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Cleonder Evangelista
AC
&
ARTE & CIÊNCIA
EDITORA
2004
5
Proibida toda e qualquer reprodução desta sem permissão expressa do editor.
 2004 by Cleonder Evangelista
Direção Geral
Henrique Villibor Flory
Coordenação Editorial
Rodrigo Silva Rojas
Diagramação
Rodrigo Silva Rojas
Capa
Rodrigo Silva Rojas
Colaboração
Benedita A. Camargo
Revisão
R. S. Causo/Elêusis M. Camocardi
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
Acácio José Santa Rosa (CRB - 8/157)
E92L
Evangelista, Cleonder, 1984
Uma Luz no fim do túnel: uma história de sucesso de ex-interno da FEBEM/Cleonder
Evangelista. -- São Paulo: Arte & Ciência, 2004.
224 p.; 21 cm
ISBN 85-7473-133-1
1. Autobiografia - Ex-interno da FEBEM. 2. FEBEM - Ex-interno - Depoimentos. 3.
Menor Infrator - Reinserção e sucesso. 4. Adolescentes em situação socio-educativa
de internação - Autobiografia. 5. Sucesso na reinserção - Adolescentes de risco. I.
Título.
CDD
- 362.732
- 923
Índices para catálogo sistemático
1. Menor: Instituição: FEBEM: Reinserção e sucesso 362.732
2. Autobiografia: Ex-interno da FEBEM 923
Editora Arte & Ciência
Rua Treze de Maio, 71 – Bela Vista
São Paulo – SP - CEP 01327-000
Tel.: (011) 3257-5871
Na internet: http://www.arteciencia.com.br
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SUMÁRIO
Primeira Parte
Capítulo I – Licença, senhor ...........................................19
Capítulo II – Moleque mentiroso ....................................33
Capítulo III – Preso você não vai ......................................43
Capítulo IV – Você é que é o louco ..................................59
Capítulo V – Então você está aqui! ..................................77
Capítulo VI – Vai morrer! ................................................103
Segunda Parte
Capítulo VII – O Código Penal Não-Escrito ..............113
Capítulo VIII – O senhor está preso ...........................141
Terceira Parte
Capítulo IX - Eu queria realizar um sonho ......................163
Epílogo – Sendo um exemplo ....................................................221
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AGRADECIMENTOS
Ao engenheiro Roberto Massafera.
Aos agentes de proteção "funcionários da Febem", Cristiano
N. de Moraes, Clodoaldo C. Araújo, Augusto César S. Costa,
Antoninho M. dos Santos, Evandro Coelho, Jaime das Almas
Santos, Mario Augusto Sluszas, Dionízio Carlos Neto, Francini
Cavalini Landim, Manoel E. M. Neto, Isaac Correa, Elienai L. da
Silva, Alessandra Martins Gitti, Fábio Alves da Silva, Eliana
Ribeiro, Alessandro Guedes da Silva, Rodrigo Pedro Barbosa,
Dauer Alves da Silva, Helen C. Pansani, Marcos R. Marçal,
Maurício Aparecido Vicente, Regina Pedro da Silva, Rubens José
Santos, Solange S. V. Ribeiro, Patrícia Nascin Oliveira, Alexandrina
Abati Aguiar. Do plantão noturno: Clóvis da Silva, Jorge Araújo,
Mario Nunes, Antonio Marcos Augusto, Adilson Aparecido
Bernardes, Jorlan de Jesus, Ailton de Oliveira (irmão), Washington
de Oliveira, Márcio Domingos Vieira, Clodoaldo Basílio Santos,
Elias A da Luz, Maurício M. Hilário, Alexandre dos Reis, Paulo
R. S. Barbosa, Antonio Ludugério Lima, Fernando N. de Souza.
Aos coordenadores da Febem Edvaldo dos S. Costa, Juarez
Dimes Barbosa, Hélio F. Felisbino, José Gilberto Bitencourt,
Laércio José Narciso, Silvia Seabra Ribeiro, Vitor Augusto Canedo.
Do setor pedagógico — Coordenador Pedagógico: Jair Souza dos
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Santos. Educação Física: Luís Alfredo M. Ferreira, Marcos
Maldonado. Pedagoga: Márcia Gomes de Melo. Pedagoga:
Valentina Nonato M. de Sá. Psicólogo: Marcos Tadeu da Silva.
Do Setor Técnico: Secretária: Mirian Oliveira Silva. Psicólogos:
Nivaldo Lopes, Roberto Pinto de Souza, Ivan Ayres da Silva.
Assistente Social: Tereza Cristina Kiss. Psicóloga Encarregada:
Silmara C. F. Félix. Do Setor Administrativo: Encarregado
Administrativo: José Carlos Raponi. Secretárias: Maria José dos S.
Gonçalves, Ana Paula de Moura. Rouparia: Ronalva da Silva
Macena, Walter Barbosa.
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Prefácio
A primeira vez que ouvi falar do Cleonder foi por meio da
assessoria de imprensa da FEBEM. Eles precisavam de uma bolsa
de estudos para viabilizar a formação universitária de um interno
que havia sido aprovado no vestibular e não tinha condições de
arcar com as mensalidades da universidade. Até onde sei, este foi
o primeiro esforço da “nova FEBEM”, depois que foi transferida
para a Secretaria da Educação do Estado de São Paulo. A proposta era oferecer oportunidades a um garoto que já tivera a desesperança como conselheira.
O projeto era interessante, mas levá-lo a cabo seria difícil.
Existem o preconceito e o medo, entrelaçados, que fazem muitos
sorrirem amarelo quando analisam a solicitação da FEBEM, principalmente dentro de uma instituição de ensino. O que acontecerá se o menino voltar a praticar algum delito? O que dirão os
pais de alunos quando souberem que seus filhos e filhas estão estudando junto a um ex-interno da FEBEM?
Nós da UNIP, no entanto, acreditamos nas dimensões humanas e sociais inerentes a uma universidade, e o termo “extensão
comunitária” não é apenas uma palavra vazia feita para figurar
em parede ou ecoar em discursos. A integração dos excluídos, a
reinserção dos que se afastaram do convívio e das práticas sociais,
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o oferecimento de oportunidades, enfim, a educação, em seu sentido pleno, é a meta primordial da universidade, e a nossa não se
furta a essa responsabilidade.
Foi imbuída desse sentimento que a UNIP iniciou sua parceria com a FEBEM e a Secretaria da Educação. Tinha consciência de que correria riscos e possivelmente encontraria críticos. Por
outro lado, haveria também os que abririam seus olhos, os que
ajudariam, os que colaborariam.
Claro que uma bolsa de estudos não se justificaria apenas
pela situação de Cleonder, mas uma análise mais apurada de sua
prova revelou um menino articulado e inteligente, bem preparado para o curso superior. O livro que escreveu depois só veio confirmar o que já sabíamos. Contudo, para nós, a solução do problema de financiamento do curso não seria suficiente. Por isso,
nossa Comunicação Corporativa articulou apoios financeiros e
estágios para facilitar a reinserção do garoto. Claro que o preconceito, tanto o real quanto o percebido, e, mais, o imaginado por
Cleonder, precisaria ser combatido. Assim, designamos professores-tutores no curso de Direito e psicólogos para acompanhá-lo e
orientá-lo.
Sabemos que “uma andorinha só não faz verão”. Estimulamos Cleonder a escrever sobre sua vida e experiências, em uma
espécie de catarse e preparação para o futuro, a fim de que ele
pudesse usar sua vida como exemplo para si mesmo e para os outros. Ao entender melhor seu passado, o garoto poderia planejar
sua vida a longo prazo. Teria, pela primeira vez, a chance de pensar em um futuro digno.
A vida passada de Cleonder mostra que ele não foi nenhum
santo. Mesmo aos treze ou quatorze anos, seria temerário encontrálo pelas ruas à noite. Este livro não deve ser visto como uma apologia a um personagem, a uma vida de percalços, cheia de romantismo e aventura. Ele nem ao menos tentou fazer isso. Errou,
pagou seu preço e aprendeu com o sofrimento. O que ele quer
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mostrar com o livro é que, mesmo nas piores situações, ainda há
esperança e chance para aqueles que realmente desejam mudar.
Pensando na situação da criança e do adolescente e na do
menor infrator, Cleonder propõe-se a fazer uso de seu exemplo.
Quer direcionar seus estudos acadêmicos e reforçar sua prática
com o saber teórico, de forma a poder contribuir com a sociedade. É uma proposta ousada, para um jovem de 19 anos.
A nossa universidade acredita que o apoio da iniciativa privada aos projetos da Secretaria da Educação para a reeducação
de crianças e adolescentes que tenham se desviado das práticas
sociais é um caminho promissor. A UNIP não ficará sozinha.
Sabemos dos riscos que o Cleonder corre. Sabemos também
que há chances de sucesso e de fracasso, mas acreditamos que a
medida do ser humano é o seu próprio desejo de superar-se. Chamamos a isso de esperança.
Boa sorte, Cleonder!
João Carlos Di Genio
Reitor da Universidade Paulista-UNIP
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EM BRANCO
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PRIMEIRA PARTE
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EM BRANCO
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Capítulo I: “Licença, senhor.”
Meu primeiro sentimento ao chegar à Unidade de Atendimento Inicial da FEBEM foi de puro medo.
Depois de uma viagem exaustiva de seis horas e meia, vindo
da cadeia pública de Itápolis para a capital de São Paulo, ter chegado ao prédio antigo e às sujas paredes de oleado escuro não foi,
nem de longe, o alívio esperado. Toda a viagem tinha sido feita no
“chiqueirinho” de uma viatura da polícia civil. Estava acompanhado de uma investigadora de polícia e do chefe da carceragem
de Itápolis. Os dois iam sentados na frente, enquanto eu me encolhia no apertado compartimento para transporte de presos, na
traseira do camburão.
Lembrei-me do desamparo que havia sentido, quando me
tiraram da cadeia de Itápolis, depois de ser algemado por dois
policiais civis. Eles mandaram entrar no chiqueirinho, vestido
como estava, apenas de camiseta, calção e chinelos. O investigador e o carcereiro embarcaram e a viatura arrancou. Eu sabia que
meu destino era a Unidade de Atendimento Inicial da FEBEM,
no Brás, mas ninguém se dera ao trabalho de me preparar para a
viagem, dizendo para onde iríamos e quanto tempo ficaríamos na
estrada. Tudo o que eu sabia era que, a cada segundo que passava,
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eu ficava mais distante da minha família, do meu lar, de minha
liberdade.
Enquanto viajávamos, eu encolhido nos fundos da viatura,
o chefe da carceragem gritava lá da frente, por cima do ombro:
— Agora é que ‘cê vai saber o que é sofrimento, vagabundo!
Vai começar a pagar os seus pecados!
Sentada ao seu lado, Cleide, a investigadora, não dizia nada.
Eu podia sentir o quanto ele queria que ela participasse, tanto
quanto podia sentir o constrangimento dela. Éramos conhecidos.
A sua filha havia estudado comigo no Primeiro Grau. De minha
parte, tudo o que eu podia fazer era tentar me ajeitar um pouco
melhor no estreito compartimento.
Mais tarde, consultando livros de Direito Civil e o Código
da Infância e do Menor, soube que esse tipo de “transporte” era
proibido para menores. As razões eram claras o bastante — quando a porta do chiqueirinho foi aberta e os policiais me puxaram
para fora, agarrando-me pelas algemas e pelos fundilhos, minhas
juntas estalaram e eu mal pude endireitar as costas. Meu fôlego
era curto e o coração pulava no peito. “A primeira brecha que
alguém me der, aí é que eu escapo”, pensei, no instante em que o
ódio e o medo me dominavam.
Mas, em pé diante dos muros altos da FEBEM, minhas pernas começaram a tremer. Fazia um calor de quarenta graus, porém eu tremia como se estivesse no inverno da Antártida. Os
portões se abriram. Eu e minha escolta avançamos para dentro
do pavilhão.
Uma mulher baixa e gorda, de aparência masculina, veio
tratar com a investigadora e o carcereiro, para receber os meus
papéis. Eram os únicos “documentos” que vieram comigo, agora
enfiados em um saco lacrado, com o resto das coisas com que fui
preso em Borborema. Minhas únicas roupas eram as que eu trazia no corpo.
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Eles me deixaram em uma sala vazia, suja, sem mobília. Fui
trancado ali até que, passados alguns minutos, aparecesse um homem negro, alto e corpulento. Esses adjetivos não fazem jus a ele
— era um verdadeiro monstro, de pescoço tão grosso quanto a
minha cintura. Ao vê-lo, alguma coisa encolheu em meu peito.
Pude reconhecer o contorno do seu crachá, oculto no bolso da
camisa, mas eu só saberia o seu nome mais tarde. Meu coração
batia tão forte que a camisa balançava em meu corpo. O sentimento de medo cresceu.
Medo de morrer.
*
O funcionário negro ordenou que eu tirasse a roupa e que,
com as mãos cruzadas atrás da nuca, me agachasse meia dúzia de
vezes. Enquanto obedecia, eu observava o funcionário da FEBEM
pelo canto dos olhos. Ele tinha o olhar trancado no meio das minhas pernas, talvez à espera de que um estilete ou qualquer outra
coisa caísse dali para o chão sujo.
— Aí, Zé — ele disse. — Presta atenção na idéia, que é uma
vez só qu’eu vou falar.
Fiz que sim com a cabeça.
— Aqui, pra falar com a gente é "sim senhor" e "não senhor", entendeu?
— Entendi — eu disse, e já levei um soco no peito, porque,
de nervoso, tinha me esquecido do “sim, senhor”.
Tudo isso para mim era algo do outro mundo. Diante do
meu medo e espanto, nada fazia sentido e meu pensamento se
agitava, sem direção.
O funcionário tornou a falar.
— Acho que ‘cê não entendeu direito.
— Já entendi, sim senhor — eu disse.
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— Aqui, pra passar na nossa frente — ele prosseguiu —
tem que falar “licença senhor” ou “licença senhora”. E se não
falar, vai ser cobrado na hora, morou, malandro?
— Sim, senhor.
— Ah! Outra coisa, Zé. Aqui também não se troca idéia
com ninguém, e não pense que somos idiotas, porque a gente
pega ‘ocê, se conversar.
Saímos da sala e o funcionário ordenou que eu o acompanhasse, mas andando com as mãos para trás e a cabeça baixa, olhando para os seus calcanhares sempre. Se eu olhasse para os lados,
enquanto estivesse no interior do pavilhão, levava “couro” na hora.
Entramos em uma outra sala.
— Ó mais um pianista aqui — o funcionário gritou.
“Tocar piano”, eu já sabia, significava tirar as digitais. Um
rolinho com tinta preta era passado na ponta de cada um dos
dedos, que eram então pressionados, um de cada vez, contra um
cartão. O sujeito que me tirou as digitais fez tudo sem me olhar
na cara. Eu mesmo olhava tudo de lado e com a cabeça baixa, de
um jeito furtivo, tentando não chamar para mim mais nenhum
castigo.
Dali me levaram para uma outra sala, com mais dois menores que também tinham chegado naquele dia. Esperamos nesse
lugar por uns dez minutos, com as mãos para trás e o rosto contra
a parede. Os dois começaram a conversar baixinho um com o
outro, mas logo chegou um funcionário, que percebeu que eles
conversavam. Horrorizado e ainda em pé na mesma posição, presenciei ao espancamento dos dois, cobertos de socos e pauladas,
até estarem no chão, implorando para que parasse. Eu ouvia o
som oco dos golpes, ao atingirem cabeças, peitos e braços, os gritos de dor dos dois meninos, o rosnar e os palavrões do funcionário, e via as sombras agitadas nas paredes e no chão, no restrito
campo visual que eu tinha, em pé ali sem poder me mexer. Teria
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tapado os ouvidos para não ouvir seus gritos de dor, mas isso teria
me trazido o mesmo castigo.
Ofegante, o funcionário explicou aos dois as mesmas regras
que eu tinha ouvido há poucos minutos, e disse que se acontecesse alguma coisa de novo com os dois, eles iriam levar um surra que
não conseguiriam andar por três dias. Eu continuava na mesma
posição, e sentia o suor escorrendo por meu pescoço e peito, suor
de medo, medo que fazia coro com o terror dos dois outros menores.
O funcionário mandou que formássemos uma fila, um atrás
do outro, um olhando para os calcanhares do outro, e nós o seguimos até um cômodo pequeno, menor do que uma sala de aula,
mas com mais de cem garotos empaçocados nela. Estavam todos
sentados no chão, todos de cabeça raspada e vestindo camisetas
brancas e bermudas azuis, todos do sexo masculino e todos assistindo a uma única televisão, instalada em um suporte pregado na
parede. Ficamos pouco tempo ali, graças a Deus. Logo fui levado
para raspar o meu cabelo, como os outros. Tomei uma ducha de
dois minutos. Comi um almoço comercial, acompanhado de um
refrigerante. Uma banana foi a sobremesa. Enquanto comia eu
pensava em tudo o que tinha visto desde a minha chegada. A
colher tremia na mão, a comida às vezes parava na garganta.
Mandaram que eu retornasse à sala de televisão. Fui caminhando sem que ninguém me acompanhasse. No caminho passei
por um funcionário. Ele tinha um pedaço de madeira, grosso como
um caibro, na mão direita. A próxima coisa que senti foi o golpe
na coxa esquerda, alto, quase no quadril. Não agüentei de dor e
caí. Apareceu um segundo funcionário, que me deu um chute
no meio do estômago, enquanto eu ainda estava no chão.
— Levanta e vai pra onde estão os outros — ele ordenou.
Fui mancando, lutando para não vomitar o almoço de há
pouco. Só quando me sentei em um canto, espremido entre os
outros, é que pensei em uma razão para a surra que havia levado:
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eu me esquecera de dizer “licença, senhor”, ao passar pelo funcionário. Foi a primeira, mas não a última surra que levei.
*
Na sala apinhada, o cheiro de suor era forte. Era impossível
não tocar em alguém ao seu lado, à sua frente ou atrás de você.
Hálitos se misturavam, os muitos cheiros de suor tornavam-se o
ranço de um único bicho coletivo. Os únicos sons eram os dos
desenhos animados exibidos na televisão, e um ou outro fungar
choroso aqui e ali, dentro da sala. Alguns garotos tinham, como
eu, apanhado naquele dia ou no dia anterior, e gemiam baixinho.
Eu me surpreendi gemendo com eles. Junto à única entrada, um
dos funcionários — sempre chamados de “funça” pelos internos
— de vez em quando parava junto ao batente, encostava ali e
olhava para dentro, segurando um pedaço de pau.
Mais tarde um funça levou a gente para tomar banho. Eram
quatro e meia da tarde, e o “banho” não ia além de passar por
baixo do chuveiro, partilhando um só pedaço de sabonete. Não
podia me ensaboar muito, porque depois não haveria tempo para
enxaguar… Teria de tirar o sabão no corpo na toalha, mas quando apanhei a que me entregaram, ela já estava encharcada. Afinal, logo percebi, eram apenas quatro toalhas para cerca de 110
detentos.
No canto do banheiro cheio de corpos magros e nus, um
funça esperava com um pedaço de madeira nas mãos, que lembrava uma perna de mesa. O funcionário mandava os garotos se
apressarem.
— Eu também pago imposto, e o meu dinheiro não é pra
vagabundo tomar banho, não. Então vai, vai, vai! Anda. Vamo’
todo mundo saindo do chuveiro, que aqui não é hotel, não.
Vesti o uniforme que me entregaram. Tudo o que era meu,
as roupas e os chinelos, foram para uma bolsa de plástico prateado, com um lacre que eles fizeram correr assim que enfiaram tudo
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dentro, e uma etiqueta com o meu nome. Era tudo o que eu trouxera comigo, e tudo com que eu sairia dessa unidade da FEBEM.
Depois de jantar, me sentei no chão da sala que ficava do
lado do refeitório, e junto com os outros fiquei assistindo televisão
até às dez para as nove da noite. Todo mundo permanecia sentado, abraçando os joelhos, os pescoços doendo de tanto olhar para
a tela da TV. Então nos mandaram dormir.
Eram os funcionários que escolhiam quem dormia onde, nos
dois beliches de concreto, com dois garotos deitados juntos embaixo, um sozinho em cima. No chão, iam três em cada colchão
de solteiro. Havia menores deitados em cima e embaixo da mesa
de refeição. Tivemos que tirar a roupa. Cada um fazia uma trouxa
com a camiseta, e enfiava dentro a sua escova de dentes de cabo
mole. Tudo era socado em uma trouxa maior, feita com um lençol
grande. Dormíamos só de cuecas. O saco com as roupas foi levado embora. As portas foram trancadas.
Fazia frio à noite, em março, quando fui trazido. Lá no interior eu não estava acostumado com tanto frio. O único calor era
aquele que um corpo jogado no chão emprestava ao outro.
De vez em quando um par de olhos irados aparecia na fresta
da porta de metal, para ver se estávamos quietos, dormindo. Nas
semanas seguintes, houve momentos em que garotos foram pegos
conversando. “Sem idéia dentro do barraco”, os funcionários
alertavam, cada vez que a gente se recolhia. O funça chamava
seus colegas e eles exigiam que o tagarela se apresentasse. Nunca
vi acontecer. Os funças então acordava todo mundo e nos colocavam em pé contra a parede, equilibrados nas pontas dos pés,
apoiados com a testa na parede e as mãos para trás. Chamavam
isso de “arrastar o barraco”.
Acordávamos às 7:00h. A trouxa de roupas era trazida. Cada
um simplesmente apanhava o primeiro conjunto que encontrava, e vestia por cima da cueca suja, que nunca era trocada. Logo
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percebi que havia internos com sarna, e em pouco tempo eu próprio adquiri uma coceira insistente.
Passávamos o dia assistindo televisão. Usar a privada, só na
hora do banho. A única alternativa era agüentar…
As semanas se passaram assim. A cada dia aumentava o meu
desespero. Após uns vinte dias da minha chegada, estourou uma
rebelião, frustrada e breve como fogo de palha.
Um interno arrancou o aparelho de televisão do suporte, e o
arremessou contra um funcionário. O impacto quebrou a perna
direita do funça. Ao redor dos dois, os outros garotos se levantaram, gritando:
— Rebelião!
Durou pouco. Foi apenas um gesto de frustração e desespero de um dos internos. A ele, depois da surra, “deram um bonde”
— uma transferência. A todos os outros internos foi ordenado
que se deitassem de bruços no chão da sala maior. O funça negro
e corpulento, que era o supervisor dos outros, passou a caminhar
sobre as costas dos garotos. Carregava um pedaço de pau, e se
alguém reclamasse ou gemesse mais alto, era cutucado com força
na nuca ou nos rins. Enquanto ele pisava em nossas costas, ia recitando a sua ladainha. Qualquer sinal de rebelião, e aí sim é que
íamos sentir na carne o que a UAI do Brás tinha a nos oferecer.
*
Meus pais vieram me visitar na UAI-Brás, em um par de
ocasiões. Primeiro meu pai, Francisco. Mesmo sofrendo de reumatismo e sem condução para São Paulo, ele deu um jeito de vir
de carona com a ambulância que trazia pessoas de Borborema
para serem tratadas no Hospital das Clínicas. Todo esse esforço
foi recompensado com uma visita de apenas cinco minutos — o
máximo que os funcionários da FEBEM permitiram. Assim que
nos abraçamos, a agente social, uma cinqüentona baixinha e maldosa, nos separou e me mandou entrar.
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— ‘Tá encerrada a visita, porque aqui o tempo é curto, meu
senhor — ela disse ao meu pai.
Eu podia ver o desgosto no rosto do velho, a tristeza em seus
olhos cheios de lágrimas. No pouco tempo que pudemos conversar, a assistente social ouvindo tudo, sentada entre nós, pude apenas perguntar de minha mãe e de meu irmão Nenrod, que na
época também estava preso. Dez anos mais velho que eu, ele estava em uma prisão comum.
A agente social disse que não devíamos ter muito contato
físico — nada de abraços. Quando minha mãe veio me ver, pouco tempo depois e também aproveitando a carona com a ambulância, a mulher contou a ela que eu era usuário de crack. Isso era
mentira, e minha mãe sabia disso. Sem pensar em me defender
dos meus erros, ela negou que eu fosse consumidor de outras drogas além de maconha. Ela sabia. Sabia de tudo o que eu fazia de
errado.
Na cadeia pública de Itápolis, o esquema tinha sido diferente. Meu pai me visitava sempre, e podia me levar comida, cigarros, roupas e artigos de higiene pessoal. Tínhamos mais tempo
para conversar, quase duas horas, mas a grade da cela me impedia
de abraçá-lo. Por ser menor de idade, eu ficava segregado dos
presos comuns e não podia ir para o pátio.
Na Unidade de Atendimento Inicial da FEBEM, nada disso
era possível. Não podíamos escrever cartas e mesmo as cartas que
recebíamos de casa, aos domingos, eram rasgadas. O interno as
lia, e depois era forçado a rasgá-las. Não havia nenhuma espécie
de arquivo para guardá-las. Os sacos de plástico com nossos pertences eram lacrados quando cada um chegava à UAI, e devolvidos assim, quando saíamos.
Uma semana depois da visita de minha mãe, recebi uma carta
dela. A carta foi rasgada, mas suas palavras permaneceram no
coração.
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O que senti, ao fazer em pedaços as folhas de papel, foi um
desespero e uma raiva enormes, o desejo de escapar de algum
modo. Mas era inútil. Tudo o que me restava era cumprir o meu
tempo ali — e pensar sobre as coisas que me tinham levado a essa
situação.
*
Fui preso pela primeira vez durante um assalto. Aconteceu
em Borborema, e eu fui o autor da idéia. Precisava do dinheiro
para comprar entorpecentes. Mas não porque o fornecedor estivesse me cobrando. Ao contrário, eu pensava em me antecipar a
ele — e em comprar para revender.
O alvo foi um mercado da cidade, próximo da escola em
que eu estudava. Pedrinho, um colega, foi o cúmplice relutante.
Nenhum de nós fazia idéia real do que estava fazendo. Não apenas o mercado ficava próximo da escola que freqüentávamos todos os dias, mas umas quatro casas abaixo morava o delegado de
polícia da cidade. Tínhamos apenas quatorze anos de idade e o
nosso plano nascera destinado ao fracasso.
Mal entramos, encapuzados, no mercado — mal o grito de
“assalto!” deixou nossas bocas —, uma viatura da polícia dobrou
a esquina. Quando olhei para trás, Pedrinho já tinha dano no pé,
sem nem mesmo me avisar do perigo.
O assalto se transformou em fuga. A viatura foi primeiro em
perseguição a Pedrinho, que já estava atravessando a rua, correndo a toda e ainda de capuz e arma na mão. Na verdade, foi a
correria dele que atraiu a atenção dos policiais… Dentro do mercado mesmo, ninguém pareceu alarmado com os dois garotos
encapuzados.
Nós dois nos metemos no mato, que cresce quase no centro
dessa cidade do interior.
Enquanto fugíamos pelo mato, podíamos ver a casa do delegado, muito ao longe. Os homens na viatura haviam perdido a
nossa pista, mas a mulher do delegado, segurando um filho pe28
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queno pela mão, nos viu. Ela tinha um telefone sem fio. Provavelmente a sua atenção tinha sido chamada pelo tumulto na rua,
onde uma viatura circulava com sirene e luzes policiais ligadas; e
até nós, enfiados no mato, podíamos ouvir os gritos dos policiais.
— Vai morrer — nós gritamos. — Vai morrer aí! Se chamar
a polícia, vai morrer.
Não sei dizer se ela ouviu a gente, tão longe estávamos, mas
ela e a criança entraram na casa.
Pedrinho e eu ficamos escondidos. Dali a pouco, porém,
surgiu o carro do delegado e mais uma viatura da polícia militar.
Entre os reforços estava um cabo conhecido como “Robocop” e
“Peito de Aço”, por não ter medo de nada. Ele logo se meteu na
mata atrás da gente, disparando tiros de calibre 12 — cujas cargas de chumbo balançavam os renques de bambu—, enquanto
gritava para que saíssemos. Não sei se atirava para nos intimidar
apenas, ou para matar.
Nós corremos e, longe dali, jogamos fora a arma. Acabamos
nos separando. Eu deixei a mata e subi correndo um morro em
que só havia pasto e um pequeno açude, para dar de beber ao
gado. Tive de contorná-lo. Ao fazer isso, vi que um policial procurava por nós mais abaixo, pensando que nos escondíamos entre os
arbustos. Eu estava exausto e desarmado, molhado por ter atravessado um ribeirão. O capuz, feito com as mangas de uma camisa comprida, havia caído para o meu pescoço, durante a correria.
Ao ver o policial, sentei no chão e gritei:
— Jurandir, pelo amor de Deus não me mata! — e me joguei no chão.
É claro, eu o conhecia de nome — a cidade é tão pequena,
que todos nós conhecíamos…
Me entregar seria a melhor saída. Estava apavorado com os
tiros do Robocop, e sabia que, se o delegado me pegasse ainda em
fuga, ele provavelmente mandaria bala.
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Jurandir me levou para uma das viaturas. Eu já não ouvia
mais tiros. A viatura em que eu estava, rolando de um lado a outro no chiqueirinho, passou a seguir uma segunda. As duas se
emparelharam e se detiveram. Quando desci, Pedrinho já estava
apanhando do Robocop, com coronhadas de espingarda no peito. Eu também levei a minha dose. O delegado apareceu e me
viu, sendo segurado pelo Robocop.
— Cadê a arma? — perguntou. — Cadê a arma? O que
vocês iam roubar?
Eu já estava com as mãos algemadas para trás. O cabo
Robocop puxou minha cabeça para trás, agarrando-me pelos cabelos. O delegado aproveitou o meu tronco exposto, e me deu
um chute no estômago. Mais tarde, já encarcerado, eu cuspia
sangue.
Apanhei um pouco mais.
— Agora você vai levar a gente até onde ‘tá a arma! — o
delegado mandou.
— Não tem arma — eu disse. — A gente só ‘tava brincando. Ninguém ia roubar nada.
Depois de uma busca, o soldado Jurandir achou a arma.
Era de brinquedo.
A frustração dos policiais redundou em mais uma surra, no
meio do mato. Com uma arma de brinquedo seria difícil obter
uma condenação. Ainda mais que o gerente do mercado afirmou
não ter visto assalto nenhum, e se recusou a prestar queixa. Um
dos policiais militares disse, durante o processo, que arma alguma
fora encontrada. O delegado e o Robocop insistiram na arma de
brinquedo. Mas brinquedo não é arma, e eu ganhei o processo,
sendo posto em liberdade depois de dois dias e uma noite na cadeia. Fui então transferido para uma clínica de recuperação de
drogados, na cidade de Americana. Ali permaneci apenas um dia,
e fugi. Era dezembro de 2000 e eu não queria perder as Festas.
Passei alguns dias escondido. Tive uma segunda chance com o
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juiz, que me mandou para uma outra clínica, em Bauru. Fugi de
lá também. Na minha cola foram outros doze. Essa segunda
internação foi em janeiro de 2001. No mesmo mês, fui pego com
maconha. Em março do mesmo ano, eu estava na UAI do Brás,
em razão dessa prisão por posse de entorpecentes.
E enquanto estive ali, me lembrava dos meus crimes, das
violentas surras que tomei em Borborema durante a fuga, do perigo de ter sido baleado, das oportunidades que o juiz me deu
para me recuperar, tantas chances perdidas… e me perguntava…
Por quê?
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EM BRANCO
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Capítulo II: Moleque mentiroso.
Meu pai, Francisco, hoje com 55 anos, nasceu e cresceu no
campo. Na adolescência ele trabalhou na lavoura. Teve vida dura,
sofrida, mas sua prioridade sempre foi a honestidade. Minha mãe,
Izilda, teve origem idêntica. Quando menina, vendia ovos para
ajudar em casa. Duas pessoas simples e trabalhadoras, que se juntaram para formar uma família na esperança de melhorar de vida.
E, como tantos brasileiros em condições idênticas, estavam conseguindo, quando nasci, em novembro de 1984. Na época, meu
pai passou a recrutar trabalhadores para a roça e mais tarde veio
para São Paulo trabalhar na Ford. Minha mãe fazia e vendia bordados.
Cresci como tantos outros meninos do interior, com uma
infância ótima, recebendo amor e carinho dos pais. Caçava e pescava, andava pelos matos. Fui à escola de educação infantil ou
pré-primário, e me lembro que levava um ovo frito, no pão, como
lanche. A professora era a dona Isvânia. Lembro ainda que gostava de uma coleguinha, com quem queria dançar quadrilha. Ela
não quis e eu chorei. Um valentão chamado Eliezer me perseguia. Mais tarde joguei bola na escolinha do Borborema Atlético
Clube, que tinha como treinador o seu Osmar. Ele às vezes judiava
da gente, mas foi quem me ensinou o futebol. Freqüentei a
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escolinha por cinco anos, participei de campeonatos e viajei a cidades vizinhas para jogar.
Nada disso está além do que acontecia ou acontece com outros meninos e meninas, por este Brasil afora. E a maioria deles,
eu acho, não se volta para o consumo de drogas e para a
marginalidade.
Conforme fui crescendo, passei meus sete, oito, nove, dez e
onze anos normalmente. No dia 18 de julho de 1996, tive a infelicidade de perder meu avô paterno, Lucírio Pedro Evangelista,
que sofria de problemas do coração e morava em um sítio perto
da cidade. Era nesse sítio que eu me divertia nos finais de semana.
Chorei muito com a morte do meu avô. Na escola minhas notas
eram boas, o relacionamento com os professores e colegas de classe sempre foram bons.
No primeiro grau recebia incentivo dos meus pais para estudar. Eles fiscalizavam minhas lições e minha presença na escola.
Sempre proveram o material e o uniforme, tudo bem cuidado.
Na escola eu tinha um bom relacionamento com os colegas e professores, e até uma namorada, Juliélem, na sétima série. Meu melhor amigo era o Pedrinho. Tinha amigas também, Mirela e
Glauce, que o são até hoje. A única coisa que me desabonava era
que eu, às vezes, matava aula com os amigos, para ir nadar no rio
da cidade. Isso era tão normal que os professores nem esquentavam a cabeça e, às vezes ligavam direto para os nossos pais, mandando que fossem nos pegar no rio.
Aproximando-me dos meus doze anos, comecei a sair de casa,
dizendo para minha mãe que eu iria à casa da minha avó, Rosa,
que veio a falecer em 8 de setembro de 1996, após sofrer um
derrame cerebral que a deixou um ano na cadeira de rodas para
tetraplégicos. Ela então não movimentava nenhuma parte do corpo
e ingeria alimentos através de sondas.
Não posso dizer que minha mãe fosse desatenta em relação a
mim e ao que eu fazia. Pelo contrário. Ela sabia que eu gostava de
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ir à casa de minha avó, mesmo depois que ela se foi, ou de jogar
futebol na escolinha do BAC — Borborema Atlético Clube —
que fica próximo de casa, e costumava conferir se realmente eu
estava lá. Às vezes não encontrava ninguém, a não ser minha tia
Toninha, esposa do “Dito Araçá”. A tia contava que eu tinha passado por ali, mas já tinha sumido. O técnico, por sua vez, dizia
que eu vinha faltando aos treinos há alguns dias.
Eu era muito novo, estava começando a descobrir a beleza
da vida. Assim como muitos meninos do interior, eu gostava muito de nadar e de pescar em um rio de Borborena. Há muito tempo eu já vinha freqüentando as suas margens, pois quando tinha
meus sete para oito anos, meu avô Plínio me levava, com meus
primos Diego, Diogo e Michel, para nadar nesse rio, conhecido
como Fugidos. Ele passa ao lado do nosso bairro e junto dele muitas
pessoas da nossa vila diariamente se reuniam para conviver umas
com as outras e para nadar. Eu e meus amigos íamos lá, depois da
aula (que às vezes matávamos para nadar). Outras pessoas freqüentavam o mesmo ponto em que ficávamos.
Um dia dona Izilda, desesperada, saiu à minha procura, até
que conseguiu me localizar. Eu voltava do rio, onde eu e meus
colegas de classe estivéramos o dia todo. Já perto de casa, me deparei com ela me esperando com uma varinha na mão — mas
não apanhei. Ela apenas mandou que eu entrasse, para a gente
conversar. Percebeu que meu calção estava molhado e perguntou
onde eu andava. Então eu disse a verdade, que tinha ido com os
meus colegas ali no riozinho que fica pra baixo de casa, e que
fiquei nadando lá com o meu companheiro Rafael (conhecido
como “Massinha”). Minha mãe disse:
— Não é pra você ir mais nesse lugar sozinho, que está ficando muito perigoso lá, e se acontecer alguma coisa com você,
não vai ter ninguém para me avisar. Eu sou sua mãe e me preocupo com você.
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A conversa que tive com mamãe ficou em minha cabeça por
alguns dias, mas logo não dei mais importância.
Passou-se algum tempo e meus colegas novamente me chamaram para ir ao rio. Como meu pai saía todos os dias bem cedinho
para trabalhar, só ficava a mãe em casa. Aí eu aproveitava, pois
era do seu Francisco que eu tinha medo. Sempre que aprontava
alguma, era ele quem me dava a bronca. Então comecei a freqüentar o riozinho de novo — todo mundo ia, por que eu não
podia ir?
Quando voltava para casa, mamãe vinha conferir o calção,
que na maioria das vezes estava molhado. Assim ela começou a
impor certas regras:
— Chegou da escola, vai fazer a lição, estudar o que você
aprendeu hoje, e depois você vai brincar aqui em frente de casa
com a Patrícia — dizia, mencionando a menina que morava ali
perto.
Então comecei a pensar em um meio de ir ao rio nadar com
meus colegas, sem que mamãe soubesse. Eu colocava a cueca para
secar na beirada do rio e ficava só com a bermuda. Meus colegas
já estavam fazendo a mesma coisa, porque os pais deles também
começaram a implicar, e alguns até pararam de ir ao rio. Mas
logo mamãe percebeu, porque meu cabelo ficava duro por causa
da água do rio — e algumas cuecas estavam sumindo, já que às
vezes não dava tempo de secar, e então eu as jogava fora.
Era final do ano de 1996, as aulas estavam terminando, e
quase todos os colegas da sala toparam se encontrar no rio depois
da aula, mas antes eu não tivesse ido.
*
Naquele dia voltei para casa após a aula, troquei de roupa,
beijei minha mãe e fui até o rio. De longe já era possível ver a
multidão de pessoas fazendo folia na água, mergulhando da margem e de galhos de árvore, algumas comendo o churrasco que
preparavam ali mesmo.
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De dentro da água fiquei observando um colega mais velho,
que se chama Zé Mário. Ele fazia uns movimentos estranhos com
as mãos. Isso me despertou a curiosidade. Continuei a observá-lo.
Ele fumava o cigarro de maconha que acabara de enrolar. Isso já
havia acontecido antes, esses momentos furtivos de curiosidade
em torno da droga, mas em todas as ocasiões eu terminara ficando apenas na curiosidade. Mas desta vez, ao perceber que eu olhava para ele, Zé Mário perguntou se eu estava a fim de dar uns
tragos. Eu disse que sim. Então ele perguntou se eu já havia fumado antes. Respondi que só tinha fumado duas vezes antes, mas
era mentira — não queria que debochassem de mim perto dos
meus amigos da escola.
Eu disse sim.
Naquele momento fiquei me sentindo o maioral. Alguns dos
meus colegas ficaram me admirando e dizendo que eu era corajoso por ter fumado uma coisa tão forte e ainda estar de pé, mas na
verdade não tinha me causado nenhum efeito. Achei meio estranho, e isso me fez ficar ainda mais curioso. Mais tarde, conversando com meus amigos, soube que alguns deles ficaram com medo
de mim, outros passaram a me admirar.
No dia seguinte, escapei de casa e desci correndo para o rio.
Cheguei lá e encontrei todo o pessoal do dia anterior. Zé Mário
também. Cumprimentei-o e fui apresentado ao resto da rapaziada — Lú, Peludinho, Kubchek, Marinho, Soneca, Tonho
Vanirdão e o finado Biro-Biro, que nessa época já havia passado
pelo Carandiru e era o patrão do tráfico de Borborema. Todos
estavam fumando e eu entrei na roda até o baseado chegar na
minha mão. Quando peguei na mão todos ficaram me olhando,
para ver como eu reagia. Então, para não fazer feio diante deles,
dei umas puxadas bem fortes, e o Lú ficou olhando e disse:
— Eu não sabia que você fumava.
Respondi que fazia uns tempos que eu andava fumando.
Disse isso só para ganhar moral com eles. Conversa vai, conversa
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vem, e o baseado chegou de novo na minha mão. Dei mais algumas puxadas, passei-o e sentei.
Agora sim eu começava a sentir os efeitos. Tudo ficou mais
lento a cabeça começou a girar e eles diziam que o baseado é o
calmante para os problemas e que quando eu quisesse fumar era
só descer ali no rio, porque muita gente fumava nesse local, então
nem era preciso comprar.
Me despedi de todos com um forte aperto de mão e fui
embora para casa. Chegando, nem cumprimentei dona Izilda,
fui direto para o banheiro. Abri o chuveiro, tirei a roupa e entrei
debaixo do jato de água. Mas quando me dei conta, acordei —
estava dormindo no chuveiro por causa da sonolência que a maconha me causou. Sai do banho e fui para a cama dormir. No
outro dia fui à escola e alguns de meus colegas que estavam comigo, o Devair (Piquira) e o Rafael (Massinha), se aproximaram de
mim para perguntar como era, e eu respondia que era o máximo,
e que agora eu teria facilidade para jogar um xaveco e iria pegar
todas as menininhas da escola, principalmente a Vanessinha, por
quem eu estava louco para ficar. Então me empolguei e falei mais
um monte de bobagens, me sentindo o maior dos maiores, mas
na verdade eu não sabia o que estava fazendo e muito menos o
que falava.
Terminou a aula e eu fui embora. Não via a hora de chegar
em casa para enrolar minha mãe e ir para o rio. E assim foi. Conforme os dias iam passando, fui ficando cada vez mais rebelde,
não queria ouvir orientações ou conselhos de ninguém. Mas ouvia e guardava o que esses “amigos” me diziam. Nessa idade, não
era capaz de enxergar a realidade, agora, já envolvido com essas
pessoas, amizade feita com muitos do ramo. Minha cabeça aos
poucos ia sendo enfraquecida. Eu me deixava levar por essas influências, a matéria que era passada na lousa ia ficando para trás,
conversava muito na sala de aula… Comecei a ir mal nas matérias, apesar de adorar geografia, cuja professora era a dona
Claudete, pessoa que hoje admiro e sigo como modelo.
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Passei a conhecer outros malandros da área. Aos poucos foram me ensinando a malandragem do submundo das drogas, me
alertavam para que tomasse cuidado e não falhasse com ninguém,
para abrir o olho com a polícia, porque os policiais são sujos e
corruptos. E diziam também para tomar cuidado em casa, pois se
meu pai soubesse, iria causar a maior encrenca.
Muitos desses meus novos “amigos” conheciam meus pais e
meu irmão. Alguns deles até trabalhavam para meu o pai como
bóia-fria na colheita da laranja em fazendas vizinhas. Meu irmão
sempre foi trabalhador, mas até aí eu não sabia que ele fumava
maconha e era fabricante de lança-perfume, juntamente com o
Tonico e a Rita, dois vizinhos próximos de casa. Nenrod trabalhava com meu pai, ajudando a olhar a turma na roça e conferindo
as caixas de laranja para ver se estavam todas cheias, e muitos desses meus novos amigos também eram amigos dele.
Neste mesmo ano de 1996, com doze anos, comecei a relaxar de vez na escola. Mas como era final de ano, mesmo assim fui
aprovado e passei para a sétima série.
As férias chegaram. Passei o Natal e o Ano Novo com toda a
minha família, meus tios e tias. Fizemos uma grande festança na
casa de meu tio João Beleza. A família estava toda reunida para
comemorarmos mais um ano que passou, mas todos estavam ainda muito entristecidos — no ano anterior, 1995, no dia 7 de
janeiro, meu tio Benedito dos Santos (conhecido como “Araçá”)
faleceu em um acidente de caminhão na rodovia que liga BelémBrasília, e seu companheiro de trabalho, Luiz (o “Ninão”), também morreu no mesmo acidente, os dois esmagados pelas toras
de madeira que transportavam. Os corpos haviam sido transportados de avião até a cidade de Catanduva. Em Borborema o velório foi de caixão lacrado. A cidade toda parou, pois eles eram
muito conhecidos.
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Com essa perda, a nossa família ficou muito abalada, mas
aos poucos todos tivemos de nos conformar com o ocorrido. Passamos o fim de ano juntos. Tudo foi bom, legal e divertido.
No começo de 1997 eu ainda estava de férias e durante esse
tempo me encontrava sempre com esses novos amigos por lugares
e ruas que eram freqüentados por muitos viciados e consumidores. Os antigos amigos já estavam se afastando de mim e eu deles.
Fui me envolvendo cada vez mais, mas não era sempre que fumava e nem tinha adquirido a dependência pela maconha. Ainda
fumava doses pequenas. Era difícil comprar a droga. Às vezes os
colegas tinham e eu aproveitava para fumar com eles. Era difícil
eu arrumar cinco ou dez reais para fumar. Estavam acabando as
férias, e um dia fui ao rio e fiquei lá o dia todo, mas não sabia que
o seu Francisco chegaria cedo da roça e minha mãe estava preocupada comigo. Ela o mandou me procurar, e de repente de longe pude avistá-lo descendo em direção ao rio. Antes que ele pudesse me ver, saí correndo. Fui embora pelo mato, cheguei em
casa todo sujo. O seu Francisco ainda não tinha chegado, mas
minha mãe estava em casa chorando, e quando me viu veio perguntar onde eu estivera e por que estava tão sujo e com os braços
arranhados daquele jeito. Por que eu estava fazendo tudo aquilo
com eles, dando tanta dor de cabeça e preocupação?
Logo em seguida ouvi o barulho do portão sendo aberto.
Sabia que era meu pai que chegava, e já comecei a mentir para
minha mãe, dizendo que tinha ido caçar. O pai entrou na sala e
sentou no sofá diante de mim. Ele só fez uma pergunta:
— Onde é que você estava, filho?
Passei a mesma mentira que tinha passado para a mamãe.
Quando terminei de falar, ele apenas pegou a cinta que estava no
banheiro e me deu umas cintadas nas pernas.
— Moleque mentiroso, eu não ensinei você a mentir, você
estava é com aqueles maloqueiros, maconheiros, só gente que não
presta!
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Depois parou de me bater e mandou eu tomar banho e trocar de roupa para a gente conversar. Fiz como ele disse.
Eles começaram a me perguntar, por que eu estava indo a
esse lugar. Disse apenas que tinha ido lá para nadar, e ele explicou
que lá não era lugar de um menino como eu ir, porque lá só tinha
tranqueira.
Ouvi tudo e fiquei calado. A dura que eu levei foi muito
forte e parei de ir ao rio. Havia agora todo um novo conjunto de
regras. Se o pai chegasse do serviço e dona Izilda contasse que eu
havia aprontado, ele iria cortar o meu dinheiro da escola e não ia
deixar eu brincar depois da aula. Se eu fosse a algum lugar, teria
que avisar antes.
Passaram-se alguns dias e eu só saía de casa para treinar futebol com o técnico Osmar do BAC. Algumas vezes eu via minha
mãe lá longe no portão, me olhando enquanto eu jogava bola.
Toda essa atenção e vigilância da família de nada adiantaram.
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EM BRANCO
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Capítulo III: Preso você não vai.
Acabaram-se as férias e eu comecei a estudar de novo. Agora estava com treze anos, na sétima série, com praticamente a mesma turma do ano anterior; alguns até me olharam meio torto ao
ver que eu tinha caído de novo na mesma sala que eles. As únicas
pessoas que sabiam o que estava acontecendo e não me rejeitaram
foram as minhas amigas Glauce, Josiane, Luciana (a “Luluzinha”)
e Rafaela, a mais brincalhona. Também o meu melhor amigo na
época, o Pedrinho, que conhecia a malícia das ruas e do crime
por ter crescido em um bairro pobre da cidade, mas que não
tinha saído da linha até então. Todos eles não me discriminaram
nunca e são amigos até hoje.
Comecei o ano e já conheci uma linda princesinha. Achava
que ela era muito bonita, carinhosa até no falar, uma voz tão doce,
e freqüentava a igreja evangélica. O nome dela era Juliélem. A
gente passou a se conhecer melhor, ficamos amigos, e nossa amizade durou uns dois meses antes de passarmos a namorar. Era um
namoro de criança, mas era gostoso. Ela tinha dois irmãos; um se
chamava Pedro e o outro se chamava Thiago. Todos eles moravam na Vila Orestina, que fica a uns quinze quilômetros da cidade, e onde tenho muitos parentes, da parte de meu pai.
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Juliélem e eu estudávamos de manhã e eu realmente comecei a gostar dela. Costumava chegar uns dez minutos antes, só
para namorar um pouquinho antes de entrar para a aula, pois
não podíamos namorar na escola. Por coincidência, ela e eu estudávamos na mesma sala e sentávamos um pertinho do outro.
Assim que iniciamos o namoro, me abri totalmente com ela
e contei um pouco dos meus problemas. Ela não me rejeitou e
disse que iria me ajudar a abandonar a maconha, e por isso comecei a me dedicar mais na sala de aula, estudando ao seu lado.
Juliélem nunca aceitou o hábito como uma coisa natural. Juntávamos as carteiras, estudávamos e namorávamos escondidos, conversávamos. Mas os professores ficaram sabendo que a gente estava namorando e começaram a ficar de olho, e a inspetora Rose só
ficava no nosso pé.
E assim permaneci com Juliélem por uns cinco meses. A droga não foi a razão do fim do namoro, embora deva ter contribuído. Eu me tornei mais agressivo com ela, por exemplo, no período em que lidava com gente baixa e grossa, nas ruas. Mas o fato é
que o pai de Juliélem achava que ela era muito nova para namorar e nunca aprovou o nosso relacionamento.
Durante todo esse tempo de cinco meses em que mantivemos nosso relacionamento, ela me ajudou muito, dando total apoio
e incentivo, e era muito raro eu fumar maconha, pois não tinha o
vício e só fumava em certas ocasiões, como alguma festa de aniversário, e às vezes escondido atrás da escola. Mas enquanto permanecemos juntos ela me ajudou bastante, só que depois que terminamos nosso relacionamento eu fiquei muito abalado e passei a
fumar um pouco mais do que antes. Agora eu não tinha mais
Juliélem para preencher meu tempo e ficava com a cabeça vazia.
Cada vez mais ia me envolvendo com a droga, sem que eu
mesmo percebesse, porque, na minha cabeça, tinha certeza de
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que pararia quando bem entendesse, mas quando me dei conta,
não era bem isso que estava acontecendo.
Em setembro de 1997, após termos terminados nosso namoro, eu tinha treze para quatorze anos e consegui emprego em
uma lanchonete no centro de Borborema. Meu pai dizia que já
estava na hora de trabalhar em um emprego fixo; por isso consultei a lista telefônica e consegui serviço de garçom na lanchonete
do Laércio. Usei a lista telefônica para procurar serviço porque na
verdade eu tinha vergonha de pedir trabalho. Falei por telefone
com o Sr. Laércio, e ele me pediu que descesse até a lanchonete.
No mesmo dia fui até o local e por lá mesmo fiquei trabalhando.
Entrava às 17:00h. e não tinha hora para sair, pois, enquanto
tivesse freguês, tínhamos trabalho a fazer. No início fiquei meio
acanhado, mas depois fui me soltando aos poucos, comecei a fazer amizade com os fregueses, alguns às vezes me davam até uma
gorjeta pelo serviço que eu fazia; outros eram arrogantes e ignorantes, mas isso fazia parte do ambiente. Eu ganhava por noite o
valor de R$ 10,00 e trabalhava apenas nos finais de semana (sexta, sábado e domingo). O patrão me pagava sempre no domingo
à noite a quantia de R$ 30,00, que eu gastava toda com porcaria.
Voltei a fumar maconha mais freqüentemente.
O fato é que até então me faltava dinheiro para manter o
hábito. Não era sempre que tinha cinco ou dez reais na mão. Às
vezes eu simplesmente aparecia em um círculo de conhecidos e
filava uma bituca; às vezes tirava dinheiro de minha mãe, escondido, ou mentia, dizendo que era para comprar doces. Agora,
ganhando minha própria grana, a história era outra.
Comecei a fumar cigarro também. Isso foi depois que fiz
amizade com uma turminha de fumantes, com quem aprendi a
fumar cigarro. Eram o Gutierrez, o Carlos (conhecido como
“Bá”), e o Paulo (o “Samungór”). Todos eles fumavam cigarro e
bebiam cachaça, mas eu nunca gostei de bebida alcoólica. Eles,
porém, não fumavam maconha, e eu sim, e cada dia que passava
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estava fumando mais e aumentando as doses. Passaram-se apenas
algumas semanas e me tornei um fumante habitual, tanto de cigarro quanto de maconha. O ordenado que recebia já não dava
para suprir meus vícios. Hoje eu vejo que aquilo tudo se tornou
literalmente um círculo vicioso — eu trabalhava apenas em prol
de meus vícios. Mas não demorou muito para meus pais descobrirem que eu estava fumando cigarro, porque a minha família é
muito conhecida na cidade e eu tinha passado a fumar cigarro na
rua. Quando eles souberam, me repreenderam e disseram que
deveria parar de fumar, mas a essa altura eu já estava muito rebelde e respondi que não iria parar porque eles também fumavam e
que eu estava fumando já fazia um tempo e que não conseguia
ficar sem o cigarro. Até então eles não sabiam do uso da maconha.
Seu Francisco disse que se me pegasse com um cigarro nos
dedos ou na boca não queria nem conversa comigo. Não dei bola,
mas eles percebiam que estava havendo uma grande mudança
comigo. Eu estava crescendo e já não queria ouvir mais ninguém,
já carregava o cigarro no bolso. Meu pai ficava furioso em ver
aquilo. Todo dia dentro de casa estava sendo uma guerra. Passei
também a responder para meus pais em voz alta, e eles não admitiam e falavam alto também, para ver se eu me redimia. Então eu
não agüentava tanta bronca e saía de casa. Vagava pelas ruas para
esfriar a cabeça e, com freqüência, permanecia em bocas de fumo
e outros lugares perigosos; fumava baseados enormes, e só então
voltava para casa. Entrava e não falava com ninguém, passava pela
sala e ia direto para o quarto ou para o banheiro.
Permaneci trabalhando na lanchonete do Laércio, mas o que
ganhava eu achava pouco. Então, compreendendo como era o
movimento na lanchonete, o fato de qualquer pessoa poder entrar,
sentar-se ou ir ao banheiro sem ser interpelado, me veio a idéia de
vender drogas. Na lanchonete foi onde essa ambição começou
a girar na minha cabeça. E já estava envolvido com as drogas e com
pessoas que tinham condição fácil de conseguir uma quantidade
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mais elevada de maconha. Então, certo dia, no meio da semana,
fui conversar com o traficante que era o patrão da cidade, o já
citado“Biro-Biro”, um cara forte, alto, cheio de tatuagens e com a
voz bem grossa, que morava em um barraco subindo a serra. Então cheguei lá, chamei-o e ele saiu. Veio me cumprimentar, pois
me conhecia muito bem, desde o tempo em que eu descobrira a
maconha, nas margens do Rio Fugidos. Biro-Biro perguntou o
que eu queria.
— Ô, Biro-Biro, eu queria pedir uma coisa pra você — fui
logo desembuchando, apesar da apreensão que sentia. Afinal, BiroBiro era grandalhão, com mais de trinta anos e muitas prisões e
passagens pelo Carandiru e pela colônia penal em São José do
Rio Preto. — Eu tô ganhando muito pouco na lanchonete… Você
sabe que eu tô trabalhando lá?…
— Eu sei. Às vezes eu vou lá pra baixo, e já te vi trabalhando.
A verdade é que ele vendia a sua “mercadoria” na elevação
em que ficava a praça da cidade, bem na frente da lanchonete.
— Então — continuei. — Eu não sou sujo na cidade, a
polícia não sabe nada de mim, e eu queria ganhar um pouco de
dinheiro, pra comprar alguma coisa. Eu pensei que podia vender
o seu material lá na lanchonete.
— Boa idéia… — ele murmurou, depois de alguns segundos de silêncio. — No centro. Pra vender, você não vai despertar a
suspeita de ninguém, já que trabalha de garçom. Quanto você
quer?
— Ah, vê se você vê aí umas parangas pra eu vender — eu
disse.
“Paranga” é como a gente tratava a maconha já envolvida
em plástico, pronta para a venda.
— Não, em paranga eu não vou te dar, porque ‘cê não vai
ganhar nada. Vou te dar em um tijolo só.
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“Só que lembra: negócio é negócio. Esse tijolo tá valendo
mais de quatrocentos reais, e se ‘cê furar comigo, eu vou ter que
cobrir o cara que me abastece, e vou ficar numa pior. Então, só
não pode dar falha. Se ‘cê cair com a polícia, segura o B.O. e tá
normal, não precisa me pagar nada. Mas se o bagulho sumir e o
dinheiro não aparecer, aí a gente vai ter que conversar. Amizade é
uma coisa, negócio é outra. Se você me pilantrar vai ser aquilo...”
Nada disso me assustou, porém. Não sei por que, mas eu era
muito frio com essas coisas. Em parte eu gostava da emoção de
enganar a polícia e de estar fazendo uma coisa ilegal. Em casa,
enganando meus pais, eu me sentia mais independente, mais capaz.
Peguei com Biro-Biro o tijolo de maconha, parecido com
uma rapadura, e fui até o rio. Cortei e embalei eu mesmo. BiroBiro também me deu uma paranga, para que eu tivesse uma idéia
da quantidade que ia, em cada porção de maconha a ser vendida.
Atravessei a cidade na boa porque nessa época a polícia nem imaginava suspeitar de mim. Enquanto fumava um pouco, eu pensava que o Biro-Biro tinha confiado em mim porque ele mesmo
havia me dado muitos toques, me passado todas as manhas e
macetes da coisa. Muitas vezes, quando a gente estava no rio e a
polícia aparecia, eu já havia aliviado a dele.
— Aí, de menor, segura o barato aí — ele dizia, dando uma
paranga para que eu a escondesse na boca e passasse pelos policiais.
A noite foi se aproximando. Assim que escureceu, saí da Mata
do Carvalho (onde mais tarde eu viria a ser caçado pela polícia).
Escondi a maior quantidade por ali mesmo e levei um pouco comigo, para ver se conseguia vender. Quando alcancei o centro da
cidade, já fui falando pra rapaziada que tinha chegado uma maconha da boa. Mostrei a eles a paranga que tinha preparado, a
gente “deschavou” a maconha para poder enrolar; e o pessoal experimentou e conferiu a qualidade.
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— A parada tá servida. — O que queria dizer que eu tinha
em bastante quantidade. — Pra me encontrar é só chegar lá no
meu trampo e dar um toque, que tá na mão.
Não deu nem tempo e toda a malandragem já estava sabendo. Eles gostaram da quantidade que eu estava servindo, que era
maior que a dos outros. Além dessa “vantagem” dada aos clientes,
eu às vezes pagava o lanche do comprador. Assim eu mantinha a
minha fachada e agradava os caras, que sempre voltavam. Em
pouco tempo, enterrei a concorrência e me tornei o mais poderoso no tráfico na cidade — e também o mais visado pela polícia.
Não enxergava o que estava fazendo, só pensava em mais e
mais grana. Não demorou muito e meu patrão na lanchonete
começou a desconfiar de pessoas estranhas e das amizades diferentes, porque muitos que iam lá comprar maconha comigo, já
iam direto para o banheiro, onde eu tinha a droga escondida.
Outros se sentavam nas mesas e davam um toque ou um sinal, e
eu ia atender como se fosse um cliente. Nada disso passaria despercebido por muito tempo.
Não demorou muito e houve uma discussão entre meu patrão e eu. Ele era uma pessoa muito agressiva. Alguns dias depois,
resolvi me livrar da pressão dele. Pedi emprego em uma lanchonete que na época estava sendo inaugurada ao lado, a Lanchonete do Val. Eles estavam mesmo precisando de um garçom, mas
me perguntaram se não causaria problema eu sair de um emprego e ir para outro. Respondi que não estava satisfeito com o emprego, nem com o patrão. O sujeito era muito carrasco, pois o
máximo de esforço para ele nunca estava bom. Optei por deixar
esse emprego e trabalhar na nova lanchonete. Val era o proprietário. Eu não o conhecia, mas ele sabia quem eu era, pois tinha
sido caminhoneiro e muito amigo de meu finado tio “Dito Araçá”.
Depois de vender o caminhão, ele abriu a lanchonete. Uma pessoa honesta e digna, de família humilde. Eu também conhecia
desde pequeno o irmão mais novo dele, Breno. Sua esposa Silvana
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é uma pessoa muito legal, compreensiva; e o irmão dela, que é
mais novo, era meu conhecido — nós jogamos futebol na escolinha
do BAC juntos, embora ele fosse de uma categoria de idade acima da minha.
Estava com quatorze anos quando comecei a trabalhar como
garçom para o Val. Sempre fui dedicado no meu serviço. Não
gostava de deixar nada para trás, e graças a Deus eles reconheciam isso e sempre me trataram bem. Mesmo quando eu cometia
algum erro nas anotações, eles procuravam uma forma de consertar o que eu havia feito de errado, ao contrário do antigo patrão,
que punia rigorosamente sem querer saber de nada. Passaram-se
alguns dias e eu entrei no ambiente de trabalho. Como trabalhava de garçom e as mesas e cadeiras eram colocadas na calçada,
com o pessoal transitando nas ruas, ficava fácil a minha venda de
maconha, sem que Val e Silvana jamais soubessem.
Mas em pouco tempo fiquei muito falado e muito procurado pelos viciados. Comecei a ver que as coisas não iam dar certo e
que seria melhor dar um tempo. Tive o pressentimento de algo
ruim, então parei por um tempo e passei a responsabilidade da
venda para um outro garçom, que se chamava Marinho.
Marinho já tinha passagens pelas cadeias da cidade de São
Paulo, por roubo a carros fortes, e tinha o conhecimento e a malícia do tráfico de entorpecentes. Nessa época, passei a responsabilidade para ele porque eu já não tinha mais patrão no tráfico e
estava trabalhando por conta própria, com aos lucros adquiridos.
Biro-Biro tinha sido preso (vindo a morrer na cadeia, anos depois). Eu herdei o “negócio” dele.
*
A minha rotina de escola mudou muito depois que me envolvi com o tráfico. Tinha relaxado demais com as disciplinas e,
ainda por cima, comecei a oferecer maconha para meu melhor
amigo, o Pedrinho, que tinha malícia mas não fumava. Depois de
muita insistência ele fumou, pois eu dizia que era desagradável
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para mim ter um careta do meu lado me vendo fumar e não participando da mesma viagem que eu.
De vez em quando ele fumava comigo, mas só quando eu
trazia colírio para disfarçar os olhos vermelhos. Eu mesmo já empregava o truque, e hoje tenho problemas de vista por causa do
uso excessivo.
Nessa mesma época os problemas foram se acumulando e as
conseqüências foram surgindo aos poucos. Quando me dei conta, já não tinha mais volta. Eu fumava bastante, em todos os lugares que ia, tinha que estar chapado. Já não me preocupava em
preservar minha imagem, e me tornei um usuário assumido. Todo
o dinheiro que ganhava no trabalho e no tráfico gastava jogando
fliperama e sinuca, farreando com meus camaradas e com as vagabundas no bar, além da soma que ia para alimentar os vícios do
tabaco e da maconha.
Na escola, o medo que as pessoas sentiam por mim era possível de se ver na face de cada um, e por onde eu passava todos
abriam caminho. Muitos me cumprimentavam só pelo medo,
como eu podia perceber. Mas como a cidade é pequena e as notícias circulam, o meu nome logo passou a ficar conhecido, todos
falavam das minhas amizades, e que meus companheiros eram
barra-pesada.
De fato.
Depois que o Biro-Biro parou de vender, eu ia buscar os
entorpecentes com fornecedores de cidades vizinhas, como Itápolis
e Ibitinga. Os contatos eu havia obtido nas rodas de maconheiros,
os nomes que rolavam, alguns telefones que passavam de mão em
mão. Essa gente estava acima do Biro-Biro, na hierarquia do tráfico — gente que vendia de meio quilo para cima. Não era sem
medo que eu subia o morro da Vila Simão em Ibitinga, no meio
da favela, passando por guardas armados de revólveres e espingardas. Sentia, porém, segurança com relação à polícia — o esquema da favela, com olheiros e vigias armados, impedia que a
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polícia subisse. Até pipas eram usadas como sinais da aproximação da polícia — tinha muito craque em empinar pipa, a serviço
do tráfico.
Ao ver as armas, empunhadas tão às claras, eu sentia muita
vontade de ter uma. Em parte, coisa de criança que sempre se
interessou… Em parte para me sentir mais forte, mais capaz de
enfrentar as coisas do crime.
Às vezes Biro-Biro ligava antes e me recomendava. Até então eu não tinha dado falha alguma. Freqüentemente, quando eu
ia até eles, ficava dois ou três dias fora de casa. Pousava na casa dos
traficantes ou em bicos de favela. Vez ou outra eu tinha que passar por uma batida da polícia, no pé do morro. Perguntavam de
onde eu era e o que fazia por ali. Eu dizia que era de Borborema
e que estava ali para jogar futebol no CBI de Ibitinga. Eles examinavam a minha carteira de jogador mirim do BAC, e eu passava.
Quando desconfiavam, me mandavam embora com um tapa na
nuca, mas nunca fui pego por nada nesses locais.
Na época, enfrentando esses perigos, não me passava pela cabeça que o crime pudesse chegar ao meu local de trabalho — ou à
minha família. Tudo o que eu temia era que algo acontecesse comigo.
Ser preso, baleado… Os caras do tráfico me diziam, porém:
— Preso você não vai.
Isso, claro, por ser menor de idade. Era raro que alguém da
minha cidade fosse até mesmo internado na FEBEM.
Nessa altura, a polícia da cidade já me tinha em sua mira.
Eles começaram a passar por mim me olhando de modo diferente. É claro, eu vinha aparecendo em locais suspeitos, o que chamava a atenção deles. Passaram a me abordar. Com isso resolvi
dar um tempo com a venda. Passei tudo ao Marinho. Eu então
assumira o papel de fornecedor dele, que vendia para sustentar o
seu próprio vício.
Eu tinha quatorze anos.
*
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Em casa, passara a afrontar meus pais não apenas com o uso
da maconha, mas com os cigarros. Eu comprava os maços e os
usava ostensivamente no bolso da camisa. O seu Francisco
bronqueava e ameaçava me bater, mas nunca o fez.
— O senhor não pode dizer nada, porque o senhor fuma
também — eu dizia.
Menos de seis meses depois, ele havia parado de fumar, mas
isso não me impediu de continuar com o meu comportamento
rebelde.
Uma das minhas piores atitudes foi levar para dentro de casa
e para o convívio com os colegas de escola o tipo de relação grosseira, vulgar, desconfiada que eu tinha com os viciados e
maconheiros para quem vendia a erva. Minha rebeldia me levava
a sair de casa por dias seguidos, enquanto resolvia os meus “negócios”, sem pensar na apreensão que gerava em meus pais. Dona
Izilda ficava louca atrás de mim, sem que eu desse a menor satisfação a ela ou aos outros.
Ela acionava a polícia e os parentes. Ela me procurava entre
os conhecidos e em casas abandonadas. Uma vez me pegou em
uma dessas construções vazias, cortando um caroço para
emparangar. Minha mãe, meu pai e meu tio Tição. Entraram
pelos fundos e me surpreenderam. Fugi, deixando cair parangas
pelo caminho, enquanto saltava os muros e cercas dos terrenos
vizinhos. Minha mãe pegou uma das parangas que eu tinha deixado cair — ela já conhecia a droga nesse formato, e agora tinha
a comprovação de que eu era mais do que um consumidor — era
um traficante.
Quando nos encontramos em casa, ela perguntou o que eu
estava fazendo da minha vida.
Eu não tinha resposta alguma a dar.
Minha família sempre foi unida. Diante do problema que
eu representava, vários parentes passaram a me procurar, para
me dar conselhos e pedir que abandonasse a droga. Meu tio Tição,
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meu tio João Beleza, um vereador de Borborema, e até meu irmão Nenrod, ele mesmo um usuário eventual de maconha. Todos se deram ao trabalho de falar comigo, mas suas palavras entravam em um ouvido e saíam pelo outro. Às vezes, enquanto eles
falavam, eu estava pensando nas quantidades que tinha que cortar, na próxima remessa a encomendar ou na cobrança de um ou
outro a quem havia vendido fiado…
Estava cego e surdo a tudo o que não fosse a droga e o dinheiro que vinha com ela.
Mais que tudo, eu pensava no dinheiro. Como viver sem
ele? Mas… como poder fumar a maconha, sem poder comprá-la?
Havia ainda o fato de que, agora como fornecedor, tinha
que prestar contas a pessoas acima de mim, que não toleravam
qualquer vacilo. Tinha que estar alerta, ser esperto, manter tudo
sob controle, sob pena de pagar com a vida, porque, se desse uma
mancada, toda a engrenagem acima de mim podia perder o giro
— e eram pessoas que não encaravam um prejuízo com um sorriso nos lábios. Minha mente centrava-se sempre no próximo passo
a dar, os cuidados a tomar, as somas que devia ou que tinha a
receber. Como pensar em terminar com tudo, recuar para um
momento de minha vida em que toda essa ciranda não existia?
— Se falhar, morre — eu tinha ouvido, em várias ocasiões.
Dependendo da “falha”, é claro. Ou seja, da soma perdida.
Agora que eu manejava uma quantidade maior, qualquer falha
seria um rombo de R$ 800,00 ou R$ 900,00.
E eu tinha apenas quatorze anos…
Minha mãe, diante de tudo isso — ou da parte disso tudo
que ela conhecia —, começou a ter ataques de ansiedade e desmaios. Chegou a ser hospitalizada algumas vezes.
Isso foi no final de 1998 e naquela época pensei em parar.
Mas havia sempre o peso da grana e a necessidade de manter o
hábito. Minha solução foi fazer as coisas de maneira mais discreta. Fazia ligações a cobrar, de casa, para os caras de quem compra54
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va a maconha, em cidades vizinhas. Para a minha mãe, dizia que
havia parado. No fundo ela sabia que não era verdade, mas não
podia fazer nada.
Desde o momento em que comecei a mentir, nessa vida de
crimes, não parei mais.
Não podia mentir para meu irmão, Nenrod, porém. Ele
mesmo era um freguês do Biro-Biro, e um dia, ao procurá-lo,
descobriu que Biro-Biro estava preso e não negociava mais.
— Quem tem agora é o Creondi — o Fernando, irmão do
Biro-Biro, informou.
Meu irmão ficou furioso.
Ele foi atrás de mim e me encurralou. Nós brigamos e eu
levei a melhor. Ele estava caído no chão, de costas, olhando para
mim — e eu tinha a mão direita no cabo do revólver calibre 22,
que já há algum tempo eu sempre trazia comigo enfiado na cintura.
Puxei o revólver, mas o cão se enganchou na calça, e só por
isso é que não o apontei para Nenrod.
Teria sido capaz de atirar em meu próprio irmão?
Não sei… mas foi até esse ponto que cheguei, nesta primeira fase de minha vida de criminoso, ainda pouco mais do que um
menino.
*
O que me levou à tentativa de assalto do mercado em
Borborema foi um carregamento de maconha vindo de Ibitinga,
que se perdeu na estrada.
Um comando da Polícia Rodoviária estava parando todos os
carros.
Trazíamos a droga da seguinte maneira: eu vinha na frente,
na garupa de uma moto; atrás, com a maconha, um cara da minha confiança e o sujeito de quem eu a tinha comprado. Embora
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eu tivesse passado pela barreira, os caras que vinham atrás preferiram jogar fora a maconha que tinham com eles no carro.
E eu tomei o prejuízo.
Não tinha dinheiro para pagar de imediato. Sem a droga,
por outro lado, eu não tinha como girar o dinheiro, para quitar
minha dívida com o fornecedor. Poderia tentar obter uma quantia de um outro fornecedor, mas até lá a notícia já teria corrido e
o meu maior medo era de que um segundo carregamento poderia também falhar.
Bem, o cara com quem falhei tinha me dito:
— Cleonder, quando você puder, você me paga. Quando
se levantar de novo. Não tem problema.
Na época eu confiava só no meu cano e não na palavra dos
outros. A mesma pessoa que sorria e me dava a chance podia me
dar um pipoco assim que eu desse as costas.
Eu estava com quinze anos e precisava de muito dinheiro: a
idéia que me ocorreu foi fazer o assalto. Escolhi o Pedrinho como
comparsa porque confiava nele. Não foi porque ele tinha alguma
experiência ou determinação especial para esse tipo de coisa. Meus
planos eram pegar o dinheiro do assalto e ir até o Rio, para comprar uma quantidade de droga que pudesse me levantar, outra
vez, em Borborema. Tinha certeza de que conseguiria encontrar
o meu caminho, até mesmo no Rio de Janeiro.
Ao invés disso, terminei espancado pela polícia, e preso.
*
Quando a grade se fechou, eu chorei.
Nunca tinha visto um lugar tão sujo, limoso de sujeira acumulada. O colchão não era encapado, e qualquer movimento arrancava dele uma nuvem de pó, para atormentar a minha rinite.
Quando eu não chorava, estava espirrando.
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Deitado, com um pano molhado cobrindo nariz e boca,
pensava em meus pais. Queria os dois perto de mim, e que viessem me ajudar. Intimamente, queria encontrar uma explicação
para o que estava acontecendo, me lembrando do que me haviam
dito: “Preso você não vai.”
Mas o fato é que eu estava preso e só ficava chorando e pensando em minha família. Tudo à minha volta me dava nojo e medo.
A comida era insuportável, arroz duro e feijão que era uma papa,
um bife duro como couro de sapato. Não consegui comer nos
dois dias que fiquei ali. Eu só chorava.
Ao meu lado, Pedrinho dizia:
— Não chora, rapaz. Vai chorar pra quê?
Foi assim que ele, a quem eu havia convencido a participar
do assalto, me consolava.
Toda a minha rebeldia havia se evaporado. As coisas em que
depositava o meu sentimento de segurança não estavam mais à
mão — a arma, os contatos no tráfico. De repente, foi como se eu
tivesse despencado de uma certa altura, batido duro no chão, e
voltado a ser uma criança.
Apenas um menino desamparado.
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EM BRANCO
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Capítulo IV: Você é que é o louco.
Dentro da cela imunda suja e fria, os meus pensamentos e
sentimentos se misturavam, e eu me encontrava perdido em mim
mesmo. Estava sendo um choque muito forte. Choque que eu
mesmo havia causado, e não somente a mim e ao meu companheiro, mas às nossas famílias. Logo nos primeiros minutos dentro da cela, já comecei a me desesperar, tinha também rinite alérgica e não parava de espirrar por causa do pó que saia dos colchões desencapados e de espessura finíssima. Desesperado, comecei a chorar compulsivamente. Chorava e espirrava, chorava e
espirrava.
Não podia imaginar o que viria a acontecer nos próximos
dias, então chorava constantemente, sem saber que meus pais,
juntamente com meu tio João, corriam sem parar atrás de um
advogado para que eu pudesse sair. Conseguiram contratar o Dr.
Ronaldo, jovem advogado que entrou no dia seguinte com um
recurso no foro, argumentando à Juíza de Direito que me liberasse, pois tinham conseguido uma clínica de recuperação em que
eu poderia ser internado. Causei todo esse transtorno, fiz tudo
errado, mas todas essas pessoas que me ajudavam — meus pais,
meus tios e o advogado — conseguiram acertar as coisas.
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No dia seguinte, na cadeia de Itápolis, apareceu na porta da
cela um senhor bem vestido com uma pasta nas mãos. Parou defronte à grade e disse:
— Cleonder…
Eu me levantei e fui até a grade. O carcereiro já foi abrindo
a cela e me mandou sair. O advogado disse que tínhamos que
conversar. Fomos então até a frente da cadeia, sem que me algemassem. Estranhei, mas como não tinha intenção nenhuma de
fugir, me comportei até mesmo quando, ao chegarmos à entrada
da cadeia, pude ver a rua bem perto. No momento em que entrei
na recepção, vi meu pai e minha mãe sentados, conversando com
um homem e uma mulher. Eu me sentei e eles começaram a me
falar um monte de coisas. Primeiro perguntaram como eu estava,
e eu disse que estava bem; então eles disseram que eu sairia dali no
mesmo dia. Fiquei muito feliz — até que me disseram que só estaria livre se fosse para uma clínica de recuperação.
Não aceitei o que me concediam (como se as coisas tivessem
de ser da minha maneira). No mesmo instante recusei, de boca
cheia.
— Não, não e não. Não vou pra esse lugar de loucos. Eu
não sou louco e não adianta insistir que eu não vou.
Meus pais argumentaram:
— Vai, meu filho. Lá vai ser melhor pra você, assim você vai
conseguir parar de fumar cigarro e as outras coisas.
E eu na minha insistência continuei a me recusar e disse que
voltaria para dentro da cadeia, mas para esse lugar de louco eu
não iria. Na minha cabeça passaram as coisas que tinha ouvido de
usuários que estiveram internados nesse tipo de instituição. Compus um quadro assustador de pessoas que rastejavam pelo chão,
que não falavam nada com nada, como muitas vezes eu tinha visto na TV. Sozinho em um lugar desses, longe de meus pais e dos
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meus amigos — tomando remédios, como eu pensava —, eu ficaria louco também.
Lembro que isso aconteceu no dia 2 de dezembro de 1999.
Eu me neguei a ir para essa clínica de recuperação na cidade de
Americana, interior de São Paulo, e cometi uma loucura que ninguém pôde acreditar. Após ter vencido meus pais pelo cansaço e
por me recusar a ir para a clínica, e não queria ouvir mais nenhuma palavra de insistência deles, me levantei e disse para o carcereiro, o Sr. Mápele, que me levasse para a cela, porque eu não ia
fazer o que eles estavam querendo. Literalmente pedi para ser
encarcerado outra vez.
Balançando a cabeça de um jeito contrariado, o Sr. Mápele
me levou novamente para dentro, disse que eu era muito jovem e
não sabia o que estava fazendo. No pavilhão da cadeia ele abriu a
minha cela e eu entrei, me sentei no meu colchão fino e
empoeirado, e baixei a cabeça.
O Pedrinho me perguntou o que tinha acontecido. Relatei
o que se tinha passado lá na frente. Ele me xingou de vários nomes e disse:
— Louco? Louco é você, que troca um lugar daqueles por
este. Qualquer lugar é melhor do que aqui. Lá é melhor. Eu nunca fui, mas lá é melhor. Louco é você.
Isso me abriu um pouco os olhos. Os outros presos confirmaram o que Pedrinho dizia. Senti um peso na consciência e uma
sensação de angústia — achava que era tarde demais para remediar a besteira que havia cometido. Continuei a chorar.
— Não chora, rapaz — Pedrinho disse. — Pra que chorar?
Não precisa chorar. Agora já foi e agora a gente tá aqui.
Intimamente, porém, eu refletia e maquinava um plano desesperado para ver se conseguia a liberdade. Diante das palavras
do Pedrinho, o que me veio foi não ir para a clínica realmente
para me tratar e abandonar o hábito, mudar de vida; mas sim sair
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do lugar horrível em que me encontrava. Conforme fosse o esquema na clínica, eu fugiria. Assim funciona a mente da gente,
na prisão. Só a usamos para conquistar a vantagem mais imediata.
Mas de qualquer forma, a minha única esperança estava com o
advogado — a quem eu havia dado as costas…
Naquele dia permaneci na cadeia, e logo amanheceu outro,
e, pela sorte que Deus me deu — e pelo empenho constante da
minha família —, mais uma vez o advogado e meus pais voltaram
para conversar. Confesso que me assustei com a presença deles,
meu peito saltando de esperança. Dessa vez eu já disse bem depressa, na grade, para o meu advogado, que aceitava ir para a
clínica. Fui removido para a frente da cadeia — mas desta vez fui
algemado. Logo o Dr. Ronaldo mandou que retirassem as algemas para que eu assinasse os papéis de compromisso. Retiradas as
algemas, assinei os papéis que me levariam à clínica ASADAM,
de Americana.
Quando retornei para a cela, a fim de apanhar as minhas
coisas, Pedrinho me dirigiu um olhar irado, de pura inveja. Eu
estava saindo, enquanto ele permanecia encarcerado…
*
Viajamos umas três horas no carro do meu avô Plínio, um
fuscão. Iam nele o seu Francisco, dona Izilda, o Dr. Ronaldo e eu.
Quem dirigia era o advogado. Meu pai ia na frente, no banco do
passageiro, mas voltado para trás, falando comigo.
— O que tá passando na sua cabeça de trocar a nossa casa
por um lugar desses? — dizia. — Trocar a nossa casa, tudo o que
o pai te deu, pra ficar pelas ruas com essas pessoas? Você não gosta
mais do pai? O pai nunca te bateu, filho… O pai sempre te deu o
que o pai podia dar. O pai não tem dinheiro… O pai trabalha na
roça, mas com o dinheiro que o pai ganha, o pai compra as coisas
pra você, quando o pai pode. Nunca tá faltando nada pra nós,
por que é que você fica fazendo isso?
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Fiquei emocionado com suas palavras. Ao meu lado, no banco de trás, ia a minha mãe, e eu podia sentir que ela me queria ao
seu lado, e não longe, na clínica.
— E agora o pai não tem dinheiro. Tá difícil… O pai tem
que pagar o Dr. Ronaldo — seu Francisco dizia. — O pai vai
gastar lá na clínica um dinheiro que o pai não tem. Mas o pai vai
fazer isso por você. Pelo menos até acabar isso tudo e você voltar
pra casa.
— Mas não quero ficar lá, pai — eu disse.
Já estávamos chegando em Americana, depois de quase 350
quilômetros de estrada. Pude ver que minhas palavras o deixaram
muito preocupado.
— Não, filho, você tem que ficar lá — argumentou. — Tem
que ficar lá até a coisa acalmar. Só um mês, pra convencer a juíza
de que você melhorou e que pode ficar em liberdade.
O Dr. Ronaldo me disse, com dureza:
— Tem que ficar lá, rapaz. Tem que ficar lá sim, porque
senão você vai preso de novo. Você quer voltar pra cadeia, a gente
dá meia-volta aqui mesmo. Senão você vai colocar todo mundo
aqui numa fria com a juíza.
Fiquei com medo do que ele disse e por isso não falei mais nada.
*
Chegando à cidade de Americana, fomos por uma estrada
de terra em que percorremos uns dez, doze quilômetros até encontrarmos essa clínica no fim do mundo. A primeira coisa que
senti foi vontade de voltar para trás. Era uma casa retirada e mal
mantida, onde era alojado um número de pessoas — mais de trinta
— maior do que a clínica poderia abrigar. Do lado de fora havia
alguns canteiros de verduras, todas murchas, creio que por falta
de irrigação. Fomos conhecer o dormitório e, ao ver aqueles beliches todos amontoados, alguns até seguros com escoras, sinceramente me deu vontade de correr.
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Também fazia muito calor e a construção era abafada, sem
ventilação. Os armários dos internos eram empilhados uns sobre
os outros. Um lugar feio.
Fui recebido por um senhor negro, de meia-idade. Ele foi
meio seco comigo. Disse que não tinha lugar na clínica para mim.
— O garoto não vai poder ficar, porque esta é uma clínica
só para maiores de idade.
Meus pais e o Dr. Ronaldo tinham comunicado a ele apenas
que estariam trazendo uma pessoa para ser internada na clínica.
Percebi o quanto eles tinham feito as coisas às pressas, visando
antes de mais nada me tirar da prisão. Meus pais nem sabiam
quanto teriam de pagar, pela minha internação. Eles, é claro, enfrentavam uma situação dessas pela primeira vez, e o Dr. Ronaldo
era um advogado iniciante — fui o seu primeiro caso. Eles tinham tomado conhecimento da clínica ASADAM através de
minha tia e de um parente dela em Americana, que fazia parte da
Polícia Federal. Então lá estava eu, prestes a ficar nesse local deprimente, indicado a nós por informações de segunda e terceira
mão.
O Dr. Ronaldo disse ao responsável:
— Por favor, vamos conversar.
E explicou a ele tudo o que estava acontecendo. Tratava-se
de um arranjo provisório, apenas até que a juíza pudesse falar
comigo e decretar a liberdade assistida.
— Tudo bem — o homem concordou. — Ele pode ficar,
mas eu não assumo nenhuma responsabilidade pelo que possa
acontecer com ele aqui. E tem outra coisa: aqui nós não amarramos ninguém. Quiser ir embora daqui, vai sem impedimento.
Silenciosamente, eu torcia para que ele não me deixasse ficar. Sozinho com minha mãe, enquanto o pai e o Dr. Ronaldo
convenciam o sujeito, eu dizia, todo manhoso:
— mãe, eu não quero ficar aqui. mãe, me leva pra casa…
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Quando meu pai retornou, ele disse:
— Vamos tirar as malas do carro, filho.
*
Quando foram embora, senti meu peito amarrado, e percebi nos olhos de papai que ele também foi embora de coração partido por eu ter que ficar ali. Eu sabia que ele também não havia
simpatizado com o lugar, mas para ele era a única saída.
O pastor que comandava a clínica me recebeu no seu escritório. Explicou que ali era uma clínica evangélica e que oravam o
tempo todo. Você lia a palavra da Bíblia, refletia sobre ela durante um tempo e depois ajoelhava e pedia a Deus que o livrasse do
vício e o fizesse encontrar o caminho. A esse ajoelhar chamava de
“sacrificar” — e de fato, doíam os joelhos, de tanto tempo que se
passava orando e rogando a Deus.
Dentro da clínica permaneci em um canto, nem desfiz a
mala, que era enorme. Um funcionário, filho do pastor dono da
clínica, veio falar comigo e me mostrar como tudo era ali dentro.
Ele tinha uma bala presa na testa, acima do olho direito. Mais
tarde eu soube que ele tinha levado aquele tiro durante uma tentativa de roubo. Afirmava ter se curado do seu vício, na clínica.
Achei estranho. Pensando também em como o lugar era retirado,
me veio a noção de que ali haveria uns caras escondidos da polícia. Mas como saber?…
Na verdade, mal cheguei e já tinha estabelecido a intenção
de fugir. Mais ainda depois da janta que me serviram — um prato com arroz, feijão e bastante beterraba por cima, carne não existia. Então provei um pouco e joguei quase toda a comida fora, ali
mesmo no chão do refeitório.
Dormi uma noite apenas na clínica — embora “dormir” seja
mais uma força de expressão: havia tantos mosquitos, que mal
preguei os olhos. No dia seguinte acordamos às 5:30 da manhã e
tínhamos que ir obrigatoriamente para a igreja evangélica, feita
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de bancos de madeira áspera, cheio de telas protetoras de
pernilongos. Não tínhamos café da manhã, pois diziam que era
preciso ficar de jejum. Apenas dois dias na semana serviam o
café-da-manhã, segundo me disseram, porque não fiquei para experimentar. Apenas almocei e depois do almoço para a igreja de
novo — e o pior era que tinha de ficar de joelhos para tudo; até
um coitadinho lá que estava com o pé quebrado tinha que se ajoelhar. Do contrário, sofreria uma das punições, que eram carpir
mato com a enxada, ou buscar lenha e água da mina com os
monitores — isso tudo eles me disseram, porque, quando chegou
a noitinha, juntei minhas coisas e fui saindo de fininho.
Uns internos me disseram:
— Fica aí, rapaz, que vai ser bom pra você.
— Não vou ficar não — eu disse. — Vou embora.
— Não vai, não…
— Já fui.
E comecei a caminhar por uma estrada de terra, carregando
a minha malona nas costas. Ninguém veio atrás de mim.
Quando encontrei asfalto, já quase não sentia minhas pernas, de tanto cansaço. Não sei dizer com precisão, mas calculo
que caminhei uns oito ou dez quilômetros, até encontrar uma via
asfaltada. Já era noite, eu tinha fome. Andando por ali, prestei
atenção nos ônibus que passavam. Caminhando, encontrei um
ponto de ônibus. Fiquei ali por umas duas horas, descansando e
pensando no que fazer. Estava sozinho, não conhecia nada de
Americana.
Debaixo da coberta do ponto, havia uma banca de camelô,
iluminada por um lampião fraco. Quem cuidava era uma mulher, com quem fiquei conversando.
Do outro lado da avenida havia um clube de hipismo, e,
diante dele, mais barracas de camelôs. A certa altura, a mulher
deixou a sua banca e foi conversar com um colega, do outro lado.
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Desesperado e com fome, passei a mão na sua caixa de trocados e saí a passos largos, arrastando minha mala.
Comprei apenas umas bolachas e salgadinhos, coisas que
podia comer enquanto me movimentava. Matei a fome e encontrei o caminho até a rodoviária da cidade, onde comi mais um
pouco, antes de ligar para meus pais. Contei ao seu Francisco a
situação em que me encontrava. Tinha fugido e estava sozinho
em uma cidade estranha. Ele ligou para minha tia Irani, que mora
em Borborema mas tem parentes em Americana, e por lá ajeitaram tudo pelo telefone com esses parentes dela.
Um primo da tia Irani ficou de me pegar na rodoviária. Já
me adiantaram que ele trabalhava no departamento de investigações da Polícia Federal, e que eu não devia me preocupar que ele
não iria me fazer nada, a não ser me ajudar, levando-me para casa
dele e me dando a assistência necessária. Na hora em que ouvi
isso, senti medo de que ele me levaria para a cadeia de novo.
— Não, não, não, que ele vai me entregar pra polícia! —
gritei.
Mas meu pai me acalmou, explicando a coisa toda do parentesco, embora ele mesmo soasse desesperado. Afinal, seu filho
menor de idade estava sozinho em uma cidade estranha, talvez
passando fome ou perigo…. Acho que também deviam estar passando por sua cabeça todos os gastos que tivera até então — a taxa
de internação, a viagem de Borborema até Americana… Mas eu,
na época, estava cego a essas coisas e pensava apenas na minha
situação imediata.
Passaram-se umas duas horas e eu na rodoviária aguardando, ligando a cada pouco para o meu pai em Borborema para
saber que solução eles tinham encontrado e o que eu devia fazer.
Então chegou bem devagar um homem de quarenta e poucos
anos, em um Uno Mille. O carro tinha uma pequena luz policial
em cima. Dei uma olhadela para ver se eu tinha alguma confirmação ou retorno da parte do seu motorista, e para saber se real67
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mente era o tal sujeito. Por incrível que pareça, deu certo — até
parecia que já nos conhecíamos. Me aproximei e ele veio ao meu
encontro. Perguntou meu nome.
— Oi, menino. É você que ‘tá perdido? É você que é o fujão?
Ele havia me encontrado pela descrição das roupas que eu
usava e que havia passado ao meu pai, e meu pai a ele. Entrei no
carro. No caminho para a casa dele, porém, fomos conversando e
ele foi me falando da FEBEM. Pelo que dizia, se eu não aproveitasse as oportunidades que tinha no momento, acabaria indo parar na FEBEM.
— Se você continuar com isso, vai chegar uma hora que a
juíza não vai mais te dar nenhuma chance. Na FEBEM você fica
sozinho, você apanha, a comida é uma merda… Você quer isso
pra você? Eu mesmo estou cansado de levar neguinho pra FEBEM.
Quase toda semana eu estou lá.
Foi dele que ouvi pela primeira vez uma frase que ainda ouviria várias vezes:
— Na FEBEM, o filho chora e a mãe não vê.
*
O investigador me deu toda a assistência necessária para esperar os meus pais em Americana. Comida, banho, lugar para
dormir e um pouco de dinheiro; mas tudo isso meu pai pagaria
depois, porque este foi o combinado entre eles, e tudo para minha proteção — e eu burro como era, não conseguia entender
nada.
Fui avisado de que deveria ficar na casa dele, sem sair, porque o bairro era perigoso. Não era bem favela, mas um bairro
pobre de periferia, de casas humildes e ruas de terra, com esgoto
a céu aberto. A casa em que eu estava, porém, era melhor e as
pessoas me tratavam bem. Além do investigador, moravam ali a irmã
dele e o filho dela — um rapaz de uns dezenove anos —,
que também havia se envolvido com entorpecentes. Segundo a
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mãe dele, com cocaína, mas ele já estaria recuperado. Um rapaz
todo formal e culto, bonito e educado. Foi difícil acreditar que
tivesse um passado de envolvimento com drogas. Logo descobri
que havia se regenerado graças à religião, que havia encontrado
em uma clínica: ele me convidava para ouvir hinos gravados em
fitas K7, em seu quarto. Mas eu não gostava de ouvir hinos, e esse
oferecimento eu também recusei.
À noite saí com ele — me esquecendo da recomendação do
policial federal —, para dar uma volta. Era um bairro feio, parecendo coisa de filme americano, uma imagem do Brooklyn, com
gente se aquecendo em torno de fogueiras queimando em latões
e terrenos baldios cheios de lixo.
Passou um dia e uma noite e meu pai foi me buscar e me
trouxe de volta a Borborema. Mas agora tinha que ficar escondido, pois tinha desrespeitado uma ordem da juíza — deveria ter
permanecido na clínica, e fiz o contrário. Para todos os efeitos,
ainda estava internado. Fiquei na casa dos meus tios Tição e Cláudia, que me receberam muito bem. Minha mãe me visitava ali, e
eu estava proibido de sair para a rua. Meu pai tentava um meio
de me recolocar na clínica em Americana, embora eu implorasse
para que me deixasse ficar onde estava, com os meus tios, ou voltar para casa.
Alguma coisa havia mudado em meus pais. Suspeitava que
eles não confiavam mais em mim. Quando dizia que não iria mais
voltar ao tráfico, podia ver que eles não acreditavam. Me senti
desprezado por eles, e minha reação foi pensar que se não reconheciam mais quando eu falava a verdade, então tanto fazia a
verdade quanto a mentira. Reconheço, por outro lado, que muitas vezes eu mentia sem necessidade de espécie alguma, apenas
por hábito. Depois de um tempo nessa vida, eu praticamente vivia na mentira. É claro, me escapava completamente que, ao cometer crimes e ser apanhado, tinha um compromisso agora com
a justiça, e não apenas com os meus pais.
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Após quinze dias, escondido, sem que a justiça soubesse, fui
colocado em outra clínica, agora em Bauru: a Comuna. Isso se
deveu à minha insistência em não retornar a Americana.
Era um lugar melhor. Ali eu trabalhava em um tipo de terapia ocupacional, e ganhava um dinheiro (embora meu pai pagasse a internação). Também se tratava de uma clínica evangélica, e
lá, estranhamente, as canções e o ambiente começaram a me afetar de um modo mais positivo.
Apesar disso, eu não estava gostando.
As instalações ficavam na Vila São Paulo, um bairro popular, e do outro lado da cerca formavam-se grupinhos de rapazes
que fumavam maconha. Eu podia sentir o cheiro. E tinha vontade. Todos os dias eu sentia o cheiro, e isso me torturava…
Durante todo esse período, eu não tinha fumado nem uma
vez, mas me sentia nervoso, agitado, como um bicho encurralado
em um canto. Mesmo com minha mãe eu havia me tornado mais
seco.
Na clínica, sempre que não tinha nada para fazer, ficava pensando na maconha.
Havia gente boa lá — e gente ruim. Muitos ex-internos da
FEBEM, gente mais experiente do que eu. Lá conheci um rapaz
chamado Ermínho, miúdo, branco e sardento, sem ninguém no
mundo. Estava ali tentando levar uma vida diferente, encontrar
um caminho para a sua vida. A clínica, para ele, era um ótimo
lugar. Mas eu, centrado em mim mesmo, não tomei consciência
do quanto podia aprender com a experiência dos outros. Nardo
foi um outro sujeito mais experiente, que falou comigo.
— Fica aqui, rapaz — disse, e me deu o testemunho da vida
dele.
“Testemunho” é como esse tipo de comunicação de experiências de vida é chamado no ambiente da clínica evangélica.
Nardo havia se envolvido com o tráfico ali mesmo no bairro São
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Paulo. Fora preso várias vezes. Agora só desejava retornar a uma
vida normal.
Hoje penso que na época eu não tinha uma visão clara do
tipo de experiência de que ele falava. A violência e as internações
na FEBEM ainda estavam longe e havia em mim um certo cinismo, que me fazia pensar, depois de ouvir sobre o sofrimento e o
desespero, pelos quais gente como Ermínho e Nardo haviam passado: “Ah, isso aí é problema seu”.
Ah, se eu soubesse…
*
Cheguei à Comuna com um pensamento muito semelhante àquele com o qual eu havia entrado na clínica ASADAM: “Se
não gostar, ‘tô fora.”
Embora a nova clínica oferecesse palestras e estudos sobre a
droga e o que ela causava às pessoas, as palestras não eram obrigatórias e eu preferia ficar jogando bola ou olhando o movimento
na rua, fora das instalações. Os funcionários da clínica conversavam bastante com a gente, explicando como devia ser a melhor
atitude, o melhor comportamento, além das razões de eu estar ali
e os perigos que corria. O pastor Josi falou comigo pessoalmente,
dizendo que eu deveria comparecer às palestras.
Dentro da clínica, ficava evidente qualquer tensão que eu
estivesse sofrendo por causa da falta da droga. Nenhum medicamento ou tratamento era oferecido para a abstinência. Também
não havia um psicólogo acompanhando os internos, em bases diárias.
As festas de final de ano estavam se aproximando. Na própria
Comuna havia uma programação sendo preparada, com comida
diferente, e doações para as festas que começavam a chegar.
Por essa época, um rapaz apareceu na clínica. Depois que
fizemos amizade, ele logo soltou que tinha entrado com uma
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paranga de maconha, escondida na sola da sua sandália. Eu me
interessei:
— Vamos, ver, vamos ver…
Não hesitei nem um segundo.
Na hora ele me mostrou um baseado bem fino. Só mais tarde eu saberia que ele tinha entrado com uma quantidade bastante grande. Estávamos eu, ele e um terceiro rapaz, também com
passagem pela FEBEM. Nós três fumamos atrás do galpão, junto
a uns carros quebrados, usados no curso de mecânica da Comuna.
O cara que tinha entrado com a droga também trouxera uma
caixa de fósforos, proibida dentro da clínica.
Cada um deu uma tragada e logo nos dispersamos. Caminhei até o campinho, em que outros garotos jogavam bola, e só ali
soltei a fumaça.
Não fui longe.
Em pouco tempo um funcionário apareceu e me pegou pelo
braço. Outros internos — aqueles que realmente pensavam na
recuperação — tinham me caguetado. Se foi por causa do meu
gesto de soprar entre eles a fumaça da maconha, que os fez se
sentirem ofendidos, ou se foi para me ajudar, não sei dizer.
Fui levado à sala do diretor. Ele tinha a “ponta” da bituca na
caixa de fósforos em que ela fora escondida, tudo sobre a mesa.
Levei uma bronca e o grosso do incidente caiu sobre mim. Fui
castigado com um mês de lavar panelas, e o pastor Josi ameaçou
chamar a polícia.
Fiquei com medo, e quando o sujeito que havia entrado com
a maconha na clínica propôs fugirmos juntos, naquela noite, topei.
Na hora “h”, porém, achei melhor ir sozinho. Não queria
ter de carregar ninguém, quando fosse para conseguir comida ou
outra coisa qualquer. Então levantei de mansinho e fui até uma
das portas, que eram de correr e faziam barulho, ao serem aber72
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tas. Empurrei bem devagar, até abrir uma fresta larga o bastante
para mim. Mas ao olhar para trás, lá estava o cara.
— Vai, vai, vai — ele cochichou.
Pedi para ele olhar, enquanto eu pulava o cercado de tela de
arame. Do outro lado, fui eu que olhei, enquanto ele pulava.
Corremos rápido umas duas ou três quadras e então nos escondemos debaixo de um toldo — começava a descer uma garoa.
— E aí? Tem papel aí? — perguntei.
Foi só então que descobri a quantidade de maconha que ele
tinha com ele.
Ficamos a noite vagabundeando pela cidade. Depois disso,
nos separamos. Ele era morador de Bauru, então simplesmente
dissemos “tchau” um para o outro, e ele foi para o bairro dele. Na
manhã seguinte à fuga, liguei para a minha mãe e contei o que
tinha acontecido. Ela me contou que o seu Francisco já estava em
Bauru — tinha ido me buscar para a audiência que eu teria com
a juíza, naquele mesmo dia!
— O que você fez? — gritou ela. — Seu pai foi aí pra te
buscar pra falar com a juíza! Você só vai complicar a sua vida…
É claro, eu não sabia de nada. O pastor Josi tinha recebido
uma carta, informando da audiência, mas não me contou nada
(talvez o meu uso de maconha, no dia anterior, o tenha distraído
disso, não sei…). Nunca teria fugido, se soubesse…
Ao ser informado, o arrependimento caiu sobre mim. Pensei que poderia estar em casa naquele instante, e não na rua.
Mais tarde liguei de novo, e meu pai estava. Ele tinha acabado de voltar de Bauru, tendo me procurado, sem sucesso, pelas
ruas da cidade. Tinha rodado cem quilômetros na ida, e cem na
volta — imagine o gasto em combustível, mais a taxa de internação;
ele até mesmo deixou lá o baú que havia comprado para guardar
as minhas coisas, e que lhe havia custado uns R$ 120,00 ou mais.
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E é claro que, na clínica, contaram a ele o que tinha acontecido
no dia anterior — que eu tinha sido apanhado com maconha.
De qualquer modo, suportei a bronca, e combinei que esperaria por ele no Bauru Shopping. Fiquei na frente do prédio, sentado em um banco junto à entrada. Uma viatura policial passou
por ali várias vezes, mas não fui abordado por ninguém. Finalmente meu pai chegou. Meu tio Tição estava com ele. Chegaram
quietos e me levaram para o carro. Dentro do carro, ouvi tudo o
que tinha que ouvir…
— O que que você tá fazendo, rapaz? Olha o monte que
você aprontou, pra depois sentar em cima… Era pra você estar
em casa desde ontem. Agora o advogado teve que ir justificar a
sua falta na audiência. A juíza ficou te esperando até às seis e meia
da tarde. Complicou a vida de todo mundo…
“O advogado lutou na nossa frente, discutindo com a Juíza
pra ela não expedir um mandado de busca e apreensão, pois você
é só uma criança que não tinha noção do que estava fazendo, e
que no máximo até amanhã você se apresentaria para falar com a
juíza. Ele precisou contar toda a verdade pra ela, e garantir que
sem falta você se apresentaria lá.”
Tudo isso me explicaram no caminho de volta para casa. Fui
ouvindo sem retrucar nada, pois sabia que a minha fuga não tinha sido uma coisa correta, mas agi por emoção e impulso junto
com o outro que fugiu, e pela minha inexperiência de vida em
reconhecer as conseqüências dolorosas das minhas atitudes. Pelos
muitos erros que cometi, machuquei pessoas que me amavam.
Mas ainda era uma dificuldade muito grande deixar a vida do
crime, por causa de todo o lucro que eu adquiria tão facilmente,
por causa dos contatos, do envolvimento, das ameaças, das tretas
não resolvidas, dos amigos e dos inimigos, enfim, uma série de
outras coisas. Largar não é fácil.
*
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No dia seguinte, fui ao fórum acompanhado dos meus pais
e do Dr. Ronaldo. Ele me disse, no caminho:
— Desta eu vou tentar te livrar, mas posso não conseguir. —
O tom de voz dele era irado. — Eu não sou Deus. Pára de fazer o
que está fazendo, porque você vai acabar me prejudicando com a
juíza, e aí eu não vou poder fazer mais nada por você.
Quando ouvi, pensei: “Pronto. Azedou tudo.” As palavras e
o tom dele me assustaram. Com meus pais, não que eu premeditasse abusar da boa vontade deles, mas é claro que eles relevavam
muitas das minhas faltas. Contudo, quando o advogado disse que
ia ser prejudicado junto à juíza, senti que uma porta se fechava.
Fiquei inseguro quanto a comparecer ou não à audiência, temendo ser preso. A alternativa era fugir. Mas compareci diante da
juíza, meu coração aos pulos.
Estávamos todos lá, até meu irmão e meu tio João Beleza, o
vereador. Vinte e três de dezembro de 1999, me lembro como se
fosse hoje. Eu estava com muito medo, porque devido à besteira
que tinha feito no dia anterior, agora era necessário me apresentar a juíza sem garantia de que voltaria para casa. As horas foram
passando e chegou o momento de irmos para o fórum. Ao chegarmos, meu coração queria sair pela boca. O advogado me instruiu. Meu nome foi chamado. Fiquei parado. O Dr. Ronaldo e a
secretária do fórum olharam para mim, ela bateu duas vezes na
campainha. Ronaldo disse:
— Vai — e me deu uma batidinha no ombro.
Entramos na sala, meu pai na frente. Eu podia sentir o apoio
da minha família, como eles torciam por mim. Silêncio total. Até
então nunca tinha sentido tanto medo de voltar para as grades.
Nós nos sentamos e, do jeito que ficou, eu só tinha a juíza diante
de mim, uma mulher loura e magra. Para ver os meus pais ou mesmo
o advogado, teria de me virar para trás — mas estava duro de apreensão. Foi iniciado o diálogo dentro da sala, e o valentão aqui tremendo
como vara verde. A juíza começou com as perguntas:
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— O que você quer fazer da sua vida?
Respondi que só queria viver com minha família. Falei bem,
e a confirmação veio dos olhos do advogado.
— Por que você fugiu da clínica? — a juíza perguntou.
— Eu nunca passei um final de ano longe da minha família,
e só fugi porque queria passar as festas junto com todos.
Falava como um menininho perdido as coisas que o advogado havia me instruído a dizer, mas a minha vontade de chorar era
genuína. De qualquer forma, as perguntas que ela me fez não
ficaram longe daquilo que o Dr. Ronaldo já me havia antecipado.
— Que esperança você tem, pra sua vida? Se você receber a
sua liberdade agora, o que vai fazer?
— Eu vou voltar a estudar, e não vou mais causar problemas
— respondi.
— Você usa muita droga? O que você usa?
— Não, eu só usava quando estava com os meus amigos que
fumam maconha. Mas agora eu não vou mais fumar.
Na verdade, como hoje eu sei, já tinha um hábito muito
forte de consumo da maconha. Tinha esperanças de não precisar
da droga, mas a verdade é que, no futuro, ainda sentiria muita
vontade e voltaria a fumar maconha.
— Nunca mais vou fumar — eu disse. — Porque quero ficar com a minha família, quero ficar com a minha mãe.
Depois de algumas considerações, ela fechou a pasta e disse:
— Você vai voltar para sua casa, Cleonder, mas seus pais vão
cuidar de você, e não quero mais notícia ruim aqui. Pode se retirar da sala, mas o Dr. Ronaldo e seu pai ficam.
Saí da sala o mais rápido que pude, e lá dentro a juíza deu
uma dura no meu pai, mas disse que o processo seria arquivado. E
“ponto final, estão dispensados”.
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Capítulo V: Então você está aqui!
Início do ano 2000. Agora tudo estava na santa paz dentro
de casa, passamos nosso fim de ano um pouco mais felizes, minha
família estava mais contente por eu ter voltado para casa, mas
ainda sentiam medo. Medo de que eu aprontasse mais alguma
coisa errada, que por destino não demorou a acontecer.
Pelos eventos do mês anterior, e com os transtornos que causei, além do tempo que perdi, fiquei em recuperação em janeiro.
Precisei repor aulas, no Colégio D. Gastão, onde estudava. Na
época estava na primeira série do Segundo Grau, hoje Ensino
Médio. Jamais esquecerei dessa classe, pelo fato de ter amigas sinceras, que são minhas amigas até hoje. Todas sabiam o que havia
acontecido comigo, mas, mesmo assim, em meio a toda a confusão em que eu tinha me metido, elas só pensaram em me ajudar.
A Josi era muito extrovertida, e é até hoje; sempre me tratou
bem, passávamos o tempo conversando bobagens sadias, brincadeiras maravilhosas e inesquecíveis. Foi uma amiga do peito, compreensiva. Mas também me repreendia, se fosse preciso. Amiga
para qualquer hora, pois quando minha vida começou a caminhar para o lado errado, ela continuou sendo o meu cantinho de
lágrimas para desabafar.
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Paixão forte, eu comecei a sentir foi pela Luciana (carinhosamente chamada Luluzinha), que também é minha amiga.
Corpinho de violão, linda, mas tão linda que na minha cabeça só
podia ser ela, mas ela ainda gostava de um ex-namorado. Só de têla ao meu lado como amiga já era o bastante, pois podia sentir o
conforto de estar próximo de quem se gosta, e mesmo assim eu ia
tentando conquistá-la, até que um dia a Josi e a Glauce armaram
um esquema para eu e a Luciana darmos uns beijinhos atrás da
caixa d'água da escola. Fiquei muito empolgado, mas bem na hora
do combinado ela decidiu deixar como estava, porque algo mais
poderia prejudicar a nossa amizade, que já era tão bonita e gostosa. E assim tive que aceitar, mas passou um tempo e eu a esqueci,
como objeto do meu amor, mas nem por isso perdemos a nossa
amizade.
Rafaela — a “Rafa” — louca de tudo. Quando eu estava ao
lado dela não parávamos de dar gargalhadas, tanto ela me contagiava com seu astral. Me recordo que, quando ela engravidou do
seu namorado, e a barriga dela ficou enorme, nós subíamos para
casa juntos, pois era o mesmo caminho. Ela vinha da escola com
seus sete para oito meses de gravidez e, cansada, se pendurava no
meu ombro esquerdo com as mãos. A gente ia se arrastando, porque eu também me cansava. Mas a Rafaela se tornou uma amiga
cativante e ótima para o desabafo, pois com ela eu conversava
abertamente sobre meus problemas e envolvimentos com pessoas
do submundo do crime, e ela, por ser filha de investigadora da
polícia civil, já sabia de alguns de meus problemas. Mas nossa
amizade era tão forte que está firme até hoje, graças a Deus. A
Rafa casou-se e agora é mãe de dois filhos. O marido dela é um
exemplo vivo de vida e de esperança, porque também passou dificuldades na adolescência.
Natália e Gustavo eram um casal perfeito, se conheceram e
deram início ao namoro na sala em que todos nós estudávamos
juntos.
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A Natália sempre foi e é uma pessoa extremamente consciente e responsável em suas atitudes, e sempre me aconselhou.
Tivemos várias conversas, pois ela é muito religiosa, da igreja Católica. Natália me apoiou quando fiz o Brasa na Casa de Curso
(um curso religioso). Enviou-me cartas e palavras de esperança.
Gustavo, conhecido como “Gustavão Gordo”… Este sim é
o único amigo homem que me restou com uma amizade sincera.
Em nossos intervalos de aula, comecei a jogar basquete com ele,
porque ele jogava demais, e com seu irmão Zé. Tivemos muitas
conversas, e ele sempre disposto a me ouvir e orientar. Foi criado
e cresceu nos braços da avó D. Idália. Também é bastante religioso,
e sua irmã Crhistiane, hoje casada, estudava comigo. Gustavo é namorado de Natália até os dias atuais. Continuam meus amigos.
Todas essas pessoas cruzaram meu caminho, e entre tantos
conselhos e apoio psicológico, entre fatos e atos dos anos anteriores, todos ficaram preocupados comigo. Às vezes, caminhando
pela calçada, eu encontrava alguns desses amigos, e sempre parávamos para conversar e eu recebia vários e valiosos conselhos. Isso
se fixava em minha mente no momento, mas depois com o tempo
eu esquecia e tornava a me meter em situações perigosas.
Então começaram as aulas de recuperação. No primeiro dia
eu compareci, mas nem prestei muita atenção na aula, pois os
curiosos ficaram me perguntando sobre tudo o que havia acontecido. Percebi também muitas atitudes de preconceito contra mim.
Depois da aula, no período noturno, vinha voltando para casa e
encontrei um cara, o Bigode, que me convidou para fumar um
baseado, e não omito que estava com muita vontade. Fumamos
toda a quantidade que estava enrolada. Ele sacou do bolso uma
pequena paranga e enrolou mais um. Fazia tempo que eu não
fumava, e sentia que a maconha pegava mais forte. Nisso as horas
foram passando, e quando me dei conta já era de madrugada.
Ficamos conversando por muito tempo, por isso não percebi o
passar das horas. Isso foi no primeiro dia de aula…
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Quando voltei para casa, dona Izilda estava acordada e o
seu Francisco tinha saído à minha procura. Minha mãe começou
a me perguntar um monte de coisas — logo percebeu que eu
estava drogado. Não demorou e chegou meu pai, e no ato ela
contou o que se passava. Começamos os três a discutir, e cada vez
mais se alterava o tom das falas e o nervosismo crescia. Parei de
falar. Só ouvi o que tinham para dizer. Era a mesma conversa de
antes. No momento, o que eu queria era evitar que toda a pressão
que havia enfrentado antes retornasse. Disse que iria embora de
casa, mas falei tudo sem pensar. Além do mais, havia fumado dois
grandes cigarros de maconha, e soltei muitas palavras sem medir
seu peso sobre meus pais. Em meio ao tumulto, disse que sairia de
casa, virei as costas e fui para o banheiro.
Tomei um banho, melhorei um pouco, e fui para o quarto
dormir, mas não consegui. Ficava pensando no que fazer para sair
dessa situação. O pai e a mãe permaneceram conversando na cozinha, que ficava no fundo da casa. O efeito da maconha foi diminuindo, mas comecei a me lembrar das coisas que vinham acontecendo desde que tinha voltado para casa — eu chegar da rua e
surpreender minha mãe fuçando na minha gaveta, revistando
minhas roupas, e toda a conversa e proibições… Passei a pensar
em como fazer para arrumar dinheiro e sumir de casa.
Aproveitando que meus pais estavam nos fundos, fui bem
devagar, sem fazer barulho, até o quarto deles, que ficava ao lado,
na intenção de encontrar dinheiro. Não foi preciso procurar
muito, pois abri um faqueiro e encontrei o valor de R$ 300,00.
Peguei tudo. Voltei para o meu quarto, tranquei a porta, pulei a
janela e fui para a rua até chegar à favela do Cai-Cai (que já não
existe mais), e por ali fiquei desde manhãzinha até o cair da noite.
Passei o dia todo nessa pequena favela, consumi muita maconha
— uma quantidade que não posso precisar.
Recordo-me de que, quando sai da Cai-Cai, estava com R$
250,00, um pequeno tijolo de trinta gramas de maconha, e uma
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faca. Segui para uma casa abandonada, próxima da escola em
que estudava. A rua era uma baixada, e três casas abaixo ficava a
casa do delegado. Por ali também ficava o mercado, alvo da minha tentativa de assalto. Passei em frente, percebi que não havia
ninguém, e adentrei rapidamente à casa.
Já conhecia a estrutura física do local, por ter consumido
maconha ali. Dei uma olhada no teto da casa e notei que a área
dos fundos não estava coberta com o forro de madeira. Subi pela
parede, pisando na fechadura da porta para me servir de apoio, e
fui para dentro. Logo que entrei, fui dar uma trabalhada na droga para embalá-la, de modo que a pudesse vender, recuperar o
dinheiro que tinha gastado e fazer lucro. Iludido e sem fazer idéia
da preocupação que estava causando, e do perigo que corria, cortei com a faca pequenos pedaços para serem vendidos por cinco
reais, embalei todos e depositei tudo dentro de uma sacola.
Quando ainda estava na Cai-Cai, deixei avisado para o Tico,
um usuário conhecido meu, o lugar em que estaria. Não demorou muito e ele apareceu lá, me levou um cobertor e umas guloseimas para comer. Dei cinco reais para ele ir buscar salgados fritos no bar. Ele logo voltou.
Naquela noite fiquei por ali mesmo. Tico também ficou comigo, e a cada hora nós fumávamos um baseado, até que, vencidos pelo cansaço, dormimos ali mesmo, dividindo o cobertor.
Pela manhã acordei primeiro, o café-da-manhã infelizmente foi um baseado. O Tico ainda dormia e eu permaneci sentado
no canto do cômodo sujo de restos de cimento. Quando acabei
de fumar, pensava em como iria fazer para tomar um banho, pois
estava sujo e sem roupas limpas, apenas as com que eu saíra de
casa. Também estava com medo de sair do esconderijo e topar
com meus pais à minha procura pelas redondezas. Tico acordou e
pedi para ele arrumar umas roupas para mim. Ele também disse
que tinha que ir para casa, porque a mãe dele poderia estar preocupada, mas que voltaria ao anoitecer e traria algumas roupas.
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Quando disse que a mãe dele poderia estar preocupada, me deu
vontade de voltar para a minha casa, mas eu tinha medo das conseqüências — especialmente por ter apanhado o dinheiro que
estava no faqueiro da dona Izilda.
Tico subiu na parede e pulou do outro lado e saiu. Permaneci onde estava até o meio da tarde, quando decidi sair para ir
até a mata do Carvalho. Tomei um banho no riozinho que corta o
bosque, e coloquei a mesma roupa.
Fiquei por ali até de tardezinha, esperando a cueca secar, e
logo chegou a noite. Saí do mato e voltei para a casa abandonada.
Próximo dessa casa em que eu estava escondido havia um poste de
iluminação, e percebi, ao olhar no chão do asfalto próximo da
guia da calçada, rastros de pés que tinham pisado no barro, e
creio que ao sair limparam as solas ali. Pelo tamanho das pegadas,
era gente grande. Mesmo assim entrei, e dei uma vasculhada no
quintal. Mas como era noite, não deu para enxergar pegadas pelo
lado de dentro, porque lá estava escuro. Então subi na parede e
voltei para dentro, com esperança de que o Tico voltasse logo,
pois tinha planos de sair dali ao raiar do dia.
Rapidamente o Tico chegou, mas trouxe com ele um rapaz
da minha idade, de novo o Bigode — que no futuro próximo me
colocaria na cadeia injustamente.
Ouvi os dois chegarem. Eles pularam e entraram. A gente se
cumprimentou, e comecei a falar das pegadas. O Bigode até aquele
momento era uma pessoa em que eu confiava, pois uma vez no
ano passado estávamos o Paulo, irmão do Tico, o Tico também,
Bigode e eu, todos sentados próximos da rodoviária de Borborema,
quando chegou o Arcidão. Ele queria comprar fumo. Eu não tinha nada para ser vendido no momento, mas o Paulo vendeu.
Quando o rapaz pegou a droga nas mãos, a polícia militar baixou
na área. O primeiro a perceber fui eu, que avistei a viatura de
longe, vinda de um ponto estratégico. Dei o alerta a todos:
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— Olha os homens, dispensa o bagulho! — e saí em disparada.
Eles ficaram para trás. A polícia acabou encontrando a porção de maconha com o Arcidão, e o restante do pessoal também
portava flagrante, mas todos engoliram antes da polícia botar as
mãos neles. Os policiais perguntavam ao Arcidão de quem era a
droga, e ele afirmou na cara do Paulo que tinha comprado do
próprio. Mas houve a intervenção do Bigode, que assumiu imediatamente (por ser primário), para evitar que o Paulo, que já
tinha vários processos em andamento, arrumasse mais problemas.
Foram todos para o DP, e depois liberados.
Por esse motivo eu confiava no Bigode, e o Tico eu já conhecia há tempos.
Conversamos e tentamos bolar um plano. A idéia era eu e o
Tico sairmos dali e seguir para a cidade de Novo Horizonte com
uns R$ 230,00 no bolso. Eu tinha um conhecimento nessa cidade e pretendia comprar um oitão, para pagar em duas vezes, e
trazer um pouco de fumo.
O Tico tentou colocar na minha cabeça que o melhor era a
gente sair dali ainda no mesmo dia, aproveitar a noite, que é melhor para se locomover, mas não concordei e disse que ao amanhecer seria melhor.
— Vamos amanhã — eu disse. — E ponto final.
— Tudo bem — Tico respondeu.
Por sua vez, Bigode concordava com tudo o que eu dizia,
pela hierarquia e o respeito do tráfico. Tico era meu aliado no
momento e também muito experiente no mundo do crime, com
passagem pela FEBEM Imigrantes, tendo participado da rebelião de ‘99, na qual cortaram a cabeça de um interno e a jogaram
por cima do muro — ela foi parar aos pés da Tropa de Choque.
Preciso deixar claro, porém, que o Tico só ficaria comigo
enquanto tivesse dinheiro no pedaço. Sem dinheiro, ele não teria
me acompanhado. É assim, nessa vida. Sem dinheiro, você não
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tem nada. Ao mesmo tempo, disfarçadamente, um vive medindo
o outro e, havendo oportunidade, nem que seja apenas pelo dinheiro e pela moral, ou pelo ponto do concorrente, um derruba
o outro — mata o outro. É a chamada “crocodilagem”. Então eu
mantinha um olho aberto até para o Tico. E havia uma outra
coisa, que eu tinha aprendido muito cedo: nesse ambiente, embora a gente faça planos em conjunto, cada um tem o seu próprio
plano. A minha idéia, por exemplo, era chegar em Novo Horizonte e lá deixar os dois plantados em algum lugar. Sozinho, faria
o que tinha de fazer, e então retornaria para junto deles com apenas metade da droga obtida. Essa metade eu repartiria com ele. E
voltaria com o cano escondido na cintura, para me garantir de
qualquer coisa.
Permanecemos ali na casa abandonada consumindo maconha, até que pegamos no sono. Eu já havia trocado de roupa e
dormi com ela.
O plano não deu certo porque, de tanto que fumamos, acordamos umas nove horas da manhã. Mais uma vez o Tico disse:
— Vamos agora mesmo. Não podemos ficar vacilando aqui
não, meu truta. Então Cleonder, vamos ou não vamos?
Eu disse que sim, mas tínhamos que pegar o horário dos
ônibus. Tico disse:
— E aí, Bigode, vai lá na rodoviária e vê os horários pra
gente, porque eu vou ficar aqui com o mano.
Bigode escalou a parede e foi.
Tico permaneceu comigo. Começamos a conversar sobre
como administrar o que compraríamos em Novo Horizonte. Estabelecemos entre nós que o Bigode não iria, porque três moleques juntos chamariam muita atenção. Rapidamente Bigode voltou e nos passou a escala de ônibus. Mas só tinha carro às cinco
horas da tarde, então tivemos de esperar. Parecia que o Tico sentia
alguma insegurança, porque novamente me chamou para sair-
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mos dali e irmos para outro lugar. Respondi que sairíamos na hora
de pegar o ônibus, e não custava esperar mais algumas horas. Tico
disse “tudo bem, truta”, que quer dizer "parceiro", "aliado". “Você
que sabe.”
Antes eu o tivesse ouvido.
Mas passados alguns minutos, escutamos alguns minúsculos
barulhos, como se alguém estivesse pisando em pedregulhos. Dei
uma olhadinha pela fresta da janela e não vi nada. Fumávamos
um baseado que o Bigode enrolou da maconha que eu tinha, mas
nem deu tempo de terminar e…
Bam! Bam! Bam!
Três chutes na porta de alumínio.
Olhei para cima e vi um soldado escalando a parede. Ele
estava lá em cima, com um revólver prateado em punho, apontando para nós.
— Pára, pára! — gritou.
O terceiro chute abriu porta. O delegado, com duas “quadradas” (pistolas) nas mãos, invadiu o cômodo. Fomos um para
cada canto, e o “doutor” veio logo em mim, me cutucando, e eu
já com as mãos nas paredes.
— Então você ‘tá aqui!
Ele não me bateu naquele momento, apenas me cutucou
com a arma de fogo na altura das costelas. Tive um choque de
medo, não ousei me mexer — embora tremesse, encostado na
parede.
Com nós três encostados na parede, começaram a vasculhar
o local e lograram êxito: encontraram uma pequena porção de
maconha, uma faca, um colírio e R$ 220,00. Automaticamente
o delegado disse:
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— Vocês estão presos no Artigo 12 — que se refere ao tráfico de entorpecentes —, permaneçam calados porque tudo que
disserem será usado contra vocês.
E então exclamou:
— Porra, meu! Não dá nem pra se almoçar lá em casa, com
essa baita tabela de maconha.
“Tabela” é a gíria para o cheiro da fumaça de maconha.
Três casas, abaixo, de onde estávamos, ficava a residência do
delegado…
Mas acho que era conversa dele. Na verdade, alguém deve
ter denunciado a nossa movimentação na casa.
Nos algemaram, pediram reforço de mais duas viaturas.
Colocaram a gente dentro do chiqueirinho, mas, ao invés de levar a gente para a delegacia, começaram a dar voltas conosco pelo
centro da cidade, com as sirenes ligadas fazendo o maior barulho,
e só mais tarde nos levaram para a delegacia de polícia.
Foram lavrados os autos, mas agora ninguém queria segurar
essa bomba, e, como era tudo meu mesmo, acabei assumindo.
Permanecemos na delegacia até o fim da tarde, quando a mãe do
Tico compareceu e ele foi liberado, pois foi considerado como
viciado. Depois veio a minha mãe, que foi falar com o delegado.
Passado um tempo, fui chamado.
Entrei algemado na sala dele. Mamãe estava sentada. Eu me
sentei ao lado dela. Quando ela viu minhas mãos presas, baixou a
cabeça e só Deus sabe o que dona Izilda sentiu naquele momento. De minha parte, sei apenas que me apertou o peito, de vergonha. Ela disse:
— É essa a vida que você quer levar? Foram essas roupas
sujas que eu dei para você vestir? Será que você quer me matar de
desgosto?
Então ela perguntou onde eu havia conseguido todo aquele
dinheiro, o delegado na hora atravessou a conversa, dizendo “é
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da venda de drogas”. De novo a mãe perguntou, e eu disse que
era dinheiro dela. Ela respondeu:
— Lógico que não, pois eu te dou apenas um real por dia e
você não ajunta dinheiro, você gasta tudo.
Logo que ela respondeu assim, percebi que não tinha dado
falta do dinheiro que eu peguei do faqueiro. Mas no momento
fiquei quieto, com medo dela me bater enquanto eu estava algemado — e mamãe tem a mão pesada.
O delegado explicou a situação para ela, que ficou muito
chateada. Era possível ver a tristeza em seu semblante, mas eu não
conseguia enxergar nenhuma saída no momento. O Bigode ficou lá no fundo, algemado, sozinho. Ninguém da família dele
queria ir buscá-lo, porque ele já vinha dando trabalho, envolvido
com entorpecentes e com muitos furtos. O delegado me liberou
na seqüência para aguardar decisão do fórum, e Bigode ficou lá
até anoitecer, quando a avó dele decidiu ir buscá-lo.
Mamãe assinou a papelada e me levou embora. Na saída da
DP, meus primos aguardavam algum resultado. Quando deixei a
delegacia com a dona Izilda, eles disseram:
— Mas que serviço, heim, Cleonder. Toda a família te procurando por esses dias todos e você é encontrado justo na delegacia.
Continuei caminhando sem dizer uma só palavra, pois estava envergonhado. Minha mãe também não dizia nada. Como a
delegacia ficava perto de casa, chegamos rápido.
Papai já sabia do ocorrido e ficou à espera; logo ao dobrar a
esquina eu o vi, em pé do lado de fora. Ele entrou, ao me ver.
Envergonhado com o que causei, comecei a conversar com
meus pais, e foi aí que o seu Francisco me perguntou:
— Quem você assaltou para arrumar aquele dinheiro?
Respondi que não tinha roubado nada. Desta vez contei a
verdade, porém com muito medo, explicando que o dinheiro
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encontrado comigo eu havia pegado do faqueiro da mãe, que
ficara na parte de cima do guarda-roupa. Ao ouvirem isso eles
ficaram espantados e me disseram:
— Não acredito, não pode ser… O dinheiro que você pegou nós deixamos de pagar as contas e também não fizemos compra pra casa e esse dinheiro que você pegou era para pagar o Dr.
Ronaldo, que te livrou da cadeia e você ainda me faz isso.
Respondi, alarmado:
— Eu não sabia, eu não sabia. Desculpa, desculpa.
Conversamos seriamente e eu me abri pela primeira vez com
meus pais. Contei o que estava acontecendo e pedi ajuda, porque
sozinho eu não conseguiria sair das drogas. Entramos em um acordo. Decidimos procurar um psicólogo no posto de saúde. No outro dia fomos ao posto do SUS, onde fui atendido pelo Sr. Benedito, que havia sido meu professor no ano anterior, na época do
primeiro colegial.
Terminada a consulta, saí com muito medo — e sinceramente posso dizer que saí de lá sem nenhuma vontade de voltar a
ser atendido. Essa foi a primeira vez que passava por esse tipo de
terapia, com um profissional, e eu nunca havia falado tanta coisa
sobre a minha vida no crime e no mundo das drogas. Ao deixá-lo,
fiquei me perguntando se ele comentaria minhas revelações com
alguém… Na verdade, todo o meu instinto era o de continuar
com os segredos e as mentiras.
*
Passou-se uma semana. Fui para mais um atendimento com
Sr. Benedito. Começamos a conversar e me soltei um pouquinho.
A conversa estava indo legal até o momento em que ele entrou no
assunto da internação.
— Não, senhor — eu disse —, porque aqui fora esta bom
mesmo. Eu não vou me deixar prender em lugar nenhum.
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Ele foi fazendo o papel dele de psicólogo e contornou a situação. O tempo se esgotou, havia mais pessoas a serem atendidas;
fui dali para casa e desta vez minha mãe não estava comigo. Voltei
furioso, pensando no que fazer para fugir dessa conversa de clínica de internação.
Nesse mesmo dia, já na parte da tarde, eu não fazia nenhuma idéia do que estava prestes a acontecer comigo. Eram praticamente umas quatro horas da tarde e eu estava no centro da cidade, em um bar que fica a uns duzentos metros do Fórum de
Borborema. Tinha uma bicicleta Calói Cross preta e vermelha,
que estava parada diante do bar. Em determinado momento decidi me retirar do bar para ir dar uma voltinha de bike, mas assim
que apontei na porta a dona Lucilene, oficial de justiça, vinha
vindo discretamente em seu carro, um fusquinha cinza. Quando
montei na bicicleta, ela encostou seu carro próximo de mim e
disse que havia alguns papéis para eu assinar, mas meus pais também teriam que estar presentes. Vendo que eu estava montado na
bicicleta, ela disse:
— Larga a bicicleta aí. Depois algum colega teu leva ela pra
você. E vem comigo.
No momento em que ela pronunciou essas palavras, entrei
em pânico. Disse que ia de bicicleta mesmo para casa, mas logo
percebi que, a uma distância de uns duzentos metros, havia uma
viatura só observando o lance entre a oficial de justiça e eu.
Sem saída, montei na bicicleta para ir para casa, como dona
Lucilene havia dito. Fui na frente e o fusquinha atrás de mim —
foram apenas algumas pedaladas e o camburão da polícia apareceu como num toque de mágica ao meu lado. Agora eu compreendi do que realmente se tratava — eles vieram para impossibilitar qualquer reação da minha parte. Mas dei apenas mais umas
pedaladas e então efetuei um corte inesperado para a rua de baixo, e a viatura seguiu direto, agora em alta velocidade para tentar
me pegar na esquinas das ruas que desciam a partir daquele pon89
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to. Passei a primeira esquina e tudo bem. A segunda esquina eu ia
tentar passar, mas a viatura Blazer parou bem na frente. Não pude
brecar e booom! Bati de cheio bem no meio da viatura e ali mesmo fiquei, caído no chão.
Me ralei um pouco, a bike foi para o compartimento fechado e eu fui na frente até minha casa, para dar a notícia aos meus
pais de que a juíza de Borborema havia decretado Prisão Temporária para Apuração de Ato Infracional. Sem eu perceber, minha
ficha na delegacia estava ficando comprida; não paravam de aparecer novidades, e a juíza passou a me ver mais do que eu gostaria.
Meus pais, coitados, já começavam a se desesperar. Não sabiam o
que fazer. Queriam, no momento, se comunicar com o Dr.
Ronaldo, mas eu disse:
— Agora não adianta chamar ninguém, porque essa decisão judicial só vai ser revertida com recursos. Tenho que ir pra
cadeia mesmo, eu já esperava por isso, mas não fiquem preocupados.
E meus pais responderam:
— Mas este papel está dizendo que você ficará preso por
enquanto ali em Itápolis, mas que depois você vai ser removido
para a FEBEM.
A partir do momento em que ouvi esta palavra, entrei em
pânico. Começamos uma choradeira sem fim, o pai, a mãe e eu.
Todos já tínhamos, claro, ouvido todos “contos de horror” possíveis, a respeito da FEBEM.
— Papai, serei forte — eu disse. — Não vou arrumar
encrenca com ninguém e vou sair vivo de lá.
Tentei confortá-los, pois era a única atitude positiva que
podia mostrar naquele instante. Confortei-os antes de sair. A oficial de justiça leu o restante dos papéis. A mamãe foi arrumando
uma pequena mala com alguns utensílios pessoais como pente,
escova de dentes e creme, sabonete, algumas roupas... Mas a face
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de minha mãe assumiria um semblante de tristeza que mexeu com
meu coração, mas agora era tarde demais para reverter qualquer
coisa. Tinha mesmo que pagar minha dívida com a justiça.
Nos minutos finais de liberdade e ainda com os pulsos soltos, pude abraçá-los e me despedir com palavras de esperança.
Quando saí de casa, uma multidão de conhecidos ocupava
a rua. Havia um número de viaturas posicionadas estrategicamente nos arredores. Cheguei ao portão, estendi os punhos e as algemas se travaram, os policiais colocaram minhas coisas no
chiqueirinho e me levaram para o hospital para fazer exame de
corpo delito, antes de dar entrada na cadeia de Itápolis.
Chegando aos portões de entrada da cadeia, acho que nunca fui tão frio como nesse momento. Entrei e passei pela mesma
rotina: retirar a roupa, ser revistado, agachar, vestir a roupa e ser
enfim encarcerado.
Desta vez fiquei de algum modo mais conformado, pois começava a enxergar o que realmente eu tinha feito e que essas eram
as conseqüências a enfrentar.
Os presos se assustaram com minha presença ali novamente.
— Mas você não tinha ido para a clínica? — muitos perguntaram.
— Fui, mas fugi.
Outros perguntaram qual era a minha novidade. E eu respondia:
— Tô num Artigo 12.
Eles, espantados, estalavam os olhos, pois eu mal havia saído
dali, e em menos de dois meses já tinha voltado, e ainda por cima
em um artigo pesado.
Fui colocado na mesma cela “corró” de antes. Agora já tinha
uma noção de como agir dentro da cadeia. Preso ali, só sabia que
teria uma audiência no dia 1.º de fevereiro de 2000, e minhas
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esperanças estavam todas concentradas nesse dia, pois não via
nenhuma outra luz a me dar mais qualquer esperança. E justo no
final de semana anterior eu havia arrumado uma namorada…
Eu já a conhecia e sabia que gostava de mim, mas nunca
tinha dado uma oportunidade a ela. Chamava-se Josiane e eu a
desprezava por achá-la meio magra e feia.
Mas como agora não podíamos reforçar nosso namoro, permanecemos assim, distantes um do outro. Mas acho que me apeguei muito rápido a ela, e, na prisão, prometi a mim mesmo que
na primeira oportunidade que tivesse iria encontrá-la novamente, para tentar um relacionamento. Mas se não fosse com ela, eu
procuraria outra pessoa, pois percebi que a mulher para mim atuava como um freio de mão; ou melhor, eu me sentia muito sozinho, em razão da vida que levava, foi se acumulando em mim
muita vontade de conversar, desabafar… Só que eu não tinha
ninguém. Quando encontrei Josiane, me apeguei a ela e dentro
da cadeia ficava pensando e pensando, e era muito gostoso pensar tanto assim nela, pois me sentia muito bem me importando
com uma outra pessoa.
Os dias foram passando e eu fui me adaptando ao lugar,
porque sabia que merecia aquilo tudo, pois não havia praticado
atos de caridade, mas de crimes. Crimes que me fariam sentir na
pele o que era a dor de uma solidão, a frieza de uma cela, o sentimento de estar abandonado,apesar do apoio dos pais.
O dia da audiência chegou e eu não tinha mais medo de me
dirigir à juíza. Meu advogado já havia me preparado e orientado.
Tomei um banho e aguardei ser solicitado pelo carcereiro
na cela.
Não demorou muito e o carcereiro — conhecido como
“Xaropinho” — veio me chamar.
— Vamos aí, chegou o dia de receber o presente.
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O que ele queria dizer era que havia chegado o dia de receber a condenação.
Mais uma vez colocaram os “grampos” nos meus pulsos. Fui
para o chiqueirinho da viatura e enfrentei os trinta minutos de
viagem, até que chegássemos ao Fórum de Borborema.
A presença de meus pais, eu pude logo conferir na entrada
do fórum.
Fui retirado do chiqueirinho e passei por meus pais de cabeça baixa, envergonhado e com vontade de esconder o rosto. Entramos e nos sentamos para aguardar o chamado da juíza, e eu
fiquei pensando assim: “Eles vieram em quatro policiais civis para
manterem a segurança deles, dizendo que para me remover não
poderiam dar bobeira. Mas que segurança eu tive para ser conduzido no chiqueirinho da viatura? Direitos humanos para presos ou internos é só no papel.”
Após quase uma hora de espera, chegou a minha vez.
Entramos, primeiro eu e os quatro policiais civis, depois o
advogado Dr. Ronaldo e, junto com ele, o meu pai.
Ao entrar na sala, pedi licença e entrei. Mas quando olhei
para a juíza, levei um susto — não era a mesma com a qual eu
havia passado outras vezes. Ela disse que era substituta e que a
titular não se encontrava por motivos de falecimento na família.
E começou logo com as perguntas.
Me perguntou se a droga que foi encontrada no local da
apreensão era minha. Respondi que sim.
Perguntou se eu comercializava os entorpecentes. Respondi
que não.
Perguntou o que os outros estavam fazendo ali no local. Respondi que éramos viciados e que, como eu havia comprado uma
pequena porção de maconha, tínhamos ido fumar em conjunto.
Ela ouviu as minhas respostas, parou, refletiu e disse:
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— O senhor já tem algumas passagens por aqui, mas foram
arquivadas. Ah, Sr. Cleonder, vamos ver o que eu posso fazer com
você.
Nesse momento o meu advogado pediu permissão para falar e defendeu a minha liberação pelo prazo de dez dias, se eu me
comprometesse a me internar em uma clínica de tratamento de
recuperação e reabilitação para o convívio social.
A juíza pensou e pensou um pouquinho mais, antes de dizer:
— Decido. O senhor está liberado, mas pelo tempo de dez
dias eu quero você internado, ou te mando para a FEBEM.
Rapidamente eu me comprometi com esse arranjo, e assinei
os papéis.
— Você está liberado, e podem retirar as algemas do jovem.
Os policiais retiraram as algemas, todos se mordendo de raiva, pois contavam com que eu fosse condenado. Em um piscar de
olhos eles sumiram tão rápido quanto a água que escorre pelo
ralo.
Agradeci a juíza pela oportunidade, retirei-me da sala e abracei meu pai e minha mãe, que estavam felizes com a decisão. Agradeci ao Dr. Ronaldo.
Eu recebera uma nova chance, mas agora tínhamos o compromisso de encontrar uma clínica no prazo de dez dias.
*
O Dr. Ronaldo disse que em Bauru havia uma clínica excelente, chamada Gilgal. Alguém a tinha recomendado a ele.
— Mas lá não pode fumar cigarro — foi a ressalva que fez.
Concordei e disse que sim, que iria para Gilgal, sob qualquer regra ou condição.
No outro dia, já estava tudo combinado para me levarem
até essa clínica. Os cem quilômetros que nos separavam de Bauru
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foram percorridos em uma hora. Chegando lá, simpatizei com a
entrada da instituição, que é muito bonita. Entramos e fomos falar com o coordenador, o Sr. Augustinho. Só de me lembrar dele
agora, enquanto escrevo, sinto saudades do bom velhinho.
Fui feliz na Gilgal.
Pelo tempo que durou.
*
A princípio, achei o Sr. Augusto um pouco chato, mas hoje
percebo que na verdade ele era muito correto e estrito em tudo.
As instalações da clínica eram bonitas e limpas, diferentes das outras
pelas quais eu havia passado, com tudo bem organizado e com os
internos sendo tratados com muito respeito. Não éramos obrigados a nada — exceto comparecer aos cultos, pois se trata de uma
instituição evangélica.
Até mesmo os internos tinham boa aparência, e pareciam
bem tratados, bem alimentados.
Quando cheguei, fui bem recebido, com todos desejando o
meu sucesso.
— Seja bem-vindo em nome de Jesus! — gritaram em uníssono, funcionários e internos.
Nessa clínica, apesar da boa recepção, eu a princípio me sentia
solitário. Mas aos poucos fui me conscientizando das palavras que
vinham dos internos que lá estavam há mais tempo. Eles me estimulavam a perseverar, reafirmando sempre que, com esforço, eu
realizaria a minha recuperação. E eu podia ver, na pessoa de cada
um desses internos, que de fato o sucesso era uma realidade quase
palpável.
Havia muitas atividades. Uma das que eu mais gostava era a
prática do futebol. Pelo menos duas vezes por semana os internos
iam a um quartel da Polícia Rodoviária, onde ficava o campinho
que usávamos. Em termos de terapia ocupacional, tínhamos um
curso de corte e costura, por meio do qual aprendíamos a fazer
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coleiras para cães e outras coisas. A clínica proporcionava também a prática de musculação e aulas de computação e de música.
Aprendi lá a tocar violão e guitarra.
Acordávamos todos os dias às 7:30h., depois de uma boa
noite de sono, em um colchão superconfortável. Os chuveiros
eram de água quente, e o banheiro todo azulejado e limpo. Cada
um tinha direito a cinco minutos de banho, contado no relógio.
Às oito tínhamos o café-da-manhã com pão com manteiga, leite e
leite achocolatado, em jarras separadas. Dali, íamos para a capela
— todos os dias. Após o culto o horário era livre, até a hora do
almoço. À tarde tínhamos estudo bíblico, com o Sr. Augustinho e
a psicóloga Cíntia. Esse estudo não era obrigatório, mas todos
compareciam. Depois aconteciam as outras atividades.
Éramos obrigados, também, a freqüentar a igreja fora da
clínica — no “mundão”, como chamávamos. Duas vezes por semana.
Meus pais estavam pagando R$ 400,00 — com a ajuda do
meu tio João Beleza — por tudo isso. Mais tarde o diretor, Sr.
Augustinho, fez um abatimento.
*
Comecei a sentir uma transformação interior. Os cultos,
conduzidos pelo pastor Cássio, começaram a plantar em mim a
Palavra de Deus. Também a atitude dos obreiros — que é como
os funcionários preferiam ser chamados — denotavam carinho e
interesse por cada uma das pessoas que, pelo encontro desastrado
com as drogas, precisara recorrer à Gilgal. Faziam com que nos
sentíssemos amados e valorizados. Com os seus conselhos, comecei a reconhecer outros horizontes em minha vida. Tanto que procurava a conversa, o aconselhamento. Por fim, foi crucial o retorno que eu tinha dos meus pais, que sempre investiram em mim,
durante todos os momentos em que estive em dificuldade. Eles,
também, passaram por um tratamento na clínica — a mesma psicóloga que me acompanhava dava orientações a eles, sobre como
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me tratar, me incentivar e reagir diante das coisas que eu fazia e
dizia. Era um novo tratamento, baseado no diálogo, e das oito
horas de visitação, quando parentes e amigos podiam nos ver, duas
horas eram dedicadas a conversas com a psicóloga Cíntia — às
vezes também com a presença de Agostinho. Os pais aprendiam
como lidar com os filhos, tanto dentro, quanto fora da clínica.
Senti que dona Izilda e o seu Francisco começaram a me
entender melhor. Eles não adotavam mais aquela atitude paternalista. Ao mesmo tempo, passaram a demonstrar mais confiança no seu desastrado filho. Isso foi muito importante para mim
— foi como se tirassem um peso dos meus ombros.
De minha parte, passei a ser mais sincero com eles.
Tudo isso porque a clínica oferecia um espaço humano que
realmente tratava a mim e aos outros como seres humanos — tão
diferente das outras clínicas — e da prisão e das primeiras unidades da FEBEM por que eu passaria! Hoje percebo que o ambiente pode ajudar a tirar o melhor de nós, se for um bom ambiente
como a Gilgal foi para mim; ou o pior, se for um ambiente como
a cadeia ou as unidades de primeiro atendimento da FEBEM.
O meu melhor amigo nessa clínica chamava-se Éden, um
rapaz bem magro, que estava lá por envolvimento com entorpecentes; era oriundo da UAI do Brás. Coincidentemente, éramos
de cidades vizinhas, eu de Borborema, ele de Itápolis. Inclusive,
ele havia passado pela mesma cela que eu, em outra época. Contudo, em minhas andanças pelo mundo do vício, na região, eu
nunca tinha ouvido falar dele. Tínhamos algo em comum, na região em que vivíamos. Além disso, gostávamos os dois de jogar
futebol, de ouvir música sertaneja, e aprendemos na Gilgal a receber a Palavra de Deus com mais interesse. Juntos nas aulas de música,
acabamos juntos no “conjunto musical” da clínica — eu na guitarra
e o Éden no teclado, com mais um na bateria; formamos uma banda
de louvor, sob os auspícios do professor de música.
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O baterista se chamava Rodrigo “Kulilim”, e com ele eu também construí uma amizade. Ele havia passado nove meses na
FEBEM do Tatuapé, onde fora internado aos quatorze anos. Um
rapaz muito carinhoso e compreensivo, mas um pouco tímido,
que estava lá em parte porque lá fora, no “mundão”, ele não tinha
nada. Sua família passava necessidade (sendo às vezes auxiliada
materialmente pela própria Gilgal), e sair da clínica significaria
simplesmente estar na rua. Ele chegou a sair uma vez, mas depois
de passar quinze dias fora da clínica, pediu para voltar.
Após quatro meses de internação, fomos promovidos a “auxiliares de obreiro” — uma espécie de monitor que controla o
ambiente na clínica, disciplina as faltas, inclusive dando aos faltosos
o Salmo 119 para copiar; ele todinho, com os seus 176 versículos.
E três vezes. Mas dependendo do tamanho da encrenca.
Conheci lá um rapaz chamado Ismael, que havia escapado
de uma overdose de crack — que ele consumia desde os nove
anos de idade—, e também passado um tempo em um hospital,
sendo tratado com remédios. Além desse vício, ele bebia muita
cachaça. Tinha seqüelas da overdose nos nervos da face, e conseguia flexionar uma das orelhas, como a gente dobra um dedo.
Chegou à Gilgal com quatorze anos e, enquanto esteve na clínica,
até que se deu bem. Mas quando se sentiu mais restabelecido fisicamente e após ser liberado da clínica, acabou voltando ao vício e
retornou à Gilgal para mais uma temporada. Nesta segunda
internação, ficou cinco meses entre nós e depois simplesmente
desapareceu.
Enquanto eu já começava a rascunhar este livro há umas
três semanas, vi o Ismael na rodoviária de São José do Rio Preto.
Estava jogado na rua, um cobertor imundo cobrindo os seus membros...
*
Deixei a clínica pouco antes de completar nove meses de
internação. Tanto o coordenador da Gilgal, o Sr. Augustinho,
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quanto a psicóloga Cíntia, me deram “alta”. A despedida foi
comovente para mim e para outros também. Qualquer um que
ficasse lá por uns seis meses e depois saísse, deixava saudades. A
convivência mútua inspirava carinho e interesse pessoal um pelo
outro. O Kulilim chegou a me abraçar, com lágrimas nos olhos.
Pedir para que eu ficasse... Eu era o seu amigo mais próximo, na
clínica. A saída sempre traz sentimentos conflitantes — se por um
lado havia uma perda, pela convivência que não aconteceria mais,
por outro havia o sentimento de sucesso e de retorno à família.
Ao sair, eu me considerava uma pessoa diferente. Livre dos
vícios, sentia-me mais leve. Por outro lado, a nova convicção religiosa parecia me ancorar mais firmemente na realidade, me comunicando uma forte sensação de segurança e de confiança.
Em casa, fui bem recebido por todos os meus familiares. Fiquei quase um mês freqüentando a igreja, mantendo os novos
hábitos. Um dia faltei, por estar meio doente e indisposto, mas
algo me dizia para ir...
Não sei o que poderia ser diferente, mas o fato é que, dois
dias mais tarde, minha vida tornou a virar do avesso.
*
No dia 7 de novembro de 2000, eu estava perto do Colégio
D. Gastão, quando dois policiais me deram uma “geral”. Foram
bastante agressivos, torcendo o meu braço nas costas. Um deles
colocou uma pistola contra as minhas costelas e me passou uma
rasteira. Caído no chão, fui rapidamente revistado. Nenhum deles me disse nada, e me dispensaram enquanto eu ainda estava no
chão.
Não entendi nada e achei que tinha sido apenas uma provocação. Conhecia os dois, e sabia da opinião negativa que tinham
de mim; por isso apenas me senti aliviado, quando me deixaram
em paz.
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Mais tarde me encontrei com minha namorada de então,
Letícia. Ela entrou na escola para assistir aula. Também entrei e
de longe vi a inspetora conhecida como Preta, com a sua figura
robusta e simpática. Ela sempre me tratava bem, me chamava de
“filho”; então fui até ela bater um papo.
Deixei a escola e caminhei até o outro lado da escola. Fui até
um ponto, do outro lado da entrada, em que podia ver o movimento dos alunos lá dentro. Fiquei ali um pouco, depois fui para
a Praça da Matriz, comer alguma coisa. Enquanto caminhava,
cruzei com o Bigode, que vinha no sentido oposto. Ele me cumprimentou e eu retribuí.
— Como é que foi lá? — ele perguntou, querendo dizer “lá
na clínica”.
— Legal. Nossa, eu tô legal — eu disse, sem estender a conversa. — Mas agora eu tô saindo, falou?
Na verdade, não queria nada com as antigas companhias.
Como a gente diz na igreja, eu não queria “sair da bênção”.
Então peguei o caminho de casa.
Mas percebi, perto da escola, um corre-corre. Acontecia
perto de uma bomboniere que ficava nas proximidades. Preferi
evitar essa movimentação, indo para casa. No caminho, liguei para
a minha mãe, dizendo que ia para casa e contando que alguém
havia praticado um assalto.
— Mãe — eu disse —, roubaram a bomboniere. Eu ‘tou
aqui no Gigantão Lanches, comprei um lanche e tô indo embora
pra casa.
— Vem logo — ela disse, pressentindo que algo poderia acontecer.
Mas quando cheguei na frente da minha casa, lá estavam —
uma viatura da polícia e o Golf vermelho do delegado.
Eu não fazia idéia de que, já nesse momento, o Bigode havia
me apontado como um dos participantes no assalto, em que uma
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criança pequena fora ameaçada de morte, para que sua mãe abrisse
o caixa da bomboniere.
Ao ver os dois carros, passei direto pelo quarteirão da minha
casa. Fui para um posto de gasolina, de um conhecido, Antonio
Carlos. Dali liguei para casa. Ao telefone, minha mãe gaguejava,
se recuperando do susto que o delegado havia dado nela. Contou
que eu era suspeito do assalto e que alguém havia me apontado
como tendo estado nas suas proximidades.
— Mãe, o que é que ‘tá acontecendo aí? — perguntei.
Cheguei a pensar que fosse alguma outra coisa qualquer, e
não o assalto cuja movimentação eu havia testemunhado.
— Eu sei que não foi você — foi a primeira coisa que ela
disse. — Liguei na lanchonete e confirmei o tempo que você ficou lá. Eu sei que você ‘tava lá, no horário que o delegado contou
que foi o assalto.
— Mas mãe, eles ainda ‘tão aí?
— Não, eles já foram embora. Só vieram perguntar de você
e disseram que quando você chegar é pra comparecer na delegacia. Espera um pouco que o pai vai te buscar.
— Não. Eu tô aqui no BR e já tô indo.
Em casa, dona Izilda me perguntou o que eu tinha visto do
assalto. Ela ainda parecia um pouco nervosa, mas aliviada de eu
estar de volta. Me lembrou que eu deveria ir à delegacia, mas eu
declinei. Se eles já tinham passado em casa, era certo de que queriam me prender, e eu não seria voluntário para ir para a cadeia.
Só fui preso uma semana depois.
Vieram em casa com um mandado de busca e apreensão
para apuração de ato infracional, expedido pelo promotor. Foi
uma terça-feira, 14 de novembro, às sete horas da manhã. Me
acordaram.
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Abri a janela do meu quarto e vi um policial civil, de pistola
automática na mão, em pé diante da casa da vizinha. Deixei a
janela aberta e fui para a porta. Vi na sala a Lucilene, oficial de
justiça, que veio trazer ciência do mandado. Fiquei sem ação.
Meu pai se levantou e pediu que chamasse o nosso advogado. Eu mesmo não soube o que dizer. Não ofereci resistência.
Troquei de roupa, apanhei alguns pertences e me entreguei aos
policiais, depois me despedi de dona Izilda e do seu Francisco.
Eles sabiam que eu nada tinha a ver com o assalto e confiavam
que seria inocentado mais tarde. De minha parte, me sentia vazio,
em choque.
Fui levado à delegacia, onde aprontaram a papelada para
que eu fosse para a cadeia de Itápolis. Mas primeiro fiz o exame
de corpo de delito, em um hospital. No caminho, vi que o mesmo
grupo que havia me apanhado em casa estava diante da casa do
Rodriguinho. Mais tarde eu viria a saber que, ele sim, fora um
integrante do assalto.
O outro integrante foi o Bigode. Nunca soube quais foram
as suas razões para me incriminar. Ele fez um acordo com a polícia, para ter algum relaxamento na prisão? Foi por inveja da recuperação que eu vinha demonstrando? Por algum agravo que ele
sentiu, daquela vez que fora preso comigo, pelo Artigo 12 — que
eu segurei?... Sei apenas que ele não ficou preso comigo.
E que eu estava preso por causa dele.
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Capítulo VI: Vai morrer!
Depois dessa prisão, compareci diante de um juiz, que constatou que a minha internação na última clínica havia sido um
acordo apenas verbal com a juíza substituta. Isso complicou um
pouco a minha situação perante a lei, mas de qualquer modo meus
pais e o Dr. Ronaldo conseguiram que eu fosse novamente para a
Gilgal.
Só que agora eu não me sentia bem. Estava revoltado por
causa da prisão injusta. Na minha mente, não me cabia pagar essa
dívida. Então fugi.
Fui preso mais uma vez, por causa de um mandado de busca e apreensão, devido à fuga da clínica.
Quando cheguei à Cadeia Pública de Itápolis, vi que iria
começar uma longa e dura caminhada dentro do sistema. Já sabia
que aguardaria pelo menos uns dois meses na cadeia, e que depois seria transferido para alguma unidade da FEBEM.
Dei entrada na cadeia, suja como sempre. Passei pela revista
de rotina e fui metido direto na cela chamada de “corro”, que é
onde ficam os menores. Já havia um “alemão” morando ali, de
nome Alessandro. Fiz amizade com ele, que me contou estar preso por Tentativa de Homicídio (Artigo 129).
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Apenas uma semana mais tarde chegaram mais dois menores, prontos para serem encarcerados. Eu só ouvia a conversa
distorcida e um zunzum pelo corredor, mas quando os dois se
aproximaram das grades da cela, pude reconhecê-los — eram o
Tico e seu irmão Paulo. Os dois haviam acabados de ser pegos
com um tijolo de 135 gramas de maconha e estavam sendo enquadrados em Tráfico de Entorpecentes (artigo 12). Ao entrarem
na cela, eles me contaram o que havia acontecido, e já ficaram à
vontade, pois o Alessandro era gente boa e não os incomodou
com nada.
Foram passando os dias e fomos ficando cada vez mais “coletivos” (íntimos) dentro do xadrez. Agora estávamos morando em
quatro pessoas na cela. Jogávamos baralho e conversávamos bastante, e o mais importante ali era que nós quatro éramos todos
bem aceitos pelos demais na cadeia.
Mas Alessandro foi logo transferido e nós que sobramos ficamos na expectativa de uma transferência, porque a Cadeia Pública de Itápolis é ruim demais. Lá não existem Direitos Humanos. Mas não foi dessa vez que recebemos a transferência.
Permanecemos aguardando a próxima oportunidade, pensando qual de nós seria, até que chegou uma novidade na cadeia
— um novo prisioneiro, relacionado a um caso que havia chamado a atenção de todos.
Lá dentro nós ouvíamos rádio FM. Apareceu no noticiário
que a polícia estava à procura de uma quadrilha que havia estuprado uma moça na frente do namorado e roubado um toca-fitas
de um Santana Quantum, na estrada que vai para o Malosso, um
campo de futebol.
Uma gritaria vinda da frente da cadeia chamou a nossa atenção e também a dos outros presos. Alguns presos gritavam de dentro de suas celas, exigindo que os novatos se identificarem, mas
nenhum deles falava nada, como se estivessem tentando se proteger de uma possível represália.
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Não demorou muito e o carcereiro veio dizer que acabaram
de prender a quadrilha de estupradores, aquela que tinha aparecido no rádio. Automaticamente espalhou-se essa conversa pela
cadeia toda, criando assim um barulho infernal. Muitos presos
começaram a gritar, xingar, ameaçar e pedir para que viessem logo
para dentro.
O barulho continuou por umas duas horas, até que os novos prisioneiros fossem definitivamente colocados para dentro.
Eram quatro pessoas e entre eles estava um menor, por nome
de Zequias. Os seus comparsas eram maiores de idade: Fábio Cola,
Zé Galinha e Joãozinho.
Todos estavam sendo presos por serem os autores dos crimes
de formação de quadrilha (Artigo 288 do Código Penal), assalto
(Artigo 157), extorsão mediante seqüestro (Artigo 159) e estupro
(Artigo 213 do Código Penal). Segundo o que ficou claro, eles
haviam abordado um casal que estava transando dentro de um
Santana Quantum no acostamento da pista. Abordaram, renderam o casal e começaram a vasculhar seus pertences e o veículo,
atrás de valores; não encontraram nada ou não se contentaram
com o que acharam, e então colocaram os dois no porta-malas do
carro. Dois dos elementos passaram para o Santana, ficando mais
dois no Corcel em que eles haviam chegado. Os que permaneceram no Corcel não tiveram participação direta no estupro, mas os
dois que assumiram a direção do Santana friamente estupraram a
moça, e fizeram o noivo dela presenciar toda a cena, mediante a
ameaça de um revólver calibre 38, que Zequias segurava apontado para sua cabeça. O noivo não agüentou e perdeu seus sentidos, podendo apenas presenciar o momento em que Zé Galinha
praticava o estupro. Mas soube-se mais tarde que Zequias também o praticou, depois de encontrar mais um preservativo, que
ele utilizou, da mesma forma que Zé Galinha. Os ocupantes do
Corcel, Fábio Cola e Joãozinho já haviam se separado, mas consentiram com o que seus parceiros viriam a praticar, tendo inclusive fornecido a arma.
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O Fábio Cola e o Zé Galinha foram colocados em uma cela
exclusiva para eles, chamada de “seguro”, onde a pessoa fica por
não ser aceita pelos presos. É o modo de garantir a sua integridade física, no ambiente violento da cadeia.
No xadrez 2 foi colocado o Joãozinho, e para a nossa cela
veio o Zequias, menor de idade. Logo que entrou todos nós nos
levantamos e fomos em direção a ele, perguntar o porquê dele
estar preso.
Quando ele deu a resposta, dizendo que era seqüestrador e
que não tinha nada a ver com o ocorrido, eu o Tico e o Paulo
olhamos um para o outro e saltamos sobre ele, agredindo-o com
socos e chutes, até que ele desmaiou. Paramos de agredi-lo e fomos conversar.
Enquanto isso o Joãozinho, que tinha ido para o xadrez 2,
também já estava sofrendo as conseqüências, sendo punido pela
lei da cadeia. Sofreu como todo estuprador sofre.
Pedimos para a carceragem retirar o estuprador da nossa
cela, mas eles não davam ouvidos, mesmo com outros presos torcendo descaradamente para que Zequias e o outro morressem,
para que alguém assumisse a tarefa de assassiná-los, pois na lei da
cadeia deveria ser essa a sua pena. Por sua vez, o Fábio Cola e o Zé
Galinha permaneciam só os dois no xadrez 8, o seguro — mas
sempre sendo atormentados com xingos e gritos ameaçadores.
— Vai morrerrrrrrr. Vai morrerrrrrrrrr…
No interior da nossa cela, Zequias recuperou os sentidos e nós
começamos a fazer uma espécie de tortura psicológica nele, até que
ele veio a confessar que realmente participou do estupro. E ainda
contou detalhes — foi aí que perdemos a cabeça, ouvindo tanta barbaridade da própria boca de um dos autores da violência, e acabamos desferindo mais socos. Na hora eu estava enraivecido com tudo,
além de revoltado por causa da minha situação.
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Ele, ao receber os golpes, caiu lentamente como que estivesse com falta de ar e ficou encostado às grades. Nós nos afastamos
e o deixamos ali agonizando.
Dois dos carcereiros passaram pela cela, vinte minutos depois. Viram Zequias desacordado, e um deles disse, com a maior
frieza:
— Já morreu?
Ninguém da cela quis responder. Então lentamente os dois
carcereiros do plantão do dia se retiraram. Logo em seguida
retornaram com uma escolta de, no mínimo, uns dez homens da
polícia civil, que invadiram a cela, encurralando-nos como ratos
nos cantos. Pegaram o Zequias e o levaram para o pronto-socorro.
Lá ele chegou bem, seus ferimentos não eram graves e depois de uns cinco dias melhorou e teve alta. A carceragem, maliciosamente querendo ver um fim na desgraça, colocou-o novamente
em nossa cela.
Alegavam não ter cela especial para Zequias. Nem revistaram a cela antes, para ver se havia facas escondidas — na verdade
havia e eles sabiam disso, mas foi justamente por essa razão que o
colocaram de novo lá.
O Tico ficou louco da vida. Não queria morar com um tipo
desse, mas veja bem: qualquer atitude em benefício do estuprador
pode fazer com que a população da cadeia se vire contra quem
defender o estuprador em qualquer situação. Éramos obrigados,
de certa forma, a satisfazer a perversa disposição dos outros prisioneiros, de torturar o estuprador. Mesmo de fora de nossa cela
vinham “pedidos” para que o obrigássemos a dançar nu nas janelas de nossa cela, enquanto os outros gritavam insultos e ameaças
contra ele.
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Frustrado com tudo isso e com o descaramento dos carcereiros, de o colocarem de novo junto com a gente, Tico começou a
atirar mais uma série de socos contra Zequias.
Após ele ter apanhado várias vezes, Tico e eu decidimos fazer uma brincadeira para ver se ele entrava em pânico.
Nós o levamos até o “boi” (banheiro) e dissemos que ele estava sofrendo muito e que continuaria sofrendo enquanto estivesse preso pelo fato de ter cometido um estupro.
Então declaramos que acabaríamos com o seu sofrimento
naquele mesmo dia. Logo de cara ele entendeu que estávamos
falando da sua própria execução. A partir daí mandamos que ficasse calado, e ele com os olhos carregados de lágrimas ficou observando o que iríamos fazer.
Pegamos um enorme lençol e fomos em direção a ele. Mal
nos aproximamos e ele começou a implorar:
— Pelo amor de Deus não me matem, eu faço tudo que
vocês quiserem, mas me deixem viver, por favor.
Em minha mente eu não tinha planos de assassiná-lo; apenas daríamos um susto nele.
Passamos o lençol em seu pescoço, mas dei um nó falso para
que, quando puxássemos o lençol, eu de um lado e o Tico do
outro, o nó desataria; mas ele não viu a forma que dei o laço.
Começou a entrar em pânico, chorava implorando, invocava a mãe, que sofreria muito. Foi assim por uns cinco minutos.
Comecei a sentir dó dele e decidi acabar com a brincadeira,
e disse ao Tico que agora seria a hora, e disse “puxa”, gritei.
Ele puxou de um lado e eu do outro. O nó se desfez. Zequias
quedou pálido e com as pernas moles.
*
Hoje eu me pergunto o que o martírio do Zequias me trouxe. A tortura desse rapaz, na cela, com o consentimento dos car-
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cereiros, exigida pelos outros prisioneiros, eliminou a dor da jovem estuprada, apagou a violência de sua memória? Com certeza
ela nem soube. Era tudo um jogo particular, encerrado entre quatro
paredes, desfrutado por aqueles que estavam entre as muralhas
da prisão, dentro de uma noção de falsa justiça, que servia apenas
para dar vazão às frustrações e ao sadismo de presos e carcereiros.
Hoje sei que o Estado, através das leis que são aprovadas
pelos representantes da sociedade, é que se reserva o direito da
punição. Qualquer castigo violento exercido fora dos olhos da lei
é um crime. Mas ali, no cárcere, os únicos agentes do Estado presentes eram os agentes prisionais. Nem por isso eles deixaram de
incentivar a tortura, de modo quieto, mas tão insistente quanto os
apelos cruéis dos outros presos.
Eu me pergunto se ter judiado do Zequias tornou-me uma
pessoa melhor. Do mesmo modo, a mesquinhez perversa dos carcereiros, colocando-o de volta em nossa cela depois da primeira
agressão, tornou-os pessoas melhores, que realizaram algo pela
sociedade?
Os policiais que me espancaram a coronhadas, na minha
primeira prisão, se tornaram pessoas melhores por terem exercido essa violência? E aqueles que me colocaram no pau-de-arara
ou que me bateram, apenas para me “ensinar a ser um bom preso” — são eles pessoas melhores? Os funcionários da FEBEM,
sempre com pedaços de pau nas mãos e o desejo aberto de usá-los
contra os internos, são eles melhores, mais humanos? O que os
torna diferentes do patrão da droga, que manda quebrar as pernas do viciado que deve a ele?
Você convidaria cada um deles, cada um de nós envolvidos
nesse círculo de violência, para assistir a um jogo de futebol em
sua casa, ou para sermos padrinhos dos seus filhos?
Talvez aqueles que realizam atos violentos supostamente em
nome de um código não escrito de vingança, em nome da socie-
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dade, sejam tão desprezados quanto aqueles que sofrem essa violência. Ou tão maculados quanto os que a desejam.
Talvez estejamos todos de mãos dadas, girando em uma ciranda sem sentido que não elimina dor alguma, não traz justiça
alguma ao mundo, mas apenas reafirma e propaga essa mesma
violência, mantendo a sua lembrança e a sua prática vivas e lançando-as para o futuro, para que você e eu, para que os meus
filhos e os nossos filhos possam vir a sofrer com ela, amanhã.
Alguém tem que romper essa ciranda.
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SEGUNDA PARTE
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EM BRANCO
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Capítulo VII: O Código Penal Não-Escrito.
Permaneci com o Zequias e os outros durante quinze dias, e
fui transferido para a unidade da FEBEM do Brás. Como o destino do estuprador era a FEBEM, eu já sabia que a encrenca que
ele representava não terminaria por ali, e que provavelmente tornaria a me encontrar com ele.
A FEBEM do Brás...
Lugar de desespero, de aflição, de torturas físicas que pude
presenciar, algumas que eu senti, a outras assisti, num ambiente
de medo, onde os rostos fechados dos funcionários refletiam-se
nos dos internos sentados no chão. Lugar que comportava um
número elevado de internos que tinham todos como única saída
o apego e dedicação dos seus familiares. A visita porém era apenas
de cinco a dez minutos, por falta de espaço. Também argumentavam que, por não haver espaço, não havia lugar para guardar
nossas cartas e éramos obrigados a destruir a única coisa que havia
ali de pessoal para nós.
Durante vinte e oito dias vivi o verdadeiro inferno da UAI
do Brás, com uma tentativa de rebelião frustrada, e menores apanhando de pauladas por qualquer coisa… A falta de higiene causava coceiras e sarnas, menores se recuperavam de ferimento a
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bala entre nós, alguns com pinos de metal pelos braços, pernas…
Enfim, sem quaisquer condições dignas e humanas. Na UAI todo
o controle sobre os internos se dava na base da paulada. Não culpo apenas os funcionários, pois o nosso governo não dava condições humanas para que trabalhassem com segurança e com boa
remuneração. Assim, acabavam passando todo o estresse para o
menor internado. Por outro lado, sem dúvida havia o funcionário
que só gostava de dar pancada, que tinha prazer em ferir o outro
indefeso.
Enfim, se eu generalizasse sobre os funcionários serem todos
ruins, estaria cometendo um erro. Conheci pessoas boas e profissionais da melhor qualidade. Há aquele que se comunica só na
pancada, há aquele que já não fala nada e há aquele que é um
profissional imparcial e justo. Desse último tipo conheci apenas
uma dúzia, em todas as unidades por que passei, nenhum deles
na UAI.
Após vinte e oito dias, chegou mais uma transferência. Sofri
momentos de tensão impostos pelo funcionário a todos nós, ao ler
o nome dos que seriam transferidos. Os nomes anunciados responderiam “presente, senhor”, bem alto.
Meu nome foi chamado. Fui para uma fila, com as mãos
para trás e a cabeça baixa, como de costume.
Peguei meus pertences que tinham sido recolhidos quando
cheguei, e fui levado, juntamente com os outros, de um prédio a
outro. Nisso, já me vi na UAP 6 — Unidade de Atendimento
Provisório 6 —, que fica no pavilhão do prédio ao lado da UAI.
Agradeci a Deus por estar saindo daquele lugar, mas esperava
que estivesse indo para um local melhor. Na verdade, foi apenas
um pouco melhor.
Recolheram nossos papéis de entrada e nos levaram para a
sala de TV, que era enorme. Um funcionário começou a falar
conosco, para explicar as regras da casa, que ali não eram muito
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diferentes das UAI, mas que só dependeria de nós passar nossos
dias ali numa boa.
Ali também era mão para trás, sim senhor e não senhor, e
andar em fila.
— Mas vocês podem erguer a cabeça — ele prosseguiu, —
Troca de roupa é de dois em dois dias, tem uma cama para cada
um, vai ter um banho adequado, mas só vai depender de vocês.
Se quiserem veneno aqui também é veneno, nós podemos tornar
o lugar ruim.
“Vocês terão que estudar, cada um em suas séries, ficarão no
pátio o dia todo, mas é sentado e não circulando, porque o pátio
é pequeno. Pode entrar bolacha, material de papel para fazer artesanato e cigarro, mas de acordo com o comportamento do dia
vocês fumam, caso contrário não fumam.”
O fumar e o não fumar se resumiam a um isqueiro que não
se fazia presente em nossas mãos, mas sim nas mãos dos funcionários.
Me trataram bem quando cheguei, mas continuei na minha.
Conforme foram correndo os dias, fui conhecendo melhor
o lugar e o tratamento dos funcionários; encontrei também ali na
UAP 6 o Alessandro, que ficou preso comigo na cadeia de Itápolis,
no interior.
Fazíamos artesanato e faxina, e fumávamos cigarro. Era possível conversar. Era um pouco melhor que a UAI, mas se pisássemos na bola, levávamos paulada também.
Fiz muitas amizades, me adaptei, me conformei melhor com
a situação. Alessandro foi transferido para a UI 19, no Tatuapé, e
eu fiquei apenas com os colegas que havia conhecido ali.
Já ia um mês que eu estava na UAP 6, quando chegaram
mais internos transferidos. Entre eles estavam os irmãos Tico e
Paulo, a quem passei um pouco das coordenadas de como funcio115
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nava tudo por ali, para não acontecer com eles nada de inesperado.
E eles vieram com uma notícia ruim, dizendo que, assim que
saí, o Tico acabou dando umas cinco facadas no Zequias, que foi
parar no hospital. Um boletim de ocorrência foi aberto e o meu
nome estava envolvido. Disse que Zequias não morreu e que estava na UAI, e que a qualquer momento seria transferido.
Fiquei pensativo, após ter recebido a notícia, e fiquei na expectativa de encontrá-lo, o que não demorou muito.
*
Alguns dias depois, quando Zequias chegou à unidade eu
logo o vi e fiquei ansioso para poder falar com ele — para ver
como estava fisicamente e saber dele alguma coisa a respeito do
Boletim de Ocorrência que, eu já sabia, tinha sido aberto depois
da minha transferência. Mas quando ele me viu, não quis se misturar e pediu para um funcionário destacá-lo e deixá-lo ficar próximo do funça.
Quando explicou as suas razões, automaticamente o funcionário se levantou e solicitou o meu nome, o do Tico e do Paulo.
Respondemos e ele nos disse para acompanhá-lo. Fomos levados
para uma sala da coordenadoria. Logo chegaram mais uns cinco
funcionários. Começaram a perguntar o que aconteceu entre nós
e Zequias e, mal começamos a explicar, foram nos cobrindo de
pancadas — todos os funcionários bateram na gente até que ficássemos os três caídos, gemendo e sussurrando de dor.
— Aqui quem manda é a gente, e não vai ter nenhum enrosco entre vocês e o outro que acabou de chegar! — gritaram.
Mandaram a gente ir tomar banho, para aliviar as marcas
do corpo, mas não conseguíamos andar de tanta dor. Fomos nos
arrastando como aleijados pelo chão. Chegamos no banheiro e
fomos trancados lá. Ficamos mais ou menos uma hora debaixo do
chuveiro, porém sentados no chão.
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Quando abriram a porta do banheiro, já conseguíamos levantar, ainda com muitas dores. Fomos para os dormitórios, e lá
colocaram a gente para deitar. Na cama ficamos três dias, porque
não conseguíamos andar de tanta dor.
Ao voltarmos para o pátio e o pessoal nos viu, vieram perguntar o que havia acontecido e se estávamos bem.
Contamos o que aconteceu e permanecemos ali sentados no
pátio. Veja que não é possível ficar calado, deixar de passar as informações que são exigidas pelos outros internos. O que eles procuram especialmente são contradições na sua história — afinal,
na FEBEM o sujeito não entra com um B.O. Então, depois que
fomos questionados, logo todos começaram a observar uma oportunidade de pegar o Zequias sozinho, e assim darem o troco. Não
demorou a acontecer — quando viram que não havia funcionário por perto e Zequias estava sozinho no banho, decidiram agredi-lo.
Estavam mais ou menos uns trinta menores debaixo dos chuveiros, e desses trinta, uns dez bateram no Zequias — no que
chamam de “trem-bala”. Zequias começou a gritar. Isso chamou
a atenção dos funcionários, que correram para o banheiro e o
encontraram com o rosto sangrando e o levaram para a enfermaria. Foi constatado que ele havia perdido dois dentes e tivera sete
dedos quebrados.
Já de imediato o funcionário pediu para reunir todo o pessoal, mas ninguém se apresentou. O funcionário disse:
— Ah, é estuprador mesmo.
E deixou o caso pra lá. Mas eles sabiam que o que ocorreu
foi devido à surra que levamos. Então, eu penso, e quanto à surra
que eu e os outros havíamos levado? Serviu para quê? Apenas para
os funças manterem a imagem da UAP-6 como uma “unidade
veneno”, como costumavam chamar?
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Unidade veneno quer dizer um lugar duro, severo, violento
e rígido como na época da ditadura militar. Parte da estrutura da
FEBEM deve muito àquele período autoritário, repressivo, de
“exceção” aos direitos individuais. Em unidades como esta, a pancada é uma ferramenta de trabalho, usada e abusada constantemente.
Na UAP, eu ainda não havia recebido qualquer visita de meus
pais, mas eles me mandavam guloseimas e cigarros por Sedex, até
que chegou o dia de eu receber minha primeira visita. Minha
mãe veio me ver.
Fui levado para a parte térrea do prédio e lá encontrei dona
Izilda, me esperando para me abraçar e ver como eu estava. Nós
nos abraçamos e choramos de emoção. Não preciso dizer quanta
saudade sentia dela e de meu pai, que estava mal de reumatismo e
diabetes, nessa época.
A primeira notícia que ela me trouxe foi a de que meu irmão
tinha ganho a liberdade. Ele fora preso logo após a minha prisão
— e chegamos a nos encontrar na cadeia lá no interior. Isso foi
uns dez dias após eu ter sido encarcerado. Ele fora pêgo em flagrante, por tráfico de entorpecentes. Foi uma experiência estranha. Ele foi preso perto das nove da noite. Naquele dia eu estava
dormindo, com muita dor de cabeça, e fui despertado às três da
manhã pelo ruído de grades sendo abertas e fechadas. Curioso,
subi na ventana e tentei enxergar o que estava acontecendo nos
outros xadrezes. Vi alguma agitação no X-7, onde havia um televisor ligado; contra a luz do monitor, eu podia ver pessoas andando na cela — uma das dez daquela cadeia. Acredite ou não, mas
reconheci Nenrod por sua nuca. Comecei a gritar, de puro desespero.
— Nenrod! Nenrod!
E o vi olhar para trás, assustado, à minha procura. Ele se
aproximou da grade, e eu disse:
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— O que aconteceu?
Ele fez sinal com os dedos. Primeiro um indicador para cima,
depois dois dedos em “V”: 12. Uma prisão por Artigo 12.
Só pude conversar com ele porque eu era bem visto na cadeia e sabia que no dia seguinte não teria de dar grandes explicações da minha razão de ter acordado todo mundo com a minha
gritaria.
— E agora, o que é que eu vou fazer? E o Lincon, como ele
vai ficar? — Lincon é o nome do filho dele, que então tinha uns
sete anos. — E a minha mulher, e o pai e a mãe, todo mundo vai
ter que vir aqui, visitar a gente?
Como ele ainda não conhecia a “lei” da cadeia, eu disse a
ele, já conformado com a sua presença na prisão:
— Você pega as coordenadas aí, a lei...
— Mas que lei? — ele perguntou.
— A lei daqui de dentro. Aqui a gente tem uma lei. — Quem
vai te passar essa lei é o Roy. ‘Cê pergunta pro Roy. Então me
despedi dele: — Olha, eu vou descer agora, porque ‘tá muito
tarde. Amanhã a gente conversa na hora que você sair pra o banho de sol, no pátio.
— Não, não. ‘Pera aí. Não tem jeito de eu morar aí com
‘ocê?
— Amanhã a gente troca idéia.
O meu medo era de que a nossa conversa irritasse ainda mais
os presos, por isso a brevidade. E podia perceber no tom de voz
dele o quanto ele estava assustado e envergonhado com tudo. Ao
ouvir isso, a minha própria agitação amainou — o mais importante era que ele se integrasse o mais rápido possível ao esquema
da cadeia, para evitar encrenca com os outros. Mas não deixei de
perguntar:
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— ‘Cê tem cigarro aí? ‘Cê tá com fome? Tá precisando de
alguma coisa?
— Só tenho dois ou três. O resto eles quebraram lá na frente...
Isso queria dizer que, na admissão, os carcereiros haviam
partido os seus cigarros, para averiguar se havia algum tipo de
entorpecente dentro deles.
— Eu vou te mandar então — eu disse. — Uns cigarros,
umas bolachas e um miojo pra você comer.
E ele, ingenuamente, perguntou:
— E quem que vai trazer?...
— Chama o Roy — eu disse. — Ô, Roy. Segura que eu vou
lançar a tia.
E joguei o chinelo amarrado num fio de barbante trançado.
Era como jogar de um lado a outro de uma rua.
Naquela noite, não consegui dormir. Fiquei fumando um
cigarro atrás do outro. Comigo, na época, ficava apenas o
Alessandro “Alemão” Ambrósio — que havia despertado antes de
mim para o barulho das grades, e descoberto com o carcereiro
que era o meu irmão que estava chegando. Ele tentou me acalmar, conversando comigo, sobre o futuro das nossas vidas. Eu
sabia que a pena mínima para o 12 era de três anos e quatro meses — a máxima de quinze...
Nós nos separamos quando fui enviado para a FEBEM, passado apenas um mês em que estivemos juntos na Cadeia Pública
de Itápolis. Mais tarde, cerca de dois meses, nosso advogado, o
Dr. Ronaldo, conseguiu que ele respondesse à acusação em liberdade. Afinal, ele tinha bons antecedentes, tinha profissão — era
funcionário público e motorista de caminhão. Nenrod conseguiu
até uma declaração assinada por todos os seus colegas, atestando a
sua boa conduta.
*
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Agora minha mãe vinha me trazer essa notícia, de que
Nenrod iria responder em liberdade. Fiquei muito feliz.
Minha mãe explicou que o seu Francisco estava um pouco
ruim ainda, mas que logo melhoraria. Na verdade, ele estava internado com problemas de saúde, como eu viria a saber mais tarde.
Permaneci uma hora com minha mãe, mostrando os artesanatos que tinha feito para ela — algumas cestinhas, porta-retratos
— e vi no seu rosto o sorriso que ela deu quando a presenteei com
tudo aquilo.
— Eu estou bem aqui, mãe — contei. — Aqui não tem
problema, não. É tudo calmo, tudo tranqüilo. Não tem perigo de
rebelião, nem de ninguém matar ninguém.
Ela, claro, sabia da violência da FEBEM pelos jornais e pela
televisão. Mais ainda pela dona Lourdes, que é a mãe do Rodrigo,
um interno com passagem pela UAP-8.
— ‘Cê não precisa se preocupar, que não vai ver nada na
televisão, sobre esta unidade.
Esgotou-se o tempo. A emoção mais uma vez me pegou,
abracei a dona Izilda e me despedi. Com lágrimas nos olhos, ela
ficou me observando até que eu desaparecesse no final do corredor.
Quando voltei para o meu pavilhão, me senti mais aliviado,
calmo, como se tivesse sido abastecido de emoções renovadas, com
as notícias da família.
Mas no fim e a cabo, recebi apenas essa visita, mesmo porque na semana seguinte surgiria mais uma transferência: agora eu
iria para o IEN — o Internato Encosta Norte. Diziam que lá era
bom e que muitos internos pediam suas transferências para o IEN.
Esse internato era bem falado do lado positivo, os inúmeros cursos profissionalizantes existentes ali.
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Chamaram-me e fui. Apenas eu e mais um recebemos a transferência.
Despedi-me rapidamente do Tico e do Paulo, porque os
transferidos costumam ser chamados sem aviso.
Estávamos no Brás e tínhamos que ir até a Zona Leste de São
Paulo. Fomos colocados em uma perua Toppic, e seguimos rumo
à unidade do IEN.
*
Após uma viagem de uma hora e meia, chegamos. A entrada das instalações era tomada pelo verde, bem conservada pelos
integrantes do curso de jardinagem. Fomos indo e pude notar
que o lugar era bem organizado, a população era bem menor.
Fui levado para a coordenadoria, junto com o outro transferido, para conversarem com a gente. Mas desta vez a conversa foi
bastante diferente daquela das demais unidades. Quem me recebeu no IEN foram o coordenador, Sr. Edivaldo, e o Sr. Balbino.
Disseram que seríamos chamados pelo nosso nome, que todos ali
eram tratados com respeito, mas que deveríamos responder com
respeito também; disse que havia um monte de curso para fazer e
que a iniciativa de escolher os cursos que queríamos fazer seria
nossa.
Fomos revistados, como de costume, para entrar nas alas da
unidade, e fomos levados para conhecer o espaço em que ficaríamos. Jefferson, o outro rapaz transferido, foi para o Módulo 4; eu
fui para o Módulo 2. O Sr. Edivaldo disse que eu iria ficar em
observação por uma semana, para depois participar e ser inserido
em alguma atividade da casa. O mesmo foi dito ao Jefferson.
Entrei no Módulo, cheguei meio esperto e ligeiro, porque o
interno tem que “saber chegar”. Fui entrando com meus poucos
pertences nas mãos. Os outros internos já foram se aproximando
para saberem a meu respeito, o que eu havia feito e em qual artigo estava enquadrado, por qual unidade passei e se tinha algum
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inimigo. Disseram que eu ficasse à vontade. Se quisesse, poderia ir
tomar um banho — me ofereceram sabonete, toalha, roupa, que
poderia usar até chegarem as minhas.
— Depois, quando todos estivermos reunidos — me disseram —, vamos conversar e te passar como funciona o nosso sistema aqui dentro, o Código Penal Não-Escrito.
Pedi licença e me retirei para ir ao BOI. Percebi logo que ali
havia mais higiene do que nos lugares por que passei, retirei minha roupa e fui para a ducha tomar um banho, mas agora eu
poderia ficar embaixo da água o tempo que quisesse. Permaneci
mais de vinte minutos na ducha e depois sai e fui enxugar-me,
vesti as roupas dadas pelos meus novos companheiros de batalha,
uma blusa cedida pela unidade. Em seguida fui comer.
Terminei minha refeição na mesa e fui para um pequeno
pátio dentro do módulo, para fumar um cigarro. Os outros internos estavam quase todos no banheiro aguardando a sua vez.
Quem se aproximou de mim para conversar foi Wellington,
de vulgo “Peruíbe”. Preso e internado por homicídio doloso, com
uma tatuagem estilo tribal nas costas. Ele veio lentamente em
minha direção, me cumprimentou, perguntou qual era a minha
“quebrada” — que quer dizer a cidade ou bairro de origem da
pessoa. Respondi que morava no interior, na cidade de Borborema,
e ele disse não conhecer.
Aproveitando a prosa, já fui logo perguntando quais eram
as leis internas, o que se pode fazer e o que não pode. O que ele
disse foi mais ou menos o seguinte:
O CÓDIGO PENAL NÃO-ESCRITO
Qualquer transgressão dessa lei, será punível com agressões
e isolamento verbal (ninguém conversa com quem falhou).
Aqui não se fala palavrão para ninguém, se disser será cobrado pelos demais.
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Em dias de visita não se coça nenhuma parte do corpo nem
se levanta a camisa.
Tudo que quiser, pergunte se há condições e agradeça. Por
exemplo: “Tem condições de você me emprestar uma caneta?”
Recebendo a caneta nas mãos, tem que responder “Agradecido”.
Na mesa ninguém conversa e não se faz higiene bucal (colocar o dedo na boca ou passar a língua nos dentes).
Eu, a partir daquele dia, começava a fazer a faxina do boi —
uma tarefa que seria a minha até a chegada do próximo. Concordei, porque já conhecia amplamente a lei da cadeia, mas tinha
que me fixar nas leis dali, pois ali é que iria viver até a minha
liberdade.
Ouvi tudo com muita atenção para não cometer erros, pois
quem comete erros lá dentro é considerado pilantra e é excluído
pelos outros internos, além de sofrer suas punições — como uma
surra pelos próprios companheiros ou levar um trem-bala. Tudo
isso eu sabia, mas queria conhecer as leis que regiam o espaço,
pois cada lugar tem uma lei.
Recebi as coordenadas necessárias e fiquei pensativo, refletindo sobre o que Wellington havia me dito.
Rapidamente fui conhecendo melhor o restante da rapaziada do meu Módulo, alguns simpáticos, outros bem-humorados,
uns de rosto fechado — tem de todo o tipo, mas você só não pode
se iludir com a aparência de ninguém.
Permaneci na mais pura cautela, pois ali, e em qualquer cadeia, temos que refrear a língua — uma palavra impensada não
tem volta.
Mas não fiquei pensando nesse lado negativo. O lugar em
que agora estava me transmitia uma energia positiva, por ser diferente o tratamento, por ser melhor a estrutura física, e pelas atitudes positivas da maioria dos internos, muitos deles com perspectivas de um futuro melhor e dispostos a darem conselhos.
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As refeições também eram diferentes: já não vinham em
marmitex, por serem produzidas ali mesmo. No período diurno
havia um cozinheiro, mas no período noturno as responsabilidades da manutenção da cozinha eram passadas aos internos.
Em outros lugares por que passei jamais fora dada tamanha
responsabilidade aos internos. Facas, estiletes e outros objetos
metálicos encontravam-se ao alcance de nossas mãos a todo instante, e durante toda a minha internação no IEN nunca vi acontecer nenhuma tragédia com objetos cortantes. Apenas internos
com mais de três meses na unidade participavam das atividades
da cozinha; internos mais seguros psicologicamente, internos de
boa conduta.
Conforme fui sendo observado, foram me atribuindo um
pouquinho de responsabilidade, para ver como me saía.
Após umas duas semanas, fui chamado até a sala das assistentes sociais, para dar início ao atendimento psicológico. Me
designaram a psicóloga Flávia.
Passei pelo meu primeiro atendimento. Meio acanhado, não
falei muito.
Conforme os dias foram passando, fui me adaptando melhor à unidade, e os coordenadores, por suas observações, decidiram inserir-me nos cursos de Panificação e Confeitaria, e permitiram que participasse das atividades esportivas na quadra de futsal.
Havia até preparador físico, que era o Sr. Fernando.
Entrei no ambiente da casa e esqueci o mundo lá fora: terminei o curso de Panificação & Confeitaria e comecei na computação; passei a dedicar-me às atividades da unidade. No período
na manhã, fazia o curso de Panificação e jogava futebol na quadra. Almoçávamos ao meio-dia e à uma e meia da tarde íamos
para as aulas do Telecurso 2000. Estudávamos até às quatro horas
da tarde, e depois vinha o lazer de jogar futsal até às seis; depois
era hora do banho para servir o jantar.
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Era um tratamento humano, com igualdade para todos. Se
alguém reclamasse sem razão, os próprios colegas advertiam e diziam que se não estivesse bem ali, então era melhor pedir transferência, porque a maioria não seria prejudicada por causa de um
indivíduo que não queria nada com nada.
Quando digo que esqueci o mundo lá fora, falo das más
influências e da ansiedade, porque vi que isso já não mais acrescentava ao meu caráter. Passei apenas a pensar na minha família.
Portanto estava muito feliz, porque recentemente meu irmão havia saído da Cadeia de Itápolis, e meus pais agora estavam mais
animados, mesmo eu ainda estando preso. Por telefone eu conseguia manter contato com eles, e podia sentir a sua felicidade. Isso
me contagiava e a cada dia que passava eu me enchia de esperanças de um futuro melhor.
Passado um mês, recebi a visita de meus pais. Eles já chegaram sorrindo. A mãe chegou me apertando num abraço caloroso, como um cobertor que aquece quem está com frio. Meu pai
também me passou muita energia positiva, mas só fiquei um pouco triste por vê-lo arrastando a perna por causa do reumatismo
que havia se agravado. Mas a alegria de vê-los não deixou que a
tristeza tomasse conta de mim.
Permanecemos mais de quatro horas juntos, pois agora a visita era mais prolongada. Podíamos ficar juntos quase o dia todo:
durava das 9:00h às 17:00h.
Conversamos bastante. Eles ficaram mais tranqüilos em saber que eu estava em um bom lugar, e foram embora mais leves
por saberem que eu estava bem. Mas não podíamos segurar a
emoção de chorar em cada despedida.
Continuei a ser firme e sempre acreditando que, em breve,
conquistaria a minha liberdade novamente e construiria uma carreira, pois já havia despertado em mim a vontade de ser doutor
em direito. Em razão de tudo o que havia feito e das punições que
estava sofrendo, eu buscava nos livros do Código Penal uma solu126
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ção para o meu problema. Tentava encontrar alguma lacuna jurídica que facilitasse a conquista da minha liberdade. Por isso revirava nos livros e, enquanto eu ia adquirindo conhecimento sobre
o Direito, aumentava cada vez mais a vontade de me formar e
atuar como advogado. Queria beneficiar a mim mesmo, mas também desejava fazer valer a justiça, que só via ser vilipendiada e mal
empregada ao meu redor.
Os dias e as semanas foram passando e meus pais me visitavam a cada dois meses. Fui engordando, e com o atendimento
psicológico fui abrindo minha mente, já conseguia refletir e compreender com mais clareza. Aprendi a contornar diversas situações, graças ao atendimento psicológico com a Flávia.
Cada vez mais eu aumentava minha auto-estima. Os funcionários começaram a notar minha dedicação para com os cursos, e
em meus horários vagos eu fabricava meus artesanatos manuais
— barcos de madeira, quadros, abajures, porta-retratos, pulseiras. Mas na maioria das vezes eu não tinha material para produzilos, então fazia para os outros e cobrava o material para fabricar
os meus. Às vezes, quando tinha visitas, eu dava o artesanato para
a minha mãe. Outras vezes eu vendia e trocava com acessórios e
utensílios para o meu uso e consumo, como pasta de dente, cigarros, sabonetes ou mais material para o artesanato.
Sempre participei dos treinamentos de futebol. Uma vez a
diretoria até marcou um amistoso contra outra unidade, a Unidade de Internação 4, do Tatuapé.
Foram semanas de preparo físico e psicológico até a nossa
locomoção, não podíamos esquecer que tínhamos sido escolhidos
a dedo para participarmos. Não era simplesmente aquele que jogava bem; tinha de haver uma conciliação, física e, acima de tudo,
psicológica. Não é qualquer interno que vai para a parte externa
da unidade. Antes devíamos passar por uma rígida observação da
coordenadoria; ou seja, era necessário obter a confiança dos
diretores e era preciso demonstrar, no dia-a-dia, com atitudes
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e ações. Eu e mais um grupo de seis jovens internos demonstramos sermos dignos dessa confiança e fomos jogar. Jogamos e ganhamos.
Enfim, já estava na casa há quase cinco meses e não havia
causado nenhum tipo de problema. Sempre fui bem visto por
todos, tanto pelos funcionários como pelos internos. Ficava na
minha, cuidando dos meus afazeres e de minhas responsabilidades.
Era raro a tristeza invadir meu coração. Eu sempre mantinha meu sorriso no rosto, com muita energia positiva. Ao mesmo
tempo, tinha o poder de contagiar quem estava ao meu redor. O
meu relacionamento com os internos, graças a Deus, sempre foi
dos melhores, e até aquele momento eu não havia me metido em
nenhuma confusão, pois sempre evitei conversinhas paralelas sobre outros irmãozinhos internados, porque para mim o verdadeiro homem é aquele que é transparente, capaz de dizer em seu
rosto o que sente e o que acha. Mas infelizmente muitos só o diziam após virar as costas; mas tudo bem, tipos assim sempre vão
existir.
Havia alguns que gostavam de um leva-e-tráz de informações,
apenas para semearem contendas e brigas entre os irmãos. Mas é
nessa hora que se tem que ser esperto e não confiar em ninguém.
Principalmente evitar problemas, porque sempre há uns caras muito
traiçoeiros e invejosos. Mas também há sempre algum amigo e mais
alguns em quem dá para se confiar, desconfiando.
O ambiente na unidade era de alto astral. No período noturno, os funcionários passaram a desenvolver atividades de lazer
no pátio da unidade, — jogos de dominó, truco, banco imobiliário. Até fazíamos um pequeno torneio de módulo contra módulo
e os vencedores ganhavam uma Coca-Cola cedida pelos funcionários.
Com o bom andamento da unidade (ausência de problemas de comportamento e de rebeliões), passamos a conquistar
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inúmeras regalias. Quando fazia calor sempre apareciam alguns
sorvetes para a gente, como forma de recompensa pelo bom
comportamento.
Logo, com os meus seis meses no IEN, passei a ter mais tempo livre, por ter concluído os cursos disponíveis que me interessavam. Na parte da manhã, ficava fazendo artesanatos manuais ou
tocava violão com o coordenador Balbino — quando ele trazia o
violão. Sempre fui apaixonado por violão, pois para mim serve de
terapia — automaticamente tenho uma sensação de paz e calma.
Após algum tempo, essa rotina de não fazer nada começou a
me causar ansiedade e desejo de ir embora. Consegui perceber
que isso não era bom, então pedi para o funcionário Sr. Pereira
me deixasse participar do curso de jardinagem, para que eu pudesse distrair a cabeça ocupando meu tempo. Ele me inseriu no
curso.
Como sou nascido e criado no interior, sempre gostei de
atividades que mexem com plantas, hortas, terra e enxada. Sou
daquele tipo que prefere o campo, e meu pai me ensinou muitas
coisas do campo. Creio que esse gosto deve ser por influência familiar.
Iniciei o curso, Não era bem um curso, mas uma espécie de
terapia ocupacional. Passei a cuidar das plantinhas do jardim da
frente da unidade, as mesmas plantinhas com que simpatizei e
que tinham me dado uma sensação de alívio quando cheguei.
Afirmo que cuidei com muito amor e carinho, para que os próximos irmãozinhos que chegassem pudessem sentir a mesma sensação que senti: paz.
Somente circulávamos pela unidade acompanhados de um
funcionário. No caso do curso era o Sr. Pereira que nos acompanhava. A nossa turma era composta apenas por quatro jovens,
todos do interior.
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Após alguns dias, circulávamos livremente pela unidade, pois
conquistamos a confiança de todos. Ninguém estava com o intuito de fugir, porque se quiséssemos não seria difícil.
Todos queríamos voltar para casa, embora ali fosse um lugar
bom. Ninguém seria capaz de cometer a besteira de tentar uma
fuga. Conversávamos bastante a respeito disso. Não valia a pena
porque já havíamos percorrido quase toda a nossa caminhada, e
isso não era mais do nosso feitio, porque estávamos todos psicologicamente firmes.
Trabalhávamos cuidando das flores ao lado dos portões que
davam acesso à liberdade, acesso ao mundo exterior. Era gostoso
ficar observando o movimento dos portões se abrindo e, quando
se abria, nós quatro ficávamos olhando e falando um para o outro:
— Quando será que vai ser a nossa vez? Será que vamos conseguir chegar até o final?
Um dizia para o outro:
— Nós vamos conseguir, só mais um pouco de paciência e
fé que a nossa vez chega.
Assim a gente conversava sobre o futuro, sobre o que fazer,
em que trabalhar, erros para consertar; enfim, fazer tudo de bom
que ainda não tínhamos feito.
Sonhávamos com uma vida melhor.
Os dias foram passando. O final de ano estava se aproximando, e o juiz do foro do Brás pediu meu relatório. Me recordo
que era o mês de novembro, mês de meu aniversário. Fizeram
meu relatório — chamado de “conclusivo” — e o enviaram para
o Juiz.
Geralmente a resposta vem em dez dias, e eu permaneci
aguardando. Passaram-se dez dias e minha resposta não veio; passaram-se quinze e nada; completaram-se vinte dias e minha resposta ainda não havia chegado. Comecei a ficar desesperado com
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medo de o juiz ter negado minha liberdade. Há casos semelhantes ao meu em que o juiz segura o adolescente por deduzir não
estar recuperado, ou pela gravidade do ato infracional.
A ansiedade começou a tomar conta de mim. Era fim de
ano e eu desejava muito ir para junto de minha família. Mal recebia visitas devido às condições financeiras e à doença do meu pai,
e eu queria voltar para a casa. Estava bem e queria voltar a ter
uma vida normal, porém a liberdade não dependia de mim, mas
do juiz.
Mal sabia eu que faltavam apenas dez dias para que os papéis de minha liberação chegassem. Já fazia cerca de vinte e cinco
dias que eu estava aguardando. Eram umas cinco horas da tarde,
eu tinha acabado de tomar banho e pretendia assistir à novela
Malhação, mas antes tinha que fazer minha faxina, que era limpar o pátio.
Enquanto trabalhava, pedi a um outro interno, vulgo “Boquinha”, que pegasse uma maçã que estava na fruteira do refeitório — era a sobremesa do almoço e eu ainda não tinha comido.
Pedi a ele, por favor, para pegar o alimento, e ele pegou. Mas ao
invés de entregá-la em minha mão, atirou-a com força e maldade
contra o meu peito. Foi aí que não agüentei e revidei com o cabo
do rodo, dando-lhe uma paulada em sua testa, e ali mesmo ele
caiu. O cabo se quebrou, ficando um pedaço pontiagudo em
minha mão, e quando caminhei para o lado que ele caiu, os outros irmãozinhos me seguraram e não cheguei a atingi-lo novamente. Ele já estava desmaiado. Foi o maior tumulto — os funcionários invadiram em massa o módulo, mas já estava tudo controlado. Ele não devia ter feito o que fez, e eu também não, mas
fiquei irado no momento, não pensei e revidei. Por outro lado, se
não tivesse revidado, os outros internos que testemunharam a situação poderiam interpretar qualquer passividade da minha parte como fraqueza, e eu teria de enfrentar alguma outra complicação no futuro.
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Ele foi levado para a enfermaria e eu para a coordenadoria.
O Sr. Balbino começou a me reprovar pela minha atitude e me
fez um monte de perguntas. Não respondi a nenhuma delas, e
disse que só falaria na frente do Boquinha, para depois não dizerem que delatei alguma coisa, porque mesmo estando recuperado, eu era coagido pelas leis dos internos — eu tinha que cumprir
o Código Penal Não-Escrito, a lei da cadeia.
Depois eu entraria para dentro novamente e, se falasse alguma coisa indevida, poderia sofrer as conseqüências. Não estou dizendo que concordo com as leis dos internos privados de liberdade, apenas digo que não poderia contrariá-las, pois poderia ser
punido pela massa de internos, até com a morte.
Permaneci na coordenadoria umas duas horas, aguardando
o Boquinha sair da enfermaria, para ir até a coordenadoria e pôr
a história a limpo.
Ele foi levado pelo Sr. Edivaldo até lá. O Sr. Balbino começou a perguntar ao Boquinha o que havia acontecido, mas ele
não queria falar. O Sr. Edivaldo deu um tapa no peito dele e
mandou-o falar. Aí ele soltou tudo que havia ocorrido.
Balbino, após ouvi-lo, dirigiu-se a mim e disse:
— Vai pro módulo.
Eu fui. Cheguei lá, já vieram me perguntar se os funcionários iriam fazer boletim de ocorrência por agressão, e respondi que
até agora não sabia de nada de B.O, mas que se fosse fazer eu não
teria nenhum receio, porque só tentei me defender, nada mais do
que isso.
Logo em seguida o Sr. Balbino me chamou para conversar
de novo, na coordenadoria. Cheguei e o Boquinha ainda estava
lá sentado. O Balbino pediu para que nós apaziguássemos a “treta”
e colocássemos uma pedra em cima de tudo o que havia ocorrido.
Também disse que não queria ver o ocorrido repercutindo dentro do Módulo. Concordei com ele, porque sabia que o meu pro-
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pósito ali não era regredir, mas avançar. Então estendi a mão para
o Boquinha e ele a apertou. Nesse momento, Balbino deixou-nos
a sós dentro da sala e conversamos por uns vinte minutos. Nessa
conversa eu disse a ele que nossa luta é contra o Sistema, e não um
contra o outro. Ele compreendeu. Rolaram até lágrimas nesses
minutos de conversa. Também o ouvi e compreendi o lado dele.
Colocamos uma pedra em tudo, nos abraçamos e ficamos em paz
a partir desse momento. Demos nossa palavra e firmamos um acordo de sermos amigos, com o objetivo de vencer e voltarmos para
casa.
O Sr. Balbino entrou na sala e perguntou se já havíamos
conversado tudo o que tínhamos para conversar. Balbino nos deu
alguns conselhos e nos liberou para voltarmos ao Módulo. Voltamos conversando. Quando alguns viram que estava tudo bem
entre nós, demonstraram estar enfurecidos, pois sempre há um
ou outro que quer ver a desgraça do próximo, mas Deus é maior
e iluminou nossos pensamentos. Tudo ficou bem.
Fiquei pensando no ocorrido e o quanto poderia ter me complicado. O juiz poderia me manter ali, pelo menos mais uns dois
anos por essa agressão — isso se eu não fosse transferido para uma
unidade de contenção. De fato, a agressão poderia ser vista pela
Justiça como gravíssima, porque o Código Penal é finalista, isto é,
o caso seria julgado de acordo com a gravidade dos fatos. Quanto
mais grave, maior a pena — maior seria a minha internação, podendo atingir o limite máximo de três anos. É o que prevê o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA).
Comecei a sentir um sério arrependimento pelo que fiz.
Embora tenha me defendido, estava aprendendo outros
ensinamentos, através do grupo de evangelização, e tentava reviver
tudo aquilo que aprendi quando fiquei internado na Gilgal. Eu
me sentia bem, mas agora estava arrependido, porque o que havia aprendido era amar ao próximo como a mim mesmo. Orei a
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Deus em pensamento, pedindo paz interior e discernimento e
algumas coisas mais. Não demorou e fui ouvido.
Participei muito dos cultos e pregações do irmão Ivan, conhecido pelos internos como “Terra”. Foi através desses cultos que,
aos poucos, eu ia fui voltando aos braços do Senhor. Suas pregações me atingiam lá no fundo do coração, motivando-me dia a
dia a viver melhor.
Estávamos nos aproximando das festas de fim de ano, faltavam poucos dias. Era o ano de 2001 e restava apenas uma semana para o Natal. Eu queria muito passar as festas deste fim de ano
com meus pais. Minha fé e minhas esperanças foram maiores e
mais fortes. O último final de semana antes do Natal se aproximou, era uma quinta-feira, me lembro como se fosse hoje.
*
Dia nublado, meio frio, mas o ambiente em nosso Módulo
era bom. Todos estavam com muita energia positiva, pois quem
passasse as festas ali veria os seus familiares no domingo próximo e
nas datas festivas. Fiquei o dia todo sentado na porta do Módulo
só observando, com o olhar fixo voltado para a porta da sala das
técnicas e das assistentes sociais, porque os papéis de liberação
vinham através de malotes e iam para a sala delas. Eu estava ansioso. Era impossível não ficar. Depois de tanto tempo de espera,
eu estava realmente confiante, mas tinha um pensamento íntimo
de que, se por acaso não chegasse a minha liberação, eu teria que
esperar apenas mais um pouco. Já tinha informações de que meu
processo, que estava no Fórum do DEIJ, já tinha sido observado
pelo promotor. Ele o assinou, concordando, e agora estava nas
mãos do juiz. Quando isso acontece é sinal de que o procedimento vai dar certo. Permanecia à espera, mas isso não me causava
angústia, mas sim um sentimento de otimismo. E eu não estava
errado. Pontualmente, às seis horas da tarde, o malote chegou.
Logo em seguida o Sr. Edivaldo veio em linha reta, direto para o
meu Módulo, e disse:
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— Pessoal, chegou uma liberdade nesse módulo.
No momento, explodi de alegria. Perguntei se era a minha,
e ele respondeu:
— Infelizmente não é a tua Cleonder, é a do Wagner do
Guarujá.
A contrariedade dele era proporcional aos fatos que envolviam a passagem de Wagner entre nós. Um mês antes de ele ter
sido liberado, por exemplo, foi pêgo com um cigarro de maconha. O Wagner ficou extremamente feliz com sua liberdade.
Dando pulos e saltos de emoção, saiu abraçando todos. Para mim
ele disse:
— Calma Cleonder, você é um grande guerreiro e um grande amigo. Tenho certeza de que você vai pra casa. Calma, amigo,
calma, eu torço por você.
Em momento algum fiquei com inveja ou com raiva. Ao
contrário, fiquei contente porque mais um irmão conseguiu. Ver
os colegas conquistarem seus ideais me deixa muito feliz, pois como
diz a Bíblia em “Eclesiastes”, Capítulo 3: “Tudo tem seu tempo e
sua hora.” Permaneci focado nessas palavras.
Wagner pegou seus pertences mais importantes e o restante
ele deixou para os outros mais necessitados, e foi-se embora. Feliz.
Já era o horário do jantar e eu não havia tomado banho, por
ter aguardado o malote chegar. Então separei minha comida para
mais tarde, e fui tomar banho depois que os outros já haviam
jantado. Tomei meu banho, jantei e fui ver televisão. Comecei a
perceber que alguns funcionários mais chegados a mim começaram a dar uma voltinha pelo Módulo. Sempre davam uma olhadinha para mim, e isso não era normal, pois quando o pessoal
estava tranqüilo era difícil que entrassem para ficar observando.
Fiquei desconfiado de alguma coisa. Comentei até com meus companheiros e eles também perceberam. Em turnos, vinha um fun-
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cionário diferente dar uma risadinha para mim, mas não era uma
risadinha de deboche.
O dia se encerrou, era hora de dormir.
Entramos no alojamento, todos felizes. Ficamos conversando uns com os outros até altas horas da noite.
Meu melhor colega na época era o Osni. Ele me disse que
estava chateado por não ter sido eu no lugar do Wagner, pois ele
não gostava do Wagner. Disse-lhe para não se preocupar, porque
uma hora minha vez haveria de chegar.
Desejei um bom descanso a todos, como de costume. Peguei
no sono e dormi tranqüilamente.
Começando mais um dia, já acordei animado. Mas as coisas
não estavam boas ali no Módulo 3, nem no 4. Já começaram o
dia com problemas. Discussão com os funcionários. Tudo foi
criado por um folgado chamado Arcanjo, do 3, que queria impor
seu poder sobre os funças. Há certos funcionários que são mais
tolerantes, outros já não são, mas não tenho o que reclamar deles;
o Arcanjo tinha. Começou tudo por causa de um chuveiro que
queimou logo pela manhã, e ele queria porque queria tomar banho quente. Foi grosseiro com um funcionário muito querido por
todos os internos, e os que presenciaram o que ocorreu não gostaram do que Arcanjo fez e acabaram lhe dando um forte trembala. E ele virou “pilantra” — um indivíduo excluído e discriminado pelos internos. Já no 4 ocorreu uma treta devido a um desentendimento de opiniões opostas sobre uns lances de futebol.
Motivo fútil.
Graças a Deus o nosso módulo permaneceu na paz, mas
devido o acontecido no 3 e no 4, naquele dia não iríamos para a
quadra bater uma bola.
Logo pela tarde outra confusão, agora no Módulo 1. Um
rapaz de vulgo “Farofa” estava querendo bater nos pilantras do
módulo dele, para descontar a sua raiva por ter que passar o fim
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de ano ali. Geralmente esses coitados apanham por terem deixado alguma falha com alguém no passado, ou por alguma parada
errada ocorrida com eles e reprovada pelos outros internos. Quando considerados pilantras, tornam-se sacos de pancadas.
Agora só faltava nosso Módulo dar problema. Esse era o meu
maior medo. Tinha receio de que houvesse alguma novidade ruim,
e acabasse sobrando para mim, justo agora.
Mas sem novidade no 2, porque quando percebemos e soubemos o que estava acontecendo, nos reunimos e conversamos,
determinando que tudo deveria correr com tranqüilidade. Não
podíamos deixar a imagem do Módulo 2 estragar. Todos compreenderam e ninguém aprontou.
Anoiteceu. Me conformei que teria de passar as festas ali
mesmo, e que malotes contendo liberações não chegariam mais.
Fomos recolhidos e os funcionários nos alertaram para que
não tentássemos nada, porque o clima tinha ficado ruim por causa de alguns elementos. E esse clima estava contagiando os outros
de cabeça fraca, animando-os a tentarem uma possível fuga.
Fiquei muito triste antes de dormir — tinha muito medo de
pagar pelos erros dos outros. Digo isso porque se alguém tentasse
uma fuga e eu, mesmo sem querer, tivesse que participar dela eu
seria muito prejudicado, porque, se quisesse aproveitar as oportunidades que tive não teria sido difícil. Mas dali sempre quis sair
pela porta da frente, a mesma pela qual havia entrado.
Deitei com um pouco de receio e não estava errado, pois
assim que trancaram o nosso Módulo, o Farofa do 1 saiu correndo pelas galerias, conseguindo alcançar a guarita dos seguranças.
Escalou-a rapidamente e pulou. Ao cair no chão torceu o pé, mas
conseguiu correr meio que mancando. Foi isso o que os seguranças contaram, ao verem ele correndo.
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Fiquei atormentado para dormir. Demorou um pouco, mas
peguei no sono e dormi. Não esperava a graça que Deus me daria
na manhã seguinte.
Eram seis horas da manhã e o Sr. Balbino veio até minha
cama me acordar. Puxou meus pés e disse o seguinte:
— Vamos, vamos Cleonder. Pegue tudo que é seu que já eu
volto para te buscar.
Acordei apavorado, pois notei um pedaço de pau na mão
de Balbino. Pensei que seria transferido para Franco da Rocha,
porque as transferências dali só iam para Franco.
Então acordei os outros, cutucando o meu vizinho Almir,
para que me ajudassem a resistir, se a idéia era me arrastarem dali.
Alguns já estavam acordados e escutaram o que foi dito para mim.
Conformado, comecei a arrumar minhas coisas, mas em um ritmo bem lento. Quando Balbino voltou, ele disse, num tom irado:
— Mas você não arrumou nada ainda, venha cá na porta.
Fui e vi meus pais. Balbino disse:
— Você não quer ir embora?
Dei pulos e mais pulos de alegria. Dominado pela emoção,
corri disparado em direção aos meus pais, e realmente eles confirmaram que eu estava livre. Livre para sempre.
Voltei para pegar minhas coisas, me despedi de todos, mas
especialmente do Osni, que realmente foi meu amigo. Nós nos
abraçamos, choramos um pouco e eu fui embora. Gostava muito
dele e temia por sua segurança — alguns safados do internato
não gostavam dele e queriam dar um jeito para que ele se tornasse
um pilantra dentro da instituição. Assim ele seria isolado e maltratado pelos outros internos, e sairia do caminho deles. O caso
era que o Osni é um cara grande e musculoso, todo tatuado, e os
carinhas tinham medo de que, em algum momento, ele tentasse
tomar o poder deles.
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Fui em direção da minha liberdade, junto de meus pais. Agora mais do que nunca, me sentia realizado.
Segui em direção aos portões que tantas vezes vi se abrirem e
fecharem. Agora eles se abriam para mim. Quase todos os funcionários me aguardavam próximo da saída, e me despedi da maioria. Aos que estavam lá dentro, em seus postos, deixei lembranças
e desculpas por não ter podido me despedir deles. A emoção era
enorme.
Atravessei os portões. Parei, olhei e respirei fundo. Ao olhar
do lado de fora da muralha tive a surpresa: meu irmão ali, me
esperando. Não podia ser melhor, foi tudo o que pedi a Deus.
Feliz, voltei com meus familiares para meu querido interior.
E agora a família estava toda reunida, via nos olhos de minha mãe
a felicidade. Papai, que estava debilitado por causa do reumatismo, não sentia nem dores.
Voltei para casa.
Sonho realizado, eu tinha agora a minha liberdade conquistada.
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EM BRANCO
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CAPÍTULO VIII: O senhor está preso.
Em paz, voltei para minha casa, como tanto pedi a Deus,
Ele me concedeu passar as festas com minha família. Chegou o
Natal e todos nos reunimos para comemorar a data e a minha
saída da prisão com uma grande festa. Depois da festa, saí com
meus primos Paulo César e Diego para dar uma volta pelo centro
da cidade. A multidão ocupava toda a rua e o trio elétrico
Kachotão fazia o maior barulho.
Muitos colegas da antiga vida tentaram se aproximar de mim,
pois ainda não me tinham visto depois da minha recente libertação. O que eu tinha para contar seria novidade para eles. E quase
que perco a cabeça logo de início com um certo elemento, porque ele se aproximou de mim e disse o seguinte:
— E aí, Cleonder? Olha que o patrão ‘tá de volta pra abastecer os manos.
Ao meu lado estavam meus primos, que olharam para esse
rapaz com um olhar tão hostil, que rapidinho ele saiu de perto.
Me deu uma raiva muito grande, porque depois de tudo
que eu tinha passado por causa da vida do crime — e esse cara
nem se lembrou de mim quando vivi meus apuros —, agora me
vinha o sujeito com essas conversinhas que não faziam mais parte
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do meu gabarito, da minha vida. Tive vontade de esganá-lo. Mas
deixa para lá, eu estava a fim de aproveitar minha sofrida e tão
conquistada liberdade. Durante essa minha voltinha eu estava
procurando alguma garota do meu estilo e do meu gosto, para
me distrair ou tentar ter uma companheira para me dar forças,
para que eu não voltasse ao mundo do dinheiro fácil. Enquanto
dava minhas voltas pela praça, bati os olhos e me fixei em uma
garota que eu muito havia desprezado por ela ser meio magrinha
— mas agora a magrinha tinha se tornado uma bela mulher. Nos
meus tempos de colégio, na época em que eu namorava a Juliélem,
essa menina magrinha corria atrás de mim e era louca para ficar
comigo, mas eu nem bola dava; apenas dei uns beijos nela antes
de ir preso, mas foi só para ela parar de me atormentar — e agora
via que estava apaixonado por quem eu tanto havia desprezado.
Me aproximei dela e conversamos um pouco. Ela se fez de
difícil, mas por dentro até queria ficar comigo, só não queria dar
o braço a torcer. No final da noite meus primos queriam ir embora, mas eu disse que ficaria conversando com essa garota, que se
chama Josiane.
Permanecemos um bom tempo conversando até que a convenci a dizer que pensaria no assunto.
Ela prometeu que iria à minha casa um dia desses para a
gente conversar. Acabei acompanhando-a até a casa dela. Lá nos
despedimos com beijos no rosto. Chegou o Ano Novo e nos encontramos no centro de Borborema. Eu a chamei para dar uma
volta comigo e ela topou. Passeamos, conversando. Nos entendíamos cada vez mais — estava surgindo um clima em que nos sentíamos atraídos um pelo outro. Depois de tanto tempo que permaneci só, eu realmente precisava de uma pessoa para preencher
meu vazio interior, uma pessoa que ao mesmo tempo fosse amiga
e conselheira, mas nunca imaginei que fôssemos tão longe. Comemoramos juntos a passagem de ano. Depois ela me disse que
ficaria comigo e daríamos início a um namoro mais sério.
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Fomos para um lado mais afastado do centro. Ali ficamos
por alguns minutos que para mim se tornaram inesquecíveis. Foram os primeiros minutos de 2002, quando firmamos o compromisso de, na quarta-feira seguinte, estarmos juntos na minha casa,
para conversarmos melhor. Nesta época ela trabalhava como babá
de uma criança chamada Nani, filha do Cláudio e da Cris, que
são dois enfermeiros. Fazia isso para ajudar sua mãe Tereza e seu
padrasto Pedro, que trabalhava colhendo laranja, pois o pai biológico de Josiane abandonou a família quando ela tinha apenas
dez meses de idade. Na quarta-feira ela veio. Fiquei muito feliz ao
vê-la e convidei-a para entrar. Fomos para a sala e nos abrimos um
para o outro, choramos sob a força da emoção, rimos e finalmente firmamos um compromisso. O namoro começou a partir daí.
Eu me sentia muito sozinho e só com ela passei a me abrir.
Ela demonstrava preocupação comigo e eu tentava retribuir o
mesmo carinho com ela. Agora, após uma longa batalha pelos
lugares por que passei, eu estava melhor do que nunca. De volta
ao meu lar, com a família reunida, todos felizes. E, por mais incrível que pareça, a FEBEM me tornou apto a retornar ao convívio
social. E a minha querida Josiane estava me mudando para melhor. Poucos dias depois, egresso da Fundação, tentei procurar
emprego, mas as portas pareciam estar todas fechadas. De qualquer modo, não desanimei, e continuei procurando. Tentava por
telefone, tentava pessoalmente, mas ninguém queria acreditar em
mim. Muitos tinham receio, medo de me dar emprego por minha imagem ser péssima, e assim continuei sem emprego.
Meu tio, o vereador João Beleza, estava construindo um sobrado próximo ao hospital da cidade, e ele me deu serviço. Comecei a trabalhar como ajudante de pedreiro. Preparava a massa,
o concreto e servia ao pedreiro no segundo andar do prédio, levando tijolos, massa e ferramentas. Não ganhava muito, apenas
R$ 12,00 por dia, mas me sentia bem, porque no final de semana
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teria um dinheirinho para levar minha namorada para tomar um
sorvete ou comer um lanche.
Trabalhei uns dois meses para meu tio João, até que ele deu
uma parada na construção do sobrado e acabei ficando sem serviço novamente.
Josiane, que agora era a minha namorada, que havia conseguido um emprego em uma fábrica de bordados. Iria trabalhar
na área de tecelagem. Por isso deixou o emprego de babá para
buscar melhores condições de vida. Ela sempre foi de família humilde mas muito honesta, e tinha uma personalidade muito forte.
Passamos a nos ver apenas em seus intervalos de almoço e
quando ela terminava o expediente de serviço. Ela estava concluindo o terceiro ano do Segundo Grau. Eu já havia concluído o
Telecurso 2000, mas tinha ficado com duas disciplinas pendentes, que eliminaria no mês de junho, para que depois pudesse
prestar o vestibular para alguma faculdade. Esse era meu sonho:
queria me formar Doutor em Direito, mas até então o sonho não
passava disso. Era muito bom sonhar de qualquer modo, pois o
homem que não sonha para mim é um morto-vivo. Porque quem
sonha almeja algo, quem almeja algo busca e quem busca encontra. Essa é a minha visão das coisas, e queria mostrar a todos que é
possível.
Completavam-se quatro meses da minha liberdade. Fui ao
mesmo lugar em que Josiane agora estava trabalhando, para ver
se conseguia uma oportunidade também. Eles fabricavam bordados e havia ainda um setor de estampas em tecidos. Em minha
passagem pela FEBEM concluí o curso profissionalizante de
serigrafia, com diploma e tudo. Então me apresentei com o certificado, a fim de conseguir este emprego, uma vez que eles estavam precisando.
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Compareci ao escritório da firma. Quem me atendeu foi o
encarregado geral, chamado Sereno. Ele analisou o meu currículo e disse para eu aguardar, pois com certeza seria chamado.
Fiquei à espera, mas não podia supor que, no dia seguinte,
algo viria interromper todos os meus planos e perspectivas de vida.
*
A tarde de 2 de maio de 2002. Tudo estava bem, eram cinco horas da tarde, minha amada havia acabado de chegar do trabalho e eu estava na casa dela. Quando ela chegou, entramos —
e logo em seguida estacionou um Opala da Polícia Civil de
Borborema. Desceram do carro dois investigadores, que eu já
conhecia, o Crispim e o Toledo. Os dois já haviam me prendido
algumas vezes, mas desta vez eles bateram palmas e a Josiane é
quem foi atender.
Perguntaram assim:
— O Cleonder está?
E minha namorada respondeu que sim!
Ouvi a conversa e automaticamente me apresentei na porta
da cozinha. Perguntei o que eles queriam ali.
Disseram que queriam falar comigo.
Caminhei até a frente da residência, mas não coloquei meus
pés para fora; permaneci do lado de dentro, conversando com
eles.
Disseram que o Dr. Delegado estava solicitando minha presença na delegacia. Perguntei o que estava acontecendo. Eles disseram que não sabiam, apenas que o delegado queria falar comigo.
Logo de início eu já os alertei de que não cometera mais
nenhum crime desde que saíra da FEBEM. E que não devia nada
e por isso iria atender ao pedido da autoridade, de acordo com o
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Artigo 330 do Código Penal, que diz que devemos ser submissos
às autoridades constituídas.
Acompanhei-os tranqüilamente até a delegacia. Fomos de
viatura. No caminho pedi para, uma vez na delegacia, poder ligar
para o meu advogado, o Dr. Ronaldo, e garantir que ele estaria
me acompanhando.
Mas fui de consciência tranqüila, porque não havia cometido mais nenhuma infração.
Chegamos à DP. Fui levado e tratado pela primeira vez com
dignidade, decência e respeito. Mas eu mal podia imaginar que
me viriam as lágrimas, após alguns minutos.
O delegado me chamou para entrar na sala dele e assim eu
fiz. Sentei-me e ele começou a me elogiar, dizendo que estava contente por eu ter mudado radicalmente minha conduta na cidade,
por não receber informações negativas a meu respeito, mas sim
positivas, de que eu estava mostrando o contrário de tudo que fiz
no passado.
Ele disse:
— Infelizmente tenho que lhe dar uma notícia que não vai
ser nada agradável para você, mas sei que você será forte e vai
conseguir superar tudo, sem regredir.
— Cleonder, chegou agora há pouco em nossas mãos um
mandado de busca e apreensão para você, expedido pela juíza
local de Itápolis, de que você terá que cumprir mais uma medida
sócio-educativa de internação na FEBEM, devido a agressões
cometidas contra o Zequias, no interior da cadeia pública de
Itápolis.
— "O senhor está preso".
*
Naquele instante me recordei de tudo, mas não pensava que
acabaria assim, pois no íntimo já havia até me esquecido e não
esperava que resultasse em prisão, justamente agora que eu deci146
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dira acordar e viver para a vida. Ser preso por um evento acontecido um ano e três meses atrás!
Comecei a chorar, fiquei nervoso, falei um monte de besteiras.
— Eu deveria ter continuado no crime, pois agora eu estaria sendo preso mas teria dinheiro — foi uma delas. — E de que
me adiantou mudar, sendo que a justiça vem e me dá uma sentença justo agora pra eu cumprir? Por que não me deu antes,
assim eu cumpria tudo de uma vez? Mas ao invés eles me soltam e
eu tento reconstruir minha vida e agora que estou vendo meus
bons frutos, eles mandam me prender...
Foi apenas uma forma de expressar minha revolta no momento, porque a notícia balançou totalmente a minha cabeça.
Para completar, a menstruação de minha namorada estava atrasada. Pensávamos que ela poderia estar grávida. Isso era o que mais
me preocupava. Fiquei irado, comecei a falar alto na delegacia.
Então me conduziram até os fundos do DP e me deixaram lá, mas
não me algemaram. Percebi que até mesmo os policiais se comoveram com o que estava acontecendo — todos conheciam minha
rotina de vida após minha liberação da FEBEM. Mas a justiça, se
ela é para um, deve ser para todos. E por ele, o Zequias, ser um
ser humano e pelo que eu fiz contra ele, eu devia pagar conforme
o prescrito na lei.
Estava ainda muito nervoso e não aceitava de maneira alguma o que se passava comigo. A revolta tomou conta de mim. Me
vi sozinho na delegacia. A única pessoa que sabia que eu estava lá
era a minha namorada... Pedi para ligarem para meus pais, pois
eles ainda não sabiam. Então por telefone eles foram informados.
Minha mãe não teve outra reação a não ser entrar em desespero; meu pai ficou arrasado. Foram até a casa da Josiane para
buscá-la e seguiram para a delegacia. No caminho, meus pais
contaram a ela.
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Também não suportando, ela começou a chorar. Quando
chegaram à delegacia, eu já estava algemado e me encontrava nos
fundos do prédio. Meus familiares entraram à minha procura e
os policiais os levaram até onde eu estava. Enquanto os papéis
eram providenciados, fiquei aguardando para ser removido até a
cadeia de Itápolis. De repente, chegou mais uma viatura. Agora
quem fora preso foi o Paulo, por estar envolvido no mesmo delito.
Logo em seguida prenderam o Rodriguinho, que também havia
tomado parte nos eventos envolvendo Zequias. Faltava o Tico,
que já havia sido liberado da FEBEM, mas por ter praticado mais
delitos e ter sido apanhado com drogas, fora enviado novamente
à FEBEM, antes mesmo que eu tivesse sido liberado da Fundação
pela primeira vez.
Agora estávamos sendo presos por agressão ao estuprador.
Meus pais e minha namorada, quando viram as algemas nas minhas mãos, não acreditaram no que estava acontecendo. Eu também não acreditava, mas essa era a realidade — a conseqüência
de atos ruins cometidos no passado.
Josiane e eu nos abraçamos, em lágrimas, para ficarmos juntos nossos últimos minutos ali, pois logo eu seria removido para a
cadeia. Sentia arrepios só de me lembrar que voltaria. E agora o
fato de eu ser reincidente seria um agravante. Pedi para meu pai
pegar os papéis que falavam a meu respeito, a sentença, e quando
comecei a ler, quase enlouqueci — o tempo máximo na FEBEM,
segundo a condenação, seria de três anos, apresentando relatórios semestrais. Não esperava receber tamanha pena.
Meus últimos minutos acabaram-se. Tínhamos que partir,
segundo disse o investigador que nos levaria.
— Passaremos pelo hospital para fazer os exames de corpo
de delito, e seguiremos viagem — informou.
Meu pai, minha mãe e Josiane foram rapidamente buscar
roupas que eu pudesse levar para a cadeia. Enquanto eu estava no
hospital, passando pelos médicos, meus pais e a Josiane aparece148
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ram para deixarem minhas roupas e dar os últimos abraços de
despedida.
Papai me abraçou, passando-me energia positiva, assim com
todos ali. Diziam que eu fosse forte, que conseguiria sair vencedor. Meu pai disse que não me abandonaria, porque eu não havia
tornado a cometer crimes, mas que se cometesse mais algum delito, ele me deixaria viver e aprender com a vida, que muitas vezes
é dolorosa e ingrata conosco.
Quando saí da FEBEM pela primeira vez, ele me disse em
uma conversa que se eu voltasse, ele não teria mais forças para me
tirar de lá. Eu o ouvi com atenção e guardei suas palavras, porque
o seu apoio constante foi um fator muito importante em minha
vida e uma das razões para que eu não voltasse a delinqüir.
Havia uma outra coisa que me incomodava, nessa prisão tão
inesperada. Eu na época jogava muito futebol, sempre participando de torneios e amistosos — que saudade daquele tempo!
Poderia ter seguido a carreira de jogador... Jogava muito bem, na
lateral e na ponta direita. Refletia também sobre os testes por que
passei, testes feitos no Grêmio Esportivo Novorizontino e pelo
Fluminense — só eu e mais dois passamos no teste do Novorizontino, entre mais de 150 concorrentes. Fui chamado pelo clube, mas não compareci... Poderia ter dado continuidade, ter iniciado uma carreira, se não fosse pelas drogas... Então essa prisão
vinha pôr uma pedra sobre essa oportunidade que cruzou o meu
caminho. Hoje penso que talvez ainda não seja tarde... Adoro
praticar esse esporte, no tempo que me sobra procuro reconciliar-me com os gramados, que me dão uma sensação de alívio. E
tenho muitas esperanças de poder jogar por um clube.
*
Chegou a hora de ir. Nós três passamos pelo médico e fomos
saindo do hospital. A porta do chiqueirinho já estava aberta para
entrarmos. A viatura arrancou e nos levou. No caminho eu fui
calado, sem dizer uma só palavra, apenas escorriam as últimas e
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poucas lágrimas, porque já me esgotara de tanto chorar. Em poucos minutos chegamos à cadeia.
*
Os policiais nos entregaram para a carceragem, que nos recebeu dando risadas. Afinal, foram eles que atearam fogo na fogueira e ao mesmo tempo foram testemunhas de acusação. Por
dentro eu sentia muita raiva, mas não externei nenhum sentimento
— e nem forças tinha naquele momento, devido à angústia e ao
desânimo que tomava conta de mim completamente.
Fomos revistados na entrada, como de costume, e conduzidos até a pequena cela do corró (a cela destinada aos menores).
Um caminho que nunca mais eu esperava ter que trilhar, por aquelas galerias frias e imundas. Paramos próximos da grade. Encontrei um faxina chamado Miro, que eu já conhecia. Ele estava preso por tráfico de entorpecentes. Ao me ver, ele disse:
— Você aqui de novo, cara?
— Depois a gente conversa — respondi.
Comecei a observar as paredes em que tantas vezes eu deixara o meu nome rabiscado, e dizia ao Paulo que nunca imaginara
que voltaria para esse lugar. Ele respondeu que agora não adiantava lamentar.
— Temos que nos conformar com essa situação e puxar mais
essa cadeia.
Mas eu não queria aceitar, e permaneci inconformado com tudo.
O Rodriguinho estava tão mal quanto eu, pois ele também
tinha um relacionamento e agora ficava distante de sua namorada e de sua mãe, que sofria de câncer no útero.
Cheguei perto da grade e notei o Miro se aproximando, com
intenção clara de falar comigo. Ele era o faxina da cadeia e tinha
acesso a todos os outros presos. Chegou brincando comigo — com
certeza era para levantar meu ânimo e desamarrar minha cara, porque eu estava de cara fechada, e não havia motivos para sorrir.
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Nós nos cumprimentamos e expliquei a minha situação. A
partir daí fomos fortalecendo uma grande amizade, ele sempre
disposto a me escutar e me aconselhar. Dizia que eu teria outras
oportunidades e muitas felicidades na vida. Ele tentava, com suas
palavras, abrir meus olhos para os muitos caminhos que eu poderia trilhar, e as inúmeras portas que poderia abrir. Conversamos
só um pouco, porque ele também teve que entrar em sua cela e
ser trancado. Os faxinas têm um certo horário para trabalhar,
mas à noite são trancados.
A hora de dormir foi se aproximando e não havia colchões,
porque disseram que na última rebelião os presos haviam queimado tudo, e que muitos estavam com colchões trazidos pela família. Marcão, o chefe da carceragem, alegou que não tinha colchão. Cada um teve que estender seu cobertor no chão para dormir. A sorte foi que nossas mães mandaram cobertores...
A primeira sensação foi estranha, mas vencido pelo cansaço
peguei no sono rapidamente e dormi com os meus companheiros de cela.
*
Não conversávamos muito, porque ainda estávamos angustiados. Os outros presos, ao saírem para o banho de sol, vieram
nos cumprimentar e perguntar o que nos trouxera até ali. Muitos
conhecidos ainda permaneciam na cadeia de Itápolis, cumprindo suas longas penas. Eu conhecia quase todos porque tinha muitas passagens por ali, mas nem por isso me senti à vontade. Só
conseguia pensar em meus pais e na minha namorada, que, com
tanto esforço, me apoiava enquanto eu estivera em liberdade. Eu
mal conversava, não tinha apetite para comer. Apenas bebia água.
Muitas vezes o Miro me dava um pouco de refrigerante ou suco,
e sentava próximo da grade e aí estendíamos a conversa e isso foi
se tornando como uma terapia para mim.
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Essa prisão estava sendo a maior e a pior barra que eu já
tinha enfrentado em minha vida. Acabei perdendo meus objetivos, aos poucos ia caminhando para uma depressão.
Após alguns dias, fui desenvolvendo maior diálogo com o
Miro e meus companheiros; voltei a comer, embora às vezes sem
fome. Meus companheiros de cela, Rodrigo e Paulo, já estavam
mais conformados com a situação e emocionalmente bem melhores do que eu. Percebi que minha tristeza às vezes os incomodava.
Tentavam me alegrar, mas era muito difícil me reanimar — eu
não conseguia enxergar motivos de alegria. Mas como nunca gostei de incomodar meus amigos, fui me controlando e me conformando cada vez mais com a situação.
Ainda não estava recebendo visita, mas sabia que, brevemente,
meus pais e Josiane viriam. Não queria passar minha negatividade
para eles, para minha mãe e para minha namorada. Fui melhorando e contornando a minha situação psicológica, mas foi um
processo difícil.
Quando recebi a visita da minha família, já estava bem melhor. Mas não deu para esconder a enorme dificuldade por que
passava, pois minha mãe foi a primeira a perceber uma diferença
que, por mais que eu tentasse, não conseguia esconder. As evidências estavam claras em meu rosto, eu também havia emagrecido bastante. Mamãe, quando me viu, veio logo pegar em minhas
mãos. Depois foi a vez do papai, que tentou me abraçar, mas a
grade nos dividia, pois não eram abertas e nem saíamos para visita. Era eu do lado de dentro e eles do lado de fora. Minha namorada não veio na primeira visita, porque era necessário fazer uma
documentação específica para ela poder entrar.
Conversando com a minha mãe, fui contando que estava
sendo difícil, mas que eu venceria essa batalha de novo. Havia
contudo uma coisa a ser esclarecida, e disse a ela que não tinha
certeza, mas podia ser que a Josiane estivesse grávida. Mamãe não
se assustou, tentou me devolver calma, e disse que veria tudo isso
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e que, se realmente ela estivesse grávida, cuidaria de tudo por
mim. O pai também reforçou esse apoio.
Bem ao meu lado, ocupando o espaço que sobrava da grade, o Rodrigo conversava com sua mãe, dona Lourdes, pessoa
idônea mas adoentada. Nem mesmo a doença, porém, impediu-a
de ajudar o filho mais uma vez. O mesmo acontecia com meu pai,
que também estava mal do reumatismo, e assim mesmo enfrentava as dificuldades e comparecia para me ver.
Mal deu para matar as saudades e aliviar as dores emocionais, chegou o fim da visita.
Momento triste. Eles iriam voltar para casa, e eu continuaria ali. Eu pensava em muitas coisas ao mesmo tempo, desejos de
realização que foram interrompidos por um Mandado de Prisão,
perspectivas de vida não se concretizariam por causa disso, sonhos em perigo — enfim, tudo foi interrompido. Até mesmo a
minha integridade psicológica foi colocada em risco, a forma em
que me encontrava, com a cabeça no lugar, agindo honestamente, e a justiça queria remexer em toda a encrenca do passado? As
portas foram fechadas para mim e fui inserido em um mundo
marginal, do qual eu já não fazia mais parte, mas foi isso que a
justiça determinou. Assim, depois de um longo lapso de tempo,
fui condenado e teria de pagar, e, infelizmente, retornar ao sistema carcerário, com poucas chances de ser influenciado positivamente pelos seus protagonistas, os presos. Ao contrário, o retorno
à prisão poderia na verdade empurrar-me mais para um retorno
ao crime. Uma porta de recuperação me era fechada, enquanto
que o sistema me abria uma porta para a marginalização. Não
posso pensar em nada mais contraproducente, no que diz respeito à segurança da sociedade.
Eu me sentia como o meu tio Dito Araçá devia ter se sentido, quando as toras de madeira caíram sobre o seu peito, no acidente de caminhão que o matou. Mesmo estando meio
inconformado com a situação, não retrocedi em minhas atitudes,
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porém no fundo tinha a confiança de que no fim da linha um
futuro positivo me aguardava.
Passei a conversar mais, dentro da cela. Fui me conformando aos pouquinhos, até que chegou um dia em que já não mais
chorava. Passei a rir e a me descontrair. Comecei a contornar os
problemas e compreendi que para tudo há uma solução, enquanto há vida.
Meus pais retornaram à cadeia para me visitar e Josiane conseguiu entrar pela primeira vez. Fiquei muito feliz ao vê-la. Já fazia um mês que eu estava preso e ainda não a tinham liberado
para entrar. Depois de muita burocracia para elaborar os documentos necessários, provando que era minha namorada, foi liberada a sua visita.
Essa visita correu melhor — me senti mais solto para conversar, apenas me emocionava em alguns momentos e chorava
um pouco. Josiane nunca havia entrado em uma cadeia, e eu percebia pelo rosto dela, que estava meio assustada com o lugar, e
com o fato de eu estar ali. Ficava olhando a estrutura da cadeia,
reparando nas grades, os portões de chapas de aço bem grossos e
também a sujeira nas paredes e nos tetos do interior da cadeia,
sinais de queimaduras pelas paredes, devido às rebeliões
acontecidas anteriormente.
Conversamos muito a respeito de como ficaria nosso relacionamento dali em diante. Eu disse:
— Quero de você uma resposta. Josiane, você está vendo a
situação em que estou, eu não quis isso, mas agora preciso saber
uma coisa de você. Eu já ‘tô condenado’. Não tenho outra coisa a
fazer, senão cumprir a pena. Não é uma cruz que você precisa
carregar. Você sabe que não fiz nada, depois que a conheci, para
vir pra cá. É uma coisa que eu já tinha feito. Eu só quero saber se
você vai querer assumir essa responsabilidade de me ajudar a carregar esse fardo. Quero saber se você vai ser fiel comigo. Porque
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se você não for, ou se você neste momento acha que não vai agüentar, a gente pára por aqui, agora!
Disse que tudo mudaria entre nós. Teríamos que ser cautelosos um com o outro, porque agora nosso relacionamento ficaria
mais tenso. Deixei claro, também, que se ela quisesse terminar
comigo, este seria o momento de fazer a escolha. Caso quisesse
continuar, teria de me prometer que caminharia comigo até o
final dos meus dias dentro da cadeia, e o mais importante para
mim era que ela continuasse me respeitando. Não queria sofrer
com a possibilidade de vê-la afastar-se de mim e aproximar-se de
um outro. O que eu não queria ter, dentro da cadeia, era essa
dúvida me atormentando. Ela concordou com tudo que falei e
disse que não me abandonaria. Pedi, então, que ela fizesse o teste
de gravidez o mais rápido possível, pois eu sofria com essa incerteza. Precisava ter uma idéia mais clara da situação o mais rápido
possível, para assim diminuir um pouco a minha agonia — que
na verdade só teria fim quando eu pudesse voltar para casa.
Meus pais sorriram mais ao me verem, porque perceberam
que eu estava melhor do que da primeira vez que me visitaram. O
tempo passa tão rápido! Mais uma vez acabou a visita, e sofri outro momento triste de despedida. Depois de saírem, fiquei meio
chateado, mas logo fui bater um papo com meus companheiros
da cela, para trocarmos as notícias recebidas. Graças a Deus todos
haviam recebido mensagens boas de conforto e paz.
Logo chegou o meu “jumbo” — mantimentos trazidos pela
família, que também sofreram a revista, para só então serem levados à minha cela. Mamãe mandava muitas frutas, e às vezes deixava de comprar as coisas de casa, para guardar o dinheiro e comprar algo para me levar na cadeia.
Por todos esse tempo vivido nas celas, aprendi a dividir tudo
que fosse de comer, para matar a fome do companheiro. O faxina
Miro era dono de uma rede de supermercados em Itápolis, e a
mãe dele também levava muitas coisas gostosas. Ele sempre me
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dava um pedacinho de uma torta e refrigerante. Sempre dividir,
esse é o lema.
Conforme tudo isso foi acontecendo, foram se somando os dias.
Eu via muitos novatos chegarem, outros irem embora, cada um no
seu devido tempo — e nós ali no xadrez, ainda aguardando.
*
Certo dia, um menor dava entrada na cadeia. Mais uma vez
ouvimos o zum-zum-zum que vinha lá da frente. Foi se aproximando da nossa cela. Observamos que era mais um conhecido.
Um adolescente com o nome de Márcio, vulgo “Marcinho Preto”, da cidade de Borborema também. Estava sendo preso por
uma série de infrações, e a juíza tinha decretado um Mandado de
Busca e Apreensão. Ele já vinha tendo muitas chances com a Juíza,
mas furtava excessivamente — era furto de aparelho de videocassete, televisão, bicicleta... Roubava no próprio bairro. Tudo isso
ele fazia para manter o seu consumo de entorpecentes.
Já chegou confundindo as coisas. Ali tínhamos normas a seguir e as passamos a ele, mas creio que por falta de atenção ele
acabou arrumando desavença com o Rodrigo, a quem ele ofendeu mostrando o dedo. Rodrigo perdeu a cabeça e agrediu Márcio,
e acabou levando vantagem. Márcio foi nocauteado. Para mim,
essa violência foi excessiva, e, querendo evitar complicações maiores para o meu lado, fui correndo até o banheiro, peguei um frasco com água e o atirei no rosto do Marcinho. Ele recuperou os
sentidos após alguns segundos. Fiquei apavorado, com medo de
que me sobrassem problemas, como no caso do Zequias.
Quando Marcinho acordou, o Rodrigo começou a falar um
monte de coisas para ele, que ouviu tudo quieto, talvez com medo
de que o agredíssemos também. Mas eu, desde quando retornei
para a prisão, tinha o objetivo de permanecer em paz.
Marcinho ficaria ali apenas por alguns dias. A juíza estava
aguardando uma resposta da FEBEM de Araraquara, para onde
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ele deveria ser enviado. E sem demora, após alguns dias, ele foi
transferido. Não tínhamos a mesma chance que ele de poder ir
para essa FEBEM de Araraquara, porque a juíza solicitou vagas,
mas a unidade negou, alegando ser apenas uma unidade para
primários, sendo Rodrigo, Paulo e eu todos reincidentes. O mesmo pedido a juíza fez para as unidades de Ribeirão Preto e Tatuapé,
em São Paulo, mas elas responderam que não tinham vagas e nem
segurança suficiente para nós três. Então ela solicitou vagas em
Franco da Rocha, que, sem muita demora, retornou concedendo
as vagas para Rodrigo e para mim. Paulo seria encaminhado novamente para a UAI do Brás.
Destas notícias ficamos sabendo através de meu advogado,
que passou para minha família, que nos contou. Já podíamos deduzir que essa seria a última visita.
Todos ficamos muito entristecidos, porque já conhecíamos
nosso destino. Franco da Rocha nunca foi bem vista e os internos
eram considerados de Alta Periculosidade, sendo autores de Crimes Graves e Gravíssimos. Também conhecíamos a rigidez desse
complexo. Os funcionários batem demais e os internos revidam
com muita agressividade. Fui tomado pela sensação de medo.
Medo de arrumar encrenca e, ao me defender, acabar me prejudicando. Quando entramos em uma cadeia sempre surge o medo
do que virá, pois nunca se sabe o que, onde e quando poderá
acontecer o inesperado, como uma briga ou uma rebelião. O medo
é constante.
A última visita em Itápolis foi a mais marcante, pois todos
choramos, nos despedimos e prometemos aos nossos pais que venceríamos e que logo estaríamos de volta. Falamos também que
eles não deveriam se preocupar conosco, que estaríamos bem.
Rodrigo e eu permaneceríamos no mesmo complexo e seria mais
fácil superar as barreiras com um colega ao lado. Mas Paulo estaria só e, infelizmente, ninguém poderia mudar seu destino, somente Deus.
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Encerrou-se a visita e o clima de tristeza, angústia e emoção
tomaram conta do lugar. As lágrimas escorriam no rosto de todos.
Recebi o adeus deixado por meus familiares e o último beijo que
Josiane me deu, com seu rostinho cheio de lágrimas, assim como
o meu. Depois do beijo, ela foi-se embora com meus pais.
Tentei passar o máximo de energia positiva que pude, para
que não ficassem preocupados. Mas a mídia, através dos canais de
TV, já vinha falando do que era a FEBEM de Franco da Rocha.
No dia seguinte, Paulo foi transferido para a UAI. Desejamos boa sorte a ele.
Aguardamos apenas mais três dias. Bem de manhã, o carcereiro veio até nossa cela para avisar que aquele seria o dia de partir
e devíamos nos preparar.
Pegamos o que deu para pegar e deixamos alguns pertences
para outros presos mais necessitados, que não recebiam visitas.
*
Chegada a hora. A grade foi aberta, mas não para a liberdade. Um calafrio tomou conta de todo o meu corpo. Ao sair, Miro,
o faxina, veio se despedir e desejar-me boa sorte. Disse para que
eu não esquecesse dele. Respondi que jamais o esqueceria e também deixei o meu “boa sorte” a ele. Asseverei que um dia nos
veríamos, do lado de fora da prisão.
O Rodrigo já estava lá na frente do corredor. Conforme fui
passando ao lado do restante das celas, todos os meus conhecidos
me desejavam boa sorte. Os chefes de carceragem, Marcão e
Eduardo, os mesmos que me haviam incriminado, já estavam
aguardando com as algemas abertas, prontas para serem colocadas e travadas em nossos pulsos. Levaram-nos até a frente da
carceragem, onde a viatura nos esperava com o compartimento
traseiro aberto para entrarmos. Uma forte escolta de policiais ocupava mais duas viaturas, que nos acompanhariam até a FEBEM.
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Entramos e nos trancaram mais uma vez de forma irregular
no compartimento fechado, que segundo a lei é proibido para
menores — mas ali não existem leis para presos. Se viesse a acontecer um acidente, como iríamos nos proteger, que segurança nos
ofereceriam? E conosco foram três policiais dentro da viatura em
que estávamos. O único que tinha coração ali era o Sr. Leandro,
que muito me orientou; este sim é um bom profissional. Os outros carros que nos escoltavam seguiam um na frente com quatro
ocupantes, outro atrás com mais quatro, somando no total onze
policiais. Tudo isso por receio de algum resgate ou tentativa de
fuga, por estarmos, aos olhos deles, inconformados com a situação, e pela viagem ser longa — aproximadamente cinco horas.
Viagem longa, mas correu tudo bem. Paramos apenas uma
vez, próximo de Campinas — mas de tantos policiais em volta de
mim e de tanta vergonha, nem utilizei direito o banheiro. Fiquei
incomodado, pois todos nos olhavam, e os policiais causavam espanto. Passei muita vergonha. Em mim não imperava mais um
instinto criminoso, apenas a intenção de pagar o erro cometido
há muito tempo, que foi julgado só agora.
"Por que?", eu me pergunto. Por que vieram me julgar, só
nesse momento, quando a lei prevê um prazo máximo de 45 dias
para o juiz ter uma posição sobre o que será feito do menor infrator — se ele ficará internado provisoriamente, ou se receberá uma
condenação definida em instituição educacional?
De qualquer forma, chegamos ao nosso destino. Rodrigo e eu
começamos a observar a altura das muralhas, os seguranças em seus
postos nas guaritas, policiais próximos dos portões, cães perto dos
muros. Já começava a me dar um enorme calafrio, medo de que
alguma coisa ruim viesse a me acontecer. Chegamos aos portões de
entrada. Os policiais que me traziam se identificaram. As outras duas
viaturas que nos escoltavam permaneceram do lado de fora.
Entramos.
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EM BRANCO
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TERCEIRA PARTE
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EM BRANCO
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CAPÍTULO IX: Eu queria realizar um sonho.
Em minha primeira passagem pela Fundação, tinha ouvido
falar, muitas vezes, da FEBEM de Franco da Rocha. Das suas rebeliões, do perigo e do sofrimento que era ficar nesse lugar. Ouvia relatos de funcionários que trabalharam nessa unidade, relatos de internos que passaram por lá. Desta vez, lá estava eu, para
enfrentar a temida Unidade de Franco da Rocha.
Uma vez atrás das muralhas, senti que a minha única proteção no momento era Deus. Os policiais desceram do carro, abriram o chiqueirinho para que Rodrigo e eu pudéssemos sair e,
nem bem descemos, um funcionário já nos mandou virar e encostar o rosto contra a parede, colocar as mãos para trás, e sem
conversa. Dessa forma ficamos uns cinco minutos. O funcionário
mandou que o acompanhássemos, mas com as mãos para trás e a
cabeça baixa, caminhando um atrás do outro. Chegamos a um
banheiro — por sinal coletivo, com muitos chuveiros — e o funcionário mandou que tirássemos as roupas para que ele efe-tuasse
a revista, e assim fizemos. Todos os nossos pertences foram recolhidos. Permitiram que entrássemos apenas com as cartas, pois o
restante ficaria ali em um saco preto com o nome de cada um.
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Após a revista, ele nos passou as normas e disse que qualquer
descumprimento resultaria em paulada.
Disse também que essa unidade “Alemanha” (em alusão aos
campos de concentração nazista, da Alemanha da Segunda Guerra
Mundial) era bem diferente das outras. O meu proceder, atitude
e o respeito seria os fatores que me levariam de volta para casa
ileso. Ouvi e guardei bem estas palavras, para não fazer nada de
errado.
Fomos adentrando ao pavilhão, para retirar as digitais. Na
entrada estava escrito UI 31. Tiramos as digitais e andamos mais
um pouco no sentido do interior do pavilhão. Havia um número
grande de funcionários e seguranças com seus pit-bulls seguros
pelas coleiras. A estrutura física era assustadora, cheia de grades
que iam do chão ao teto, com aproximadamente cinco metros de
altura. Passamos por umas quatro dessas grades, até chegarmos às
celas chamadas de “triagem”. Rodrigo e eu fomos separados —
ele foi para uma cela solitária e eu para outra. Deram-me um
colchão, lençol e uma troca de uniforme. Então fecharam a porta
da cela, que era composta de chapa de aço, com apenas um pequeno vão, que serve para entregar a comida ao preso. As paredes
até que estavam bem pintadas, mas a torneira e o vaso sanitário
não funcionavam. O espaço era apenas para dormir, pois circular
não era possível.
Em seguida um funcionário veio me trazer um prato de comida e uma garrafa descartável com dois litros de água. Eu me
alimentei um pouco, mas não comi toda a comida — estava muito pensativo. Pensava em minha família, minha namorada. Lia e
relia as únicas cartas que estavam comigo. Creio que Rodrigo também estava fazendo a mesma coisa.
Sentia um aperto dentro do peito, uma enorme vontade de
chorar, tentava encontrar um porquê para tudo isso, um porquê
para tanta angústia, sofrimento e solidão.
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A distância entre meus familiares e eu ficou maior. Por esse
fato já não tinha esperanças de receber visitas, mas eu queria conhecer o resultado do exame de gravidez da minha namorada,
pois esta incerteza me torturava. O primeiro dia na solitária passou, e como o primeiro, assim foi o segundo, terceiro, quarto,
quinto até o décimo, quando me tiraram da triagem “solitária” e
me levaram para o “fundão”, onde estavam outros internos em
seus pavilhões — denominados “alas”. Me colocaram na ala B.
Antes de me soltarem no pátio, tive que raspar a cabeça
— Isso é uma norma da unidade para diminuir as coceiras,
piolhos e outras doenças.
Agora com a cabeça raspada, fui solto no pátio junto dos
outros. Fiquei quieto num canto, apenas observando a partida de
futebol. Rapidamente, alguns se aproximaram de mim para conversar. Conversamos. Me identifiquei, citando “B.O., cidade, passagens na FEBEM…”. Enfim, passei todas as informações a meu
respeito, e coletei algumas também.
Terminamos a conversa. Me chamaram para participar do
jogo de futebol que estava acontecendo na quadra. Como estava
com muita vontade de correr, não pensei duas vezes. Fazia quase
dois meses e meio que eu estava preso, e ainda não me haviam
soltado para estalar e desenferrujar os ossos, que estavam travados.
Joguei um pouco. Terminou o horário do banho de sol. Tínhamos que nos recolher para as celas, tomar um banho e depois
aguardar o almoço. Eu ainda não sabia em que cela residiria. O
funcionário me disse que ficaria no X-2, porque todos são da
mesma compleição física e altura. Eu me dirigi até a entrada da
cela. Todos me cumprimentaram com apertos de mão e fui bem
recebido. O funcionário assoou o apito, e todos começaram rapidamente a formar uma fila, um atrás do outro. Fiz o mesmo, entrando com os outros numa só cela.
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Quando olhei para o lado de dentro da cela, comecei a contar em quantos estávamos. Contei doze presos, eu incluído. Logo
fui contar quantas jégas (“camas”) havia, e também eram doze,
uma para cada um. Havia dois vasos sanitários e dois canos que
serviam de chuveiro.
Agora era hora da ducha e, na movimentação, fiquei observando cada um, um por um, até que vi um rapaz cuja fisionomia
não me era estranha. Parecia conhecê-lo de algum lugar, não me
recordava de onde. Permaneci na minha, até ver se ele se
manifestava. Após algumas trocas de olhares, ele veio até mim e
disse que me conhecia. Respondi que também tinha a mesma impressão. Ele perguntou se eu havia passado pela UAP 6, então
consegui lembrar dele. Realmente tínhamos ficado presos juntos.
Ele atendia pelo vulgo de “Tatau”. Era de Ribeirão Preto e,
na época em que ficamos presos na UAP 6, ele estava lá por ter
cometido um homicídio e fora liberado com seis meses, mas havia
retornado por outro homicídio, desta vez assassinou um PM e se
entregou perante o juízo por garantia de vida.
Eu disse que não havia cometido mais nenhum delito, mas
que estava preso cumprindo uma sentença que demorou a ser
julgada. Entramos um pouco mais em detalhes. Ele recordava-se
da época em que Zequias passou pela UAP 6. Tinha até presenciado o trem-bala que ele tomou no boi.
E assim nos tornamos colegas e fomos caminhando para a
ducha. Levei apenas minha toalha. Ele percebeu que eu não tinha sabonete e me cedeu um.
— Muito agradecido — respondi, e fui tomando minha
ducha e conversando com ele, que me explicou algumas coisas do
pavilhão.
Mais tarde, os doze adolescentes formaram uma fila para
saírem do xadrez. Caminhamos até o refeitório, que era uma espécie de “cela maior”. Entramos e nos sentamos para aguardar a
refeição. Notei que estava sendo servido comida em marmitex, e
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não um prato como aquele que me serviram na triagem. A refeição na “ala B” é diferente da dos demais que aguardam na triagem. Durante o almoço não é permitido conversar, assoar o nariz,
se coçar, limpar os dentes e nem mastigar de boca aberta. Se alguém fizesse alguma destas coisas, iria direto para o seguro. Aqueles que se enquadram em algum desses casos podem ter a certeza
de sofrer muito do lado de dentro, pois não são aceitos pelos outros internos. Alguns funcionários às vezes aproveitam da sua situação para humilhá-los, ou colher informações sobre como anda
a cadeia, alguma rebelião programada, internos sendo torturados
por seus companheiros fora das vistas dos funcionários — esse
tipo de informações. É um lugar onde vale tudo, só não vale pisar
na bola.
Após a refeição, retornávamos para o xadrez, até a comida
fazer digestão. Aguardávamos o horário da escola, que era a partir das três horas da tarde. Permanecemos até uma e meia da tarde trancados. As celas são chamadas de “trancas”, pelas portas
serem compostas de chapas de aço, com alguns pinos de grade ao
lado para servir de suspiro, como forma de circulação de ar.
Em questão de instantes já fiquei mais chegado da turma
toda, através do Tatau, que indicou para a rapaziada que eu era
um “truta” dele (amigo dele), que eu era mais um “sangue bom”.
Ele foi uma espécie de “cunha”, um apoio para conviver bem.
Isso geralmente acontece quando se tem algum conhecido. A caminhada fica mais leve, é mais fácil de se pegar uma coletividade
e viver os dias com mais tranqüilidade. Já para aquele que não
conhece ninguém, fica mais difícil a convivência. Para adquirir
ajuda sobre o procedimento da cadeia e do X, os irmãozinhos que
já estão lá passam as coordenadas do que se pode e não se pode
fazer.
O Rodrigo acabava de chegar para morar ali no pavilhão.
Tive a sorte de tê-lo na mesma ala que eu, mas ele foi morar no
X4. Fiquei um pouco mais confortado, porque sabia que batería167
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mos um papo todo dia. Ele mal entrou no xadrez dele e já era
dada a hora de sair para o pátio, então nos cumprimentamos e
nos abraçamos.
— Firme? — eu disse.
Ele respondeu:
— Firme e forte.
Apresentei-o para o Tatau e mais alguns manos da cela. Ele
já se sentiu mais acomodado. Os irmãozinhos do meu xadrez disseram a ele:
— Se precisar de alguma coisa liga nóis lá no dois. — Uma
frase que significa “conte conosco”.
Quando se está no pátio não é preciso andar com as mãos
para trás. Havia apenas uma sala de TV dentro de nosso pavilhão.
Tudo que assistíamos era selecionado por uma central que fica na
entrada da FEBEM, pois não podíamos receber notícias da mídia
e pelos jornais, porque isso causa problemas e rixas entre presos,
— mesmo atritos entre as pequenas facções criminosas que imperam em determinado espaço.
A sala de TV era bem espaçosa, mas quando todos se reuniam a fim de apreciar um filme, aquilo virava uma lata de sardinha
de tão apertado. Chegava a relembrar a UAI — o que me dava
arrepios.
Às três horas era hora de estudar e. De acordo com a Lei
N.º 8069, de 13 de julho de 1990, do Estatuto da Criança e do
Adolescente, é dever do Estado e direito do adolescente ter acesso
à educação, lazer e cultura. Em outras palavras, todos os internos
são obrigados a estudar, mesmo não havendo interesse da parte
deles. Têm de estudar, senão serão conduzidos até a sala de aula
na paulada, embora não seja assim que a lei determine. De qualquer forma, é assim que a maioria dos funcionários costuma trabalhar, na Unidade 31 de Franco da Rocha.
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Penso que isso ocorre pelo fato de haver ali apenas internos
considerados graves ou gravíssimos. A unidade é de Alta Contenção. Os internos são mais problemáticos e a estrutura de tratamento já nasce errada desde o princípio, pois não faz sentido,
violência para combater a violência.
Quem estivesse no ensino médio era para formar uma fila
única, mãos para trás e cabeça baixa, e acompanhar os inúmeros
funcionários. Digo inúmeros, porque agora teríamos que andar
pelas galerias da unidade até chegar às salas de aula, e esse monte
de funça nos escoltava para não dar chance de haver tentativa de
nada.
Em seguida vinha quem estava no ensino fundamental.
Durante a aula era permitido apenas conversar a respeito da matéria e nada mais. Isso todos respeitavam porque o funça ficava na
porta e contrariá-lo certamente traria algum castigo.
Assistíamos às aulas até as cinco e meia, tomávamos um café
da tarde, que era um suco em caixinha e um pão, depois retornávamos para o pavilhão. Mas assim que entrei ali pela primeira
vez, me surpreendi, — estavam fazendo revista em todos os internos. Isso era feito por existirem certos elementos que pegam algum objeto para usar como arma. Sendo assim, a revista é necessária.
Após passar pela revista, fui para o X tomar uma ducha,
porque depois jantaria lá no refeitório, às sete horas.
Na cela, falávamos sobre nossas vidas, sobre família, namorada. As decepções do destino, os erros e os acertos. Era mais do
que uma terapia para mim, porque o que estava acontecendo em
minha vida me deixou muito sensível e emocionalmente frágil.
Comentei com Tatau que achava que minha mina poderia estar
grávida. Ele disse que eu tinha que me inspirar em lembranças
boas, pois o ambiente era muito negativo e tínhamos que ser positivos. Nosso objetivo era conquistar a liberdade, conquistar o
mundão. As palavras foram estas, que me aliviaram e ao mesmo
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tempo me inspiraram a levantar o meu astral. Eu me lembro que
ele falou assim:
— A gente tá preso, mas não tá morto, truta. A pena pode
ser longa, mas não é perpétua.
Ele realmente estava se tornando um amigo sincero, e mais
adiante vou descrever o porquê.
Assim acabamos vencendo mais um dia de nossa pena. O
mais importante foi que não ocorreu nenhuma desgraça no pavilhão, nem no restante da cadeia. Seria muito azar meu se ocorresse alguma novidade. Confesso que sentia muito medo de acontecer algo inesperado, por isso, ficava sempre esperto. Mas o inesperado ainda estava por vir.
*
Amanheceu mais um dia. Recordo-me de que era mês de
julho. Fazia frio. Meus únicos agasalhos eram o uniforme que a
unidade me cedeu. Mesmo assim sentia frio, muito frio. Às sete e
meia todos tinham que acordar, escovar os dentes e estarem com
as jégas arrumadas até as oito horas, porque depois seria servido o
café.
Permaneci no pátio com meus companheiros Rodrigo e
Tatau. Estava com vontade de jogar futebol, então começamos a
organizar um time. Tatau tinha um pacote de cigarro sobrando e
decidiu apostar com o time rival. Aposta com cigarros, artesanatos manuais, sempre foram comuns dentro dos sistemas carcerários.
Tatau disse que se vencêssemos, o pacote seria nosso; mas se perdêssemos, não precisaríamos pagar nada porque a iniciativa de
apostar foi dele.
Formada a nossa equipe, entramos em quadra.
O jogo foi lindo no primeiro tempo, saímos disparado com
vários gols. No segundo tempo trocamos de lado e o jogo começou duro e cerrado. Os dois lados queriam ganhar, porque um
pacote de cigarro tem um valor especial no ambiente restritivo da
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unidade. Seria o nosso troféu. O segundo tempo estava terminando. A partida ficou mais emocionante, ambos os lados ficaram mais agressivos nas disputas de bola — tanto que por várias
vezes ocorreram discussões. Mas a partida terminou e vencemos
com um enorme saldo de gols de vantagem. O pacote prêmio foi
nosso. Rodrigo e eu dividimos meio a meio e agradecemos ao Tatau,
pois não tínhamos nada.
Soou o toque de recolher para as trancas. Fomos tomar uma
ducha e depois almoçar.
Depois disso, meu astral foi ficando 100% positivo. Já não
ficava me torturando psicologicamente. Recebi a primeira carta
— foram minha namorada e minha mãe que escreveram. Nessa
carta diziam que tudo estava bem e que o exame de gravidez tinha dado resultado negativo.
Fiquei triste mas ao mesmo tempo feliz. Triste porque minha
criança não viria, e feliz porque na situação em que me encontrava, não poderia cumprir meu papel de pai. Essa carta me deu
mais alívio. Passei a viver os meus dias com a cabeça fixada na
minha realidade, mas meus sonhos e objetivos de vida permaneciam vivos em meu íntimo.
A carta foi um fator muito importante para o meu bemestar interior. Eu a guardei com muito carinho. Afinal, ela era a
minha companheira. O dia passou mais rápido, joguei futebol,
almocei, estudei e jantei.
E assim passaram-se dias e mais dias de reeducação paga à
justiça.
*
Quando estava para completar um mês da minha chegada à
UI 31, surge o inesperado, a novidade: o início de uma rebelião
no pavilhão “Ala G”.
Tumulto dos internos lá no fundão da cadeia. Eu podia ouvir o barulho, os gritos, o ruído de ferros sendo arrastados pelo
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chão, e portas de aço que, pelo barulho infernal, estavam sendo
arrombadas. Em questão de segundos, no máximo um minuto,
uma leva de internos adentrava o nosso pavilhão. Alguns internos
de nossa ala, pelo arroubo da emoção ou por impulso, começaram a chutar as portas.
Apareceu entre nós o pessoal que começou o tumulto. Percebemos que tentavam dominar o restante das alas, sendo oito
alas “pavilhões” comportando o total de 400 internos, divididos
em oito alas, as Alas A, B, C, D, E, F, G, H — cada uma comportando cinqüenta internos. Agora estavam todos soltos e misturados. Alguns funcionários até tentaram resistir e reagir, mas a maioria deles correu. Os poucos que ficaram para reprimir correram
também ao verem a quantidade elevada de internos desgovernados.
Todas as celas foram abertas. Em nosso xadrez todos saímos
para tomar ciência da situação, e saber qual a razão e a finalidade
de tudo aquilo. Era porque os funcionários estavam batendo
muito. Em pouco tempo, dois helicópteros da polícia sobrevoavam a unidade. Nenhum interno havia fugido até então. O clima
era tenso. A tropa de choque foi acionada e já estava no portão
central, preparada para entrar. Não havia reféns dentro da unidade, mas alguns internos considerados “pilantras” estavam apanhando um pouco de outros internos. O impasse durou pouco,
cerca de quarenta minutos, até que acertaram uma negociação.
As reivindicações foram no sentido de que os funcionários parassem de bater, pois a violência estava virando rotina. Por qualquer
deslize de um interno eles já vinham batendo com canos de ferro
e tacos de madeira. Nessa mesma época a UI 32 de Parelheiros foi
desativada, por terem encontrado no seu interior objetos usados
para a tortura como forma de repressão. Um interno, porta-voz
dos demais, fez a reivindicação.
A direção da UI 31 garantiu que não haveria esse tipo de
tratamento e que estava tomando conhecimento dos maus tratos
somente então. Garantiu que fiscalizaria o trabalho dos agentes
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de proteção, funcionários e coordenadores. O porta-voz dos internos disse que se renderiam, mas não queriam a tropa de choque entrando nos pavilhões.
Dentro da minha cabeça eu tirava as minhas conclusões —
dificilmente acabaria a violência institucionalizada. Mas agora era
esperar tudo voltar ao normal. Não houve grave destruição do
patrimônio público — apenas algumas portas foram arrancadas
e alguns colchões queimados. Nada de tão grave.
Tudo combinado e agora os funcionários entrariam para fazer
a contagem e dividir os adolescentes. A multidão se dispersou.
Cada um retornou à seu pavilhão, mantendo-se todos sentados
no pátio até a entrada dos funcionários, como fora o combinado.
O helicóptero sobrevoou mais uma vez e foi embora. Em
seguida os funcionários entraram.
Estávamos todos sentados em fileiras. Eles entraram e perguntaram se havia alguém machucado. Ninguém se manifestou
porque não havia ninguém ferido. Mandaram todos tirarem as
roupas, permanecerem sentados apenas de cuecas. Assim foi feito, para que pudesse ser feita a conferência de números, nomes e
observação do corpo de cada adolescente, para ver se havia marcas ou não.
Eu só queria sair dali porque o sofrimento era constante. Se
cometesse um deslize no falar, arriscava-me a levar uma surra.
Perfeito eu não sou, por isso vivia com medo.
Tudo voltou ao normal após a revista dos internos. No espaço da ala, algumas facas artesanais, chamadas de “naifas”, foram
encontradas ou entregues. Voltamos para as celas. Nada foi
destruído em nosso pavilhão. Por enquanto ninguém tinha apanhado — estava sendo cumprido o contrato verbal firmado com
a Diretoria. Isso eu afirmo com respeito à minha ala, a B.
*
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Ficava pensando em uma oportunidade de avanço, mas ali
era difícil progredir — os cursos profissionalizantes eram poucos
e eu tinha que aguardar em uma lista de espera.
Pedi a um funcionário de nome Santana para chamar o coordenador Tarso. O pedido foi atendido. Conversei com ele, pedindo para falar com a assistente social, ou com a psicóloga, pois
minha intenção era pedir uma oportunidade de melhoria. Queria saber se ela poderia me transferir para uma unidade melhor.
Tudo isso expliquei ao Sr. Tarso, que disse que veria isso para mim.
Mais tarde ele veio me chamar na cela, pois a assistente social Evaneir estava me esperando. Fui conduzido até a sala dela e
conversamos bastante. Contei quais eram as minhas idéias e pedi
a sua compreensão. Eu precisava sair dali, porque da forma que
estava eu não via espaço para mostrar que me recuperava. Minhas idéias eram:
— Já que estou terminado o Segundo Grau, faltando apenas eliminar as disciplinas de Português e Física, eu queria realizar
um sonho.
— E que sonho é esse? — ela perguntou.
Contei que estava estudando quando em liberdade e, como
ela já sabia, eu estava preso há apenas alguns meses, mas o meu
objetivo lá fora era terminar o Segundo Grau e prestar o vestibular. Eu queria cursar Direito, mas tudo fora interrompido por
causa de uma sentença antiga que tinha recebido recentemente.
A assistente social ainda não me conhecia bem, e deu uma
risadinha irônica, quando lhe contei isso. O Sr. Tarso permaneceu ouvindo sério. Ele sabia qual era o meu comportamento na
ala, porque no seu trabalho ele convivia cerca de doze horas
conosco, e estava me conhecendo. Então o Sr. Tarso perguntoulhe se seria possível conseguir uma transferência para uma de três
unidades: UI 21, UI 25 ou UI 29. Ela respondeu que por enquanto não havia vagas, mas que analisaria a minha situação com
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mais calma, e depois me daria um parecer. Respondi que tudo
bem e pedi para fazer uma ligação. Ela permitiu porque eu não
tinha visitas.
Falei com minha mãe, disse que estava bem. Ela vivia preocupada. Tinha visto no programa do Gugu imagens da rebelião.
Terminei a chamada porque o tempo era curto.
Tarso retornou comigo para a ala. Fomos conversando. Ele
disse que eu tinha uma conduta diferente dos demais. Paramos
nas galerias da unidade e ele perguntou o que eu havia feito. Expliquei a ele, e ele foi compreensivo. Aconselhou que eu continuasse com a mesma conduta e com os mesmos pensamentos,
que ele me ajudaria na medida do possível. Foi muito gratificante
ouvir essas raras palavras, porque dificilmente um coordenador
ou funcionário diz essas coisas para um interno — era preciso
primeiro mostrar muito boa conduta, para que isso acontecesse.
Estávamos entrando no pavilhão. O funça Sr. Santana veio
me entregar uma carta que havia chegado. A remetente era minha namorada. Agradeci ao Sr. Santana. O coordenador Tarso
me acompanhou até o xadrez. Antes de entrar eu o agradeci bastante. Fui sincero, disse o meu obrigado de coração. Ele me respondeu que esse é o trabalho dele, para os que demonstram interesse em evoluir.
Entrei no X e já fui ansiosamente ler minha carta. Eram umas
cinco folhas de fichário. Com essas folhas vieram palavras lindas
de conforto, força e amor. Veio também uma letra de música dos
Travessos — “Bagagem”, que fala sobre a distância e a esperança
de que ela nunca venha a nos separar.
Meu dia ficou ótimo. Era como se nem estivesse preso. Eu
me senti muito motivado para continuar de cabeça erguida. O
apoio da minha namorada e da minha família estava sendo o meu
alicerce e minha inspiração de conquista.
*
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Passei a jogar bola todos os dias na parte da manhã, pois ali a
gente tem que se manter ocupado, senão enlouquece. Consegui
algumas folhas de sulfite e um papel celofane, esses de embrulhar
ovos de páscoa. Comecei a fazer artesanatos manuais, porta-retratos, cestinhas e casinhas, para que pudesse dar de presente quando visse alguém de minha família. Era uma atividade muito interessante, porque, enquanto fazia o artesanato, eu ficava pensando
na minha mãe, no meu pai que estava meio doente, na minha
namorada, e colocava todo o amor e carinho nos objetos. Ficava
refletindo sobre a minha vida, os meus sonhos, minhas perspectivas futuras, meus erros e acertos, e o que podia fazer para melhorar ainda mais. Pensava também na situação em que me encontrava. Qual a solução para revertê-la, e como provar a todos que
eu realmente estava bem e que era capaz de conquistar meus objetivos e realizar meus sonhos?
Muitos livros que eu lia, apesar da dificuldade em ter acesso
a eles, tinha de pedir aos funcionários para que fossem buscar na
biblioteca, que a gente sabia existir no lugar, mas não exatamente
onde. Quando se pedia um livro, o funcionário levava o pedido
até as assistentes sociais. Dependendo do funcionário, a solicitação não chegava a elas e eu nunca via a cor do livro. Mas às vezes
conseguia, e eles me inspiravam à reflexão. Isso foi fazendo com
que eu fosse desenvolvendo um controle maior da língua portuguesa e um poder maior de reflexão. A minha preferência era ler
livros de psicologia e doutrinas jurídicas.
Através da reflexão, comecei a mostrar para mim mesmo que,
depois de tantas barreiras superadas, tudo que passei, e a força de
pensamento que eu estava tendo, era mais do que possível conquistar o almejado. Um grito de guerra foi dado em meu coração.
Acordei e percebi que já não podia perder mais tempo — era
hora de correr atrás e recuperar, de uma forma legal, tudo aquilo
que havia perdido, durante o tempo em que vivera na
marginalidade.
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Ainda aguardava a resposta da assistente social a respeito de
meu pedido de transferência. Não foi preciso esperar muito. Ela
me chamou.
Um funça veio me buscar no pavilhão. Foi de manhã — eu
estava no pátio assistindo a um jogo de bola e ouvindo uma música de rap, porque depois da rebelião colocaram uma caixa de som
no pátio, para o pessoal ouvir. Atendi o chamado do funça de
nome Marcelo, bacharel em direito, e caminhamos até a sala da
assistente responsável pelo meu caso, a Sra. Evaneir. Deduzi que
seria a respeito da minha transferência, mas só chegando lá para
saber.
Ela me viu, sorriu e me mandou entrar. Acompanhado do
funça, entrei e me sentei.
— Está tudo bem com você na ala, Cleonder? — ela perguntou.
— Sim, senhora — respondi. — A senhora sabe que pretendo fazer do meu tempo passado aqui o melhor que posso.
Fui sincero com ela e, acima de tudo, comigo mesmo. Percebi que ela gostou do que falei.
— Está com saudades da família? — perguntou.
— A saudade é enorme — eu disse. — Mas tenho certeza
que será por pouco tempo.
Ela me disse:
— Nossa! Como você está positivo! Faz bem ser assim.
— Fez uma pausa e prosseguiu: — Então vamos ao assunto. É
sobre aquilo que você me pediu. Analisando a sua situação, eu
solicitei uma vaga para uma unidade que é um internato aqui ao
lado, mas eles retornaram alegando que não há vagas.
Fiquei um pouco chateado ao ouvir isso. Ela percebeu.
Disse que tentaria solicitar em outra unidade.
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— Não se preocupe, que qualquer novidade eu me comunico com você.
Depois disso, ela me deixou fazer uma ligação. Falei com
minha mãe. Enquanto falava, eu chorava levemente. Mamãe me
disse que meu pai fora internado mas passava bem. Foi apenas o
reumatismo e a diabetes que se agravaram um pouco, mas não
era nada de grave. Perguntei sobre minha namorada. Ela disse
que todos os finais de semana Josiane vinha passar o dia com eles,
porque entre segunda e sexta-feira ela trabalhava e estudava.
Tive que terminar. Me despedi, disse que estava bem e para
não se preocuparem. Pedi a benção dela e desliguei. Agradeci a
assistente, olhei para o funça e com ele voltei para o pavilhão.
Conversamos um pouco. Eu tinha ouvido os meus companheiros
de X falarem que ele havia cursado uma faculdade de direito.
Perguntei a ele se era advogado.
— Quem te falou isso?
Contei a verdade. Ele disse que não era advogado porque
ainda não tinha prestado o exame da OAB. Quis saber por que
eu perguntava. Disse a ele que meu sonho era cursar Direito, e
que tinha planos de mesmo estando ali dentro conseguir prestar
um vestibular. Ele ficou meio pensativo com o que eu disse. Já
estávamos chegando na ala e encerramos a conversa com ele dizendo:
— Vá em frente.
*
A maioria das notícias que recebera foram boas. Apenas fiquei pensativo sobre o problema do seu Francisco, meu pai — e
sobre meu pedido de transferência. Mas logo fui tentar terminar
de ler um livro e relaxar. No dia seguinte os funcionários vieram
selecionar alguns internos para conversar. Fui selecionado, sem
nem saber para o que era. Meia dúzia de internos foram conversar com o coordenador Sr. Tarso, na sala da coordenadoria. O Sr.
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Tarso, com seu jeito brincalhão, cumprimentou-nos e pediu para
entrarmos para bater um papo.
A primeira coisa que ele perguntou foi:
— Quem está de boa aqui?
Todos responderam erguendo os braços. O Sr. Tarso então
disse:
— Tudo bem, mas prestem atenção. O grande caso é o seguinte: estamos querendo pintar o nosso pavilhão com uma cor
mais leve, e vocês foram chamados aqui pelo bom comportamento e indicados pelos funças. Quero saber quem está disposto a
participar desse trabalho.
Mais uma vez todos levantaram os braços, porque falta ocupação e estando ocupado, sofre-se menos.
Tarso disse que depositaria o voto de confiança dele em nós,
porque isso tinha que ser uma tarefa “de responsa”.
Todos já foram se levantando e pegando as coordenadas com
o Sr. Santana, que era o funcionário responsável. Ele disse que
durante o tempo em que estivéssemos trabalhando, não seria necessário andar com as mãos para trás, e nos passou o restante dos
afazeres. Disse que primeiro pintaríamos as grades com tinta a
óleo, mas nos alertou que teríamos contato com tiner, uma substância tóxica se inalada, e que não queria descobrir novidades a
respeito de alguém “cheirar”.
Disse o seguinte:
— Vocês irão raspar as grades, retirar o mais grosso, lixar e
depois retirar o pó. Aí é só pintar. Depois das grades prontas,
vamos pegar as paredes.
As grades eram pretas e passariam a ser verdes.
Conversamos com firmeza, combinando que não poderíamos cometer nenhum furo.
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Para nós o trabalho começou a ser muito gratificante, pois
nos atribuíram responsabilidades e reconheceram nosso bom comportamento, e também depositaram confiança em nós. Isso faz
com que o interno se esforce para cada vez mais receber elo-gios,
o que faz parte da reeducação como uma terapia ocupacional.
Do meu ponto de vista e com experiência própria do lado
de dentro das muralhas, penso que faltava justamente ocupação
para todos. É necessário inserir vários cursos profissionalizantes,
para que o interno possa se especializar em alguma área, para que,
quando posto em liberdade, possa usufruir de sua experiência e
ter mais acesso ao mercado de trabalho. Um ex-interno trabalhando é um criminoso a menos nas ruas.
Pintamos todas as grades do pavilhão. Então atacamos as paredes, que estavam sujas e imundas. O Sr. Santana ficava observando e fornecendo o material de que precisávamos. Tudo levou
quase uma semana para ficar pronto, porém as grades e as celas
ficaram com um visual ótimo.
Quando acabamos, o coordenador Sr.Tarso pediu para o
Sr. Santana chamar todos os integrantes do grupo de pintura até
o refeitório. Chegando lá, o Sr. Tarso já veio brincando — esse
era o jeito dele ser e de trabalhar — e nos disse que havia uma
surpresa nos esperando.
Devido ao trabalho que fizemos, o Sr. Tarso nos deu duas
pizzas e duas garrafas de Coca-Cola de dois litros. Contou que
todos os funças deram uma contribuição financeira como forma
de gratidão pelo trabalho que desenvolvemos.
Após comermos, Tarso perguntou quem estaria disposto a
continuar trampando. Todos responderam que sim. O coordenador disse que agora íamos começar a pintar as paredes da galeria
e os corredores do interior da unidade. Começaríamos a partir
do dia seguinte.
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A rotina de quem estava envolvido no grupo de pintura ficou mais leve, e o ânimo aumentou por causa do trabalho. O juiz
estava sendo informado dos nossos esforços, através de relatórios.
Pintamos todas as paredes do interior da unidade. Ficou muito bonito. E mais uma vez ganhamos gratificações pelo nosso desempenho.
*
Depois de dois meses da minha chegada à unidade, a assistente me chamou mais uma vez. Fui até a sala dela, acompanhado
do Sr. Marcelo. Mal cheguei, ela já disse que tinha novidades. No
ato pensei que fosse minha transferência, mas não era a hora ainda. Mesmo assim fiquei feliz — eram meus pais que estavam ali
para me visitar. O Sr. Marcelo me levou até um local em que eu
poderia ficar com meus pais. O funça me conduziu até um pátio
que eu nunca havia visto, e fiquei aguardando meus pais.
Logo percebi que estavam sem os calçados nos pés — usavam um chinelo como o meu, cedido pela unidade, porque é
norma da casa substituir os calçados a fim de prevenir a entrada
de drogas, armas ou ferramentas de fuga.
Foi estabelecido o tempo de apenas trinta minutos de visita,
porque era no meio de semana, e para mim estava sendo aberta
uma exceção. Permaneci o tempo todo ao lado de dona Izilda e
do seu Francisco. Como fazia frio, eu tremia. Minha mãe desconfiou da tremedeira e perguntou se eu estava machucado. Quis
olhar o meu corpo, mas eu disse que eu não podia retirar a blusa,
porque havia outros internos nas imediações e se eu fizesse isso
seria punido. Ela sabia que existiam leis próprias entre os internos, por isso não insistiu. Tentei reconfortá-la:
— O tumulto que ocorreu já passou e agora estamos todos
bem, pois foi firmado um acordo entre os internos e as autoridades.
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Conversamos sobre meu irmão, minha namorada... Eu percebia a tristeza de meu pai. Ao observar seu semblante, me doía o
coração e ao mesmo tempo eu sentia vontade de chorar. Meu pai
não falava muito, ficava me olhando… Sabia que ele estava triste,
e intimamente eu desejava torná-lo o pai mais feliz da terra.
Como o tempo é curto, a visita chegou ao fim. Foi muito
difícil me despedir. Comecei a chorar e os abracei. O funça chegou e disse que encerrou o tempo. Mamãe me deu um beijo e
disse:
— Fica com Deus, meu filho.
*
No dia seguinte, logo de manhãzinha, o funcionário José
Roberto, que cursava o quarto ano de direito, solicitou que eu
apanhasse tudo que fosse meu porque estaria sendo transferido.
Nesse momento, senti uma forte sensação de alívio. Respirei
fundo, me senti mais leve e agradeci a Deus por ter ouvido meu
pedido.
Perguntei ao funça para onde eu iria. Ele respondeu não
saber. A ordem que fora passada a ele era de apenas me retirar do
X, porque eu ia de bonde (transferência).
Estava ansioso por sair daquele barril de pólvora. Fomos até
a entrada da unidade, onde uma van me aguardava. Algemaramme e prosseguimos. No caminho, perguntei para onde estávamos
indo. O funça respondeu:
— UI 25 de Franco da Rocha.
No mesmo instante desanimei, porque lá tinha ocorrido uma
rebelião há um mês. Mas fui em frente, pensando em fazer de lá
um lugar bom e não deixar o lugar me fazer uma pessoa ruim. O
funcionário, Sr. José Roberto, me disse que na 25 eu teria mais
oportunidades de conquistar o que queria.
Entramos em uma estrada de terra batida. O veículo subiu
um morro até chegar à entrada do novo complexo, em que eu
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permaneceria. Esse complexo era composto de unidades de Progressão; o anterior era Contenção.
Os portões foram abertos e o carro entrou dentro da “gaiola”. Descemos, o funça se identificou. Seguimos para o interior
do complexo, que comporta três unidades: UI 21, UI 25 e UI
29. Fui levado à uma salinha para passar pela revista. O Sr. José
Roberto foi embora me desejando boa sorte. Fique sob a responsabilidade do coordenador da UI 25, de nome Juarez. Tudo normal quanto aos procedimentos de entrada. Caminhamos e passamos pela 21 e 29 e seguimos para a 25, que fica nos fundos do
complexo.
Fui conduzido até a coordenadoria. Em todo o trajeto que
fiz, percebi que nada estava queimado — parecia que nem tinha
acontecido uma rebelião. Já na coordenadoria, fui levado a uma
mulher alta, loira, muito elegante. Reparei em seu crachá
— estava escrito Silvia. Ela se sentou na cadeira de sua mesa e me
perguntou:
— Qual é o seu nome?
Respondi:
— Cleonder Santos Evangelista, senhora.
— Qual a sua idade?
— Dezessete anos, senhora.
— O que você quer da vida Cleonder?
Eu disse:
— Quero prestar um vestibular e me formar Doutor em
Direito.
Percebi que quando pronunciei estas palavras, ela ficou meio
espantada.
— Espero que consiga — disse. — Pelo jeito você quer viver
bem o tempo que vai passar aqui.
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Respondi que se dependesse de mim, não causaria problemas, e que iria colaborar na medida do possível.
As normas foram passadas. Entendi tudo a respeito da unidade.
A coordenadora Silvia terminou o diálogo comigo e fui levado para o módulo A, quarto 2.
O quarto comportava oito adolescentes em camas individuais, todos uniformizados. Quando cheguei à UI 25, as coisas
ainda estavam um pouco rígidas, devido à recente rebelião. Não
estava sendo liberado o banho de sol, haviam cortado o cigarro
dos internos. Realmente, estava o maior veneno. Na verdade, saí
da UI 31 e quando fui para a UI 25, enfrentei todas essas dificuldades pelos erros dos outros — aqueles que haviam realizado a
rebelião pouco antes. Mas graças a Deus isso não durou muito,
porque depois conquistamos nosso espaço, recuperando os privilégios. E eu conquistei muito mais do que um simples espaço —
fui aos poucos conquistando um a um, tanto internos quanto funcionários.
Primeiramente nunca gostei de inimizade, embora tenha tido
inimigos na vida criminosa. Já então eu era uma pessoa de paz,
que procurava dar o respeito para ter retorno. Foi isso que aprendi no IEN e agora, na UI Rio Negro 25, não seria diferente. Não
criei atrito e ganhei a confiança dos colegas da unidade. Primeiro
dentro do próprio X, que agora passava a se chamar de “quarto”,
porque não havia grades, mas apenas uma porta de chapa de aço
chamada de “robocop”. Jonatas foi o primeiro cuja amizade conquistei. Eu o estimo até hoje. Estava preso por homicídio doloso
(Artigo 121) há dois anos e dois meses. Dentro do mesmo quarto
estava o irmão dele, Leonildo, vulgo “Cola”, preso por assalto à
mão armada (Artigo 157). O Jônatas era mais velho, com 19 anos,
e o Cola com 16 anos de idade. Não havia ninguém que eu já
conhecesse no quarto 2, mas eu reencontraria no banho de sol
antigos amigos de outras “unidades alemanhas”.
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Como logo de início fiz amizade com Jonatas e Cola, fiquei
tranqüilo. Eles gostaram de mim; também eram do interior de
São Paulo. Com o restante dos colegas de cela eu fui fazendo
amizade depois.
Com a união de todos e mantendo a disciplina, conquistamos mais tempo de banho de sol. O cigarro e as coisas de comer
que as visitas traziam foram liberadas para ficarem sob o nosso
próprio controle, e não dos funcionários.
A unidade 25 era composta por dois módulos, A e B. Cada
um comportava quarenta adolescentes.
Após alguns dias, o pátio foi liberado em período integral.
Os cursos existentes não deixavam o interno ficar desocupado —
todos eram inseridos em algum tipo de ocupação. Além dos cursos havia um trabalho sendo desenvolvido pelo funça Manoel,
mais conhecido pelos internos como “Manu”. Para quem tinha
interesse, ele ensinava a cultivar plantas, flores, para deixar a unidade mais agradável e com o visual mais bonito.
A respeito dos cursos profissionalizantes, era o Sr. Marcos
quem inseria os interessados. Certa vez, fui falar com ele porque
queria fazer alguma coisa. O Sr. Marcos é formado em Psicologia,
mas estava trabalhando na pedagogia e observando o interesse de
cada pelos cursos. Ele me colocou no curso de xadrez, cujo professor era o funcionário Rubens. Pessoa culta, inteligente e cuidadoso ao falar, ele me ensinou esse jogo que até então eu não conhecia e hoje jogo bem.
Fazia quase cinco meses que eu estava preso, fiquei dois na
cadeia do interior, mais dois no inferno da UI 31 e agora quase
um mês na progressiva 25. Já havia pegado a coletividade com
todos, porém encontrei conhecidos dos meus tempos de IEN,
UAP 6 e alguns que progrediram lá na UI 31 e vieram para a UI
Rio Negro 25. Muitos haviam reincidido e voltaram, outros ainda estavam presos.
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Na unidade havia uma parte do chão do pátio que era de
terra vermelha. O funça Sr. Mário queria melhorar esta parte da
unidade. Ele conhecia um pouco do serviço de pedreiro e queria
alguns internos para dar uma força no preparo do contra-piso e,
ao mesmo tempo, ensinar o serviço. Como era um trabalho braçal — mexer com concreto, tijolos —, poucos demonstraram interesse, mas eu já tinha trabalhado nesse tipo de serviço e pedi
para o Sr. Mário me incluir. Ele me chamou na hora para explicar o que queria fazer. Fomos até a área que seria trabalhada. Ele
começou a explicar, disse que chamaria mais alguns jovens para
ajudar e foi fazendo o convite para muitas pessoas, mas veio apenas um — era o companheiro vulgo “Farrampa”, do interior de
Minas Gerais, da cidade de Sete Lagoas. Eu já o tinha visto ajudando o Sr. Manuel com as plantas, e agora estaríamos juntos
neste trabalho. Começamos a colocar estacas. Estávamos em três,
Sr. Mário, Farrampa e eu, todos com as mãos na massa, pois quando
saíamos para o pátio retornávamos com os pés todos sujos de terra
e o uniforme cheio de poeira.
A intenção de nosso trampo era fazer um contra-piso em
todos os lugares do pátio em que havia chão de terra. O Sr. Mário
era gente fina e confiava em nós. Depois das estacas fincadas no
chão, passamos a fazer o concreto. Como dentro da unidade não
havia pedras, o Sr. Mário levava a gente para fora da unidade,
mas ainda dentro do complexo, pois perto do campo de futebol
havia uns dois metros de pedra. Pegávamos com a pá e carregávamos a carriola, voltando para dentro. Após alguns dias, indiquei
ao Sr. Mário o Jônatas, pois ele me contou que gostaria de dar
uma força. Sr. Mário o chamou para fazer parte.
O concreto era feito com o manuseio de enxadas entregues
em nossas mãos com a maior confiança. Mas também a gente se
considerava merecedor de confiança, porque não maquinávamos
o mal. Como diz o ditado: “Pela árvore se conhecem os frutos.”
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Então queríamos mostrar por nossos atos, que éramos merecedores dessa confiança.
Conforme a escala de plantão do Sr. Mário, nós trabalhávamos e, quando ele estava de folga, o Sr. Manoel assumia. Isso quando as folgas não coincidiam.
Eu estava estudando. Logo chegariam as provas das duas
disciplinas pendentes; eu teria que ser aprovado para depois pedir à minha assistente social uma oportunidade para prestar o
vestibular tão sonhado. Dentro de mim eu sentia que seria possível.
Tinha uma saudade muito grande de meus pais. Sempre
que ligava, pedia notícias de minha namorada. Eles me falavam
que ela estava bem, mas a saudade era muito grande. Já não a via
fazia tempo, muito tempo. Essa saudade e as dificuldades foram
me encurralando e eu sentia mais e mais vontade de lutar e vencer.
Muitas vezes eu não tinha uma bolacha para comer, porque
minha família não tinha condições financeiras de me visitar, mas
estas e outras dificuldades eu superava. E para distrair a solidão e
a dificuldade de não ter nada para comer além do que a unidade
dava, eu me achegava a um funcionário com quem me identificava bastante — o Isaac Corrêa, que tinha muitos dons musicais e
também era compositor —, pois tínhamos os mesmos gostos. Ele
era mestre em viola e violão e às vezes levava o violão para tocar.
Como eu também tocava, quando nos uníamos começava aquela
cantoria de música sertaneja, moda de viola e música-raiz. Havia
dias que passávamos um ao lado do outro fazendo ele a primeira
voz e eu a segunda, e de vez em quando ele me dava um maço de
cigarros e algumas balas. Eu podia ver que ele gostava de mim e
do Jônatas, que na maioria das vezes estava conosco, e o mesmo
que ele dava para mim dava para Jônatas, pois sabia que não tínhamos visita. O Jônatas já não via sua mãe há mais de um ano e
meio.
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Pelo fato de eu tocar violão, Isaac teve a idéia de montar o
projeto de um curso musical, que ele iria mostrar à direção, para
conseguir violões para a unidade. Como eu tocava, ele falou que
poderíamos fazer uma parceria; quando ele não estivesse de plantão ou estivesse em outras atividades, eu daria o curso para os
outros companheiros. Achei ótima a idéia e ele apresentou o projeto para a diretoria. Instantaneamente o diretor Domingos, que
é uma pessoa muito compreensiva, aprovou o projeto do Sr. Isaac,
e disse que solicitaria violões para começar o curso. Domingos fez
um pedido para a fábrica de violões Di Georgi, de Franco da
Rocha, mas de início recebemos a doação de apenas um violão,
de um pedido de cinco. Por isso ainda não era possível desenvolver a atividade, mas já foi o sinal de um começo. Após uma semana a fábrica doou mais três — no total eram quatro violões doados, que somamos a mais um que Isaac tinha. Assim, começamos
a ensinar de acordo com o tempo disponível, tanto o dele como o
meu. Foram selecionados alguns internos. Aos poucos fomos dando
início ao curso.
Mais uma conquista em união. Como a unidade estava com
um bom comportamento, o Sr. Maldonato, que antes era funça e
agora pedagogo, deu início à prática de levar os adolescentes para
o campo de futebol, que fica no lado externo da unidade, mas
ainda no interior do complexo. Eram selecionados os de boa conduta. Formávamos duas equipes, até mesmo alguns funcionários
se envolviam na partida. A maioria dos internos estava entrando
em um único espírito de viver em paz. Assim era mais gostoso de
se ficar ali, mais fácil, mais leve, melhor.
Arrumei ocupação para todos os dias — quando não fazia
contra-piso, estava jogando xadrez ou na escola, no campo jogando bola, ensinando violão, ou na rouparia, onde às vezes me chamavam para separar os conjuntos que seriam trocados após o banho. E quando no quarto, sempre ficava lendo algumas obras e estudando para eliminar minhas disciplinas. Mas sempre arrumava
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espaço para meus companheiros, Jônatas, Leonildo “Cola”,
Franklin “Cristão”, Alex “Boquinha”, Nicolau “Cara Torta”,
Wallace “Tilpolita” e Claudinei “Zap”. Assim eu ficava o dia todo
ocupado e isso me fazia muito bem. Muitos de meus companheiros estavam se espelhando em mim, e eu percebia isso, então os
estimulei para que fizessem o mesmo, pois seria melhor para todos e para a imagem de nosso quarto, que até então vinha sendo
elogiado por ser considerado o melhor em comportamento disciplinar.
Depois de um certo tempo de convivência, adquiri carinho
por todos esses meus companheiros, e falava de meus planos e
perspectivas para o futuro. Eles também falavam de seus sonhos.
Nunca houve ar de deboche; muito pelo contrário. Realmente
eles estão guardados em meu coração, independentemente do
caminho que cada um escolheu.
*
Com tanta ocupação, os dias passaram tão rápido que logo
chegou a primeira prova. Era de Português, e o pessoal do corpo
de funcionários e meus companheiros de quarto e outros me incentivavam muito. Fiquei meio nervoso, com medo de não passar,
mas o nervosismo sumiu, e fiz a prova. Após dois dias soube que
fui bem, pois tirei a nota 6,0.
Agora só faltava uma, a mais difícil, Física. Nessa matéria eu
tinha dificuldade. Mas quando chegou o dia, o mesmo apoio e
incentivo foi dado a mim por todos; fiz a prova, que foi corrigida
na hora. Recebi a nota 7,5.
O sorriso de felicidade mal cabia no meu rosto. Contei para
os meus colegas de quarto e todos estavam ali me dando o maior
apoio. Os funcionários me elogiaram e as professoras também
deram muita força, dizendo que eu tinha garra.
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Uma série de coisas boas foi acontecendo, e a empolgação
aumentava com cada acontecimento positivo. Umas poucas coisas negativas não me abalavam de maneira alguma.
Eu ligava para meus pais toda a semana. Podia senti-los através do telefone; a alegria deles era tão grande quanto a minha.
Apesar de eu ainda estar internado na FEBEM, tudo que estava
acontecendo era positivo, e minha família já não sofria mais, porque eu os confortava em cada ligação. A minha assistente social,
Dona Tereza, e o meu psicólogo, Sr. Roberto, colaboravam com
elogios, dizendo para minha mãe que eu era um rapaz muito bom
e que logo isso tudo iria terminar.
Toda a semana meu psicólogo me chamava para uma conversa. Após eu ter terminado completamente o Segundo Grau,
em uma de nossas conversas começamos a pensar juntos em como
poderíamos fazer para que o juiz me autorizasse a prestar o vestibular. Disse a ele que era preciso fazer um pedido. Ele me confidenciou que seria melhor e mais fácil se eu estivesse preso há mais
tempo, porque o tempo que tinha cumprido ainda era muito
pouco aos olhos do juiz. Mas me garantiu que continuaria trabalhando na questão, para ver se tínhamos êxito.
Depois dessa conversa, voltei para a unidade, pedi um exemplar do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e comecei a
vasculhar página por página. Como já tinha um bom conhecimento das leis, não foi difícil encontrar uma lei que me favorecia,
dizendo que é prioridade do adolescente ter direito à educação,
cultura e lazer. Quando li isto foi xeque-mate para o juiz, então
conclui que, ao pedir para prestar um vestibular eu apenas pedia
o que me era de direito, nada mais, nada menos. Tendo terminado os estudos do segundo Grau Completo, e a FEBEM não podendo me oferecer nível superior, seria impossível ao juiz negar
um pedido como este. No tempo que passei pela cadeia de Itápolis,
aprendi a elaborar petições razoáveis, então me veio à mente de
usar do mesmo recurso. Elaborei meu pedido, — o Estatuto diz
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ser direito de todo adolescente peticionar a qualquer autoridade,
conforme o Artigo 124 IV, da Lei 8.069 de 13-07-1990 do
(ECA).
Petição que elaborei e encaminhei ao juiz.
Ex.º Sr. Dr. Juiz de Direito da Vara de Execuções Criminais da
Infância e da Juventude da Comarca de Franco da Rocha – SP.
CLEONDER SANTOS EVANGELISTA, natural de Itápolis-SP, nascido aos 22/11/84, filho de Francisco Antunes Evangelista, residentes e domiciliados
em Borborema – SP.
Atualmente encontro-me internado na UI 25 de Franco da Rocha,
sendo RG: 32344952-9 e processo n.º 54/01 na comarca de Itápolis-SP.
Ex.º, respeitosamente, venho comunicar, e solicitar, os seguintes que
passo a expor:
Encontro-me cumprindo medida sócio-educativa de internação, atualmente cursando o ensino médio (2.º grau) em fase final, faltando apenas
eliminar as respectivas disciplinas: Português e Física. É de grande interesse e
inestimável valor, com o consentimento de V.Ex.ª, sob as formas da lei, após
concluídas as respectivas disciplinas de Português e Física, de acordo com o
ECA e o CPP, poder ser autorizado por V.Ex.ª a prestar um vestibular, e
brevemente cursar faculdade, na área de Direito.
Exº., requeiro nas formas da lei, se possível que V. Ex ª. possa aplicar a
medida sócio-educativa de Semi-Liberdade ou Liberdade Assistida, para que
assim sendo, eu possa ser beneficiado a dar continuidade aos meus estudos,
uma vez que a UI em que me encontro não dispõe de tal nível de escolaridade (nível superior).
MM Juiz, tenho eu estudado um livro cujo título é “Português no Direito” de Ronaldo Caldeira Xavier, onde tenho adquirido um ótimo conhecimento sobre as leis e linguagem jurídica, e do qual pude usufruir para elabo-
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rar este pedido. Cada vez mais procuro enriquecer minha cultura, lendo e
relendo obras famosas de grandes escritores, como por exemplo Machado de
Assis, Fernando Pessoa, Luís de Camões, Millôr Fernandes, Sidney Sheldon,
e muitos mais que engrandecem a nossa rica literatura e nosso Romantismo
brasileiro.
Exponho a V.Ex.ª que meu pai é portador de Diabetes, Reumatismo
(artrite artróide que é o atrofiamento dos nervos e juntas), estando eu muito
distante do domicílio de meus pais, ficam escassas as minhas visitas devido à
distância e às doenças que incapacitam meu pai de se locomover, sendo a sua
idade de 53 anos.
MM Juiz, em minha vida passei por muitas experiências e obtive um
bom conhecimento sobre a vida e como conviver socialmente.
Hoje, aos meus 17 anos de idade, tenho o certificado de computação
(Windows), Serigrafia (estampas em tecidos), e nesta UI estou cursando tapeçaria, prestes a receber o certificado; os dois primeiros seguem em anexo.
Excelentíssimo, caso seja imposta a medida sócio-educativa de Liberdade Assistida, prontifico-me e comprometo-me a comparecer para ser atendido semanalmente por psicólogos da Unidade Básica de Saúde (U.B.S.) do
município, e apresentar o meu histórico escolar (nível superior) mensalmente
ou sempre que solicitado.
Sendo outro o entendimento de V.Ex.ª, peço-lhe para ser avaliado pela
equipe técnica e psiquiátrica do Poder Judiciário, a fim de obter um parecer
destes profissionais sobre o aqui exposto.
Sem mais, aproveito o ensejo, elevo protestos de grande estima e
distinta consideração. Respeitosamente, Cleonder Santos Evangelista.
UI 25- 05/09/2002.
Após a petição estar pronta, dei um jeito de encaminhá-la
para chegar às mãos do juiz — entreguei-a para os familiares de
uma colega, e eles a entregariam no fórum.
Uma semana depois, quando estávamos indo para o campo,
todos em fila um atrás do outro para manter a ordem, passamos
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por um latão de lixo, e eu vi um pedaço de jornal dentro. Discretamente apanhei a folha de jornal, porque me interessava pelos
carros que apareciam nos anúncios. Como não temos contato com
o mundo exterior, eu queria ler o que dizia o jornal. Se o funcionário chegasse a ver que eu tinha apanhado o jornal, simplesmente mandaria que o jogasse fora. Mas imediatamente coloquei-o
dentro do calção e continuei a caminhar para o nosso destino,
que seria o campo de futebol.
Na hora de escolher os times e dividir o pessoal, eu disse que
só queria jogar no segundo tempo. Sentei perto da grama, tirei o
jornal do calção e comecei a ler o que me interessava, que eram os
anúncios dos carros. Quando virei a página, fui lendo os anúncios e vi um emblema dos vestibulares da Fuvest e da UNIP. Nesse
emblema estava a programação das datas dos vestibulares. Sempre tive vontade de estar dentro da UNIP cursando Direito. De
imediato já descartei a Fuvest, porque sabia que era um exame
mais desafiador — e porque as inscrições já tinham sido encerradas. Mas a UNIP seria uma opção tão boa quanto, embora com a
dificuldade das mensalidades. De qualquer forma, qualquer caminho para a realização do meu sonho de ser um bom doutor em
Direito, valia o meu sacrifício.
Havia ainda o fato de eu ter ouvido um amigo chamado
Rodrigo, que era irmão de meu colega Rafael, o “Massinha”, falar para sua mãe Lúcia que queria estudar Direito na UNIP, e que
se não fosse a UNIP ele não estudaria mais. Até que ele passou no
vestibular e a mãe dele deu o apoio financeiro para os estudos.
Isso ficou na minha memória. Depois disso eu ouvi muitas pessoas falarem desta universidade e também anúncios na TV a respeito da Universidade Paulista.
Copiei num papel as datas e os prazos do vestibular e o guardei para passar aos meus pais as instruções de como as coisas deveriam ser feitas, e também o prazo que tínhamos. Por telefone eu
disse também que antes de fazer a inscrição os meus assistentes
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teriam que convencer o juiz a me autorizar. Já adiantei que ia dar
tudo certo e que eles precisavam acreditar.
Nesse tempo em que eu já estava na 25, conheci uma pessoa
da área da pedagogia. Era um sujeito muito bom, calmo e manso
no falar, o Sr. Jair, coordenador pedagógico. Foi para ele que comecei a expor minhas idéias antes de levá-las à assistente social e
ao psicólogo que acompanhavam a minha situação. Ele, porém,
me orientou e disse que conversaria com o restante da equipe,
para ver o que podiam fazer, e que no dia seguinte me traria um
parecer. Ele de fato o trouxe, e muitas dúvidas eu tirei com ele. O
Sr. Jair estava sendo uma ponte para mim, porém a única ponte.
Fui chamado mais uma vez à sala das assistentes sociais — o
Sr. Roberto tinha novidades, disse que realmente esse era um direito meu. Ele já havia elaborado o pedido, mas não deu garantia
de que iria funcionar. Quanto ao pedido que eu havia feito, permaneci quietinho, passei para ele as datas do vestibular e o nome
da UNIP. Ele me disse que iria demorar alguns dias para receber
a resposta, se o juiz me autorizaria ou não a prestar o vestibular.
Conversamos sobre tudo que se podia fazer e quais as possibilidades de dar certo.
O pedido foi entregue aos cuidados do advogado da UI 25
pelo Sr. Roberto; depois era só esperar uns dez dias mais ou menos, disse o advogado. Cada unidade tinha um advogado, que
encaminhava as decisões de psicólogos e assistentes sociais ao
Fórum do Brás.
Depois o Sr. Roberto veio me perguntar como eu faria para
estudar.
— Sendo que você não tem nem livros e a biblioteca da 25
não dispõe de livros preparatórios para vestibulares, como você
vai fazer? — o Sr. Roberto perguntou.
Na hora me veio a pessoa do Sr. Jair na cabeça. Eu disse a ele
que pediria para algum funça me dar uma força e perguntei a ele
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mesmo se por acaso não teria algum livro que pudesse me emprestar. Ele respondeu que iria dar uma olhada e, ele tivesse, me
traria. Nesse momento eu pensava no Sr. Jair e no Sr. Marcos,
para mim eles eram a solução e dificilmente me desapontariam.
Agradeci por tudo que estavam fazendo. Eles responderam
que esta era obrigação da equipe para os que realmente desejavam ser ajudados. Já estava me levantando da cadeira, quando Sr.
Roberto disse:
— Pense positivo, que a gente consegue.
Retornei à unidade.
Voltei bastante animado, tinha certeza de que daria certo,
porque até agora o meu mundo de sofrimento vinha se transformando de uma forma tão inacreditável, que parecia que tudo
estava virando da água para o vinho. Creio que eram os frutos
que eu colhia por estar com o coração bom e ter uma conduta
exemplar.
Mas quando cheguei à unidade, todos os internos estavam
no pátio e alguns funcionários também. Próximo da coordenadoria
estava o Sr. Marcos, conversando com alguns internos. Então pensei: “Esta é a hora de falar com ele.” Comecei a passar minhas
idéias e ele me respondeu:
— Você acha, meu filho? Você nunca vai conseguir passar
em um vestibular. O ensino daqui é muito fraco e aqui é um centro de energia negativa. Apenas estou dizendo o que eu penso, e
realmente é quase impossível isso acontecer. Pra começar, vai ser
difícil o juiz o autorizar a fazer o vestibular, e depois, mais difícil
ainda, passar nos exames.
Respondi a ele:
— Eu vou conseguir, Sr. Marcos. O senhor vai ver, eu vou
conseguir.
Ele disse:
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— Espero que consiga, mas as coisas não são tão fáceis assim.
Desejo-lhe boa sorte, de qualquer modo.
Depois me afastei dele. Na hora me deu uma raiva dele, pois
todos estavam me apoiando. E justo ele, formado em Pedagogia e
Psicologia, vinha me desanimar.
Permaneci pensando muito no que ele me disse. Estávamos
sendo recolhidos para o quarto. Continuei matutando. Quando
cheguei lá, comecei a chorar. O Jônatas veio me perguntar o que
estava acontecendo, perguntou se eu havia apanhado ou tinha
algum problema com minha família. Em seguida os meus outros
companheiros de quarto se aglomeraram em torno de mim para
saber o que se passava. Expliquei a eles que o Sr. Marcos havia
dito um monte de coisas me desanimando, e contei o que ele tinha me falado. Quando terminei, todos me disseram para não
dar ouvidos, porque ele é assim mesmo. Wallace “Tilpolita” me
disse para não dar ouvidos, porque o psicólogo podia ter feito
comigo um teste, para ver qual seria a minha reação. Nicolau “Cara
Torta” disse:
— Fica tranqüilo, irmão, você vai conseguir. Fica de boa.
Tentei achar um fundamento para aquilo que o Sr. Marcos
havia me dito, mas não encontrei, pois o máximo que pude compreender é que estaria me testando para ver se eu mudaria a minha conduta ou se eu desanimaria, porque quando me retirei de
perto dele, ele me lançou um olhar sinistro, um olhar de desafio,
como se estivesse desconfiando de mim. Creio que ele pensava
que eu estivesse usando a idéia do vestibular como uma grande
ferramenta para sair dali, e nada mais. Mas, meus pensamentos e
meus planos iam muito além de uma conquista de liberdade, estando direcionados para conquista de autocrescimento e confiança em mim mesmo. Queria mostrar a mim mesmo, e depois aos
outros, que era capaz de alcançar meus ideais. Depois de tudo
que o Sr. Marcos me disse e com minhas reflexões, a minha rea-
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ção foi de mais garra ainda. Vontade de vencer. Vontade de mostrar. Vontade de cursar Direito.
Depois deste acontecimento eu me afastei um pouco do Sr.
Marcos e fiquei na expectativa de encontrar o Sr. Jair no pátio e
poder conversar com ele e saber se podia me arrumar algum livro
para que eu pudesse estudar, porque na conversa com Sr. Marcos
não deu tempo nem de chegar a pedir. Quem me restou foi o Sr.
Jair.
No dia seguinte, encontrei-o no pátio e conversamos. Fiz meu
pedido e ele o atendeu, dizendo que tinha livros de que eu necessitava. Ele me emprestaria os livros, que traria no dia seguinte.
Fiquei muito grato pelo que Jair estava fazendo por mim. Os demais funcionários, que estavam a par da situação, se achegavam
para conversar. Em meio a muitas e muitas conversas com vários
funcionários, percebi e consegui captar que todos torciam por
mim. A maioria expunha o que pensava e ficava contente em me
ver com estes pensamentos, pois afinal eu estava sendo fruto do
trabalho deles. Talvez, para muitos funcionários, eu estivesse sendo o único fruto visível após tantos anos de trabalho com adolescentes.
O Sr. Jair apareceu com os livros — eram três, um bem grande, grosso, de cor amarela; os outros eram mais finos. Já peguei
logo os três e nem esperei ele explicar para que servia cada um.
Ele disse apenas para eu tomar cuidado com os livros, que
apenas o mais grosso era dele os outros ele conseguira emprestados. Fiquei até sem palavras para agradecê-lo, então disse apenas
um “muito obrigado”. Mas o maior agradecimento ele receberia
depois.
*
O advogado da FEBEM disse que em mais ou menos dez
dias o juiz me daria a resposta ao pedido para prestar o vestibular.
Mas fui chamado por meu psicólogo, cinco dias após o encami-
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nhamento do pedido. O Sr. Roberto já tinha recebido um parecer da justiça, e esse parecer ele me disse ser positivo. Disse que eu
conseguira a liberação, mas que o juiz queria a data, a inscrição e
o local em que eu estaria fazendo o exame. Mas eu já estava autorizado — apenas teria que informar o juiz desses requisitos solicitados por ele.
Essa resposta foi motivo de muita felicidade. O funcionário
que me conduzia e me acompanhava até a sala do Sr. Roberto
sorria. Eu não conseguia me conter, o sorriso se esticou em meu
rosto e eu não conseguia parar de sorrir. O Sr. Roberto autorizou
a coordenadora Silvia a me deixar ligar lá da sala da coordenadoria,
para contar a novidade à minha família.
Quando contei ao meu pai que eu havia conseguido a autorização, ele começou a gaguejar no telefone de tanta alegria e me
disse:
— Vai filho, continua assim, que você conseguirá tudo na
vida.
Então ele passou para minha mãe ouvir as novidades. Assim
que comecei a falar, mamãe ficou tão contente quanto meu pai.
Contudo, cautelosa como ele, só me dizia para não me envolver
em nada e que era para eu fugir dos problemas. Mas disse ainda
que estava muito orgulhosa de mim, pois mesmo estando preso
eu dava muita felicidade e alegria para eles. Ouvir essas palavras
de meus pais me deram inspiração para lutar ainda mais e buscar
a resolução dos meus problemas. Nós nos despedimos e desliguei.
A coordenadora Silvia me deu os parabéns e me desejou
boa sorte, pois ela acreditava muito em mim, e logo foram chegando os outros funcionários que já estava sabendo das boas novas. Muitos disseram que agora eu teria que estudar muito, porque para passar na UNIP e ainda mais no curso de Direito seria
necessário estudar um bocado. Havia lá uns quatro funcionários
que cursavam Direito na UNIP e me fizeram algumas recomendações.
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Fui recolhido para o quarto e chegando lá contei a novidade aos meus companheiros. Todos, sem exceção, me deram os
parabéns.
Faltava pouco mais de um mês para o dia do exame. Eu estudava como um louco. Conversei com o pessoal de dentro do
quarto e disse que não sairia mais para o pátio, pois tinha de estudar. Às vezes precisaria de um pouco mais de silêncio, senão eu
não conseguiria me concentrar, e essa era uma chance única que
eu tinha em minha vida. Então disse a eles que precisava ser aprovado, para que o Estado pagasse meus estudos, porque nem eu e
nem minha família teríamos condições para as despesas.
Como dentro de nosso quarto todos eram unidos, não houve ninguém contra o que eu pedia — todos compreenderam e
disseram que eu estava certo. Sem contar que ficaram muito contentes por eu estar conquistando meus objetivos.
Eu precisava me isolar no quarto. Abri mão do pátio e apenas saía para tomar banho, almoçar e jantar. Fora isso, ficava dentro do quarto lendo, lendo, lendo e lendo. Foi assim por alguns
meses.
Os dias se passaram. Depois de tanto esforço chegou o tão
esperado dia. Recordo-me da data, que era 23 de novembro de
2002. Na véspera acontecera o meu aniversário de dezoito anos,
quando falei com meus pais e minha namorada, com quem há
muito tempo não conversava. A coordenadora me deixou ligar
para que ficasse mais calmo e prestasse o vestibular no dia seguinte sem nervosismo. Realmente me acalmei, mas foi só no momento, porque quando faltavam algumas horas para me deslocar de
Franco da Rocha até Santo Amaro, comecei a suar frio e o nervosismo era grande. Um funcionário da área da pedagogia, o Sr.
Luís, que cuidava da biblioteca e dos jogos de lazer, me arrumou
algumas peças de roupas com o Sr. Walter da rouparia. Mas as
roupas que foram emprestadas a mim não eram da rouparia, mas
sim pessoais dele, porque o pessoal do corpo de funcionários não
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queria que eu fosse com uniforme da FEBEM. Tudo isso eles faziam para que eu não ficasse nervoso e para que os outros
vestibulandos não ficassem olhando para mim. Um pouco antes
de irmos, o Coordenador, Sr. Victor, me chamou para conversar.
— Cleonder, a Sra. Francine e eu levaremos você para fazer
o exame. Convivemos muito tempo, juntos, aqui. Sempre observei sua conduta, e nunca vi você desrespeitar ninguém, tanto funça
quanto seus colegas. Quero que saiba que o que vou fazer hoje
nunca fiz em todos os meus vinte e dois anos de FEBEM. Ao
longo desta sua temporada entre nós, você conquistou minha confiança e a de seus companheiros lá do pátio. Saiba que não levaremos você algemado e também não pedimos escolta da polícia.
Respondi ao Sr. Victor:
— Sei que minha liberdade será conseqüência de minha
conduta, sei também que por minha conduta é que vim parar
aqui. Então fica a critério do senhor, se achar que precisa, pode
me algemar; se achar que não precisa, fico agradecido pelo voto
de confiança. Quero que saiba que terá retorno, porque cumprirei, como cumpri até agora, o meu papel de homem. Na minha
vida criminosa eu coloquei um ponto final há muito tempo; apenas estou pagando o que ficou pendente, e o senhor sabe disso.
Ele disse para eu ir me trocar e colocar a roupa que o Sr.
Walter me arrumou. Quando fui me trocar, o Sr. Luís apresentou
três trocas de roupa e pediu que eu escolhesse, então escolhi, e ele
me deu um perfume dele para eu passar.
Recebi meu almoço, mas não consegui comer por causa do
nervosismo, então disse que já estava pronto. O Sr. Victor falou para
eu me despedir de meus amigos que estavam todos lá no pátio, pois
eram aproximadamente onze horas da manhã. Saí do refeitório e
caminhei até o pátio. Dei logo um grito. Todos pararam de conversar
e prestaram a atenção em mim. Eu apenas disse:
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— Aí, pessoal. Chegou a hora de eu ir fazer a minha prova
lá no vestibular da UNIP, e espero que estejam torcendo por mim.
Quero que vocês pensem em mim com muita energia positiva
pra que eu possa ser aprovado, porque é muito difícil, mas vou
enfrentar essa parada.
Alguns lá do fundo gritaram:
— É isso ai Cleonder, vai nessa firme e forte que você consegue, truta!
Terminei dizendo obrigado pelo apoio e o incentivo durante todo esse tempo de correria que enfrentei para poder fazer o
exame.
— Tomara que dê certo — eu disse.
O Jônatas falou:
— Já deu certo.
E assim olhei para o Sr. Victor, e ele disse:
— Vamos, que está na hora.
Saí da unidade, passei ao lado da UI 21 e UI 29 até chegar
aos portões centrais, onde uma Toppic estava me esperando para
nos levar. Logo que fui entrar na Toppic, o motorista perguntou
se não iriam me algemar. O Sr. Victor respondeu:
— Esse aqui não precisa.
Saímos da unidade e do complexo e seguimos destino para o
campus da UNIP de Santo Amaro.
Meu coração ia disparado dentro do peito, pois esta seria a
minha chance de mostrar que, mesmo sendo um preso da FEBEM,
eu era tão capaz quanto qualquer outra pessoa na sociedade.
Eu estava meio nervoso, mas, conversando com Sr. Victor e
a Sra. Francine, fui me acalmando. A viagem durou pouco mais
de uma hora e meia, e quando chegamos, eu estava leve como
nunca. Assim que o veículo parou, o Sr. Victor abriu a porta e
disse para eu descer.
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Desci e ele nem sequer segurou no meu braço, e ainda por
cima esqueceu a pasta que continha as canetas e o número de
inscrição. Ele voltou e pegou o que tinha esquecido, me deixando
só com a Dona Francine. Em momento algum eu pensei em fugir. Ao contrário, pensei que realmente eles acreditavam em mim
e, automaticamente, passei a me sentir muito bem.
Entramos na UNIP e fomos procurar a sala. O mais interessante é que fomos cada um para um lado — o Sr. Victor em um
corredor, a Sra. Francine em outro e eu em um terceiro. A sensação de saber que as pessoas confiavam em mim, mesmo eu estando numa situação radicalmente diferente deles, era muito boa.
Rapidamente o Sr. Victor encontrou a sala, saiu à nossa procura e com facilidade nos achou.
Caminhamos até a sala e, antes de entrar, Francine e Victor
me disseram:
— Muita calma, Cleonder, e boa sorte.
Entrei e procurei minha carteira, que tinha o número da
inscrição do vestibular, e me sentei.
No quadro negro estava escrito o horário de início e de término do exame. Enquanto eu estava ali sentado, os coordenadores que ficaram lá na unidade conversavam com todos os internos
a meu respeito. O que sei e o que posso relatar é que os meus
colegas foram orientados para me darem força, quando eu voltasse do exame, porque podia ser que eu não fosse aprovado, e os
meus colegas me ajudariam e não me deixariam desanimar. No
momento em que o coordenador Juarez falava, eu dava início ao
exame. O fiscal passou as coordenadas, entregou as provas. Comecei a analisar as questões.
Conforme ia lendo, o que eu havia estudado parecia sumir
da minha cabeça. Eu ia ficando nervoso, por não saber a resposta
à primeira questão, à segunda, ter dúvida na terceira, a quarta
não me era estranha… Então parei de ler e tentei me acalmar.
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Coloquei a prova sobre a carteira e com esforço consegui esfriar a
cabeça.
Mais calmo, fui lendo e respondendo apenas àquelas que eu
sabia; as questões que não tinha certeza da resposta, fui pulando.
Depois voltei a analisar as questões que havia pulado, e as respondi.
Terminei a prova, chamei o fiscal e entreguei-a. O Sr. Victor
e a Sra. Francine estavam sorrindo do lado de fora da sala, pois se
sentiam felizes por eu ter conseguido prestar o vestibular que tanto sonhava. Quando me aproximei deles, o Sr. Victor me perguntou:
— Como foi na prova?
Respondi que acreditava ter ido bem. Dona Francine perguntou se achei difícil, o que havia caído na prova e como eu
estava me sentindo. Disse que no começo foi difícil porque fiquei
nervoso e não conseguia pensar, mas depois me acalmei. Contei a
eles o que lembrava de algumas questões que haviam caído. Eu
estava me sentindo bem, porém muito ansioso para conferir o
gabarito de resposta, que sairia à meia-noite.
Voltamos para a Toppic e seguimos de volta à unidade.
No caminho fomos conversando e rindo. Eu estava muito
contente e sentia que meus sonhos começavam a se realizar. Conforme chegamos, entramos e até os seguranças se mostraram felizes por mim. Fomos para o pátio. Quando cheguei, não havia
mais ninguém, pois todos os meus companheiros já tinham se recolhidos para seus quartos, já que anoitecia. O Sr. Victor deixou
que eu permanecesse um pouco no pátio e os outros funcionários
se aproximaram em massa para me perguntar detalhes do vestibular. Contei a eles tudo o que eu podia, até o mínimo detalhe. O
Sr. Victor foi à coordenadoria contar aos outros coordenadores
que em toda a vida dele trabalhando na FEBEM, nunca tinha
visto um interno se comportar como eu me comportei. Enquanto
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ele falava isso, eu o ouvia do outro lado do corredor. Era essa
forma de reconhecimento que me dava ânimo para cada dia mais
continuar a lutar para alcançar o que eu desejava.
*
A minha professora de Educação Física, dona Elaine, foi
quem acessou a Internet para conferir o gabarito.
No dia seguinte ela ligou para a unidade. Quem atendeu foi
o Sr. Laércio, um coordenador. Dona Elaine deu a resposta para
Laércio, que ficou encarregado de me falar, pois ele era o coordenador mais chegado a mim — sempre conversávamos muito, e
ele, além de ser um orientador excelente, é uma pessoa muito boa
e um profissional de ótima qualidade. Sr. Laércio me chamou no
meu quarto e disse que queria falar comigo lá na coordenadoria.
Fomos caminhando juntos. Assim que entramos, ele disse:
— Meus parabéns, Cleonder. Você foi aprovado no vestibular.
Laércio quis me dar um aperto de mão e um abraço. Eu
percebia no Sr. Laércio a felicidade dele, tanto quanto a minha,
pois na verdade eu devia parecer a eles como o fruto do seu trabalho. Eu estava explodindo de tanta emoção, o sorriso se fixou em
meu rosto, fui falando a todos que encontrava pela frente que eu
havia sido aprovado. A minha felicidade contagiou todos na unidade, porque eles todos torceram por mim.
Rapidamente todos souberam e ficaram felizes. Os coordenadores e os funcionários reuniram todos os internos no galpão
para uma conversa. Após ter reunidos a todos, o Sr. Laércio me
passou a palavra e pediu que eu falasse algo. Contei as novidades.
Ao mesmo tempo, tentava passar que eu não era diferente de ninguém e que todos eram capazes de fazer o mesmo. Basta apenas
sonhar, fazer com que esses sonhos se tornem realidade, assim
como eu fiz, e pretendo continuar fazendo. Me emocionei e não
consegui continuar falando.
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O corpo de funcionários complementou a mensagem.
Recebi elogios de todos os funcionários, coordenadores, pessoal do pedagógico, assistentes sociais, e outras pessoas das unidades vizinhas.
Meu psicólogo, o Sr. Roberto, estava solicitando minha presença na sala dele. Chamaram-me lá na unidade. Fui conduzido
até a sala de Roberto. Quando entrei, ele estava com um sorriso
no rosto. Me deu os parabéns, eu o agradeci e começamos a conversar.
Ele disse:
— E agora como você e seus familiares vão pagar a faculdade?
Respondi:
— Se o Juiz me mantiver aqui, isso não cabe a mim e nem a
minha família, porque enquanto eu estiver internado é o Estado
que arcará com minhas despesas. É assim que prevê o ECA da Lei
8.069 de 13-7-1990.
— Vamos solicitar do juiz a sua liberdade assistida, porque
não há necessidade de você ficar internado, e com certeza você
será liberado em breve. E como vai fazer para pagar sua faculdade? Isso é o que eu quero saber.
Respondi que não tinha condições, disso ele sabia, mas que
iria pelo menos fazer uns seis meses com a ajuda de meu tio João
Beleza. Meus pais colaborariam com o que podiam colaborar. Não
seria muito, mas se conseguisse trabalho, ficaria menos difícil cursar seis meses; depois eu trancaria a matrícula, tentaria fazer um
financiamento com o FIES e tentaria arrumar um emprego, juntar um pouco de dinheiro para acabar o primeiro ano. Esses eram
os planos que coloquei para o Sr. Roberto.
Ele ouviu e apenas me disse “tudo bem”.
Elogiou-me bastante, falando que eu deveria manter minha
personalidade sempre assim.
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Agradeci ao Roberto e à dona Tereza, por tudo que estavam
fazendo por mim
*
Agora que eu tinha sido aprovado, decidi voltar a fazer os
cursos. Mas quase nenhum estava sendo inserido, porque estávamos nos aproximando do final de ano e vinha o período de férias
para os professores.
Mas eu ainda podia continuar ensinando violão aos meus
colegas. Foi aí que a fábrica de violões acertou com a nossa unidade de desenvolvermos um trabalho de lixar e moldar algumas peças
do violão. Foi o funcionário Sr. Isaac quem cuidou de tudo. Assim que algumas máquinas chegaram, demos início ao trabalho, e
a fábrica firmou um contrato verbal de fornecer uma cesta básica
para cada participante. Era algo que o interno podia entregar
para a família, nos dias de visita.
Um dia eu estava trabalhando nas peças, quando o diretor,
Sr. Domingos, solicitou que Laércio fosse me buscar lá na unidade e me levar para a sua sala. O Sr. Laércio me encontrou no
curso, pediu licença para Isaac, que era companheiro dele de trabalho, e me levou até Domingos. Eu nunca havia entrado na sala
do diretor, e agora ele estava me chamando.
Entrei na sala dele, e ele mandou que eu me acomodasse,
me deu os parabéns por ter sido aprovado, os parabéns por meu
comportamento exemplar, e me perguntou como estava me sentindo. Falei a ele que estava tão bem como nunca, mas que ainda
iria ficar melhor. Domingos disse:
— Vai ficar melhor sim, porque eu tenho algumas novidades que vai gostar de ouvir.
Começou a dizer que a Rede Globo de Televisão ficou sabendo através da assessora de imprensa da FEBEM, Sra. Denize,
sobre o meu caso, e se interessou em fazer uma matéria comigo.
O diretor Domingos queria saber se isso me interessava.
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— Me interessa e muito — respondi.
Então ele disse para eu me preparar, porque os repórteres
fariam perguntas inesperadas, e para que eu não viesse a comentar com ninguém, porque poderia causar inveja.
Retornei para a UI e permaneci quieto e não comentei para
ninguém, mas fiquei pensativo o resto do dia, até o momento de
dormir.
*
Iniciava-se outro dia, eu à espera da imprensa. Mais ou menos por volta das dez horas da manhã a equipe apareceu na unidade. Eu estava no pátio tocando violão para uns colegas que se
divertiam em cantar. O Sr. Juarez, de apelido “Cabo de Enxada”,
veio me chamar, pois estavam me esperando. Caminhei até o pessoal com o violão nas mãos. Cumprimentaram-me e eu os cumprimentei também, e começaram a me entrevistar.
Foram várias perguntas, uma das primeiras foi o que eu havia feito para estar ali; depois, como surgiu o desejo pelo curso de
Direito; o que fazia ali dentro; como eu era tratado; se eu apanhava… e mais um monte de perguntas. Respondi tudo com muita
calma e terminamos a gravação da reportagem, que foi veiculada
no mesmo dia, no Jornal Hoje.
Os funcionários reuniram meus companheiros para assistirem à reportagem, que ficou muito bonita.
Dois dias após essa reportagem, jornalistas do jornal Diário
de São Paulo vieram me procurar, e novamente Domingos falou
comigo e mais uma vez eu fiquei contente.
Os jornalistas já estavam à minha espera e fui conduzido até
eles, que aguardavam em uma sala administrativa da FEBEM.
Quando cheguei, tive a surpresa de encontrar meus pais,
que também estavam lá. Para mim isso foi uma felicidade sem
tamanho. Fizera-me mais uma série de perguntas e algumas para
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meus pais. A partir da entrevista foi publicada uma página inteira
a meu respeito.
Estávamos no mês de dezembro, quando minha vida deu
mais uma reviravolta. Sem que eu soubesse, a assessoria de imprensa da FEBEM entrara em contato com o Departamento de
Comunicação Corporativa da UNIP, pedindo uma bolsa de estudos para mim.
O Sr. Henrique Flory, coordenador daquele departamento
na UNIP, comprometeu-se a ajudar. Além de conseguir a bolsa
com a UNIP, ele entrou em contato com o Dr. Roberto Massafera,
um empresário de Araraquara, cidade onde eu deveria fazer meu
curso de Direito, e explicou a situação. No final de tudo eles iriam
me oferecer, além da bolsa de estudos, um estágio remunerado
em um escritório de advocacia já no primeiro ano do meu curso.
Chegando na sala, sentei-me e essas pessoas que eu nunca
vira antes começaram a falar. Eu ouvindo tudo aquilo, que empresários queriam me ajudar, não pude me conter e comecei a
chorar de emoção. Parecia ser mentira, mas não era; parecia um
sonho, mas era real. Eu chorava como criança e chegava a soluçar. As pessoas que estavam ao meu lado sorriam, enquanto eu
chorava. Não me cansava de agradecer e agradecer por tudo. E
todos juntos diziam que o trabalho deles era me ver bem.
Dispensaram-me, e o Sr. Roberto disse:
— Agora vai, influencie seus amigos a seguir este seu caminho. Acredite ou não, depois que você começou a mostrar que é
possível realizar os sonhos, ficou mais fácil trabalhar com muitos
outros adolescentes, pois toda vez que converso com um de seus
companheiros, eles sempre mencionam o seu nome.
E me retirei, dizendo:
— Obrigado, obrigado por tudo.
E voltei emocionado para a unidade.
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Na sala da coordenadoria liguei para meus pais e eles também se emocionaram tanto quanto eu. Conseguia sentir o tamanho da felicidade deles. Minha família sentia-se muito bem, mesmo eu ainda estando ali internado. Tinha certeza de que eles sentiam-se os pais mais felizes da face da terra, pois agora tinham
orgulho de mim.
Depois que saí da coordenadoria, caminhei até o pátio e notei
que havia um monte de internos aglomerados perto de um mural, mas eu ainda não sabia que lá estava a reportagem feita pelo
Diário de São Paulo. Fui bem de mansinho me aproximando, e
meus companheiros, quando notaram minha presença ali, disseram:
— Olha você lá, Cleonder.
Era uma imagem minha que estava exposta no jornal — eu
segurava um código penal que tapava metade de meu rosto. No
dia da entrevista tiramos essa fotografia assim, porque não é permitido mostrar o rosto de internos da FEBEM sem autorização
judicial.
Todos ficaram admirados.
Passaram-se alguns dias e estávamos próximos do Natal. Era
o dia 22 de dezembro de 2002, um domingo, dia de visita. Eu
estava ajudando a arrumar a churrasqueira montada de tijolos —
a comida que foi enviada naquele dia era de primeira qualidade,
pois muitos de nossos familiares estariam presentes para almoçarem todos reunidos, pois era uma confraternização. Meu pai já
estava na portaria, aguardando o momento de entrar para me
ver.
Ele entrou, e quando eu o vi, fui correndo abraçá-lo. Notei
que ele já não estava com tantas dores nas pernas.
Ficamos juntos o dia todo, almoçamos, conversamos bastante a respeito do curso de Direito. Meu pai queria saber quem
pagaria, onde eu estudaria, se eu sairia logo...
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Fui falando tudo a ele, explicando nos mínimos detalhes o
que estava acontecendo, e ele foi abrindo um sorriso enorme.
Papai falou para mim que estava muito orgulhoso. Disse a
ele que não iria demorar muito para voltar para casa, pois desde a
minha chegada à unidade, estava demonstrando ser uma pessoa
boa. Tinha muitas esperanças de que o juiz reconheceria meu esforço, compreenderia minha situação, e logo eu conquistaria a
liberdade para poder estudar, porque agora eu já havia conseguido as coisas mais difíceis, e minha liberdade seria conseqüência
do que eu estava plantando. Passamos o dia todo conversando
somente de coisas boas, até que infelizmente terminou a visita e
papai teve que ir embora. Na despedida, ele recomendou que eu
continuasse como estava, e disse que estava muito feliz por mim.
Acompanhei meu pai até o portão e ele se foi.
Interiormente eu sabia que aquela seria a última vez que meu
pai me visitaria na FEBEM, porque tinha a certeza de que logo o
juiz me liberaria.
Passei o Natal na unidade. Tivemos outra confraternização,
mas foi só entre os internos e funcionários. A DENADAI, uma
empresa de alimentos, nos mandou mais carne e refeições, como
uma caridade natalina. Era muito bom manter um ambiente familiar no lugar, pois a tranqüilidade que isso inspirava evitaria
muitas desgraças que poderiam acontecer no final de ano, porque muitos queriam passar esse período com suas famílias. Nesta
mesma data, os funcionários Sr. Jaime e Ludugério chamaram
alguns internos com urgência, para apanharem algumas cadeiras
de plástico no almoxarifado. Os escolhidos foram Eduardo e
Marcos, que eram recém-chegados, Jônatas e eu, em um total de
quatro internos.
Fomos caminhando com os dois funcionários. Pegamos as
cadeiras e voltamos carregando um pouco cada um, pois dividimos o peso para ninguém levar nem mais nem menos. Quando
estávamos nos aproximando do portão da 25, Eduardo insinuou
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que o chinelo havia arrebentado, parou disfarçadamente e colocou as cadeiras que carregava no chão — e saiu em disparada, na
direção ao alambrado de tela. O companheiro dele, outro recémchegado, também tentou, mas os dois não obtiveram êxito algum
— pois antes de chegarem à tela para pulá-la, já havia do lado de
fora seguranças com cacetetes nas mãos, e mais alguns escondidos
em pequenas cabanas camufladas na mata ao redor da UI. Eduardo e Marcos, quando viram os seguranças com os cacetetes de
madeira, se assustaram e voltaram, mas deram de frente com Sr.
Jaime e o Ludugério, que tentaram detê-los após os dois terem
dado alguns dribles nos funças.
Jônatas e eu permanecemos paralisados, observando. Eu não
conseguiria me mexer nem que quisesse. Creio que Jônatas também sentia o mesmo. Eu só pensava em tudo que eu havia conquistado, e sentia muito medo de perder tudo aquilo por que
lutei — não seria justo perder tudo isso por causa de atitudes dos
outros. Passaram pela minha cabeça um milhão de pensamentos;
senti medo de interpretarem mal, e pensarem que estávamos envolvidos. Os fujões foram pegos e levados às pressas para o interior da unidade. O que me aliviou foi quando Jaime se dirigiu a
Jônatas e a mim:
— Esperem aí, que eu já volto pra buscar vocês.
Este foi mais um voto de confiança, que automaticamente
me tirou da cabeça a apreensão sobre o que iriam pensar de mim.
Demorou um pouco e Jaime veio nos buscar, mas em momento
algum ele sequer chegou a perguntar se estávamos envolvidos ou
se sabíamos de alguma coisa. Ele apenas disse:
— Por causa de um ou dois, nós funças temos que suspender o lazer de muitos inocentes, e agora terei de fazer um relatório e registrar um boletim de ocorrência, passar para o setor técnico tomar as providências de informar o juiz sobre o ato cometido por esses irresponsáveis.
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Mas o Sr. Jaime nos avisou que podíamos ficar tranqüilos,
que nossos nomes não seriam envolvidos no boletim de ocorrência. Por causa da confiança conquistada por mim e por Jônatas.
Se em nosso lugar, na hora da tentativa de fuga, estivessem outros
internos mal vistos e indisciplinados, pode ser que se desconfiassem deles, mesmo não havendo participação. A confiança dos funcionários foi um fator essencial como escudo, para nos manter
protegidos. Em pensamento, eu pedia a Deus para que me tirasse
dali logo. Só Ele sabia o que poderia acontecer, com o passar do
tempo…
*
Passou o Natal, todo mundo comemorou. Os fujões que quase nos prejudicaram estavam trancados em uma solitária. Terminamos a nossa confraternização e nada foi interrompido. Passouse o dia e já vinha chegando o Ano Novo. Quando chegou, foi
um dia normal. De dentro era possível enxergar os fogos explodindo no céu estrelado, na noite da virada do ano de 2002 para
2003. Uma gritaria muito alta ecoava no ar, comemorando a virada do ano. Mesmo estando presos, buscávamos nossas alegrias
em um mundo fechado por muralhas, e a alegria possível no
momento era gritar, abraçarmo-nos uns aos outros, fazer pedidos
olhando para o céu, pois os muros podem prender os nossos corpos, mas nunca conseguiriam aprisionar os nossos pensamentos.
Recordo que falávamos assim, naquele dia:
— Nós presos vivemos de três coisas aqui: Fé, Esperança e
Proteção.
*
Um novo ano iniciou-se, tudo correu normalmente em nossa unidade, e assim permaneceu. Mas ninguém estava sendo liberado pelo juiz. Em breve o Fórum entraria de recesso e nada de
ninguém ir embora para casa.
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No dia 3 de janeiro, um dia gostoso, de céu meio nublado
mas bem fresquinho, pela manhã fiquei jogando xadrez no pátio,
e logo pela tarde começou a cair um leve chuvisco, uma garoa.
Eu conversava com alguns colegas de outros quartos, quando um
funça subiu em uma mureta para fazer um anúncio. Ele falava
assim:
— Aí, pessoal, temos uma liberdade na casa e ela ééééééééé…
— todos ficaram atentos — …Do Volnei!
Volnei era um grande amigo meu, que morava no quarto 3,
que é vizinho do 2 (em que eu morava). Por coincidência Volnei
estava internado por causa de um ato infracional cometido há
muito tempo. O caso dele era semelhante ao meu, mas com delitos diferentes, pois ele estava em um artigo de homicídio.
Volnei ficou muito feliz ao saber que voltaria para casa, —
ele tinha uma filha muito bonita que já estava com um pouco
mais de um ano, e fora preso quando sua filha tinha poucos meses
de vida. Ele gostava muito de mim e eu dele.
Alguns minutos depois, surgiu um boato não se soube de
onde, que havia mais uma liberdade vindo a caminho, e quem
estava trazendo era o advogado da unidade, Dr. Camargo.
A família de Volnei já tinha sido avisada para ir buscá-lo.
Por volta das seis horas da tarde o Sr. Laércio veio me avisar
de que eu deveria levar uma cesta básica até a sala do diretor,
porque o Volnei iria levá-la. No momento, não desconfiei de nada,
mas conforme fui andando ao lado de Laércio, eu pensava: “Por
que o Volnei iria levar uma cesta básica, se ele não era integrante
do curso de lixar peças de violão, sendo que as cestas que a fábrica
doava eram contadas de acordo com os que participavam do curso, e tinha um número exato de cestas e de integrantes?” Fiquei
refletindo sobre isso, quando, em determinado momento, o Sr.
Laércio me parou e disse:
— A liberdade é sua. Acabou de chegar na casa, e a cesta
que estamos indo buscar é para você levar, Cleonder.
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Nesse instante, a emoção tomou conta de mim, mas por fora
eu apenas dava sorrisos de alegria. A felicidade era muito grande,
porque agora eu realmente iria voltar para casa — e estaria cursando uma universidade. Poderia estar com meus pais e minha
namorada novamente... Estava muito feliz, e Laércio dizia que
estava muito contente, pois ele sempre havia acreditado em mim.
Então peguei a cesta básica na sala do diretor. Era pesada.
Eu a carreguei até a sala da coordenadoria, porque Laércio me
disse que no dia seguinte eu seria “recambiado” (reconduzido)
até a minha cidade.
Dentro do peito o coração queria saltar para fora. Voltei todo
feliz, mas não contei nada para ninguém, pois tinha certeza de
que todos ficariam chateados. Eu mesmo, por um lado me sentia
muito feliz por estar voltando para casa, mas por outro me sentia
um pouco triste, porque agora teria que me separar deles, que
tanto foram meus companheiros; também dos funcionários, as
assistentes e psicólogos, mas as coisas tinham que ser assim.
Guardei a novidade para mim, mas ela não ficou oculta por
muito tempo, — logo acabei contando. Estávamos no quarto
aguardando o jantar; eu me levantei da cama e pedi para todos
prestarem atenção, pois tinha algo muito importante a dizer. Consegui a atenção de todos e contei que estava indo embora no dia
seguinte.
De imediato ninguém acreditou, porque eu não estava agindo como quem ia embora. Eles ficaram meio na dúvida, porque
sempre que alguém ganha a liberdade, começa a se expressar com
emoção, e eu estava calmo. Só por dentro sentia uma alegria sem
tamanho.
Passaram-se alguns minutos e fomos para o refeitório. Depois de todos reunidos, um grupo de funcionário do noturno
pediu para todos prestarem atenção. Os funcionários anunciaram que Volnei estaria indo embora, mas que havia mais um que
também estava de liberdade, e contaram que esse alguém era eu.
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Todos os meus companheiros começaram a aplaudir, dizendo “até que enfim”, pois falavam que eu era merecedor e que já
estava na hora.
O funcionário Sr. Fernando abriu um espaço para que eu
pudesse falar algo. Aproveitei a oportunidade e dei uma breve
palavra, dizendo:
— Espero que vocês possam ter a mesma oportunidade que
estou tendo. Amanhã vou embora rumo a uma vida nova.
Disse que havia aprendido muito com cada um deles e que
esperava que cada um tivesse aprendido um pouquinho comigo
também. Para quem ficava, desejei boa sorte e que todos pudessem empenhar-se, para retornar cada um ao seu lar.
O Sr. Fernando tomou a palavra e falou em nome de todos
os funcionários do noturno, dizendo que tinha sido um prazer
me conhecer e que todos sempre acreditaram em mim. Desejoume boa sorte na vida lá fora.
Agradeci o apoio de todos eles, por tudo que fizeram e por
terem acreditado em mim
— Muito obrigado — eu disse.
Jantamos e depois retornamos ao quarto. Depois do comentário no refeitório, todos agora realmente acreditavam que eu estava liberado. Senti que eles ficaram tristes por eu estar indo embora. Ficamos conversando sobre diversos assuntos, planos futuros e coisas assim.
Logo chegou o horário de dormir, mas antes eu avisei a todos os meus amigos de quarto que, quando eu fosse chamado
logo pela manhã, me despediria deles. E as luzes foram apagadas.
*
Chegava a grande hora. Os momentos finais se aproximavam, já eram quase sete horas da manhã e o funça apareceu para
abrir a porta.
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Acordado, eu me levantei. Meus poucos pertences já estavam guardados em sacolas. Fui acordando os meus colegas, e fui
me despedindo de cada um sem pressa — trocávamos abraços, a
emoção fazia com que eu me expressasse sob forma de lágrimas
dirigidas ao Jônatas... Eu dizia para ele agüentar mais um pouco,
que logo viria a sua liberdade. Jônatas também chorou em meu
ombro, antes que eu seguisse o meu destino, e nos despedimos
em apertos de mão e abraços fortes.
No caminho, passei pela coordenadoria para pegar minha
cesta básica, me despedi também dos funcionários e coordenadores. A funcionária Sra. Ellen era quem me levaria para Borborema,
pois iríamos de recâmbio comum — um veículo da unidade. A
viagem era longa, dona Ellen e eu conversávamos. Quando nos
aproximamos da cidade de Araraquara, fui indicando o caminho,
porque o motorista não sabia.
Chegando em Borborema o coração batia mais forte. Eu
sentia uma sensação muito gostosa, porque finalmente me sentia
realizado. Apenas com o meu retorno ao lar, é que meu percurso
estaria completo.
Chegamos à minha casa, descemos e fui entrando para chamar meu pai.
Quando o vi, logo lhe dei um grande abraço. Ele já estava
me esperando, percebi que minha casa estava bastante mudada,
mas meu quarto continuava do jeito que o deixei. dona Izilda não
estava em casa, pois estava trabalhando no restaurante da praia
do Juqueta, que fica uns sete quilômetros do perímetro urbano.
Meu pai assinou os documentos necessários e dona Ellen se
despediu de mim e retornou a Franco da Rocha.
Tomei um banho de quase meia hora, e depois fomos para a
prainha ver minha mãe. Quando cheguei, mamãe me viu, abriu
os braços e veio em minha direção.
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Ficamos conversando um tempão, mas como ela tinha de
trabalhar, papai e eu voltamos para a cidade. Eu queria fazer
uma surpresa para minha namorada, que ainda não sabia que eu
havia voltado, porque meus pais não contaram para ela.
Fui até a casa de Josiane, chamei apenas uma vez e fui entrando. Ela, ao ouvir meu chamado, saiu, e quando vimos um ao
outro, corremos para nos abraçar e nos beijamos.
Conversamos bastante sobre tudo pelo que passei, como ela
havia passado longe de mim, nossos planos para o futuro. Fomos
então para a minha casa. Quando anoiteceu, saímos para dar uma
volta, pois era um dia de sábado, e voltamos cedo. Fomos para o
quarto, nos amamos e dormimos abraçados.
Eu estava em casa, enfim…
*
Josiane e eu continuamos o nosso relacionamento de um
modo mais firme e mais feliz. Alguns de meus parentes vieram me
ver quando souberam que eu tinha voltado para casa, principalmente meu tio João Beleza, a quem muito agradeço pelo que fez
por mim e minha família, dando sempre algum o conforto aos
meus pais e os amparando na maioria das vezes.
Meu avô Plínio dos Santos também foi me ver, pois ele sempre se preocupou comigo, muito me dava conselhos e, se antes
tivesse ouvido os conselhos dele, eu poderia ter trilhado outros
caminhos menos acidentados.
Meus pais e eu decidimos, então, alugar uma casa em
Araraquara, porque iria cursar Direito no campus de lá, e o ônibus que fazia a linha levando os estudantes universitários para as
faculdades da UNIP era muito caro e a viagem seria cansativa.
Alugando a casa em Araraquara as coisas ficariam mais fáceis.
Começaram as aulas na universidade, e eu ainda sem emprego; o estágio prometido não tinha saído devido a problemas
com o escritório de advocacia. Minha situação financeira come217
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çou a ficar crítica, então encomendei algumas vassouras caipiras
para vender na cidade, para que pudesse me manter melhor. E
assim fui lutando, dia após dia.
Saía meio cedo e voltava de tarde, tomava banho e andava
dois quilômetros para chegar até a universidade.
Estava morando em Araraquara sozinho e quando sobrava
um dinheirinho das vassouras que eu vendia, pegava o ônibus e ia
até Borborema ver meus pais e minha namorada, de quem eu
sentia muita falta.
O Dr. Roberto Massafera, para compensar o estágio que
não veio, passou a me pagar um curso completo de computação,
o que foi me ajudando muito a me familiarizar com a informática.
Nos dias em que não tinha o curso, eu vendia vassouras.
Assim foi o meu primeiro semestre de Direito na UNIP de
Araraquara. Eu aprendia muito e estava muito entusiasmado, o
curso era cativante e eu sentia crescendo; o problema é que o
dinheiro continuava muito curto.
Na mesma Universidade que eu cursava havia a coincidência de o coordenador ser um promotor de justiça de minha cidade, o Dr. Flávio Nunes da Silva. Ele já me conhecia do meu passado e, quando soube que eu estava estudando naquele campus,
veio dar-me os parabéns, dizendo que eu havia feito a melhor
escolha. Concordei plenamente com ele.
Fiz amizade com algumas pessoas da sala, o semestre já estava terminando. Eu começava a entender o ramo do Direito, que
é um mundo muito fascinante.
Certa vez eu estava em Borborema na casa de meus pais, em
um fim de semana, quando o telefone tocou. Eu mesmo fui atender. Quem ligava era o Sr. Henrique Flory, que desejava me fazer
uma proposta. Ele havia tomado conhecimento de minha situação por meio do Sr. Roberto Massafera e, se eu estivesse disposto,
iria me ajudar a escrever um livro sobre a minha vida; ele já tinha
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até uma editora interessada, que iria me pagar por um semestre
para eu escrever o livro em São Paulo.
O Sr. Flory deu a entender que acreditava em meu potencial e que minha experiência de vida e a minha vitória de passar
no vestibular e estar cursando Direito eram fatos que deviam ser
divulgados para servir de exemplo e motivação a outros. Também
deixou claro que identificar casos como o meu e estimulá-los era
uma das principais funções dele na UNIP, e que não estava fazendo nenhum favor para mim. “O incentivo ao mérito e à dedicação é uma preocupação constante da UNIP, Cleonder. Não importa o passado, você hoje é um exemplo que deve ser seguido.
Muita gente pode aprender com você”, ele me disse.
De minha parte, dava graças a Deus por surgir uma saída
para a minha situação. Eventualmente, após o término do meu
primeiro semestre, pedi transferência para São Paulo, passando a
estudar na UNIP do campus Vergueiro e a trabalhar na Editora
Arte & Ciência. O Sr. Roberto de Sousa Causo, escritor profissional da editora, passou a me ajudar a escrever o livro.
*
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EM BRANCO
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Epílogo: Sendo um exemplo.
O que é uma “história de sucesso” para se colocar no título
de um livro? Minha vida não terminou ainda, está muito longe
disso. Como posso colocar “história de sucesso” no título?
Penso que esse foi o meu maior aprendizado por tudo o que
passei. O sucesso não é chegar lá, e sim estar trilhando. A gente
encontra a felicidade quando sabe aonde quer chegar e se sente
lutando pelo que acredita. Chegar lá é conseqüência.
Hoje eu tenho um filho que está quase chegando — a Josiane
ficou grávida no segundo semestre de 2003 —, estou no segundo ano do curso de Direito, tenho um livro que está saindo agora... Será que isso é sucesso?
É em parte, com certeza, mas sucesso mesmo é saber que eu
não vou cair mais, é saber que aprendi a vencer as tentações, a
traçar meu caminho dentro da Lei, e que minha vida está muito
melhor assim. Mas ainda não é tudo.
Sucesso é a gente saber o que fazer e ter vontade de fazê-lo.
E eu, graças a Deus, aprendi essa lição. Sei o que quero e sei como
chegar lá.
Não quero ser apenas mais um advogado, ou um juiz ou
promotor. Quero aprender e usar minha experiência para que
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outros, que estão onde eu já estive, também tenham a chance de
mudar. E, ainda, para que muitos não tenham que passar pelo
que passei.
Pretendo me especializar na situação da criança e do adolescente, entender as razões de tudo isso, e quero participar da mudança. Quero ter, além da experiência vivida, o conhecimento
teórico de tudo o que temos hoje, o que devemos e podemos fazer
para melhorar. Quero, sim, ser um exemplo. Não sei se vou conseguir, mas sei que vou lutar com todas as minhas forças para realizar meu projeto de vida.
Posso fazer planos, pensar no futuro, ter sonhos como todo
mundo e saber que depende de mim realizá-los.
Isto para mim é sucesso. É assim que me sinto hoje.
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