INDIVÍDUO E CONSUMISMO, O CLUBE DA LUTA

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INDIVÍDUO E CONSUMISMO, O CLUBE DA LUTA
Ensinagem: Revista Periódica da Faculdade de Belém
INDIVÍDUO E CONSUMISMO, O CLUBE DA LUTA COTIDIANO:
Ensinagem:
Faculty
Belém Journal
V. 2, de
n. 1,comunicação
Janeiro/Junho
p. 95-109
As consequências
da of
publicidade,
dos meios
e da2013,
sociedade
de consumo na modernidade líquida
ISSN 2238-4871
INDIVÍDUO E CONSUMISMO, O CLUBE DA LUTA
COTIDIANO: As consequências da publicidade, dos
meios de comunicação e da sociedade de consumo
na modernidade líquida
INDIVIDUAL AND THE CONSUMERISM, THE DAILY FIGHT
CLUB: The consequences of advertising, media and the
consumer society in the liquid modernity
INDIVÍDUO Y CONSUMISMO, EL CLUBE DE LA LUCHA
COTIDIANA: Las consecuencias de la publicidad, de los
medios de comunicación y de la sociedad de consumo en la
modernidad líquida.
Gabriel Lage da Silva Neto 1
RESUMO
Com o objetivo de reunir argumentos para a compreensão dos
fenômenos sociais aos quais o indivíduo que vive na modernidade
líquida, conceito criado pelo sociólogo Zygmunt Bauman, está
exposto, este artigo pretende dar destaque para a colaboração que
a publicidade, aliada aos grandes meios de comunicação, dá para
a sociedade de consumo. Através do pensamento crítico e com o
embasamento teórico de autores como Bauman, Berger, Coelho,
Klein e Marshall. Temas como o consumismo, a exauribilidade
das coisas e o culto ao supérfluo na realidade contemporânea serão
relacionados com o filme Clube da luta, dirigido por David Fincher e
baseado no livro homônimo de Chuck Palaniuk.
1
Doutorando em Comunicação e Semiótica (PUC-SP). Mestre em Comunicação
(Faculdade Cásper Líbero). Especialista em Gestão da Comunicação (USP). Autor do livro
“Mito e comunicação: a importância da mitologia e sua presença na mídia”. Professor da
Faculdade Integrada Brasil Amazônia - Fibra. Email: [email protected].
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Palavras-chave: Publicidade. Mídia. Sociedade de consumo.
Modernidade. Cinema.
ABSTRACT
In order to gather arguments to the understanding of social phenomena
to whom the individual who lives in the liquid modernity, a concept created
by the sociologist Zygmunt Bauman, is exposed, this article aims to highlight
the collaboration that advertising, combined with mass media, gives to the
consumer society. Through critical thinking and the theoretical background of
authors such as Bauman, Berger, Coelho, Klein and Marshall. Subjects such as
consumerism, the exhaustibility of things and the worship to the superfluous
in the contemporary reality will be related to the movie Fight Club, directed by
David Fincher and based on the homonymous book by Chuck Palaniuk.
Keywords: Advertising. Media. Consumer society. Modernity. Cinema.
RESUMEN
Con el objetivo de reunir argumentos para la comprensión de los
fenómenos sociales a los cuales el indivíduo que vive en la modernidad
líquida, concepto creado por el sociólogo ZygmuntBauman, está
exposto, este artículo pretiende dar destaque para la colaboración
que la publicidad, aliada a los grandes medios de comunicación, da
para la sociedad de consumo. A través del pensamiento crítico y con
la base teórica de autores como Bauman, Berger, Coelho, Klein y
Marshall. Temas como el consumismo, el agotamiento de las cosas y
el culto al supérfluo en la realidad contemporánea serán relacionados
con la película Clube da Luta, dirigido por David Fincher y con base
en el libro homónimo de Chuck Palaniuk.
Palabras-clave: Publicidad. Mídia. Sociedade y Consumo.
Modernidad. Cinema.
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As consequências da publicidade, dos meios de comunicação e da sociedade de consumo na modernidade líquida
1 INTRODUÇÃO
Engana-se por completo quem crê que o cinema contemporâneo
norte-americano é formado apenas por produções que tem o lucro
como intuito único. Um olhar mais atento vai revelar que muitas de
suas narrativas objetivam passar adiante uma importante mensagem
para a sociedade (LAGE NETO, 2010). O filme Clube da Luta,
dirigido por David Fincher e inspirado no livro homônimo escrito
por Chuck Palahniuk, é um bom exemplo dessa questão.
A observação mais superficial vai entender o citado filme
como apenas mais um exemplar das dezenas que são produzidos
anualmente que têm como tema central a violência e a depredação
urbana. Sem dúvida a obra trata disso, mas não somente. A falta
de sentido na vida, a busca por algo maior, a batalha contra forças
invisíveis, entre outros temas tão comuns na filosofia e na mitologia,
são elementos que enriquecem essa história e a tornam indispensável
para o entendimento do mundo em que vivemos.
De uma hora para a outra, a luta, ainda que inconsciente,
do personagem denominado Narrador (representado por Edward
Norton) contra o seu vazio existencial e a sua dependência do
consumismo toma proporções tão gigantescas que ele próprio só vai
conseguir compreendê-las na parte final da história. Tyler Durden personagem vivido por Brad Pitt - é a complexa personalidade que
ora se apresenta como aliado e ora como antagonista do Narrador em
sua jornada.
A ficção retratada em Clube da Luta, por mais absurda que
pareça, não está muito longe da realidade do indivíduo que vive na
modernidade líquida¹ e que cotidianamente se encontra em choque
com a publicidade, os meios de comunicação e a sociedade de
consumo, como se vê a seguir.
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2 PUBLICIDADE
A publicidade nos faz correr atrás de carros e roupas.
Trabalhar em empregos que odiamos para poder comprar bobagens
que não precisamos.
Tyler Durden.
A publicidade geralmente é mostrada como uma mídia
competitiva e relacionada a ideais de liberdade. Como escreveu
John Berger, em seu livro Modos de ver: “liberdade de escolha para
o comprador; liberdade de empreendimento para o fabricante. Os
grandes tapumes cobertos de cartazes e néons publicitários das
cidades do capitalismo são o sinal visível do ‘mundo livre’” (1999, p.
133). Porém, com uma linguagem bastante singular, a publicidade
não oferece muita liberdade de escolha ao consumidor, na verdade
a sua proposta é uma só, novamente de acordo com Berger (1999,
p. 133): “ela propõe a cada um de nós que nos transformemos, ou a
nossas vidas, ao comprar alguma coisa a mais”.
O indivíduo se acostumou de tal forma com a publicidade que
já não nota mais a influência desta em sua vida. Ela está em toda
a parte, pronta para persuadir a mudança, o consumo. Ela precisa
convencer o indivíduo de que ele pode ser melhor, sempre mostrando
que o tempo presente não é satisfatório, pode e precisa ser melhorado
por meio do consumo, tenta fazer com que ele acredite que o produto a
ser consumido vai mudar, para melhor, seu viver, seu jeito de ver e ser
visto. O indivíduo acaba por acreditar e comprar, e, por quase nunca
sentir-se satisfeito (sempre há uma nova moda, um novo modelo de
automóvel, uma nova cor da estação, etc.), continua comprando.
Da metade do século XX em diante o discurso publicitário
se firmou como uma das mais poderosas ferramentas do mundo
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As consequências da publicidade, dos meios de comunicação e da sociedade de consumo na modernidade líquida
capitalista. De acordo com Marshall (2003, p. 93) “a linguagem da
sedução passou a modelar as relações sociais, políticas e econômicas
e transmutou diretamente o universo da sociedade, da comunicação
e da cultura”. A partir de então, tem-se, cada vez mais, a impressão
de que não existe lugar no mundo onde ela não esteja. Marshall
(2003, p. 93) prossegue: “A publicidade se converteu em um dos
motores da engrenagem da sociedade capitalista, e, qualifica-se já
a assumir o lugar da imprensa no posto de quarto poder de nosso
modelo econômico de sociedade”. Segundo Coelho (2003, p. 05),
“acompanhar o desenvolvimento da publicidade é acompanhar o
desenvolvimento da sociedade de consumo”.
A missão publicitária é fazer com que o indivíduo acredite
que os produtos por ela anunciados irão mudar a sua vida. E como
não acreditar, se, para os artistas do cinema, as estrelas do rock, os
apresentadores da TV e os modelos retratados nas revistas, basta
vestir as grandes marcas, beber a cerveja do comercial e dirigir os
melhores carros para serem tão felizes, amados e invejados? Por que
ele, indivíduo comum, que consome os mesmos produtos, também
não pode ser?
Um dos resultados do sucesso publicitário é o que se vê
praticamente em todos os lugares: pessoas trajando basicamente as
mesmas roupas, ainda que o estilo mude de acordo com a “tribo” na
qual essas pessoas estão inseridas. Há mais ou menos trinta anos a
tendência mais seguida, independentemente de idade, cor, sexo ou
classe socioeconômica, é o uso de roupas que são verdadeiros outdoors
de grifes famosas. Em camisetas, calças jeans ou calçados, as grandes
marcas estão lá, estampadas. E quanto maior for o tamanho da
estampa, melhor.
O que raramente se percebe é que, através dessa ostentação das
marcas, o indivíduo passa a ser ele mesmo um cartaz, um anúncio
publicitário, e nem ao menos está recebendo por isso. Muito pelo
contrário, está pagando e, na maioria das vezes, absurdamente caro.
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Exatamente como diz o poeta Carlos Drummond de Andrade:
“Desde a cabeça ao bico dos sapatos, são mensagens, letras falantes,
gritos visuais, ordens de uso, abuso, reincidências, costume, hábito,
premência, indispensabilidade, e fazem de mim homem-anúncio
itinerante, escravo da matéria anunciada”².
Na ocasião do lançamento de uma nova linha de roupas com
a marca do canal esportivo Fox Sports, o CEO da Fox Broadcasting,
David Hill, deu a seguinte declaração: “Esperamos ver a atitude e
o estilo de vida da Fox Sports fora da TV e nas costas dos homens,
criando uma nação de cartazes ambulantes” (KLEIN, 2002, p. 68).
Segundo Marshall (2003):
Viver em qualquer cidade grande ou média do
mundo ocidental significa estar em meio a um
bombardeio cultural, com mensagens de todas as
formas e conteúdos procurando aliciar, persuadir
e convencer os cidadãos. Mesmo que não queira,
ninguém consegue viver alheio a esse tiroteio de
tentações (MARSHALL, 2003, p. 94).
“Na maioria das vezes, as pessoas não sabem o que querem,
até que você mostre para elas”. Esta célebre frase, que reverbera
há bastante tempo pelos quatro cantos do mundo, é atribuída ao
empresário Steve Jobs (s/d). Pode-se dizer que a afirmação resume
muito bem o pensamento publicitário contemporâneo, que anuncia
diariamente novos produtos ditos indispensáveis. Curiosamente a
sociedade em geral, vivia bem antes da invenção dos mesmos. Nas
palavras de Coelho (2003, p. 8) “somos incentivados a sentir cada vez
mais necessidades, tornando-se difícil saber o que é uma necessidade
real e o que é uma necessidade criada pela publicidade”.
Coelho (2003) segue afirmando:
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O conjunto de peças publicitárias funciona como
um sistema que captura a dimensão instintiva dos
membros da sociedade capitalista de consumo,
esvaziando a capacidade de sermos sujeitos dos
nossos próprios desejos. A publicidade diz o
que devemos desejar, por que devemos desejar e
como os desejos podem ser realizados: a dimensão
instintiva foi colocada a serviço da reprodução da
sociedade capitalista de consumo. Desejamos o que
esta sociedade nos oferece, dela dependemos para
a concretização dos desejos. Mas, esta situação de
dependência não é vivida enquanto tal. Assim como
a criança não possui consciência da sua situação de
dependência da mãe, o consumidor também não
possui consciência da sua dependência das empresas
fabricantes dos produtos que consome ou gostaria de
consumir (COELHO, 2003, p. 10).
Uma das provas de que a publicidade está profundamente
entranhada na sociedade contemporânea é que nós “aceitamos a
totalidade do sistema de imagens publicitárias da mesma maneira
que aceitamos um elemento do clima” (BERGER, 1999, p.132).
Ela se faz presente em todos os lugares, nos outdoors das grandes
avenidas, nos milhares de folhetos que são entregues pelas ruas, e,
principalmente, nos grandes meios de comunicação: na televisão, no
rádio, na internet, nas revistas e nos jornais impressos.
3 MEIOS DE COMUNICAÇÃO
Crescemos assistindo televisão e acreditando que um dia
seríamos milionários, deuses do cinema e estrelas do rock. Mas não
seremos.
Tyler Durden.
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Desde a sua implementação no Brasil, a televisão se caracterizou
como um veículo publicitário. Diversos programas incorporavam o
nome do patrocinador ao seu, como era o caso de: Repórter Esso,
Telejornal Pirelli, Gincana Kibon, Telenotícias Panair e, o mais
famoso deles, o Jornal Nacional³, dentre diversos outros. De lá para
cá o que mudou foi apenas o aumento do poder publicitário sobre
as mídias e a adoção de estratégias que fazem com que o discurso
publicitário se infiltre com mais facilidade e menos percepção à grade
de programação.
A relação de dependência dos meios de comunicação para com
a publicidade em todo o mundo chega ao ponto de os anunciantes
terem o poder de escolher o que será ou não divulgado, publicado ou
exibido. Eis um exemplo:
O vice-presidente de uma empresa anunciante de
comprimidos contra dor de cabeça, os laboratórios
Whitehall, contou à FCC o que a companhia exigia
das redes: se uma cena mostra alguém cometendo
suicídio pela ingestão de um vidro de comprimidos,
queremos que não vá ao ar (BAGDIKIAN apud
MARSHALL, 2003, p. 113).
É complicado entender como um meio de comunicação tão
dependente do capital publicitário pode manter um compromisso
com seu público. Imaginemos uma situação onde seja necessária
fazer uma denúncia contra uma empresa patrocinadora, a quem o
veículo se manterá fiel, à sociedade ou à organização que o mantém
funcionando?
“A publicidade é à base da sustentação econômica da mídia
de massa moderna. Bagdikian revela que 75% dos rendimentos dos
jornais provêm dos anúncios. No rádio e na televisão, a publicidade
também banca a maior parte dos custos operativos” (MARSHALL,
2003, p. 107). Com base nesses números é difícil imaginar uma
realidade onde os meios de comunicação tenham chances de
conquistar sua independência em relação à publicidade.
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As consequências da publicidade, dos meios de comunicação e da sociedade de consumo na modernidade líquida
A internet também é um meio onde as grandes empresas
enxergaram excelentes oportunidades para a propaganda de seus
produtos. Milhões de usuários da rede têm acesso a textos informativos
onde, por exemplo, ao mesmo tempo em que leem a notícia da vitória
de um corredor de 100 metros rasos, podem, com um simples clique,
comprar o tênis da marca do patrocinador do atleta, a camiseta do
evento esportivo, ou passagens de avião para o país onde a próxima
competição se realizará.
O provedor de acesso UOL – Universo Online mantém um
extenso portal de notícias. Nesse portal, ao lado da notícia escolhida
para ser lida pelo internauta, estão os anúncios de diversos produtos
que, convenientemente, têm relação com o conteúdo da matéria
que está sendo exibida. Assim, ao ler sobre um show da sua banda
norte-americana preferida, o internauta também pode adquirir uma
passagem aérea Brasil – Estados Unidos. Ao lado de um texto sobre o
aumento do desemprego no mês anterior, estará o anúncio de vendas
de apostilas para concursos, e assim por diante.
Outra novidade proporcionada pela internet são as páginas
criadas pelas próprias empresas que costumavam anunciar em portais
como o do UOL. Agora, no lugar de financiar o conteúdo de alguém,
elas mesmas assumem o papel de provedores de conteúdo. “O site da
Gap oferece dicas de viagem, a Volkswagem oferece trechos gratuitos
de música, a Pepsi incita os visitantes a baixar videogames e a Starbucks
oferece uma versão online de sua revista, a Joe” (KLEIN, 2002, p. 67).
Tudo isso sem contar com todos os sites especializados
em vendas on-line, alguns dos quais geridos por empresas que já
mantinham canais televisivos, cuja programação alcança quase 100%
de televendas. Com a internet, essas organizações conseguiram
mais um espaço onde vender produtos propagandeados como
imprescindíveis para a vida do indivíduo.
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4 SOCIEDADE DE CONSUMO E O INDIVÍDUO
Você acaba pertencendo às coisas que lhe pertencem.
Tyler Durden.
Doze prédios onde funcionam as matrizes empresariais dos
maiores cartões de crédito do mundo estão para explodir. Com este
ato terrorista, o controverso herói Tyler Durden pretende iniciar
uma revolução que tem por um de seus objetivos o extermínio da
sociedade de consumo. Esta é a primeira cena do filme Clube da luta.
No primeiro capítulo de seu livro Vida para consumo, o sociólogo
polonês Bauman (2008), afirma:
Aparentemente, o consumo é algo banal, até
mesmo trivial. É uma atividade que fazemos todos
os dias, por vezes de maneira festiva, ao organizar
um encontro com os amigos, comemorar um
evento importante ou para nos recompensar por
uma realização particularmente importante – mas a
maioria das vezes é de modo prosaico, rotineiro, sem
muito planejamento antecipado nem considerações
(BAUMAN, 2008, p. 37).
O ato do consumo é tão antigo quanto a nossa sociedade.
Desde a revolução industrial, quando o indivíduo passou de produtor
para consumidor, é perfeitamente comum pagarmos para consumir
bens essenciais para nossa sobrevivência e conforto: bebida, comida,
medicamentos, itens de higiene pessoal, roupas, automóveis,
moradias, a lista é interminável. Porém, nas páginas seguintes de seu
livro, Bauman (2008) fala de outra revolução, a revolução consumista.
Esta se deu quando o consumo se tornou extremamente importante
para a vida da sociedade, como se fosse à verdadeira missão do
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indivíduo na terra. “E quando nossa capacidade de querer, desejar,
ansiar por e particularmente de experimentar tais emoções repetidas
vezes de fato passou a sustentar a economia do convívio humano”
(BAUMAN, 2008, p. 38-9).
Um pouco mais adiante no filme, vemos o ator Edward
Norton representando o personagem conhecido como o Narrador.
Ele está em seu apartamento folheando um catálogo de compras.
Enquanto é mostrada a imagem do personagem comprando pelo
telefone um conjunto de mobília para sua sala, que por sinal ainda
conta com móveis novos, um monólogo do próprio Norton compõe
o fundo da cena:
Como muitos outros, eu me tornei um escravo
do instinto consumista caseiro. Se eu visse algo
interessante, como uma pequena mesa para café no
formato de um yin-yang, eu tinha que comprar.
O conjunto de escritório Klipsk. A bicicleta
ergométrica Hovertrekke. Ou o sofá Ohamshab com
o padrão de listras verdes. Até mesmo a cúpula de
abajur Ryslampa de papel biodegradável. Eu folheava
os catálogos e imaginava “que tipo de jogo de jantar
me define como pessoa?”. Eu tinha tudo, até os
pratos de vidro com pequenas bolhas e imperfeições.
Prova de que tinham sido feitos pelos honestos,
simples, trabalhadores, povos indígenas de... Sei lá
onde (BAUNAM, 2008, p. 40).
O que os indivíduos adeptos do estilo de vida consumista
ambicionam primeiramente é simplesmente possuir. Seja pelos
benefícios que essas posses lhes proporcionam, ou pelo status que
elas lhes conferem, perante a sociedade. Para Bauman (2008, p. 41),
o consumismo “é um tipo de arranjo social resultante da reciclagem
de vontades, desejos e anseios humanos rotineiros, permanentes e,
por assim dizer, ‘neutros quanto ao regime’, transformando-os na
principal força propulsora e operativa da sociedade”.
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Os meios de comunicação, em especial a televisão, estimulam
esse comportamento consumista da sociedade. Por exemplo, em seus
programas matutinos e vespertinos de variedades onde, entre uma
reportagem e outra, o próprio apresentador se dirige a um balcão e
faz, ele mesmo, a propaganda do patrocinador. As novelas também
não ficam atrás na corrida da venda do telespectador para o capital
publicitário, cada vez mais são destacados os rótulos e marcas dos
produtos - que vão de fósforos a carros de luxo - através de closes
indisfarçados. Nem é necessário falar dos reality shows, onde, a cada
episódio, os patrocinadores se fazem extremamente visíveis, com
suas marcas compondo temas de competições, cenários e até mesmo
uniformes dos participantes.
Uma das características da modernidade líquida, termo cunhado
por Bauman (2008, p. 42), é a fugacidade, a descartabilidade, a fluidez.
Tudo é líquido, tudo tem curto prazo de validade: relacionamentos
sejam estes profissionais, pessoais ou amorosos; estilos de ser, agir
e pensar; e, como não poderia deixar de ser, bens de consumo.
Bauman explica que na era sólido-moderna, “amplos volumes de
bens espaçosos, pesados, obstinados e imóveis auguravam um futuro
seguro, que prometia um suprimento constante de conforto, poder e
respeito pessoais”. Bem diferente dos tempos contemporâneos onde
os bens de consumo parecem mesmo ser feitos para quebrar o mais
rápido possível. O espantoso é que “os consumidores experientes não
se incomodam em destinar as coisas para o lixo” (BAUMAN, 2007,
p. 111), muito pelo contrário...
Aceitam a curta duração das coisas e seu
desaparecimento predeterminado com tranqüilidade,
ou por vezes com uma satisfação mal disfarçada. Os
adeptos mais habilidosos e sagazes da arte consumista
sabem como se regozijar por se livrar das coisas que
ultrapassaram o tempo de uso (BAUMAN, 2007, p.
111).
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O personagem de Norton atende ao chamado da aventura e
atravessa o primeiro limiar4 quando seu apartamento5 vai pelos ares
e ele se vê, pela primeira vez, isolado de todos os seus bens materiais.
A cena conta com uma fala interessantíssima do personagem ao
ver sua geladeira destruída no meio da rua: “que vergonha, cheia
de condimentos, mas sem comida nenhuma” (COELHO, 2003, p.
11). Uma referência direta aos consumistas: pessoas que têm de tudo,
menos o que é realmente importante.
Na cena seguinte, o Narrador se lamenta para Tyler Durden
sobre seu apartamento e seus pertences perdidos: “Eu tinha tudo.
Um aparelho de som muito decente, uma coleção de roupas que
estava ficando muito respeitável. Eu estava perto de me sentir
completo”. Percebe-se que a afirmativa de Coelho (2003, p. 12), “o
consumidor se relaciona com as mercadorias como se estas fossem um
prolongamento dele mesmo”, faz total sentido ao analisarmos este
diálogo. Em resposta ao seu mais novo amigo, Tyler Durden define a
sociedade contemporânea:
Somos consumistas, somos subproduto de uma
obsessão por estilo de vida. Assassinato, crime,
pobreza. Essas coisas não me interessam. O que
me interessa são revistas de celebridades, televisão
com 500 canais, o nome de alguém na minha roupa
intima, Rogaine, Viagra, Olestra.
5 CONCLUSÃO
A sociedade contemporânea está exposta por completo aos
meios de comunicação, à publicidade e aos apelos do consumismo.
Em alguns casos o conhecimento pode ser um instrumento que
vai trabalhar a favor do indivíduo contra o discurso que tenta
homogeneizar, alienar e dominar o maior número possível de pessoas.
Não existe uma fórmula mágica para escapar dessa realidade. Porém,
talvez ter a simples noção de que constantemente algo ou alguém
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está tentando manipulá-la, influenciar seus ideais e controlar suas
ações, já seja um bom começo para a sociedade.
A cultura é a mais forte aliada do indivíduo em todas as
situações de sua vida. O isolamento do mundo não vai lhe trazer
nenhum benefício, muito pelo contrário, continuará o alienando,
assim como faz a aceitação cega a tudo o que lhe é imposto pelos meios
de comunicação. Já a posse do pensamento crítico e compreensivo,
que é garantida pelo conhecimento e pelo estudo, certamente irá
auxiliá-lo na interpretação e na formulação de opiniões sobre tudo
aquilo que lhe é apresentado.
A mensagem do filme Clube da luta, assim como a de Bauman e de
todos os outros autores aqui citados pode ser assim resumida: enquanto
o indivíduo continuar a permitir ser tratado como um produto inerte
que a mídia vende para seus patrocinadores, a sua intelectualidade
continuará tão oca quanto um bom slogan publicitário. Ele pode ter
certeza que, como uma mercadoria descartável que se tornou, em
um futuro próximo estará em algum fundo de gaveta empoeirada,
fazendo companhia aos bens de consumo de curtíssima vida útil que
ele mesmo descartou.
NOTAS
1 O sociólogo polonês Zygmunt Bauman é o criador da expressão
modernidade líquida (que, inclusive, é o nome de uma de suas diversas obras
sobre o tema). Na modernidade líquida tudo é fluído, nada dura, tudo está
em constante mudança. A cultura, os bens de consumo, as personalidades,
as opiniões estão sempre ao sabor do vento e ao ritmo da música. Nada é
definitivo (Cf. BAUMAN, 2001).
2 Trecho do poema Eu, etiqueta, de Carlos Drummond de Andrade.
3 O nome do jornal se deve ao seu primeiro patrocinador, o Banco Nacional.
4 “O chamado da aventura” e “a passagem pelo primeiro limiar”, termos
criados pelo mitólogo norte-americano Joseph Campbell (1904-1987), são
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estágios integrantes da fascinante jornada do herói, descrita no livro O herói
de mil faces, publicado pela primeira vez em 1949.
5 O apartamento do personagem é localizado em um condomínio cujo
slogan é “a place to be somebody” - um lugar para ser alguém, traduzido para o
português ao pé da letra. Mais uma referência da obra às posses que acabam
definindo a personalidade de seus proprietários.
REFERÊNCIAS
BAUMAN, Zygmunt. Modernidade líquida. Rio de Janeiro, Zahar, 2001.
_________. Vida líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2007.
_________. Vida para consumo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor,
2008.
BERGER, John. Modos de ver. Rio de Janeiro: Rocco, 1999.
CAMPBELL, Joseph. O herói de mil faces. São Paulo: Cultrix/Pensamento,
2007.
CLUBE DA LUTA. Direção: David Fincher. Produção: Michael Deeley.
Intérpretes: Brad Pit (Personagem- Tyler Durden), Edward Norton, Helena
Bonham e outros. Roteiro: Chuck Palahnuuk. Gênero: Suspense e Drama.
Filme- DVD (139 MIN), Widescreen, Color. Los Angeles (USA): Warner
Brothers, 1999.
COELHO, Cláudio. Publicidade: é possível escapar? São Paulo: Paulus, 2003.
KLEIN, Naomi. Sem logo. Rio de Janeiro: Editora Record, 2002.
LAGE NETO, Gabriel. Mito e comunicação: a importância da mitologia
e sua presença na mídia. São Paulo: Plêiade, 2010.
MARSHALL, Leandro. O jornalismo na era da publicidade. São Paulo:
Summus, 2003.
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