Eça gostava do Brasil mas non troppo

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Eça gostava do Brasil mas non troppo
“Eça gostava do Brasil mas non troppo”
ISABEL COUTINHO (em S. Paulo) 11/04/2015 ­ 19:41
O século XIX de Eça de Queirós, Machado de Assis e do romance de
adultério. O professor da Universidade de Coimbra Carlos Reis abriu os
encontros Minha Língua, Minha Pátria na Livraria Cultura, em São Paulo.
Carlos Reis na Livraria Cultura, em São Paulo HEMERSON CELTIC
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Tem uma certa graça estar a ouvir falar do romance do século XIX, do tema
das mulheres e do adultério e da ligação disto tudo com a obra de Eça de
Queirós numa sexta­feira ao final da tarde, na Livraria Cultura do Shopping
Iguatemi, em São Paulo. Este é um dos centros comerciais mais chiques da
cidade brasileira, com lojas que vão da Burberry à Chanel e à Prada,
restaurantes gourmet e recantos onde se ouve tocar piano ao vivo. Durante o
dia inteiro, os corredores do shopping e da livraria são animados por um
corrupio de personagens femininas, de todas as idades, vestidas com as mais
exclusivas marcas da cabeça aos pés. Mulheres do século XXI que dão a
impressão de, tal e qual as suas congéneres do século XIX, terem muitas
horas de ócio potenciador da prática de adultério.
Foi aí, naquela que é uma das mais bonitas livrarias de São Paulo, num
auditório aberto rodeado de prateleiras e mesas com livros que Carlos Reis,
professor da Universidade de Coimbra e especialista em literatura do século
XIX e XX, abriu os encontros Minha Língua, Minha Pátria, que vão juntar
até ao dia 15 escritores portugueses e brasileiros. O programa é organizado
pelo PÚBLICO com a Livraria Cultura, tendo como parceiros o Camões –
Instituto da Cooperação e da Língua e a Universidade de Coimbra.
Foi já quase no final da sessão Eça de Queirós ou a língua como pátria
ausente, moderada pela directora adjunta do PÚBLICO Simone Duarte, que
veio a pergunta que levou o académico ao tema do adultério. Carlos Reis já
tinha lembrado que Eça, na sua correspondência com Ramalho Ortigão,
também da Geração de 70, lhe pedia que o criticasse, que lhe dissesse se ia
pelo bom caminho e lhe assegurasse que não estava apenas a imitar Balzac.
Na plateia, um rapaz quis saber se três importantes romances da literatura
mundial – Madame Bovary, de Flaubert; O Primo Basílio, de Eça de
Queirós; e Dom Casmurro, de Machado de Assis – não seriam a mesma
história contada de forma diferente. Em resposta, Reis informou que iria
juntar àqueles três outros tantos títulos. Lembrou então os romances Effie
Briest, do alemão Theodor Fontane; Anna Karenina, do russo Tolstói, e La
Regenta, do espanhol Clarín. “Ou seja, estes são os títulos daquele que foi
um grande subgénero do romance do século XIX, o romance de adultério. E
vários escritores, incluindo Clarín, foram acusados de plagiar Flaubert. O
que acontece é que o tema do adultério – entenda­se feminino – era o tema
que estava na ordem do dia naquela época. Esses três romances que
mencionou, no fundo, vão­se continuando uns aos outros. De certa forma,
estes grandes escritores estavam todos a escrever o mesmo romance.”
Carlos Reis, que começou a estudar Eça de Queirós quando tinha 20 anos e é
o coordenador das edições críticas desde 1992, lembrou ainda que o autor de
Os Maias fazia um retrato de costumes que não era embelezado e que o tema
do adultério se inseria aí. Era um grande escritor de romances, de ficções, e
foi, sobretudo, um grande criador de personagens. “É um escritor que
inovou na sua língua e não só por inventar palavras – isso todos os escritores
o fazem, faz parte da sua obrigação profissional renovar a língua e
revolucioná­la. Mas muito poucos conhecem o privilégio de ter deixado uma
palavra à língua portuguesa que está hoje dicionarizada e que identifica uma
personagem de Eça de Queirós: acaciano [o conselheiro Acácio, personagem
do romance O Primo Basílio]”, explicou o professor. “Diz­se de alguém que é
acaciano, como se diz que é hamletiano (de Hamlet) ou quixotesco (Dom
Quixote de La Mancha) ou bovarista (Madame Bovary). Só os grandes
génios são capazes de criar personagens que ficam para além do
desaparecimento das suas obras e que entram na língua sem que o próprio
escritor se aperceba disso no seu tempo”, acrescentou.
Os caixeiros do Rio
Claro que estando Carlos Reis a falar para uma plateia maioritariamente de
brasileiros – onde se destacava outra especialista na obra deste autor
português do século XIX, a professora Elza Miné, e também a dramaturga
Maria Adelaide Amaral, que fez a adaptação de Os Maias para a minissérie
de televisão que a Rede Globo exibiu em 2001 – não podia deixar de referir
que Eça de Queirós, que nunca esteve no Brasil, deveria ter começado a sua
carreira de consulado precisamente por este país, estava destacado para a
Bahia. Mas isso não aconteceu. “Eça gostava do Brasil mas non troppo. Não tenhamos muitas ilusões quanto
a isso. Eça escrevia para o Brasil porque precisava de arredondar o salário.”
Lembrou que a académica Elza Miné, na plateia, publicou um livro sobre a
actividade jornalística de Eça no Brasil, onde citava uma carta que escreveu
a Jaime Batalha Reis, outra das figuras da Geração de 70, a propor que
escrevessem uns textos para um suplemento brasileiro e que lhe dizia: "'No
fundo, aquilo são noções fundamentais de ciência para os caixeiros do Rio.'
Como se dissesse são intrujices literárias facílimas de fazer. Não era uma
imagem muito nobre do que era o leitor no Brasil”, concluiu o professor.
Mas Eça acabou por escrever muito para a Gazeta de Notícias, do Rio de
Janeiro, e para O Estado de São Paulo, ou melhor, a Província de São Paulo,
como então se chamava. Carlos Reis explicou que logo depois de ser
publicado em livro, em Portugal, Os Maias foi publicado em folhetins, como
nesse tempo se fazia, na Província de São Paulo ( a publicação, quase diária,
durou de 12 de Agosto de 1888 a 6 de Janeiro de 1889). Este facto que
durante muitos anos escapou aos investigadores foi descoberto por João
Alves das Neves, um jornalista português que viveu no Brasil e morreu em
2012. “Por que razão Eça fez isto?”, questionou o professor, tal como o fez
com outras obras, nomeadamente com A Relíquia e uma parte d’ A
Correspondência de Fradique Mendes, que foram publicadas na Gazeta de
Notícias em 1887 e em 1888? “Porque Eça de Queirós era tão lido no Brasil
que haveria a tentação de se fazerem edições clandestinas.” Era a forma de
evitar edições piratas, já que o escritor tinha leitores no Brasil desde os seus
primeiros livros.
O discípulo de Machado de Assis
Como se vê até pela “já muito estudada” polémica que o autor português teve
com o seu contemporâneo brasileiro, Machado de Assis. Em Março de 1878
aparecia no jornal O Cruzeiro, do Rio de Janeiro, uma longa crítica
extremamente severa a O Primo Basílio e à segunda versão de O Crime do
Padre Amaro assinada por um pseudónimo de Machado de Assis, Eleazar.
“Depois desta crítica, Eça passou a escrever de forma diferente”, diz. “Por
isso pode dizer­se que Eça foi discípulo de Machado.”
Na segunda versão de O Crime do Padre Amaro, o padre matava o filho
“num acto de grande crueldade e numa descrição sombria e sinistra. O que
foi muito criticado em Portugal, nomeadamente por Camilo Castelo Branco,
que disse que era um erro porque ‘em Portugal os padres não matam os
filhos, criam­os como sobrinhos’” [gargalhadas na livraria].
Era de facto um episódio cruel e Machado de Assis criticava essa crueldade.
"Eça de Queirós suprimiu esse episódio na terceira versão e alterou vários
episódios que Machado criticava especificamente. Percebeu a lição”, afirma
Carlos Reis. O prefácio que deveria ter acompanhado a terceira edição do
livro era também uma reacção a Machado de Assis, embora sem nunca dizer
o seu nome. Tinha um tom desabrido e sarcástico e era uma resposta
ressentida. E o escritor nunca chegou a publicar esse texto contra o
brasileiro. “O silêncio de Eça não foi inocente. Para mim, significa: este
grande escritor tem razão.”
Não houve grandes relações epistolares entre os dois. “Eça escreveu uma
carta a Machado a que este, que se saiba, nunca respondeu”, lembra Carlos
Reis, que terminou a sessão com a leitura de uma carta que Machado de
Assis escreveu pouco depois da morte do escritor português em Agosto de
1900. “Meu caro Henrique Chaves, que hei­de dizer que valha esta
calamidade? Para os romancistas, é como se perdêssemos o melhor da
família, o mais esbelto e o mais valido.”
Neste sábado, às 19h30, Gonçalo M. Tavares subirá ao palco e, no domingo,
será a vez de Jerónimo Pizarro e Adriana Calcanhotto dialogarem sobre
Fernando Pessoa (às 16h). O dia termina com o vencedor do Prémio Leya
2014, Afonso Reis Cabral (às 18h). COMENTÁRIOS