revista redação

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revista redação
REVISTA REDAÇÃO
PROFESSOR: Lucas Rocha
DISCIPLINA: Redação
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DATA: 10/07/2016
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Imigrantes ilegais (RITA DO VAL)
Especialista aponta as principais questões ligadas ao tema, com base no conflito entre segurança e direitos
humanos
A CRISE humanitária que assola a Europa se tornou um tema recorrente nos noticiários mundiais. Cenas de pessoas
sendo resgatadas do mar, corpos de mortos nas praias da costa da Itália, filas de refugiados que ocupam centros de
triagem na França e na Alemanha, são constantes e sensibilizam pessoas em todo o planeta. A foto do corpo de Aylan Kurdi
numa praia turca, o menino sírio-curdo de 3 anos morto durante a tentativa de sua família de chegar à Grécia, ganhou o
mundo e tornou- se um símbolo daquela que é a maior crise migratória desde a Segunda Guerra Mundial.
Diariamente, milhares de migrantes, vindos de países do continente africano, da Síria, do Leste Europeu tentam chegar
e ingressar nos países da Europa, em busca de segurança, trabalho e dignidade. A viagem é feita em condições
extremamente perigosas, e muitos já perderam a vida nos frequentes naufrágios. No entanto, todos os dias, chegam mais
pessoas, que se submetem a travessias em condições desumanas e extremamente perigosas, correndo o risco de morrer no
caminho, e lançam-se em fuga desesperada em busca de uma vida melhor.
"...todos os dias, chegam mais pessoas, que se submetem a travessias em condições desumanas e extremamente
perigosas, correndo o risco de morrer no caminho, e lançam-se em fuga desesperada em busca de uma vida
melhor."
A maior parcela dos migrantes que parte rumo aos países da Europa deseja chegar à Inglaterra e à França, países
prósperos, com sistemas de saúde e educação de qualidade. A Grécia e a Itália são apenas as portas de entrada pelo Mar
Mediterrâneo e não são o destino final desejado por quase todos. A rota de entrada no continente europeu envolve a
travessia do Mediterrâneo, com destino à costa da Itália em balsas, botes e barcos superlotados, ou pela Grécia, também
indo pelo mar. A chegada pelo mar é mais fácil, pois quase não há fiscalização. A proximidade geográfica é também outra
importante razão que define a escolha desse trajeto. Homens, mulheres, crianças e idosos deixam seus lares e seus países
rumo ao desconhecido, ou à morte, em travessias perigosas, muitas vezes vítimas dos chamados coiotes, facilitadores que
alimentam essa rota de agonia. Diante de tantos riscos e dificuldades, o que faz com que famílias inteiras, homens,
mulheres e crianças e idosos, deixem para trás suas histórias, bens e parentes? O que essas pessoas buscam e do que elas
fogem?
DADOS
O relatório do Acnur "Tendências Globais ou Global Trends do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados
[ACNUR]" aponta o crescimento no número de pessoas forçadas a deixar suas casas e seus países. No fim de 2014, esse
número atingiu o nível de 59,5 milhões de pessoas, comparado com os 51,2 milhões registrados no fim de 2013 e os 37,5
milhões verificados há uma década. O crescimento, durante o ano de 2013 (8,3 milhões de pessoas), é o maior já registrado
em um único ano. Dentre estes, os sírios constituem um importante grupo. Em 2014, uma média de 42,5 mil pessoas por
dia se tornaram refugiadas, solicitantes de refúgio ou deslocadas internas. Hoje, no mundo, 1 em cada 122 indivíduos é
refugiado, deslocado interno ou solicitante de refúgio.
A guerra na Síria, que teve início em 2011, está entre as principais causas que justificam e explicam o aumento dos
deslocamentos de pessoas no mundo. A guerra civil transformou-se no maior evento individual responsável por
deslocamentos no mundo. Outro fato relevante e que compõe o conjunto de dados do relatório da ONU, o conflito na
Ucrânia, é responsável pelo recorde de travessias no Mediterrâneo (219 mil pessoas). O número de migrantes forçados na
Europa totalizou 6,7 milhões de pessoas no fim do ano, comparado aos 4,4 milhões registrados no fim de 2013. Quase 25%
dessa população é refugiada síria na Turquia.
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"A guerra na Síria, que teve início em 2011, está entre as principais causas que justificam e explicam o aumento
dos deslocamentos de pessoas no mundo."
PROBLEMAS
Os numerosos conflitos no continente africano - incluindo países como a República Centro Africana, Sudão do Sul,
Somália, Nigéria e República Democrática do Congo - geraram grandes deslocamentos forçados em 2014 e, segundo o
Global Trends, a África Subsaariana totalizou 3,7 milhões de refugiados e 11,4 milhões de deslocados internos - 4,5 milhões
dos quais ocorridos em 2014. A Etiópia substituiu o Quênia como principal país de destino de refugiados na região e é,
agora, o quinto maior no mundo.
O sofrimento causado pela guerra na Síria, com 7,6 milhões de deslocados internos e 3,88 milhões de refugiados nos
países vizinhos, tornou o Oriente Médio a principal região de origem e acolhimento de populações deslocadas por conflitos e
perseguições. O Iraque é um exemplo disso, onde 3,6 milhões de pessoas eram consideradas deslocadas internas no fim de
2014. Esse êxodo provocado por conflitos, guerras e miséria força milhões de pessoas a fugir de seus países, e a Europa é o
principal destino, embora outros países também estejam recebendo grandes números de migrantes. A reação de boa parte
desses países tem sido a de criar barreiras para
impedir o ingresso de refugiados e migrantes.
O governo italiano iniciou a operação Mare
Nostrum em outubro de 2013, quando um navio de
imigrantes afundou perto da Ilha de Lampedusa e
cerca de 400 pessoas morreram. A operação, criada
alguns dias depois, objetivava fiscalizar o
Mediterrâneo entre a costa leste da Tunísia e as
costas do sul da Itália. A operação contava com
navios que cruzavam o mar continuamente,
helicópteros e até mesmo um drone, todos
mobilizados para evitar novas tragédias.
Até o fim da missão, em outubro de 2014, a
marinha italiana salvou mais de 150 mil pessoas.
Apesar do empenho e dos esforços empreendidos
na Mare Nostrum, estima-se que entre 2 mil e 3 mil
imigrantes tenham se afogado ou desaparecido no
corredor do Mediterrâneo. Em razão dos altos
custos da operação, a Itália solicitou a ajuda da
União Europeia, mas o bloco rejeitou suas
reivindicações. O único país que enviou ajuda à
Itália foi a Eslovênia. Os demais países entenderam,
à época, que a operação Mare Nostrum se tornara
um convite à imigração ilegal e, portanto, negaramse a prestar qualquer tipo de apoio.
Marcha de refugiados no Leste Europeu tem abalado
Após um ano da criação da missão Mare
a relação entre diversos países
Nostrum, a União Europeia assumiu a operação.
Sob o nome de Triton, e em cooperação com a agência europeia para controle de fronteiras Frontex, 20 países europeus
forneceram homens e equipamentos para a operação. A operação Triton passou a ser coordenada pela Frontex, mas o
comando permaneceu sob a responsabilidade da Itália.
DINHEIRO
A mudança mais evidente e contundente que se deu a partir do ingresso da Frontex foi financeira. Se comparado ao
orçamento de 9 milhões de euros por mês que a Itália disponibilizava para a Mare Nostrum, a soma de 3 milhões de euros
aplicadas na Triton parece muito singela. A significativa redução orçamentária chamou a atenção de organizações
humanitárias, dentre elas, a Anistia Internacional que, tendo apoiado e elogiado a Mare Nostrum, fez duras críticas às
reduções orçamentárias promovidas pela Frontex. Contudo, a redução operada não foi apenas orçamentária. Houve também
redução de pessoal e dos navios que patrulhavam a costa e resgatavam migrantes no mar. Apenas um terço do número de
navios foi mantido em operação.
Outra diferença entre as duas operações se dava no campo de ação. Enquanto o objetivo humanitário levava os navios
de Mare Nostrum até a costa da Líbia, a equipe da Triton ficava limitada às fronteiras do Espaço Schengen - a apenas
alguns quilômetros da costa italiana. As restrições logísticas, orçamentárias e legais colocaram a seguinte a questão: a
transição da operação Mare Nostrum à Triton não implicaria também uma transição do salvamento à vigilância? A proteção
das vidas humanas teria passado para segundo lugar, e as novas estratégias, na verdade, eram medidas para garantir a
proteção da Europa contra o crescente número de imigrantes.
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Teve início a discussão política em torno da crise migratória. Os países europeus apontam a falta de capacidade para
receber tantos migrantes: "A Suíça não tem que carregar sozinha o peso da miséria do mundo", escreveu Pascal Décaillet,
do jornal Tribune de Genève, a respeito do fato de seu país abrigar cem mil refugiados sírios. Tal observação é desprovida
de bom senso e de conhecimento, uma vez que o Líbano registrava, em 2014, 1 milhão de refugiados, ou seja, um quarto
da população do país. O discurso de rejeição do jornalista é exemplo dos problemas que estavam (e ainda estão) no centro
do debate sobre a crise migratória na Europa: a ideia de que se pode pôr fim à questão criando mecanismos que impeçam o
ingresso de migrantes. Entretanto, enquanto houver países em guerra, enquanto houver miséria e fome, ou tirania, haverá
migração. Esses são os principais elementos que promovem os deslocamentos de pessoas.
ANÁLISE
Discussões infrutíferas sobre a distribuição
dos migrantes nos países europeus têm sido
travadas. A União Europeia tem tentado mediar o
diálogo entre os representantes dos governos dos
estados membros para organizar o ingresso e o
socorro a milhares de pessoas que chegam
diariamente.
A ideia é construir uma política comum de
atendimento aos refugiados e de combate da
migração ilegal e do tráfico de pessoas. A proposta
de classificar os migrantes em refugiados e não
refugiados é uma tentativa de tratar o tema sob a
ótica da securitização, e não do direito
humanitário. A questão é delicada, pois segundo o
item 2 do artigo 1o da Convenção de 1951 sobre
refúgio da ONU é considerada refugiada qualquer
pessoa que "temendo ser perseguida por motivos
de raça, religião, nacionalidade, grupo social ou
opiniões políticas, encontra-se fora do país de sua
nacionalidade e que não pode ou, em virtude
desse temor, não quer se valer da proteção desse
país, ou que, se não tem nacionalidade e se
encontra fora do país no qual tinha sua residência
habitual em consequência de tais acontecimentos,
não pode, ou, em razão do referido temor, não
quer voltar a ele".
A interpretação da convenção é restritiva e só
devem receber o status de refugiadas as pessoas
que se enquadrarem nas condições descritas.
Aquelas que fogem da miséria, da fome e da falta
de perspectiva não fazem parte desse grupo e,
infelizmente, constituem a maioria dos migrantes.
Pode-se observar que as estratégias de
enfrentamento da crise migratória estão fundadas
em duas ideias básicas. A primeira, defendida por
países como a França, propõe a criação de cotas
de refugiados, com um número máximo de
pessoas a serem recebidas por cada estado
membro, desde que esses indivíduos preencham
os requisitos da Convenção da ONU. Já os demais
migrantes devem, segundo o governo francês,
adequar-se à legislação migratória, conhecida
como extremamente rígida e xenófoba.
Na posição contrária está a Alemanha, que, a
partir da decisão da chanceler Angela Merkel,
decidiu receber todos os migrantes que cheguem à Europa em busca de refúgio e de proteção. Vale ressaltar que a
chanceler alemã têm sido vítima de duras críticas pela oposição e sofreu uma considerável queda de popularidade.
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COMPREENSÃO
Para entender a crise migratória da atualidade, é preciso entender que, entre as variadas causas das migrações, estão
os conflitos internos, as guerras e a miséria. O imigrante busca viver dignamente, na verdade, em algumas situações, busca
sobreviver. No entanto, existem outras causas que levam os indivíduos a viver em outros países. Os estudantes, os
trabalhadores de empresas multinacionais também integram esse grupo denominado migrantes, no entanto, são bemvindos e até estimulados a viver em outros países. Há programas de incentivo à migração, que contam com pacotes de
facilidades para aqueles que desejarem migrar, desde que preencham certas condições. Quase sempre o perfil desejado
desse migrante é jovem, empreendedor, com formação acadêmica, ou com recursos e vontade de fazer investimentos. Para
os candidatos que se enquadrem nas condições acima dispostas, não há obstáculos ou barreiras. E, quando se fala sobre as
medidas de controle da crise migratória, é claro que esses grupos não estão incluídos.
O Brasil também está na rota das migrações. Após o terremoto de 2010, que devastou o Haiti, o país vem concedendo
vistos humanitários para os haitianos que desejem migrar para o Brasil e mantém representantes brasileiros na Minustah, a
força-tarefa de paz e ajuda humanitária da ONU. Segundo dados do Alto Comissariado das Nações para Refugiados (Acnur),
mais de 40 mil haitianos entraram no Brasil desde 2010 até o início de 2015. Outra questão importante diz respeito aos
solicitantes de refúgio. Dados do Comitê Nacional para Refugiados (Conare) indicam que, entre 2010 e 2016, houve um
aumento de 127% no número de refugiados reconhecidos. O Conare também registrou grande expansão nas solicitações de
refúgio. Entre 2010 e 2015, os pedidos subiram 2.868%, passando de 966, em 2010, para 28.670, no ano passado.
O Brasil tem recebido os solicitantes de refúgio e os migrantes de forma geral e o grande destaque se dá às ações do
município de São Paulo, que criou centros de recepção e atendimento a migrantes, abrigos, e é o primeiro município a
instituir uma Coordenação de Políticas para Migrantes, responsável pela criação e pelo desenvolvimento de políticas de
atenção e integração dessa população. O relatório produzido pelo Acnur mostra que as populações refugiadas e de
deslocados internos cresceram em todas as partes do mundo, inclusive no Brasil. Pelo menos 15 conflitos se iniciaram ou
foram retomados, sendo oito na África (Costa do Marfim, República Centro Africana, Líbia, Mali, nordeste da Nigéria,
República Democrática do Congo, Sudão do Sul e Burundi, em 2015); três no Oriente Médio (Síria, Iraque e Iêmen); um na
Europa (Ucrânia); e três na Ásia (Quirguistão e em diferentes áreas de Mianmar e Paquistão). E tudo indica que esses
números continuarão a crescer.
Como, então, entender e buscar soluções para o crescimento dos deslocamentos humanos? A história mostra que os
movimentos migratórios sempre estiveram presentes em vários momentos. O Homo sapiens deixou de ser nômade há cerca
de 10 mil anos, com o advento do domínio de técnicas agrícolas, pois até então circulava livremente pelo planeta em busca
de alimento e de segurança. Coletor de plantas silvestres e caçador de animais selvagens, o Homo sapiens espalhou-se pelo
Oriente Médio, Europa e Ásia em razão da necessidade de buscar alimento. Da expansão do Império Romano às grandes
descobertas, na Era das Navegações, grande número de pessoas se deslocou para outros territórios. A África, a Ásia e a
América foram colonizadas por europeus nos séculos 14 e 15, a fim de tomarem posse de suas conquistas. Boa parte dos
países organizados a partir das antigas colônias de Espanha, Portugal, França e Inglaterra foram colonizados por migrantes
europeus.
A primeira questão a ser compreendida pelo mundo é a de entender a migração como um processo natural. Os
deslocamentos de pessoas sempre estiveram presentes na história da humanidade. Esses movimentos não podem ser
contidos por lei, pois se fundam no direito humano do livre trânsito e da liberdade de escolha.
AÇÕES
A outra questão diz respeito aos compromissos firmados pelas nações no campo do direito humanitário: o socorro às
vítimas dos conflitos e dos eventos da natureza garantidos em tratados e convenções. Não se pode admitir que os países
fechem suas fronteiras e permitam que milhares de pessoas morram, ou sejam vítimas da barbárie, sem que lhes seja
oferecido socorro e auxílio. E a terceira e mais importante medida é a percepção de que todos os países são responsáveis
pela integração dos migrantes, refugiados ou não, e que devem prestar auxílio para erradicar as causas dos grandes
deslocamentos. O combate ao terrorismo, a regimes tirânicos e não democráticos, o auxílio financeiro aos países que
enfrentam grandes crises econômicas e o combate à desigualdade entre as nações podem, finalmente, reduzir a crise
migratória.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
AEISINGER; Judith. "Operação Triton: a Europa fecha os olhos para a realidade da imigração". Trad. Lilian Villanova. In: Le
Journal International (10/2/2015). <http://www. lejournalinternational.fr/ Operacao-Triton-a-Europafecha- os-olhospara-arealidade- da-imigracao_ a2379.html>.
HARARI, Yuval Noah. Sapiens - uma breve história da humanidade. 7 ed. Porto Alegre: L&PM, 2015.
RITA DO VAL é coordenadora do curso de Relações Internacionais da Faculdade Santa Marcelina (FASM). Revista GEOGRAFIA,
Agosto de 2016.
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Indústria da doença, lucro vertiginoso (LEANDRO FARIAS)
O setor privado financia a grande mídia, que aceita o jogo imoral por ele praticado. Ao assistirmos aos principais
telejornais, observamos o ataque orquestrado ao sistema público de saúde, dando ênfase apenas às falhas,
tratadas como corriqueiras. Já os problemas do setor privado não são exibidos
PASSADOS trinta anos de um marco na história do Brasil, a 8ª Conferência Nacional de Saúde, ainda estamos diante
de paradigmas que contribuem para a visão mercantil do setor. Durante a Conferência, foi discutido a fundo o modelo de
saúde presente na época e, em relatório final produzido por políticos, gestores, profissionais e usuários do sistema, apontouse a necessidade de mudanças neste. Tal relatório contribuiu para que, durante a Constituinte, fosse debatido capítulo
referente ao direito à saúde, presente em nossa Constituição Federal de 1988. Assim nasceu o Sistema Único de Saúde
(SUS). Posteriormente, surgiram as leis n. 8.080 e n. 8.142, que tratam da regulamentação, financiamento e participação
social no SUS.
Persiste, porém, o desafio da quebra do modelo médico hegemônico, hospitalocêntrico ou complexo médico-industrial,
que traz uma visão avessa ao modelo preventivista elaborado durante o processo histórico que antecedeu a criação do SUS,
a chamada Reforma Sanitária. O primeiro modelo alimenta a visão mercantil da saúde e segue as leis do mercado,
reforçando a indústria da doença formada por laboratórios, empresas, planos de saúde, entre outros. Essa indústria
promove a prática de assédio aos profissionais da saúde desde sua entrada nas universidades, com o custeio de viagens,
cursos, congressos e até porcentagem na venda de seus produtos. Sem falar na má remuneração destinada aos seus
profissionais, que assim optam pela quantidade em detrimento da qualidade nos serviços disponibilizados.
Por deter recursos e poder, o setor privado financia a grande mídia, que aceita o jogo imoral por ele praticado. Ao
assistirmos aos principais telejornais, observamos o ataque orquestrado ao sistema público de saúde, dando ênfase apenas
às falhas, tratadas como corriqueiras. Já os problemas do setor privado não são exibidos. Não obstante, visualizamos figuras
públicas em propagandas que nitidamente visam ludibriar a população. Assim, o imaginário de saúde como bem de
consumo adentra a sociedade, sobrepondo-se à ideia de saúde como um direito fundamental.
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Atualmente, estamos diante de surtos de diversas doenças como dengue, zika, chikungunya, influenza A (H1N1),
microcefalia, síndrome de Guillain-Barré. E temos observado a alta procura por vacinas e medicamentos. Isso é reflexo de
diversas políticas de governos que se sucederam à formação do SUS, que por sua vez parecem encarar a saúde como
“ausência de doença”, o que na prática se torna um “prato cheio” para os que veem no setor uma oportunidade de
faturamento monetário. Tal visão política vai na contramão do conceito ampliado de saúde, elaborado durante a 8ª
Conferência, que traz uma relação direta entre saúde e determinantes sociais, tais como condições de alimentação,
habitação, educação, renda, meio ambiente, trabalho, transporte, emprego, lazer, liberdade, acesso e posse da terra e
acesso aos serviços de saúde.
Um retrato dessa realidade é a questão do saneamento básico no país, traduzida em esgoto a céu aberto, lixo nas ruas
e armazenamento incorreto da água. Segundo levantamento feito em 2015 pelo Instituto Trata Brasil, apenas 48% dos
domicílios brasileiros têm coleta de esgoto. Segundo o Ministério da Saúde (MS/Datasus), em 2013 foram notificadas mais
de 340 mil internações por infecções gastrointestinais no país. E o custo de uma internação por essa patologia no SUS foi de
cerca de R$ 355,71 por paciente na média nacional. Estudos apontam a existência de uma ligação direta entre a falta de
saneamento básico e o aparecimento de doenças. O último Levantamento Rápido de Índices para Aedes aegypti (LIRAa),
divulgado pelo MS em novembro de 2015, nos trouxe a seguinte questão: no Nordeste, 76,5% dos focos do mosquito estão
em armazenamento de água para consumo – por exemplo, caixa-d’água. A região concentra a maioria dos municípios com
índices de risco de epidemia de dengue.
Doenças como chikungunya, microcefalia e síndrome de Guillain-Barré, que são provocadas pelo Aedes aegypti,
demandam recursos e mão de obra especializada, uma vez que os respectivos tratamentos são de médio e longo prazo. Tais
patologias, que culminam em maior demanda por serviços e medicamentos, poderiam ser evitadas com ações de prevenção
e promoção da saúde. Falta foco nas condições socioambientais da população, sem falar que o sistema público de saúde
sofre de um subfinanciamento crônico. Para a Organização Mundial da Saúde (OMS), cada R$ 1 investido em saneamento
gera uma economia de R$ 4 em saúde. Lembrando que saneamento básico é um direito presente em nossa Carta Magna.
Ao analisarmos os números da economia, observamos que o setor privado da saúde ignora a crise econômica que
aflige o país, não se deixando abater pela recessão. Ao contrário, o lucro do setor aumentou mesmo diante da elevação das
taxas de juros e da diminuição da renda dos consumidores. De acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
(IBGE), o único setor que não sofreu queda nas vendas em 2015 foi o de artigos farmacêuticos, médicos, ortopédicos, de
perfumaria e cosméticos, que cresceu 3%. Os números da administradora de planos de saúde Qualicorp são claros: a
empresa obteve lucro de R$ 61,4 milhões só no último trimestre de 2015, apresentando um avanço de 224% em relação ao
mesmo período de 2014.
Sabemos que saúde se faz por meio de recursos. Porém, uma sociedade acometida por diversas patologias promove
um efeito expressivo na economia, pois, além de exigir maior aplicação de recursos no orçamento da saúde, uma vez que o
acesso aos seus serviços é algo oneroso, uma quantidade significativa de trabalhadores deixará de produzir por conta de
sua doença. Ao pensarmos que diversos agravos podem ser evitados, caso sejam respeitados os direitos e as garantias
fundamentais presentes em nossa Constituição, e que a existência de relações promíscuas envolvendo membros do
Executivo, Legislativo, Judiciário e empresários impede o avanço de nossa sociedade por conta de interesses minoritários, é
válido fazermos a seguinte reflexão: quem lucra com a crise no sistema de saúde?
LEANDRO FARIAS é Farmacêutico Sanitarista da Fiocruz e coordenador do Movimento Chega de Descaso. Ilustração: Aroeira.
Jornal LE MONDE DIPLOMATIQUE BRASIL, Agosto de 2016.
Superlotado e desumano (LEANDRO UCHOAS)
Sistema socioeducativo do Rio de Janeiro apresenta superlotação recorde. Apreensões de jovens cresceram
400% no Estado. Operando na ilegalidade, unidades apresentam precariedades e privações. Embrionárias,
soluções começam a ser construídas
AOS 16 ANOS, L.A.P. está encarcerado no Centro de Socioeducação Gelso de Carvalho Amaral (Cense-GCA). Preso
com onze outros menores em uma cela, chamada no local de “alojamento”, o menino convoca o repórter para protestar.
Falando baixo, reclama do cobertor furado, da água escorrendo pelo chão do pequeno recinto, e de dores. O repórter sabe
que existem outros muitos motivos para reclamação – como sabe o menino, o agente, a assistente social, a promotora, e
todos que visitam o local. Ele se limita a perguntar o nome e o que fez o menino. Acusado de furto, L.A.P. tenta convencer
de que não é culpado. “Não fui eu.”
Um mês depois, o repórter visita o Núcleo de Audiência de Apresentação (NAAP). Ativo desde 1º de junho, trata-se de
uma estrutura criada com o objetivo de otimizar o fluxo da logística de apreensão de menores em conflito com a lei, depois
de apreendidos. Um dos jovens que chega para avaliação imediata do juiz é J.R.B., também de 16 anos. Acusado de
participar de um assalto a um ônibus, o rapaz dá uma resposta semelhante à de L.A.P.: “Eu não tive participação nisso. Não
é culpa minha”
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Menino é julgado no NAAP (Foto Leandro Uchoas)
O sistema socioeducativo do Rio de Janeiro antecipou a crise que hoje afeta todo o estado. Isso porque já está em
situação de calamidade pública há anos. No entanto, recentemente, vem apresentando índices de superlotação antes
inimagináveis. E agora, por qualquer análise que se faça, chegou ao limite do suportável. Os dados de fevereiro dos centros
socioeducativos, os últimos levantados, servem de referência. A Escola João Luiz Alves (EJLA) contava, naquele mês, com
268 internos para uma capacidade instalada de 133 (excesso de 101,5%). O Educandário Santo Expedito (ESE) tinha 409,
onde só caberiam 232 (76,3% a mais). E o Dom Bosco abrigava 386, onde haveria vagas para apenas 233 (excedente de
65,7%). Em fevereiro, não por acaso, a Justiça determinou, expressamente, que o governo estadual resolva imediatamente
o problema da superlotação.
Ao longo desses cinco meses, a reportagem ouviu juízes, defensores, promotores, ativistas, assistentes sociais,
pedagogos, acadêmicos, mães e pais de menores apreendidos, diretores e ex-diretores do sistema, além dos próprios
menores. Todos parecem dar para o problema – que também é um crime – a mesma resposta que L.A.P. e J.R.B.: “Eu não
tive participação nisso. Não é culpa minha”. Nos discursos oficiais, a falência completa do sistema socioeducativo parece não
ter responsável direto.
De alguma forma, a maioria parece mesmo comprometida a encontrar soluções para a superlotação e os outros muitos
problemas do Departamento Geral de Ações Socioeducativas (Degase). Mas o quadro é tão complexo, os gargalos
estruturais são tantos, que há dificuldade inclusive de apontar saídas possíveis. E os setores envolvidos nem sempre
parecem atuar em parceria. Segundo o defensor Rodrigo Azambuja, existem 2.196 adolescentes em cumprimento de
medida de internação para 1.081 vagas – excedente de 103,1%.
Por conta da superlotação, os problemas existentes há décadas no sistema se agravam. Em muitas unidades, por
exemplo, os menores não saem dos “alojamentos” nem para comer. Não há agentes suficientes para fazer o translado de
tantos jovens, nem horário disponível em refeitório. Crescem os índices de estresse e faltas por motivo médico entre os
agentes. Casos de agressões entre os jovens se multiplicam, e até de morte. De junho de 2014 a junho de 2015, houve
cinco mortes computadas. Antes disso, a última morte havia sido em 2008.
Para a promotora Janaína Pagan, com inúmeras iniciativas recentes para se conter os problemas, há soluções. “A gente
tem um sistema superlotado – e cada vez mais superlotado. Por qualquer dado que se pegue, você vai ver que tem um
número enorme de adolescentes detidos por causa do tráfico. A grande discussão que se tem é: o tráfico é cometido por
violência ou grave ameaça?”, questiona. Isso porque há uma interpretação da legislação segundo a qual, se o menor é
“bucha” do tráfico, isso não caracteriza “violência ou grave ameaça”, e o adolescente poderia ser punido em semiliberdade,
e não em internação. Se essa leitura fosse hegemônica, a superlotação do sistema seria abrandada, já que cerca de um
terço dos internos tem como crime a participação no tráfico.
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Durante mais de um mês, a reportagem tentou conversar com o diretor-geral do Degase, Alexandre Azevedo. Uma lista
de questionamentos foi solicitada e enviada para sua assessoria. Ao final de muita espera, a equipe de Azevedo alegou falta
de tempo, e informou que “infelizmente não será possível responder. Esperamos poder atender sua solicitação em outra
oportunidade”.
Avanço pontual
Visita do Ministério Público ao GCA (Foto Leandro Uchoas)
Em junho, a introdução do Núcleo de Audiência de Apresentação (NAAP) parece ter representado um avanço. Foi o
resultado da união entre diversos órgãos: Tribunal de Justiça (TJ), Ministério Público (MP), Degase, Defensoria Pública,
entre outros. Eles desenharam um fluxo mais abreviado para a apreensão dos menores em conflito com a lei. Em vez de
serem levados da delegacia para o centro de triagem (Cense-GCA), passaram a ser enviados diretamente para o TJ, onde
devem ter uma audiência em no máximo 24 horas.
Ativa há pouco mais de um mês, a iniciativa deu frutos. O Cense-GCA passou a receber somente adolescentes
indicados para internação. Com capacidade para 64 internos, a unidade vinha tendo lotação quatro vezes maior – de 240 a
260, em média. Agora, mesmo que ainda superlotada, tem alocado cerca de 180 garotos (o número varia a cada dia). Nos
piores momentos, o local passou por racionamento rígido de água, e os adolescentes chegavam a beber o líquido do cano
de descarga da privada. Eles também vinham sendo praticamente obrigados a comer dentro do “alojamento” por causa da
superlotação. Por consequência, passavam o dia inteiro aprisionados.
Para Sidney Teles, ex-diretor do Degase e integrante da Comissão de Direitos Humanos e Cidadania da Assembleia
Legislativa (CDHC – Alerj), há responsabilidade de governo e justiça. “A culpa não é só do governo. Quem determina a
permanência dos jovens dentro do sistema é o Judiciário”, afirma. A juiza Raquel Chrispino, coordenadora das varas da
infância e da juventude do TJ, considera que o Rio de Janeiro e o Brasil vivem situações semelhantes a outras nações em
desenvolvimento. “Isso acontece em todos os países subdesenvolvidos do mundo. A população cresce em progressão
geométrica, os direitos crescem só no papel”, defende.
Mas os dados revelam que os números aumentam a passos largos. Graziela Contessoto, do Mecanismo Estadual de
Prevenção e Combate à Tortura, relata que quando o órgão foi criado, há cinco anos, “eram quase novecentos adolescentes
internados. Hoje já são mais de 2 mil. Em cinco anos, mais do que dobrou”.
Investimento em segurança
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As razões para o aumento na superlotação do Degase são motivo de muito debate. Há os que entendem que houve um
aumento na violência social, e os que entendem que foi o investimento em Segurança Pública que cresceu – argumento
mais frequente entre os especialistas. Nos últimos nove anos, os orçamentos da Polícia Civil, Polícia Militar e Secretaria de
Segurança aumentaram 215,6%, segundo levantamento do jornal Extra. Ao todo, foram desembolsados R$ 35 bilhões para
o setor. No mesmo período, a Secretaria de Educação e o Fundo Estadual de Saúde receberam menos – R$ 32 bilhões e R$
30 bilhões, respectivamente.
Portanto, a chegada de José Mariano Beltrame na Secretaria de Segurança significou um aumento do investimento no
setor, durante os governos do PMDB – gestões de Sérgio Cabral e de Luiz Fernando Pezão. Houve mais policiais na rua,
mais equipamentos, e a criação do programa de Unidades de Polícia Pacificadora (UPP). Tudo isso teria levado a um
aumento das apreensões de adolescentes em conflito com a lei. No entanto, o sistema socioeducativo do Rio de Janeiro
teria permanecido com a mesma dimensão estrutural, ou até se precarizado mais. Todo um programa assumido pelos
governos de criação de novas unidades, adequação à legislação e preparo do corpo de profissionais não avançou.
Estruturalmente, o Degase não teria, segundo múltiplas fontes, oferecido vazão ao aumento das apreensões.
Há discordância sobre os motivos desse aumento do investimento em Segurança Pública. Há os que consideram que
ele se deu no contexto dos megaeventos abrigados pela capital do estado: Copa do Mundo de 2014, Jogos Olímpicos de
2016, Jornada Mundial da Juventude, Rock in Rio, Copa das Confederações e outros. Funcionárias do Degase que não
quiseram se identificar afirmam que as apreensões cresceram, sobretudo, durante o período da visita do Papa Francisco, e
após o assassinato do médico Jaime Bold, esfaqueado na Lagoa Rodrigo de Freitas – episódio que levou pavor à classe
média carioca, frequentadora do local.
Muitas apreensões
É muito provável que haja mesmo relação entre o aumento maciço do investimento em Segurança e o crescimento das
apreensões de adolescentes. Segundo dados do Instituto de Segurança Pública (ISP), houve um aumento de 400% na
quantidade de jovens apreendidos – para cada adolescente antes levado ao sistema, agora são levados cinco. “É a
naturalização da lógica do encarceramento e do fichamento. É o menino que está na escola ou saiu da escola, não importa.
Se é negro e pobre, ele é suspeito”, protesta uma fonte do Cense-GCA que preferiu anonimato. Segundo ela, nos finais de
semana, chega a ter mais de cem encarceramentos.
O sistema prisional também teve as prisões amplificadas. Porém, proporcionalmente, o sistema socioeducativo cresceu
em apreensões mais do que o prisional. “Segundo o ISP, de 2010 a 2015 a prisão de adultos subiu de 19 mil para 41 mil. E
a apreensão de adolescentes, de 2 mil para 10 mil”, relatou o defensor Rodrigo Azambuja. Também houve um aumento da
apreensão de mulheres para as unidades femininas. Segundo o Mecanismo, em sua última visita foram encontradas duas
adolescentes grávidas.
No contexto do aumento das apreensões, a juíza Raquel Chrispino faz uma reflexão sobre a necessidade do Judiciário
de ultrapassar suas atribuições mais óbvias. “O Tribunal tem uma função muito clara. Ele vai pegar o caso, vai apurar se o
processo legal foi feito, vai aplicar a medida, e vai mandar para o sistema socioeducativo, que vai ou não socioeducar. Se a
gente olhar para nossa função, a gente está fazendo tudo certinho. Se a gente olhar para a utilidade de tudo isso, com
apreensões cada vez maiores, e reincidência, você olha para a frente e se pergunta se está fazendo tudo. Há um sofrimento
muito grande do juiz. Os juízes estão em um pedaço do fluxo, fazem a sua função institucional, mas eles mandam para um
lugar que não funciona. E aquele mesmo menino volta para praticar a mesma ação”, afirma.
Para piorar, nem sempre as apreensões dos adolescentes ou as medidas do juiz são justas. “A gente tem a informação
de que muitos jovens que cumpriram a internação provisória foram ‘remidos’, ou seja, o Ministério Público não identificou
indícios da participação do jovem ou do adolescente na prática daquele ato de que está sendo acusado. Então, você tem a
medida extrema sendo aplicada no início do processo. Deveria prevalecer, em primeiro lugar, a advertência. Já se tornou
corriqueira no Rio de Janeiro a prática de adolescentes apreendidos sem ter qualquer envolvimento com nada”, denuncia
Sidney Teles.
Rodrigo Azambuja compara com o filme de ficção científica Minority Report, em que os crimes eram previstos e
interrompidos antes de acontecerem. “A polícia acha que algum tipo de pessoa vai praticar um ato infracional, e aí para o
ônibus. E em vez de só fazer a busca pessoal, eles seguram aqueles meninos, levam para a delegacia. Isso continua sendo
feito, mesmo depois do habeas corpus que fizemos para impedir”, diz. Segundo Azambuja, foram 53 adolescentes
apreendidos sem comprovação no mês de janeiro – quase dois por dia. “A pessoa está passando na rua, não está
cometendo ato nenhum, mas talvez tenha o perfil daquele ‘cliente’ normal da justiça, e acaba sendo levado para a
Delegacia”, lamenta.
A juíza Vanessa Cavalieri, hoje responsável pelo NAAP, defende a atuação dos juízes. Segundo ela, o Rio de Janeiro já
apreende muito menos do que São Gonçalo e Niterói – que juntos superam a capital em internações. Entretanto, ela
argumenta que o peso da responsabilidade de juiz é grande. “Se aquele menino que foi colocado em liberdade morre em
uma ação, será que ele estaria morto se tivesse pego uma internação? Quem dorme com essa dúvida é o juiz que deu a
decisão sobre ele. Não são esses que estão criticando. Várias vezes, eu ouvi a mãe dizer: doutora, graças a Deus. Eu estava
rezando para a senhora internar meu filho”, revela.
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Alojamento com água escorrendo, colchões de espuma (Foto Leandro Uchoas)
Meio aberto
A promotora Janaína Pagan acredita que um caminho para se reduzir o volume de internações seria fortalecer as
medidas de meio aberto. Mas ela identifica dois problemas que impedem esse fluxo. Um é a falta de controle do Judiciário
dos adolescentes que são encaminhados para o meio aberto. “Não se fazem as guias de encaminhamento. Ele recebe o
ofício, e cumpre se quiser. Se não cumprir, ninguém toma nenhuma medida. Isso aumenta muito o índice de reincidência”,
acusa. Outro problema é o serviço precário. “A gente tem CREAS super ruins, tem a falta de construção de CREAS. E a
gente já entendeu que só vai resolver o problema do sistema socioeducativo em meio fechado se resolver o problema do
meio aberto”, lamenta.
O Centro de Referência Especializado de Assistência Social (CREAS) é uma unidade pública para atender pessoas em
situação de risco social. Pela regulamentação do Conselho Nacional de Assistência Social (CNAS), há falta no Rio de Janeiro
de dezessete CREAS – o que termina por ser um entrave para o fortalecimento das medidas em meio aberto. Nos CREAS, os
assistentes sociais promovem os garotos, induzindo-os a romper a trajetória infracional. “Tem um adolescente em meio
fechado para cada 3,5 em meio aberto. Essa proporção deveria ser muito maior. Talvez o caráter excepcional da medida de
internação não esteja sendo observado”, afirma Rodrigo Azambuja.
Entre os atores mais ativos no combate à superlotação, acredita-se que falta oferta de medidas como liberdade
assistida e prestação de serviços à comunidade. É comum a crítica à frequente opção pela internação como “punitivista”. A
juíza Vanessa Cavalieri discorda do diagnóstico de que a superlotação tenha relação com a fragilidade do meio aberto. “A
gente sabe que o sistema está caótico, e a gente vai guardar a vaga na internação para os casos mais críticos de qualquer
forma”, defende.
Legislação ignorada
Há duas leis principais que regulamentam o sistema socioeducativo: o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA),
mais amplo, e o Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (Sinase), mais específico. Há consenso de que são leis
muito avançadas. Se fossem seguidas, seriam um avanço incontestável para a relação com os jovens em conflito com a lei.
Porém, ECA e Sinase são praticamente abandonados por atores distintos do processo de socioeducação. Quase todo o
conjunto de leis é desrespeitado, e os agentes do poder argumentam que não há outro jeito. “Muita gente diz que o Sinase
não é cumprido por conta da superlotação. Claro que, com a superlotação, agrava-se o funcionamento da instituição. Mas
mesmo antes desse período, já havia muita precariedade no cumprimento”, afirma Graziela Contessoto.
Janaína Pagan é ainda mais veemente. “A pergunta que não quer calar é: o que no ECA não é violado? Tudo é
completamente violado. A gente entra com ação civil pública mencionando isso. É a total inviabilidade para que o serviço
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socioeducativo seja colocado em prática”, lamenta. Janaína dá como exemplo a inexistência do Plano Individual de
Atendimento (PIA), que deveria ser feito quando o adolescente entra na unidade, para acompanhar seu percurso. E existem
inúmeros outros descumprimentos: a maneira como os meninos são conduzidos, a carência no acesso à educação e oficinas
profissionalizantes, as condições dos alojamentos, entre outros.
“Tem várias nuances que não são observadas. Por exemplo, a questão arquitetônica: como deve ser construída uma
unidade socioeducativa, principalmente para educação; qual a composição do quadro funcional; o Programa Individual de
Atendimento (PIA). Então, tem vários fatores que não são levados em consideração”, acusa Sidney Teles. Ele conta que, em
sua gestão à frente do Degase, o processo era absolutamente diferente. Teles fazia a recepção de cada adolescente que
entrava no sistema. “Muitas das orientações do Sinase tomaram por base experiências que nós fizemos: divisão por módulo,
separação por gravidade do ato infracional e por compleição física e faixa etária. Quando a lei é cumprida, o sistema
funciona”, defende.
Carência de unidades
Uma das limitações para que o ECA e o Sinase sejam efetivamente cumpridos é a precariedade das unidades de
internação existentes, e a inexistência de novas instalações. Há dez anos, previu-se a necessidade de construção das
unidades de Campos, Volta Redonda, Cabo Frio e São Gonçalo – e só as duas primeiras foram construídas. Essa era a
realidade de 2006, que piorou muito nos últimos anos, por conta da superlotação. A unidade mais urgente é a de São
Gonçalo. O município tem indicadores recordes de internação, por conta de crescentes índices de violência, e da postura de
alguns juízes, que seriam mais “punitivistas”, segundo algumas fontes. Como já mencionado, se somadas as internações de
São Gonçalo e Niterói, os índices superam os da capital. A inexistência de uma unidade em São Gonçalo leva à
impossibilidade de se cumprir a determinação expressa de se alocar os adolescentes internados próximos à residência de
suas famílias. Existe até um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) determinando que isso seja feito no Rio de Janeiro.
Para piorar a carência de unidades, existe uma determinação expressa de fechamento do Educandário Santo Expedito
(ESE). Há uma decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) determinando o fechamento se ele não se adequar ao Sinase. E
o ESE não tem como se adequar. A unidade funciona no antigo presídio Muniz Sodré, e fica ao lado do sistema carcerário
(Bangu) – o que não é permitido pela lei. O Conselho Estadual da Criança e do Adolescente, o Conselho Nacional de Justiça
(CNJ) e a Organização dos Estados Americanos (OEA) também já indicaram o fechamento. Na unidade, há rebeliões
frequentes. Este ano, os internos tiveram que enfrentar um surto de ratos e baratas. “Teve um período em que houve um
acordo com o antigo juiz da vara e da infância, e pararam de mandar adolescentes para o ESE. Mas como as unidades
começaram a ficar superlotadas, voltaram a utilizar”, conta Graziela Contessoto.
Instalações insalubres
Os ratos e baratas do ESE assustam. Mas quem conhece as condições deletérias das unidades de internação sabe que
os problemas são muito mais graves. Muitos adolescentes dormem no chão, ou sobre colchões de esponja rasgados. É
comum não saírem do “alojamento” o dia inteiro, nem mesmo para comer – principalmente após o agravamento da
superlotação. A fiação está frequentemente solta, perigosa. Há inúmeras infiltrações, goteiras, entupimentos – o que já
levou unidades a fechar a água durante a maior parte do dia. Doenças de pele são frequentes, e reclamações de dores
diversas também. “Todos eles pedem remédios para dor quando a enfermeira chega”, conta um agente socioeducativo. Há
muito mofo, e a falta de luz não é rara.
É comum encontrar uniformes furados e velhos – e muitas vezes, são feitos com panos quentes e de manga comprida,
utilizados na região mais quente do Rio de Janeiro. Os corredores cheiram tão mal que às vezes beira o insuportável. “A
gente faz várias vistorias e tem acesso a relatórios comprovando que as condições estão inadequadas muito em razão desse
problema de superlotação. E tem ação civil pública em relação a todas as unidades. Hoje, mesmo as instalações novas já
estão muito desgastadas”, afirma Rodrigo Azambuja. Ele conta que no Cense-GCA chegou a haver rodízio para beber água e
dormir no colchão.
A fonte que trabalha no local se indigna. “Mesmo passando apenas uma semana lá, a cabeça [do adolescente]
obrigatoriamente muda. Não tem como não mudar. Você passar uma semana encarcerado. Uma semana em que, com 15 a
20 meninos no encarceramento, você tem meia hora de banho. Dá dois minutos de banho por adolescente! Isso não é
banho. Tem apenas cinco minutos para refeição. Só dá para comer que nem um bicho”, relata.
A carência de servidores também é um problema sério. “Eles têm um número pequeno de agentes, todos infinitamente
inseguros. A única coisa que têm para se defender é o spray de pimenta. Eles dizem que são reféns dos adolescentes”,
afirma a promotora Janaína Pagan. A quantidade de agentes socioeducativos é bastante menor do que recomenda o Sinase.
E ocorre frequentemente o afastamento por consulta médica, o que reduz ainda mais o quadro.
Desrespeito a direitos
O desrespeito aos direitos não para nas condições insalubres das instalações. Vai além, e tem múltiplos responsáveis.
Terceirizada, a comida fornecida, por exemplo, caiu muito em qualidade – até porque a produção aumentou. Da arquitetura
ao tratamento dos internos, tudo se assemelha a uma prisão de adultos. Os agentes socioeducativos chegam a se classificar
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como “batedores de cadeados”. Quando um desses profissionais agride os internos, muitas vezes há medo de denunciar. Se
fica comprovado que o agente utilizou de violência, ele é transferido. “Vai reproduzir o comportamento em outro lugar”, diz
Graziela Contessoto.
Há estabelecimentos onde é informalmente proibido ao agente chegar perto do adolescente. “Isso é consequência da
falta de relações que foi sendo estabelecida com o passar do tempo. Eu fui inspetor do Degase em 2002. Já se passaram
treze anos. Quando comecei a trabalhar na unidade de internação, em 1994, a gente não tinha grades na Escola João Luiz
Alves (EJLA). As janelas eram de vidro. De vez em quando um adolescente quebrava o vidro, a gente repunha, e tudo
voltava ao normal. A nossa relação era no corpo a corpo, tête-à-tête. Tinha momentos de tensão, fuga, rebelião. Tinha isso
tudo. Mas houve um retrocesso. Naquele tempo, se estava mais próximo do que pede o ECA do que hoje. E isso não é uma
constatação minha – é de todas as pessoas que atuam dentro do sistema”, protesta Sidney Teles.
Para ele, existe no Degase o crescimento de uma lógica de militarização, que seria a mesma do sistema prisional.
Existe a leitura, por parte de alguns profissionais, de que estaria vigorando, prioritariamente, um raciocínio de que o
problema dos adolescentes em conflito com a lei se resolve com a força bruta do braço armado do Estado. “A gente tinha
uma máxima na minha época: quem prende não cuida. Então quando você coloca uma visão militar nesse processo, por
mais boa vontade que este profissional tenha, a formação dele é outra. Não é a formação como educador, como assistente
social. Não é como psicólogo. O Rio de Janeiro teve poucas pessoas que vieram da militância e que tiveram a oportunidade
de gerir o sistema socioeducativo”, diz, explicando que só houve dois gestores com esse perfil.
O defensor Rodrigo Azambuja acredita que há o predomínio de uma lógica de vingança, de castigo – e não de
recuperação dos adolescentes. “Há um desvirtuamento completo das medidas. A lógica deveria ser pedagógica, no sentido
de incutir nele valores. Mas acaba sendo somente punitiva, para isolar aquele menino certo período de tempo, sem uma
intervenção produtiva. Espaços de privação de liberdade não são os lugares onde as pessoas vão sofrer uma melhor
transformação pessoal. Os criminólogos dizem isso. Fazer a pessoa aprender a ser um ator social em um lugar em que ele
está longe da sociedade não é o ideal”, acredita.
Famílias humilhadas
Em março de 2015, foi aprovada na Assembleia Legislativa (Alerj) um projeto de lei de autoria dos deputados estaduais
Marcelo Freixo (Psol), André Ceciliano (PT) e Jorge Picciani (PMDB). Inspirado em São Paulo, o texto proibia as chamadas
revistas vexatórias. Até então, familiares de presos que visitassem o sistema prisional eram revistados por profissionais sem
nenhum limite. Algumas mulheres tinham até que demonstrar que não havia nada na vagina. Os presídios passaram a
obedecer a lei, contando com equipamentos de raio-X. Só em um local essa lei ainda não é totalmente respeitada – no
sistema socioeducativo. É emblemático que a ameaça a direitos se estenda até mesmo às famílias dos adolescentes.
Muitos familiares relatam dificuldades nas visitas ao Degase. Nas audiências, nem sempre a família é ouvida. “É uma
aberração. Ninguém ouve a família, ninguém ouve o menino. Acredita-se piamente no registro de ocorrência policial. E tem
um olhar de uma colonialidade absurda – o menino é bandido, é o mal incorporado, tudo o que ele fala a princípio é
mentira”, protesta a fonte que não quis se identificar. “A gente tem relatos de famílias falando de humilhações absurdas. Há
relatos da polícia roubar os pertences do menino, roubar o que a família levou de alimento. Eu vou falar o que para a
mãe?”, pergunta ela. Nas quatro audiências acompanhadas pela reportagem, no NAAP, o juiz fez perguntas aos menores, e
ao final tomou as informações da ocorrência policial por verdade.
Também são utilizadas algemas em algumas unidades, o que é proibido. Ao levar adolescentes de um lugar ao outro,
em fila, os agentes pedem para que fiquem com as mãos para trás, e de cabeça baixa. A medida não é proibida, mas pode
ser interpretada como uma maneira de ferir a autoestima do garoto, ou fazê-lo identificar-se com a imagem de criminoso. O
machismo também toma expressão mais grave nas unidades.
“Nas unidades femininas, agentes do sexo masculino fazem guarda de adolescentes do sexo feminino. É um absurdo, e
já existe ação contra. Isso não acontece no sistema de adultos, e não deveria acontecer entre os adolescentes. Já houve
relatos de troca de cigarro por sexo. Ano passado houve duas denúncias de estupro (entre os adolescentes) na EJLA. E este
ano também houve uma. Teve um menino em Campos que o agente, após torturá-lo, teria tirado o pênis para fora e
ordenado que ele fizesse sexo oral. Mas isso não ficou comprovado”, afirma Rodrigo Azambuja.
Divisão por facções
Há, ainda, uma insólita realidade no sistema socioeducativo que desagrada literalmente a todos – embora sejam
poucos os que afirmam, com segurança, que é possível fazer diferente. Os adolescentes apreendidos são divididos, dentro
das unidades, de acordo com a facção do tráfico à qual supostamente pertencem – e é claro que nem todos pertencem a
alguma facção, porque nem todos têm envolvimento com o tráfico de entorpecentes ou moram em favelas. Existem os
“alojamentos” do Comando Vermelho (CV), do Amigo dos Amigos (ADA), e do Terceiro Comando (TC).
“Eu acho isso muito ruim. Não consigo dizer se é possível fazer diferente. Mas acho muito ruim. Acho que essa lógica
deveria ser quebrada. Para resgatar o menino e romper com a trajetória infracional dele, ele tem que saber que a facção
ficou do lado de fora. Ali dentro são todos iguais, e vão ser tratados com respeito, com carinho, com amor. Se as unidades
fossem pequenas, como diz o ECA, e houvesse agentes suficientes, essa separação não iria ter razão de existir”, afirma
Rodrigo Azambuja. O ECA prevê unidades menores, e critérios absolutamente diferentes para a divisão dos adolescentes. No
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cenário atual, no entanto, os agentes afirmam que, se fizerem diferente, os adolescentes de facções rivais vão se matar.
Isso se torna ainda mais real, segundo eles, por causa da superlotação das unidades.
A fonte que trabalha no Degase afirma que “se o menino diz que não tem facção, a vida dele vira um inferno. Porque
ele não vai conseguir sair do GCA (unidade de triagem). O menino pode ir para o lugar que não é das facções, onde tem
estuprador, X-9 etc. E se ele for para lá, está em risco. E muitas vezes ele é do interior, onde não existem facções”. O que
termina ocorrendo com frequência é o adolescente entrar em um “alojamento” de determinada facção e aprender a lógica
do crime com ela. Nesse caso, as unidades estariam funcionando como escola do crime, a antítese da razão pela qual foram
inventadas. Também ocorrem casos de matarem meninos por descobrirem que ele disse ser daquela facção, mas mora em
área de uma rival.
A promotora Janaína Pagan explica por que essa lógica é perversa. “Nesses lugares, as leis que os adolescentes
seguem são as leis da facção. É infinitamente mais rígido e violento do que o próprio sistema. Quando os adolescentes saem
da unidade, eles saem com uma série de comprometimentos com a facção. Então, na verdade, você está ajudando a piorar
a situação daquele adolescente”, alerta. Segundo ela, há experiências nas unidades de construir espaços alternativos para
os jovens que não querem mais se envolver com a facção. Na Baixada, há experiências positivas nesse sentido.
Sidney Teles afirma que essa lógica começou nos anos 1990, quando ele trabalhava no sistema. “Eu fui diretor por três
anos de uma unidade socioeducativa, e nunca permiti a divisão por facção. Não tinha. Eles jogavam bola juntos, estudavam
juntos. A única coisa que eu não permitia que eles fizessem era dormir juntos, porque eu não tinha controle e não confiava.
Quem se manifestasse favorável à divisão estaria fora. Na época, existia isso só em duas unidades”, conta. Uma das
perguntas enviadas por e-mail ao diretor do Degase, Alexandre Azevedo, foi sobre a divisão por facções. Ele não respondeu.
Educação precária
A divisão por facções está longe de ser o único problema de organização interna do sistema. A falta de Regimento
Interno para as unidades, algo aparentemente simples de ser formulado, também é reclamação constante. Atualmente não
se tem nenhum controle sobre quais medidas sancionatórias os adolescentes têm dentro do Degase. “Fica sem uma
definição. Tem várias situações em que um plantão age de uma maneira, e outro age de outra. Um plantão acha que é
coisa de adolescente, o outro acha que tem que levar para a delegacia para registrar ocorrência. Eles reclamam muito de
não ter um parâmetro de atuação”, lamenta Graziela Contessoto.
Outro problema é a precariedade da educação fornecida aos adolescentes, e a falta de acesso a ela por boa parte
deles. Aliás, pesquisas revelam que os adolescentes apreendidos têm uma trajetória majoritária de baixa escolaridade.
Dentre os que cumprem medida, cerca de 95% sequer completaram o ensino fundamental. Segundo o Degase, apenas
quatro internos, entre quase 8 mil, cumpriram o ensino médio. Dentro do sistema, segundo a Defensoria, os meninos levam
uma média de dois meses para serem matriculados na escola
“A parte educacional dentro das unidades socioeducativas é precaríssima, em todos os sentidos. Desde a falta de
professores para dar a disciplina, até a falta de servidores para garantir o acesso dos adolescentes à sala de aula. Os
adolescentes pedem o tempo todo para ir à aula, porque é uma maneira deles saírem das celas”, diz Sidney Teles. Por conta
da superlotação, e baixo número de servidores, os agentes são poucos para levar todos os adolescentes para estudar. O
resultado é que a maioria nem estuda. E não há clareza sobre quem são os adolescentes que realmente frequentam a
escola.
“O número de vagas na escola está relacionado ao número de vagas na unidade. Então, como está superlotado, não
tem vaga para todo mundo. E a divisão é bem estranha. Eles acabam colocando duas séries em uma turma só, porque não
tem professor suficiente. Já teve um período que o certificado deles saía com o carimbo do Degase – eles saíam marcados”,
afirma Graziela Contessoto. Há reclamações também quanto às bibliotecas das unidades, que ficariam frequentemente
fechadas. A equipe técnica do Degase – pedagogos, assistentes sociais, psicólogos – frequentemente acusa os agentes de
se comportar como agentes de segurança, e não de socioeducação. E alguns agentes dizem que a equipe técnica só “passa
a mão na cabeça” dos meninos. A ausência de diálogo entre os dois corpos de profissionais também gera problemas.
Cursos profissionalizantes
Nesse cenário, o Degase também não consegue oferecer a um conjunto amplo de adolescentes a formação profissional
que pode lhe dar um emprego fora das unidades. Há serviços de qualidade oferecidos, mas para uma porcentagem reduzida
de jovens. A grave crise econômica do estado do Rio de Janeiro agravou a situação, e alguns convênios essenciais com
instituições foram cancelados. No início do ano, de cerca de quatrocentos jovens presentes no sistema, havia apenas 162
vagas em curso profissionalizante.
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Evento da Escola de Gestão com curso de profissionalização (Foto Leandro Uchoas)
Janaina Abdalla, que comanda a Escola de Gestão do Degase, conta que eles chegaram a buscar professores em casa,
por falta de recursos para pagar. Depois, eles ganharam um edital da Secretaria dos Direitos Humanos, e conseguiram fazer
cursos com co-financiamento em 2014 e 2015. Atualmente, a verba não existe – e a secretaria foi extinta pelo presidente
em exercício Michel Temer nos primeiros dias de sua gestão. Incorporada ao Ministério da Justiça, perdeu quase a
totalidade de sua verba.
A reportagem conseguiu presenciar um evento de um parceiro da Escola de Gestão, o Instituto Masan. Era a
apresentação de uma nova turma de jovens, internos do Degase, para aprender a atuar profissionalmente na área de
alimentos. A presença de um adolescente chamado Jackson emocionou os rapazes. Ele fora da primeira turma do Instituto,
e conseguiu emprego após sair da unidade. “Esperamos disponibilizar isso para todos os jovens que passam por aqui”, disse
Alexandre Martins, representante do governo no evento. Quem conhece a realidade atual sabe o quanto isso está distante
de acontecer.
Além dos cursos profissionalizantes, cresce no sistema socioeducativo a sensação de que a justiça restaurativa pode
auxiliar na solução dos casos. A justiça restaurativa é um método mais humanizado de se lidar com conflitos. Em maio, o
Conselho Nacional de Justiça (CNJ) publicou a Resolução 225/2016 estimulando a difusão da técnica no Judiciário. Estados
como São Paulo e Rio Grande do Sul já avançaram bastante na adoção dessas práticas. O Tribunal de Justiça do Rio, em
parceria com o Ministério Público, vem elaborando uma forma de se adotar a justiça restaurativa com os adolescentes
apreendidos no sistema. É como se o poder público buscasse o contexto do menino em conflito com a lei para resolver o
problema a partir disso.
“A gente tem hoje um grupo de trabalho para se criar um núcleo de justiça restaurativa, seguindo a determinação do
CNJ. Esse núcleo seria interinstitucional, que teria a participação do Ministério Público, da Defensoria Pública e do Tribunal
de Justiça. O grupo se reúne semanalmente, e está ouvindo várias referências”, conta a promotora Janaína Pagan. A juíza
Vanessa Cavalieri faz parte do coletivo. Para ela, o que falta é diálogo e empatia. “Falta a capacidade de se colocar no lugar
do outro. Se você pega uma pessoa do movimento de direitos humanos, ela vê o agente do Degase como aquele cara
encapuzado, o carrasco que desce a guilhotina. Ela não vê que tem uma pessoa ali que fez um concurso público para ser
agente socioeducativo, que vai trabalhar em um lugar que não lhe dá condições, que ele é tratado pelos bandidos como se
fosse um policial, e trabalha sob estresse altíssimo”, diz.
Caminhos estão sendo construídos em uma tentativa de se escapar do completo caos ao qual o sistema socioeducativo
está submetido. A complexidade do problema, no entanto, exige multiplicidade de ações, para ao menos minimizar os
efeitos nocivos que esse cenário causa à sociedade brasileira. Na sala de espera do NAAP, um pai sintetiza o problema com
um raciocínio simples. “É o meu filho. Poderia ser o seu”, diz. A frase talvez seja um recado silencioso ao poder público e à
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população fluminense. Queiram ou não, esses jovens serão os agentes do futuro do Brasil. Neste exato instante,
certamente, mais um menino está sendo apreendido em algum lugar do Estado. Vai ser levado a esses lugares. Há poucas
chances de que saia de lá melhor do que entrou.
LEANDRO UCHOAS é Jornalista e escreve para esta publicação. Jornal LE MONDE DIPLOMATIQUE BRASIL, Agosto de
2016.
O Brasil chega à Olimpíada sem cara
(ELIANE BRUM)
Entre o discurso de 2009 e a realidade de 2016, há um país em que a conciliação do inconciliável já não é possível
nem como construção identitária
O MAIS fascinante desta Olimpíada no Rio é a negação de uma ideia de Brasil. É a impossibilidade de apresentar um
imaginário coeso sobre o país para fora – e também para dentro. É a total impossibilidade de conciliação. Esta é a potência
do momento – confundida às vezes com fracasso, com estagnação ou mesmo com impotência. O Brasilchega
à Olimpíada sem que se possa dizer o que o Brasil é.
Para que isso se torne mais claro, é preciso voltar ao ano de 2009, ao momento em que o Brasil foi escolhido para
sediar a Olimpíada de 2016. Há vários vídeos sobre o discurso de Lula após o anúncio. Não o discurso oficial, mas o discurso
do então presidente feito para as câmeras de TV. Aquele que é espetáculo dentro do espetáculo. Particularmente, prefiro o
da Globo (assista aqui), pelo que esta rede de comunicação representa na história recente do país, e pela linguagem que
escolhe ao contrapor a fala de Lulacom a reação dos apresentadores e comentaristas. Quando se pensa que essa
“conciliação” foi possível apenas sete anos atrás, tudo fica ainda mais interessante.
Sugiro assistir a estes sete minutos, preciosos para compreender aquele e este momento. Mas também transcrevo aqui
a fala de Lula, para que se torne mais fácil refletir sobre os tantos sentidos desse discurso, agora que podemos olhar para
ele pelo retrovisor. E para que seja possível prestar atenção nos personagens então secundários, congelando a imagem por
um momento.
Lula está emocionado. Não acredito que esteja fingindo se emocionar. Ainda que ele fale com a consciência de que
está produzindo um documento para a história, consciência que ele sempre mostrou ter ao longo de seus dois mandatos
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como presidente do país, ele acredita no que diz. Como Lula vê o país e como entende o povo brasileiro é crucial para
compreender o Brasil atual, dada a importância do personagem e o papel de protagonista que desempenhou e desempenha.
Naquele momento, há uma festa de comemoração nas areias de Copacabana, como se a multidão que ali está tivesse a
função de produzir a imagem capaz de comprovar a tese de seu líder.
Lula diz para as câmeras de TV, e ao dizer o líder carismático está num de seus momentos de maior carisma:
– O Rio perdeu muitas coisas. O Rio foi capital, o Rio foi coroa portuguesa, e foi perdendo... Eu acho que essa
Olimpíada é um pouco uma retribuição ao povo do Rio de Janeiro que muitas vezes aparece na imprensa, só nas páginas
dos jornais... É preciso respeitar porque o povo é bom, o povo é generoso. Acho que o Brasil merece. Aqueles que pensam
que o Brasil não tem condições vão se surpreender. Os mesmos que pensavam que nós não tínhamos condições de
governar esse país vão se surpreender com a capacidade do país de fazer uma Olimpíada.
Diante da pergunta de por que o Rio ganhou de cidades como Madri, Tóquio e Chicago, que disputavam ser sede da
Olimpíada, Lula afirma:
– A gente tava com a alma, com o coração. Ou seja, era o único país que queria de verdade fazer uma Olimpíada.
Porque para os outros seria mais uma. Nós tínhamos que provar a competência de fazer uma Olimpíada. Então eu acho que
as pessoas veem isso nos olhos da gente. (...) Essa foi a diferença. Esse país precisa ter uma chance. Não é possível que
esse país não tenha, no século 21, a chance que não tivemos no século 20.
Sobre onde ele e o país estariam neste futuro apoteótico, Lula diz:
– Eu não vou estar na presidência, mas estarei como cidadão brasileiro, colocando minha alma, o meu coração, pra que a
gente faça o que tem de melhor nesse país. Tem de comemorar porque o Brasil saiu do patamar de um país de segunda
classe e se tornou um país de primeira classe.
Lula em 2009: “Ao Temer que está aqui”
Lula agradece a Eduardo Paes (PMDB), a quem chama de “esse menino”, então em seu primeiro mandato como
prefeito do Rio, e ao “companheiro” Sérgio Cabral (PMDB), na época governador do Rio. Assim como ao ministro dos
Esportes Orlando Silva e ao chefe do Comitê Olímpico Brasileiro, Carlos Arthur Nuzman. Uma voz lembra ao presidente:
“Michel”. Lula ignora e segue falando. A voz repete na sequência: “Michel Temer”. Lula é obrigado a citar: “Ao Temer que
está aqui”. A cabeça do então presidente da Câmara dos Deputados descola-se por um momento das costas de Lula, onde
ele havia estrategicamente se posicionado e de onde não arredou pé.
Temer tinha sido reeleito deputado federal em 2006. Com apenas 99.000 votos, sua soma individual era insuficiente
para garantir mais um mandato. Ele só entrou devido ao quociente eleitoral, reeleição garantida pelo total de votos dados
ao seu partido, o PMDB. Em 2009, conseguiu se tornar presidente da Câmara dos Deputados, com o apoio do governo. Ele
seguirá até o final da entrevista colado nas costas de Lula. Toda vez que Lula procura alguém ao redor para agradecer, dá
de cara com Temer. Mas não faz mais nenhuma menção a ele. E a câmera volta a fechar no presidente mais popular da
história do Brasil pós-ditadura.
Um repórter pergunta sobre a “decantada” beleza do Rio. E Lula responde:
– Eu acho que alma do nosso povo, o olhar do nosso povo, o calor do nosso povo, o gingado do nosso povo, a cor do
nosso povo, o sorriso do nosso povo é imbatível. Acho que finalmente o mundo reconheceu: é a hora e a vez do Brasil.
E segue:
– Eu tava com um orgulho imenso – imenso – de estar defendendo o Brasil. Hoje foi um dia sagrado pra mim. Eu
confesso a vocês que, se eu morresse agora, já teria valido a pena, sabe, viver. Porque o Rio de Janeiro, o Brasil provou ao
mundo que nós conquistamos cidadania absoluta. Absoluta mesmo. Ninguém agora tem mais dúvida da grandeza
econômica do Brasil, da grandeza social, da capacidade nossa de apresentar um programa.
Bem ao final, Lula agradece a Henrique Meirelles, então presidente do Banco Central:
– (Quero) agradecer ao Meirelles, que fez uma defesa extraordinária, anunciando inclusive que o Banco Mundial já
disse que o Brasil será, em 2016, a quinta economia do mundo. Fim da Olimpíada de 2009. Agora, a de 2016.
Descobrir quem saiu e quem ficou no tabuleiro do poder é um dos jogos mais interessantes da Olimpíada
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Como o tempo desta época é acelerado, 2016 olha para 2009 como um passado remoto. No futuro que chegou, Lula é
anunciado como réu(por suposta obstrução da Justiça naOperação Lava Jato) uma semana antes da abertura oficial da
Olimpíada. Dilma Rousseff, a sucessora que ele conseguiu eleger por duas vezes está afastada pelo processo de
impeachment. E o carrapato colado nas costas de Lula em 2009 é hoje o presidente interino que possivelmente governará o
Brasil até 2018. Lula e Dilma anunciaram que não irão à cerimônia tão acalentada. E Temer finalmente ficará por um
instante em primeiro plano, ao anunciar a abertura dos jogos.
O Brasil não se tornou a quinta economia do mundo, mas o mesmo Henrique Meirelles é hoje o ministro da Fazenda do
Governo provisório, chacoalhando ameaças de aumento de impostos sempre que tem a oportunidade. Descobrir quem saiu
e quem ficou, assim como quem mudou de posição (sem de fato mudar de posição), tornou-se um dos jogos mais
interessantes da Olimpíada. A Olimpíada, assim como a Copa do Mundo, foram sonhadas como apoteoses do eterno país do
futuro que finalmente havia chegado a um presente glorioso. Não é um acaso que para representar esta inflexão histórica
tenham sido escolhidos dois eventos de exibição para o mundo. O discurso de Lula em 2009 é explícito. Ele pega todos os
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estereótipos associados ao que se chama de povo brasileiro ou “povo do Rio” (o povo bom, o povo generoso, o povo que
tem coração, o povo que tem gingado, o povo que tem alma) e os coloca como o diferencial que levou o país a uma vitória
em outro campo, o da política e o da economia. O Brasil teria alcançado um lugar entre os grandes ou “a primeira classe”
com este povo. Não apesar de, mas por causa de. E com Lula, um homem de fato “do povo”, na liderança, imagens
fundidas entre o representante e o representado. O Brasil teria sido escolhido como sede da Olimpíada por causa do
“coração” e da “alma”. Do desejo.
Não há nada de banal nessa construção. Ela é muito rica. Se os estereótipos são viciados, e é da natureza do
estereótipo ser viciado assim como estar a serviço de ocultamentos, há algo de novo nessa apropriação que Lula faz. Há
algo de novo no que ele faz com o velho. O que não impede que continue girando em falso.
Entre 2009 e 2016 aconteceu 2013: o ano em que as ruas anunciaram que o tempo da conciliação acabou
Há que se perceber ainda que a escolha de eventos para o mundo ver é também a escolha de se olhar com a medida
do outro. E não qualquer outro, mas um outro que se coloca – e é reconhecido – como “primeiro mundo” ou “primeira
classe”. E que a “cidadania absoluta”, neste momento, é igualada a acesso ao consumo. Essa construção também não é
banal. E é bem diferente de construir uma linguagem própria a partir das extraordinárias experiências de diversidade dos
vários Brasis.
Vale lembrar que Lula é o grande conciliador: um ano depois da escolha do Rio como sede da Olimpíada, ele terminará
seu mandato com a maior popularidade da história desde que há institutos de pesquisa para medi-la. Entre as várias razões,
está a quimera de reduzir a pobreza sem tocar na renda dos mais ricos, o que só foi possível graças à exportação
de commodities, promovida como se fosse durar pra sempre e sem que o enorme custo socioambiental fosse incluído na
conta. Neste sentido, a Olimpíada seria não apenas a conciliação dos povos, mas também a dos vários Brasis amalgamados
num só, conflitos e contradições magicamente apagados.
Entre 2009 e 2016 aconteceu muita coisa. Mas aconteceu principalmente 2013. Se há algo que não vira passado
facilmente é 2013, o incontornável que tantos querem contornar. É nos protestos das ruas que fica evidente que o
imaginário de conciliação não poderá mais ser sustentado. Desde então, não há combinação, recolocação ou arranjo
possível que dê uma imagem coesa ao Brasil – ou uma cara “brasileira” ao Brasil. As fraturas que historicamente foram
ocultadas ou maquiadas já não podem ser. O Brasil ou os Brasis tornaram-se irredutíveis à conciliação também na produção
de imagens e de símbolos.
Assim, o Brasil chega à Olimpíada real demais. Na lama que rompeu a barragem de Mariana, na merda boiando nas
águas da Guanabara, no genocídio dos jovens negros pela Polícia Militar, na ciclovia que desaba matando gente no dia em
que a tocha olímpica é acendida na Grécia. Na onça assassinada durante a passagem da tocha olímpica pela Amazônia. Dá
para ficar enfileirando exemplos por parágrafos. Até o samba de Tom Jobim se contamina quando é o mosquito da
dengue, do zika e da chicungunha que passa a ter asas abertas sobre a Guanabara.
A disputa narrativa entre golpe e não golpe pode soar como uma tentativa de identificação em meio a
identidades que se desmancham
Mesmo a disputa narrativa entre golpe e não golpe pode expressar uma tentativa desesperada de identificação em
meio a identidades que se desmancham. Como a de um Governo de esquerda que há muito já não era de esquerda, como a
de apoio de movimentos sociais ao mandato de uma presidente que sancionou uma lei que criminaliza movimentos sociais,
como a de fingir que quem está hoje no poder não era o aliado de ontem. Para além de estratégias e agendas, a falsa
polarização pode também ser uma tentativa de colar um rosto que já não cabe na cara. Ou de vestir uma roupa porque
qualquer roupa, mesmo uma fantasia, é menos desestabilizadora que a nudez.
Diante da fragmentação da autoimagem despontam várias reações identitárias. Uma delas é a de reeditar um outro
estereótipo viciado, o do Brasil como “republiqueta de bananas”, o que não consegue fazer nada direito, o do fiasco diante
do mundo, o do eterno país de segunda classe, com todos os preconceitos atrelados aos trópicos. O que antes foi positivado
é negativado sempre que convém. E o que aqui está seria uma espécie de punição à ousadia de querer ser grande.
“Nós” expostos ao julgamento do “primeiro mundo”, curiosamente confundido com o mundo dos adultos, o que só
pode ser uma piada diante dos acontecimentos internacionais recentes. O Brasil ridicularizado pelo Reino Unidoonde o voto
do Brexit venceu? Pelos Estados Unidos que tem um Donald Trumpcom chances de vencer a presidência? Por uma França
às voltas com terroristas produzidos por suas periferias? Por uma Europa que envergonha a si mesma ao (des)tratar os
refugiados? São estas as matrizes que sabem o que fazem?
Entre as razões pelas quais Lula não é perdoado está o fim da crença de que é possível alcançar a paz no
Brasil sem tocar nos privilégios
Essa falsificação do “Brasil volte ao seu lugar” tem pontos de contato com a ideia do retorno de certa elite ao poder –
uma elite que, como se sabe, nunca saiu dele. Tem a ver com a ideia da volta “dos que sabem fazer as coisas”. Ou “dos que
entendem de verdade de economia”. Ou da ideia de que a economia é a lente com a qual se enxerga a vida, crença laica
que desponta com o absolutismo de um mandamento de Moisés. É preciso ter cuidado com quem chama o Brasil de
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“republiqueta de bananas”, porque esta pessoa ou grupo nunca se coloca neste Brasil, já que se considera a parte limpinha
que foi se ilustrar no exterior. O sujo, o feio, o ignorante é o outro. Em geral, o “povo brasileiro”, essa abstração em nome
da qual tantas atrocidades são cometidas.
Não é ruim que o Brasil chegue à Olimpíada sem uma cara. Ou mais semelhante ao antropofágico Abaporu de Tarsila
do Amaral. Não é ruim que os estereótipos ruíram e todos os rearranjos antes possíveis já não parem mais em pé. Não é
ruim se perceber fragmentado. Não é ruim se desidentificar para que outras identidades, múltiplas, se tornem possíveis. Já
não dá para conciliar o inconciliável.
Não é um momento qualquer. E talvez a parte mais evidente do peso do que está sendo disputado seja o
fortalecimento do Estado policial para reprimir o questionamento dos privilégios. E para criminalizar o crescente
questionamento dos privilégios. E para encarcerar quem os questiona. O jogo é cada vez mais pesado, agora que ficou claro
que não haverá conciliação. Agora, que o discurso de 2009 ruiu, e que seu autor, o grande conciliador, virou réu.
Há muitas razões para que diferentes setores não perdoem Lula. Uma delas é a de que ele deixou de fazer a grande
mágica: a de que a paz no Brasil é possível sem que os privilégios dos mais ricos sejam tocados. A de que poderá se reduzir
as desigualdades sem que alguém perca não apenas privilégios materiais, objetivos, mas também culturais e subjetivos.
Essa ilusão era cara também para uma parte das várias elites. Continuar com os privilégios intactos e ainda por cima se
sentir “do bem” é o máximo sonho de consumo.
Já não é possível seguir tentando colar rostos que não cabem mais. Ou insistir em encaixar faces que só couberam
antes como falsificações. Ou, ainda, que eram apenas máscaras a serviço de apagamentos. Há muita potência neste
momento em que o Brasil é um ponto de interrogação no espelho, em que o Brasil não consegue uma unidade no dizer
sobre si mesmo, em que há gente tentando apagar a tocha olímpica com balde d’água. Há muita potência se as periferias
virarem centros, desacomodando olhares viciados. Mas essa potência será perdida se, por não conseguirmos imaginar um
país a partir de outras premissas, preferirmos carregar por aí rostos em decomposição.
ELIANE BRUM é jornalista, escritora e documentarista. Ganhou mais de 40 prêmios nacionais e internacionais de reportagem. É
autora de um romance – “Uma Duas” – e de três livros de reportagem: “Coluna Prestes – O Avesso da Lenda”, “A Vida Que
Ninguém Vê” (Prêmio Jabuti 2007). Site: desacontecimentos.com. Site do Jornal EL PAÍS (http://brasil.elpais.com), Agosto
de 2016.
A canalhice honesta é uma arte moral acessível somente para almas
sinceras (LUIZ FELIPE PONDÉ)
VOCÊ sabe o que é um canalha honesto? Um canalha honesto é alguém que diz para você que as reuniões na casa
dele para discutir filosofia é para pegar mulher. Ou que aprendeu a cozinhar para pegar mulher. Um canalha desonesto é
um canalha que diz que de fato a filosofia é importante para ele ou que cozinhar o faz se sentir mais autônomo na vida. A
arte da desonestidade na canalhice pode ir longe ao ponto de você dizer que é de fato feminista, e não que ser feminista
num homem pode ajudá-lo a pegar mulher –o que eu, pessoalmente, duvido que tenha sucesso de fato.
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O personagem Palhares, do Nelson Rodrigues, era o canalha honesto. Era marxista para pegar mulher, depois se
converteu à psicanálise, ao nudismo, à maconha, a Jesus. E Nelson dizia que um dia haveríamos de ter saudade do
Palhares. Mais uma vez nosso sábio acertou em sua previsão. Segundo Nelson, nem a canalhice estaria a salvo da má-fé
que se instalaria no seio da cultura ocidental.
Pois bem, e aí chegamos a uma conversa que tive há alguns dias sobre essa canalhice desonesta chamada poliamor. O
primeiro traço de canalhice desonesta é quando o agente da ação diz que faz X porque ele evoluiu para tal. No caso do
poliamor, para uma forma de amor coletivo e sem ciúmes. Toda pessoa que se diz segura é um canalha desonesto. Como se
sabe, toda virtude verdadeira é silenciosa.
Em nossa conversa, o poliamor era apresentado como uma condição em que você pode dividir pessoas amorosamente
e sexualmente com outras pessoas e tudo bem. Veja bem: sempre existiu gente que gosta de sacanagem coletiva. Entendo
que um canalha honesto tente convencer a namorada ou mulher a aceitar que uma colega da faculdade ou do trabalho
venha passar um final de semana em Gonçalves com eles. E, que, em dado momento, tente fazer com que as duas se
peguem. Um sonho clássico de consumo de canalhas honestos (ou, simplesmente, de homens honestos) é ver duas minas
se pegando.
Entendo também que mulheres honestas fantasiem com dois caras comendo elas ao mesmo tempo. A canalhice
honesta é uma arte moral acessível somente para almas sinceras. Uma comparação comum que se faz com o poliamor é
com a prática do harém. Ao ouvir essa comparação outro dia, subiu à minha alma uma grande indignação!
Eu disse de forma veemente: "Pare por aí! Num harém, as mulheres competiam e se matavam. Matavam os filhos
homens umas das outras, com medo de que uma delas se tornasse muito poderosa por ter dado um filho varão para o
Sultão. Era um inferno de traições". Inclusive se comiam umas as outras por desespero e solidão confessa (coisa hoje que
muita gente não ousa confessar que seja o motor de muita mulher comendo umas as outras, em todas as idades).
Tomado por indignação e pela certeza de que, ao compararmos o poliamor com um harém, faltamos com respeito para
com todas aquelas mulheres, muitas vezes infelizes (uma das maiores cretinices de nossa época é a falta de respeito para
com a infelicidade), continuei de forma apaixonada: "Aquelas mulheres competiam e se matavam, por isso mesmo eram
gente séria e digna! Merecem nosso respeito!".
Imagino que muita gente ao me ouvir dizer isso não me entenda plenamente. Como assim, gente que compete e se
mata é gente digna e merece nosso respeito? A vida digna é imersa em sangue, beleza e sofrimento. O maior engano
contemporâneo com relação a qualquer forma verdadeira de ética e virtude é algo que os antigos (gente muito mais séria
do que nós) sempre souberam, incluindo Aristóteles em sua filosofia das virtudes conhecida como "Ética a Nicômaco": a
virtude só nasce num terreno que lhe é hostil. Qualquer outra afirmação sobre virtude é falsa.
A honestidade do canalha Palhares do Nelson nasceu no momento em que ele confessou que agarrou a cunhada mais
jovem na saída do banheiro por puro desespero: a beleza dela era maior do que qualquer risco de ser pego no meio do
crime. A desonestidade do poliamor nasce da sua demanda de garantia de não sofrimento. Um harém era um lugar de
agonia, e virtudes são filhas da agonia.
LUIZ FELIPE PONDÉ é filósofo, escritor e ensaísta, doutor pela USP, pós-doutorado em epistemologia pela Universidade de Tel
Aviv, professor da PUC-SP e da Faap, discute temas como comportamento contemporâneo, religião, niilismo, ciência. Autor de
vários títulos, entre eles, 'Contra um mundo melhor' (Ed. LeYa). Jornal FOLHA DE SÃO PAULO, Agosto de 2016.
O desafio do WhatsApp ao Leviatã
(TERCIO SAMPAIO FERRAZ JUNIOR, JULIANO
MARANHÃO E MARCELO FINGER)
O DEBATE do bloqueio do aplicativo WhatsApp por medidas judiciais envolve a contraposição entre o direito à
liberdade de comunicação e a segurança como política pública garantida pelo Estado. A liminar do presidente do STF
(Supremo Tribunal Federal), Ricardo Lewandowski,suspendendo o bloqueio em julho, por exemplo, assenta-se, em nome do
direito constitucional à comunicação livre, na sua desproporcionalidade, que gera "insegurança jurídica entre os usuários do
serviço, ao deixar milhões de brasileiros sem comunicação entre si".
A ofensa ao direito de milhões à comunicação tem forte apelo retórico, mas há algum exagero em se identificar o
aplicativo com a própria possibilidade de se comunicar. Seria admissível então o bloqueio a um concorrente do WhatsApp,
com poucos usuários? A possibilidade de criptografar mensagens existe há milhares de anos. A tecnologia moderna permite
que cada usuário do WhatsApp tenha uma chave pública, comunicada a todos que desejem lhe endereçar mensagens.
Todos podem codificar e enviar mensagens de acordo com esse recurso, com a privacidade garantida.
Só quem possui a chave de decodificação (armazenada no celular de cada usuário) pode ler as mensagens. O provedor
do aplicativo cria a possibilidade de codificação e decodificação, mas não possui nem tem como acessar as chaves. Portanto,
a questão crucial não é se o WhatsApp (ou outro aplicativo do gênero) teria a obrigação de revelar o teor das mensagens,
pois isso é impossível, mas se as empresas de tecnologia estão autorizadas a comercializar produtos que proporcionem ao
usuário ambientes de informação absolutamente inacessíveis.
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O interessante é que essa tecnologia de encriptação, ao proporcionar inviolabilidade, torna o Estado impotente e, no
limite, dispensável -os bitcoins, por exemplo, usam a criptografia para proporcionar a todos os usuários um sistema seguro
de geração de moedas, de sua propriedade e de trocas. No mundo físico, ao contrário do virtual encriptado, não há
ambiente que, em tese, não possa ser acessado pelo Estado. Por isso falamos da inviolabilidade do domicílio (de fato
violável) como um direito individual.
Dessa ótica, inverte-se a hipótese do conhecido Big Brother de George Orwell: em vez de um Estado que, pela
tecnologia, controla todos os aspectos da vida privada, temos uma tecnologia que garante espaços privados (virtuais)
inacessíveis ao Estado. Daí a necessidade de regulação da tecnologia de criptografia. Caso o Poder Judiciário entenda que o
WhatsApp e aplicativos do gênero estão sujeitos ao poder estatal de bloqueio, seriam afetados imediatamente os direitos à
livre iniciativa -a proibição ao desenvolvimento de produtos que criem ambientes criptografados- e, consequentemente, à
liberdade e à privacidade de qualquer comunicação virtual individual.
A solução regulatória passa, portanto, por um problema que vai além do equilíbrio jurídico entre privacidade, sigilo,
livre comunicação e segurança pública. Enfrenta um desafio mais profundo gerado pelo "admirável mundo novo" virtual:
como balizar a tecnologia humana em nome de um humanismo essencial? E não estamos diante de uma hipótese de ficção
científica...
TERCIO SAMPAIO FERRAZ JUNIOR, 74, é professor aposentado da Faculdade de Direito da USP e professor emérito da
Faculdade de Direito da USP-Ribeirão Preto. JULIANO MARANHÃO, 41, advogado, é professor associado da Faculdade de Direito
da USP. MARCELO FINGER, 50, é professor titular de ciência da computação do Instituto de Matemática e Estatística da USP.
Jornal FOLHA DE SÃO PAULO, Agosto de 2016.
'Pokemon Go' não é destinado às crianças
(ROSELY SAYÃO)
MUITOS pais se afetam tanto com os caprichos dos filhos. O capricho atual é jogar "Pokemon Go". Então vamos
enfrentar a fera, já que inúmeros pais querem saber se deixam o filho ter o jogo, qual a idade para começar, se pode
prejudicar, se pode beneficiar, qual o tempo que se deve permitir que a criança se dedique ao jogo, como fazer para ela
aceitar o limite de tempo etc.
Um pai pegou um táxi só para que o filho conseguisse caçar uma determinada criatura do jogo, outro deixou a filha de
11 anos ir até um lugar que considera perigoso porque ela estava acompanhada de outras colegas e "precisava" muito
ganhar um ovo virtual. O pai ficou preocupado, mas permitiu. Assim fica difícil!
Meus caros pais, um jogo é um jogo, apenas isso. As características desse em particular revelam que ele não é
destinado às crianças. Quantas delas saem para o espaço público desacompanhadas de um adulto na "vida real"? Como
nossas crianças são jovens desde os primeiros anos de vida, porém, foram capturadas pela sensação do momento. Mas os
pais devem ter suas referências, e não abdicar delas só porque a atividade virou febre social.
O primeiro passo é conhecer o jogo: como funciona, quais as metas, o que o filho deve fazer para alcançá-las. Se, para
a família, ele não é inconveniente, não transgride os princípios priorizados, não apresenta imagens ou atos que ela não
aceite, ela pode permitir que o filho brinque. Não é preciso aprender a jogar ou apreciar, mas é necessário conhecer os
princípios básicos do aplicativo antes de permiti-lo.
O segundo passo é avaliar o tempo que o filho tem em seu cotidiano para ajudá-lo a administrar isso entre todas as
atividades e ainda ter tempo para ficar sem fazer nada. Como há crianças mais rápidas e outras que dedicam mais tempo a
cada atividade, não é possível determinar um tempo padrão. Aqueles que fazem tudo mais rapidamente não podem dedicar
tanto tempo ao jogo; os que fazem tudo mais tranquilamente, porém, podem brincar mais, por exemplo. Uma coisa é certa:
a criança e o jovem têm muito o que fazer e pensar, por isso não podem se limitar a uma atividade específica. Caros pais,
observem o tamanho e a complexidade do mundo que eles precisam conhecer!
Quando uma criança ou jovem gosta muito de algo, seja por iniciativa pessoal ou por adesão do grupo, é fácil para ele
ficar horas e horas só naquilo, prejudicando todo o resto. Os pais não devem permitir. Para tanto, devem fazer valer sua
autoridade, dizendo "agora chega". Isso vale para tudo, porque os mais novos ainda não têm ou estão desenvolvendo seu
índice de saciedade. E o "agora chega" dos pais ajuda muito a estabelecer esse limite. Os filhos vão reclamar, choramingar,
brigar, implorar, insistir, tentar negociar, seduzir, propor trocas, chantagear. São as estratégias que têm para alcançar o que
querem. E são, portanto, legítimas.
Os pais precisam bancar tudo isso e firmar sua decisão, mesmo que seja para aguentar cara feia. Aliás, os filhos sabem
muito bem que isso costuma funcionar. Mas cara feia passa, lembram disso? Por fim, é importante ensinar, nas entrelinhas,
que não é bom se tornar escravo de um capricho, de um gosto, de uma diversão. É muito melhor prepará-los para que
sejam autônomos e livres, não é?
ROSELY SAYÃO é psicóloga, consultora em educação e articulista do programa “Seus Filhos” da Rádio BandNews FM, fala sobre
as principais dificuldades vividas pela família e pela escola no ato de educar e dialoga sobre o dia-a-dia dessa relação. Jornal
FOLHA DE SÃO PAULO, Junho de 2016.
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Só é possível viver com leveza quando sabemos que logo a vida vai
acabar (CONTARDO CALLIGARIS)
FUI ver "A Viagem do meu Pai", de Philippe Le Guay, que me pareceu muito melhor do que diz a crítica. Espero que o
filme continue em cartaz: é uma visão tocante (e não desesperadora) da idade avançada –na experiência do idoso e dos
que convivem (ou conviverão, mais cedo ou mais tarde) com ele.
Claro, o filme só conta "uma" história. Em matéria de velhice, é bom lembrar o título do ótimo livro de Jack Messy, que
imitava o bordão de Lacan sobre a mulher: "A Pessoa Idosa Não Existe" (ed. Aleph). Messy lembrava, assim, que cada um
envelhece do seu jeito. Uma frase de Julian Ajuriaguerra (grande neuropsiquiatra e psicanalista) circulava como um
provérbio, no hospital Sainte-Anne: "On vieillit comme on a vécu" (a gente envelhece como viveu) –ao envelhecermos,
seremos nós mesmos, só que velhos.
Lembro-me de uma conversa, nos anos 1980, com Jean Bergès (sucessor de Ajuriaguerra no hospital Sainte-Anne). Eu
descrevia um caso de alexitimia num paciente idoso (alexitimia é uma extrema dificuldade em verbalizar, descrever e até
viver sentimentos e emoções). Eu entendia a dita alexitimia como um sintoma da idade do paciente. Bergès observou que
existia uma boa chance de que meu paciente não fosse muito diferente quando era jovem.
A velhice não é um tipo de personalidade e, se for um transtorno, seria reativo: o jeito de cada um reagir à perda da
identidade profissional (que pesa desde a aposentadoria), à sensação de uma maior proximidade da morte, ao luto do casal
e dos amigos, que vão morrendo, à perda da saúde (nem tanto pela chegada de uma grande doença quanto pela síndrome
do carro velho, que começa a dar uma encrenca atrás da outra), à perda da autonomia (com necessidade de ter assistência
ou de viver num quadro comunitário) etc. A lista é longa.
A reação a essas perdas, muito mais do que a idade, define o que é a velhice avançada. Há o idoso que se deprime, há
aquele que se angustia, e quase todos começam a delirar. O idoso tem boas razões para ser paranoico. Começa com a
constatação de que, em tese, ele vai morrer antes dos outros: o que significa que os mais jovens o empurram para a saída.
Passa pela sensação de que ele está sendo roubado por aqueles que ficarão com suas coisas (a casa e o relógio, por
exemplo). E acaba na necessidade de se mostrar sempre desconfiado: não me deixo enganar significa, no caso, "ainda não
estou morto".
As mesmas razões que alimentam a paranoia do idoso produzem sua falta de interesse na vida dos outros.
Frequentemente, conversar com um idoso é um exercício de humildade. O que a gente diz tem pouca importância, e o
interesse do idoso é fingido –como se nada pudesse se comparar ao drama da vida dele que está acabando. Agora, eu
gosto dos idosos e de sua companhia, mas admito que esses meus "bons sentimentos" sirvam sobretudo a esperança de ser
eu mesmo amado (e amável) quando serei idoso. Concordo, não vai ser fácil.
O idoso somos nós amanhã. Mas no sentido oposto ao que acontece com as crianças; sonhamos que as crianças
venham a ser tudo o que queríamos ser e não fomos, enquanto o idoso é o fruto de uma espécie de idealização negativa:
ele é o que não gostaríamos de vir a ser, é o retrato de um declínio que preferiríamos evitar. Será que a grande idade,
então, não traz nada de bom? O que há de interessante na experiência do idoso? Além do luto antecipado de si mesmo,
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além da sensação de superfluidade em fim de linha, além de um certo nojo de si e de um corpo que falha, além da
desconfiança (vocês não me matarão e descartarão enquanto durmo)". Não há nada que preste?
Em outras palavras, será que existe um jeito "legal" de ser idoso? Será que as perdas podem trazer algo diferente do
ressentimento e do luto? Será que pode valer a pena viver até lá? Gostei da última cena do filme de Le Guay. Justamente
porque acho que deve ser possível envelhecer até ser idoso "pegando leve". Explico. Há um clichê que pergunta sempre
como podemos viver sabendo que logo iremos morrer.
A velhice avançada poderia ser o momento em que a gente descobre que talvez esse clichê possa e deva ser subvertido,
com a sabedoria que a grande velhice traz: saber que vamos morrer não impede de viver – ao contrário, só é possível viver
com leveza quando sabemos que logo a vida vai acabar. Essa é a sabedoria do idoso.
CONTARDO CALLIGARIS é psicanalista, doutor em psicologia clínica e escritor. Ensinou Estudos Culturais na New School de NY
e foi professor de antropologia médica na Universidade da Califórnia em Berkeley. Reflete sobre cultura, modernidade e as
aventuras do espírito contemporâneo (patológicas e ordinárias). Jornal FOLHA DE SÃO PAULO, Agosto de 2016.
Senado deve aprovar impeachment de Dilma Rousseff? NÃO
Grande jogo de interesses pequenos (KÁTIA ABREU)
A ESTA altura, depois de toda a apuração e de longas discussões, não se pode aceitar que Dilma Rousseff tenha
cometido crime de responsabilidade e, portanto, que o processo de impeachment deva resultar no seu afastamento. A
história é outra.
Quem se dedicar a analisar os indicadores econômicos dos últimos anos vai perceber que vivemos uma redução da
atividade econômica, em muito influenciada por fatores externos. Queda dos preços das commodities, mudança da política
monetária dos Estados Unidos e desaceleração da economia chinesa estão entre os principais.
Diante desse cenário adverso, buscando minimizar seus impactos para a população, o governo lançou mão de medidas
de estímulo. Esse movimento teve sucesso e preservou avanços sociais. Passado o momento mais agudo da crise, tornou-se
necessário por em prática outro rol de medidas, mais estruturantes, para garantir maior solidez fiscal.
No final de 2015, o governo enviou à Câmara dos Deputados medidas legislativas necessárias à recuperação da saúde
fiscal do país. Enfrentou enorme resistência. Além de impedir a votação de projetos fundamentais, o então presidente da
Câmara, Eduardo Cunha, utilizou as tais pautas-bombas como elemento de terrorismo político para desestabilizar o governo.
Estava desenhado o cenário ideal para a proposta de impeachment. O discurso de que houve crime de
responsabilidade em atos de gestão foi o disfarce encontrado para uma articulação política da pior espécie, que se
aproveitou da queda de popularidade da presidente para tentar derrubá-la. Um grande jogo de interesses pequenos.
Essa manobra foi desmascarada quando, um a um, os falsos argumentos dos defensores do afastamento foram sendo
destruídos. Em 27 de junho, a perícia elaborada por técnicos do Senado não identificou ação da presidente na decisão de
atrasar os pagamentos a bancos públicos de subsídios do Plano Safra. Ou seja, não houve pedalada.
Menos de um mês depois, o Ministério Público Federal em Brasília pediu à Justiça Federal o arquivamento da
investigação aberta para apurar se houve crime de responsabilidade em operações financeiras do governo. O procurador
Ivan Cláudio Marx concluiu que não houve operação de crédito sem autorização legislativa. Mais uma vez: não houve
pedalada.
Restou aos arquitetos do afastamento a via da política. Todo impeachment é um ato político que não pode prescindir
de uma causa jurídica. Estivéssemos nós em um regime parlamentarista, bastaria um voto de desconfiança. Não é nosso
caso, entretanto. Não podemos ser ingênuos. Não havendo provas do crime do qual acusam a presidente, ela não pode ser
afastada de um cargo no qual foi posta pela maioria dos brasileiros. A política não deve servir a isso.
Não podemos também, sob hipótese alguma, ceder ao bordão fácil de que a presidente foi leniente com a corrupção. A
Operação Lava Jato teve início em 2014 -no governo Dilma, portanto- e, quanto mais se aprofunda no submundo da política
brasileira, mais fica claro que a corrupção não tem horizonte temporal definido nem se cinge a um determinado partido.
Infelizmente.
O Senado Federal tem agora a missão de se manifestar sobre o afastamento definitivo da presidente. Espero que meus
colegas avaliem com muito cuidado o precedente que estarão abrindo se permitirem que isso aconteça. Nelson Rodrigues
disse que, muitas vezes, é a falta de caráter que decide uma partida, que não se fazem literatura, política e futebol com
bons sentimentos. Quero, ao fim desse processo, e no que tange à política, ter razões para discordar dele.
KÁTIA ABREU, 54, agropecuarista, é senadora (PMDB/TO) e presidente licenciada da Confederação da Agricultura e
Pecuária do Brasil (CNA). Foi ministra da Agricultura (governo Dilma). Jornal FOLHA DE SÃO PAULO, Agosto de 2016.
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Senado deve aprovar impeachment de Dilma Rousseff? SIM
Voto pelo Brasil (CRISTOVAM BUARQUE)
HÁ MOMENTOS em que votamos com entusiasmo pelo futuro com que sonhamos; em outros, votamos para impedir
um futuro que nos assombra. Se o julgamento da presidente afastada, Dilma Rousseff, fosse hoje, eu votaria pelo
impeachment, não apenas por razões jurídicas ou só pelo conjunto da obra passada mas, sobretudo, pelos riscos que a
volta de Dilma representa para o futuro do Brasil.
Não estou votando nem aderindo ao governo do presidente interino, Michel Temer. O impeachment decorre do
descrédito do governo Dilma, da falta de apoio nas ruas e no Parlamento, dos erros cometidos na gestão da economia, da
contaminação com a corrupção, dos crimes de responsabilidade.
Decorre, sobretudo, da percepção de que a volta dela ao poder, com o mesmo modelo político-econômico, significaria
que o Congresso é conivente com erros, corrupção e ilegitimidades fiscais. Em agosto de 2015, os senadores João
Capiberibe (PSB), Randolfe Rodrigues (Rede), Lasier Martins (PDT), Acir Gurgacz (PDT), Lídice da Mata (PSB) e eu fomos ao
Alvorada e entregamos uma carta à presidente Dilma, na qual dizíamos que o Brasil tinha três cenários negativos adiante: a
continuação de seu governo, seu impeachment ou a cassação da chapa Dilma/Temer.
Para evitar as dificuldades que seu governo enfrentaria, sem cair no impeachment, sugerimos que reconhecesse seus
erros, dissesse que seu partido era o Brasil e pedisse apoio a todos para governar até o fim do mandato. Nossas sugestões
não foram consideradas.
Durante o longo processo de impeachment, que o Congresso Nacional seguiu dentro do rigor constitucional, Dilma não
indicou o rumo que seria dado por um novo governo seu. Nada disse sobre como construir a necessária base de apoio
parlamentar, como acalmar as ruas, que estratégia econômica adotaria para retomar o crescimento, gerar emprego,
promover a estabilidade monetária e superar a crise fiscal.
Concentrou-se nos aspectos jurídicos, em chamar de golpistas dois terços dos deputados federais e senadores. Estou
cumprindo um dever que as circunstâncias históricas e meu compromisso com o país e seu futuro me impõem, de acordo
com minha análise e consciência. Carrego a esperança de que o governo sucessor seja capaz de recuperar o equilíbrio de
nossas contas, resgatar a credibilidade necessária à volta do crescimento e do emprego, manter os bons projetos sociais,
retomar o diálogo com o Parlamento e as ruas e fazer a travessia até 2018.
Tenho consciência de que meu voto provocará incompreensão e decepção em amigos e companheiros, eleitores e
leitores, além de desprestígio no exterior. Sinto, entretanto, que esse é um ato necessário para reorientar o futuro do Brasil
e, portanto, justifica o sacrifício. Depois de tantos erros na economia, falsas narrativas do marketing político, tolerância com
a corrupção, crimes de responsabilidade e descrédito imposto às forças progressistas, precisamos virar a página de um
governo que ajudei a eleger e apoiei em parte de seu longo mandato de 13 anos.
Voto com a esperança de que surja uma nova esquerda dos escombros, sem o vício e o acomodamento dos últimos
anos. É com pesar, mas com a sensação de corrigir rumos, que voto pelo impeachment. Um voto triste, mas necessário.
CRISTOVAM BUARQUE, 72, é senador (PPS-DF) e professor emérito da Universidade de Brasília. Foi governador do
Distrito Federal e ministro da Educação (governo Lula). Jornal FOLHA DE SÃO PAULO, Agosto de 2016.
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