piercing - Livrorama

Transcrição

piercing - Livrorama
desmortos
Mary. C. Müller
Copyright © 2015 Mary C. Müller
Projeto de capa/miolo/editoração eletrônica: Maria Claudia Müller
Revisão: Thiago Toste
Revisado conforme o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990
em vigor no Brasil desde janeiro de 2009.
Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta publicação poderá ser reproduzida,
ou um dinossauro comerá sua cabeça.
Para James, quem fez de mim mais estranha e mais verdadeira.
Para meus pais, irmãos e sobrinhos S2
Parte 1 - Nascer
And hey, you, don’t you think it’s kinda cute
That I died right inside your arms tonight
That I’m fine even after I have died
Because it was in your arms I died.
Mother Mother – Arms Tonight
Goodbye my friend
Life will never end
And I feel like you
And I breath on truth
Love is the life breath of all I see
Love is true life inside of me
And I know you somehow
As I hold you in my heart, in my heart
Anathema – Internal Landscapes
PRÓLOGO
Onde começa e acaba ao mesmo tempo
O
enorme e colorido fone da Skullcandy não ajudava, chamando
mais atenção na rua do que considerava aceitável. Gostava de se
sentir invisível. Diferente, sim, do resto das pessoas, mas queria que simplesmente a ignorassem, que não reparassem no cabelo desgrenhado, na
calça colorida ou em sua jaqueta de vinil. As pessoas provocavam ou
davam risadinhas, mas ela sempre se fazia de surda.
Por isso o fone de ouvido.
A maneira perfeita de matar instantaneamente milhares de pessoas:
era só plugar no mp3 e aumentar o volume, que tudo o mais deixava de
existir. Death Cab For Cutie estava tocando quando seu desejo finalmente foi atendido e alguém resolveu ignorar a sua existência: naquela
noite, o motorista não a viu atravessando a rua. Ou passou por cima
dela mesmo assim.
Lorena se lembrava de livros e filmes onde os personagens morriam
em paz ou não sentiam dor ao deixar a vida. Aquela, para ela, era a maior
mentira de todas. As pessoas deveriam saber, diria ela, que morrer dói e
que nenhum anjo bonito irá aparecer pra levar você. Não irá tocar uma
música bonita e não surgirá uma luz branca.
Ela nunca se esqueceria da parte exata da música que tocava quando
o carro a acertou: No blinding light or tunnels to gates of white1. Eles estavam
certos. Não havia nada. Ou pelo menos, nada de especial. Substitua a
luz ofuscante por estrelas ao bater a cabeça e os túneis e portões pela
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Nenhuma luz ofuscante ou túneis para portões brancos
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escuridão total depois do primeiro baque. A música angelical é facilmente substituída por gritos de transeuntes, pneus derrapando e ossos
se partindo. A parte boa é que o carro a matou bem rápido e só precisou
aguentar alguns segundos da dor. A parte ruim... bem...
Lorena não tem uma história bonita: ela não é linda, popular e delicada de cabelos sedosos – pintara-os de tantas cores diferentes que
estavam ressecados e manchados. A falta de preocupação com cremes
e protetor solar não a deixou com a pele mais perfeita do mundo. Era
baixa e os olhos eram escuros, além de precisar dos grandes óculos de
armação vermelha para enxergar.
A história de Lorena também não é uma história de amor perfeito, e,
caso você esteja se perguntando, o trecho acima não é o final da história,
mas sim, o começo.
E por último, a morte de Lorena não tem um final feliz.
A última coisa que ela ouviu antes de apagar definitivamente foi
parte do refrão da música: I’ll follow you into the dark2.
Alguém a seguiu pela escuridão.
O Death Cab For Cutie acertou de novo.
2
Vou seguir você pela escuridão
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CAPÍTULO UM
Sobre como acordar de repente não se parece com suco de framboesa
N
unca se considerara uma pessoa claustrofóbica, mas acordar
naquele local minúsculo, escuro e gelado foi uma das piores sensações que já tivera. Ficou tão desesperada ao ver-se ali dentro que começou a hiperventilar. Seu coração disparou. Olhou em volta, tentando
entender onde estava. Tateou, ofegante, e quando se deu conta de que
se encontrava completamente trancada, começou a socar as paredes de
metal. Uma caixa comprida e gelada onde Lorena cabia perfeitamente.
Estava nua, coberta apenas por um fino pano branco. Imaginou estar
vivendo uma daquelas lendas urbanas e tateou sua barriga atrás de marcas de cortes ou costuras. Nada. Aparentemente os rins permaneciam
onde deveriam estar.
Os olhos arderam com as lágrimas que ameaçaram vir, e ela voltou
a socar e chutar as paredes. Sentia como se elas se apertassem em volta
do seu corpo e todo o oxigênio do lugar houvesse acabado. Começou
a tremeu e suar gelado. A mente tentava buscar uma explicação para o
que acontecia ou onde estava, mas nada vinha em sua memória. Não se
lembrava do acidente ou de nada do que aconteceu quando fora atropelada. Continuou socando e gritou com toda a força de seus pulmões.
E então, em meio ao desespero e com medo de sufocar, se levantou e
bateu a cabeça com força no teto. Lorena perdeu a consciência e seus
sinais vitais cessaram.
Alguns minutos depois, acordou novamente.
A cabeça girava e sentia-se nauseada. Um pensamento bobo de
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que talvez pudesse estar morta e enfiada em uma gaveta de necrotério
povoou sua imaginação por um breve momento de loucura. Eu apenas
desmaiei, repetia ela para si mesma. Desmaiei, desmaiei, desmaiei.
Moveu-se lentamente para evitar mais uma onda de náuseas. A
cabeça doía onde havia batido. Esfregou a testa, checando se havia
ficado com algum galo no local, mas não tinha nada. Tentou se acomodar o máximo que pôde naquela caixa. Precisava pensar direito se quisesse sair dali. Olhou em volta mais uma vez, reparando que não havia
nenhuma fresta de luz. Desistiu de esperar os olhos se acostumarem
com a escuridão. Afinal, o que haveria para ver? Era apenas uma grande
caixa. Nada mais do que isso.
Esfregou os olhos. Pense, Lorena, pense, murmurou. E então apoiou
as mãos no tórax. Foi neste momento que se deu conta do silêncio. Não
havia nada. Absolutamente nada. Não havia o som de sua respiração
e as batidas de seu coração também não estavam lá. Concluiu que não
precisava respirar, e, por mais que seu coração não pudesse disparar no
momento, nada a impediu de sentir uma pontada no peito, acompanhada de um vazio total. Uma angustia que devorava cada pedacinho
de pele.
Não podia ser, não era possível, o que estava acontecendo e milhares
de outras indagações tomaram conta de Lorena. Mas lá estava seu coração imóvel, jogando-lhe na cara que estava indiscutivelmente morta. E
aquela pequena palavra de apenas duas sílabas fez com que desmoronasse. Começou com um soluço dolorido, seguido pelas lágrimas que
precipitaram de seus olhos.
Agarrou a raiz dos cabelos, chorando com força, e em poucos
segundos seu rosto estava encharcado. Balançou a cabeça, incrédula e
confusa. Não queria morrer. Não queria ir embora nem dizer adeus.
Não agora, nem tão cedo.
Aos poucos, foi se lembrando do acidente. Não precisou pensar
muito para adivinhar que o carro havia lhe matado.
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Não fora a melhor pessoa do mundo e não era religiosa, mas nunca
fora má. O que fizera para merecer esse tipo de fim? Pensou nos pais
e em como eles estariam se sentindo. Não tinha muitos amigos, mas
se perguntava o que as pessoas à sua volta estariam sentindo naquele
momento. Será que deixariam recados no seu perfil na internet? Ou
levariam flores e ouviriam músicas que as faziam lembrar-se dela?
Será que estavam tristes? Ou será que não se importavam, achando
que não faria diferença alguma? Imaginou se os colegas de classe reparariam na sua ausência.
Talvez nem estivesse morta, pensou ela, com um sorriso louco perpassando em seu rosto. Talvez alguém tenha lido errado os seus sinais
vitais. Ou talvez era algum tipo de sonho estranho, como aqueles onde
você não consegue se mexer. Voltou a chorar e balançar a cabeça em
recusa. Aquilo simplesmente não podia ser verdade. Deveria existir
alguma explicação plausível.
Por mais que seu coração estivesse imóvel, nada a impedia de sentir
uma dor perfurante nele. A garganta e o peito ardiam enquanto soluçava, mas, ainda assim, respirar surtia tanto efeito quanto pílulas de farinha e açúcar.
Começou a pensar nas coisas que nunca faria caso realmente estivesse morta. Nunca iria para a universidade ou viajaria para outro país.
Nunca teria uma família ou veria a sua novamente. Nem andaria de
mãos dadas com algum garoto bonito de calça xadrez. Sentiu-se estúpida ao pensar que também nunca iria a um show do Weezer. A não ser
que virasse uma alma-penada, passeando por aí. Se fosse assim, assistiria
ao show que quisesse, e de graça.
O som dos passos a tirou de seus devaneios. Apurou os ouvidos
para tentar escutar melhor. O que deveria fazer? Chamar atenção para
que a tirassem dali? Mas estava morta e provavelmente aquele nem era
o mundo em que vivera. Não tinha como imaginar a reação de alguém
se a vissem.
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Não precisou tomar nenhuma atitude, pois o som das gavetas se
abrindo de uma em uma foi se aproximando. Pof, pof, pof, faziam elas
com força. Imaginou os corpos dos mortos balançando dentro delas
ou caindo no chão. Apertou os punhos e esperou pelo momento que
sua própria porta abriria. O barulho estava cada vez mais perto agora.
Lorena soltou um grito quando a gaveta abriu e seus olhos cegaram com
a forte luz que a atingiu.
Esfregou os olhos, tentando enxergar. A primeira coisa que viu foi
uma cabeleira escura a encarando. Depois de tudo o que passara, só
conseguia pensar no lençol branco que cobria seu corpo nu contra a
visão do garoto. Única proteção existente. “Obrigada lençol, não preciso de mais vergonha agora que estou morta.”
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CAPÍTULO DOIS
Sobre a parte boa de ser um fantasma
N
em fazia ideia de onde tirara a habilidade para abrir fechaduras,
mas ser um fantasma tinha vantagens óbvias. Aprendeu rapidamente a interagir com objetos físicos e podia abrir trancas facilmente
com essa faculdade. Não que precisasse abrir as portas ou janelas, já que
podia simplesmente atravessá-las, mas precisava fazer isso para tirar a
garota dali.
Ouvia-a gritando na sala seguinte enquanto checava o alarme. Havia
um guarda, dormindo, mas com o escândalo ele provavelmente não
seguraria o sono por muito tempo. Entrou no que gostava de chamar
de frigorífico de presuntos. Perdera um pouco da graça agora que era um
fantasma, mas o apelido ainda agradava. Já o visitara quando seus pais
morreram, quando a esposa do irmão morrera, quando o melhor amigo
morrera. Praticamente morava no necrotério. E não era má ideia, afinal,
precisava de um lugar para ficar e assombrar.
A garota estava quieta agora. O local cheirava a ferro e estava impecavelmente limpo. Abriu as gavetas enfileiradas pela parede, tentando
adivinhar em qual delas a menina estaria. Flávia, o anjo da morte que lhe
dera a informação, poderia ter sido mais direta e simplesmente lhe dito
qual das gavetas, pensou Lucas.
Cada uma delas exigia concentração para conseguir tocá-la e cada
erro lhe presenteava com uma visão pior que a outra. Costuras grosseiras, membros perdidos, olhos vidrados. Nunca gostara de ver sangue
ou coisas mortas e o cheiro daquele lugar começou a deixá-lo enjoado.
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Talvez assombrar o necrotério não fosse uma boa opção no final das
contas.
Foi quando escutou um grito esganiçado ao abrir uma das gavetas
que soube ter acertado. Isso e o fato de o lençol não cobrir todo o corpo
da garota, que estava sentada e olhando-o diretamente nos olhos. Eles
se encararam por vários segundos e caso tivessem fôlego para segurar, o
teriam feito. A verdade é que Lucas mal reparou que ela estava seminua,
só ficou momentaneamente paralisado pelo fato de ter sido visto por
alguém.
E dando-se conta da indelicadeza, cobriu o rosto com as mãos.
— Me desculpe, juro que não foi intencional — balbuciou ele,
olhando para trás. Deu uma espiada para garantir que ela havia se
coberto antes de virar.
Da última vez em que havia visto uma menina nua, tinha cinco anos
de idade e levara um tapa no rosto. Sem contar que a menina era sua
prima.
A garota se encolheu e cobriu o corpo, olhando em volta com os
olhos apertados e parecendo muito confusa.
— O que diabos está acontecendo? — perguntou ela com os olhos
molhados e a voz fraca.
Teve pena dela, mas sentia-se extremamente constrangido quando
alguém o fitava, mesmo naquela situação — e o fato de ela estar coberta
apenas por um pano também tinha sua parcela de culpa. Nunca conseguia tirar da cabeça que o estariam julgando ou que o achavam esquisito
quando o encaravam daquele jeito. Nunca tivera um pingo de autoestima e nem sequer tinha uma mãe para lhe mentir e dizer que era bonito.
Lucas desviou o olhar pensando na própria aparência. Absurdamente
magro e ainda por cima alto, o que lhe dava uma aparência de desengonçado. O cabelo preto que ficava desgrenhado não importando o
que fizesse. Uma argola no canto esquerdo da boca e os alargadores
pretos. Lembrou-se imediatamente da menina que estudara com ele que
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sempre dizia que Lucas vivia eternamente em 2006 com suas roupas de
adolescente alternativo.
Sua cara de fantasma era ainda mais pálida do que fora quando ainda
tinha um corpo. Gostava do fato de não ser transparente, pois achava
aquilo idiota, clichê de cinema barato. Queria ter escolhido outra roupa
no dia fatídico em que resolvera desencarnar. A blusa de manga comprida e listrada de preto estava desbotada. Começou a enjoar do cinto
de taxas e da calça apertada com All Stars.
Ele voltou a olhar para a garota, que ainda aguardava resposta.
— Não sei bem — disse ele, apressando-se. — Mas sei alguém que
pode ajudar, me ajudou.
— E o que é você? Isso é o inferno ou algo assim?
De todos os insultos que Lucas podia imaginar, ser comparado a
um demônio, mesmo que sem querer, era definitivamente o pior deles.
— Não, cara. É só o necrotério.
— O quê?
Lucas conseguiu dar uma boa olhada na etiqueta presa no pé dela
antes que ela se levantasse com o lençol enrolado em volta do corpo e
começasse a andar pela sala. Lorena Carvalho. Achou que ela estava em
ótimas condições para um zumbi que morrera atropelado.
— Você está morta — disse Lucas, apenas para se certificar de que
ela já havia percebido isso.
Ela o encarou e revirou os olhos.
— Não tenho sinais vitais e acordei em uma gaveta de metal. É,
acho que percebi que estou morta. Mas quando acordei eu ainda estava
respirando.
Tentou ignorar a agressividade na voz dela e lembrou-se que ela só
estava acordando agora. Não era fácil descobrir que você não tem mais
nada pela frente.
— Me disseram que você é um tipo de zumbi — disse ele. — Ainda
tem o seu corpo. As pessoas podem te ver como se estivesse viva e
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tudo o mais.
— Você está me dizendo que sou um zumbi? E o que é você, por
acaso? Eu também estou te vendo.
— Eu sou só um fantasma, igual a qualquer outra pessoa que morre
e continua na Terra. Nada muito emocionante.
Lorena começou a rir. Perguntou-se se era um dos estágios do luto.
As risadas provavelmente eram sinais de que estava saindo do estágio da
negação para o de raiva.
— Então você está me dizendo que eu sou um zumbi e você é um
fantasma? — ela soltou um misto de bufada com riso — Você só pode
estar tirando com a minha cara. Essa é a coisa mais imbecil que já me
disseram. Se você dissesse que estamos, sei lá, na recepção do Céu, eu
teria até pensado em acreditar. Até parece! Zumbis e fantasmas! O que
vem depois? Fadinhas?
— Lorena... — disse ele bem baixo — Acho que você deveria parar
de gritar. Tem um-— Eu vou parar de berrar quando eu quiser parar de berrar!
Lucas estacou onde estava, apontando para a porta. Alguém gritando com ele daquele jeito ainda era muito melhor do que metade das
coisas das quais tinha sido chamado na escola. Mas naquele momento
em particular estava mais preocupado com os sons de passos apressados se aproximando.
A porta se abriu com violência e teve poucos segundos para registrar
o guarda de arma em punho, disparando involuntariamente com o susto.
A bala atravessou o corpo de Lucas e foi se alojar na testa de Lorena.
Ela cambaleou vários passos para trás, levando a mão à cabeça com
horror.
— O que diabos você está fazendo? — gritou ela para o homem.
Não houve resposta alguma do guarda. Estava em choque. Lucas
não sabia se pelo fato de ter atirado em alguém ou se por esse alguém
ainda estar de pé.
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Ele olhava fixamente para Lorena, que o olhava de volta com uma
expressão de quem iria voltar a gritar.
— Acho que ele está em choque — observou Lucas.
— Por que ainda estou viva? — perguntou ela, com o dedo no furo
da bala, passando a ignorar o guarda e se olhando no reflexo de uma das
gavetas. Um filete de sangue escorria pelo furo.
— Mas você não está viva — respondeu Lucas.
— Oi, eu sou um zumbi! Tiros na cabeça me matam!
— Você não é um personagem de The Walking Dead, Lorena. É só
uma coisa que não está nem viva nem morta.
— E como você sabe meu nome?
— A etiqueta enorme no seu pé responde a pergunta?
Lucas se aproximou do guarda que continuava com o braço esticado
segurando a pistola. As pernas dele tremiam.
— Deveríamos sair daqui antes que ele volte a si.
Lorena o ignorou e se agachou, arrancando a etiqueta do pé e a rasgando em milhares de pedaços. Lucas deu de ombros, segurou o braço
dela e a arrastou para fora do dali. Ela resmungou e praguejou durante
todo o trajeto.
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CAPÍTULO TRÊS
Quando Lorena descobre que não precisa ter medo de armas de fogo
F
oi arrastada pelo garoto de cabelos negros e piercing no lábio por toda
a pequena construção que era o necrotério. Reconheceu onde estavam quando chegaram à rua. O necrotério ficava em uma casa pequena
em uma área mais afastada do centro de Balneário Camboriú. A universidade ficava por perto. Universidade esta em que nunca entraria.
Era noite e não havia ninguém em volta. Aquela área era um abandono nas madrugadas e os carros só passavam por ali para chegar à
rodovia. Ou a algum dos inúmeros motéis baratos. Lorena parou na
calçada e ajeitou o lençol para ter certeza que ele cobria todo seu corpo.
Algumas pessoas podiam pegar retalhos e os transformar em bolsas,
saias chiques ou lenços. Para ela, que nem fazia ideia para que servia
blush, os panos multiuso eram um grande mistério.
— Deveríamos achar algum lugar para você ficar e algo que possa
vestir. Depois vamos até a Flávia — disse ele, olhando de esguelha para
a porta do necrotério.
— Onde você mora? — perguntou ela.
O garoto deu de ombros.
— Não faz diferença, ninguém pode me ver ou ouvir. Mas você,
além de poder ser vista, tem a mesma aparência, podem te reconhecer.
Ele tinha razão. Caso ficasse naquela situação por mais tempo, precisaria se disfarçar, mesmo que não conhecesse pessoas suficientes para
que isso acontecesse rápido. Ela sabia o lugar perfeito para se esconder.
— Sei onde podemos ir. É a casa da minha tia, ela trabalha na
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Europa, vai ficar lá o mês inteiro. — “A não ser que ela venha para meu
funeral, e se ela não vir eu vou ficar muito revoltada”, pensou ela.
Lucas simplesmente virou o rosto para a rua sem dizer nada. Teve
que admitir que ele era bonito. Afinal, estava morta, não velha. E o fato
de ele ser tão quieto era uma vantagem. Pelo menos não precisaria ficar
interagindo socialmente.
— Qual o seu nome? — perguntou ela. — Por que você veio até
aqui me ajudar?
Ele tentou chutar uma pedra no chão e o pé simplesmente atravessou a rocha. Colocou as mãos nos bolsos, ainda olhando para o chão.
— Lucas — respondeu simplesmente.
— Quem é essa Flávia?
— Um anjo da morte — respondeu ele. — Mas precisamos sair
daqui. Explico mais depois.
Ela concordou e começou a andar. Não estavam muito longe, em
vinte minutos de caminhada deveriam chegar. Pegaria um caminho mais
escuro e abandonado para evitar ser vista daquela forma, passando pelas
diversas ruazinhas entre os blocos. A cidade estava calma naquela noite.
Nenhuma festa em volta, nenhum grupo de amigos, nenhum carro com
música alta. Era outono e aquela época do ano era agradável, apesar do
frio que começava a fazer. Desviou de algumas poças e andou pelo asfalto
durante parte do trajeto. A calçada ali estava totalmente quebrada e não
queria sujar os pés na lama.
Foi só depois de dez minutos de caminhada que se lembrou de que
não tinha as chaves e estacou no local. Lucas, que andava atrás dela,
atravessou-a. A sensação foi idêntica a passar por baixo de uma queda
de água, porém não tão gelado como imaginou que seria. Lucas se virou
para fitá-la.
— O que foi? — perguntou ele.
— Não tenho as chaves.
— Você não precisa de chaves. Tem alarme na casa?
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