón), dá voz a um sujeito
lírico que abandona o porto seguro e segue
a sua ânsia por viagens. Há também algo de
transgressivo no espírito da composição —
mostrando uma sensibilidade semelhante à
contracultural que se manifestou nos anos 60
e 70 — ao revelar a repulsa deste sujeito pelos
“erros” e “acertos” dos habitantes da cidade
onde mora, como se vê na estrofe seguinte:
I have lost my origin
And I don’t want to find it again
Rather sailing into nature’s laws
And be held by ocean’s paws
Björk cuida também nesta faixa do
arranjo dos metais, entre outros expedientes,
cujos efeitos se fazem notar logo no início,
com o som do apito do navio avisando a
partida. Algumas experimentações ficam a
cargo de Damian Taylor, como o emprego
musical do código Morse.
“I see who you are” (quinta faixa)
surpreende pela letra, que retoma de maneira
criativa a idéia do carpem diem, como
observamos na citação abaixo:
let’s celebrate now all this flesh
on our bones
let me push you up
against me tightly
[…]
let’s celebrate now all this flesh
on our bones
and enjoy every bit of you
E o ponto alto do disco, na minha
opinião, é a terceira faixa, “The dull flame
of desire”, cuja letra é criada a partir de um
poema do poeta russo Fyodor Tyutchev
(1803-1873). A versão inglesa do poema, pela
excelência, merece ser transcrita na íntegra:
I love your eyes, my dear
Their splendid, sparkling fire
When suddenly you raise them so
To cast a swift embracing glance
Like lightning flashing in the sky
But there’s a charm that is greater still
When my love’s eyes are lowered
When all is fired by passion’s kiss
And through the downcast lashes
I see the dull flame of desire
Outro aspecto surpreendente desta
faixa é o dueto que Björk faz com o inglês
Antony Hegarty (do grupo Antony & The
Johnsons). Dotado de uma voz belíssima
e técnica impecável, ele mais parece um
intérprete de canções folclóricas inglesas do
que um cantor pop. Antony Hegarty provoca
um estranhamento ao cantar com Björk num
registro próximo ao erudito, em meio a sons
eletrônicos.
Volta parece se orientar por uma
concepção cíclica de tempo. Por um lado,
por utilizar as batidas eletrônicas e operar
à maneira repetitiva das criações estéticas
atuais; por outro, por lidar com um eterno
presente, num tempo em que os artistas já
não estão mais voltados para a colonização do
futuro. Paradoxalmente, entretanto, o disco
é experimental, como o eram as criações das
vanguardas históricas que se guiavam pela
idéia de ruptura. Volta traz novidades em
tempos de calmaria e repetição.
Puzzles
LEIBNIZ, O AGENTE SECRETO DA CORTE
Naquele dia, ele chegou à Holanda num iate. Era o mês de novembro, no outono
do ano de 1676. Diziam que, ao andar, Leibniz carregava sua cabeça sempre mais na
frente do que o corpo e, muitas vezes, não sabia o que fazer com seus braços; mas, segundo
um depoimento da Duquesa de Orleans, ela nunca viu um intelectual tão bem vestido e
perfumado. Elegante, o homem de 30 anos que estava prestes a ser considerado o último
grande gênio da Europa portava em sua bagagem de viagem uma máquina de cálculo
aritmético daquelas consideradas um antecedente dos modernos computadores — a máquina
era uma caixa feita de madeira, cheia de cordas e botões — atitude deveras compreensível
já que um homem como ele não se separaria tão fácil de suas armas. Nessa época, Gottfried
Whilhelm von Leibniz já havia dado sua contribuição nos campos da química, da geologia,
da historiografia, do direito, da teoria política, da filosofia, da lingüística, da física e da poesia.
Hoje, os escritos do menino que queria ser um prodígio podem ser encontrados nos arquivos
de Hanôver e preenchem mais de 150 mil folhas.
Leibniz se deslocara da Alemanha para Holanda na intenção de conhecer o “homem
mais ímpio e perigoso de todo o século”, Baruch de Spinoza. As biografias de Leibniz mostram
que ele passou toda sua vida vinculado a figuras importantes da nobreza, desde princesas e
imperadores a duques e homens da corte. Gottfried era um autodidata que, aos doze anos,
já tinha conhecimento de grego e de latim avançado. Entrou em 1661 para a Universidade
de Leipzig, quando tinha apenas 14 anos. Apesar de parecer uma idade precoce, para a
época era comum e é possível que houvesse outros alunos com a mesma idade que ele. Dois
anos depois, graduou-se com a tese De Principio Individui, em que enfatizava, discordando
de Aristóteles, o valor metafísico do indivíduo, sugerindo uma explicação fundada em sua
inteireza existencial e não apenas na matéria e na forma. Com dezoito anos Leibniz era mestre
em Filosofia e, com 21, era doutor em Direito.
Essas conquistas levaram Leibniz ao mundo das altas transações políticas, no qual
ele permaneceria pelo resto de sua vida. Na república das letras européias do século XVII,
fraturada pela precariedade dos sistemas de comunicação, Leibniz era como uma agência de
inteligência de um homem só. Através de uma rede de contatos intercontinental, Leibniz era
um dos primeiros a receber pacotes com livros recém-publicados e, cumprindo o trabalho
de espião, selecionava as obras e as reenviava para pessoas que julgava apropriadas para ter,
criticar e divulgar os escritos. Fora em uma dessas encomendas que Leibniz travou contato
com os dois livros publicados de Spinoza, Os Princípios de Filosofia Cartesiana e o Tratado
Teológico-Político. Desde então, proferindo opiniões informais a respeito do autor, passou a
fazer parte do círculo de leitores de Baruch, onde declarava seu desprezo por “um homem
tão erudito ter sido capaz de cair em idéias tão baixas”. Leibniz, servindo à mais alta nobreza
e aos cleros inglês e alemão, diz a eles o quão terrível, horripilante e diabólicos são os livros
que acaba de ler. Gottfried, um luterano ortodoxo da Alemanha conservadora, desejava
defender a mesma ordem teocrática que Spinoza, judeu excomungado de uma Holanda
libertina, queria demolir.
E foi por essa rivalidade de ideologias que Leibniz, seis meses depois, envia uma carta
para o “Senhor Spinoza, célebre doutor e profundo filósofo de Amsterdam”, procurando
estabelecer contato. Algumas cartas foram trocadas entre eles, mas sempre clandestinamente
para impedir os riscos de uma exposição pública e preservá-los de maiores complicações.
Apesar de os motivos de Leibniz para escrever e querer encontrar Spinoza serem pouco
claros, sua fama de conciliador e conhecedor de todas as ciências e produções intelectuais
da Europa de seu tempo deixam mais aparente seu lado vaidoso do que seus interesses
realmente científicos. Até porque não foi apenas com Spinoza que ele travou contato; um
de seus mais controversos movimentos político-científicos foram suas cartas trocadas com
Newton. Isaac Newton escreve uma carta a Leibniz contando-lhe suas recentes descobertas
e a envia por intermédio de Oldenburg, que demora a entregá-la nas mãos do destinatário.
Leibniz, ao recebê-la, responde imediatamente, mas também percebe que precisa publicar
com urgência seus estudos senão Newton ganharia a glória de ter inventado o método para
o cálculo diferencial. Mas esta “confusão dos correios” fez com que Newton, sabendo da
publicação, suspeitasse de plágio. E, mais uma vez, sem provas ou explicações, esta vem a ser
mais uma entre as inúmeras histórias mal contadas sobre a vida de Leibniz.
Apesar das más línguas, Gottfried mostrou ser um intelectual da mais alta classe, tendo
desenvolvido vários métodos matemáticos, inclusive um sistema binário na aritmética.
Acaba que no meio de tantas realizações, o rápido encontro entre Leibniz e Spinoza ficou
registrado como um caso de menor importância. Muitos biógrafos quiseram, como também
o desejava Leibniz, deixá-lo passar despercebido, mas acredito que lembrar pode ser vital para
o entendimento dos pormenores e das sutilezas das relações que caracterizam um século.
Essas duas personalidades antagônicas deixaram rastros bem visíveis de suas diferenças, mas
os detalhes esquecidos no tempo nos mostram que eles estavam fundados num solo de
pensamento muito semelhante.
Se Leibniz se fingiu de amigo para Spinoza, provavelmente o fez porque estava
interessado e queria beber mais claramente das águas de seu pensamento. E, se Spinoza aceitou
a visita de Leibniz, mesmo tendo conhecimento de que ele era um homem de personalidade
cambiante, cheio de máscaras, talvez isso tenha se dado porque Spinoza queria a visibilidade
que Leibniz lhe daria. Para o bem ou para o mal. Se Leibniz teve alguma relação direta com
a morte de Baruch, isso é algo que não se pode afirmar. Mas que ele tentou de todas as
formas apagar as marcas de spinozismo — tanto no mundo, quanto em seus escritos —,
disso temos certeza. Agora fica no ar a questão: o que o levou a desejar tão ardentemente
o fim das idéias de Spinoza? Será que conseguia enxergar suas próprias dúvidas no texto do
filósofo herege? É possível que Leibniz tenha desejado menos apagar as idéias de Spinoza do
que se esforçado para esquecer-se de seus próprios pecados.
Nastassja de Saramago A. Pugliese
mestranda em filosofia pela UFRJ
(sobre)vivências – dos cen’átimos (brevidades)
por Felipe Carvalho dos Santos
ooo
O caracol sem concha caminha vagarosamente, sem morada e sem
proteção, em busca de sua nova casa. Ao encontrar uma concha que lhe serve,
ele entra na espiral que se multiplica ao infinito. Passa a carregar mais peso e
aumentam suas responsabilidades. Espreita, caça, guerreia e anda incessante
— movimento e repouso, sempre agindo. Tão logo se adapta à concha
infinita, fica demasiado vulnerável. Eis a hora de sua fuga, o momento de
mais um arriscar-se. O tempo é lento, todavia, preciso; e, quando ele sente
que sua hora chegou, foge de casa e busca seu novo espaço. A rotina deve
ser quebrada para que não caia em armadilhas).
mulheres-damas
por Ana Paula Kiffer
Toda a história de um amor
Mulher farpada e apaixonada,
quando o delírio itinerante de cascos velhos
navegado sobre pedras e mares
atracado ao corpo mais doce
efervescente corpo rouco
independente de partes
sempre outrora cegas
de partes muito enxergantes
desejosas de ver todas as suas direções
empardecidas ou claras
inusitadas
surpreendente o romantismo veloz
calçado de um arcaico programa burocrático
surpreendida na estonteante sensação
de nunca tê-lo abandonado
nem representado em anseios
aquilo que deveras sentes.
Falso Poeta
Algemado à minha mesa,
Prisioneiro, só de mim.
Minha voz sufoca, presa
Num castelo de marfim.
Só poetas nesta cela…
— Liberdade, por favor!
Sinto o ar pela janela,
Aqui dentro, só tremor.
Só me resta então gritar
Com a voz enrouquecida:
— Sou um profano num altar!
Versos viram avenidas,
Nelas nunca vou passar…
Fecho o livro e peço “Vida!”
André Sigaud
5
AMOR
TUMOR
Pedro Rajão
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Você ouviu uma gíria
nova e quer saber o que
significa? Quer descobrir o
português da vida real?
Vá até o site onde as
palavras são definidas pelo
usuário. Para se atualizar no
inglês, clique em:
Raïssa Degoes
www.urbandictionary.com
vale o clique duplo!
O veleiro, o oceano
Aqui volto mais uma vez
à tecla que tanto pressionei.
A repetição maçante, transformei.
A antiga postura se desfez.
O buscador desliza com calma
no mar gelado, abundante e lilás.
A lua ganha vida no coração do aventureiro.
É uma busca maior que sua alma.
O fim se dispõe no horizonte
Ora surpreende nas pedras e nas flores,
ora nos choros, risos e amores.
Inconsciente, bebo e vivo da fonte.
O corpo é um veleiro complexo,
que se embriaga de água salgada,
que rasga as ondas e encanta
a si e a outros veleiros que perpassam.
Sempre haverá veleiros mais bonitos.
Muitos se movem para a mesma lua,
confundem uns aos outros e brincam
das maneiras mais diversas.
6
Tantas artimanhas do caminho.
Tantas esperanças esvaziadas.
Brincadeiras pobres são ensaiadas.
Devo eu velejar sozinho?
Enquanto sofro e despedaço,
a lua dança nas curvas do oceano.
Perfuma e desafia o eu tirano.
Ignorante, não percebo seu abraço.
Mas hei de me encantar com a procura,
de apreciar os sabores com calma.
Extrair do vazio a doçura
e alimentar as potências de minh’alma.
Dimitri Merino
Bolhas Geraes
Um brinde à Biblioteca Nacional
Ao saber da existência de uma excursão organizada pelos alunos de Biblioteconomia
da UFMG para conhecerem a Biblioteca Nacional no Rio de Janeiro, pensei em aproveitar a
oportunidade para refletir a respeito do meu curso e resolvi conhecer a tão famosa Biblioteca.
Achei que a visita poderia também servir como estímulo para meus estudos, já que, às vezes,
pairam algumas incertezas na mente do estudante.
Já na chegada ao prédio, a impressão foi muito forte. Fomos recebidos por um funcionário
da instituição que, no saguão, forneceu detalhes sobre a construção do prédio, que data de 1910,
e sobre conceitos históricos. Mas o que me chamou a atenção foi a descrição dos detalhes de duas
pinturas localizadas no saguão do prédio. Do lado esquerdo da entrada, uma das telas mostrava
a imagem de um cavalo montado por um esqueleto voando num céu nublado; deitadas no chão,
pessoas com semblantes carregados pelo sofrimento e tristeza. Abaixo da tela, esculpidas em pedra,
pessoas agredindo e violentando umas às outras. Essas imagens trazem um significado: o cavalo
voador simboliza a ignorância, que resulta em tristeza, violência e morte — esta representada pela
caveira amazona.
Do lado direito, havia outra tela com a imagem de uma mulher descendo do céu azulado;
na terra, pessoas — entre elas uma criança — traziam na face expressões de alegria. Toda a beleza
presente nesse quadro retrata a sabedoria. Desde a mulher que desce do céu até a criança que
“olha” para o espectador, dando a entender que a sabedoria contempla qualquer pessoa, sem
distinção. Esculpidas em pedra abaixo da tela, viam-se pessoas colaborando e ajudando umas às
outras, num ambiente de solidariedade, fruto do conhecimento.
Isto foi apenas o início. Depois, visitamos algumas salas com enormes janelas e móveis
da época, ali presentes desde a construção do edifício. Ao subirmos as escadas, cobertas por tapete
vermelho, deparamos com o busto de Dom João VI. E, ao chegarmos ao segundo andar, mal
sabíamos que o melhor estava por vir. Fomos presenteados com uma exposição de obras raras,
acessíveis só em circunstâncias especiais para pesquisa.
Ao apresentar aquelas preciosidades, a bibliotecária falou sobre o livro que estava bem
diante de mim: uma obra do século XIV, um livro de oração, escrito em latim e com ilustrações.
Quando a bibliotecária começou a folhear aquele livro, meus pensamentos acompanharam a
trajetória que ele deve ter feito até chegar ali. Na verdade, me perdi entre o tempo e o espaço:
imaginei embarcações em que aquele livro já esteve, tempestades enfrentadas, estradas de terras
por onde passou. Apesar de tantas intempéries, me admirei que ele estivesse ali, bem conservado,
diante de nós.
Entre outras raridades, vimos uma carta escrita por Tiradentes, além de livros presenteados
a reis e rainhas. Detalhes em madeira, couro e pigmentos em ouro embelezavam as capas desses
livros, obras dos séculos XVII e XVIII. Tentei descrever o que ocorreu comigo naquele momento,
mas não consegui. Só posso afirmar que senti uma emoção muito forte e que passei a alimentar
uma certeza: escolhi uma profissão muito importante.
Poderia falar dos lugares que visitei: o Museu de Arte Contemporânea, uma das mais
belas obras de Oscar Niemeyer, a Fortaleza de Santa Cruz da Barra, construída em 1555 em
Niterói, ou comentar sobre as noites agradáveis na Lapa, o Cristo Redentor e a Estação Primeira
de Mangueira, onde tive a chance de ver a disputa do samba-enredo para o carnaval de 2008.
Poderia descrever cada lugar e cada momento com sua singularidade.
Contudo, para mim, estudante de biblioteconomia, não houve nada tão especial como
conhecer a Biblioteca Nacional. Saímos de lá com a sugestão, dada pelo guia e pelo recepcionista,
de aproveitar o calor e tomar uma cerveja bem gelada em algum dos bares nas imediações, no
Arco do Telles. Notei certo desânimo entre alguns colegas, cansados da viagem, mas insisti que
deveríamos comemorar com um brinde à Biblioteca Nacional. No caminho, alguns colegas
agradeceram a sugestão, porque, apesar do cansaço, surgiu um motivo que reacendeu o ânimo
da turma. Ao chegarmos aos bares do Arco do Telles, fizemos um brinde à Biblioteca Nacional e
relembramos detalhes da visita.
De volta a Belo Horizonte, pensei que uma visita como essa não é enriquecedora apenas
para um estudante de Biblioteconomia, e sim para todos aqueles que entram nessa linda biblioteca
e têm a oportunidade de conhecer sua riqueza cultural ao percorrer e descobrir cada sentido
encerrado nos pequenos detalhes presentes na grandiosa Biblioteca Nacional.
Júnio César Barbosa Louback
João Xavier
A coluna Bolhas Geraes é dedicada aos nossos leitores e colaboradores mineiros,
que, desde a edição #13, recebem o plástico bolha em diversos pontos de Belo
Horizonte. Envie também os seus trabalhos para [email protected]
Vício
Nogueira não conseguia acreditar. O médico
ali na sua frente, condenando-o a um sacrifício que lhe
parecia duro demais.
Como parar de fumar? Há quarenta anos ele
carregava um cigarro entre os dedos ou no canto direito
da boca. Sempre no direito.
Acordava e já passava a mão no maço vermelho.
Até fez a concessão de passar a fumar o do maço branco,
mas se habituara a comprar o vício em pacotes; tinha
estoques no armário do quarto. Poucas vezes deu bobeira
e precisou comprar cigarros de madrugada, o que,
naturalmente, nunca foi problema para quem mora no
Leblon.
Quando a mãe estava no hospital, a irmã
reclamava. Tudo esterilizado e lá vinha ele, cigarro na
mão, visitar a senhora.
— Não me enche, Idalina, que eu fico ainda
mais nervoso. Me deixa pitar!!
Quando as crianças eram pequenas, a patrulha
era da mulher, Violeta.
— Lava essa mão, Nogueira! Como é que vai
pegar no bebê fedendo a cigarro!
Violeta chegara a fazer chantagem:
— Fumante passiva! Olha a que você me obriga!
Pois no quarto não fuma mais! Se insistir, vai dormir na
sala! Vício, Nogueira, isso é vício! Não pode deixar ele te
dominar!
Apesar de todos os problemas e. . . perseguições
— até na empresa inventaram um fumódromo — ele
resistia, agarrado àqueles centímetros de nicotina e alcatrão
como se fossem a saída de todo e qualquer problema.
Agora, com os filhos maiores, até eles buzinavam
na sua cabeça.
Gustavo reclamava na hora do café. Batendo uma
tigela de açaí com granola antes de ir surfar, o “Saúde”,
como o chamava o pai, começava cedo:
— Pô, pai. Pega leve! Já tá fumando a essa hora?
Coitado do seu pulmão...
Letícia apelava para a vaidade:
— Ah, papai. Marca uma hora no dentista. Seus
dentes estão todos amarelados!
— E as mãos? — completava Violeta. — Já sabe
que esse encardido não larga nunca mais...
Agora, por mais dura que fosse aquela vida de
fumante inveterado, tratado como um ser contaminado
pela pior das pestes, pela primeira vez lhe davam um
argumento forte: enfisema pulmonar. Este seria o seu
destino se ele não largasse o cigarro.
PÃES
ANTIPASTOS
PIZZAS
SALGADOS
Nogueira saiu do consultório apavorado o
bastante para se livrar do maço no hall do elevador.
Desta vez é sério, pensou. Não dá mais pra
brincar.
Quando chegou em casa, Violeta já sabia de tudo.
O médico, velho conhecido da família, lhe telefonara, tal
a gravidade da situação.
A mulher já tinha o discurso preparado,
mas desistiu ao ver o estado de Nogueira. O terno em
desalinho, sem gravata, os olhos arregalados.
Violeta resolveu ir devagar, para não piorar o
momento.
— Ah, Nogueira. Tenta ver o lado bom disso
tudo. O paladar vai voltar, o olfato e olha (com um
risinho maroto)... eu volto a te beijar na boca.
Nogueira nem respondeu, foi tomar um banho.
Não estava se sentindo nada bem. Já antecipava por que
ia ter de passar.
Os filhos e a mulher resolveram dar um desconto
e fingiam não se ofender com o jeito brusco com que
Nogueira passou a responder a uma pergunta simples,
assim:
— Nogueira, vamos jantar naquela cantina
nova que abriu aqui perto?
— Como, Violeta? Como? Depois da comida,
vão me oferecer um café e como é que eu vou tomar um
café sem poder fumar depois, Violeta? Como? Nada de
cantina. Macarrão a gente come em casa mesmo.
— Sua irmã nos chamou para um lanche,
Nogueira.
— Lanche? Café, bolo? Como, Violeta? Café
sem puxar um cigarrinho? Liga e diz que nós não vamos.
Gustavo passou a acordar mais cedo que o pai e a
voltar para casa cada vez mais tarde. Letícia se trancava no
quarto na hora do jantar e lá ficava Violeta agüentando o
mau-humor do Nogueira.
Mas a causa era justa e nobre. Estavam casados
havia tantos anos, ele merecia sua compreensão.
Assim se passaram dez dias. Nogueira parecia
realmente alterado, mas o medo que o médico lhe
impusera era maior que qualquer tentação. Ele resistiria.
Ou seria o enfisema pulmonar.
No décimo dia, Violeta acordou de madrugada
com os soluços de Nogueira. Chorando? Nem quando a
sogra morreu! O marido devia estar mesmo muito mal.
— Nogueira, o que foi?
— Prisão de ventre, Violeta. Prisão de ventre.
Chama a ambulância.
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— Como, prisão de ventre?
— Faz dez dias que não vou ao banheiro, Violeta.
Acho que vou morrer. Liga pro hospital.
Violeta sentou na cama, assustada. — Que
história é essa, Nogueira, você não vai ao banheiro há dez
dias? Como pode?
— Pois é, não pode! Vou morrer!
— Mas você não tem comido as mesmas coisas
de sempre, criatura de Deus? Como não vai ao banheiro?
Não faz número dois?
— Não vou porque não fumo, Violeta. Não
fumo, não ca...!
Violeta estremeceu, pois esse verbo — entre
outros tantos — era de todo proibido naquela casa.
— Como não . . .? Como não.....?
Não Violeta, não ca... porque não fumo. Todo
dia de manhã, depois do café, eu ia pro banheiro, com o
jornal e o maço de cigarro. Era ali, naquele momento que
eu cag...
— Que palavra, Nogueira!
— Tá bom, Violeta. Era nessa hora que eu
fazia o número dois. Mas eu dependia do cigarro, agora
entendi. Era tudo cronometrado. Eu lia a página de
esportes na hora do café e deixava a política para ler no
banheiro. Aproveitava para xingar os caras, do presidente
ao vereador, puxava meu cigarrinho e... pronto, resolvia
a questão. Mas, sem o cigarro, não consigo. Liga pro
hospital, Violeta. Vão ter de fazer alguma coisa.
Violeta foi rápida. Pegou o livrinho do plano de
saúde, ligou para o hospital. Ligou também para a casa
do médico. Afinal, Nogueira se contorcia em cólicas e
empapava o lençol de suor.
Os filhos se levantaram, assustados com os gritos 7
do pai.
Finalmente a ambulância, o hospital.
Violeta se apavorou. Nogueira ficara realmente
mal. O que ia acontecer dali por diante?
Quando o marido voltou para o quarto, abatido,
prostrado, Violeta quis falar com o médico.
— E agora, doutor? Como é que ele vai se livrar
desse problema de... constipação?
Com um gesto de desânimo, o médico falou: —
Bem, considerando a situação psicológica do Nogueira,
acho que um cigarrinho só por dia pode resolver. Mas é
só um, olhe lá. Mais que isso... é enfisema pulmonar!!
Marilena Moraes
Q UA RT O D E D E S P E J O
“Quem trabalha como eu tem de feder”
“Nem o latino comunica sua verdadeira miséria ao homem civilizado, nem o homem civilizado compreende verdadeiramente a
miséria do latino”. (Glauber Rocha. In. Eztetyka da fome)
“A noite está tépida. O céu já está salpicado de estrelas. Eu que
sou exótica gostaria de recortar um pedaço de céu para fazer um
vestido”. (Carolina de Jesus. In. Quarto de Despejo, p.25)
8
Dear Deleuze,
Procuro estar junto a você dentro desta bolha
asséptica, procuro respirar no seu ritmo este ar rarefeito,
nossas bocas embaçando de ar cálido o plástico, procuro
seu rosto desviante, tento segurar suas mãos. Suas mãos
brancas e finas, mãos burguesas, mãos de intelectual,
cuja única aspereza pode ser notada nas pontinhas dos
dedos amarelos de gauloises talvez, suas unhas imensas,
moles e sujas voltam-se contra a carne e os dedos anelares
apontam para a boca que já foi bela. Fico fascinada por
essas mãos que comunicavam ao papel a eletricidade de
seu pensamento nômade.
Na bolha, o tempo — o cristal tempo — está
em suspensão. Então, podemos compor com nossos
corpos imagens antigravitacionais num devir incessante
e alucinado. Esticando nossas espinhas, encurvando-nos,
tocando o plástico com as pontas dos pés, numa dança
cômico-macabra. Materialidade tensa como você gosta. Nós
dois, dois cérebros exaustos, dois sexos mudos e cansados.
Foi nosso pai louco e sifilítico, espécie surtada de
filósofo dançarino, quem nos colocou neste ovo, para que
pudéssemos respirar - sem sufocar - o ar do mundo filtrado
por nossas leituras. Leves, nesta bolha, não enfrentamos
o caosmos do real, estamos infensos à multiplicidade
enervante do mundo das coisas. Fora da bolha, nada se
repete, tudo é diferença, mas nós repetimos os mantras
da não-metafísica, lutando contra nós mesmos. Somos
um ovo gigante parido pelo pensamento Ocidental,
fugindo do Pai, que nos persegue a marteladas.
Estou aqui e quero fixá-lo em mim, engatá-lo ao
meu corpo e você não precisa temer. Quero ser seu duplo,
quero ser você, quero repetir suas frases sofisticadas,
pensar a complexidade dos fenômenos, dar um toque
erudito e belo esfregando a língua nessas lindas línguas
mortas que você domina tão bem: o grego, o latim, o
alemão e o francês. Gosto também de roçar seu corpo.
Como um gato je frotte ta peau, provocando em você uma
certa repulsa que se resolve numa careta desconcertada.
Não consigo entender por que você rejeita os animais
que se esfregam, sempre achei que seu sistema de idéias se
esfregava como seixos deslizantes pelas experiências. Você
balbucia alguma coisa, buscando uma linguagem nova, que
não se arraste pelo senso comum, pela infindável cadeia
das interpretações, uma linguagem selvagem, bárbara,
que me faça ver claramente o quanto você não suporta
essa proximidade incestuosa, esse arroubo de desejo fora
do âmbito das palavras cujas possibilidades significantes
podem proliferar sem nunca s´arreter, mon cher.
Na bolha, estamos a zero. Temos de inventar
novas origens, o reservatório de idéias funcionando como
uma fábrica, como uma máquina, desejante como uma
Barbarella numa sex machine. Idéias delirantes, que não
se estacam, não se deixam transformar em carne, no fato
bruto da carne. Na brutalidade dos fatos.
Nós... gêmeos no ovo ainda... podemos
experimentar toda a radical solidão do mundo quase
silencioso das letras, mundo no qual apenas se percebe
o ruído abafado de páginas e mais páginas sucedendo-
se tristes e monótonas. Sentimos o peso dessa solidão e
rolamos nosso ovo até próximo à janela que se abre para
o mundo real. Perigamos cair no mundo das coisas: o
mundo das cores quentes.
A bolha começa a ficar mais e mais apertada.
Do espasmo de um ectoplasma insólito — uma força
confinada prestes a se libertar — começa a surgir a figura
da negra. O corpo quer tomar forma como nos quadros
de Bacon. O calor que emana deste corpo parece aquecer
terrivelmente a bolha, o calor suado dos tristes trópicos
brutais. Vinda de esquálidas mitologias, do sujo das
favelas, do pouco, da privação, reconheço a escritora
Carolina de Jesus. O corpo da negra, tenso e magro,
meu corpo frouxo e expectante e o seu, dear Deleuze,
concentrado e crepuscular. Suas unhas podiam ameaçar
minha pele sensível, mas não a curtida pele da negra.
Seu corpo, my dear, fede um pouco a mofo, a cinzas, a
civilização. O da negra exala o cheiro dos esgotos a céu
aberto, odor de carne podre, a viande putrefata do seu
pintor preferido. Carolina avisa “às oito e meia da noite
eu já estava na favela respirando o dor dos excrementos que
mescla com o barro podre” ; mas eu...eu disfarço o meu
cheiro com um suave CK. Eu estou na mediação; bem
no meio entre o pensamento europeu e o instinto de
sobrevivência terceiro-mundista. Fiz com cuidado todas
as lições de casa, li as últimas novidades e posso repetir,
com uma certa elegância, os modismos críticos sem correr
muitos riscos. Mas, diante dessa estupenda aparição, não
sei mais o que fazer. Dou as costas aos dois, pois não
quero testemunhar a cena de absoluta abjeção. Carolina
é o seu outro absoluto. Tudo bem desde que ela fique onde
está, não é mesmo? Fique apenas a possibilidade de você
exercitar — à distância — a frátria contra o pátrio poder,
desde que ela não dispute com você a Sécurité Sociale.
Ao contrário de você, ela ama os gatos, porque
não se entregam aos seus donos... para ela “o gato é
um sábio. Não tem amor profundo e não deixa ninguém
escravisá-lo. E quando vai embora não retorna , provando
que tem opinião”. A negra agora também se estica como
um em torno de seu corpo retesado de susto. Carolina
esfrega a língua vermelha e áspera na maciez desse
contorno filosofante. Nossa Alice negra e feia sorri como
o gato absurdo, sorri sem os dentes, sorri gengivas. Esse
buraco vermelho quer sugar-nos. O corpo da negra é
sustentado por uma vontade férrea. Carolina quer que
você a veja com o olho de seu estômago francês, quer
que seu olho satisfeito se perca no buraco da fome, na
cloaca que dói sem parar. Ela sussurra em seu ouvido:
“percebi que no Frigorífico jogam creolina no lixo, para o
favelado não catar a carne para comer. Não tomei café, ia
andando meio tonta. A tontura da fome é pior do que a
do alcool. A tontura do alcool nos impele a cantar. Mas
a da fome nos faz tremer. Percebi que é horrível ter só ar
dentro do estomago”. Carolina está sempre com dor de
estômago, nervosa interiormente e em falta. O povo que
falta, conforme você gosta de falar, excede em Carolina.
Ela é um excesso histérico perturbando a calma e luxuosa
impassibilidade francesa. Excede porque é excessiva a
fome, porque é excessiva a degradação das condições da
vida que leva, porque também tem excessiva imaginação
e capacidade de se virar catando, no monturo do Lixão,
comida e literatura. “Tenho um apetite de leão. Então
recorro ao lixo”. Carolina literalmente arranca do invivível
o alimento do diário. Ela quer agarrar o sol com as mãos.
Ela torna a falta um excesso.
Ela tem de catar a sobrevivência no lixo. O caso
é fazer literatura deste regime concreto, nada simbólico
— de privação. Ela está nos tacos, my dear, e fixa a órbita
triste dos seus olhos sobre sua boa digestão européia.
Carolina tem fome de literatura, quer ser escritora, mas
não do que você chama de literatura menor. O caso dela
é com Harold Bloom, ela é canônica. Carolina “detesta
as mulheres da favela” e seus desbocamentos; gosta, na
verdade, das frases ricas que leu nos livros. Frases como “o
astro rei deslizava no espaço.... o sol está tépido”. Carolina
é exótica, mas não admite que v. a ponha de quatro no
Jardim Zoológico da literatura menor, junto ao Kafka
e as suas complicações com o pai. Carolina desconhece
freudismos, tudo gerou a partir dela própria sem machos.
Carolina é o pai e a mãe de Vera Eunice, de João José e
de José Carlos. “Não casei e não estou descontente. Os que
preferiu-me eram soezes e as condições que eles me impunham
eram horríveis”. Ela é muito territorializada. Seu território
é a favela do Canindé, a favela dura de São Paulo, de quase
cinqüenta anos atrás: “A favela é uma cidade esquisita e
o prefeito daqui é o diabo”. Favela sem o samba carioca.
Carolina quer sair da favela e pertencer ao território da
Literatura Maior. Dá para você entender, mon cher? Ela
quer a Língua Portuguesa da Academia de Letras, quer o
fardão de ouro e o poder, quer o seu poder. Não deseja
o gueto da resistência, quer a potência máxima dos
marimbondos de fogo, se é que você pode entender.
O político — para Carolina — são os políticos:
“Eu quando estou com fome quero matar o Janio, quero
enforcar o Adhemar e queimar o Juscelino. As dificuldades
corta o afeto do povo pelos políticos”. Posso perceber
como você, ao ouvir Carolina, esboça um leve sorriso
gratificado pela carga de afetos, perceptos e conceptos na
frase que, se pudesse, anotaria para um belo artigo sobre
o povo revolucionário, o povo do devir. Nem percebe
que Carolina lança um olhar enviesado e mau na sua
direção. Esquece que nela se concentram outras tantas
Bertolezas e Macabéas dando pasto aos intelectuais.
Mas a fome é professora, my dear. Nem público, nem
privado, nem povo do devir. O negócio tem de ser pra já
e quem vai entrar em transe somos nós dois. Com esta
negra a história é diferente porque ela escreveu afinal o
livro, entrou no nosso circuito, ela está aqui dentro da
bolha conosco e a bolha se estreita cada vez mais porque
o corpo da negra cresce semelhante ao de uma giganta.
Estou suando, parece que vou desmaiar. V. tenta seduzila com suas frases de efeito, desaba sobre a mulher uma
estante de livros. Ouço Carolina dizer perto de seu rosto:
“Parece um sabiá e sua voz é agradável aos ouvidos. E agora
o sabiá está residindo na gaiola de ouro [...]. Cuidado
sabiá, para não perder a gaiola, porque os gatos quando
estão com fome contempla as aves nas gaiolas. E os favelados
são gatos. Tem fome”. Mas você teima em ignorar o aviso,
está fascinado pela diferença ou pela differance? Eu estou
com medo e começo a achar sinistra aquela entrevista
com sua declaração contra os gatos, neste momento tudo
aquilo soa como um cruel presságio. Quero sair deste
círculo vicioso de leituras. Começo a sentir as vibrações
do corpo dela, começo a sentir as dores de estômago, as
náuseas. Eu tenho fome de quê? Começo a sentir culpa.
Não deveria ter deixado Carolina se meter aqui na bolha
com a gente, não deveria ter metido v. nessa embrulhada,
eu poderia tê-lo simplesmente amado? Foi tudo um erro.
Não é possível fazer essa mediação, estou para desistir.
Nem você entende Carolina, nem a negra quer entender
você. A rústica e bela poesia deste diário nos afetou sem
remédio. Sinto que corremos perigo. Perigamos ficar a
nenhum. Deus é sóbrio, como a escritora costuma dizer.
E pode ser que estejamos agora confrontados com a
sobriedade de Deus quando temos de encarar a fome
desta mulher, acostumada a retirar alimento do lixão que
é São Paulo. Talvez agora nossa bolha esteja realmente se
deslocando para o Quarto de Despejo da cidade de São
Paulo. Talvez agora nosso ar rarefeito já tenha começado
a se contaminar com o cheiro da favela e, querido, talvez
já estejamos realmente começando a feder...
Ana Cristina Chiara
Desafio poético
Na última edição de 2007, o plástico bolha propôs o desafio de escrever um poema sobre “a amêndoa”. Vejamos, a seguir, os poemas que recebemos.
Para a próxima edição, o desafio é fazer um poema que contenha as seis seguintes palavras: sílabas, hortelã, breves, único, olhava e atravessou. Todos estão
convidados a participar do desafio; basta mandar o seu poema, com as 6 palavras, para o e-mail do jornal: [email protected].
Somente um punhado basta
Infância
Amêndoa doce
semente com pele
enrugada
que faz
croc!
quando morde
escura por
fora
mas clara
por
dentro
somente um
punhado
basta!
para fazer
bater
o coração
que
só
mente
quando quer e
nunca
mais
Zumbidos ferindo a tarde
preguiçosa
da praia de Cueira.
A amêndoa
marrom
(redonda)
caindo
vermelha
em cima do carro
rasga a tinta
rompe a cor que antes era cinza
Quase-mísseis se projetam
rumo às faces
sorridentes
A rápida geografia dos disparos
desenrola a trama
entre coqueiros
arrastada a tarde roxa
só resta ao capô do carro
um rastro seco de amarelo rúbeo.
É bela - mesmo que doa –
a amêndoa
em seu vôo fantástico
seu delírio de projétil.
Isabel Diegues
O mais é a tarde demorando
quase adormecendo
nas areias claras de Moreré.
Paulo Renato Porto Filho
Isabel Wilker
A amendoeira
A amendoeira assemelha-se ao pessegueiro,
embora o seu porte o supere,
e o tronco seja mais grosso.
A procura da amêndoa
Faceira, menina moleque
Subo nos galhos de teu forte tronco.
E saio a procurar-te.
Tu que te escondes no verde de tuas folhas.
Que desejos tenho de saborear-te!
Que delícia é o teu fruto amendoeira!
Ao achar-te, sinto-me agraciada
por poder desfrutar do sabor que tens,
amêndoa de minha infância.
As flores são róseas e o fruto é alongado,
de casca dura e cor bege.
A amêndoa é sua semente,
contém uma película interna marrom,
e a polpa é amarelada.
Existem dois tipos de amêndoa,
a doce e a amarga,
sendo que apenas a doce é indicada como alimento,
pois a amarga contém ácido cianídrico,
substância que pode causar intoxicações.
Sabrina Guedes de Oliveira
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9
Reflexão cardiovascular
ORÁCULO
Atos & palavras
Apesar da distância temporal, atitudes e palavras nos
soam extremamente familiares.
10
Admitir acusações de atos criminosos com astúcia e
manha também faz parte do aprendizado retórico (e político,
acrescentaria eu). Se algo torpe, que não possa ser negado,
for levantado contra ti, sempre poderás esquivar-te com uma
resposta divertida e tornar o assunto mais digno de riso do que
de censura, tal como Cícero o fez, quando refutou o que não
podia negar com um dito espirituoso e folgazão. Registrou-se
que Cícero queria comprar uma casa no monte Palatino e, como
não tivesse o dinheiro, aceitou em segredo um empréstimo de
dois milhões de sestércios (cem mil dólares) de Públio Sulla,
que então era réu (acusado de participar da conspiração de
Catilina). Mas antes que comprasse a casa, essa transação foi
descoberta e chegou aos ouvidos do povo, e lançou-se-lhe a
acusação de ter aceito dinheiro de um homem acusado com
o propósito de comprar uma casa. Então Cícero, abalado pela
inesperada vergonha, negou que tivesse recebido o dinheiro e
negou também que pretendia comprar uma casa, e acrescentou:
“Por isso, se eu comprar a casa, eu realmente terei aceito o dinheiro”.
Mais tarde, no entanto, quando efetivamente comprou a casa
e, no senado, amigos censuraram-lhe a mentira, riu muito
e respondeu-lhes entre risos: “Sois homens privados de senso
comum, quando ignorais que, em vista de eventuais concorrentes
de compra, é próprio de um prudente e cauto pai de família negar
que irá comprar o que na verdade deseja comprar”.
In: GELLIUS, Aulo. Noctes Atticae; XII, 12.
- Quid ridemus? Mutatis nominibus, de nobis historia narratur.
Miriam Sutter
Professora de Letras Clássicas da PUC-Rio
“Pode cursar assintomático ou apresentar, como característica principal, o prurido
cardiovascular, freqüentemente noturno, que causa irritabilidade, desassossego,
desconforto e sono intranqüilo...”
Há peso de menos pra que suporte a cama. Físico,
ação, reação. No espaço entre a cama e corpo, o vetor, nulo.
Neurastenia crônica, disse o doutor do dia. “Há de se fazer
uma intervenção”. Cirurgia?! “Sim, cisões paralelas”. Mas
por quê doutor? “Há de se cortar e ponto. Pontos!” Deus
e suas cordinhas sufixais, passeando pelas mãos. “Inspire!”
Doutor, o que eu tenho? “É muito grave! Tens sopro meu
filho!” Sopro?! “Isso, expire!”
Há cortes demais pra que suporte o corpo. Místico,
verdade, perdão. No vácuo entre a cama e o nada, o credor,
chulo. Cardiopatia crônica, lera o versículo do dia. “Há de
se fazer uma oração”. Liturgia? “Sim, pregações sentinelas”
Oh, Céus! Tanto, meu Senhor?! “Tens de sobrepor-se à bula.
Burro!”. Schering-Plough, predinisolona. Ah, me sinto mal.
Prontuário: Coma!
Há metafísica demais pra se explicar o amor.
Mauro Rebello
Cotidiano
Acordo cigarro
entorpecida pelo sonho obscuro
grito no vácuo.
Vomito em cima de suas falsas verdades
destruo seus relicários
Presente presente
Muitos presentes me destes
Ah, um deles tanto prezo!
A linda flor que colhestes
No caminho do Peloponeso.
Sueli Rios
almoço melancolia
na fumaça da solidão.
durmo verdade
acordo mentira.
Letícia Simões
O roteiro em cena
Entrevista por Marilena Moraes
Fale um pouco do seu trabalho de atriz. Como foi a
transição de atriz a roteirista?
Sou uma boa atriz amadora, ser profissional era
difícil para mim. Tenho muito orgulho de alguns
trabalhos que fiz, mas o dia-a-dia da profissão me
era penoso. As horas na maquiagem, as provas
de roupa, as entrevistas, a exposição pública
obrigatória. Só ensaiando ou representando
eu era, realmente, feliz. Mas foi uma etapa
importantíssima da minha vida. Li muitos textos
de teatro, roteiros de cinema e televisão. Cedo
ganhei intimidade com a linguagem e, talvez por
isso, me atrevi a escrever. Estreei como atriz em
1975. Em 1978 escrevi meu primeiro roteiro e
não parei mais. Mas dei o salto definitivo de uma
profissão para a outra em 1986.
Arquivo pessoal
DENISE BANDEIRA é atriz, roteirista e diretora. No cinema, atuou em filmes como À flor da pele e Se segura Malandro. Como roteirista, tem o
nome ligado a sucessos do cinema como os premiados Bar Esperança e Vai trabalhar vagabundo. Na televisão, foi autora fixa dos programas Você decide e
A vida como ela é, supervisionou textos de Malhação e colaborou nas novelas Celebridade e Cobras e Lagartos. Professora, criadora de oficinas de roteiro
e membro de júris de festivais de cinema, Denise Bandeira conversou com o plástico Bolha sobre seu trabalho e a profissão de roteirista.
Como é trabalhar em grupo, no caso de novelas, em
que diversos autores dividem o trabalho?
Ser atriz faz você escrever roteiros imaginando a
melhor forma de interpretar?
Sem dúvida. Foi um ganho que trouxe comigo.
“Ouço” os personagens falando. Há vozes vivas
dentro da minha cabeça.
Qual a diferença entre escrever para cinema e TV?
No caso de novela é mais difícil, por se tratar de uma
“obra aberta”, sujeita aos índices de audiência?
Em tese, quem escreve para cinema escreve para a
televisão. As ferramentas são as mesmas. O teatro,
sim, é uma dramaturgia diferente. Mas tanto a
televisão quanto o cinema são histórias contadas
prioritariamente em ação, em imagens; portanto,
exigem que o escritor tenha uma paisagem mental
estruturada. Há quem diga que o cinema é mais
“imagem” e a televisão mais “diálogo”. Pode ser.
Mas nem isso é regra absoluta. A novela pede
uma história com fôlego narrativo para muitos
capítulos, que possa ser esticada internamente em
vários conflitos e peripécias. Um roteiro de cinema
dispensa esse critério — tem mais espaço para
reflexão e subjetividade. Mas, ainda assim, acho
que há pouca diferença entre as duas mídias.
Com a TV a cabo, o mercado para roteiristas
cresceu. Há, hoje, maior valorização do trabalho do
roteirista?
Claro que sim. Hoje ouço gente falar de
“dramaturgia” como nunca se sonharia há dez
anos atrás. Lemos recentemente, nos jornais, sobre
uma greve de roteiristas americanos que paralisou
a indústria áudiovisual nos Estados Unidos. No
de uma cadeia de criação que envolverá outras
pessoas e instâncias até, finalmente, transformarse num filme ou num programa de televisão.
Portanto, ele trabalha sempre dentro de limites
concretos. Um romancista pode escrever “chove
a cântaros”, quando bem entender. O roteirista,
quando escreve “chove a cântaros” sabe que alguém
vai ter que “produzir” essa chuva. Ela custará
dinheiro, esforço, e trabalho de outras pessoas.
Então, ele o tempo todo, precisa se perguntar:
“Isso é realmente essencial para a minha história?”
Tudo tem que ser levado em conta.
Brasil, os suplementos de TV dos principais
jornais publicam o resumo dos episódios de
dezenas de novelas que serão exibidas na semana
em curso. Mesmo que não saiba formular, o
leitor sabe que uma novela, por exemplo, é uma
história em processo, com eventos que evoluem,
se multiplicam, se alteram. Escrever para a
televisão ou cinema deixou de ser uma ocupação
“mágica”. É, agora, uma profissão compreensível,
transparente.
Ainda há poucos profissionais?
Ao contrário. Há muitos. Como há profissionais
de sucesso que ganham bons salários, muita gente
vem sendo atraída para a profissão. Mas, isso
também cria muitas “vocações” equivocadas. Já
dei cursos em que, na primeira aula, os estudantes
só querem saber sobre direitos autorais. Sempre
proponho a eles que, primeiro, escrevam ao
menos um parágrafo e que depois se preocupem
com direitos autorais.
Um bom escritor pode não ser um bom roteirista?
Qual a principal qualidade de um roteirista?
Um escritor de livros trabalha com a imaginação
livre de qualquer amarra. Sua criação final será
um livro e as imagens mentais que ele cria são
compartilhadas apenas com o leitor — ele é
começo, meio e fim do próprio trabalho. O
roteirista cria um texto que é só o primeiro passo
Eu adoro. Na televisão, até prefiro. Uma novela
é uma coisa monumental, que consome um ano
inteiro da sua vida, numa rotina de trabalho
pesadíssima. É mais rico e divertido inventar
aquilo tudo com outros escritores, propondo,
ouvindo, testando a resistência das histórias e
dos personagens, rindo, polindo, derrubando
e construindo. O contato com os colegas é rico
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e refrescante. No cinema — se é um roteiro
encomendado — também gosto de parcerias. Se é
um roteiro original, prefiro fazer sozinha. Teatro,
também, escrevo sempre sozinha.
Como ex-aluna de Gabriel Garcia Márquez, em
Cuba, qual o seu conselho para quem quer fazer
roteiros? Quais as principais leituras? Os cursos são
úteis ou o principal é ler roteiros e ir ao cinema?
Tudo é útil. Quem quer escrever tem que se sentir
bem escrevendo, tem que tolerar a solidão, ter
intimidade com as palavras, merecer a amizade
delas, ter um bom acervo de vida — de observação
ou de imaginação. Tem que ser inquieto, curioso
— o preguiçoso se esvazia rápido. A literatura,
claro, é fundamental. Assim como o cinema e o
teatro. Uma leitura profunda de Shakespeare vale
mais que duzentos cursos. Dramaturgo brasileiro
não pode viver sem Nelson Rodrigues, e assim
por diante. Se quiser escrever para televisão e
cinema tem que saber como os filmes e programas
são produzidos. Cursos específicos são bons
porque orientam os primeiros passos e é onde o
estudante pode entrar em contato com os roteiros
de cinema, de televisão, capítulos de novela etc.
— que em geral, não estão à venda nas livrarias.
Quanto mais se freqüenta a linguagem para a qual
se vai escrever, melhor. E, finalmente, é bom viver
a própria vida com ênfase. Para, acima de tudo,
ter o que dizer.
copyleft by Angelo Abu ([email protected])
os gatos
1) os gatos vigiam plantas
no vaso, um par de sapatos
e todos objetos inanimados, eles
olham e às vezes deslizam
as pálpebras, permitem
um breve cochilo
2) os gatos têm bigodes
como antenas de inseto, são
fios eriçados que espetam e, bem como
as orelhas, estão sempre atentos
a movimentos, ruídos, ou
silêncios repentinos
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OS GATOS EM TRÊS ATOS
3) os cachorros mexem o rabo
I
quando estão felizes, os gatos mexem o rabo
quando estão nervosos: quando estão contentes
O gato ronrona:
o mistério é seu império
no colo da dona.
os gatos fazem barulho de motor
que se chama ronronar
4) os gatos lambem as patas e as partes
íntimas e ficam com o cheiro ruim de saliva
de gato, mas depois ficam cheirosos
porque é assim que eles tomam banho
5) raramente os gatos atendem pelo nome
mas não são metidos
II
Os gatos brincando
abrem as asas da casa
e saem voando.
III
Envolto em silêncio
o gato deita no quarto
e fisga o que penso.
as pessoas é que são muito bobas
Alice Sant’anna
Paloma Espínola