1921½: Van Doesburg e (é) o vento que varre a Bauhaus de

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1921½: Van Doesburg e (é) o vento que varre a Bauhaus de
1921½: Van Doesburg e (é) o vento que varre a Bauhaus de Weimar nos anos 20
Fernando Vázquez Ramos
Comunicação apresentada no VII Forum de Arte de Brasília, 2009
A constatação histórica da validade desta premissa implica aceitar que a forma da representação
influencia aquilo que pode ser projetado. Tanto como postura ativa (capaz de mobilizar imaginação,
pesquisa, experimentação) como passiva (institucionalização consolidada de específica forma de
projetar, norma ou convenção que facilita desenvolver séries temáticas/estilos).
RESUMO:
Na sua polêmica tese sobre a Poética da arquitetura neoplástica, de 1953, Bruno Zevi afirmava
contundentemente que, sem Theo Van Doesburg, a mais importante escola de arquitetura moderna
da Europa, a Bauhaus de Weimar, não teria conseguido definir a linha de ação didática pela qual é,
ainda hoje, reconhecida. Sem ele, acrescentava Zevi, tampouco arquitetos como Rietveld ou Mies
van der Rohe teriam encontrado seu caminho. Nosso trabalho indaga essas afirmações buscando
entender a natureza das relações que se estabeleceram entre os postulados de uma nova dimensão
espacial e representacional, capaz de afetar tanto à arquitetura quanto à pintura, defendidos pelo
fundador do De Stijl, e as mudanças de orientação metodológica e estética que ocorrem na
arquitetura européia justamente após a passagem do holandês pela cidade de Weimar, entre 1921 e
1922.
Palavras chave: Neoplasticismo, Bauhaus, representação
Uma montagem feita por Marcel Breuer1 (1902-1981), em 1926, possui um título singular, “eine
buhaus-film, fünf jahre lang”2, cujo “autor”, segundo reza o texto que faz parte da montagem, é “a
vida que exige seus direitos” e cujo “operador”, de acordo com o mesmo texto, é Breuer, “que
reconhece estes direitos”. Temos nesta obra simples e concisa uma enigmática seqüência de datas
que balizam o decorrer dos “cinco anos”, aos quais o filme faz referência: 1921, 1921½, 1924, 1925 e
19??.
A sequência fotográfica é muito significativa: o primeiro fotograma apresenta uma cadeira “romântica
(africana)”, projetada por Breuer em 19213; a segunda é uma peça tipicamente Arts and Crafts4,
desenvolvida também em 1921, conjuntamente por Breuer e a artesã têxtil Gunta Stöltz5 (18971983); a terceira cadeira ... , pois bem, a terceira cadeira é um problema.
Foi chamada de “Tl-1a”6, e construída na enigmática data de 1921½, mas não é uma cadeira
Bauhaus, destoa das anteriores ainda que mantenha uma ligação com as posteriores. Trata-se de
um modelo feito com sarrafos, de igual seção, cortados em tamanhos específicos dependendo de
sua função na conformação da peça. Contudo, estes sarrafos são só utilizados nas partes
“estruturais” da cadeira. Os planos de sustentação do corpo humano, isto é, o assento e o encosto,
foram projetados para serem construídos com tecido. A “Tl-1a” não é uma cadeira, é uma malha
espacial capaz de sustentar elementos flexíveis (tecidos) que servem para se sentar. Sua matriz
conceitual teve origem, acredita-se7, na famosa cadeira “vermelho/azul”8, projetada por Garrit
Rietveld9 (1888-1964) em 191810, a típica cadeira De Stijl.
Ora, se a cadeira “vermelho/azul” é o modelo que influenciou o jovem Breuer, porque isto aconteceu
só em 1921½, quando o projeto original de Rietveld é de 1917-18 e já tinha aparecido uma foto dela
na revista De Stijl, em 191911?
No mês de abril de 1921, Theo Van Doesburg (1883-1931) 12 se muda, com sua esposa Nelly, para
Weimar. Christian Emil Marie Küpper, como de fato se chamava Van Doesburg, era pintor, escritor, e
principalmente agitador inflamado e persuasivo (Rickey, 2002:57) de uma nova estética, de uma
nova forma de ser e de fazer no mundo, o Neoplasticismo. Foi fundador deste movimento junto a
outros artistas holandeses, como o pintor Piet Mondrian (1872-1944) e o arquiteto J.J.P. Oud (18901963). Foi também fundador, em 1917, da revista De Stijl (1917-1932)13.
1
Marcel Breuer, arquiteto, aluno Bauhaus (1920-1924); mestre e Diretor da Oficina de Móveis (1925-1928).
2
“Um filme bauhaus, cinco anos de duração”. Ver Fiedler (2000:21).
3
Cadeira resultado da experimentação expressionista que retrabalha as vertentes subjacentes à própria formação da Bauhaus: a tradição
romântica e eclética das escolas Beaux-Arts e as descobertas vanguardistas de outras possibilidades de apreensão dos significados da arte
por culturas não européias – como no Cubismo. Ver Fiedler (2000:321).
4
Colaboração entre artistas e artesãos, que se enquadra dentro da proposta inicialmente desenvolvida pelas escolas de artes e ofícios pós
morrisianas, como a Bauhaus. Ver Fiedler (2000:472).
5
Gunta Stölzl, tecedora, aluna Bauhaus (1919-1924); mestre (1925-1931); Diretor da Oficina de Tecidos (1927-1931).
6
Parece a denominação de um protótipo científico ou, pelo menos, técnico ou mecânico. Ver Droste (1991:55).
7
Historiadores da Bauhaus (Droste, 1991:54), como do De Stijl (Overy, 1991:159) indicam relação entre as peças de Rietveld e Breuer.
8
Ver (Warncke, 1994:121).
9
Gerrit Rietveld, marceneiro e arquiteto, membro De Stijl (1918-1927). Seus móveis sempre foram recebidos com alvoroço, pois
apresentavam em três dimensões os preceitos da pintura desenvolvida pelos artistas neoplásticos. Trabalhou junto com Van Doesburg e
com outros membros do grupo, como com Vilmos Huszàr (1884-1960), em vários projetos para interiores.
10
A versão mais conhecida é a de 1923 que inclui as cores vermelho e azul. O protótipo de 1917-18 não tinha cores e ainda tinha alguns
elementos a mais. A concepção desta cadeira é devedora das aulas e do trabalho de Piet Klaarhamer (1874-1954), que foi professor de
Rietveld e também seu patrão numa fabrica de móveis. (Warncke, 1994:120).
11
O modelo que apareceu numa foto PB em: DE STIJL (v.2/n.11/set.1919:132) foi o do protótipo com as placas embaixo dos braços e sem
pintura.
12
Morou e lecionou em Weimar (1921-1922). Em 1923 se instalou em Paris. Morreu em Davos em 1931.
13
Órgão oficial do movimento Neoplástico até 1923. Com algumas reservas, pode ser ainda considerado assim até 1925. Depois desta data
passa a ser realmente o veículo de expressão das idéias e opiniões de Van Doesburg.
Figura 1 – A Bauhaus pichada por De Stijl. Postal com o edifício da Bauhaus em Weimar, alterada
com textos escritos a mão por Theo Van Doesburg. Enviada pelo autor para o poeta Antony Kok em
12 de setembro de 1921. Haags Gemeentemuseum, Haia (Droste, 1991:56).
De acordo com algumas fontes14, Van Doesburg foi convidado a se mudar para Weimar com a
finalidade de se tornar mestre na Bauhaus. Outras fontes15, entre elas Walter Gropius16 (18831969), afirmam que este convite nunca existiu. Ainda assim, por uma ou por outra razão, o fato foi
que nosso pintor foi a Weimar e visitou a Bauhaus imediatamente. Foi recebido por Gropius, quem o
encaminhou a Johannes Itten17 (1888-1967) para uma entrevista.
O resultado desta conversa, e da valoração dos trabalhos dos estudantes que teve oportunidade de
avaliar durante aquela visita, foi terrível. De acordo com Zevi, o pensamento de Van Doesburg foi
que na Bauhaus “tinham que começar tudo de novo” (Zevi, 1960:13). Para entendermos esta
sensação, devemos primeiro perceber com exatidão qual foi a Bauhaus que o holandês visitou em
1921½.
A Bauhaus Estatal de Weimar foi o resultado da unificação da Escola Superior de Arte do Grão
Ducado de Sachsen-Weimar e da Escola de Artes e Ofícios de Weimar, que tinha sido fundada, em
1906, e dirigida pelo arquiteto e pintor belga Henry van de Velde (1863-1957). Em 1919 Gropius se
torna seu primeiro Diretor e dá início aos trabalhos na nova escola seguindo os princípios
estabelecidos no Manifesto de Fundação (Gropius, 1971:195):
“Arquitetos, pintores e escultores, devemos todos nos voltar ao artesanato ...
Não
existe
diferença
substancial
entre
artista
e
artesão
...
Criemos
uma
nova
corporação
de
artesãos
…
Criemos juntos o novo edifico do futuro que juntará tudo numa única criação integrada: arquitetura,
pintura e escultura, elevando-se aos Céus a partir das mãos de um milhão de artesãos, símbolo de
uma cristalina nova fé no futuro”.
Trata-se, sem dúvidas, de um programa Arts & Crafts embasado por uma forte simbologia
expressionista. Esta vertente expressionista vê-se reforçada na capa do Manifesto, uma gravura de
Lyonel Feininger18 (1871-1956). O desenho, com forte apelo às formas cristalinas da catedral gótica,
14
Entre os autores que sustentam que Van Doesburg foi convidado a lecionar em Weimar por Gropius estão: Bruno Zevi (1960:13), Reyner
Banham (1979:297) e Kenneth Frampton (2003:175).
15
Tanto Giulio Carlo Argan (1957:69-70) como Leonardo Benevolo (1976:408) fazem parte deste grupo.
16
Walter Gropius, arquiteto, Diretor da Bauhaus (1919-1928), mestre de forma na Oficina de Marcenaria (1921-1925). Projetou os edifícios
da Escola na sede de Dessau. Com referência à visita de Van Doesburg a Weimar, o próprio Gropius mandou uma carta a Bruno Zevi em
1952 para ratificar que “nunca tinha convidado Van Doesburg para que fosse à Bauhaus” (Zevi, 1960:101).
17
Johannes Itten, pintor/profeta, mestre Bauhaus (1920-1923). Além de ministrar o famoso Curso Preparatório, dirigiu várias oficinas,
como: Metal, Pintura Mural e Pintura em Vidro. Também dirigiu um curso especial sobre forma.
18
Lyonel Feininger, pintor, importante expoente do Expressionismo alemão. Mestre Bauhaus (1919-1925); diretor da Oficina de Gráfica
(1920-1925); mestre sem obrigação de dar aulas (1925-1932).
apresenta uma marcada influência do pensamento e da obra gráfica de Bruno Taut19 (1880-1938),
que foi um arquiteto admirado não só no meio artístico alemão da época, mas especialmente “muito
admirado” por Gropius (Droste, 1991:19).
Em geral, quase todos os historiadores de arquitetura aceitam que a Bauhaus nasce de berço
expressionista. Uma das razões desta afirmação se deve ao fato de que muitos dos professores
eram artistas que se desenvolveram dentro do Expressionismo alemão, como Feininger ou o
excêntrico Itten, de quem Magdalena Droste disse que era “o personagem mais importante na
primeira fase da Bauhaus” (Droste, 1991:24).
Itten alcançou esta posição de destaque já no primeiro ano de funcionamento da Escola, primeiro
porque seus alunos de Viena o acompanharam a Weimar20 e, segundo, porque professava, junto
com muitos alunos da escola, uma doutrina pseudo-orientalista chamada Mazdaznan 21. Mas, a
força de Itten se devia ao fato dele ter criado o primeiro Vorkurs, isto é, o Curso Preliminar obrigatório
para todo aluno iniciante na Escola, convertendo suas classes na “espinha dorsal da educação e
repercutindo no trabalho das oficinas” (Droste, 1991:25).
A base do trabalho de Itten se estruturava em torno do estudo dos velhos mestres da pintura
ocidental e de exercícios específicos de desenho e pintura, incluindo: desenho de nus; estudos de
modelos plásticos; e, a cópia do natural, especialmente de naturezas mortas22. A pintura de Itten
tinha temática simbólica (especialmente relacionada com a liturgia Mazdaznan) e certa ingenuidade
figurativa que as assimilava a “iluminuras” ou “ilustrações” para livros infantis23. A finalidade de sua
prática docente era a de desenvolver experiências intimistas e subjetivas nos alunos para despertar
“uma personalidade harmoniosa” da qual afloraria a arte, ainda que, para isto, fosse necessário
desenhar muitos cardos.
A pintura do “quadro de horários para o semestre de inverno, 1921-1922”24 realizada por Lothar
Schreyer25 (1886-1966) a finais de 1921 é um excelente exemplo da estética que dominava a
Bauhaus de Weimar quando Van Doesburg entrou nela em 1921½ e saiu horrorizado. Não se podia
pretender que um homem como o holandês, defensor da racionalidade e da estrutura organizativa da
arte como resultado da força do intelecto e da abstração coletiva, compactuasse com
sentimentalismos expressivos de um individualismo interiorizado psicologicamente que dominavam a
Bauhaus a través de monges carismáticos como Itten.
Van Doesburg alugou logo um local perto da Bauhaus e instalou seu próprio curso De Stijl com a
clara intenção de reeducar, desde fora, não só os alunos26 da Bauhaus, mas, também seus
professores27 e, até, alguns arquitetos do circulo pessoal de Gropius28. E, deste modo agindo,
declarou uma guerra sem quartel aos Bauhauslers que desembocaria numa confrontação agressiva
e perigosa.
19
Bruno Taut, arquiteto, militante ativo dentro do Expressionismo. Escreveu Die Stadtkrone (1915-17) e Alpine Architektur (1919). Foi
membro do Arbeistrat für Kunst e do Novembergruppe fundado por Max Pechstein (1881-1955), em 1918, ao qual também pertenciam,
entre outros: Hans Poelzig (1864-1936), Walter Gropius, Ludwig Mies van der Rohe (1886-1969), Erich Mendelsohn (1887-1953) e Hans
Richter (1888-1976).
20
Catorze alunos organizados como um grupo coeso e muito atuante autodenominado “as Vienenses”.
21
A doutrina Mazdaznan promulgava a alimentação vegetariana, o jejum regular, exercícios respiratórios, obrigatórios nas classes de Itten, e
um tipo de educação sexual repleta de ritos expurgatórios. Os alunos que pertenciam a esta seita respeitavam a Itten como uma espécie de
“sumo sacerdote”.
22
São famosos os desenhos de “cardos” que o suíço obrigava aos estudantes a fazerem durante suas aulas. Ver um destes desenhos,
realizado pela aluna Gunta Stölzl, em Droste (1991:31). Uma interessante e bem humorada crítica a esta imposição do desenho dos cardos
pode ser encontrada no desenho de Karl-Peter Röhl (1890-1975) “O contemplador de cardos” (1922), onde o autor apresenta a “colisão
entre o homem naturalista e o mecânico em Weimar no ano de 1922”. O homem mecânico não é outro que Van Doesburg. Ver Fiedler
(2000:30).
23
Ver “Saudações e salvação para os corações iluminados pela luz do amor e que não se deviam a causa da esperança do céu nem por
medo ao inferno”, em Fiedler (2000:123); ou “Quadro de crianças”, em Fiedler (2000:234).
24
Ver Fiedler (2000:182).
25
Lothar Schreyer, dramaturgo/pintor. Em 1918 funda um teatro expressionista experimental em Berlim. Mestre e Diretor da Oficina de
Teatro da Bauhaus (1921-1923).
26
O curso teve início em março, 1922. Tinha cerca de 25 alunos inscritos, muitos deles eram alunos da Bauhaus (Frampton, 1982:107):
Karl-Peter Röhl, Marcel Breuer, Werner Gräff, Farkas Molnár (1897-1945), Herbert Bayer (1900-1985).
27
László Moholy-Nagy (1895-1946) e Josef Albers (1888-1976).
28
Adolf Meyer (1881-1929), sócio do escritório de Gropius em Berlim, declarado admirador de Van Doesburg.
O que poderia estar ensinando este holandês teimoso, no seu pequeno ateliê, que obrigou os
dirigentes da Bauhaus a proibir29 seus alunos de freqüentar os cursos De Stijl?
A finalidade do curso De Stijl não era outra que a de difundir a mensagem de uma arte neoplástica e
de um pensamento abstrato-construtivo centrados nos aspectos referidos ao design e à arquitetura
(Warncke, 1994:157). Neste sentido, o curso era totalmente revolucionário e anti-expressionista,
baseado no entendimento de que “o acidental e o individual só proporcionam confusão e
desarmonia” (Rykwert, 1971:110).
Van Doesburg estava interessado em demonstrar a existência da autonomia das artes, que se fazia
evidente no trabalho específico de cada uma delas, sempre e quando cada uma se dedicasse a sua
“essência vital”. À música cabia o tom, à pintura a cor, à escultura o volume e à arquitetura o espaço
(Doesburg, 1985:40-44). Diferenciando, assim, o ato lícito de “plasmar” contra a serventia do
“representar” na arte:
“No momento no qual a arte se afasta de seu destino deixando de plasmar para representar, isto é,
expressando de forma indireta e não direta (quer dizer, com os meios que lhe são próprios), se faz
impuro e perde sua força autônoma” (Doesburg, 1985:65-PN)30.
Agregando, especificamente, para a arquitetura que:
“O essencial da nova arquitetura, a arquitetura plástica, consiste em que é informe, isto é, que
rechaça todo esquema formal ou tipo aceito a priori, assim, distingue-se de todo estilo do passado
(...) (ela) é anti-alegórica, anti-simbólica e anti-decorativa, numa palavra só: anti-forma.” (Doesburg,
1985:123)
Nosso pintor decidiu enfrentar durante sua estadia em Weimar o problema da arquitetura, ao qual
tinha se dedicado só de forma genérica nos seus escritos anteriores31. Contudo, não se tratava de
um interesse arbitrário nem aleatório. No final de 1920, o marchand Léonce Rosenberg (18791947)32 discutiu com ele a possibilidade de desenvolver um projeto para sua futura casa de campo
seguindo os preceitos De Stijl. De acordo com Michael White, foi na primavera de 192133 que aquela
possibilidade, apontada em conversas informais, se transformou num convite real para a realização
de uma exposição De Stijl em Paris34, que incluiria o projeto da casa de campo (White, 2003:121121). Assim sendo, podemos inferir que Van Doesburg viajou a Weimar já com a ideia da exibição
em mente. No entanto, uma exposição sobre arquitetura De Stijl em 1921 era um tema complicado,
uma vez que os arquitetos do grupo praticamente o tinham abandonado35.
Van Doesburg tinha que arranjar um arquiteto que se interessasse pelos postulados neoplásticos e
que fosse capaz de produzir uma arquitetura De Stijl ou, do contrário, fazê-la ele próprio. Weimar
parecia um lugar promissor para achar este colaborador. Foi naquela cidade no início de 1922 onde
conheceu a Cornelis Van Eesteren36 (1897-1888), jovem arquiteto de 24 anos que se encontrava de
passagem para Itália. Ainda que formado no ambiente tradicional da Escola de Amsterdam, Van
Eesteren se interessou pelas propostas de trabalho do pintor, incluindo, imaginamos, o atraente
convite para uma futura exposição em Paris. Assim, a vitalidade do jovem arquiteto e a clareza
29
“Na entrada [da Escola] foi colocado um aviso que proibia aos inscritos freqüentar os cursos de Van Doesburg” (Zevi, 1960:14).
30
Citação extraída de Princípios da nova arte plástica de 1917 (publicado em holandês em 1919). O texto original foi rigorosamente
corrigido, modificado, simplificado e traduzido ao alemão (Doesburg, 1985:29 e 209) durante a estância do pintor em Weimar entre
1921-1922. Publicado em alemão em 1925. Este texto pode ser lido como guia das aulas que eram ministradas no atelier de março a julho
de 1922 (Margolin, 1997:48), pois ele trabalhou arduamente sobre estes “Princípios” discutindo-os com seu amigo o fotografo Max
Burchartz (1887-1961) e com os outros visitantes.
31
Ver: Ruimte-plastische binnenarchitectuur (DE STIJL, anoI/n.6/abr.1918:71-72); Moderne Bouwkunst bij Noodwoningen in gewapend
beton (DE STIJL, anoI/n.8/jun.1918:96); Eenige losse gedachten over moderne architectuur in verband met het zomerhuis te huis ter
heide, architect robt. van ’t hoff (DE STIJL, anoII/n.2/jan.1919:31-32); Moderne wendingen in het kunstonderwijs (publicado em 7 Partes
em DE STIJL, jan.-out. 1919); De taak der nieuwe architectuur (3 Partes em Bouwkudig Weekblad, dez. 1920 e jan. 1921); De beteekenis
der mechanische esthetiek voor de architectuur en de andere vakken (3 Partes em Bouwkudig Weekblad, jun.-ago. 1921).
32
Rosenberg foi importante marchand e colecionador de arte francês. Teve especial influência na difusão e aceitação do Cubismo (cujos
quadros colecionava desde 1914) entre museus e colecionadores de toda Europa, entre eles M. e Mdme Kroller-Müller, a quem vendeu,
em 1921, parte de sua coleção de obras cubistas (White, 2003:120). Foi marchand de Picasso, Herbin, Léger e Gris. Desde 1919
comercializava as telas de Mondrian e estava realizando, no início dos anos 20, um trabalho de promoção do Neoplasticismo.
33
Frampton indica datas similares (1982:34). Imaginamos que tenha sido em março uma vez que em abril estava se mudando para Weimar.
34
A exposição Les architects du Groupe “De Stijl”- Galerie de L’Effort Moderne, out.-nov. 1923 (Sainz, 2005:143).
35
Robert van 't Hoff (1887-1979) e Jan Wils (1891-1972) abandonaram o movimento em 1919; Oud em 1920. Em 1921 permanecia só
Rietveld, mas nessa época ainda era visto como marceneiro e não como arquiteto.
36
Cornelis Van Eesteren, arquiteto. De passagem, a caminho de Roma, era vencedor do Grand Prix da Academia de Amsterdam.
conceitual do maduro pintor unificaram-se37 num só esforço tendente a desenvolver uma nova
proposta de arquitetura que fizesse jus ao ideário De Stijl38.
O primeiro trabalho desenvolvido por Van Doesburg foi emblemático. Realizou uma adaptação do
projeto com o qual Van Eesteren tinha ganhado o Grand Prix no ano anterior: o “Hall de uma
Universidade”. Nesta proposta de interiorismo39, Van Doesburg destrói a percepção do espaço
arquitetônico tradicional e convencional, proposto no projeto do jovem arquiteto, a partir da
introdução de uma grelha de cor preta – que encerra planos de cores primários – pintada no teto do
grande Hall40. A grade segue uma orientação diagonal que imprime um movimento circular no
espaço diluindo sua composição simétrica. A assimetria também se sobrepõe ao espaço a partir da
aplicação de grandes quadrados de cor pintados no piso e nas paredes de forma a se opor
visualmente, o que obriga a pensar novamente na existência de linhas diagonal que sulcam o imenso
vestíbulo. É a primeira vez que um trabalho neoplástico se efetua utilizando uma trama diagonal, ou
insistindo na geração de diagonais41. A pintura consegue com esta nova disposição da grelha de
sustentação dos planos de cor, de forma oblíqua, que o espaço interno adquira um efeito de
movimento que rompe com a caixa muraria42 estabelecida pela organização ortogonal da estrutura
convencional e suas paredes.
Van Doesburg transmuta um simples e despretensioso exercício de representação acadêmica numa
obra De Stijl, revolucionariamente inovadora, capaz de plasmar a nova percepção da arquitetura
como espaço. Este trabalho emblemático, ao mesmo tempo em que destrói o Van Eesteren original,
e com isto – de forma alegórica – também toda a arquitetura tradicional, e constrói o ponto de partida
unificado para uma colaboração – entre arquitetura e pintura –, levará ao reposicionamento da
arquitetura como arte que trata do espaço.
Mas, o ambiente de Weimar não era favorável a estas revelações.
“No inverno de 1922 jogaram pedras contra as janelas do ateliê alugado por Van Doesburg e, pior
ainda, algumas semanas mais tarde, durante uma recepção alguns meliantes atiraram contra o
edifício. Ele tinha desencadeado ânimos adversos, e até mesmo a sabedoria de Gropius não
conseguiu apaziguá-los. Um escultor, discípulo de Van Doesburg, repetidamente, alertou que, a
menos que ele deixasse Weimar, ele seria assassinado.
Mas Van Doesburg não podia ir-se. Ele estava preparando uma exposição de suas obras no Museu
de Weimar e também estava imerso no desenvolvimento de dois projetos ...” (Zevi, 1960:14)
Pelo que o Zevi disse, e de acordo com a cronologia, os dois projetos nos quais estava envolvido o
holandês só podiam ser o Hôtel Particulier e a Maison Particulière43. O primeiro não é outro que o
projeto da casa de campo que Léonce Rosenberg lhe solicitara em Paris 1920. O segundo fazia
parte da proposta para a exposição na Galerie l’Effort Moderne que o mesmo marchand lhe tinha
proposto em Amsterdam em 1921 (Troy, 1982:177). Portanto, podemos supor que nosso pintor e seu
jovem arquiteto estavam começando a trabalhar nos projetos destas casas ao mesmo tempo em que
Van Doesburg estava ministrando seu curso De Stijl para os alunos e professores da Bauhaus.
37
Van Doesburg estava acostumado a trabalhar em conjunto com arquitetos. Ver suas colaborações com Oud (De Vonk, 1917-18 e Bloco
VIII-Spangen, 1921); com Jan Wils (café De Dubbele,1918); com Rietveld (Katwijk, 1919); e com Cees Rinks de Boer (Drachten, 1921).
Ver Warncke (1994:cap.5) e Padovan (2002:9).
38
Van Doesburg já tinha criticado o trabalho de Oud, o que foi uma das razões da ruptura de 1921. Não é possível falar de arquitetura De
Stijl antes de 1923 (Zevi, 1960:55-57).
39
Os trabalhos de arquitetura de interiores eram comuns e muito apreciados pelos arquitetos e pintores do grupo. Ver: decorações para o
atelier de Modndrian em Paris; trabalhos realizados por Van Doesbourg e Oud; por Vilmos Huszár e Jan Wils, ou, ainda, por Huszár e
Rietveld (White, 2003:103-135).
40
Van Doesburg estava seduzido pelo sistema de grades, devido a sua natureza repetitiva e, fundamentalmente, projetiva (Bois, 1990:131).
O Neoplasticismo se baseia na utilização de linhas horizontais e verticais. A insistência no uso de diagonais, que Van Doesburg descobriu
neste trabalho, será um dos motivos principais da ruptura com Mondrian em 1925.
41
42
A ruptura da caixa muraria era considerada como uma ação necessária em conseqüência da transposição das intenções do cubismo com
referência à ruptura da forma naturalista pré-moderna - cuja representação mais direta se encontra na arquitetura cubo-expressionista
checa (Vegesack, 1992). E também na exploração do trabalho de Wright realizado pelos arquitetos De Stijl, Oud e Robert van ‘t Hoff
(Warncke, 1994).
43
Geralmente a historiografia data estes dois projetos no ano de 1923, porque foi nesse ano que foram expostos em Paris. No entanto, é
muito provável que pelo menos o Hôtel tenha sido desenvolvido em Weimar durante 1922. Pela associação dos nomes e pela evolução e
detalhamento do projeto da Maison Particuliére é também possível que este tenha começado a ser desenvolvido no verão de 1922.
Ainda que o Hôtel Particulier seja o maior e mais elaborado dos projetos44, certamente não é o mais
interessante45. Por sua proposta revolucionária e carregada de novidade, o projeto da Maison
Particulière, talvez justamente por não ser um projeto destinado a um cliente real, seja o mais
significativo. Tratava-se de uma auto-encomenda com a finalidade de apresentar algumas idéias
precisas sobre o que deveria ser a arquitetura moderna, entendida desde uma ótica De Stijl – isto é,
um Manifesto. Seu irmão gêmeo – o projeto para a Maison d’Artiste (este sim desenvolvido em 1923)
– comparte com ele, amplificando-o, todo seu poder de re-significação da arquitetura como evento
destinado ao espaço46.
É importante ressaltar que a forma na qual o projeto foi desenvolvido e apresentado é alheia à
pratica convencional e corriqueira dos anos 20, pois os artistas usaram axonométricas47 para
desenvolver e apresentar seu projeto.
Figura 2 – Projeção axonométrica da Maison Particulière, Theo Van Doesburg e Cornelis Van
Eesteren, 1923. Tinta e guache sobre papel (57 x 57 cm). Rijksdienst Beeldende Kunst, Haia.
De mais está dizer que as axonometrias “são o sistema menos utilizado, em termos quantitativos, na
história do desenho de arquitetura” (Sainz, 2005:137). Sua utilização sempre se viu constrangida
porque é um tipo de projeção que não oferece com facilidade as informações necessárias para
construir, como o faz, por exemplo, uma planta; nem tampouco dá uma ideia clara de como vai ser “a
cara” do edifício, como o faz uma elevação (Sainz, 2005:138). Também, sempre foi considerada uma
projeção hermética difícil de ser entendida por leigos, isto é, “desenho de arquitetos para arquitetos”
(Pérez-Gómez, 2000:317); ou, ainda, um sistema de representação gráfica de tipo técnico ou
científico destinado à apresentação descritiva de um problema geométrico, mecânico, formal.
44
Dos três projetos é o único com um terreno real. A bela maquete apresentada na exposição foi feita por Rietveld na sua marcenaria.
45
Ainda que a volumetria e os elementos construtivos apresentassem uma notória novidade, este projeto segue a tradição da elaboração
prismática desenvolvida por vários artistas daqueles anos. Ver as esculturas de Georges Vantongerloo (1886-1965), que apareceram
repetidas vezes na revista De Stijl, e os trabalhos da série “Arquitetônica” do russo Kazimir Maliévitch (1878-1935), especialmente a
escultura “Alfa”, 1920 (Petrova, 2009:156).
46
O projeto para a Maison d’Artiste foi quase todo desenvolvido por Van Doesburg pessoalmente (Van Eesteren apud Padovan, 2002:89).
47
De fato, a utilização de axonométricas pode considerar-se totalmente atípica para uma apresentação de arquitetura, como projeto, em
qualquer período anterior. Axonométrica ou perspectiva paralela, ou ainda axonometria, é uma projeção cilíndrica ortogonal sobre um
plano oblíquo em relação às três dimensões do corpo a representar. No caso do projeto em questão foram usadas axonométricas oblíquas
militares.
A história das axonométricas as situa neste patamar analítico, quase taxonômico, pois foram usadas
fundamentalmente por engenheiros militares48 e geômetras49 para destrinchar e explicar objetos os
mais variados, entre eles arquiteturas. Auguste Choisy (1841-1904) as usou exaustivamente como
ferramenta descritiva, explicativa e didática dos esquemas construtivos ou compositivos das
arquiteturas históricas50.
Porque usar, então, uma representação anacrônica e praticamente banida do âmbito da prática
arquitetônica desde mediados do século XIX51 ? Porque usar uma representação que não era usada
por nenhum arquiteto naquele momento, fosse ele eclético, expressionista, futurista ou purista ?
Porque utilizar uma “ferramenta” do mundo da mecânica e da engenharia, da matemática e da
geometria, ou da architecture raisonné ? Porque usar uma axonométrica militar?
A resposta mais direta é que as axonométricas são feitas com “diagonais”. E as diagonais se
transformaram num aspecto essencial do trabalho de Van Doesburg, depois de tê-las utilizado pela
primeira vez no teto do projeto de Van Eesteren52. Depois, porque seu “alto nível de abstração e
ambigüidade” permite uma “maior proximidade à essência do objeto” (Sainz, 2005:145), uma vez
que, ao não ser uma representação ótica, e sim geométrica, independe da aparência do mesmo53.
São exercícios de compreensão e interiorização que se fazem sobre os objetos desde um ponto de
vista sintético.
As axonométricas são, neste aspecto, particularmente bem dotadas, pois só com elas é possível
apresentar graficamente as três dimensões do espaço num desenho único, isto é, sintético54. O que
nos leva ao último ponto, as axonométricas tratam do espaço enquanto que relacionado com a
geometria daquilo que o compõe. No caso de Van Doesburg este aspecto é fundamental, uma vez
que ele sempre defendeu que a essência da arquitetura, aquilo que ela deve plasmar, é justamente o
espaço55, “como condição fundamental de toda arte plástica” (Doesburg, 1985:32).
Os quadros de Van Doesburg deixam o observador “como se estivesse flutuando” no espaço (Evans,
2000:339). Os projetos de Van Doesburg fazem o mesmo, deixam o observador em um ponto
remoto, flutuando, permitindo-lhe perceber, de uma forma objetiva, os elementos estruturais da
arquitetura, isto é, os planos e o espaço no qual eles se desenvolvem, ao mesmo tempo em que o
determinam.
48
“Francesco di Giorgio Martini, que, no seu Trattato di architettura civile e militare, foi o primeiro a utilizar exaustivamente as projeções
paralelas na representação de cidades e fortificações, dando origem assim à tradição axonométrica da arquitetura militar” (Sainz,
2005:140). A história das isométricas pode ser rastreada até o Renascimento, enquanto as axonométricas são uma criação do século XIX
(Pérez-Gómez, 2000:318).
49
Desde Girard Desargues (1519-1662), primeiro geômetra a tratar cientificamente o problema da perspectiva axonométrica nos seus
estudos de “geometria projetiva”, até Gaspar Monge (1746-1818) e os geômetras da École Polytechnique, cuja influência se estenderá até
Jules Henri Poincaré (1854-1912), muito admirado por Van Doesburg.
50
Choisy usou a técnica inicialmente no L’Art de bâtir chez les romains (1873), e mais tarde na Histoire de l’architecture (1899).
51
O livro de Joseph Jopling, The Practice of Isometrical Perspective (1833), foi o primeiro tratado dedicado exclusivamente a este método
(Pérez-Gómez, 2000:316).
52
As axonométricas oferecem este sentido construtivo do uso das diagonais para o entendimento e a captação de espaços cúbicos, triédricos,
representados em superfícies planas.
53
As axonometrias apresentam-se como ferramentas objetivas para entender o mudo real, mais do que como representações (ilusionistas) de
construções reais. A perspectiva é sobre o sujeito, um específico observador que observa, enquanto a axonometria é sobre o objeto,
independentemente do observador (Pérez-Gómez, 2000:317).
54
O “espaço se reproduz não no seu aspecto visual, mas submetido a uma transformação geométrica, suficientemente singela e legível,
como para que o fato de compreender sua organização seja uma operação relativamente simples” (Sainz, 2005:137).
55
Neste ponto discrepamos com Padovan (2002:175) que chega a dizer que Van Doesburg “dá surpreendentemente pouco interesse ao
espaço no seu manifesto arquitetônico”. O que parece ser inexato se pensarmos que dos 17 pontos do manifesto (Doesburg, 1985:114118) pelo menos em 11 (2, 5, 7, 8, 9, 10, 11, 12, 14, 15 e 17) existe alguma referência ao espaço entendido como um “espaço geral” que
pode ser subdividido em espaços diferentes, ou ainda como “espaço-tempo”.
Figura 3 – Construction des couleurs dans la 4ème dimension de l’espace-temps, Theo Van
Doesburg, 1924. Tinta e guache sobre papel (56,3 x 56 cm). Stedelijk Museum, Amsterdam.
Van Doesburg era um apaixonado pelo tema da Quarta Dimensão, que é o universo do “espaçotempo”56. De acordo com vários autores57, esta espacialidade diferenciada tem a ver com a adição
de cores ao espaço. A sucessão de quadros pintada por ele entre 1923 e 1925 dão um forte indício
de como foi descobrindo as relações que se estabelecem entre cor, espaço e arquitetura (Azar,
2008:54): Contre-constrution (1923); Constrution de l’espace-temps II (1924); e, Constrution dês
couleurs dans la quatrième dimension de l’espace-temps (1924-1925)58. As axonométricas do
projeto da Maison Particulière são “as que inauguram pela cor uma nova relação entre espaço e
tempo, introduzindo uma nova dimensão no campo da arquitetura” (Azar, 2008:53).
Este novo espaço que está sendo descoberto pela primeira vez para a arquitetura, desacostumada a
lidar com ele, não é o Raum (Banham, 1979:259) fechado de Hendrik Berlage (1856-1934) ou o
detalhado interior de Adolf Loos (1870-1933). Está bem mais perto, ainda que com ressalvas, dos
entendimentos da arte abstrata russa, especialmente próxima das experimentações dos Prouns de El
Lissitzky onde “a pintura se transforma em arquitetura”59.
Mas, a cor associada à arquitetura, aos elementos que a compõem, possibilita uma nova percepção
destes quando eles flutuam no espaço, entendido como espaço-tempo. Por esta razão, concordamos
em que:
56
O futurista Gino Severini introduziu o tema na revista DE STIJL, n.4/fev.1918 (Padovan, 2002:8). “Os primeiros artistas a escrever
extensamente sobre a nova importância do tempo para a arte foram o holandês do De Stijl Theo van Doesburg e o construtivista russo El
Lissitzky, que estiveram em Berlin neste período (1922-23)” (Dalrymple, 2008:112).
57
Ver Evans (2000:339); Bois (2009:141); Dalrymple (2008:113-114); Padovan (2002:9).
58
O livro de Warncke tem imagens de todas estas obras (1994:166-173).
59
Ver as explicações sobre os Prouns dadas pela mulher do artista, Sophie Lissitzky-Kuppers (1992).
“Foi a cor (utilizada nos projetos: Maison Particulière e Maison d’Artiste), de fato, que permitiu que a
superfície da parede, enquanto tal, fosse elementarizada, culminando na invenção de um novo
elemento arquitetônico – a unidade indivisível da divisória” (Bois, 2009:141-PN).
Foi este novo elemento arquitetônico, a divisória, a grande descoberta realizada pela dupla de
holandeses que iria revolucionar a arquitetura moderna, permitindo uma aproximação ao espaço
como essência. Pela primeira vez na história da arquitetura, a forma cedeu seu lugar privilegiado ao
plano in-forme, que na sua organização intercambiável no espaço foi capaz de definir uma nova
maneira de pensar e de fazer arquitetura. E isso acontece:
“porque a divisória reúne duas funções visuais contraditórias (de perfil, ela parece uma linha
evanescente, de frente ela é um plano que bloqueia o distanciamento espacial), e essa contradição
estimula a interpretação visual dos volumes e a fluidez de sua articulação” (Bois, 2009:141).
Se o volume existe é porque existe uma integração entre os planos, o que simplifica o sistema e evita
o formalismo (clássico – sólidos platônicos –, ou moderno – prismas puros, especialmente o cubo).
A influência do trabalho de Van Doesburg mudou os rumos não só da Bauhaus que começou a
abandonar sua postura Bauhütte60, a partir de 1923, encaminhando-se num processo de
elementarização construtiva na direção da Bauhaus que conhecemos hoje e que se consolidou em
Dessau depois de 1925. A utilização das cores elementares (azul, amarelo e vermelho), reconhecido
emblema da Escola; a profusão de axonométricas entre os trabalhos de apresentação dos alunos61;
e a utilização de divisórias para a formação e integração de espaços arquitetônicos são partes da
herança evidente que o holandês deixou nos corredores da mais influente escola de design de
Ocidente. (Rickey, 2002:63)
Figura 4 – Contra-constructie (da Maison Particulière), Theo Van Doesburg, 1923. Guache sobre
fotótipo (57 x 57 cm). Rijksdienst Beeldende Kunst, Haia.
Não só a Bauhaus foi atingida pelo vento inovador do holandês. Os projetos de Mies van der Rohe
realizados entre 1923 e 1933: a Casa de Campo de Tijolo (1923); o Pavilhão Alemão (Exposição
Internacional de Barcelona, 1929); a Casa Modelo (Exposição da Construção, Berlim, 1931) e a série
60
O termo Bauhütte faz referência às congregações medievais de artesãos da construção, e, de forma indireta, também à maçonaria. A
similitude entre este termo e o neologismo Bauhaus já foi levantada por vários autores (Whitford, 1992:32).
61
Ver Wilhem Jakob Hess (1899-1982): Projeto cromático para um edifício, 1928 (Fiedler, 2000:459); Herbert Bayer: Projeto publicitário
para edifício, 1924 (Droste, 1991:59).
de Casas com Pátio (realizadas na Bauhaus, 1930-1933), podem ser considerados como
“representações”, melhor ou pior sucedidas, das contra-construções que Van Doesburg desenvolveu
entre 1923 e 1924. Neste sentido, as contra-construções são uma arquitetura essencial a partir da
qual outros projetos serão “infectados com as idéias do De Stijl” (Padovan, 2002:87).
“Sem ele [Theo Van Doesburg] a mais importante escola de arquitetura moderna da Europa, a
Bauhaus de Weimar, não teria sabido identificar sua linha de ação didática; sem ele o movimento
holandês teria se dispersado em precários e turbados romantismos; e, finalmente, Oud e Wils, van’t
Hoff e Rietveld e fundamentalmente Mies van der Rohe não teriam podido encontrar um ambiente,
nem um apoio, nem um caminho” (Zevi, 1960:7-PN)
O caminho ao qual se referia Zevi era o caminho da libertação da arquitetura de seu cárcere formal.
Mas, se engana o italiano em pensar que isto foi possível. A prisão da forma voltou a estrangular a
arquitetura moderna bem antes da II Guerra Mundial. Os arquitetos, incapazes de criar fora dos
sólidos e históricos “escudos da forma pura”62, não conseguiram encaminhar-se pela senda da nova
espacialidade liberada desvelada pelo holandês.
“A arquitetura é o jogo sábio, correto e magnífico dos volumes reunidos sob a luz. Nossos olhos são
feitos para ver formas sob a luz; as sombras e os claros revelam as formas; os cubos, os cones, as
esferas, os cilindros ou as pirâmides são as grandes formas primárias que a luz revela bem” (Le
Corbusier, 1981:13)
Esta famosa definição do que é Arquitetura, publicada por Le Corbusier em 1923, ressume o
sentimento, e o entendimento, do que deve se esperar dela63: um jogo de volumes primários.
Contudo, não é de estranhar neste contexto cultural submetido durante séculos à vontade da forma
sobre a matéria que as palavras do holandês defendendo a espacialidade da arquitetura fossem
totalmente incompreendidas, quando não, ignoradas.
Assim, talvez não seja justo exigir dos arquitetos dos anos 20 (ou 30 ou 40 ou 50) a possibilidade de
um entendimento conceitual do problema do espaço. Nunca os estudiosos ou teóricos da arquitetura,
nem tampouco os arquitetos, tinham se preocupado pelo espaço. Alias, é esta uma palavra
desconhecida em tratados e textos teóricos de arquitetura antes dos anos 50 do século XX64.
Mas, não era só Le Corbusier que se aborrecia com o tema do espaço. Gropius e Taut, entre os
grandes arquitetos alemães, tampouco tinham nenhuma consideração conceitual ou teórica por ele.
Na sua Teoria da Arquitetura (1937), por exemplo, Bruno Taut excluía explicitamente a pertinência do
conceito “espaço” no campo teórico ou prático da arquitetura:
“na arte só interessa a forma concreta, perceptível através dos sentidos. Para ela o espaço é um
nada sem alma, no entanto para nós, pelo contrário, nos interessa a habitação, ou a sala, tanto
quanto a sua ‘envoltura’, ou seja, suas paredes, o teto e o pavimento, no que eles têm de proporções
justas (…) na arquitetura só atua o sentido das proporções” (Taut apud Quaroni, 1987:67/nota 6)
Mart Stam (1899-1986) defendia que “só a função é importante e irá determinar a forma [da
arquitetura]” (Stam apud Padovan, 2002:102). Mies tampouco tinha muita intimidade com as
questões conceituais relacionadas com o espaço, ainda que se declarasse contrário ao predomínio
da forma e a favor de uma vontade da época de cunho hegeliano em voga nos anos 20 (Mies van
der Rohe apud Schulze, 1986:109).
Porém, nada de espaço, só problemas de construção65, ou problemas de função como em Stam, ou
problemas de forma propriamente dita, como em Le Corbusier. O espaço é o grande ausente nos
textos produzidos por arquitetos desde o século XV até os anos 50 do século XX:
“Foram os críticos e historiadores da arquitetura que em tempos mais recentes [se refere aos anos
50]66 insistiram em que, em última instância, a criação – e o usufruto – da arquitetura é
essencialmente uma criação e um usufruto de espaços” (Quaroni, 1987:67-PN)
62
Sentença de Le Corbusier: “esta complexidade, esta riqueza abusiva, estas formas exuberantes, deverão ser disciplinadas sobe o escudo
da forma pura” (Le Corbusier apud Padovan, 2002:94).
63
Estivemos tentados a adjetivar a palavra “arquitetura” como “moderna”, mas pareceu inútil, uma vez que esta definição brilhante pode
abarcar toda a arquitetura realizada em Ocidente desde o Renascimento.
64
“Até a última guerra, a palavra espaço foi utilizada só casualmente para falar sobre arquitetura e era usada principalmente para definir
um valor dimensional absoluto (espaço grande, ao contrário do espaço pequeno, espaço comprido, extenso, e assim por diante)”
(Quaroni, 1987:67).
65
Num texto de 1923, “Bauen”, Mies afirma explicitamente que a tarefa urgente é a de “libertar a prática da construção do controle de
especuladores estéticos e restaurá-la ao que realmente deveria ser: construção” (Mies apud Neumeyer, 1995:366).
Desta forma, esses pensadores, desde fora do campo disciplinar estrito da arquitetura entendida
como projetação (e, se se quer, construção) elucidaram aos arquitetos qual a sua verdadeira
finalidade, ainda que o fizeram muito tardiamente para os homens que, como Van Doesburg, ou Mies
ou o mesmo Le Corbusier, viveram seus melhores anos criativos depois de 1921 ½.
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66
Existem definições sobre a arquitetura, que a relacionam com o espaço, anteriores aos anos 1950, quando brilharam mentes como as de
Giedion (Space, Time and Architecture, 1941); Pevsner (Outline of European Architecture, 1943); Zevi (Sapere Vedere l’architettura,
1948), e Argan (Walter Gropius e a Bauhaus, 1951). Ver, entre outras: August Schmarsow (Das Wesen der architektonischen Schöpfung,
1894); Alöis Riegl (Die spätrömische Kunstindustrie nach den Funden in Österreich, 1901); Geoffrey Scott (The Architecture of
Humanism, 1914); Oswald Spengler (Der Untergang des Abendlandese, 1917); e Erwin Panofsky (Die Perspektive als symbolische
Form, 1927). Contudo, note-se que se trata sempre de historiadores, filósofos ou críticos: nunca, jamais, de arquitetos.
67
Pelas características historiográficas deste trabalho nos parece importante especificar as datas originais das publicações quando estas não
são as das edições que estamos usando nesta bibliografia. Assim, as datas entre parênteses junto ao nome do autor correspondem ao ano
de publicação do texto original citado.
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