FstFood de F o oi a - Petcom - Universidade Federal da Bahia

Transcrição

FstFood de F o oi a - Petcom - Universidade Federal da Bahia
Sobrevivência
“lógica de mercado” é, no fim das
contas, uma mentalidade tacanha e
sem qualquer ponta de nobreza.
Acreditar num produto novo, que
movimenta o mercado editorial local e
incrementa a vida universitária da
cidade parece um grande pecado. E
tem quem “acredite”, mas com a
condição de barganhar, barganhar e
barganhar! No final não sobra nada.
Felizmente, a Fraude é uma saída.
Infelizmente, é uma ilha em meio à
carência de revistas independentes
feitas aqui mesmo na cidade, sem
qualquer espécie de “rabo preso
editorial”.
A propósito, nesta edição a revista
está mais local. Saímos um pouco do
cosmopolitismo exagerado e exploramos um pouco mais os temas que a
cidade oferece. Com destaque para o
Museu do Objeto imaginário (seja lá o que
for isso...), o Rio Vermelho e suas
enchentes e vazantes, além dos nossos
apresentadores-porretões da TV.
Destaque ainda para as rádios
evangélico-comunitárias, o que tem no
humor de Hermes e Renato e os olhos
vigilantes do MediaWatch. Por fim, um
artigo sobre as táticas do amor escrito
pelo professor Juremir Machado, autor do
romance recém-lançado “Getúlio” (um
privilégio desses só a Fraude mesmo!).
Então, boa leitura. E obrigado aos que
apóiam a Fraude. Não é nada comprometedor...
38. Fast-Food de Filosofia
36. Azougue Ideal
34. O mais escuro dos cinemas
32. A triste sobriedade dos 30
31. A arte do amor
28. Museu de tudo
26. Vote ni mim
24. Quem quer dinheiro?
22. I AM Jesus
19. Quem vigia os vigilantes
18. Roque com batuque
Índice
16. Crl+AltRock
14. Quando o rio deságua no mar
12. Hermes e Renato: Caótico
09. O Carnaval do meio-dia
06. Entrevista: Yakoff Sarkovas
A luta pela
04. Pop Up
A Fraude recompensa. E ao contrário
do que se pensa, dá trabalho pra fazer.
Tornar viável uma revista que fala sobre
cultura e comunicação já é algo bem
complicado. Principalmente quando ela
é universitária e com tiragem modesta.
Pior ainda quando é em preto-e-branco
e com sérias restrições orçamentárias!
Mas a nossa equipe não se abate com
isso - pelo contrário: a gente aceita a
Fraude como ela é. E olha que ela é bem
bonitinha, modéstia à parte.
O problema é que o mercado não faz
o mesmo. É cada vez mais complicado
convencer o empresariado da cidade a
apoiar uma produção independente e
que chega apenas ao seu segundo
número. O que por aí se chama de
Expediente
Repórteres e Colaboradores: Beth Ponte, Camilla
Costa, Camilo Aggio, Danilo Fraga, Jeder Janotti
Jr., Júremir Machado, Lívia Nery, Lucas Cunha,
Pedro Fernandes, Ricardo Sangiovanni, Tiago Félix
e Vivian Barbosa.
Imagens e Diagramação: Camilla Costa, Danilo
Fraga, Lucas Cunha e Ricardo Sangiovanni.
Revisão: Beth Ponte, Camilla Costa, Danilo Fraga,
Lucas Cunha, Ricardo Sangiovanni e Vivian
Barbosa.
Produção Executiva: Beth Ponte e Vivian Barbosa
Agradecimentos: Juremir Machado, Tio Dú da
Graúna, Sala de Arte, LabMedia, LabVídeo.
FACOM/UFBA - Salvador - BA - Brasil
Ano 1, número 2 - Dezembro de 2004
Esbarramos com Fernanda Takai por aí...
Pop-Up
Durante sua passagem por Salvador
para show na Concha Acústica, a Fraude
conversou com Fernanda Takai, vocalista
do Pato Fú, afastada dos palcos há
quase dois anos, sobre os preparativos
para o próximo disco, Salvador e otras
cositas más. Confira:
Fraude - Como estão sendo as
gravações deste novo álbum?
Fernanda - Nosso oitavo disco já está
com a produção bem adiantada. Como
temos estúdio em casa, estamos sempre
gravando e compondo material novo. É
um processo lento de criação e amadurecimento de cada uma delas. Não sei
como alguns artistas conseguem parar e
fazer tudo de uma só vez, em um mês ou
dois. Nosso último disco de estúdio é de
2001, então juntamos um material
bacana pro próximo, não em quantidade,
mas em qualidade, acreditamos.
Estamos afastados dos grandes meios
de comunicação desde dezembro de
2002, então é, sem dúvida, um recomeço.
Fraude - Ainda sobre o novo disco há
alguma participação em vista para o novo
cd? Algum cover?
Fernanda - Temos a participação de
uma cantora portuguesa, Manuela
Azevedo, de uma banda muito interessante chamada Clã. John compôs uma
das letras do álbum mais novo deles. Em
nossa viagem a Portugal no ano
passado, ficamos amigos, pois descobrimos grande afinidade musical e pessoal
entre nós. Acho que de cara, pela
empatia, queríamos tentar um trabalho
em parceria. Até este momento temos
em processo de finalização doze músicas
inéditas, mas esse número pode aumentar...
Fraude - Vocês já tem uma idéia de que
linha o novo disco irá seguir?
Fernanda - Todos os nossos álbuns,
desde o início até hoje, tem como
característica principal a diversidade, a
não-fronteira estética. A gente se permite
deixar de ser uniforme. Houve uma
evolução tecnológica entre eles e também
uma tentativa de escrevermos melhor a
história de cada canção. Sem explicar
muito, diria que vocês podem esperar tudo
o que estamos tentando extrair de melhor
desse momento que vivemos como
banda.
Fraude -O que mudou no Pato Fú com a
chegada da Nina, sua filha com John?
Fernanda - Mudou que as turnês serão
mais humanizadas, não dá mais pra ficar
fora de casa quinze, vinte dias direto,
tentamos nos programar melhor do que
antes. Estamos muito felizes com esta
nova etapa em nossas vidas, mas somos
reservados demais pra ir além disso.
Melhor deixar as obras com interpretação
aberta e encontrar o sentido através do
que cada um lerá nelas.
Fraude - Alguns dos integrantes da
banda como o Ricardo e o John possuem
alguns pequenos trabalhos solos, como o
Let's Presley e a produção dos
novos cds da Wonkavision
e do Arnaldo Baptista.
Você também não
pensa
em fazer algo solo?
Fernanda - Realmente em curto prazo
não. Acho muito difícil fazer algum
trabalho assim enquanto o Pato Fú existir.
Não consigo ver o trabalho de um
vocalista de banda desvinculado de todas
as referências do grupo, não gostaria de
concorrer comigo mesma no presente.
Meu projeto prioritário para os próximos
anos é uma garotinha que está comigo há
quase um ano agora...
Fraude -Você morou em várias
cidades brasileiras por causa do
trabalho de seu pai, morando por
algum tempo em Salvador, o que
inclusive gerou a letra de Antes
Que Seja Tarde. Qual sua relação
com Salvador?
Fernanda - Passei parte da
infância em Salvador, comecei a ir
à escolinha aí, aprendi a nadar em
Ondina, soltar pipa no Farol, gostar
de acarajé. É uma terra muito boa,
temos amigos de muitos anos na
cidade. Depois com a banda, foi uma
das capitais que melhor nos acolheu
desde o comecinho. Fazemos
questão de incluí-la como prioridade
nas turnês.
Museus Virtuais
Todos os museus que se prezam
têm sites. O Louvre, o MoMA e o Masp
têm espaço reservado na rede para
expor seu acervo e dar ao visitante
virtual uma idéia do que pode ser visto
no caso de uma visita física. E é claro
que, dada a facilidade de colocar
páginas na Internet, o número de
museus se multiplica e todo tipo de
gosto pode ser satisfeito. Mas agora é
tempo de usar a Internet para fazer
com que as pessoas não apenas
vejam, mas viajem pelo acervo. E,
nessa tecnologia, destacam-se duas
instituições: o Museu de Arte
Contemporânea de Chicago e o
Walker Art Center em Minneapolis
(EUA), que mostra numa câmera ao
vivo, tomadas da vista que se tem da
janela da frente do edifício e o mais
importante: um passeio virtual
pelo jardim de escultur a s
d e
Minneapolis.
V a l e
conferir
também
o primeiro museu brasileiro exclusivamente virtual, o Museu
Virtual de Arte Brasileira.
Como Internet quer dizer interatividade, o passo seguinte é
dado pelo Museu de Arte Contemporânea de Chicago. Além de
mostrar parte do acervo permanente e trazer a programação do
museu, o ponto alto é a visita virtual "Transmute" (ela está meio
escondida, em Past Exhibitions/Transmute). Nela, o visitante pode
montar sua própria exposição.
Com a Internet mais veloz, a tendência é que esses ambientes se
tornem mais realistas e que permitam interação: já não será mais
apenas fazer a curadoria de uma exposição, mas montá-la em
grupo, discutindo o assunto com outros visitantes e modelando o
espaço virtual. Isso, tecnicamente, já pode ser feito, pois existem
boas experiências de salas de chat em 3D, como a página-demo do
navegador pelo VRML Blaxxun. É só questão de tempo (e de
dinheiro, como sempre) para juntar tudo em algo que faça sentido.
Depender de
desconhecidos é
a l t a m e n t e
desaconselhável. Mas
não adianta: o computador é nosso
braço direito e ainda assim quase ninguém sabe
como funciona. Ou quase: o site
http://www.guiadohardware.net é um bom
caminho para quem quer saber um pouco mais
sobre o funcionamento do micro. Desenvolvido
4
Fraude
Escritores escrotos...
...E sua literatura de esgoto
Parte 2
Assim como ratos se proliferam no esgoto, novos
escritores aparecem para colocarem seus escritos
nas ruas. Uma das últimas crias desta nova geração é
a Edições K, que entra no mercado editoral com
quatro livros, três de contos de autores já famosos em
e-zines como Marcelo Benvenutti ( O Ovo Escocês),
Delfin ( Kreuzweltratsel ) e Patrick Brock ( Velhas
Fezes), além do cordel “A filha do imperador que foi
morta em Petrolina”, do baiano Wladimir Cazé, exmembro do PetCom em meados dos anos 90.
Compostos basicamente de textos publicados na
Internet - inéditos no formato livro - Benvenutti, Delfin
e Brock trazem nos seus contos temas urbanos como
sexo, drogas e música pop, colocados da forma mais
caótica possível e sobra até espaço para aventuras
cyberpunks. Os livros das Edições K podem ser
adquiridos no Sebo Berinjela (Travessa da Ajuda,
Centro) ou com Patrick Brock pelo tel: (71) 358-1442
ou e-mail: [email protected]
O mapa das canções perdidas
SITES:
http://www.walkerart.or
g/resources/res_msg_v
rmlframe.html
www.mcachicago.org
www.blaxxun.com
www.museuvirtual.com.
br
Guia do hardware
As curtas da Fraude
Pop-Up
pelo programador Carlos Morimoto, criador do
Linux Kurumim (que já está na versão 4), o guia
do hardware traz dicas e excelentes tutoriais
(escritos por ele mesmo) contendo noções de
hardware, software, programação e redes, em
linguagem acessível até para quem nunca
ouviu falar dessas coisas.
O site conta também com informações
atualizadas diariamente sobre o mundo da
informática, software livre, cursos na área e
games, além de trazer notícias do Kurumin e
outras versões do sistema operacional Linux.
Outro atrativo são os fóruns de discussão entre
usuários, que tiram dúvidas, comentam,
sugerem e produzem soluções em informática.
Para aqueles que acham que o rock no Brasil dos anos
60 se resume à Jovem Guarda, está disponível na Internet
uma compilação de bandas de rock brasileiro do período. A
coletânea virtual é conhecida como Brazilian Nuggets uma referência à famosa coletânea de “garage bands”
norte-americanas dos anos 60.
A compilação conta com uma grande variedade de
bandas desconhecidas, como Os Brasas, Sueli & os
Kanticus, Os Jovens, Bango, Os Minos (do guitarrista
Pepeu Gomes), Megatons e Beat Boys. Várias gravações
chamam a atenção pela ousadia, como “Lindo Sonho
Delirante”, do soulman apocalíptico pré-Raul Seixas,
Fábio. A música, gravada com acompanhamento dos
Fevers, homenageava ingenuamente o LSD, no estilo Lucy
in the Sky with Diamonds de ser. Outra surpresa é a balada
“Sílvia 20 horas Domingo” de Ronnie Von, que lembra um
pouco o som do quarteto barbudo Los Hermanos.
Para ter acesso ao Brazilian Nuggets é necessário
baixar o programa Soulseek - disponível na seção de
Downloads do site www.slsknet.org. Depois, é só digitar
"brazilian nuggets" no buscador e todo um mundo de
obscuridades do rock nacional estará à sua disposição.
5
Fraude
Entrevista: Yacoff Sarkovas
é
b o m
Entrevista
n e g ó c i o ?
Beth Ponte
[email protected]
F
undador e
presidente da
Articultura,
primeira agência de planejamento e gestão de patrocínios do
país, Yacoff Sarkovas é reconhecido como um dos maiores críticos às
Leis de Incentivo à Cultura. Concebeu
e gerenciou quase uma centena de
projetos nas áreas cultural, ambiental,
esportiva e social para instituições no Brasil e
no exterior. Foi também responsável, entre 1999
e 2002, pela reformulação da política de patrocínios da Petrobras, a maior patrocinadora
brasileira.
Sarkovas foi convidado, no início da
gestão do PT, para colaborar com a
reformulação da aplicação das Leis de
Incentivo em empresas estatais e entrou
na mira de produtores e diretores de
cinema como Cacá Diegues e Luiz
Carlos Barreto, o Barretão, que em
junho deste ano se referiu a Yacoff
como um “gigolô da cultura”.
Polêmico e incisivo, ele fala das
deturpações das Leis Rouanet e
do Audiovisual, da realidade do
Marketing Cultural e dos rumos
da cultura no Brasil. Em entrevista exclusiva à revista Fraude,
Yacoff vem contestar a
máxima de que “a cultura é
um bom negócio” (o slogan
defendido por Wefort, no
Ministério da Cultura do
governo FHC) com o
questionamento: bom
negócio para quem?
6
Fraude
Fraude - Em debate com o Ministro da
Cultura Interino, Juca Ferreira, você
causou polêmica ao se referir às Leis
de Inventivo Fiscal (Rouanet e do
Audiovisual) como um câncer que
contamina toda relação entre as
empresas e os cidadãos com a cultura.
Por que criticar o que muitos consideram o maior avanço na história nacional de financiamento à cultura?
Sarkovas - As leis de incentivo tornaramse uma forma insensata de financiamento
do Estado. Incentivo fiscal é uma estratégia de aplicar o dinheiro público para
estimular investimento privado, em que o
governo deixa de recolher parte dos
impostos das empresas para que este
seja investido em áreas culturais. Mas no
Brasil, as leis de incentivo à cultura
passaram a transferir recursos públicos
sem nenhuma contrapartida privada.
Foram deturpadas desde que passaram a
permitir, ainda no governo FHC, a
dedução integral, tornando a empresa, um
mero repassador dos recursos do Estado,
despendidos sem atender objetivos
coletivos. Ao se transferir para as
empresas recursos e responsabilidades
do Estado foram cometidos múltiplos
equívocos: investe-se dinheiro público
sem a efetiva garantia de atender o
interesse público; não se formam reais
investidores privados, pois ninguém
aprende nada gastando dinheiro alheio;
deforma-se o mercado de patrocínio,
incutindo na cultura empresarial um
benefício a custo zero. Não há nada de
errado em empresas privadas financiarem
a cultura, quando o dinheiro é, de fato,
privado. As leis de incentivo fiscal são
importantes para a cultura porque
transferem cerca de R$ 500 milhões
anuais para a área, mas o Ministério da
Cultura tornou-se, na verdade, o "Ministério das Leis de Incentivo". Porque somente
no Brasil a dedução fiscal é o principal
mecanismo de financiamento público à
cultura. É impossível atender à diversidade e à extensão das demandas culturais
da sociedade com um sistema baseado
em incentivo fiscal. Enquanto este
paradigma não for quebrado, tudo
continuará como está.
Fraude - Você prega a abolição gradual
dos mecanismos de incentivo fiscal
empregados hoje em dia. Para tanto,
defende a idéia de formas de investimento público, como os Fundos de
Investimento à Cultura. Mas as empresas não são também importantes
patrocinadoras? Podemos contar
somente com a consciência de seus
empresários para que elas invistam em
cultura?
Sarkovas - Se a empresa não vê sentido
em patrocinar cultura, faz menos sentido
ainda colocar em suas mãos dinheiro
público para que ela decida a quem deve
beneficiar. O fim do anabolizante fiscal
revelaria a verdadeira dimensão econômica do patrocínio empresarial. Ele cresceria estimulado pela necessidade de gerar
resultado, irrigando a cultura com
recursos privados reais, como ocorre nas
áreas ambiental, social e esportiva, que
não sucumbiram, ainda, ao perverso
encanto das leis de incentivo e desenvolveram formas concretas de sustentabilidade. Nos EUA, os institutos e fundações
empresariais estendem suas atividades
ao campo cultural, dispondo fundos para
os mais variados projetos e segmentos
artísticos. É o que chamamos de investimento social privado e que tem que
trabalhar em conjunto com o financiamento público. Porém, no Brasil, um dramático
quadro de desigualdade induz a maioria
do investimento privado para ações
relacionadas à pobreza e à exclusão
social e não ainda para a cultura.
Fraude - Atualmente, suas perspectivas quanto às ações do MinC durante o
governo Lula são muito céticas sobre
mudanças no financiamento da cultura.
Como se deu sua participação na
reformulação do sistema no início da
gestão do PT?
Sarkovas - No início do Governo Lula, não
eu, mas a Articultura foi chamada pela
SECOM (Secretaria de Comunicação do
Governo Federal) para fazer um trabalho
muito pontual de assessorá-la numa
normatização dos patrocínios das
estatais, buscando estabelecer alguns
princípios que pudessem servir como
norteadores de todos os patrocínios. O
que não significaria dizer o quê a Caixa, a
Petrobrás ou o Banco do Brasil deveriam
fazer, mas estabelecer alguns preceitos.
Por exemplo, os patrocínios deviam ser
organizados em programas, os programas deveriam ter cunho técnico, o acesso
deveria ser transparente, democrático...
Isso aconteceu porque em 1999, ainda no
governo FHC, a Articultura foi chamada
pela Petrobrás, na época em que o
monopólio do petróleo tinha sido quebrado e a empresa tinha que passar por um
forte processo de modernização, inclusive
na área de patrocínios, para poder
enfrentar um mercado em que ela não
seria mais a única empresa de petróleo
no país. A Petrobrás então não tinha
nenhuma percepção pública dos seus
patrocínios, investia R$100 mi por ano
em projetos e as pesquisas demonstravam que ninguém sabia que a Petrobrás
era patrocinadora. Nosso trabalho
mudou completamente a área de
patrocínio da Petrobrás, a percepção
pública dos patrocínios da empresa
cresceu enormemente. Hoje as
pesquisas mostram que o patrocínio nos
programas cultural, ambiental e
esportivo é um dos maiores fatores de
construção da marca Petrobrás.
Fraude - Por causa desse convite,
muita gente confundiu sua participação com uma forma de dirigismo da
SECOM, como se ela quisesse dessa
forma delimitar o patrocínio dessas
empresas..
Sarkovas - O fato de a SECOM ter nos
chamado assustou, e muito, as áreas
que tentam a todo custo manter a Lei do
Audiovisual no Brasil, porque acharam
que o fato da Articultura ter se aproximado do governo poderia por em risco essa
Lei que sabidamente é combatida por
mim e pela empresa. Então criaram,
fizeram um trabalho de “queimação
midiática”, um golpe aplicado pelo lobby
do Audiovisual em maio de 2003
tentando neutralizar a possibilidade da
Articultura ser ouvida em outras
questões além daquilo em que ela vinha
sendo ouvida.
Fraude - Nessa época você utilizou
em entrevista ao jornal O Globo o
conceito “Grito dos Incluídos”, para
falar desse apego à Lei do
Audiovisual pelos que são favorecidos por ela, numa época em que ser
incluído no país do assistencialismo
era quase um pecado. E hoje, os
incluídos continuam os mesmos?
Sarkovas - Eu jamais “fulanizo” essas
discussões por que é exatamente o jogo
que algumas dessas pessoas pretendem: transformar isso numa discussão
de pessoas, de nomes, e eu não tenho
nenhum interesse de fundo pessoal ou
profissional nesta discussão. Eu tenho
pensado muito no que faz com que
pessoas eventualmente se mobilizem
pela manutenção de um sistema de
financiamento que é evidentemente
perdulário, dissociado do interesse
público. Aí você encontra um grupo de
produtores, particularmente na área de
7
Fraude
Televisão
Entrevista
cinema, que foram responsáveis
pela própria promulgação da Lei
do Audiovisual e que tem
interesse na manutenção deste
mecanismo porque eles têm um
domínio direto dos canais de
acesso a esses recursos e temem
um sistema que seja distinto
desse. Mas não é só isso que
mantém essas leis em vigor.
O que de fato acaba
fazendo diferença é
que boa parte dos
profissionais da
área de cultura
desconhece
qualquer outro
mecanismo de
financiamento
público e acha
que se acabar o
incentivo fiscal não
há outra forma de
distribuir o dinheiro
público. Nesse estado
de ignorância eles são
facilmente atemorizados por
estes espantalhos de dirigismo,
mas, na verdade, não há como
você desenvolver uma política
pública sem estabelecer diretrizes.
Isso está longe de ser dirigismo,
uma política cultural é uma estratégia cultural pública. É a mesma
coisa de você chamar a política
pública de transportes ou de
segurança pública do país de
dirigismo. Isso é contar com a
ignorância alheia para gerar uma
paralisação e impossibilidade de
transformação nos mecanismos
que estão em vigor.
Fraude - A Articultura é uma
agência que se tornou referência no patrocínio empresarial
brasileiro, uma das primeiras
a lidar com o conceito de
marketing cultural quando
este ainda não era uma
realidade no Brasil, em
meados dos anos 80. Como
você vê o Marketing Cultural
hoje em dia no país?
Sarkovas - O marketing
cultural se desenvolveu
enormemente nestes últimos
20 anos, não só o Marketing
Cultural, mas todas as
formas de comunicação
empresarial que são
feitas por de”, que é
8
Fraude
meio de ações de interesse público. O
desenvolvimento do Marketing Cultural
não difere do desenvolvimento que
ocorreu no que nós, na Articultura,
chamamos de “comunicação por
atitude”, que é essa estratégia de uma
marca se associar a uma ação que
expresse os atributos que ela possui ou
deseja ter. Por que a publicidade é a
marca falando de si mesma. O patrocínio, em resumo, é a forma de uma marca
agir de acordo com o que ela, por meio
da publicidade, diz ser. Hoje, todas as
formas de comunicação por atitude, que
se encontram no campo social, esportivo, cultural e ambiental movimentam em
torno de US$ 27 bi no mundo. Isso não é
só o investimento no Marketing Cultural,
mas em todas as quatro áreas. Eu
estimo que o investimento aqui no Brasil,
estritamente no campo cultural, deva
estar beirando cerca de R$Um bi por
ano.
Fraude - Sua empresa nasceu,
coincidentemente, no mesmo ano em
que a Lei Sarney, o marco inicial no
que diz respeito ao financiamento
cultural brasileiro, hoje em dia
criticado por você. A Articultura
nunca trabalhou com Leis de
Incentivo no planejamento estratégico do patrocínio das diversas
empresas a que presta serviço?
Sarkovas - A Articultura foi responsável
pelos primeiros manuais sobre Leis de
Incentivo no Brasil e a Articultura sempre
na medida da necessidade dos projetos
seus, ou de seus clientes, usou e usa
normalmente Leis de Incentivo. O que a
Articultura nunca fez foi colocar Leis de
Incentivo como motivação para o
patrocínio empresarial. A Articultura
sempre colocou a Lei de Incentivo Fiscal
como um fator agregado a uma motivação de patrocínio empresarial, um
dispositivo que, eventualmente, pode
ser usado (mas que várias vezes não
precisa ser usado) para baratear uma
ação de patrocínio. Não para justificar
uma ação de patrocínio. E mesmo
assim, esse uso da Lei de Incentivo,
quando se deu pela Articultura foi
sempre pela modalidade da redução
parcial, o que de fato torna uma Lei de
Incentivo uma Lei de Incentivo. Agora,
na prática, se você for analisar o
currículo de mais de cento e poucos
projetos que a Articultura já desenvolveu
ao longo da sua história, você vai contar
nos dedos os que efetivamente
envolvem incentivo fiscal, não passam
de cinco, dez.
Fraude - Você acredita na validade de
eventos como Fórum Cultural
Mundial, em São Paulo, ou as discussões recentes sobre as modificações
nas Leis de Incentivo como meios de
mudar a forma como é encarada a
cultura no Brasil, pelas autoridades e
cidadãos?
Sarkovas - Essa movimentação em
torno da questão cultural tem que ser
vista com muito otimismo, como um sinal
bastante positivo, senão na agenda da
sociedade ou na agenda da política, pelo
menos na agenda da mídia.
Infelizmente, a cultura ainda não faz
parte da agenda política do país da
mesma forma que outros assuntos de
interesse público, e neste caso nós
temos que destacar muito a educação, já
fazem. Na verdade a grande beneficiada
do desenvolvimento cultural, que é a
sociedade em geral, tem um grau de
envolvimento e participação ainda muito
reduzido. Nós tivemos este ano muitos
episódios que levaram a colocar a
cultura no centro de alguma discussão
ou reflexão. Não só os eventos que você
citou. Tivemos também a discussão
organizada pelo ministério para debater
a Lei Rouanet, a revelação do relatório
de desenvolvimento humano mundial da
ONU, que deu uma ênfase extrema à
questão do desenvolvimento cultural.
Não é exatamente uma real democratização do debate em torno da cultura,
mas uma etapa inicial para o que um dia
poderá ser um envolvimento e preocupação verdadeiros de todos, dos cidadãos
e políticos, não apenas da mídia.
Programas de TV misturam
jornalismo, denuncismo e
assistencialismo. E acabam
misturando tudo na cabeça
do telespectador...
Ricardo Sangiovanni
[email protected]
T
odo dia meio-dia. Basta ligar a TV
para tomar a dose diária de realidade.
Tem espaço para a água que tá
faltando, para a cobrança indevida, a mãe
que perdeu o filho, o idoso que precisa de
remédio. Todo o mundo. E agora em vários
canais: Varela, Kertèsz, Gerdan... Resolvem
os problemas do povo? Que bom. Mas até
que ponto o jornalismo na TV deve assumir a
função de reclamadoria pública em forma de
tribuna popular? Como isto é feito hoje, na
Bahia?
Considerando algumas nuances um é
mais moderado aqui, o outro mais bravateiro
ali - dá pra juntar os três no mesmo bolo. No
mesmo samba do crioulo doido. E por falar
em samba...
É sempre o mesmo. As pessoas têm
problemas das mais diversas origens e
naturezas, mas passam muito longe das
soluções. Aliado à falta de informação da
população, o excesso de providências que
se tem que tomar para resolver problemas
simples acaba transformando qualquer
unha encravada num pandemônio. Ora,
nada melhor do que meter a boca no
trombone. Melhor: no microfone.
Centralizar as reclamações do cidadão
9
Fraude
Televisão
Televisão
comum e torná-las fato público é, sem
dúvida, uma saída eficaz é um instrumento
que o cidadão comum tem para fazer frente
ao Estado ou às grandes empresas. Além
do mais, se por um lado para uma empresa
ou órgão público pouco representa uma
queixa individual, por outro não é nada
cômodo ter seu nome na boca do Varela dia
após dia na TV...
Tudo isto seria muito bom - se fosse só
isso. No entanto, o que cresce por trás da
atitude de aparente caridade é sempre a
figura do apresentador. Uma espécie de
padrinho que aparece, no fim das contas,
como a melhor via de reclamação afinal,
entre procurar o poder público (e estacionar
nas suas congestionadas vias legais) e
procurar um microfone que espalhe sua
queixa por todo o estado, a segunda opção
acaba sendo a predileta do grande público.
Pode-se justificar esta escolha com um
motivo simples: quem fala quer ser ouvido.
E, às vezes, ser ouvido (ou pelo menos
parecer ser ouvido), ainda que por alguém
que tenha pouco poder para solucionar o
problema, vale mais do que gritar no ouvido
de quem manda de verdade e nunca ouve
nada. A maior parte dos problemas levados
ao ar por estes programas não são da
alçada da imprensa: quem não tem água
deveria mandar reclamação para a
Embasa. Quem teve o pneu furado no
buraco da rua, ou foi assaltado, ou comprou
10
Fraude
um computador e não recebeu não
deveria procurar a TV como última e
salvadora instância para seus problemas.
No entanto, o enorme vão comunicacional
que existe entre o poder público e o
cidadão precisa ser ocupado se o Estado
é lento, e muitas vezes pouco se incomoda
com os impasses pontuais do inconveniente Zé-povinho, este por sua vez tem
cada vez mais motivos para reclamar.
Simular tribunas públicas é um excelente
artifício que a TV usa pra ocupar este
espaço. A falta de comunicação entre
governantes e governados inviabiliza a
execução da democracia de fato: o que
ocupa este posto é uma espécie de
“mediocracia”, a democracia mediada (se
é que isto é possível), em que o mediador
tem mais importância do que as partes
envolvidas. A TV no caso, seus personagens se alimenta dos farrapos das partes
envolvidas. E acaba saindo por cima.
Não que se esteja buscando colocar a
TV na posição de bode expiatório. Muito
pelo contrário: no caso dos programas
estilo tribuna popular, trata-se de um uso
do meio de comunicação para preencher
uma carência social. Que não se estabeleça o velho maniqueísmo e todo mundo
passe a odiar o Varela do dia para a noite
qualquer comportamento vem de um
movimento gradual da história, e só
acontece embasado por uma prática, algo
Para a turma um pouco mais
comedida - e com sérias restrições de memória - , Mário Kertèsz
faz bem o tipo gentleman. Nada
de gente mal-vestida chorando
migalhas na telinha. No Jogo
Aberto a coisa é mais clean.
Mário, como é carinhosamente
tratado por seu público e equipe
de estúdio, bem que poderia ser
chamado de “Grande Oráculo da
Democracia” - afinal, tem sempre
na ponta da língua um bom
conselho para o telespectador
desamparado. Em meio a
piadinhas (um tanto quanto
passadas) ele sabe sempre a
quem recorrer nos momentos
difíceis e volta-e-meia explica
como funciona o poder público,
com ares de quem conhece bem
a cozinha. O programa segue à
risca a máxima do “aqui tem
nível”, pra ninguém entalar com o
almoço na boca... E o Mário se
transforma, sem que se
perceba, em Super Mário. Sem
cogumelo nem nada.
Mas quem não gosta de muita
frescura pára mesmo é no Varela. O
grandalhão mete a mão na mesa,
chama todo mundo de maluco e
resolve tudo em dois tempos. Será
que resolve mesmo? Pelo sim ou
pelo não, todo dia tem gente na tela
pra fazer denúncia. Por e-mail ou fax
vale também: nada mais unilateral e
anti-jornalístico: bastou falar mal do
patrão que vai pro ar. O cidadão tem
o direito de reclamar? Tem sim. E o
jornalismo tem, por sua vez, o dever
de procurar informações, ouvir quem
está envolvido no caso, mesmo que
esteja errado, antes de sair por aí
mandando bravatas em suma,
apurar. Mas isto muitas vezes é
detalhe na conta do Varela. Afinal, o
volume de reclamações, denúncias
e problemas é muito maior do que o
tempo que se tem para apurar uma a
que se estabelece como um modode-fazer coletivo através do tempo.
Portanto, se há culpa, ela não é só da TV.
A TV é oportunista, sim. Mas o governo é
negligente, inacessível. Ingovernável. E
a população é, infelizmente, ignorante e
não burra. Eis a santíssima trindade.
O que se pode criticar, enfim, é o lado
absurdo da coisa: ora, como pode a TV, e
toda a mídia de massa em muitos casos,
assumir uma função que exige enorme
responsabilidade social (uns diriam
abnegação), e estar ao mesmo tempo
atrelada à lógica da audiência e do
mercado? Qual o critério de relevância?
Solucionar todos os problemas ou botar
no ar os que dão imagens mais escabrosas? Ajudar as pessoas ou fazer o maior
número delas se comover na frente da
TV? Talvez valha a pena olhar a nossa TV
de meio-dia com olhos menos
cristãos...
uma. A solução: mete tudo no ar pra
ver no que é que dá.
Na trilha do Varelão aparece o
novato (e no mínimo estranho) Gerdan.
Este não está nem aí pra almoço coisa
nenhuma. Seu Aqui Agora é, de longe, o
mais trash de todos. A começar pelo
martelo de madeira com que o apresentador golpeia, impiedosamente, a sua
mesa. Nada mais sugestivo do que o
tradicional símbolo da justiça. É com
ele que Gerdan intim(id)a políticos,
donos de empresas e demais poderosos, seguindo um estilo muito semelhante ao de Varela. Com uma diferença: além de bater na mesa e soltar os
cachorros pra cima dos poderosos, o
apresentador arranja benefícios para
personagens necessitados, como
tratamento e remédio pra as pessoas
através de empresários de 'bom
coração'... E ainda faz anúncio ao vivo
(de produtos como o anti-frieiras e
micoses Micosina! Não tem hora
melhor...).
Mário, o clean - O Jogo Aberto, dentre os programas estilo
tribuna popular, é o que tem o aspecto mais profissional: é o
mais “quase-global” entre os três. A começar pela apresentadora que fica elegantemente sentada, lendo os e-mails e, às
vezes, contracenando com Kertèsz. Este, também sempre
elegante, apresenta o programa bem descontraído, andando
pelo estúdio. A decoração predominantemente branca e azul
retrata pontos turísticos da cidade: farol e praias principalmente. Tudo muito limpo, muito claro. Uma pretensa aproximação
com o padrão Globo de qualidade é visível - porém sem a
mesma neurose dos apóstolos de Roberto Marinho. Mas fica o
distanciamento: a construção do programa evidencia a
preocupação em atingir um público mais elitizado, que não
curte pancadas na mesa... Lobo em pele de cordeiro, ou coisa
do tipo.
Varela, o mandão - O Balanço Geral é um tanto quanto
estático. Não tem esta história de caminhar pelo estúdio. É uma
câmera no Varela, outra no entrevistado. O cenário, cheio de
figuras de pessoas carentes, sob um efeito daqueles de Adobe
Photoshop, se encarrega de avisar que ali não é lugar para
frescura. É preto no branco ou melhor: cinza no marrom (que
beleza de combinação!). E pronto. Afinal, Varela tem mais o que
fazer: não bastando apresentar o show e bater com a mão na
mesa, o apresentador ainda se mete a dirigir o programa! Isso
mesmo: não raro é possível pegar Varela dando umas boas
broncas nos câmeras e equipe de produção, seja por um
enquadramento mal feito, ou por uma imagem que ele pediu pra
ficar no ar e algum “engraçadinho” tirou. Vai entender...
Gerdan, o... - O negócio do Gerdan é meter o martelo na mesa e
ficar soltando uns proverbiozinhos de autoria desconhecida. De
resto, não tem muito mistério não. É o velho “eu-saio-andando-eo-câmera-que-se-vire-pra-me-acompanhar, típico da escola
capitaneada pelo Ratinho.
De modo nem sempre muito sutil, nossos
apresentadores-porretões desacreditam cada
vez mais o poder público, e, por tabela, as
instituições da nossa combalida democracia.
Talvez não sem razão, mas certamente de
maneira arrogante e irresponsável.
A razão: não raro a indignação nos toma
conta e o país parece condenado a um eterno
caos. Nada funciona como deveria - nem
saúde, nem educação, nem habitação, nem
nada.
A arrogância: também não raro, o time dos
porretões passa por cima dos representantes
públicos e verdadeiros encarregados pelas
soluções dos problemas do grande público.
Quase todo dia ouve-se o bordão: “Para quê
procurar o poder público, se a gente sabe que
ele não faz nada? A gente resolve é aqui
mesmo”. Não bastando isto, distribuem
intimações: “Mostra o microfone para ele... Vai
ter que se explicar!”. Demagogia pura: ou você
já viu algum desses apresentadores
atacarem os políticos durante as entrevistas do mesmo modo que brigam quando
eles não estão lá?
A irresponsabilidade: esvaziar o poder
público. Afinal, discutir, argumentar e
cobrar soluções é um direito. Não é direito,
entretanto, esvaziar a importância do
Estado. A máxima do “a gente resolve aqui
mesmo” é uma propaganda enganosa e
extremamente perigosa para a democracia. É o temido espírito da “igualdade
extrema”, diria o Barão de Montesquieu,
em que o sujeito não se considera igual ao
outro somente como cidadão, “mas
também como juiz, como pai, como marido,
como senhor”. Ou seja: se alguém pode
mandar, eu também posso. E se ninguém
resolve, eu vou lá e dou o meu jeito. Agora
imagina se todo mundo resolve sair por aí
mandando a mão na mesa e arrotando
valentia?
11
Fraude
Televisão
N
Televisão
os ares da MTV desde 2000, inicialmente
perambulando entre a programação na forma de
vinhetas que narravam as aventuras de dois
malandros típicos das chanchadas brasileiras, o programa semanal Hermes e Renato vem se consolidando como
a grande novidade no gênero humorístico televisivo.
Amados e odiados na mesma intensidade, H e R
divide opiniões entre os admiradores do humor televisivo:
para alguns não passa de mera banalidade feita por um
bando sem criatividade nem qualquer talento para a coisa;
para outros são fantásticos inovadores do gênero
humorístico televisivo. Inovadores sim! Mas seria um
equívoco afirmar que são fundadores de um formato de
humor na Tv. No ar entre 88 e 90 na Tv Globo, voltando
rapidamente, em 92, a Tv Pirata, programa humorístico
dirigido por Guel Arraes, foi fundador de um formato
humorístico que satirizava a própria Tv, com quadros que
parodiavam desde novelas até telejornais, passando pelo
cinema e pela cena musical. Beirando o non-sense em
certa medida, a Tv Pirata contava com a participação de
grandes atores como Diogo Vilela, Marisa Orth e Marco
Nanini, além de ótimos redatores do gênero, como
Fernando Veríssimo. Também na década de 90 surge o
programa Casseta & Planeta Urgente que definiu um
formato, a princípio, com influências da Tv Pirata (já que
quase todos integrantes do Casseta foram redatores da
Tv Pirata), mas se consolidou mesmo com uma variedade
de quadros de entrevistas aleatórias em locais públicos ou
dentro dos estúdios da Tv Globo (sempre com um clima
de “pegadinhas”), personagens próprios, críticas políticas
com pitadas de humor, intercalando com paródias a
novelas, telejornais e outros programas da Tv Globo. O
Casseta & Planeta se diferencia da Tv Pirata principalmente por não ter a mesma pretensão cênica nas
representações e cenários. Fazendo uma comparação de formatos, Hermes e Renato, sem
sombra de dúvida, se vale dessas estruturas
para compor o seu programa.
E qual a Novidade?
A diferença é a abordagem. Nunca na Tv brasileira tantos
temas trash´s com abordagens tão cruas foram levados ao ar.
Antes da MTV, nenhuma emissora brasileira deixou de lado
tabus e moralismos, abrindo espaço para um grupo tratar
satírica e explicitamente de situações constrangedoras muito
comuns, como em “Merda Acontece”. Neste quadro o próprio
vilão, o Cocô, apresenta um programa em que personagens
narram seriamente (como em programas de entrevista que
pretendem ser sérios, mas tratam de temas tão banais quanto)
os momentos de um dia em que aquela indisposição intestinal
ocorre no meio da rua ou em plena mesa de jantar da casa do
chefe. Ou ainda de um sujeito que, sem emprego, arranjou um
bico para se vestir de coelho e vender ovos de páscoa, mas
como a fome acaba apertando e sua marmita ficou esquecida
em casa, a única saída é devorar todos os chocolates, debaixo
de um forte sol. Não podia deixar de ser, como o próprio
apresentador, o Cocô “em pessoa”, narra: “O cara comeu
tanto chocolate na páscoa... que o caldinho desceu... ah
desceu...”.
O figurino usado, a locação, os cenários, os diálogos, os
enquadramentos, os movimentos de câmera e a luz remetem
a uma produção de vídeo amador dos mais toscos, mas
classificá-los como amadores e atribuir essas aparentes
deficiências a uma incapacidade do grupo é um equívoco.
Com um olhar mais preciso e menos preconceituoso é
possível enxergar que este sempre foi o efeito pretendido, é a
aposta do programa. O amadorismo é estrategicamente
simulado e existe uma preocupação estética, talvez até
minuciosa, nos detalhes da composição
de uma cena ou sequência. Isso é
notável mesmo quando o grupo
era independente e produzia
pequenos episódios
parodiando personagens
da pornô chanchada. A
prova desta preocupa-
Camilo O. Aggio
[email protected]
12
Fraude
Explicitamente escrachado, escatológico e
amador,o humor de
Hermes e Renato pode oferecer algo mais
- e até exigir um certo
conhecimento para sua apreciação.
chanchada. A prova
desta preocupação pode ser
dada fazendo-se algumas
comparações a grupos recentes
que tentam fazer um humor na
mesma linha, alguns destes até
disponibilizam vídeos para downloads na
internet usando o nome Hermes e Renato. A diferença é
nítida, os episódios destes grupos possuem uma
desarmonia completa, com enquadramentos mal feitos,
edições sofríveis, textos e atuações mal encaixadas,
figurinos e cenários em um conflito insuportável. Uma
completa desarmonia: doloroso compreender, difícil
fazer rir.
Hermes e Renato incorpora na sua estética um
conjunto de influências da Cultura Pop que vão desde Zé
do Caixão, filmes B da década de 80 como O Massacre
da Serra Elétrica, a estética da chanchada brasileira até
programas televisivos como O Homem do Sapato
Branco e Aqui e Agora. Aparentemente não há qualquer
restrição por parte da emissora, que permite que
programas das concorrentes sejam parodiados. A lista é
extensa e vai desde paródias ao programa do Padre
Quevedo, onde um sujeito semi-analfabeto com jargões
na ponta da língua tenta provar ao padre que é filho do
capeta: “Eu sois o filho do capeta, seu padre”, “Eu vim das
mais profundeza do inferno, de onde você nem imagina
que eu tenha vindo” ou “Eu vim botá o filho dos ôtro na
maconha, cheirar maconha, fumar cocaína, essas coisa
caótica”, instaurando no programa um combate de
ofensas hilário entre o padre e o “suposto filho do capeta
“, cada um com suas convicções. Para quem não
acompanhou o quadro original do Padre Quevedo e
alguns episódios específicos, dificilmente encontrará
algo cômico. De forma muito semelhante pode-se
observar quadros como o Programa Cláudio Ricardo,
que parodia programas de auditório em geral, mais
na Redetv. Neste ponto é interessante
observar que Hermes e Renato, em
determinados quadros, deixa de ser paródia e
passa a reproduzir os absurdos de determinados programas da Tv brasileira, evidenciando
certos níveis de conteúdo das nossas mídias.
Retornando a paródia, seria um pecado deixar de citar a
banda Massacration, que tomou vida fora do programa,
atualmente fazendo shows e dando entrevistas, mas que
se originou de uma brincadeira com o clichês musicais e
videoclípticos do mundo metaleiro. Conceitualmente
falando, a paródia pressupõe o conhecimento do que está
sendo parodiado, mas Hermes e Renato leva esta relação
às últimas conseqüências. Detalhes mínimos de comportamentos, situações, músicas, roupas, cenários, diálogos de
um filme, um programa, um comercial, são inseridos muito
discretamente nos quadros, exigindo do telespectador um
conhecimento maior das referências que ali estão sendo
feitas.
Hermes e Renato é um tipo de humor que necessita do
conhecimento das referências para ser fruído ou mesmo
criticado. Pode parecer exagero à primeira vista, mas é
fundamental apreciar este programa com um olhar mais
apurado e analítico, mesmo que despretensiosamente.
Longa vida a 'caoticidade' de Hermes e Renato.
Exatamente. Caótico por excelência. Talvez essa seja
a melhor forma de se definir o trabalho dos cinco cariocas
de Petrópolis que integram o grupo. Abrindo um parêntese:
caótico, não no sentido literal de grande desordem,
inteligibilidade, confusão que pode resultar em um não
entendimento, uma impossibilidade interpretativa. Mas
sim, caótico como sugerido pelos criadores do H e R, como
um feito demasiadamente amador, “amadoresco”, tosco,
ou mesmo como uma catacrese salvadora usada por seus
personagens em determinadas situações de falta argumentativa.
13
Fraude
Música
Música
A
ssim como as águas barrentas e vermelhas que
enchiam o Rio Camarujipe são hoje um esgoto a céu
aberto, o Rio Vermelho está se esgotando. A mudança é
visível para qualquer um que passar pelo trecho dos bares em
busca de uma boa noite de diversão: das inúmeras casas de
show de algum tempo atrás,
apenas uma ainda funciona. Mal
das pernas, o bairro que nunca
dormia vai pra cama às duas e
quem se arrisca a permanecer até
as quatro fica a ver navios - ou
barquinhos pescando.
Carregando a fama de
“bairro boêmio”, em algum
momento da história o Rio
Vermelho começou a ter sua
imagem atrelada à do rock baiano.
Acompanhando a nascente cena
roqueira, durante as décadas de 80
e 90 muitas casas passaram a
oferecer shows ao vivo. Neste
período dezenas de bares abriram e
fecharam as portas, como o Saint
Louis, Chico Louco, Anexo, Café &
Cultura, Idearium, Santana/Havana
hoje todos finados. Cristiano Macchi,
músico que há oito anos freqüenta e
toca no Rio Vermelho resume a situação:
“De oito a sete anos atrás foi o auge
desses lugares, que estavam sempre
lotados e sempre com bandas
tocando. Hoje as casas de show estão
fechando, tem reduzido também o
número das pessoas que freqüentam”.
Se levarmos em conta que as bandas
de rock da Bahia não vivem um momento de
baixa significativa, não podemos tomar isso
como a causa da decadência. Então, o que terá
acontecido?
Problemas
Danilo Fraga e Lívia Nery
[email protected]
[email protected]
14
Fraude
Em busca da resposta para esse enigma,
entrevistamos diversos frequentadores, músicos e
donos de bar. Depois de um trabalho árduo de
levantamento e cruzamento de dados, chegamos a
algumas conclusões. Um dos problemas mais levantados é
o preço da cerveja e do acarajé. Para Kahyru Pontel, músico e
frequentador (será que existe alguém que frequenta os bares
do Rio Vermelho que não toque?) “os bares só vendem cerveja
long neck e por um preço abusivo”. Reclamação válida.
Imaginemos um camarada que não sofra de distúrbios alcoólicos e
que vá assistir um show no Rio Vermelho. Se esse nosso
personagem fictício consumir durante uma noite 5
garrafas de cerveja (long neck) e 2 acarajés, sua conta não
saí por menos de 20 reais, isso sem contar couvert e outras
despesas. Jean-Claude Wolpert, que administrou o Café
Calypso por mais de sete anos, defende o preço cobrado pela
cerveja em seu bar R$ 2,70 cada long neck. Segundo ele,
seus custos são mais altos que outros bares. “Num bar
equivalente em São Paulo, a cerveja custa no mínimo cinco
reais”. Um outro comerciante, mais satisfeito, mais sincero e
mais tímido (não quis se identificar), discorda: “lá onde eu
moro eu compro uma cerveja por R$ 1,80, aqui ela vale R$
3,00. Como é que não lucra?”
Jean-Claude vai além, dizendo que em Salvador,
apesar dos mais de 2 milhões de habitantes, poucas pessoas
saem à noite principalmente durante a semana o que torna
difícil oferecer música ao vivo sempre e cobrar menos pela
cerveja. “Talvez existam bares demais para pouca gente,
especialmente no Rio Vermelho”, completa. O pouco poder
aquisitivo do público é uma causa para o esvaziamento do
local, mas outros fatores são destacados. Freqüentadores
confessam cansar de encontrar sempre as mesmas pessoas
e assistir às mesmas bandas, muitas delas tocando covers,
apenas. Para Khayru, que já tocou muito no lugar, tem público
sim, principalmente em se tratando de rock. “O que falta pra
gente voltar aquelas épocas que já foram legais é fazer uma
articulação maior, entre donos de bar, o comércio, bandas,
todos os participantes”. A falta de inovação e criatividade por
parte das casas de show foi bastante apontada como uma
deficiência deste setor que implica na falta de público. Há
anos, porém, tem sido assim.
As casas de show sempre se organizaram da seguinte
forma: recebem a banda no seu espaço e repassam a ela
uma parte do couvert. A banda arca com despesas como
divulgação e parte da aparelhagem. “A gente tem que arriscar
se as pessoas vêm ou não”, desabafa Macchi. Durante muito
tempo os bares vêm ficando marcados por bandas e público
fixos, ou seja, músicos que tocam na quinta servem como
público para as bandas de sábado, e vice versa. Mas, nos
últimos anos parece ter havido uma mudança no perfil das
bandas e de rock em salvador. Segundo o professor Jeder
Jannoti - que está lançando o livro Heavy Metal com Dendê,
sobre a cena metálica de Salvador “o rock que era tocado
nos bares do Rio Vermelho está em baixa. O público está
mais jovem e a forma de consumo mudou, isso acontece de
tempos em tempos".
O ciclo das cheias do rio
Isso pode indicar, enfim, que esta é a dinâmica do Rio
vermelho. Assim como muitos rios, o Rio Vermelho deve estar
passando por um período de esvaziamento, parte de seu
ciclo natural que em breve resultará numa nova cheia. Para o
Jannoti “essa ciclicidade é comum na maioria dos bairros
boêmios. O próprio Rio Vermelho já havia passado por uma
situação parecida no final dos anos 80”. Essa posição é
partilhada também pelo freqüentador Solovera: “a vida
musical no bairro não dura muito, apenas três, quatro anos,
no máximo.” Segundo ele, isso que está acontecendo agora
também já foi visto antes. “O rio vermelho vai, cresce, tem um
movimento da porra e aí pluft, todo mundo some. Daqui a
pouco volta a encher novamente”. Durante o intervalo, novas
bandas que antes se escondiam em suas garagens vão
mostrando as
caras, para em seguida
voltar a tocar nos bares com seus
novos proprietários e reanimar a vida
cultural do bairro.
Um exemplo de novo
fôlego no ramo de casas de
show é o Nhô Caldos.
Primeiramente uma mera
casa que vendia cerveja e
petiscos (o caldo nunca foi
seu ponto forte), há três
meses, o Nhô Caldos
resolveu colocar música ao
vivo, tocada por bandas de rock, sem cobrar
couvert ou entrada. “Por as bandas não
acharem espaços para tocar, terminam
querendo se apresentar de qualquer forma, e
com isso não se importam em tocar por um
valor baixo. Dá condição para o dono de bar
oferecer o espaço a eles e não cobrar
couvert.”, conta Rodrigo, proprietário do Nhô
Caldos. Ele diz destinar 10% da vendagem
para as bandas, o que por sua vez não
confere com os músicos. Eles afirmam
não receber a gratificação e tocam de
graça.
Para Rodrigo, ocorre um
pouco de falta de
criativi
dade por parte dos
proprietários de bares.
Segundo ele, “quando abrirem de fato
um bar, os donos devem dar mais
liberdade às pessoas que freqüentam e
mudar quando não estiver dando
certo”. Defensor da não-cobrança de
couvert, ele garante que com a vendagem
de cerveja e refrigerante já dá pra sair
ganhando. Da mesma forma, outros
espaços para shows apareceram, como é o
caso da loja de CDs São Rock e do Teatro
do Sesi, que de tempos em tempos é palco
de shows de rock. Talvez com a
implantação do Bahia Azul, o Rio Vermelho
volte a prosperar. Assim esperamos.
15
Fraude
Música
Música
Ctrl+AltRock
O tempo não pára.
Imagem do R.E.M nos
anos oitenta: Uma das
bandas da época
apontadas como
college rock.
n
[email protected]
R
ock alternativo. Quantas vezes o
leitor da Fraude já se deparou com
este termo? Seria apenas tudo
aquilo que não está na grande mídia, no
mainstream? E quando um grupo alternativo atinge o sucesso no mainstream, ele
deixou de fazer rock alternativo? Buscar as
primeiras vezes que este termo foi
utilizado, falar das primeiras bandas que
tiveram a alcunha de “alternativas” ou
daquelas que conseguiram estourar
comercialmente, pode ser uma saída para
a resposta destas questões. Mas qual a
utilidade disto? Nenhuma. Assim como
99,99% das coisas que fazem parte do
mundo pop. A mesma de saber que os
Beach Boys gastaram 4320 minutos para
gravarem apenas uma música, Good
Vibrations, que já foi considerada o melhor
single de todos os tempos ou que Lobão é
o autor do nome Blitz, quando era baterista
da banda até antes dela assinar seu
primeiro contrato com uma gravadora.
Parafraseando o Nick Hornby, um dos
maiores ícones da literatura pop inglesa
contemporânea, somos fúteis porque
gostamos do mundo pop ou gostamos do
mundo pop porque somos fúteis?
também vistos como college rock - o
rock que fazia sucesso principalmente
entre os universitários. Diversos estilos
que estavam nascendo na época (New
Wave*, Synth Pop*, Pos Punk*, dentre
outros) acabaram sendo marcados como
rock alternativo. Mesmo parecendo tão
distintos, estes grupos vieram da mesma
raiz: o punk do final dos anos setenta.
Apesar de não obterem grande
sucesso comercial, essas bandas tiveram
êxito através de outro tipo de status: como
grandes influências para as gerações
seguintes do rock. Por isso, na metade dos
anos oitenta, começaram a surgir bandas
como Pixies e Jesus and Mary Chain, que
já são uma espécie de filhos da primeira
geração do alt rock. Assim, o rock alternativo, que também seria chamado de indie*,
principalmente na Inglaterra, começa a se
estabelecer como gênero musical e
ganhar um público maior, mas nada
comparado ao que iria acontecer no início
dos anos noventa, nos EUA, com um sub
estilo do rock alternativo: o Grunge.
O início do alt rock
Início dos anos oitenta. Começam a
surgir nos EUA uma série de bandas que
fazem um estilo de rock que não se
adequava a nenhum dos gêneros em voga
no mainstream, surgindo o dito rock
alternativo. Ignoradas pelas rádios
comerciais e principais gravadoras,
bandas como REM, Hüsker Dü e Sonic
Youth, foram achar seu espaço nas rádios
universitárias americanas, fazendo com
que parte dos grupos do alt rock, principalmente aqueles que flertavam com
melodias mais próximas do pop, fossem
16
Fraude
Anos noventa: quando o alternativo se
torna mainstream
Talvez o primeiro indício que o cenário
alternativo estava entrando no mainstream
foi através do lançamento do disco
“Daydream Nation”, do Sonic Youth. “Não
foi o R.E.M., não foram os Pixies nem o
próprio Sonic Youth. Foi Daydream Nation
o primeiro a destruir todos os conceitos
entre mainstream e underground,
comercial e artístico, punk e pop”. Esta
frase, dita por Krist Novoselic, baixista do
Nirvana, pode sintetizar a importância
deste álbum. Difícil definir em que estilo se
encaixa uma música como “Teenage Riot”,
faixa de abertura de “Daydream Nation”. O
estrago já estava feito, não tinha mais
volta...
O reconhecimento da crítica e o
relativo sucesso de público dos Pixies,
além do contrato milionário que o R.E.M
assinou com a Warner, rendendo hits
como “The One I Love” e “Losing My
Religion”, abriram de vez as portas das
rádios americanas para o rock alternativo.
A partir daí, todo o mundo sabe o que
aconteceu com o estouro do Nirvana e seu
“Nevermind”. O grunge e o cenário
alternativo americano tomaram de assalto
as rádios e, principalmente, a MTV.
Bandas como Mudhoney, Dinosaur Jr.,
Pearl Jam, dentre outras, além do próprio
Sonic Youth, entraram em alta rotação na
Music Television. Surgia, então, a questão.
Afinal, agora o que será alternativo, já que
o alternativo virou o som da moda?
Indie, Britpop e Shoegazing: os
sons alternativos da terra da rainha.
Kraftwerk: Os alemães pais da música eletrônica
contemporânea, que ainda continuam na ativa
emocionando a todos com seu som inovador, como
na sua última passagem no Brasil em Novembro no
Tim Festival.
Não havia dúvida que nessa época o
rock americano estava dominando o
cenário mundial. Os grupos ingleses como
My Bloody Valentine, Stone Roses e
Happy Mondays, conseguiam ter sucesso
em casa, mas não repetiam o mesmo êxito
na América. Os shoegazers (termo em
inglês que se refere ao comportamento
destas bandas nos shows, que tocavam
“olhando para os próprios pés”) tiveram
vida curta, devido ao fracasso comercial ou
a instabilidade de muitas das bandas.
Como na época, o alternativo remetia
principalmente ao grunge americano, cada
vez mais se passou a usar o termo Indie,
principalmente para as bandas advindas
da Grã-Betanha. O Indie Rock inglês logo
ganhou uma cara própria, deixando de
lado os vocais tímidos emersos entre
muralhas de guitarras, típicas das bandas
shoegazers, abrindo espaço para o
Britpop, que assim como o grunge, ganhou
a grande mídia através de bandas como
Oasis, Blur, Radiohead, The Verve,
Placebo, dentre outras. Agora, para onde
poderiam correr os alternativos, ou indies,
já que tudo que outrora era alternativo
estava agora nas rádios, nas grandes
lojas de discos, nos grandes festivais?
Frank Zappa uma vez disse a
seguinte frase: “O Mainstream vem
atrás de você, mas você tem de ir ao
underground”. Ser alternativo é mais
do que uma questão de exposição
midiática, vendas de discos ou assinar
com grandes gravadoras. Está nas suas
raízes, na forma como se lida com a
indústria musical. Ser independente é
muito mais do que gravar um disco com
prensagem de 500 cópias, em uma
minúscula gravadora. Por isso, caro leitor,
a saída para o rock não está no alternativo
e sim no autêntico, no sentido “faça você
mesmo”. Não que com isso seja necessário que todos sejam originais, mas, sim,
que façam algo legítimo, não fruto de
estilos pré-moldados. Afinal, It's Only Rock
'n' Roll but We like it!
Crias do Britpop:
Brian Molko(ao centro) e os integrantes da sua banda,
Placebo. Sua androgenia ficou tão famosa que David
Bowie, o ser mais andrógeno da música pop, o chama
de “a filha que eu nunca tive”.
Que gracinha!
O quarteto inglês Blur homenageando o Blondie,
uma da mais importantes bandas da cena new
wave americana junto com o Talking Heads.
Destaque para Damon Albarn, vocalista do Blur e
sua interpretação “não caio do salto” de Debbie
Harry, vocalista do Blondie.
Alguns termos...
Joy Division: Apenas dois albuns
lançados: fim prematuro com o
suicídio do vocalista Ian Curtis.
Lucas Cunha
*Indie - O termo é uma forma diminuta da palavra independente
e se refere àqueles artistas que criam seus trabalhos sem um apoio
comercial mais forte, seja por um grande estúdio de cinema ou por
uma gravadora de discos. Apesar de ser muito usado como um
sinônimo de alternativo, seu uso na música, principalmente depois
do “boom” do grunge, voltou-se para aqueles artistas que tem suas
carreiras mais ligadas ao cenário underground e gravadoras
independentes.
*New Wave - O termo “new wave” (nova onda) nada mais foi do
que uma jogada de marketing de Seymour Stein (que inspirou a
canção “Seymour Stein” do grupo escocês Belle and Sebastian),
dono da Wire Records, gravadora que lançou artistas como
Ramones, Smiths, Madonna e Talking Heads. Seymour havia
acabado de contratar algumas das bandas, como o Talking Heads,
que costumavam tocar no CBGB's, famosa casa do cenário
alternativo americano, e precisava retirar o rótulo punk
destes grupos, taxado pelas rádios americanas como um
modismo. Vendo uma similaridade entre este movimento
e a Nouvelle vague do cinema francês, cunhou termo
“New Wave”, pois as bandas da “nova onda” eram
experimentais e faziam parte de uma geração que
eram consumidores críticos da arte que
agora estavam produzindo, assim como
os cineastas da Nouvelle Vague.
*Synth Pop - Como o nome já diz, é um
estilo de rock em que os sintetizadores
Thom Yorke:
predominam. Teve um maior número de
o vocalista do
Radiohead, maior
grupos europeus, principalmente ingleses.
unanimidade do rock
Kraftwerk, Depeche Mode e Erasure são
alternativo
alguns dos exemplos mais famosos.
contemporâneo.
*Pós Punk - São grupos que surgiram
após a explosão punk, em 1978, na
Inglaterra. Fortemente influenciados pelo
Punk, estes grupos já seguem uma linha
mais experimental. Hüsker Dü, Gang of
Four e Joy Division são boas amostras da
importância do Pós Punk.
17
Fraude
Mídia
Música
E
N
os últimos anos, têm surgido em Salvador algumas
bandas que, influenciadas pelo manguebeat, têm
como característica principal a mistura da música
pop com elementos, digamos assim, “de raiz”. Esse tipo de
Danilo Fraga
rock com batuque, que vamos chamar aqui Afro-Rock, ocupa [email protected]
cada vez mais os espaços culturais de Salvador. Fazem parte
os mesmos signos de baianidade da axé-music - temas
desse balaio bandas como Navio Negreiro, a extinta O
como negritude e sensualidade tem papel de destaque em
Cumbuca, Nêgo Veio (ex-Ataraxia e ex-Mano Veio),
ambos.
Lampirônicos, Zambotronic, entre outras. Todas elas
Porém, na construção da “baianidade nagô” - pra tomar o
misturam o rock com alguma outra coisa, seja essa “coisa”
termo emprestado do axé - feita por essas bandas, alguns
afoxés, samba, reggae, baião ou maracatu. Essa preocupapontos podem ser questionados. O tema do resgate da
ção, que data do tropicalismo, permeia toda a história do rock
cultura negra é complicado. A África é um continente
nacional e reaparece de tempos em tempos. Não sei se por
gigantesco, com diversas etnias, culturas e, como não
sorte ou por azar, ela resolveu reaparecer por agora na Bahia.
poderia deixar de ser diferente, com diversos tipos de música.
Um aspecto interessante na construção de identidade
Resumir toda música africana à presença de uma percussão,
feita por essas bandas seria o resgate das raízes negras do
ou alguns dreadlocks, na banda é, no mínimo, empobrecedopovo baiano esquecidas em favor de uma falsa baianidade
ra. Na verdade, parece que o termo afro entra aí como um
vendida pela axé-music. Como se pode ler no release da
slogan, uma garantia de autenticidade. Ao mesmo tempo em
banda Navio Negreiro, "De volta à Bahia, reencontraram
que essas bandas anunciam o resgate da cultura negra,
antigos parceiros e fundaram não apenas uma banda, mas
repetem sem saber séculos de cultura musical européia o
uma comunidade de músicos, um neoquilombo musical, raiz
que é expresso na utilização do sistema tonal europeu, do
sólida da cultura negra brasileira, concebida para atuar
formato canção e de performances tipicamente “brancas” (ao
independente das limitações e restrições impostas pelo
contrário da maior parte da música africana que tem na
mercado cultural oficial". Frases parecidas podem ser
improvisação seu principal elemento).
encontradas no release das bandas Nêgo Véio e
Talvez eu esteja colocando problemas em coisas
Lampirônicos, além de entrevistas e matérias sobre outras
relativamente simples. Mas, a simples possibilidade de
bandas.
alguém achar que está resgatando alguma raiz cultural em
De fato, na música popular, é comum que o discurso de
sábados regados a cervejas e maconha me assusta. Onde
quer que esteja nossa raiz, não me parece tão simples, ou
autenticidade de uma forma musical se dê a partir da
mesmo possível e desejável, encontrá-la. O que existe na
desvalorização de uma outra - a axé-music é vilã em 9,8 entre
verdade é um misto de frankfurtianismo inconsciente e mito
10 grupos de “roqueiros” de Salvador. Porém, me espanta a
ferocidade com que essas bandas se dirigem ao ritmo das
do bom selvagem, onde o índio e principalmente o negro
morenas (e loirinhas) rebolantes. Ao contrário de outros sub(mesmo os mulçumanos malês que não batucavam e nem
gêneros do rock, a identidade do afro-rock é construída sob
dançavam) figuram como nossa verdadeira raiz cultural.
18
Fraude
Camilla Costa
[email protected]
ra uma vez a mídia. Ela foi criada para
ser um fórum público de discussão,
para manter as pessoas informadas
sobre o mundo ao seu redor e para vigiar o
poder. Durante muito tempo ela teve uma
existência tranqüila, entre boas ações e atos
irresponsáveis que lhe concederam grande
poder dentro da sociedade. Tempos atrás,
alguns já haviam percebido que a mídia não
era tão confiável assim. Mas um belo dia
perceberam que poderiam se organizar para
monitorá-la. Foi assim que surgiram os
vigilantes da mídia, os observatórios de
imprensa.
Na verdade, a idéia de criticar o modo
como se seleciona e veicula notícias pelos
meios de comunicação no mundo nasceu de
uma discussão mais ampla sobre os ideais
democráticos das sociedades ocidentais. A
criação do cargo de “ombudsman” para
Monitorar a
mídia agora virou
moda no brasil.
Ainda bem.
19
Fraude
Mídia
empresas
jornalísticas nos Estados
Unidos, nos anos 60, foi um dos primeiros reflexos desta
discussão. Ombudsman é um termo sueco que, em
português, ganhou a tradução de “ouvidor”. Concebido
como um cargo de governo, o ouvidor em linhas gerais
deve representar o cidadão, receber as reclamações, críticas e
sugestões do público e encaminhá-las à instituição que
representa. Nos jornais, o ombudsman deve ainda redigir uma
crítica de circulação interna e outra a ser publicada no jornal,
baseada em suas observações sobre a cobertura do veículo e
na comparação dele com os principais concorrentes.
deve exercer o controle sobre os meios de comunicação. Será então que o público brasileiro mudou?
O Brasil teve momentos específicos de contestação da grande mídia, geralmente ligados a eventos
políticos maiores. Afinal, mídia e poder estão sempre
conectados. Nos Estados Unidos e Europa, momentos como
estes acabaram gerando organizações como a Media Watch,
criada em 1984 com o objetivo de monitorar o uso de
estereótipos e imagens preconceituosas na mídia. O projeto
é um dos primeiros e mais antigos a se beneficiar com a
popularização da internet. Do lado de cá, as primeiras
iniciativas de crítica da mídia após a abertura política nos
anos 80, vieram da Igreja Católica que criou o projeto Leitura
Crítica da Comunicação.
Em 1996, o jornalista Alberto Dines funda o
Observatório da Imprensa, na UNICAMP. Dines já havia
sido responsável pela primeira coluna de análise da
mídia no país - o Jornal dos Jornais - na Folha de São
Mídia
No Brasil, o primeiro e durante
muitos anos único cargo de ombudsman
em empresa jornalística foi o do jornal Folha de
São Paulo, criado em 1989. Desde então, outros
jornais têm incluído tais profissionais em sua folha de
pagamento. Recentemente, o Brasil ganhou o seu primeiro
ombudsman televisivo, o jornalista Osvaldo Martins, que
ocupará o cargo na TV Cultura. Para Martins, “o ombudsman não é um crítico de TV, mas alguém que deve vê-la
com olhos de telespectador comum”.
Vigiar e Punir
O “telespectador comum” brasileiro ou público de
meios de comunicação em geral, é freqüentemente
descrito como passivo e de postura pouco crítica em
relação a estes meios. No entanto, o país assiste hoje a um
movimento crescente de “vigilância e
democratização da imprensa”, que
começa com a proliferação de
websites sobre o tema e culmina com
a mais recente tentativa do governo federal
de criar o Conselho Federal de Jornalismo,
que reacendeu o debate sobre até onde se
Paulo, na década de 70. Nos últimos anos, o
número de projetos como este e o alcance
dos mesmos aumentou consideravelmente. Como exemplo, podemos citar a revista Imprensa, uma
das primeiras publicações de crítica à mídia (não filiadas
diretamente a facções políticas) do Brasil. Criada há cerca
de 17 anos e publicada até hoje, a revista nunca teve grande
projeção. Hoje, além da circulação impressa, há uma edição
eletrônica - o Portal Imprensa que está oficialmente na rota dos
internautas interessados no assunto.
20
ww
(o w1.
mb fo
ud lha
o
ww bser sm .uo
an l.c
w w w va
da om
w. .ca tori
Fo .br
n
o
uo
lh /fo
l.c alda .ulti
om
im mo a de lha/
o
s
pr
.b
en egu SP) mbu
r/i
m
n
s
ds
a
do
pr
.c
ma
en
.
n
sa om.b ig.co
m.
(r e
r
br
vis
ta
Im
pr
en
sa
)
Panopticon
A trajetória do Observatório da Imprensa merece
Enquanto os alguns críticos procuram
tratar a mídia de maneira mais técnica e
apartidária, como é o caso do Observatório
da Imprensa, outros assumem uma postura
política mais clara. Na Internet, são numerosos os sites que se propõem a denunciar o
complô da mídia em favor de um ou outro
grupo politico. No Brasil, os dois principais
exemplos desse tipo de mídia engajada são
os sites Midia Sem Máscara (www.midiasemmascara.com.br) e o Centro de Mídia
Independente (www.midiaindependente.org
). O site Mídia sem Máscara, que completou
três anos de existência neste ano, é
capitaneado pelo polêmico filósofo antiDanilo Fraga comunista Olavo de Carvalho e reúne textos
[email protected] que tratam de temas que vão desde a defesa
Fraude
atenção especial. O site, desenvolvido a
partir do LABJOR (Laboratório de Estudos
Avançados em Jornalismo) na UNICAMP, tornou-se
rapidamente a principal referência em crítica da cultura
midiática no país e foi transformado até em programa na TV
Cultura. Criado para ser um fórum de discussão para a
sociedade sobre o comportamento da mídia, o
Observatório deu visibilidade a outros tantos sites
do gênero, como o Canal da Imprensa, o Mídia
Sem Máscara e o Centro de Mídia Independente (veja
Box), além do portal Comunique-se, que têm os mesmos
objetivos. Segundo Alberto Dines, editor-chefe do
Observatório da Imprensa, “estamos aprendendo a
observar a imprensa, e isto coloca o Brasil na vanguarda da
democratização da mídia”.
Talvez pela aura de independência e imparcialidade
q u e ostenta, o Observatório tenha alcançado tanto
prestígio junto aos leitores. A organização dos
assuntos favorece esta impressão: desde
assuntos polêmicos em geral, passando por
críticas às coberturas sensacionalistas, comentários sobre o conteúdo das faculdades de jornalismo, crítica de TV, publicação das críticas dos
do liberalismo econômico até o suposto
“controle esquerdista” da mídia nacional.
Defensor do ideário liberal e cristão, Olavo de
Carvalho escreve pérolas como: “Na grande mídia
brasileira não existe jornalismo nenhum. Existe
apenas manipulação a serviço da esquerda”.
Já o Centro de Mídia Independente faz parte
de uma rede internacional que armazena e
difunde notícias publicadas por produtores
independentes a Indymedia, criada em 1999 para
divulgar os protestos anti-globalização durante o
encontro da Organização Mundial do Comércio
(OMC), na cidade americana de Seattle. No
Brasil, o site é resultado de uma rede que
congrega coletivos de voluntários já estabelecidos
em 10 cidades.
As semelhanças entre os dois sites são
muitas, a começar pela forma como eles se
descrevem. Se de um lado o Mídia sem Máscara é
“destinado a publicar as idéias e notícias que são
sistematicamente escondidas, desprezadas ou
distorcidas em virtude do viés esquerdista da grande
mídia brasileira”, de outro, o “CMI Brasil quer dar
voz aos que não têm voz constituindo uma alternativa consistente à mídia empresarial que frequentemente distorce fatos e apresenta interpretações de
acordo com os interesses dos ricos e dos poderosos”. Como dois times de futebol, os partidários de
cada lado têm uma relação de ódio recíproco. Para
Olavo de Carvalho, “O CMI é uma ONG milionária,
com escritórios em mais de uma centena de países,
empenhada em fazer propaganda contra os EUA e
Israel, exatamente na linha de milhares de sites
nazistas e comunistas, e que ainda tem o desplante
principais ombudsmen, brasileiros e estrangeiros.
Desde textos de estudantes até contribuições de
profissionais renomados. No Observatório da Imprensa,
feito no molde dos observatórios europeus e americanos, parece existir espaço para todas as discussões e
todos os interlocutores.
É interessante notar, no entanto, o aspecto que
diferencia a crítica da mídia feita no Brasil e a feita
no exterior. Em outros países, muitas das
organizações de monitoramento da mídia surgem
e se fortalecem na sociedade civil organizada, na
esteira de movimentos sociais que envolvam
protestos e debates públicos. Por aqui isso não
acontece. Por incrível que pareça, no Brasil os novos
algozes da mídia são os seus próprios profissionais.
Os principais websites nacionais surgiram dentro
das faculdades de comunicação, onde há um interesse
bastante específico em discutir a mídia. A
maioria destas iniciativas, ainda que de
rápido crescimento, como o Observatório da
Imprensa, são pouco de jornalismo e
populares e o próprio fato de
este crescimento ter acontecido
através da internet, ferramenta ainda
pouco acessível para a maioria da população, é
sintomático. No mesmo Observatório, a maioria dos
artigos é escrita por estudantes de jornalismo e
profissionais da área. Para Elias Machado, professor e coordenador do Grupo de Pesquisa em
Jornalismo Online da Universidade Federal da
Bahia, “deveríamos estar preocupados em garantir a
incorporação da crítica dos meios como um
componente essencial à formação cultural de todo o
cidadão”.
Sem dúvida, democratizar a mídia
passa por democratizar a discussão
sobre ela. Talvez ainda seja muito cedo
para nos colocarmos na vanguarda do
processo. Ainda há muito para vigiar.
de chamar de 'fascista' quem tome posição
contrária à sua”. Na verdade, “fascista” é o
adjetivo mais generoso utilizado para falar de
Olavo de Carvalho em ambientes mais à esquera.
Para Roberto Venturini, colaborador assíduo do
CMI, “Olavo Carvalho é o pastor dos reacionários
de plantão, os quais são desprovidos de inteligência e a favor de medidas totalitarias e fascistas.
Aliás, Olavo é um típico racista neo-liberal e
pseudo-intelectual”.
Nesses tempos em que a crítica ideológica
dos meios de comunicação está tão em voga,
gostaria de explicar meu título. Ele foi escolhido
apenas por um trocadilho barato, não tem
nenhuma carga ideológica.
21
Fraude
Rádio
Rádio
C
hiado, barulho, sintonia ruim... Paciência para achar
uma freqüência que dê para escutar. Estudiosos do
rádio dizem que as emissoras AM valem mais pelo
que já representaram e não por sua atual resistência perante
as rádios FM. Mas afinal, o que se tem para ouvir no mundo
das ondas de Amplitude Média? Nos últimos anos, ouvir
rádio, até mesmo as FM's tem sido um costume cada vez
mais raro nas grandes cidades: CD's, MP3 e rádios on-line,
pouco a pouco vão conquistando seu público. Então, o que
dizer da AM?
Uma polêmica envolve o surgimento do rádio no Brasil.
Oficialmente, é considerada a Rádio Sociedade do Rio de
Janeiro a primeira do país, em 1923, mas existem provas de
que a Rádio Clube de Pernambuco já fazia transmissões
quatro anos antes. De lá para cá, o meio radiofônico cresceu,
ganhou e perdeu importância entre a s m í d i a s ,
acompanhou, não homogeneamente, os avanços tecnológicos e passou
a fazer parte da rotina de muitos.
Enquanto as emissoras de car[ater mais
comercial (FM), ganharam audiência e conquistaram a massa, as rádios AM passaram por um processo de
desvalorização que acarretou em desemprego de funcionários, falta de interesse de anunciantes e conseqüente venda
para grupos religiosos.
Na Bahia, presenciamos o fenômeno da “evangelização”
da rádio AM. Rádio Novo Tempo, Rádio Cruzeiro da Bahia,
Rádio Igreja Religião de Deus... essas são algumas das que
ocuparam o espaço, por exemplo, das extintas Rádio Bahia,
Rádio Comercial e Rádio Clube. A programação consiste
basicamente na “pregação da palavra” e inclui blocos
“jornalísticos” (em uma das rádios, podemos ouvir a leitura
das manchetes dos principais jornais do dia com a músicatema do filme Missão Impossível ao fundo) e até rádio
novela. Os ouvintes participam avidamente escolhendo
músicas e participando de enquetes, como as comandadas
pelo locutor do programa TicTac Musical (Novo Tempo),
Gabriel Oliveira. Entre os vários assuntos debatidos, é
possível opinar em temas como “Um jovem consegue
conhecer 100% seu parceiro já no namoro?” ou “A pena de
morte ajudaria a diminuir a violência no país?”
Um estudo realizado pelas pesquisadoras Lucina
Miranda Costa, Fabiana Gomes de Souza e Cristiana Karine
Cardoso, da Universidade Federal do Pará, entitulado “Em
nome de Deus: as ondas radiofônicas louvam cada vez mais
ao Senhor”, revela que o rádio, tendo um grande poder de
penetração e com um custo mais acessível, se comparado à
TV, é o principal veículo utilizado para divulgar o evangelho. O
grande número de emissoras religiosas só comprova o
próprio crescimento das igrejas, seja na ampliação do
número de templos, seja na criação de novas denominações
religiosas.
Jonicael Cedraz, Professor de Radiojornalismo da
Universidade Federal da Bahia, afirma que o rádio AM se
transformou em um espaço de disputa entre grupos religiosos. “O fenômeno religioso tomou conta das rádios AM em
Salvador, desde os anos 90, transformando essa mídia
também em um espaço para políticos cativarem votos”, diz o
professor. O jornalismo praticado por essas rádios, de acordo
com Cedraz, tem seu conteúdo modelado a partir das
22
Fraude
esportivas. “Ouço a rádio AM porque a programação dela
se destina a uma faixa de público diferente e é mais direcionada para a área esportiva, relegada na maioria das rádios FM”,
conclui Agnelo.
Programas como o Balanço Geral (da Rádio Sociedade
da Bahia, apresentado por Raimundo Varela e Armando
Mariane), que se colocam como alternativas para solucionar
os problemas da população carente da cidade, também
atraem muitos ouvintes. É a D. Gildete, moradora do Alto do
Coqueirinho, que precisa de uma cadeira de rodas e liga para
a rádio pedindo ajuda ou Seu Antônio, de Dias D´Ávila,
solicitando que 'orelhões' sejam instalados na rua em que ele
mora. “Esse tipo de programa se aproveita do fato da população carente ter sido educada para buscar amparo no político e
na religião. Mas isso não é fazer uma rádio popular, mas
popularesca, que trabalha no demagógico”, critica o professor
Cedraz. No entanto, não se pode negar que esses tipos de
programas fazem sucesso, principalmente nos bairros
populares.
Os locutores de rádios AM utilizam muitas estratégias pel
para se aproximarem do ouvinte e daí garantir sua
fidelidade. Não é raro um locutor passar até mais de cinco
minutos apenas distribuindo beijos e abraços para os “cumpadis” e as “cumadis”, sem esquecer de mandar “aquele alô” para
o seu Zé da barbearia e à dona Rita do açougue. Tudo isso
proporciona uma sensação de comunidade, diminuindo a
distância entre quem fala e quem ouve, atraindo um público
que encontra nessas rádios uma chance de falar de seus
problemas, pedir ajuda e conselhos. Tudo isso colabora para
que a rádio AM deixe de ser vista apenas como um tipo de
mídia 'quase extinta'. Excluída, sim, das grandes mídias, mas
com visibilidade e importância garantida em determinados
grupos sociais, principalmente os de baixa renda. Daí ser
necessário acompanhar o desenvolvimento dessas rádios e
discutir seu papel na sociedade.
mediações que cada emissora tem com a religião.
Já Marcelo Carvalho, jornalista e apresentador do
programa Papo Cabeça, na Rádio Cultura, fala em um
preconceito com relação às rádios AM. “Quando se fala em
AM, só se pensa em missa, pregação e futebol, mas podemos encontrar também programas com entrevistas, informação e variedades”, confirma. Segundo Marcelo, a Rádio
Cultura, a Sociedade da Bahia e a Excelsior são as únicas
AM que ainda mantêm uma programação não só religiosa. “O
fato da Cultura pertencer a um grupo católico não influi na
grade comercial tanto que podemos abordar todos os
assuntos e trazer pessoas de vários segmentos, sem
nenhuma restrição”, relata o jornalista.
Quem ouve AM?
Vivian Barbosa
[email protected]
E a aceitação do público? Quem sintoniza em rádios AM?
Segundo pesquisas de audiência, pessoas com mais de 30
anos, das classes C, D e E são as que mais participam dos
programas, ligando e falando ao vivo, durante a programação. “O ouvinte não liga para a rádio só interessado em
ganhar prêmios, eles querem opinar e dialogar. Querem
conteúdo e é isso que tentamos oferecer: bate-papos
inteligentes”, afirma Marcelo Carvalho. Mas a maior audiência é mesmo durante os programas esportivos, principalmente nas narrações ao vivo de jogos de futebol. Agnelo Novas,
50 anos, é um dos fiéis ouvintes das resenhas e transmissões
Evangelização nas ondas de amplitude média...
23
Fraude
Televisão
N
o mês de dezembro, reportagens
especiais e vinhetas devem começar
a circular na TV Globo anunciando
as comemorações pelo 100º aniversário de
nascimento de Roberto Marinho. O criador da
Rede Globo de Televisão, que morreu há
pouco mais de um ano, foi um dos grandes
empreendedores do ramo da comunicação
em todo o mundo. "Dr. Roberto", como
costumava ser tratado, misturou imprensa e
política com interesses pessoais e hoje é
lembrado entre o ódio e a admiração dos
brasileiros.
Nesse universo dos "grandes
comunicadores", já tivemos muitos ícones na
história do Brasil. Para que Roberto Marinho
se tornasse o todo-poderoso, ele precisou
passar por cima de outro magnata, dono do
maior conglomerado de empresas
jornalísticas de até então, com 36 jornais, 34
estações de rádios, 19 tevês, 18 revistas e
duas agências de notícias: Assis
Chateaubriand. Por sua vez, para alcançar
prestígio, "Chatô" usou de suas principais
armas - a pena e a tinta - para desmoralizar
seu opositor e concorrente Samuel Wainer. O
próprio Roberto Marinho não escapou de ter
problemas em seu império quando Senor
Abravanel (leia-se Sílvio Santos) ganhou
popularidade e conquistou, pouco a pouco,
emissoras de TV e credibilidade.
Intrigas, batalhas declaradas, acordos
ilegais... tudo isso com uma pitada de senso
de humor e a tranqüilidade de quem nunca
enfrentará problemas porque "tem o poder
nas mãos". Assim viveram esses homens
que se cobriam com a fachada do "amor pela
comunicação". Mas não seria sede de poder?
Ou amor ao dinheiro? Os livros, filmes,
vídeos documentários e sites que contam a
vida de cada um desses personagens tentam
resolver essa questão, mas costumam dar
mais ênfase sempre a um lado, pintando-os
ora como heróis, ora como bandidos.
A principal biografia de Chateaubriand foi
publicada em 1994 e escrita pelo jornalista
Fernando Morais. Uma das raras exceções,
Chatô: o rei do Brasil, a vida de Assis
Chateaubriand (Companhia das letras. 732
págs), consegue fugir do maniqueísmo ao
mostrar um Chatô polêmico, entusiasta e
capaz de cometer crimes para garantir sua
influência, mas envolvido com tudo que se
passava em suas empresas, sempre
escrevendo em seus jornais e buscando
trazer inovações técnicas para o país. Nem
as excentricidades de um apaixonado por
mulheres e pela arte escaparam de ser
detalhadas no livro. A criação da primeira
emissora de TV da América do Sul, em 1950,
a TV Tupi, foi o maior feito de Chateaubriand,
que morreu dezoito anos depois, mergulhado
24
Fraude
Televisão
em dívidas que começavam a destruir seu
patrimônio e cresciam ao mesmo passo que a
TV Globo.
Os direitos autorais do livro de Morais
foram comprados pelo ator e "cineasta"
Guilherme Fontes, que desde 1998 está
dirigindo o filme Chatô, em meio à tramitação
de processos judiciais e acusações sobre mau
uso de verbas. Apenas em abril deste ano, as
filmagens, suspensas desde 1999, foram
retomadas e as últimas cenas do filme
começaram a ser rodadas, mas ainda sem
prazo para estréia. Fontes idealizou um
ambicioso projeto que conseguiu captar R$ 8,5
milhões através de leis de incentivo à cultura,
mas foi só com a ajuda da BR Distribuidora e
da Riofilme que o filme pôde voltar a ser
rodado. O orçamento total de Chatô será de R$
12 milhões, tornando-se o mais caro longametragem da história do cinema brasileiro.
Se nomes de tanta importância atraem o
público quando falamos bem, imagina quando
revelamos seus podres? Seguindo essa
lógica, o que não falta no mercado são
publicações que "desmascaram", por
exemplo, Roberto Marinho. Romero da
Costa Machado, trabalhou 10 anos nas
Organizações Globo e publicou dois
livros: Afundação Roberto Marinho (Ed.
Tchê!, 266 págs) e Afundação Roberto
Marinho 2 - uma biografia de corrupção
(Ed. Meus Caros Amigos, 164 págs).
Ligações da Globo com o jogo do bicho,
a fraude do PapaTudo, transações em
dólares ilegais, entre outras acusações de
irregularidades são reveladas, servindo
como combustível para sites especializados
em pregar o ódio à Rede Globo. Muitos deles
chegaram a festejar a morte de Roberto
Marinho, que na realidade, já tinha morrido
várias vezes antes em boatos divulgados via email.
Ainda mais polêmico e até hoje um
verdadeiro mistério, é o documentário Beyond
Citizen Kane (Além do Cidadão Kane), dirigido
por Simon Hartog e realizado pela produtora
independente Large Door Ltda, em 1992. O
vídeo foi exibido pelo Channel 4, de Londres,
no dia 10 de maio de 1993 e contava a história
da televisão no Brasil, focando a vida do
empresário Roberto Marinho e a TV Globo. As
fitas chegaram ao país e viraram uma atração
clandestina, apresentando temas que iam
desde o acordo ilegal da Globo com a TimeLife até a intervenção nas eleições de
1989, disputadas entre Collor e Lula,
incluindo o escândalo da edição do
debate entre os candidatos, que teria
ocorrido por ordens do presidente da
emissora. Depoimentos de Chico Buarque,
Leonel Brizola, entre outros, dão um tom
irônico ao documentário. As fitas foram s pelo
Roberto Marinho
Assis Chateaubriand
Fundador da
Rede Globo
Fundador da TV Tupi
Chatôs,
Marinhos e
Abravanéis... A
coroa de “Rei
do Brasil” já
passou de
cabeça em
cabeça... Mas
onde ela vai
parar?
Sílvio Santos
dono do SBT
confiscadas pelo então governador de São
Paulo, Luiz Antônio Fleury Filho e um livro que
transcreve o vídeo foi lançado mais tarde por
Geraldo de Anhaia Mello. No entanto, a cópia do
DVD "Além do Cidadão Kane" podia ser
comprada pela bagatela de R$ 5,00 em uma
manifestação organizada pelo Centro de Mídia
Independente, que ocorreu no dia 18 de outubro,
na Av. Jornalista Roberto Marinho, zona sul de
São Paulo. O movimento teve como lema a luta
pela democratização da mídia, ideal julgado
pelos manifestantes como comprometido pela
TV Globo.
A grande expectativa, porém, está voltada
para a publicação da biografia oficial de Roberto
Marinho. Quando você estiver lendo esta
matéria, o livro lançado para as comemorações
do centenário de nascimento do patriarca global,
já estará nas livrarias de todo país. O escolhido
pela própria família Marinho para escrevê-la foi o
jornalista Pedro Bial, que em entrevista ao
"Programa do Jô", no mês de novembro, contou
detalhes do processo de criação da obra,
inclusive sobre os documentos a que teve
acesso sobre a vida particular do empresário.
Até a senhora Lily Marinho, última das três
esposas, ingressou no fantástico mundo
editorial. O livro Roberto e Lily, lançado
recentemente, revela seu relacionamento
amoroso com o imortal jornalista (que foi
membro da Academia Brasileira de Letras com
um único libro publicado).Toda a renda obtida
com a venda deste livro será destinada à
Pastoral da Criança.
Quem quer dinheiro?
Sem Assis Chateaubriand ou Roberto
Marinho, Sílvio Santos - que ficou em terceiro
lugar em uma pesquisa feita pela Revista Istoé,
que perguntou quem foi o maior comunicador do
século XX - parece agora ter a coroa do Brasil. A
sua história já é muito conhecida: um camelô
que começou a fazer fortuna vendendo portatítulos nas ruas do Centro do Rio de
Vivian Barbosa Janeiro e que transformava
amigos em sócios,
[email protected]
investindo em negócios
praticamente falidos (como
o Baú da Felicidade) e
correndo o país atrás de
clientes. Em 1966, já
comandava os domingos na
Rede Globo (!). Dez anos se
passaram para que o "Peru que
Fala" , como era conhecido,
tivesse a concessão da TVS e
saísse da TV Globo para conquistar
sua fatia do mercado. Diferente de
outros grandes comunicadores, que
não gostavam de aparecer, ele é figura
permanente na telinha. Seus programas
dominicais marcaram a história como o Qual
é a música?, Topa tudo por dinheiro e o Show de
Calouros.
Com um jeito bem irreverente, Sílvio Santos
briga pela audiência: "É um filme muito bom, um
filme a que eu já assisti várias vezes. Mas podem
ver a novela. Esse filme só vai começar depois
que a novela acabar", falava no ar, durante seus
programas. Atualmente, os maiores
investimentos têm sido feitos na compra de
direitos pela exibição de filmes e seriados.
Contratos milionários com a Warner Bros.
garantiram, por exemplo, a trilogia "O Senhor
dos Anéis" e o seriado "Friends", além de picos
no primeiro lugar na audiência, abalando,
mesmo que "de leve", a estrutura imperial dos
Marinho.
No livro A Fantástica História de Silvio
Santos (Editora do Brasil, 278 págs), escrito pelo
amigo e ex-assessor Arlindo Silva, Sílvio Santos
concede alguns depoimentos e revela as intrigas
com Roberto Marinho, como a vez em que o
dono das Organizações Globo, rompeu a
amizade com o então Presidente da República,
José Sarney, por acreditar que ele teria lançado
Silvio Santos como candidato à presidência pelo
PMDB. Na guerra para ser o número um no
IBOPE, Sílvio Santos não parece se preocupar
em ser original ou colocar no ar programas
"políticamente corretos". A Casa dos Artistas,
cópia mal-feita do sucesso global Big Brother
Brasil e o programa do Ratinho são prova da luta,
independente de com quais armas, para atrair o
grande público.
O que não se pode negar, em 'Chatô', 'Dr.
Roberto' ou 'Seu Sílvio' é que, seja em nome do
desenvolvimento do país, seja atrás de poder e
prestígio (e dinheiro também, por que não?), eles
trouxeram inovações no suporte e no conteúdo
da TV. Influenciaram mídias como a radiofônica,
a impressa e, recentemente, a Internet. A
Globo.com e a TV Globo Internacional
proporcionaram maior visibilidade no exterior à
programação nacional. Exportamos novelas
para diversos países, os programas jornalísticos
ganharam investimentos e estão entre os
melhores do mundo em qualidade.
Mas no final, como brasileiro tem memória
curta, servir de nomes para cidades, ruas e
museus será o destino e a forma de lembrar de
cada uma dessas figuras. E, é claro, através das
dezenas de livros, documentários, filmes e
reportagens que sempre serão produzidos por
alguém que queira imortalizá-los ou apenas
abocanhar seu pedaço em um mercado que
movimenta tanto dinheiro. Uma pergunta que, no
entanto, não quer calar é se teríamos hoje no
país alguma "(jovem) promessa" de sucessor de
Sílvio Santos, herdando sua coroa. Gugu
Liberato? Luciano Huck? Celso Portioli? Façam
suas apostas...
25
Fraude
Política
Q
uem sabe faz ao vivo. Quem
não sabe ensaia, grava de
qualquer jeito e manda pro ar.
E assim, entre o tosco e o mal feito,
cambaleia o nosso horário eleitoral
gratuito. Apenas mostrar a cara na tela
ou ler meia dúzia de jargões, não tem
sido suficiente, nos últimos anos, para
sair do anonimato, tampouco ganhar o
voto do eleitor. É nessas horas que a
criatividade aparece e quase sempre
estraga tudo.
Parece que de uma coisa os
candidatos tomaram consciência:
político na tv, de terno e gravata,
fazendo discurso de menos de 30
segundos, é tudo igual. Quem quer
ganhar eleição tem que se destacar
Política
Qualquer pessoa sensata concorda
com isto. No entanto, a coisa não pára
por aí. Condenar Milena e seguir
vivendo em paz é uma forma de
avalizarmos a proliferação do processo
eleitoral como ele está e, por conseqüência, de candidaturas de natureza
semelhante. Afinal, o povo condenou
também, na eleição passada, Ariane
Carla, a 'loira' que distribuía santinhos
de mini-saia em escolas e estádios,
estão lembrados? Pois ela voltou, se
candidatou novamente e se elegeu
desta vez. Será que mudou tanto, a
ponto de deixar de ser achincalhada e
Promessa é dívida?
Se um candidato promete, ele deve
ao menos tentar cumprir, correto? Em
tese, sim. No entanto, o que se instituiu na
prática é o extremo oposto. Maquiavel fez
uma leitura da vida política e os políticos
leram Maquiavel (será?). E o que reina é a
máxima do “Vale manter uma promessa
enquanto for interessante cumpri-la”. Ou
seja: promessas de campanha e nada
mais. Ou você assistiu o horário eleitoral
procurando alguém que falasse a
verdade?
O que ocupa o lugar da verdade se é
que algo tão relativo pode ter um lugar tão
cativo é a imagem. Pelo menos em
grande parte. Pouco importa se uma
seja. O convencimento, a adesão e a
conseqüente conquista do voto não se
justificam estritamente no corpo de
propostas ou do viés político do candidato
- não é estritamente racional, embora a
discussão política sempre caminhe pra
esse lado. Justificar uma opção eleitoral
levando em conta identificação imagética
com o candidato é visto quase sempre
como alienação política, comportamento
de massa ou desvario. Respeita-se pouco
esta indicação tão clara. Procura-se
sempre argumentos racionais para
atitudes que tem grande parcela de
passionalidade.
Ainda que pareça anti-político, a
construção da imagem do candidato, bem
como a relação de paixão que o eleitor
somente levando em conta bons
conjuntos de idéias, e tantos outros de
como as paixões contribuíram de
maneira decisiva para o sucesso ou
fracasso de muitas delas. Deve haver
alguma receita de moderação, um
equilíbrio entre a razão e as paixões mas ainda está bem escondida na
biblioteca de Babel.
O que isto tem a ver com o shortinho
da Milena? Ora, candidato a vereador
também é candidato. Só não tem
dinheiro nem tempo pra fazer uma
mega-campanha. Por isto eles fazem
assim, meio a facão, meio de qualquer
cupação educativa.
Descre
Campanhas feitas a Facão: A
imagem dos candidatos a vereador
compõe um bom retrato do modo
como nosso povo encara a política.
Ricardo Sangiovanni
[email protected]
de algum modo tem que cair na boca do
povo. Só não perceberam
que isto não é o mais difícil.
Cai-se na boca do povo por
qualquer maluquice que se resolva
fazer. Pintar a cara de vermelho, ficar
de costas na TV ou mostrar a bunda
são coisas que certamente dão o que
falar. E o que tem aparecido são
pérolas de humor com qualidade de
vídeo amador, no melhor estilo
Hermes e Renato. Se isto ganha
eleição por incrível que pareça é
outra história.
Exemplos tivemos aos montes. O
mais comentado deste ano é o da
candidata “Milena - Tudo pelo
esporte”. Preocupada com o esporte,
mas também com os taxistas, os
feirantes, os jovens e até com a cultura
chinesa, Milena foi candidata pelo
Prona, partido que escolheu por “se
preocupar com o social”. Ela cursa
Relações Internacionais e é católica.
Nada católico, entretanto, é o
shortinho com que despontou em
seus banners de campanha. Por
causa dele, e de suas curvas generosas, a candidata virou alvo da crítica
popular, que, quase sempre recalcada, conclui o óbvio: “esta mulher é
uma piada. Uma vergonha. Um
26
Fraude
merecer ser vereadora do município?
Que faz de errado, então, uma candidata
como Milena? Constitucionalmente, nada.
Ela se expressou livremente, usou as
armas que tinha em uma disputa aberta.
Não ofendeu a lei eleitoral, não cometeu
crime algum. Qual é o absurdo, então?
O absurdo talvez seja a noção de
política eleitoral. A coisa em si, da forma
como é concebida e feita. Estranho não é o
short da Milena ou o tom inverossímil de
suas propostas, mas a falta de atenção do
debate público sobre as eleições e a
completa banalização dos recursos que um
candidato tem para conquistar votos. Vale a
pena tratarmos de dois deles: primeiro suas
pretensões políticas, o que envolve suas
propostas de campanha, a verdade e
viabilidade que elas trazem; depois, e mais
importante talvez, sua imagem, sua
estratégia de convencimento, a sedução
que envolve qualquer relação humana e
que é quase sempre colocada em segundo
plano em se tratando da simplicidade de
um voto.
proposta de campanha é boa, ruim,
falida ou impossível. Quase sempre elas
são as mesmas, não importa o candidato.
O que pesa é a estratégia de construção
de imagem que difere a campanha A da B e
da C. O passe único para o ônibus que
César Borges propõe é diferente do de
João Henrique? É sim. Porque um arruma
o penteado diferente do outro, usam
determinados truquezinhos de câmera,
têm jingles diferentes. Mas, mais importante do que isso: eles são pessoas diferentes. Gastam uma grana com marqueteiros
e publicitários responsáveis não por
vender um “sonho”, como se diz por aí,
mas por aproximarem tanto quanto
possível o candidato do sonho do eleitor
mostrá-lo receptivo, simpático.
A publicidade eleitoral tem um papel
extremamente importante, muito valorizado em dinheiro, pouquíssimo na discussão
cotidiana: o de marcar a diferença,
delimitar as fronteiras entre pessoas,
grupos ou partidos (e não de 'definir a
eleição', como se criou o hábito de dizer).
Conclui-se que é impossível mostrar isto
ao grande público somente através de um
conjunto de propostas, por melhor que ele
tem com ela, são elementos fundamentais no jogo político. Deve-se constatar
isto sem nenhum pesar. É necessário que a
discussão política respeite e critique
também o comportamento dos políticos
em relação à mídia, o modo como
aparecem, o que tentam passar e de
que modo o fazem. O mesmo se
aplica ao comportamento do
eleitor: que tipo de aparência lhe
agrada e os porquês desta
satisfação, se há um
equilíbrio entre ideologia,
proposta e imagem do
candidato escolhido.
O desafio das nossas
rodas de bar é ir um pouco
além da aparência de “moralmente correto ou não”, do “lógico
ou não”, do “verdadeiro ou não” afinal, da
verdade também faz parte uma sensação.
Além de observar a atitude dos políticos,
cabe também problematizar a própria
atitude, de eleitor, de público: “por que isto
ou aquilo nos agrada? O que determinadas
estratégias e truques na construção de
uma imagem visam despertar em nós?
Qual o peso da imagem na difusão da
intenção e da idéia?”. Talvez seja uma
ferramenta indispensável para compreender porque a política é como é. A história
traz incontáveis exemplos de tentativas
frustradas de transformar o mundo
jeito. Põem em prática aquela idéia
mirabolante, da própria cabeça, ou que
foi sugestão da mulher ou do amigo.
Com pouca preocupação técnica ou com
a construção de uma imagem que vá
além do “Vote em mim”. E acabam
denunciando, do modo mais cômico
possível, nosso senso comum.
Resultado de uma história de sucessivo
esvaziamento das plataformas políticas,
refém de imagens construídas de modo
leviano, com pouquíssima ou nenhuma
preocupação educativa. Descrente das
idéias, desesperado para se destacar da
multidão. De qualquer jeito.
Artes
"E
co ss
co mo e m
c
Ca
a mo qu us
br ixão mu alq eu d
al
u
de de seu er o e tu
lix , t u do
M
o am tro é
el
o b
o
m
Ne u a ém reu us
r
n
q
to
ui po ido eu
vo de
.” s
er
@YahBeth Pon
oo.co
t
m.br e
Museu
de
tu d
o
Jo
ão
te
n
po
h
t
e
B
Fotos: Jônathas Araújo
A lista telefônica está para o telefone como o Google
para o computador. Mesmo antes de ouvirmos falar em
internet já possuíamos uma noção do que viria a ser um link.
A lista telefônica pode ser vista hoje em dia como um imenso
buscador, com links para tudo que interessa na cidade. Até
mesmo para o que não existe, se não com o auxílio da
imaginação.
Foi assim meu primeiro contato com o Museu do Objeto
Imaginário. Primeiro contato que, até pouco tempo, eu
acreditei também ser o último. Como um indicativo dado
pelo próprio nome, o Museu do Objeto Imaginário não foi
fácil de ser encontrado.
Um nome e um telefone na lista telefônica. Ao lado de
tantos museus comuns não havia como não prestar atenção
a este de nome intrigante. Contudo, o Museu do Objeto
Imaginário era um mistério. O número indicado na lista havia
mudado. Não havia registros no Dimus (Diretoria de
Museus), IPAC (Instituto do Patrimônio Artístico e Cultural da
Bahia), na Fundação Cultural do Estado ou mesmo na
memória de qualquer morador da suposta vizinhança. Nem
se quer havia um link no Google, o grande oráculo moderno.
Enquanto procurava por aquele que parecia não existir e
vendo confirmada cada vez mais minha ausência total de
tino jornalístico, me questionava: o que haveria em um
museu com este nome? Afinal, o que seria um objeto
imaginário?
A Imaginação do objeto
Imaginar, porém, é antes de mais nada brincar com as
possibilidades. E pensando desta maneira, dei-me por conta
que o Museu do Objeto Imaginário poderia ser uma
infinidade de coisas. Ou mesmo nenhuma. E tudo indicava
esta alternativa.
A Secretaria de Cultura do Estado indicou-me o contato
da Diretoria de Museus (DIMUS) e lá conversei com Antônia
Pinheiro, responsável pelo Setor de Documentação e
Pesquisa. Como já não bastasse nenhuma informação
sobre os número e o endereço que constavam na lista,
também lá não encontrei indício algum do tal museu. “Até de
30
Fraude
Artes
abertura ou funcionamento” explicou Antônia.
“Você já procurou a Bahiatursa? Se ela não souber
ninguém sabe....”.Era a resposta quase unânime dos
moradores e comerciantes do Centro Histórico. As
informações que lá encontrei foram as mesmas localizadas
na Lista, com exceção de um e-mail, que para nenhuma
surpresa minha, estava desativado.
Se o Museu do Objeto Imaginário insistia em não se
revelar, outros Museus do Objeto são hoje em dia bem
conhecidos. A grande maioria cuida da preservação de
objetos de valor enquanto parte da História de uma
sociedade, como o que acontece com objetos e utensílios
muito antigos ou pertencentes a personagens ilustres. Um
exemplo de museu com essa proposta é o belíssimo Museu
da Casa Brasileira, localizado em São Paulo. Uma outra
forma, ainda bastante recente, é em muito associada ao
design e tem na Instituição A CASA - Casa Museu do Objeto
Brasileiro um dos principais representantes. Mas meu objeto
procurado continuava apenas na imaginação.
mostras individuais, coletivas e salões de arte, no Brasil,
na Europa e nos Estados Unidos, onde viveu por alguns
anos. João retornou ao Brasil em novembro de 1996 para
expor uma de suas obras a convite de uma exposição no
Pelourinho e desde então se estabeleceu aqui em Salvador,
já com o desejo de criar o MOI.
Foi ainda na Europa que João Augusto começou a
desenvolver e produzir obras dentro deste movimento
chamado por ele de Objetivismo Imaginário, que consiste
basicamente na utilização dos mais variados objetos na
composição de obras de arte, de quadros a instalações
inteiras. Não se pode dizer que o uso de objetos em obras
seja algo novo, afinal podemos lembrar que no final do
século XIX e início do XX, artistas como Matisse, Picasso e
Braque chocavam a comunidade artística e a e sociedade
parisiense inserindo papelões, tesouras e outros objetos em
seus quadros.
E também não seria essa a primeira vez em que o objeto
do museu, para além da arte ou da história, seriam objetos
comuns, a princípio sem nenhuma pretensão ao status de
arte (sem contar, obviamente, com exceções como as da
famíla Stolarczyk, de Yorkshire, Inglaterra, famosa por seus
museus excêntricos, como da cenoura ou das torradeiras.)
E não se pode dizer que foi tudo responsabilidade de
Duchamp e seu mictório. Mas a proposta do Objetivismo
Imaginário de João Augusto tem seus próprios contornos e
particularidades, nascendo da recuperação e
aproveitamento de objetos rejeitados, abandonados e
condenados ao desaparecimento. “Tornei-me um 'objetista',
que trabalha com objetos industrializados e outros
confeccionados por mim” escreve João em carta a Solange
no ano de 1995. “Cada trabalho parece o decór de uma peça
de teatro, de uma ópera, onde tudo se harmoniza por mais
paradoxal que olhos imaturos e insensíveis possam
enxergar.”
Quando a proposta é utilizar-se dos objetos do dia-a-dia
para a confecção de obras, o que temos são possibilidades
infinitas, num jogo de análise combinatória cujo único fim é a
criação de novos olhares e o despertar da imaginação. Olhe
a seu redor. Quantos objetos você consegue visualizar?
Canetas, lápis, cadeiras, cds, brinquedos... Nada escapava
O Objeto do Museu
A resposta à minha pergunta começou a se delinear em
um bricabrac no final da Rua das Laranjeiras, no Centro
Histórico. Com a ajuda do dono, Pedro Ivo e do Sr. Jorge
Bandeira, do DIMUS, pude localizar dona Solange Cintra e
Maria, sua filha, que me contaram a respeito o Museu do
Objeto Imaginário e principalmente sobre seu fundador, João
Augusto de Moraes.
O artista plástico João Augusto nasceu em Salvador no
ano de 1933. Nos anos 50, ainda jovem, partiu para a
Europa, onde viveu por mais de 40 anos em diversos países.
(Na Itália, onde viveu em Roma, foi colega de Fellini e
aparece em um trecho de “Dolce Vita” vendendo suas obras
a Marcelo Mastroinani.) Lá conseguiu o que muitos poucos
conquistam aqui no Brasil: a possibilidade de viver de sua
arte. Seu currículo é bastante vasto, com cerca de 50
29
Fraude
Artigo
Artes
às criações de João Augusto que, no ano de 1994
escreve: “Diminuir a cegueira de grande parte dos indivíduos,
é também a tarefa do artista.” Era justamente isso que João
pretendia e alcançava com suas obras, criando sobre o que já
fora criado, fazendo nosso olhar e nossa imaginação
perderem-se nos detalhes e belezas dos objetos comuns, os
quais usamos e jogamos fora quase todos os dias.
Muito do Objetivismo Imaginário pode ser encontrado na
exposição “Les temples de la terre vagues” (Templos de
terras vagas), uma co-produção do Museu do Montparnasse
e que foi um dos destaques do 8º Festival de l'Imaginaire em
Paris, que aconteceu entre março e abril de 2004. O crítico
Gilbert Lascault, na apresentação da exposição, explica que
“todo trabalho é um santuário que venera fragmentos do
corpo social.” Estes fragmentos são os objetos, colecionados
do lixo, de sobras, de partes perdidas e freqüentemente
separadas do que já foi útil um dia, de destroços. “A
exposição dá uma segunda sorte a lixos. Os salva”, diz
Lascault, ou nas palavras do Objetivismo de João Augusto
“dá uma nova vida ao objeto rejeitado e condenado ao
desaparecimento”.
Ao ser questionada sobre a maior dificuldade que
enfrentam atualmente para por o Museu em funcionamento,
Solange e Maria são categóricas : dinheiro. 'Esperamos
contar com o apoio dos órgãos responsáveis pelo Patrimônio
Cultural do Estado para que a Fundação possa de fato
funcionar.' Diz Maria. 'E para isso é preciso poder dar a
manutenção necessária, pois você vê que aqui é um lugar
(um prédio no Centro Histórico cedido em 1997 pelo
IPAC) inadequado, um prédio antigo com umidade, cupins e
de difícil acesso.' A Fundação João Augusto de Moraes, da
qual o MOI faz parte, tem como proposta perpetuar o
objetivismo imaginário através das exposições no Museu e
de oficinas com crianças, ensinando-as, com a imaginação, a
criar seus próprios objetos.
João Augusto faleceu dia 28 de junho deste ano, aos 70
anos, sem poder ver o Museu do objeto Imaginário e a
Fundação que ganhou seu nome abertos. Infelizmente
nossos dias comprovam que a arte a imaginação, com sua
força e poder, superam muitas coisas, mas não ainda a falta
de recursos e de reconhecimento por parte da sociedade.
28
Fraude
E
O LUGAR DA MEMÓRIA
Não se fazem mais museus como antigamente...
Primeiramente foram os Museus de Arte Moderna que
deixaram de lado a necessidade de um passado histórico;
recentemente os museus virtuais que aboliram a necessidade de um espaço físico, e agora, aqueles que renegam a
necessidade mesmo da arte, do passado e do espaço. Esse
último é o caso do Museu da Pessoa.Net.
Um museu onde não predomina nem passado, nem arte,
nem arte do passado. O que há então? História. A missão do
Instituto Museu da Pessoa é o registro e conservação não
daquela representada por objetos artísticos e de uso do
passado, tal qual imaginamos encontrar em qualquer museu,
mas de histórias de vida. Sua premissa é a de que toda e
qualquer história de vida tem valor e deve ser preservada.
O Museu da Pessoa tem sua sede em São Paulo e
nasceu em 1991. Porém o maior salto veio com a criação, em
2001 do Instituto Museu da Pessoa.Net, que existe como
Organização da Sociedade Civil de Interesse Público
(OSCIP) com o objetivo de ampliar e divulgar a iniciativa do
Museu da Pessoa. A partir do instituto foi criado no ano
passado o Portal Museu da Pessoa.Net.
No Portal o internauta tem acesso ao acervo do Museu,
aos depoimentos (também em aúdio e em vídeo, como o do
educador Paulo Freire), fotos e demais registros dos
depoentes, além de poder também enviar sua história. Como
toda curadoria de museu, a organização do Instituto seleciona o que deve ou não fazer parte do acervo. Mas, normalmente, apenas não são publicadas aquelas que trazem qualquer
tipo de difamação a outras pessoas ou que contenham
relatos que preguem valores contrários à ideologia do Museu.
Outra restrição diz respeito à idade. Pessoas com menos de
12 anos não podem ter seus depoimentos publicados.
Hoje em dia, o Portal conta com 25 sites ligados ao
acervo do Museu da Pessoa. Net, alguns de iniciativa de
empresas privadas. Algumas empresas têm também
percebido que a memória é essencial para garantir a
identidade de uma instituição além de valorizar seus
trabalhadores.
Esta proposta do Instituto Museu da Pessoa.Net vai ao
encontro da corrente de estudos históricos chamada “História
das Mentalidades” que ao contrário da que conhecemos não
tenta reconstruir a história de sociedades e povos através dos
fatos, mas das mudanças de mentalidade e acredita que
histórias de vida podem ser uma das mais modernas formas
de se compreender a dinâmica social. O que o Museu da
Pessoa proporciona é também uma forma de compreender
melhor o Brasil, pelo retrato e relato daqueles que o constroem. E tudo indica que o que vai entrar num museu mesmo é
nosso conceito sobre eles...
ste é um tema para leitores de mais de 40 anos em
pânico diante da passagem do tempo e das
dificuldades para encontrar um novo e sólido
amor, mas serve também aos jovens precoces. Para
fornecer-lhes armar úteis nessa dura luta, verdadeira
guerra sem quartel, retomo “A Arte de amar”, de Ovídio,
clássico latino que, como se sabe, foi um dos primeiros
best-sellers da auto- ajuda e do consultório sentimental.
Se alguém pensa que inventamos os nossos clichês
amorosos e sobre as mulheres, sempre tão em voga,
melhor tirar o cavalinho da chuva: Ovídio já os recolhera
ou concebera no começo do período romano conhecido
como Império.
Pragmático, dá lições simples e diretas. No
primeiro contato com uma mulher desejada é melhor
que “as primeiras palavras não passem de lugarescomuns”. Nada de ficar bolando abordagens originais,
pois o que funciona mesmo com elas é o tradicional “eu
não te conheço de algum lugar?”. Não tem nada disso
de não poder convidá-las de cara para conhecer a sua
coleção de havaianas. “Se a poeira atingir o colo da
jovem, trata logo de tirá-la, e se não cair poeira, tira-a
também”. Em resumo, passa a mão. Ovídio é préassédio sexual. A sua alta filosofia está nesta máxima
de sabedoria milenar, “todas as mulheres podem ser
apanhadas”, dependendo “da maneira de colocar as
armadilhas”
Vê-se que Ovídio foi claramente um espírito à
frente do seu tempo. Num rasgo de psicologia, alerta:
“Aquilo mesmo que podes acreditar que ela não queira,
ela quer”. Percebe-se que antecipou toda a moderna
psicologia e pôs numa frase metade da obra de Balzac
e toda a de Nelson Rodrigues. Os eruditos dizem que o
poeta fez isso por cinismo, decadentismo, ironia ou
gênero. Pode ser. O vulgo tomará isso como reles
manual de instruções. A sofisticação de Ovídio pode
chegar ao extremo e excitar o olhar dos nossos
quarentões entediados: “As searas são mais ricas nos
campos dos outros e as vacas do vizinho têm sempre
os ubres maiores.” Difícil conceber uma imagem mais
adequada e bela
Alguns conselhos do autor aos que desejam não
passar mais os domingos sozinhos. Ao ir à caça, é bom
que as “unhas estejam curtas e nenhum pêlo saia
para fora das narinas”. Também é importante não exalar
um hálito de bode no rosto da presa. Se ela for casada,
algo bastante comum nos tempos que correm, é
bastante razoável ficar amigo do sócio. Na hora da
conquista, a melhor estratégia é não poupar elogios às
formas malhadas da escolhida. O negócio, é ser mais
generoso na cantada do que os políticos: “As promessas é que prendem as mulheres”. Em outras palavras,
minta para elas. E “engana as que enganam”. Todas.
Deve-se variar o método de ataque conforme a
idade. Alento para os feios: “Ulisses não era belo, mas
era eloqüente e com isso conquistou o amor de duas
deusas do mar.” Ronaldo, o fenômeno, está aí para
provar que Ovídio tem razão: com eloqüência e alguns
milhões de dólares não tem Cicarelli que resista. É lindo
o amor! Eis o principal: “O amor é uma espécie de
serviço militar”. Sabemos que, nos países avançados,
deixou de ser obrigatório. A poesia é legal desde que
não seja recitada na hora de mostrar armas. Outra
coisa: convencer a mulher a pedir aquilo que se quer dar
a ela. Chama-se a isso de estar em sintonia.
Toda a sabedoria já está em Ovídio: se ela estiver
furiosa, sela-se a paz na cama. Mesmo tendo de ingerir
uma artilharia de Viagra. O bom é demorar para acabar,
mas se não for possível, o melhor é adotar o método
Juremir Machado*
[email protected]
* é professor
de Comunicação
da PUC/RS e
lançou
recentemente o
romance
“Getúlio” pela
editora
Record
contrário e “calcar as esporas no cavalo em
disparada”. As mulheres gostam de atitude. De manhã,
é conveniente ficar de boca fechada ou escovar os
dentes antes de mais nada. Para as mulheres: evitar os
homens obcecados pela própria beleza (metrossexuais
incluídos) e que já tenham tido muitas relações com
outros homens. Sábio conselho.
Na cama, a mulher bonita e em boa forma deve
espichar-se para ser vista. As outras devem esconder
alguma coisa ou dobrar os joelhos para só mostrar o
flanco. O homem só deve arrotar no banheiro. Por favor,
não me acusem de machismo nem de misogonia.
Apenas recuperei os ensinamentos de um clássico.
Quem não se interessar por alta cultura, pode fazer o
contrário do ensinado (ou satirizado) pelo invulgar poeta
latino. Se Ovídio pode, por que Paulo Coelho e Dráuzio
Varela não poderiam? É só uma questão de séculos. E
de estilo. O importante é ser útil.
Fraude
31
Literatura
Literatura
apenas mais uma das inumeráveis tardes de domingo que enfrento à
procura de assunto, escrever é uma necessidade, desde que não seja
urgente. Como acontece sempre que falta inspiração, passo vagarosamente os dedos pelas inúmeras lombadas dos empoeirados livros dispostos
nas inexpressivas estantes de aço pintadas de cinza. Estou impressionado
com a minha capacidade de ordenamento dos títulos por cronologia, gêneros,
escolas e temáticas. Se bem que, dispostos ao acaso, por cima dos livros
brasileiros, encontro, perdidos, alguns volumes do bom e velho Charles
Bukowski. Indício inequívoco de que a suposta ordenação dos títulos não é tão
refinada quanto minhas primeiras impressões ao olhar a estante.
Pego um volume esverdeado, uma antiga edição da L&PM de Fabulário
Geral do Delírio Cotidiano. Na capa vejo a fotografia de um senhor de idade
barbado, supostamente meio bêbado, ao lado de uma figura feminina no
mínimo extravagante: muita maquiagem, saia, saltos altos, o pé esquerdo
torto, rosto envelhecido. Já o suposto escritor exibe uma considerável barriga,
daquelas que mostram o umbigo não porque a blusa seja baby look e, sim,
porque os tamanhos de fábrica não pressupõe tamanha decadência no
homem médio contemporâneo. Sinto um sentimento indefinível, algo entre o
medo, a nostalgia e a vergonha. O que será que me encantou nesse livro,
nesse escritor, para que durante parte de minha juventude eu fosse completamente obcecado por ele? Para mim não havia outro, ou lia-se Bukowski ou não
se lia nada.
Após comprar todas as traduções disponíveis de Bukowski nos anos
oitenta, aprofundei meu inglês para encarar seus poemas. Mas não sinto
nostalgia. A capa me traz lembranças genéricas e afetuosas de meus
primeiros livros. Minha primeira estante. Abro o livro, será uma chance de
recomeçar? Recuperar algo perdido? Começo a folhear os contos; pequenas
estórias da incapacidade de relacionar-se (ohhh!!!! Como são mal-escritas!!!).
Contos sobre homens norte-americanos bêbados em sub-empregos (mas
onde está o estilo que tanto me agradava? Que estilo?)
Sinto uma profunda alegria, de alguma forma amadureci. Não pense que
É
Jeder Janotti Junior*
[email protected]
*É professor da
Facom/Ufba e
lançou
recentemente o
livro “Heavy
Metal com Dendê,
pela editora
E-papers
32
Fraude
estou usando essa palavra sem suspeição.
Amadurecer significa estar no ponto, mas ao contrário das
frutas verdes, também significa estar mais próximo do
apodrecimento. Não quero usar essa palavra. Mas não há
volta. O texto do outrora bom e velho Charles Bukowski
apodreceu. Não sinto arrebatamento e, sim, estranhamento. O que será que me atraía, só suas inúmeras bebedeiras
narradas de maneira coloquial? Muito pouco! Difícil
descobrir. Talvez a representação narrativa de uma festa
permanente, obliterando um fato crucial: quanto maior a
bebedeira, maior a ressaca.
Sinto-me esgotado. Vejo o quanto meus valores se
modificaram e se estabilizaram. Será que sou apenas mais
um conservador à procura de estabilidade? Ou apenas
uma junção desses diversos eus, sendo que um deles
amou, sofreu e esqueceu os escritos de Bukowski. Mas
desvelo minha falta. O problema não são meus valores ou o
escritor norte-americano. É mais amplo o que sinto: é
apego. Os livros, os discos, as mídias foram feitos para
circular. Um texto sem leitor é uma impossibilidade.
Bukowski escreveu para jovens ávidos por álcool. Por que
diabos guardei esse livro em minha prateleira durante 17
anos ? Livros devem circular, a cultura nômade das
mídias não se inscreveu totalmente em nossas prateleiras,
nos apegamos aos livros como se fossem obras expostas
em um museu. Algum dia eu devo reler Bukowski?
Definitivamente Não. Vou doá-los, que os livros voltem ao
seu lugar de destino: os leitores. Essas idéias me remetem
a um trecho de um dos livros de Bukowski. Uma cena em
que perambulando pelas ruas de Los Angeles, ele passa
em frente ao antigo endereço do escritor John Fante, um de
seus preferidos. Por alguns segundos, ele fica parado
olhando, dilacerado entre o ato de tocar a campainha e o
medo perder a oportunidade de encontrar Fante. Por fim,
Bukowski decide ir embora, concluindo que os deuses não
devem ser incomodados. Como não se trata, pelo menos
para mim, de deuses e de incomodo, reconfiguro a cena:
Bukowski não deve ser incomodado. Hoje, preciso de mais
espaço. Já não me sinto tão mal. É uma tarde sombria de
domingo, mas nada que um bom romance não possa
aliviar. Na verdade, os livros e autores devem ser descartados, para que só então, possam ser reciclados, reavaliados
e, talvez, esquecidos.
33
Fraude
Cinema
Cinema
Tiago Félix*
A
cultura erótica já provou ser um segmento importante
e bastante profícuo na produção cultural de nossa
sociedade (com exemplos que vão desde Madonna
até o Marquês de Sade). E apesar de ser marginalizado pela
grande mídia e do preconceito enfrentado por seus apreciadores, o universo pornô inclui cifras milionárias, empresas
gigantes, suas próprias estrelas, diretores e uma vasta
mitologia que preenche o imaginário popular.
A produção pornográfica é muito maior do que se poderia
presumir, devido principalmente à grande demanda do
público e ao seu baixo custo de produção (na internet é quase
impossível encontrar entre os sites do gênero algum que não
inclua a categoria “amadores”). Existem verdadeiros
impérios da cultura pornô, como o autoproclamado Buttman's
Empire que produz filmes, revistas e tem um portal na
internet.
Além disso existem as grandes estrelas do pornô: os
atores Rocco e John Holmes, as atrizes Silvia Saint e
Cicciolina (já aposentadas); os brasileiros Alexandre Frota,
Cyane e Olívia del Rio (que alcançou fama internacional).
A cultura pornográfica tem quatro grandes divisões:
hetero, gay, lésbico e bissexual. Existem outras subdivisões que incluem categorias étnicas, profissionais e
grupais. E outras categorias menos convencionais como
zoofilia e incesto.
Os produtos com conteúdo erótico são variados:
poesias, contos, revistas, livros e sites. Além, é claro, de
acessórios bastante específicos encontrados em lojas
especializadas. Mas o gênero que melhor representa a
cultura erótica é, sem dúvida, o cinema.
O cinema pornô já produziu seus clássicos, a exemplo
do famigerado Garganta Profunda, mas também se nutre
na cultura popular com releituras de personagens da
Literatura como Tarzan e Lolita. Além disso ele apresenta
suas versões para filmes de sucesso como Titanic e
Gladiador, e se deixa influenciar pelo mainstream mesclando elementos de filmes de ação, entre outros gêneros.
Salvador possui dois cinemas eróticos: o Cine Astor e o
Cine Tupy, que funcionam de forma bastante diferente dos
cinemas convencionais, exibindo dois filmes que se
alternam das dez da manhã até as oito da noite (quando
normalmente fecham). Com um ingresso o espectador
permanece quanto tempo desejar.
Os filmes são produções estrangeiras de conteúdo
heterossexual de forte apelo, com recorrentes closes e
palavrões. A maioria dos títulos está disponível nas
locadoras, o que levanta a possibilidade de os espectadores usarem o cinema como ponto de encontro ou por falta
de poder aquisitivo.
Outro aspecto que diferencia o cinema pornográfico
dos outros é a ausência de esquemas de circulação prédeterminados. Nos dois cinemas existem duas passagens
após um saguão principal, por onde se pode entrar ou sair.
As luzes ficam todo o tempo apagadas, o que dificulta a
locomoção e a escolha de um lugar para sentar, mas ao
mesmo tempo preserva o anonimato de seus freqüentadores.
Não existe perfil pré-definido do freqüentador, mas
algumas características podem ser observadas. A maioria é
masculina, vai desacompanhada, prefere manter a
discrição e trabalha em regiões próximas ao cinema. Idade,
orientação sexual e estado civil variam bastante.
Os cinemas têm seus picos de freqüência entre sexta e
segunda-feira e não há lanterninhas ou fiscais. Os espectadores têm toda a liberdade de se comportar como quiserem, a não ser que haja reclamações (o que é muito raro).
Nos corredores e saguões dos cinemas há casais homossexuais, pessoas caminhando, conversando e uns poucos
funcionários, todos convivendo sem problemas. Algumas
vezes há travestis, mulheres e homens que percorrem o
cinema oferecendo seus serviços.
O ambiente cria uma atmosfera que parece propícia ao
assédio, no entanto há uma espécie de pacto tácito de as
pessoas não se tocarem, nem sentarem ao lado umas das
outras. O que não as impede de estabelecer relações caso
estejam de acordo, neste caso elas se dirigem ao banheiro
ou ao fundo da sala de exibição. Mas a maioria permanece sozinha assistindo aos filmes.
A atmosfera marginal e decadente esconde as relações
deste cinema com os outros. O Cine Astor pertence à Art
Filmes e o Cine Tupy à Orient Filmes, empresas que mantêm
os dois maiores cinemas soteropolitanos. Isso nos leva a
presumir que tanto o Astor quanto o Tupy sejam rentáveis o
bastante para continuar funcionando e fazer empresas deste
porte trabalharem com um nicho tão rejeitado da cultura.
O que se constata é que em meio a uma vasta produção
da cultura pornográfica e entre vários meios de divulgação os
cinemas pornográficos permanecem escondidos, apesar de
bastante freqüentados, sobrevivendo sem muitas formas de
divulgação, funcionando como ponto de encontro para
homossexuais, local de trabalho de prostitutas e travestis,
ambiente ideal para os mais fetichistas e alternativa de
entretenimento para os trabalhadores da região.
O cinema pornô pode não ser arte, mas já mostrou que
merece ser visto a partir de conceitos menos preconceituosos e simplificadores que os utilizados até agora para
analisá-lo.
*É aluno de graduação em
Jornalismo da Facom/Ufba
34
Fraude
35
Fraude
Conto
Conto
Vitor Pamplona*
[email protected]
Ao meio dia, já recostado na cadeira de balanço,
acarinhava a barriga com os calos da mão. Desmaiava
devagar, em repulsa ao ar pesado que lhe pendia o corpo
sobre o vime envernizado progressivamente pelo suor das
costas. O telefone tocou, obrigando-o a se desgrudar do
encosto. Apoiado nos braços, os seus e os da cadeira,
levantou e pôs-se a caminhar na direção do som. Mal retirou o
aparelho do gancho e pôs o fone no ouvido, disseram:
Chegou mais um. Pode vir.
Depôs o fone num misto de resignação e impotência. Era
a dor cotidiana de viver naquele ambiente imundo, fedorento,
lambuzado de sangue e de vísceras em todos os cantos, em
torno daqueles homens quase sempre muito sujos, quase
sempre muito rudes e que, assim como ele, tinham sempre
um serviço qualquer a fazer. Que vida mais besta, pensou,
sair pra rua, pegar os sacos, carregá-los nas costas, entregálos nos locais combinados, receber o dinheiro, repassá-lo ao
chefe, que descontava a sua parte, dar um até logo, quando
precisar de mim é só ligar, gastar uma parte a caminho de
casa em um bar ou padaria, dependia da necessidade, rodar
a chave na fechadura, bater a porta e repetir o movimento em
sentido contrário, e pronto, começar tudo de novo quando lhe
fosse requisitado.
Vestiu no corpo a camisa amarrotada que lhe iria sorver o
suor. Que desperdício pegar uma limpa na mala, logo estaria
manchada de amarelo, cor do sangue seco de sol. Seria
melhor trabalhar sem roupa nenhuma, pelo menos só teria
que lavar a si próprio. Pensava na cara do povo quando visse
aquele homem pelado andando na rua com aqueles sacos
imensos, o brilho rubro das costas misturado ao do suor,
haveria de ser muito engraçado o povo todo apontando o
dedo e ele tranqüilo em sua nudez desavergonhada,
recebendo o dinheiro e depois voltando para casa. Bom
mesmo seria não ter mais que esfregar seus trapos no
tanque, vendo escorrer na água o líquido vermelho que lhe
36
Fraude
causava tanta repulsa. Ninguém podia carregar sobre o
corpo o sangue dos outros.
Enquanto atravessava na rua a atmosfera do meio-dia, o
sol castigando-lhe o couro de cabelos ralos, subitamente
lembrou do seu primeiro dia no azougue: seus olhos
terrorizados diante do cenário grotesco, inimaginável até
então, mas que se expunha incólume num plano-seqüência
irrefreável. Prostrado em frente ao balcão, ao lado do
refrigerador vazio que aparentava nunca ter sido usado,
ouvia o corte das serras atravessando o osso, o fio fino das
facas rasgando a carne, o rangido dos ganchos sustentado
as talhas. O chefe veio e o chamou para o lado de fora, onde
um novo carregamento havia recém-chegado. Explicava-lhe
o serviço, dizia-lhe o sim e o não, com um palavreado firme,
decidido, seguro de suas atribuições de comandante geral e,
por isso mesmo, invejável. Mas no momento em que
destrancaram o caminhão-baú, toda a beleza daquele
discurso se esvaiu no farfalhar de moscas que rodeava a
carga. Corpos empilhados, marcados por um ferimento
profundo no crânio, o que lhes dava uma fisionomia em
comum, sujos de terra e lama, como que retirados de alguma
pocilga em lugar dos porcos. Fora afastado um pouco para
que um jato d'água lhes fizesse a última higiene e espantasse
as moscas mais insistentes. Um a um, os cadáveres iam
sendo rolados para as carretas sobre trilhos que os levariam
ao beneficiamento. Esse movimento lhes revirava as faces,
descerrando as bocas de onde escorria a saliva derradeira
misturada aos líquidos gástricos, revelando olhares moucos
sob pálpebras entreabertas, e rompia os coágulos das
chagas no crânio, pintando de vermelho os rostos dos
primeiros e o tronco e tudo o mais dos seguintes.
O chefe gritou da porta que engolia os carretos: Ô
novato! Venha ver como é aqui dentro. Mal pisou no chão
rejuntado de azulejo branco que cobria também as paredes
do galpão, pôde ver dezenas de homens de dorso nu,
ocupados em transportar, despelar, desviscerar,
desmembrar, retalhar e embalar. Primeiro, retiramos as
pelagens e as pelancas, esses bichos às vezes têm quase
um palmo de gordura cobrindo o corpo, ensinou o chefe.
Ninguém come tamanha quantidade de sebo, mas sempre é
bom deixar algum na fibragem, pois o gosto do gado é o gosto
da gordura quando tosta, e aqui é tudo gado.
Depois, é preciso desembuchar que é pra livrar eles da
bile, dos fatos e das vísceras mal-cheirosas. Nem cachorro
come. Aí começa a parte técnica, que é quando se separa as
partes nobres das ordinárias. Os quartos traseiros é só serrar
o joelho e pendurar no pacote, o lombo é fatiado porque vai
em bandejas, peito a gente só trabalha com os de fêmea, os
de macho é muito trabalho pra pouco ganho, costela é tudo
igual, e tem os miolos, coração, os bagos, que são
selecionados só para clientes especiais, de tradição com a
casa. É gente de hábito refinado, que não aceita qualquer
corte, você sabe logo pelo jeito.
Reconsiderou: não lhe aprazia a clientela especial. Os
olhos daquela gente invariavelmente demonstravam
interesse excessivo pela mercadoria. Havia uma cobiça
desmedida, um gozo que não lhe parecia natural, como
que imbuído de alguma perversidade que lhes fornecia a
energia vital. Tinham pressa em preencher os papéis e
efetuar o pagamento. Dizia-se que realizavam grandes
cerimônias para a degustação e preparavam o próprio corpo
antes de ingerir as carnes especiais, temperando os
músculos e o paladar com óleos e ervas específicas para
cada corte.
Chegou ao azougue a tempo de ainda acompanhar o
descarregamento do lote de que fora informado. Poucos
homens realizavam o trabalho naquele dia, o que o incentivou
a auxiliar no transporte da carga. Observara muitas vezes
aquele rolar de corpos para as carretas, mas jamais de dentro
do caminhão, em meio às carcaças que iam desabando do
topo da pilha umas por cima das outras, até sofrerem forte
impacto no contato com o piso ensangüentado e serem
brutalmente empurradas para o descanso final naquelas
covas de aço sobre trilhos. Chacoalhava as mãos ao redor da
cabeça e do peito para afastar o mosqueiro atraído pelo
grude sangrento da pele, ao tempo que repuxava os
membros que se entrelaçavam no monte de corpos para que
se desvencilhassem uns dos outros, facilitando o translado. A
pelagem dos bichos adquirira uma aparência plastificada e
uma dureza que o impressionou no primeiro contato, haveria
de ser culpa da sangraria que as besuntava e da quentura, tal
qual a de um forno, da carroceria chapeada de aço. Um dos
cadáveres, de corpanzil acima da média, obstruía os demais
por causa de suas dimensões incomuns, o que o obrigou a
forçar sua precipitação agarrando-se às pelancas do
pescoço e da papada, forçando a carga a se
deslocar. Um urro gutural ecoou, cessando
apenas quando involuntariamente largou a
massa molenga que tinha nas mãos. O
movimento desequilibrou-o, fazendoo despencar do topo da pirâmide de
carne, pele e osso. Depois de ter
escorrido o rosto, as mãos, o
tronco todo, até mesmo os
lábios na couraça enrijecida
pelo grude de sangue e vômito
seco, mirou o topo da pilha de
corpos e pôde ver o par de
pupilas dilatadas
responsabilizando-o pela dor.
Estava viva, a besta. Cobrava
providências para o seu estado.
Quatro homens foram
necessários para pô-la numa carreta
onde o corpo fora mal acomodado,
enquanto o chefe fazia ligações para o
fornecedor, o transportador, o corretor, o
advogado e o proprietário. Não queria, sob
qualquer condição, ter de se responsabilizar
pelo erro alheio. Não iria, da mesma forma,
abater o bicho e conduzi-lo ao beneficiamento:
seria, não resta dúvida, acusado de maus tratos, de
hedionda - de assassinato. A responsabilidade era de
quem havia encontrado o corpo ainda sensível ao toque, aos
estímulos e percepções, incapacitado de ser submetido ao
consumo. E não havia coincidência nenhuma em ser um
trabalhador fora de suas funções profissionais e, portanto,
inepto para aquele tipo de serviço. Com a condição de prover
uma destinação ao corpo, ele não seria responsabilizado
administrativamente e receberia todos os seus direitos legais
pela quebra do vínculo com a empresa.
Expiado menos pela culpa que pelo esforço de
transportar o peso da carga viva até a cama, providenciou
antibióticos, antiinflamatórios, analgésicos, antitérmicos,
fitoterápicos, coagulantes, antitetânicos e um variado arsenal
de suplementos vitamínicos. Tratou da ulceração no crânio e
das lesões menores pelo corpo, removendo pruridos e
infecções, até restabelecer a condição saudável naquele
corpo agonizante, com a dedicação e o esmero adquirido nos
anos de manipulação de carnes e tecidos. Em uma manhã,
desperto de um sono pesado que lhe atingira os sentidos, só
aos poucos recobrados, não achou a besta sobre o leito. Foi
encontrá-la de pé, na cozinha, com todas as partes do corpo à
mostra, preparando o café com os seios lácteos que
entornaram sua imaginação.
É aluno de graduação em
Jornalismo da Facom/ufba
37
Fraude
Humor
od
Fo
stFa
Danilo Fraga
[email protected]
A
rede de fast-food de Filosofia surgiu no começo do século XX, nos EUA. Contrários
ao modelo europeu de ensino, muito antiquado e preso à tradição, nós
desenvolvemos uma forma de trazer filosofia de qualidade para todos que possam
pagar por ela. Em nossas lojas, vendemos filósofos para todos os gostos: Descartes para
os clientes mais conservadores, Maffesoli para os ciber-modernosos e Derrida para
aqueles com problemas de adaptação social. Além disso, temos outros produtos como
barbas postiças e óculos de aro grosso, para tornar a imersão do cliente no mundo da
filosofia ainda mais completa. Atualmente, nosso campeão de vendas é o Mc Niilismo
Infeliz uma caixinha lúgubre que contém as últimas obras de Nietzsche e uma cartela de
Prozac como brinde.
Muitos nos acusam de diluição e propagação de pensamentos de qualidade duvidosa.
Alguns chegam mesmo a insistir que o “Mc” de nosso nome vem de Marilena Chauí. Porém,
isso tudo não passa de conjecturas infundadas. Na verdade, nós só trazemos benefícios à
sociedade. Hoje em dia, qualquer um pode ser um bom escritor. Basta vir aqui para uma
simples refeição e sair com uma tese de doutoramento completa. Além disso, tem também
o fato de sermos uma empresa com responsabilidade social. Distribuímos bolsas para
jovens clientes com talento para a reflexão ou para a escravidão. Eu, hoje apenas um
desses bolsistas, com muito esforço e trabalho posso, quem sabe, um dia ser chefe de
setor e coordenar meu próprio grupo.
Nosso cardápio conta com muitas novidades. A linha old fashioned burgers, que vem
com o melhor da filosofia antiga, de Platão a Aristóteles, tudo regado ao delicioso molho de
cicuta. O McHóstia com as obras dos santos filósofos e um churrasquinho à moda da
Inquisição. E, para acompanhar tudo isso, um Schopenhauer bem gelado. Neste mês,
temos a promoção ABC dos Filósofos: o cliente que conseguir soletrar os nomes de
Heidegger, Husserl, Nietzsche e Kierkegaard ganha um mini-filósofo que recita os diálogos
de Platão em grego arcaico. Não perca tempo, peça pelo número. Kant 1, 2 ou 3?
ia
of
os
Fil
de
Filosofi
a não en
che bar
riga de
ninguém
A re
filosofia de de fastfo
de açõ sofre uma a od de
alg
v
e
r e c la m s judiciais. A alanche qua uns diálogos
nto pe
ação
princip
a
rcebi já de Platão e
estabe
lecimen é q u e e s s l t o d a a
tinha
gos,
e s co
obra
tos, co
c a lh a m
mpleta
d e H e lido tas e o psiquiatras, p
m seu
a
ç
o
s
in
utro
s ic
g
hiperc
dignad
s
genero
e l” , a
Um
a
o
póiam a s médicos de analisalega
p r o v o c m p le x o s , e s o s e tado levantamen .
doidos
e
x
istên
não
Fa
a
s
to apre
p e r d a n d o n a p o t a r ia m Med na semana p
sen- te st-Food de cia da rede de qualquer me ser necess
a
p
F
ária
dida pre
ic
s
d
n
u
il
a
s
e
h
o
a
l
a
l
a
o
s
c
d
ç
o
o
d
E
ap
a
ã o (M
fi
m
suicídio
EC) dis nvironment C pelo c o m o que me queix a. “Não o p panhamento ventiva ou
, além e t it e s e x u a
a
m
e
p
e
a
sociais
l
d
g
a
,
n
r
é
,
a
rou um
de dis
ter de
enda
dico pa
estou
ntismo
toda
d
ze
ra
O
c
m
alerta
pede u e toda ordem túrbios com a população
a Sab mbro do ano h e i a a t é m lavo de Carv órbido. Para
. “A gen
.
m sim
o
D
ó
e
a
e
rg
lho, dir
arketin
acordo
co m o é
que ve
ão, ma
te hom
ples e
Schope
g da
etor
: ele
is d
m.
ns
e depo
n
ens e
is prec s lêem Sartre só uma fa empresa, es de
33% d e 47% dos
R$ 0,5 hauer e eles, aio de do
0, nos
m
a
s
sa é
is
B
p
e
s
é
a
o
r
a
d
m
m
r
m
d
s
ic
m
o
e
u
il
a”
ais gr
nto no
lheres
de aju
empurr
aprese
Tratact
au
da
am
rmal d desenvolvilista so confessa um
n
u
rridente
psicana seguida pe
a
uma ex s Filosoficus” todo o um de pedantism tam algum
doen
lo
ção de
.
q
academ Já a associa - pela vida total desintere ça,
n ã o p dona de casa reclama mas uarto da popu o, e quase
a
i
m
que ho
c
erde
la
sse
a
f
i
u
rm
s
u
ç
s
li
n
ã
de gin
uicíd
na
a q
dan
o, ta
je sofr
Bergm
an. “Eu u m f il m e
e de pe quanto fem nto m a l e s ue grande p ástica preo io. Não há a e pelo
de
i
a
comece
dantism
nina,
c
O ass
ingestã p r o v o c a d o rte dos mia upar. Para porque se
i com
o mó
ele
, só se fo
o de filo
s pel
de. A as unto divide a rbido.
p
a
s
r a de P , “acadeo
o
ten
fia
s
sociaçã
latão”.
o de ps ocieda- exerc cializados pe barata são
icólo
la falta
ício. E
m s
de
rede de
Fast-Fo ua defesa, a
od de F
ilosofia
Fraude
38

Documentos relacionados