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Três pianistas campineiros: Bernardo Segall, Estelinha Epstein, Anna Stella Schic Henrique Lian Um dos comentários mais comuns no ambiente musical erudito brasileiro é o de que ainda não temos uma verdadeira escola de instrumentos de cordas, o que nos torna dependentes da "importação" de músicos estrangeiros, especialmente os originários de países com forte tradição no ensino desses instrumentos e cuja situação econômica favorece e estimula a imigração. É exatamente o caso dos países do Leste Europeu, cujos filhos atuam em várias orquestras brasileiras. O mesmo não se pode dizer, entretanto, com relação ao ensino e à execução do piano. O caráter aristocrático associado ao instrumento e seu privilégio dentro da poética do Romantismo, coincidindo com a transferência da corte lusitana para o Rio Volume 1 Número 3 Novembro 2002 de Janeiro em inícios do século XIX, certamente contribuíram para uma "moda pianística" local, incorporando-se sua prática ao conjunto de conhecimentos exigidos para uma boa educação de moços e moças. Tendo ocupado uma posição relativamente marginal na vida política e cultural do país até finais do século retrasado, o Estado de São Paulo passou a assumir lugar de destaque em virtude da pujança de sua agricultura cafeeira e da pioneira industrialização. O ensino do piano disseminou-se entre sua elite, em busca de um refinamento até então muito restrito à capital do país, e Campinas pode ser vista na vanguarda desse processo de aculturamento, pois desde as primeiras décadas do século XIX esboçava um culto à música, especialmente ao canto lírico, às formações de instrumentos de sopro e, como não podia deixar de ser, ao piano. Com a presença um tanto "quixotesca" de Manuel José Gomes, mestre-de-capela, mestre de banda e professor de diversos instrumentos (até então meros ofícios com estatutos sociais muito modestos), temos os primórdios de uma educação musical na cidade, sendo seus próprios filhos, Carlos e Santana Gomes, os primeiros "artistas" que se destacaram, também dando continuidade à tradição didática. Nas últimas décadas do século XIX, a cantora campineira Maria Monteiro construiu uma promissora carreira lírica internacional, lamentavelmente interrompida por sua morte prematura aos vinte e sete anos, em 1897. Foram, porém, os pianistas nascidos em finais dos novecentos e primeiras décadas do século passado os maiores destaques musicais, devendo-se tal florescimento tanto à presença de competentes professores na cidade, quanto à proximidade com a capital do Estado, onde encontravam-se grandes mestres como os lendários Luigi Chiafarelli e José Klias. Bernardo Segall, nascido em Campinas em 1911, foi o primeiro desses talentos. Após revelar uma vocação incomum nas aulas com professores locais e com o mestre Luigi Chiafarelli em São Paulo, venceu o prêmio Chiafarelli aos nove anos de idade. Em seguida, na condição de bolsista do governo brasileiro, rumou a Nova Iorque para estudar com Volume 1 Número 3 Novembro 2002 Alexandre Siloti. Note-se que à época o usual era seguir estudos na Europa, especialmente no Conservatório de Paris, como fizeram o paulistano Souza Lima e a natural de São João da Boa Vista (cuja carreira precoce começou em Campinas) Guiomar Novais, ambos também alunos de Chiafarelli. Nos Estados Unidos, Segall apresentou-se à frente das mais importantes orquestras, em concertos que tiveram a regência de nomes como Arturo Toscanini, Otto Klemperer, Antal Dorati, Igor Markevich e Leonard Bernstein. Notabilizou-se como intérprete de Bach e somente aos trinta anos de idade fez sua estréia européia, com o mesmo sucesso que lhe era reservado no Novo Mundo. Também foi compositor de trilhas sonoras para o cinema e musicais para a Brodway, sendo um dos primeiros artistas a estabelecer uma ponte entre Nova Iorque e Los Angeles. Hoje, poucos conhecem sua biografia ou gravações e seu nome sequer foi lembrado para atribuição de nome de rua na cidade. Três anos mais nova do que Segall, Estelinha Epstein foi também muito precoce, apresentando-se como recitalista aos doze anos e vencendo um concurso nacional de piano aos treze. Após ter aulas com José Klias, aluno de Martin Krause (discípulo de Franz Liszt), seguiu para a Alemanha com uma bolsa da Governo do Estado de São Paulo para estudar com o consagrado Arthur Schnabel, notável intérprete de Beethoven e Schubert, cultivando a música desses autores, além de inspiradas interpretações de Mozart. Estabeleceu, então, uma carreira internacional, dividindo seu tempo entre a Europa e Brasil e, diferentemente de Bernardo Segall, jamais deixou afrouxarem-se os laços com Campinas, alimentando até hoje, mais de vinte anos após sua morte, o gosto e a imaginação dos círculos intelectuais e artísticos locais. Também aluna de Klias, mas com temperamento e pendão estético muito diversos dos de Epstein, Anna Stella Schic nasceu em Campinas em 1925, iniciando-se no piano com apenas quatro anos de idade. Sua absorção da escola lisztiana ensinada por Klias foi maior do que a dos Volume 1 Número 3 Novembro 2002 demais discípulos e o virtuosismo sem esforço foi sempre marca de sua interpretação. Transferindo-se para Paris, estudou com Marguerite Long e ampliou seus horizontes musicais, dedicando-se à musicologia e estética sob orientação do compositor e acadêmico Michel Philippot com quem veio a se casar. Sua atuação como concertista foi mais ampla, tanto em termos territoriais (incluindo, por exemplo, concertos na ex-União Soviética) quanto repertoriais (entrando decisivamente na produção do século XX). Também dedicou-se à gravação de discos, tendo sido a primeira a registrar a obra pianística integral de Villa-Lobos, gravação ainda hoje paradigmática. Residindo na capital francesa, a pianista prepara atualmente uma obra teórica sobre os fundamentos da escola lisztiana de interpretação. Após uma ausência de quase duas décadas, Anna Stella visitou sua Campinas natal em agosto de 2001, quando, acompanhada pelo compositor José Augusto Mannis, pôde ser dignamente homenageada na Câmara dos Vereadores, recebendo o título de Cidadã Emérita e a Medalha Carlos Gomes em cerimônia única conduzida pelo compositor Marco Padilha. Organizou-se, também, um tocante tributo no Teatro do Centro de Convivência Cultural durante o recital de piano de Fernando Lopes, com título oferecido pelo Prefeito Antonio da Costa Santos. Naquela oportunidade, tive o privilégio de falar sobre a trajetória dessa artista excepcional e de conduzí-la ao palco para uma prolongadíssima ovação que, infelizmente, não pôde ser proporcionada a Segall ou Epstein. Em ambas as cerimônias destacava-se a presença serena de Sônia Rubinsky, talento local que, residindo hoje em Nova Iorque, dá continuidade à tradição pianística da cidade, refazendo o caminho de Anna Stella ao gravar a obra completa para piano de Villa-Lobos para o selo Naxos. Dos Gomes aos nossos dias, sempre celeiro de talentos e raramente palco para esses rebentos viverem e exercerem sua arte, Campinas parece seguir a vocação de cidades como Cambridge na Nova Inglaterra ou Karlsruhe na Alemanha, centros acadêmicos e incubadoras de valores que tão logo Volume 1 Número 3 Novembro 2002 despontam são atraídos para centros urbanos maiores e mais favoráveis ao desenvolvimento de carreiras consistentes. Henrique Lian Regente e Historiador da Arte Gerente Artístico da Orquestra Sinfônica Municipal de São Paulo [email protected]