O Direito Médico Ontem e Hoje
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O Direito Médico Ontem e Hoje
O Direito Médico Ontem e Hoje Dr. Sami A R J El Jundi, MD, MSc Master of Science em Medicina Forense pela Universitat de Valencia Especialista em Toxicologia Forense pela Feevale / University of Florida Coordenado do Curso de Pós-graduação em Direito Médico da VJ “Um conjunto de normas que uma sociedade organizada elege para consubstanciar o direito à integridade do corpo e da vida” Genival Veloso de França Deontologia e diceologia médicas e das profissões de saúde Exercício legal e ilegal da medicina e das profissões de saúde Garantia á vida e à saúde Proteção especial aos grupos de risco (menores, enfermos, vítimas, etc) Proteção dos direitos à confidencialidade e à intimidade Garantia dos direitos à informação e à autonomia Deveres dos pacientes com respeito a sua saúde e à saúde coletiva Responsabilidade de governos e governantes. Drumond, JGF. A evolução do direito médico no Brasil. Revista de Direito Médico e da Saúde 2: Abr/Jun, 2005. p.78-90. Código de Hammurabi (2250 a.C.) § 218.--XXXTY, 78-82. § 219. -xxxIY, 83-87. § 220. _-XXXTY, 88-93. 74 §umum-ma A.ZU A.ZU a-wiwi-lam 75 zizi-imimmama-am kabtam 76 ibu-u§i-na GIR.NI siparrim 77 i-buma 78 a-wiwi-lam u_u_-tata-mimi-it 79 u lu nana-gabgab-ti a-wiwi-lim 80 i-ha GIR.NI siparrim 81 ipip-tete-ma i-i.n a-wiwi-lim 82 ubub-tabtab-bibi-it 83 ritt_ritt_-_u ii-nana-kiki-su 84 _um _um--ma A.ZU zizi-mama-am kabkab-tam 85 warad MAS.EN.KAK 86 ii-na GIR.NI siparrim 87 i-bubu- : u§-ma ufiufi-tata-mimi-it 88 wardam kiki-ma wardim i-riri-ab 89 _um _um--ma nana-gabgab-tata-_u 90 ii-na GIR.NI siparrim 91 ipin-_u ubub-tabtab-da (=it) ip-tete-ma 92 i-in93 kaspam mimi-_i_i-il 94 _1mi_1mi-_u ii-_a_a-k, al If a physician operate on a man for a severe wound with a bronze lancet and cause the man's death; or open an abscess (in the eye) of a man with a bronze lancet and destroy tile man's eye, they shall cut off his fingers. If a physician operate on a slave of a freeman for a severe wound with a bronze lancet and cause his death, he shall restore a slave of equal value. If he open an abscess (in his eye) with a bronze lancet, and destroy his eye, he shall pay silver to the extent of one-half of his price. Harper, RF. The Code of Hammurabi, King of Babylon. 2nd Ed, The University of Chicago Press, 1904. 221.--xxxIv, 94-XXXV, 9. 95 _um-ma A.ZU 96 NER.PAD.DU a-wi-lim XXXV, 1 _e-bi-ir-tam 2 u_ta-li-im 3 u lu _e-ir ha-ham 4 mar-.sa-am 5 ub-ta-alli-i_ 6 be-el .siimmi-im 7 a-ha A.ZU 8 V §ik. il kaspim 9 i-naaddi-in § 222.--XXXV, 10-12. § 223.- XXXV, 13-17. 10 §um-ma bm_r MA_.EN.KAK 11 III _i.kil kaspim 12 i-na-ad-di-in 13 _um-ma bwarad a-wi-lim 14 be-el wardim 15 a-na A.ZU 16 II _ik. il kaspim 17 i-na-ad-di-in If a physician set a broken bone for a man or cure his diseased bowels, the patient shall give five shekels of silver to the physician. If he be a freeman, he shall give three shekels of silver. If it be a man's slave, the owner of the slave shall give two shekels of silver to the physician. Harper, RF. The Code of Hammurabi, King of Babylon. 2nd Ed, The University of Chicago Press, 1904. Lei Mosaica (1500-1660 a.C.) Lei Mosaica é composta de todo o código de leis formado por 613 disposições, ordens e proibições. Em hebraico a Lei é chamada de Torá, que pode significar lei como também instrução ou doutrina. Segundo vários teólogos, há duas partes distintas na lei mosaica: a lei de Deus, promulgada sobre o monte Sinai, e a lei civil ou disciplinar, estabelecida por Moisés; uma é invariável; a outra, apropriada aos costumes e ao caráter do povo, se modifica com o tempo. Art. 215 – Se um médico tratar um homem de uma ferida grave e curar o homem; se retirar a nuvem de um homem com a faca de bronze e curar o olho do homem, receberá dez moedas de prata. Art. 218 - Se um médico tratar um homem livre de uma ferida grave com a faca de bronze e o fizer morrer; se abrir a nuvem com a faca de bronze e o homem perder o olho, lhe serão cortadas as mãos. Art. 219 – Se um médico tratar um escravo de uma ferida grave e o deixar incapaz, pagará escravo por escravo. Art. 220 – Se um médico abrir a nuvem com a faca de bronze e perder o olho, ele pagará em prata e metade do preço do escravo. Cueto, CH. Valoración médica del daño corporal. 2ª. Ed. Masson, 2001. Lei das XII Tábuas (451-390 a.C.) A Lei das Doze Tábuas (Lex Duodecim Tabularum ou simplesmente Duodecim Tabulae, em latim) constituía uma antiga legislação que está na origem do direito romano. Formava o cerne da constituição da República Romana e do mos maiorum (antigas leis não escritas e regras de conduta). Temática Tábuas I e II: Organização e procedimento judicial; Tábua III - Normas contra os inadimplentes; Tábua IV - Pátrio poder; Tábua V - Sucessões e tutela; Tábua VI - Propriedade; Tábua VII - Servidões; Tábua VIII - Dos delitos; Tábua IX - Direito público; Tábua X - Direito sagrado; Tábuas XI e XII - Complementares. TÁBUA VIII 1. Qui malum carmen incantassit. ..Cícero: De republica, 4, 10, 12, apud Sanctus Augustinus, De Civitate Dei, 2, 9: XIl tab., cum perpaucas res capite sanxissent, in his hanc quoque sanciendam putaverunt: si quis occentavisset sive carmen condidisset, quod infamiam faceret flagitiumve alteri. Quem fez um mau encantamento (seja punido com a pena capital.): (crime de feitiçaria). 2. Si membrum rupsit, ni cum eo pacit, talio esto. Se amputou um membro e não faz acordo com o ofendido, tenha lugar o talião. 3. Manu fustive si os fregit libero, CCC, si servo, CL poenam subito. Se com a mão ou com um pau quebrou um osso a um homem livre sofra a pena de 300 asses, se a um servo, de 150 asses. 4. Si iniuria faxsit, viginti quinque poenae sunto Se cometeu (outra) lesão, seja a pena de 25 asses. 5. ... rupsit ... sarcito. Pena pelo dano (? ) Corpus Iuris Civilis (534 d.C.) Insanidade psíquica: furor Demência: dementia Estupidez: moria Alienados em geral: mente capti Imbecilitas: incapazes de dispor de seus próprios bens Detalham insanidade, embriaguez, etc Definem capacidade civil (decisão do juiz) Lei VI, livro I, título XVIII, inciso 7º Lei VII, livro IX, título II, inciso VIII “Assim como não se deve imputar ao médico a sorte da mortalidade, assim deve-se imputar-lhe o que cometeu por imperícia: o delito do que engana aos homens em perigo não deve ficar sem castigo a pretexto da fragilidade humana”. Diz Próculo: “se um médico operar imperitamente um servo, competirá a ação ex locato ou a da Lei Aquilia”. Lei VIII O mesmo direito rege se tivesse usado indevidamente de algum medicamento. Assim mesmo, também aquele que havendo abandonado a cura não deixando seguro; sim que será considerado réu de culpa. Lex Romana Wisigothorum (476 d.C.) O Código Visigótico apresentava enorme influência da tradição romana, inclusive na forma: em doze livros como o Código de Justiniano. Foi aprovado pelo VIII Concílio de Toledo, demonstrando a importância da participação da Igreja na legitimação do direito. Este costume dos reis godos, são os gérmens das futuras Cortes ou Estados Gerais. O Fuero Juzgo, ao lado dos costumes municipais, são as principais fontes do direito por muitos séculos. O Código Visigótico contém 324 leis de Leovigildo, 3 de Recaredo, 99 de Chindasvindo e 87 de Rescesvindo. Dele há uma cópia na Biblioteca Nacional em Paris e outra no Vaticano. Permaneceu em vigor até a edição da Lei das Sete Partidas por Afonso X, o Sábio. Livro XI: De los físicos, e de los mercaderes de Ultra mar e de Los Marineros. I Titol De los físicos é de los enfermos Ley III: Antigua. Que el fisico debe pleytear com el enfermo. “Si algun fisico pleytea com el enfermo, por le visitar, é por le sanar de las plagas, debe veer la plaga, é la dolor: é pues que la conociere, pleyteye com él, é que tome recabdo por su aver”. Ley IV: Antigua. Si el enfermo muere pues que há pleyteado com el fisico. “Si algum omne, é algun fisico pleytea com el enfermo de le sanar sobre recabdo, sánelo quanto meior pudiere. E si por ventura murier el enfermo, nol dé nada al fisico de quanto com él pleytear, ni ninguna de las partes non devem mover contra la outra”. Lei VI: Antigua. Si el omne libre o el siervo muere, o enflaquece por la sangría. “Si algun fisico sangrar algun omne libre, si el enflaqueciere por sangría, el físico deve pechar C é L sueldos. E si muriere meta el fisico em poder de los parientes que fagan del lo que quisieren. E si el siervo enflaqueciere, ó muriere por sangría, entregue outro tal siervo a su sennor”. Fuero Real de España (1254) El Fuero Real fue un cuerpo de leyes del rey castellano Alfonso X el Sabio, redactado en 1254 e influido por el Liber Iudiciorum, que se convirtió en sus inicios en un fuero local otorgado a las ciudades de Aguilar de Campoo y Sahagún en 1255. También es llamado Fuero del Libro, Libro de los Concejos de Castilla y Fuero Castellano. Libro IV, Título XVI: De los físicos, de los maestros de las llagas. Ley I “Ningun home no obre de física, si no fuere ante aprobado por buen físico, por los físicos de la Villa de hubiere de obrar, é por otorgamiento de los Alcaldes, é sobre esto haya carta testimonial del Consejo y esto mesmo sea de los Maestros de las llagas, é ninguno de ellos no sean osados de tajar, ni defender, ni de sacar huesos, ni de quemar, ni de medicinar em ninguna guisa, ni de facer sangrar á ninguna muger sin mandado de su marido, ó de su padre, ó de sua madre, ó de su hermano, ó de su fijo, ó de outra pariente propiquo ó si alguno lo ficiere, éche diez maravedís al marido, si la muger fuere casada, sino al mas propiquo pariente que hubiere: é si alguno obrare ante que fuere probado, é otorgado asi como sobredicho es, peche trecientos sueldos al Rey; é si matáre, ó lisiáre home, o muger, el cuerpo, é lo que hubiere, sea á merced del Rey, si fijos nu hubiere, é si fijos hubiere, hereden sus fijos el haber, y el cuerpo sea á merced del Rey”. Libro IV, Título XVI: De los físicos, de los maestros de las llagas. Ley II “Si algun físico, ó Maestro de llagas tomáre á alguno em guardia por Pleyto que lo sane, é si ante que sea sano de aquella enfermedad muriere, no pueda demandar el precio que habia tajado, ye esto meso sea si puso de sanarlo á plazo seãnaldo, é no lo sano”. Kvitko, LA. La peritación medicolegal em la praxis médica. Ediciones La Rocca, 2008 Quaestiones Medico-Legales (1621-1651) Paolo Zacchia (1584-1659) publica a obra em latim com 9 volumes Pai da Medicina Legal Médico pessoal dos papas Inocêncio X e Alexandre VII, consultor legal da Rota Romana e chefe do sistema de saúde dos Estados Papais. Autor da obra em latim "Quaestiones Medico-Legales“, publicada em 9 volumes entre 1621 e 1651 “Somente o médico é capaz de avaliar a condição mental do indivíduo” Noção de “intervalo lúcido” “Forte emoção” como atenuante Tratado de medicina y cirugia legal (1844) Pedro Mata é um dos pioneiros em dedicar diversos capítulos de sua obra à responsabilidade médica. Antecedentes históricos - I 1º Caso de responsabilidade médica na América Córdoba, Argentina, 1598 – relatado pelo Dr. Félix Garzón Maceda em sua obra La medicina em Córdoba, apuntes para su historia, lançado no “I Congreso Nacional de Medicina”, em 1916 Dr. Ascencio Telles de Rojo é interpelado quanto a sua licença para clinicar, por ter errado o diagnóstico e por ter supostamente causado a morte de 7 escravos por sangria. O demandante deseja reparação pelos prejuízos. De sua parte, alega que o senhor dos escravos não seguiu as orientações, que muitos estão a morrer, que outros escravos tratados melhoraram e que deseja receber pelos serviços prestados. Em sua defesa sustenta: Que é licenciado e aprovado; Que o exercício da medicina não é infalível, sendo impossível que fosse capaz de curar a todos os doentes; Que o médico só deve responder quando agir de forma dolosa; O denunciante não seguiu a prescrição e que os escravos morreram por falta de cuidados (comida, roupas e local aquecido); Não recebeu pelos serviços prestados, os quais cobra. Antecedentes históricos - II Pedro Mata cita um caso de Ambroise Paré: Um cirurgião sangrou o Rei de França, Carlos IX (1550-1574). Lesou um nervo, sobrevieram acidentes graves e transcorreram 4 meses de sofrimento antes de obter-se sua cura (primeiro caso na literatura de DSR/SCDR-I); “El cirujano, causa de todo, no tuvo más castigo que su profunda aflicción por su torpeza”. “El rey francés se penetró de que el profesor del arte de curar que obra según su conciencia no debe tener, por lo tanto, más juez que esta conciencia y Dios”. Antecedentes históricos - III Caso Helie (França, 1825): Realizou parto em apresentação “de braços”, amputando-os; A Academia de Medicina de Paris emitiu dois pareceres: um condenatório e um inconclusivo, alegando que “porquanto uma vez estabelecido o princípio da responsabilidade médica, tudo se faria suspeito e arriscado para o médico. Deveria temer a cada passo a vingança das leis, e fugiria ao simples aspecto do perigo”; Helie foi condenado por falta grave, pagando uma pensão de 100Fr anuais até que o menino completasse 10 anos de idade e depois uma renda vitalícia de 200Fr. “La calificación de uma praxis asistencial como ajustada o desviada de la lex artis no debe realizarse por um juicio ex post, sino ex ante” Kvitko, 2008. Kvitko, LA. La peritación medicolegal em la praxis médica. Ediciones La Rocca, 2008 Antecedentes históricos - IV Caso Thouret Noroy (França, 1832): Realizou sangria num operário. Abriu a artéria braquial, não praticou as medidas adequadas para prevenir os acidentes uma vez aberta a artéria. Com a formação de um tumor no local, aplicou tratamentos tópicos e, aos 18 dias, não havendo melhora recusou-se a ver o paciente. Passados 4 meses um cirurgião diagnosticou um aneurisma, tentou a ligadura sem sucesso. Adveio gangrena e amputação do membro. Condenado em 1ª instância, recorreu à Corte de Rouen e ao Tribunal de Cassação. Dupin atuou na acusação. Dupin, Procurador Geral da França: “Não se trata de saber nestes casos se tal tratamento foi feito propositalmente ou não; se deveria ter resultados saudáveis ou danosos; se teria sido preferível a outro; se tal ou qual operação era ou não indispensável; se houve imprudência em arriscá-la, habilidade ou torpeza em executá-la; se com tal ou qual instrumento, de acordo com tal ou qual procedimento, teria ou não tido melhor êxito; todos esses pontos são questões científicas que devem debater os doutores da ciência, e não podem constituir casos de responsabilidade civil nem pertencem ao exame ou juízo dos tribunais” “Mas quando os fatos inculpados aos médicos saem da classe daqueles que, por natureza, estão exclusivamente reservados às dúvidas e às discussões da ciência, desde o momento que se complicam por desídia, ligeireza ou ignorância das coisas que deveriam saber necessariamente, se incorre na responsabilidade do direito comum e fica aberta a competência da justiça”. “O medico e o cirurgião não são indefinidamente responsáveis, porém o são as vezes; não o são sempre, mas não se pode dizer que não o sejam jamais. Fica a cargo do juiz determinar cada caso, sem afastar-se da noção fundamental: para que um homem seja considerado responsável por um ato cometido no exercício profissional, é necessário que haja cometido uma falta nesse ato; tenha sido possível agir com mais vigilância sobre si mesmo ou sobre seus atos e que a ignorância sobre esse ponto não seja admissível em sua profissão.” Antecedentes históricos - V Velpeau atua num caso (1885): Paciente morre durante cirurgia, em razão da anestesia com clorofórmio . Citado por Kvitko, conforme Brouardel: “Teneis em vuestras manos el poder de la cirugía. La cuestión interesa al público más que al médico. Si condenais al cirujano que ha empleado el cloroformo nadie se atreverá entre nosotros a emplearlo más; ningun médico lo uitlizará de nuevo si sabe que, a consecuencia de um accidente imposible de prever, incurre em responsabilidad. Vosotros sois los que vais a mantener la abolición del dolor, o a instalarlo outra vez em sus perdidos dominios”. “Vivemos a era do risco. Desde o instante em que a vida social passou a ser abalada pelos modernos meios e recursos tecnológicos, um elenco muito variado de riscos foi aparecendo e, por conseguinte, aumentando assustadoramente o número de danos sem reparação, em face da dificuldade de estabelecer-se a culpa do autor. E esse autor é todo aquele que se beneficia com uma atividade, mesmo que ela nem sempre seja a causadora do prejuízo. O risco é o preço e a razão de uma atividade.” Gomes, JCM; Drumond, JGF; França, GV. Erro médico. 4ª Ed., GuanabaraKoogan, 2002. Obrigado por sua atenção! [email protected]