O Boto: O Don Juan Amazônico 1

Transcrição

O Boto: O Don Juan Amazônico 1
Universidade de Brasília
Programa de Graduação em Comunicação
Disciplina: Estética e Cultura de Massa (145548)
Professor: Dr. Gustavo de Castro e Silva (1009478)
Mestranda: Verônica Brandão (11/0022505)
Discente: Dayana binti Hashim
Monstro: Boto
Data: 3/10/11
Segunda-feira (14h - 17h40)
O Boto: O Don Juan Amazônico
1
Dayana Hashim 2
Resumo
O folclore brasileiro é repleto de histórias e criaturas fantásticas de toda sorte. Um desses seres é o boto,
golfinho amazônico que, na mitologia da região, tem o poder de se transformar em um homem sedutor.
Esse artigo fará um breve estudo sobre a lenda, sua história e seus significados, e também de suas
aparições nos meios de comunicação.
Palavras-chave: Boto; lendas; folclore brasileiro; Amazônia
1
Trabalho apresentado na Disciplina Estética e Cultura de Massa 2/2011, no dia 3 de outubro de 2011.
Graduanda em Comunicação Social pela Universidade de Brasília, cursando o 4º semestre de Jornalismo. E-mail:
[email protected]
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Figura 1 - Regiane BASSANI: Boto cor-de-rosa, 2007 (Fonte:
http://davincigallery.net/art/titlePage.do?tab=title&subtab=title.list&titleId=21615)
Biologicamente falando, o boto é um animal cetáceo que habita a bacia amazônica, sendo
o boto cor-de-rosa o mais conhecido. O folclore local criou em torno desse bicho uma lenda
elaborada, transformando a figura mitológica do Boto no ser fantástico mais popular da
Amazônia.
Diz-se que o animal se transforma, ao cair da noite, em um rapaz alto, bonito e sedutor.
Veste terno branco e chapéu panamá, que oculta os orifícios na sua cabeça pelos quais respira,
único sinal que o identifica. Frequenta as festas promovidas pelos ribeirinhos, dançando e
bebendo muito, e seduz as mulheres, solteiras ou não. Escolhe a moça mais bonita para ser seu
par, que não resiste a seu charme, e os dois passam a noite às margens do rio. Porém, antes do
raiar do dia, o Boto pula na água e volta à sua condição de animal. Meses depois, ao nascer o
fruto dessa relação, a moça não tem dúvidas: é filho do Boto.
A lenda tem origem na tradição oral, portanto, pode-se constatar pequenas variações nas
histórias contadas. Entre elas, diz-se que o Boto pode se transformar também em mulher,
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seduzindo os caboclos; a relação pode ser consumada nos fundos do rio, com o Boto já de volta à
sua forma original; os filhos do Boto têm também orifícios na cabeça, e/ou podem também se
transformar em Boto; o Boto só pode ser morto por seu filho, que acaba se transformando na
própria criatura. Fora do Brasil, a criatura mítica é conhecida por alguns como “encantado”.
Apesar do forte cunho regional, a lenda pode ter se originado de uma fusão cultural.
“Supostamente a lenda não possui origem indígena, mas talvez se origine de versões modificadas
da mitologia grega “Sereias”, trazida a América do Sul pelos exploradores e colonizadores
portugueses e espanhóis” (RODRIGUES; 2008: p. 18). Além disso, segundo o historiador
Câmara Cascudo, o Boto também pode ser personificação de Uauiará/Uiara (Senhor das Águas),
o amante de mulheres índias e caboclas na mitologia tupi. Há, relatos de lendas mais antigas que
retratavam não um Boto conquistador, mas protetor das águas e dos moradores do beira-rio, o
Mira (boto-gente), venerado por índios e caboclos.
Ainda hoje, a história persiste no imaginário dos ribeirinhos, como assinala Rodrigues:
Slater (2001) analisou discursos orais referentes à lenda do boto entre pessoas de várias
faixas etárias, sexo e cor, de comunidades assentadas ao longo do Rio Amazonas e de seus
principais afluentes. Entre sua amostra a autora notou que apesar das atitudes das pessoas
que acreditam no boto como ser místico esteja mudando, a crença no encantado não se
limita às pessoas mais idosas, pois uma grande parte dos narradores são crianças e
adolescentes que ouviram os contos de amigos ou parentes. (RODRIGUES; 2008: p. 18)
No contexto das comunidades ribeirinhas, cuja vida está muito ligada aos rios, a lenda é
contada não apenas para fins de entretenimento, mas se relaciona principalmente com a moral e a
delicada questão da sexualidade. Recorre-se à figura do Boto para explicar a paternidade
desconhecida de crianças e encobrir casos de gravidez fora do casamento, estupro, incesto, etc. É,
ao mesmo tempo, uma advertência às moças da região, bem como uma forma de proteger sua
honra quando o fato é descoberto, pois “se dessa relação nascer uma criança, a moral que regula o
costume local se altera em relação ao fato: “a mãe, ao invés de ser condenada por conceber um
filho fora do casamento, passa a ser aceita como vítima de algo sobrenatural, tido então como
moralmente aceito”” (BRITTO, in: SILVA; 2009: p. 91). Nesse sentido, o Boto se assemelha a
seres sobrenaturais que, de acordo com a mitologia. seduzem e mantêm relações sexuais com
humanos, entre eles o íncubo, demônio que molesta mulheres em seu sono. Esses seres, inclusive
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o Boto, podem ter sido criados pela sociedade ao longo do tempo para explicar assuntos
considerados tabu, ao invés de encarar a verdade atrás dos fatos.
A lenda do Boto é repleta de simbologia que remete ao erotismo, a começar pelo próprio
animal. O golfinho é símbolo de fecundidade, e na mitologia clássica é dedicado a Afrodite,
deusa grega do amor. Daí a proximidade da lenda com a sexualidade:
“Na antiguidade clássica, o delfim (família a qual o boto pertence) era dedicado a Vênus,
compondo a mística afrodisíaca, aparecendo ao lado da deusa do amor. O boto é um
símbolo fálico e os gregos registraram a sua sensualidade no fato de costumarem seguir as
embarcações nadando em movimentos ondulares que lembram a cópula humana e também
por terem a forma carregada de erotização na conformidade de sua cabeça, cuja figura está
associada à forma do pênis humano.” (BRITTO, in SILVA; 2009: p. 93)
Os olhos e órgãos sexuais do boto são vendidos como poderosos amuletos do amor.
Também presente na lenda é o elemento água, que simboliza a vida e tem uma importância
central para a população ribeirinha:
“Para quem conhece a Amazônia, não causa espanto que a psique dos habitantes,
principalmente a feminina, possa fazer nascer dos imensos rios uma figura de animus. A
presença das águas determina toda a vida da região, um verdadeiro planeta aquático, na
forma das correntes fluviais, enchentes, chuvas torrenciais (“torós”), enxurradas, ou
fenômenos incríveis como as “pororocas”. A comunhão da mulher com a natureza é tão
intensa, que um estrato de sua psique pode facilmente projetar-se nas águas e esperar dali
a vinda do amante sensual.” (MEDEIROS; s/d: s/p)
Rodrigues faz uma análise dos aspectos fantasiosos da lenda do Boto com base na
psicanálise, e identifica a sedução como elemento central da narrativa. O jogo de sedução, por
sua vez, traduz-se no narcisismo das partes envolvidas, tanto do sedutor quanto do seduzido:
“As mulheres seduzidas identificam-se com o ideal de perfeição projetado nelas pelo Boto
sedutor e, por sua vez, o Boto identifica-se com o ideal de perfeição projetado nele pelas
mulheres que desejam realizar os seus desejos narcísicos, através do desejo narcísico do
Boto de amar a si mesmo. Logo, nessa dupla, cada um procura a si como objeto perfeito, e
a lenda do Boto transmite uma mensagem inconsciente, latente ou oculta de narcisismo
escondido num enredo de sedução.” (SILVA; 2009: p. 123)
O Boto nos meios de comunicação
A aparição mais conhecida do Boto é no filme Ele, o Boto, de Walter Lima Jr., de 1987.
Nele, o Boto (Carlos Alberto Riccelli) tem um filho com a cabocla Tereza (Cássia Kiss), e anos
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depois reaparece para conquistá-la novamente, e ainda seduz sua irmã Corina (Dira Paes).
Bastante fiel à tradição folclórica, o aspecto mais marcante da história é o encantamento delirante
das mulheres por ele seduzidas, e que são levadas à loucura. “As moças têm suas vidas marcadas
pela sedução do Boto” (SILVA; 2009: p. 98). Tereza e Corina sonham e têm alucinações com ele,
e Corina acaba por desaparecer no mar depois de consumar a relação com o ser místico.
Na minissérie Amazônia, de Galvez a Chico Mendes, da Rede Globo, veiculada em 2007,
a lenda é contada pela personagem Delzuite (Giovanna Antonelli) para explicar sua gravidez,
quando Tavinho (Paulo Nigro) não assume a paternidade. O Boto é citado apenas em uma
passagem curta, porém, sua figura se faz presente no romance dos personagens: os dois se
conhecem enquanto Delzuite alimenta os botos no rio, e o figurino usual de Tavinho é terno e
chapéu brancos.
Outro exemplo de produção audiovisual é o curta Juro que Vi: o Boto, animação de
Humberto Avelar, de 2004. A lenda é contada como uma história de amor entre o Boto e uma
moça cabocla, especialmente dirigida para o público infanto-juvenil. Não apela, portanto, para o
erotismo marcante da lenda, embora, no final, apareçam em cena mulheres carregando bebês,
provavelmente filhos do Boto, e não perde o teor de sedução do mito.
No apêndice, se encontram ainda a letra da música Foi Boto, Sinhá!, composta por
Waldemar Henrique, e o poema Eu, o boto, de Antonio Juraci Siqueira, poeta popular paraense.
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Apêndice
Foi Boto, Sinhá! (Waldemar Henrique)
Eu, o boto (Antonio Juraci Siqueira)
Tajá-panema chorou no terreiro
Tajá-panema chorou no terreiro
Eu venho de um mundo
E a virgem morena fugiu pro costeiro
que tu não conheces;
Foi boto, sinhá
--do onde, do quando,
Foi boto, sinhô
do nunca, talvez...
Que veio tentá
E a moça levou
Eu venho de um rio
E o tal dançará
perdido em teus sonhos,
Aquele doutô
um rio insondável
Foi boto, sinhá
que corre em silêncio
Foi boto, sinhô
entre o ser e o não ser.
Tajá-panema se pôs a chorar
Tajá-panema se pôs a chorar
Eu venho de um tempo
Quem tem filha moça é bom vigiá!
que os homens não medem,
Tajá-panema se pôs a chorar
nenhum calendário
Tajá-panema se pôs a chorar
registra os meus dias.
Quem tem filha moça é bom vigiá!
sou filho das ondas
O boto não dorme
que gemem na praia,
No fundo do rio
sou feito de sombras
Seu dom é enorme
de luz, de luar
Quem quer que o viu
e trago em meu rosto
Que diga, que informe
mandinga e mistério
Se lhe resistiu
e guardo em meus olhos
O boto não dorme
funduras de um rio.
No fundo do rio...
Cuidado, cabocla!
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cuidado comigo
teus lábios tocarem,
que eu sou sempre tudo
e quando meus braços
que anseias que eu seja:
laçarem teu corpo,
--teus ais, teus segredos
e quando meu ser
tua febre e teu cio...
em teu ser penetrar
só então saberás
Se em noites de lua
quem sou e a que vim.
sentires insônia
e a fome de sexo
E assim que a semente
queimar tuas estranhas,
do amor, do desejo,
a sede de beijos
vingar em seu ventre
tua boca secar
gerando outro ser,
e em brasa teu corpo
não mais estarei
meu corpo exigir,
contigo. Somente
contigo estarei
a minha lembrança
na rede de encanto
permanecerá
cativo nas malhas
boiando nas águas,
da teia do amor.
barrentas, confusas
de tua memória
E quando teus olhos
cansada, febril...
fitarem meus olhos,
--Foi sonho? -- foi fato
e quando meus lábios
ninguém saberá!...
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Referências
RODRIGUES, Angélica Lúcia Figueiredo. O boto na verbalização de estudantes ribeirinhos: uma
visão etnobiológica. 2008. 94 f. Dissertação (Mestrado) – Universidade Federal do Pará. Belém, 2008.
Disponível em: <
http://www.ufpa.br/ppgtpc/dmdocuments/MESTRADO/DissertAngelicaRodrigues2008.pdf>
SILVA, Lorena Lima da. Psicanálise e folclore amazônico: uma leitura freudiana das lendas do
mapinguari, do boto e da cobra norato. 2009. 168 f. Dissertação (Mestrado) – Universidade de Fortaleza.
Fortaleza, 2009. Disponível em: < http://uol01.unifor.br/oul/conteudosite/F106634639/Dissertacao.pdf>
A interdição e os vínculos atuais. Psicologia no Cotidiano. Disponível em:
<http://www.psicologianocotidiano.com.br/colunistas/colunista_descri.php?id=13>. Acesso em: 9 out.
2011
Encantado: Dolphin-man of the Amazon River. Field Guide to Monsters of the World. Disponível em:
<http://monsterguide.blogspot.com/2006/02/encantado-dolphin-man-of-amazon-river.html>. Acesso em:
9 out. 2011
Juro que Vi: O Boto. Porta Curtas Petrobrás. Disponível em:
<http://www.portacurtas.com.br/filme.asp?Cod=3306>. Acesso em: 9 out. 2011
O Mito do Boto. Biblioteca Virtual do Amazonas. Disponível em:
<http://www.bv.am.gov.br/portal/conteudo/serie_memoria/21_boto.php>. Acesso em: 9 out. 2011
Top 10 Sex Demons. Listverse. Disponível em: <http://listverse.com/2011/01/13/top-10-sex-demons/>.
Acesso em: 9 out. 2011
Walter Lima Júnior: Viver Cinema. Google Books. Disponível em:
<http://books.google.com/books?id=51oBKgYnRZAC&lpg=PP1&pg=PA288#v=onepage&q&f=false>.
Acesso em: 9 out. 2011
ELE, o Boto. Direção: Walter Lima Jr.. Produção: Lucy Barreto, Luiz Carlos Barreto e Flávio R.
Tambelini. Intérpretes: Carlos Alberto Riccelli, Cássia Kiss, Ney Latorraca, Dira Paes, Paulo Vinicius,
Ruy Polanah, Maria Sílvia e outros. Roteiro: Walter Lima Jr.. Música: Wagner Tiso. Rio de Janeiro:
Embrafilme, c(...). 1 DVD (120 min), widescreen, color. Produzido por Warner Video Home. Baseada em
idéia de Vanja Orico.
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