pontes de miranda e a teoria dos direitos

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pontes de miranda e a teoria dos direitos
PONTES DE MIRANDA E A TEORIA DOS
DIREITOS FUNDAMENTAIS
GEORGE SARMENTO
Doutor em Direito Público
Professor/UFAL
Promotor de Justiça
1. INTRODUÇÃO
Pontes de Miranda foi o primeiro jurista a esboçar uma teoria dos
direitos fundamentais no Brasil. Para ele, o comprometimento dos governos com
a efetivação dos direitos humanos era a única forma de promover o
desenvolvimento e a justiça social.
A evolução da humanidade dependia da substituição do despotismo
estatal pelo equilíbrio entre democracia, liberdade e igualdade na ordem
jurídico-constitucional. Esse caminho só seria possível com a cristalização dos
direitos humanos nos tratados internacionais e nas constituições dos países
democráticos. O fim da 2ª Guerra Mundial era a oportunidade ideal para o
Ocidente construir um novo projeto de sociedade baseado na dignidade da pessoa
humana e no bem-estar social.
A grande preocupação de Pontes de Miranda era dotar as constituições
de mecanismos destinados a assegurar-lhes perenidade: rigidez constitucional,
aplicabilidade imediata, cerne irrestringível e controle de constitucionalidade. Ele
temia que interesses circunstanciais e corporativos pudessem fragilizar o Estado
Democrático de Direito, impondo reformas constitucionais ilegítimas.
Logo percebeu que o tema deveria sair da dimensão política para ser
analisado sob o prisma da ciência constitucional. Procurou então sistematizar os
direitos fundamentais desenvolvendo uma classificação estruturalista e
dogmática, baseada nos seguintes parâmetros:
1. Subjetividade
2. Ordem jurídica

direitos fundamentais subjetivos;

direitos fundamentais insubjetivados.

direitos fundamentais estatais;

direitos fundamentais supra-estatais.
1
3. Organizabilidade
4. Prestação
5. Garantias

direitos fundamentais absolutos;

direitos fundamentais relativos.

direitos fundamentais negativos;

direitos fundamentais positivos.

garantias institucionais;

garantias processuais.
Neste artigo, analisaremos essa classificação à luz do constitucionalismo
contemporâneo, com o intuito de demonstrar que as idéias propagadas pelo
jurista alagoano, há mais de 60 anos, continuam vivas e atuais. Embora pouco
estudada nos meios acadêmicos, a contribuição ponteana é imprescindível para a
compreensão da teoria geral dos direitos fundamentais nas democracias
modernas.
2. PODER ESTATAL E PODER CONSTITUINTE
2.1. Ordem jurídica supra-estatal e ordem jurídica estatal
O estudo dos direitos fundamentais pressupõe a existência de duas
ordens jurídicas: a supra-estatal e a estatal. A primeira banha, colore a periferia
do Estado. É o direito internacional. A segunda preenche o seu interior. É o
direito nacional. A ordem jurídica supra-estatal disciplina desde a criação de
novos Estados até a previsibilidade das relações que se travarão entre eles. O
mesmo acontece com a ordem interna, que vai da Constituição até o mais simples
ato estatal (legislativo, administrativo ou judicial)1.
O Estado é fato jurídico que nasce da incidência das normas de direito
internacional público. Uma comunidade só existe como Estado quando atinge a
simetria com a ordem jurídica supra-estatal pré-existente, que é ordem periférica
e sobreposta aos demais Estados. Tal simetria é alcançada com a concretização
dos fatos previstos pelas normas supra-estatais. Quando o suporte fáctico é
1
MIRANDA, Pontes de. Comentários à Constituição de 1967, tomo I. São Paulo: RT, 1970, p. 45.
2
suficiente para a incidência normativa, a comunidade passa a existir com um
novo colorido: personalidade de direito internacional público, Estado2.
A ordem jurídica supra-estatal é fundamento de existência e de validade
das ordens jurídicas nacionais. Criadas por tratados3, as normas de direito
internacional obrigam os Estados a promover medidas necessárias para torná-las
executórias no plano do direito interno4. Possuem a marca do consenso e da
convergência de interesses, vinculando os Estados à cláusula pacta sunt
servanda. Legitimadas pela comunidade internacional, tais normas possuem
força de incidência e prescrevem os mais diversos efeitos jurídicos.
O direito supra-estatal é universal. Incide sobre todos os países do
Planeta. Cabe a ele distribuir competências, fixar limites, revelar direitos
humanos, estabelecer sanções, etc. Para Pontes de Miranda, é o direito da mais
larga esfera jurídica da Terra. A universalidade lhe assegura superioridade
hierárquica sobre as ordens jurídicas estatais. Daí porque “a submissão dos
Estados a regras de direito das gentes significa que desapareceu, juridicamente, a
noção de independência absoluta deles: passaram a ser ordens parciais de direito,
relativamente independentes5”.
A construção do Estado também está condicionada a uma força política
viva, real: a vontade de transformar a comunidade em sujeito de direito
internacional. É o chamado poder estatal, isto é, o poder de construir e
reconstruir o Estado. A construção começa por fora, na periferia, pois é na
ordem supra-estatal que está o seu fundamento de existência. Em seguida,
alcança o interior, constitui o Estado e prossegue até o mais insignificante ato
estatal6.
Não se pode confundir poder estatal com poder constituinte. O poder de
construir e reconstruir é muito mais amplo que o de constituir7. Este está contido
2
Já sustentamos que “o Estado é fato jurídico nascido da incidência das normas de Direito Internacional
Público, cujo suporte fáctico, por ser extremamente complexo, exige intrincada conjunção de fatos para a sua
suficiência. A falta de um dos elementos abstratamente previstos torna o suporte fáctico incompleto, impede a
incidência normativa e o nascimento do fato jurídico esperado. Conseqüência: a comunidade não se personaliza
como Estado, pois o suporte fáctico é insuficiente para a jurisdicização, o que só ocorrerá com a reunião de
todos os requisitos de fato, objeto de anterior previsibilidade pelas normas de direito internacional público”. Cf.
SARMENTO, George. Direitos fundamentais supra-estatais: paradigma de validade das normas
constitucionais. Revista do Instituto dos Advogados de Pernambuco, v. 1, n. 1, Recife, OAB/PE, 1997, p.
226.
3
A Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados preconiza que o vocábulo tratado deve ser entendido em
sentido amplo. Significa todo acordo internacional escrito, celebrado pelos Estados e disciplinado pelas normas
de direito internacional, não importando sua denominação particular (art. 2o, I, a). Dessa forma, estão contidos
no conceito os seguintes documentos internacionais: pacto, convenção, tratado, ata, código, compromisso,
contrato, convenção, protocolos, convênios, declaração e constituição.
4
Cyntia González Feldman sustenta, com razão, que “al suscribir tratados internacionales, los Estados se
comprometen a que las disposiciones en ellos contenidas se conviertan en derecho interno. Sin embargo, un
Estado no puede invocar las disposiciones de su derecho interno como justificación del incumplimiento de un
tratado”. Cf. La implementación de tratados internacionales de derechos humanos por el Paraguay. In: Cyntia
González Feldman (comp.). El Paraguay frente al sistema internacional de los derechos humanos.
Montevideo: Fundación Konrad-Adenauer Uruguay, 2004, p. 20.
5
MIRANDA, Pontes de. Comentários à Constituição de 1967, tomo I. São Paulo: RT, 1970, p. 216.
6
MIRANDA, Pontes de. Poder Estatal. Poder Constituinte. Poderes Constituídos. Revista Forense, v. CV,
Fascículo 511, Rio de Janeiro, Forense, 1946.
7
O poder constituinte, os poderes constituídos e até mesmo o poder pré-constitucional integram o conteúdo do
poder estatal. Pontes de Miranda demonstra que ele se desenvolve em três dimensões: “(a) Exterioridade
3
naquele. A construção do Estado é processo perene, que começa ainda na ordem
externa e prossegue na organização interna, abrangendo todos os atos estatais
presentes, passados e futuros. O poder constituinte tem apenas a função de
elaborar normas constitucionais, cabendo ao legislador ordinário continuar o
processo de estruturação do Estado.
Enquanto o poder estatal se insere no plano do ser, o poder constituinte,
que é a mais alta espécie do poder de legislar8, desenvolve-se no plano do deverser. O poder constituinte atua no campo normativo, tendo como missão
primordial a produção de normas jurídicas constitucionais. A ele cabe revelar a
Constituição, diferir atividade constituidora, criar poderes constituídos9.
Para constituir-se, o Estado precisa de uma Constituição. A rigor, as
normas jurídicas federais, estaduais e municipais também exercem função
estruturante do Estado. Mas, por imposição da técnica jurídica, o conceito de
Constituição foi relativizado pela normação seletiva. Assim, só são consideradas
constitucionais as normas jurídicas ditadas pelo poder constituinte (originário ou
reformador) e inseridas na Carta Política. Isso nos leva a concluir que as normas
constitutivas do Estado subdividem-se em duas categorias:
a) as reveladas pelo poder constituinte – normas constitucionais;
b) as reveladas pelo poder legislativo ordinário – leis complementares,
ordinárias, delegadas, medidas provisórias, etc.10.
Nas democracias o povo é o titular do poder estatal, podendo livremente
decidir o destino e a organização jurídica da comunidade a que pertence. Cabe ao
povo construir, reconstruir, pré-constituir, constituir e reformar o Estado. Por
isso, poder estatal e o poder constituinte estão inexoravelmente unidos pela
relação fonte-produto11. O primeiro é prius por referir-se à própria existência do
Estado, o que só acontece com o seu reconhecimento internacional; o segundo é
posterius, pois concerne à estrutura de Estado já existente.
O poder estatal popular é enunciado de fato que legitima o Estado
Democrático de Direito. Trata-se de conceito a priori que fundamenta ordem
jurídica interna. Cabe ao poder constituinte a revelação de enunciados
normativos que expressem essa realidade política. A Constituição brasileira, por
exemplo, estabelece o princípio democrático nos seguintes termos: “Todo poder
emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente,
(direito das gentes – participação na formação das regras de direito das gentes; atividade negocial de direito das
gentes); (b) Exterioridade/Interioridade (atividade negocial do Estado noutro sistema jurídico que o direito das
gentes e o seu próprio); (3) Interioridade (direito interno – regras jurídicas pré-constitucionais, regras jurídicas
constitucionais, regras jurídicas anti-constitucionais, regras jurídicas de legislação ordinária de acordo com a
Constituição, regras jurídicas de legislação ordinária anti-constitucionais, atos (de acordo com as regras
jurídicas constitucionais) de execução, atos judiciários de acordo com a Constituição, atos judiciários anticonstitucionais”. Cf. Comentários à Constituição de 1967, tomo I, p. 45. São Paulo: RT, 1970, p. 180.
8
MIRANDA, Pontes de. Poder Estatal. Poder Constituinte. Poderes Constituídos. Revista Forense, v. CV,
Fascículo 511, Rio de Janeiro, Forense, 1946, p. 15.
9
MIRANDA, Pontes de. Comentários à Constituição de 1967, tomo I, p. 45. São Paulo: RT, 1970, p. 188.
10
MIRANDA, Pontes de. Poder Estatal. Poder Constituinte. Poderes Constituídos. Revista Forense, v. CV,
Fascículo 511, Rio de Janeiro, Forense, 1946, p. 15.
11
MIRANDA, Pontes de. Poder Estatal. Poder Constituinte. Poderes Constituídos. Revista Forense, v. CV,
Fascículo 511, Rio de Janeiro, Forense, 1946, p. 15.
4
nos termos desta Constituição” (art. 1º, parágrafo único). Dessa forma, as
atividades legislativas, administrativas e judiciais são a exteriorização da vontade
do povo, conforme veremos mais adiante.
O poder constituinte é democrático quando o povo elege deputados e
senadores para redigir ou reformar o texto constitucional. As Constituições são
legítimas se produzidas por poder constituinte convocado pelo titular do poder
estatal (o povo) ou por ele ratificadas por referendo legislativo. Qualquer outra
forma de construção constitucional não passa de usurpação política. É ilegítima,
produto do arbítrio, das ditaduras, dos regimes despóticos.
2.2. O povo como elemento legitimador do Estado Democrático de Direito
A vontade do povo é elemento essencial à legitimidade das
Constituições. Mas o povo não é um bloco monolítico formado por pessoas
dotadas de pensamento único, de uma volonté générale perfeitamente
identificável. A população de determinado Estado é heterogênea e subdivide-se
em incontáveis círculos sociais como famílias, igrejas, partidos políticos,
empresas, repartições públicas, organizações não-governamentais e instituições
democráticas. Tais círculos estão em permanente interação uns com os outros,
sempre em busca da crescente adaptação social e da civilidade, fim maior da
espécie humana. Como texto normativo de hierarquia superior no sistema
jurídico estatal, as Constituições devem refletir o consenso de valores vigentes
nos mais diversos círculos da sociedade civil.
“Povo” não é mera retórica, mas elemento integrante das normas
jurídicas. O art. 1o, parágrafo único, da Constituição de 1988 é a prova disso.
Para Friedrich Müller, o vocábulo “povo” contido nas prescrições jurídicas deve
ser objeto de interpretação lege artis, em três planos:
1º. “Povo” como povo ativo;
2º. “Povo” como instância global de atribuição de legitimidade;
3º. “Povo” como destinatário das prestações civilizatórias do Estado12.
O povo ativo é o conjunto dos eleitores que ocupam cargos públicos,
participam das eleições, plebiscitos e referendos por serem titulares de direitos
políticos. É o povo ativo que constrói e constitui o Estado através de
instrumentos da democracia, direta, indireta ou participativa. Elege a assembléia
constituinte, os legisladores ordinários, os chefes do poder executivo, etc. É,
portanto, a base da legitimidade (degré zéro) do Estado Democrático de Direito.
Embora nem sempre tenha participação direta na produção dos atos
estatais, o povo também é instância legitimadora do ordenamento jurídico na
medida em que acata as decisões administrativas, legislativas e judiciais. A
legitimação pelo povo é componente da validade e efetividade das normas
constitucionais, das sentenças, das políticas públicas, dos governos e de qualquer
12
MÜLLER, Friedrich. Quem é o Povo? A Questão Fundamental da Democracia. São Paulo: Max
Limonard, 2003, p. 55-64.
5
outra manifestação do Estado. Isto só acontece quando o povo reconhece nas
instituições, autoridades e leis a expressão de sua vontade. As Constituições se
concretizam na práxis quando o povo submete-se espontaneamente às suas
normas sem opor resistência, propagar a revolução ou desobediência civil,
quando os cidadãos participam livremente das eleições, dos conselhos
consultivos e de outras manifestações políticas.
Além de fonte do poder estatal, o povo é destinatário de prestações
civilizatórias. Isto é, a população real de um país é titular de direitos
fundamentais (individuais, políticos, sociais, econômicos, coletivos e difusos)
que devem ser assegurados na Constituição e concretizados pelo Estado. O
respeito à dignidade da pessoa humana, a melhoria da qualidade de vida, a justiça
social, serviços públicos eficientes e a proteção do meio ambiente são apenas
alguns dos requisitos essenciais à efetividade do ordenamento jurídico
democrático.
Temos sustentado em outros escritos que cidadania consiste na
participação política e na fruição dos direitos humanos13. É a concepção teórica
que mais se aproxima do conteúdo do vocábulo “cidadania” erigido a princípio
fundamental da República Federativa do Brasil (CF, art. 1o, II). Trata-se de
conceito que rompe com a idéia de cidadão-eleitor para abranger todas as pessoas
que vivam no território nacional. A condição de eleitor é secundária porque tal
norma constitucional considera cidadãos todos os destinatários de prestações
civilizatórias do Estado. Nesse sentido, a cidadania abrange os diversos
segmentos da população real do país mediante a positivação não só das
liberdades fundamentais, mas de direitos difusos e coletivos que tutelam o meio
ambiente, o consumidor, as comunidades indígenas, a moralidade administrativa,
os portadores de deficiência, os idosos, crianças e adolescentes.
Sob o aspecto dogmático-constitucional, o povo é conceito polissêmico.
Em algumas situações pode significar o conjunto dos cidadãos detentores de
direitos políticos ou instância legitimadora de atos jurídicos estatais. Também
pode ser interpretado como população real de um país, beneficiária de prestações
positivas e negativas do Estado. É na harmonia dessas dimensões, ensina Müller,
que reside a legitimidade da Constituição brasileira. Caso contrário, o povo seria
um enunciado normativo vazio, um ícone para justificar regimes autoritários.
O doutrinador alemão tem o mérito de alertar para o fato de que o “poder
constituinte do povo” não e um conceito ideológico, despregado da realidade
social ou detentor de alto grau de abstração. Ao contrário, integra o texto
constitucional sob forma de normas jurídicas editadas em respeito a
procedimentos democráticos e passiveis de permanente aferição de legitimidade
na práxis jurídica14.
Para que o poder constituinte seja legítimo, é preciso ainda que o povo
esteja em condições de escolher livremente os caminhos e a estrutura que o
13
SARMENTO, George. Novos rumos da cidadania brasileira. Revista do Ministério Publico de Alagoas, n.
3, jul/jan.,Maceió, MPEAL/UFAL, p. 67-71.
14
MÜLLER, Friedrich. Fragmentos (sobre) o poder constituinte do povo. São Paulo: RT, 2004, p. 31.
6
Estado vai encarnar. Tarefa que exige consciência política, sentimento patriótico
e vida digna para os cidadãos. Caso contrário, os eleitores serão presas fáceis do
poder econômico, extremamente hábil na manipulação eleitoral. As
Constituições devem ser a síntese das aspirações dos diversos segmentos que
compõem a população de um país. Devem aproximar-se ao máximo do consenso
em relação a valores vigentes na sociedade civil. É preciso, finalmente, que o
povo se reconheça no texto constitucional, que se veja como protagonista e não
como coadjuvante de interesses impostos pelas classes dominantes ou por
empresas multinacionais.
De tudo que foi dito nesta seção, podemos tirar algumas conclusões
preliminares. Como fenômeno de direito internacional, o Estado só pode ser
constituído após a sua construção. O povo é o titular do poder estatal. A ele cabe
a decisão de construir o Estado em seu sentido mais amplo. O poder constituinte
está contido no poder estatal e dele é dependente. Tem a função de organizar
internamente o Estado, revelando normas constitucionais. Não é soberano, mas
limitado pelas normas de direito internacional, pelos princípios constitucionais
prévios e pela legislação pré-constitucional15. Caracteriza-se pela atuação intraestatal, revogabilidade, indivisibilidade e normação seletiva. Produto do poder
estatal, pode ser cancelado a qualquer tempo pela vontade do povo, que é, nas
democracias, a sua fonte suprema.
3. DIREITO SUBJETIVO FUNDAMENTAL
3.1. Norma de direito fundamental: Classificação de Pontes de Miranda
a) Normas constitucionais bastantes em si e não bastantes em si
Como vimos anteriormente, a característica material mais acentuada das
normas jurídicas é a força de incidência, através da qual se opera a
transformação do suporte fáctico em fato jurídico.
No século XIX, Thomas Cooley tinha consciência de que a matéria era
importante e propôs classificação das normas constitucionais, baseada na
aplicabilidade. Segundo o célebre jurista norte-americano, elas subdividiam-se
em duas categorias: normas auto-aplicáveis (self-executing provisions, selfenforcing) e normas não auto-aplicáveis (not self-executing, not self enforcing).
Rui Barbosa foi um dos grandes divulgadores dessa doutrina em nosso país16.
Pontes de Miranda percebeu que a classificação de Cooley pecava por
tomar como ponto de partida a aplicabilidade e não a incidência. A incidência é
elemento essencial, indispensável, imprescindível à criação do fato jurídico.
Depois da incidência é que se pode cogitar a aplicabilidade, ou seja, a
possibilidade de se invocar autoridade estatal para aplicar a norma que incidiu. A
aplicabilidade pode ser simultânea ou posterior, mas jamais pode anteceder a
15
MIRANDA, Pontes de. Comentários à Constituição de 1967, tomo I, p. 45. São Paulo: RT, 1970, p. 226.
16
SILVA, José Afonso da. Aplicabilidade das Normas Constitucionais. São Paulo: Malheiros, 1998, p.
73.
7
incidência da norma17. Por isso o jurista alagoano preferiu chamá-las regras
jurídicas bastantes em si e regras jurídicas não-bastantes em si. Aquelas
estariam aptas a incidir a partir de sua vigência; estas dependeriam de regras
jurídicas de regulamentação para incidirem e, posteriormente, serem aplicadas18.
A dicotomia regras jurídicas bastantes e não-bastantes em si é de grande
importância para a análise dos direitos fundamentais. Embora existam outras
classificações que buscam explicar a aplicabilidade das normas constitucionais, a
proposta de Pontes de Miranda continua atual e cientificamente correta. Um dos
grandes desafios da hermenêutica constitucional consiste na distinção entre as
normas que estão aptas a incidir e as que dependem de regulamentação
infraconstitucional para atuar como elemento criador do fato jurídico.
b) Normas constitucionais programáticas
A discussão ainda comporta uma questão: qual a natureza normas
programáticas? As normas programáticas são proposições que impõem ao
Estado, em sua atividade legislativa e administrativa, o dever de perseguir
determinados fins, objetivos, diretrizes e caminhos. São dotadas de estrutura
lógica completa, pois possuem suporte fáctico, preceito e, até mesmo, força de
incidência - ainda que dependa de norma infraconstitucional para atuar.
As normas programáticas são cogentes porque vinculam o poder público
ao dever de perseguir os objetivos considerados essenciais ao fortalecimento do
Estado Democrático de Direito. Os deveres estatais consistem quase sempre em
obrigações normativas ou administrativas. Assim, a constitucionalidade das leis e
a validade das ações governamentais estão condicionadas à observância das
diretrizes e objetivos expressos nas normas programáticas.
Também chamadas normas-fins ou normas tarefas pela doutrina
estrangeira, elas manifestam-se como normas bastantes em si: adquirem força de
incidência e coercibilidade no momento de sua promulgação, vinculam a atuação
dos poderes públicos e invalidam os atos jurídicos que lhes forem incompatíveis.
São normas impositivas que não necessitam de legislação reguladora para que
possam atuar. Incidem sempre que o Estado se afastar das diretrizes traçadas pela
Constituição, punindo a violação com a sanção de inconstitucionalidade.
As normas programáticas não são meros aforismos políticos, exortações
retóricas, apelos sentimentais, promessas vazias, boas intenções ou expectativas
de realização dos programas. Elas prescrevem deveres estatais que se
consubstanciam pela intervenção dos órgãos legiferantes ou pela atividade
concretizadora da administração pública e da jurisdição. Os órgãos estatais
devem direcionar suas ações para a realização dos programas constitucionais.
Quando se tratar de programas diretamente relacionados com a efetividade dos
direitos fundamentais, tais normas serão sempre dotadas de impositividade e
justificam a propositura de mandado de injunção ou ação de
17
18
MIRANDA, Pontes de. Comentários à Constituição de 1967, tomo I. São Paulo: Rt, 1970, p. 41.
MIRANDA, Pontes de. Comentários à Constituição de 1967, tomo I. São Paulo: Rt, 1970, p. 126.
8
inconstitucionalidade por omissão. Da mesma forma, serão desconstituídos por
inconstitucionalidade os atos administrativos, normativos e judiciais que se
distanciarem das diretrizes fixadas nas normas programáticas.
Os magistrados também podem decretar a inconstitucionalidade
incidental de norma jurídica que violar os programas prescritos na Constituição.
Nesse aspecto, Canotilho é contundente: “Além de constituírem princípios e
regras definidoras de diretrizes para o legislador e a administração, as normas
programáticas vinculam também os tribunais, pois os juízes têm acesso à
constituição, com o conseqüente dever de aplicar as normas em referência (por
mais geral e indeterminado que seja o seu conteúdo) e de suscitar o incidente de
inconstitucionalidade, nos feitos submetidos a julgamento (cfr. CRP, art. 204º),
dos atos normativos contrários às mesmas normas19”.
3.2. Subjetividade e insubjetividade dos direitos humanos fundamentais
A norma jurídica constitucional ou supra-estatal é condição sine qua non
para os direitos humanos fundamentais. A norma jurídica é meio para a
realização do direito como processo de adaptação social. Só ela é capaz de criar o
fenômeno jurídico. Sem ela não se pode falar de direitos fundamentais, mas de
aspirações sociais, valores éticos, aforismos ou meros interesses individuais.
O direito objetivo antecede e define o fato jurídico. A norma jurídica tem
a função de incidir sobre o suporte fático suficiente. Antes da incidência não há
subjetivação. Só após o nascimento do fato jurídico é que se pode falar em direito
subjetivo, pretensão ou ação, entre outras categorias eficaciais. Portanto, a norma
constitucional ou supra-estatal são definidoras dos direitos fundamentais.
Na Constituição brasileira, os direitos fundamentais estão previstos em
duas classes normativas: (a) normas conferidoras de direitos subjetivos
fundamentais e (b) normas não conferidoras de direitos subjetivos
fundamentais.
a) Normas conferidoras de direitos subjetivos fundamentais
Os direitos fundamentais subjetivos são efeitos de fatos jurídicos.
Portanto, pressupõem a incidência da norma constitucional sobre o suporte
fáctico. Toda vantagem atribuída a alguém, em conseqüência desse fenômeno, é
direito subjetivo20. Nas relações jurídicas, o sujeito de direito é o titular da
vantagem; o sujeito passivo é o devedor em sentido amplo.
O direito subjetivo sempre tem como conteúdo um poder: poder de
exigir do devedor o atendimento do dever, prestação ou obrigação previstos na
norma jurídica; e poder de autodeterminação (faculdade de agir) para a
satisfação de interesses. A posição de titular da vantagem caracteriza o direito
19
CANOTILHO, J.J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. Coimbra: Almedina,
2003, p. 1.180.
20
MIRANDA, Pontes de. Tratado das Ações, tomo I. São Paulo: RT, 1970, p.30.
9
subjetivo e marca a atividade nas relações jurídicas. A posição de devedor da
obrigação ou da prestação traduz a passividade.
Nas relações jurídicas, a posição de vantagem é categoria eficacial que
supõe fato jurídico cujo efeito acarreta um “benefício” ao sujeito de direito em
relação a determinado bem da vida. A idéia de vantagem refere-se ao efeito
jurídico de assegurar ao titular o poder de autodeterminação para satisfação de
interesses subjetivos ou o poder de exigir do devedor o cumprimento de seus
deveres e obrigações. O direito subjetivo consiste no acréscimo de algo à esfera
jurídica do titular em decorrência da incidência da norma jurídica sobre o suporte
fático.
O direito subjetivo fundamental é a situação em que se encontra
determinada pessoa que detém o poder de exigir do Estado e de particulares o
cumprimento de um dever ou de uma prestação, sob pena de sanções previstas no
texto constitucional e na legislação ordinária. Ressalte-se que o seu objeto não é
a prestação em si, mas o poder de exigir o seu cumprimento. É também o poder
de autodeterminação individual, isto é, o poder de fazer ou não fazer – dentro dos
limites da lei – sem qualquer intervenção estatal.
A todo direito fundamental subjetivo corresponde um dever a ser
suportado pelo Estado, sociedade, pessoas físicas ou jurídicas (princípio da
correlatividade dos direitos e deveres). Grosso modo, o direito subjetivo limita a
atuação do sujeito passivo. A passividade caracteriza-se pela existência de dever
destinado à satisfação do direito subjetivo. O descumprimento da prestação ou da
obrigação tem como conseqüência a reparação do dano, caducidade, invalidade
do ato e outras sanções previstas em lei.
Direito subjetivo público é aquele em que um dos sujeitos da relação
jurídica é o Estado, que atua na condição de pessoa jurídica de direito público.
Os direitos humanos fundamentais se enquadram nessa categoria eficacial,
porque o indivíduo é detentor do poder de exigir do Estado a obrigação de nãoingerência em sua esfera de liberdade ou o cumprimento de uma prestação. O
Estado também pode ter direito subjetivo público frente aos particulares. Nessa
situação, o indivíduo é obrigado a alguma prestação21. Exemplo disso, é o dever
fundamental de pagar tributos como forma de assegurar à Administração os
recursos necessários aos programas sociais ou serviços públicos de boa
qualidade.
Por outro lado, as posições subjetivas ativas referem-se a pessoas
individualmente consideradas (princípio da individualidade dos direitos). Elas
são as legítimas titulares de direitos subjetivos fundamentais. Existem
circunstâncias em que o exercício de direitos subjetivos só é possível na
dimensão coletiva. A liberdade de reunião, a liberdade de associação, a liberdade
de expressão e a liberdade de religião são exemplos disso. Embora sejam
vantagens individuais decorrentes da norma constitucional, o titular só pode
exercitá-las em grupo. Não se pode falar em reunião ou associação de uma só
21
AFTALIÓN, Enrique R. VILANOVA, José. RAFFO, Julio. Introducción al Derecho. Buenos Ayres:
LexisNexis Abeledo-Perrot, 2004, p. 521.
10
pessoa. Tampouco de religião professada por apenas um fiel. Mas isso não
significa a existência de uma titularidade coletiva. Ao contrário. Isoladamente,
cada indivíduo é titular desses direitos, é beneficiário das vantagens previstas nas
normas jurídicas. Mas só pode fruí-las em grupo, ao lado de seus semelhantes.
Mesmo nos chamados direitos transindividuais, o que se vê são sujeitos
plurais do mesmo direito e não titulares de direitos distintos. Em muitas
situações, os direitos do meio ambiente, consumidor, crianças, adolescentes,
idosos, portadores de necessidades especiais, etc., são direitos que só podem ser
exercidos coletivamente, embora a titularidade pertença a homens individuais.
Por força de lei, instituições como o Ministério Público, associações e sindicatos
estão legitimadas para o exercício de pretensões e ações na condição de
representantes dos titulares de direitos difusos e coletivos22. A representação foi o
meio encontrado pela técnica jurídica para viabilizar a tutela judicial de direitos
difusos e coletivos. Com isso, as ações civis públicas transformaram-se em
poderosos instrumentos de defesa da cidadania. A eficácia erga omnes de suas
sentenças beneficia milhares de sujeitos de direitos, assegurando-lhes o gozo dos
benefícios legais.
A chamada transindividualidade implica a existência de direitos
subjetivos. Isoladamente, cada pessoa é titular da vantagem. O elemento coletivo
só aparece no exercício da pretensão ou da ação. Todo indivíduo é titular do
direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado (CF, art. 225). Mas há
situações em que, sozinho, não pode exigir do Estado o cumprimento do dever de
preservar o bem protegido. Isto porque a lei condiciona o exercício da pretensão
e da ação à dimensão coletiva em que a pluralidade de sujeitos atua para
satisfazer o direito. Por força da Lei 7.347/85, o Ministério Público é um dos
legitimados para representar os titulares de tal direito subjetivo nas ações civis
públicas. Nessa hipótese, o sistema jurídico confiou a uma instituição
democrática de grande prestígio nacional a tarefa de representar a comunidade na
defesa de direitos ambientais e ecológicos inerentes a cada habitante do Planeta.
Conclusão: o direito subjetivo fundamental (1) pressupõe norma
constitucional ou supra-estatal; (2) a incidência da norma sobre o suporte fático;
(3) o nascimento do fato jurídico. (4) É produto do fato jurídico; (5) implica
correlação entre direito e dever; (6) limita a esfera do sujeito passivo pela
imposição de deveres e obrigações; (7) tem como conteúdo poder de
autodeterminação ou poder de exigir; (8) consiste em vantagem atribuída ao
sujeito de direito em razão da incidência de norma constitucional ou supra-estatal
sobre o suporte fáctico.
b) Normas não conferidoras de direitos subjetivos fundamentais
Na Constituição Federal também é possível identificar normas que
prescrevem deveres sem atribuir posições de vantagem. Significa dizer que o
22
Sobre esse aspecto, cf. Pontes de Miranda, “se a outrem se dá, por lei ou por ato jurídico, exercer
direito, pretensão, ação ou exceção, ocorre a representação legal ou voluntária” (Tratado das Ações,
tomo I. São Paulo: RT, 1970, p. 73).
11
indivíduo não é titular de direito subjetivo, pretensão ou ação relativa ao dever. A
obrigação existe. Quase sempre recai sobre o Estado. Também pode ser imposta
à sociedade, à família ou a todos. Mas o sistema jurídico não atribui à pessoa
posição subjetiva ativa para exigir o seu cumprimento. Isso impede a
individualização da pretensão pela pessoa que, direta ou indiretamente, seria
beneficiária da vantagem. Nem por isso o direito deixa de existir. O direito
existe, mas não se subjetiva. Permanece nos domínios do direito objetivo23.
As garantias institucionais, por exemplo, atribuem ao Estado o dever de
legislar para proteger instituições ou institutos considerados essenciais à
dignidade humana ou à estrutura sócio-política do país. Contudo, as normas
constitucionais de criação não conferem ao indivíduo o direito de subjetivo de
exigir o cumprimento da obrigação estatal.
A insubjetivação também pode ser encontrada nos direitos fundamentais
relativos. Por exemplo, os direitos do consumidor, crianças, adolescentes e
idosos são organizáveis pelo Estado. As normas constitucionais impõem ao
legislador o dever estatal de editar leis que lhes assegurem direitos subjetivos de
proteção. Entretanto, nenhuma das pessoas incluídas nessas categorias é sujeito
de direito para exigir o cumprimento do dever estatal: o direito fundamental
existe mas não se subjetiva.
As pretensões insubjetivadas são acionáveis. Existem remédios jurídicos
processuais como a ação popular, ação civil pública, mandado de injunção, ação
de descumprimento de preceito fundamental e ação de inconstitucionalidade por
omissão, que, de uma forma ou de outra, visam a compelir o Estado a cumprir o
que determina a norma constitucional no que se refere ao exercício dos direitos
fundamentais. Os legitimados para a propositura dessas ações não almejam a
satisfação de interesses individuais, mas a realização do direito objetivo.
3.3. Tipologia das normas de direitos fundamentais
a) Fundamentalidade formal e material
Os direitos fundamentais estão previstos em normas constitucionais ou
supra-estatais. No primeiro caso são chamados direitos formalmente
fundamentais; no segundo, direitos materialmente fundamentais.
Os direitos materialmente fundamentais têm seu fundamento de
existência no direito das gentes. Isto é, existem independente de
constitucionalização. Esta nada mais é que a execução do dever estatal de
positivá-los garanti-los no sistema jurídico nacional. Mesmo que estejam fora do
catálogo, não perdem sua fundamentalidade, dada a sua essência supra-estatal.
b) Direitos fundamentais concentrados e dispersos
Com relação à organização normativa no texto constitucional, os direitos
fundamentais podem ser subdivididos em concentrados e dispersos. São
23
Cf. MIRANDA, Pontes de. Comentários à Constituição de 1967, tomo I. São Paulo: Rt, 1970, p. 135.
12
concentrados quando as normas assecuratórias estão dispostas em um catálogo
de direitos fundamentais, a exemplo do que acontece no Título II da Constituição
Federal.
Também é possível identificar os direitos dispersos que são direitos
fundamentais formalmente constitucionais mas fora do catálogo, que se espraiam
por todo texto constitucional. A dispersão caracteriza opção técnico-legislativa
do constituinte brasileiro. O meio ambiente ecologicamente equilibrado é direito
fundamental supra-estatal por força da Convenção de Estocolmo (1972) e da
Carta do Rio de Janeiro (1992). Acontece que a Constituição Federal não o
inseriu em nenhum dos capítulos do Título II – Dos Direitos e Garantias
Fundamentais. Sua condição de direito fundamental decorre da ordem jurídica
supra-estatal, superior e preexistente ao direito interno.
Outro aspecto curioso de disposição normativa no texto constitucional
refere-se aos direitos sociais. O Capítulo II do referido Título trata Dos Direitos
Sociais. Como visto, o art. 6º estabelece seu conteúdo, agrupando todos os
direitos que o integram. Ocorre, porém, que os demais artigos do Capítulo apenas
asseguram direitos sociais dos trabalhadores ativos e inativos, silenciando sobre
educação, saúde, moradia, lazer, segurança, etc. As normas assecuratórias desses
últimos estão dispersas no texto constitucional, fora do catálogo. Os direitos
sociais remanescentes foram dispostos nos diversos capítulos do Título VIII
(Ordem Social). O fato de estarem fora do catálogo não exclui sua condição de
direitos fundamentais.
4. DIREITOS FUNDAMENTAIS ESTATAIS E SUPRA-ESTATAIS
Nas constituições contemporâneas, os direitos fundamentais subdividemse em estatais e supra-estatais.
4.1. Direitos fundamentais estatais
Os direitos fundamentais estatais são assegurados pela Constituição antes
de serem reconhecidos pelo direito internacional público. São direitos humanos
que refletem valores e princípios que alicerçam a Constituição de determinado
país. Sua positivação pelo direito interno sempre antecede a inserção em tratados
internacionais – o que nem sempre acontece. A existência de tais direitos
depende única e exclusivamente da edição de norma constitucional.
Nascem no Estado e são devidos à pessoa humana por força da norma
constitucional e não por imposição de tratados internacionais. São direitos que
atingiram a fundamentalidade em razão da importância que lhes é atribuída pelo
povo de determinado país.
Os direitos fundamentais estatais são extremamente importantes para o
fortalecimento do Estado Democrático de Direito. São verdadeiros termômetros
do estágio evolutivo das nações contemporâneas. Através deles, é possível
verificar o nível de desenvolvimento da liberdade, igualdade, solidariedade e
13
democracia nos respectivos ordenamentos jurídicos. Nesse particular, a
Constituição de 1988 trouxe avanços significativos no tocante à
fundamentalização de direitos que ainda não foram positivados pela ordem
supra-estatal.
4.2. Direitos fundamentais supra-estatais
Os direitos fundamentais supra-estatais são provenientes da ordem
jurídica internacional. Estão contidos na Declaração Universal dos Direitos do
Homem (1948), nos pactos que a regulamentaram em 1966 e em outras normas
de direito das gentes. Sua incidência não depende de reconhecimento
constitucional, já que pertencem à ordem jurídica exterior e acima do Estado. Em
relação a eles, o Estado atua como definidor de exceções e clarificador de
conteúdo pela mediação do legislador constituinte ou ordinário.
Além disso, os direitos fundamentais supra-estatais são paradigmas de
validade das normas de direito interno, inclusive das normas constitucionais. Por
estarem contidos em ordem jurídica superior, impõem limites tanto ao poder
estatal quanto ao poder constituinte, que são obrigados a incorporá-los à
Constituição, cercando-os das garantias necessárias à sua efetividade. Nesse
sentido, nenhuma das regras do sistema jurídico nacional pode ser interpretada
ou executada em contradição com a Constituição e com as Declarações de
Direito.
Os direitos fundamentais positivados pelo direito internacional são a
prova viva de que é possível que ideologias distintas, com postulados teóricos
antagônicos e, até mesmo, inconciliáveis, cheguem a um consenso sobre valores
universais, comuns a todos os povos civilizados. O exemplo mais contundente
dessa possibilidade pode ser extraído da Declaração Universal dos Direitos do
Homem. Os países signatários, espalhados por todos os continentes, acordaram
em assegurar e garantir em suas Constituições um conjunto de direitos humanos
básicos, comuns a todas as pessoas. O consenso dos sujeitos de direito
internacional fez da Declaração de 1948 a norma fundamental da ordem supraestatal.
No plano internacional, os tratados são auto-suficientes. Entram em vigor
da forma estabelecida em seus textos, antes mesmo de serem recepcionados pelos
países signatários. Em caso de omissão quanto à vigência, aplicam-se os
princípios consuetudinários condensados na Convenção de Viena de 196924.
Os tratados sobre direitos humanos diferenciam-se dos tratados
tradicionais (bilaterais ou multilaterais) e com eles não devem ser confundidos.
Os tratados tradicionais promovem intercâmbios comerciais, tecnológicos,
24
PEROTTI, Alejandro Daniel. Habilitatión Constitucional para la integración comunitaria – Estudio
sobre los Estados del mercosur, tomo I: Brasil y Paraguay. Montevideo: Universidad Austral e Konrad
Adenauer Stiftung, p. 64.
14
políticos, sociais, etc., visando à imposição de obrigações e à fruição de
benefícios mútuos. Já os tratados de direitos humanos regulamentam relações
entre o Estado e o indivíduo ou grupos de indivíduos sob sua jurisdição, bem
como entre Estado e órgãos supra-estatais. Ao estudar a posição da Corte
Interamericana de Direitos Humanos sobre esta matéria, Cynthia González
Feldmann observou que “os modernos tratados sobre direitos humanos, em
particular a Convenção Americana de Direitos Humanos, não são tratados
multilaterais do tipo tradicional, concluídos em função de um intercâmbio
recíproco de direitos para o benefício mútuo dos Estados contratantes25”. E cita a
Opinião Consultiva OC-2/82, de 24 de setembro de 1982:
“Seu objeto e fim são a proteção dos direitos fundamentais
dos seres humanos, independentemente de sua
nacionalidade, tanto frente ao seu próprio Estado como
frente a outros Estados contratantes. Ao aprovar os tratados
sobre direitos humanos, os Estados se submetem a uma
ordem legal dentro da qual eles, visando o bem comum,
assumem várias obrigações, não com relação a outros
Estados, mas em relação aos indivíduos sob sua proteção”.
Os direitos fundamentais supra-estatais são incorporados ao sistema
jurídico brasileiro na condição de (a) normas constitucionais, (b) leis ordinárias
ou de (c) emendas constitucionais.
a) Constitucionalização dos direitos fundamentais
Quando os Estados subscrevem tratados sobre direitos humanos,
assumem o compromisso de adotá-los e protegê-los em seu ordenamento
jurídico, especialmente nas suas Constituições. A submissão dos Estados à ordem
supra-estatal faz com que os direitos fundamentais sejam declarados e não
criados pelo legislador constituinte. Ao constitucionalizá-los, os Estados
declaram expressamente sua subordinação ao direito internacional, mesmo não
fazendo referência expressa ao tratado que os criou. A normatização
constitucional visa basicamente a tornar executórias as normas de direitos
humanos supra-estatais, cumprindo, assim, o compromisso assumido perante os
países signatários.
Com a constitucionalização, os direitos fundamentais supra-estatais são
assegurados ou garantidos no texto constitucional em normas executivas e
declaratórias. Essa técnica jurídica não exige que o constituinte mencione os
tratados de onde foram retirados tais direitos. Basta que a Constituição os
fundamentalize, assegurando-lhes instrumentos de defesa como o cerne
irrestringível e aplicação imediata além de garantias processuais ou
administrativas capazes de concretizá-los. Nesse particular, a Constituição
brasileira é uma das mais avançadas do mundo.
25
FELDMANN, Cynthia Gozález (comp.). El Paraguay frente al sistema internacional de los derechos
humanos. Montevideo: Fundac Konrad-Adenauer Uruguay, 2004, p. 19.
15
No Brasil, a Constituição Federal adotou direitos fundamentais
pertencentes às seguintes classes:

direitos fundamentais supra-estatais (mundiais e regionais);

direitos fundamentais estatais;

princípios fundamentais;

garantias institucionais;

garantias fundamentais.
Uma vez constitucionalizados, os direitos fundamentais também
adquirem força vinculante em relação ao Estado, que passa a ter a obrigação de
respeitá-los, garanti-los e efetivá-los em todas ações legislativas, administrativas
e judiciais. Pontes de Miranda sintetiza a amplitude dessa força com a seguinte
observação:
Os direitos fundamentais ou a) se asseguram como
dirigidos aos legisladores, para que se abstenham de fazer
lei que atinja os bens da vida, dos quais o mais precioso é a
liberdade; ou b) aos outros poderes públicos, para que não
os firam, por serem deixados ao regramento legal, e só a
ele; ou c) aos legisladores, para que, ao fazerem as leis, não
extingam institutos ou instituições, ou d) para que sigam
determinado rumo (regras jurídicas programáticas). 26
b) Recepção dos tratados internacionais como leis ordinárias
Em geral, as negociações internacionais preliminares são confiadas pelo
Chefe de Estado a ministros e diplomatas de carreira. Eles são responsáveis pelos
estudos prévios, pela análise das implicações jurídicas e pela constitucionalidade
dos tratados, convenções e outros atos internacionais. Entretanto, a celebração de
tratados é competência exclusiva do Presidente da República, nos termos do art.
84, inciso VIII, da Constituição Federal.
Firmado o tratado, o Presidente da República escolherá o momento
adequado para encaminhá-lo ao Congresso Nacional. Para isso, remete
mensagem, acompanhada de exposição de motivos, para ser apreciada pela
Câmara dos Deputados e pelo Senado Federal, respectivamente (CF, art. 64 e
65). A discussão da matéria começa na Comissão de Relações Exteriores,
continua na Comissão de Constituição e Justiça e de Redação – a quem cabe
apreciar sua constitucionalidade –, segue para as comissões temáticas da Câmara
dos Deputados e termina em plenário. Enviado ao Senado Federal, o projeto de
decreto legislativo é debatido na Comissão de Relações Exteriores e Defesa
Nacional e no plenário. Em ambas as Casas, o projeto só será aprovado se tiver a
maioria dos votos, exigindo-se a presença da maioria dos parlamentares na
sessão.
26
Miranda, Pontes de. Comentários à Constituição de 1967, Tomo IV. São Paulo: RT, 1967, p. 663.
16
Obtida a aprovação em cada Casa, o Presidente do Senado Federal
editará decreto legislativo (CF, art. 59, VI), autorizando o Presidente da
República a ratificar o tratado. Tal autorização não obriga o Chefe do Executivo
a fazê-lo. Tampouco assegura vigência ao tratado. Simplesmente permite que ele
o promulgue e publique o decreto presidencial no Diário Oficial da União. Se o
Presidente da República desistir ou se negar a ratificá-lo, o tratado jamais terá
aplicabilidade interna. A ratificação, portanto, é conditio sine qua non de
vigência do tratado no direito interno. O processo estará completo quando for
feito o depósito do ato nos órgãos internacionais competentes.
A ratificação é ato presidencial discricionário e irretratável. É a
manifestação expressa do compromisso estatal de executar em seu território as
normas jurídicas de direito internacional. Com a promulgação, o tratado entra em
vigor e pode ser aplicado em todo o país pelas autoridades judiciais e
administrativas. Sua incorporação no sistema jurídico brasileiro se dá em forma
de lei ordinária, submetendo-se, portanto, a controle de constitucionalidade.
É possível que um tratado aprovado pelo Legislativo não seja ratificado.
A recusa em ratificar tratados integra o poder discricionário do Presidente da
República. Entretanto, a decisão pode ser considerada uma quebra do
compromisso contratual, implicando retaliações políticas. Mas inexistem
instrumentos legais destinados a compeli-lo a promulgar o tratado. O art. 7o da
Convenção de Havana assegura-lhe plena liberdade para decidir sobre a matéria.
In verbis: “[1] a falta de ratificação ou a reserva são atos inerentes à soberania
nacional, e, como tais, constituem o exercício de um direito que não viola
nenhuma disposição ou boa forma internacional. Em caso de negativa, esta será
comunicada aos outros contratantes”.
O Presidente da República não tem poderes para ratificar um tratado que
recebeu parecer contrário do Congresso Nacional. A manifestação favorável do
Legislativo é óbice inafastável para a incorporação de tratados ao ordenamento
jurídico brasileiro através do mecanismo denominado ratificação.
Embora estejam incorporados ao ordenamento jurídico, os tratados ainda
são pouco utilizados na vida forense do nosso país. A práxis judiciária ainda não
assimilou completamente o fato de que eles têm força de lei ordinária e podem
ser invocados perante juízes e tribunais para a solução de conflitos
intersubjetivos de interesses. Da mesma forma que qualquer norma jurídica de
direito interno, são dotados de força de incidência, natureza vinculante e
aplicabilidade. Raramente advogados, promotores de justiça e magistrados
invocam os tratados como fundamento das pretensões deduzidas em juízo. A
maioria pensa que eles só servem para disciplinar as relações internacionais, que
eles estão muito distante da nossa realidade judiciária. Sequer percebem que os
tratados sobre direitos humanos são poderosíssimos escudos contra o arbítrio do
poder estatal e violações à dignidade da pessoa humana. A maneira mais eficaz
para expungir essa deformação intelectual consiste em sensibilizar as novas
gerações de operadores do direito para sua importância na defesa dos direitos
humanos fundamentais em território brasileiro.
17
Os direitos humanos supra-estatais passaram a ser incorporados com
mais intensidade nas Constituições a partir da criação da Organização das Nações
Unidas (1945) e da Organização dos Estados Americanos (1948).
Posteriormente, outras organizações regionais, a exemplo da União Européia e
Mercosul, seguiram o exemplo e passaram a exigir de seus membros o
reconhecimento e proteção dos direitos humanos nos respectivos ordenamentos
jurídicos.
Acatando as diretrizes da ONU, o Brasil subscreveu a Declaração
Universal dos Direitos do Homem (1948) e os pactos que a regulamentaram em
1966: Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos e o Pacto Internacional
dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, ambos ratificados pelo Brasil em
24 de janeiro de1992.
Em 1948, a Organização dos Estados Americanos aprovou, em Bogotá, a
Declaração dos Direitos e Deveres do Homem. Tal texto tem grande importância
histórica, pois foi o primeiro instrumento de direito internacional que assegurou
proteção jurídica às liberdades fundamentais, tendo antecedido, por alguns
meses, a Declaração Universal dos Direitos do Homem. Entretanto, o documento
mais importante produzido pela OEA foi, sem dúvida, a Convenção Americana
de Direitos Humanos (1969), mais conhecida como Pacto de São José da Costa
Rica, uma homenagem à cidade em que foi adotada. Além de proclamar direitos
e garantias fundamentais, a Convenção criou a Corte Interamericana de Direitos
Humanos. Foi ratificada pelo Brasil em 25 de setembro de 1992.
Os tratados de direitos humanos são atos jurídicos na medida em que
expressam a vontade de sujeitos de direito internacional. O processo legislativo
para a edição de tratados na ordem supra-estatal está previsto em dois
documentos: a Convenção de Havana (1928) e as Convenções de Viena (1969 e
1986). Ainda em vigor, a Convenção de Havana tem o mérito de ter sido o
primeiro instrumento normativo destinado à confecção de tratados internacionais.
Mas foram as Convenções de Viena que deram uma nova dimensão à matéria na
medida em que disciplinaram minuciosamente as fases de elaboração dos
tratados.
Muitos tratados, convenções, pactos e declarações de direitos humanos
foram adotados pelo Brasil. Alguns foram ratificados pelo Presidente da
República e passaram a integrar o ordenamento jurídico. Outros são
compromissos formais que servem de paradigma para a elaboração de normas
constitucionais e ordinárias. A prova disso são as Declarações de Direitos que
deram origem a leis de proteção aos direitos das crianças, adolescentes,
portadores de deficiências, comunidades indígenas e vítimas de todas as formas
de intolerância e discriminação, etc. 27.
27
Exemplo disso são a Declaração dos direitos da criança, adotada pela Assembléia das Nações Unidas de 20
de novembro de 1959; Declaração sobre princípios sociais e jurídicos relativos à proteção e ao bem-estar das
crianças, com particular referência à colocação em lares de guarda nos planos nacional e internacional, que foi
adotada pela Assembléia Geral das Nações Unidas em 3 de dezembro de 1986; Declaração sobre a eliminação
de todas as formas de intolerância e discriminação fundadas na religião ou nas convicções, que foi proclamada
pela Assembléia Geral das Nações Unidas em 25 de novembro de 1981; Declaração sobre raça e os
18
A ordem jurídica supra-estatal está em permanente evolução. Nos
últimos 50 anos, testemunhamos muitos avanços na proteção aos direitos
humanos. Nesse período, dezenas de tratados foram incorporados aos
ordenamentos jurídicos de países espalhados pelos cinco continentes.
Intervenções humanitárias, inspeções internacionais e outras ações destinadas à
consolidação, expansão, aperfeiçoamento e efetivação dos direitos fundamentais
têm sido implementadas com grande sucesso.
Entretanto, existem muitos obstáculos a serem transpostos. No plano do
direito internacional, o principal objetivo é obter a “ratificação universal” das
chamadas core Conventions das Nações Unidas: os Pactos de 1966, as
Convenções sobre a eliminação de todas as formas de discriminação – racial e
contra a mulher, a Convenção sobre a Tortura e a Convenção sobre os direitos
da criança. Em vários países, esses tratados foram incorporados com tantas
reservas que terminaram descaracterizados28, privando milhares de seres
humanos do exercício de tão importantes direitos fundamentais.
No plano político, existem muitas metas a serem alcançadas, sobretudo o
real comprometimento estatal de efetivação dos direitos sociais, econômicos e
culturais, mediante políticas públicas capazes de combater a fome, a miséria, o
analfabetismo, a violência, o desemprego e a injustiça social que afetam os
segmentos mais pobres da população mundial.
A crise de efetividade dos direitos fundamentais é um dos maiores
problemas da democracia brasileira. Sua solução depende da vontade política dos
governantes em romper com os velhos paradigmas que aprofundam a
desigualdade social e negam a dignidade humana. É preciso destruir as
carcomidas estruturas de poder que impedem o equilíbrio entre a liberdade,
igualdade e solidariedade na vida nacional. Infelizmente estamos muito longe
desse ideal de evolução civilizatória. O quantum despótico ainda é elevado,
necrosa as relações sociais e impede o desenvolvimento sustentável. O
crescimento da civilidade depende da diminuição dos índices de violência,
corrupção, desigualdade social, intolerância racial e religiosa, impunidade e
exploração da mão-de-obra trabalhadora. Assim como os países em
desenvolvimento, o Brasil tem de combater males como a improbidade
administrativa, a falta de alimentos, o desrespeito ao meio ambiente, a tortura, os
preconceitos raciais, aprovada e proclamada pela Conferência Geral das Nações Unidas para a Educação, a
Ciência e a Cultura, reunida em Paris em 27 de novembro de 1978; Declaração universal dos direitos dos povos
indígenas (1993); Declaração sobre a proteção de todas as pessoas contra a tortura ou outros tratamentos ou
penas cruéis, desumanos ou degradantes, que foi adotada pela Assembléia Geral das Nações Unidas em 9 de
dezembro de 1975; Princípios de ética médica aplicáveis à função do pessoal de saúde, especialmente aos
médicos, na proteção de prisioneiros ou detidos contra a tortura e outros tratamentos ou penas cruéis,
desumanos ou degradantes, que foram adotados pela Assembléia Geral das Nações Unidas em 18 de dezembro
de 1982; Declaração de direitos das pessoas deficientes, aprovada pela Assembléia Geral da Organização das
Nações Unidas em 9 de dezembro de 1975; Declaração sobre os direitos humanos dos indivíduos que não são
nacionais do país em que vivem, adotada pela Assembléia Geral das Nações Unidas em 13 de dezembro de
1985 e a Declaração de Pequim adotada pela 4 a Conferência mundial sobre as mulheres: ação para a igualdade,
desenvolvimento e paz, proclamada em 15 de setembro de 1995.
28
TRINDADE, Antônio Augusto Cançado Trindade. Dilemas e desafios da proteção internacional dos direitos
humanos. Educando para os direitos humanos – Pautas Pedagógicas para a Cidadania na Universidade.
In: José Geraldo de Souza Júnior et alli (coord.). Porto Alegre: Síntese, 2004.
19
assassinatos no campo, a subnutrição, o abandono dos meninos de rua, o êxodo
rural e tantos outros problemas que impedem a fruição dos direitos humanos.
c) Recepção constitucional dos tratados internacionais
Em 1998, sustentamos a tese de que o sistema jurídico brasileiro deveria
evoluir para a adoção da técnica de recepção formal da Declaração Universal dos
Direitos do Homem como parte integrante da Constituição Federal. O primeiro
passo havia sido dado pela Espanha e Portugal, que constitucionalizaram o
princípio da interpretação conforme a Declaração Universal e tratados de
direitos humanos29. Mas essa medida era insuficiente. Não bastava interpretar as
normas do sistema jurídico estatal em harmonia com os direitos supra-estatais
revelados por tratados internacionais. Nossa idéia era mais ousada. O propósito
era recepcionar a Declaração Universal dos Direitos do Homem na condição de
emenda constitucional, dar-lhe aplicabilidade imediata e inseri-la no cerne
irrestringível30.
A lacuna até então existente representava um verdadeiro atraso que
precisava ser corrigido urgentemente pela técnica da recepção formal. Tal
medida representaria um importante salto evolutivo na proteção dos direitos
humanos no Brasil. Foi o que aconteceu anos depois com a Reforma do
Judiciário – EC 45/2004 –, que introduziu o parágrafo 3o no art. 5o com a
seguinte redação:
§ 3o Os tratados e convenções internacionais sobre direitos
humanos que forem aprovados em cada Casa do Congresso
Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos
respectivos membros, serão equivalentes às emendas
constitucionais.
Tal norma abriu a possibilidade de recepção constitucional de tratados
internacionais sobre direitos humanos mediante processo legislativo especial. Em
primeiro lugar, é preciso que a matéria seja discutida e aprovada em dois turnos
pela Câmara dos Deputados e pelo Senado Federal. Em ambos os turnos a
aprovação deverá ter o quorum qualificado de 3/5 dos membros de cada Casa do
Congresso Nacional.
Embora a matéria ainda não esteja regulamentada por decreto legislativo,
é certo que a promulgação será feita pelas Mesas da Câmara dos Deputados e do
Senado Federal, a exemplo do que acontece com as emendas constitucionais. A
publicação no Diário Oficial da União ficará a cargo do Congresso Nacional. A
partir daí, o tratado sobre direitos humanos integrará a Constituição brasileira,
vinculando o Executivo, o Legislativo, o Judiciário e particulares aos seus
comandos.
29
Art. 16, n.2 da Constituição de Portugal e art. 10.2 da Constituição da Espanha.
Cf. SARMENTO, George. Direitos fundamentais supra-estatais: paradigma de validade das normas
constitucionais. Revista do Instituto dos Advogados de Pernambuco, v. 1, n. 1, Recife, OAB/PE, 1997, p.
241.
30
20
A inovação constitucional trazida pela chamada Reforma do Judiciário
não deve ser banalizada. A votação em dois turnos e o quorum de 3/5 são
técnicas destinadas a evitar o ingresso indiscriminado de tratados internacionais
na Constituição Federal. Defendemos vivamente a idéia de que apenas a
Declaração Universal dos Direitos do Homem deve ser recepcionada pela
Constituição Federal. Seria o reconhecimento do povo brasileiro de que ela é a
norma fundamental dos direitos humanos supra-estatais. Os demais tratados
continuariam integrados ao nosso ordenamento jurídico através das técnicas já
analisadas (constitucionalização, ratificação, compromissos legislativos e
governamentais).
A Declaração Universal dos Direitos do Homem é uma norma préconstitucional oponível ao poder constituinte? No direito internacional há muita
controvérsia sobre essa questão.
Alguns autores entendem que ela é apenas um texto de conteúdo
filosófico, moral e programático. Outros sustentam que ela tem natureza cogente
e supra-constitucional. A doutrina francesa afirma que ela enuncia tão-somente
princípios gerais destinados a orientar os legisladores, não podendo ser
considerada norma positiva31. A Declaração Universal seria desprovida de
cogência porque formalmente trata-se de Resolução da Assembléia Geral das
Nações Unidas (art. 13, I da Carta da ONU), possuindo apenas força de
recomendação aos constituintes para que respeitem os direitos humanos e as
liberdades fundamentais. Para Jean Roche e André Pouille, a Declaração não tem
nenhum valor em si mesma, já que os direitos por ela consagrados só podem ser
aplicados quando ratificados por pactos32.
Posição contrária é defendida por Jorge Miranda, para quem a
Declaração Universal projeta-se não só sobre os Estados-membros da ONU, mas
também sobre os demais países. Isto porque os princípios nela contidos
representam o mais alto grau de respeito à pessoa humana a que chegou o mundo
civilizado33. Para o constitucionalista português, tais princípios estão em franco
processo de difusão em vários níveis do direito internacional, a exemplo das
Nações Unidas (pactos de 1966 e convenções sobre problemas setoriais), das
organizações especializadas da ONU (OIT, UNESCO, etc.) e das organizações
regionais (Convenção Européia dos Direitos do Homem, de 1950, a Convenção
Interamericana, de 1969 e Carta Africana, de 1981, entre outras)34. Recentemente
foi votado em alguns países o tratado que estabelece a Constituição para a
Europa, contendo uma ampla Carta de Direitos Fundamentais35.
31
Autores franceses que sustentam essa tese: Claude Leclerc, François Luchaire, Jacques Robert, Patrick
Wachsmann e Dominique Turpin.
32
Libertés Publiques. Paris: Mementos Dalloz, 1990, p. 21.
33
MIRANDA, Jorge. A recepção da Declaração Universal dos Direitos do Homem pela Constituição
Portuguesa – Um fenômeno de conjugação de direito internacional e direito constitucional. Revista de Direito
Administrativo, 199:1-2, Rio de Janeiro, 1992, pp. 10-11.
34
Entre os autores nacionais e estrangeiros que defendem a cogência da Declaração Universal dos Direitos do
Homem estão, Pontes de Miranda, Sefton de Azevedo, Jorge Miranda, Genaro Carrió e Norberto Bobbio.
35
La Convention Européenne. Projet de Traité établissant une Constitution pour l’Europe. Luxembourg:
Communautés européennes, 2003.
21
Sob a ótica estritamente dogmática, a Declaração Universal não pode ser
considerada um tratado. Entretanto sua cogência tem sido reconhecida pela
jurisprudência dos Estados que integram a ONU e também pelo direito
costumeiro internacional. Além disso, é considerada pela doutrina majoritária a
norma fundante dos direitos humanos supra-estatais. Isto explica por que ela
encabeça a Carta Internacional dos Direitos Humanos (International Bill of
Rigths), seguida dos Pactos de 1966.
O Brasil assinou a Declaração Universal dos Direitos do Homem em 10
de dezembro de 1948. Nunca houve ato de ratificação, a exemplo do que
acontece com os tratados. Também não era necessário. Embora a discussão sobre
sua cogência em nosso ordenamento jurídico nunca tenha sido levantada –
mesmo durante a ditadura militar de 1964 –, a melhor solução técnica para
expressar o reconhecimento de que ela é norma fundamental, positiva, vinculante
e cogente é, sem dúvida, sua recepção formal pela Constituição Federal, nos
termos do § 3o do art. 5º. Na prática, a Constituição Federal a recepcionaria como
tratado. Tal medida acabaria de vez com a polêmica e fortaleceria o sistema de
proteção constitucional aos direitos humanos supra-estatais.
Não concordamos com o posicionamento de importantes doutrinadores
que sustentam a tese de que todos os tratados internacionais de direitos humanos
ratificados pelo Brasil têm dignidade constitucional em razão do disposto no art.
5o, § 2o da CF. Para eles, a ratificação operaria a incorporação automática com o
status de norma constitucional36. Como já sustentamos anteriormente, tais
direitos nascem na ordem jurídica supra-estatal, propagando-se posteriormente
para o direito interno. Existem, independentemente do reconhecimento e
proteção nacional. Sua condição de direitos fundamentais não está vinculada à
incorporação constitucional ou legislativa. Cabe à técnica jurídica conceber os
mecanismos mais adequados para recepcionar os direitos fundamentais supraestais no ordenamento jurídico brasileiro. O importante é que os países
signatários cumpram os compromissos assumidos e os integrem aos respectivos
ordenamentos jurídicos da maneira que lhes for mais conveniente: normas
constitucionais (CF, art. 5o, § 3o), leis ordinárias (CF, art. 102, III, b) ou políticas
públicas.
Aliás, o compromisso de submissão aos tratados internacionais sobre
direitos humanos tem base constitucional. Em primeiro lugar porque a
prevalência dos direitos humanos é um dos princípios que orientam o Brasil nas
relações internacionais (CF, art. 4o, II). Em segundo lugar porque o catálogo de
direitos fundamentais contido na Constituição Federal não é exaustivo e
excludente. O § 2o assegura a incorporação no ordenamento jurídico pátrio de
outros direitos advindos de tratados internacionais de que o Brasil seja um dos
signatários. Ao contrário do que sustenta a mencionada corrente doutrinária, tal
norma não lhes assegura hierarquia constitucional. Tão-somente declara sua
supra-estatalidade e reafirma o compromisso de assegurar e garantir os direitos
humanos neles contidos.
36
Entre eles Flávia Piovesan. Cf. Direitos humanos e direito Constitucional Internacional. São Paulo: Max
Limonad, 1996, pp. 317-318.
22
5. DIREITOS FUNDAMENTAIS ABSOLUTOS E RELATIVOS
Na Constituição Federal encontramos duas categorias de direitos: os
direitos fundamentais e os direitos não fundamentais. A técnica legislativa ainda
não conseguiu separá-los com precisão, o que tem criado alguns embaraços
hermenêuticos.
Os direitos fundamentais formam a coluna vertebral da Constituição. Por
isso são cercados de instrumentos de proteção como aplicabilidade imediata,
inclusão no cerne irrestringível, força vinculante e garantias processuais capazes
de torná-los efetivos. Sua inclusão no texto constitucional decorre da obrigação
estatal de declarar e executar as normas supra-estais ou internacionais, bem como
de positivar princípios superiores vigentes no direito interno.
Ao estudar a Constituição de Weimar, Kurt Häntzschel identificou duas
classes de direitos: os direitos fundamentais absolutos e os direitos fundamentais
relativos. Os primeiros eram anteriores e superiores ao Estado, cabendo à lei
excepcionalmente impor-lhes limitações. Os segundos tinham o seu conteúdo e
limites fixados pela norma estatal.
Carl Schmitt sustentava que os autênticos direitos fundamentais eram os
absolutos – os direitos do homem individual. Para o constitucionalista alemão,
tais direitos justificavam-se pelo princípio da distribuição do estado burguês de
direito: de um lado uma esfera de liberdade ilimitada (em princípio); do outro, a
possibilidade de ingerência do Estado, sujeita a limites, controle e medições. Em
outras palavras, a liberdade era a regra e a ingerência, a exceção37.
Os direitos relativos não teriam a mesma intensidade por serem produto
do direito estatal, portanto passíveis de revogação. Essa posição encontra-se
totalmente superada em razão do crescente processo de internacionalização dos
direitos humanos, sobretudo os sociais, econômicos, culturais, difusos e
coletivos. O fato de serem organizados pelo direito estatal não lhes tira a
fundamentalidade nem os torna menos importantes que as liberdades públicas.
Entretanto, a dualidade direitos fundamentais absolutos (§1) e relativos
(§2) ainda é importante como formulação teórica. É o que veremos a seguir.
5.1. Direitos fundamentais absolutos
Os direitos fundamentais absolutos são aqueles que se erguem sobre o
Estado por força de tratados, cabendo a lei estabelecer os limites de sua
incidência. O Estado atua como “definidor de exceções”. Para que não percam
sua essência, o Estado só tem legitimidade para restringi-los dentro das fronteiras
permitidas pelo direito internacional. Nesse grupo estão os direitos supraestatais, provenientes de ordem jurídica superior e preexistente ao direito interno.
A liberdade de expressão, a liberdade de locomoção, a liberdade reunião, o
37
SCHMITT, Carl. Teoría de la Constitución. Madrid: Alianza Universidad Textos, 1992, pp. 170-172.
23
direito à intimidade, à imagem e à vida privada são alguns exemplos dessa
categoria.
Podemos expressar os direitos fundamentais absolutos pela seguinte
fórmula:
DFAb = supra-estatalidade + incorporação ao ordenamento38.
Na Constituição Federal, a presunção de inocência está expressa com a
seguinte redação: “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado
de sentença penal condenatória”. Trata-se de direito fundamental supra-estatal
previsto no art. 11 da Declaração Universal dos Direitos do Homem e art. 8.2 da
Convenção Americana sobre Direitos Humanos – Pacto de São José da Costa
Rica, entre outros tratados internacionais. Como seu fundamento de existência
encontra-se em ordem jurídica anterior e superior à ordem estatal, a norma
constitucional não o criou. Ou seja, apenas executou o compromisso de positiválo no ordenamento jurídico nacional. Mesmo que isso não acontecesse, a
presunção de inocência continuaria a existir como direito fundamental, podendo
ser aplicada pelos juízes brasileiros.
Em síntese, os direitos fundamentais absolutos não são produto da norma
constitucional. Sua origem transcende a ordem jurídica nacional e se impõe
inexoravelmente a ela. A positivação nas Constituições constitui suporte fático
nuclear da própria criação do Estado Democrático de Direito. São direitos que
vinculam o poder constituinte a declará-los, executá-los e protegê-los na Lei
Fundamental. Entretanto o Estado pode impor limitações legais ao seu exercício
desde que não afete o seu conteúdo essencial.
5.2. Direitos fundamentais relativos
Vimos que os direitos absolutos nascem na ordem jurídica supra-estatal e
vinculam os países à obrigação de reconhecê-los e protegê-los em suas
Constituições. Já os direitos relativos tem como principal característica a
organizabilidade pelo direito interno, não importando se eles são estatais ou
supra-estatais.
Pontes de Miranda demonstrou que o que caracteriza os direitos relativos
não é sua origem, mas o dever estatal de organizá-los na legislação ordinária. Em
suas palavras, são direitos que existem conforme a lei os organizar. Muitas vezes
a ordem jurídica supra-estatal (mundial ou regional) impõe aos países signatários
de tratados a obrigação de produzir leis destinadas a organizar o exercício de
determinados direitos fundamentais. O mesmo pode acontecer com a
Constituição ao eleger como fundamentais determinados direitos estatais.
Vários direitos fundamentais relativos podem ser encontrados na
Constituição de 1988. Todos são organizáveis pela lei brasileira e não impostos
pela ordem supra-estatal. A Constituição, por exemplo, assegurou os direitos
autorais e a transmissão hereditária pelo tempo que a lei fixar (art. 5o, XXXVII).
38
Incorporação no ordenamento = constitucionalização, ratificação ou recepção constitucional.
24
O mesmo acontece com a desapropriação por necessidade ou utilidade pública
(CF, art. 5o, XXIV), a impenhorabilidade da pequena propriedade rural (CF, art.
5o, XXVI), a defesa do consumidor (CF, art. 5º XXXII), a proteção aos idosos
(CF, art. 229) e portadores de deficiência ( CF, arts. 7º, XXI, 23, II, 24, XIV) –
todos organizáveis por leis ordinárias.
6. DIREITOS FUNDAMENTAIS ASSEGURADOS
Os direitos fundamentais são assegurados quando a norma constitucional
atribui sanções cíveis, penais ou administrativas para os atos ilícitos que os
violarem. Podemos defini-los pela seguinte fórmula:
DFA = constitucionalização + sanção.
Explicamos. Assegurados são direitos fundamentais estatais ou supraestatais que foram constitucionalizados na ordem jurídica interna com atribuição
de penas para atos de violação. As normas constitucionais assecuratórias
estabelecem sanções determinadas ou indeterminadas aos autores de atos
jurídicos contrários a direito (= infração às normas de direitos fundamentais).
De forma geral, as normas constitucionais assecuratórias de direitos
fundamentais são cogentes, isto é, proíbem ou impõem determinada conduta.
Para Pontes de Miranda, “proibir, em direito, é atribuir a alguém direito,
pretensão, ação, exceção para que se proíba; impor, em direito, é atribuir a
alguém direito, pretensão, ação, exceção para que se imponha39”. Dessa forma, a
cogência dos direitos fundamentais está na obrigatoriedade da conduta e também
na incondicionalidade da incidência da norma constitucional para atribuir ao
autor do ato ilícito efeitos jurídicos contrários aos seus interesses.
Alguns exemplos de normas cogentes de direitos fundamentais: (a) “não
será concedida extradição de estrangeiro por crime político ou de opinião (CF,
art. 5º, LII)”; (b) “ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o
devido processo legal (CF, art. 5º, LIV)”; (c) “são inadmissíveis, no processo, as
provas obtidas por meios ilícitos (CF, art. 5º, LVI)”. Significa dizer que as
normas constitucionais incidem para proibir conduta do Estado, impondo-lhe
obrigação de não fazer. São, portanto, normas cogentes proibitivas.
Por outro lado, existem normas assecuratórias que vinculam o Estado a
prestações positivas, verdadeira obrigações de fazer. Daí serem chamadas
normas cogentes impositivas: “é assegurada, na forma da lei, a prestação de
assistência religiosa nas entidades civis e militares de internação coletiva (CF,
art. 5º, VII)”; (e) “às presidiárias são asseguradas condições para que possam
permanecer com seus filhos durante o período de amamentação (CF, art. 5º, L)”;
(f) “o Estado prestará assistência jurídica integral e gratuita aos que
comprovarem insuficiência de recursos (CF, art. 5º, LXXIV)”;
Portanto, a violação de normas cogentes tem como conseqüência a
imposição de medidas desvantajosas para o responsável pelo ato ilícito. As
39
MIRANDA, Pontes de. Tratado de Direito Privado, tomo I. Campinas: Bookseller, 1999, p. 117.
25
sanções cíveis, penais ou administrativas surgem como uma resposta do sistema
jurídico aos atos contrários ao direito. São punições impostas pelo sistema
jurídico aos responsáveis por infração à lei.
6.1. Classificação dos atos ilícitos na teoria de Marcos Bernardes de Mello
Em importante estudo sobre o tema, Marcos Bernardes de Mello
demonstra que, no tocante à eficácia jurídica, os atos ilícitos podem ser
indenizativos (a), caducificantes (b) e invalidantes (C). Indenizativos são os atos
ilícitos que têm como efeito o dever de indenizar os danos causados pelo agente.
Os caducificantes implicam a perda ou suspensão de direitos na sua forma mais
ampla. Os invalidantes, por fim, são os que têm como conseqüência a invalidade
– nulidade ou anulabilidade40.
a) Sanções indenizativas
Os atentados contra a vida privada, a imagem ou a intimidade que
acarretem danos morais a pessoas físicas ou jurídicas são indenizáveis por força
do art. 5º, X, da CF. O inciso LXXV do mesmo artigo impõe ao Estado o dever
de indenizar ao condenado por erro judiciário assim como o que ficar preso além
do tempo fixado na sentença. Tomando como base a formulação teórica acima
exposta, podemos dizer que ambas as normas constitucionais impõem ao autor
das violações aos mencionados direitos fundamentais o dever de indenizar as
vítimas pelos danos causados. Nessas situações, a norma constitucional atribui
sanções pecuniárias (indenizativas) a serem pagas pelo Estado ou por particulares
em razão da prática de ato ilícito.
b) Sanções caducificantes
O agente público que pratica improbidade administrativa no exercício da
função, importando enriquecimento ilícito, prejuízos ao erário ou violação aos
princípios da administração pública está sujeito às seguintes penas: perda de bens
e valores acrescidos ilicitamente ao patrimônio, ressarcimento integral do dano,
perda da função pública, suspensão dos direitos políticos, pagamento de multa
civil, proibição de contratar com o poder público e proibição de receber
incentivos fiscais e creditícios. Com exceção do ressarcimento do dano, todas as
sanções previstas na Lei 8.429/92 têm natureza caducificante, pois implicam a
perda de direitos políticos, civis e patrimoniais do agente público ímprobo. Tais
sanções decorrem da regulamentação do parágrafo 4º do art. 37 da Constituição
Federal, que assegurou o direito fundamental supra-estatal à probidade
administrativa e à proteção do patrimônio público, executando assim as
exigências contidas na Convenção da OCDE para o combate ao suborno dos
40
MELLO, Marcos Bernardes de. Teoria do Fato Jurídico – Plano da Existência. São Paulo: Saraiva, 2003,
p. 249.
26
funcionários públicos estrangeiros nas transações comerciais internacionais
(1993) e na Convenção Interamericana contra a corrupção (1996).
Podemos incluir os crimes como atos ilícitos caducificantes na medida
em que as sanções previstas nas leis penais implicam a perda de direitos como a
liberdade (reclusão, detenção), a suspensão de direitos políticos, perda de cargos
públicos e, até mesmo, efeitos patrimoniais como o pagamento de multas ou
expropriação de bens.
c) Sanções invalidantes
Por fim, a violação de direitos fundamentais assegurados pode ter como
conseqüência a inconstitucionalidade (invalidade) do ato jurídico. Por exemplo, o
art. 5º, LXXIII, estabelece a sanção de nulidade de todo ato jurídico lesivo ao
patrimônio público ou entidade de que o Estado participe, à moralidade
administrativa, ao meio ambiente, ao patrimônio histórico e cultural. Dessa
forma, qualquer cidadão está legitimado para propor ação popular objetivando a
decretação da nulidade por infração à Constituição de todo ato administrativo
lesivo a esses bens da vida , impedindo que o responsável atinja os objetivos
almejados.
A sanção de invalidade surge como efeito do ato contrário a direito,
inclusive a violação a direitos fundamentais. Tal raciocínio se aplica também às
leis e atos normativos. Se a edição das espécies normativas implica infração à
norma constitucional assecuratória, o ordenamento jurídico impõe a sanção de
inconstitucionalidade.
É de se observar, contudo, que a sanção de nulidade por violação a
direitos fundamentais só tem cabimento se a norma jurídica não estabelecer outra
forma de sanção, seja indenizativa ou caducificante. Pontes de Miranda observa
que “a infração de regra jurídica cogente proibitiva tem sempre, por sanção, a
nulidade, salvo se outra é a sanção adotada na lei41”. O mesmo posicionamento
doutrinário é defendido por Marcos Bernardes de Mello, para quem “sempre que
há violação de norma cogente há invalidade, desde que a norma não preveja,
especificamente, outra sanção para sua infringência42”.
Há muitas sanções por contrariedade a direitos fundamentais que não
estão previstas na Constituição, mas na legislação ordinária. Isto ocorre quando a
norma constitucional não é bastante em si, dependendo de edição de lei para
incidir. A sanção existe, mas só se exterioriza com a vigência da lei
regulamentadora. A Constituição Federal reservou à lei a punição para qualquer
discriminação atentatória dos direitos e liberdades fundamentais (CF, art. 5º,
XLI). Também considerou o racismo crime inafiançável e imprescritível,
cabendo a lei estabelecer as penas (CF, art. 5º, XLII). Também é crime
inafiançável e imprescritível ação de grupos armados, civis ou militares, contra a
41
MIRANDA, Pontes de. Tratado de Direito Privado, tomo IV. Campinas: Bookseller, 1999, p. 247.
MELLO, Marcos Bernardes de. Teoria do Fato Jurídico – Plano da Existência. São Paulo: Saraiva, 2000,
p. 250.
42
27
ordem constitucional e o Estado de Democrático (CF, art. 5º, XIV). O mesmo
acontece com o crime de tortura, tráfico ilícito de entorpecentes, terrorismo e os
definidos pela lei como crimes hediondos (CF, art. 5º, XLIII). Em todos esses
exemplos, as sanções impostas aos atos ilícitos violadores de direitos
fundamentais dependem de lei ordinária.
Ressalte-se, ainda, que as limitações a direitos fundamentais só podem
ser impostas pela norma constitucional ou pela lei ordinária. A limitação
decorrente de ato normativo é inconstitucional, pois tal espécie de regra jurídica é
inidônea para restringir o exercício das liberdades fundamentais. Se isso
acontece, há clara violação constitucional punida com a sanção de nulidade. Com
essa providência, evita-se que os fins ilícitos perseguidos pela Administração
Pública se concretizem. Essa é a resposta que o ordenamento dá às tentativas dos
governantes despóticos que pretendem subjugar a dignidade da pessoa humana
através da edição de atos normativos restritivos a direitos fundamentais estatais e
supra-estatais.
7. GARANTIAS INSTITUCIONAIS
Na Alemanha, Carl Schimitt desenvolveu a teoria das garantias
institucionais com o objetivo de proteger estruturas consideradas realidades
sociais objetivas. A doutrina alemã nos legou a seguinte classificação: (1)
garantias jurídico-públicas (Institutionelle Garantien) e (2) garantias jurídicoprivadas (Institutsgarantie). As primeiras preservam institutos ou instituições de
direito público; as segundas, de direito privado.
As garantias institucionais não podem ser confundidas com direitos
subjetivos fundamentais. Elas não asseguram aos indivíduos poder de exigir. A
norma constitucional garante especial proteção a determinadas instituições para
inibir o arbítrio do legislador sem, no entanto, legitimar cidadãos para a
propositura de remédios jurídicos processuais. Elas são organizadas pelo direito
interno mediante reserva de lei. Carl Schimitt acentua a distinção entre ambos
sustentando que as garantias têm estrutura lógica e jurídica distinta de um direito
fundamental. Para ele, a previsão constitucional também tem a finalidade de
impossibilitar sua supressão por via legislativa ordinária43.
A principal característica das garantias institucionais é o compromisso
jurídico-constitucional de perenidade das instituições que refletem valores
indissociáveis da organização social. A garantia será organizada exclusivamente
pela lei nacional. O Brasil é livre para criar o seu próprio modelo de proteção ou
transplantar modelos adotados por sistemas jurídicos estrangeiros.
As garantias institucionais manifestam-se como imposições legiferantes
e implicam prestações positivas do Estado. Mas não são direitos subjetivos, dada
a inexistência de pretensões jurídicas individuais passíveis de justiciabilidade. A
norma constitucional obriga o legislador ordinário a preservar determinadas
estruturas jurídicas, mas não assegura aos beneficiários diretos ou indiretos o
43
SCHMITT, Carl. Teoría de la Constitución. Madrid: Alianza Universidad Textos, 1992, p. 175.
28
direito de exigir o seu cumprimento. De fato, tais garantias são direitos
insubjetivados, na medida em que comina obrigações estatais sem atribuir
legitimidade individual para exigir o seu cumprimento. Daí Canotilho afirmar
que “as garantias institucionais não garantem aos particulares posições subjetivas
autônomas44”
Para Vieira de Andrade, “por vezes, a Constituição estabelece regras ou
impõem deveres, designadamente às entidades públicas, com a função principal e
a intenção de garantir, realizar e promover a dignidade da pessoa humana
centrada em posições subjetivas, mas não investe os indivíduos em situação de
poder ou de disponibilidade com esse objeto específico”. E continua:
“Esses « deveres sem direitos» constituem uma zona de proteção das posições
subjetivas no âmbito da qual os efeitos jurídicos se reportam directamente às
normas, em termos que não são, em geral, susceptíveis de referenciação
individual (não são subjetiváveis) – constituem, por isso, figuras que apresentam
um caráter simultaneamente objetivo e fundamental”45. As garantias
institucionais criam estruturas sociais, políticas ou administrativas capazes de
concretizar os direitos fundamentais.
Tradicionalmente, os institutos e as instituições estão cristalizados na
vida social do país. Fazem parte da cultura, dos costumes, da tradição. Além de
realidades objetivas, as garantias institucionais são essenciais à dignidade
humana, à qualidade de vida e à justiça social. Relacionam-se com os direitos
fundamentais porque sua atuação se desenvolve nas dimensões da liberdade,
igualdade, solidariedade e democracia. A norma constitucional impõe ao
legislador o dever protegê-las no ordenamento jurídico. Ao mesmo tempo o
proíbe de desfigurá-las, adulterá-las, deturpá-las ou suprimi-las. Dessa forma, é
inconstitucional toda norma jurídica que, de uma forma ou de outra, afete a
essência da garantia institucional.
Uma vez garantidos, os institutos e instituições devem ser protegidos no
ordenamento jurídico. O legislador ordinário pode estabelecer limites ao seu
conteúdo desde que não deforme sua essência. Ou seja, a atuação legislativa deve
respeitar o mínimo essencial das referidas estruturas, sob pena de sofrer a sanção
de inconstitucionalidade.
Alguns direitos fundamentais só podem ser exercitados no âmbito de
determinadas estruturas jurídicas, pois seus efeitos são essencialmente
institucionais. Se elas desaparecem ou se degradam, tais direitos deixam de ser
desfrutados por seus titulares. Assim, haverá inconstitucionalidade sempre que
ocorrer modificação de norma jurídica que implique descaracterização da
instituição ou do instituto protegido pela Constituição46.
A norma constitucional obriga o Estado a promover todos os meios
legislativos e administrativos necessários para que a instituição seja protegida em
44
CANOTILHO, J.J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. Coimbra: Almedina,
2003, p. 397.
45
ANDRADE, José Carlos Vieira. Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976.
Coimbra: Almedina, 2004, p. 143.
46
FAVOREU, Louis et alli. Droit des libertés fondamentales. Paris : Dalloz, 2003, p. 82.
29
território nacional. A constitucionalização em forma de direito fundamental é o
reconhecimento de que a instituição é essencial ao funcionamento do Estado
Democrático de Direito e a garantia de que ela será organizada pelas leis
brasileiras. Caso o Estado não promova as medidas necessárias para
regulamentá-la incorre em inconstitucionalidade, justificando a propositura da
ação de inconstitucionalidade por omissão.
Na Constituição brasileira, as garantias institucionais são largamente
utilizadas para assegurar o funcionamento das principais instituições
democráticas, a exemplo do Poder Legislativo (CF, art. 53), Poder Judiciário
(CF, art. 95), Ministério Público (art. 128. § 5º, I) e Defensoria Pública (CF, art.
133, § 2º). Através delas, os membros dessas instituições poderão exercer
plenamente as funções que lhes foram confiadas pelo Constituinte, sem o temor
de represálias por parte dos detentores do poder político ou das forças armadas.
8. DIREITOS FUNDAMENTAIS NEGATIVOS E POSITIVOS
8.1. Direitos fundamentais negativos
Os constitucionalistas clássicos só consideravam fundamentais os
direitos negativos. Carl Schimitt só reconhecia como tais os direitos de liberdade
individual. Os direitos a prestações positivas do Estado não se subjetivavam. Para
Esmein, “les droits individuels présentent tous un caractère commun ; ils limitent
les droits de l’État, mais ne lui imposent aucun service positif, aucune prestation
au profit des citoyens. L’État doit s’abstenir des certaines immixtions, pour
laisser libre l’activité individuelle ; mais l’individu, sur ce terrain, n’a rien de
plus à réclamer47”.
As normas assecuratórias de direitos fundamentais negativos impõem
limites ao poder do Estado sobre a esfera individual da pessoa humana e
estabelecem o dever estatal de não-ingerência. O caráter supra-estatal da maior
parte dos direitos fundamentais também impede que o legislador constituinte ou
ordinário imponha-lhes restrições arbitrárias ou ilegítimas.
Os direitos fundamentais negativos são dirigidos ao Estado em defesa da
esfera individual da pessoa humana. São direitos que já se cristalizaram nas
Constituições democráticas, atingindo um alto grau de supra-estalidade. Apenas a
lei – inclusive a Constituição – pode limitá-los. Agem como poderosos
instrumentos de luta contra o arbítrio, a violência e o despotismo do poder
político na medida em que impõem ao Estado deveres negativos e positivos.
As liberdades fundamentais presumem que o Estado reconhece aos
indivíduos a faculdade de exercer determinadas atividades sem ser molestado por
quem quer que seja. Assim, os direitos fundamentais negativos asseguram um
47
ESMEIN, A. Éléments de droit constitutionnel français e comparé. Paris: Editions Panthéon Assas,
2001, p. 548.
30
atuar sem coação, cabendo ao poder público o dever de realizar as condições
necessárias ao seu exercício48.
Também são chamados direitos de defesa, pois protegem a esfera de
liberdade individual contra interferências externas ilegais, inclusive dos órgãos
estatais (Executivo, Legislativo e Judiciário).
8.2. Direitos fundamentais positivos
Os direitos fundamentais positivos são aqueles que impõem ao Estado
prestações administrativas ou legislativas destinadas a satisfazer os direitos
sociais, econômicos, culturais, difusos e coletivos. Caracterizam-se por serem
verdadeiros pouvoirs d’exiger que conferem aos seus titulares a possibilidade de
exigir do Estado prestações relativas ao bem-estar do indivíduo e da sociedade.
Para Pontes de Miranda, são direitos que obrigam o Estado “a alguma prestação,
ou em simples regra programática, ou em regra de direito objetivo com sanção ou
sem ela, ou em regra de que decorram direito objetivo, pretensão e
acionabilidade49”. Em outras palavras, as regras de direitos fundamentais
positivos:
a) impõem ao Estado prestações civilizatórias a serem executadas
mediante intervenção legislativa ou adoção de políticas públicas destinadas a
concretizar os direitos sociais;
b) apontam diretrizes, metas e objetivos a serem alcançados pelo
Estado, seguindo a orientação contida nas regras programáticas;
c) estabelecem – em situações específicas – verdadeiros direitos
subjetivos e sanções a serem aplicadas pela autoridade judiciária.
O constitucionalista português José Carlos Vieira de Andrade também
defende a concepção de que os direitos fundamentais positivos “são direitos que
impõem tarefas, que pressupõem e necessitam de uma definição ulterior, são
direitos sob condição; são, ao mesmo tempo, da perspectiva do Estado, deveres
de concretização, de ação que permita sua existência completa50”. Para ele, os
direitos sociais não se voltam contra o Estado (lógica Estatal), mas sua realização
ocorre através do Estado, pela ação concreta nos mais diversos campos do setor
público51.
Os direitos fundamentais positivos têm origem socialística, ou seja,
nascem dos princípios da igualdade e da solidariedade. Dotados de supraestatalidade, exteriorizam-se nas Constituições contemporâneas como direitos
sociais, econômicos, culturais, difusos e coletivos. São direitos que obrigam o
Estado a prestações concretas como a edição de leis ou a promoção de políticas
48
MORANGE, Jean. Las Libertades Públicas. México: Fondo de Cultura Económica, 1981, p.8.
MIRANDA, Pontes de. Democracia, Liberdade, Igualdade (os três caminhos). São Paulo: Bookseller,
2002, p. 376.
50
ANDRADE, José Carlos Vieira de. Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976.
Coimbra: Almedina, 1987, p. 67.
51
ANDRADE, José Carlos Vieira de. Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976.
Coimbra: Almedina, 1987, p. 50.
49
31
sociais voltadas para a tutela da educação, saúde, trabalho, moradia, lazer,
segurança pública, etc.
Algumas vezes, as prestações têm natureza erga omnes, sendo
igualmente impostas ao Estado e à sociedade. Ao assegurar o direito ao meio
ambiente ecologicamente equilibrado, o art. 225 da Constituição Federal impõe
ao poder público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as
presentes e futuras gerações. Da mesma forma o princípio da prioridade absoluta
da criança e do adolescente obriga a família, a sociedade e ao Estado assegurarlhes o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à
profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência
familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência,
discriminação, exploração, violência crueldade e opressão (CF, art. 227).
Os exemplos acima mostram que a existência prestação imposta ao
Estado e à sociedade civil – conjunta ou separadamente – é a característica
preponderante dos direitos fundamentais positivos. Por outro lado, a proibição de
o Estado limitar ou restringir as liberdades fundamentais fora do vazio deixado
pelo direito internacional é a principal marca dos direitos fundamentais
negativos.
Contudo, é preciso ressaltar que a dicotomia direitos fundamentais
positivos e negativos como categorias eficaciais estanques não tem razão de ser.
Nas Constituições modernas, as liberdades fundamentais e os direitos sociais
estão em permanente conexão. É por isso que Jorge de Miranda observa que os
direitos de liberdade são, ao mesmo tempo, direitos de libertação do poder e
direitos à proteção do poder contra outros poderes, enquanto que os direitos
sociais apresentam-se como direitos de libertação da necessidade e direitos de
promoção52.
A conexão entre direitos fundamentais negativos e positivos já era
percebida por Léon Duguit nas primeiras décadas do século XX. Para ele a ação
do Estado sofria, ao mesmo tempo, limitações positivas e negativas. De um lado
o Estado tinha o dever de não criar entraves ao livre desenvolvimento da
atividade física, intelectual e moral do indivíduo; de outro, estava obrigado a
limitar a atividade individual para que houvesse o livre desenvolvimento da
atividade de todos53.
Desde a Declaração de 1789 até meados do século XX, os direitos
humanos restringiram-se às liberdades fundamentais. O dever do Estado era
predominantemente negativo, o que exigia uma postura de não-ingerência e de
proteção à esfera individual contra atentados externos. Com o advento do
Welfare State, o Estado assumiu novas obrigações e tornou-se devedor de
prestações positivas destinadas a garantir a fruição dos direitos de liberdade,
democracia, igualdade e solidariedade.
52
MIRANDA, Jorge. Os Direitos fundamentais – sua dimensão individual e social. Revista dos Tribunais,
out/dez, Recife, 1992, p. 201.
53
DUGUIT, Leon. Traité de Droit Constitutionnel, v. 5. Paris : Éditions Cujas, s/d., p. 2.
32
No constitucionalismo contemporâneo, as dimensões negativa e positiva
dos direitos fundamentais são duas faces da mesma moeda. A inviolabilidade de
domicílio é direito que impõe simultaneamente ao Estado o dever de não penetrar
na residência sem o expresso consentimento do proprietário e de dar todas as
garantias – legais e administrativas – de que o titular do direito fundamental
possa fruí-lo livremente. A liberdade de locomoção implica não só o dever estatal
de não criar obstáculos à livre circulação do indivíduo em território nacional, mas
também prestações positivas para que ela possa ser exercida em sua plenitude.
Além de adotar uma atitude de não-intervenção, o Estado está obrigado a editar
leis e desenvolver políticas de segurança pública destinadas a proteger a esfera da
intimidade do cidadão.
A teoria geral do direito acolhe como dado científico a correlatividade
entre direitos e deveres. Para cada direito fundamental subjetivo o Estado tem o
dever de satisfação, que se desenvolve em três direções: (a) dever de abstenção
na esfera de liberdade do titular; (b) dever de proteção dos direitos fundamentais
contra agressões externas; (c) dever de promoção54 de prestações fácticas
(políticas e serviços públicos) ou normativas (imposições legiferantes) destinadas
à satisfação dos direitos fundamentais.
Quase sempre existe uma relação de complementaridade entre as
dimensões negativa e positiva dos direitos fundamentais. Como vimos, o Estado
fica vinculado ao cumprimento de deveres em diversos níveis. O mesmo direito
fundamental pode subjetivar-se para assegurar ao seu titular o poder de inibir a
ação estatal na esfera de sua liberdade individual ou para exigir do Estado
prestações positivas como políticas sociais, serviços públicos de boa qualidade,
produção jurislativa concretizadora, etc. Essa complementaridade não impede,
contudo, a autonomia de cada dimensão. A pretensão pode relacionar-se,
separada ou conjuntamente, com a obrigação de não-fazer ou com a prestação
positiva.
9. ESPECIALIZAÇÃO DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS
A técnica da especialização dos direitos fundamentais remonta ao século
XVIII. A Declaração de 1789 já fazia distinção entre direitos do homem e
direitos dos cidadãos. Os primeiros irradiavam indistintamente para todos os
seres humanos, sem qualquer distinção de nacionalidade, raça, religião, idade,
condição social ou financeira. Os segundos restringiam-se aos detentores do
status de cidadão, isto é, os que podiam fruir da liberdade política, da
participação na vida institucional do país.
Os direitos do homem tinham natureza pré-social enquanto os direitos
dos cidadãos estavam ligados à existência do Estado. Embora ambos fossem
fundamentais, os primeiros eram mais genéricos e consistiam em direitos
subjetivos cuja titularidade se espraiava para toda a espécie humana. Tratavam-se
54
O dever de promoção é mais comum nos direitos sociais. Mas não é exclusivo dessa categoria de
direitos. É possível que o exercício de determinado direito individual esteja condicionado a prestações
positivas do Estado, a exemplo de políticas sociais, serviços públicos, campanhas educativas, etc.
33
de direitos anteriores e superiores à sociedade civil que se incorporavam a cada
ser humano, sem levar em conta sua condição de cidadão. Entre eles estavam a
liberdade, igualdade, segurança jurídica e resistência à opressão. Os direitos do
cidadão só poderiam ser exercitados em determinada organização social.
Manifestavam-se pelo direito ao sufrágio e pelo direito de ocupar cargos públicos
e eletivos.
A Declaração Universal de 1948 abriu os caminhos para a consagração
de novos direitos fundamentais. Os tratados internacionais tornaram-se mais
específicos na proteção de grupos minoritários, como crianças, adolescentes,
idosos, portadores de deficiência, entre outros. A especialização não distorceu a
universalidade que caracteriza os direitos fundamentais. Ao contrário. A tutela
jurídico-internacional de grupos sociais vulneráveis mostrou-se um forte
mecanismo de combate à violação dos direitos humanos. Foi a matriz da
arquitetura constitucional e legislativa de proteção dos direitos difusos e
coletivos nos países democráticos.
Além da especialização criada por tratados internacionais, existem
direitos que derivam de outros direitos fundamentais. Assim, existem normas
jurídicas, geralmente não-escritas, que retiram seu substrato do conteúdo de
direitos fundamentais positivados em constituições ou tratados internacionais.
Em resumo, a especialização dos direitos fundamentais desenvolve-se
em duas direções: (a) derivação do conteúdo de determinados direitos
fundamentais; (b) necessidade de proteção específica a grupos sociais
vulneráveis.
A principal distinção entre elas é o sujeito de direito. As normas de
direitos fundamentais derivados configuram direitos subjetivos universais,
criando faculdades e poderes para todos os seres humanos, vistos em sua
abstração e generalidade. Já as normas de direitos fundamentais específicos só
delineiam situações de vantagem para determinados sujeitos de direito.
10. CONCLUSÃO
A disposição dos direitos fundamentais no sistema constitucional
brasileiro é o reflexo de diversas correntes doutrinárias desenvolvidas na
Alemanha, Estados Unidos e França após a 2ª Guerra Mundial. Pontes de
Miranda soube captar essas tendências e construiu as bases teóricas do sistema de
proteção aos direitos fundamentais hoje adotado no país.
A Constituição de 1988 tem-se mostrado um grande instrumento de
fortalecimento do Estado Democrático de Direito na medida em que atribui aos
direitos fundamentais aplicabilidade direta e força vinculante em relação a todos
os poderes da república. O país também tem primado pelas técnicas de
blindagem dos direitos humanos contra ingerências circunstanciais de grupos
políticos interessados em proteger interesses espúrios e inconfessáveis. Exemplos
dessa couraça de proteção são as cláusulas pétreas, o controle de
constitucionalidade e as garantias processuais.
34
O grande desafio do constitucionalismo brasileiro é a criação de
mecanismos jurídicos e administrativos que promovam a crescente efetividade
das liberdades públicas e dos direitos sociais. E isso só é possível com a adoção
de políticas públicas eficientes que melhorem a qualidade de vida da população,
promovam a igualdade de oportunidades, combatam a corrupção e fortaleçam as
instituições democráticas.
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