10 A possibilidade de potencializar experiências subjetivas na

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10 A possibilidade de potencializar experiências subjetivas na
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A POSSIBILIDADE DE POTENCIALIZAR EXPERIÊNCIAS SUBJETIVAS NA
APRENDIZAGEM POR MEIO DE PERCEPÇÕES SOBRE O TEMPO NA OBRA
MACHADIANA MEMÓRIAS PÓSTUMAS DE BRÁS CUBAS
Lilian dos Santos SILVA1
RESUMO
Este artigo tem por objetivo apresentar a possibilidade de se potencializar experiências
subjetivas na aprendizagem, por meio de percepções sobre o tempo presentes na obra
Memórias Póstumas de Brás Cubas, tendo Machado de Assis como intercessor. Para tanto,
convoca-se Gilles Deleuze e Félix Guattari como referenciais teóricos a fim de conceituar
intercessor, experiências subjetivas e signo. A metodologia fundamenta-se no acolhimento da
percepção como o próprio elemento intercessor, não sendo a interpretação proposta uma
hermenêutica, que desvela a verdade pela verdade. A partir dessa proposta, busca-se apontar
algumas reflexões que essas percepções podem trazer ao aluno, pensando em componentes de
subjetividade.
Palavras-chave: Machado de Assis. Experiências Subjetivas. Intercessor.
“Não há amor possível sem a oportunidade dos sujeitos”
Machado de Assis
Memórias Póstumas de Brás Cubas
“‘Não vos deixeis enganar’ - alerta-nos Heráclito.
Nossa vida é curta, diria ele, e onde pensamos haver estabilidade
só existem devir e movimento perpétuo”
Regina Schöpke
1 INTRODUÇÃO
Partindo do campo literário, este artigo apresenta percepções sobre o tempo presentes
na obra Memórias Póstumas de Brás Cubas para se pensar em possibilidades de potencializar
experiências subjetivas na aprendizagem, tendo Machado de Assis como um intercessor. Para
tanto, Gilles Deleuze e Félix Guattari são convocados para conceituar intercessor,
experiências subjetivas e signo. Tendo em vista a forma como Deleuze direciona um olhar à
obra literária Em busca do tempo perdido, de Marcel Proust, utiliza-se também como
referência Proust e os Signos. Aproximando-se dessa proposta de autoria do filósofo,
delineiam-se três percepções sobre o tempo na obra machadiana. Lembrando que ele propõe
signos em Proust enquanto aqui, caminhando na direção dessa perspectiva teórica, traçam-se
percepções sobre o tempo em Machado de Assis.
1
Graduada em Comunicação Social pela UNESP e mestranda do programa de Educação na UNIFESP (início
julho 2014). [email protected]
Pedagogia em Foco, Iturama (MG), v. 10, n. 4, p. 123-133, jul./dez. 2015
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Esta produção traz uma amostra preliminar da dissertação de mestrado Machado na
Aula: em busca de signos e intercessores para a potencialização de experiências subjetivas
na aprendizagem, sendo que, essas indicações apresentadas são os primeiros passos do que se
pretende obter nessa trajetória de pesquisa.
Deleuze tem um procedimento na criação de seu pensamento filosófico: transforma
em conceitos elementos não conceituais, perceptos e afectos, oriundos da literatura e das artes
(DELEUZE, 1987).
Os perceptos não mais são percepções, são independentes do estado daqueles que os
experimentam; os afectos não são mais sentimentos ou afecções, transbordam a
força daqueles que são atravessados por eles. As sensações, perceptos e afectos, são
seres que valem por si mesmos e excedem qualquer vivido. [...] Podemos dizer que o
homem é ele próprio um composto de perceptos e afectos. A obra de arte é um ser de
sensação, e nada mais: ela existe em si. (DELEUZE; GUATTARI, 1992, p. 213).
Na escrita deleuzeana, os perceptos e afectos constituem o centro do conceito de
signos, que defende que todo ato de aprender está relacionado à interpretação por meio deles.
“Nunca se sabe como uma pessoa aprende; mas, de qualquer forma que aprenda, é sempre por
intermédio de signos, perdendo tempo, e não pela assimilação de conteúdos objetivos”
(DELEUZE, 1987, p. 21). Partindo dessa premissa, pode-se estabelecer uma relação entre os
signos e a aprendizagem quando Silvio Gallo retoma Deleuze exemplificando que ensinar é
“colocar sinais para que outros possam orientar-se, aprender é encontrar-se com esses sinais”
(GALLO, 2012, p. 3). É exatamente neste ponto que as percepções sobre o tempo, propostas
neste artigo, se colocam: na indicação de uma possibilidade de aprendizagem enquanto
encontro com esses sinais. Isso se daria por meio de experiências subjetivas, que essas
percepções talvez viessem a gerar. No caso, estão em jogo sinais deixados pelo autor da obra
literária na abordagem do tema do tempo. Não se trata, contudo, de uma metodologia
hermenêutica, no sentido de buscar o que Machado de Assis quis dizer. Trata-se de acolher a
percepção como o próprio elemento intercessor, como perceptos e afectos.
Em Proust e os Signos, Deleuze sustenta que um dos temas constantes de Em busca
do tempo perdido refere-se à questão de que “a verdade nunca é o produto de uma boa
vontade prévia, mas o resultado de uma violência sobre o pensamento” (DELEUZE, 1987, p.
15). Ora, quando um aluno está inserido em um momento de leitura de uma obra literária,
como a machadiana, há muitos processos que podem se dar entre uma e outra linha. Há
raciocínios e construções em jogo. Proposições fornecidas pelo autor entram em contato com
as concepções de mundo de quem o lê. Um infinito pode se dar, afinal, a história narrada é
fechada em si, no sentido de que começa, termina e está posta, mas cada leitor é um leitor
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diferente e um universo em mutação. Essa relação é inconstante, já que o leitor sempre muda.
Diante disso, insere-se mais um apontamento de Deleuze: “as significações explícitas e
convencionais nunca são profundas; somente é profundo o sentido, tal como aparece encoberto e implícito num signo exterior” (DELEUZE, 1987, p. 15). Entende-se, assim, que
existe algo a ser desvendado de forma particular na leitura, que tem a ver com a violência
sobre o pensamento mencionada anteriormente.
Ora, portanto o signo ou, como se utiliza aqui, a percepção, é um objeto de encontro
na medida em que pressupõe alguma coisa que força a pensar e a procurar o que é verdadeiro
(DELEUZE, 1987). E é sob o aspecto do signo, de acordo com Deleuze, que se atrai outro
conceito: o de intercessor. Lembrando que intercessor só tem sentido a partir de signo.
O essencial são os intercessores. A criação são os intercessores. Sem eles não há
obra. Podem ser pessoas - para um filósofo, artistas ou cientistas; para um cientista,
filósofos ou artistas - mas também coisas, plantas, até animais […]. Fictícios ou
reais, animados ou inanimados, é preciso fabricar seus próprios intercessores […].
Se não formamos uma série, mesmo que completamente imaginária, estamos
perdidos. Eu preciso de meus intercessores para me exprimir, e eles jamais se
exprimiriam sem mim: sempre se trabalha em vários, mesmo quando isso não se vê.
(DELEUZE, 2010, p.156, grifo nosso).
Neste sentido, ao jogar luz em percepções sobre o tempo, tendo Machado de Assis
como intercessor, o propósito é seguir rumo a experiências subjetivas, que podem ser
entendidas como componentes de subjetividade e processos de singularização (ROLNIK;
GUATTARI, 2005, 1985).
Uma maneira de recusar todos esses modos de endocodificação preestabelecidos,
todos esses modos de manipulação e de telecomando, recusá-los para construir, de
certa forma, modos de sensibilidade, modos de relação com o outro, modos de
produção, modos de criatividade que produzem uma subjetividade singular.
(ROLNIK, GUATTARI, 2005, p. 22).
Seguindo nessa trilha, Deleuze (2010, p. 217) afirma que os processos de
subjetivação “só valem na medida em que, quando acontecem, escapam tanto dos saberes
constituídos como dos poderes dominantes”. Assim, pretende-se deixar indicada uma direção
que privilegie a reflexão pessoal e subjetiva. Em uma obra literária, diante do que faz pensar,
refletir, indagar, supor, prever, adivinhar, ansiar e tramar, entre outras infinitas ações, tramita,
perpassa e se constrói o pensamento por uma via particular.
Neste sentido, evoca-se uma fala de Mauro Baladi, para quem "o pensamento é [...]
uma potência em prol da vida, que tem um poder demolidor com capacidade de produzir, criar
novos mundos e novas maneiras de ser e sentir” (SCHÖPKE, 2004, [Orelha]). E, conforme
preconiza Regina Schöpke, assumir toda a potência do pensamento significa, primeiramente,
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romper com um determinado estado de coisas. “A originalidade de um pensador [...] deve ser
medida pela qualidade e intensidade de seus afectus e pela força de conexão entre suas ideias”
(SCHÖPKE, 2004, p. 25).
Ao apontar que essas percepções sobre o tempo podem trazer elementos para uma
reflexão do aluno, no sentido de ele agir com o pensamento, abre-se uma porta de entrada.
Seguindo nesta direção, Regina Schöpke defende que o pensamento, na obra deleuziana, deve
ser entendido como um processo: "algo que não pode ser paralisado, um movimento que
tende ao infinito, que anseia por ele. É assim que pensar se transforma numa aventura
arriscada. Afinal, alçando os seus maiores voos, o pensamento experimenta o fascinante
perigo da quebra dos limites" (SCHÖPKE, 2004, p. 21).
A noção de aprendizagem aplica-se nesta proposta de forma ampla, no sentido do
trânsito do modo de aprender. Já o recorte aponta para o ensino médio, uma vez que o contato
com obras literárias densas, em geral, ocorre pela primeira vez nessa etapa final da educação
básica. Pensando em cânones brasileiros das artes, destaca-se Machado de Assis, cuja ficção é
considerada por Alfredo Bosi (1972) o ponto mais alto e mais equilibrado da prosa realista
brasileira. Segundo ele, um romance de Machado não se deve resumir, pois o que nele
importa não é o fato em si, mas a constelação de intenções e de ressonâncias que o envolve.
Do mesmo modo, Mário de Andrade (1974) acreditava que Machado fora um gênio, e forte
prova disso é que, dentro de uma obra tão conceptivamente nítida e de poucos princípios, está
a multiplicidade de interpretações a que ela se sujeita.
2 DESENVOLVIMENTO: PERCEPÇÕES
Machado de Assis brinca com a questão da passagem do tempo em Memórias
Póstumas de Brás Cubas desde a ousadia no modo de narrar, sempre entremeado de
digressões, até o próprio termo: memórias, do título, que remete a um período de valor.
Observado por diversos ângulos, o tempo compõe uma temática central nessa obra, que não
traz a fala de um 'autor defunto', mas de um 'defunto autor' (ASSIS, 1994, p.2), e, por isso
mesmo, deixa implícita uma estranheza ao tratar de memórias narradas por um morto. No
mais, ao repassar sua trajetória, Brás Cubas traz uma análise crítica de tudo, de todos e de si
mesmo, enquanto trilha mecanismos psíquicos, digressões e hábitos mentais. Talvez a
primeira grande questão subjetiva com a qual o leitor se depare em relação a um tempo
impossível, esteja posta aí: há uma relativização da morte que não acaba quando termina,
utilizando-se desse trocadilho em função de o narrador contar sua história do pós-túmulo.
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Brás Cubas, enquanto narrador, apresenta um romance em primeira pessoa, que
reconta sua história por uma visão distanciada, falando contra si mesmo, o que possibilita uma
denúncia, na qual ele é inimigo de classe (GUIMARÃES, 2013). A volubilidade, como afirma
Roberto Schwarz (2007, 1981), está no narrador atrás do narrador. Ora, observa-se aqui outra
possibilidade de experiência subjetiva, uma vez que o autor coloca leitor e narrador em
posições ousadas. De acordo com Hélio Guimarães (2001), a narração é explicitamente
dividida entre a consciência do narrador e as expectativas do leitor. “Há uma fratura que
repercute por todo o terreno ficcional, entre as intenções de sentido projetadas pelo primeiro e
as possíveis atualizações de sentido realizadas pelo segundo” (GUIMARÃES, 2001, p. 146).
Conforme as ideias de Iser (1999), que verificam como a obra literária direciona a leitura e
como o receptor atende aos apelos do texto, pode-se dizer que o leitor, neste caso, é
convocado a compor a obra porque ela depende de sua interpretação. Em suma, a partir desse
deslocamento de um narrador morto e de sua postura, relativizando tudo, a posição em que o
leitor se coloca diante do personagem muda o sentido do entendimento da obra
(GUIMARÃES, 2013).
Outros dois exemplos de ironia e inversão abrem e fecham o livro: as memórias, que
comumente são dedicadas a alguém célebre e relevante, têm sua ordem invertida ao serem
dedicadas a algo inferior. "Ao verme que primeiro roeu as frias carnes do meu cadáver dedico
como saudosa lembrança estas memórias póstumas" (ASSIS, 1994, p.1). Mais do que
pessimismo, essa construção de dedicatória revela o niilismo, no sentido de que não há
nenhuma transcendência possível. Como destaca Hélio Guimarães, ao elevar o verme, o
narrador joga todo o resto para baixo e traz a morte de forma materializada como degradação
(GUIMARÃES, 2013). E as memórias que são escritas para narrar a vida de alguém
importante, de relevância, neste caso são esvaziadas pois, ao fim, ao cabo, Brás Cubas não
possui nenhuma realização, como assume no capítulo final. "Não alcancei a celebridade do
emplasto, não fui ministro, não fui califa, não conheci o casamento" (ASSIS, 1994, p.139).
Três percepções do tempo em Memórias Póstumas de Brás Cubas
Para se sugerirem três percepções, que talvez possam abrir caminhos para
potencializar experiências subjetivas na aprendizagem, optou-se por buscá-las a partir de uma
mesma unidade, que também transita como um eixo central pela obra de Proust. Trata-se da
passagem do tempo. “Não importa ao tempo o minuto que passa, mas o minuto que vem. O
minuto que vem é forte, jucundo, supõe trazer em si a eternidade, e traz a morte, e perece
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como o outro, mas o tempo subsiste” (ASSIS, 1994, p. 11). A seguir, apontam-se estas três
percepções e o modo que funcionam como tensionadoras de reflexões.
Passagem do tempo: transitoriedade do estado das coisas
A passagem do tempo implica a questão da transitoriedade do estado das coisas. Esse
processo é central nesta obra machadiana pois, apesar do embaralhamento das inúmeras
referências e digressões, há um fio narrativo de começo, meio e fim, que se realiza. Para
apontar o caráter fugidio da existência no movimento incessante das coisas, recorre-se aos
filósofos pré-socráticos, evocando Heráclito. Ele discorria sobre o eterno devir, que tudo se
renova a cada instante e que, mesmo o que parece permanente e solidificado está,
inevitavelmente, fazendo parte de um grande movimento do universo, como explica Regina
Schöpke.
[...] tudo é transitório: mesmo o nosso corpo (cuja ideia de duração temos sempre
presente) é algo que se transforma constantemente. Em suma, nós somos e não
somos. Mais precisamente, somos - a cada novo instante - diferentes de nós mesmos.
Eis um mundo de diferenças, onde todo porto seguro não passa de uma ilusão criada
por nossa razão - única maneira de 'escaparmos' de nossa própria vulnerabilidade e
nossa instantaneidade num mundo que só nos 'programou' uma única e derradeira
vez (SCHÖPKE, 2004, p. 49).
Brás Cubas escancara ao leitor o eterno movimento das coisas que estão no tempo.
Percebe-se a transitoriedade do estado das coisas pela ocorrência de uma viagem que, pelo
próprio sentido do termo, implica uma mudança de lugar. Nas palavras de Deleuze, "Viajar é
ir dizer alguma coisa em outro lugar, e voltar para dizer alguma coisa aqui (2010, p.176)". A
fim de acabar de vez com a ligação entre Brás Cubas e a amante Marcela, o pai do
protagonista manda-o para Coimbra, onde ele vai estudar por alguns anos. Quando retorna ao
Brasil, Brás Cubas depara-se com uma percepção nova, um tempo redescoberto, que é
bastante presente na obra Em Busca do Tempo Perdido de Proust. Em função da diferença de
olhar causada pelo período da viagem, há algo novo no encontro com um lugar conhecido.
Vim. Não nego que, ao avistar a cidade natal, tive uma sensação nova. Não era
efeito da minha pátria política; era-o do lugar da infância, a rua, a torre, o chafariz
da esquina, a mulher de mantilha, o preto do ganho, as coisas e cenas da meninice,
buriladas na memória. Nada menos que uma renascença. O espírito, como um
pássaro, não se lhe deu da corrente dos anos, arrepiou o voo na direção da fonte
original, e foi beber da água fresca e pura, ainda não mesclada do enxurro da vida
(ASSIS, 1994, p. 34, grifo nosso).
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Fica a questão: o que se aprende ou se apreende a partir desses sintomas e percepções
de passagem, quando se depara com um lugar bastante familiar, que não é mais o mesmo? Ou
quando se dá conta da transitoriedade do estado das coisas de forma interna, particular? Em
outro trecho, a transitoriedade do estado das coisas ou, no caso, dos corpos se revela quando
Brás Cubas reencontra as amantes: Virgília, em um baile, e Marcela, em uma loja.
A primeira vez que pude falar a Virgília, depois da presidência, foi num baile em
1855. Trazia um soberbo vestido de gorgorão azul, e ostentava às luzes o mesmo par
de ombros de outro tempo. Não era a frescura da primeira idade; ao contrário; mas
ainda estava formosa, de uma formosura outoniça, realçada pela noite (ASSIS,
1994, p.122, grifo nosso).
A questão se acentua com Marcela, quem o narrador revê muito diferente e
envelhecida porque contraíra varíola.
Ao fundo, por trás do balcão, estava sentada uma mulher, cujo rosto amarelo e
bexiguento não se destacava logo, à primeira vista; mas logo que se destacava era
um espetáculo curioso. Não podia ter sido feia; ao contrário, via-se que fora bonita,
e não pouco bonita; mas a doença e uma velhice precoce, destruíam-lhe a flor das
graças. As bexigas tinham sido terríveis; os sinais, grandes e muitos, faziam
saliências e encarnas, declives e aclives, e davam uma sensação de lixa grossa,
enormemente grossa. Eram os olhos a melhor parte do vulto, e aliás tinham uma
expressão singular e repugnante, que mudou, entretanto, logo que eu comecei a
falar. Quanto ao cabelo, estava ruço e quase tão poento como os portais da loja.
Num dos dedos da mão esquerda fulgia-lhe um diamante. Crê-lo-eis, pósteros? essa
mulher era Marcela (ASSIS, 1994, p.48, grifos nossos).
Deleuze atenta para essa transitoriedade do estado das coisas ou, no caso, das
pessoas.
Rever pessoas que nos foram muito familiares é uma revelação, porque seus rostos,
não sendo mais habituais para nós, trazem em estado puro os signos e os efeitos do
tempo, que modificou determinados traços, alongando-os, tornando outros flácidos
ou vincados (1987, p.18).
As experiências subjetivas, que podem se dar a partir da percepção do tempo
referente a essas passagens, guardam a essência da eterna mudança e esperam pelo leitor nas
esquinas de outras páginas da obra machadiana. Ninguém será jovem para sempre, nem belo
para sempre, nem será para sempre. Não basta o narrador ser um defunto, mais uma vez a
morte se apresenta como uma realidade que só está à espera.
Tempo cronológico, psicológico e outro tempo
A obra machadiana apresenta um tempo psicológico sem ordem temporal linear, do
narrador além-túmulo, que retoma a história de sua vida de maneira arbitrária, em meio a
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digressões, manipulando fatos à revelia. Mas está posto também o tempo cronológico, em que
os acontecimentos obedecem a uma ordem: infância, adolescência, ida para Coimbra, volta ao
Brasil, maturidade e morte, por mais que a obra se inicie pelo fim da vida, pelo enterro. Nessa
sequência, há também o tempo em que Brás Cubas está quando narra e retoma as memórias,
sendo esse um não lugar em um tempo que se dá depois da morte. Deleuze fornece um
exemplo da diferença da percepção do tempo cronológico e do tempo psicológico em Proust e
os Signos. “Não era senão naquele instante, mais de um ano após o seu enterro, devido a esse
anacronismo que tantas vezes impede o calendário dos fatos de coincidir com o dos
sentimentos” (DELEUZE, 1987, p. 19).
No entanto, a questão em Machado de Assis é ainda mais complexa, pois há essa
camada do tempo da escrita, que implica uma intransitoriedade: esse narrador está perdido no
infinito da morte, que não lhe envelhece mais. Ora, há, portanto, um jogo de percepções
temporais: o tempo psicológico, o cronológico e um outro tempo particular e pessoal, que se
mensura em outra dimensão. Deparar-se com essa terceira via já é um grande exercício de
pensamento. Onde ele está? De onde fala? De que tempo?
Brás Cubas narrar sua história de forma póstuma leva a um novo olhar sobre fatos
que já aconteceram, pois no momento em que conta sua história, retoma-a pela memória e,
muitas vezes, se contradiz ou afirma não ter certeza se os fatos foram realmente como está
contando. São tempos diferentes: quando ocorreram os fatos, quando ele lembra e ainda outro,
o tempo da enunciação em que narra (GUIMARÃES, 2013).
3 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Essas construções revelam um posicionamento do narrador: a tragédia da existência
para ele está ligada à certeza da morte, que pode ser a única que se tem em vida. Neste
sentido, o tempo perdido de Proust assemelha-se às memórias póstumas, pois o autor concebe
a mudança da passagem do tempo “como uma defecção, uma corrida para o túmulo”
(DELEUZE, 1987, p. 17). E do além-túmulo, tudo o que resta a Brás Cubas é o niilismo
expresso em: “não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado de nossa miséria”
(ASSIS, 1994, p.140), na sintomática frase que encerra o livro. Em consonância, no capítulo
O Delírio, em que Brás está à beira da morte, Pandora aparece como personagem e alegoria, e
afirma “ser sua mãe e sua inimiga” (ASSIS, 1994, p.10), explicitando que aquela que dá a
vida também a tira porque a vida traz, inevitavelmente, a morte. E na sequência, ela mostra a
história da humanidade retratada em uma espécie de desfile em um movimento rumo ao caos.
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Com essas percepções sobre o tempo, apontam-se caminhos que talvez possam
propiciar ao aluno experiências subjetivas em relação a: transitoriedade do estado das coisas,
o caráter fugidio da existência no movimento incessante das coisas, o eterno devir das coisas,
o jogo de diferentes percepções temporais (tempo cronológico, tempo psicológico, o tempo
inevitável da corrida para o túmulo, o tempo específico em que se encontra Brás Cubas
narrando) e ainda a percepção sobre o tempo quando se retoma os fatos pela memória. Assim,
entende-se que a questão das percepções sobre o tempo, na obra machadiana, pode funcionar
como um potencial disparador de signos aos leitores e alunos. Logo, seguindo a perspectiva
deleuziana, trata-se de um tema que pode fazer surgir perceptus e afectus. Desse modo,
destaca-se que o sentido da aprendizagem é um sentido singular. Ela se dá pelo que toca cada
um de forma interna, particular e subjetiva. A maneira como cada um é atravessado pela
leitura, aqui, no caso, literária, muda. Encarar essas percepções, tendo Machado de Assis
como intercessor, seria, talvez, vislumbrar, uma possibilidade para se abrirem horizontes
sobre o tema do tempo. Mas as questões, que podem vir a ser suscitadas, não se fazem para
ser respondidas e sim para ser pensadas. Como diria Deleuze, “mais importante do que o
pensamento é ‘aquilo que faz pensar’” (DELEUZE, 1987, p. 30). Está em jogo uma sugestão
de possibilidades rumo a experiências subjetivas, que podem funcionar como instrumentos
nas “lutas relativas às liberdades, novos questionamentos da vida cotidiana, do ambiente do
desejo” (GUATTARI, 1985, p. 219).
THE POSSIBILITY TO POTENTIALIZE SUBJECTIVE EXPERIENCES IN
LEARNING THROUGH PERCEPTIONS ABOUT THE TIME IN THE WORK
MEMÓRIAS PÓSTUMAS DE BRÁS CUBAS BY MACHADO DE ASSIS
ABSTRACT
This article aims to develop the idea of enhancing subjective experiences in learning, having
Machado de Assis as intercessor, by the perceptions about the time in the work Memórias
Póstumas de Brás Cubas. For this purpose, Gilles Deleuze and Felix Guattari are adopted as
theoretical reference to conceptualize intercessor and subjective experiences and, in special,
the work Proust e os Signos. Alexandre Carvalho and Regina Schöpke complement the basis
on which this proposal is based. The methodology is based on the own intercessor element,
not being the interpretation proposed a hermeneutics, that reveals the truth for the truth. From
this discussion, the aim is to understand, as a result of the proposal: which reflections these
perceptions from Machado de Assis can provide to the student thinking about components of
subjectivity.
Keywords: Machado de Assis. Subjective experiences. Intercessor.
Pedagogia em Foco, Iturama (MG), v. 10, n. 4, p. 123-133, jul./dez. 2015
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Recebido em: 12 de abril de 2015
Aceito em: 08 de dezembro de 2015
Pedagogia em Foco, Iturama (MG), v. 10, n. 4, p. 123-133, jul./dez. 2015

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