Pegadas de Deus

Transcrição

Pegadas de Deus
Conselho Federal de Medicina
Pegadas de Deus
Júlio Torres
Brasília
2013
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Conselho Federal de Medicina
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Copidesque/revisão: Napoleão Marcos de Aquino
Projeto gráfico e diagramação: Leandro Rangel
Impressão: Portal Print Gráfica e Editora Ltda - ME
Tiragem: 1.000 exemplares
Os livros, artigos, textos e comentários assinados são de inteira responsabilidade do(s) autor(es) e não
representam, necessariamente, a opinião do Conselho Federal de Medicina (CFM).
Catalogação na fonte: Eliane Maria de Medeiros e Silva – CRB 1ª Região/1678
Torres, Júlio
Pegadas de Deus. / Júlio Torres. – Brasília: CFM, 2013.
166 p. ;13,5 x 20,5 cm.
1.Religião. I.Título.
CDD 210
Sumário
Mensagem do presidente do CFM .............................................................. 7
Apresentação ........................................................................................................... 9
Prefácio ....................................................................................................................... 11
Introdução ................................................................................................................ 13
A fé ................................................................................................................................ 15
• Por que acreditamos? ................................................................................... 18
• Por que decidimos acreditar? .................................................................. 20
• Em que acreditamos ..................................................................................... 23
Credo .......................................................................................................................... 27
• Parêntese 1 ........................................................................................................ 35
• Parêntese 2 ........................................................................................................ 51
• Parêntese 3 ........................................................................................................ 80
• Parêntese 4 ........................................................................................................ 85
• Parêntese 5 ...................................................................................................... 107
Os sacramentos ................................................................................................. 111
• Generalidades ............................................................................................... 112
• O Batismo ........................................................................................................ 117
• O Crisma ou Confirmação ....................................................................... 118
• Reconciliação ................................................................................................. 120
• Eucaristia .......................................................................................................... 126
• Ordem ................................................................................................................ 133
• Unção dos Enfermos .................................................................................. 135
• Matrimônio ..................................................................................................... 136
Do coletivo ........................................................................................................... 139
• Da solidão ........................................................................................................ 140
• Amar - Amor ................................................................................................... 143
• Conhecer, aceitar e crescer ..................................................................... 148
• Epílogo .............................................................................................................. 160
Mensagem do presidente do CFM
Aquilo que escapa aos olhos não pode ser ignorado pela razão e
pelo sentimento. São forças indiscutíveis que podem construir ou
comprometer realidades. Assim acontece na medicina, na prática
diária, quando testemunhamos mudanças de rumo impensáveis
pela lógica cartesiana, mas que ocorrem por conta de fatores intangíveis.
As discussões sobre ética médica, humanidades em medicina e
terminalidade da vida não ignoram esses ingredientes. Portanto,
para o Conselho Federal de Medicina (CFM), estimular essa reflexão é importante para termos não apenas médicos melhores, mas
seres humanos melhores.
A obra Pegadas de Deus, de autoria do conselheiro Júlio Torres (representante do Amazonas no CFM), é uma oportunidade de abordar a fé sob a ótica de homens que exercem a medicina e defendem que sua prática ocorra subordinada a valores como justiça,
solidariedade e respeito ao próximo.
Roberto Luiz d’Avila
Presidente do Conselho Federal de Medicina
Júlio Torres
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Apresentação
Considerando que a família é a principal força capaz de gerar uma
sociedade feliz, dedico este livro aos jovens, namorados, noivos
e esposos que são a base das famílias do presente e do futuro,
na esperança de que os ajude a construir pequena parte de um
mundo novo.
Em especial, dedico-o a minha família de origem: meus pais Pedro
e Donzinha – há muito habitando a mansão das bem-aventuranças reservadas aos justos – e meus irmãos João, José, Maria Tereza
e Jorge. Juntos, construíram os alicerces da minha fé de forma tão
sólida que jamais foi abalada; a minha amada esposa Maria Auxilium e àqueles que a geraram (Cícero e Maria de Lourdes, também
acolhidos na casa do Pai), bem como a seus irmãos (Maria Thereza,
Mauro, Marta, Marcos e Marcelo); aos meus filhos Mônica, Kátia,
Juliana e Júlio; aos meus genros Alessandro, Paulo, Theodomiro e
a minha nora Stella Regina; aos meus netos Matheus, Thiago, Felipe, Vinicius, Guilherme, Gabriel, Heitor, Lourenço, Mariana, Pedro
Henrique, Ana Luiza – e a mais alguns que a bondade divina ainda
nos venha a oferecer.
Ao redor e por causa dessas pessoas, a graça de Deus circula abundantemente em minha vida.
Júlio Torres
Júlio Torres
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Prefácio
A fé (do latim fides, fidelidade e do grego πίστη, pistia) pode ser
traduzida como a firme convicção de que algo é verdadeiro, mesmo que sem qualquer tipo de prova ou parâmetro objetivo de verificação. Trata-se de uma expressão de absoluta confiança naquilo que acreditamos como ideologia ou fonte de inspiração.
Ao falarmos de Pegadas de Deus, escrito pelo conselheiro Júlio
Torres, este tema se apresenta como incontornável. Em 166 páginas o autor o aborda com a elegância e a veemência de quem
testifica, diariamente, seus efeitos na própria vida.
Não queremos limitar as discussões sobre a fé às questões religiosas, muito menos a desta ou daquela religião. A relevância da fé
existe a partir do momento em que esse ato de acreditar – o qual
consideramos inerente à humanidade – é capaz, ou não, de nortear comportamentos, princípios e adoção de valores.
Da mesma forma, o exercício da fé, quando em contraste com o
ambiente médico, desperta outras reflexões profundas, pois está
quase sempre atrelado às questões que envolvem a vida e a morte. Nesses momentos definitivos, a crença – ou a ausência dela –
pode trazer angústia, alívio e consolo.
Em tempos duros, para muitos no qual a moral está em concordata, é mais que oportuno abordar o terreno subjetivo da fé. Esse
debate pode ser definitivo no realinhamento de nossas jornadas
(individual e coletiva). Neste aspecto, Pegadas de Deus funciona
como bússola, ao dar pistas de como avançar de forma a resgatar
pelo caminho a essência do viver ético, independentemente do
que acreditamos.
Dalvélio Madruga
2º tesoureiro do CFM
Representante da PB
Desiré Carlos Callegari
1º secretário do CFM
Representante de SP
Júlio Torres
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Pegadas de Deus
Introdução
Quando alguém deseja iniciar qualquer aprendizado, logicamente principia pelas informações mais simples. Contudo, no tocante
à religião, a esses conhecimentos elementares deve-se acrescentar, sobretudo, a experiência vivida de outras pessoas, visto que a
fé, diferentemente da ciência, não pode ser ensinada.
No intuito de elaborar palestras para os trabalhos desenvolvidos
na Pastoral Familiar, senti a necessidade de propiciar o entendimento dos pontos básicos de nossa fé cristã, de maneira bem simples e elementar, transmitindo o pouco que sei, da maneira mais
clara possível.
Este livro resulta desta tentativa. Por isso, não há qualquer pretensão de que seja uma exposição teológica; antes, é o humilde esforço catequético de um leigo. Procurei abordar os pontos gerais
de nossa fé e o que podem representar em utilidade prática para
a vida. Levou-me a escrevê-lo o mesmo motivo que faz com que
tantos leigos abdiquem de boa parte de seus momentos de lazer
para se dedicar a trabalhos da Igreja: a certeza, já experimentada,
de que a religião é de importância fundamental para o homem e
para a sociedade.
Portanto, destina-se aos que trabalham nas pastorais. Aos que,
após participarem de um encontro ou preparação para os sacramentos, se sentem motivados a conhecer a doutrina cristã, começando pelo mínimo necessário. A todos os que, atraídos pelos
mistérios de Deus, não dispõem de tempo suficiente para leituras
mais profundas e mais completas. E também àqueles que, por
simples curiosidade, desejam saber em que e por que os católicos
acreditam, e para que serve esse acreditar.
Se após a leitura se sentir desejoso de aprofundar-se neste estudo, se passar a acreditar mais e a viver mais a religião, se ficar menos “desconfiado” com a Igreja de Cristo, considero ter alcançado
meu objetivo.
Júlio Torres
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Há mais de 20 anos, precisamente em 1983, fiz a primeira tentativa de publicá-lo: inicialmente manuscrito; depois, datilografado
por mim e feita uma cópia, à máquina, por uma datilógrafa profissional. A professora Marta Luz, minha cunhada, realizou a revisão
ortográfica e após as correções novamente o datilografou. Daí depreende-se o trabalho que deu, época em que o computador não
era utilizado para escrever textos e quaisquer mudanças implicavam em fazer tudo de novo. Por razões que superaram minha pretensão, tal intento não se concretizou. Cerca de dois anos antes,
quando iniciei os manuscritos, tomei conhecimento da existência de uma obra intitulada A fé explicada aos jovens e adultos, de
autoria de Rey-Mermet, e interrompi a escrita. Julguei que talvez
fosse o que tinha em mente escrever. Seu conteúdo, no entanto, estava muitíssimo além do que imaginava em meu humilde
projeto. Reiniciei a escrita que adormeceu por todos esses anos
– foi, portanto, uma gestação extremamente demorada. Em 1993,
surgiu o Catecismo da Igreja Católica, extraordinária explanação
sobre as bases de nossa fé.
Entretanto – continuo a supor –, este modesto e despretensioso
trabalho poderá ter seu lugar para uma leitura mais sucinta e simples que a obra acima citada: uma espécie de alfabetização a preparar pessoas para leituras e estudos mais profundos. Espero que
o leitor também assim o considere, um ‘aperitivo’ suficiente para
abrir o apetite para o ‘banquete’ de uma fé mais aprofundada.
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Pegadas de Deus
A fé
Religião é palavra de origem latina. Significa “re-ligar-se”, relacionar-se, manter relacionamento o mais íntimo possível com Deus.
Ser religioso é desenvolver este relacionamento com um esforço
de vida e em profundidade progressiva, como fruto de um amor e
confiança crescentes para com ele.
Para viver esta experiência, e sobretudo para que possa se projetar por meio de nós, operando modificações em cada vida humana e, consequentemente, na sociedade, faz-se necessária uma
pedra fundamental chamada fé. A fé é o ponto básico para o acolhimento de todas as verdades do cristianismo, principalmente
daquelas capazes de nos transformar. É fonte de realização interior para muitos, embora eventualmente pareça uma pedra no
caminho para outros, impedindo o eventual desejo de prosseguir
em frente.
Ter fé é acreditar no que não é percebido pelos próprios sentidos,
nem pode ser provado – apenas isso.
Muitos declaram não ter fé pelo fato de a imaginarem como algo
extraordinário, extranatural. No entanto, no nível humano, ela está
presente em nosso dia a dia, integra nossa vida, embora passe
despercebida. Permanentemente, no nosso relacionamento com
as pessoas e o mundo, realizamos variados atos de fé sob sua forma mais elementar, que chamamos de confiança. Acreditamos no
clínico que nos passa remédios cujo efeito desconhecemos; no
cirurgião e anestesista que, não raras vezes, nos levam ao limiar da
morte e nos trazem de volta à vida e à saúde; nos ensinamentos
de um professor, mesmo sem repetir-lhe a experiência; na tripulação de um avião que nos transporta; no amor de alguém. Acreditamos em muitas pessoas e coisas, simplesmente por acreditar.
Em qualquer situação, o voto de confiança que nelas depositamos
é um ato de fé humana.
Muitos acham que não têm fé por confundi-la com outra coisa: o
conhecimento. Quando se trata de fenômeno ou situação claramente sensível, que pode ser provado cientificamente, temos co-
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Pegadas de Deus
nhecimentos sobre ele. Caso contrário, limitamo-nos a acreditar.
Isto é fé. A fé, portanto, é algo que ultrapassa o conhecimento humano. Algo que, passo a passo, pode transportar o homem para
além das barreiras dos seus limitados sentidos e do ponto final
do seu raciocínio formal, complementando a ciência e o pensar
sobre coisas materiais.
Pelos sentidos, o homem alcança curtíssimo espaço do seu mundo. Pelo raciocínio convencional, científico, consegue atingir espaço maior, porém penetra infalivelmente, se exigente e sensível
for, no mundo das sombras, das dúvidas angustiantes, dos vazios
sem fim, das infinitas perguntas sem resposta.
Pela fé, o homem pode romper as limitações da matéria e se transpor para além do finito, atingindo as margens do mistério pelo
qual é atraído. Em paralelo, a fé não deve ser a aceitação de coisas
absurdas, nem a instituição da preguiça mental. Não é atitude interior comodista, saída mais fácil para o problema existencial humano ­– o que não satisfaz nossa busca. É sempre uma resposta
pessoal e, por isso, não pode ser dissociada da razão e da inteligência. O fato de se colocar para além das possibilidades da comprovação não significa que seja irracional. Ao contrário, muitos são
os fenômenos cuja explicação mais sábia é dada exatamente pela
humildade da fé. Há situações em que o mais lógico e sensato é
responder apenas acreditando, e nada mais. Há campos imensos
e distantes, diante dos quais a inteligência para ou, se continua, é
pelos caminhos da fé.
Humanamente falando, a disposição de acreditar é um processo,
uma caminhada muitas vezes lenta. A fé utilizada para acreditar
nos atos de Deus não foge a este princípio, desde que a pessoa
se disponha a buscar. Há os quem têm – e felizmente são muitos
– um coração tão plácido e puro que dispensam grandes informações e deduções lógicas: simplesmente entregam-se nas mãos do
Deus da ternura sem questionamento algum. Com certeza, são
bem mais felizes assim.
Júlio Torres
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Por que acreditamos?
Diante da realidade que nos cerca, as respostas humanas são as
mais variadas possíveis. O que para alguns é tão fácil de ser acreditado, para outros é totalmente irreal. O que para alguns é de uma
clareza meridiana, a outros parece envolto na mais negra escuridão. O que uns juram ser a verdade, a outros não passa de mero
absurdo intelectual. No entanto, em meio ao emaranhado das
crenças humanas, do labirinto de caminhos percorridos do pensar, da imensa relatividade do “crer” humano, uma coisa há que
existir de real e absoluta: a verdade final, a verdade em si mesma
– que independe de interpretações pessoais ou de grupos. Neste ponto inicial ou derradeiro das elucubrações humanas, já não
mais se trata de acreditar ou não. A liberdade do homem esbarra
ante a realidade. A verdade final existe independentemente de
nossa vontade ou de nosso pensar e não se submete ao nosso
raciocínio ou tentativa de demonstração.
Como os humanos são muitíssimo limitados, não obstante intelectualmente desenvolvidos, ainda há um abismo entre seus conhecimentos e a verdade absoluta. À medida que a ciência vai
aumentando o campo do conhecimento, mais fatos são esclarecidos, mas um novo mundo se abre e as perguntas continuam. É
como a linha do horizonte: está sempre presente, porém distante,
fora de nosso alcance. Este vão imensurável só pode ser transposto pela fé. Somente ela pode responder às perguntas: de onde venho? Para onde vou? Para que serve minha vida? Por que e para
que tanta beleza e perfeição na natureza? Por que o mal e a doença? Por que e para que amar? Como surgiu a vida? Por que tantas
pessoas acreditam em Deus? Qual a natureza íntima do pensar
humano? Etc., etc.
O ponto de partida para a aceitação de certas verdades pela fé é,
na prática, como todos os atos importantes da vida, uma questão
de opção, de decisão. Ante tão significativo e atraente mistério,
o homem decide acreditar, fazendo uso de sua intocável liberda-
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Pegadas de Deus
de pessoal, sem abdicar de sua racionalidade e inteligência. Cabe
citar a célebre “aposta de Pascal”, de Blaise Pascal, filósofo e matemático francês do século XVII que em sua obra mais conhecida
– Pensamentos – afirmou: “Consideremos este ponto e digamos o
seguinte: ou Deus existe ou não existe. Mas qual das alternativas
devemos escolher? A razão não pode determinar nada: existe um
infinito caos a nos dividir. No ponto extremo desta distância infinita, uma moeda está sendo girada e terminará por cair como cara
ou coroa. Em que você aposta?”.
Um rapaz e uma moça se encontram nas estradas da vida. Conhecem-se, enchem-se de emoções diversas, apaixonam-se e chega
um momento em que um diz para o outro: “Eu te amo”. O outro só
pode se limitar a acreditar nesta declaração de amor. Não há meio
algum de comprová-la, pois o amor é vivência. Porque decidem
acreditar um no outro, inicia-se entre ambos um complexo processo de revelação do eu, de sacrifício pessoal, de entrega – e este
é um belo e inegável exemplo de fé.
Assim, a fé não é algo que se tenha ou não, que se adquira ou
perca, como se fosse um objeto. É algo pelo qual se decide. Tomada a decisão, e só a partir daí, as peças do quebra-cabeça vão
se arrumando gradativamente e o pensar sobre as coisas de Deus
quase se transforma no raciocinar convencional. A aceitação de
uma verdade como tal traz em consequência o esclarecimento de
outras – e assim por diante.
O homem moderno está acostumado a raciocinar em torno de
fatos concretos. A fé, então, se torna difícil, escorregadia. Alguns,
em razão desse comportamento, criam uma espécie de crosta:
vez por outra, em certos momentos de emoção, reações vivenciais especiais ou certas datas (Natal, por exemplo), por dentre as
frestas dessa espessa camada fluem finos raios de crença. Nessas
horas as pessoas se sentem bem, mais humanas, mais felizes, menos sozinhas. Contudo, logo se fecham – talvez por medo de dar
um passo à frente.
Júlio Torres
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Por que decidimos acreditar?
No nível puramente humano, acreditamos em muitas coisas. A
dificuldade principia quando de situações que se colocam para
além das aparências comuns e triviais ou sem fácil explicação. O
ponto central da fé cristã é a pessoa de Jesus de Nazaré, o Cristo.
Fato histórico conhecido, concreto, incontestável por quem possua bom-senso. Não é assunto de fé.
É absolutamente inegável que:
• existiu, naquela região do mundo, naquele tempo, sob aquelas
condições históricas e detalhadamente descritas nos Evangelhos;
• pregava uma doutrina transformadora, uma determinada filosofia de vida (se assim a pudermos chamar). Era homem muito
inteligente, de grande liderança e oratória deslumbrante, profundamente humano, corajoso e coerente. O evangelista São Lucas
(que era médico) nos conta: “Todos davam testemunho a seu respeito, admirados com as palavras cheias de encanto que saíam
de sua boca” (Lc 4,22), numa narração exclusivamente humana
da pessoa de Jesus. Paralelamente, seu discurso e práxis eram tão
contundentes que alguns de seus parentes tentaram interromper
sua missão achando estar ficando louco (Mc 3,21). O conteúdo de
sua pregação, enquanto estilo de vida, foi por ele mesmo condensado sob o título de “Reino de Deus” ou “Reino dos Céus” – estado
pessoal e comunitário que, infalivelmente, poderá resultar como
consequência do cumprimento radical da vontade de Deus, da
obediência às suas leis, desígnios e projetos. Esta era sua mensagem central e definitiva;
• foi crucificado por razões políticas e religiosas, principalmente
devido às ideias que pregava. Não houve nada de novo nisso, pois
a crucificação era um método comumente usado na época para a
aplicação da pena de morte;
• fazia-se acompanhar por pequeno grupo de pessoas por onde
andava;
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Pegadas de Deus
• muitos homens e mulheres, após sua morte, prosseguiram o seu
trabalho de pregação e por ele deram a vida, sendo perseguidos e
perseguidas, como ilegais, até o martírio, durante quase 300 anos.
Convenhamos, tempo suficiente para provocar desistências irreversíveis;
• essas mesmas pessoas se organizaram progressivamente, cresceram em número, resultado de um trabalho feito sem quaisquer
meios fáceis de transporte e comunicação, a ponto de abalarem o
Império Romano, a maior e mais sólida estrutura política e militar
da antiguidade;
• os que acreditaram nele passaram a ser chamados de cristãos
(de início, um termo pejorativo); depois, eles próprios assim se denominaram e formaram (e ainda hoje formam) uma comunidade
chamada Igreja, solidamente constituída.
Disso todos sabem. É uma realidade material, palpável.
Assunto de fé é o que está para além dessas aparências: que existe
realmente o Deus de quem Jesus falava constantemente e chamava de Pai (Abbá). Que realizou diversos milagres, inclusive ressuscitou pessoas, conforme muitos testemunhos. Que ele próprio
ressuscitou no terceiro dia após sua morte. Que diversas pessoas
o viram e com ele conviveram, após a ressurreição. E que essas
pessoas, exatamente por tal razão, se convenceram por completo
e tiveram a certeza definitiva de sua condição divina, sendo assim
movidas para o trabalho de espalhar sua doutrina.
Se esses últimos fatos mencionados não são verdadeiros – apesar
de narrados e vivamente transmitidos pelos primeiros cristãos –
teríamos de admitir duas hipóteses: ou estavam enganados ou
estavam enganando.
Enganando não é possível, pois não havia nenhuma vantagem em
fazê-lo; ao contrário, morriam aos montes por causa disso. Em um
só dia, mais de dois mil foram crucificados em Roma com intuitos
repressivos; além do mais, não o teriam conseguido. Enganados?
Júlio Torres
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É pouco provável que engano tão grosseiro tivesse gerado um fenômeno social tão belo, profundo, penetrante e humano como
é o cristianismo – universalmente presente exatamente por sua
inconteste lógica social. Nenhuma doutrina surgiu na história humana que tenha despertado tamanha mudança no panorama da
sociedade, em todos os níveis.
Vale aqui resumir um fato acontecido no começo da era cristã e
que se encontra narrado no chamado Atos dos Apóstolos, livro
da Bíblia que registra o começo do cristianismo (Atos 5, 34-40).
Pedro e João foram presos por propagarem a pessoa de Jesus e
rigorosamente proibidos de voltar a nele falar. Como insistiram,
foram novamente levados ante as autoridades máximas da época para novo e mais pesado julgamento. Havia um doutor da lei,
chamado Gamaliel (de quem Paulo se declarou discípulo em Atos
22,3), muito respeitado por todo o povo e que, pedindo a palavra,
argumentou não ser esta a primeira vez que acontecia um fenômeno popular daquele gênero. Citou dois supostos profetas que,
em tempos distintos, pregaram uma doutrina revolucionária e
arrebanharam elevadíssimo número de seguidores, mas tudo desapareceu rapidamente após suas mortes e nunca mais deles se
falou. Assim sendo, sugeriu deixar o tempo passar, inclusive por
questão de prudência: “Se o seu intento ou a sua obra provém de
homens, destruir-se-á por si mesma; mas se, ao invés, verdadeiramente vem de Deus, não conseguireis arruiná-la. Não vos exponhais ao risco de combater o próprio Deus” – disse. Apesar desse
conselho, seu discípulo Paulo perseguiu até a morte os cristãos
por muitos anos, até o momento em que se converteu.
Parece que Gamaliel estava mesmo certo, pois decorridos mais de
2000 anos suas palavras ainda são válidas – cada vez mais forte – e
o número de seus seguidores sempre aumenta, em todos os continentes. Outrora, dizia-se em latim: Veritas temporis filia (A verdade é filha do tempo). Neste mesmo espaço temporal, diversas
doutrinas e ideologias surgiram, antíteses de Deus, que tiveram
seus criadores endeusados e mistificados. Algumas impuseram
sua práxis pela força e violência, sacrificando milhões de vidas,
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Pegadas de Deus
cerceando a liberdade pessoal de pensar e agir. Não obstante,
soçobraram nas ondas da História, naufragaram para nunca mais
voltar à tona.
É exatamente a partir daí que começa a nossa fé. Por isso, podemos, em sã consciência, nos decidir a acreditar e, convenhamos,
nada há de absurdo ou irracional nesta decisão; pelo contrário, é
até mais difícil encontrar argumentos desfavoráveis.
Em que acreditamos?
Há diversas afirmações básicas que nós, cristãos, entendemos
como absolutamente verdadeiras – não se queira aqui discutir o
conceito de verdade, como anteriormente citado, mas como algo
real em si mesmo. Essas verdades foram e são aceitas pelo cristão católico, em virtude de informações bíblicas, testemunho de
pessoas desde o antigo povo judeu e dos cristãos desde o início
de nossa era. Resultam de investigações profundas e incansáveis
de teólogos (que estudam a divindade), escrituristas (que estudam as Sagradas Escrituras), cristólogos (que estudam a pessoa
de Cristo), pensadores autênticos e comprometidos com o cristianismo e a Igreja de Cristo.
São relíquias do pensar humano secularmente perpetuadas a partir daqueles primeiros cristãos que se reuniam em catacumbas e
que se consolidaram pela tradição oral e pela forma escrita, muitas
das quais anunciadas oficial e resumidamente no Credo da Igreja,
que às vezes até recitamos automaticamente na missa, sem devidamente interiorizar seu conteúdo. Outras não estão contidas no
Credo por razões históricas, mas integram o conteúdo dogmático
da Igreja, como os sacramentos.
Abordaremos os itens do Credo e os pontos fundamentais dos
sacramentos, que são a razão de ser de nossa vida espiritual. A
intenção é tornar claros os alicerces sobre os quais se edifica nossa
fé e prática cristã.
Júlio Torres
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Por profissão, exerço a Medicina. Para a ela chegar, evidentemente, como todos, perpassei as etapas de pré-alfabetização, alfabetização, ensino fundamental, ensino médio, vestibular, curso
universitário, graduação e pós-graduação – destacando-se o fato
de que ainda hoje devo manter-me atualizado para o seu pleno
exercício. Fazendo um relativismo, quem somente se batizou na
Igreja pode ser comparado a quem fez apenas a pré-alfabetização. Nos cursos de preparação para a Primeira Comunhão é como
se aprendêssemos a ler; os que se preparam para o sacramento
da Confirmação (o Crisma) já avançam mais nos conhecimentos.
Parar por aí é demasiado pouco para o exercício de uma vida que
almeje ser realmente digna de um cristão e traga como resultado
o preenchimento das reentrâncias, brechas e falhas onde comumente se escondem e enraízam as ervas daninhas das dores, tristezas, sofrimentos, angústias, defeitos e manias que prejudicam
as relações interpessoais, das dúvidas da alma.
É profundamente gratificante crescer na fé. Àqueles que nele
creem, Jesus prometeu uma vida plena que nada mais é que o
supremo e duradouro bem existencial pessoal e comunitário que
resulta mais do interior de cada um do que de tudo aquilo de
externo, superficial e passageiro que nos rodeia. Este bem-estar
anímico pode e comumente resulta de sua extraordinária ação
milagrosa, mas, independentemente dela, é algo tão plenificante
que até a um ateu pode ser a causa de um modus vivendi com
sensação de paz e liberdade. Vale a pena experimentar, mas, para
isso, é preciso conhecer sua proposta.
A respeito, vejamos algumas citações:
• Mt 11, 28: “Vinde a mim todos os que estais cansados sob o peso
do vosso fardo e eu vos aliviarei. Tomai sobre vós o meu jugo e
aprendei de mim, porque sou manso e humilde de coração, e encontrareis descanso para as vossas almas”.
• Mt 7, 24-27: “Assim, todo aquele que ouve as minhas palavras
e as põe em prática será semelhante a um homem sensato que
construiu a sua casa sobre a rocha. Caiu a chuva, vieram as enxur-
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Pegadas de Deus
radas, sopraram os ventos e deram contra aquela casa, mas ela
não caiu, porque estava alicerçada sobre a rocha. Por outro lado,
todo aquele que ouve estas minhas palavras mas não as pratica,
será comparado a um insensato que construiu a sua casa sobre a
areia. Caiu a chuva, vieram as enxurradas, sopraram os ventos e
deram contra a casa, e ela caiu. E foi grande a sua ruína”.
• Mt 13, 45-46: “O reino dos céus é como um comprador que procura pérolas preciosas. Quando encontra uma pérola de grande
valor, ele vai, vende todos os seus bens e compra aquela pérola”.
• Hb 11, 1.8: “A fé é uma posse antecipada do que se espera, um
meio de demonstrar as realidades que não se veem. Foi pela fé
que Abraão, respondendo ao chamado, obedeceu e partiu para
uma terra que devia receber como herança, e partiu sem saber
para onde ia”.
Júlio Torres
25
credo
Credo *
Creio em Deus Pai todo-poderoso,
criador do céu e da terra,
e em Jesus Cristo, Seu único Filho, Nosso Senhor,
que foi concebido pelo poder do Espírito Santo
nasceu da Virgem Maria
padeceu sob Pôncio Pilatos
foi crucificado, morto e sepultado
desceu à mansão dos mortos
ressuscitou ao terceiro dia, subiu aos céus
está sentado à direita de Deus Pai todo poderoso
donde há de vir a julgar os vivos e os mortos.
Creio no Espírito Santo,
na Santa Igreja Católica
na comunhão dos santos
na remissão dos pecados
na ressurreição da carne
na vida eterna
Amém.
* Nas páginas a seguir, a título de abertura dos textos farei pequenas adaptações desta oração,
particularizando-a.
28
Pegadas de Deus
Cremos em Deus, Pai (e Mãe) Todo-Poderoso,
Criador do céu e da terra
A introjeção da mensagem contida nesta prece é ponto absolutamente fundamental. Nesta verdade se apoia a totalidade da fé
cristã. Nada do que se conhece existe por si próprio, resulta de
transformações dinâmicas e constantes, ou de geração em geração de vida transmitida. Nada é por si mesmo. Deus diz na Bíblia:
“Eu sou aquele que é”. A palavra Iahweh, usada como o nome de
Deus, significa exatamente isto. A plenitude do ser está, portanto,
em Deus. O fato de ser implica em concentrar em si o poder, daí
se entender que é “todo-poderoso”. Nele principiam e terminam
todas as coisas e todos os seres. É o alfa e o ômega, o A e o Z de
tudo, do céu e da terra. O ser pleno significa que ele, e somente ele, não tem causa. Não resulta de nada anterior. Por meio do
pensar, se pode concluir de fato pela existência de Deus. É mais
absurdo imaginar que o universo, com tal grau de complexidade e perfeição, se tenha formado por acaso que supor que tenha
sido programado – e, se o foi, há que existir um programador. Mas
isso muito longe está de provar que ele existe. Acreditamos pela
fé, acreditamos porque resolvemos acreditar. E, ressalte-se, não é
uma decisão irracional.
Recentemente, Francis S. Collins, cientista de renome e credibilidade internacionalmente reconhecida e diretor do Projeto Genoma,
encarregado de estudar em definitivo a nossa estrutura genética,
publicou um livro no qual revela sua fé em Deus paralelamente
ao seu conhecimento e solidez científicas. Não há como refutar
a lógica da fé: “Nosso universo é monstruosamente improvável”,
afirmou.
Tomemos como simples exemplo o fenômeno vida. Cientificamente falando, a probabilidade de que tenha surgido na Terra por
puro acaso não é zero, mas, matematicamente, é infinitamente
próxima de zero. Há duas comparações bem conhecidas e citadas
sobre o assunto: uma diz que a probabilidade de a vida ter sido
inaugurada por acaso é semelhante àquela de surgir uma obra
clássica de literatura pelo dedilhar aleatório de um grupo de macacos sobre o teclado de um computador; outra, a de um relógio
automontar-se e começar a funcionar após sacolejar-se uma caixa
30
Pegadas de Deus
fechada contendo suas peças soltas umas das outras. Inimaginável, mas não totalmente impossível. Associando-se uma infinidade de fenômenos naturais com uma infinidade de tempo disponível e uma infinidade de variáveis, a vida poderia, sim, ter surgido.
Se tão bela, diversificada e perfeita é que é infinitamente difícil. O
acaso não costuma primar pela perfeição.
Contemplando o universo em seus infinitos detalhes, podemos
concluir que Deus é muito evidente. Se o fosse mais do que é,
não seríamos livres para crer ou não em sua existência e nossa
liberdade estaria ferida. Precisamos crer para conhecê-lo; se fosse
o contrário, a fé seria perfeitamente dispensável e nosso mundo
interior não seria mais o mesmo: empobreceria.
Ao nível puramente material, como dissemos, a fé é uma decisão.
Decidimos acreditar. Acrescentemos, agora, a visão teológica: ela
nos diz que a fé é uma graça de Deus, isto é, o amor profundo de
Deus se manifesta em nós e nos leva a ele, a acreditarmos nele,
da mesma maneira que a fome nos leva ao alimento e a sede nos
conduz à fonte. É como se, pelo puro raciocínio, chegássemos a
um ponto a partir do qual encontrássemos tudo escuro, sentíssemos o gosto amargo da dúvida e Deus nos empurrasse, dizendo:
“É isto mesmo. Eu existo. Vá em frente que eu sou a verdade. Acredite em mim e iluminarei os teus caminhos”.
Ante esta afirmação – de que a fé é dádiva de Deus – muitos se
instalam em ilusório semiateísmo e argumentam: “Se ter fé é graça de Deus, não tenho culpa de não acreditar, já que ele, se é que
existe, não me deu essa capacidade”. Porém, essa afirmativa é falsa,
pois não deixa ninguém órfão de sua graça. Não deixa de bater à
porta de nenhum coração – apenas não entra sem ser convidado,
apesar de não ser um estranho. Não fala alto a ouvidos moucos,
mas responde prontamente a quem o procura com humildade. Se
alguém, arrogantemente, esperar que ele seja demonstrado para
nele acreditar, jamais a ele chegará. Mas se, ao contrário, procurá
-lo com coração puro e simples, desprovido de barreiras, ou quando muito com um pouco de inquietude, ele progressivamente o
penetrará com sua graça.
Júlio Torres
31
Dom Helder Câmara faz um chamamento à fé com um poema à
Virgem Maria:
“Não achaste estranha
a ordem de partir para o Egito?
Quem mandou um anjo a São José
não poderia,
ali mesmo,
defender a criança
sem a impressão dolorosa da fuga?
Que Deus é este que recua e se esconde?
E por que o recém-nascido não fala,
não te diz uma palavra de alento se tua aflição é extrema
e ali está o verbo eterno,
teu filho e teu Deus?
Mãe,
ensina-me a não discutir com o Altíssimo
e fechar os olhos, pular no escuro,
repelindo demônios,
que semeiam raciocínios
tanto mais falsos quanto mais lógicos
quando se está diante do mistério
que desnorteia a pobre inteligência humana
tão desaparelhada para ver!”
Diz Rey Mermet: “Crer em Deus não é uma questão de ordem intelectual. É um assunto de ordem vital, que envolve a vida como
respirar, conhecer, compreender alguém; como amar e ser amado;
como escolher e dar-se”. Em outras palavras, um assunto humano
por excelência.
Pelo Cristo se conheceu uma grande novidade histórica. Com ele
aprendemos que Deus não é um ser tenebroso, julgador impla-
32
Pegadas de Deus
cável, longínquo controlador das ações humanas. Jesus fez desaparecer a ideia estarrecedora de um Deus distante e incógnito,
ditador de normas e preceitos. Nele e por ele, este Deus passou a
ser Pai, “Abbá” – que significa papai, paizinho.
São João afirma: “Deus é amor”. Isto quer dizer que sua característica principal é ser todo amor, é amar infinitamente ao ponto de
se confundir em essência com o próprio amor, a fonte inesgotável
de todo amor humano. Como Pai onipotente que é, nos controla
– é bem verdade –, mas do modo como um pai cuidadoso controla seus filhos para que nada de mal lhes aconteça. Dá-nos uma
liberdade completa, mas zela permanentemente por nós. Ama
tanto que permite até que o neguemos. Quer-nos tanto bem que
permite, inclusive, que dele nos afastemos; contudo, permanece
constantemente de braços abertos para o abraço da volta.
Acreditar nele, não apenas em sua existência real, mas em seu
amor de Pai, é a única opção capaz de preencher nosso vazio interior. Só a aceitação dessa verdade pode dar aos humanos um
sentido superior à própria existência. Apenas dessa maneira suas
perguntas são respondidas. Só assim podem gozar de uma atmosfera de paz. Outra alternativa é não fazer pergunta alguma e
viver como uma planta ou um animal qualquer.
Deus se parece, de fato, com o amor. Decidirmo-nos por acreditar
nele enche-nos de paz interior da mesma maneira que nos sentimos felizes e seguros quando decidimos acreditar que, em verdade, estamos sendo incondicionalmente amados por alguém.
Sentir que não se é amado é tão triste quanto ignorar Deus.
Sendo verdade que Deus existe, será igualmente verdade tudo o
mais que decorre dessa premissa. As mais belas, confortantes e
plenificantes verdades para o homem só podem ser alcançadas
pela fé – no entanto, são como um edifício que não se mantém de
pé sem as bases adequadas e resistentes.
Suponhamos – e aconteceu algo semelhante no Japão após a Segunda Guerra Mundial – que uma pessoa se tivesse isolado em
Júlio Torres
33
uma floresta por muitos anos, sem contato com outros e sem notícia alguma do mundo. Chega alguém e lhe diz que o homem
foi à lua. Como sequer sabia que existia avião a jato, não poderia
acreditar na informação. Fato análogo ocorre com a fé cristã: por
falta de base muitos não acreditam.
Mais um pouco sobre o Deus no qual cremos: está claramente narrado na Bíblia que ele é nosso Pai, nos criou artesanalmente, um
por um, nos ama e – mais ainda – nos conhece pelo nome (em linguagem bíblica, quer dizer que nos conhece profundamente) antes
mesmo que tivéssemos sido concebidos no ventre de nossa mãe.
Difícil de acreditar?
Vejamos duas comparações bem humanas. Um casal de amigos
nossos teve 18 filhos, dos quais resultaram 48 netos e 13 bisnetos.
Os conhecem absolutamente a todos, não somente pelo nome,
mas, em detalhes, a cada um; sabem de seus desejos, angústias, o
que os agrada ou desagrada, quando estão tristes ou alegres. Se
a eles, que têm poderes ínfimos, é possível tal capacidade, como
não ser possível a Deus, em seu infinito poder, nos conhecer a
cada um?
Por longos anos, minha esposa trabalhou na Pastoral do planejamento natural da família. Esta atividade implicava em orientar
casais sobre o conhecimento de sua fertilidade para evitar ou
conseguir a gravidez, conforme o desejado. Orientou uma senhora que queria conceber, o que ocorreu logo em seguida. Muito
depois, encontrou-se com a jovem filha, fruto daquela concepção,
que se estava preparando para o casamento. E quando se identificou, logo lhe disse: “Te conheço desde antes de você ter sido
concebida” – e era a pura verdade. Como não crer, então, que isso
é possível a Deus? Não é fantasia; pelo contrário, é algo que bem
pode nos encher de puro e santo orgulho e até mesmo de ilibada vaidade. Em paralelo, podemos ter a certeza de que quando
lhe dirigimos a palavra ou o pensamento ele sabe exatamente a
quem está escutando e de que precisa. Ele se interessa por cada
um de nós. Quer coisa melhor do que isso? Impossível...
34
Pegadas de Deus
Infelizmente, há muitos que acreditam em Deus, mas vivem como
se ele não existisse, não passasse de simples ideia, sem a menor
importância prática. Paciência... É como ficar deitado sobre uma
mina de ouro e ter preguiça de cavar. Apenas responder positivamente à aposta de Pascal nada traz de benéfico às nossas existências.
Costuma-se dizer, parodiando São Tiago, que o diabo também
acredita em Deus, mas nem por isso deixa de ser diabo.
Parêntese 1
Vale aqui lembrar e tecer pequeno comentário acerca dos conhecimentos que dispomos sobre a origem do universo, da vida em
geral e da humana em particular, comparando o que pensa e/ou
comprova a ciência com as narrações bíblicas que dão sustento à
nossa fé e visão do mundo. Muitas desavenças e desentendimentos aconteceram e acontecem por causa dessas questões, que
há muito deveriam estar superadas. Um problema científico não
é questão religiosa e vice-versa; radicalismos, tanto da parte de
cientistas como de alguns religiosos e religiões, vivem a provocar
conflitos desnecessários – alguns resultando em desvanecimento
da fé de muitas pessoas desavisadas. Nesta análise um pouco de
ciência não faz mal a ninguém. O papa João Paulo II, em sua Carta
Encíclica Fides et Ratio, nos ensina sabiamente: “A fé e a razão (fides
et ratio) constituem como que as duas asas pelas quais o espírito
humano se eleva para a contemplação da verdade. Foi Deus quem
colocou no coração do homem o desejo de conhecer a verdade e,
em última análise, de conhecer a Ele, para que, conhecendo-O e
amando-O possa chegar também à verdade plena sobre si próprio”. Por sua vez, Albert Einstein exclamou: “A ciência sem religião
é paralítica; a religião sem a ciência é cega”.
Por princípio, devemos entender que a linguagem bíblica faz muito uso do sentido figurado não para ser tomada ao pé da letra,
mesmo crendo que os escritos foram inspirados por Deus, como
parte de sua revelação (explicaremos melhor este termo no próJúlio Torres
35
ximo capítulo). A História, tecnicamente, é dividida em grandes
conjuntos de tempo. O primeiro é a chamada pré-história, que inclui o vasto período desde o aparecimento do ser humano sobre a
Terra até o surgimento da escrita, mais ou menos 4000 anos A.C.; a
seguir, vem a História propriamente dita, dividida em Antiga, Média, Moderna e Contemporânea. Atualmente, também se fala em
idade pós-moderna, referindo-se aos acontecimentos do século
passado, após as guerras mundiais. Jesus Cristo nasceu e viveu na
História Antiga, que vai do início da escrita até a queda do Império
Romano, em 476 D.C.
Entende-se que a pré-história, a fase mais longa, teve duração de
mais ou menos 180 mil anos. Antes dela, naturalmente, estaria
aquele período que compreende a existência do universo e da Terra
em particular desde o seu começo, visto que, em algum momento,
ele deve ter começado. Tudo o que existe inicia-se de alguma coisa
e em algum momento; nada começa do nada e do nunca.
Dados científicos bem sedimentados indicam que tudo teve início com o extraordinário evento chamado “grande explosão” (“Big
Bang”, em inglês), ocorrido há 10 bilhões de anos, quando imensurável quantidade de energia que se encontrava concentrada, reconhecida como a forma mais primitiva do conteúdo do universo,
explodiu. Há indícios de que um segundo depois desta explosão
a temperatura local era de 10 bilhões de graus centígrados. Que
coisa terrível! Espalhou-se pelo cosmos afora e, mediante transformação em matéria, no sentido inverso da equação de Einstein
(E = mc2), fez surgir todos os corpos do universo, tanto os já vistos como outros dos quais ainda não tomamos conhecimento.
Os pedaços, digamos assim, ainda hoje continuam se afastando
uns dos outros, da mesma maneira que fragmentos de pedra se
separam quando uma dinamite explode uma rocha. O tamanho
do universo observável é de um septilhão de quilômetros. Dentre
a infinidade de astros encontra-se o Sol, todas as demais estrelas
que enfeitam as nossas noites e várias outras coisas. Gravitando
ao redor do Sol há os planetas e, entre eles, a Terra – que existe há
cerca de 4,6 bilhões de anos e, no começo, era constantemente
atingida por bombardeios de asteroides. Certa vez, um deles ar-
36
Pegadas de Deus
rancou-lhe um pedaço, que veio a se transformar na lua – que nas
noites de plenilúnio encanta os humanos em geral e os namorados em particular.
Durante 500 milhões de anos era absolutamente impossível surgir qualquer tipo de vida na Terra, pois lhe faltavam os elementos
químicos essenciais – os quais paulatinamente se foram formando. Somente após mais 150 milhões de anos essas substâncias
passaram a existir, constituindo um estado químico que antecedeu a vida. Em ciência, chama-se o primeiro estado de caos; o
segundo, de ordem – denominado pelo cientista russo Aleksandr
Oparin, em 1920, como “lama primordial” ou “sopa orgânica primitiva”. Nela apareceram os primeiros seres vivos, assim entendidos
pela capacidade de autorreprodução. Cientificamente são em geral chamados de “autômatos autorreprodutivos”.
A quem, como todos nós, está acostumado a ver a vida pulsando
por toda a parte, às vezes até de forma perniciosa, paira a impressão de que o ocorrido no passado remoto foi algo simples e corriqueiro. No entanto, do ponto de vista puramente científico, físico-químico, não há palavras para quantificar a enormidade de tal
fenômeno: pedaços de matéria se agregarem e reproduzirem por
si mesmas, sem nenhum estímulo externo e com extrema rapidez e competência; um aglomerado de substâncias dividir-se em
duas partes iguais; depois, em 4, 8, 16, 32 etc. Debruçar-se sobre
esse fato é, no mínimo, espantoso. Os seres mais primitivos eram
tão indiferenciados que não dava sequer para saber se pertenciam ao reino animal ou vegetal. Constituíam o chamado Regnum
monerarum, o reino das moneras, formado por seres desprovidos
de núcleos em suas células, chamados de “procariotas”. As algas
cianofíceas, as algas azuis, que ainda hoje existem nos mares, foram um dos primeiros seres vivos a ganhar identidade. É verdade!
Desde o início a vida quis ser colorida e particularmente azul, da
cor do céu e do mar. Outro fato intrigante é que o fenômeno “vida
nascente” só aconteceu uma vez em toda a história da Terra; nunca mais voltou a ser gerado de novo em suas formas primárias a
partir da matéria bruta. Uma vez inaugurada, somente seres viJúlio Torres
37
vos geram novos seres vivos ininterruptamente. Há 270 milhões
de anos surgiram os primeiros mamíferos, que detêm os cérebros
mais desenvolvidos da natureza. Finalmente, há mais ou menos
200 mil anos surgiram os seres humanos: os primeiros e únicos a
andarem em pé e serem providos de inteligência – os seres reflexivos. Em 1859, o gênio científico de Charles Darwin concluiu que
a mudança havida nas espécies animais – que progressivamente
aperfeiçoavam-se, as tornando cada vez mais complexas e perfeitas até chegar ao homem – ocorreu mediante um processo de
evolução como consequência de seleção natural. Teoria filosófica
sempre comentada desde então.
Mesmo considerando-se verdadeira a teoria de Darwin, é incontável o número de questões sobre as quais ainda paira significativa
interrogação, hiatos nunca transpostos. Entre os mamíferos superiores e o Homo sapiens sapiens (nosso nome científico na Biologia,
que quer dizer homem sábio, sensato) há uma distância abismal
em variados aspectos. Por exemplo, gigantesca desproporção entre o tamanho e forma de seus cérebros e as funções que exercem.
Apenas isso permitiria desconfiar que ainda que Darwin estivesse
certo, há que existir, por trás da “força” da evolução por ele descrita, algum poder organizador bem mais potente e com objetivos
mais definidos que aqueles decorrentes do acaso ou da seleção
natural. O salto evolutivo para a existência do pensamento é absoluta e inegavelmente desproporcional aos aprimoramentos da
aparelhagem anatômica, fisiológica e genética.
Uma revista leiga de grande circulação nacional (Veja) citou na edição de 21 de fevereiro de 2001 que “se a história do planeta fosse
condensada em 24 horas, os chimpanzés teriam surgido apenas
dois minutos antes do homem. Somente 1,6% de seu patrimônio
genético é diferente dos humanos, ou, dito de outra forma, 98,4%
do chimpanzé é igual ao homem do ponto de vista genético”. O
Projeto Genoma concluiu, para surpresa de todos, que nós, humanos, temos apenas 30 mil genes, o mesmo número que um pé de
milho. Não obstante, enquanto os pés de milho são iguais entre si
não há dois seres humanos idênticos, mesmo quando gêmeos; e
38
Pegadas de Deus
mais, somente 300 desses 30 mil genes são diferentes dos de um
rato – e sabemos que são os genes que determinam tudo.
Os humanos primitivos eram em torno de 10 mil (não apenas um
casal, como diz a Bíblia). Provavelmente, eram de cor negra e viveram na África. Há indícios de que chegaram a ser reduzidos a dois
mil, quase entrando em extinção.
A Bíblia, em seu primeiro livro – Gênesis –, narra a origem de tudo.
Contudo, ao invés de despertar discussão e temores, brigas e descrenças, confrontar a fé com a ciência, esta obra deve, sim, encher
nossos corações de louvor e admiração a nosso Criador, além de
nos ensinar infinito número de lições a serem utilizadas nas meditações do dia a dia. Não cabe o comportamento fundamentalista
de querer interpretá-la ao pé da letra.
De forma bastante resumida, pinçando alguns pontos interessantes, vejamos:
“No princípio Deus criou o céu e a terra.
No primeiro dia Ele criou o dia e a noite e no segundo o firmamento; no terceiro, Ele separou o continente das águas e chamou
o primeiro de “terra” e o segundo de “mares”; neste mesmo dia
criou a vida vegetal com todas as variedades de plantas. No quarto dia criou dois luzeiros no céu: um grande para clarear o dia (o
sol) e outro, pequeno, para iluminar a noite (a lua), como também
as estrelas. No quinto dia criou a vida animal, tanto dentro como
fora da água. No sexto dia Ele disse: “Façamos o homem à nossa
imagem e semelhança” (Gn 1, 26). E assim “Deus criou o homem à
sua imagem, à imagem de Deus ele o criou, homem e mulher ele
os criou” (Gn 1,27). No sétimo dia Ele descansou.
Na Bíblia, antes de cada ato criador está escrito: “Deus disse...” –
simbolizando que foi a Palavra de Deus, expressão de sua vontade, que materializava cada desejo seu. Daí ser citado diversas
vezes como o Verbo Divino, o grande logos (logoi: palavra falada,
em grego). Baseia-se nessa narração a poética e eterna nomeação
de São Francisco a todas as criaturas de Deus como nossos irmãos:
irmão sol, irmã lua, irmão lobo etc. – até a irmã morte...
Júlio Torres
39
Segue-se, no livro do Gênesis, outra narrativa, combinada, da criação do homem: “Iahweh Deus modelou o homem com a argila do
solo, insuflou em suas narinas um hálito de vida e o homem se
tornou um ser vivente” (Gn 2,7); criou também a mulher; este primeiro homem chamou-se Adão (porque foi feito do barro), que,
por sua vez, chamou sua mulher de Eva”.
A palavra Adão origina-se de “Adamah” e Eva de “Havvah”, que em
aramaico, respectivamente, significam “terra, barro” e “mãe dos viventes”. Ressalte-se que os elementos químicos dos quais somos
compostos são exatamente os encontrados na natureza. Somos
mesmo parecidos com o barro. A palavra portuguesa homem deriva do latim “homo”, que por sua vez origina-se de “humus”, barro
em latim.
O primeiro casal humano vivia em situação de extrema felicidade
e nada lhes faltava. Andavam nus, sem se envergonhar, e gozavam da intimidade com Deus, que passeava nos jardins onde moravam. Só uma coisa lhes era proibida, comer do fruto de determinada árvore. Uma serpente conseguiu convencer a mulher de
que deveriam comer tal fruto, dizendo-lhe que, caso o fizessem,
seus olhos se abririam, suas inteligências tornar-se-iam bem mais
brilhantes e sua importância social e histórica aumentaria tanto
que se tornariam “como deuses”, nada menos que isso. E assim o
fizeram. Após repreendidos pelo Senhor, seguiu-se forte diálogo
entre ambos, com acusações mútuas e a clara tentativa de não
assumir a responsabilidade do ato praticado (e ainda hoje é assim). Tiveram dois filhos: Caim e Abel. Motivado por uma crise de
ciúme, o primeiro matou o segundo. Inaugurou-se assim a cizânia
na face da Terra, que não demorou a alastrar-se como se normal,
natural e corriqueira.
Vamos analisar por partes:
No princípio Deus criou o céu e a terra; isto é, ele – o Verbo Divino,
que se situa fora do tempo e espaço, que é sempiterno – já existia
antes da grande explosão e foi quem a ordenou. Posteriormente,
criou o dia e a noite, o firmamento, os continentes, os mares e a
40
Pegadas de Deus
vida vegetal. Pela ciência, como citamos, sabe-se que a Terra tem
cerca de 4,6 bilhões de anos. Pela contagem fundamentalista da
Bíblia, apenas 6 mil. Há que se entender essa diferença como contradição? Claro que não. Sabe-se que no início a crosta terrestre
era inteiriça, a chamada pangeia. O raio da Terra, que era de 3.300
km, foi crescendo até ficar do tamanho atual: 6.371 km. Como
consequência, a crosta rachou, os continentes se separaram e os
mares se instalaram entre eles. Tudo coincide com a descrição bíblica, mas não se queira daí concluir que quem escreveu o Gênesis
sabia disso. Aliás, esse conhecimento foi apresentado como teoria
– no princípio rejeitada como absurda – somente em 1912, por
um jovem meteorologista alemão chamado Alfred Wegener, só
reconhecida como verdadeira em 1960.
A outra informação coincidente é que a vida vegetal, sabidamente, por ser mais simples, surgiu antes da animal. Mais uma vez não
há porque misturar fé com ciência. Bem se pode creditar algumas
informações coincidentes na Bíblia à benevolência de Deus para
satisfazer alguns intelectos mais exigentes.
No quinto dia criou a vida animal inferior, irracional, e no sexto,
finalmente, o homem – melhor ainda, o casal humano.
No sétimo dia, descansou. E Deus cansa? Claro que não. Interpretemos essa narração não pela teologia, mas pela experiência humana sobre os atos divinos.
A criação da vida em si, deixando à margem o imenso restante
das outras criaturas, brotou da vontade de Deus seguindo uma
sequência biológica nitidamente “aristogênica”. Explico: este é um
termo criado pelo renomado cientista cristão e padre Teilhard de
Chardin. Origina-se da palavra grega aristós, que significa perfeição. Portanto, a evolução dos seres vivos, desde os mais elementares – de uma só célula – até o homem, seguiu, passo a passo,
critérios fenomenológicos orientados com precisão para atingir o
ser perfeito. Não houve, em qualquer das fases do processo natural, nenhum avanço qualitativo seguido de retrocesso, nem modificações para pior. Há quem questione essa afirmação com base
Júlio Torres
41
em situações que interpretam como supostos erros acontecidos.
Citam como exemplo o fato de o nosso embrião, em determinada
fase, ter cauda (como outros animais) e guelras, como os peixes
– tanto uma como a outra desaparecem posteriormente. No estudo da embriologia (ciência que estuda os embriões) defende-se
a hipótese de que a ontogênese humana (o desenvolvimento de
um indivíduo humano desde sua concepção até a maturidade) repete os passos da nossa filogênese (o desenvolvimento da espécie
ao longo da evolução). Isso explica o fato citado, sem que represente erro ou imperfeição biológica. Há pensadores que não aceitam a aristogênese. Descartando-a, eliminam mais um fator que
favorece a hipótese da existência de um poder superior que teria
programado, por sua vontade, a sequência dos fenômenos que
fizeram a vida brotar, frutificar e complicar-se progressivamente,
tornando-se cada vez mais complexa. A inegável perfeição seria
obra do acaso. A velha questão que anteriormente citei: se não foi
por acaso, foi programada; e se foi programada, há que existir um
programador. O seu contrário: tendo sido obra do acaso, dispensa-se perfeitamente a hipótese da existência de um programador.
Há motivos para acreditarmos que Deus, quando ordenou a grande explosão, já pensava em nós, já traçara, com detalhes, o projeto
de construção desse ser inteligente, que pensa, ama e se parece
com ele. O seu modus faciendi pode, perfeitamente, ter sido a chamada “evolução” – nada impede que o tenha sido. A fé responde
à pergunta de quem nos criou; o como é problema da ciência. A
conclusão desta sua obra-prima, o ponto derradeiro, máximo e
definitivo de toda a criação, aconteceu, simbolicamente, no sexto dia. Vale dizer que acima da natureza humana existe apenas
e tão somente a natureza divina; não somos criaturas quaisquer,
somos criaturas do sexto dia. Nada existe nem é mais importante
que nós em toda a natureza. O chamado sétimo dia refere-se ao
impenetrável, simboliza o transcendente, o inefável, o que é do
domínio exclusivo de Deus. A tentação explícita de nos tornarmos
“como deuses”, conforme convenceu a serpente, seria o projeto
de nos tornarmos, igualmente, criaturas do sétimo dia, não mais
“apenas” do sexto.
42
Pegadas de Deus
Os humanos foram criados à imagem e semelhança de Deus. São,
pois, parecidos com ele – não só: foram elevados à condição de
cocriadores. São seres com tamanha inteligência que se tornaram
competentes ao ponto de dar continuidade à obra da criação.
Para criar os oceanos, mares e rios, com todos os frutos e benesses
que deles provêm, Deus afastou os continentes e as terras firmes
umas das outras. Com isso, os humanos se distanciaram. Para encurtar as distâncias, o homem criou os navios, de início pequenos e perigosos, até surgirem os gigantes transatlânticos, que se
servem da lei natural das águas para nelas flutuar como se folhas
secas. Deus criou montanhas, desfiladeiros, precipícios e abismos
e o homem criou pontes, túneis e viadutos. Há muitas obras feitas
por Deus na natureza que, ao visualizá-las em detalhes, chegamos
a pensar ter sido feitas por mãos humanas e há tantas obras humanas tão perfeitas que parecem ter sido feitas por Deus. Há uma
imensidão de flores, minúsculas e grandes, com coloridos os mais
variados, que chegam a provocar espanto pela beleza e perfeição
geométrica. Muitas brotam assim da natureza, por vezes em lugares tão selvagens e ermos que, por serem efêmeras, jamais serão
contempladas por olhos humanos – dando a impressão de que
Deus as faz somente para si. Outras, igualmente belas, resultam
de mãos humanas, de floricultores que copiam e transformam o
pólen e os pigmentos. Suas mãos se confundem com as de Deus,
ao embelezar os jardins terrenos. Na contemplação das grandezas
que nos cercam facilmente misturamos os criadores; às vezes não
sabemos bem onde terminou a ação de um e começou a do outro.
Além do mais, ele confiou a nós a continuidade de sua revelação
para todos os povos e para todo o sempre. Por isso, deu-se por
satisfeito o Senhor e reservou o sétimo dia para “descansar”.
Deus criou o homem do barro e soprou vida em suas narinas.
Pois é exatamente isso o que somos: mistura de barro com sopro de Deus. Do sopro provém o amor, com tudo o que dele resulta; do barro, todos os seus contrários, com suas consequentes
sequelas. Somos assim. Há momentos em que, sozinhos ou em
comunidade, estamos repletos de coisas boas, de amizade pura,
perdão, bem-querer, abandonando facilmente o que nos devora
Júlio Torres
43
o coração e prejudica a paz. Há outros, infelizmente, em que voltamos ao barro: tornamo-nos pegajosos, escorregadios, lamacentos, movediços, verdadeiros pântanos ambulantes. Curiosamente,
só nos sentimos realmente bem quando nos permitimos flutuar
no sopro de Deus, até mesmo sem nos apercebermos. Somente
quando a parte do nosso ser que se parece com Deus assume o
comando de nossas emoções e ações nos tornamos verdadeiramente humanos e podemos experimentar o clima e o aroma do
paraíso. Se tivéssemos juízo pleno lutaríamos constantemente
para hipertrofiar nossa porção sopro e fazer minguar a porção
barro – e isso só de nós depende.
Após essa divagação para a vertente do raciocínio científico, voltemos a trilhar os caminhos da fé. Daqui em diante apenas essa
estrada será mais do que suficiente para atingirmos o destino reservado aos nossos corações.
44
Pegadas de Deus
Cremos em Jesus Cristo,
seu único Filho, Nosso Senhor
Deus é um ser puramente espiritual, imaterial, que se situa fora
do tempo e espaço. A sua e a nossa natureza são muito distintas,
motivo pelo qual não podemos nem poderíamos conhecê-lo sem
que ele se fizesse conhecer por nós. Desde sempre, quando os
animais evoluíram o suficiente para tornar-se seres inteligentes,
com capacidade de pensar, ele passou a conquistar seus corações
despertando-lhes o desejo de buscar, indagar, descobrir, olhar
para o alto, para o acima de si mesmos. Acendeu neles instintiva
atração para o transcendente. Não é difícil perceber que os seres
humanos primitivos intuíam nesse sentido, mesmo quando absolutamente selvagens. Bastou-lhes o cérebro assumir o comando
do soma para que isso ocorresse. Em linguagem teológica, isto se
chama revelação, ou seja, tirar o véu, deixar-se ver, ser percebido,
reconhecido. Em grego, um termo representa tal situação: théos
spermatikós ­– que significa “sementes de Deus”, espalhadas pelo
mundo afora, lançadas no fértil terreno das inteligências humanas. Há ainda o termo teofanias (manifestações de Deus).
Ao longo da História, ele se revelou e revela por meio de tudo o
que possa despertar as atenções humanas, mas serviu-se de pessoas, chamadas profetas, para pouco a pouco mostrar seu rosto,
desejos e planos, fornecendo dicas sobre a intimidade de sua
natureza transcendente. Por conceito, diz-se que profeta (e profetisa) é todo aquele ou aquela que anuncia a Palavra (vontade,
Reino) de Deus e denuncia tudo o que a ela é contrário. Nada a
ver com suposto adivinhão. Tendo em vista sua missão, historicamente essas pessoas foram e são, com frequência, amadas por
muitos e detestadas e perseguidas por outros. Coincidentemente, incluem-se no primeiro grupo os humildes, os necessitados,
as pessoas de boa vontade e coração puro; no segundo, os ricos
perversos, poderosos e mal intencionados. A História está cheia
desse tipo de exemplo. Fato comum é que boa parte dos profetas e profetisas vivem pouco. Enquanto estão falando sobre Deus,
anunciando sua palavra, seu Reino, são benquistos e elogiados:
“Que lindo este sermão, como fala bem, chega a emocionar com
as palavras...”. No entanto, quando começam a denunciar o que
contraria o seu projeto muda-se o julgamento – muitos foram e
continuam sendo mortos por causa disso.
46
Pegadas de Deus
A fé cristã, que professamos em Jesus de Nazaré, o Cristo, resulta
da revelação divina que teve início dentre o povo judeu – o chamado povo eleito, povo escolhido – por meio de seus profetas e
de fatos marcantes acontecidos em sua história. Ressalte-se que o
povo hebreu era o único monoteísta na antiguidade; consequentemente, da mesma forma que foi escolhido por Deus, reciprocamente foi o único que escolheu a Deus como único e verdadeiro.
Os demais povos e nações cultuavam diversas divindades e eram
até incomparavelmente mais desenvolvidos sob os pontos de vista social, econômico e militar. Se fôssemos considerar sua importância, seria mais fácil disseminar na antiguidade as ideias politeístas do que a crença em um Deus único. Acreditar em diversos
deuses era racional e estatisticamente mais frequente.
Pelos profetas, anunciou durante séculos que iria mandar seu filho, ou seja, alguém vindo dele próprio, para tornar completo e
definitivamente claro o conhecimento sobre ele, representando o
elo entre a nossa natureza e a sua; o restaurador do elo desfeito no
princípio dos tempos, quando os humanos se afastaram de seus
planos, perturbaram a paz e dificultaram a prática do amor, fechando-se no egoísmo. Mesmo monoteístas (no tocante ao deus
espiritual) as pessoas cultuavam e cultuam diversos outros deuses
concretos, bem terrenos, que impedem ou dificultam o relacionamento com ele e trazem o desmantelamento das relações dignas
de seres humanos.
Assim é que, no momento que posteriormente viria a se tornar o
centro de referência da história humana, surgiu Jesus, o judeu de
Nazaré na Galileia, o Messias esperado, o Cristo (“o ungido”, em
grego) anunciado pelos profetas, o Filho de Deus, o Verbo Divino
que encarnou e assumiu a condição humana, tornando-se como
um de nós.
Jesus de Nazaré, plenamente homem e plenamente Deus. O eterno revestido do finito. O puramente espiritual que se fez carne
para que pudéssemos, ao vê-lo, crer nele, compreendê-lo melhor,
ouvi-lo por meio de uma linguagem humana concreta, sentida.
Júlio Torres
47
Em Jesus Cristo deve o cristão considerar o aspecto divino, mas
também seu lado humano. Como Deus, merecedor de nossa adoração, do nosso louvor e do abandono de nós mesmos em suas
mãos; como homem, o nosso líder, o mentor de nossas ações, o
orientador permanente do nosso agir, a ótica cristalina mediante a qual focalizamos nossa vida. Sob esses dois aspectos ele é o
nosso Senhor, o Senhor de nossas vidas. Mas, que senhor... Tipicamente o senhor, o ordenador que todos gostariam de ter. Aquele
que manda com amor, ordena com mansidão e carinho, conduz
pela mão, sustenta no cansaço, carrega nos braços, na fadiga. Um
senhor cujo interesse único é a nossa paz. Um senhor que nos faz
total e radicalmente livres.
O conhecimento sobre a pessoa de Jesus nos é transmitido pelos
Evangelhos, palavra de origem grega (Ev + angelus) que significa
“boa nova, boa notícia”. São quatro os evangelhos que fazem parte da Bíblia (Biblós, em grego: o livro) e contêm o relato sobre o
nascimento, vida e morte de Jesus, transcrevendo parte das palavras que saíram de sua boca. Em uma Bíblia comum representam
somente cerca de 7% do todo. Convenhamos que é pouquíssimo
registro para tamanho efeito histórico universal. É fácil entender
que o que está escrito não pode conter a totalidade de seus ensinamentos. Com o exagero do entusiasmo, São João registrou:
“Muitas outras coisas há que Jesus realizou, as quais, se fossem
escritas, uma por uma, creio que nem o mundo inteiro poderia
conter os livros que se deveria escrever” (Jo 21,25). Há que se concluir que grande massa de informações foi transmitida por tradição verbal e plantada nos corações.
Eis, pois, os pontos básicos da nossa fé: acreditamos que Deus existe e que Jesus Cristo é Deus. Este é o alicerce de nossa crença. Tudo
o mais é consequência lógica e natural dessas duas verdades.
Diante disso, os dogmas da Igreja, que muitos questionam, não
passam de simples anúncios do óbvio. Partindo dessas duas premissas tudo o mais resultará como fruto de sequencial raciocínio
lógico. Sendo Jesus Cristo a encarnação de Deus anunciada pelos
profetas durante séculos, serão verdades todas as suas palavras, e
48
Pegadas de Deus
daí em diante acreditamos simplesmente porque ele disse – e isto
é o bastante. Nos Evangelhos consta mais de uma vez: “Para Deus
nada é impossível”.
Se compararmos as razões da nossa fé com a dos apóstolos, para
eles aparentemente teria sido mais fácil acreditar, pois o viram e
ouviram pessoalmente, presenciaram seus atos. Mas o povo judeu era acostumado a grandes milagres em sua história, a feitos
extraordinários de grandes profetas – e aquele poderia ser apenas mais um deles. Paralelamente, estavam “arriscando” tudo na
pessoa de Jesus e só o futuro comprovaria ou não a veracidade
de suas palavras. Temos 21 séculos de existência e tradição cristãs a alimentar nossa crença. A doutrina de Cristo, suas palavras
e ensinamentos passaram pelo filtro da História e ainda são profundamente atuais. Em pleno século XXI, se postos em prática, a
sociedade seria bem melhor, mais humana. Quem mais entende
de humanidade senão seu próprio Criador? Quem mais conhece
as suas criaturas em detalhes, suas necessidades, qualidades e defeitos? Quem mais habilitado para corrigi-las e consertá-las?
Jesus disse aos não crentes: “Se não acreditarem em mim, acreditem pelo menos em minhas obras e nas daquele que me enviou”.
E aos crentes: “Vocês acreditam em mim porque estão vendo as
obras que eu faço; felizes aqueles que acreditarem sem ver o que
estão vendo”.
Mas, para que serve acreditar em Cristo? Que importância prática
isto tem? Não bastaria crer em Deus? Que diferença faz em nossa vida a pessoa de Jesus? Só o estudo de sua doutrina, a escuta
atenta de sua palavra, o esforço sincero e permanente de acatar e
pôr em prática sua proposta de vida respondem completamente
essas perguntas.
O primeiro passo é procurar conhecê-lo. Você, provavelmente, já
é batizado. Assim sendo, é um convidado especial a com ele participar de um modelo de vida. Ele propõe e espera sua resposta
individual. Oferece e aguarda sua decisão. Vale a pena arriscar.
Júlio Torres
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Abster-se de procurar conhecê-lo é como ter o ingresso para um
grandioso espetáculo e não entrar, pelo menos para ver se gosta.
Sua doutrina compromete e muitas vezes intriga, mas é repleta
de vastíssimo horizonte humanístico, plena de promessas de felicidade incondicional. E sabemos que a felicidade é exatamente o
que todos buscam, desejam e têm o direito de obter.
Enquanto pregava, muitos foram os que se afastaram dele, desistiram de segui-lo. Chegou a um ponto em que ele próprio perguntou aos apóstolos: “Vocês também não querem ir embora?” A
resposta de Pedro pode ser também a nossa: “A quem iríamos nós,
Senhor, se só tu tens palavras de vida eterna?” (Jo 6, 67-69).
Diversos foram os pensadores e filósofos que, atendendo às exigências da própria razão, chegaram a Deus e a Jesus e só então repousaram o espírito – Santo Agostinho, por exemplo. Muitas são
as pessoas que, tendo peregrinado pelas estradas de todos os erros e vícios, de todos os prazeres e descaminhos, só encontraram
a paz ao se depararem com o Cristo.
Às vezes, a dificuldade se apresenta maior do que realmente é,
simplesmente porque não resistimos à tentação de querer entender os mistérios de Deus da mesma maneira que um matemático
entende um teorema. As coisas de Deus, com certeza, não são tão
complexas nem difíceis, mas sim demasiado grandes, infinitas; daí
porque não as entendemos, não estamos aparelhados para enxergar nessa dimensão. Diante delas só podemos nos aproximar com
a humildade e confiança de uma criança que pula nos braços do
pai ou da mãe.
Justino foi um dos primeiros filósofos cristãos. Nasceu no começo do século II e foi condenado à morte por Rústico, prefeito de
Roma, no ano 163. Após estudar e frequentar diversas escolas filosóficas, encontrou no cristianismo o que procurava: a verdade.
E escreveu: “Ninguém crê em Sócrates a ponto de dar a vida por
sua doutrina. Quanto a Cristo, porém, nele creem não só filósofos
e sábios, como também artesãos e as pessoas mais simples, e isto
50
Pegadas de Deus
com o mais perfeito desprezo às honrarias, ao tempo e à morte,
pois Ele é a força do Pai inefável e não um vaso da razão humana”.
No início da era cristã uma perseguição radical perdurou por quase 300 anos, como anteriormente dito. Nesta fase, os cristãos se
identificavam entre si, secretamente, com o desenho de um peixe
(Ychthys em grego) cujas iniciais representavam, sob a forma de
código: Yesus Chistós Theós Yós Sotér – que significa Jesus Cristo
Filho de Deus Salvador. Assim, às escondidas, expressavam sua fé
no ressuscitado. Por eles o cristianismo chegou até nós. O sangue
dos mártires circula, vivo, nas veias dos cristãos atuais; foi ele que
transportou o oxigênio para cada célula viva da Igreja durante séculos. O que hoje se afigura como fato histórico interessante foi,
de fato, um momento de terror, de profunda crueldade que serviu de crisol para purificar a verdade. Mas ela, pela graça de Deus,
sempre sobrevive aos atos e opressões da estultícia humana.
Parêntese 2
Com frequência, ouve-se alguém dizer: “Sou católico (ou cristão),
mas não sou praticante” – mas isso serve para alguma coisa?
Vejamos duas maneiras de perceber o cristianismo: a sagrada e a
profana. São muitas as situações vivenciais que podem ser analisadas sob essas duas formas. Sagrado refere-se a Deus, ao transcendente; profano, ao puramente humano, material, mundano.
Porém, a palavra profana não significa coisa ruim. Uma partida de
futebol, por exemplo, é algo totalmente profano e um bom divertimento; uma boa feijoada, idem.
Em Jesus Cristo, se quisermos assim considerar, é possível distinguir esses dois aspectos. Pelo sagrado, como aprendemos no Catecismo quando crianças, ele é o Filho de Deus que se fez homem
para nos salvar; pelo profano, um simples orador itinerante que
pregou nova maneira de viver, um comportamento social capaz
de provocar mudanças radicais no mundo se assim quisessem os
humanos. Talvez um resumo do que quero expressar seja a priJúlio Torres
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meira frase do cântico do Glória. Para relembrar aos mais antigos,
dizíamos na missa em latim: Gloria in excelsis Deo, et in terra pax
hominibus bonae voluntatis (Glória a Deus nas alturas e paz na terra aos homens de boa vontade). A primeira parte da frase é totalmente sagrada e a segunda, pelo menos parcialmente, profana.
Primeiro, vamos entender o que, na prática, significa ser “não praticante”. Comumente, é alguém que acredita em Deus e em Jesus Cristo, mas por não encontrar ou não buscar argumentos em
contrário raramente vai à igreja, apenas em casamentos e missas
de sétimo dia; não assiste as missas regularmente, não reza e, às
vezes, não gosta de padres nem de freiras. É comum encontrarmos pessoas que na infância/adolescência fizeram a Primeira
Comunhão, seguida de uma segunda e de uma terceira, dando
assim por encerrada sua carreira eucarística. Cresceram física e
intelectualmente, mas sua fé e conhecimento religiosos ficaram
de calças curtas ou ainda brincam de boneca, não satisfazem aos
anseios e exigências intelectuais de um adulto. Se alguém realmente valoriza e pratica o modelo cristão, embora não frequente
a Igreja, sua vida pode mudar em consequência disso; o difícil é
que isto ocorra na prática, a não ser que seja um autodidata, estude os Evangelhos em casa, medite sobre o seu conteúdo e aja
de conformidade com o que considera coerente em sua doutrina.
Tomando ao pé da letra, é aquele que conhece a proposta de Cristo, mas não a põe em prática no dia a dia. Não por em prática os
ensinamentos de Jesus tem o mesmo efeito pessoal e comunitário que ignorá-los por completo.
Jesus Cristo é o nosso Salvador. Mas salvador de quê? Se quisermos separar o profano do sagrado, Jesus nos salva de duas formas:
1a) Nos salva de tudo o que de errado está por aí em abundância.
Todos os danos que acontecem diariamente na nossa sociedade
resultam do desamor, do egoísmo, do endeusamento do dinheiro (Ele disse: “Não podeis servir a Deus e ao dinheiro” – Mt 6, 24),
do endeusamento de si próprio (“Vocês serão como deuses”, lem-
52
Pegadas de Deus
bram?), da anulação do outro – exercendo um domínio sobre sua
dignidade e cerceando-lhe a liberdade –, do desrespeito à cidadania. Sabiamente, Jesus ordenou “amar ao próximo como a si mesmo” e para suprimir qualquer dúvida a respeito do que vem a ser
“o próximo” contou a famosa parábola do samaritano (tido como
pessoa de má fama) que socorreu um homem vítima de assalto e
que lhe era totalmente desconhecido – mais ainda, era por princípio um inimigo de sua raça. Antes dele muitos passaram pelo
mesmo lugar, gente supostamente boa, direita e decente, dessas
que despertam admiração e respeito. Nada fizeram pelo pobre
coitado a não ser julgá-lo mal: “Com certeza, deve estar bêbado”.
“Deveis ser perfeitos como o vosso Pai Celeste é perfeito” (Mt 5,48).
Perfeito como Deus? Claro que é impossível. Com isso, ele quis dizer que o limite da nossa busca é o infinito e, consequentemente,
jamais podemos nos dar por satisfeitos com o que julgamos ser o
nosso grau máximo de perfeição e busca. Significa que não há limites para o nosso esforço; quando eventualmente nos julgarmos
perfeitos, ainda há muito para ser corrigido.
Se todos seguissem seus ensinamentos e propostas nossa sociedade estaria completamente salva de todas as mazelas. Por certo,
a mais genérica de todas as palavras é pecado. É dele que Jesus nos
salva. Nosso saudoso papa João Paulo II, em seu livro Cruzando o
limiar da esperança, aconselha: “Convencer-se do pecado quer dizer criar as condições para a salvação”. Totalmente verdadeira esta
afirmação. A comparemos com uma situação clínica: o diabetes
é uma doença sorrateira, que passa algum tempo quase assintomática. Uma vez descoberta, mediante dosagem de glicose no
sangue, passa a requerer cuidados permanentes. Se o portador,
que inicialmente não sente quase nada, não se convencer de que
é diabético e não cumprir as prescrições e orientações do médico, fatalmente evoluirá para uma situação de crescente gravidade.
Se convencido, mudará seus hábitos alimentares, fará exercícios e
usará rigorosamente os remédios, evitando assim os danos maiores. Convencendo-se da doença, salva-se das suas complicações;
caso contrário, poderá chegar a situações graves e irreversíveis.
Júlio Torres
53
2a) A salvação maior que Jesus Cristo nos proporciona é a escatológica, do fim dos tempos, a salvação eterna, destinada aos filhos
de Deus. Por meio dela o paraíso descrito no Gênesis deixa de ser
uma saudade para tornar-se esperança. Finda a nossa vida material continuaremos vivos, e para todo o sempre, no estado de
felicidade completa conquistado por Cristo – que carregou nos
ombros e levou para a cruz todos os defeitos da raça humana,
todos os nossos pecados. Esses assuntos, dada sua importância,
serão tratados outras vezes.
54
Pegadas de Deus
Cremos que Jesus Cristo foi concebido pelo
Espírito Santo e nasceu da Virgem Maria
Anteriormente falamos dos profetas judeus que serviram, entre
outras coisas, de instrumentos nas mãos de Deus para sua revelação. Para todo o povo era nítida a informação de que chegaria
um momento em que Deus entraria na história humana, como
um de nós, e seria fruto de uma concepção que aconteceria em
uma virgem.
São Lucas, que não conheceu Jesus pessoalmente e juntou informações sobre ele para escrever seu Evangelho, descreve a anunciação de Maria, Mãe de Jesus: “No sexto mês, o anjo Gabriel foi
enviado por Deus a uma cidade da Galileia, chamada Nazaré, a
uma virgem desposada com um varão chamado José, da casa de
David; e o nome da virgem era Maria. E o anjo lhe disse: ‘Eis que
conceberás no teu seio e darás a luz a um filho, e tu o chamarás
com o nome de Jesus’. Maria, porém, disse ao anjo: ‘Como vai ser
isso, se não conheço homem algum?’. O anjo lhe respondeu: ‘O
Espírito Santo virá sobre ti e o poder do altíssimo vai te cobrir com
sua sombra; por isso, o santo que nascer será chamado Filho de
Deus’. E acrescentou: ‘Para Deus, com efeito, nada é impossível’. ‘Eu
sou a serva do Senhor; faça-se em mim segundo a tua palavra’,
disse então Maria”.
Maria, jovem de prática religiosa, conhecia muito bem as previsões proféticas sobre a vinda do Messias dentre seu povo. O acontecimento em si, portanto, não foi novidade; causou-lhe espanto,
como não poderia deixar de ser, o fato de ter sido exatamente a
escolhida para tamanho momento histórico. Pela fé acreditava na
encarnação anunciada pelo anjo, o que provavelmente não poderia perceber era a extensão universal e eterna de tal instante. Ela
era livre para dizer não. Se assim tivesse agido, é impossível prever
o que iria acontecer com a humanidade.
Mateus relata o mesmo fato acrescentando que José, ao saber que
Maria estava grávida sem que tivessem coabitado, pensou em repudiá-la em segredo. A lei hebraica condenava à morte por apedrejamento qualquer mulher que cometesse adultério – e essa
era, à primeira vista, a situação que se apresentava. Repudiando-a
56
Pegadas de Deus
secretamente estaria evitando tão desonrosa situação para aquela a quem muito amava. Em sonho, um anjo do Senhor explicoulhe o que acontecera, acrescentando: “Ela dará à luz um filho e tu
o chamarás com o nome de Jesus, pois ele salvará o seu povo dos
seus pecados”. E acrescenta Mateus: “Tudo isso aconteceu para
que se cumprisse o que o Senhor havia dito pelo profeta; eis que a
virgem conceberá e dará à luz um filho e o chamarão com o nome
de Emanuel” – que traduzido significa Deus está conosco.
À luz da biologia, uma gravidez desse gênero é impossível; no entanto, à luz da fé é extremamente simples, partindo da premissa
de que para Deus tudo é possível. É apenas mais um sinal da sua
presença na história humana, gerando novamente a vida, desta
feita uma vida destinada a gerar vida nova em todos os demais
viventes, em todos os corações. É mais um dos seus mistérios insondáveis.
Esta foi a única vez em que Deus coube no útero de uma mulher
– posteriormente acalentado em seus braços e amamentado em
seus seios. Deus alimentou-se de leite humano para saciar sua
fome física da mesma maneira que agora nos alimentamos de seu
corpo eucarístico para saciar nossa fome espiritual.
Dentre os primeiros cristãos já eram sólidas essas informações
sobre a concepção de Maria, tanto que constam nos Evangelhos,
escritos pouco depois da morte de Jesus. Antes de escritas eram
transmitidas por tradição verbal entre os crentes e nunca foram
levantadas dúvidas a esse respeito. O que havia de discordante
era uma questão conceitual: uma heresia entendia que ela era a
mãe do Cristo (em grego: Christotókos), mas não a Mãe de Deus
(Theotókos). Desta forma, teria apenas emprestado seu útero para
nele ser gerado o Cristo. No ano de 431, no Concílio de Éfeso, a
Igreja oficialmente desfez toda e qualquer dúvida a respeito e declarou: “Se alguém não confessar que Deus é verdadeiramente o
Emanuel e que, por isso, a Santa Virgem, tendo gerado segundo
a carne o Verbo de Deus feito carne, é a Theotókos, seja excomungado”. Conta-se que o povo, que esperava do lado de fora por tal
Júlio Torres
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definição, festejou publicamente essa medida tomada pelos bispos ali presentes.
Em Maria aconteceu a união definitiva entre Deus e a humanidade. Ela é a nova Eva, mãe do Cristo total. Disse Santo Irineu: “Deus
habitou no homem e fez-se filho do homem para acostumar o homem a aprender Deus e acostumar Deus a habitar no homem”. Em
outras palavras, assim como nós, humanos, fazemos uma experiência de Deus, ele fez uma experiência de humano. A encarnação no seio de Maria revela a humildade de Deus. Ele quis ter
uma mãe, embora não precisasse disso. Ele chegou muito antes
das sociedades humanas na cultura de valorização da mulher.
Santo Agostinho nos conta: “A mãe trouxe-o no seio, nós o devemos trazer no coração; a Virgem tornou-se grávida pela encarnação de Cristo, torne-se grávido o nosso coração pela fé em Cristo;
ela deu à luz o Salvador, nossa alma dê à luz a salvação e o louvor.
Não sejam estéreis as nossas almas, mas fecundas de Deus”.
Desviando nosso olhar para o transcendente ficamos certos de
que temos um Deus que é Pai, um irmão, Santo de Deus, que é
Jesus Cristo e uma mãe, que é a sua Mãe. Podemos não somente
viver em segurança, como também morrer em paz, na certeza de
que pertencemos a uma família que nos protege e acolhe. Quando chegarmos às portas da mansão celeste não seremos estranhos, encontraremos rostos familiares.
Há religiões que pregam que Maria teve outros filhos além de Jesus, e de vez em quando aparecem romances incluindo esta falsa
visão com a finalidade de desfazer a nossa fé em sua virgindade.
Enquanto mulher, Maria poderia ter tido outros filhos? Claro que
sim, mas não os teve. Desde os primeiros cristãos todos sabiam
disso e tal fato jamais foi questionado nas primeiras comunidades. Na cruz, sabendo que estava chegando a sua hora, Jesus claramente entregou sua mãe aos cuidados de um de seus discípulos, João. Como bom judeu que era, se tivesse irmãos, jamais a
entregaria a um simples amigo.
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Pegadas de Deus
Cremos que Jesus padeceu sob o poder de
Pôncio Pilatos, foi crucificado, morto e sepultado
Jesus era um pregador itinerante, andava de cidade em cidade e
visitou apenas uma área geográfica menor que o Estado de Alagoas. Não criou raízes por onde passava, não tinha morada fixa.
Falava nas praças, eventualmente nas sinagogas, e transmitia uma
doutrina absolutamente nova para a época e totalmente contrária aos costumes reinantes. Jamais escreveu coisa alguma. A única
vez que o fez foi sobre a areia, e logo se apagou. Clamava violentamente contra as injustiças sociais, contra a opressão, contra todo
e qualquer ato de desamor. Acusava frontalmente os líderes religiosos – que também eram os chefes políticos –, propondo-lhes
uma conversão, uma mudança de vida, uma revisão de procedimentos. Falava do Reino de Deus não como algo distante a ser
inaugurado tardiamente na História, nem depois da morte, mas
para ser vivido aqui, agora e para todo o sempre. Não era também
um reino semelhante aos demais que haviam sobre a Terra, com
poder econômico e político; tampouco algo resultante de expansão territorial cujo símbolo maior era Roma, senhora do mundo à
época. Não era o projeto de construção de um conjunto de mansões celestiais, mas a generalização do amor e da justiça desde a
morada terrestre. Um reino sem espadas nem opressão, baseado
na fraternidade entre os homens, sem excluir ninguém. Um reino
cujo rei é Deus e cujas leis são as suas leis. Um reino de paz. Não da
paz de cemitério, do silêncio e da quietude interior, mas de uma
paz dinâmica, consequência da justiça, conquistada palmo a palmo como direito inalienável de todos.
O seu discurso ameaçava e ainda hoje ameaça os que detêm o
poder com mãos fortes e enganosas, às vezes até supostamente
santas. Salvar o povo de Deus de seus pecados, conforme anunciado a São José, não poderia ter preço menor que o da própria
vida. Tinha que ser morto; e mais, não apenas morto, mas desmoralizado: ter sua imagem aniquilada para sempre. Para conseguir
tal resultado, a morte na cruz foi a solução completa. Crucificados
eram todos os párias e marginais, os amaldiçoados por Deus, conforme a lei dos judeus. A cruz era símbolo da degradação maior,
esgoto da ralé indesejável. Morrendo na cruz, sua pessoa deveria ser riscada definitivamente da História. Dos crucificados, até
60
Pegadas de Deus
os parentes próximos eram alijados da sociedade e seu nome era
proibido de ser citado em público. Com cerca de 33 anos de idade,
apenas três anos após ter iniciado sua pregação doutrinária, Jesus
praticamente acenou a seus inimigos que o prendessem, entregando-se pacificamente em suas mãos.
Com testemunhas compradas, foi levado a julgamento. Foi indiciado, digamos assim, por acusações que atualmente não deixariam ninguém em uma Delegacia de Polícia por mais de 15 minutos: 1) Certa vez, desobedecendo à lei, curou uma pessoa em
dia de sábado; esta era portadora de grave deformidade na coluna, que a impedia, inclusive, de levantar a cabeça (em Medicina,
corresponde com precisão à descrição de uma doença vertebral
denominada espondilite anquilosante); 2) Diante de uma multidão induziu, pelo confronto dos acusadores com suas próprias
consciências, que estes se esquivassem de condenar à morte por
apedrejamento uma mulher flagrada em adultério, ferindo a mesma lei; 3) Disse que era o rei dos judeus. Num ato de extrema
bajulação às autoridades romanas, acusaram-no de que estava
atentando contra César, este sim o verdadeiro rei. Aliás, por força
de lei promulgada pelo Senado romano, César era, oficialmente,
um deus; 4) Ao curar um paralítico, disse-lhe: “Teus pecados te são
perdoados” – e somente Deus podia perdoá-los; 5) Ao ser perguntado se era o Filho de Deus, respondeu que sim – razão pela qual
foi acusado de mentiroso e blasfemo; 6) Parece que chegou a perder a paciência ao ser esbofeteado injustamente por um guarda, e
lhe dirigiu a palavra dizendo: “Se falei mal, mostra em que; mas se
falei o bem, por que me bates?” Assim, de calúnia em calúnia, forçaram o governador romano Pôncio Pilatos a, mesmo claramente
contra sua vontade e senso de justiça, o condenar à morte na cruz
­– decisão puramente política.
A cruz, no entanto, símbolo da morte abominável, passou a representar um estilo de vida; o sacrifício se tornou redenção, a
condenação se fez liberdade. Como de costume, no topo da cruz
foi colocada uma placa na qual estava escrita, em latim, grego e
hebraico, a causa de sua condenação. E ainda hoje, nos crucifixos,
Júlio Torres
61
lemos INRI, que, em latim são as iniciais da frase: “Iesus Nazarenus
Rex Iudaeorum” (Jesus de Nazaré Rei dos Judeus). Coitado! Um
“rei” que nasceu em uma estrebaria, dormiu suas primeiras noites
em uma gamela e terminou seus dias pregado numa cruz, como
se um marginal, ao lado de dois ladrões. Morreu em grande e lenta agonia. A natureza, segundo relatos bíblicos, manifestou sua
tristeza com a escuridão de um eclipse total do sol no momento
em que ele deu o último suspiro.
Um amigo que o amava e admirava – José, de Arimateia –, com
poder aquisitivo, ofereceu um túmulo de sua propriedade para
que nele fosse sepultado. Os pobres, como Jesus, não tinham sepultura.
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Pegadas de Deus
Cremos que Jesus desceu à mansão dos
mortos e ressuscitou ao terceiro dia
Jesus permaneceu morto por três dias. Desde a prisão e por ocasião do julgamento, os seus amigos estavam simplesmente apavorados. Temiam, naturalmente, sofrer o mesmo fim e isso não
parecia valer a pena – até Pedro, um dos mais devotos e decididos
seguidores, negou ser um de seus companheiros. Os Evangelhos
descrevem que só um dos seus discípulos (João), sua mãe (que
esteve de pé ao seu lado) e algumas outras mulheres tiveram a coragem de ficar junto à cruz, acompanhando de perto sua agonia.
Uma vez morto, a lógica e o bom-senso os levou a fugirem apavorados para bem longe. Afinal, três anos apenas de convivência
não foram suficientes para que sacrificassem suas vidas por um
projeto que parecia ter chegado ao fim, sem alcançar os objetivos
que esperavam ou que, pelo menos, supunham ter entendido. Alimentava-os apenas a esperança na promessa do Mestre, de que
iria viver de novo. Por certo perturbava-lhes o espírito o questionamento sobre o tempo que perderam seguindo-o, a lembrança
das redes de pesca que abandonaram, os negócios e familiares
que haviam largado para com ele perambular. Teriam talvez acreditado em vão? Possivelmente entendiam que ele iria morrer um
dia, mas não tão cedo e nem daquele jeito – crucificado. Se estavam incumbidos de dar continuidade ao seu trabalho de “pescar
homens”, conforme lhes havia dito o Senhor, iriam enfrentar uma
missão extremamente espinhosa e, por que não dizer, impossível:
transmitir ao mundo a mensagem e convencer pessoas da glória
de um crucificado.
Em paralelo, como judeus, esperavam que ele instaurasse o Reino de Israel. Segundo acreditavam e imaginavam, seria um reino
mesmo, com poder econômico, político e militar, como tantos outros que existiam sobre a Terra. Sua morte na cruz foi, portanto,
tremenda decepção.
Depois de morto, Jesus teve o corpo preparado conforme o costume dos judeus, sendo posteriormente sepultado. Os Evangelhos
narram detalhes do seu enterro. As autoridades judaicas foram a
Pilatos e pediram que colocasse guardas ante o túmulo, para evitar que seus discípulos roubassem o cadáver e depois dissessem
64
Pegadas de Deus
que ele havia ressuscitado, conforme prometera. Isso foi feito –
aliás, ótima providência ante a História.
Três dias depois, Jesus ressuscitou. O evangelista conta que os
tais guardas, que presenciaram o momento da ressurreição, foram subornados para que negassem o acontecido. Várias foram as
testemunhas deste fato. Diversas pessoas o viram, conversaram
com ele. Primeiramente, apareceu a algumas mulheres. Quando
essas chegaram aos discípulos contando que o tinham visto, estes não lhes deram crédito: “É coisa de mulheres”, disseram, “elas
costumam ter alucinações, não merecem confiança”. Depois, revelou-se a diversos discípulos, os quais ficaram assustadíssimos,
pensando estar vendo um fantasma, mas a seguir acreditaram.
Um deles, Tomé, quando lhe contaram que tinham visto o Senhor,
deu a famosa declaração: “Se eu não vir em suas mãos o lugar dos
cravos e se não puser o meu dedo no lugar dos cravos e a minha
mão no seu lado, não acreditarei”. Oito dias depois, Jesus voltou a
aparecer. Tomé estava com eles e Jesus lhe disse: “Põe o teu dedo
aqui e vê minhas mãos! Estende a tua mão, põe-na a meu lado e
não sejas incrédulo, mas fiel”. Arrependido, nada mais restava a
Tomé que ajoelhar-se e dizer: “Meu Senhor e meu Deus”. Esta frase,
mais de 2000 anos depois, merece ser dita repetidamente, a cada
vez que nossa fé vacile, a cada vez que nos afastamos do ressuscitado, sempre que precisarmos dele, sempre que nosso coração
sinta necessidade de conforto e repouso. Foi nesta hora que Jesus
exclamou: “Porque viste, creste. Felizes os que não viram e creram”
– e todos estamos incluídos nestas palavras.
Há de supor-se que, forçosamente, algo de grandioso deve ter
de fato acontecido para que aqueles homens, dispersos pela decepção e fugitivos pelo medo, voltassem a se reunir e pregar sua
doutrina. A coragem substituiu o medo e a tristeza foi destruída
pela decisão de pregar o Evangelho mundo afora – e assim o fizeram até encontrar morte semelhante a do Mestre. Não tivesse
ele ressuscitado, que razões teriam? Um fantasma ou um ser imaginário jamais levaria tantas pessoas a arriscar a própria vida por
uma causa desprovida de interesses políticos e que tem como fiJúlio Torres
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nalidade última bens a serem usufruídos em uma vida imaterial
após a morte.
Cristo de fato ressuscitou. Nada mais simples para quem é o autor
da vida. Sua doutrina de vida plena é capaz de dar um sentido
completo a nossa morte. Diante do ressuscitado, morrer já não é
mais um absurdo, mas a transição necessária para algo infinita e
profundamente melhor. Morrer não é o fim, mas um novo princípio, sem fim. Com a ressurreição podemos entender suas palavras: “Eis que eu estarei convosco até a consumação dos séculos”.
A crença no Cristo ressuscitado é a coluna mestra da nossa fé; não
fora a ressurreição, não passaria de um profeta qualquer. E mais,
seria um falso profeta, cujas promessas não teriam sido cumpridas
e “vã seria a nossa fé”, como disse São Paulo.
66
Pegadas de Deus
Cremos que Jesus ressuscitado subiu aos
céus e está sentado à direita de Deus Pai
Todo-Poderoso
Esta é uma explicação para que nós, humanos, possamos imaginar “para onde” foi Jesus após ressuscitado. Convenhamos, um
ser ressuscitado não precisa de lugar algum no espaço nem está
sujeito ao tempo. Espaço e tempo são limitações da matéria; portanto, quando se fala em Deus, em espíritos, não se pode entender nada raciocinando em termos de tempo e espaço. Cristo subiu
aos céus; significa que o que era matéria/espírito, como somos,
tornou-se imaterial; não está, mas existe em outra dimensão tão
diferente e infinitamente superior à nossa que não nos é possível
compreender, nem mesmo dar “palpite” sobre ela. Nós, humanos,
somos e estamos; os ressuscitados deixam de “estar” para “ser”.
Não podemos nem dizer “apenas ser”, pois o ser é infinitamente
maior que o estar. A fé nos ensina que entenderemos tudo isso
e muito mais quando formos só espirituais. Não há pressa para
termos esta visão. A antevisão nos é suficiente.
“Estar sentado à direita do Pai” não significa, necessariamente,
que ele está sentado, nem do lado direito. Em linguagem teológica significa que se confunde com ele. “Eu e o Pai somos um”, dizia Jesus. Como ser espiritual, pode estar presente em tudo o que
chamamos de “lugar”. “Quando dois ou mais estiverem reunidos
em meu nome, eu estarei presente no meio deles”. Então, o nosso
Rabbuni não está somente à direita do Pai, mas em tudo e em todos. “Ele está no meio de nós”, afirmamos na missa. Acreditamos
porque ele disse.
68
Pegadas de Deus
Cremos que Jesus Cristo há de
julgar os vivos e os mortos
No decorrer dos textos evangélicos, Jesus dá incontáveis informações a respeito da vida eterna, da natureza de Deus, do comportamento benfazejo e do julgamento das ações humanas. Em
momento algum separa o corpo do espírito, não são duas coisas
diferentes: o que existe é o homem e a mulher totais, em integralidade inseparável – uma fase da vida com matéria e outra sem,
como ele próprio. O julgamento de Deus é, portanto, sobre o ser
humano total. As palavras “vivo” e “morto”, embora citadas para
compreensão dos humanos, não integram o dicionário de Deus.
Para ele só há a vida; aliás, uma vida. Sobre as bases de como seremos julgados, há dicas de sobra nos Evangelhos, diversos exemplos práticos, comparações claríssimas. “Quem tiver ouvidos para
ouvir, que ouça”, dizia ele. De suas pregações podemos depreender que o céu e o inferno, o paraíso de felicidade eterna ou o terror
da tristeza infinita, começam aqui, agora. Cristo não veio para salvar as almas, mas as mulheres e os homens integralmente.
Em resumo, Cristo deixou claro que seremos julgados pela nossa
capacidade de amar. O verbo amar, para Deus, tem dimensão infinita, tanto que se confunde com ele próprio.
Encontramos em Mateus, capítulo 25, versículos 31 a 46:
“Quando o Filho do Homem voltar na Sua glória e todos os anjos com Ele, sentar-se-á no Seu trono glorioso. Todas as nações se
reunirão diante dele, e Ele separará uns dos outros, como o pastor
separa as ovelhas dos cabritos. Colocará as ovelhas à Sua direita
e os cabritos à esquerda. Então o Rei dirá aos que estão à sua direita: ‘Vinde, benditos de meu Pai, tomai posse do reino que vos
está preparado desde a criação do mundo, porque tive fome e me
destes de comer; tive sede e me destes de beber; era peregrino e
me acolhestes; nu e me vestistes; enfermo e me visitastes; estava na prisão e viestes a mim’. Perguntar-lhe-ão os justos: ‘Senhor,
quando foi que te vimos com fome e te demos de comer? Com
sede e te demos de beber? Quando foi que te vimos peregrino e
te acolhemos, nu e te vestimos? Quando foi que te vimos enfermo
ou na prisão e te visitamos’. Responderá o Rei: ‘Em verdade vos
70
Pegadas de Deus
declaro: todas as vezes que fizestes isto a um destes meus irmãos
pequeninos, foi a mim mesmo que o fizestes’.
Voltar-se-á em seguida para os à sua esquerda e lhes dirá: ‘Retirai-vos de mim malditos. Ide para o fogo eterno preparado para
o demônio e seus anjos; porque tive fome e não me destes de
comer; era peregrino e não me acolhestes; nu e não me vestistes;
enfermo e na prisão, e não me visitastes’. Também estes lhe perguntarão: ‘Senhor, quando foi que te vimos com fome, com sede,
peregrino, ou nu, ou enfermo, ou na prisão e não te socorremos?’.
E Ele responderá: ‘Em verdade vos declaro: todas as vezes que deixastes de fazer isto a um destes pequeninos, foi a mim que deixastes de fazer’. E estes irão para o castigo eterno, e os justos para a
vida eterna”.
As ações humanas serão analisadas por ele em profundidade e
não pelas aparências enganosas, que frequentemente nos confundem, despertando admirações indevidas.
“Nem todo aquele que me diz: ‘Senhor, Senhor’, entrará no Reino
dos Céus, mas aquele que faz a vontade do Pai. Muitos me dirão
naquele dia: ‘Senhor, não pregamos em vosso nome, e não foi
em vosso nome que expulsamos demônios e fizemos muitos milagres?’ E, no entanto, lhes direi: ‘Não vos conheci; retirai-vos de
mim’ (Mt 7, 21-23)”.
Não podemos saber como será esse momento. Evidentemente,
não nos moldes de um tribunal de Justiça humano, com um juiz
togado, promotores para acusar, advogados para defender e jurados para avaliar, todos solenemente sentados a nos olhar, tentando perscrutar nosso coração. O caráter desse momento integra o mistério de Deus. Podemos imaginar, no entanto, com muita
segurança, que as bases desse julgamento estão profundamente
instaladas em nosso interior, em nossa consciência – que naquela
hora será clara como o sol do meio dia. Em nosso interior instalam-se, não sentados, mas de pé e às vezes gritando, os nossos
próprios promotores de justiça anímicos, dando enorme trabalho
Júlio Torres
71
para os advogados de defesa justificarem os atos que cometemos
na escuridão, pensando que ninguém, nem mesmo Deus, estava
vendo. Atos que lesaram nossos irmãos, prejudicaram os pequeninos filhos de Deus. O eu profundo, o coração, o nosso interior,
virá à tona e se deparará com a luz ou as trevas. Tornar-se-á infinita a nossa capacidade de amar e todas as suas consequências, e
por isso seremos alegres infinitamente, ou ficará patente o nosso
egoísmo, a “dureza dos nossos corações” e suas sequelas, e seremos julgados incapazes para usufruir da felicidade eterna.
Será a cristalização de todos os nossos atos. Nossa consciência
é profissionalizada, especializada e subespecializada, como nós
mesmos. Tem o mesmo nível e competência da nossa cultura, formação e profissão, da mais humilde a mais destacada socialmente. É capaz, portanto, de nos julgar com absoluta segurança e imparcialidade; assim Deus a instituiu desde sempre e a nomeou seu
representante no íntimo de nós mesmos, lá onde máscaras não
se adaptam na face nem conseguem esconder suas imperfeições.
Acontecerá a grande vitória ou a grande derrota final. As máscaras acumuladas ao longo dos anos finalmente cairão e, isentos da
falsidade dos amores findos, nos encontraremos, despidos, diante
de nós mesmos e de Deus. Graças à sua infinita bondade, fruto de
seu amor por cada um de nós, ele será o nosso juiz, mas com ares
de advogado de defesa. Ele conhece, inclusive, o poder de persuasão que sobre nós tem o demônio e quais artimanhas e ciladas
conseguiu armar injustamente para nós; sabe como nos comportamos ante as tentações, se resistimos bravamente até sucumbir
ou nos deixamos embalar facilmente em seus braços. Ele conhece
o grau de sedução exitosa que outros deuses exerceram, corrompendo nossos propósitos. Conhece-nos pelo nome; conhece nossa história pessoal, cultura e até nossa formação genética, com
todas as virtudes e defeitos comportamentais que em nós geraram. Aí, campeará a justiça final, que independe dos conceitos humanos, que não valorizará o ter, mas se fixará sobre o ser. “A justiça
florirá”, como disse Isaías. Somente então entenderemos os desígnios de Deus sobre cada um de nós, sobre a humanidade e sobre a
72
Pegadas de Deus
totalidade do cosmos. Cientistas e analfabetos serão exatamente
iguais: todos absolutamente sábios e lúcidos. Contemplando-o
face a face, faremos a derradeira e livre opção pelo amor ou pelo
egoísmo, de acordo com o que tenhamos preferido praticar nesta
fase terrena da vida.
“Ninguém poderá se queixar, pois cada homem, independentemente de religião, leva escrita, no mistério de seu interior, a lei do
amor aos irmãos, o impulso para o bem, a chamada à fraternidade. Um critério que serve para os que adoram a Deus e para os
que não encontraram Deus nos caminhos da vida. É evidente que
os ateus não poderiam ser julgados pelo número de comunhões,
missas, horas de oração, apostolado religioso. Mas o próximo, o
irmão, esse sim, era real para ele, vizinho, indiscutível. O ateu pode
percorrer as ruas do mundo sem encontrar Deus, mas não pode
deixar de cruzar-se com o seu próximo mais pobre, menos livre,
mais oprimido, mais só” (Francisco Dezen e Rafaela Duarte: As pedras clamarão).
Júlio Torres
73
Cremos no Espírito Santo,
na Santa Igreja Católica
Como citado, o antigo povo judeu era o único que acreditava na
existência de um só e verdadeiro Deus e, em virtude de sua revelação, esperavam a vinda de alguém, enviado por ele, para libertar
o seu povo. Jesus revelou-se como o próprio Deus encarnado, seu
Filho, uma outra pessoa de Deus. Um dos motivos de sua condenação e morte na cruz foi exatamente esta afirmação que fizera de
que ele e o Pai se confundiam em uma só pessoa (“Quem me viu,
viu o Pai” – Jo 4,9). Por sua vez, Jesus anunciou a vinda de uma terceira pessoa de Deus, o Paráclito, o Espírito Santo, que viria depois
dele. Pelo Cristo viemos a saber, portanto, que Deus não é solidão,
nem poderia sê-lo, visto que é amor e todo amor se completa em
outra ou outras pessoas. Não existe amor solitário, centrado somente em si mesmo, como seria o de Deus se solitário fosse antes
da criação dos humanos. A partir dos ensinamentos do Messias
a humanidade pôde, enfim, descobrir a essência íntima de Deus,
sua natureza una e trina ao mesmo tempo. Ao raciocínio convencional esta realidade escapa por completo, mas é inteligível à luz
da fé. Basta-nos que Jesus nos tenha dito para que desapareça
de nós qualquer vestígio de desconfiança. Dados os primeiros
passos da fé, o restante da caminhada virá por acréscimo. Somos
demasiado pequenos e de muito curta visão para compreender
realidades tão enormes; convém a humildade da criança, que crê
nos pais e em seus ensinamentos. Foram incontáveis as pessoas
que se debruçaram sobre este tema ao longo dos séculos e que se
ajoelharam diante desta verdade. Esta afirmação do nosso Credo
não resultou de vã especulação ou de simplórias propostas dogmáticas. Cabe-nos aceitá-la.
A respeito, cito São Gregório Nazianzeno, “o Teólogo”:
“O Antigo Testamento proclamava manifestamente o Pai, mais obscuramente o Filho. O Novo manifestou o Filho e fez entrever a divindade do Espírito. Agora o Espírito tem direito a cidadania entre
nós e nos concede uma visão mais clara de si mesmo. Com efeito,
não era prudente, quando ainda não se confessava a divindade do
Pai, proclamar abertamente o Filho e, quando a divindade do Filho
ainda não era admitida, acrescentar o Espírito Santo como um peso
76
Pegadas de Deus
suplementar, para usarmos uma expressão um tanto ousada. É através de avanços e de progressões, de “glória em glória”, que a luz da
Trindade resplenderá em claridades mais brilhantes”.
Após sua morte e ressurreição aqueles que seguiram a Cristo e ouviram de sua boca tantos ensinamentos receberam a ordem clara
de transmiti-los a todas as pessoas, tanto as que viviam à época
como às gerações futuras. É descrito nos Atos dos Apóstolos que,
estando reunidos, sobreveio sobre eles uma força renovadora e
transformadora que os impeliu a se atirar ao trabalho de pregação.
Isto é narrado como algo estranho e que causava espanto a todos
os que os conheciam antes. Destemidos e falantes, principiaram o
trabalho para o qual o Mestre os destinara: “Ide pelo mundo inteiro e pregai o Evangelho a todas as criaturas” (Mc 16,15). “Ide portanto e fazei discípulos todos os povos, batizando-os em nome
do Pai, do Filho e do Espírito Santo, ensinando-os a observar tudo
o que vos ensinei” (Mt 28, 19-20). Assim formou-se a primeira comunidade cristã: surgiu a Igreja de Cristo, que em seu início não
reunia mais que 120 pessoas. Precisamente a partir desse diminuto punhado de pessoas, ela se espalhou por todo o mundo, apesar
de perseguida. Foi movida, encorajada e iluminada pela força do
Espírito Santo, não só a pregar sua doutrina de vida, mas, sobretudo, a vivenciá-la pela prática da caridade – seu fruto maior e imediato – que constrói comunidade. Consta na História que entre
os anos 165 e 180 o Império Romano foi assolado drasticamente
pela chamada “peste negra” (reconhecida posteriormente como
“peste bubônica”, uma doença infecciosa), que dizimava populações inteiras; incontáveis romanos se converteram ao cristianismo
movidos pelo exemplo de compaixão com que os primeiros cristãos cuidavam das vítimas da doença, motivados exclusivamente
pelo amor fraterno, inclusive arriscando as próprias vidas.
A palavra “Igreja” origina-se do grego “ekklèsia”, “ek-kalein”, que
significa “convocação”, no sentido de assembleia do povo. Referese, pois, ao conjunto dos crentes, à comunidade tanto local como
universal, ao Povo de Deus. A palavra “católica” significa universal,
confere o sentido de totalidade, de integralidade, tanto quando é
Júlio Torres
77
aplicada a sua organização global como a cada Igreja em particular e a cada pessoa. Na condição de católicos, cada um de nós é
universal, um cidadão do universo. Exemplo prático disso é o sentimento que experimentamos ao entrarmos em qualquer igreja,
de qualquer lugar do mundo, independentemente da língua que
lá dentro se fala. Sentimo-nos como se estivéssemos entrando no
templo da nossa paróquia, como se conhecêssemos a todos os
presentes. A palavra “paróquia”, também de origem grega “para
-oichia”, significa “ao redor da casa”, fala da proximidade, da vizinhança das pessoas que a frequentam.
A Igreja é ainda “apostólica”, por ter sido fundada e por manter-se
fiel aos apóstolos. Seus ensinamentos e orientações, seu comportamento e sua “política” universal, digamos assim, procura seguir
com fidelidade os princípios que alimentaram os primeiros seguidores de Cristo, de quem aprenderam as ações salvívicas. Procura
resguardar e por em prática tudo o que favorece a instalação e o
crescimento do Reino de Deus e denunciar e opor-se a tudo o que
lhe é contrário, sem afastar-se, pela oração, dos ditames que lhe
são inspirados pelo Espírito Santo, conforme as promessas do nosso Salvador. Daí ser ela nossa “Mãe e Mestra” (“Mater et Magistra”),
segundo nos ensinou o papa João XXIII. Diante de cada encruzilhada comportamental, alguma inovação tecnológica, em que
precisamos tomar o caminho mais seguro para trilhar, ela sempre
nos propõe princípios que devemos seguir. Para isso, além de orar
implorando as luzes do Espírito de Deus, ouve pessoas sábias, especialistas nos mais diversos assuntos que sejam fiéis à proposta
de Jesus. Reúne consultores, discute os avanços surgidos nas diversas áreas, procurando discernir entre o que é bom e o que não
é bom para a salvação do povo de Deus que caminha no mundo.
Quando queremos nos instruir sobre temas técnicos e científicos
de importância, o bom-senso nos recomenda que procuremos
uma universidade de grande monta e merecedora de nossa confiança, pela sabedoria que acumula e pela honestidade de suas
teses: uma fonte onde podemos beber e saciar nossa sede de
conhecimentos. Assim é a Igreja, o porto seguro onde devemos
78
Pegadas de Deus
ancorar nossas ações e comportamentos para não deixá-los à deriva, sujeitos às ondas e correntes nem sempre dignas da criatura
humana, nem sempre favoráveis à construção do Reino de Deus,
nem sempre isentas de interesses escusos e falsas facilidades.
Há quem entenda a Igreja somente como lugar ou comunidade
de oração, como se o plano de Deus para os humanos fosse restrito apenas ao espírito, às possíveis benesses do post mortem, da
vida imaterial, como se ele fosse algo abstrato que não goza de
intimidade com o temporal. Aprendemos de Jesus que o “bom
pastor” é aquele que cuida integralmente de suas ovelhas e não
apenas para que fiquem bem cevadas para o momento do abate.
Qualquer comportamento público ou privado, geral ou particular,
que ponha em risco a nossa felicidade integral, profunda e duradoura deve ser objeto de preocupação da Igreja. Ela não cuida
das almas, mas da integralidade das pessoas humanas. Assim, nos
orienta – e não faz mais do que a sua obrigação, em obediência
aos seus fundamentos – sobre sexualidade, planejamento familiar, defesa da vida, aborto, distribuição de renda e de direitos, justiça social, questões salariais e laborais etc. Há quem questione: e
o que a Igreja tem a ver com isso? A resposta é uma só: tudo a ver!
Se cuidasse apenas de almas, estaria sendo infiel ao seu criador
e Mestre. Se cuidasse somente dos espíritos e da pureza interior,
poderia, erroneamente, merecer a qualificação de “ópio do povo”,
conforme maliciosamente conceituada por Karl Marx. Este pensador pregava que a Igreja alimentava nas pessoas apenas o desejo
de “ir para o céu”. Como a vida futura é infinita, pouco se faria para
implantar a justiça nas sociedades terrenas, que são finitas; uma
vez que se estaria buscando a felicidade na “outra vida”, qualquer
coisa serviria para esta vida física de agora. Tal afirmação é absolutamente falsa, pois a nossa fé no Cristo seria materialmente inútil.
A sede da nossa Igreja situa-se na cidade de Roma, que tem o
papa como bispo, na qualidade de sucessor de Pedro, a quem Jesus Cristo confiou sua missão terrena.
Inclui-se entre os dogmas da Igreja – nos quais somos obrigados
a crer, pois caracterizam nossa pertença a ela – a infalibilidade do
Júlio Torres
79
papa. Isto significa que toda e qualquer afirmação por ele feita
é absolutamente verdadeira e exige nossa aceitação incondicional? Não. Só são consideradas verdades dogmáticas aquelas proclamadas ex cathedra, termo que em latim significa “da cadeira”,
ou seja, as declaradas por nosso Sumo Pontífice, na condição de
ocupante da “cadeira de Pedro”. Apenas nesta situação exerce a
função de “Vicarius Christi”, “Vigário de Cristo”, sob a iluminação do
Espírito Santo. Tal fato só ocorre quando de assunto de fé e moral
dirigido a toda a Igreja, com a vontade clara de definir alguma
importante questão. Ao longo da História o número de situações
dessa natureza é muito pequeno em relação à totalidade de seus
pronunciamentos.
Parêntese 3
O pensar e o agir humanos, tanto em seus aspectos positivos
como negativos, ao longo dos tempos são e sempre foram uniformes e semelhantes nas sociedades cujo comportamento é reconhecido como desenvolvido.
Repetidamente surgem críticas à nossa Igreja, ressuscitando antigos erros cometidos, tentando, ao relembrá-los, diminuir-lhe o crédito e o respeito. Tenta-se demonstrar que se errou em tantas coisas
no passado, por que não continuaria errando em tantas outras na
atualidade? Mas este é um julgamento falacioso: supostamente lógico e verdadeiro se não fosse inverídico e mal intencionado.
Recente artigo de revista de grande circulação veicula que a hierarquia da Igreja foi contra a ideia do átomo por este não ser compatível com a existência de um Deus imaterial; contra o para-raios
por impedir a aplicação de castigos por parte de Deus; a velha
história da suposição de que o sol era o centro do universo, combatida no início, de novo veio à tona; a discussão em relação à
teoria de Darwin, idem.
Cabe, pois, uma comparação com a ciência. Até 1850, recentemente, portanto, acreditava-se na “geração espontânea” e cien-
80
Pegadas de Deus
tistas discutiam calorosamente sobre os detalhes deste fenômeno. Segundo esta teoria, certos tipos de vida surgiam em alguns
ambientes: tapurus geravam-se em carnes apodrecidas, ratos em
montes de lixo e até pássaros em algumas árvores frondosas, tudo
isso de forma espontânea, a partir da matéria bruta, assim chamada aquela que não era viva. Louis Pasteur, em 1862, foi quem
primeiramente refutou essas ideias. A invenção do microscópio
teve muito a ver com isso: a microvida passou a ser vista.
Nos primórdios da cirurgia, a frequência de infecção operatória
era altíssima e não se sabia por quê. As luvas cirúrgicas foram inventadas para proteger as mãos do cirurgião, e não a ferida operatória. Somente com a descoberta das bactérias tais desastres
foram explicados e combatidos.
Se a ciência, com seus insignes e respeitáveis representantes, pôde
pensar assim tão erroneamente, por que a Igreja estaria isenta de
fazer o mesmo, na mesma época? Os assuntos acima citados não
eram temas de fé doutrinária, mas interpretações temporais de
fenômenos. Tais comportamentos não podem desmerecer o benefício histórico nem o papel atual da Igreja em busca da verdade,
sua luta pelo completo bem-estar e felicidade dos humanos, que
se resume no conceito de vida plena.
No momento, há acirrada discussão sobre a utilização de células-tronco embrionárias humanas para suposta cura de doenças
incuráveis. Este é, aliás, um dos motivos de trazer à memória da
sociedade as posições medievais da Igreja. Está correta esta intromissão? Claro que sim, pois está em jogo o respeito pela vida humana, não uma vida qualquer. Diz-se: a Igreja não estaria errada,
da mesma forma que errou em relação à posição dos astros? São
situações totalmente distintas. Para a humanidade tanto fazia o
sol ficar aqui ou acolá, mas a vida humana não pode ficar ao sabor
de opiniões, não pode correr o risco de ser comercializada, quem
sabe até embalada e vendida em frascos por alto preço, como um
produto qualquer. Há que ser mantido um manto de ética a protegê-la. O próprio Cristo ensinou: “Seja o vosso sim, sim e o vosso
não, não” – ele não falou: “Depende do caso!”.
Júlio Torres
81
A vida de um Homo sapiens começa quando o espermatozoide
de um homem une-se ao óvulo de uma mulher. Há como alguém
negar isso, mesmo sendo ateu? Ali está um grupo de células embrionárias humanas, em franco processo de reprodução e crescimento. Se aquela vida nascente tem ou não uma alma, se é ou
não imortal, se foi ou não gerada pela vontade de Deus, enfim,
se ele existe mesmo ou não, não tem a menor importância nesta
questão. O fenômeno vida é independente de qualquer outro julgamento. Ao protegê-la, a Igreja não está defendendo a sua doutrina, mas o maior patrimônio da natureza.
82
Pegadas de Deus
Cremos na comunhão
dos santos
Comunhão significa comum união, união em comum. União de
todos os santos quer dizer união de todos os conquistados por
Deus, dos amigos de Deus, dos que o descobriram e foram cativados por ele desde o princípio. Para Deus, como dito, não existe
o tempo. Consequentemente, o que para nós é um segundo ou
um milênio para ele não tem significado algum; tanto lhe faz algo
acontecido, ou alguém que existiu ou existe antes ou depois de
Cristo. No sentido amplo, a comunhão dos santos é precisamente
a Igreja.
Como apresentado, a Bíblia nos informa que, no princípio, os
humanos se afastaram do plano de Deus e passaram a trilhar os
caminhos de tudo o que lhe é contrário. A visão atual da humanidade é suficiente para nos demonstrar esse processo de afastamento expansivo e contínuo da fonte do amor original. Cristo
nos ensinou o caminho de volta ao plano inicial, uma reconquista, um convite para uma comunhão. João Batista, ao anunciar a
vinda do Messias, pregava dizendo: “Convertei-vos, fazei penitência, pois está próximo o Reino dos Céus”. Condiciona, portanto, a
participação e o consequente usufruto das promessas do Reino à
conversão, ou seja, a uma mudança radical de comportamentos
e hábitos que nos tornem parecidos com o modelo de vida apresentado pelo Cristo e uma rejeição de todos os seus contrários.
A título de exemplo prático: quando estamos dirigindo em uma
via pública e desejamos mudar a nossa rota, seguimos os sinais
de trânsito que nos indicam uma “conversão”, ou seja, a mudança
radical na direção que estávamos tomando para a que queremos
e precisamos tomar.
Por Cristo tornou-se claro o caminho de volta para todos os homens de boa vontade. Assim sendo, por ele, todos os santos, isto
é, todos os que desejarem pertencer a Deus e gozar do destino
de paz eterna por ele prometido, com ele formando um só corpo, se voltaram e se voltam para o Pai. A humanidade inteira, em
comum, independentemente do tempo e lugar que cada pessoa
ocupou na História, é colocada na trilha rumo ao céu, ou seja, à
união em um só espírito com Deus. Esta é a comunhão dos santos
84
Pegadas de Deus
de toda a história, como gotas d’água que se unem e se confundem em um rio, tornando-se indistinguíveis entre si. O sacrifício
de Jesus tem, portanto, essa outra conotação de salvação, que é a
redenção total, a aglutinação de todos em um.
Pelo casamento, cume do amor esponsal, a união entre um homem e uma mulher os transforma “em uma só carne”, sem perderem a individualidade; pela comunhão com Deus todos os
humanos se tornam um só, igualmente sendo respeitada a individualidade de cada um.
Acreditamos porque Cristo disse: “Não rogo somente por estes
(referindo-se aos apóstolos), mas também por todos aqueles que
por sua palavra hão de crer em mim. Para que todos sejam um,
assim como tu, Pai, estás em mim e eu estou em ti, para que também eles estejam em nós” (Jo 17, 20-21).
Parêntese 4
É parte essencial e obrigatória da vida do cristão o esforço constante de mudar para melhor o seu modo de pensar e agir, o seu
comportamento, tornando-se coerente – em todos os sentidos
que se possa imaginar – com o que Cristo ensina. Como vimos no
capítulo anterior, este processo chama-se de conversão ou metanoia (do grego, mudança de sentimentos), se quisermos usar o
termo mais erudito e talvez mais preciso. O efeito que dele pode
resultar denomina-se santificação, tornar-se santo. Lembremonos que esse esforço jamais pode nem deve ser fonte e causa de
conflitos interiores, nem de neuroses, mas sim de libertação. Almejar a santidade deve ser psiquicamente normal, causa de alegria e nunca de angústias e sofrimentos.
Oficialmente, a Igreja venera diversas pessoas que ao longo da
História destacaram-se sobremaneira e de diversas formas na vivência e no testemunho do Evangelho – muitos morreram por
sua causa, como sabemos –, às quais chama de santos e santas.
São aqueles e aquelas cujas vidas servem de exemplos a serem
Júlio Torres
85
seguidos, pontos de referência a serem contemplados e imitados.
No entanto, mesmo não vindo a merecer e, mais ainda, não desejando semelhante destaque e reconhecimento, todos somos,
por natureza, candidatos a igual destino, embora em proporções
infinitamente variáveis. A santidade é um denominador comum a
todos os homens e mulheres, mas não há dois santos iguais; cada
um segue uma trilha pessoal, a cada um é oferecida uma escadaria diferente para subir.
Como citado, o começo da história humana ocorreu no ambiente de paz total descrito no Gênesis. A vida plena – anunciada e
prometida por Jesus a quem o segue – já existiu e foi sentida no
começo dos tempos, quando éramos muito poucos e entre nós
não havia a discórdia semeada pelo “pecado original” – que recebe essa denominação por já estar presente em nossas origens.
Desde então, faz parte dos humanos um defeito intrínseco, congênito, chamado de concupiscência, a medonha tendência natural de fazer o contrário de tudo aquilo que potencialmente nos
torna verdadeiramente felizes tanto no nível pessoal como comunitário. São Paulo, em uma de suas cartas, se queixava que não
conseguia fazer o bem que se esforçava para fazer e, no entanto,
com muita facilidade fazia o mal que não queria. Em cada Homo
sapiens sapiens habita um “Homo demens” – termo de Leonardo
Boff –, homem demente, seu contrário, que é mau, perverso, insensato. Quando o coração é bom, percebe que fez o contrário do
que deveria fazer, mas aí já é tarde, tem de correr atrás do prejuízo.
É própria do ser humano essa dualidade de comportamentos que
fragiliza a nossa capacidade e decisão de amar. E o pior é que sempre, infalivelmente, responsabilizamos o outro, ou os outros, por
nossas falhas. É raro que, espontaneamente, batamos no próprio
peito e digamos mea culpa (a culpa é minha). O esforço concreto
de inverter ou minimizar essa maligna torrente interior é o que se
chama de propósito de santificação.
O objetivo derradeiro do cristão é a vida plena, a felicidade inteira,
bens existenciais que foram condensados por Jesus naquilo que
chama de Reino de Deus. Viver a felicidade desde agora e con-
86
Pegadas de Deus
tinuá-la em plenitude pela eternidade é o destino de todos os
humanos; a nossa salvação passa por aí. Paralelamente, sabe-se
que não nos é dado o direito de nos salvarmos isoladamente. Em
outras palavras, a santificação é para ser pessoal e também comunitária. Um santo não se faz sozinho; a santidade confunde-se
com este objetivo.
Fomos e somos criados à semelhança de Deus. Deus é Santo. Conclui-se, portanto, que a santidade é a perfeição do ser humano.
Embora absolutamente imperfeitos e incompletos, somos seres
alados, nosso destino não é nos arrastarmos pelo chão, mas voarmos em grandes altitudes. Poderíamos dizer que o Homo sapiens
sanctus (o homem santo) é a perfeição máxima do Homo sapiens
sapiens. O incomum, o diferente de ser santo, não é ser simplesmente humano, mas ser desumano. O contrário de santificar-se é
desumanizar-se. Ser santo é ser comum, não extraordinário.
Cito Fábio de Melo (Quem me roubou de mim?): “A santidade, o
aprimoramento, requer coragem. A desumanização requer fraqueza. É mais fácil ser fraco. É mais fácil justificar-se na preguiça
existencial que nos aquieta nas expressões que são próprias de
quem já perdeu a batalha: sou assim mesmo e não quero mudar”.
A santificação acontece no dia a dia, nos momentos de oração ou
fora deles, no trabalho, no lazer, na festa e na dança, nas relações
sociais e domésticas, quando estamos ocupados ou desocupados.
Deve ser causa de alegria e não de sofrimento. Sorrir é sempre tão
gostoso quanto ver o outro sorrir, sabemos disso.
Conforme a realidade de cada um, a santificação tem seus meios e
nenhum é fácil. Tem suas exigências e nenhuma é leve. Os casais,
por exemplo, devem santificar-se mutuamente – depois veremos
isso com mais detalhes. Os solteiros, consagrados ou não, têm à
disposição outros meios, e assim por diante. Fato é que a santidade está disponível a todos, como o ar que respiramos.
Uma vez gerados e nascidos, este é o nosso feliz e derradeiro destino. O esforço de alcançá-lo às vezes é tremendo, mas sempre
Júlio Torres
87
gratificante. Quando habitual, é transmissível de geração em geração, como herança imaterial, um tesouro interior inesgotável e
incorruptível. Théo spermatikós (sementes de Deus), lançadas nos
corações dos filhos, tendem a gerar adultos com consciências retas, comportamentos retos, inflexíveis e radicalmente retilíneos.
Em um ambiente onde se respira o desejo e o esforço de santidade, respaldado na oração e participação nos sacramentos, as
ervas daninhas da droga, da marginalização e da corrupção encontram mais dificuldade, mais resistência para nascer e prosperar, por falta de atmosfera propícia. Repitamos, com frequência,
em nosso coração, uma bela oração que integra uma das liturgias
da missa: “Ó Deus, fonte de todo o bem, atendei ao nosso apelo
e fazei-nos, por vossa inspiração, pensar o que é certo e realizá-lo
com vossa ajuda”, pois sem ela às vezes é extremamente difícil ou
quase impossível.
Disse Jesus: “Buscai em primeiro lugar o Reino de Deus e sua justiça e tudo o mais vos será dado por acréscimo” (Mt 6, 33). Com
estas palavras, não quis aconselhar as pessoas a rezarem muito
e ficarem sem fazer nada, esperando que tudo lhes caia do céu.
Ensina, sim, que devemos conhecer, buscar com afinco e por em
prática os valores do Reino, sobeja e detalhadamente ensinados
por ele; que seus aconselhamentos sejam transformados em uma
“rocha sobre a qual construamos a nossa casa”. A palavra “casa” é
muitíssimo usada nas Escrituras referindo-se à família. Em grego, ethos, origem da palavra ética, igualmente significa casa, no
mesmo sentido. É na família, portanto, que está a base de toda e
qualquer transformação social. Nela pode surgir e se instalar uma
nova ética, novo comportamento. Se buscar o Reino – vale dizer,
a santidade –, ele se instalará sob seu teto; se falhar, “será grande
a sua ruína”.
Quem dera surgisse toda uma geração santa. Dela gerar-se-iam
outras tantas, igualmente santas, e o paraíso seria reinaugurado,
prelibado aqui na Terra. Firmada a santidade como princípio –
ainda que desconhecendo que tem este nome e destino, mesmo
sem nunca ter ouvido falar no verbo “santificar-se” – dela resulta-
88
Pegadas de Deus
rão todos os outros valores: honestidade, seriedade, fidelidade no
seu sentido mais amplo; enfim, a vivência da verdade que liberta.
As máximas cristãs são: “Amai-vos uns aos outros como eu vos amei”
e “Amar a Deus sobre todas as coisas e ao próximo como a si mesmo”.
Cristo nos amo ao ponto de, literalmente, dar sua vida por nós. É
nossa obrigação precípua disponibilizar nossas vidas, mesmo sem
que necessário o extremo sacrifício da morte pelo outro ou pelos
outros.
“Amar a Deus sobre todas as coisas”, não há o que se discutir, nem
questionar, é um mandamento claríssimo por si mesmo. Deus, por
certo, não exige que a cada instante estejamos nos preocupando
com isso, parando em cada encruzilhada da vida para fazer as escolhas e as opções práticas do dia a dia. Essa decisão deverá ser
sempre genérica, tomada diante dos comportamentos que selam
o nosso agir quotidiano; importantes, sobretudo quando entram
em jogo interesses que extrapolam os nossos pessoais e que envolvem outras pessoas, ou quando nos sentimos tentados a sermos deuses. Se examinarmos nossas consciências com muito cuidado e isenção, veremos que, frequentemente, somos tentados a
priorizar às avessas. Basta que haja conflito de interesses entre os
seus planos e os nossos próprios, entre a sua vontade e a nossa.
“E ao próximo...” – quem será? Nas línguas latinas esta palavra pode
gerar certa confusão, pois além de designar aquele que está perto
de nós, refere-se também ao “seguinte”, o que virá depois. Poderemos nos desculpar facilmente: “Não é este (ou esta) ainda que eu
devo amar, mas o seguinte, ou a seguinte” – que nunca chegará.
Quem sabe até a sucessiva troca de companheiro ou companheira (a “monogamia seriada”) pode ser amparada por essa sinonímia, adiando indefinidamente a entrega amorosa radical...
Em relação a distância, quem morar na África ou na Austrália, por
exemplo, está teoricamente muito longe, não mereceria nosso
amor. Fotos feitas por satélites mostram o contrário; o mundo
todo cabe em um cartão postal ou pode ser contemplado na tela
Júlio Torres
89
de um televisor em tempo real. Longe mesmo, só os outros planetas. Em paralelo, como os nossos pais eram comuns, somos todos
irmãos. Todos os bípedes que pensam estão geneticamente próximos uns dos outros e devem tratar-se mutuamente com amor.
Haja santidade para que isso venha a acontecer. Ter só a “carinha
de santo” não é capaz de mudar nada; é necessário ter um coração
de santo.
O amor obrigatório ao próximo traz, como complementação natural e inseparável, o dever de perdoar as suas ofensas quando
cometidas. “Se o teu irmão pecou contra ti, vai primeiro reconciliar-te com ele e depois volta para oferecer tua oferta”. “Amar os
amigos é muito fácil, devemos amar os nossos inimigos, aqueles
que nos fazem mal, que nos atrapalham”. “A quem te bater numa
face, oferece também a outra”. Parece loucura, mas foi o que ele
disse. E mais, hora alguma cita a figura do pedido de desculpas a
provocar o perdão. Deveremos ser assim tão submissos e aparentemente covardes? Certamente, não. Significa que é o perdão que
agrega. É causa importante da aproximação que faz prosperar o
amor, o bem comum, a comunhão dos santos. O perdão é mais
forte que a ofensa que dói e, em geral, até a desmantela. São demasiados os males que resultam da falta de perdão. A construção
do amor (que é para ser definitivo) faz com que as agressões (que
são passageiras) tornem-se irrelevantes. Quando a cataplasma do
amor é aplicada, a dor da bofetada é anestesiada, resultando na
paz desejada e benfazeja. Evidentemente, esse esforço e decisão
são obrigatoriamente recíprocos, jamais poderão ser unilaterais.
O perdão exige reciprocidade e conversão em mão dupla. A dor
pode ser passageira e fugaz; a paz bem alicerçada em esforços de
reconciliação pode tornar-se definitiva. Voltaremos a tratar desse
tema em relação à particularidade da vida conjugal.
“Como a si mesmo”. Esta é outra questão fundamental a ser incluída como prioridade no nosso esforço de conversão. Amar-se
a si mesmo, de verdade, sem culpas, mas confiando sempre no
perdão de Deus. Amar a si mesmo implica em se autoperdoar com
generosidade, cultivar permanentemente a autoestima. A alegria
90
Pegadas de Deus
e a felicidade passam por este propósito. Infelizmente, há histórias pessoais tão traumáticas que conseguem enferrujar as portas
do coração, tanto as de entrada como as de saída. Romper os cadeados faz parte do esforço de conversão. O sentir-se amado por
Deus e candidato a ser amado pelos irmãos é capaz de romper
as amarras da alma. Vale a pena tentar, não como quem arrisca
jogando numa loteria, mas com a certeza de quem já escolheu o
número sorteado. Todos poderemos ser premiados nesta grande
ciranda da história humana. Basta ter fé e alimentá-la com a oração e a participação na Igreja.
Falha grave a ser evitada é confundir o amor a si mesmo com o
egoísmo. Este é perverso; é, por definição, amar exclusivamente a
si próprio, lotar o coração com o próprio nome. Como Narciso, que
só acha bonito o que é espelho.
Ser santo é tornar-se leve o suficiente para flutuar no sopro de
Deus.
Vale aqui lembrar a sábia, eterna, concreta e belíssima passagem
bíblica encontrada no Livro do Deuteronômio (Dt 30, 15-19):
“Eis que hoje estou colocando diante de ti a vida e a felicidade, a
morte e a infelicidade. Se ouves os mandamentos de Iahweh teu
deus, andando em seus caminhos e observando seus mandamentos, seus estatutos e suas normas, então viverás e te multiplicarás.
Contudo, se o teu coração se desvia, e não ouves, e te deixas seduzir e te prostras a outros deuses, e os serves, eu hoje vos declaro: é
certo que perecereis! Hoje tomo o céu e a terra como testemunhas
contra vós: eu te propus a vida ou a morte, a bênção ou a maldição. Escolhe, pois, a vida, para que vivas tu e a tua descendência”.
Júlio Torres
91
Cremos na remissão
dos pecados
Para entender este item do Credo necessário se faz, primeiramente, compreender bem o que é pecado. Muitos, talvez a maioria,
perderam completamente a noção de pecado porque não atualizaram o seu conceito ou porque menosprezam os seus efeitos
daninhos. Pecado é certamente a palavra mais genérica existente.
Há os que consideram que não pecam porque não matam nem
roubam, pelo menos no sentido estritamente literal e jurídico
dessas palavras. Quando crianças alguém lhes disse que pecado
era brigar com os colegas, cuspir nas pessoas, desobedecer aos
pais, chamar “nome feio”, “pensar” em sexo, ver figuras imorais etc.
Crescidos, já não veem mais pecados em seus atos, pois tudo isso
era coisa de criança, conceitos criados para amedrontá-los, subordiná-los às regras comportamentais, para tornar feio o que é mal
aceito socialmente. Nesse sentido, pecado passa a ser algo que
contraria a liberdade, que oprime o direito ao livre arbítrio ou, até,
que faz mal à saúde mental.
Analisado sob tal visão, restrita e deformada, de fato deveríamos
abolir essa palavra que assusta. Aliás, isso foi feito pelo próprio
Cristo, quando substituiu as antigas proibições da Lei pelo “novo
mandamento”, o mandamento do amor. “Eis que Eu vos dou um
novo mandamento: amai-vos uns aos outros como eu vos amei”
(Jo 15, 12).
Depois de Cristo, não pecar não é mais apenas evitar o que é proibido, mas, sobretudo, não cumprir as exigências do verbo amar,
não pô-lo em prática fartamente, sem restrições, limites, fronteiras ou barreiras. Cumprir a Lei é simples consequência lógica e
natural do exercício de amar. Dizia Santo Agostinho: “Ame verdadeiramente e faça tudo o que você quiser”. Analisar a extensão do
conceito de pecado, segundo Jesus, é avaliar todas as situações
de desamor, desde aquelas que ferem uma só pessoa – próxima
ou distante – às que pulverizam o sofrer sobre qualquer tipo ou
tamanho de comunidade. A consciência pessoal e coletiva acende constantemente um sinal de alarme ante todas as situações de
desamor. Desde a antiguidade, no Pentateuco, um dos primeiros
livros da Bíblia, encontramos como palavra de Deus: “Este man-
94
Pegadas de Deus
damento que hoje te ordeno não é excessivo para ti, nem está
fora do teu alcance. Ele não está no céu, para que fiques dizendo:
‘Quem subiria por nós até o céu, para trazê-lo a nós, para que possamos ouvi-lo e colocá-lo em prática?’. E não está no além-mar,
para que fiques dizendo: ‘Quem atravessaria o mar por nós, para
trazê-lo a nós, para que possamos ouvi-lo e colocá-lo em prática’.
Sim, porque a palavra está muito perto de ti: está na tua boca e no
teu coração, para que a coloques em prática” (Dt 30, 11-14).
Reconhece-se a existência de uma chamada Lei Natural, que bem
expressa o conteúdo dessas palavras do Deuteronômio. Sem que
precise ser escrita, ensinada ou instituída, sem que a tenhamos
lido ou escutado, todos sentem a sua existência no íntimo da
alma. A pessoa pode fazer qualquer besteira – mesmo às escondidas –, mas sente que a está fazendo, por mais enrijecido seja o seu
coração. Pode até negá-la, de pés juntos e até a morte, mas sabe
que a está cometendo.
O mundo globalizado peca de forma igualmente globalizada todas as vezes que obstrui os canais do amor entre as pessoas, todas
as vezes que as torna absurdamente desiguais, todas as vezes que
as coisifica, massifica, desumaniza. Todas as vezes que hipertrofia interesses pessoais perniciosos, ainda que por vezes até legais.
Fala-se em primeiro e terceiro mundos (conceitos criados pelos
franceses para classificar o poder social e aquisitivo dos povos),
mas há dezenas de mundos. Considerá-los qualitativamente de
um a três é pouquíssimo. Há mundos diferentes em um mesmo
país (inclusive nos considerados do primeiro), em um mesmo estado, em uma mesma cidade e até em uma mesma rua ou família.
Podemos supor que desigualdades econômicas sejam bem aceitas por Deus, haja vista que nos fez muito diferentes uns dos outros. Há diferenças marcantes nas inteligências e aptidões, na capacidade de trabalhar e de produzir, pensar e agir. Há diferenças
enormes entre profissões no tocante ao grau de dificuldades e
responsabilidades. Consequentemente, há que se entender uma
valoração também bastante diferente de renda entre as pessoas.
Júlio Torres
95
No entanto, o que por certo é incompreensível e não querido por
Deus é que o estômago econômico de alguns só se considere alimentado com toneladas de dinheiro, enquanto outros sejam obrigados a satisfazer-se apenas com alguns miligramas.
Pelo conceito cristão autêntico, a exclusão pessoal e comunitária do rol dos pecadores só poderia ocorrer após um exame de
consciência com base no estudo e meditação de um tratado
completo sobre o amor – acaso existisse. O limite para o amor é
o infinito, portanto não existe. As exigências do amor cristão são
tão extensas e profundas que diante delas todos somos, quando
muito, aprendizes da arte de amar. E não há que se colocar este
propósito, o de “amar como Ele nos amou”, como fonte de neuroses nem de qualquer tipo de inquietação interior, pois a prática do
amor equilibrado e produtivo nunca pesa na alma, nunca fratura
o equilíbrio interior, nunca gera temores nem fraquezas. Se isso
acontecer, é porque não estamos sabendo praticá-lo com retidão.
O amor de um não concorre com o dos outros, nem é diminuído
por eles. Se nos habituássemos a amar de verdade, o amor fluiria
tão espontaneamente e se tornaria tão comum que sequer seria
percebido. As guerras, tanto as interiores (pessoais) quanto as exteriores (conjugais, familiares, comunitárias, nacionais ou internacionais) – antíteses do amor –, são sempre ruidosas, enquanto a
paz se manifesta pelo silêncio da alma, pela calma, serenidade,
equilíbrio, brisa suave, como sentida por Elias no monte Horeb
(ver 1 Rs 19, 11-13).
O Credo coloca a declaração de fé na remissão (perdão) dos pecados em seguida à fé na Igreja e na comunhão dos santos, que
é quase a mesma coisa. É totalmente impossível amar como ele
amou, sabemos disso. É igualmente impossível sermos perfeitos
como o Pai. No entanto, a perfeição, a santidade plena e a capacidade de amor total do Cristo foram e nos são colocadas à disposição por meio da Igreja. Igualmente, o perdão nos vem dela, por
maior seja o nosso pecado, o nosso desamor, desde que sejamos
honestos no propósito de conversão, como dito acima. Dada a
impossibilidade de alcançarmos o topo da perfeição exigida por
96
Pegadas de Deus
Deus, Jesus, o Cristo, ofereceu sua perfeição absoluta como resgate pela nossa imperfeição, como alguém que paga a dívida de um
amigo. Cristo pagou por nós o saldo devedor do nosso egoísmo,
exigindo apenas que nos proponhamos um esforço de conversão.
Se um veneno é diluído em infinita quantidade de água, se torna inócuo; a imperfeição humana diluída na perfeição do Cristo
desaparece ante a expectativa de Deus para com a humanidade.
Por isso, por mais fracos e menores sejamos, desde que tenhamos
boa vontade nossos pecados serão perdoados, remidos. Só não
nos é dado o direito de obscurecer os ditames de nossas consciências, de nos submetermos à escravidão do desamor, de nos
iludirmos conscientemente, mentindo para nós mesmos, usando
máscaras de cordeiro sobre faces de lobo. Só quem, voluntária e
conscientemente, vira as costas ao projeto de salvação messiânica
de Jesus será excluído de tão bendita redenção.
Um padre amigo, certa vez, ensinou isto de forma muito interessante. Disse que, por causa de Cristo, de sua encarnação na humanidade tornando-se um de nós, temos o direito de um dia dizer
a Deus: “Senhor, eu vim agora para a tua casa porque sou teu filho, uma vez que sou irmão de Jesus. Queres ver? Olha como sou
parecido com Ele!”. Em outras palavras, poderemos dizer a Deus:
“Pai, tu queres que eu seja perfeito e saiba amar como tu. Isto não
consegui fazer, embora tenha me esforçado de todo o coração.
No entanto, o teu filho, Jesus, que sempre me tratou como irmão,
amou o suficiente por mim e por toda a humanidade, e por seus
méritos eu me apresento diante de ti, redimido por ele dos meus
pecados e marcado por ele pelo meu batismo”.
Júlio Torres
97
Cremos na ressurreição da
carne na vida eterna
Jesus ressuscitou três dias após sua morte. Este é o ponto mais forte de nossa fé cristã. Após ressuscitado seu corpo era “diferente”:
capaz de atravessar paredes, embora pudesse ser visto e palpado.
Conversava com seus apóstolos e alimentava-se junto com eles.
Não ia e vinha, mas aparecia e desaparecia. Evidentemente, não
podemos entender como era este “diferente”, de difícil descrição
inclusive pelos evangelistas que o viram, assustados. Tal dificuldade de descrição e o medo declarado não acompanharam a
ressurreição de Lázaro; todos ficaram profundamente admirados
e plenos de fé, mas não com medo. Dá para entender que eram
situações bem distintas. Lázaro, trazido de volta à vida por Jesus,
morreu novamente depois.
A fé nos ensina que essa mesma ressurreição acontecerá com
cada um de nós, também não sabemos como, mas Cristo nos prometeu muito claramente. “Esta é a vontade de meu Pai: que todo
aquele que vê o Filho e nele crê, tenha a vida eterna. E eu o ressuscitarei no último dia” (Jo 6, 40). “Depois que eu for e vos tiver
preparado um lugar, voltarei de novo e vos tomarei comigo, para
que onde eu estou, estejais vós também” (Jo 14, 3). “Em verdade,
em verdade eu vos digo: se alguém guardar a minha palavra, não
verá jamais a morte” (Jo 8, 51). Ainda em João (3, 12) encontramos
a passagem em que Nicodemos, autoridade israelita e que nutria
profunda admiração por Jesus, veio procurá-lo, escondido, à noite, para fazer-lhe perguntas sobre assuntos espirituais e Jesus lhe
disse: “Se não acreditais quando vos falo das coisas da terra, como
acreditareis quando vos falar das coisas do céu?”. É complicado,
mesmo. Não adianta perscrutarmos sobre realidades que escapam à nossa natureza e inteligência. Bem mais racional é deixarnos conduzir pelo suave enlevo da fé. Se uma criança nos indagar
porque uma lâmpada acende ao ligamos o interruptor, de nada
adiantará dar-lhe uma aula sobre correntes de elétrons que tornam um filete metálico incandescente no vácuo existente no interior de um bulbo de vidro. Quando muito, poderemos dizer-lhe
que é normal uma lâmpada acender e que nada de mágico acontece naquele fenômeno. Quando um filho pequeno pergunta ao
pai sobre como nasceu, é inútil explicar em detalhes como ocorre
100
Pegadas de Deus
a reprodução humana e muito menos dissertar sobre carga genética. Simplificamos dizendo que uma sementinha do papai foi
colocada na mamãe e ele nasceu, da mesma forma que um abacateiro nasce de um caroço de abacate plantado na terra. Guardadas
as devidas proporções, a ignorância de uma criança ante a ciência
é semelhante a de um adulto ante as coisas do infinito de Deus.
Ela, porque ainda não cresceu o suficiente; nós, porque ainda não
transcendemos. Ela acreditará, porque o pai lhe disse; igualmente,
devemos acreditar pelo mesmo motivo. A fé em Jesus e na sua
Igreja nos explica as verdades transcendentais mais ou menos da
mesma forma como explicamos a uma criança a existência de um
neném no ventre da mãe.
Acreditar na vida eterna é acreditar em “outra vida”? Não. A vida
humana é um fenômeno só. Há uma geração inauguratória, união
de gametas, uma fase dentro do útero da mãe e o nascimento
(délivrance) do que na verdade já havia nascido. Fora do útero vai
continuar seu trajeto, por tempo variável, até o fenômeno físico
final chamado de morte. A espécie humana tem um corpo físico,
sensível (o soma), e uma outra realidade, dita “interior”, insensível,
mas clara e perfeitamente notada mediante suas manifestações
somáticas. Fala-se em “interior” porque estamos habituados com
o raciocínio material, acostumados a descrever fisicamente as realidades circunstantes. Na verdade, não existe nem o “fora” nem
o “dentro” de nós; apenas o visível e o invisível. A essa realidade
insensível, a parte pensante de nosso eu, chamamos de mente,
alma, espírito, psique, pensamento etc. Ocorrendo o fenômeno
biológico que se caracteriza pela falência geral de todos os órgãos
e interrupção de toda a atividade celular e tecidual corpórea, a
vida dessa “parte” sensível, somática, chega a seu final. A porção
“interior” da vida – sem dúvida, a mais importante – continua; sendo imaterial, não está nem estará jamais sujeita a nenhuma das
limitações da matéria. Não ocupa lugar no espaço nem está mais
submissa ao tempo. É nessa dimensão, absoluta e descomunalmente diferente da vida material que se extinguiu com a última
sístole do coração, que a vida vai continuar, e para sempre... Restará a porção de nós que escapou do vale das lágrimas. Dizia-se
Júlio Torres
101
no antigo latim: Vere dies natalis (O verdadeiro dia do nascimento)
– melhor que aquele no qual saímos do ventre de nossa mãe. Os
dias dos santos são comemorados nas datas de suas mortes.
E para onde vai? Não vai, posto que não ocupa lugar no espaço,
como dissemos. Não vai nem fica, posto que ir e vir é próprio da
matéria semovente, não do espírito. Céu e inferno não são lugares, mas “estados”, digamos assim. O primeiro é imaginado lá em
cima, por ser sumamente bom – mais ainda nas línguas latinas,
nas quais se confunde com o azul do firmamento; o segundo, lá
embaixo, por ser sumamente ruim.
Nesta vida terrena passamos por situações em que sentimos, ainda que minimamente e de forma passageira, levíssima sensação
da gostosura do céu; longinquamente, é como se gozássemos de
uma visão da beleza do universo pleno olhando-o por simples buraco de fechadura, mas sempre melhor do que nada. Infelizmente,
há vezes em que experimentamos o terror do turbilhão infernal.
Prelibação da paz extrema no primeiro, em contraposição à sensação de amarga tristeza no segundo.
Acreditar em Deus traz, como corolário, a crença na vida eterna.
Não seria lógico Deus criar um ser tão parecido com ele, “à Sua
imagem e semelhança”, para depois destiná-lo ao nada absoluto
da decomposição na solidão de um túmulo. Iria mandar seu Filho, deixá-lo morrer na cruz como um marginal para nos salvar,
de quê? De uma vida somente física, manchada pelos erros e perversidades humanas? Suas pregações, que valor teriam? De que
serviria, então, amar indistinta e incondicionalmente?
Sobre a vida eterna não há que se perscrutá-la. Refere Rey Mermet: “Tem razão aquela cristã engajada que escreveu: o que se
passa além da morte é problema de Deus, não meu. Ele nos promete a vida eterna e isto me basta. Jesus não nos convidou a nos
projetarmos pela imaginação no além, mas a buscar em primeiro
lugar o Reino de Deus e sua justiça aqui e agora, em todas as coisas, em todos os passos da nossa vida. Há aí bastante com que nos
ocuparmos”.
102
Pegadas de Deus
A vida eterna de paz e felicidade prometida por Cristo é como a
melhor fatia de um bolo, mas o cristão consciente sabe que para
alcançá-la tem que participar ativamente em sua feitura, desde
o plantio do trigo e sua colheita. Depois, ajudar a moer os grãos
ao fazer a farinha; misturar adequadamente a massa e ser seu fermento; adoça-la devidamente com sua parcela de mel e ajudar a
levá-la ao forno; finalmente, participar do trabalho de confeitá-la.
Então, tendo sido o bolo preparado comunitariamente, saborear
a fatia deliciosa a que tem direito.
Declaramos igualmente nesta parte do Credo que acreditamos
na ressurreição da carne. A tradição da Igreja nos afirma, igualmente sem tentar uma explicação material e somática para o fato,
que “no último dia” os nossos corpos – conforme os conhecemos
e entendemos agora – irão tornar-se novamente vivos. Em que
conceito ou dimensão, é mais uma incógnita. Vale novamente a
reflexão supracitada por Mermet.
Júlio Torres
103
Amém
Em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo.
Amém.
Ide em paz e que o Senhor vos acompanhe.
Amém.
Boa prova, meu filho!
Amém.
Deus lhe faça feliz!
Amém.
Vai dar tudo certo, não se preocupe!
Amém.
Estamos rezando e vai correr tudo bem com sua operação!
Amém.
Não se preocupe, logo, logo você vai ficar bom!
Amém.
Boa viagem!
Amém.
Nosso dia a dia está repleto de améns. Tanto os crentes como os
não crentes estão habituados a pronunciá-lo, às vezes até automaticamente. A palavra já era muito usada desde o antigo povo
judeu, significando, em hebraico, rochedo, rocha, firme como uma
rocha, símbolo do próprio nome de Deus. Encontramos no Salmo
18 (17), 3: “Iahweh é minha rocha (amém) e minha fortaleza”. O
amém, portanto, representa a concreta e definitiva sustentação
do que é absolutamente verdadeiro.
Terminamos o nosso Credo, a nossa declaração de fé, com esta
sagrada e indefectível marca da confirmação de Deus. Uma vez
aclamado o nosso amém, nada mais será capaz de mudar o que
acabamos de declarar.
Enfim: Jesus promete vida plena, o que de melhor existe, a quem
o segue e põe em prática seus ensinamentos. Os que se esforçam
para viver plenamente – e isto é perfeitamente possível a qualquer pessoa – livram-se da maioria das situações e sentimentos
106
Pegadas de Deus
extremos que prejudicam a paz e a felicidade própria e dos outros. Não fora as limitações e fraquezas da matéria, quase estariam
antecipando a situação de céu aqui na terra. Esta é uma verdade
de fácil constatação na prática. Restariam as causas de sofrimento
comunitário, que resultam de pecados igualmente comunitários e
alheios aos esforços pessoais. Não se conformar com elas e contra
elas lutar é dever do cristão, porém sem somatizá-las, absorvendo sofrimentos em relação a problemas cuja solução nos escapa.
Crer verdadeiramente, interiorizar e vivenciar as afirmações que
pronunciamos no Credo facilitam enormemente a concretização
desse projeto. Portanto, viver plenamente é ótimo e morrer, após
viver plenamente, também é ótimo. Podemos nos arriscar a dizer
que, com certeza, será melhor ainda.
Parêntese 5
Como devemos tratar Deus? E Jesus? E sua Mãe, Maria Santíssima
e Senhora Nossa? Ou, invertendo a pergunta, como será que Deus,
Jesus Cristo e sua Mãe gostariam ou gostam de ser tratados?
Nos regimes monárquicos os reis e rainhas, imperadores e imperatrizes exigem ser tratados por Vossa Majestade. Ao nos dirigirmos a autoridades em geral, o tratamento é, obrigatoriamente,
Vossa Excelência, o Senhor ou a Senhora. Reitores, tratamos por
Vossa Magnificência, posto que o cargo que ocupam os tornam
Magníficos. Juízes e juízas são Meritíssimo Sr. ou Meritíssima Sra.
No uso comum da língua portuguesa – com pouca variação de uma
região para outra – geralmente tratamos por “senhor” e “senhora”
pessoas que exigem nosso respeito pela idade, cargo que ocupam
ou profissão que exercem. Tratamos por tu (teu, tua) os que nos são
profundamente íntimos, muito próximos. Finalmente, tratamos por
“você” os que, hierarquicamente, situam-se entre a máxima intimidade do tu e a pouca intimidade do senhor ou senhora.
No meio disso tudo ainda há o vós, mais formal ainda, inútil na
linguagem prática do dia a dia, inclusive ou principalmente por
Júlio Torres
107
ser de difícil conjugação verbal. Diante disso, volta-se à pergunta
inicial: que tratamento devemos usar quando falamos com Deus
Pai, com seu Filho e nosso irmão Jesus Cristo e com sua Mãe?
Na minha infância, ninguém ousava tratar os pais ou avós por
você, menos ainda por tu. Exigia-se, natural e indiscutivelmente,
o respeitabilíssimo senhor ou senhora. Qualquer pessoa, pouco
mais velha, era igualmente assim tratada; escapar dessa regra seria falta de educação das mais graves, passível da punição mínima
de um carão, um olhar fulminante ou um puxão de orelhas. As
coisas funcionavam assim: fruto de lei tida como natural, rígida
e indiscutível. Sequer era questionada, não provocava qualquer
tipo de revolta ou desejo pacífico de mudança.
Nossa filha mais velha, Mônica, desde que começou a falar
passou a tratar-nos, a mim e a sua mãe, por tu – jamais usou outro
pronome. Como nunca foi “corrigida”, nem recebeu qualquer
proposta em contrário, seguiu seu instinto amoroso. Inaugurou
assim na família o tratamento íntimo que revela a estreita relação
entre iguais, entre aqueles que o amor nivela no mesmo plano,
eleva ao planalto das relações onde frutifica o amor. Seus três
irmãos – com os quais fomos depois agraciados – seguiram-lhe o
exemplo, sem discussão ou questionamento. Entendo isso como
manifestação de candura espontânea, congênita e natural. Certa
vez, quando ainda todos muito pequenos, recebemos a visita de
um cardeal, o grande D. Avelar Brandão Vilela, que conhecera
minha mulher quando criança. A terceira filha, Juliana, à época
com cerca de quatro anos, declarou diante dele, com a maior
naturalidade: “Eu gostei do Avelar!!!”. Claro que todos riram ante
tão manifesta inocência.
Por extensão e aprendizado doméstico, nossos netos também
assim nos tratam e a seus pais – a intimidade instalou-se de forma definitiva, ao que parece. Talvez seja um fenômeno global dos
nossos tempos, não sei ao certo – se assim for, tanto melhor.
Tratar Jesus Cristo por Vossa Majestade, nem pensar. Ele mesmo
disse que seu Reino não era deste mundo. Cremos, e assim o
108
Pegadas de Deus
declaramos, que ele será nosso juiz no fim dos tempos. Mesmo
assim, não cabe tratá-lo por Meritíssimo. Por vós é dificílimo; dá
para contar nos dedos quem sabe conjugar verbos nesta pessoa.
Restam: senhor, você ou tu. O mesmo se aplica à sua Mãe e a Deus
Pai. Ela, coitada, na condição de Rainha (Regina coeli = Rainha do
céu), se for tratada como “majestade” certamente irá olhar para
o lado, para saber se é com ela mesma que estamos falando, vez
que nasceu, cresceu e morreu como humilde e sofredora pessoa
do povo de Deus. Nunca, em vida, foi elevada à condição de alguém socialmente importante.
Quando Jesus nos ensinou a maneira mais apropriada de orarmos
a Deus Pai, disse que devíamos tratá-lo por Abbá. Assim, algo me
diz que tratá-los por tu enche mais de alegria os seus corações,
além de, linguisticamente, facilitar a conversa.
Júlio Torres
109
Os
sacramentos
Generalidades
Por definição, sacramentos são sinais eficazes da graça de Deus.
Vamos entendê-los por partes.
Sinal é tudo aquilo que é visto, sensível, bem conhecido e contém uma realidade invisível, insensível. Em todo sinal a realidade
insensível é sempre maior que o sinal em si: é sempre desproporcionalmente grande.
Um namorado parte para longe e leva consigo um lenço da namorada embebido em seu perfume predileto, já sentido diversas
vezes. Um lenço é um simples pedaço de pano, igual a qualquer
outro, e o perfume pode ser facilmente encontrado. Porém, para
aquele rapaz, traz recordações e promessas, revive momentos
de beleza e ternura e até parece fazer presente a amada distante
quando se delicia com o seu aroma. Aquele lenço é um sinal. É um
sacramento humano.
Um anel de formatura é uma simples argola de ouro com uma pedra ao centro e o indicativo da profissão ao lado. Pode ser encontrado em qualquer joalheria, mas é um símbolo reconhecido. É o
resultado de muitos sacrifícios, dias e noites de estudo, representa
uma responsabilidade social que o grau lhe confere. Ao me formar em Medicina, ganhei um desses, fruto de esforço econômico
de minha família. A nossa pedra é a esmeralda, com o verde brilhante da esperança. Diante da Congregação de minha faculdade
foi-me introduzido no dedo por meu irmão José, meu paraninfo,
representando meu falecido pai. Trinta e dois anos depois, meu
filho também se formou em Medicina e este mesmo anel foi-lhe
por mim transferido em solenidade igual àquela. Assim, não é um
simples aro de ouro com uma pedra verde cintilante ladeada por
duas cobras. Aquele anel é um sinal. É um sacramento humano.
Quando cursava o terceiro ano de Medicina, meu pai foi acometido de uma alergia na pele e me pediu uma pomada. Deu-me
pequeno cartão para que nele escrevesse o nome de um remédio.
Ficou bom após usá-lo. Pouco tempo depois, veio a falecer, sem
112
Pegadas de Deus
me ter visto formado. Decorridos muitos anos, encontrei aquele
cartão em antiga gaveta. No verso, de próprio punho, havia escrito: “receita do dr. Júlio Torres”. Teria sido aquela a minha primeira
prescrição. Ainda hoje guardo esse cartão. É apenas pequeno pedaço de papel, com poucas palavras, mas contém uma realidade
invisível aos olhos que centenas de frases seriam incapazes de
descrever. Aquele cartão é um sinal. É um sacramento humano.
Há imenso número de sinais que utilizamos no dia a dia e integram a vida social e comunitária. Há também sinais pessoais ou de
um casal, muitos profundamente íntimos e até secretos. Os sinais
antecedem os fatos, muitas vezes. Há sinais na natureza que indicam que vai chover ou fazer sol, de que virá muito calor ou frio, de
que o dia está propício para a pesca ou não, de que haverá tempestade ou bonança. Há sinais universais de alegria ou tristeza,
medo ou segurança, grandeza ou pequenez humanas, largueza
ou mediocridade. Vivemos permanentemente cercados de sinais
e a eles estamos habituados; não é de admirar, pois, que Deus se
comunique conosco exatamente por meio deles.
Infelizmente, nos relacionamentos humanos há muitos sinais que
não são verdadeiros. Há o abraço puramente social, que nada tem
de amizade. Há beijos prostituídos, há lágrimas falsas, há declarações de amor mentirosas. Os sinais humanos nem sempre são
eficazes. Na verdade, nem sempre podem ser chamados de sinais.
Os sacramentos são sinais eficazes: sempre e de fato trazem em si
a realidade escondida a que se propõem, pois resultam das promessas do Cristo – e ele nunca falha.
O que é invisível aos olhos nos sinais dos sacramentos é a graça de
Deus. Graça de Deus é sua presença viva, tudo aquilo que ele nos
dá, nos oferece gratuitamente: “de graça”. É o seu dom. Podemos
dizer que a graça é a manifestação universal do amor de Deus.
Visto neste sentido amplo, tudo é sinal da graça de Deus, tudo é
manifestação de sua presença. Claro! Uma simples flor num jardim
é sinal de que por ali andou gerando vida e beleza. Qualquer ato
de amor humano, mesmo o mais simples, é sinal de sua presença.
Júlio Torres
113
Há quem diga – e com certa razão – que os homens e as mulheres modernas não estão mais habituados a ver sinais nas coisas e
nas pessoas. E se não veem os sinais humanos, quanto mais os de
Deus! Isto lamentavelmente é verdade, mas também é verdade
que não é sinal de progresso. Pelo contrário, é indicativo de que
paulatinamente estamos perdendo a capacidade de enxergar o
que está além das aparências. Assim, abafando nossas melhores
qualidades, as mais nobres e belas, estamos nos desumanizando
– talvez devido ao fato de que isso não rende dinheiro. “O essencial é invisível aos olhos”, dizia o Pequeno Príncipe. Disso também
já se queixava Olavo Bilac: “Ora, direis, ouvir estrelas... Por certo
perdeste o senso”. Mas não é preciso ser escritor ou poeta para
perceber sinais. Basta ser humano, fazer questão de ser humano,
esforçar-se para continuar sendo humano – o que é próprio do
Homo sapiens.
Cito um trecho de D. Helder Câmara em Um olhar sobre a cidade:
“Quando se começa a descobrir o simbolismo de cada atitude e
de cada gesto, nota-se que o universo inteiro vira um grande sacramento, no sentido de algo visível, de tangível, de audível, que
nos leva ao Criador e Pai”.
Na área das telecomunicações os sinais são emitidos por uma estação de rádio ou TV, por exemplo. São invisíveis e se transmitem
por ondas eletromagnéticas, igualmente invisíveis. No entanto,
quando ligamos um receptor e o sintonizamos, se transformam
imediatamente em sons ou imagens. Sintonizado o receptor, os
sinais deixam de ser invisíveis, insensíveis; e mais, a qualidade do
que se vê ou ouve será tanto melhor quanto mais perfeito o receptor e quanto mais sintonizado estiver. No nosso caso, o que
“sintoniza” as pessoas para receber os sinais de Deus é a fé. Quanto
mais procurarmos viver uma experiência de Deus (bom receptor)
e mais sintonizados estivermos (crescendo na fé), mais nitidamente perceberemos a presença de sua graça. Quanto mais procuramos nos impregnar de Deus e tornarmo-nos sensíveis a ele,
mais alto nos fala, mais presente se torna em nossas vidas e com
mais segurança e confiança nos entregamos em suas mãos – e
isto é sumamente bom. É um aprendizado, um processo lento e
114
Pegadas de Deus
progressivo, como o próprio amor humano. Aliás, como todas as
qualidades superiores humanas.
Esta abertura para Deus e suas manifestações não é difícil como
talvez possa parecer, pois ele é como o sol: só não nos aquece
se nos escondermos dele, só não nos ilumina se lhe fecharmos
as portas e janelas. Não é coisa para carolas e fanáticos, pois está
presente no interior de todas as pessoas e só não vem à tona se o
deixarmos submerso na mente demasiado ocupada com as atividades do mundo material. Deus se revelou e se revela, mas o processo de revelação se repete para cada um de nós. É necessário
que nos disponhamos a sentir essa revelação como tal, ao nível
pessoal. E será cada vez mais nítida e clara à medida que ele se
fizer prioridade, quanto mais se tiver tempo para ele.
No entanto, na vastidão dos sinais de Deus há alguns mais fortes,
mais densos. Os sacramentos são os sinais “oficiais” de sua graça,
não apenas pessoais, mas da comunidade eclesial universal. São
mundialmente usados e praticados com a mesma fé, de forma
exatamente igual, com o mesmo entusiasmo, cada povo em sua
própria língua.
São sete os sacramentos. Se tudo é sinal da graça de Deus, mesmo
entendendo que há sinais mais densos, como poderia ser reduzido
a apenas sete? É que sete é igualmente simbólico: um número sinal.
Para os antigos, havia quatro elementos básicos na natureza:
a terra, o fogo, o ar e a água – correspondendo aos 104 que conhecemos atualmente. Desta forma, 4 simbolizava a matéria. O
número 3 simbolizava o divino, o transcendente. Sua soma (4+3)
significava a soma de tudo o que era material com tudo o que era
espiritual – o todo absoluto, portanto. Sete sacramentos: sinais da
plenitude da vida, tanto no nível pessoal como comunitário.
Os sacramentos acompanham os momentos importantes da
vida. Para o primeiro fato importante, o nascimento, há o Batismo. Quando deixamos de ser crianças e nos tornamos adolescentes, iniciando nova fase de descoberta do mundo, há o Crisma ou
Júlio Torres
115
Confirmação. Quando já adultos e de conformidade com a vocação para a vida conjugal ou sacerdotal, os sacramentos do Matrimônio e da Ordem. Quando a saúde corre risco ou a vida está
chegando a seu término, a Unção dos Enfermos. Os outros dois
acompanham o nosso dia a dia: a Eucaristia, alimento do nosso ser
espiritual, e a Reconciliação, que nos oferece o perdão de Deus. O
Batismo, a Confirmação e a Eucaristia são chamados de sacramentos da iniciação cristã, posto que fundamentam toda a vida cristã.
Todos os sacramentos pressupõem, expressam e alimentam a fé.
Todos têm ritual próprio, no qual são utilizados os sinais visíveis.
Igualmente, todos são dinâmicos, não para ser recebidos, mas sim
vividos. Quando alguém se forma em Medicina, por exemplo, no
dia da formatura não apenas se torna médico, mas começa a ser
médico, e o será cada vez mais com a vivência da profissão – assim
são os sacramentos, vivência ininterrupta operando em nós, continuamente, a graça de Deus.
Não só nos sacramentos, mas em diversas práticas religiosas, além
dos sinais, a Igreja faz uso de símbolos diversos. A palavra é de
origem grega: sin, refere-se à união, aproximação. Exemplo: há
um defeito congênito chamado sindactilia, a criança nasce com
os dedos unidos, colados. A palavra simbólico refere-se, portanto,
a algo que une, agrega. O seu contrário é a palavra grega dia, que
se refere ao que afasta, separa, desagrega. Exemplo: a histórica
diáspora, a dispersão do povo judeu pelo mundo. Diabólico é,
portanto, o contrário de simbólico.
Na prática, todas as belezas escondidas por trás dos sinais e símbolos dos sacramentos, sua profundidade e fonte de graças são
muitas vezes perdidas por falta dos conhecimentos básicos sobre
os mesmos. Por conta dessa desinformação há muito a Igreja vem
exigindo certa preparação, ainda que diminuta, que antecede sua
celebração. Um modo de resgatar a valorização que merecem. Esses “cursos”, na verdade “encontros”, devem ser bem aceitos e valorizados pela comunidade católica. É triste desperdício receber ou
participar de um sacramento sem enxergar a riqueza escondida
que Cristo colocou à nossa disposição.
116
Pegadas de Deus
O Batismo
É o primeiro dos sacramentos e o fundamento de toda a vida cristã, por isso mesmo intitulado de vitae spiritualis ianua, que em
latim significa “a porta da vida espiritual”. Seu sinal essencial é a
água. O verbo batizar origina-se do grego baptizein, que significa
mergulhar, imergir.
A água é essencial à vida, mas também pode representar a morte. Não há vida sem a presença da água. No entanto, se alguém
cair no meio do mar, mesmo sabendo nadar bem, morrerá afogado. Assim, simbolicamente, pela água do Batismo o catecúmeno
(quem ainda não foi batizado) é sepultado na morte de Cristo, da
qual com ele ressuscita para nova vida; surge dali nova criatura. A
água é também sinal universal de limpeza, purificação; portanto,
nada mais adequado para simbolizar o que o sinal confere: novo
nascer, desta vez isento dos efeitos do pecado original.
Pelo sinal visível da água ocorre a invisível filiação a Deus, inicia-se
uma vida de fé, procede-se a entrada oficial de mais um membro
na comunidade universal da Igreja e na comunhão dos santos.
Inaugura-se naquele coração um recôndito desejo de conversão
ao projeto de vida plena proposto por Cristo. Pelo Batismo, todos
passamos a ser descendentes de um mesmo Pai e parte do “povo
eleito”. Nossa linhagem espiritual passa a ser uma sequência genealógica da do próprio Cristo.
Como todo sacramento, pressupõe a fé, tanto que o celebrante pergunta aos pais e padrinhos: “Que pedis à Igreja?” – e todos respondem: “A fé”. O Credo é então declarado por todos os presentes. Se
não for este o motivo, se não houver a convicção na eficácia do sacramento, melhor não batizar. Não é ato que possa ser realizado no
vazio do espírito, no cumprimento de simples ritual seguido de festa familiar na qual amigos são elevados à categoria de compadres.
Mas, como uma criança, às vezes com apenas alguns dias de nascida, pode se tornar cristã, com todas as consequências decorrentes dessa condição? É simples, naquele momento, como o disseJúlio Torres
117
mos, apenas começa o Batismo, cujos efeitos serão perpetuados
por toda a vida.
Por que a Igreja Católica batiza crianças e não espera que cresçam
e se tornem maduras ao ponto de escolher e entender o sacramento? Porque acredita no compromisso dos pais e padrinhos, e nos
efeitos do sinal sobre suas almas. Toda criança é terreno fértil para
a germinação e crescimento da fé e da graça de Deus. Claro que a
decisão é dos pais. Da mesma maneira que as registram, por opção,
as tornam cristãs desde cedo, e o mais cedo possível. Do mesmo
modo que propiciam aos filhos e filhas uma série de coisas que julgam lhes ser de fundamental importância – por exemplo, levá-las
à escola, vaciná-las –, desejam sua pertença a Cristo. Como ele é a
luz do mundo, irá, igualmente, iluminar seus passos para que não
se extraviem na caminhada rumo à vida plena de felicidade e paz.
Quem, em sã consciência, não deseja isso para os seus filhos?
Comumente, quem administra o Batismo é um padre. No entanto,
em situações especiais – risco de vida para a criança, por exemplo
– qualquer pessoa batizada poderá batizar. Para tanto, basta derramar-lhe um pouco d’água sobre a cabeça (na impossibilidade, sobre qualquer parte do corpo) e dizer: “Eu te batizo em nome do Pai,
do Filho e do Espírito Santo” – conforme os ensinamentos de Cristo.
Além da água, há outros símbolos no rito do Batismo. A roupa
branca é sinal de pureza interior; a vela acesa representa Cristo, a
luz do mundo; o óleo é usado pelo celebrante para ungir a fronte
do catecúmeno –­ ato milenar na história dos povos.
Sendo a porta da vida sacramental, sem o Batismo nenhum outro
sacramento pode ser ministrado. Para o Matrimônio, por exemplo,
é exigido que pelo menos um dos cônjuges seja batizado; caso
contrário, será inválido.
O Crisma ou Confirmação
Os sinais do Crisma são o óleo e a imposição das mãos e sua celebração é feita pelo bispo ou um padre por ele autorizado em
118
Pegadas de Deus
situações especiais. Na antiguidade, os atletas, gladiadores e
guerreiros eram ungidos com óleo vegetal para se tornarem mais
fortes, flexíveis e ágeis. Pelo sinal visível do óleo, o adolescente, já
batizado, se fortifica na fé e na decisão de seguir os ensinamentos
de Cristo e de pertencer à sua Igreja. O que é invisível, mas crível
no Crisma, é a presença do Espírito Santo em nossas vidas, pois
sabemos que sem ele nada poderemos construir, seremos frágeis
no combate contra as imperfeições que nos cercam e seduzem
constantemente.
Nos Atos dos Apóstolos, capítulo 2, encontra-se a descrição de
como aconteceu a vinda do Espírito Santo sobre os apóstolos.
Entre os judeus, 50 dias após a Páscoa era celebrada antiga festa
chamada de Pentecostes. E estavam reunidos com essa finalidade
quando aconteceu sua vinda. Sob efeito do novo espírito, desapareceu todo o medo que sentiam e a desilusão rápida transformou-se em desejo inabalável de lutar pela instalação do Reino
prometido por Jesus – este dia marcou o começo da pregação do
Evangelho.
Pelo Crisma acontece o Pentecostes pessoal de cada cristão, marcado pelo sinal visível do óleo. Nosso espírito passa a ser habitado
por ele e os nossos pensamentos e ações por ele inspirados. Ele
ficará eternamente à nossa disposição no interior de nós mesmos,
com toda a sua potencialidade.
No rito sacramental o celebrante anuncia os dons do Espírito Santo, que são infundidos ao crismando: sabedoria, inteligência, conselho, fortaleza, ciência, piedade e temor de Deus. Assim começa
o Crisma, devendo ser alimentado pela vida afora.
Diz São Paulo na Primeira Carta aos Coríntios (12, 4-7): “Há diversidade de dons, mas um só Espírito. Os ministérios são diversos,
mas um só o Senhor. A cada um é dada a manifestação do Espírito
para proveito comum”. Cada pessoa tem uma tendência pessoal
que chamamos genericamente de vocação (que quer dizer chamado), a habilidade pessoal para realizar determinada tarefa ou
Júlio Torres
119
atividade. “Mas um e o mesmo Espírito distribui todos estes dons,
repartindo a cada um como lhe apraz” (1 Cor 12,11).
Assim, pelo Batismo e pelo Crisma homens e mulheres são inseridos no mundo não apenas como cidadãos e cidadãs comuns,
com tal ou qual profissão ou capacidades ou conhecimentos para
realizar determinadas tarefas, mas como cristãos, lavados e ungidos. A qualquer que seja sua profissão ser-lhes-á acrescida a qualificação de cristão ou cristã. Não mais simples cidadão do universo,
mas do infinito; não mais simples inteligência humana, mas um
espírito inspirado pela sabedoria divina. Não mais uma casa vazia,
mas um templo do Espírito Santo.
Se tivéssemos no comando das nossas sociedades humanas
pessoas realmente cristãs e que pusessem em prática os valores
propostos por Cristo, se tivéssemos políticos e governantes, planejadores e dirigentes em todos os níveis, legisladores e empresários que de fato se esforçassem por criar estruturas cristãs, se
cada um de nós em casa, na família, no trabalho, desempenhasse
sua função sob a luz da verdade, da justiça, se todos se deixassem
transportar pelo vento do Espírito, sem dúvida o mundo seria incrivelmente melhor.
Reconciliação
Antigamente, este sacramento era chamado apenas de Confissão
ou Penitência. Reconciliação foi-lhe acrescentado, pois reconciliar-se é bem mais significativo e importante que simplesmente
confessar-se ou receber uma penitência para ser cumprida. Reconciliar é a plenitude do perdão. É esquecer, apagar o pecado,
começar tudo de novo como se nada tivesse acontecido. É assim
que Deus nos perdoa. Chama-se ainda de sacramento da conversão, dado o papel que pode exercer no processo pessoal de mudança de comportamento.
O entendimento pessoal do que vem a ser pecado está intimamente relacionado com o exame de consciência de cada um.
120
Pegadas de Deus
Consciência é a capacidade interior de julgarmos nossos próprios
atos. Para julgarmos, evidentemente devem existir alguns pontos
de referência do bem e do mal, do que é certo, bom, útil, benfazejo ou do que é errado, inútil, prejudicial, danoso.
Fala-se, em tese, de uma liberdade de consciência. Consequentemente, o julgamento por referências próprias daria infinita variedade de valores ou desvalores, de acordo com a visão pessoal e os
conceitos subjetivos. Se nos guiássemos por padrões individuais
seria impossível traçar a mínima distinção entre perfeição e imperfeição para as sociedades humanas. A delimitação entre o bem
e o mal é extremamente complexa, pois depende, inclusive, de
fatores culturais. Se um índio ou índia saírem nus em uma cidade,
serão interpretados como cometendo um erro. Em algumas de
suas aldeias, esse fato é absolutamente normal. Assim, há diversos comportamentos normais para uns e inaceitáveis para outros.
Para normatizar condutas, para não liberá-las ao gosto de cada
um, para não deixá-las subordinadas apenas à consciência individual, as sociedades dispõem de leis e códigos. Sob o julgamento
das leis humanas os atos se tornam legais ou ilegais. Os conceitos
jurídicos resultam de discussões e consensos entre os legisladores, mas da mesma forma que passam a vigorar, podem ter a validade suspensa. Como cidadãos, nossas atitudes estão normatizadas pelo Código Civil.
Outro ponto de referência adotado para avaliar as ações humanas
é o costume, a frequência social. Muitos acham que um comportamento muito frequente ou mesmo generalizado na sociedade
passa a ser justo ou certo. Muitos se enganam ou são enganados
por causa disso, pois nem tudo o que é frequente é bom ou honesto – se todo mundo faz eu também posso fazer, é uma atitude
eminentemente danosa.
O cristão é alguém que, por convicção, procura ser no mundo
uma pessoa que segue e vive a doutrina de Cristo atualizada na
História por intermédio da Igreja. A consciência do cristão deverá,
Júlio Torres
121
portanto, estar condicionada a essas fontes. São valores cristãos
aqueles ensinados por Cristo (sacramento de Deus) e permanentemente revividos pela Igreja (sacramento de Cristo). Caso contrário, não será cristão.
Comparativamente, o que é ilegal ou criminoso, do ponto de vista
jurídico, sob a luz da doutrina de Cristo, é o pecado. Em paralelo,
uma prática legal do ponto de vista jurídico não obrigatoriamente
deixa de ser pecaminosa: a do aborto, por exemplo, mesmo quando legalizada não perde sua condição de pecado.
No Catecismo da Igreja Católica encontra-se o seguinte resumo
do que vem a ser pecado: “O pecado é uma falta contra a razão, a
verdade e a consciência reta; é uma falta ao amor verdadeiro para
com Deus e para com o próximo por causa do apego perverso a
certos bens. Fere a natureza do homem e ofende a solidariedade
humana”.
Não seria neurotizante, angustiante, desenvolver uma consciência pessoal bem mais rigorosa que aquela social vigente? Não
seria acorrentar nossa liberdade mais do que o necessário? Impor-lhe limitações em áreas bem aceitas socialmente e até legais?
Deixar de usufruir de diversas fontes de prazer que a tantos causam satisfação? E mais: por causa dessa mesma consciência fazer
tantos sacrifícios para ser feliz depois de morto? Não é nada disso.
A consciência cristã bem formada em nada deforma ou amputa
os anseios maiores e mais sublimes da pessoa humana, por razão
muito simples: ela se baseia na vontade de Deus, nos seus planos e projetos em relação ao homem, com vistas a seu destino
escatológico: a mansão das bem-aventuranças. Esta vontade foi
claramente expressa por Cristo e se cristaliza no verbo amar. E
amar verdadeiramente, ao mesmo tempo em que é o maior laço
capaz de unir prazerosamente as pessoas entre si, é e sempre foi
a mais libertadora de todas as forças. Isto é verdade tanto no nível
pessoal quanto sob a visão da humanidade como um todo. A “prisão” do amor resulta em uma liberdade total. Um homem e uma
mulher maduros, quanto mais se amam, mais unidos ficam e, ao
122
Pegadas de Deus
mesmo tempo, mais livres e felizes se tornam. O mesmo ocorre
se considerarmos globalmente a humanidade. Um dos contrários
do amor é o medo, que desaparece à medida que cresce o amor
mútuo.
Só com essa ampla visão do amor – que sem dúvida frequentemente implica em sacrifícios pessoais – o ser humano é capaz de
ser feliz de verdade, e essa felicidade começa aqui e agora, não é
apanágio da vida eterna pós-morte.
A consciência cristã é capaz de gerar uma mulher nova, um homem novo, uma sociedade renovada. “O cristianismo não quer
ser uma estrutura imposta à vida. Antes, pelo contrário, quer ser
a melhor expressão de profundidade de vida” (Leonardo Boff, O
destino do homem e do mundo).
Como se forma uma consciência cristã?
Pela fé, decisão livre de acreditar e viver uma experiência de Deus
e de aceitação do Cristo verdade. Tendo-se a certeza de que em
Cristo e na obediência à sua palavra repousam os alicerces da nossa felicidade pessoal e comunitária, formar-se-á a nossa teia de
costumes e ações coerentes com esta palavra. Para tanto não há
que se gerar na mente uma preocupação neurótica, mas sim um
cuidado equilibrado no coração.
Pela atenta escuta e interiorização da Palavra de Deus constante
na Bíblia, que contém todas as normas e princípios para viver o
amor. Pelo conhecimento e aceitação das orientações da Igreja,
que atualiza na História os valores evangélicos. Pelo esforço e vigilância permanente em direcionar o agir de acordo com o que
Cristo amorosamente nos recomenda. Isto requer que, com certa
frequência, se faça uma parada nas atividades quotidianas, no silêncio interior, para escutar o que ele nos fala. Ouvir outras pessoas também pode nos ajudar muitíssimo. Pelo desenvolvimento
de uma autocrítica, evitando a aceitação de algumas soluções
simplesmente por serem mais fáceis de ser tomadas e que ferem
os princípios cristãos.
Júlio Torres
123
Disse Jesus: “Entrai pela porta estreita, porque larga é a porta e espaçoso o caminho que conduz à perdição e numerosos são os que
por aí entram. Estreita, porém, é a porta e apertado o caminho
que conduz à vida, e raros são os que o encontram” (Mt 7, 13-14).
Tendo em vista a nossa primeva composição – barro com sopro
de Deus – nunca poderemos nos arvorar à condição de seres perfeitos: o barro pesa e escorrega nos nossos pés. Em grau maior
ou menor, todos somos passageiros da imperfeição, todos temos
nossas velas demasiado curtas para serem insufladas pela brisa
que vem do céu, mas tendemos a ficar em zonas de calmaria,
simplesmente boiando ao sabor das ondas da sociedade e de
seus costumes costumeiramente egoístas. Ao invés de navegar,
estagnamos. Às vezes, sob a ação enganosa dos mais diversos demônios, optamos claramente pelo pântano recôndito de onde fomos recolhidos antes de sermos insuflados pelo sopro de Deus. O
processo degenerativo que se instala é tamanho que passamos a
achar e sentir que estamos em ótimas condições, talvez até ideais.
Esta é a condição que a pedagogia cristã chama de “pecado mortal”. A alma já está clinicamente morta e nem sabe disso...
O sacramento da Confissão está a nossa disposição para nos socorrer, não só nos momentos de tormenta e tempestades passageiras, resultantes de um ventinho qualquer, mas quando a morte
se avizinha de forma sorrateira ou evidente, portando sua foice
inexorável. É o sacramento instituído para o pecador, sinal claríssimo da bondade e da infinita capacidade de perdoar que Cristo
nos legou por meio de sua Igreja. É o símbolo da misericórdia de
Deus. (A palavra misericórdia origina-se do latim miser-cor-dare,
que significa dar o coração ao miserável.) Jesus disse: “A quem perdoardes os pecados serão perdoados; a quem os retiverdes serão
retidos” (Jo 20, 19-23). O Evangelho está repleto de amor e perdão:
“Eu vim para que todos tenham vida”; “Eu não vim para chamar os
justos, mas os pecadores”; “Não são os que estão bem que precisam de médico, mas sim os doentes” – e assim por diante.
É válido recordar a parábola do filho pródigo (Lc 15, 11-24):
124
Pegadas de Deus
“Um homem tinha dois filhos. O mais moço disse ao pai: meu pai
dá-me a parte da herança que me toca. O pai então repartiu entre
eles os haveres. Poucos dias depois, juntando tudo o que lhe pertencia, partiu o filho mais moço para um país distante e lá dissipou
a fortuna, vivendo dissolutamente. Após ter esbanjado tudo, sobreveio àquela região uma grande fome e ele começou a passar
necessidade. Foi pôr-se a serviço de um dos habitantes daquela
região, que o mandou para seus campos, a guardar os porcos. Desejava ele fartar-se das vagens que os porcos comiam, mas ninguém as dava. Caiu então em si e refletiu: quantos empregados
na casa de meu pai têm pão em abundância, e eu aqui morrendo
de fome! Vou me levantar, ir à casa de meu pai e dizer-lhe: meu
pai, pequei contra o céu e contra ti, já não sou mais digno de ser
teu filho, mas trata-me como a um de teus empregados. Levantou-se e foi ter com o pai. Estava ainda longe quando seu pai o viu
e, movido de compaixão, correu-lhe ao encontro, lançou-se-lhe
ao pescoço e o beijou. O filho lhe disse então: meu pai, pequei
contra o céu e contra ti. Já não sou mais digno de ser chamado teu
filho. Mas o pai falou aos servos: trazei depressa a melhor túnica e
vesti-lho e ponde-lhe um anel no dedo e sandália nos pés. Trazei
também um novilho gordo e matai-o, comamos e façamos festa,
pois este meu filho estava morto e reviveu, tinha-se perdido e foi
achado. E começaram a festa”.
(Um mínimo parêntese: há um livro que relata uma meditação belíssima e profunda sobre esta parábola. Chama-se A volta do filho
pródigo: a história de um retorno para casa, de Henri J.M. Nouven,
no qual o autor relata o que sentiu na contemplação de famosa
pintura de Rembrandt que retrata a parábola e se encontra em
São Petersburgo, na União Soviética. Leitura imperdível.)
Este é um exemplo claríssimo que Cristo usou para demonstrar
a extensão da capacidade de perdão do Pai. O filho pródigo só
resolveu voltar quando se percebeu totalmente perdido, sem dinheiro, e por isso mesmo sem amigos, sozinho, com fome e abandonado em condições subumanas num “país distante” – o autor
acima citado, com muita propriedade, o interpreta como “o munJúlio Torres
125
do no qual não se respeita o que em casa é considerado sagrado”.
Candidatou-se a ser empregado do pai, não mais seu filho, pois
não merecia. Chegou a ensaiar, repetidamente, o que iria dizerlhe por ocasião do encontro. O pai, no entanto, sequer deixou que
acabasse de falar. Como sempre, esteve ansiosamente esperando
sua volta e o abraçou amorosamente, por certo chorou de emoção
e fez uma grande festa. Foi Jesus quem nos contou essa história.
Como todo pecado tem em si um efeito danoso comunitário e
não apenas pessoal, nos primórdios da Igreja a reconciliação era
feita de público, diante da comunidade (que naturalmente era pequena) e do líder do grupo. O pecador confessava suas falhas e,
após perdoado, era reintroduzido no grupo. Depois de passar por
algumas transformações, tomou a forma que tem hoje, com efeito
sacramental. Simbolicamente, o que se confessa pede perdão não
apenas a Deus, mas a toda a comunidade atingida pelos seus pecados. O sacerdote está ali como representante de ambos.
Muitos questionam este sacramento. Acham que devem confessar-se diretamente com Deus e não com o padre, igualmente um
pecador. É preciso que se entenda que o sacramento não é apenas o perdão, mas um convite à conversão e à santidade. É de extrema valia trocar ideias e sugestões de vida com o sacerdote, que
emite conselhos e orientações baseados em sua experiência. Mesmo que seja um pecador, está ali como representante e sinal de
Deus. Não há necessidade de se recordar e repetir frases que outrora aprendeu de um catequista, como fórmulas fixas, nem orações padronizadas. Vale a conversa franca com o confessor e seu
poder sacramental de nos perdoar. Por vezes é incômodo, mas é
como um analgésico: se tomado pela boca é sempre amargo e se
injetado no músculo, doloroso; no entanto, alivia o sofrimento e
devolve o bem-estar.
Eucaristia
É o maior dos sacramentos. É a presença pessoal, viva, real do Cristo ressuscitado sob as espécies de pão e de vinho.
126
Pegadas de Deus
Durante suas pregações, Jesus prometera algo que os apóstolos não entendiam absolutamente nada. Falava de um alimento
vivo, capaz de fazer viver eternamente a quem dele comesse. A
descrição no Evangelho de São João deixa claro que quanto mais
falava sobre o assunto, menos era entendido. Chegando a Cafarnaum, procurado por uma multidão que o seguia, principalmente porque tinha presenciado a multiplicação milagrosa dos pães,
disse-lhes: “Buscai-me não porque vistes os milagres, mas porque
comestes os pães e ficastes fartos. Trabalhai não pela comida que
perece, mas pela que dura até a vida eterna que o Filho do Homem vos dará”. As pessoas compararam seu gesto com o grande
milagre do maná que caiu do céu no deserto, no tempo de Moisés. Jesus acrescentou: “Moisés não vos deu o pão do céu, mas o
meu Pai é quem vos dá o verdadeiro pão do céu. Porque o pão de
Deus é o pão que desce do céu e dá a vida ao mundo”; “Eu sou o
pão da vida, aquele que vem a mim não terá fome e aquele que
crê em mim jamais terá sede”. Esse discurso não fazia sentido algum e muitos acharam que ficara louco, e dele se afastaram. “Eu
sou o pão vivo que desceu do céu. Quem comer deste pão viverá
eternamente. E o pão que eu darei é a minha carne dada para a
vida do mundo”; “Em verdade vos digo: se não comerdes a carne
do Filho do Homem e não beberdes o Seu sangue não tereis a
vida em vós. Quem come a minha carne e bebe o meu sangue tem
a vida eterna e eu o ressuscitarei no último dia. Pois a minha carne
é verdadeiramente comida e meu sangue verdadeiramente bebida. Quem come a minha carne e bebe o meu sangue permanece
em mim e eu nele”.
Nada há nos Evangelhos sobre o que se seguiu a este discurso: se
voltaram ou não a fazer perguntas sobre o que chamava de pão
vivo, ou sobre o fato de vir a ser alimento a sua carne. Quem sabe
os mais íntimos o tenham indagado, já que se tratava de assunto
tão misterioso e ininteligível?
Estava chegando a Páscoa dos judeus, sua maior festa. Era evidente que algum tipo de crise final se aproximava e a agitação político
-religiosa tornava-se cada vez mais efervescente. O incômodo que
Júlio Torres
127
Jesus despertava nas autoridades era indicativo de que, em breve,
providências mais enérgicas seriam tomadas para destruí-lo.
Jesus reuniu-se com os doze apóstolos para, juntos, cearem no
cumprimento do preceito pascal. Prevendo que aquela seria a
última refeição com seus amigos, Jesus pegou o pão, benzeu-o,
partiu-o e o deu a seus discípulos, dizendo: “Tomai e comei, isto
é o meu corpo”. Depois, tomou um cálice de vinho, rendeu graças
e o deu a todos, afirmando: “Tomai e bebei, isto é o meu sangue”.
Ao que parece seu gesto ficou claro a todos em virtude do que
antes anunciara, pois não mais fizeram perguntas nem nenhuma
manifestação de espanto. Sucedeu-se sua prisão, julgamento e
morte na cruz. Ressuscitado, repetiu o gesto de abençoar, partir
e distribuir o pão. Após ter voltado à vida imaterial os apóstolos
começaram a seguir exatamente o mesmo ritual, em obediência
ao que havia ordenado: “Fazei isto em memória de mim”.
Essas palavras passaram a ser repetidas pelos discípulos e por seus
primitivos sucessores. A Eucaristia passou não só a ser celebrada
pela Igreja nascente, mas a ser sua viga mestra, sua maior manifestação de presença. Tornou-se o alimento da fé desde os primitivos
cristãos, que se reuniam no primeiro dia da semana, isto é, aos domingos, comemorando o dia da ressurreição do Senhor. Ela lhes
servia de alimento ao serem perseguidos e ao se refugiarem nas
catacumbas. Dela se alimentaram os mártires antes de, corajosamente, serem devorados pelos leões nas arenas ou queimados vivos. É mais que evidente, pela análise histórica do nascedouro do
cristianismo, que não se tratava de fé resultante de interpretação
de textos escritos nem fruto de estudos teológicos, mas da aceitação de uma verdade ainda demasiado fresca e viva na memória
de todos. O que de início pareceu estranho tornou-se o alimento
vivo e pleno da graça de Deus, presença física e penetrante do
próprio Cristo.
E as mesmas palavras, em todas as línguas, a cada instante, em
todo o mundo, são proferidas. E o mesmo milagre acontece cada
128
Pegadas de Deus
vez. Por essas palavras, conforme promessas suas, Cristo se faz alimento em cada hóstia, em cada gota de vinho.
“Eis o mistério da nossa fé”, repete o sacerdote na missa. “Mistério”
não quer dizer coisa escondida, oculta, desconhecida. Esta palavra, de origem grega, refere-se a algo tão profundo, abundante
e inesgotável que ultrapassa nossa capacidade de compreensão.
Há uma parábola chinesa que – embora palidamente – serve de
explicação do que vem a ser um “mistério”. Conta que havia um
peixe, mais esperto que os demais, que vivia a filosofar. Certa feita,
enquanto nadava próximo à superfície, ouviu umas pessoas falando, com muito entusiasmo, sobre a maravilha que é a água, sem a
qual vida alguma pode existir. Encantado com o que ouvira, resolveu que iria sair, mundo afora, para descobrir o que vinha a ser tão
formidável substância. Despediu-se do seu cardume anunciando
a decisão de partir e com que finalidade. Muito tempo depois voltou, com um misto de alegria e decepção. Foi recebido por seus
companheiros, que logo perguntaram: “E daí? Descobriu o que é
essa tal de água?”. Respondeu-lhes: “Descobri! Mas se lhes disser,
nem vão acreditar...”. Esta história nos dá uma visão imaginária
do que vem a ser o mistério que nos cerca, que nos envolve sem
que, muitas vezes, o percebamos ­– como ocorre com os peixes no
mundo aquático.
Acreditamos que Jesus ressuscitado está ali presente porque ele
mesmo o disse, e isto nos basta. Para quem criou todo o universo a
partir do nada, para quem gerou a vida a partir da matéria bruta e a
reproduz a cada momento, para quem ama e se doa infinitamente,
é extremamente simples se fazer presente em um pedaço de pão.
Que relação de presença é essa, pouco interessa. Os filósofos cristãos a interpretam como uma transubstanciação: mudança radical de substância, que em filosofia não tem o mesmo significado
físico-químico que se conhece. Substância quer dizer essência,
realidade profunda e invisível de um objeto, que independe de
suas aparências. A substância de um livro, por exemplo, não é a
Júlio Torres
129
sua forma, tamanho, cor ou número de páginas, mas sim aquilo
que é em si mesmo, o que nele está contido. Posso trocar a capa
de um livro por outra que sua substância continua a mesma, e vice-versa. Da mesma maneira, a forma, a cor, o gosto, as aparências
da hóstia e do vinho não mudam. Muda, sim, a sua substância,
que passa a ser, a partir da consagração, verdadeiramente o corpo e o sangue de Cristo, conforme anunciou e distribuiu aos seus
apóstolos.
Ele poderia ter escolhido um metal ou um tipo de pedra, por
exemplo, para dizer: “Isto é o meu corpo” – e passaria a sê-lo de
verdade. Iria ser pendurado no pescoço ou guardada num sacrário e nós nos alimentaríamos dela como as plantas do sol. Mas
não, escolheu o pão e o vinho justamente por serem alimentos
concretos, digeríveis: “Tomai e comei”; “Tomai e bebei”. Querendo
nos dizer: “Saciai a vossa fome e a vossa sede”, e não apenas: “Admirai e adorai”.
Ao instituir a Eucaristia, Jesus a fez para os homens e as mulheres
e não para os anjos e santos do céu. Isto vale dizer que apesar
de nossa imperfeição, mas como fruto do nosso esforço honesto,
adquirimos o direito de nos alimentarmos dela. Para tanto, contamos com o sacramento da Reconciliação. É alimento espiritual
para a criança, que alegremente recebe sua primeira Eucaristia,
ou do velho moribundo que, pela mesma hóstia, se despede da
vida material para entrar na comunhão definitiva e absoluta com
Deus. O mesmo alimento para o rico ou para o pobre, para o intelectual ou para o analfabeto. A mesma mesa posta, o mesmo
milagre. Sempre.
Pelo corpo e sangue de Cristo a Igreja universalmente entra em
“comunhão”, ou seja, comum união com todos. Na missa, em geral, as pessoas fazem fila para receber a Eucaristia, por razões de
ordem prática. Porém, o que deve ser entendido é que naquele
momento todos nós, no mundo inteiro, estamos ao redor de uma
única mesa universal, comendo e bebendo do mesmo alimento.
Ninguém está tirando do outro o direito de saciar a fome. Nin-
130
Pegadas de Deus
guém está armazenando em celeiros ou tirando fatias maiores. Ali
está representada a fração justa e fraterna de todos os bens, na
fração do pão.
Por ser alimento comum, é na Eucaristia que a Igreja tem a sua
manifestação máxima como comunidade universal – e somente ela goza desta universalidade. Pela Eucaristia ela se consolida
como o novo povo de Deus, gente renovada por um estilo de vida
e uma modalidade de amar que, apesar de já ter mais de 2000
anos, ainda é absolutamente nova e se reinaugura a cada dia.
Pela Eucaristia, nossa união com o Cristo se faz mais íntima que
aquela gozada pelos apóstolos antes da última ceia. Seu próprio
corpo e seu próprio sangue passam a circular nas nossas veias e
passarão a fazer parte do nosso corpo e do nosso espírito que nele
habita. Curiosamente, não ficamos nervosos nem excitados diante da sua presença. Quando o papa João Paulo II visitou o Brasil,
todos queriam vê-lo de perto e quem teve a graça de participar
de uma refeição ao seu lado por certo sentiu o coração palpitar
ou talvez tremerem as mãos. No entanto, o mesmo não acontece quando nos aproximamos da Eucaristia. O motivo é simples;
não gozávamos de intimidade com o papa, mas somos íntimos
de Cristo, ele já vive conosco no dia a dia e repetidamente participamos da mesma mesa. É como almoçar ou jantar com um dos
nossos irmãos ou com nossos pais.
A celebração da Eucaristia contém ainda em si outra realidade de
inestimável valor e beleza – a de ser um sacrifício perfeito oferecido a Deus. Na missa, o corpo é entregue como vítima perfeita
e o sangue é derramado como vida total que se doa. Revive-se,
participa-se da realidade da última ceia e da doação completa e
incondicional da cruz. “Fazer memória” significa exatamente isso.
É como se todos fôssemos transportados no tempo e espaço e
postados ante a cruz erguida no “monte da caveira”, o calvário descrito nos Evangelhos.
Disso resulta que cada missa tem valor infinito e é inesgotável manancial de graças. Por isso, é o ponto central da nossa religião, do
Júlio Torres
131
nosso relacionamento com Deus, de nossa fé em Jesus Cristo. A
nossa “obrigação” semanal, bem mais que isso, é direito inalienável, o bem maior, que não deve ser desperdiçado. Se alguém fosse
convidado a jantar com o papa, jamais pensaria em desperdiçar
tal oportunidade.
Em nossa vida pessoal, conjugal, familiar ou comunitária, além de
alimento espiritual, a Eucaristia é ainda extraordinária força de renovação e consolidação de propósitos, de metanoia. Assim, antes
de marcar o encontro à mesa com o Senhor e de sentar-se ao seu
lado, há que se gerar em nós, repetidamente, a decisão de amar –
repetindo – a Deus, ao próximo e a nós mesmos.
Em minha vida particular de casado, diversas vezes a Eucaristia tem
sido fator de perdão mútuo, reconciliação, volta à paz desfeita e ao
bom relacionamento conjugal. Ela tem sido um constante e renovado motivo de união da família, renovada e sustentada na fé. Assim
como o corpo, o espírito desfalece quando lhe falta alimento.
A vivência eucarística é a mais bela maneira de manifestar nossa
adesão à fé cristã. Crianças e adultos, homens e mulheres de todos
os níveis, se igualam na simplicidade infantil de receber, com tanto respeito, um simples e delgado pedaço de pão. É belíssimo ver
pessoas atenderem, com alegria, ao chamado da Igreja – “Felizes
os convidados para a ceia do Senhor!” – e depois ajoelharem-se ou
sentarem-se em silêncio, degustando o sabor do divino alimento;
ficarem a conversar com o Cristo, fazendo-lhe pedidos e entregas,
confidenciando-lhe os dramas e alegrias interiores, entregando
em suas mãos a solução dos problemas que se sentem incompetentes para resolver – maior intimidade não pode existir.
Causa-me especial emoção presenciar as cerimônias de Primeira
Comunhão. Crianças que acreditaram sem reservas nas palavras
dos catequistas e/ou dos pais sabem que ali está o Cristo vivo, o
próprio Deus que se simplifica em alimento. Emociona-me quando vejo adultos – em geral, mães e avós – falarem aos ouvidos daqueles inocentes solicitando-lhes que peçam a Jesus certas graças
especiais no seu primeiro encontro com o Senhor. É que os adultos
132
Pegadas de Deus
entendem quão grande é o prestígio que as crianças têm diante de
Jesus naquele dia. Fica a certeza de que o pedido não deixará de ser
atendido, sobremaneira porque é o primeiro que fazem. Em paralelo, ali está, diante deles, alguém especialíssimo que os “conhece
desde antes de terem sido gerados no ventre de suas mães”.
É belo ver como cantam alto e com vibração, sobretudo a canção
que diz: “Agora que pão e vinho / já não são mais vinho nem pão /
Agora que com carinho / vais te fazer refeição / vou te contar um
segredo, Jesus / vou te contar um segredo...”.
As crianças só cochicham segredos para as pessoas de quem são
bem íntimas e de quem gostam. Igualmente, dirigem-se dessa
forma a Cristo, como se falassem no ouvido dos pais ou de um
colega de brincadeiras. É como se, naquela hora, ele fosse apenas
o Menino Jesus, que reparte os bombons e bolas de gude, na infantil partilha dos bens.
Tal sentimento envolveu-me em especial cada vez que um dos
nossos quatro filhos fez sua Primeira Eucaristia e renovou-se igualmente ao ver repetir-se o ato nos nossos netos.
Em Fortaleza, por ocasião de sua visita ao Brasil, o papa João Paulo II assim discorreu sobre a Eucaristia: “Ao despedir-se, o Senhor
Jesus Cristo, perfeito Deus e perfeito homem, não deixou aos seus
amigos um símbolo, mas a realidade em si mesmo. Vai para junto
do Pai, mas permanece entre os homens. Não deixa um simples
objeto para evocar Sua memória. Sob as espécies de pão e de vinho está Ele, realmente presente, com Seu corpo e Seu sangue,
Sua alma e Sua divindade. Assim como dizia um clássico de vossa língua (Fr. Antônio Chaves – Sermões): juntando-se um infinito
poder com um infinito amor, que haveria de seguir senão o maior
milagre e a maravilha maior?”
Ordem
Ordem é o sacramento pelo qual os vocacionados para a vida
sacerdotal são sagrados a fim de se dedicarem ao sacerdócio da
Júlio Torres
133
Igreja. Por meio dele constitui-se a chamada hierarquia, formada
pelo papa, bispos e padres (presbíteros), bem como os diáconos.
A imposição das mãos, descrita nos Atos dos Apóstolos, é o mais
antigo dos sinais da Ordem, bem como a unção com o óleo sagrado. Contudo, só pode ser administrado por um bispo. Historicamente, os ordenados são os sucessores dos apóstolos e recebem
as graças do sacerdócio e o poder de administrar os sacramentos.
Como pessoas humanas, é evidente que têm falhas e se esforçam
para viver o mesmo processo de conversão que os demais cristãos. Como todos, os sacerdotes estão submetidos às mesmas
provações e tentações contra as quais precisam lutar. Não são
criaturas isentas da possibilidade de pecar, nem possuidores da
perfeição concentrada.
Para nós, leigos, os sacerdotes são aqueles que trazem ao nosso
alcance as graças dos sacramentos e nos transmitem a Palavra de
Deus e as orientações da Igreja; oferecem-nos o conforto espiritual que necessitamos nesta caminhada da vida, mas carecem das
mesmas atenções que todos. Costumeiramente deixam suas famílias e a própria terra natal para se doarem à grande família do
mundo. Daí ser necessário que lhes ofereçamos total apoio como
resposta a sua doação. Que nossa amizade e amor sejam alimento
para manter ativa sua vocação; que sejamos substitutos verdadeiros de sua família humana. Assim como enriquecem nossa vida
pessoal, conjugal e familiar, seu enriquecimento sacerdotal deve
ser mantido por nós, mediante troca de experiência de vida. Assim como precisamos de suas orações, eles precisam das nossas,
como ajuda espiritual.
Vivemos em um país carente de padres. A maior parte do clero é
formada por estrangeiros, que fazem falta em seus países de origem. É necessário, pois, atender ao conselho do Cristo: peçamos
ao Senhor da messe que lhe mande operários, mas façamos nossa parte. É necessário que sementes de vocação sejam lançadas
nas nossas famílias e que nossos lares sejam terreno fértil para
venham a brotar e crescer. A oração em família e a devida valo-
134
Pegadas de Deus
rização da figura do sacerdote poderá servir de adubo fértil no
coração dos jovens. Se nas nossas famílias não houver ambiente
propício a uma vida dedicada a Deus, de onde surgirão os sacerdotes?
O trabalho do leigo é muito importante e indispensável, mas nada
pode ser feito sem o padre. O futuro da Igreja sempre está em
jogo em cada geração que passa. Assim, é nossa obrigação ajudar as vocações, com apoio global, inclusive financeiro, pois quem
se dedica ao preparo de pessoas para o presbitério necessita de
dedicação exclusiva e isso implica em despesas. Precisamos ajudar-lhes com nossa oração, para que perseverem, e com nossa
parcela de instrução, quando oportuno, transmitindo-lhes nossa
experiência de leigos e de vida familiar.
Por desejarmos que nossos filhos, parentes e amigos se preparem
para atender sua vocação para o casamento, transmitimos-lhes
tudo o que julgamos importante para a vida conjugal. Igualmente, devemos ter o mesmo esforço e cuidado com os que se candidatam ao sacerdócio.
Unção dos Enfermos
É o sacramento pelo qual, na unção com o óleo (os chamados
“santos óleos”) e a oração do sacerdote, são conferidas ao cristão
enfermo a força e a segurança para encarar a morte ou mesmo
obter a saúde do corpo.
Este rito foi usado desde os primeiros cristãos. Thiago a ele se refere como sendo ato bastante comum e conhecido: “Alguém entre vós está triste? Reze. Está alegre? Cante. Está alguém enfermo?
Chame os sacerdotes da Igreja e estes façam orações sobre ele,
ungindo-o com o óleo em nome do Senhor. A oração da fé salvará
o enfermo e o Senhor o restabelecerá. Se ele cometer pecados,
ser-lhe-ão perdoados (Th 5-13,15)”.
Até pouco tempo era chamado de Extrema Unção. Dava a falsa
ideia de ser o sacramento dos moribundos, dos já quase sem vida,
Júlio Torres
135
o que não é verdade. Desde o início era administrado a qualquer
doente, com a finalidade de se alcançar a graça da cura e também
o perdão dos pecados, como vimos na citação de Thiago. Não há,
portanto, que se esperar que os nossos doentes estejam em estado grave, em coma, inconscientes ou acabando de morrer para
pedir a Unção dos Enfermos. Não há sacramentos para os mortos,
todos são para as pessoas vivas e conscientes.
Como envolve, devido ao errôneo entendimento, a realidade da
morte, a Unção dos Enfermos por vezes é encarada com certo
tabu. Há quem tenha medo de pedi-la ao padre, para não assustar
o doente, fazendo-o julgar-se prestes a morrer, ou ainda supondo
que vai “dar azar”, já que candidata o doente a defunto. O cristão
consciente pode sofrer com a ideia de sua morte ou de seus familiares, mas não deve temê-la. Ela é a transição para a vida maior.
Deve-se, assim, desfazer tal conceito errado e orientar os doentes
e a comunidade em relação a sua administração. Muitas vezes é
uma ótima oportunidade, talvez a última, de conversão e aproximação com Deus.
O cristão acredita na vida eterna. Nada há de terrível em relação
à hipótese da morte para que seja escondida de um doente até a
ideia do sacramento. Devemos, sim, nos preparar para que esse
momento, se derradeiro for, seja a coroação de nossa comunhão
com Cristo, e que nessa hora possamos contar com mais esta fonte de graças.
Matrimônio
Como a maior parte dos prováveis leitores deste livro será constituída por casais ou jovens candidatos à vida conjugal, deixei para
o final a abordagem desse sacramento. Isto não significa que seja
o melhor nem o mais importante, mas, simplesmente, é a abordagem derradeira enquanto leitura. Objetiva dirigir o pensamento
para uma experiência familiar voltada para valores que potencialmente consolidam uma vida mais feliz e digna da espécie humana, existência mais conforme o gosto e o projeto de Deus.
136
Pegadas de Deus
O Matrimônio é o sacramento dos que se casam na Igreja. Por ele,
um homem e uma mulher se unem, por amor, com a presença
de Deus, para formar nova comunidade cristã chamada família.
Como vimos, os sacramentos são administrados por um sacerdote
ou bispo. Quem administra o Matrimônio não é o sacerdote, mas
os próprios nubentes, um ao outro, num dom recíproco.
É clássica e verdadeira a afirmação de que a família é a célula-mãe
da sociedade, seu nascedouro. Do ponto de vista cristão, é também a célula-mãe da Igreja, uma pequena Igreja, como dizia o
papa Paulo VI.
Se tivermos mais famílias sadias, organizadas, equilibradas, santas
– este é o termo mais apropriado –, teremos uma sociedade melhor, pois é precisamente aí que são geradas, crescem e se desenvolvem as pessoas. O ar que se respira no lar é o que purifica ou
polui a mente humana, desde antes do seu nascimento. Portanto,
a comunidade família tem, no contexto social e na formação da
Igreja, profunda e intransferível responsabilidade. Uma nova família deve começar a ser edificada sobre este alicerce, instrumento
de união entre cristãos que se amam. Cada família cristã é uma
sementeira do Reino de Deus, lugar de perpetuação da espécie
Homo sapiens sanctus, antes citado.
Evidente, é incontável o número de pessoas com elevado nível
de santidade que surgiram e surgem em ambientes de onde menos se espera. A vocação, o chamado específico de Deus, supera quaisquer prognósticos humanos – como testemunho, é até
incomparavelmente mais forte. É como se Deus operasse uma
mutação favorável exatamente para nos mostrar a onipresença e
onipotência de sua graça. No entanto, em uma expectativa puramente humana, temos a obrigação de criar as condições favoráveis para o surgimento de construtores do Reino – e é na família
que isto acontece.
Antes de abordarmos diretamente o sacramento do Matrimônio, precisamos analisar alguns pontos cardeais sem os quais não
pode ser totalmente compreendido, vivenciado e devidamente
Júlio Torres
137
valorizado. Sua riqueza não pode se esgotar nem encontrar seu
ponto máximo na beleza externa do momento da cerimônia social – por mais grandiosa seja – nem nas emoções banhadas de
lágrimas. Por transparência, naquela hora, dever-se-á vislumbrar,
sentir e valorizar o que transcende infinitamente ao ato solene
das núpcias.
138
Pegadas de Deus
Do coletivo
Da solidão
Evidentemente, não me arvoro nem teria a mínima condição de
tentar abordar esse assunto em profundidade. Limitar-me-ei apenas a apresentar as mínimas informações úteis e necessárias para
servir de base para uma análise apenas superficial do casamento
cristão e do que ele tem a ver com a sofrida realidade humana.
Encontramos no Gênesis (2, 18.24): “Iahweh Deus disse: ‘Não é
bom que o homem esteja só’. Por isso, um homem deixa seu pai e
mãe, se une à sua mulher, e eles se tornam uma só carne”.
“Deixar pai e mãe” significa, na linguagem bíblica – dirigida inicialmente ao povo hebreu –, o homem abandonar, minimizar todos
os valores outros que não sejam aqueles que favoreçam a união
entre ele e sua mulher. Vale dizer, hierarquizar costumes, condutas
e projetos pessoais de modo a colocá-los a serviço da relação – evidente que o mesmo se aplica à mulher. Tornar-se-ão valores reais
e dignos de busca prioritária somente aqueles que favoreçam a
união entre ambos. É uma decisão radical, literalmente, daquelas
firmadas em terra profunda, não na superficial. Ante este projeto
tudo o mais será secundário. Há que ficar claro que os demais valores da vida não serão anulados, diminuídos ou abandonados,
apenas perderão o lugar prioritário que ocupavam no pedestal
antes da inauguração da relação. Inclui-se nessa premissa tudo o
que é realmente importante dos pontos de vista profissional, intelectual, social e econômico. Tomemos um único exemplo bem
prático: a profissão. Uma união conjugal bem-sucedida favorece
mais um bom desempenho profissional que o seu contrário. Em
outras palavras, é mais fácil acontecer que um mau casamento
provoque desequilíbrios na profissão que a profissão conturbada atinja o casamento. Isso pode acontecer tanto para o homem
como para a mulher, pois ambos têm necessidade de um oásis de
paz ao fim de longo dia de trabalho ou de estudos. Sem a paz interior (um dos contrários da solidão) qualquer projeto profissional
vai por água abaixo e quando o campo profissional não está bem,
por quaisquer motivos, é exatamente neste oásis que os cônju-
140
Pegadas de Deus
ges refrescam suas cabeças para enfrentar um novo dia. Quando
se vive em paz, mesmo na paz ondulante típica dos humanos, o
desempenho profissional é largamente favorecido. Voltaremos a
falar deste assunto.
Um projeto dessa magnitude será possível ou está ao alcance de
todos os homens e mulheres? Claro que sim, da mesma forma
que é possível – por caber perfeitamente nas condições humanas, apesar de nossas limitações – nos tornarmos parecidos com
Deus, do qual somos imagem e semelhança. E mais, como todos
somos naturalmente dotados desta propensão e movidos pela
mesma necessidade, é preciso errar muito ou ser vítima de muito
erro para que seja destruída tão magnética atração. Não é absolutamente necessário ser culto, nem conhecer em profundidade a
Palavra de Deus ou retorcer os instintos interiores. Basta deixar-se
flutuar no sopro original de Deus, basta não resistir ao chamado
interior que clama pela construção da unidade. Se quisermos fazer uma comparação entre a alma e o corpo: não é preciso conhecer a fisiologia da respiração nem fazer esforço ou realizar treinos
para respirar, basta não tapar o nariz e a boca. Se o fizermos, em
pouco seremos obrigados a abri-los para a passagem do ar. Saliento que até aqui não me refiro ao Matrimônio nem a casamento
de qualquer ordem.
A necessidade intrínseca de não ser só, na maioria dos homens e
mulheres é atendida pela união conjugal. Há, no entanto, outras
formas de reverter ou anular a solidão. Há pessoas que preenchem
completamente seus interiores com a presença de Deus, vivendo
o que se chama de solidão a sós com Deus, na plenitude da união
com o Senhor. Por certo, são as mais felizes de todas as criaturas. A
vida em comunidade, a dedicação das religiosas e religiosos, movidos por ideais maiores, também é capaz de desmantelá-la totalmente; amizades verdadeiras e profundas, a dedicação cuidadosa ao próximo, a prática da caridade desinteressada, também
têm esse condão. No entanto, repito, para a maioria das pessoas
a solidão somente se desfaz pela união conjugal, pela junção de
uma parelha humana. Para estas aplica-se o aforismo proclamado
Júlio Torres
141
por Alceu Valença: “A solidão é fera, a solidão devora, é amiga das
horas, prima irmã do tempo, e faz nossos relógios caminharem
lentos, causando descompasso no coração”.
“Unir-se à sua mulher e tornar-se uma só carne”. Fala-se, no sentido figurado popular, em “encontrar a sua cara-metade”. A palavra
sexo refere-se à “metade”; duas metades que se unem formam um
todo. “Unir-se”, simplesmente, traz como resultado uma “união”.
Exemplos: se juntarmos uma dúzia de rosas de cores diferentes
com alguns ramos verdes e os amarrarmos com uma fita de seda
teremos, como resultado, uma “união” chamada de buquê de flores; desatado o nó que as une ou deixando que a fita, fragilizada,
venha a se romper, as flores se espalharão e a união deixará de
existir. Se misturarmos vinagre, azeite, sal e outros temperos teremos, como resultado, uma “união” chamada de molho vinagrete;
se o deixarmos em repouso, em poucos minutos os componentes
da mistura se separam e a união se desfaz. Diferente é misturarse café com leite, pois resultará não em uma união, mas em nova
“unidade”, chamada “café com leite” – não será mais café, nem leite. Esforçar-se para ser uma só carne é gerar, por causa do amor,
uma nova unidade, “uma nova carne”. Este é o projeto de Deus
desde as nossas origens, que traz, como resultado, o desmantelamento completo e definitivo da nossa solidão – e o pior é que
não há outra maneira de conseguir este feito, salvo as exceções
do tipo acima citado. A fera, descrita por Alceu Valença, só não
nos devorará se formos capazes de construir uma nova unidade,
inseparável, chamada de casal humano.
Na prática, para a maioria das pessoas esse é o único antídoto, o
único escudo a nos proteger. O resultado da concretização desse
gigantesco projeto chama-se “pessoa conjugal”, que é a fusão de
duas pessoas totalmente livres que se tornam totalmente interligadas uma à outra. As palavras “cônjuge” e “conjugal” originam-se
do latim cum-jugum, que significa com jugo. Para quem não se
lembra, jugo é aquela trave de madeira que prende dois animais,
formando uma junta; um não muda de direção se o outro não o
acompanhar e, com isso, a força dos dois estará sempre somada,
142
Pegadas de Deus
nunca dividida, para vencer obstáculos e carregar a carga ao seu
destino, obedecendo as ordens de quem os conduz. Em se tratando de dois seres racionais e inteligentes, o efeito benéfico é
incomparavelmente maior, mormente considerando-se que são
conduzidos pelo amor mútuo e tendo como destino o projeto de
felicidade a dois. À primeira vista parece uma realidade falsa, mas
de fato são duas liberdades incondicionais que se entregam e entrelaçam; duas realidades muito diferentes que se confundem e
misturam. Como o café com o leite.
Amar - Amor
A causa primeira e fundamental da construção da unidade, da formação da pessoa conjugal, é o amor. Fruto natural e consequência maior de uma série de sentimentos diversos que surgem, brotam ou são descobertos entre duas pessoas de sexo diferente que
se atraem e se buscam, o amor situa-se acima de todos. Os sentimentos, desde os mais simples e ingênuos aos mais grandiosos,
estarão sempre a serviço do laço amoroso. Quando se ouve pela
primeira vez a afirmação que se segue, costumeiramente sente-se
certo impacto: o amor é uma decisão tomada a dois. Não é simples sentimento nem complexo conjunto deles, tampouco uma
emoção sentida, mas muitíssimo acima de tudo isto. Sentimentos
e emoções aparecem e desaparecem, começam e terminam, mudam e se transformam às vezes completamente. Ficam na camada
mais superficial da relação e, embora verdadeiramente repletos
de extraordinária e indiscutível beleza, podem ser efêmeros e até
enganosos. O amor, não! Uma vez decidido, deve vir para ficar,
para instalar-se radicalmente e dar sustento perene à relação. Fincado nas almas perderá progressivamente o grau de dependência
com os sentimentos que existiam no nascedouro da relação, sem,
contudo, olvidá-los nem invalidá-los. Isto não lhe diminui a beleza
nem o encantamento; pelo contrário, dá-lhe mais valia, conforto e
segurança que nada no mundo será capaz de desmantelar. Como
uma pedra preciosa cuja beleza aumenta à medida que é lapidada. Não se nega que o processo de lapidação tem seu lado doloroso, mas pedra alguma brilhará sem passar por ele.
Júlio Torres
143
Vinicius de Moraes, no Soneto de Fidelidade, alude que a solidão é
o fim de quem ama. Enganou-se ou foi iludido pelo brilho da chama poética. A solidão é o fim de quem não ousou amar por completo, de quem errou fazendo do amor uma fantasia passageira,
de quem não radicalizou a decisão de amar ou sofreu traumas tão
terríveis que lhe desmantelaram o amor. Quando se ama, diz bela
música popular, “a solidão se sente acompanhada” e quando os
amantes estão distantes a própria saudade se encarrega de lhes
preencher o vazio, operando este milagre. A experiência sentida
será de isolamento, não de solidão. Ao contrário desta, que nada
é capaz de preencher, o isolamento é preenchido pela saudade,
que é uma boa companheira. Solidão absoluta é estar desacompanhado e não ter nem de quem sentir saudade. O amor é maior
até que a própria morte; a saudade e as lembranças que ficam não
deixam a solidão prosperar. Lágrimas de saudade são bem mais
doces que aquelas da solidão. Para essas não há o consolo interior
que brota do amor e somente dele.
Para a construção da unidade frequentemente faz-se necessário
que cada um doe pedaços de sua própria liberdade para construir
os alicerces e o muro de arrimo que a sustenta. Isso dói e implica sacrifícios sangrentos, mas é sempre gratificante contemplar
a obra sendo edificada, saindo do chão e se tornando realidade
visível e sentida.
O amor, esta decisão salvadora – embora tenha sua faísca incendiária provocada por sentimentos e emoções diversas –, deve ser
livre, racional e prudente. A inteligência não pode ser obnubilada
pelas paixões. O amor não pode ser cego, surdo ou insensato. Para
que centralize sua visão na pessoa amada, distinguindo-a das demais, torna-se preciso conhecê-la. Não é possível amar profundamente a quem não se conhece o mínimo necessário. Quando isto
não acontece, é porque o amor está sendo confundido com paixão e o verbo amar com o gostar.
No início de alguns amores, quando as paixões invadem a mente,
às vezes abafam a sabedoria e pode-se aplicar o que disse Pascal: Le coeur a ses raisons que la raison ne connaît point (O coração
144
Pegadas de Deus
tem razões que a própria razão desconhece). É um risco que deve
ser evitado. Não há que se negar nem desvalorizar a estonteante
beleza primaveril que ilumina esta etapa do amor, apenas não se
lhe deve conceder um poder absoluto, como dizia o escritor Jorge
Luis Borges: “Apaixonar-se é o mesmo que inventar uma religião
com um Deus falível”. Tão desmesurada paixão, cega por natureza,
não conta com a aprovação do bom-senso e da inteligência. Deve
ser descartada para que não evolua para fins trágicos – e aqui incluem-se os casamentos que deveriam ser evitados. Devidamente
administrada, a paixão inicial deve ser transformada e amadurecida ao nível de amor verdadeiro.
Conhecer a superfície é fácil e acontece rapidamente. A beleza física que atrai, a simpatia, a maneira interessante de se comunicar,
o corpo com seu calor que desperta desejos, tudo isso ocorre em
pouco tempo de relação. Mas é no interior que residem os problemas, lá moram e muitas vezes se escondem tanto as virtudes
como os defeitos maiores, as porções doces e os azedumes, as
delícias e as amarguras. Ao se decidir amar é o todo que deverá
ser amado, não apenas algumas de suas partes. Na fase de conhecimento é possível, e muitas vezes prudente, interromper o processo antes do dom total. O encantamento associado à sensatez
alicerçará a decisão definitiva. Este lado racional do amor não lhe
diminui a beleza; pelo contrário, acrescenta-lhe a solidez necessária à perpetuação. Um atalho perigoso é aquele tomado quando
o começo da suposta relação resulta de falsa descoberta, quando
Eros assume precocemente a liderança, como veremos a seguir.
São universalmente aceitas três formas de manifestação ou intensidades no amor: o “eros”, que nomina o lado do prazer físico (daí
se origina a palavra erótico); o “filo”, que se refere ao amor amizade
(origem das palavras “filia”e “filiar-se”); e o “ágape”, que é o amor
cristão, o amor caridade, que implica em doação total e irrestrita.
Esse amor, assim tão sublime, deve estar presente em todas as relações humanas. Em obediência ao ágape cristão, devemos amar
até nossos inimigos, aqueles que nos ofendem e prejudicam. No
caso específico e restrito ao amor conjugal, ele será o esforço
consciente de dar a vida pela pessoa amada. Pressupõe-se que
Júlio Torres
145
será bem mais fácil, pois estará se tratando de um amigo ou amiga, de alguém que também está se doando plenamente numa
reciprocidade de interesses vitais.
Enquanto a filia cria laços superficiais – embora generosos – que
geram “união”, o ágape conjugal é a única força capaz de gerar “unidade”. Eros é importantíssimo e igualmente santo, mas deve ser racionalmente posto à disposição da construção da unidade. É forte
fator de agregação, aparador de arestas, burilador de diferenças
que precisam ser adaptadas na engrenagem do crescimento da relação. O prazer descomunal que o sexo desperta deve solidarizar-se
com a decisão de amar e, com frequência, lhe serve de bálsamo que
anestesia a dor do crescimento. Se Eros for dissociado do ágape,
transforma-se em pântano enganoso. O puro prazer – isolado de
uma relação amorosa – é como o alcoolismo, conduz ao vício e sua
embriaguez provoca ressaca. Os encontros exclusivos de corpos
cujos espíritos se desconhecem – e por isso mesmo dele não participam – não está à altura da dignidade do Homo sapiens, é mais
próprio dos animais inferiores. Nestes, aliás, o ato sexual está quase
sempre a serviço exclusivo da reprodução e obedece ao ciclo do
cio das fêmeas. O fruto de uma reprodução humana obra exclusiva
do Eros tende a padecer de carências insondáveis em sua história,
principalmente quando o macho, autor da reprodução, criado sob
uma ética masculinizante, em atitude falocrática (como Boff a denomina) desaparece ou ignora sua autoria. A Igreja, “mãe e mestra”,
salienta como virtude o que chama de castidade. Em nosso catecismo encontramos: “A castidade comporta uma aprendizagem do
domínio de si, que é uma pedagogia da liberdade humana. A alternativa é clara: ou o homem comanda suas paixões e obtém a paz ou
se deixa subjugar por elas e se torna infeliz” (CIC § 2339). “O domínio
de si mesmo é um trabalho a longo prazo. Nunca deve ser considerado definitivamente adquirido. Supõe um esforço a ser retomado
em todas as idades da vida” (CIC § 2342). “A castidade é promessa de
imortalidade” (CIC § 2347).
A atração e os desejos sexuais são inaugurados na adolescência
como efeito dos hormônios, anões com força de gigantes que
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Pegadas de Deus
rapidamente transformam corpos de crianças em adultos antes
mesmo que seus cérebros amadureçam o suficiente para gerenciar as mudanças. A título de explicação, costumamos dizer em
palestras aos jovens que a energia do sexo é como a de um grande trator de esteira: se usada para construir rapidamente, faz trabalhos enormes, mas pode, erroneamente, ser voltada contra a
construção e a destrói facilmente.
O prazer isolado de Eros, ainda que gigantesco, posto que passageiro, não produz antídotos capazes de bloquear a solidão. Pelo
contrário, costuma alimentá-la cada vez que exercitado. Gera uma
satisfação que fadiga e enjoa. Quem acha que seu apetite sexual
é plenamente satisfeito por Eros, nunca experimentou o orgasmo
do ágape. Nós fomos e somos feitos para sermos completos. O
Eros isolado é como uma águia que não aprendeu a voar e cai
no chão a cada vez que tenta; como nunca sentiu o sabor do voo
pleno, fica ilusoriamente satisfeita com o alçar rasante que antecede a queda – e nem percebe que caiu. Acaso se permita que
Eros cavalgue sozinho desde a adolescência, quando começa a
criar fantasias, sem direção definida, será difícil domá-lo depois.
Ele deve ser adestrado antes que se torne um potro indomável e
inconsequente. A águia ainda jovem deve saber que foi feita para
voar. Nesse aspecto, infelizmente, há muitos adultos que apodrecem ainda verdes, antes de amadurecer.
Cito, a título de ilustração, trechos resumidos do Samba de uma
Nota Só, de Tom Jobim: “Eis aqui este sambinha feito numa nota
só. Outras notas vão entrar, mas a base é uma só. Esta outra é consequência do que acabo de dizer, como sou a consequência inevitável de você. (...) Vou dizer em uma nota como eu gosto de você.
E quem quer todas as notas: ré-mi-fá-sol-lá-si-dó, fica sempre sem
nenhuma. Fique numa nota só”.
Lamentavelmente, nossa sociedade desconhece ou se ilude com
uma sexualidade deformada por ser mal compreendida. É necessário distinguir dois conceitos importantíssimos: o de sexualidade
e o de genitalidade. O primeiro transcende os apetites, desejos e
Júlio Torres
147
uniões genitais, pois está muito acima deles; faz-se presente em
qualquer pessoa e se manifesta em quaisquer contatos humanos,
mesmo em pessoas do mesmo sexo e até desconhecidos – é uma
das características do ser humano, como respirar e alimentar-se.
O segundo é o uso dos órgãos genitais para uma relação coital.
Não deve ser utilizado senão sob o manto da sexualidade posto a
serviço de uma relação amorosa entre pessoas que se conhecem
o suficiente para declararem amor um ao outro e confiarem nesta
assertiva. O uso abusivo e indiscriminado da relação coital unicamente como fonte de prazer, não raro evoluindo para situações
realmente patológicas em que a genitália é priorizada, chama-se
de genitalismo e é profundamente prejudicial ao viver humano.
A genuína atração amorosa começa cedo, como espécie de atração inespecífica, recôndita necessidade de busca por alguém do
sexo dito oposto (que na verdade é apenas “o outro”, não o oposto). Faz parte da nossa sexualidade. Segue-se a magia do encontro, que deve se efetivar de maneira progressiva, alimentada pelo
conhecimento mútuo, tarefa que jamais acaba e nunca é fácil.
Deve situar-se acima das atrações puramente físicas, entre outros
motivos pelo fato de que essas tendem a se desmantelar parcialmente com a idade. A beleza exterior (de ambos) vai se esvaecendo no sentido contrário daquelas interiores que tenham sido
cultivadas e alimentadas.
Conhecer, aceitar e crescer
Não existem duas pessoas iguais, nem física nem psiquicamente,
nem do mesmo nem de outro sexo. Ainda bem! Cada um é absolutamente único. O amor, portanto, deve e vai acontecer entre
duas pessoas bastante diferentes. Para construir a unidade que
desejam e necessitam, esses dois seres distintos precisam se conhecer o mínimo necessário para que da relação amorosa, que
deve ser racional, resultem os frutos esperados. Vale citar a sábia
parábola de Exupéry quando a raposa diz ao Pequeno Príncipe:
“Tu não és ainda para mim senão um garoto inteiramente igual a
cem mil outros. Eu não tenho necessidade de ti e tu não tens ne-
148
Pegadas de Deus
cessidade de mim. Não passo a teus olhos de uma raposa igual a
cem mil outras. Mas se tu me cativas nós teremos necessidade um
do outro. Serás para mim único no mundo. E eu serei para ti única
no mundo”. É aí que mora o segredo: tornar-se única, tornar-se
único. Não basta declarar isso da boca para fora e até de público.
Faz-se necessário que as raízes do desejo de “cativar” e ser “cativado” estejam plenamente fincadas no coração.
Para amar é preciso conhecer, o que requer tempo, dedicação e,
principalmente, o exercício do diálogo (revelação e acolhida) progressivamente profundo. Nunca é obra do acaso, da sorte, nunca
“cai do céu” gratuitamente. “Nasceram um para o outro”, como se
costuma dizer, é falsa afirmação, não existe essa condição.
O conhecimento inicia-se por nós mesmos, cada um em si próprio
– e aí encontramos a primeira dificuldade. Inicialmente, porque
esse íntimo perscrutar é mesmo difícil; depois, porque pouquíssimos pensam em explorar suas profundezas para saber como
efetivamente são. Na verdade, sequer sabemos como somos, nem
porque somos o que somos.
Cada pessoa resulta da união de um espermatozoide do pai com
um óvulo da mãe, em uma das trompas. Nesse instante miraculoso, muito já se define: o sexo, por exemplo. Nos genes, infinito número de informações estão registradas (admite-se até que certa
memória passada ali se encontre: a “memória cromossômica”). O
chamado “gênio” de cada um tem muito a ver com eles. Segue-se
a fixação do novo ser na parede do útero, no qual vai se alimentar, crescer e desenvolver por algumas semanas até o dia em que
nasce para o mundo externo. Tudo o que acontecer nesse período repercutirá fortemente, de forma favorável ou desfavorável, na
formação do psiquismo daquele ou daquela que um dia irá tentar
conhecer e amar alguém. Ao longo da vida, principalmente até
os 12 anos, inúmeros outros fatores irão deixar suas marcas, tanto
positivas como negativas. As positivas, consequências do amor
sentido; as negativas, do desamor sofrido. Quando gerados somos como uma esfera dourada, brilhante e quase rigorosamente
Júlio Torres
149
polida. Desde o útero, arranhões e amassos de um lado, polimentos
e lubrificações do outro, irão definir nossa recôndita aparência interior. Chegando à vida adulta nenhum de nós será mais esférico,
nem dourado, nem terá sua superfície lisinha, sem arranhões. A história pessoal se encarregou de provocar-lhe cicatrizes. Asperezas e
irregularidades, buracos e saliências pontiagudas que arranham e
ferem, estarão presentes em maior ou menor prevalência. Grande
parte dessas imperfeições nem sabemos que existem e, quando o
sabemos, desconhecemos-lhes a causa e origem – como já dito.
Outras tantas sabemos que existem, mas não achamos que prejudicam nosso comportamento, até, pelo contrário, pensamos que nos
tornam bons. Há ainda os defeitos que conhecemos, mas procuramos ocultar com o véu da autoestima benfazeja. Isso não deixa de
ser bom para a saúde mental, se bem trabalhado; mas, na hora do
relacionamento amoroso gera conflitos.
Irrefutável é que não há casal humano cujo entrelaçamento aconteça como se uma mão e uma luva. Quem se candidata ao amor,
porque dele tem necessidade vital, deve estar atento para detalhes desse tipo. Precisa saber que não existe o parceiro perfeito,
sem nada que incomode, aborreça e até seja duro de suportar.
Por isso, não existe uma só união duradoura que não resulte de
esforço, de constante cuidar, de trabalho permanente e que não
seja consequência de mútuo sacrifício por toda a vida. Porém, repetimos, apesar disso só esse tipo de relação é capaz de nos tornar verdadeiramente felizes e livres. Porque só assim, sentindo a
segurança recíproca de amar e ser amado, podemos ter a certeza
de que existe pelo menos uma pessoa no mundo que nos pode
acolher e compreender sem reservas. Que não nos julga e é capaz de entender nossas fraquezas, fragilidades e lágrimas; a quem
podemos ser autênticos, sem máscaras ou falsas imagens. Uma
pessoa a quem, por causa do amor, podemos abrir as portas do
nosso coração e, sem medo, deixar que nos conheça interiormente, ajudando-nos a crescer. Alguém em cujo seio podemos, com
segurança, repousar a mente fatigada e que não tem qualquer
outro interesse maior que não o de nos amar e ser por nós amada
inconsequentemente.
150
Pegadas de Deus
Mesmo alertados para isso, e apesar dos esforços que intentem fazer, um homem e uma mulher, ao se casarem, ainda são bastante
desconhecidos. Comumente conhecem o lado bom do outro, posto que este, por natureza, sempre se esgueira da alma para botar
a cabeça de fora com seu rosto sorridente. É vantajoso assim agir,
pois gera dividendos emocionais. O outro lado, não; só emerge se
puxado a fórceps ou quando explode estrondosamente. Nossas
defesas automáticas se encarregam de fazer com que tenhamos
esse comportamento, não há maldade alguma no consciente voluntário maquinando para esconder umas coisas e exibir outras,
simplesmente somos assim. A bagagem interior de cada pessoa é
tão extensa, complexa – e às vezes tão pesada – que mesmo após
longa vida a dois ainda restará, nos porões de cada um, muito que
o outro não conseguiu desvendar ou não ousou mexer.
Que fazer, então, na prática ante essa delicada situação?
Primeiro, devemos lembrar que diferenças não são defeitos, há
que se aceitá-las. Um efetivo conselho que as equipes que trabalham com noivos e casais costumam dar à sua clientela pastoral
é o de aceitar o outro como o é. Um é calado; o outro fala muito. Um é calmo, nunca tem pressa; o outro, sempre agitado, quer
tudo “pra ontem” – e assim por diante. No campo das diferenças
não cabe o verbo corrigir, cabe o compreender, e algumas vezes
reivindicar uma situação de meio termo conciliatória. Há ainda
certos hábitos/costumes que não chegam a ser errados, mas que
aborrecem. Vale aí a renúncia; ante um bem mais importante,
abandona-se o menos importante. É o elo intermediário entre a
diferença e o defeito – o chamado “gênio” anteriormente citado,
que se forma sabe-se lá como. Há aqueles que têm “pavio curto”
ou simplesmente ausência congênita de pavio: explodem apenas
pela hipotética aproximação de uma faísca.
E aí surgem os defeitos mesmo, de verdade – e quem não os tem?
Porém, existem para ser aceitos e corrigidos com amor. Em linguagem cristã chama-se “correção fraterna”, aquela administrada
com amor e carinho, no momento prudentemente escolhido e
Júlio Torres
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sem a intenção de ferir ou magoar. É a aplicação particular de uma
das chamadas “regras de ouro”: fazer ao outro o que queremos
que o outro faça conosco. Em sua maioria, os defeitos resultam
da história pessoal que não pode ser alterada, posto ser passado. O passado pode ser analisado, perscrutado, trabalhado, mas
não transformado nem apagado. As asperezas da esfera outrora
brilhante e polida podem ser aceitas e, por causa do amor, corrigidas, mas não desaparecem como se nunca tivessem existido.
Podem ser calafetadas e lustradas, mas jamais ficarão indeléveis.
A “fada madrinha” chamada Psicanálise consegue resultados extraordinários, mas não possui poderes mágicos nem milagrosos.
Os amortecedores de um carro diminuem muitíssimo as trepidações, fazendo-as quase desaparecer, mas não tapam os buracos
da estrada; sempre que por sobre eles passar, elas voltam a acontecer – e isso é inevitável. Quando se sabe que os buracos existem
e onde estão, a direção fica mais fácil e segura, desvia-se aqui e
acolá, mas os solavancos aparecem. A sabedoria do amor consiste em administrar essa realidade. Mais ainda, dela tirar proveito
para crescer no amor e como pessoa. Atingido esse patamar, não
tão alto como parece, o amor passa a ser causa de crescimento. O
que é fácil de entender: todos sabem que quanto “melhor” uma
pessoa for, mais facilmente será amada, aceita, querida – o ideal
almejado por todos. Se em uma relação a outra parte, ao invés
de nos condenar, servir de amortecedor, isso fará com que mais
um pedaço do terreno fique conhecido, provocando menos confusão: os buracos não desaparecem, mas podem ser suavizados.
Assim, de parte em parte, milímetro em milímetro, ambos ficarão
“melhores” para si mesmos, para o outro e para o mundo. Todas as
discussões iniciam-se quando um afirma: “Eu estou certo” e terminam quando o outro diz: “Eu posso estar errado”.
Saliente-se que é na relação conjugal, entre pessoas que dormem
e acordam juntas, que compartilham a casa, a mesa e a cama, que
são descobertos os defeitos maiores, aqueles que prejudicam as
relações interpessoais. A simples vida social quotidiana e laborativa dificilmente abre as portas mais profundas, as que levam aos
nossos porões; raramente mostram facetas demasiado negativas.
152
Pegadas de Deus
Muitos se iludem achando que trocando de parceira ou parceiro
a vida ficará fácil. Contudo, na segunda ou enésima união os problemas irão surgir mais cedo ou mais tarde.
São Paulo – em Efésios 4, 26 – orienta: “Que o sol não se ponha
sobre a vossa ira”. Como muitas vezes isso não é passível de acontecer, ouso acrescentar: “Que o sol não se ponha sobre a vossa ira
mais de uma vez” – um dia de raiva é o bastante. Alimentá-la por
mais tempo provoca sequelas. A propósito, acrescenta São Paulo:
“Suportai-vos uns aos outros no amor de Cristo”.
Por sua vez, D. Helder Câmara, em O deserto é fértil, dá sábio conselho: “Especializa-te em tentar descobrir em toda e qualquer criatura o lado bom que ela possui – ninguém é maldade concentrada”
Jesus Cristo propôs um outro, mais radical ainda: “Quando alguém
te bater em uma face, oferece também a outra”. Este parece loucura total: apanhar, ficar alegre, achar pouco e oferecer uma oportunidade para apanhar mais? Não é bem assim. Significa que, diante
do valor maior, a paz (um bem permanente), até a dor (que é passageira) deve ser posta em segundo plano.
Voltando ao conceito de perfeição – a ser atingida por todos os
homens e mulheres –, o resultado final, bem próximo do infinito,
chama-se, em linguagem cristã, de santidade, como vimos. Portanto, de passo em passo, degrau em degrau, queda em queda,
com arranhões e fraturas, gemidos e lágrimas por causa do amor,
o casal, ou melhor, a pessoa conjugal, chegará ao nível de santidade permitido pela limitação humana em geral e pela sua em
particular, mas tendo como objetivo o máximo alcançável. Não há
nem pode haver tesouro maior que esse.
Filhos que nascem nessa atmosfera tendem a automaticamente
aspirar aos mesmos ideais, enxergando-os como algo palpável e
de fácil alcance. Como seus pais são “normais”, não são “extraordinários”, a santidade será por eles sentida como fato naturalmente
humano – o que lhes parecerá fora do normal é não ser santo. Não
Júlio Torres
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é preciso sequer reconhecer a santidade como tal. Se a sentirem
em seus efeitos, mesmo desconhecendo seu nome, saberão que
se torna necessário dar-lhe continuidade em seus descendentes.
Só assim teremos uma sociedade santa com um futuro presumivelmente santo.
O que acima citamos facilmente se aplica a “defeitinhos”, sobre
certas situações extremamente desagradáveis, mas que não chegam a “matar” a gente. Coisas que, com um pouco de boa vontade, dá para ir “quebrando o galho”, desde que a disposição para
tal não recaia sempre sobre o mesmo lado do casal. E os defeitos
maiores? Aqueles que quase matam, carbonizam a alma e tentam
eletrocutar o amor? Não há que se negar que são situações muito
difíceis. Nesses casos, a foice da morte precisa ter sua sentença
interrompida. Entrará em cena a força angelical do perdão – que
pode e tem a obrigação de se repetir muitas vezes. Jesus disse
que devemos perdoar 70 vezes 7. Como sete representa o todo,
o perdão deve ser infinito. Mesmo querendo – e devendo – ser
santo, em questões conjugais isto é de muito difícil aplicação. Na
boa prática podemos dizer que todo erro merece um perdão e
que todo perdão exige uma conversão antes que se torne gigantesco. É assim que o raciocínio cristão se consolida. Converter-se a
dois com certeza é mais fácil que isoladamente. Quando a voz da
consciência fala sozinha, de dentro do coração, o barulho do mundo a abafa, mas quando o cônjuge fala e carinhosamente repete,
termina por provocar melhores efeitos.
Em tudo na vida, de modo geral, todo grande problema um dia
foi pequeno. Uma cratera na estrada, que interrompe o trânsito,
começou por mínimo buraco no asfalto que, progressivamente,
cresceu com o efeito das chuvas e nenhuma providência foi tomada.
Exemplos não nos faltam:
a) Quando noivos, ela não sabia – nem podia imaginar – que o
rapaz bebia de vez em quando. Casados, decorrido o doce perío-
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Pegadas de Deus
do da lua de mel, ele recebe o salário, sai com os amigos sem lhe
comunicar nada, “enche a cara”, retorna à casa bêbado, vomita na
sala e bate na tão suposta amada esposa. Coisa terrível, verdadeiro desastre. No dia seguinte, de ressaca, arrependidíssimo, pede
milhões de desculpas. Duas alternativas se apresentam para ela:
perdão ou vontade de se separar. Torce o coração por dentro, busca amor no fundo do poço da alma e o perdoa. Um mês depois,
ao receber o salário faz exatamente o mesmo procedimento. Repete-se igual crise, lágrimas em abundância, os filhos, quando já
os têm, assistem a tudo espantados. Novos pedidos de perdão e
posterior reconciliação. Mas se essa cena voltar a se repetir todos
os meses ou até mais frequentemente? O remédio para tal situação será sempre, de um lado, o perdão, mas de outro, obrigatoriamente, a conversão – a mudança radical de comportamento. O
mesmo remédio se aplica ao marido namorador, daquele tipo que
citamos páginas atrás: que apodreceu antes de ter amadurecido,
que pensa que todo macho deve ser predador de fêmeas. A esposa descobre tudo e fazendo uso de sua santidade e doação aceita,
perdoa, mas ele tem que mudar, caso contrário a construção da
relação amorosa desaba “e grande será sua ruína”.
Vale uma observação a título de conselho: se um rapaz (ou moça)
for um “namorador” ou “namoradora”, viciado(a), que não quer ou
não consegue ser diferente, é melhor não casar. Que administre
sua solidão. Pelo menos não irá prejudicar a felicidade alheia;
b) Ela, por razões que sua história pessoal explica – embora não
se aperceba disso –, ama profundamente seu marido, mas venera
a própria mãe. Nunca ousou soltar-lhe a barra da saia. Em qualquer situação caseira solicita de imediato seu “sábio e experiente”
palpite. A sogra passa a mandar mais na relação que o consorte
(nesta altura dos acontecimentos, já quase “sem-sorte”). Remédio:
perdão acompanhado de conversão, mudança de verdade, corte
definitivo do cordão umbilical.
Há milhares de histórias conjugais que terminam no escritório
de um advogado para partilha dos bens, quando existem, e das
Júlio Torres
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desgraças, que sempre abundam. Na maior parte das vezes, o
diagnóstico é parecido: não se conheceram o suficiente antes de
casar ou não amaram o suficiente para praticar o perdão e se esforçar na conversão. Sabe-se – por profissionalmente ouvir o
depoimento de muitos casais que se separaram – que também
em uma segunda união encontraram as mesmas dificuldades. Arrependem-se tardiamente de ter interrompido a primeira. A solidão teve sua cura postergada, tornando-se mais resistente ainda
a novas terapêuticas. A explicação é clara e óbvia: as tensões e
desavenças podem mudar de matiz e girar em torno de temas diferentes, mas jamais deixarão de existir pois resultam dos fatores
causais anteriormente citados e dos quais ninguém escapa. E os
filhos, como vão sentir a separação e que sequelas ela lhe trará?
Boa pergunta, não? Eles não têm culpa de ter sido trazidos ao
mundo sob aquele firmamento que desmoronou.
Espero ter clarificado que a relação amorosa profunda, crescente
e duradoura desmantela a solidão. Um dos sintomas mais precoces de que a relação está emitindo sinais de fadiga, falhando
em algum dos seus inúmeros aspectos, é a sensação da chamada
“solidão a dois”. Lembro de uma poesia de Castro Alves na qual
se referia à pessoa que havia amado: “Certa vez havia entre nós
o Atlântico e eu senti em minhas mãos as tuas mãos; agora eu
tenho em minhas mãos as tuas mãos e sinto entre nós o Atlântico”.
Essa situação é terrível. Uma cuidadosa e permanente profilaxia é
o único meio para se evitar esse tipo de desastre sentimental.
Em suma, com raras e honrosas exceções, não é bom que nem
o homem nem a mulher fiquem sós, tanto para a saúde mental
quanto física. A solidão é fera e devora. O único antídoto capaz de
pulverizar a solidão é a vivência de uma relação amorosa profunda, que, no que pesem suas dificuldades entre prazeres e dissabores, tem o condão de construir nova unidade psíquica-emocional
chamada de “pessoa conjugal”, o bem maior, a pérola rara a ser
buscada com dedicação e a todo custo. Uniões passageiras e efêmeras não desfazem a solidão; ela não é o fim de quem ama, mas
de quem não ousou amar por completo.
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Amar é ótimo, mas é difícil; difícil, porém possível. Requer conhecimento de si mesmo e mútuo, colocando-o na “mesa das negociações”, com honestidade, sinceridade e decisão firme de se doar,
abdicar e conquistar espaços na relação sem invadir o território
sagrado do outro. Esse conhecimento não pode ser apenas epidérmico, necessita mergulhar no fundo da alma sem corrompê-la
por dentro. Ao fazê-lo, encontra coisas boas e ruins, fáceis e difíceis de suportar – algumas até imponderáveis. Tão gigantesca
tarefa, para ser exitosa, exige que a relação tenha duas características fundamentais: que seja exclusiva e que seja definitiva.
E isto é simples de entender:
a) Viver uma relação amorosa verdadeira na exclusividade é difícil,
imagine-se na diversidade. Sendo difícil por em prática um projeto que requer dedicação, sacrifícios e renúncias com uma só pessoa, há que se concluir que na multiplicidade será absolutamente
impossível. O crescimento pessoal, necessário à realização plena
do ser, restará para sempre incompleto;
b) Todos os humanos são frágeis. Ante uma dificuldade, um obstáculo de qualquer tipo ou natureza, há tendência natural à desistência. Quando a dificuldade se repete, a desistência se faz mais
preponderante ainda. Quando se parte do princípio de que a
união é definitiva, o fantasma da desistência é expulso da relação.
Inaugura-se novo princípio: como não temos o direito de nos separar, temos a obrigação de nos entender. A decisão de amar, com
todas as suas implicações, torna-se bem mais forte;
c) Nenhum propósito humano goza de resistência absoluta. Não
somos absolutos por natureza, a fragilidade é nossa permanente
companheira. Todos os humanos são absolutamente frágeis e vulneráveis. Ante a pequenez e fragilidade humanas Deus nos oferece as suas graças, que nos agigantam e tornam fortes.
Chegamos, enfim, ao sacramento do Matrimônio: sinal eficaz da
graça de Deus, como todos os demais. O Matrimônio é para ser
o casamento cristão, isto é, a forma que os cristãos (aqueles que
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creem em Jesus, aceitam e vivem suas propostas) usam para casar-se – consequentemente, não se pode restringir apenas a um
tipo de ritual nem de solenidade. Implica, obrigatoriamente, no
conhecimento mínimo necessário das leis que o regem, das implicações que dele resultam e, sobretudo – por ser o mais importante –, das graças que são por ele dispensadas e como elas podem
ser abundantemente aproveitadas pelo casal.
O sinal visível do sacramento do Matrimônio é uma mútua e belíssima declaração de amor total e irrestrito: eu te recebo
como minha esposa (como meu esposo) e te prometo ser fiel na
alegria e na tristeza, na saúde e na doença, amando-te e respeitando-te todos os dias da minha vida.
A essa declaração antecede uma pergunta do celebrante: “Aqui
viestes para unir-vos em casamento. É de livre e espontânea vontade que o fazeis?”. Se a resposta for não, no mesmo instante a
cerimônia será interrompida – mas se o sim não for verdadeiro, ela
é inválida por natureza. Causa relativamente comum de falsas respostas é a concretude de uma gravidez inesperada e indesejada.
Se for a única ou a causa maior do casamento, este jamais deveria
acontecer.
Segue-se um pronunciamento do sacerdote, no qual exclama: “Eu
os declaro marido e mulher. O que Deus uniu o homem não separe” – finalmente, uma bênção matrimonial.
União exclusiva e definitiva promulgada diante de Deus e da Igreja, uma comunidade de pessoas ali reunidas em sinal de solidariedade e partilha. Promessa feita por quem deve saber exatamente
o que está declarando, reconhecendo a profundeza abismal de
suas palavras. Frase brotada da mais profunda intimidade do coração e da razão, onde reside a necessidade de não ficar só para
sempre.
Graça que, nessa situação específica, é a força que fará com que
todas as dificuldades humanas sejam superadas pela presença de
Deus, a quem “nada é impossível”.
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Pegadas de Deus
Costumamos, quando nos dirigimos aos noivos em preparação
para o casamento, repetir o dito por Jesus diversas vezes: “A Deus,
tudo é possível” – e a título de aconselhamento, algo que não está
nos Evangelhos, mas é a pura verdade: “E ao diabo, quase tudo”. E
isto é real, mesmo. Que se tomem os devidos cuidados para não
permitir que penetre em nossas casas e na nossa relação para desmantelar a construção do amor, tentar dissolver a unidade prevista na criação e desfeita pelo pecado. Relembrando o que antes
dissemos: “diabólico” é aquilo que separa, que divide; o contrário
de “simbólico”, o que une, agrega. Nas relações diabólicas ambos
saem perdendo. Velho ditado popular ensina: “Dois bicudos não se
beijam”. Pois a Deus até isto é possível. Não só, permitem-se beijar
tão amiúde que seus bicos vão se gastando, possibilitando beijos
cada vez mais prolongados até se tornarem minúsculos.
O dia das bodas não é o destino a ser alcançado, mas o início de
uma jornada premeditada no namoro e no noivado. Diante do altar inicia-se o casamento e a graça de Deus é o maior de todos
os presentes que os nubentes possam vir a receber. Nenhum casal de noivos deixa de abrir uma caixa de presente para verificar o
que contém, ainda que por mera curiosidade. Entretanto, é de vital
importância não deixar de abrir aquela que traz o manancial de
graças, a fim de usá-las com fartura. Ao contrário das demais oferendas, esta é inesgotável e incorruptível. Quanto mais utilizada,
mais se multiplica – como se um poço de água pura e profunda:
quanto mais se cava, mais abundante fica.
A graça de Deus é como imenso reservatório de água pura que
abastece uma residência, mata a sede das pessoas e promove a
limpeza da casa, mas é preciso abrir as torneiras para que possa
fluir livremente, cumprindo as finalidades a que se destina. Um
tanque abarrotado perde seu poder se as torneiras mantiveremse fechadas. No caso das graças, o que as abre é a fé; quem não
a cultiva e não a exercita interrompe seu fluxo benfazejo. Se fôssemos compará-la com recursos econômicos, seria como viver do
orçamento apertado que resulta do salário mínimo mensal, desconhecendo que há farta caderneta de poupança ao alcance da mão.
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A vivência do sacramento do Matrimônio à luz mínima da fé trará,
em progressiva abundância, os frutos que lhe são próprios. Sem
que o percebamos, paulatinamente nossos atos vão se tornando
mais amorosos e o projeto de construção da pessoa conjugal vai
se transformando em realidade concreta.
Não se pode negar a existência de variadas situações que escapam ao domínio da boa vontade, da decisão amorosa e do desejo
firme de continuar construindo uma unidade, mesmo à luz do sacramento do Matrimônio. Vidas vividas que desmantelam o propósito de manter o vínculo matrimonial. Sacrifícios desmesurados
sem vislumbrar melhorias na relação findam por fazer da separação o único, embora desastroso, caminho. Há que se reconhecer,
no entanto, que tal caos amoroso não pode ser aceito como a regra por ser o mais fácil ou muito frequente, mas como a exceção,
como o anormal.
Em tais casos, excepcionais, a própria Igreja reconhece novas
uniões amorosas como benfazejas e as acolhe. Há uma linha pastoral destinada aos casais em segunda união. O efetivamente importante é que todos os que se amam verdadeiramente se sintam
filhos amados de Deus e tenham garantida a sua pertença à Igreja.
Epílogo
Jesus disse: “Quem tem ouvidos para ouvir, ouça”. Se não fosse
o Santo de Deus, conforme declarou Pedro (Jo 6, 68-69), possivelmente teria acrescentado: “Quem não tem, paciência!!! Vai dar
tudo errado, mas a culpa não é minha...”.
“Reino de Deus”, “Reino dos Céus” são os termos que ele utilizou
para simplificar, condensar em pouquíssimas e sábias palavras a
vastidão imensurável dos benefícios a serem usufruídos pelos humanos se pusessem em prática seus ensinamentos. Se os corações
forem movidos pela mecânica do amor, o conceito de vida plena
deixará de ser teórico para ser sentido na prática do dia a dia. A utopia de um mundo plenamente feliz passará a existir na prática.
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Como somos repletos de imperfeições (mistura de barro com sopro de Deus, não nos esqueçamos), a vida plena ainda não está
ao fácil alcance de nossas mãos. No entanto, é-nos perfeitamente
possível, se assim o quisermos, sentir-lhe perto o aroma e o sabor, prelibar sua existência. Mesmo sem grandes pretensões, énos perfeitamente possível passar o dia, dormir e acordar em paz.
É-nos perfeitamente possível construir o nosso oásis particular e
familiar, mesmo vez por outra transferido involuntariamente ao
deserto causticante das nossas vidas. A partir do nosso oásis podemos distribuir água fresca para dirimir a aridez que nos cerca.
Se oásis e mais oásis forem criados e expandidos, os desertos diminuirão, tornar-se-ão férteis e a “vida plena” florirá.
Há uma parábola que narra o comportamento de pequeno pássaro que, diante de um incêndio na floresta, molhava suas asas
em uma lagoa e fazia as gotas de água respingarem sobre o fogo,
com o intuito de apagá-lo. Os outros lhe disseram que nada adiantava tal esforço, ao que respondeu: “Pelo menos, estou fazendo
a minha parte”. Um fato aparentemente pequeno e corriqueiro,
se somado a tantos outros, é capaz de provocar grandes mudanças. Da minha vida particular a dois com minha esposa resultaram
quatro bons filhos, que geraram onze netos; universalmente, esse
número é insignificante, mas representa uma soma de quinze novas pessoas, somando-se ainda ao mesmo os nossos três genros e
uma nora. Mais ainda, como bons exemplos despertam vocações
semelhantes, não é exagero esperar-se que de cada família bem
formada muitas outras surgirão.
Toda criança, toda pessoa humana, todo filhote de Homo sapiens,
nasce com as sementes do amor total, da paz, da justiça e da vida
reta semeadas em seus corações. Se forem regadas e adubadas
(ao invés de pisoteadas), naturalmente irão eclodir e darão frutos
“à razão de cem por um”. Os filhotes dos humanos são, em toda a
natureza animal, os mais carentes, necessitam de uma figura paterna e materna por muito tempo para se desenvolverem plenamente. Aos outros filhotes, em sua quase totalidade, basta-lhes a
fêmea, e por poucos meses.
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Filhos que guardam boas lembranças de seus pais juntos, manifestando-lhes uma decisão de amar (mesmo com ondulações e
tempestades, mas fiéis à promessa que fizeram), tendem automática e instintivamente a repetir o que presenciaram: não terão
medo de casar. São Paulo, em uma de suas cartas, dá sábio conselho quando diz aos filhos para obedecerem aos pais e aos pais
para não irritarem seus filhos. Claro! É uma via de duas mãos e nenhuma delas é preferencial. Seus espíritos serão tanto mais leves
e mais facilmente flutuarão no sopro de Deus quanto mais forem
amados e presenciarem atos de amor e de união. Brincar e passear
com seus pais, ser acariciado ou repreendido por eles, ter suas
tarefas escolares partilhadas, aprender a falar na linguagem do
amor são bens infinitos e indeléveis. Na família bem estruturada
milagres acontecem no quotidiano como resultado do perdão e
da ajuda mútuas. Nada há de estranho, excepcional ou fantástico
nisso, faz parte natural do bem viver digno de humanos racionais.
Os irmãos, não obstante e apesar das brigas e querelas infantis,
levarão para as suas vidas adultas imagens inesquecíveis que lhes
darão a notícia de que amar é possível e sumamente bom. Pouco
lhes importará se havia ou não fartura de dinheiro e bens materiais, desde que não lhes tenha faltado o amor e o ambiente propício para seu desenvolvimento. Aprenderão, sem que palavra alguma lhes tenha sido dita a respeito, que o amor conjugal humano
é cheio de altos e baixos, mas essencial à vida, e transmitirão essa
verdade a seus filhos e estes a seus netos. Se seus pais forem fiéis
um ao outro, aprenderão e ensinarão fidelidade; se forem pessoas
que oram, aprenderão e ensinarão a orar; se manifestarem que
ficaram felizes e realizados com a própria fertilidade, sentirão e
ensinarão os benefícios da fertilidade; se sentirem que são bons
frutos de uma paternidade e maternidade responsáveis, vivida
sob a luz da castidade, aprenderão e ensinarão o mesmo. Quando
tudo isto lhes falta ou é negado, a continuidade da obra da construção do Reino de Deus encontra dificuldades para prosperar.
A prática dos valores cristãos traz, como corolário, uma série de
valores outros que se enraízam nas pessoas desde cedo: a hones-
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Pegadas de Deus
tidade pessoal, que se manifesta na vida pública e que se opõe à
corrupção daninha; a seriedade dos atos; o comportamento ético
e moral no mais amplo de seus sentidos. A formação sólida de
uma consciência pode torná-la incorruptível. Vale ressaltar que o
dinheiro não pode ser endeusado, pois se assim o for torna-se o
centro da existência.
Na oportunidade, convém destacar que a vida da igreja doméstica é alimentada pela participação na grande Igreja. Nela, os conceitos são atualizados, a Palavra de Deus é relembrada e a fé é
revivida pela participação nos sacramentos. A prática da penitência apara todas as arestas que insistem em persistir e os espinhos
que florescem. Na mesa do Senhor os espíritos são nutridos pela
refeição eucarística e se desarmam. É ali, ante a presença do Cristo, que com muita frequência o perdão mútuo – que restitui a paz
perdida pelas intrigas conjugais – brota de um simples olhar ou
de suave toque de mãos.
Fiz anteriormente um paralelo entre o casamento e a profissão,
salientando o valor do primeiro. Volto a abordar essa questão. A
maior parte das profissões e ofícios requer um preparo prévio, um
aprendizado às vezes prolongado e uma reciclagem repetida. Se
a vida profissional exige isso, não é sensato deixar a vida conjugal ao sabor da própria sorte, há que se investir nela desde antes
de sua inauguração. Se lemos ou estudamos tanto sobre detalhes
das nossas profissões, por que não devemos fazer o mesmo em
relação ao nosso casamento? Embora amar e manter a relação
amorosa seja algo até certo ponto instintivo e natural, o instinto
e a natureza não são capazes de, sozinhos, livrar-nos de todas as
armadilhas que o mundo nos impõe. A respeito, há vastíssima bibliografia disponível, especialmente nas editoras católicas, acessível para leitura ao nível de qualquer gosto ou cultura.
A Igreja propicia elevado número de oportunidades para que isto
ocorra; há encontros diversos, com variadas metodologias, que
visam ao aprimoramento da vida a dois e a orientação e cuidados
que devem ser dispensados à prole. Faz-se preciso investir parte
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do tempo para alimentar-se nessas fontes cuja eficácia é sobejamente comprovada. Estudar casamento, é isso aí! Os amadores,
em qualquer ramo da atividade humana, têm bem mais dificuldades para lograr o êxito necessário.
Além dos chamados “movimentos de casais”, a Igreja dispõe de
diversos documentos sobre o tema, com instruções valiosíssimas.
Em 1981, há 32 anos portanto, o papa João Paulo II publicou a
Encíclica Familiaris Consortio, de riquíssimo conteúdo, que se posta em prática faria com que quase todos os males que assolam
nossa atual sociedade fossem evitados – e essa é uma realidade
de facílima constatação. “Família, torna-te aquilo que és!”, bradava. Em outras palavras, poderíamos condensar o que João Paulo II
quis dizer nesta frase: família, cumpre com a tua obrigação social
e histórica, não fujas dos teus compromissos, não abandones em
mãos estranhas o teu destino, não desistas de desempenhar o teu
papel na construção do mundo. Ele não foi ouvido e atualmente a
imprensa leiga, não religiosa ou até agnóstica, mostra, com exatidão, que estão acontecendo todos os malefícios que poderiam ter
sido evitados – o que tende a piorar ainda mais.
Adicionalmente acrescenta: “Assim, diante de uma sociedade que
se arrisca a ser cada vez mais despersonalizada e massificada, e,
portanto, desumana e desumanizante, com as resultantes negativas de tantas formas de “evasão” – como, por exemplo, o alcoolismo, as drogas e o próprio terrorismo –, a família possui e irradia
ainda hoje energias formidáveis capazes de arrancar o homem do
anonimato, de o manter consciente da sua dignidade pessoal, de
o enriquecer de profunda humanidade e de o inserir ativamente
com a sua unicidade e irrepetibilidade no tecido da sociedade”
(Familiaris Consortio, 43). Ao final, conclui: “O futuro da humanidade passa pela família!”.
Tudo isso continua a ser verdade. Nossa sociedade se degradou e
piorou bastante nos últimos tempos, ao contrário do significativo
progresso científico e econômico que vivenciamos. Tecnicamente
crescemos de forma espantosa, mas como pessoas decrescemos
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horrivelmente. Cada vez mais diminui percentualmente o número dos que experimentam a felicidade e vivem uma atmosfera de
paz. A “vida plena” distancia-se a olhos vistos e o Reino de Deus,
que deveria ser paixão a ser alimentada e objetivo derradeiro de
toda pessoa humana, terminou por ficar sendo adiado sine die.
Mas, sempre é possível se recuperar o tempo perdido. O Pai estará
eternamente de braços abertos à espera da humanidade pródiga
que, irresponsavelmente, abandonou sua própria casa.
Que isto aconteça.
Amém!
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