O uso mercadológico da imagem infantil e o
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O uso mercadológico da imagem infantil e o
O uso mercadológico da imagem infantil e o julgamento sumário em capas da revista Veja – um olhar bakhtiniano Heloísa Helena Arneiro Lourenço Barbosa Universidade de Taubaté – SP 1. INTRODUÇÃO As capas de revista circulam em várias esferas da sociedade e constituem, sob a perspectiva teórica bakhtiniana, um gênero discursivo. Entendida como unidade comunicativa, assim como os outros gêneros discursivos, uma capa de revista é um tipo relativamente estável de enunciado, que se compõe por três elementos essenciais: conteúdo temático, estilo e construção composicional. Há um formato relativamente estável que caracteriza essa página. Os elementos verbais e não-verbais que irão compor o enunciado produzido por seus enunciadores constroem composicionalmente o estilo de cada capa de revista. Todo gênero discursivo manifesta uma intenção do autor que pode ser a de informar, divertir, seduzir, orientar ou convencer o seu interlocutor. A capa é uma página que tem como primeiro propósito comunicativo atrair o leitor. Para tanto, tem disponíveis não só os elementos lingüísticos verbais como também os não-verbais, constituindo-se, assim, um grande enunciador com poder de influenciar o seu interlocutor. Partindo desses conceitos, este trabalho surgiu de questões suscitadas pela publicação de duas capas da Revista Veja: O MAL e FORAM ELES, cujas imagens e textos remetem a um acontecimento que chocou toda a sociedade brasileira e mobilizou toda a imprensa nacional: a morte, em 29 de março de 2008, de uma menina de cinco anos, Isabella Nardoni, de classe média, cujos assassinos são supostamente, segundo inquérito policial, seu pai e sua madrasta. A escolha da revista Veja como objeto de análise justifica-se por ser esta uma revista de informação semanal de grande circulação no país, podendo ser considerada uma grande formadora de opinião. A essa reflexão interessa, porém, não o fato em si, mas como a revista Veja tratou discursivamente o episódio em suas capas. Como referenciais teóricos foram utilizados alguns conceitos da teoria de Mikhail Bakhtin: gêneros discursivos; autor/autoria; enunciado concreto/enunciação/relações dialógicas e “responsividade”. A análise dos elementos não-verbais fundamenta-se, principalmente, em alguns estudos de Donis Dondis, no campo da comunicação visual. O resultado dessa análise poderá fornecer subsídios lingüístico-discursivos que contribuam para que os leitores, mais especificamente professores e alunos, cotidianamente envolvidos com a leitura, percebam como uma capa de revista pode se constituir em um veículo manipulador que, interessado em vender, se dissimula por meio de uma organização textual aparentemente marcada pela neutralidade e objetividade. 2. OBJETIVO Este trabalho tem como objetivo analisar como duas capas da revista Veja, por meio da imagem e da palavra, utilizou um fato de grande repercussão nacional, o Caso Isabella Nardoni, para legitimar e veicular seu discurso ideológico e construir os sentidos que lhe interessaram para atrair o público consumidor. Algumas questões foram levantadas para direcionar a análise: 1) A imagem de uma criança foi utilizada como estratégia de arrebatamento e de sustentação para o interesse mercadológico da revista? 2) O tratamento lingüístico dado ao fato pela Veja, em duas de suas capas, revela um julgamento prévio dos acusados por parte da revista, constituindo-se, assim, essas capas um discurso de parcialidade? 3. METODOLOGIA Um dos procedimentos utilizados para se obter respostas às questões suscitadas por estas duas capas de Veja – O MAL e FORAM ELES – foi a divisão do trabalho em duas etapas: num primeiro momento, cada capa foi analisada separadamente e, em seguida, as capas foram confrontadas para observação e confirmação da recorrência de elementos verbais e não-verbais presentes nessas duas páginas. Na análise de cada capa, observou-se também o que elas, de modo geral, apresentaram de diferente ou novo em relação às demais edições para que, assim, se entendesse o porquê dessas páginas chamarem tanta a atenção do público consumidor. O contexto histórico em que foram produzidas também foi considerado, pois os propósitos enunciativos também dependem de suas condições de produção e circulação. Como gênero discursivo, uma capa de revista é correia de transmissão entre a história da sociedade e história da linguagem (BAKHTIN, 2003). O enunciado não se resume ao elemento verbal. Ele será entendido a partir de um ponto de vista histórico, social e cultural, que inclui os sujeitos e discursos envolvidos. Para se entender enunciado sob a perspectiva bakhtiniana, a situação extraverbal deve ser considerada. Para a confirmação da hipótese de que a revista Veja não esconde “o papel de promotor da acusação de que tudo sabe, dirigindo-se aos jurados” (HERNANDES, 2006), ou seja, de que a revista adota um discurso de julgamento prévio, foi apresentada a capa de janeiro de 2001, DROGAS – MAIS UMA VÍTIMA – em que Veja, no caso da cantora Cássia Eller, dissimula também seu julgamento prévio com as mesmas estratégias utilizadas na capa FORAM ELES. Para análise dos elementos verbais, foram considerados os que geralmente constituem uma capa de revista: título; logomarca da empresa; data; número da edição; preço; textos das chamadas (há, geralmente, uma chamada que se destaca das demais), que irão ser compreendidas, sob a ótica de Bakhtin, como aquelas que irão compor o enunciado maior. Os elementos não-verbais que geralmente compõem as capas de revista são: a imagem, elemento importante da composição do enunciado do gênero capa de revista; diagramação (layout); as cores predominantes no plano de fundo, a qualidade do papel, o formato e as cores das letras, a formatação das chamadas, as imagens escolhidas – pessoas ilustres ou não, em determinadas atitudes; seres inanimados. Nesta análise, priorizou-se a imagem que se destacava na capa e as cores predominantes no plano de fundo e nas letras das chamadas. Os conceitos de profusão e economia, exagero e minimização, presentes nos estudos de Dondis, servem aqui de pressuposto teórico para análise de imagens e cores. 4. RESULTADOS E DISCUSSÕES O MAL: VEJA, São Paulo, Editora Abril, n. 2055, abril 2008. FORAM ELES: VEJA, São Paulo, Editora Abril, n. 2057, abril 2008. 4.1. ANÁLISE DA CAPA O MAL Esta capa foi editada num contexto de comoção, que tomou conta de todo o país, causado pela morte da menina Isabella Nardoni. Quando a capa da revista foi produzida, o fato era muito recente. Apesar de o pai e a madrasta estarem presos, a investigação policial ainda estava no início. 4.1.1 Análise dos elementos verbais e não-verbais A capa O MAL traz elementos recorrentes em todas as capas da Revista Veja: o nome da revista; a logomarca da Editora Abril; o número da edição; ano;endereço do site da revista. O que ela apresenta de diferente das outras edições: a) não há outras chamadas além da principal; b) o título O Mal destaca-se pelas letras garrafais e encaminha para a reportagem destacada nessa edição; c) a delimitação do tema é feita pelo destaque do texto com letras escritas em branco: crianças abandonadas, torturadas e assassinadas; d) o subtítulo aparentemente explicita o que vai ser realizado pela reportagem: uma investigação filosófica, psicológica, religiosa e histórica sobre as origens da perversidade humana. A imagem que aparece na capa é de um grande olho. Um olhar que toma todo o espaço da página. Nele podemos ver a imagem da garota Isabella destacada. O olhar parece fixar-se no leitor e apresenta um ar entre o sombrio, o dissimulado e o perverso, como se é dito na chamada. Quanto às cores, a edição da capa demonstra um cuidado grande na escolha das que compõem essa página. As cores eleitas para ilustrar a capa e destacar a morte de uma criança de classe média foram: o preto, o cinza e o branco. O preto é a cor predominante: aparece em todo plano de fundo e no título principal. Remete-nos a várias idéias, mas principalmente a de luto e morte. A cor preta também serviu para destacar o que está em branco na capa: a imagem da menina e o texto em que aparece a palavra crianças. A cor branca sugere-nos também a idéia de pureza. E é assim que ela aparece na capa: para destacar a imagem de uma criança e a palavra crianças. Foram utilizadas as técnicas visuais da profusão e da economia: profusão da cor preta e economia do texto verbal. Técnica adequada para o sentimento de comoção por que passava o país: estávamos de luto e sem palavras para uma morte brutal. O cinza tem uma conotação de neutralidade ou seriedade. Ele, “arquitetonicamente”, foi usado para o subtítulo, tentando induzir o leitor a inferir que a revista irá ter um posicionamento sério e imparcial em relação ao caso. O cinza também aparece no nome da revista. A cor branca contorna o nome VEJA. Esta estratégia permite-nos inferir que a intenção do enunciador seria a de passar a idéia de imparcialidade e/ou seriedade da revista diante do fato da morte de um ser que representa a pureza. 4.1.2. Além das aparências Esta capa quer sugerir um caráter de imparcialidade e seriedade diante do fato, mas, após uma leitura detalhada, podemos realizar algumas inferências que põem em dúvida esse caráter. A principal função de uma capa de revista é certamente atrair o leitor/consumidor a comprar a revista e, no caso da Veja, especialmente, que tem milhares de assinantes, agradá-los. Sabemos que o público-leitor da Veja pertence às classes média e média alta, até mesmo pelo preço da revista. Então, faz sentido a escolha pela imagem da menina Isabella, pertencente à classe média para o centro da capa. Com certeza, a morte dela atraía seu público. O intuito parece ser realmente o do uso mercadológico da imagem infantil. Um outro detalhe importante na edição desta capa: no centro do olho, aparece refletida a imagem da menina Isabella. A idéia que pode nos ocorrer é a de que alguém próximo a ela esteja ligado a sua morte. Nesse momento seu pai e madrasta eram os principais suspeitos. Não poderíamos falar em imparcialidade ou mesmo em seriedade após essa inferência. Outra observação pertinente para a confirmação de que há um julgamento prévio da revista em relação ao caso é a de que, no momento da publicação, havia dúvida ainda se realmente a garota havia sido jogada pela janela. Parece proposital e tendencioso o uso dos adjetivos abandonadas, torturadas, assassinadas para o substantivo crianças no mesmo enunciado em que aparece a imagem da menina Isabella. 4.2. ANÁLISE DA CAPA FORAM ELES No momento em que esta capa foi publicada, toda a mídia brasileira se ocupava de “espetacularizar” o caso Isabella Nardoni. A revista VEJA destacou as figuras do pai e da madrasta da menina em sua edição. Com certeza, deve ter agradado aqueles que clamavam por “justiça” e crucificava os “monstros frios e dissimulados” (como a própria revista se refere ao pai e à madrasta na p. 84 desta edição). Conseqüentemente, houve aumento na venda de exemplares com esta edição. 4.2.1. Análise dos elementos verbais e não-verbais Os elementos recorrentes em todas as capas de Veja também aparecem nessa capa: nome da revista; nome e logomarca da editora; data; preço; endereço do site da revista, número da edição. Apesar do destaque dado ao casal acusado pela morte da garota Isabella, há outras chamadas que aparecem tendo como cor predominante, no plano de fundo, o amarelo. Ele pode simbolizar vários sentimentos e sensações: desespero, apetite, agitação... No caso, a intenção parece ser a de que o amarelo foi utilizado para chamar a atenção do leitor. Nota-se um diálogo entre as chamadas menores e a maior. Aparecem, nas chamadas secundárias, palavras como ameaça, escândalo, e a expressão pobres na terra da riqueza, que, de certa forma, têm relação semântica com os signos verbais que envolvem o episódio da menina Isabella. O que mais chama a atenção para a capa é, sem dúvida, o tamanho das letras das palavras: FORAM ELES, escritas na cor branca, destacadas ainda mais com o preto do plano de fundo. O branco também foi utilizado para escrever os nomes de Alexandre Nardoni e Anna Carolina Jatobá, fazendo referência explícita quem são ELES. Observamos que, em letras bem menores e em amarelo (como escândalo, ameaça, pobres na riqueza das outras chamadas da capa), aparece a frase Para a polícia, não há mais dúvidas sobre a morte de Isabella. Esta técnica revela indiscutivelmente o posicionamento de julgamento prévio por parte da revista e a estratégia sensacionalista (típica da chamada imprensa “marrom”) diante do fato. A revista assume disfarçadamente uma postura, deixando-a subentendida através de um texto pequeno, mas que salvaguarda a empresa de um eventual processo por danos morais ou calúnia. Esse tipo de técnica remete-nos a muitas propagandas enganosas, que prometem vantagens em letras garrafais ao consumidor, mas deixa quase imperceptíveis as exigências e ônus que vêm expressos em letras muito pequenas. 4.2.2. Mais um exemplo de dissimulação do discurso de julgamento prévio de Veja em suas capas Em janeiro de 2001, por ocasião da morte da cantora Cássia Eller, a revista Veja publicou uma capa utilizando as mesmas estratégias para seu propósito comunicativo de julgar sumariamente um fato e/ou uma pessoa. Na época, a causa da morte da artista ainda estava sendo investigada e a revista, em letras garrafais, dá o seu veredicto: DROGAS – MAIS UMA VÍTIMA se salvaguardando com o texto escrito em letras menores: A polícia suspeita que um coquetel de droga, álcool e remédios, que havia dois anos lutava para se livrar da dependência de cocaína. 4.3. Confronto das capas: O mal x Foram eles Para confrontar as duas capas, foram analisados os elementos em comum . O plano de fundo de ambas as capas tem a cor preta para destacar os elementos que aparecem em tom mais claro. Nas duas capas, o nome da revista vem com as cores cinza e branca. Muito interessante é que as capas trazem o olho como elemento metonímico. O olho que aparece na capa O MAL dá a idéia de abrangência: há a sugestão de que o episódio vai ser tratado de forma mais séria, menos superficial. Na capa FORAM ELES, o close se fecha nos olhos dos acusados. Observa uma abertura maior de imagem na figura da madrasta – principal suspeita de ter matado a criança, com a cumplicidade do pai. O olhar do pai sugere essa possível dissimulação e cumplicidade. O clarão que se abre em torno da figura dos suspeitos dá a impressão da imagem de um olho querendo sugerir a idéia de que o crime fora desvendado e os verdadeiros assassinos, descobertos. Sem dúvida, esta capa foi criticada pelos leitores mais atentos e sérios que entendem que o verdadeiro papel dos meios de comunicação é contribuir para a formação de um cidadão crítico que repudia o espetáculo sensacionalista que alguns veículos teimam em apresentar. O resultado da análise das capas FORAM ELES e O MAL demonstrou que elas constituem um enunciado recortado e selecionado da realidade, revelando o viés valorativo de seu autor-criador. O princípio bakhtiniano da “responsividade” está presente nas capas de Veja quando, ao produzir sua capa, a revista presume seu destinatário concreto e dele espera uma determinada resposta. E é essa resposta, que pode ser a esperada ou não, entre autor e destinatário – aqueles que não exercem papéis fixos – que estabelecerá o diálogo de vozes sociais. 5. CONSIDERAÇÕES FINAIS As leituras e inferências que aqui foram feitas, sem dúvida, são passíveis de discussão e não esgotam as possibilidades de outras leituras. Afinal, segundo Bakhtin, para cada enunciado, há uma multiplicidade de respostas, visto que os contextos em que esses enunciados são lidos e pronunciados são novos, irrepetíveis. Além disso, há sempre um superdestinatário que não pode ser presumido pelo autorcriador. As capas analisadas revelam que no episódio Isabella Nardoni a revista VEJA mostrou ter se igualado a outros veículos de comunicação que exploraram a morte de uma criança. E o que parece ser mais “nocivo”: condenou, previamente, supostos assassinos e usou a imagem de uma criança, de forma dissimulada, para fins apenas lucrativos. 6. REFERÊNCIAS AGUIAR, Vera Teixeira de. O verbal e o não-verbal. São Paulo: Unesp, 2004. BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. 4. ed., São Paulo: Martins Fontes, 2003. BRAIT, Beth. (org.) Bakhtin: conceitos-chave. 3. ed., São Paulo: Contexto, 2006. CHARAUDEAU, Patrick. Discurso das Mídias. 1. ed., 1. reimpressão, São Paulo: Contexto, 2007. DONIS, Dondis A. Sintaxe da Linguagem Visual. 2. ed., São Paulo: Martins Fontes, 1997. HERNANDEZ, Nilton. A mídia e seus truques: o que o jornal, revista, TV, rádio e internet fazem para captar e manter a atenção do público. São Paulo: Contexto, 2006.