O problema de Gibraltar - Jornal de Defesa e Relações Internacionais

Transcrição

O problema de Gibraltar - Jornal de Defesa e Relações Internacionais
2013/08/27
O problema de Gibraltar
Alexandre Reis Rodrigues
Gibraltar é um território tomado por
conquista em 1703 no âmbito da
Guerra
de
Sucessão
espanhola.
Posteriormente, a sua posse pelo
Reino
Unido
foi
legitimada
perpetuamente
pelo
Tratado
de
Utrecht em 1713. Está designado
como território da Coroa Britânica
mas para as Nações Unidas é um
“non-self-governing territory”, um dos
16 remanescentes do grupo de 80 territórios coloniais que existiam à data da
criação das Nações Unidas e para os quais ainda não foi possível encontrar uma
solução de descolonização.
A Constituição aprovada para o território em 1969 proíbe o Governo Britânico de
entrar em qualquer tipo de negociação que possa eventualmente levar a uma
mudança deste estatuto, designadamente a transferência da sua soberania para
outro Estado, contra o desejo expresso democraticamente pela respetiva
população. Dois referendos entre os 30000 habitantes do território realizados até
ao momento, o primeiro em 1967 (cuja realização foi condenada pelas Nações
Unidas e não reconhecida por qualquer organização internacional ou Estado)1 e o
segundo em 2002, rejeitaram claramente essa possibilidade.
É um desfecho que se compreende facilmente à luz das perspetivas económicas
que a população local então tinha e que se têm confirmado. Presentemente, a
economia cresce a 7%, quase não existe desemprego e o PIB per capita chega a
ser cerca de três vezes superior ao de diversas regiões de Espanha. Ou seja, uma
situação quase diametralmente oposta à que se vive, de momento, em Espanha.
No entanto, são, no mínimo, controversas algumas das raízes deste sucesso
económico. Estão no regime de zona franca que permite ao território funcionar
como um “paraíso fiscal”,2 um regime especialmente atrativo para empresas
1
Sobre a realização deste referendo, a Assembleia Geral das nações Unidas adotou a Resolução 2353
(XXII) de 8 de janeiro de 1968, de que se faz este extrato: «Considering that any colonial situation wich
partially or completely destroys the national unity and territorial integrity of a country is incompatible
with the purposes and principles of the Charter …:1. …; 2. Declares the holding of the referendum of 10
st september 1967 by the administering Power to be a contravention of the provisions of the General
Assembly Resolution 2231 (XXI) …; 3. Invites the Governments … to resume… negotiations with a view
to putting end to the colonial situation of the Gibraltar».
2
Um dos “negócios” mais referidos, mas certamente não o mais importante, é contrabando de tabaco.
Segundo as autoridades espanholas, o território importou, em 2012, 139 milhões de cigarros, o que
excede, por largo, qualquer estimativa de consumo interno. Não cobrando taxas, Gibraltar consegue
vender o tabaco a cerca de 60% do preço praticado em Espanha, o que se torna num negócio que,
embora pequeno em termos económicos, é atrativo para os muitos que conseguem tirar partido da
oportunidade de adquirir até quatro maços por dia.
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sediadas no território. Serão, segundo referia o jornal “Expresso” de 24 de agosto,
24500 empresas comerciais que beneficiam de um reduzido imposto sobre
sociedades (10% em vez de 30% em Espanha), menor imposto sobre o rendimento
e ausência de outros, como o IVA, etc.3 Segundo outra fonte, um em cada dez
automóveis em circulação no Reino Unido estão seguros em companhias com sede
em Gibraltar. Existem também referências várias a processos de “lavagem de
dinheiro” facilitados pelo estatuto de “paraíso fiscal”.
Espanha tem regularmente procurado trazer a disputa sobre a soberania do
território para a mesa de negociações baseando-se na Resolução 1514 (XV) da
Assembleia Geral das Nações Unidas, de 14 de dezembro de 19604 (sobretudo
invocando o princípio da integridade territorial) e na Resolução 2231 (XXI), de 20
dezembro de 1966,5 (que reafirma a natureza colonial do território). Ao contrário
de Madrid, Londres, curiosamente usando também o texto da Resolução 1514 das
Nações Unidas atrás referida, alega que o princípio da integridade territorial não
prevalece sobre o princípio da autodeterminação.6 No entanto, este direito, no
ponto de vista espanhol, não se aplica a Gibraltar uma vez que não existe, nem
nunca existiu, algo que se pudesse designar por nação gibraltina. Ou seja, a forma
artificial como a comunidade foi criada não permite invocar o critério de nação.
A agudização por que está a passar este contencioso tem a sua origem próxima na
decisão do governo de Gibraltar em criar um recife artificial numa área tradicional
de pesca para os espanhóis da comunidade piscatória de La Linea. Espanha tem
recorrido a esta prática em vários pontos da sua costa, como forma de facilitar o
“repovoamento” de espécies que tenham estado sujeitas a pesca excessiva,
precisamente o argumento usado pelo governo de Gibraltar. O problema é que
neste caso, em resultado do lançamento dos 70 blocos que formarão o recife, os
pescadores espanhóis ficaram impedidos de exercer a sua faina habitual de pesca.
Fica assim em causa o sustento de cerca de 300 famílias. Independentemente das
razões que assistam a cada lado, este aspeto particular da disputa poderá estar
resolvido brevemente com o anúncio feito, mais recentemente, pelo Governo de
Gibraltar de que a partir de outubro, haverá autorização para 59 barcos de pesca
espanhóis voltarem às suas atividades na zona. Segundo peritos em Direito
Internacional sobre a questão de Gibraltar não é claro que o Acordo constante do
Tratado de Utrecht reconheça o direito a águas territoriais.
O atual Presidente do Governo espanhol tem recusado associar esta disputa
específica com a adoção de medidas excecionais de controlo fronteiriço que estão
quase a “paralisar” a movimentação entre os dois territórios, não obstante ser
impossível dissociar os dois assuntos. As questões de pesca foram, pelo menos, um
pretexto para reavivar o problema de fundo. Tenta-se argumentar que são medidas
3
É fácil encontrar na internet ofertas de criação de empresas em Gibraltar, no prazo de uma semana, a
preço
altamente
competitivo
e
com
confidencialidade
total.
Por
exemplo:
pt.sfm.offshore.com/empresasoffshoregibraltar.html
4
«Any attempt at the partial or total disruption of the national unity and the territorial integrity of a
country is incompatible with the purposes and principles of the Charter of the United Nations».
5
Extrato da Resolução:«1. Regrets the delay in the process of decolonization and the implementation of
the general Assembly Resolution 1414 (XV) with regard to Gibraltar. 2. Calls upon the two Parties to
continue their negotiations, taking into account the interests of the people of the territory and asks the
administering Power to expedite, without any hindrance and in consultation with the Government of
Spain the decolonization of Gibraltar and to safeguarding the interests of the population upon
termination of that situation».
6
«All peoples have the right to self-determination; by virtue of that right they freely determine their
political status and freely pursue their economic, social and cultural development»
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desenhadas essencialmente para combater o contrabando que a inexistência de
taxas fiscais em Gibraltar fomenta. Para Londres, porém, são apenas medidas
políticas e desproporcionadas («politically motivated and dispproportionate»), sobre
as quais já foi pedida a intervenção da União Europeia através de envio de uma
missão para apurar a situação e avaliar as razões invocadas pelas partes. No
entanto, como dito atrás, parece claro que, independentemente da pertinência dos
argumentos de Madrid para proteger a economia local, o que está em causa é o
desejo espanhol de trazer a questão da soberania de Gibraltar para um novo ciclo
de discussões. As declarações do ministro dos Negócios Estrangeiros não deixam
dúvidas quando refere que «The party is over for Gibraltar» e quando se fala de
uma possível intenção de formar uma frente unida com a Argentina, tentando
juntar a discussão de Gibraltar com a das Ilhas Falkland.
Ao contrário, Londres tem-se abstido de invocar o caso de Ceuta e Melila7 para
reforçar a sua posição mas, como se referia no jornal “El País”, Madrid terá que ter
presente que, independentemente das razões que lhe assistam para sustentar a
sua posição em relação a esses dois territórios, se viesse a obter qualquer
concessão de Londres sobre Gibraltar teria, muito provavelmente, que dar resposta
a idêntica pretensão de Marrocos, que reclama a inclusão dos dois enclaves no seu
território. O mesmo tipo de questão se porá a Londres se fizer concessões a
Madrid; ficará na contingência de ter de as fazer também em relação aos outros
dez “non-self-governing territories” de que é a potência administrante. Nalguns
casos poderá não ser um problema relevante mas sê-lo-á sempre no caso das ilhas
Falkland, tanto mais porque neste caso estão associados direitos de exploração de
importantes jazidas petrolíferas.
Nada nos diz que estas disputas poderão ter proximamente qualquer solução mas
irão, com certeza, continuar a ser tratadas no âmbito das Nações Unidas e,
eventualmente, do Tribunal Internacional de Haia.
7
São enclaves espanhóis em território marroquino mas, ao contrário do que acontece com Gibraltar, não
são considerados pelas Nações Unidas como “non-self-governing territories”. Espanha considera-os
integrados no seu território admitindo que possam vir a constituir “comunidades autónomas”. Ambos
têm, como Gibraltar, o estatuto de “zona franca”.
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