Nuno Gueifão - Cíntia Gil
Transcrição
Nuno Gueifão - Cíntia Gil
“Mistake-ism” ou a paixão do quotidiano Diz Harmony Korine a Mike Kelley numa entrevista a propósito do seu primeiro filme, “Gummo”1: “We tried really hard to have images come from all directions. If I had to give this style a name, I'd call it a "mistake - ist" art form -- like science projects, things blowing up in my face, what comes of that.”; Pergunta Mike Kelley: “Something alchemical?”; Responde Korine: “Exactly.” A alquimia é então o erro enquanto forma de arte? Não. A alquimia é o processo segundo o qual as imagens fundam o seu valor ontológico na realidade da experiência de quem as recolhe, constrói, de quem estabelece com elas um singular regime de visibilidade que se funda numa nova forma de afectividade. Coloca-se então aqui um problema metodológico: para que possa de facto criar-se um circuito íntimo e singular com uma determinada imagem, esta terá de ser desligada das suas ligações operativas com uma série de acções, proposições e mesmo recordações e colocada numa situação de pura potencialidade, levada ao máximo da sua virtualidade e ao mínimo da sua actualidade. Este é, por outros termos, o problema da convivência com o cliché de que Deleuze nos fala a propósito do plano prévio à pintura de Francis Bacon. Esta é, de outro ponto de vista, a força da figura nietzscheana do falsário, que nos purga da nossa necessidade psicológica de um princípio transcendente de legitimação da vida. Durante uma conversa, Nuno Gueifão chamava-me a atenção para uma entrevista de Jean Renoir sobre a técnica2, em que este constatava uma correspondência entre o aperfeiçoamento tecnológico nas disciplinas artísticas e a sua decadência concomitante. Renoir concluía que o problema estava no facto de, a partir do momento em que se atingia uma determinada perfeição tecnológica, a possibilidade de uma relação singular e acontecimental com as obras desaparecia. Como se, como dizia Nuno, perdêssemos a intuição das coisas. Então, Renoir devolvia-nos a um certo optimismo dizendo que existe porém uma possibilidade de reverter esta tendência: ultrapassar a própria técnica. 1 2 “Mike Kelley interviews Harmony Korine”, Filmmaker, Fall 1997. “Jean Renoir parle de son art”, entrevista com Jacques Rivette, 1966 Na exposição que comissariei em 2008, “Two Flamingoes in a Fruit Fight”3, esta constelação de problemas apresentava-se, de forma ainda algo dispersiva, no trabalho de Nuno Gueifão. Nessa altura as suas imagens pareciam começar do velho, do cheio, do denso, do opaco,4 dependendo de uma prática quotidiana, repetida, na qual o anómalo surgia como perversão das fronteiras entre desenho e pintura. A materialidade de cada imagem surgia, então, como elemento descentralizante e desestruturante da identificação de um ponto de vista sistemático sobre a operacionalidade da imagem no mundo, ou sobre a possibilidade de definição de uma comunidade entre as diferentes imagens. Em “A picture of my dad in drag”, esta ordem de dificuldades encontrou um modo de existência extremamente consequente: leva-nos a repensar precisamente a natureza da operacionalidade do artístico. Harmony Korine diz a Mike Kelley: “I felt like shooting each scene on its own terms and then making sense of it afterwards. And I felt that the styles would blend, that there would be a cohesiveness.” E Mike Kelley sugere uma “esquizofrenia coesiva” como modulação dessa espécie de solidariedade final entre as imagens. Este é, portanto, um problema propriamente epistémico. As pinturas de Nuno Gueifão são autênticas descrições cristalinas5 do mundo: são o resultado de uma experiência de absoluta indecidibilidade de um conjunto sensório-motor perante uma imagem que não se resolve enquanto ligação estruturante a um mundo. Esta é uma experiência que se pode compreender claramente: uma determinada imagem ou estado de coisas esvazia-se da sua operacionalidade no mundo e torna-se ela mesma um facto em si, perante o qual a percepção encontra um circuito de repetição diferencial, acabando por substituir esse mesmo facto por uma outra imagem continuamente em mutação. A substituição não é, no entanto, de mesmo valor: trata-se, em sentido profundo, de emprenhar o verdadeiro com o falso ou o identitário com o absolutamente diferente. Noutros termos, trata-se de instalar no centro do familiar um tipo de 3 Vera Cortês – agência de arte, Dezembro de 2008, exposição com Nuno Gueifão e Alex Impey. 4 Press release de «Two Flamingoes in a Fruit Fight». 5 Gilles Deleuze, Le Cinéma 2 – L’image-temps, Ed. de Minuit, Paris, 1985. relação que se caracteriza como propriamente uma solidariedade esquizofrénica com o facto em si. Ou um profundo amor pelo real. Como Deleuze nos fala ainda na sua obra sobre o cinema6, a particularidade do mundo moderno está no facto de a crença no próprio mundo ter perdido os seus fundamentos estáveis. Subitamente, o quotidiano caracteriza-se por um estado de intolerabilidade em que as estruturas identitárias que nos asseguravam ligação entre o pensamento e o mundo perderam o seu valor operativo. Ou, como nos diz Korine: “I can't stand plots, because I don't feel life has plots. There is no beginning, middle, or end, and it upsets me when things are tied up so perfectly.” O que sobra então nesta situação de perda de coordenadas? Sobra a própria vida enquanto facto em si, na sua máxima virtualidade intensiva. Ou, o que é o mesmo, sobra o pensamento enquanto abertura imanente à diferença absoluta. Voltemos ao método. No mundo contemporâneo, nesta confluência entre a máxima perfeição da tecnologia da imagem e a mínima crença na mesma, a banalidade quotidiana adquire o estatuto de território de crença. Ou, por outras palavras, o que não tem plot, o que não se caracteriza por alto e baixo, digno e indigno, equilíbrio e desquilíbrio. O cliché, na sua absoluta presença. E a possibilidade de criação de imagens reside então nessa disposição para nos instalarmos no interior do quotidiano, do mais próximo, do mais familiar, e aí permanecer, insistir e repetir até que o anómalo surja enquanto experiência fundadora de um novo facto. “Mistake-ism” ou o rigor da amizade esquizofrénica pela superfície. Então, a técnica é ultrapassada como desafiava Renoir. E o verdadeiro não é mais o virtuoso, o reconhecível e partilhável por via do conceito, mas o que instala no interior do conceito o seu próprio limite mortal, o seu espaço negro que lhe permite adquirir a vitalidade do pensamento nos inícios. O problema da imagem adquire finalmente os seus termos próprios. E este é um problema de intuição, de facto, como Nuno me dizia. É que, nesta situação de cisão entre percepção, conhecimento e crença, o que está em causa é um confronto contínuo com o impensado, abrindo a 6 Op. cit. experiência estética a uma visão expulsa dos seus centros. Assim, esta é uma experiência que se instala na tensão afectiva com uma imagem que atira para fora de si um mundo em estado absolutamente intuitivo, ou seja, um mundo enquanto divergência amorosa de potências vitais. E é esta a medida da técnica, a razão paradoxal entre os elementos em cada pintura. As imagens de Gueifão são factos intuitivos porque são momentos que, para serem pensados, temos de aceitar a presença de um estranho visitante: o anomal ou o puro facto pictórico. “- Something alchemical? - Exactly”. Cíntia Gil