Paulo Herkenhoff - Anna Maria Maiolino

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Paulo Herkenhoff - Anna Maria Maiolino
Paulo Herkenhoff
A TRAJETÓRIA DE MAIOLINO: Uma Negociação de Diferenças.
“Eu não sou uma artista que passa a limpo. Sou uma artista toda contaminada”, 1 diz Anna
Maria Maiolino. Essa contaminação, que admite o diálogo entre opostos e negociação das
diferenças, é o modus operandi das etapas da vida cultural do país, da Antropofagia ao
Neoconcretismo e à Nova Objetividade Brasileira. A polivalência de Maiolino se desdobra
em pinturas, gravuras, desenhos, esculturas, objetos, livros, performance, filmes e
instalações. Este texto destaca alguns momentos e a complexidade do percurso de Maiolino
para situar sua produção no processo histórico da arte e da cultura no Brasil nas últimas
quatro décadas.
I.
Ao chegar ao Rio de Janeiro em abril de 1960, Maiolino matricula-se no ateliê livre da
Escola Nacional de Belas Artes. Esse era o centro de excelência da xilogravura no Brasil,
com o ensino ministrado pelo mestre expressionista Oswald Goeldi (1895-1961), o maior
gravador do país de todos os tempos, e por seus discípulos, como Adir Botelho, professor
de Maiolino. Aquela escola era foco carioca da elaboração da Nova Objetividade Brasileira,
com as fricções ocasionadas pela arte Pop e pelo Novo Realismo. Lá se reuniam artistas
como Rubens Gerchman, com quem a artista viria se casar, Roberto Magalhães e Antonio
Dias, cada um com seu projeto gráfico. O desenho de Gerchman recorria ao universo
gráfico popular, dos jornais aos anúncios pintados. Dias experimentou com histórias em
quadrinhos, desenho de arquitetura e programação visual. Ora sintética, ora narrativa, a
produção de Magalhães é das mais refinadas obras gráficas elaboradas no Brasil. Maiolino,
por sua parte, foi atraída pela xilogravura: “Eu sempre tive vocação para o abismo”. 2
Nas paisagens e canas de interior das litogravuras iniciais, áreas brancas são
conjugadas às figuras pretas, cujos contornos iniciam o espaço aberto na matriz, a
escavação da madeira. O corte virá a ser um gesto importante para Maiolino, uma forma de
intervenção que enfatiza a ação da artista. Na década seguinte abre planos precisos, ou
rasga o papel, ou cria uma topologia da fendas e cortes. Nos anos 1990, corta o barro com
uma lâmina. O corte, diz a artista, “deu subsídios, fomentou meu imaginário na interrelação dialética de um e o outro espaço, o culto”. 3
Esta dedicação ao corte se evidencia no seu trabalho na tradição xilográfica do
folheto de cordel, um gênero de “poesia narrativa, popular, impressa” 4 em pequenas
publicações, que em geral trazem uma capa com uma xilogravura, gravada com uma força
expressiva do corte tosco. Na década de 1960, alguns artistas produzem xilogravuras que
constroem imagens gráficas referidas a esta origem ancestral: Maiolino, Antonio Henrique
Amaral, Gilvan Samico e outros. A sofisticada gravura de Samico acentua um caráter
heráldico épico por vezes encontrado no cordel. Seu rigor gráfico articula jogos óticos e
imagens, que encontram sua solene elegância na simetria e numa certa economia da fatura. 5
Antonio Henrique Amaral exagerou o caráter tosco do corte da matriz xilográfica de cordel
para produzir contundentes imagens críticas da ditadura militar. A xilogravura de Maiolino
guarda a relação com o cordel pelo método simplificado de gravar madeira, destituído de
cortes expressionistas ou buscando uma ingenuidade no desenho, e pelo fato de tratar a
atualidade. Ela funde cordel e Pop através do recurso à estética do primeiro e a divisões do
espaço em quadros e cenas que evocam as revistas em quadrinhos do segundo.
A xilogravura de cordel tendo sido o protótipo antropológico e o caminho gráfico,
não foi, no entanto, o imaginário pelo qual Maiolino articulou sua utopia política. A última
xilogravura dessa série – Anna (1967) – rompe com a espacialidade anterior. A simetria
horizontal das figuras do pai e da mãe, a repetição da palavra, o palíndromo, dissolvem a
narrativa nem jogo de ecos visuais, como espaço de rebatimentos e um tempo diacrônico.
Na gramática de Anna haveria um anagrama visual. É como Anna, seu autorretrato e falso
espelho, que Maiolino põe em questão a representação de si mesma em sua própria obra e
reclama sua presença como sujeito.
II.
Em 1967, na galeria Goeldi no Rio de Janeiro, Anna Maria Maiolino realiza uma mostra
importante de xilogravuras que constituíam um repertório variado de imagens do
quotidiano banal, entre elas as gravuras A Digestão, Cirurgia, Ecce homo, Glu Glu Glu ...,
Açougue, Júpiter Cabeleireiro, Bebê, O Quarto e Anna. Um tema dominante nessa
produção é a condição feminina no âmbito doméstico definido pela sociedade patriarcal.
Em A Espera (1967-2000), por exemplo, uma mulher aguarda o marido postada numa
janela, de onde pende um varal com roupas reais que evidenciam seu trabalho. Essa é uma
trama de territorialização do espaço de desejo e realização de subjetividade, entre casa e
rua, entre o espaço doméstico e o espaço público. A cena cotidiana da A Espera se organiza
à maneira de um cenário de teatro de marionetes. “Creio que em um nível muito sensível,
nesta obra, estou trabalhando com o lado de dentro e o de fora da representação”, afirma a
artista, comentando A Espera e obras afins. “A janela é o espaço fronteiriço da
dramatização do oco e do cheio. Pois, na representação destas obras, o externo é a
possibilidade do vácuo. E o interior da casa, o cheio”. 6
Além da ênfase que deu ao espaço doméstico, no entanto, a mostra de 1967
articulou também o compromisso da obra de Maiolino com a “visceralidade”. Nos anos
1960, o meio artístico brasileiro (figuras como Maiolino, Hélio Oiticica, Lygia Clark,
Arthur Barrio, Anna Bella Geiger, Rubens Gerchman, Antonio Dias ou Antonio Henrique
Amaral) empregava as expressões como “visceral” e “visceralidade” para iniciar a
intensidade expressiva simbolizada no corpo ou a produção de sentido a partir do orgânico.
A visceralidade buscava dar conta dos indivíduos na perspectiva de sua carga psicológica,
da resistência política e da inconformidade. A medida da visceralidade era a densidade ou a
veemência da subjetividade, não o drama ou a crueza. “Visceralidade é a consciência das
coisas, onde o organismo teve que atuar, viver”, observa Barrio. “O cérebro teve que se
extravasar, sair, romper”. 7 Uma das razões pelas quais Lygia Clark admirava a obra de
Anna Maria Maiolino era a potência visceral de sua obra, em trabalhos como os Buracos”. 8
A visceralidade quase Pop na obra de Maiolino também ocorre em pinturas como
Glu Glu Glu..., uma representação bem-humorada do aparelho digestivo humano. O
estômago e os intestinos estão representados por volumes estofados que admitiriam
referência a Claes Oldenburg ou à obra do argentino Jorge de la Vega: uma dissecação com
volume estofados, tecidos franzidos, pedaços de plástico. 9 No entanto, as vísceras estofadas
de Glu Glu Glu... não pretendem discutir a condição humana. Maiolino desvincula as
representações da vida doméstica de qualquer noção trágica: “Trabalhei sobre o cotidiano,
sobre a narrativa na representação feminina. Estava obcecada com meu papel de mulher”. 10
Ainda nesse ano, Maiolino participa com Glu Glu Glu... da mostra nova
Objetividade Brasileira organizada por Hélio Oiticica no museu de Arte Moderna do Rio de
Janeiro. No catálogo, Oiticica afirma que a Nova Objetividade é um “estado típico da arte
brasileira atual”, que ele percebia distante das “duas grandes correntes de hoje: Pop e Op, e
também das ligadas e essas: Nouveau Réalisme e Primary Structures (Hard Edge)”.
Segundo Oiticica, a Nova Objetividade permitia uma multiplicidade que incorporava várias
tendências significativas: a negação do quadro de cavalete; a insistência na participação do
espectador; a tomada de posição em relação aos “problemas políticos, sociais e éticos; o
encorajamento da tendência para uma arte coletiva; e o reconhecimento do ressurgimento
do problema da antiarte”. Esses temas se encontram de novo noutra obra do mesmo
período, Psiu! (1967, também dita A Orelha), onde Maiolino desloca a visceralidade para o
turvo horizontal político da época. A obra constitui um emblema para o clima de escuta
persecutória que se estabelecia com a ditadura militar. De certo modo, Psiu! tinha o
mesmo principio do panóptico. Todos se sentiam policiados (“escultados” pela polícia
política) em seus cotidiano da vida civil, tanto quanto todos os presos se sentiam vigiados
(“visto”) na prisão. No Brasil, sugere Maiolino, o controle da ordem ditatorial era
transferido com eficácia e internalizado pelos indivíduos através da mera difusão da notícia
de sua existência. 11
III.
Em 1968, Anna Maria Maiolino muda-se para Nova York com seu marido, o artista Rubens
Gerchman, que havia recebido um premio que lhes propiciou a viagem. “Eu cheguei na
metade de 1968 e voltei em abril de 1971. Para mim foi uma eternidade”, diz ela. 12
Maiolino experimenta a condição de estrangeira num terceiro país. Convive com artistas
latino-americanos vinculados à produção experimental de linguagem, como os brasileiros
Hélio Oiticica e Amílcar de Castro, o uruguaio Luís Camnitzer e os argentinos Liliana
Porter e Luís Wells. Embora Nova York houvesse se tornado um destino e o exílio para
muitos artistas latino-americanos, o meio local permaneceu refratário à absorção política,
cultural e econômica da arte latino-americana. À América Latina era negada especificidade
cultural e uma história própria significativa, que redundava em experiência de gueto para
artistas como Maiolino.
Mas se Nova York não estava aberta ao encontro com a arte brasileira, Maiolino,
sim, estava. Essa estada propiciou a Maiolino o reencontro com o Neoconcretismo, o
movimento do Rio de Janeiro que incluía em seu programa o resgate da dimensão subjetiva
da Arte Concreta (pela participação do público e pela relação do artista com o objeto). O
Neoconcretismo redefine o objeto artístico e relaciona-se com o caráter simbólico das
formas, implicando-se com a fenomenologia de percepção de Susanne Langer e Maurice
Merleau-Ponty. O movimento Neoconcretista incluía artistas como Oiticica, Castro,
Antonio Dias, Rubens Gerchman, Mira Schendel, Sérgio Camargo, Cildo Meireles, entre
outros. Maiolino também reencontra Lygia Clark, que esteve hospedada por três semanas
em seu apartamento em Nova York.
Apesar desses encontros, Maiolino passa por dificuldades nesse período. Com o
casamento em crise, dificuldades materiais e o choque cultural, Maiolino interrompe seu
processo da produção de arte por um breve período. 13 Estimulada por Luis Camnitzer, volta
a trabalhar ao se matricular no Pratt Internacional Graphics Center, que lhe permitia fazer
gravuras. Na série Gravuras/Objeto, seu método construtivo consiste em trabalhar sobre a
folha de papel como plano que se submete a incisões de linhas gravadas e cortes, sobre
aberturas de áreas e constituição de vazios. A obra submete-se a dobraduras, opera
articulação de frente e versos, obtém coesão gráfico por linhas projetadas, sejam
desenhadas ou reais em fios de carretel. As superfícies rasgadas e espaços cortados dos
Desenhos/Objetos expõem planos invisíveis, definem a presença do cheio no oco, pois aí
trabalha “o espaço através de questões materiais”, 14 postura semelhante à que Sarduy via no
concetto spaziale, nos cortes e nos furos de Lucio Fontana.
A vontade construtiva que se manifestada na nova produção de Maiolino também
autoriza a rememorar seu período venezuelano, em que a estudante de arte conheceu a obra
de artistas abstrato-geométricos como Alejandro Otero, Jesus Rafael Soto, Gego e Carlos
Cruz-Diez. O método de construção do espaço, a forma de apresentar a obra e o título –
Gravuras/Objetos – iniciam afinidades de Maiolino com Neoconcretismo, tal como a
redefinição do estatuto conceitual do objeto de arte. Todas as ações do artista coincidem
com todas as operações materiais perceptíveis na obra. Esculpir é construir ou arrancar o
espaço tridimensional que existia como latência no plano, fosse ele uma chapa de metal
(Franz Weissman, Clark e Castro) ou uma folha de papel. Nessas obras, Maiolino tem algo
da extrema economia de cortar e dobrar a chapa/plano como as duas únicas ações
escultóricas de Amílcar de Castro. Gravuras /Objeto também lembra algumas páginas do
Livro da Criação (1959-1960) de Lygia Pape, tal como o raciocínio espacial de Lygia
Clark, que escreve que “demolir o plano como suporte de expressão é tomar consciência da
unidade com um todo vivo e orgânico”. 15 Oiticica notou que a especialidade de suas
Gravuras/Objetos era “orgânico-visual”. 16 Maiolino já solicitava outro olhar. Cumpria
operar sua pauta de percepção fenomenológica e semiológica, junto com o processo de
constituição de significados políticos e da topologia afetiva, sem descuido da precisão da
forma.
IV.
A esterilidade e a crise da geometria concretista, a fragilidade relativa da Pop arte e da arte
conceitual enquanto linguagem, o enfrentamento da ditadura militar e a constante
necessidade de desenvolver estratégias para inserção do trabalho e da resistência política, o
reencontro como o meio artístico brasileiro depois da estada em Nova York – são muitos
desafios com que Maiolino se confrontou ao retorno ao Brasil. Em resposta, ela se dedicou
ao desenho como uma forma de pensamento e atuação. Vista retrospectivamente, era a
emergência de um dos principais artistas do desenho no Brasil, que na época emergia como
um centro importante de desenho para o mundo a fora. O crítico Roberto Pontal chama a
atenção para esse fato, aprontando duas razões distintas: o mercado e “a atmosfera
conceitual, mentalizadora, solicitando uma forma de notação imediata, econômica e
sugestiva de que o desenho, ‘projetual’ como mais nada, pode ser mestre. (...) Os dois
impulsos, isolados ou unidos, deram então ao desenho um momento de brilho especial na
arte brasileira”. 17
No começo da década de 70 Maiolino produz desenhos isolados como Secret Poem
(1971), A Verônica (1971) e Tiro ao Alvo (1973). A artista passa empregar nanquim,
aguada, papel, filme de radiografia, isopor, fio, linha de costura, Letra Set em corte, recorte,
rasgos, dobraduras em caixas de madeira cobertas de vidro. Na sua semântica gráfica,
“linha” é a linha da geometria e o fio de costura, tanto quanto um signo pode ser uma
vírgula ou um traço. Os rasgos são tomados como ação e seu resultado físico genérico
como “buraco”, pouco importando os contornos plásticos individuais. Algumas têm
tiragem em positivo, mas também são feitas em negativo. Os desenhos da série
Desenhos/Objetos, que englobam obras como Buraco Branco (1974), Buraco Negro
(1974), Buraco ao Lado (1974), Depois do centro (1975), No Horizonte (1975), Linha
Solta (1975), Espiral (1975), Mais Buracos (1975) e Vacuum II (1975), são estruturados
por sobreposição de várias folhas de papel, separadas entre si por isopor, que formam uma
espécie de “bloco” no qual Maiolino “esculpe” seus desenhos, isto é, corta, dobra, rasga,
abre buracos, operando com um espaço tridimensional dentro dessas estruturas. Os
desenhos são montados em molduras-caixas como os Mapas Mentais. Linha Solta se
estrutura em muitas camadas de papel branco com um buraco rasgado com uma linha negra
solta sobre a linha reta também preta ao fundo. A linha solta escorre delicadamente, dando
coesão ao conjunto de folhas, consolidando o buraco como um lugar e não como formação
modular. A linha reta no fundo do buraco instituiu coesão geométrica, estabilizando o
olhar, introduzindo razão no espaço entrópico do buraco rasgado sem um plano formal que
não seja apenas cavar a superfície. Há noções simbólicas referentes ao período da ditadura
e ao conceito de visceralidade tão importante a Maiolino.
Em outros Desenhos/Objetos, onde o desenho consiste em uma linha traçada ao
longo do papel e projetada num buraco – ou vazio – em forma de fio, Maiolino objetiva a
sua ideia do vazio enquanto lugar ativo e concreto, com a descontinuidade do espaço que
acha a sua unidade no fio, no seu momento de integração na terceira dimensão. Para a
artista “é o gasto agressivo e espontâneo do rasgo, que descobrirá o mistério do vazio, que
será subitamente costurado, no arrependimento”. 18 O vazio não é o nada ou ausência, mas
substância gráfica e lugar. A qualquer custo, o que importa é o vácuo, ativamente o vácuo...
O vácuo não é o símbolo vicário do não-ser”, dizia Mira Schendel. 19
O Desenho/Objeto Buraco Negro, como a caverna do Platão, é o lugar interrogante,
de onde a artista extrai entre sombra a hipótese do conhecimento e da crítica do real. Esse
Desenho/Objeto é foco de escuridão em que o olhar se perde, como nas estrelas colapsadas,
da qual nem a luz, a matéria ou qualquer outro tipo de sinal pode escapar. Cildo Meireles
também refletiu sobre as noções astrofísicas de “buraco negro” em sua obra. O Buraco
Negro é espaço sem a necessária definição topográfica, tendo a ideia do profundo como sua
única referência de dimensão descontínua. Há um aflitivo silêncio aqui, distinto eticamente
de seu Aleph, que consiste quase exclusivamente de vírgula. Seu sentido cósmico é de
espaço informe e vastidão. O Buraco Negro possibilitaria uma dupla interpretação. Por um
lado, a atmosfera densa remete ao sentimento de lugares profundos na tópica individual,
como terrenos pré-conscientes trabalhados fenomenologicamente, de novo na tradição
aberta pelo Neoconcretismo. Por outro lado, a grave situação política sob a ditadura confere
a essas obras o sentido metafórico, de um espaço sombrio de luto e prisão, sob o colapso
gravitacional. Maiolino confere a um espaço “abstrato” (em posição à representação
retórica) o caráter trágico, como um espelho do momento político. Um paralelo à prática
de Maiolino aparece na produção de Waltércio Caldas de meados da década de 1970, onde
a retórica das imagens cede lugar a uma rigorosa economia lógica. Ronaldo Brito elabora
sobre ela o problema conceitual de A Forma dos Buracos (1979), 20 próxima do concetto
spaziale de Fontana e da estética do furo de Lacan. Na obra de Caldas, o buraco é o olho, às
vezes aos pares como em Buracos (1976) e B-A (1978). Essa correlação evoca a anatomia
do olho como vestígio antropomórfico resistente, uma noção do espaço como anatomia que
não aparece na obra de Maiolino. Para Brito, os buracos de Caldas são “interrogações
vazias” com qualidades conceituais e política.
Obras como Buraco Negro de Maiolino são mais próximas da obra de Cildo
Meireles, como Tiradentes: Totem-monumento ao Preso Político, realizado em Belo
Horizonte nas comemorações da Semana da Inconfidência 1970. 21 Num parque público,
Meireles fixou uma estaca e prendeu um termômetro clínico no topo. Ao poste foram
amarradas dez galinhas vivas, sobre as quais se derramou gasolina e ateou fogo. Como era
de se esperar, seu gesto aterrorizante sobre um vernissage instala mal-estar no sistema da
arte. A performance de Meireles se esforça por conferir uma voz essencial àqueles que
vivem no vácuo verbal produzido pela tirania, como o vulnerável preso político em
isolamento. A enorme potência dessa obra implica numa atitude tão cravada na ética quanto
na estética.
A economia do buraco na obra de Maiolino opera uma torsão da arte brasileira
numa direção psicanalítica, com a sua noção de falta, algo que Lygia Clark, em
Estruturação do Self, chamava de “manque”. 22 O buraco pode ser visto como espaço
simbólico de censura e morte ou de esperança no conhecimento. Na sua obra, não há
linguagem verbal ou conversões sígnicas intermediadoras em seu processo de confronto
com o real. Em termos físicos, esse segmento do desenho de Maiolino deve ser confrontado
com o Monumeto ao Preso Político, projeto desenhado por Max Bill para um concurso em
Londres em 1952. Na proposta do suíço, tratava-se de um cubo que é aberto por uma
espécie de túnel que atravessa de um lado a outro em busca de transparência a luz,
enquanto a obra de Maiolino é uma caverna, onde é necessário atribuir sentido à opacidade
e às sombras.
V.
Em 1971, Anna Maria Maiolino elaborou livros-de-artista que permanecem como
exemplares únicos: Movimentos Opostos, Infinito e Ponto de Encontro, todos em tinta
nanquim sobre papel, e E + U, com Letra Set. Em 1976, editou cinco livros com tiragem
total prevista para cem exemplares, todos implicando numa realização individual de rasgos
e costuras em cada exemplar: Trajetória 1, Trajetória 2, Ponto a Ponto, Percursos e Na
Linha. 23 Maiolino inscreve sua contribuição para a tradição dos livros-de-artista brasileira
pela investigação do livro como espaço. Este debate começa nos anos 1950 com a Poesia
Concreta dos irmãos Augusto e Haroldo de Campos, Décio Pignatari e outros. No planopiloto poesia concreta, os três primeiros afirmam que “a poesia concreta começa por tomar
conhecimento do espaço gráfico como agente cultural” e tratam de “palavras-coisa”. 24
Poucos anos depois, no seu Manifesto Neoconcreto, Ferreira Gullar critica a noção de
“palavras-objeto” e afirma o poema como um ser temporal: “a página na poesia
neoconcreta é a espacialização do tempo verbal: é pausa, silêncio, tempo”. 25 Com os seus
livros-de-artista, Maiolino permite aos seus “leitores” aproximarem-se dessa experiência.
Os livros de Maiolino pertencem a uma tradição de arte brasileira que compreende o
Livro da Criação (1959-1960) de Lygia Pape, os Gibis de Raymundo Colares (1971), os
Cadernos de Mira Schendel (1971) e os Rolos de Ivens Machado (1971). Em suas
sequência de linhas e seus acidentes, os Rolos de Machado têm a forma de uma torah ou de
um emaki dos japoneses. São, no entanto, signos de sua operação perturbadora no próprio
processo de produção industrial de cadernos e papeis pautados. Cada página do livro da
criação de Pape é um espaço e uma estrutura que produz e carrega sua significação. Suas
páginas são quadrados de cor, que remetem ao Josef Albers das pinturas Homenagens ao
Quadrado e a dadas experiências de Bruno Munari no início dos anos 1950. Na obra de
Pape, cor e geometria confluem na formulação dos significados. Um quadrado aberto numa
página amarela deixa passar a luz para quase exprimir a ordem fundante: “Fiat Lux!”. Uma
malha com 196 pequenos furos quadrados significam a agricultura na página aonde se lê
que “o homem era gregário e semeou a terra”.
Os livros de Maiolino, como Ponto de Encontro, dialogam com os Gibis de
Collares. Essas obras de Collares são uma operação que lança Mondrian na dinâmica do
tempo concreto. Nos Gibis, os planos de cor da pintura do holandês passam a se abrir,
desdobrar, interpenetrar e tecer planos. Não é da inteligência dos livros de Maiolino realizar
um inventário ou uma taxonomia dos buracos, algo que se organizasse como uma lógica do
uniforme. O que lhe interessa é construir uma passagem não no espaço, mas no tempo.
Nesse sentido, o livro seria uma espécie de devir do vazio. Mantendo algo do “espaço
qualificado” de que tratava o plano-piloto poesia concreta, Maiolino descreve seus livros
como espaços fenomenológicos: “Na tentativa de literalmente trabalhar o oco, atravesso
com linhas de costura os rasgos, desenhando no vazio. (...) Aqui como nas gravuras
trabalho o espaço, busco ‘o espaço outro’ – avesso. Na tentativa de articular e dinamizar
este ‘um e ao mesmo tempo duplo espaço’, o dentro e o fora, é que aparece o vazio,
juntamente com a possibilidade de prenhez desse vazio. Tanto que, ao olhar os
desenhos/objetos com as superfícies rasgadas, os espaços ocos atravessados por linha de
costuras são percursos que apontam à possibilidade de existência de outros planos
invisíveis. Sugerem a existência do cheio no oco, que nos levaria a afirmar que nestas obras
trabalha-se o espaço através de questões matérias”. 26 Maiolino não recorre à habilidade
tipográficas, lexicais ou mesmo sintáticas para fazer-se ouvir ou construir seus livros. 27 Seu
processo, sendo silencioso, é afirmativo da realidade do livro.
E + U atua por deslocamento sintático: não havendo frase onde se localizar, palavra
– seria o próprio sujeito? – vagueia no livro em busca de sentido. Vagueio no livro
buscando o meu sentido. De inicio, este livro operaria a atomização da palavra, isolada e
desfolhada no livro, como em Cummings. Em E+U, a palavra “EU” sobre perda de
linearidade, perde e recupera a motivação do signo: E + U é algum sujeito específico? Se o
sujeito é Anna, aquela da xilogravura Anna, teria ela substituído o substantivo próprio pelo
pronome? Sou “eu” o crítico, ou é todo leitor? Este “eu” seria o próprio livro como sujeito,
porque é em seu corpo que o sujeito da ação se afirma, fragmenta, reitera e se recompõe?
Aqui, este livro de Maiolino se distancia da palavra-coisa da Poesia concreta – e talvez até
pudesse conversar algo com dela – para ser palavra-sujeito. 28 Esta é a multivocidade desta
palavra-livro: ser todos os sujeitos em sua singularidade. Estaria agora mais achegada ao
“não-objeto verbal” neoconcreto, que Ferreira Gullar define na teoria do Não-Objeto como
sendo o “antidicionário: o lugar onde a palavra isolada Irradia a sua carga”. 29 O livro não só
dissolve, mas também proporciona algo que aponta para a unidade imaginária do ser
humano. A criança que, em seu estado de impotência e descoordenação motora (em E + U
não haveria um estado de descoordenação linguística?), apreende no espelho (o livro é o
espelho) a sua unidade corporal (no livro, apreende a unidade do sujeito). E + U é um
balbucio do sujeito, que permite uma operação translinguística de sucessivas traduções:
“eu” passaria para o alemão Ich e daí, via Freud, retornaria ao Português como ego. Para
além do mero espaço epistemológico referenciado, isso faz do livro de Maiolino uma
energia viva do sentido. 30
VI.
Na Expo-Projeção na galeria Grifo em São Paulo (1973), Maiolino mostrou seu filme InOut (Antropofagia), um filme crucial do período, que aponta para o fato de que nos
primeiros anos da década de 1970 tenha se constituído um triângulo antropofágico feminino
na arte brasileira com Anna Maria Maiolino, Lygia Clark e Lygia Pape. A Antropofagia é
uma estratégia cultural ou um modo de construir linguagem autônoma num país de
economia periférica com a absorção de qualquer contribuição. O manifesto de Oswald, no
entanto, não é uma receita; a linguagem deve ser reinventada em seu tempo por cada artista
individualmente. Da latência permanente de modos antropofágicos no processo histórico da
cultura brasileira desde o século XVII, o Manifesto Antropófago de Oswald de Andrade
(1928) extrai e articula o canibalismo como prática simbólica. A torção produzida por
Maiolino, Clark e Pape implica em deslocar a Antropofagia do papel de estratégia cultural
para agregar a noção de canibalismo como prática simbólica vista da perspectiva
psicológica e social. No caso de Clark, a Antropofagia se desloca para o espaço da
fantasmática pelo viés da psicanálise. 31 No início dos anos 1970, Lygia Clark lecionava na
Sorbonne, onde desenvolveu suas propostas poéticas de vivências, trabalhando com jovens,
“que são preparados desde a nostalgia do corpo (...) até a reconstrução do mesmo para
acabar no que chamo de corpo coletivo, baba antropofágica ou canibalismo”. 32 No período,
Clark fazia psicanálise com Pierre Fedida, que em 1972 publica “Le cannibale
mélancholique” no número Destins du cannibalisme da Nouvelle Revue de Psychanalyse. 33
Suely Rolnik tece observações sobre o corpo na obra de Clark: “descubro que o corpo em
que fui lançada e do qual Lygia tanto fala não é o corpo orgânico, nem a imaginária, que
constituiria a unidade de meu eu. E, mais ainda, são exatamente estes corpos que foram se
desmanchando em mim, diluindo-se na mistura das babas. O corpo vivido nessa
experiência está além deles todos, embora paradoxalmente os inclua: é o corpo do
emaranhado-fluxos/baba em que me desfiz e me refiz”. 34 Por seu turno, Maiolino e Pape
deslocam o canibalismo para plano social. No filme Eat me, a Gula ou a Luxúria (1975) de
Pape, a sedução e outros jogos do desejo se deslocam do território da afetividade para a
política de gênero. O “canibal melancólico” de Fedida já não estaria no campo do desejo,
mas no espaço machista e patriarcal e nos papeis atribuídos à mulher. No filme In-Out
(Antropofagia) de Maiolino, o canibalismo social toma a forma de canibalismo linguístico
tirânico, no oposto histórico da negociação com as diferenças propostas pela antropofagia.
Em In-Out (Antropofagia), Maiolino usa câmera fixa em close-up para apresentar
uma boca, ora do homem ora da mulher. O filme não tem sequência lógica. Cada parte é
um ponto. Inicialmente, a boca em In-Out (Antropofagia) está fechada por esparadrapos.
Há censura, silêncio, grunhidos. In-Out (Antropofagia) mescla asfixia, afasia, traumas,
esforços de fala, discursos mudos não articulados. Próximo de um grau zero da linguagem,
Maiolino produz um confronto com agressividade para depois introduzir doçura. Algumas
palavras são balbuciadas e entreouvidas: “eu”, “Anna”. Os sons informes se organizam para
afirmar o sujeito. A tentativa é descobri a fala. Há uma cena de sua impossibilidade com
um ovo na boca. Há um fio que se engole. Se há um homem e uma mulher, no entanto,
quem se comunica com o mundo é sempre ela pela palavra, o ovo, o fio que entra e sai. A
linguagem humana é sem exterior: é um lugar fechado. 35 A impossibilidade de dizer e o
dizer constrangido pela censura esforçam-se em produzir discurso com qualquer
movimento vital ou fragmento de signo: cor, comer, vômito, fumaça, batidas do coração.
Ainda assim, o filme de Maiolino difere da representação de deglutição e abjeção do
“cinema marginal”. A cena da boca com fio em In-Out (Antropofagia) informa que sua
topologia linguística sai dos desenhos com linhas de costura de Maiolino, mas também
troca sentidos com a Baba Antropofágica de Clark. O clima de censura e morte do filme, no
entanto, afirma a pulsão de vida infiltrada no território político. É busca dramática da
linguagem e exacerba a situação da fala sub censura. Diz Roland Barthes que o fascismo
não é impedir de dizer, é obrigar a dizer. 36 Sob um regime de repressão, a obra de Maiolino
afirma própria hipótese de fala: produzir arte implica também em reivindicar o direito de
expressão e sua existência política. In-Out (Antropofagia) remete ao silêncio e ao vazio dos
desenhos para enfatizar a irredutibilidade da liberdade e da opinião. Decifra-me ou te
devoro.
A crise linguística instalada por Maiolino em In-Out (Antropofagia) tem sua raiz no
regime totalitário estabelecido em 1964 no Brasil, que produziu (entre outras atrocidades)
um index de assuntos e palavras proibidos. Remete ao canibalismo como metáfora de
devoção política do cidadão pelo Estado. Estão nessa anatomia, que remete às noções de
“corpo sem órgãos”, obras de Antonino Manuel, Cildo Meireles, Ivens Machado, Barrio, ou
Ana Vitória Mussi, que inscrevia luto em fotografias de esportes.
Enquanto o lugar de dicção em desafio ao silêncio imposto, a condição descrita por
George Steiner – “man is set back in a landscape without enchoes” 37 – In-Out
(Antropofagia) deve ser articulado ao cinema de Glauber Rocha e a Tiradentes: totemmonumento ao preso político de Cildo Meireles. 38 No plano latino-americano, a obra de
Maiolino também evoca a série de gravuras Tortura Uruguai de Luis Camnitzer. Para
Meireles, urgia convocar o simbolismo da liberdade vinculado a Tiradentes. Ele trabalhava
com uma noção de “gueto” em que sua obra enquanto a voz possível de um preso numa
cela solitária e cujo grito se mantinha detido, não por mera falta de ar, mas pela
impossibilidade de presença de ouvidos solitários. Os bonzos que ateavam fogo às próprias
vestes em protesto contra a presença dos Estados Unidos na guerra do Vietnã, Tiradentes
de Meireles e In-Out (Antropofagia) de Maiolino são métodos de produção de linguagem
no processo de desumanização da língua pelos regimes de tirania. Constituem uma rejeição
total à sublimação estética.
VII.
Com instalações como Monumento à Fome (1978), Prato do dia (1979), Feijão com Arroz
(1979), Criação (1979), Entrevidas (1981), De Vita Migrare (1975-76) e Anno MCMXCI
(1991), a obra de Anna Maria Maiolino expande-se a outras dimensões do real, sobretudo
no que toca à questão da fome, inscrevendo-se assim numa tradição rica, ainda que triste, a
arte brasileira. O referencial mais remoto para Feijão com Arroz seria Josué de Castro,
autor da Geografia da fome, que foi um dos contribuintes da Revista de Antropofagia de
Oswald de Andrade nos anos 1930. Uma literatura sobre a fome passa por Graciliano
Ramos e João Cabral de Melo Neto. O poeta concreto Haroldo de Campos, em Servidão de
Passagem (1961), escreve versos como:
poesia em tempos de fome
fome em tempos de poesia
Parafraseando Haroldo de Campos, diríamos que Feijão com Arroz é “arte em
tempo de fome / fome em tempo de arte”. Em Feijão com Arroz, havia quadro mesas onde
se comia arroz e feijão, o alimento básico de milhões de brasileiros. A duração da amostra
transforma-se no tempo de germinação do arroz e feijão nos pratos com terra na mesa
enlutada central. Nessa instalação como alhures, a fome é vinculada ao luto político na obra
de Maiolino. Feijão com arroz alude ao modelo econômico da ditadura militar de
concentração de renda para financiar investimentos para apenas depois ser distribuído à
massa de indivíduos. É a teoria do “bolo” do Ministro Delfim Neto. A um grave custo
social, inclusive da fome, preconizava-se primeiro fazer o bolo para depois reparti-lo.
Os elementos de Feijão com Arroz – alimento sobre uma mesa – permitem referir à
obra Analogia IV (1972) de Victor Grippo, uma mesa com batatas naturais e simuladas em
material transparente. Este artista argentino, com quem Maiolino estava casada de 1984 a
1989, fez instalações para projetar significado social sobre o processo de metabolismo da
batata, assim dialogando com Beuys e seu uso simbólico da energia. Em Vida-Muerte
Resurección (1980), o experimento de Grippo implica em recipiente de chumbo em forma
geométrica, contendo grãos e sementes. Eventualmente, a germinação – processo também
essencial a Feijão com Arroz de Maiolino – termina por fazer explodir o objeto.
De certo modo, a obra fílmica do cineasta Glauber Rocha está próxima da pauta de
Maiolino relativa à fome, a diferença sendo que o último estabelece uma fricção crítica
entre a fome e a violência. “Pensar a fome talvez seja a mais ambiciosa proposta de
Glauber Rocha”, diz Ivana Bentes. “Dela deduz o transe do pensamento. Na estética da
violência de Glauber se produz uma ética do intolerável. A fome sofre transmutações e
torna-se metáfora do desejo e do devir revolucionário”. 39 Em seus filmes, a violência social
ou política não é trabalhada por metáforas sublimatórias, mas por atos concretos.
Há fome em toda sociedade de grandes abismos sociais, mas há outra fome
essencial como protótipo das pulsões de autoconservação às quais se vincula Entrevidas
(1981), outra instalação de Maiolino.
VIII.
No extremo oposto das pulsões de morte frontais de In-Out (Antropofagia), em Entrevidas
(1981). Anna Maria Maiolino proclama as tensões das pulsões de vida. O território se
conforma aí através de centenas de ovos de galinha (70 dúzias), espalhados pelo chão em
espaço semi-regulares para permite a passagem das pessoas. A atmosfera aconchegante de
Entrevidas é conferida pelo toldo de tecido cru, abrigo que irradia luz suave. 40 Um pedestal
sustenta um prato branco com ovos galados, presença da fecundação. A caminhada entre os
ovos torna-se, pela fragilidade deles, um processo de tensão ascendentes, que se acumula a
cada passo dado, como num campo minado, transformando retornar ou avançar em atos da
mesma ordem. O desafio de obra é a espacialização linguística da expressão em Português
“pisar em ovos”, isso é, “conduzir-se com cautela, diplomacia, habilidades, por trata-se de
situação delicada ou constrangedora”, na definição do Novo Dicionário Aurélio da Língua
Portuguesa.
Entrevidas surge na época dita “abertura democrática” da ditadura de 1964, que
implicava no relaxamento dos amplos poderes do Estado sobre os indivíduos. Entrevidas
ecoa o trauma do discurso encontrado em In-Out (Antropofagia), sinalizando que o protesto
da sociedade civil havia começado a se fortalecer contra o regime militar, o qual, atravnés
do terrorismo de Estado, havia eliminado as demandas por mudança sociais estruturais.
Entrevidas antecipa o projeto de instalação América (1992) de Cildo Meireles, para um
espaço com chão coberto por milhares de ovos de madeira pintados de branco e com um
teto forrado por milhares de balas de fuzil. A artista comparou os aspectos simbólicos de
sua instalação a Fine de Dio de Fontana, uma forma oval dilacera por furos: “tudo que
termina se transforma. Na nossa natureza nada se perde. Na negação há afirmação”. 41
Noutro lugar, diz ainda: “Sinto a nostalgia de um espaço maggiore [principal, tanto mais],
um espaço de futuro, uma via de otimismo. Onde expressar o ser, a natureza, num só ato
criativo – orar e trabalhar – em um só ato integrador. Descobrir na liberdade: ‘o poder de
ser causa’ de que fala Teilhard, que une o ser com o fazer. Na espera, fico neste trabalhar
no nada. Pintado, repetindo a forma oval, o zero, primas formas, embriões, doadores de
vida”. 42 Experimenta-se em Entrevidas algo do “pensar com o corpo” anotado por Ferreira
Gullar. 43 Indivíduos e espaços se fundem como tensão, remetendo também à pintura Ovo
linear (Unidade) (1958) de Clark: um círculo negro, circulando por uma linha-luz branca
periférica, que não se fecha e estimula o esforço do espectador para fechar o espaço. A
própria artista descreve esse projeto espacial: “Quando temos um círculo tende a não se
fechar para nós, porque as extremidades da linha-luz, percpetivamente, distorcem a
superfície do círculo”. 44 Assim, a tensão do caminhar em Entrevidas, na fenomenologia dos
sentidos, estaria no campo do proprioceptivo, que eriça as preocupações e inquieta todo
corpo no seu ato de estar em movimento neste espaço.
Entrevidas, tal como A Casa é o Corpo de Clark, projeta a experiência do nascer e
lida com etapas da constituição de um novo ser. A obra de Maiolino é evocativa de uma
“agonia primitiva”, conceito desenvolvido por D. W.Winnicott. Em Entrevidas, vagueia-se
num território linguístico que beira o pré-verbal e o não-verbal. Na “arquitetura vivente” de
Clark estão fases da gestação: Penetração Ovulação, Germinação e Expulsão. (Note-se
também que a Fantasmática do disco de Cildo Meireles, Sal sem Carne, é semelhante à de
A Casa é o Corpo, 45 pois trata da harmonia primal)
Clark disse: “meu trabalho não está longe da violência sexual porque libera instintos
reprimidos, mas não está forçosamente ligado ao prazer. Tudo depende, logicamente, dos
participantes: o exotismo pode ser negado em favor do lúdico, e vice-versa”. 46 A hipótese
destrutiva em Entrevidas distingue-se, mesmo sendo aproximada, da voracidade canibal
que já se anunciara no texto Morte do Plano (1960). Clark admite a devoração da geometria
representada por “esse retângulo em pedaços; nós o engolimos, o absorvemos em nós
mesmos”, 47 tema que ela tratará depois em Baba Antropofágica e Canibalismo (1973).
No texto Sobre o canibalismo, Clark observa que “a tranquila fase oral-erótica de
mamar desemboca sobre uma fase canibalesca. Eu penso que o canibalismo não é somente
ao serviço do instinto de conservação, mas que os dentes são ao mesmo tempo as armas que
servem às tendências libidinosas, instrumentos que ajudem a criança a penetrar o corpo da
mãe. (...) No primeiro contacto com o seio, a criança procura penetrar à procura do ventre,
abrigo poético perdido; não podendo penetrar, introjeta-se, começando a fase canibalesca”.
Clark aduz que vida e canibalismo estão associados, pois, qual um ovo, “o ventre é o abrigo
poético de toda a matéria, envolve o feto e a forma”. 48 O objeto frágil – o ovo – é a
densidade ao espaço, agora transformado em campo fantasmática. Maiolino havia
vinculado sua obra ao modo com Freud trata de Eros como instinto de vida e Tânatos como
seu oposto, instinto de morte. 49 Um ovo justapõe imagens arquetípicas fortes, produzindo,
em Entrevidas, um estranhamento que evoca o Unheimlich da teoria de Freud. Esses
sussurros do estranho já estavam também, de modo fantasmagórico, em In-Out
(Antropofagia).
Na produção de Maiolino, a fala se desloca agora do espaço topológico da dicção
possível para o silêncio expressivo. Esse momento pré-verbal na obra de Maiolino merece
ser referido à estruturação do self desenvolvida por Lygia Clark através dos objetos
relacionais a partir de 1976. Respeitado o silêncio, diz Clark, “a estruturação do self se dá
no espaço pré-verbal”. 50 Nesse espaço de pré-signo e pré-linguagem, uma “doença da
alma” já se prenuncia. Entrevidas constitui o espaço privilegiado do imaginário e do
simbólico em que se desenrola o esforço de subjetivação. 51
IX.
Desde os primeiros relevos (1989), a massa, como o pão, tem sentido primordial para Anna
Maria Maiolino. 52 Amassar a pasta úmida é seu gesto arquetípico, como são fazer o pão,
socar a casa de terra crua, moldar vasilhas e dar forma aos deuses. Seu repertório de
materiais passou a incluir o gesso, matéria preparatória da escultura moldada; o cimento,
material da engenharia moderna; e o barro, matéria ancestral. Surgem, pois, obras em gesso
(No Círculo, 1989), cimento (A sombra do Outro I, 1993-1999, cimento moldado) e argila
(Mais Estes, 1996, com 600 kg de argila modelada). Dessa massa de terra úmida emergem
relevos, sólidos geométricos, rolinhos, cobrinhas, fios, objetos, coisas, pedaços, módulos,
porções, buracos e vazios.
Quando Maiolino passa a trabalhar com pasta úmida, o ambiente no Rio de Janeiro
estava marcado pela produção de Celeida Tostes e Ivens Machado. A cerâmica radical de
Tostes apropria-se de formas naturais (como a casa do pássaro Furnarios rufus, o joão-debarro) e do barro para realizar objetos, instalações, performances (como a de um
nascimento, no qual a artista sai de uma grande vasilha coberta de barro mole) ou escultura
social com comunidades de favela. Ivens Machado produziu esculturas que incorporavam o
vocabulário da arquitetura vernacular das favelas, seus materiais (cimento, azulejos e
vergalhões) para criar esculturas brutalistas e sensuais de ameaçador equilíbrio instável,
diagrama do próprio tecido urbano. Recentemente, Maiolino tem contribuído para o
florescimento da escultura brasileira com os seus projetos políticos e conceituais.
Maiolino não exclui aqui um viés de identidade cultural que sabe fragmentada. Para
ela, o gesso, o cimento e a argila são massas úmidas da família da pasta, o elemento básico
da cozinha italiana. A própria artista rememora a formação do solo da região de Scalea
onde nasceu: “O mito cavernicoulo sobre as cavernas juntando a ideia de volta ao seio da
mãe Terra depois da morte. Quando começo a trabalhar com o molde, ele é um corpo oco,
que guarda a memória do positivo que saiu. A fenda do molde, a caverna do corpo da
escultura tem relação com a caverna na terra e o mito de parir da terra. Nasci num lugar
cheio de cavernas pré-histórias. Perto de Scalea há descendentes daqueles povos. No Sul da
Itália há várias igrejas em caverna. A gruta como amparo e transcendência. Como o solo da
Itália é vulcânico, há muitas cavernas”. 53 Assim, as obras trabalhando com buracos e o
vazio já não conotam a tensão política dos desenhos dos anos 1970, mas se afirmam como
região da memória atávica e lugar da fantasmática. A topografia de Scalea é um útero
terral, sutil matriz de identidade cultural.
A partir de 1991, novas questões são postas em seu trabalho com a massa úmida.
Em obras como (1 + 1 + 1) (1991) e Capa 6 + 1 (1991), Maiolino passa a se submeter à
poética das unidades de volume e a utilizar a técnica do rolinho, que é uma tecnologia de
grupos nativos da Amazônia. Maiolino libera os objetos de seu caráter de “relevo”
enquanto um lugar e coisa predominados na parede. Tornam-se coisas do/no mundo.
Surgem entre o caos iminente de massa e a ordem de petrificação. Neste momento,
Maiolino assumiu seu aprendizado com o saber arcaico indígena no fabrico de vasilhas para
a constituição de seu vocabulário visual, porém sem buscar padrões estéticos na cerâmica
dos nativos, como ocorrera na pintura de Vicente do Rego Monteiro. 54 Maiolino se alinha
aqui com a tradição do projeto de identidade do Brasil, que incorporou uma agenda relativa
aos povos nativos do Brasil.
Nessas obras, Maiolino relembra a “crítica do Programa de Gotha” de Karl Max,
onde se afirma que a emancipação do trabalho demanda a produção dos instrumentos de
trabalho ao nível da propriedade comum da sociedade. 55 A obra de Maiolino, Grippo ou
Cildo Meireles explicita como o trabalho compõe o valor de troca. Em Algunos Ofícios
(1976) Grippo reúne arte e trabalho, o diálogo do homem com suas ferramentas como um
ritual. Maiolino, como Grippo, une o Homo faber de Hegel à vontade matéria (“volonté
matérique”) de Gaston Barchelard no processo de dominação e alteração da naturaza. A
massa de cimento, argila ou gesso, cada uma tem seu tempo próprio de vida, como “pasta
ótima”, no seu fugidio estado ambivalente entre o duro e o mole. Com Codicilli (19932000), Maiolino encontra a escritura na pasta macia da própria massa. O mesmo ocorre
com as especificações técnicas e títulos das obras de Maiolino com argila, que indicam
quantidades: 3.500 kg de argila empregada no projeto São estes (1998) ou Poderia ser mais
que estes (1997). Na obra de Maiolino, peso, massa e tempo – se tornam mera medida da
experiência do fazer, não como valor agregado de matéria-prima ou ufanismo matérico. A
Maiolino interessa a solidez íntima dos materiais, seja ele uma folha de papel, um ovo ou
terra crua entre suas mãos.
As instalações de Maiolino guardam-se isentas da síndrome de Richard Serra, que
atendem a afligir a arte brasileira contemporânea, mesmo quando ela usa toneladas de
argila, como São estes (1998) suas instalações não permitem um efeito totalizante
duradouro; pois a massa não se será definitivamente convertida em volumes. A argila é
obsessivamente partida e dividida, reunida temporariamente como resultado do trabalho,
mas sob a regência da transitoriedade: voltará a ser pó. Maiolino não fixa, com a queima da
cerâmica, a forma dessas porções de peso, mais que simples formas de argila. Esses
trabalhos de Maiolino guardam algo daquilo que Mary Jane Jacob descreveu na obra de
Hesse: “Em sua busca pelo eu e pelo feminino, Hesse precisava encontrar formas ainda
desconhecidas, formas que resistissem a se fixar permanentemente”. 56
O trabalho mais recente de Maiolino pode ser analisado em relação a determinadas
obras de Lygia Clark, Eva Hesse, Hélio Oiticica, Mira Schendel, Gego, Cildo Meireles e
José Resende. Os trabalhos desses artistas são, de certo modo, introspectivos e
concentrados, operam com geometria serial e formas orgânicas, semelhantes ao que Jacob
denominou “contenção e caos”. 57 Embora recusasse a duração como meio de expressão,
Lygia Clark relata que viveu “o fim da obra de arte, do suporte em que ela se expressava, a
morte da metafísica e da transcendência, descobrindo o aqui e o agora na imanência”. 58 Ela
dirá mais: “Propomos o momento do ato como campo da experiência. Recusamos toda
transferência no objeto”. 59 Numa atitude que tem muito da arte brasileira, Eva Hesse diz
que “há muitas coisas que prefiro deixar acontecer”. 60 Em Caminhando (1963), Clark
dispensa o vestígio do objeto, ao propor ao Outro construir uma cinta de Moebius e depois
cortá-la longitudinalmente com uma tesoura, propiciando uma experiência do devir: “O
instante do ato não é renovável. Ele existe por si próprio: o repetir é lhe dar outra
significação”, afirma Clark. 61 Um Parangolé (1965) de Oiticica é uma estrutura (ou uma
capa) para ser dançada e vivenciada ao som de música. Ao discutir a conceito de Nova
Objetividade, Oiticica observou que “o próprio ‘fazer’ da obra seria violado, assim como a
‘elaboração’ interior, já que o verdadeiro ‘fazer’ seria a vivência do indivíduo”. 62 Ao
avaliar seu processo, Clark declara: “pela primeira vez descobri uma realidade nova não em
mim, mas no mundo”. 63 Caminhada (1963), de Clark, ato de tempo imanente, tem
desdobramentos na arte brasileira, como as Droguinhas (1966) de Mira Schendel. As
Droguinhas são esculturas feitas com folhas de papel retorcidas e amarradas em nós. É um
objeto que se arma por puro investimento de energia, sem um modelo estético que não
fosse a acumulação dos nós. Na Reticularia (1969) de Gego, hastes de metal se conjugam
para se converterem na malha mesmo do mundo ou jorrar maleável qual água em cascata.
Como em Accession II (1967) de Hesse e nas Droguinhas de Schendel, as
instalações em argila de Maiolino não partem de decisão sobre uma forma privilegiada, mas
de um gesto disciplinado e obsessivamente repetido. É seu modo de atuar como tempo
imanente ao fazer: “O que está implícito na proposta do trabalho de argila é a
continuidade”. 64
A ética da qualidade permeia a obra de Hesse, Maiolino e Meireles. A partir de
1993, as instalações de Maiolino são realizadas com argila natural, não cozida, modelações
no próprio local de exposição. A primeira foi Maquete: Estudo para uma instalação (1993)
com 100 kg de argila, evoluindo para Muitos, feito com 300 kg na Kanaal Foundation em
Kortrijk, Bélgica (1993) até atingir aos 3.500 kg usados em São Estes na XXIV Bienal de
São Paulo (1998). Distinguindo-se da escultura de Serra, o peso para Maiolino indica
estritamente a medida e proporção de trabalho. O trabalho de Maiolino, não tendo valor
agregado pelo trabalho, também não lida com a acumulação de capital através dos
materiais. Em paralelo, a obra de Meireles conduz o excesso à produção do absurdo
econômico ou a dissolução do valor, como ocorre com as 600.000 moedas de
Missão/Missões (How to build cathedrals, 1987). Aqui, o processo de acumulação de
capital encontra conotações mórbidas. As bases desse ethos já estavam lançadas por
Meireles no Estojo de geometria (Neutralização por oposição e/ou adição, 1987), que
demonstra os resultados perversos da acumulação de lâminas e oposição de objetos
cortantes e perfurantes como operação de neutralização da capacidade do corte e da
eficiência. Nos furos da sua caixa Accenssion II (1967), Hesse enfiou e prendeu mais de
30.000 tubos plásticos, confrontando-se com o excesso e o caos. Na economia de Maiolino,
alguns títulos quantificam com precisão os volumes: Um em Um (1991), 1+1+1, Dois n. 1
(1995), Um + dois (1991), Três em um (1991), 200 outras configurações (2000), São 340
(2000). Outros se marcam por cálculo aproximativo, como se perdidas as contas: Mais de
100 (1993), Mais de Mil (1995), Poderia ser mais que estes (1997). Alguns títulos já
inviabilizam referências contábeis, como Muitos, mais, estes, ainda mais estes (1996).
Finalmente, a quantificação é muito ou nada, como em Um nenhum cem mil (1993), ou
serve para afirmar a socialização da economia: Sombra do outro. No trabalho de Andy
Warhol, a quantificação, conforme os títulos, simula um processo de cálculo de produção
ou estoque, não de trabalho dispendido, como em Five coke bottles ou 210 Coca-Cola
Bottles (1962). No entanto, o título de uma obra de Warhol da série de Mona Lisa elucida
seu ethos da celebração da acumulação capitalista. Thirty are better than one (1963). Isso
permite distinguir a posição de Warhol da de Maiolino. Para ela o trabalho é compreendido
em conexão com o problema da auto-consciência, que, segundo Hegel na sua
Fenomenologia do espírito, “is desire held in check, fleetingness staged off; in other words,
work forms and shapes the thing”. 65
Com Maiolino, a argila está no estado material impermanente. Similar foi a
proposta de José Resende em Arte Cidade (1994) de empilhar e reempilhar grandes blocos
de granito com um guindaste durante dez dias consecutivos. O dispêndio de energia era a
obra em si. Os trabalhos com argila de Maiolino condensam o tempo na massa trabalhada,
concentração e evidência do investimento de esforço e tempo no trabalho fadado à
dissolução pela efemeridade. Tais obras de Clark, Oiticica, Hesse, Maiolino e Resende
permanecem em “estado emergente”, expressão de Jacob. Maiolino não cozinha o barro,
portanto não faz cerâmica, porque não busca o endurecimento, a resistência ou a
permanência das formas infligidas à argila. As instalações de Maiolino são puro fazer: “o
destino da argila é secar e voltar a ser pó. O princípio do fazer”, conclui. 66 Não cozinhar a
terra significa também seu equilíbrio com a physis.
X.
Uma estranha árvore foi encontrada na Tijuca, no Rio de Janeiro, a maior floresta urbana
do mundo. A árvore floresce como a jaboticabeira (família das mirtáceas, Myrciaria
cauliflora), deitando seus frutos generosos pelo tronco, mas organizados como grande
cacho de bananas. Exemplar único da espécie desconhecida até o ano 2000, a árvore foi
denominada Aqui estão (1999). A Floresta da Tijuca, onde se constatou a existência da
nova espécie vegetal, não dista do sítio de um homem que, amando as plantas, fez um
jardim só de pedras. 67 No entanto, ninguém se decepciona em descobrir, no meio da
floresta luxuriante, que Aqui Estão é uma árvore de falsos frutos. É arte.
Esta árvore não surge de nenhum enxerto que cruzasse espécies de frutas, mas os
frutos de Aqui Estão são reafirmativos da multiplicidade das medidas. É contrária à unidade
de medidas que seria o fruto. É uma árvores que deu frutos feitos em várias espécies de
madeiras, como cedro, ipê, imbuia, cerejeira, pau-marfim, que são a Cedrela fissilis,
Tabebuia da família da binoniáceas; a ocotea porosa, do gênero Prunus; e a rutácea
Balfourodendron riedelianum. Não são frutos da mesma espécie, gênero ou família. 68 Os
frutos estão aí como um tipo de erva daninha, espécie distinta da árvore.
A árvore de Maiolino não centra, mas reforça a noção do rizoma, não só no modelo
de sua obra em quatro décadas, mas porque essa árvore, pela multiplicidade de frutas, vira
hipótese rizomática de si mesma. Os frutos de Aqui Estão fogem a qualquer taxonomia.
Não estão aí por filiação a um gênero ou família, mas, como rizoma, 69 por aliança entre si
para formar a penca de diferenças. Os frutos de Aqui Estão são madeira-de-lei. Serão
alimento difícil de insetos como o cupim. Maiolino reescreve uma história natural dos
jardins, cuja dinâmica não se faz por sistemas da natureza (polinização, transporte de
sementes e mudas pelo ar, insetos, morcegos, pássaros, quadrúpedes e o homem), mas
como história natural produzida culturalmente. A efemeridade de Aqui Estão é sua entrega
á devoção pelos insetos, tanto quanto os pedaços de argila cortados passarão à condição de
pó.
A árvore Aqui Estão está no Museu do Açude, num parque de esculturas que inclui
obra de Hélio Oiticica, Tunga e Iole de Freitas. 70 No Brasil, o paisagista Roberto Burle
Marx ganhou presença internacional com seus desenhos de canteiros sinuosos, que buscam
a presença orgânica, natural e pictórica das plantas. Oiticica incluiu plantas simbólicas dos
cultos afro-brasileiros na formulação do grande espaço edênico de Tropicália (1967). Seu
projeto Cães de Caça (1961) propunha um “jardim abstrato”, disse Frederico Morais, onde
estariam plantadas obras de outros artistas. Tendo sido aluna de pintura de Roberto Burle
Marx, pode-se observar desde então a emergência de preocupações orgânicas de Clark.
Floresceram no Brasil os jardins de pedra de Burle Marx; os jardins mortos de Franz
Krajcberg, contestando a destruição da natureza no país; e os Frutos do Espaço (1980) de
Antonio Manuel, estruturas que evocam o design gráfico de jornais e a arquitetura precária
das favelas. Estas obras foram primeiro montadas num jardim criado ao custo da expulsão
de uma favela. Ku kka Ka kka(1999), de Cildo Meireles, confronta o sublime e o abjeto, o
natural e o artificial, o fecundo e o estéril em jogo alternado de odores de flores naturais e
artificiais e de fezes naturais e artificiais Maiolino havia trabalhado com plantas vivas em
Feijão com Arroz. A natureza é seu lugar de desejo e da linguagem. Frente ao
“determinismo natural” no Rio de Janeiro, seus artistas, como os urbanistas da cidade,
reinventam a natureza com inteligência poética, como os jardins de Burle-Marx, os Bichos
de Lygia Clark ou a árvore de Maiolino. A arte é como a vida, que é um rio, que é a linha,
que é um pensar, que é o fluxo de energia, que é o trabalho, que é a escrita, que é um
rizoma, que é um labirinto, que é o corpo, que é a experiência, que é “o cheio do oco”, que
é a vida, que é a arte no processo de Anna Maria Maiolino.
1
Em conversa com o autor em 1 de abril de 2001.
Op. cit. nota 1 supra.
3
Op. cit. nota 14 supra.
4
Veríssimo de Mello. “Literatura de Cordel – Visão histórica e aspectos principais” in: Literatura de Cordel
Antologia. Fortaleza: Banco do Nordeste, 1982. (p. 13)
5
Riva Castleman parece reconhecer a qualidade singular da obra de Samico ao incluir uma de suas obras
entre 68 ilustrações de seu livro Prints from Blocks, Gauguin to now. Nova York: The Museum of Modern
Art, 1983. (plate 46)
6
Op. cit. nota 14 supra.
7
Entrevista de Barrio a Paulo Herkenhoff em 22 de fevereiro de 1994.
8
Encontrei Clark inúmeras vezes na casa de Anna Maria Maiolino na década de 1970 e sobretudo nos anos
1980.
9
Paulo Herkenhoff. Nova figuração / Buenos Aires. Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, 1987.
10
Op. cit. nota 1 supra.
11
Ver Michel Foucault. Vigiar e Punir. Edição brasileira. Petrópolis: Editora Vozes, 1977.
12
Em conversa telefônica com o autor em 10 de agosto de 2001, Maiolino diz que “quando eu estava sem
poder trabalhar nos Estados Unidos, o Hélio [Oiticica] me dizia: Anna, escreve, porque um caderno você leva
no bolso”.
13
Op. cit. nota 1 supra.
14
Ibidem
15
Morte do Plano (1960) in Lygia Clark. Rio de Janeiro: Funarte, 1980. (p. 13)
16
Carta a Rubens Gerchman, em 2 de novembro de 1969.
17
Roberto Pontual. Entre dois séculos - Arte brasileira do século XX na Coleção de Gilberto Chateaubriand.
Rio de Janeiro: Editora JB, 1987. (p. 444)
18
Op. cit. nota 14 supra.
19
Carta a Guy Brett em 24/11/1965, in Art in Latin America, London, The Hayward Gallery, 1989. (p. 275)
20
Op. cit. nota 58 supra, p. 33. O olhar é problematizado como processo institucionalizado no campo da arte –
“o real da arte”, segundo Brito, que também não pretende uma “transformação social em ampla escala”.
21
Tiradentes, dito “heroi da independência do Brasil”, chefiou a Inconfidência, movimento em Minas Gerais
de rebelião contra a Coroa portuguesa. A propósito da obra de Meireles, ver do autor A Labyrinthine Ghetto:
The work of Cildo Meireles. In Cildo Meireles. Londres: Phaidon, 1999. (p. 38 e seguintes)
22
In op. cit. nota 34 supra, p. 51.
23
Exemplares dos dois primeiros livros-de-artista de Maiolino estão na coleção do Department of Prints and
Illustrated Books of the Museum of Modern Art of New York.
24
Augusto de Campos, Décio Pignatari e Haroldo de Campos. plano-piloto da poesia concreta. São Paulo:
Noigrandes, n. 4, 1957.
25
Rio de Janeiro, Jornal do Brasil, 22 de março de 1959.
26
Carta ao autor em 24 de maio de 2001.
27
Essa sentença é tributária de Deleuze e Guatarri, op. cit. nota 3 supra, p. 14.
28
Op. cit. nota 36 supra, 1957.
29
Rio de Janeiro, Jornal do Brasil, plaqueta editada por ocasião da II Exposição Neoconcreta, realizada em
22 de novembro de 1960 no Rio de Janeiro. O não-objeto foi aí definido por Gullar nos seguintes termos: “o
não-objeto não é um antiobjeto, mas um objeto especial em que se pretende realizada a síntese das
2
experiências sensoriais e mentais: um corpo transparente ao conhecimento fenomenológico, inteiramente
perceptível, que se dá à percepção sem deixar rastro”.
30
Ver Derrida, Escritura e Diferença, op. cit. nota 36 supra, p. 15.
31
Ver Suely Rolnik, Por um estado de arte: a atualidade de Lygia Clark, in: XXIV Bienal de São Paulo:
núcleo histórico – antropofagia e histórias de canibalismos. São Paulo: FBSP, p. 456-461.
32
Carta a Hélio Oiticica em 6 de julho de 1964, in: Lygia Clark e Hélio Oiticica – Cartas 1964-74, Luciano
Figueiredo (org). Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1996. (p. 221-222)
33
Paris, Gallimard. 1976, n. 6, PP 123-127. Ver Paulo Herkenhoff, Introdução Geral in: XXIV Bienal de São
Paulo: Núcleo histórico – Antropofagia e histórias de canibalismos. São Paulo: FBSP, 1998. (p. 22 e
seguintes)
34
Ibidem, p. 457. Rolnik afirma aí estar apelando para a memória das sensações que vivi na Baba
antropofágica, obra de Lygia Clark.
35
Roland Barthes. Aula. São Paulo: Editora Cultrix, 1989. (p. 16)
36
Ibidem, p. 14.
37
Extraterritorial, Papers on Literature and the Language Revolution. Londres, Faber and Faber, 1972. (p.
96)
38
Em espaço aberto, Meireles fixou uma estaca de 2,50m sobre um quadrilátero marcado por um pano branco
e tendo no topo um termômetro clínico. Ao poste foram amarradas dez galinhas vivas, sobre as quais se
derramou gasolina e ateou fogo.
39
“Glauber e o fluxo audiovisual antropofágico” in: XXIV Bienal de São Paulo: Arte Contemporânea
Brasileira – Um e/entre Outro/s. Paulo Herkenhoff e Adriano Pedrosa (curadores). São Paulo: FBSP, 1998.
(p. 182)
40
A obra foi exibida pela primeira vez em 1981, no Paço das Artes (SP). Tinha cerca de 60 m2.
41
Op. cit. nota 14 supra.
42
In Buenos Aires, 27 de agosto de 1987, manuscrito da artista.
43
Arte neoconcreta uma experiência brasileira (1962) op. cit. nota 2 supra, p. 120.
44
Livro-obra. Rio de Janeiro, Luciano Figueiredo (editor), 1983
45
Lugares de Divagación – Una entrevista con Cildo Meireles, por Niura Enguita in Cildo Meireles.
Valencia: IVAM, 1995 (p. 20)
46
L’art c’est le corps in Preuves. Paris, n. 13, pp 143-145.
47
Morte do plano (1960) in op. cit. nota 34 supra 13
48
Sobre o canibalismo (texto datilografado), sem data, uma folha. Arquivo Lygia Clark, Centro de
Documentação do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro.
49
Op. cit. nota 14 supra.
50
In op. cit. nota 34 supra, p. 52.
51
Ver Julia Kristeva, Les Nouvelles op. cit. nota 40 supra, p. 37, parafraseada nesta sentença.
52
A palavra “massa” em português tem múltiplos sentidos, dos dois quais, pelo menos, atinentes à obra de
Maiolino: (a) massa enquanto pasta, matéria em estado úmido, isto é, matéria pastosa e (b) no sentido da
física, como “grandeza fundamental que mede a inércia de um corpo, e que é igual à constante de
proporcionalidade existente entre uma força que atua sobre o corpo e a aceleração que esta força lhe imprime,
e cuja unidade de medida no Sistema Internacional é o quilograma”, conforme o Aurélio.
53
Op. cit. nota 1 supra.
54
Na segunda metade do século XX, as cerâmicas indígenas mais difundidas no Brasil eram as dos Carajás,
ver, por exemplo, Gastão Cruls, Arte Indígena in As Artes Plásticas no Brasil, vol. I, Rodrigo M. F. de
Andrade (organizador). Rio de Janeiro, Instituto Larragoiti e Sul América, p.75 e seguintes. Para relação da
cor da pintura de Rego Monteiro com as cerâmicas arqueológicas da Amazônia, ver do autor A cor no
Modernismo brasileiro – a navegação com muitas bússolas in XXIV Bienal de São Paulo: Núcleo Histórico –
antropofagia e histórias de canibalismos. São Paulo, FBSP, 1998. Ver também do autor The Jungle in
Brazilian Modern Design (Miami, The Journal of Decorative and Propaganda Arts, 1995, n. 21, p. 238-259) e
A Labirinthine Ghetto: The work of Cildo Meireles (in Cildo Meireles. Londres, Phaidon, 1999, p. 38 e
seguintes), inclusive para a pintura do indianismo no século XIX na arte brasileira. Com diferentes
perspectivas críticas, podem ser citados ainda artistas como Victor Brecheret, Cildo Meireles, Rubens
Gerchman, Anna Bella Geiger, Claudia Andujar, Miguel Rio Branco ou o carnavalesco Fernando Pinto. Na
tradição do carnaval do Rio de Janeiro, “carnavalesco” é o artista encarregado de planejar o tema e desenhar
toda a parte visual de uma Escola de Samba.
55
“Critique of the Gotha Program” (1875). IN The Marx Engels Reader; Robert C. Tucker (editor), New
York, 1978, p. 525-527.
56
Contenção e Caos:Eva Hesse e Robert Smithson in XXIV Bienal de São Paulo: Núcleo Histórico –
Antropofagia e histórias de canibalismos. São Paulo, FBSP, 1998, p. 470 e seguintes.
57
Ibidem
58
Texto datilografado sem título ou data, uma folha. Arquivo Lygia Clark, Centro de Documentação do
Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro.
59
In Nós recusamos (1968) in op cit nota 34 supra
60
Lucy Lippard, Eva Hesse, Nova York: Capo Press, 1992 (p. 192)
61
1965: Do Ato in op. cit. nota 34 supra, p. 23-24
62
Aparecimento do suprasensorial na Arte Brasileira, in op. cit. nota 90 supra, p. 103-104
63
Caminhando in Lygia Clark op. cit nota 34 supra p. 25-26
64
Op. cit. nota 1 supra
65
G. W. F. Hegel. Phenomenology of Spirit (1807). Tradução de A. V. Miller. Oxford, Oxford University
Press, 1977, n. 195.
66
Op. cit. nota 1 supra
67
Trata-se do paisagista Roberto Burle Marx e de seu projeto para os jardins do Museu de Arte Moderna do
Rio de Janeiro
68
Os frutos são 500 rolinhos de Madeira, que evocam o trabalho anterior de Maiolino com a técnica de
cerâmica
69
A propósito dessa questão ver Deleuse e Guatarri, op. cit. nota 3 supra, p. 37
70
O projeto de esculturas no parque do Museu do Açude, antiga residência de Raymundo de Castro Maya,
fundador do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, vem sendo desenvolvido por Marcio Doctors. O
programa inclui, além de Maiolino, obras dos artistas Hélio Oiticica, Barrio, Tunga e Iole de Freitas. Ver o
texto de Doctors sobre A Arte da Imanência no catálogo A forma na floresta: espaço de instalações
permanentes. Rio de Janeiro: Museus Castro Maya, 1999. (p. 28 e seguintes)

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