O texto completo da monografia - Centro Cultural do Ministério da

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O texto completo da monografia - Centro Cultural do Ministério da
Proposições de estratégias para a desinstitucionalização de uma
instituição psiquiátrica decorrente de transformações operadas
pela Reforma Psiquiátrica na cidade do Rio de Janeiro
" Engenho de Dentro do lado de fora:
o Território Como um Engenho Novo"
(Constituição histórica e propostas de transformação assistencial no
Instituto Municipal Nise da Silveira, conhecido como Hospital de Engenho de
Dentro, ex-Centro Psiquiátrico Pedro II, ex-Centro Psiquiátrico Nacional, exHospício Nacional, ex-Hospício de Pedro II)
Curso MBA Gestão em Saúde
Edmar Oliveira
Monografia apresentada como requisito de título para o Curso de
Especialização de Gestão em Saúde - Fundação João Goulart
Edmar de Sousa Oliveira
Orientador: Prof. Benilton Bezerra Jr.
Fundação João Gulart, 2004
2
"Pegar no espaço contigüidades verbais é o mesmo
que pegar mosca no hospício para dar banho nelas.
Essa é uma prática sem dor.
É como estar amanhecido a pássaros.
Qualquer defeito vegetal de um pássaro pode
modificar os seus gorjeios".
(MANOEL DE BARROS)
3
Agradecimentos:
À minha companheira e filhos, Marcelina, Januária, Juliano e Janaína, por
compreenderem que depois de velho continuamos obrigados a estudar da mesma
forma de quando éramos jovens.
À Ariadne, amiga que ajudou a decifrar o dialeto nordestino na artimanhas
da língua portuguesa.
Aos diretores e gerentes do Instituto Municipal Nise da Silveira, por
sonharem juntos comigo uma projeção de realidade.
Aos companheiros do passado do antigo Centro Psiquiátrico Pedro II que
são personagens da história recente do CPPII.
A cada um dos usuários do Engenho de Dentro que, na sua idiossincrasia,
construíram comigo, por longos anos, o pano de fundo da história que aqui é
abordada. Só entendendo que esta história se passa na vida de cada um deles,
podemos tentar compreende-la melhor. E que os ensinamentos destas histórias
de vida nos apontem os melhores caminhos...
4
Índice
AGRADECIMENTOS:..................................................................................... 4
RESUMO.................................................................................................. 8
DA METODOLOGIA....................................................................................... 9
INTRODUÇÃO: INÍCIO DATADO, O FIM POSSÍVEL........................ 12
CAPÍTULO 1: PARA IMAGINAR ONDE CHEGAR É PRECISO UM PONTO DE PARTIDA........ 13
PRIMEIRA PARTE: CONSTITUIÇÃO HISTÓRICA............................ 24
CAPÍTULO 2: A MESMA CENA SE REPETE QUASE UM SÉCULO DEPOIS: O NASCIMENTO DO
HOSPÍCIO NO BRASIL. .............................................................................. 25
CAPÍTULO 3: HIGIENE MENTAL: UM ENGENHO DE DENTRO QUE SUBSTITUI A PRAIA DA
SAUDADE................................................................................................ 42
CAPÍTULO 4: PERDE-SE O PASSADO, FICA-SE SEM O FUTURO: A PSIQUIATRIA,
ENVERGONHADA, FOI PRIVATIZADA PELOS MERCADORES DE INFORTÚNIOS... .............. 62
......................................................................................................... 62
SEGUNDA PARTE: ECOS DA REFORMA NO ENGENHO DE
DENTRO............................................................................................ 72
CAPÍTULO 5: A
RECONSTRUÇÃO DA FORMA: A REFORMA PSIQUIÁTRICA NÃO MODIFICA O
CONTEÚDO MANICOMIAL.
............................................................................ 73
TERCEIRA PARTE: PROPOSIÇÕES ESTRATÉGICAS ................... 95
CAPÍTULO 6: A
INTENÇÃO DE CHEGAR AO TERRITÓRIO: DE UM ENGENHO DE DENTRO
PARA UM ENGENHO DO FORA ........................................................................
96
5
.......................................................................................................... 99
ENGENHO DE DENTRO............................................................................................................. 101
PROPOSIÇÕES ESTRATÉGICAS AINDA NO LADO DE DENTRO, MAS QUE POSSIBILITEM AÇÕES DO LADO DE FORA..102
UM ENGENHO DO FORA........................................................................................................... 109
O PROVISÓRIO DA CONCLUSÃO................................................................... 119
BIBLIOGRAFIA........................................................................................ 121
FONTES PRIMÁRIAS................................................................................. 125
ANEXO: DOCUMENTAÇÃO FOTOGRÁFICA....................................................... 126
6
Resumo
Este trabalho pretende, em um primeiro momento, ser uma revisão do
processo histórico da constituição do Hospício do Engenho de Dentro. Esta
revisão tem por objetivo situar o lugar desta Instituição na história da psiquiatria
brasileira e realçar as marcas desta história no conjunto das práticas, rupturas e
tentativas de rupturas, com o intuito de deixar aparente as possibilidades de um
aprofundamento no assunto. Pois é necessário afirmar a superficialidade deste
trabalho neste aspecto, que não se pretende abrangente e muito menos capaz de
examinar todos os movimentos enunciados.
Num segundo momento, na história contemporânea do Centro Psiquiátrico
Pedro II, são examinadas as marcas produzidas na instituição pelo movimento da
Reforma Psiquiátrica brasileira, com destaque para o produto do embate entre as
novas práticas desta reforma e as antigas práticas manicomiais que são realçadas
pelo contexto histórico anterior. Também aqui são apontados alguns movimentos
que carecem de um exame mais aprofundado, mas que nos soa como necessário
para o iniciar de uma discussão que não está neste trabalho.
Por fim, são apresentadas proposições estratégicas para a superação da
prática manicomial que está presa na própria história da Instituição. Proposições
estratégicas que aparecem como se vislumbrar no horizonte a superação do
manicômio, que já é aceita pelo conhecimento acumulado, fosse possível. Por isto
é que no início nos reportamos a Foucault, que na sua “História da Loucura”
desnuda o saber psiquiátrico como um fato datado de um contexto da história e
não da ciência. E em Basaglia e na Reforma Italiana, que materializam a saída
para o fim do manicômio.
E o autor, por ser ator de um momento da história narrada e diretor de uma
equipe que elabora o roteiro das proposições estratégicas, pede desculpas pela
deformação que o afeto produz. Mas sem o afeto não me atreveria nesta
jornada...
7
Da metodologia
"A interrogação enorme em torno da cientificidade das ciências sociais
se desdobra em várias questões. A primeira diz respeito à possibilidade
concreta de tratarmos de uma realidade da qual nós próprios, enquanto
seres humanos, somos agentes. Esta ordem de conhecimento não
escaparia radicalmente a toda possibilidade de objetivação?
"Em segundo lugar, será que, buscando a objetivação própria das
ciências naturais, não estaríamos descaracterizando o que há de mais
essencial nos fenômenos e processos sociais, ou seja, o profundo
sentido dado pela subjetividade?
Por fim e em terceiro lugar, que método geral poderíamos propor para
explorar uma realidade tão marcada pela especificidade e pela
diferenciação? Como garantir a possibilidade de um acordo fundado
numa partilha de princípios e não de procedimentos?" (MINAYO, 2002;
11/2)
Estas interrogações colocadas por Minayo a respeito da pesquisa social,
notadamente da pesquisa qualitativa, dão a idéia de quão difícil está colocada a
questão do método neste campo. No caso deste trabalho não temos a pretensão
de fazer uma pesquisa desta ordem. O que não nos deixa menos enredado e,
pior, sem a ajuda das propostas metodológicas que tentam contornar estas
interrogações.
Na primeira parte deste trabalho tentamos fazer uma revisão bibliográfica
sobre a constituição do saber psiquiátrico no Brasil e suas implicações na
formação histórica de uma Instituição que fabrica as práticas deste saber. E numa
revisão bibliográfica, outras interrogações são colocadas para dificultar a validade
do trabalho. Quais fontes são consultadas? Quais privilégios são dados a
determinadas fontes? Que ordem de importância? Quais fontes foram excluídas
propositadamente ou ignoradas? Como a posição política do investigador interfere
na importância dada às fontes? Como o julgamento do que hoje é
consensualmente aceitável é criticado com preconceitos ao que na época
histórica era "verdadeiro"?
8
Não temos a pretensão de responder a estas questões. Dentro do possível,
sabendo da dificuldade do cumprimento da tarefa, tentamos seguir as
recomendações de Minayo (2002; 12/3):
"A cientificidade (...) tem que ser pensada como uma idéia reguladora
de alta abstração e não como sinônimo de modelos e normas a serem
seguidos. A história da ciência revela não um 'a priori', mas o que foi
produzido em determinado momento histórico com toda a relatividade
do processo de conhecimento (...)
"O objeto das ciências sociais é histórico. Isto significa que as
sociedades humanas existem num determinado espaço cuja formação
social e configuração são específicas. Vivem o presente marcado pelo
passado e projetado para o futuro, num embate constante entre o que
está dado e o que está sendo construído. Portanto, a provisoriedade, o
dinamismo e a especificidade são características fundamentais de
qualquer questão social".
Na segunda parte deste trabalho
os problemas metodológicos são
bastantes mais complicados. Nesta talvez tenha sido cometido um "crime de
método". O autor foi ator participante, de um lado, de embates pesquisados em
documentos da época. A narrativa, apesar de todos os cuidados tidos e havidos,
só pode ser tomada como "versão" do acontecimento. Não se resolvem estes
problemas com os atenuantes da chamada observação participante. Encarar a
narrativa como uma "versão" e deixar a possibilidade da existência de outras
versões, talvez seja a melhor solução ao problema.
Na terceira parte, quando falamos de proposições estratégicas, tomamos
como referência SERRA, TORRES & TORRES (2003) e CHIAVENATO (1999) para separar o
campo da Estratégia e o do Planejamento. Na estratégia são priorizados objetivos
para a definição de uma missão institucional. O planejamento permite alcançar
estes objetivos. O Planejamento Estratégico é a elaboração de um plano para
uma missão.
Como aqui só vamos falar de estratégia, faz sentido diferenciá-la do
planejamento e separar os dois termos da trajetória administrativa. Segundo os
autores citados, enquanto a essência da estratégia é a síntese, no planejamento é
a análise; o tempo da primeira não é determinado, enquanto no planejamento ele
9
é definido; na estratégia a fonte é a criatividade e o resultado uma visão,
enquanto no planejamento o método é a fonte e o plano é o resultado.
Portanto, como estamos falando apenas de estratégia, nossa missão
metodológica fica facilitada. Não nos propomos em amarrar o guizo no gato...
Melhor seria definir este trabalho na categoria de um ensaio. Se usado
verbo no lugar de substantivo, esperamos que depois de muito ensaiar a
apresentação seja possível.
10
INTRODUÇÃO: INÍCIO DATADO, O FIM POSSÍVEL
11
Capítulo 1: Para imaginar onde chegar é preciso um ponto de
partida.1
A publicação em 1961 da “História da Loucura” de Michel Foucault (1993)
abalou os alicerces da Psiquiatria na sua constituição enquanto ciência que
nascera como a primeira especialidade médica. Aplicando um método de
pesquisa
histórica
(FOUCAULT,
1972;
ROUDINESCO,
1994;
MACHADO,
1982;
PORTOCARRERO, 1988) Foucault disseca as camadas arqueológicas da constituição
do saber sobre a loucura, refazendo o percurso das relações sociais e o contexto
da loucura nestas relações, desde a Idade Média, detendo-se com mais rigor na
era clássica (séculos XVII e XVIII), que antecede ao nascimento da ciência
psiquiátrica, que a medicina faz brotar no final do século XVIII e em fecundo
prosseguimento no século XIX.
Sobre
o método desenvolvido por FOUCAULT, PORTOCARRERO (1988) vai
analisar o que chama de dispersividade discursiva, na qual recebem a atenção do
historiador mesmo as mesquinharias, que geralmente são desconsideradas, mas
que aparecem nos processos judiciais, laudos, relatórios, etc., minúcias do
cotidiano social que Foucault trata como manifestações do saber e poder de uma
determinada época. Outra característica evidenciada é que Foucault não parte do
saber principal a que pertence o objeto de estudo, mas do emaranhado de
saberes que o estão sustentando, em um determinado momento histórico. Assim,
para elucidar o aparecimento da "doença mental", reúne os discursos que
sustentam os saberes da medicina, da psiquiatria, da biologia, da política, da
filosofia, como também são considerados no mesmo nível os discursos de textos
religiosos, da literatura e das artes em geral, além dos discursos internos de uma
instituição, seus regulamentos, normas, notas e, inclusive, o saber presente na
1
Este capítulo serve de introdução ao trabalho, com uma revisão bibliográfica de dois autores e os marcos
conceituais estabelecidos: FOUCAULT e BASAGLIA.
12
arquitetura e objetos pertencentes e constituintes da época estudada. Seguindo
PORTOCARRERO, FOUCAULT pretende desvelar a história da verdade constituída. E aqui
ele divide a história em suas vertentes arqueológica e genealógica. Na primeira,
desloca a questão da ciência para o saber constituído e disseca o como este
saber emerge e se transforma; na segunda, trata da questão da forma como o
poder gera o saber e, no mesmo momento, o saber gera o poder.
"Aliás, Foucault não acredita na verdade. Para ele, a idéia de uma
verdade eterna, universal, que está em toda parte e sempre, e que
qualquer pessoa pode descobrir, pois está bem próxima à nossa
espera, esta idéia é dominante num sistema de cultura como o nosso.
É veiculada pela ciência e pela filosofia. (...)
"Tal idéia deixa de lado uma série de práticas sociais que foram
historicamente muito importantes em nossa cultura e que talvez ainda o
sejam. Sempre houve, em nossa civilização, instituições, técnicas e
rituais que reservaram momentos e lugares específicos para a
produção de verdade, não como uma possibilidade, mas como um
dever. Ou seja, em uma sociedade como a nossa, há um certo número
de práticas pelas quais se tenta não descobrir, constatar ou
estabelecer uma verdade que estaria à espera para ser desvendada,
mas produzir uma verdade que não existia antes.
A reconstituição (de processos geradores de uma verdade) se opõe à
história dos comportamentos ou das representações, mesmo quando
analisa condutas e idéias, abandonando, por meio da arqueologia, a
história das idéias" (PORTOCARRERO, 1988).
Esta pequena incursão na história arqueológica de FOUCAULT era necessária
para voltarmos à História da Loucura.
A loucura que, com outras formas de comportamento anti-sociais, FOUCAULT
vai chamar de desatino, estava prisioneira do grande internamento produzido
socialmente na Idade Clássica. Aparece no nascimento da Psiquiatria apropriada
pelo saber médico como que libertada por Pinel, na França, e Tuke na Inglaterra,
no grande mito da inauguração da ciência psiquiátrica moderna, primeira
especialidade médica surgida. Primeira especialidade pelo afastamento que a
loucura, enquanto doença da alma, tinha da medicina, já que
tanto os seus
métodos de diagnóstico quanto os de cura eram de outra natureza em relação `a
medicina do corpo. De qualquer forma, a loucura não havia sido conhecida no seu
passado, pois só a medicina podia revelar a sua verdade. E esta verdade carecia
13
de seu estatuto enquanto doença, objeto da medicina, para se revelar verdadeira.
Todo o arcabouço da Psiquiatria se sustenta após este paradigma da
transformação da loucura em doença mental. Como que numa revelação da
verdade, a doença mental aparece no nascimento da Psiquiatria enquanto
entidade pertencente ao campo do saber médico, estado ignorado anteriormente,
e, só a partir deste momento, entendida na sua essência.
Ora, o que FOUCAULT vai atacar é esta idéia de essência revelada pela
medicina. Em seu minucioso método da arqueologia do saber, camadas da
história são revolvidas para, juntando peças de descobertas históricas, localizar a
loucura enquanto historicamente produzida, estando a própria verdade da
descoberta médica produzida pelas relações sociais mantidas pela sociedade e
seus valores. E, nesta forma de leitura, o alicerce da Psiquiatria, enquanto ciência,
está abalado. Lá mais embaixo, na arqueologia do conhecimento2, camadas da
história são colocadas em discussão para que a constituição da loucura seja
buscada nas relações sociais estabelecidas com ela, das quais o saber médico é
apenas uma - datada e determinada. E isto muda a relação social para com o
saber médico - a Psiquiatria. Este golpe atinge a "verdade" do saber psiquiátrico.
Há muito mais que a redução à doença na loucura.
No capítulo dedicado ao nascimento do asilo, na “História da Loucura”,
FOUCAULT (1993; 459 e segs.) faz um exaustivo paralelo entre a constituição do
Retiro3 de Tuke, na Inglaterra, e a constituição de Bicêtre, organizado por Pinel
como o primeiro asilo médico destinado à loucura, em Paris. Interessante
perceber que, embora com trajetórias distintas, convergem ao mesmo ponto de
chegada para o nascimento do asilo na época moderna. No entanto, Pinel era um
médico conceituado na França e Tuke, um Quaker na Inglaterra, líder de uma
comunidade religiosa fechada. Pontos de partidas distintos? É aí que FOUCAULT
demonstra que o ponto de partida é igual: a base é de um tratamento moral. "O
asilo atribui-se por objetivo o reino homogêneo da moral, sua extensão rigorosa a
todos aqueles que tendem a escapar a ela"(FOUCAULT, 1993, 488). É este ponto de
partida comum que faz com que a medicina, ao incorporar a psiquiatria como
2
Melhor seria concordar com PELBART (1989; 64): "...se trata de uma arqueologia da percepção - e não a
história de uma experiência vivida.(...), arqueologia da percepção sobre a loucura e, nos seus interstícios,
lêem-se os recuos, silêncios, contorções e fulgurações da desrazão."
3
Asilo religioso inglês para o “tratamento” da loucura.
14
primeira especialidade, produzindo uma medicina da alma, tenha na base da
moral, tanto a sua criação, o seu início, quanto a própria constituição do espaço
asilar como um lugar de
segregação da loucura que não pode ter lugar na
sociedade. Assim também estava traçada a sua lógica: o método de cura moral.
O asilo, colocado neste lugar, vai perpassar dois séculos para chegar no mundo
contemporâneo carregando sua mesma marca inicial.
Claro que a constituição da Psicanálise, iniciada no final do século XIX por
Freud, e proficuamente fecunda no século XX, manteve um duelo com o saber
psiquiátrico de forma arrivista e provocando mudanças na história da psiquiatria.
É justo dizer que existe uma psiquiatria antes e outra depois de Freud, apesar da
psicanálise se considerar um saber afastado da psiquiatria, nunca querendo com
ela um vínculo histórico. Apressadamente podemos dizer que o modelo freudiano
e, posteriormente, a fórmula estrutural lacaniana4, estão colocados em um campo
de saber que questiona de outra forma, com outro modelo explicativo, o
entendimento da loucura, contrapondo e pretendendo superar o modelo clínico da
psiquiatria. No entanto, se dizem que o saber psiquiátrico está equivocado no
entendimento da loucura, não disparam, como faz FOUCAULT, um desmoronamento
da constituição do saber da psiquiatria5. E nem é esta a pretensão da psicanálise.
Com isto queremos justificar a escolha de FOUCAULT como ponto de partida.
Roberto Machado, em “Ciência e Saber - A Trajetória da Arqueologia de
Foucault”, destaca a extraordinária importância que a “História da Loucura” tem:
"Demostra, por um lado, que a psiquiatria é uma 'ciência' recente: que
a doença mental não tem nem mesmo duzentos anos, como também
que a intervenção da medicina com relação ao louco, em vez de ser
atemporal, é historicamente datada. Histoire de la folie analisa as
características, as verdadeiras dimensões e a importância desta
ruptura de tal modo que, depois dela, não é mais possível falar
rigorosamente de doença mental antes do final do século XVIII,
4
Conferir CHECCINATO, 1988, que interpreta o modelo estrutural de J. Lacan.
Deixemos FOUCAULT falar de FREUD: "Freud desmistificou todas as outras estruturas do asilo: aboliu o silêncio
e o olhar, apagou o reconhecimento da loucura por ela mesma no espelho de seu próprio espetáculo, fez com
que se calassem as instâncias da condenação. Mas em compensação explorou a estrutura que envolve a
personagem do médico; ampliou suas virtudes de taumaturgo, preparando para sua onipotência um estatuto
quase divino. Trouxe para ele , sobre essa presença única, oculta atrás do doente e acima dele, numa ausência
que também é uma presença total, todos os poderes que estavam divididos na existência coletiva do asilo. Fez
dele o Olhar absoluto, o Silêncio puro e sempre contido, o Juiz que pune e recompensa no juízo que não
condescende nem mesmo com a linguagem; fez dele o espelho no qual a loucura, num movimento quase
imóvel, se enamora e afasta de si mesma." ( FOUCAULT, 1993; 502).
5
15
momento que se inicia o processo de patologização do louco. A partir
de então a história da loucura deixava de ser a história da psiquiatria.
Por outro lado, a psiquiatria é o resultado de um processo histórico
mais amplo, que pode ser balizado em períodos ou épocas, que de
modo algum diz respeito à descoberta de uma natureza específica, de
uma essência da loucura, mas à sua progressiva dominação e
integração à ordem da razão. Livro que, sem dúvida, revolucionou a
maneira de pensar a psiquiatria, dando as reais dimensões do
propalado gesto libertador de Pinel e do humanismo terapêutico que o
caracteriza; desmascara as imagens que dão à psiquiatria o mérito de
ter possibilitado à loucura ser finalmente reconhecida e tratada
segundo sua verdade, mostrando o caminho que foi preciso a história
seguir para que a psiquiatria tornasse o louco doente mental"(MACHADO,
1982).
Ressaltamos este momento inaugural como necessário ao trabalho que
aqui se pretende desenvolver.
É também no ano 1961 que Franco Basaglia assume a direção do Hospital
Psiquiátrico de Gorizia, norte da Itália. Tendo uma trajetória acadêmica anterior,
com os conhecimentos da fenomenologia existencial, BASAGLIA percebeu, diante do
choque da realidade do manicômio, que a academia e os cursos de psiquiatria
não se deixavam penetrar por aquela realidade6. É na própria experiência do
manicômio que ele vai buscar alternativas para lidar com a realidade encontrada.
Ensaia modelos de reformas manicomiais como a comunidade terapêutica e a
psicoterapia institucional7. Mesmo percebendo que "a fenomenologia existencial
poderia ser, enfim, um primeiro instrumento de desmascaramento do terreno
ideológico sobre o qual a ciência se funda” (BASAGLIA
APUD
AMARANTE, 1996), BASAGLIA
sente a superficialidade que estas reformas têm quando atingem apenas o interior
do manicômio.
Segundo vários autores8 foi decisiva a influência exercida pela “História da
Loucura” e de GOFFMAN (1974) no pensamento de BASAGLIA. A primeira experiência
em Gorizia durante os anos 60 mostra que as reformas no interior do manicômio 6
Muito parecida com nossa situação atual, com o agravante de que, no Brasil, nem as experiências de modelos
substitutivos (de que falaremos adiante) são percebidos pelo saber acadêmico.
7
Maxwel JONES (comunidade terapêutica) na Inglaterra e TOSQUELLES (psicoterapia institucional) na França
tiveram interferências em propostas de reformas psiquiátricas também entre nós.
8
Conferir AMARANTE (1994, 1996, 2000) BASAGLIA (1985), BASAGLIA & GALLIO (1991), DELGADO (1991) NICÁCIO
(1989, 1994), ROTELLI (1987, 1994) e TYKANORY (1986, 1996), em obras citadas ao longo do texto sobre a
Reforma Italiana.
16
como se nele fosse encontrada a deformação, não colocava o problema no seu
lugar, deixando intacto o saber psiquiátrico. Todas as reformas anteriores a
Basaglia tinham esta característica: a ciência psiquiátrica não era questionada, o
manicômio era o lugar do exercício de deformação desta ciência. O objetivo
destas reformas era modificar o manicômio que, com suas práticas autônomas,
engendravam uma interpretação equivocada do que a ciência, fora dele,
formulava para a cura da doença mental. Como se o manicômio, historicamente,
tivesse ganho uma função que, por forças internas, impedia o desenvolvimento
verdadeiro da ciência psiquiátrica. Dito de outro modo, estas reformas objetivavam
transformar o manicômio no seu figurino original, onde a roupagem da cura,
oferecida pela psiquiatria, pudesse exercer a sua verdade.
Ora, o que FOUCAULT havia desvelado era que o manicômio, em qualquer
fase em que estivesse , era o mesmo do seu início histórico e datado. A partir daí,
"encerrado nesses valores fictícios, o asilo será protegido da história e da
evolução social" (FOUCAULT, 1993; 485). E na descrição do seu estado original, o
autor
desnuda o encantamento que uma "ciência" psiquiátrica ajudara a
esconder:
"O louco 'libertado' por Pinel, depois dele, o louco do internamento
moderno, são personagens sob processo. Se têm o privilégio de não
mais serem misturados ou assimilados a condenados, são condenados
a estar, a todo momento, sujeitos a um ato de acusação cujo texto
nunca é revelado, pois é toda a vida no asilo que o formula. O asilo da
era positivista, por cuja fundação se glorifica a Pinel, não é um livre
domínio de observação, de diagnóstico e de terapêutica; é um espaço
judiciário onde se é acusado, julgado e condenado e do qual só se
consegue a libertação pela versão desse processo nas profundezas
psicológicas, isto é, pelo arrependimento. A loucura será punida no
asilo, mesmo que seja inocentada fora dele. Por muito tempo, e pelo
menos até nossos dias , permanecerá aprisionada num mundo moral"
(FOUCAULT, 1993; 496).
É nesse manicômio desvelado com toda crueza na obra de FOUCAULT que
BASAGLIA vai formular seu pensamento e com ele fazer a prática9. A operação
efetuada por BASAGLIA e seus colaboradores consiste em inverter o lógica das
9
A coletânea publicada por BASAGLIA, originalmente em 1968, "A Instituição Negada - Relato de um Hospital
Psiquiátrico", (aqui citada, publicada pela Graal, RJ, 1985) relatando esta experiência, vai influenciar a
Reforma Psiquiátrica brasileira de maneira marcante.
17
reformas anteriores. Não é no interior do manicômio que ela deve acontecer para
produzir o efeito desejado. Mas na estrutura do saber psiquiátrico, posto que ele é
quem produz o manicômio. A ponte colocada por BASAGLIA, que liga o manicômio
ao saber psiquiátrico, permite que circule um conjunto de problemas que não
estavam postos na mesa das reformas anteriores: a que classe social pertencem
a maioria dos internos no manicômio? Que ciência é esta que pretende ser neutra
e produzir verdades? De que forma o manicômio e o representante do saber aí
colocado são agentes do controle social exercido pela psiquiatria? "Para Basaglia,
mudar a psiquiatria é mudar a instituição e suas práticas; mudar a instituição e
suas práticas é mudar o saber psiquiátrico" (AMARANTE, 1996).
Dos muitos conceitos trabalhados por BASAGLIA, para efeito da intenção aqui
colocada, o de "desinstitucionalização", um neologismo em uso corrente na
Reforma Psiquiátrica brasileira, traduz de maneira simplificada, mas marcante, a
reforma inaugurada pelo psiquiatra italiano:
"A desinstitucionalização não poderia ser definida positivamente, seria
uma incongruência lógica; podemos tentar delimitá-la negativamente,
isto é, não é uma técnica, não é uma fórmula, não é um conjunto de
normas, não se identifica com a análise institucional de Lourau e
Lapassade,10 não é uma fórmula administrativa. Tentando uma
aproximação, diria que é a desmontagem de aparatos externos e
internalizados, é 'desconstrução' de modelos e valores racionalísticocartesianos; é transformação das relações de poderes codificados e
cristalizados. É fundamentalmente um trabalho prático que, a começar
pelo manicômio, desmonta a solução institucional existente para
desmontar o problema! Transformam-se os modos pelos quais são
tratadas as pessoas para transformar o seu sofrimento; a terapia não é
a perseguição eterna atrás de uma solução-cura, mas um conjunto
complexo, também cotidiano e elementar, de estratégias indiretas e
mediatizadas, que dizem respeito ao problema em questão, através de
um processo crítico sobre os modos de ser da própria ação
terapêutica" (TYCANORI, 1986).
"A Instituição Negada", marco das idéias basaglianas publicado em 1968,
discute a primeira experiência de BASAGLIA em Gorizia. Em 1971 ele assume a
direção do "Ospedalle Psichiatrico Provinciale de Trieste" (OPP) onde opera uma
desconstrução radical a partir de dentro do manicômio e, em 1980, o hospital é
10
Autores "em moda" na década de 70 na psiquiatria brasileira (nota do autor).
18
oficialmente abolido. Trieste é a primeira cidade do mundo onde foi encontrada a
ausência do manicômio a partir de um trabalho de desconstrução11. Não é objeto
deste trabalho investigar esta obra monumental da história contemporânea da
psiquiatria, mas situar esta realidade como nosso segundo ponto de partida.
Nestes nove anos de desconstrução, o trabalho, a partir de dentro do
manicômio, contamina a sociedade gerando a lei 180 do parlamento italiano, em
maio de 1978, que vai oficializar a abolição do asilo:
"A lei proíbe a construção de novos hospitais psiquiátricos; os serviços
de saúde mental passam a ser os serviços de território, podendo existir
enfermarias psiquiátricas em hospitais gerais com no máximo quinze
leitos; o estatuto jurídico em relação ao doente mental que durante o
processo passou de internado coagido a voluntário, depois hóspede,
garante-lhe agora todos os direitos civis e sociais incluindo o direito ao
tratamento; fica abolido o estatuto de periculosidade social do doente
mental, base de todas as legislações anteriores. A lei estabelece ainda
o Tratamento Sanitário Obrigatório no qual o usuário mantém todos os
seus direitos sendo o juiz o responsável por estes direitos. E o
tratamento, de responsabilidade do Serviço Sanitário competente(...)
A Lei 180 mantém todas as características da desinstitucionalização abre as contradições e propõe a produção, a experimentação, a
necessidade de enfrentar novas respostas e possibilidades; não
representa o início deste processo, nem o seu final; é um marco
fundamental produzido pela desinstitucionalização e que a coloca
adiante"( NICÁCIO, 1989).
É interessante notar que a Lei 180 coloca para o aparelho de Estado e
para a sociedade os princípios da desconstrução que estava sendo operada no
interior do aparato manicomial, construindo de direito a ponte que BASAGLIA tinha
proposto na sua práxis de reforma psiquiátrica. Para que aconteça uma
transformação no interior do manicômio é preciso sair do terreno pantanoso do
saber psiquiátrico e construir na sociedade e através dela, espaço onde ocorram
trocas e afetos de vidas, propostas para a solução de um problema que parecia
singular e apartado da realidade "lá fora".
11
Não se pode comparar este trabalho à desospitalização americana, no governo Kennedy, onde os doentes
abandonados transformaram-se em "homeless". Em Trieste foi construída toda uma rede de serviços
"substitutivos" que reorganizou a assistência psiquiátrica.
19
E claro que é problemático para uma cidade perder o seu manicômio. Em
duzentos anos de história da psiquiatria é a primeira vez que isto acontece12 e não
é fácil lidar com esta nova realidade. Sem ter o tapete do asilo para jogar debaixo
seus loucos, Trieste deve conseguir conviver com a loucura na via pública.
Mesmo tendo sido montada toda uma rede de cuidados, o contato destes novos
membros da comunidade saídos do hospício não se faz sem traumas na
sociedade e é agravado pelos problemas de uma clientela existente em potencial
na comunidade:
"A parábola do doente do hospital psiquiátrico, onde permaneceu sem
identidade e sem história, por anos, para o social, que exige uma
identidade fora da tutela médica, libera novas contradições, uma vez
que se unifica aqui com a condição de todos aqueles que são, por
definição, o reservatório da tradicional clientela psiquiátrica" (BASAGLIA &
GALLIO, 1991).
Para dispensar o manicômio foi proposto um trabalho muito maior: além de
dar conta dos problemas do antigo regime foi necessária a montagem de uma
estrutura visando os quadros insurgentes que naturalmente requisitavam o
manicômio na sua resolução. Como se não bastassem os problemas inerentes a
esta engrenagem, o "saber" que havia sido atingido gravemente pela Psiquiatria
Democrática Italiana passou a divulgar algumas dificuldades como fracasso do
modelo. Franco Rotelli, Coordenador dos Serviços de Saúde Mental de Trieste,
em 1991, numa entrevista concedida a DELGADO(1991; 81 e segs.) reclama que
nenhuma universidade italiana tinha tomado os princípios da reforma ou mesmo
as diretrizes geradas pela lei 180 (em vigor) em seus currículos. Esta negação
silenciosa era reforçada por um ataque explícito nas páginas de revistas
científicas de conceito internacional: ROTELLI, na mesma entrevista, acusa o "The
British Journal of Psichiatry" e o "The American Journal of Psichiatry"
como
propagadores de "mentiras absolutas" sobre a Reforma Italiana (DELGADO, 1991;
88).
No entanto, apesar das dificuldades encontradas, colocadas em todo o
mundo como fracassos pelos centros do saber, Trieste atraía voluntários de vários
países que fizeram toda uma desconstrução da estrutura do saber acadêmico,
12
Uma cidade sem manicômio não é a mesma coisa que uma cidade que perdeu seu manicômio. Embora
tenhamos vários exemplos, aqui no Brasil, como é mais fácil se construir uma rede alternativa onde não existe
ainda a presença do manicômio, há reivindicações políticas do sua necessidade em nome do progresso.
20
mostrando nos seus países a verdade do que vinha ocorrendo.13 ROTELLI faz um
balanço da Reforma Italiana:
"Existem algumas cidades na Itália em que não apenas foram
realmente fechados os hospitais psiquiátricos, como também se
constituiu uma rede orgânica suficiente e significativa de serviços
alternativos. Trieste, Arezzo, Perugia, Parma, Pordenove, Livorno e
algumas outras cidades são exemplo disso. Existem outras cidades nas
quais os hospitais psiquiátricos foram fortemente redimensionados
depois da lei, mas até hoje existem, com um grande peso e com uma
situação bastante dramática das pessoas que ainda estão internadas.
Existem cidades nas quais os hospitais psiquiátricos foram
efetivamente reduzidos a pouca coisa, mas nas quais não feito nenhum
serviço alternativo, o que criou, portanto, uma situação de crise muito
grave, por falta de assistência psiquiátrica. Todavia, se existe um dado
generalizado, é certamente que o antigo papel do hospital psiquiátrico
como lugar de tratamento, ou para o qual os pacientes são enviados,
desapareceu. Passou-se de mais de 100 mil pessoas internadas no
final dos anos 60, aos atuais 25 mil internados nos hospitais
psiquiátricos. É importante enfatizar que estas 25 mil pessoas já
pertenciam ao grupo das 100 mil. Em outras palavras, nos últimos dez
anos, salvo pouquíssimas exceções, novas pessoas não foram
efetivamente internadas no manicômio" (ROTELLI IN DELGADO, 1991; 82).
Embora a Reforma Italiana, como situa bem este balanço feito por Franco
Rotelli, tenha mudado a Saúde Mental na Itália, é no exemplo de Trieste que
vamos eleger o nosso segundo ponto de partida. Nesta cidade que foi despida do
seu manicômio, que construiu uma rede de serviços alternativos no território, que
promoveu a participação da comunidade num problema que não aparecia como
seu historicamente, acontece uma possibilidade real da legitimidade do que diz
FOUCAULT. A praxis basagliana só foi possível porque radicalizou a desmontagem
de formulações tidas como verdades na nossa sociedade moderna: "o mito da
periculosidade do louco, o conto de fadas de que o manicômio trata e a ideologia
da neutralidade da ciência psiquiátrica" (NICÁCIO, 1989; 93). A valorização desta
experiência está em que não se pode anular, como pretendem seus opositores,
sequer minimizar, um movimento que foi o único, em nível internacional, que de
fato aboliu o manicômio, rompendo de modo radical com a constituição do saber
13
No Brasil, Amarante, Nicácio, Kinoshita e Delgado, aqui citados, entre outros autores, produziram uma
vasta bibliografia sobre a situação italiana.
21
psiquiátrico, diferente, portanto, das reformas que se deram na Europa e nos EUA
a partir da década de 60.14
É a partir destes dois momentos que pretendemos desenvolver este
trabalho. O primeiro, no qual FOUCAULT desvela a transmutação da loucura em
doença mental: diferente da maioria das doenças clínicas, onde a descoberta
pela ciência mostra um conceito de delineação perceptível, que diminui o nível de
saúde do indivíduo ou de toda uma coletividade e que, pela ciência, na sua
interferência, é passível de modificação ou, em sua plenitude, de métodos de cura
no plano corpóreo do físico, a loucura, conceito existente que vem de muito antes
na história da humanidade, é, no final do século XVIII, transformada em doença
mental que, a partir deste nascimento mutante, passa a diminuir o nível de saúde
de um indivíduo ou da coletividade - no plano moral e não físico e, neste mesmo
plano, é proposta a cura que, a princípio pode ser feita pelo próprio asilo, já que
ele é organizado para o tratamento moral. É a partir deste momento que vamos
acompanhar o nascimento do Hospício de Pedro II - que está na origem da
instituição, objeto deste trabalho, a constituição do saber e das práticas que ali
foram plantadas e justificar suas ramificações na instituição hoje.
No segundo momento, passaremos a investigar algumas propostas de
reformas, comparadas à Reforma Italiana, para tentar entender o reforço que a
estrutura
manicomial
adquire,
apesar
de
todas
as
reformas
serem
declaradamente antimanicomiais. Por fim, tentaremos justificar as propostas
atuais que acontecem na instituição dentro destes momentos, tentando examinar
o entorno conjuntural como estrutura limitante de suas efetivações.
14
Estas experiências tinham como objetivo renovar os conhecimentos da psiquiatria e humanizar as relações
nas instituições, como já foi dito anteriormente.
22
PRIMEIRA PARTE: CONSTITUIÇÃO HISTÓRICA
23
Capítulo 2: A mesma cena se repete quase um século depois: o
nascimento do Hospício no Brasil.15
Decreto nº 82 de 18 de julho de 1841
Fundando hum Hospital destinado privativamente para
tratamento de Alienados, com a denominação de Hospicio de
Pedro Segundo.
Desejando assignalar o fausto dia da Minha Sagração com a
creação de hum estabelecimento de publica beneficencia, Hei por
bem fundar hum Hospital destinado privativamente para
tratamento de Alienados, com a denominação de Hospicio de
Pedro Segundo = o qual ficará annexo ao Hospital da Santa Casa
da Misericordia desta Corte, debaixo da Minha Imperial Procteção,
Applicando desde já para principio de sua fundação o producto
das subscrições promovidas por huma Commissão da Praça do
Commercio, e pelo provedor da sobredita Santa Casa, alem das
quantias com que Eu Houver por bem contribuir. Candido José de
Araujo Vianna, do Meu Conselho, Ministro e Secretario de Estado
dos Negocios do Imperio, o tenha assim entendido e faça executar
com os Despachos necessários.
Palacio do Rio de Janeiro em desoito de julho de mil oito centos e
quarenta e hum, Vigesimo da Independencia e do Imperio. 16
No Brasil, desde 1830, quando aparecem os primeiros protestos da classe
médica relativos à situação do louco na Santa Casa de Misericórdia, eles são
assimilados ao projeto de José Clemente Pereira, provedor da Santa Casa (entre
15
Neste capítulo, através de uma revisão bibliográfica, procura-se narrar alguns fatos da conjuntura do
nascimento do Hospício de Pedro II, a formação do arcabouço dos saberes que se constituíram na Praia
Vermelha, em Botafogo e que, no atravessar do tempo e da geografia, chegaram ao Engenho de Dentro, bairro
do outro lado da cidade do Rio de Janeiro. Serão revistos, entre outros, os seguintes autores: Roberto
MACHADO, Vera PORTOCARRERO, Paulo AMARANTE, Jurandir Freire COSTA, Magalí ENGEL e Tácito MEDEIROS em
obras que serão citadas ao longo do texto.
16
Este decreto é assinado com o selo Imperial do Imperador D. Pedro Segundo e encontra-se no Arquivo
Público Nacional.
24
1838-1854), que pretendia fazer da Santa Casa um verdadeiro hospital17. Em
1839, num relatório sobre a situação encontrada, Pereira diz textualmente que
"não temos hospital que mereça este nome" (MACHADO, 1978; 426). Eram assunto
da Santa Casa os mortos, doentes contagiosos e os loucos, impedindo que sua
vocação de hospital fosse exercida como mandava os ditames da higiene e da
função terapêutica moderna.
O projeto do nascimento do asilo no Brasil aparece como um projeto de
medicina social.18 Para que a Santa Casa tivesse um projeto de hospital era
necessário o surgimento de espaços específicos para o cemitério, para os
bexiguentos e tuberculosos,
para
os loucos. Só é possível compreender o
nascimento da psiquiatria brasileira como um projeto da explicitação política da
medicina social como forma de controle do comportamento dos indivíduos e da
sociedade.
No relatório da Comissão de Salubridade de 1830, da recém criada
Sociedade de Medicina e Cirurgia do Rio de Janeiro, aparece, pela primeira vez, a
reivindicação de um estabelecimento para a cura dos loucos (MACHADO, 1978). Por
esta época o hospício é colocado como uma necessidade para a higiene e
disciplina de uma sociedade que já sentia parte de sua população como
desviante. Urgia que a medicina social, como braço político do poder de Estado,
instituísse regras para a constituição de uma sociedade civilizada e moderna. E
nesta sociedade, principalmente o louco pobre, que perambula pela via pública,
pode tornar-se perigoso. A noção de periculosidade, como atentado à moral
pública e à segurança, aparece como um imperativo da necessidade do hospício.
O Hospital da Misericórdia, para onde iam alguns loucos, além de não comportar
todos os desviantes, que neste momento não podem mais serem tolerados na
paisagem urbana, não é um lugar adequado para uma ação medicalizante e de
recuperação do louco. Mas o discurso médico, que coloca este assunto na ordem
do dia, deve ser embalado de maneira vendável para que a sociedade compre
essa idéia: a situação dos loucos é criticada tanto na rua como na Santa Casa.
Nos dois lugares ele é perigoso e injustiçado; é, ao mesmo tempo, criminoso em
17
Aqui seguimos o levantamento de MACHADO, 1978.
Os principais representantes no campo da psiquiatria neste projeto são: José Martins da Cruz Jobim,
Joaquim Cândido Soares de Meirelles, Luiz Vicente de Simoni, Jean-Maurice Faivre e Francisco Xavier
Sigaud, citados por COSTA, 1981.
18
25
potencial e vítima indefesa. O seu lugar não pode ser na rua nem na prisão. Ele
não pode ter liberdade nem ser reprimido, mas sim disciplinado. É o asilo o lugar
da disciplina, enquanto o alienista representa a medicina social, poder político
instituído pelo saber médico, única autoridade capaz de instituir a norma social.19
"A partir de então, a loucura e a prevenção estarão para sempre
ligadas. Ainda não no sentido de uma intervenção sobre a loucura
antes mesmo que ela ecloda, que é a grande pretensão da atualidade.
Mas enquanto a loucura é um comportamento caracterizado
medicamente no momento em que, formulando uma etiologia social da
doença, a medicina urbana detecta os diversos perigos que podem
ameaçar a existência de uma sociedade em vias de normalização.
Coube à medicina social a tarefa de isolar preventivamente o louco
com o objetivo de reduzir o perigo e impossibilitar o efeito destrutivo
que ela viu caracterizada em sua doença. Nasce assim, no Brasil dos
meados do século XIX, não uma 'psiquiatria preventiva', mas a
psiquiatria como instrumento da prevenção" (MACHADO, 1978; 380).
Quase vinte anos antes do nascimento do hospício no Brasil, o saber que
deu nascimento à doença mental no continente europeu, no final do século
anterior, estava entre nós já circulando como um discurso da medicina social: os
guardiães da norma colocam todos os indivíduos da sociedade e seus atos, em
princípio, sob a suspeita da anormalidade; como conseqüência, a proposta da
medicalização, não dos atos, mas da totalidade da vida do indivíduo já estava
colocada. Faltava apenas que o hospício ocupasse o lugar que o discurso médico
já havia preparado para o seu nascimento.
É o decreto imperial de 18 de julho de 1841, data da sagração do
Imperador Pedro II, que dá início à concretização do projeto arquitetônico do
nascimento do Hospício de Pedro II, que ocorreria onze anos depois, como
símbolo imponente20 do projeto de medicina social para o controle solicitado no
discurso médico.
O que estamos assistindo neste momento, no nascimento do hospício no
Brasil, é um monumento ao poder disciplinar, grande realização da psiquiatria:
19
É interessante constatar que a maior parte do poder médico contemporâneo, como de autoridades sanitárias
e de poder político do Estado, ainda hoje operam com a mesma lógica deste pensamento inicial da psiquiatria
brasileira.
20
“O mais belo edifício da América do Sul, em sua época”(MEDEIROS, 1977).
26
"A psiquiatria, portanto, não se constitui no Brasil como uma idéia, uma
idealidade discursiva, um simples efeito ideológico: uma justificação ou
legitimação que tem como objetivo ofuscar, mistificar, obscurecer os
mecanismos de dominação de uma classe sobre outra. Sua ação é
muito mais penetrante, eficaz e positiva. Ela atinge diretamente o corpo
das pessoas; é uma realidade que desempenha um papel de
transformação dos indivíduos, assumindo o encargo de sua vida,
gerindo sua existência, impondo uma norma de conduta a um
comportamento desregrado. Denota, assim, a presença da medicina
em um aspecto da realidade que até então lhe era estranho,
desconhecido, exterior. Através da psiquiatria o médico penetra ainda
mais profundamente na vida social, dá as cartas em um jogo que passa
a existir segundo regras por ele mesmo criadas" (MACHADO, 1978; 447).
No entanto, é preciso que nos detenhamos nas contradições, nas
inadequações que surgem na concretização do próprio monumento: o Hospício.
Se, por um lado, o decreto que acontece no dia da sagração do Imperador
parece mostrar a importância do pensamento psiquiátrico na época, por outro , o
papel do provedor da Santa Casa, José Clemente Pereira, ministro e conselheiro
do pequeno imperador, uma liderança do movimento da Maioridade, aparece
como um decisivo empreendedor da idéia, coletando recursos
beneficentes,
cuidando da construção até sua inauguração em 05 de dezembro de 1852.
MEDEIROS (1977) assinala que não encontra fatos "que revelem ter sido o problema
do doente mental uma questão que pessoalmente preocupasse de modo
prioritário (o Imperador)”. E é sabido que os gostos intelectuais de Pedro II
passavam pela educação, invenções, fotografia, arquitetura, etc. No entanto, o
hospício enquanto um monumento representante de uma corrente de pensamento
social, não parece ter tocado o Imperador. A aliança deste pensamento aos
interesses pessoais de Pereira, e a interferência deste junto ao Imperador parece
ter sido decisiva para o nascimento do Hospício. Com uma careira política de
destaque no Império, foi um dos responsáveis pela independência, no famoso
gesto do "Fico",
ocupando gabinetes importantes. Em 1841 era Ministro da
Guerra. MACHADO diz que os biógrafos-admiradores assim situavam José
Clemente: "Chamado de herói da Santa Casa, procurador dos pobres, homem da
caridade, protetor dos órfãos, doentes, loucos, expostos, pai de todos os
desvalidos da sociedade, José Clemente é, ao mesmo tempo, grande político e
27
filantropo. Personagem em torno do qual se criou o mito do libertador da pátria e
da humanidade sofredora" (MACHADO, 1978; 425).
Um cronista da época assim descreve a imponência da obra de José
Clemente:
"Na Praia Vermelha, denominada outrora de Santa Cecília, vê-se um
edifício de arquitetura severa, um palácio construído em dez anos,
levantado pela caridade pública; é o primeiro monumento da cidade, é
o Hospício de D. Pedro II.
"Vendo os alienados encerrados em um corredor térreo do Velho
Hospital da Misericórdia, recolhidos em enxovais e tratados não como
enfermos, porém como animais ferozes, tendo o chão frio por leito, o
pão duro por alimento e o azorrague como remédio, o provedor José
Clemente Pereira, inspirado pela luz da caridade, resolveu levantar um
hospital, aonde os doidos tivessem asilo decente e pudessem achar
lenitivo a seus males. Vimos os esforços que fez para erguer o
Hospício de D. Pedro II. Deus favoreceu a obra do homem caridoso.
" No curto espaço de dez anos, José Clemente concluía a sua missão;
ergueu no Rio de Janeiro o primeiro hospital de alienados. O Hospício
de D. Pedro II acha-se construído em uma superfície de 1562 braças
quadradas. É majestoso o frontispício deste monumento. O pórtico
revestido de cantaria apresenta uma escadaria de dez degraus. Quatro
colunas de granito com capitéis dóricos sustentam uma balaustrada de
mármore. Há três portas entre as colunas. No segundo pavimento
erguem-se outras quatros colunas de ordem jônica, coroando o corpo
um frontão reto e havendo no tímpano as armas imperiais trabalhadas
em mármore. Há entre as colunas três janelas.
"Os corpos laterais constam de vinte janelas de peitoril no primeiro
pavimento, cuja arquitetura é da ordem dórica do teatro de Marcelo, em
Roma. O segundo pavimento é da ordem jônica, sob o sistema do
templo de Minerva Poliada da Grécia. Tem vinte janelas, das quais
treze têm sacadas de grades de ferro e sete são arqueadas e têm
todas varões de ferro. Um ático ornado de estátuas e de vasos de
mármore oculta o telhado do edifício, dando mais beleza ao prospecto
do monumento. Há, nas faces laterais, treze janelas em cada
pavimento. As sete janelas do segundo pavimento têm sacadas de
grades de ferro. Vêm-se, no fundo, quatro torreões com três janelas em
cada pavimento; no centro a rotunda da capela e, ligando os torreões,
corpos de um só pavimento com seis janelas cada uma. O desenho
deste palácio foi dado pelo engenheiro arquiteto Domingos Monteiro,
exceto o pórtico, que é do engenheiro Guilhobel. O engenheiro Sr.
Major José Maria Jacinto Rebelo fez algumas modificações no plano
primitivo do monumento.
"No vestíbulo, cujo pavimento é ladrilhado de mármore, se erguem
sobre pedestais as estátuas em gesso dos sábios Esquirol e Pinel.
28
Foram trabalhados pelo escultor Pethrich, que é o autor de todas as
estátuas que ornam o palácio.
"A escadaria é iluminada por uma cúpula primorosamente construída
sob a direção do arquiteto Rebelo. A capela é de um gosto simples e
grave; não tem ornatos de luxo. A construção severa desse recinto
impressiona o cristão que, penetrando ali, só pensa na majestade de
Deus e vai orar. Tem quatro tribunas de cada lado, de onde vêm ouvir
missa os doidos que podem assistir a este ato. O altar está encerrado
em uma rotunda e sobre ele se venera a imagem de S. Pedro de
Alcântara. Esta imagem de mármore custou cinco contos de réis. É do
escultor Pethrich” (MOREIRA DE AZEVEDO APUD PACHECO E SILVA, 1967;
155/6). 21
Esta crônica, verdadeira ode ao monumento, é de um detalhamento
necessário à compreensão da importância da ação de José Clemente. Entretanto
outra é a história dos bastidores...
Deve ser levada em consideração alguns fatos implicados no nascimento
do Hospício. Teixeira Brandão22 , em suas ácidas críticas dirigidas aos desvios no
hospício, vai identificar, já no seu nascedouro, que a Santa Casa se apropriara de
algo que não lhe pertencia. A Santa Casa, não podendo sustentar os loucos ali
existentes, assoberbada por dificuldades financeiras, tinha na proposta do
Hospício um alívio para sua situação financeira. O que vai falar a favor do ideal de
José Clemente em transformar a Santa Casa em um hospital realmente. Teixeira
Brandão se refere à Santa Casa de Misericórdia, serviço filantrópico, como
"aquela confraria" no sentido pejorativo do termo Para ele, José Clemente se
apropriara de um bem público. O edifício fora levantado em um terreno público,
com subscrições públicas ou doados pela "munificência imperial". E mais grave:
"os encargos da construção salvou a Santa Casa de embaraços financeiros pela
facilidade com que dispunha dos cofres do Hospício" (MACHADO, 1978; 486). O
artigo escrito por Teixeira Brandão, citado acima, explicita que com a fundação do
Hospício "as subscrições e donativos avultaram. Os cofres do Hospício
regurgitavam, enquanto os da Santa Casa permaneciam em anemia profunda".
Neste episódio, o que Teixeira Brandão queria era o direito do saber psiquiátrico
ocupar o seu devido lugar no Hospício, mas os ataques a detalhes da
21
Depois da morte de José Clemente Pereira, em março de 1854, um decreto de Pedro II manda fazer uma
estátua em sua homenagem para "ornar o palácio" (PACHECO E SILVA, 1964; 157).
22
"Questões relativas à assistência médico-legal a alienados e aos alienados", 1897. Apud MACHADO, 1978.
29
administração mostra algumas contradições e que a viabilidade do Hospício
dependeu das artimanhas de José Clemente, num caso de privatização da coisa
pública. Teixeira Brandão vai dizer que não se pode confiar a uma "confraria"
deveres de Estado: " cabe à segurança pública, determinar os casos em que a
defesa social exige o sacrifício da liberdade individual, regular a sucessão pela
gestão de bens dos alienados" (MACHADO, 1978; 487). Por fim Teixeira Brandão
decreta a Santa Casa "um verdadeiro Estado dentro de um Estado" e, que pela
enorme influência política de seus provedores, o Hospício foi arrancado do Estado
e entregue àquela confraria privada.
Até agora nos detivemos nesta questão apenas para, nos interstícios dos
discursos, percebermos que a criação do Hospício teve algo de uma privatização
do Estado e interferências e favorecimentos políticos, muito comuns desde o
início, quase uma característica do Estado brasileiro. Mesmo neste projeto, que
contava com um movimento social
que parecia determinar o nascimento do
Hospício enquanto monumento desta posição política, vemos, numa melhor
aproximação, os jogos de influência, a apropriação de parte do Estado pelos
interesses privados presentes na cena política da Corte.
Mas isto era o que, poderíamos dizer, estava por trás da verdadeira guerra
enunciada por Teixeira Brandão. Sua crítica ao Hospício estava na falta do
controle do objeto da ação pelo saber oficial. Afinal, os leigos detinham o poder de
executar as tarefas que a medicina social tinha, de forma clara, como missão.
Os loucos estavam nos presídios, em casas de correção ou em exibição
nas ruas dos centros urbanos. Só uma pequena parcela estava nos porões das
Santas Casas . "O mais antigo registro conhecido de internação psiquiátrica data
de 1817, na Santa Casa de São João del Rei" (MEDEIROS, 1977). Em Pernambuco,
Bahia e algumas outras províncias a situação era parecida com a do Rio de
Janeiro. Três razões fazem com que nos detenhamos nesta cidade: o acesso
mais fácil para uma revisão bibliográfica; o centro político e administrativo que o
Rio representava, irradiando para o país procedimentos similares e, mais
importante do ponto de vista do objetivo deste trabalho, o exame do Hospício do
30
Engenho de Dentro como a continuidade ou não do Hospício de Pedro II. A
realidade dentro de um engenho que substitui a praia da Saudade.
O processo de medicalização da loucura, nos meados do século XIX, se
fundamenta em dois marcos: a própria fundação do Hospício de Pedro II, marco
concreto e, suporte necessário, a criação da cadeira de clínica psiquiátrica na
Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, que converte o país, na passagem do
Império para a República, num núcleo de produção e divulgação do saber
alienista.
A situação dos loucos na cidade do Rio de Janeiro não corrobora para as
razões do saber que inaugura o Hospício. Nem todos os loucos estavam nos
porões da Santa Casa. Como já foi citado, casas de correção, prisão, "gaiolas
humanas perto de cemitérios" (MEDEIROS, 1977) e, principalmente, a via pública
eram locais freqüentados pela loucura e o mesmo indivíduo circula entre estes
dispositivos.
A presença dos loucos na urbe, apesar do seu exotismo e a
decantada periculosidade, "não impediu que de alguma forma tenham sido
incorporados ao dia-a-dia da cidade(..)":
"a presença da loucura nas ruas da cidade despertava o riso, a
compaixão, as injúrias grosseiras e a troça, às vezes, cruel.
Sentimentos mistos e contraditórios que, oscilando entre a aceitação e
a rejeição, demonstram de qualquer forma a existência de um espaço
de convívio entre o louco e o não louco, no qual ambos sabiam
perfeitamente como se defender um do outro" (ENGEL, 2001; 24).
Magali ENGEL, no primeiro capítulo da obra citada, faz um interessante
apanhado nos documentos e periódicos da época, sobre as "vivências e
convivências" dos loucos de rua deste período, no Rio de Janeiro, mostrando,
num levantamento minucioso da história de cada personagem23, que a sociedade
e os loucos tinham uma forma de convívio muito diferente das razões defendidas
pelos enunciadores do alienismo. No misto de "rejeição e aceitação" podemos
acompanhar, por um lado, as troças, o "jogar pedras e correr atrás" sem
conseqüências sérias das crianças e dos caixeiros, mais parecendo um jogo
23
Barbara Onça, Castro Urso, Picapau, Capitão Nabuco, Padre Quelé, Bolenga, Maria Doida, entre tantos
outros personagens, que nos relatos de ENGEL saltam das ruas da história para contarem, eles mesmos, a
relação da loucura com a sociedade, de forma viva e emocionante.
31
lúdico, no qual o louco desempenha o papel principal.24 Por outro lado, muitos
tinham o seu papel social muito bem desempenhado, morando em locais
conquistados junto à comunidade, exercendo atividades para o seu sustento,25
divertindo os transeuntes, exibindo talentos e papéis sonhados e exigidos pela
comunidade. Quando, de vez em quando, fosse esse equilíbrio quebrado, a
internação ou a prisão ou qualquer outro recolhimento, quase nunca de forma
definitiva,26 interrompia esta convivência, geralmente pacífica.
"Trata-se apenas de sublinhar a existência histórica de diversas
possibilidades de se conceber a loucura e de se lidar com ela, distintas
daquelas que caracterizariam sua transformação em doença mental,
submetida ao controle do alienista. Possibilidades que, aliás, não
seriam varridas completamente do cenário da cidade, apesar das
vitórias profundamente significativas que (...) seriam conquistadas
pelos psiquiatras a partir do último quartel do século XIX, com o fim da
escravidão e com o advento do regime republicano" ( ENGEL, 2001; 49).
A defasagem histórica de quase cem anos entre o nascimento do Hospício
na Europa para sua imagem e (des)semelhança no Brasil, permite um acúmulo
de conhecimento no saber psiquiátrico, que atravessa o Atlântico de modo
descontínuo e desigual, com implicações idiossincráticas para a nossa história. Da
fundação do Hospício em 1841 para sua inauguração em 1852 são onze anos de
união em torno de um discurso que possibilitasse o feito. Da inauguração até a
virada do século, são cinqüenta anos de polêmicas e desacertos27 em torno da
sua posse pelo saber, para que as teorias da psiquiatria fossem aplicadas.
Acirrando os debates do período estavam em cena importantes fatos históricos: a
lei Áurea, que mais liberta os senhores de escravos do fardo improdutivo para um
desenvolvimento industrial; o ocaso do Império, que não mãos de Pedro II durou
quarenta e nove anos; a proclamação de uma República, mais conservadora que
liberal; o alvorecer do século XX, onde a temporalidade, modificada pelo
24
Há os que aceitam a provocação e correm atrás dos provocadores. No entanto, outros invertem as regras do
jogo e reconhecem nas vaias aplausos, nos apupos reverências...
25
A venda de bilhetes de loteria, onde a loucura faz parte do convencimento, era uma destas atividades.
26
Internamento definitivo que vai aumentando a partir do nascimento do Hospício.
27
Que se tornam um movimento a partir da década de 70 do século XIX, sendo vitorioso na República.
32
progresso, se faz de modo muito mais rápido e a ciência que avança de forma
nunca dantes imaginada.
É neste redemoinho que nos deteremos rapidamente para os fatos a
seguir. Ora, em 1857, com a publicação do Traité des Dégénérescences, de
Morel, a Europa estava entrando no que Robert CASTEL (1991) chama de Segunda
Psiquiatria, que tinha na teoria da degenerescência - união da hereditariedade,
ambiente e declínio racial, a tão sonhada aproximação da psiquiatria à medicina
do corpo.
Na verdade essa Segunda Psiquiatria corresponde a um terceiro
movimento do saber psiquiátrico. Na Primeira Psiquiatria dois movimentos já
tinham acontecido anteriormente: a doença mental como oposição à razão no seu
nascimento e, na seqüência, a cura ligada a um ajustamento social;
fundamentando estes dois movimentos, a psiquiatria moral.
"a teoria de Morel ampliaria e consolidaria a influência do organicismo,
resultando, por um lado, em uma mudança do enfoque da loucura (...)
no questionamento da prática asilar; por outro, no restabelecimento da
credibilidade da medicina mental, que definindo a doença mental com
base na ênfase de uma racionalidade anatomoclínica, reconciliava-se
definitivamente com a medicina geral" (ENGEL, 2001; 132).
É ao sabor destas duas psiquiatrias, representadas pelos acadêmicos da
Academia Imperial de Medicina28 e da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro29
que acontecem os debates para a tomada pelo saber do Hospício de Pedro II.
Entretanto, o Hospício fora criado e existia, no Império, sob uma direção
leiga, quase que completamente divorciado da produção teórica da academia. A
crítica que se faz, neste período, é a de que o Hospício não estava submetido aos
ditames da Primeira Psiquiatria. "Até a República, segundo Teixeira Brandão, que
não teme se considerar o Pinel brasileiro, não há medicalização do hospício nem
do louco" (MACHADO, 1978; 490). Interessante notar que Teixeira Brandão, mesmo
sendo nomeado diretor sanitário do Hospício de Pedro II, ainda sob gestão leiga,
em 1886, continuaria sendo o representante do grupo do saber dominante, e vai
ser a figura de destaque nos dois movimentos importantes para a medicalização
da instituição: a estatização do Hospício na República, com o conseqüente
28
29
Que cria um campo especializado no estudo da alienação mental em 1878.
Que cria o Curso de Psiquiatria em Medicina em 1879.
33
rompimento com a Santa Casa, e a lei dos alienados, de 1903, quando Teixeira
Brandão é eleito deputado da República.
A psiquiatria é fundada concebendo o hospício como um lugar de
destruição da loucura, cuja ação terapêutica Roberto MACHADO intitula como
"pedagogia da ordem". Esta pedagogia seria composta pelo isolamento, pela
organização do espaço terapêutico, pela vigilância, pela distribuição do tempo e
pela repressão e controle. "O isolamento do louco no hospício justifica-se ao nível
das causas da doença e ao nível do tratamento" (MACHADO, 1978; 430). Tirar o
louco do ambiente onde ele adoeceu possibilitaria convencê-lo do erro de seu
delírio, ao mesmo tempo em que o alienista protege e defende a família e a
sociedade. Portanto, só o isolamento produziria uma ação terapêutica ampla. A
organização do espaço terapêutico permite, no Hospício de Pedro II, a divisão dos
pacientes por sexo, por classes sociais e, dentro dessas divisões, em tranqüilos e
agitados. Os indigentes ainda se subdividem em "tranqüilos limpos, agitados,
imundos e afetados de moléstias contagiosas"30. A vigilância era exercida pelo
Panopticon de Bentham31. Se o "tratamento é mais uma educação que uma
medicação", a distribuição do tempo regula horas de alimentação, de passeios, de
recreio, de trabalhos dos alienados, que eram prescritos como ação terapêutica32.
O controle e a repressão permitiam a camisa de força e outros meios que o artigo
32 do Regulamento do Hospício de Pedro II, citado por Roberto MACHADO (1978;
446), enuncia de forma clara:
"Artigo 32: os únicos meios de repressão permitidos para obrigar os
alienados à obediência são:
1. A privação de visitas, passeios e quaisquer outros recreios.
2. A diminuição de alimentos, dentro dos limites prescritos pelo
facultativo.
3. A reclusão solitária, com a cama e os alimentos que o clínico
prescrever, não excedendo a dois dias.
4. O colete de força, com ou sem reclusão.
30
Estatutos do Hospícios de Pedro II in MACHADO, 1978; 433.
Onde a presença total e constante do alienista ou seu representante induz um estado de visibilidade
permanente que assegura o funcionamento da disciplina e do poder. Este instrumento faz parte das instituições
totais estudadas por GOFFMAN, (1974).
32
Mesmo não sendo uma prescrição terapêutica, nos dias de hoje as enfermarias de qualquer hospital
psiquiátrico mostram estas marcas de sua origem.
31
34
5. Banhos de emborcação, que pela primeira vez só poderão ser
empregados na presença do clínico e nas vezes seguintes na
presença da pessoa e pelo tempo que ele designar".
Teixeira Brandão não está questionando estas normas de funcionamento
do hospício. "O que é denunciado pelos médicos é justamente o que escapa de
seu controle" (MACHADO, 1978; 449). As críticas são dirigidas aos leigos: os
diretores e as irmãs de caridade da Santa Casa33. Os argumentos de Teixeira: o
Hospício não está a serviço da ciência; o médico tem quase nenhum papel na
internação; é o juiz, o chefe de polícia, são os administradores da Santa Casa que
autorizam a internação, assim como a alta, podendo ser usados favores políticos
ou de apadrinhamento, relegando a ciência a um papel subalterno. A mistura de
doentes curáveis com incuráveis dificultava o exercício terapêutico. A existência
de uma população louca nas ruas atesta a ineficiência do Hospício. O Hospício
não cura e não produz conhecimento enquanto o médico não exercer o poder
total e completo sobre os internos e sobre todo o pessoal administrativo. A má
gestão do poder leigo desvirtua o papel que o Hospício deveria ocupar.
As críticas não só nos fóruns acadêmicos, mas também abertamente na
imprensa, misturam aspectos que seriam preservados depois da tomada do poder
com aspectos condenáveis na visão médica, para tentar ocultar o caráter político
da discussão.
"a organização arquitetônica não é tão perfeita quanto se supunha, aos
olhos de novas concepções de loucura, do mal aproveitamento do
espaço, de construções desordenadas no interior do hospício ou em
sua circunvizinhança; o exame do pessoal clínico e administrativo
evidencia claramente que o médico não tem todo o poder sobre a
loucura, mas está subordinado ao pessoal religioso ou é tolhido pela
incompetência, ignorância ou maldade dos enfermeiros; o processo de
internação independe de sua vontade ou competência, o que ainda
permite a presença de não-loucos no hospício e de loucos excluídos
em prisões ou outros lugares não especificamente criados para eles;
não há, finalmente, uma lei nacional de alienados e um serviço de
assistência organizado pelo Estado que faça com que o Hospício de
Pedro II deixe de ser uma exceção" (MACHADO, 1978; 449).
33
O poder religioso tem a “ativa participação da Irmandade de São Vicente, pertencente aos setores mais
conservadores do clero” (AMARANTE, 1994; 75).
35
O que estava sendo denunciado no discurso do saber psiquiátrico era que
nos estertores do Império estava sendo criado um paradoxo: o Hospício,
defendido ardorosamente pelos alienistas fora posto em situação desviante: ele,
que por si só era terapêutico, tornou-se uma aberração, tinha os vícios das casas
de detenção de antes da Revolução Francesa, que não deram conta de operar
sua constituição enquanto asilo depois da queda de Bastilha. O que se desejava
aqui era um retorno no tempo, quase um século antes, para o seu nascimento
acontecer. E o século precisou ser concluído para que, no Brasil, o Hospício
fosse desempenhar seu papel.
Em 1789, a Revolução Francesa. Em 1889, seu simulacro na Proclamação
da República. Em 1890, o Hospício de Pedro II passa a chamar-se Hospício
Nacional de Alienados, é separado da Santa Casa e organiza-se a Assistência
Médico-Legal dos Alienados. Teixeira Brandão é seu primeiro diretor. Nesta
época, por cerceamento das atividades das religiosas, as irmãs de caridade se
retiram do Hospício, sendo substituídas por enfermeiras leigas, contratadas na
Europa, "com grande proveito, no dizer do médico" que "tem o dever humanitário
e o dever cívico de chamar atenção do governo para os perigos que podem advir
do poderio do reacionarismo ultramontano, do qual elas são meros instrumentos
passivos" (TEIXEIRA BRANDÃO APUD MACHADO, 1978, 446/7)
No entanto, a tarefa não estava concluída. Faltava a lei. Faltava medicalizar
a legislação. Como deputado federal, em 1903, no mesmo ano de sua eleição,
Teixeira Brandão consegue a aprovação da lei dos alienados:
"Esta lei faz do hospício o único lugar apto a receber loucos, subordina
sua internação ao parecer médico, estabelece a guarda provisória dos
bens do alienado, determina a declaração dos loucos que estão sendo
tratados em domicílio, regulamenta a posição central da psiquiatria no
interior do hospício, subordina a fundação de estabelecimentos para
alienados à autorização do Ministério do Interior ou dos presidentes ou
governadores dos estados, cria uma comissão inspetora de todos os
estabelecimentos de alienados. Esta lei faz do psiquiatra a maior
autoridade sobre a loucura, nacional e publicamente conhecido"
(MACHADO, 1978; 484)34
34
Apesar do uso de outras fontes, "Danação da Norma" foi a principal fonte utilizada com relação ao período
anterior à proclamação da República, pela sua importância histórica para a história da psiquiatria no Brasil.
Publicada em 1978, sob a influência da "História da Loucura" de FOUCAULT (MACHADO é considerado o mais
importante "foucaultiano" brasileiro), é obra chave para o entendimento no nascimento do Hospício no
Brasil. Quinze anos após a publicação, o próprio Machado situa que:
36
O período conturbado que estamos tentando recortar até aqui, vai do
nascimento do Hospício na Praia Vermelha, da década de 30 aos anos 70 do
século XIX; passa pelo seu funcionamento no Império que, pelo caráter leigo, no
dizer de Teixeira Brandão, desviava do curso, mesmo da Primeira Psiquiatria, até
a Proclamação da República; e aborda sua consolidação enquanto instrumento
dos alienistas, que vai da República até a Lei dos Alienados. A narrativa sobre a
Segunda Psiquiatria que começa, no Brasil, com Juliano Moreira, será objeto do
próximo capítulo.
A não separação clara dos momentos deste período fica na dependência
de poder olhar a história com auxílio da genealogia de FOUCAULT, onde se busca o
começo e não a origem. “Origem implica em causas, enquanto os começos
implicam em diferenças” (ENGEL, 2001; 118).
No primeiro momento, o Código Criminal de 1830 que tratava dos crimes
relativos às ofensas morais e aos bons costumes, misturados à vadiagem e
mendicância, tentando regular o espaço urbanos sobre os desviantes, foi
reformulado cientificamente pela Sociedade de Medicina do Rio de Janeiro, pelo
Código de Posturas, promulgado pela Câmara Municipal em 1832. O recolhimento
policial da ordem pública é substituído pela “limpeza e desempechamento das
ruas e praças e providências contra a divagação de loucos e embriagados, de
animais ferozes que podem incomodar o público”.35 Vê-se, neste momento, a
preocupação da medicina social, através da psiquiatria, de normatizar a
sociedade. A reivindicação do hospício mostra que ele seria a forma de tratar das
questões da ordem urbana e não a prisão, esta apenas da esfera do jurídico
criminal. A loucura teria que ser transformada em doença mental para que os
"Danação da Norma, querendo entender o que aconteceu historicamente no campo da saúde mental, no Brasil,
relaciona a psiquiatria com a medicina social, partindo da idéia de que é no seio da medicina social que se
constitui a psiquiatria brasileira; que é do processo de medicalização da sociedade que surge o projeto de
patologizar o comportamento do louco, só a partir de então considerado efetivamente curável.”
"Ao escrever este livro, observamos, a esse respeito, duas coisas. A primeira é que, no momento em que a
medicina se dá como um de seus objetivos combater a desordem social decorrente da não-planificação da
cidade, na primeira parte do século XIX, o hospital é percebido como causa de doença e até mesmo de morte,
sendo para isso necessário transformar o seu espaço e funcionamento, para capacitá-lo a realizar a cura. A
segunda é que, no momento em que o hospital se torna uma peça-chave da medicina, nasce, em 1852, o
primeiro hospital psiquiátrico brasileiro, com o objetivo de inserir, como doente mental, uma população que
começa a aparecer como desviante aos olhos da medicina social nascente". (Prefácio de Roberto MACHADO in
PORTOCARRERO, 2002)
35
Código de Posturas de 1932, citado por ENGEL, 2001, 186.
37
alienistas tivessem o poder sobre a ordem pública. Neste primeiro momento os
alienistas brasileiros estão em sintonia com ensinamentos de Pinel, no século
anterior, que inaugura a Primeira Psiquiatria: a doença mental opõe-se à razão e é
responsável pelos comportamentos de desajustamentos sociais.
Mais ainda. Neste momento, os contatos com os escritos de Esquirol (De la
Folie, de 1816 e Sur l’Isolement des Aliénés, de 1832) pregavam proteger o louco
contra os males de conviver com pessoas normais e proteger a sociedade contra
os perigos da loucura. O hospício, antes de sua construção, está sendo reservado
como um local de cura, mas também como destino dos incuráveis e sempre
aberto ao retorno dos reincidentes. Portanto, aqueles personagens36 que
aparentemente estavam integrados ao espaço urbano, deveriam ser recolhidos a
um hospício, segundo pregava a teoria chegada do outro lado do Atlântico.
E assim, quando o Hospício é inaugurado, a simbologia do monumento
pode ser sentida na descrição de Engel (2001; 209):
“a ornamentação do edifício do Hospício de Pedro II contava com a
presença de sete estátuas de mármore de Carrara, encomendadas ao
alemão Pettrich: a da Ciência, a da Caridade, a do Imperador, a de
José Clemente Pereira, a de São Pedro de Alcântara e as de Pinel e
Esquirol. Desse modo, o hospício sintetizaria, na linguagem expressa
em sua arquitetura, uma rede de relações entre saberes e poderes
pertencentes a diferentes instâncias dominantes – composta por
médicos, religiosos, filantropos e pelo próprio governo monárquico”.
Num segundo momento deste período, temos a realidade do Hospício
contra sua imagem sonhada. Logo não há vagas para tanto desatino. Antes de
completar um mês de vida já conta com 144 internos. Em 1868 tem 339 almas.37
O problema da superlotação é o centro das críticas de Teixeira Brandão.
A composição de sua clientela entrava em deterioração. Segundo os
prontuários constantes do Arquivo Morto do Instituto Municipal Nise da Silveira,38
as fichas de observação do Hospício de Pedro II traziam como principal registro
36
Os loucos de rua relatados anteriormente também no trabalho de ENGEL.
Relatório do Ministério do Império, citado por ENGEL.
38
Todo o arquivo original encontra-se no arquivo morto do Instituto Municipal Nise da Silveira.
37
38
não o nome ou diagnóstico do paciente, mas a sua classe social.39 No entanto,
em 1870, mais de 70% dos internos eram indigentes. O que não poderia deixar de
acontecer se a população alvo do hospício além de louca era também de
miseráveis, vagabundos, embriagados, desviantes de todo o gênero. Esta
situação de superlotação pode ser acompanhada na pesquisa de ENGEL (2001;
243):
“A preocupação com a periculosidade representada, segundo o parecer
das autoridades públicas, pelo número crescente de mendigos nas
ruas do Rio de Janeiro, ensejaria a criação, em 1854, do Albergue de
Mendigos, o qual, subordinado ao chefe de Polícia, deveria recolher
todos os mendigos encontrados durante a noite nas ruas, nas praças
públicas e nos adros das igrejas. Desde pelo menos o início da década
de 60 do século XIX, os ‘alienados mansos’ ou ‘menos furiosos’
encontrados pela polícia vagando nas ruas da cidade, cuja admissão
no Hospício de Pedro II fosse recusada por problemas de superlotação,
eram encaminhados para a Albergaria, enquanto os ‘mais furiosos’
eram enviados à Casa de Detenção”.
Ora, o que já assistimos nas críticas de Teixeira Brandão foi proporcionado
mais pelo saber médico que criou o hospício e muito menos pelas razões que ele
apresentava. Mas isto é uma característica dos movimentos psiquiátricos, e será
visto neste trabalho para o caso examinado.
O terceiro movimento do período que examinamos neste capítulo, fala
sobre a tomada do hospício pelo saber que o reivindicara. Os primeiros governos
republicanos reconheceram nos alienistas e na ciências a transformação da
loucura em doença mental e providenciaram um arcabouço de leis para instituir o
poder usurpado: a criação da Assistência Médica e Legal de Alienados (decreto
206A, de 15/02/1890)40, que subordina o Hospício - que já se chama dos
Alienados, deixando o Pedro II para trás, e que tem como diretor Teixeira
Brandão, premiado com sua luta em nome do saber;41 a anterior separação da
administração do Hospício da Santa Casa de Misericórdia (decreto 142A de
11/01/1890), que tira o poder do leigo e entrega ao alienista a sorte dos alienados
39
Observação nossa. As classe eram: Primeira, Segunda, Terceira (livre), Terceira (escravo) e Indigentes
(escravos, livres e libertos).
40
Datas e decretos citados da pesquisa de Engel.
41
Note-se que ele tinha um cargo técnico no antigo Hospício.
39
e, mais importante, com o decreto 1.132, de 22/12/1903, que cria a Lei de
Assistência
Médico
Legal
aos
Alienados,
institui-se
definitivamente
a
medicalização da lei, maior reivindicação dos alienistas neste período.
Claro que os decretos, como sempre sói
acontecer, não mudam a
realidade. O final do período, apesar das muitas vitórias do saber instituído,
encontra o velho Hospício, mesmo fingindo ser novo, com todos os problemas
antigos.
Mas quando o saber já está esgotado, necessita-se de um novo.
“No século XX, a prática psiquiátrica incidirá sobre aqueles que
apresentam desvios mentais, atuais ou potenciais, loucos ou
virtualmente loucos, e penetrará em instituições, como a família, a
escola, as Forças Armadas, com o objetivo terapêutico e preventivo de
lutar contra a criminalidade e a baixa produtividade, combatendo a
doença mental propriamente dita e a anormalidade” (PORTOCARRERO,
2002).
Dentro desta perspectiva, e diferente do que aconteceu até o final do
século XIX, os alienistas brasileiros não fizeram apenas uma transposição do
saber europeu. Na passagem de uma psiquiatria eminentemente moral para
fundamentar cientificamente a prática psiquiátrica, a participação de nossos
médicos higienistas foi de fundamental importância na constituição de nossa
história psiquiátrica.
acontecendo
neste
Mas o começo e não a origem desta história estava já
período.
Juliano
Moreira,
o
principal
nome
do
desenvolvimento científico no período seguinte, já vinha trabalhando neste
período que estamos encerrando. Enquanto Teixeira Brandão
encerrava este
ciclo, Juliano Moreira começava o novo. Há muito vinha sendo o representante da
Segunda Psiquiatria. Mas este é um novo capítulo...
40
Capítulo 3: Higiene Mental: um engenho de dentro que substitui a
praia da saudade...42
“Tirar a medicina mental da esfera demasiado estreita dos asilos de
alienados, na qual a tendência de então era confiná-la; dar a esta
ciência especial uma base mais larga e extensa; voltar, no passado,
até às origens mais distantes das doenças mentais e prosseguir, no
futuro, até às últimas conseqüências; procurar, no estudo da etiologia,
os meios de preservação mais eficazes, e, na higiene geral e social, os
meios da cura verdadeira; abandonar o exame exclusivo dos casos
crônicos, o mais freqüentemente irremediáveis, para dedicar-se
sobretudo à observação dos casos recentes constatados na sociedade,
ao estudo das neuroses e dos estados mórbidos gerais do sistema
nervoso, são o verdadeiro ponto de partida da evolução das doenças
mentais; procurar, em uma palavra prevenir a produção destas
doenças, em vez de combater em vão seus períodos terminais, tal foi a
via particular na qual se engajou, desde o início de seus estudos
especiais, o doutor Morel; tal foi a idéia-mãe que se destacou pouco a
pouco de todos os seus trabalhos para culminar, em definitivo, na
teoria geral das degenerescências da espécie humana e dos meios de
regeneração tomados da higiene geral e social”.43
O que de mais importante a Teoria das Degenerescências traz no
fundamento da Segunda Psiquiatria é a reconciliação definitiva da medicina
mental com a medicina geral. No Brasil, mesmo ainda durante o Império, na
década de 70 do século XIX, com a criação da especialidade de psiquiatria nas
faculdades de medicina, esta teoria já tinha adeptos, mas lembramos que o
Hospício de Pedro II estava completamente dissociado das reflexões teóricas do
seu tempo. Teixeira Brandão, nomeado
“facultativo clínico” do Hospício, em
42
Neste capítulo serão abordados aspectos da Segunda Psiquiatria, Juliano Moreira - prático e teórico da
escola alemã, A Liga Brasileira de Higiene Mental e a substituição do Hospício Nacional de Alienados, na
antiga praia da Saudade, hoje Vermelha, pelo Centro Psiquiátrico Nacional, no bairro do Engenho de Dentro,
no Rio de Janeiro.
43
Jules Falret, alienista francês da Société Médico-Psychologique, em 1873, discursando na cerimônia
religiosa do velório de Bénédict-Augustin Morel, destacando a importância que o autor da Teoria das
Degenerescências tinha para o saber psiquiátrico da época, segundo SERPA JR., (1998; 38). Com a publicação
de “Traité des Dégénerescences” (1857) e de “Traité des Maladies Mentales” (1860), Morel coloca as bases
para o que CASTEL chama de Segunda Psiquiatria.
41
1886, sendo representante da academia, seria a ponte entre a prática e a teoria.
Porém o momento, como foi visto, era de debates políticos conseqüentes ao
ocaso da monarquia vigente. Foi na esfera política que aconteceu a sua
participação. Como deputado do regime nascente é que consegue a aprovação
da lei dos alienados que foi abordada no capítulo anterior. Mesmo assim, Teixeira
Brandão, embora não reclamando de ser considerado o Pinel brasileiro,44 foi autor
de uma classificação própria das doenças mentais já com influência da Teoria das
Degenerescências45.
No entanto, é Juliano Moreira, recém chegado de uma viagem científica à
Europa, que assume, em 1903, a Assistência Médico-Legal dos Alienados e nela
permanece até a Revolução de 1930, quem vai consolidar a moderna psiquiatria
brasileira, no período que faz a passagem da Segunda Psiquiatria Francesa para
o modelo alemão, de importante significado nos aspectos étnicos, éticos, políticos
e ideológicos na vida social nacional.
Morel, embora de origem francesa,46 possibilita a entrada do saber
psiquiátrico na escola alemã, no que mais tarde, na sua vertente social e política,
seria desenvolvido com a eugenia:
“Para mim é impossível, daqui para frente, separar o estudo da
patogenia das doenças mentais daquele das causas que produzem as
degenerescências fixas e permanentes, cuja presença no meio da
parte sã da população é um caso de perigo incessante.
“Se é assim, o tratamento da alienação mental não deve mais ser
considerado como independente de tudo que é indispensável tentar
para melhorar a espécie humana. A conseqüência é rigorosa e é no
sentido deste tratamento, compreendido sob um ponto de vista médico
mais amplo, mais filosófico e mais social, que se dirigirá, daqui por
diante, toda atividade das minhas investigações terapêuticas” (MOREL
APUD SERPA JR, 1998; 50).
44
Como também foi citado anteriormente, para reforçar sua luta na crítica ao desvio do Hospício de Pedro II.
“De acordo com este psiquiatra, as perturbações mentais seriam divididas em duas categorias: as que se
manifestavam nos cérebros de evolução normal, compreendendo três classes (as psicoses, as cerebropsicoses e
as cerebropatias) e as que se manifestam em cérebros de evolução anormal, ou seja, as degenerações”. Para
Henrique Roxo “esta classificação era mais perfeita que a de Kraepelin porque, enquanto o primeiro baseia-se
nos dados evolucionistas, patogênicos, anatopatológicos e sintomáticos, o segundo leva em conta apenas o
caráter sintomático” (ENGEL, 2001; 138).
46
Segundo SERPA JR, op. cit., nascido num acampamento do exército napoleônico na Alemanha, Morel viveu
sua infância e juventude naquele país, tinha amplo conhecimento da língua e costumes alemães e vai fazer a
ponte, no seu retorno à França, onde escreve suas principais obras, entre a psiquiatria francesa e alemã.
45
42
Diferente da doença mental como oposta à razão e como um ajustamento
de cunho moral, como tentou operar a Primeira Psiquiatria, com a Teoria das
Degenerescências vai-se examinar os desviantes do tipo normal da humanidade e
apontar causalidades orgânicas na hereditariedade, originadas por intoxicações
diversas, moléstias adquiridas ou congênitas ou, mesmo por influência do meio
social,
comportamentos anormais que vão marcar na herança a doença. O
enfoque, neste período, passa a ter como problema central a geração de
indivíduos degenerados. Na nossa sociedade, no início do século XX, a alta taxa
de criminalidade e baixa produtividade em relação aos países desenvolvidos da
Europa, faz Juliano Moreira apontar como causa a degenerescência de nossa
formação. A teoria psiquiátrica é alargada em suas tendências organicistas, mas
também sociogenéticas, deixando o conceito estreito da doença mental para
voltar sua atenção para a anormalidade e ter na causa desta anormalidade a sua
ação. A saúde mental, e não a doença, segundo Juliano Moreira (APUD
PORTOCARRERO 2002; 52), é “um problema que concerne ao estudo dos fatores de
desenvolvimento físico e intelectual das raças”.
Esta anormalidade que aparecia no corpo social tem como causa a
organicidade marcada na herança genética. Mas Kraepelin,47 no seu Tratado de
Psiquiatria, inclui na sua classificação, como estados mórbidos, os “irritáveis,
instintivos,
disputadores,
mentirosos,
fraudadores,
anti-sociais,
exaltados,
fanáticos, etc”, categorias muito próximas do que um julgamento moral da
psiquiatria anterior seria capaz de fazer... Na verdade do que se está apropriando
é de um comportamento desviante, explicado de forma “científica”, novamente
utilizando-se da psiquiatria como medicina social, auxiliar do Estado, para
implantar a ordem urbana:
47
Representante da escola alemã com enorme influência sobre Juliano Moreira.
43
“O ‘Tratado’ de Morel se constitui, portanto, num legítimo representante
de uma época que procurava neutralizar conflitos sociais, por um lado,
e pretendia atribuir ao resultado de uma ‘escolha moral indevida’ o
assombroso rosto que a parcela abastada da população enxergava nos
miseráveis que se comprimiam na periferia das cidades, nas prisões e
nos asilos, por outro. Indo ao encontro de alguns dos mais importantes
medos coletivos da época, não é de se estranhar que a teoria da
degenerescência tenha conhecido a difusão que teve e tenha servido
como caução para uma legitimidade social que a corporação
psiquiátrica tanto buscava” (SERPA JR., 1998; 99).
Enquanto se aproxima da medicina geral pela causalidade orgânica e
genética, o discurso psiquiátrico, enquanto ação, volta-se para a anormalidade
social e aumenta seu envolvimento com a origem moral, tendo, na educação, na
higiene física e mental, no aprimoramento da raça, na eugenia, uma marca no
saber psiquiátrico daquele momento, que vai ecoar por muito tempo, até mesmo
na moderna psiquiatria biológica, neste início de século XXI.48
Numa nova concepção de doença mental, de acordo com Morel e
Kraepelin, Juliano Moreira (APUD PORTOCARRERO, 2002; 59) vai defini-la como “um
desvio da normalidade que é uma exceção biológica”. Sob esta ótica toda a
população pode estar potencialmente doente, se não estiver preparada para
enfrentar seu meio social. Sendo assim, a psiquiatria deve escapar dos muros do
hospício para uma ação de prevenção e higiene mental na sociedade. Até a
delinqüência e a criminalidade fazem parte deste comportamento anormal.
“Com Juliano Moreira, inaugura-se no Brasil um novo momento do
saber psiquiátrico. Ao se introduzir um modelo teórico que tenta atribuir
lesões específicas aos diversos tipos de doença mental e refere-se não
só ao louco mas a outros tipos de desviantes, os anormais, estabelecese uma descontinuidade em relação a generalidade causal das teorias
morais do século XIX e em relação ao seu objeto. A psiquiatria não é
mais o discurso científico sobre a loucura e suas causas somente: ela é
o saber médico sobre todo desvio da normalidade – criminalidade,
degeneração, doença mental” (PORTOCARRERO, 2002; 91).
Vera Portocarrero, na obra citada que tem como subtítulo “Juliano Moreira
e a descontinuidade histórica da psiquiatria”, justifica esta ruptura por ações que
não estão mais na esfera do velho hospício, mas num conjunto de propostas de
intervenção na sociedade. As colônias agrícolas, o manicômio judiciário, a
48
As doenças no DSM último saem da classificação sindrômica para uma classificação sintomática,
comportamental, em plena sintonia com o desenvolvimento da indústria farmacêutica, que cria drogas
seletivas para o comportamento que se quer mudar.
44
assistência heterofamiliar, o ambulatório, a assistência aos epilépticos, os
reformatórios para alcoólatras, a reformulação do hospício e a implantação do
regime
de
open-door49,
seriam
novos
dispositivos
responsáveis
pela
descontinuidade anunciada. À desorganização do velho Hospício e sua
inadequação se opõem uma nova concepção de doença mental, métodos
terapêuticos e categorias nosográficas modernos, introduzidos por Juliano
Moreira. Mas se afirma que, em 1910, Juliano Moreira explicitava sua proposta de
“retirar das instituições de assistência tudo aquilo que lembre caserna ou prisão,
pois estas irritam o doente, atrapalhando o tratamento”. PORTOCARRERO critica a
produção da “ilusão de liberdade” obtida com o sistema de open-door, que só
demonstrava “o caráter sutil do exercício do poder na instituição psiquiátrica”.
Mesmo a eliminação da camisa de força, das grades e a liberdade de circulação
do alienado não significavam, contudo, “uma diminuição da repressão” no
Hospício. No entanto, afirma que a diferença entre os métodos coercitivos do
hospício do século XIX para o do século XX “consiste no fato de que os primeiros
se caracterizavam pela punição e de não terem em si fins terapêuticos, enquanto
que o pouso no leito e os banhos, substituindo a violência pelo ‘deleite’, propõe-se
como meio curativo e eficaz”. Sendo esta eficácia “medida pelo nível de sujeição à
força da disciplina que a terapia psiquiátrica impõe” (PORTOCARRERO, 2002; 126).50
Em suma, nos Arquivos da Loucura, Juliano Moreira teria passado do “princípio do
isolamento” de Esquirol, onde a assistência psiquiátrica se restringe ao espaço de
exclusão do hospício, para uma ampliação de ações terapêuticas que são
dirigidas tanto para os loucos quanto para os anormais da sociedade, através de
medidas “preventivas que pretendem garantir a segurança da sociedade, do
anormal e do poder do psiquiatra” (PORTOCARRERO, 2002; 131).
Entretanto, esta ruptura é vista por outro autor (ENGEL, 2001) como fruto de
uma multiciplidade de tendências que afetou a produção dos psiquiatras
brasileiros e que, mesmo sendo tendências de linhas diversas e conflitantes,
49
Alguns destes dispositivos serão abordados mais adiante, neste trabalho. O open-door era um sistema de
circulação no Hospício e nas Colônias agrícolas que, nas palavras de Juliano Moreira, traria um sentimento de
“ilusão de liberdade” propício `a aplicação dos “modernos” tratamentos.
50
Interessante que no intróito do terceiro capítulo dos Arquivos da Loucura, um texto de Rotelli, tirado de
Desinstitucionalização, propõe ilustrar as transformações da ruptura de Juliano Moreira (pg. 107)... Rever o
trecho da entrevista com Rotelli no primeiro capítulo.
45
tinham pontos em comum porque foram elaboradas e difundidas num mesmo
contexto e influenciaram nossos psiquiatras pelas características de seus
aspectos-chave em dois fatores: a necessidade de que os estigmas físicos e
psíquicos se traduzissem em degeneração e, por conseguinte, em doença mental;
e a intenção de colocar a hereditariedade como primeiro e mais importante fator
da alienação mental. Esta teoria de perspectivas organicistas
“...tenderia a predominar no âmago da psiquiatria brasileira,
assumindo, no entanto, várias matizes, cujos tons eram dados pelas
diferentes fontes nas quais de inspiravam seus edificadores, entre os
quais figuravam, por exemplo, a degenerescência de Morel –
reformulada e ampliada por Valentin Magnan -, a eugenia de Francis
Galton, o darwinismo, o neolamarckismo, a antropologia criminal da
escola positivista de Cesare Lombroso e da escola sociológica de
Alexandre Lacassagne, e o organicismo de Kraepelin” (ENGEL, 2001;
161).51
O uso destas tendências, com o direcionamento claro de um projeto de
medicina social de controle, teve conseqüências profundas no estado brasileiro.
Magali ENGEL, na obra citada, examina, no capítulo 2, os “Personagens
Aprisionados”, através de um minucioso levantamento de casos jurídicos, no
começo do século XX, colocando nos laudos psiquiátricos o poder de interferir na
vida dos cidadãos da República. Apenas vamos citar dois casos, de forma muito
resumida, dos muitos ali registrados, por serem opostos e que ilustram este
poder.
Bárbara de Jesus, viúva de 67 anos, escandaliza a sociedade do Distrito
Federal, com amplo destaque na imprensa, por querer casar com um tal de Ayres
Pereira de Mello, português, também viúvo, de 52 anos. A mídia da época,
contrária ao casamento, já noticiava Bárbara como octogenária e Ayres como um
moço de trinta e poucos anos, aumentando o escândalo. A família de Bárbara se
opõe ao casamento, por ser Ayres desempregado e temendo pelos bens de
51
Vale notar aqui que, apesar das críticas de FOUCAULT a FREUD, abordadas na nota 5, “desde os anos 1860,
Freud já tomava distância da degenerescência e da enorme importância que era atribuída à etiologia
hereditária, como é possível acompanhar na sua correspondência com Flies, assim como nos ‘Estudos sobre a
histeria’ e em textos como ‘As neuropsicoses de defesa’, ‘Obsessões e fobias: seu mecanismo psíquico e sua
etiologia’, ‘A etiologia da histeria’ ou a ‘A hereditarieade e a etiologia das neuroses’. Freud começa assim a
afrouxar as amarras que atrelam os destinos humanos a uma única determinação biológica para entregá-los à
sua dimensão de linguagem e de cultura possibilitando a construção, em todas as suas dimensões, de uma
outra clínica da loucura” (SERPA JR., 1998; 150). E esta vertente freudiana não estava contaminando, de forma
decisiva, os alienistas brasileiros do início do século XX.
46
Bárbara.
Contrata Juliano Moreira e o Dr. Rego Barros para um parecer
psiquiátrico, usado juridicamente, atestando que a septuagenária, apesar “de não
sofrer nenhuma psicose definida, tem, por sua extrema ignorância”, uma evidente
“insuficiência mental”. Apesar de longa briga judicial, com ganhos de Bárbara em
dois julgamentos, ela termina por ser interditada, de acordo com o diagnóstico
pericial dos doutores psiquiátricos. O outro caso é o de João Barreto, um poeta,
alto funcionário público, cunhado de Sílvio Romero- intelectual proeminente da
elite local e que defende o parente com advogados. João Barreto, após
embriaguez, assassina a esposa, por quem nutria ciúmes doentios. Desta vez é
um laudo pericial do alienista Ernani Lopes que salva João da prisão, por ser um
degenerado e irresponsável por seu atos. Nestes dois exemplos temos a
psiquiatria exercendo funções ideológicas, interferindo na vida social.
Pelas ações de intervenção na ordem social, Juliano Moreira é comparado
a Oswaldo Cruz.52 O sanitarista medicaliza o espaço urbano e em nome de
sanear as epidemias ajuda o Estado na organização do espaço da urbe. A
retirada de cortiços, no Rio de Janeiro, possibilita a ordenação do espaço da
cidade, com abertura de novas avenidas, praças, novos prédios públicos da
ordem e da cultura no centro da cidade, com a organização de bairros para os
mais pobres, que são retirados de onde a cidade precisava se estender de forma
higiênica. Juliano Moreira faz o mesmo com a vertente comportamental de seus
moradores. Os alienistas reivindicam o direito de aconselhar casamentos ou o
divórcio: “A esterilidade, a alienação mental, a sífilis e o alcoolismo justificam o
divórcio e em que condições?” – perguntava um documento da época. O Dr.
Henrique Roxo defendia “não apenas a proibição de casamentos consangüíneos,
mas também o impedimento da procriação dos degenerados” (ENGEL, 2001;
167/8).
Ainda estamos nos anos 10 do século XX. A partir de 1923, com a criação
da Liga Brasileira de Higiene Mental, este projeto seria levado ao ápice.
Entretanto, antes de abordamos a Liga, é necessário que voltemos ao Hospício
da Praia da Saudade e ao nascimento da Colônia de Alienados do Engenho de
Dentro.
52
Tanto PORTOCARRERO quanto ENGEL encontram, nas suas respectivas pesquisas, esta comparação nos
escritores da época. Sobre Oswaldo Cruz ver LUZ (1981).
47

No
capítulo
anterior,
vimos
que
dois
males
impossibilitavam
o
desenvolvimento do Hospício Nacional de Alienados: a superlotação, que
misturava curáveis e incuráveis, e a formação dos seus quadros profissionais. A
nomeação de Juliano Moreira para dirigir a Assistência Médico-Legal dos
Alienados, antes ocupada por Teixeira Brandão em 1903, por um longo período
de vinte e sete anos, enfrenta esta questão nos seus dois aspectos: no caso da
formação, aproxima a academia ao Hospício. São as teorias modernas da
Segunda Psiquiatria francesa e, principalmente, a filiação de Juliano à escola
alemã, as molas mestras para o enfrentamento do segundo problema: a
superlotação.
As Colônias da Ilha do Governador e São Bento, em um terreno
pertencente à ordem religiosa, e Barão de Mesquita, pertencente à Marinha, já
existiam desde 1887 como anexos da Praia Vermelha, para conter a superlotação
do Hospício de Pedro II. De forma indiscriminada, recebiam os incuráveis,
principalmente os pobres miseráveis.
O que Juliano Moreira vai imprimir é uma organização “científica” a estes
espaços. Esta organização “científica” era sobremaneira ampliada nos seus
aspectos sociais, de organização da norma, como já foi visto. A moral da época pós-abolicionista, via no trabalho livre a instância máxima de adaptação social.
Juliano vai direcionar às Colônias Agrícolas os incuráveis “mansos”, os
epilépticos, anormais de todos os matizes que abarrotavam o espaço do Hospício
Nacional.
Se, para este contigente de incuráveis, as Colônias propunham na
constituição de seu espaço a tão propagada “ilusão de liberdade”- a reeducação
pelo trabalho, para que seres inúteis pudessem ser úteis à sociedade, o espaço
do Hospício fora remodelado para pavilhões de agudos, de crianças, de perigosos
48
e criminosos,53 no seu esforço de cura. A reordenação possibilitada pelas
Colônias faria o Hospício ter a sua função de verdadeiro Hospital.54
Juliano
propõe para o Hospital, como função vocacional, o “tratamento não só de casos
agudos ou de fases de reativação de casos crônicos, mas ainda de velhos
doentes inadaptáveis ao regime de trabalho que nas colônias deve ter o seu
devido desenvolvimento”.55 Desta forma, centra no Hospital o papel da cura ou
remissão de sintomas agudos em pacientes crônicos, que deveriam, após a alta,
retornar às Colônias por dois motivos: livres da reagudização, os crônicos não
poderiam permanecer por trazer vícios ao asilo tradicional; por sua vez, o asilo
deveria viabilizar sua vocação de cura e, assim, manter-se aberto à demanda que
o alienista vislumbrava na sociedade.
Mesmo toda esta reordenação assistencial tinha limites espaciais. Ainda
mais com a expansão populacional do Rio de Janeiro no início do século XX, com
o agravante de que Juliano tinha “uma crença inabalável de que o crescimento da
população urbana corresponderia necessariamente e na mesma proporção – ou
até em proporções superiores – ao aumento do número de doentes mentais”.
Assim, “os psiquiatras sustentavam, por exemplo, que as grandes cidades teriam
tanto maior necessidade de uma hospitalização imediata de alienados quanto
maior ou mais densa tornava sua população” (ENGEL, 2001; 308/9).56
Juliano Moreira escreveu vários textos propondo um espaço de tratamento
para epilépticos, colônias para eles, e de reformatórios para alcoólatras, conforme
a pesquisa de PORTOCARRERO. Se estes espaços nunca foram concretizados,
servem para demostrar a extensa intenção de reordenação da assistência a
alienados proposta por Juliano.57
Entretanto, o que aconteceu na realidade- o possível na reordenação
proposta por Juliano Moreira, foi a inauguração da Colônia de Alienadas do
53
A seção Lombroso abrigava os criminosos no Hospício Nacional. Uma revolta de internos deste pavilhão,
de grande repercussão na imprensa da época, vai forçar a inauguração do Manicômio Judiciário, em 1921, um
dos dispositivos da moderna psiquiatria propagada por Juliano Moreira.
54
A partir de 1911 o Hospício passa a chamar-se Hospital Nacional de Alienados, nome que não “pegou”. A
data é coincidente com a inauguração da Colônia de Alienadas do Engenho de Dentro, para onde foi levado o
excesso das mulheres incuráveis, abrindo no Hospital o espaço da cura.
55
Juliano Moreira, Relatório de 1925 citado por ENGEL, 2001; 288.
56
Em referência a um texto de 1909 de Juliano Moreira.
57
Se o advento de drogas anticonvulsivantes cessou, nos dias de hoje, a solicitação deste espaço, o mesmo não
ocorreu com o alcoolismo. Os centros de cura religiosos, hoje existentes, têm algumas características dos
reformatórios propostos por Juliano Moreira.
49
Engenho de Dentro, em 1911, num terreno cedido pela Marinha, onde funcionava
o antigo pavilhão dos beribéricos, no bairro do Engenho de Dentro, para abrigar
as indigentes que superlotavam o Hospital Nacional de Alienados.58
As duas
Colônias da Ilha do Governador seriam desativadas a partir de 1921 e, em 1923,
era inaugurada, em substituição à de Barão de Mesquita e de São Bento, a
Colônia Agrícola da Jacarepaguá, hoje Instituto Municipal de Assistência à Saúde
Juliano Moreira, antiga Colônia Juliano Moreira. Em 1921 é inaugurado o
Manicômio Judiciário, no terreno da Casa de Correção do Rio de Janeiro, e Heitor
Carrilho é seu primeiro diretor.
A Colônia de Alienados (inicialmente, alienadas) do Engenho de Dentro, na
gestão de seu primeiro diretor, Braule Pinto, tem apenas um papel complementar
na reordenação da assistência, proposta por Juliano Moreira, de sua inauguração
até 1918. O período de Gustavo Riedel (de 1918 a 1932) é marcado por fatos que
vão reformular o papel da Colônia, dando a ela destaque na assistência
psiquiátrica do período.
Como uma listagem deste fatos para demonstrar a importância assumida
pela Colônia em relação ao Hospício Nacional, temos:
1. Inauguração
do
Ambulatório
psiquiátrico da América Latina,
Rivadávia
59
Correa,
primeiro
ambulatório
com um papel importante na profilaxia de
doenças mentais, adotado pela Liga Brasileira de Higiene Mental a partir de
l923.
2. A Escola de Enfermeiros Alfredo Pinto, que seria um marco na formação
profissional e especialização em psiquiatria, primeira preocupação de Juliano
Moreira quando assumiu o velho Hospício. Se ele tinha formado uma geração
de alienistas, seus auxiliares continuavam sendo profissionais sem a formação
necessária, que esta escola veio proporcionar.
58
SAMPAIO (1988) afirma que o pavilhão de beribéricos no Engenho de Dentro foi destinado “a abrigar as
mulheres que sairiam da Colônia Conde de Mesquita, criada na Ilha do Governador, por Teixeira Brandão, e
que se encontrava em desativação”(Pg. 297). Não encontramos em outros textos publicados este registro. No
entanto, há referências de que o terreno do Engenho de Dentro, que era da Marinha, foi trocado pela União
com um terreno no Andaraí, onde hoje funciona o Hospital do Andaraí. A Colônia de Barão de Mesquita era
da Marinha.
59
É verdade que já existia um serviço de atendimento externo no Hospício Nacional, desde Teixeira Brandão,
e que Juliano Moreira ampliaria este serviço na sua gestão. Mas a dimensão e papel do Ambulatório (a
primeira utilização do nome) Rivadávia Correa faz Juliano Moreira sugerir que se criem serviços semelhantes,
não só em Jacarepaguuá, mas nas policlínicas da cidade, nos dispensários, escolas, numa espécie de “liga de
profilaxia e higiene mental".
50
3. Serviço Heterofamiliar, um dos dispositivos sonhados por Juliano Moreira.
Composto de 15 casas construídas no entorno da Colônia, eram habitadas
por funcionários que cuidariam de doentes postos sob sua guarda domiciliar.60
4. Instituto de Profilaxia Mental, primeiro órgão responsável pela divulgação da
higiene mental, originará, em 1923, a Liga Brasileira de Higiene Mental que vai
marcar na psiquiatria seu projeto de sair do espaço asilar para a
psiquiatrização do espaço social.
5. A criação, em 1923, do Laboratório de Psicologia Experimental da Colônia de
Psicopatas do Engenho de Dentro que, em 1932, se transforma no Instituto de
Psicologia, uma extensão do curso de Psicologia e Psiquiatria da Universidade
dentro de um dispositivo assistencial, trazendo o saber para junto da prática.61
Toda esta reordenação assistencial, acontecida na Colônia de Alienados do
Engenho de Dentro, vai fazer este lugar ocupar um destaque especial na
assistência psiquiátrica do Rio de Janeiro durante a gestão de Gustavo Riedel.
Por um lado, dentro da própria organização assistencial, dois novos dispositivos
alteram o quadro existente no velho Hospício: o Serviço Heterofamiliar e o
Ambulatório Rivadávia Correa; por outro, a Escola de Enfermagem e os Institutos
de Profilaxia e de Psicologia trazem a formação necessária ao saber que vai ter
um papel importante na sociedade através da Liga Brasileira de Higiene Mental.
E, se observamos com cuidado, estes dois propósitos eram a preocupação de
Juliano Moreira para a reordenação da psiquiatria: a superlotação e a formação
de pessoal, já citados anteriormente.
60
Este modelo inspira-se em experiências européias, que por sua vez são baseadas numa prática natural de
uma aldeia belga, segundo AMARANTE (1982): “Desde o século VII, os loucos eram levados para Gheel, na
Bélgica, em peregrinação até a Igreja de Santa Dimphne, na esperança de uma cura milagrosa. Os doentes que
não ficavam bons até o final da novena eram, muitas vezes, deixados na casa de algum habitante do lugarejo
até a próxima festa da padroeira. Assim a população foi criando o hábito de acolher alienados e até tratá-los
como doentes”
61
Para o Laboratório de Psicologia, Riedel nomeia Waclaw Radecki, médico polonês radicado no Brasil, que
se dedica ao estudo da Psicologia. O Instituto também é uma obsessão de Radecki. Porém, após sete meses de
existência, é fechado pela ditadura Vargas e Radecki emigra para o Uruguai. A profissão de psicólogo só vai
ser regulamentada em 1962. Conf. CASTRO, V. S. O. & JACÓ-VILELE, A. M., A Psicologia no Brasil: Waclaw
Radecki in AMARANTE (2000).
51
O Serviço Heterofamiliar, composto de 15 casas no entorno da Colônia,62
foi um projeto de duração efêmera para a história,63 mas chegou a abrigar 10
doentes em assistência familiar e 8 em domicílio afiançado,64 e seguia as
determinações de Juliano Moreira:
“Anexo ao hospital-colônia, em seus limites, deve o Governo construir
casinhas para alugar às famílias de bons enfermeiros, que poderão
receber pacientes suscetíveis de serem tratados em domicílio: far-se-á
assim assistência familiar. Se nas redondezas houver gente idônea a
quem se possa confiar alguns doentes, poder-se-á ir estendendo essa
assistência heterofamiliar e até se tentar a homofamiliar”.65
Não encontramos registro do término desta experiência. Entretanto, as
fotos dos bangalôs- construções de esmero arquitetônico, que através dos tempos
aparecem ainda como aspectos da memória desta época, apesar das reformas
sofridas de forma desordenada, atestam que, pelo menos na intenção, o Serviço
Heterofamiliar fez parte do projeto de Gustavo Riedel para remodelar a antiga
Colônia de excedentes da Praia Vermelha ou da Ilha do Governador. Na prática,
tanto este projeto, quanto todo o complexo do open-door, com a “ilusão da
liberdade”, criou condições de trabalho para os internos e “parece ter funcionado
efetiva e prioritariamente como um meio de submeter e controlar o contigente de
internados provenientes, sobretudo, dos setores mais pobres da sociedade, ao
mesmo tempo em que estes eram utilizados como mão de obra gratuita,
contribuindo para a própria manutenção da instituição asilar” (ENGEL, 2001; 316).
Seja como for, no momento em que o trabalho garantia, em si mesmo, uma
aproximação da cura, a organização efetuada por Gustavo Riedel no Engenho de
Dentro caminhava para o estabelecimento de uma “vida em comunidade”,66
mesmo que da comunidade dos excluídos. Vale notar que no sistema de open62
É importante notar que algumas das 15 casas deste Serviço ainda existem hoje, ocupadas por ex-servidores
e seus descendentes. São oito casas na rua Bernardo, espaço externo do Instituto, em processo judicial para
retomada pelo poder público e quatro construções internas, que estão sendo recuperadas, para o Programa de
Moradias, assunto que será tratado mais adiante.
63
Não conhecemos documentos de sua desativação; parece um projeto que fracassou.
64
ENGEL (2001; 319) em nota de rodapé, sem especificar estas diferenças.
65
Juliano Moreira, Quais os melhores meios de assistência aos alienados, documento de 1910, citado por
PORTOCARRERO (2002; 138), sugerindo que afiançado, diferente da hetero e homofamiliar, seria com pessoas
idôneas, não servidores e não parentes. Não encontramos, no tempo que nos foi possível pesquisar, referências
de quando acabou o programa e porque. Gostaríamos de registrar, para uma pesquisa posterior, que quando
chegamos, em 1981, para trabalhar na Saúde Mental, o Centro Psiquiátrico Pedro II possuía uma categoria de
habitantes diferente dos internos, tidos como pacientes: eram os Agregados. Estavam agregados ao Asilo, com
estatuto de moradores, exercendo algumas atividades de servidores, sem remuneração. Seriam originários da
assistência heterofamiliar que fracassou?
52
door preconizado por Juliano Moreira, os médicos residentes do hospital deviam
contar com os serviços particulares de alguns internos, pois isto ajudava no
estudo do casos que estavam sendo tratados.67
O outro dispositivo que mudou a assistência psiquiátrica, sob a
responsabilidade de Gustavo Riedel, foi o Ambulatório Rivadávia Correa. Primeiro
dispositivo que adotou uma terminologia ambulatorial, tinha na profilaxia o seu
papel preponderante. Este dispositivo foi, de fato, o que possibilitou um controle
ordenado da vida social.
“As estratégias profiláticas de controle da doença mental difundidas,
sobretudo, a partir dos anos 20 do século XX, sob a égide dos
princípios eugênicos propalados pelos defensores de uma politica de
higiene mental, serviriam para, de um lado, ampliar os mecanismos de
identificação dos que deveriam ser imediatamente internados e de
outro, estender os tentáculos do poder do psiquiatra para muito além
dos limites do mundo asilar, tal como sonhavam os alienistas do século
XIX” (ENGEL, 2001; 309).
O ambulatório vai funcionar dentro dos preceitos da higiene mental e
permite demarcar na comunidade os problemas a serem enfrentados. Gustavo
Riedel, em um relatório apresentado a Juliano Moreira, em 1924, exaltava o
potencial do dispositivo: “A observação do doente no próprio lar tem a vantagem
de surpreendê-lo no meio familiar onde a anamnese pode ser mais completa e
onde os conselhos distribuídos aos parentes calam mais profundamente e
produzem melhores resultados” (MOREIRA APUD ENGEL, 2001; 306).
O Ambulatório integrado à Colônia de Alienados do Engenho de Dentro
permitia conciliar as estratégias de reclusão e prevenção, ambição antiga dos
alienistas. Na Colônia o espaço fora “humanizado” pelos artifícios do open-door.
Mas continuava um espaço recluso. O Ambulatório delimitava este espaço,
captava os anormais e doentes necessários à reclusão, funcionando como uma
66
Além das fotos das residências heterofamiliares, no arquivo do Instituição podemos observar fotos do lago,
dos corredores bem cuidados, dos espaços das alamedas, do refeitório, do prédio destinado a teatro e cinema
(ver fotografias no anexo).
67
Aqui vale reproduzir uma história bastante interessante que nos foi contada por Lula Mello, hoje diretor do
Museu de Imagens do Inconsciente e que foi, durante boa parte de sua vida, escudeiro de Nise da Silveira:
quando a jovem doutora Nise fazia residência no Hospital Nacional, era sempre acompanhada por uma destas
internas serviçais. Muito tímida e dócil, a paciente serviu a Nise durante todo o período de sua formação no
Hospital Nacional. Na perseguição política, que ocorreu aos comunistas no Estado Novo, Nise foi presa,
dentro do Hospital Nacional, por uma enfermeira ter denunciado que ela tinha livros “comunistas”. Após a
prisão de Nise, a paciente entrou em estado de agitação psicomotora dirigida à enfermeira “dedo-duro”, que
levou uma surra. Lula diz que ouviu a história da própria Nise.
53
porta de entrada de captação ativa, ao mesmo tempo em que possibilitava ao
alienista sair detrás dos muros para um controle da doença e da anormalidade, lá
onde ela nem mesmo se manifestara ainda. Estando já pronto o dispositivo, a
teoria de convencimento da comunidade, ainda que apenas de sua elite
formadora de opinião, foi anunciada e propagada pela Liga Brasileira de Higiene
Mental.
Fundada por Gustavo Riedel, em 1923, a Liga Brasileira de Higiene Mental
(LBHM) “era uma entidade civil, reconhecida de utilidade pública, que funcionava
como uma subvenção federal, com a ajuda benévola de filantropos e,
posteriormente, em 1925, com a renda dos anúncios publicados na sua revista,
Archivos Brasileiros de Hygiene Mental, surgida neste mesmo ano” (COSTA, 1981;
27/8). Se no início propagava o poder do dispositivo assistencial, a partir de 1926
passa a dedicar-se à educação, à eugenia, ao controle da qualidade
e
aprimoramento da raça, para evitar ao degenerado e anormal o direito de nascer.
O objetivo dos cuidados dos psiquiatras passou a ser os cidadãos normais e não
os doentes (COSTA, 1981; 28).
Mas antes é necessário buscar no seu começo, na Teoria das
Degenerescências, passos que possibilitaram a passagem da higiene a uma
concepção eugênica. Curiosamente, se essa Teoria
aproximou a medicina
mental da clínica médica através de um substrato anátomo-patológico, bem a
gosto dos alienistas em paz com a ciência física, as suas ações na ordem da cura
estabeleciam íntimas relações com procedimentos morais, tendo na educação o
método privilegiado. Havia, de fato, uma preocupação que, através da educação,
a criança fosse protegida contra a patologia que o meio social pudesse exercer
em sua saúde mental, assim como ao degenerado tentava-se reeducar pela
terapia moral. Juliano Moreira responsabilizava a má educação em uma
sociedade civilizada, tanto por distúrbios psíquicos, como por formação de uma
“raça de degenerados”. Preocupavam-lhe, sobremaneira, os imigrantes europeus
que “infestavam” o país: “O Brasil está destinado, como país de imigração a ser o
rebotalho movediço (...) seremos o refúgio dos piores imigrantes”.68 Henrique
68
Juliano Moreira apud PORTOCARRERO (2002; 75).
54
Roxo, também alienista famoso, em um artigo de 190469 explicita estas idéias
racistas e enfatiza a poderosa ação do meio no aprimoramento racial:
“Não é a constituição física do preto, a sua cor escura que lhe marcam
o ferrete da inferioridade. É a evolução que não se deu. Ficaram
retardatários. Ao passo que os brancos iam transmitindo um cérebro
em que as dobras de passagem mais se aprimoravam, em que os
neurônios tinham uma atividade mais apurada, os negros que
indolentemente se furtaram à emigração, em que a concorrência
psíquica era nula, levam a seus dependentes um cérebro pouco afeito
ao trabalho, um órgão que de grandes esforços não era capaz.
“Suponhamos... que um negro com esta má tara hereditária se
transportasse para um centro adiantado e que com sua congênere
viesse a ter descendência. Imaginemos... que esta fosse pouco a
pouco progredindo e que de pai a filho se fosse legando cada vez mais
um cérebro exercitado, ativo. Dentro de um certo número de
descendentes chegaria, finalmente, um cérebro tão evoluído quanto de
um branco. Seria tão inteligente quanto este”. (grifos nossos)
Sílvio Romero, o mesmo que “degenerou” seu cunhado para que ele
escapasse da prisão, na sua História da Literatura Brasileira (ROMERO
APUD
ENGEL,
2001; 173), publicada em 1888, discursando sobre as diferenças étnicas e a lei do
predomínio do mais apto, acreditava que o elemento branco era superior, e previa
um “embranquecimento” da população brasileira em “três ou quatro séculos”.
Embora este racismo dos alienistas possa ser atenuado pela cura nas
ações do meio, traz aqui embutida uma idéia de superioridade cultural, que não
passa de um preconceito racista para com as culturas dominadas.
Estes são fatos do início do século XX, muito antes da constituição da
LBHM. Ainda em São Paulo, em 1917, Renato Kehl funda a Sociedade Eugênica
de São Paulo (ENGEL, 2001
E
PORTOCARRERO, 2002) que, embora de existência
efêmera, prega a doutrina de Sir Francis Galton de forma aberta: a eugenia como
produto da ciência no aprimoramento racial. A LBHM vai ser a voz oficial e
científica deste caldo de cultura onde proliferava a pura eugenia, ainda disfarçada
de Higiene Mental.
Costa, em seu estudo sobre a LBHM, buscando o momento do
aparecimento da eugenia no Brasil, infere que
“A intelectualidade brasileira enfrentava, na época, graves problemas
ideológicos que a eugenia ajudou a solucionar. O regime republicano
69
Henrique Roxo, Perturbações mentais nos negros do Brasil, apud ENGEL (2001; 174).
55
atravessava, nas duas primeiras décadas do século XX, um período de
convulsões. A abolição da escravatura; a imigração européia; a
migração de camponeses e antigos escravos para as cidades; enfim,
os efeitos econômicos da industrialização nascente agravaram as
tensões sociais e colocavam em questão o próprio regime, cuja
legitimidade a elite dirigente procurava justificar por todos os meios”
(COSTA, 1981; 31).
Numa primeira etapa a LBHM dedicou-se, com Gustavo Riedel, à higiene
psíquica individual. Dentro do modelo alemão de Kraepelin, a higiene individual
fazia parte do contexto da psiquiatria da época. O organicismo estava implantado
na psiquiatria de então e, neste princípio, o “aconselhamento genético”, a
profilaxia de “taras” e a “degenerescência” estavam no campo da higiene mental,
no que o Ambulatório Rivadávia Correa agia com distinção, já nos bairros vizinhos
do Engenho de Dentro. A hereditariedade era a causa, para a psiquiatria da
época, da epilepsia, da esquizofrenia, da imbecilidade e da paralisia geral
progressiva. O que caracterizava este primeiro momento da Liga era uma
terapêutica empregada na prevenção da doença mental.
Mas, aos poucos, ela se afasta deste campo restrito da função psiquiátrica
para propagar sobre o coletivo social as suas idéias e procedimentos ideológicos.
Vejamos em dois textos da época, citados por Costa, como as ações médicas
saem do indivíduo para o coletivo, do singular ao plural:
“...os espartanos, como geralmente é sabido, chegaram ao extremo de
arremessar ao Eurotas os meninos nascidos defeituosos. D’esta
mesma idéa simplista de preservar a raça, afastando os anormaes da
possibilidade de reproducção, proveio por certo uma forma moderna
que prescreve esterilizar alienados delinquentes, degenerados
alcoolicos inveterados, quer como penalidade, quer como
prophylactico. Para obter a esterilização basta no homem ressecar um
centímetro do cordão espermático, de cada lado. (...) O alvitre,
exellente ‘a priori’, tem o inconveniente de attingir apenas os casos
mais graves”. (Juliano Moreira)
Ernani Lopes, que vai substituir Gustavo Riedel na direção da Colônia
dos Alienados do Engenho de Dentro, no artigo “Menores Incorrigíveis”,
propondo medidas profiláticas nestes casos: “a) combate ao alcoolismo
e a syphilis dos procreadores; b) evitação das uniões de indivíduos
tarados; c) segregação e esterilização dos degenerados, de accordo
com o parecer de comissões technicas”.
Embora ainda no campo médico, as ações não são propostas no caso
em estudo, mas no atacado. No coletivo. Logo estas ações saem do campo
56
médico para assumir seu viés ideológico. O mesmo Ernani Lopes, em 1933, em
outro artigo, “pede então que sejam criados no Brasil tribunais de eugenia, a
reforma eugênica dos salários e o seguro de paternidade eugênica, três
instrumentos jurídicos-institucionais criados por Hitler, a fim de aperfeiçoar a ‘raça’
alemã” (COSTA, 1981; 48). Em 1934, a LBHM publica nos seus Archivos uma
solicitação ao Chefe de Polícia do Distrito Federal, Sr. Major Filinto Müller, para
que seja intensificada a fiscalização nos botequins, propondo horário de
funcionamento e solicitando uma listagem, “tão pormenorizada quanto possível,
de todos os ébrios contumazes de que tenham conhecimento, fornecendo-a, em
caráter confidencial, a esta Instituição, que se propõe a dar os passos necessários
para submeter o paciente ao cuidado de nossos serviços...” (ARCHIRVOS
APUD
COSTA,
1981; 66). Costa identifica na LBHM as seguintes características: antiliberalismo,
moralismo, racismo e xenofobia. Cita ainda, como figuras expressivas da
psiquiatria da época que não participaram deste pensamento: Odilon Galotti, no
Rio, James Ferraz Alvim, em São Paulo e Ulisses Pernambucano, em Recife.
Curiosamente, as idéias eugenistas de aprimoramento da raça, que
pregavam, no início, a miscigenação para uma evolução dos brasileiros, após a
Revolução
de 30 desaparecem com a ideologia nazista que contamina o
aparelho de Estado. No 3º Congresso Brasileiro de Neurologia, Psiquiatria e
Medicina-Legal, o psiquiatra Xavier Oliveira propunha artigos a serem implantados
na legislação brasileira como “votos de profilaxia defensiva”: “que só seja
permitida a entrada no país de imigrantes da raça branca”; e “que seja
expressamente proibida para efeito de residência além de seis meses, a entrada
no país de quaisquer elementos das raças negras e amarelas” (COSTA, 1981; 86).
Juliano Moreira, um mulato baiano, não está mais à frente da política das doenças
mentais. Continua na academia como um eminente professor, respeitado por
todos... Morre aos 60 anos, em 1933.

A Colônia de Alienados do Engenho de Dentro, aberta em 1911 com a
transferência de mulheres para o antigo pavilhão de beribéricos da Marinha, como
57
já foi referido, é ampliada com a construção de um pavilhão para 200 internas em
1912. Em 1918, na gestão Gustavo Riedel é inaugurado o Ambulatório Rivadávia
Correa. A Assistência Heterofamiliar é implantada em 1921, ano em que também
é inaugurada a Escola Profissional de Enfermeiras Alfredo Pinto. Em 1932 Ernani
Lopes substitui Gustavo Riedel na direção da Colônia. Em 1937, com a morte de
Riedel, a Colônia ganha o seu nome, por pouco tempo. Em 1938, quando Adauto
Botelho assume a direção da Assistência aos Alienados, propõe a criação do
Serviço Nacional de Doenças Mentais (SNDM) e a transformação da Colônia
Gustavo Riedel em Centro Psiquiátrico Nacional.
Desde 1938 era idéia de Adauto Botelho transferir o Hospício Nacional de
Alienados para o Engenho de Dentro. No período da Higiene Mental, o complexo
de serviços da Colônia estava em franca ascensão, como foi referido acima. Além
do Hospício Nacional já não ser tão importante, a Urca, já um bairro residencial
ocupado pela classe média, reclamava da vizinhança da loucura. Em 1943 esta
passagem é definitiva. O Centro Psiquiátrico Nacional é formalizado como
substituto do Hospício Nacional de Alienados. Fica, na praia Vermelha, antiga
praia da Saudade, O Pavilhão de Observação e Diagnóstico, que passou a se
chamar Instituto de Psicopatologia, onde é hoje o Instituto de Psiquiatria da
Universidade Federal do Rio de Janeiro e o Instituto de Neuro-Sífilis, hoje o
Instituto Municipal Philippe Pinel.
O Centro Psiquiátrico Nacional foi constituído, principalmente na década de
40, por um complexo hospitalar: o Hospital Gustavo Riedel, primeira ampliação
em homenagem ao grande empreendedor que, por breve tempo, foi nome da
antiga Colônia; o Hospital de Neuro-Psiquiatria Infantil, inaugurado em 10 de
outubro de 1942, absorvendo os menores que estavam internados no Hospício
Nacional e em Jacarepaguá;70 o Hospital Pedro II, inaugurado em 1943, para
receber todo o Hospício Nacional de Alienados, definitivamente fazendo com que
o complexo do Engenho de Dentro substituísse de fato o antigo Hospício da Praia
da Saudade, hoje Centro Comunitário que substituiu a denominação de Odilon
Galotti;
o
Instituto
de
Psiquiatria,
construído
para
receber
pacientes
70
Só em 1974, com o fechamento do pavilhão de adolescentes de Jacarepaguá, passa a ser chamado Hospital
de Neuro-Psiquiatria Infanto-Juvenil (SAMPAIO, 1982). Na década de quarenta sua clientela era, basicamente,
de crianças oligofrênicas.
58
previdenciários, passou a se chamar Adauto Botelho, hoje Casa do Sol. O antigo
prédio da Praia Vermelha foi entregue à Universidade do Brasil, juntamente com o
Instituto de Psicopatologia. O Instituto de Neuro-Sífilis, embora tendo continuado
na Praia Vermelha, era subordinado ao Centro Psiquiátrico Nacional.
Dois outros acontecimentos neste fim de período são necessários destacar.
O antigo pavilhão Braule Pinto, onde eram internadas as intercorrências clínicas
da Colônia, principalmente os doentes infecto-contagiosos, é substituído, em
1948, pelo Bloco Médico Cirúrgico, monumental hospital de oito pavimentos, onde
também passou a funcionar a administração do Centro Psiquiátrico. Destinava-se
à internação clínica, cirúrgica e obstétrica dos pacientes psiquiátricos de todos os
estabelecimentos do Estado do Rio de Janeiro. Havia uma recomendação técnica
para que os doentes mentais não fossem aceitos nos hospitais gerais que não
tivessem locais preparados para eles (MEDEIROS, 1977).71 O segundo fato é que
em 1944, começa a funcionar o Setor de Terapia Ocupacional e Reabilitação
(STOR), comandado por Nise da Silveira, que vai inaugurar em 1952 o Museu de
Imagens do Inconsciente (MII) e se tornar, posteriormente, uma unidade
independente do Centro Psiquiátrico.
Até a Revolução de 30, Juliano Moreira, como diretor da Assistência aos
Psicopatas, mesmo de atuação local no Rio de Janeiro, inspirou a criação de
grandes manicômios no Brasil. “A ele muito devemos do que existe científica e
praticamente realizado na assistência aos psicopatas da Capital e de toda a
República” (CUNHA LOPES
APUD
MEDEIROS, 1977).
Após a Revolução de 30, o
Governo Provisório tira a Assistência aos Psicopatas do Ministério da Justiça e a
agrega ao recém criado Ministério da Educação e Saúde Pública, mesmo período
em que Juliano Moreira deixa o cargo público. Mas sua influência se faria sentir
em 1938, quando seu discípulo, Adauto Botelho, assume o novo Serviço Nacional
de Doentes Mentais, em substituição à antiga Assistência aos Alienados. É deste
momento em diante que o Centro Psiquiátrico Nacional passa a assumir o lugar
de destaque em substituição ao antigo Hospício Nacional de Alienados, por sua
vez sucessor do Hospício de Pedro II.
71
Como veremos adiante, hoje a proposta é radicalmente contrária.
59
Esta metamorfose, que traz toda a história da psiquiatria no Brasil para
dentro dos altos muros da Colônia de Engenho de Dentro, um longínquo bairro do
subúrbio do Rio de Janeiro, tem conseqüências no simbólico e no destino desta
Instituição. O pavilhão das crianças, hoje desativado, com corredores labirínticos e
infindáveis, janelas e passagens de ar tão altas, inacessíveis a seu habitantes,
grita alto para os que não forem surdos refletirem na experiência do passado para
um destino melhor. Da arquitetura de suas construções é possível ouvir Teixeira
Brandão reclamando um mandato científico para o Hospício de Pedro II; Juliano
Moreira construindo a moderna psiquiatria no Brasil; Gustavo Riedel expandindo a
psiquiatria do Engenho de Dentro para a comunidade; os higienistas da Liga
Brasileira de Higiene Mental propondo a esterilização daquela gente que lá dentro
anda como que, buscando escutar o passado, fosse possível entender o seu
presente...
60
Capítulo 4: Perde-se o passado, fica-se sem o futuro: a
psiquiatria, envergonhada, foi privatizada pelos mercadores de
infortúnios...
Depois da Segunda Guerra, a vitória das forças aliadas diminuiu o
ímpeto da ciência organicista na psiquiatria, em todo o mundo. A migração de
pensadores dos países europeus, que saíram do nazismo derrotado, ligados a
correntes psicológicas, entre elas a psicanálise,72 para os países da América do
Sul, trouxe para o Brasil ares novos no campo da psiquiatria, anteriormente
dominada pelo organcismo alemão.
Entanto, no período da guerra fria, que se estende pós Segunda
Guerra até a queda do muro de Berlim, o mundo vai estar dividido entre as
ideologias de esquerda e direita que marcaram esta época. Se os saberes
psicológicos ficaram restritos à academia ou sociedades acadêmicas, os
hospícios ficaram dormindo nos braços do saber organicista anterior, também ele
desacordado.
72
“No Rio de Janeiro, a instalação do movimento foi gravemente perturbada pelo conflito entre Mark Burke
[judeu polonês, radicado na Inglaterra, mandado por Ernest Jones para o desenvolvimento da psicanálise no
Brasil] e Werner Kemper [ psicanalista alemão, defensor de teses eugênicas, reabilitado por Erneste Jones e
também mandado ao Brasil], ex-colaborador de Matthias Heinrich Göring e mandatário de Ernest Jones para
desenvolver a psicanálise no Brasil. Em 1953, Kemper fundou a Sociedade Psicanalítica do Rio de Janeiro
(SPRJ), reconhecida pela IPA em 1955. Quanto aos partidários de Burke, depois de violentos confrontos,
associaram-se aos seus colegas formados na Argentina para criar um outro grupo em 1959: a Sociedade
Brasileira de Psicanálise do Rio de Janeiro (SBPRJ). (...) A partir de 1973, o caso Kemper perturbou de novo
as duas sociedades psicanalistas do Rio de Janeiro. Antes de sua partida para a Alemanha em 1967, o excolaborador de Göring analisara um dos didatas mais ativos da SPRJ, Leão Cabernite. Tornando-se presidente
de sua sociedade e ligado de perto ao poder militar, este teve depois, como aluno em formação, de 1971 a
1974, um médico-tenente da polícia militar, Amílcar Lobo Moreira da Silva (1939-1997), torturador a serviço
da ditadura” (ROUDINESCO & PLON, 1998; 88-90). Segundo os mesmos autores, Juliano Moreira teve contato
com a psicanálise: “Foi o primeiro, no seu país, a dar às idéias freudianas um lugar importante, primeiro na
Bahia e depois no Rio de Janeiro, onde dirigiu o hospital nacional de alienados. Foi também um reformador
dos asilos. Humanizou os métodos de tratamento dos doentes mentais, principalmente suprimindo os
instrumentos clássicos de confinamento. Não praticou pessoalmente a psicanálise, mas criou, em 1928, no Rio
de Janeiro, a primeira filial da Sociedade Brasileira de Psicanálise, fundada no ano anterior por Durval
Marcondes, em São Paulo” (Pg. 523).
61
É um período de profunda separação entre a academia, as
sociedades acadêmicas e os serviços de psiquiatria. Se na primeira há uma
batalha entre as teorias psicológicas que chegavam e o velho organicismo,
remoçado pela descoberta dos neurolépticos na década de 50, nos hospitais nada
se ouvia, a não ser ecos dos áureos anos do alienismo do passado. A camisa de
força, o quarto forte, que tinham diminuído na reforma de Juliano Moreira,
voltaram de forma mais intensa. O eletrochoque era a terapia de eleição.
"No Brasil, tanto o instrumento psicoterapia como a atitude
pscoterápica se revelam como possibilidade
permanentemente
abortadas, nas tentativas de adquirir cidadania dentro do hospital
psiquiátrico. Designa-se o instrumento como mais adequado à prática
ambulatorial, entanto no hospital as experiências correrão por conta de
voluntarismos, voltados para grupos. A categoria médica, de maior
estatuto social continua ligada exclusivamente ao modelo biológico. Os
psicólogos, que buscam se assenhorar do instrumento, não
conseguem impô-lo pois sequer conseguem se impor aos médicos. Os
médicos que se apropriam da psicanálise, através do recurso da
reserva de mercado, preferem usar o instrumento de tão alto custo
formacional onde ele mais renda, isto é, junto à clientela privada de
consultório. As experiências com grupos, de maior sucesso terapêutico,
serão relatadas por psicodramicistas, mas como circunscritos
voluntarismos" (SAMPAIO, 1982; 41).
Como foi dito por PORTOCARRERO anteriormente, comentando a arqueologia
de FOUCAULT, optamos por não dividir este ou
qualquer outro momento deste
trabalho em períodos definidos por origens bem demarcadas. Falamos de
começos, no plural, para nos colocarmos dentro de um período, e de outros
começos, para sairmos do período em estudo.
Os começos deste período têm causas em diferentes fatos históricos: o
papel importante desempenhado pela Colônia de Alienados do Engenho de
Dentro na fase áurea da higiene mental; o declínio da importância do Hospital
Nacional de Alienados e sua absorção pela Colônia; a separação entre o saber e
prática, com o retorno das atividades de ensino da Colônia para o lugar do antigo
Hospital Nacional; a vitória dos aliados na Segunda Grande Guerra e o declínio
do fascismo e, como conseqüência, a diminuição do ímpeto organicista das
teorias psiquiátricas dominantes; o desenvolvimento, no Brasil, das teorias
psicológicas, entre elas, a psicanálise; o fosso que aconteceu entre a academia e
62
o Centro Psiquiátrico Nacional; os movimentos de reforma acontecidos nos
Estados Unidos e na Europa (Inglaterra, França e Itália).
Para o esmaecimento deste período teremos a crise do modelo privado da
assistência; a reformulação da assistência, decorrência inevitável da crise do
modelo; a redemocratização do país na década de 1980; o retorno da academia
para interferir no modelo assistencial. Em resumo, os começos do próximo
período.
Um fato intrigante marca o nascimento do Centro Psiquiátrico Nacional
como substituto do modelo do Hospício Nacional de Alienados73 na década de
1940. A sua independência e organização como o centro da psiquiatria brasileira
coincide com o declínio das teorias assistenciais, baseadas nos modelos
relatados no capítulo anterior. É como se a prática de uma “psiquiatria
envergonhada”, tendo perdido seu passado, não soubesse construir um futuro.
“A partir dos anos 50, algo acontece de novo na assistência psiquiátrica
brasileira. O hospital como lugar assistencial privilegiado se reforça
mas o predomínio do setor público desaparece, a psicofarmacologia é
incorporada e alguns discursos psicoterápicos tentam penetrar na
instituição. A queda da hegemonia do setor público se fará sentir no
número de estabelecimentos, no número global de leitos, na
possibilidade de conferir prestígio, no ritmo de incorporações dos
procedimentos terapêuticos mais avançados de cada época, na
competência normalizadora e fiscalizadora. A discriminação classista
de serviços dentro de uma mesma unidade cede lugar à discriminação
classista das unidades: privada liberal para as classes altas; privada
concessionária do setor público para as classes médias e os
trabalhadores urbanos, pública para os trabalhadores rurais e
sobrantes de todo o gênero” (SAMPAIO, 1982; 85).
A privatização do sistema psiquiátrico foi uma característica do período. Se
tomarmos, como um simples exemplo, a Casa de Saúde Dr. Eiras, temos que da
sua inauguração no Império, em 1860, seus 40 leitos cresceram para 143 em
1943, ano da transferência do Hospício Nacional para o Centro Psiquiátrico
Nacional; em 1976 possuía 1300 leitos, além dos 3000 leitos de sua filial, no
município de Paracambi, inaugurada em 1964 (SAMPAIO, 1982; 86).
E esta
ampliação é feita com dinheiro público ou de fundos previdenciários.
73
Apesar de ser renomeado como Hospital Nacional, ficou conhecido como Hospício até sua extinção. Conf.
PORTOCARRERO (2002) E ENGEL(2001).
63
O modelo psiquiátrico de assistência privada existia desde o Império.
Porém, o papel desempenhado pelo setor público, como centro do saber, de
controle e fiscalização, sempre foi dominante.74 O que vai caracterizar a
privatização deste período é a inversão do modelo, como aponta Sampaio na
citação anterior. E é o Estado que vai desencadear este processo. Em 1964, após
um golpe militar, o Brasil entra nos chamados “anos de chumbo” da ditadura, que
dura mais de vinte anos. Em l968 o Ministério da Saúde propõe um Plano
Nacional de Saúde, de nítido caráter privativista. Era Ministro da Saúde Leonel
Miranda, curiosamente um dos proprietários da Casa de Saúde Dr. Eiras. Este
Plano Nacional possibilita a privatização de todo setor saúde a partir da década
de 1960, após o golpe:
“A ‘privatização da Medicina”, processo que se acelera a partir de 1967,
encontra suas bases materiais no setor privado hospitalar, ‘lucrativo’ e
‘não-lucrativo’ cujo número de estabelecimentos superava o setor
oficial em 1956, sendo de 82,2% e 17,8% respectivamente. A
capacidade instalada aumenta, principalmente, às custas do setor
privado lucrativo, que em 1960 participava com 14,4% do total de leitos
e em 1971 já era de 44,0%. A opção política encontrou como
justificativa ‘racional’, a existência de um setor médico-hospitalar
privado que em 1967 detinha 2.766 estabelecimentos hospitalares,
aliada a expansão da demanda gerada pela incorporação de grandes
contigentes de assalariados urbanos ao sistema previdenciário”
(CORDEIRO, 1980; 162).
O que se assiste neste período é a privatização do setor saúde levando no
bojo a assistência psiquiátrica. Em 1967 há a unificação dos vários Institutos de
Aposentadorias e Pensões no Instituto Nacional de Previdência Social (INPS).
Dez anos depois, 90% dos recursos previdenciários destinados à assistência
médica eram aplicados na compra de serviços, denunciando a hipertrofia da
privatização da saúde no Brasil.
Neste modelo, a participação da psiquiatria é decisiva para primeiro,
impulsionar, de forma rápida, dada a ausência de equipamento tecnológico, a
privatização do sistema e, num segundo momento, interferir, de forma drástica, no
esgotamento do modelo. Vários estudos75 demonstram que a privatização da
assistência psiquiátrica se deu de forma impetuosa neste período, dentro do
74
Teixeira Brandão e outros alienistas do Império e da Primeira República eram sócios de Casas de Saúde
(conf. ENGEL,2001), mas o seu papel público era de importância principal.
75
SAMPAIO (1982), DELGADO (1983), CERQUEIRA (1984), MACEDO (1982), entre outros.
64
quadro de desemprego e da política pública de benefícios. Parcela da crise social
foi contornada pela ditadura com o internamento psiquiátrico. Nesta época, a
internação psiquiátrica assume a segunda causa diagnóstica de internação no
Brasil, contribuindo de forma decisiva na crise do modelo, no início da década de
1980.
Outra característica do período é o atendimento ambulatorial. Dado o
grande crescimento populacional e a grave crise social e política que se
atravessava, não é possível o internamento solucionar a questão. No plano
ideológico, o crescimento ambulatorial aparece como um cruzamento da
Psiquiatria Comunitária Americana - que promoveu uma grande desospitalização
de graves conseqüências naquele país, com os antigos preceitos da Liga
Brasileira de Higiene Mental. Mas, se no plano ideológico, a ambulatorialização
estava justificada para diminuir a internação que corroía o recurso público da
saúde, na prática só conseguiu ativar mais ainda aquele dispositivo. Sampaio
apresenta um gráfico na sua pesquisa, mostrando que de 1951 a 1981 as
consultas ambulatoriais em psiquiatria foram aumentadas em 80% no Brasil.
Como então os recursos em internamento eram aumentados no mesmo momento
em que o ambulatório também crescia? O atendimento ambulatorial inadequado e
apressado, mantendo uma longa fila de espera e com uma quantidade de oferta
sempre inferior à procura alimentava o dispositivo do internamento.76
E enquanto o modelo privativista estava em desenvolvimento, o serviço
público era sucateado e desativado. No nascimento da filial da Casa de Saúde
Dr. Eiras, em Paracambi, os recursos para sua construção foram públicos e seus
primeiros pacientes transferidos da Colônia Juliano Moreira, em Jacarepaguá,
para aquele município.77 Estava descoberta a galinha dos ovos de ouro. Recursos
e pacientes públicos transferidos ao setor privado. A indústria da loucura
alimentava seu moinho com as camadas excluídas pelo modelo econômico. E
quanto menor a participação pública, maior o crescimento do setor privado. Além
76
Ainda hoje a situação é muito parecida, apesar de inúmeros planos de reorientação da assistência
ambulatorial, com será visto adiante.
77
Depoimento de Paulo Mariz, na época diretor da Divisão Nacional de Saúde Mental, ao autor, na década de
1980. A forma de manutenção do empreendimento foi estudada por DELGADO (1983): a desativação de uma
indústria na região produziu o contigente de pacientes internados em Paracambí.
65
da psiquiatria estar envergonhada, estava sendo vendida aos mercadores de
infortúnio.
E no Engenho de Dentro, como vivia a parcela mais desvalida dos
excluídos amordaçados pela prática de uma psiquiatria envergonhada da sua
teoria? Pior sem ela. O sucateamento do setor público, a diminuição dos insumos
e de pessoal qualificado e a deteorização das suas imponentes edificações
trouxeram de volta o isolamento, o castigo, métodos coercitivos, sem sequer o
objetivo do tratamento moral anterior. Enfermarias apinhadas de mortos-vivos,
com espaço mínimo de circulação, denunciando verdadeiros quartos-fortes
coletivos; pátios e alamedas vazios, tendo sido abolida, inclusive, a “ilusão de
liberdade”; a quantidade de portas que se fechavam umas sobre outras, só
possibilitando a circulação dos carcereiros que possuíam as chaves; a terapêutica
reduzida aos choques elétricos e ao uso de dispositivos
coercitivos e
repressivos.78
O desenvolvimento dos neurolépticos, na década de 50, e dos
ansiolíticos e antidepressivos a partir dos anos 60, vai possibilitar, no início da
década de 70,a substituição do arsenal biológico anterior (os antigos choques por
cardiazol, insulina e eletricidade, as cirurgias de lobotomias). Mas, para os
hospícios no Brasil, esta nova tecnologia trouxe dois agravantes. O uso deliberado
dos efeitos colaterais como castigo, no uso de uma verdadeira camisa de força
química que, ao invés de produzir a reintegração, cronificava o doente no
hospício, agora "doente do remédio". Por outro lado, a medicação disponível é
aquela que o poder público compra na imposição feita pela indústria
farmacêutica.79
Enquanto a psiquiatria era privatizada, o Centro Psiquiátrico Nacional,
através de um decreto do Marechal Humberto Castelo Branco, em 1965, muda de
nome. Passa a chamar-se Centro Psiquiátrico Pedro II (CPPII), como se a
78
Na década de sessenta assiste-se a um caso de extração de todos os dentes de um paciente masculino,
descendente indígena, com dentes perfeitos, por ele ter a “mania” de morder outros pacientes e os
enfermeiros. A “prescrição” foi feita por seu médico assistente (relato de antigo funcionário ao autor).
79
Para os hospitais psiquiátricos do Rio de Janeiro (Centro Psiquiátrico Pedro II, Hospital Pinel e Colônia
Juliano Moreira), no início da década de 70, através de uma licitação centralizada em Brasília, o Ministério da
Saúde adquiriu uma quantidade infindável de Clorpromazina em gotas, medicamento de uso infantil, que teve
de ser usada nos adultos para que o estoque acabasse antes de vencer o prazo de validade. Nos ambulatórios,
por exemplo, um paciente levava mais de trinta frascos, pois teria que tomar um por dia. Depoimento de
Paulo Mariz, diretor da Divisão de Saúde Mental do Ministério da Saúde, na época, feito ao autor.
66
intenção fosse voltar toda a sua história a um século antes, de onde nunca
deveria ter saído: o Hospício de Pedro II, agora sem sua estratificação original. Os
doentes de primeira classe estavam nos consultórios e clínicas privadas. Os de
classe média e as classes trabalhadoras nos hospitais conveniados pelos
Ministérios da Saúde e da Previdência. Ao Hospício, ou Centro Psiquiátrico de
Pedro II, eram destinados os indigentes (os excluídos dos excluídos). Parecia que
os mesmos desatinados que habitavam as ruas do Rio de Janeiro no Império
foram recolhidos pela ditadura militar para o Pedro II, como o hospício agora era
novamente chamado...
Mas, neste período de sombras, duas experiências marginais ousaram tirar
a mordaça de dentro dos muros do hospício. E os nomes de seus representantes,
amaldiçoados e perseguidos naqueles tempos, saltam para a história, como tende
a acontecer com quem escreve linhas que mudam o destino: Nise da Silveira e
Oswaldo Santos. Aqui só iremos tocar em detalhes mínimos dos trabalhos dos
dois, para efeito do nosso objetivo. Cada experiência merece uma pesquisa
detalhada.80
Nise da Silveira, médica alagoana, fez sua formação psiquiátrica no
Hospício Nacional, onde foi presa, pela ditadura Vargas, dividindo uma cela com
Olga Benário Prestes. Reintegrada ao serviço público na década de 40 do século
XX, vai trabalhar no Centro Psiquiátrico Nacional. Recusando os métodos
coercitivos da época, funda, em 1944, o Setor de Terapêutica Ocupacional e, em
1952, o Museu de Imagens do Inconsciente, acervo de imagens de trabalhos
plásticos de esquizofrênicos, reconhecidos mundialmente a partir de seu encontro
com Carl Jung. Monta um grupo de estudos, que funciona às terças-feira, durante
décadas, formando gerações de adeptos das teorias junguianas. O trabalho
marginal é reconhecido numa primeira fase, em 1961, quando, por interferência
da Presidente Jânio Quadros, o Setor de Terapia Ocupacional e Reabilitação
(STOR) é regulamentado como uma unidade independente do Centro Psiquiátrico
Nacional. Antes desta data e após o golpe militar de 64 o trabalho de Nise
acontecia sem o reconhecimento da psiquiatria oficial. Após a redemocratização
80
Sobre Nise ela mesma fala até agora na sua obra. Sobre Oswaldo Santos conf. TEIXEIRA (1993).
67
do país, no final dos anos 80, Nise, apesar de aposentada compulsoriamente,81 no
período dos anos de chumbo, retoma o seu trabalho e colhe os louros do seu
reconhecimento internacional.
A experiência de Nise sobrepõe-se à história do próprio Centro Psiquiátrico
Pedro II. A quantidade de exposições que o Museu de Imagens do Inconsciente
(MII) fez no Brasil e no exterior basta para elevar o nome de Nise na psiquiatria
brasileira.82 A mostra permanente, o estoque de 350 mil obras, os audiovisuais e
filmes, culminando com a trilogia de Leon Hischman, cineasta consagrado, sobre
três pacientes do MII, estão à disposição,
mostrando permanentemente o
trabalho desta guerreira, ou psiquiatra rebelde, como se nomeava. Nise recheou a
história da psiquiatria com obras de arte, que falam de um modo todo especial do
seu trabalho que, de resistência, se apresenta como uma nova possibilidade da
psiquiatria se relacionar com a loucura, quando tudo estava escuro.83
Oswaldo Santos não teve a mesma sorte. Seu trabalho foi efêmero, mas
não menos importante. Os pacientes que por lá passaram trazem marcada na
pele a experiência de liberdade ali vivida. Seu trabalho dura de 1968 a 1975. O
esboço deste trabalho começa antes, em 1962, quando os psiquiatras Oswaldo
Santos e Wilson Simplício assumem a supervisão e direção de uma enfermaria
masculina na seção Olavo Rocha do Hospital Odilon Galloti, no Centro
Psiquiátrico Nacional.84 Influenciados por uma formação psicanalista e marxista,
começam por tentar escutar um grupo de alcoólatras, indigentes internados no
hospital público. Logo os esquizofrênicos solicitam estas “conversas”. Começam
com grupos operativos. Em 1967, o trabalho é apresentado em Porto Alegre, no
VII Congresso Brasileiro de Neurologia Psiquiatria e Higiene Mental e Marcelo
Blaya, importante psicanalista gaúcho, nomeia a experiência como sendo uma
81
Luis Carlos Mello, colaborador de Nise, conta que no dia seguinte a sua aposentadoria compulsória, por
idade, Nise retorna , munida de lápis e caderno, dizendo ser estagiária voluntária do Museu. E continuou
assim sua resistência.
82
O módulo "Loucura" da Mostra Brasil 500 anos é composta, na sua maior parte, dos trabalhos de Nise com
seus pacientes.
83
Em conversa com Nise, nomeamos seu trabalho como “alternativo”. Nise, na veemência que lhe era
característica disse que não fez nada “alternativo”, mas “outra coisa”. Foi quando percebemos que
“alternativo” permite a presença da psiquiatria tradicional, que Nise abominava.
84
As informações seguintes são tiradas de TEIXEIRA (1993), DUARTE, & FERNANDES, & RODRIGUES (2000). Neste
último trabalho, as autoras tentam diferenciar a experiência de Oswaldo Santos da comunidade terapêutica
clássica inspirada em Maxell-Jones. Na experiência clássica seria uma “humanização disciplinadora”, crítica
que Basaglia fez (ver capítulo I deste trabalho), enquanto a experiência de Santos seria uma resistência sitiada.
68
comunidade terapêutica. É com este nome que ela passa a ser conhecida a partir
de 1968. Nos parece que é muito mais que isto. Mais se pareceria com a
Psiquiatria Institucional85 de Tosquelles. Vejamos como o próprio Oswaldo definia
a sua Comunidade Terapêutica:
“O conceito de comunidade terapêutica é liberdade e igualdade entre
equipe e paciente, então não há mais essa relação médico-paciente.
Há uma relação em que o ato terapêutico se dá. E isso é uma afronta
ao regime totalitário, aonde o poder é centrado na mão do militar ou, no
caso da Medicina, no médico, era uma revolução dentro de um país em
ditadura(...)”(apud DUARTE & FERNANDES & RODRIGUES, 2000).
Ora, antes da nomeação, desde o golpe de 64, o trabalho é visitado por
estudantes, intelectuais, para saber o ali estava ocorrendo. O que se vivia era
uma experiência democrática com loucos e excluídos, enquanto os sãos e
inclusos na sociedade viviam uma ditadura. Por bater de frente com o regime
autoritário, o trabalho seria abortado prematuramente. Mas, antes, vejamos o que
diz um intelectual internado na comunidade terapêutica:
“hoje, agora estou fazendo tempo enquanto os remédios que tomei
fazem efeito e vou dormir. Este sanatório é diferente dos outros por
onde andei – talvez seja o melhor de todos, o único que talvez possa
me dar condições de não procurar mais o fim de minha vida. Soube
hoje que o Rogégio esteve aqui, antes preciso muito explicar ao
médico tudo o que é necessário(...) o dr. Oswaldo não pode fugir, nem
fingir: mas isso eu começarei a ver, de fato, logo mais quando teremos
a nossa primeira entrevista” (TORQUATO NETO, 1973) 86
Como continuidade desta experiência, a comunidade terapêutica de
Oswaldo
Santos
inaugura
o
primeiro
Hospital-Dia
no
Brasil
para
o
acompanhamento de psicóticos. Esta modalidade, que vai ser um marco na
reforma psiquiátrica da década de l980, já acontecia ali. Apesar da importância do
trabalho de Oswaldo Santos, a experiência é curta. Em 1973 ele é transferido
para outra unidade, num intuito da psiquiatria tradicional esvaziar sua ação, que
ainda perdura até 1975, quando é extinta.
85
Movimento francês, surgido na França ocupada, caracterizado por uma resistência política e em considerar
as instituições e seus membros como possuidores de partes doentias, que permite um questionamento
permanente das instituições e dos papéis ali exercidos. Basaglia também critica esta corrente por não
questionar o saber psiquiátrico supra-estrutural, que de fato é o responsáveis pela estrutura (ver capítulo I).
86
Em conversa com o autor, Torquato falou que estava internado antes, na psiquiatria tradicional, mas fugiu
do hospício, só aceitando voltar para se tratar com Oswaldo Santos.
69
Mas estas duas experiências são exceções no ambiente cinza do hospício,
caracterizado neste período. Ainda nos Diários de Engenho de Dentro, Torquato
Neto faz poesia com a tristeza monumental da internação. Não importa se estava
na comunidade terapêutica, nos ateliês de Nise ou na psiquiatria tradicional. À
noite todas as enfermarias são pardas:87
“pela primeira vez estou sentindo de fato o que pode ser uma prisão.
Aqui, as portas que dão para as duas únicas saídas existentes, estão
permanentemente trancadas – e há uma pequena grade em cada uma
delas, de onde se pode ver os corredores, que dão para as outras
galerias. Depois delas, uma espécie de liberdade. Não se fica trancado
em celas aqui dentro: é permitido passear até rachar por um corredor
de 100 metros por 2,5 de largura. Somos 36 homens aqui dentro, 36
malucos, 36 marginais – de qualquer maneira esperamos a “cura” no
sanatório como a sociedade espera que os bandidões das cadeias se
“regenerem”, etc, etc. Aqui, o carcereiro é chamado de plantonista – e
são aqueles homens de branco sobre os quais Rogério se referiu um
dia, há pouco tempo. Aqui, nesta vida comunitária, a barra é pesada,
como eu gosto. Minha enfermaria tem 12 camas ocupadas por doentes
mentais de nível que poderia muito bem ser classificado pelo IBOPE
como pertencentes às classes C, D, Z. Estamos aí! Em cana. O chato é
a comida, que é péssima (...) Eles não deixam ninguém ficar em paz
aqui dentro. São bestas. Não deixam a gente cortar a carne com faca
mas dão gilete pra se fazer a barba. Pode me dar um cigarro? Eu só
tenho um maço, eu tenho que pedir porque senão acaba. Pode me dar
as vinte?” (TORQUATO NETO, 1973).
87
Uma das críticas que Oswaldo faz ao trabalho é a qualidade do pessoal de enfermagem e a situação de
hotelaria.
70
SEGUNDA PARTE: ECOS DA REFORMA NO ENGENHO DE
DENTRO
71
Capítulo 5: A reconstrução da forma: a reforma psiquiátrica não
modifica o conteúdo manicomial.
No final da década de 1970, o modelo de privatização da saúde emitia
sinais de esgotamento no bojo da crise de todo o modelo do "milagre econômico"
da ditadura. No plano político, tem início o processo de abertura do regime
autoritário. No contexto das lutas setoriais contra o regime (associações de
bairros, sindicatos, igreja, movimento negro, partidos políticos saindo da
clandestinidade imposta, setores profissionais, entre outros), a área da saúde, no
movimento conhecido como reforma sanitária, articula as denúncias sobre o falido
modelo de saúde pública do país, mobilizando a mídia e sensibilizando a opinião
pública.
Antes de examinar a situação específica da saúde mental nos anos 80, é
necessário olhar no contexto, nesta época, dois marcos que expressaram a vitória
dos ideários do movimento da reforma sanitária. A VIII Conferência Nacional de
Saúde, em 1986, e a instalação, um ano após, da Assembléia Nacional
Constituinte, que incluiria na nova Constituição Brasileira, de 1988, os princípios
fundamentais da reforma sanitária proposta pela conferência. A VIII Conferência
reuniu, em Brasília, quatro mil pessoas, dentre elas, pela primeira vez,
representantes da comunidade organizada. Propunha os princípios que, no ano
seguinte, geraram a implantação do Sistema Unificado e Descentralizado de
Saúde (SUDS). Como primeiro princípio, a “unificação dos serviços de saúde”:
instituições de diversas naturezas, municipais, estaduais, federais, deveriam ser
unificadas institucionalmente, para que o Ministério da Saúde fosse o gestor da
reforma sanitária; em segundo lugar, “a descentralização dos serviços de saúde”:
previa a transparência e a criação de conselhos de saúde para a execução local;
em terceiro, “a hierarquização de serviços e cuidados de saúde”: este princípio se
opõe à tendência dominante, até então, da valorização dos atos tecnológicos em
detrimento dos programas dirigidos às enfermidades “banais” da população; por
72
último, “a participação popular nos serviços de saúde”: propondo a participação da
comunidade nos programas de saúde a ela dirigidos.
Estes quatro princípios vão ser materializados, após intensa discussão na
Assembléia Nacional Constituinte, na Constituição Brasileira de 1988, que
implanta o Sistema Único de Saúde (SUS) e define Saúde como direito de
cidadania e dever do Estado.
“No contexto desta nova definição, a noção de saúde tende a ser
socialmente percebida como efeito real de um conjunto de condições
coletivas de existência, como expressão ativa – e participativa – do
exercício de direitos de cidadania, entre os quais o direito ao trabalho,
ao salário justo, à participação nas decisões e gestão de políticas
institucionais, etc. Assim a sociedade teve a possibilidade de superar
politicamente a compreensão, até então vigente ou socialmente
dominante, de saúde como um estado biológico abstrato de
normalidade (ou ausência de patologias)” (LUZ, 1994-A; 136/7).
É no calor deste debate nacional, com transformações muito rápidas para
situações há muito cronificadas, típicas de um período de mudança de um regime
autoritário para uma democracia, que o hospício é acordado.
Na saúde mental, é de dentro do adormecido manicômio do Engenho de
Dentro que a crise irrompe. Uma significativa quantidade de jovens psiquiatras,
ligados ao movimento da reforma sanitária, que atuam como bolsistas nos
hospitais psiquiátricos da Divisão Nacional de Saúde Mental (DINSAN)88, no Rio
de Janeiro,
são demitidos, em 1978, pelas denúncias que faziam sobre o
abandono e a situação de violência vividos pelos pacientes psiquiátricos. Esta
crise tem intensa repercussão na mídia e é hoje considerada, por vários autores,
como um marco responsável pelas mudanças dela decorrente.89 Como resultado
deste evento é organizado o Movimento dos Trabalhadores em Saúde Mental
(MTSM), com participação decisiva na Reforma Psiquiátrica brasileira (RPb).
No mesmo ano acontecem dois Congressos na área psi
de enorme
importância para o movimento deflagrado. Em Camboriú, Santa Catarina, o V
Congresso Brasileiro de Psiquiatria é marcado por posições políticas avançadas,
que contrastam com o conservadorismo da Associação Brasileira de Psiquiatria.
88
Órgão do Ministério da Saúde que substituíra o antigo Serviço Nacional de Doenças Mentais (SNDM) pelo
decreto 66.623 de 1970.
89
Paulo AMARANTE, Benilton BEZERRA JR ., Jurandir Freire COSTA, Joel BIRMAN, Pedro Gabriel DELGADO, entre
outros, em obras citadas ao longo do texto.
73
Neste congresso, as recomendações para a assistência psiquiátrica estão
intimamente ligadas às reivindicações de maiores liberdades sociais e políticas no
Estado brasileiro, transferindo o eixo de ação da doença para a saúde mental.
No Congresso de Psicanálise, ainda em 1978, no Rio de Janeiro, a
presença de Franco Basaglia, Félix Guattari, Robert Castel e
Goffman,90
conhecidos pelas obras que influenciaram a nova geração de psiquiatras e
psicólogos, agora denominados trabalhadores em saúde mental, foi fundamental
no direcionamento do MTSM à Reforma Psiquiátrica brasileira.
A situação da saúde mental no Brasil, deteriorada pela política pública
examinada no capítulo anterior, que aqui é denunciada pelo movimento
insurgente, pode ser assim resumida:
“...o quadro de assistência no país era lamentável. Resumia-se aos
ambulatórios da Previdência, aos macro-hospitais do Ministério da
Saúde, no Rio, aos asilos das Secretarias de Saúde e às inúmeras
clínicas privadas conveniadas, de modo geral superlotadas e com alto
grau de mortalidade. A internação indiscriminada seguida de
sucessivas reinternações era a regra. A cronicidade dos pacientes era
tomada como evolução natural do quadro patológico. Praticamente
inexistiam dispositivos assistenciais intermediários. Nos ambulatórios,
repetiam-se, em tom diferente, os mesmos processos de cronificação e
uso excessivo de medicamentos. Embora houvesse, desde os anos 60,
uma política oficial de saúde mental, inspirada no preventivismo e
consubstanciada em diversos documentos que determinavam uma
rede assistencial ampla, integrada e com recursos múltiplos, não havia
efetiva preocupação com o setor” (BEZERRA JR., 1994; 174/5).
A política oficial de saúde mental referida na citação acima foi proposta na
VI Conferência Nacional de Saúde, em 1977, com a criação do Plano Integrado
de Saúde Mental (PISAN), “baseado na matriz teórica da Psiquiatria Comunitária
norte-americana,
parcialmente
financiado
com
recursos
de
Fundações
internacionais, que defende extensa ambulatorização do sistema" (...) Este plano
propunha também a "descentralização e interiorização dos cuidados psiquiátricos
através
do
treinamento
de
médicos
generalistas,
assistentes
sociais
e
enfermeiros; identificação precoce das populações de risco para intervenção
preventiva; e a criação dos Centros Comunitários de Atenção” (SAMPAIO, 1982;
90
Conf. BEZERRA JR. (1994). O autor chama à atenção para a presença anterior, no Rio de Janeiro, de Foucault
e do retorno de alguns destes pensadores ao país, numa marcante contribuição para a Reforma Psiquiatria
brasileira.
74
109). O autor chama à atenção que o PISAM aconteceu de melhor forma no
nordeste do país. Nos grandes centros urbanos, apenas ampliou a atenção
ambulatorial, com os vícios e distorções já referidos. Em 1979, uma portaria
ministerial vincula a contratação de novos leitos psiquiátricos à oferta de maior
assistência na rede de ambulatórios.
Esta política amplia a crise da Previdência Social. Nos anos da crise do
modelo econômico, as doenças psiquiátricas ocupam três lugares, entre os cinco
primeiros, nos diagnósticos responsáveis por auxilio-doença.91
No início dos anos 1980, o mecanismo conhecido por Co-gestão transfere
recursos da Previdência ao Ministério da Saúde para um reforço das Ações
Integradas de Saúde. No Rio de Janeiro, os Hospitais da DINSAM recebem estes
recursos para enfrentar a crise interna e a externa, que ameaçava de falência o
sistema. A Co-gestão dos hospitais tinha por objetivo a redução de custos, em
primeira instância, e, para isto, a modernização gerencial.
Para SAMPAIO (1982) “o Ministério da Previdência, em crise, coopta planos
dos sanitaristas e dos planejadores lotados no Ministério da Saúde, articula com
seus próprios quadros progressistas, e passa a viabilizar, financeira e
politicamente, as Ações Integradas de Saúde e certo renascimento do sistema
público de cuidados".
Estes sanistaristas e planejadores do Ministério nos
hospitais psiquiátricos do Rio de Janeiro, segundo BEZZERRA JR., foram originados
pela situação conjuntural da crise denunciada pelo MTSM: “pressionado pelas
péssimas condições de funcionamento dos hospitais, o Ministério da Saúde
contrata, a título precário, através da Campanha Nacional de Saúde Mental,
técnicos para suas unidades. Pela primeira vez desde a década de 50, entra nos
hospitais uma grande quantidade de profissionais cuja formação estava marcada
pela resistência política ao autoritarismo e pela crítica teórica ao modelo asilar”
(BEZERRA JR., 1994; 175).
No início da década de 1980 inicia-se o movimento de Reestruturação da
Assistência Psiquiátrica nos Hospitais do Ministério da Saúde, no Rio de Janeiro.92
91
Dados do primeiro semestre de 1975: 1º lugar: Neuroses; 2º lugar: Osteoartrites; 3º lugar: Hipertensão; 4º
lugar: Epilepsias e 5º lugar: Esquizofrenias (SAMPAIO, 1982).
92
A partir deste momento começa a minha participação pessoal no movimento da Reforma Psiquiátrica. De
agora em diante são consultados os documentos da época, como fonte primária, e a memória, com as
75
Um documento da época fala do contexto em que esta estruturação estava
acontecendo:
“Em fins de 1980, data da assinatura da portaria interministerial que
estabeleceu o regime administrativo de co-gestão entre o Ministério da
Previdência e Assistência Social (MPAS) e o Ministério da Saúde (MS),
a administração de algumas unidades hospitalares, até então sob a
responsabilidade do MS, passou a ser feita também pelo MPAS. Tal
portaria foi assinada com finalidades muito especiais e objetivas.
Procurava-se, desta forma, abrir as perspectivas formais necessárias, a
fim de alocar os recursos financeiros que viabilizassem a recuperação
assistencial das unidades públicas, então já em estado de avançada
decomposição, graças ao completo abandono que sofreram em
decorrência das políticas anteriores de saúde.”
“Essa medida administrativa, mesmo que beneficiasse diretamente a
clientela usuária do serviço público, não se fez com resultado de uma
súbita ‘conscientização’ por parte dos órgãos governamentais. Se
assim fosse, respeitando as inúmeras convocações de protesto, os
mesmos órgãos do governo não teriam deixado a assistência pública
submergir no abandono e descaso como ocorreu. Não teriam deixado
as enfermarias públicas permanecerem no horror a que chegaram por
sua miséria material e humana, como também não teriam deixado
asilos funcionando em condições desumanas como masmorras sem
condições mínimas de cuidado, exceto na função de zelar pela
segregação e pelo afastamento daqueles que sempre foram
indesejáveis pela sociedade. Triste forma de gerir os gastos da União e
de dirigir a política de saúde mental!”
“Acreditar que tal mudança se deu ao acaso e desfazer a importância
que o jogo de interesses tem como força motriz de mudanças sociais.
Em nosso entender, a mudança ocorrida na política de saúde mental a
partir do acordo de co-gestão se deveu ao pesado ônus que a
Previdência Social vinha cada vez mais trazendo ao bolso da União.”
“A assinatura pelo Instituto Nacional de Assistência Médica e
Previdência Social (INAMPS), em novembro de 1980, de acordos de
co-gestão com os hospitais psiquiátricos do MS, iniciou um plano de
integração interinstitucional para serem executadas as transformações
necessárias desses grandes hospitais-asilos, no sentido de
armadilhas traiçoeiras da sua inevitável deformação afetiva, passa a interferir nos fatos narrados. Fui
contratado pela Campanha Nacional de Saúde Mental em dezembro de 1981, na Colônia Juliano Moreira.
Naquela unidade, participei do seu primeiro Núcleo de Planejamento, na honrosa companhia de Pedro Gabriel
Delgado, César Vitor Duarte e Walnei Ferreira de Moura. Dirigi o Centro de Reabilitação Psicossocial até
1984, quando fui transferido para o Centro Psiquiátrico Pedro II. Nesta Unidade, na qual permaneço até hoje,
ocupei vários cargos gerenciais e integrei uma equipe, da qual fizeram parte: Paulo Amarante, Benilton
Bezzerra Jr., Jurandir Freire Costa, José Jackson Coelho Sampaio, Carlos Augusto de Araújo Jorge, Luis
Carlos Wanderlei, Sheila Lemos Lima, Ariadne de Moura Mendes, Esther de Rezende Bussman, Cândido
Espinheira, Sônia França, Sérgio Munk, João Paulo Hidelbrandt, Annibal Amorim, Luis Carlos Rangel, entre
tantos outros que contribuíram para a Reorientação da Assistência Psiquiátrica daquela Unidade.
76
simplesmente poderem atender aos interesses da Previdência Social,
então preocupada em se desvencilhar da crise em que mergulhou.
Procurava-se através disso, priorizar a rede assistencial pública com
utilização máxima de sua capacidade de trabalho, a fim de aliviar as
distorções que o modelo assistencial centrado na contratação de
serviços particulares, vinha trazendo ao INAMPS. Partia-se do princípio
que a rede pública, ao contrário da rede privada, não incorreria nas
mesmas distorções, já que não se comprometeria com fins lucrativos.
Nessa política de contenção de despesas e remanejamento dos
recursos próprios a fim de minimizar o rombo da Previdência, o serviço
público pode finalmente vislumbrar novos horizontes, há muito
reivindicados tanto pelos servidores como pelos usuários. Os primeiros
por terem sido anos a fio impedidos de executar políticas assistenciais
mais amplas e renovadoras, já que estas não se encaminhavam pela
rede pública. Os segundos, porque com a reestruturação da
assistência, passaram a ter pelo menos a promessa de novas formas
assistenciais” (OLIVEIRA & REIS & GOLDENSTEIN, 1985).93
Em 1983 é publicado o primeiro Plano Diretor do Centro Psiquiátrico Pedro
II (CPPII) com o nome de Plano Diretor para Reorientação da Assistência
Psiquiátrica do CPPII. O Plano previa um eficiente sistema de atenção extrahospitalar como parte de “soluções poupadoras de recursos capazes de enfrentar
a angustiante questão dos crescentes gastos com o setor de saúde”.94 Tinha
como objetivos: executar toda e qualquer atividade terapêutica por intermédio de
equipes multidisciplinares; diversificar o arsenal terapêutico, ampliando o leque de
ofertas; priorizar e enfatizar recursos e técnicas extra-hospitalares, aumentando
sua capacidade resolutiva; redimensionar os serviços de internação, utilizando-os
como último recurso, diminuir o tempo de internamento (taxa de permanência),
para devolver o paciente ao seu meio social; criar meios para promover
criticamente a reintegração de sua clientela com a família, trabalho e comunidade;
integrar,
racionalizar
e
otimizar
procedimentos,
métodos
e
técnicas
administrativas; implantar amplo e inovador programa de desenvolvimento de
recursos humanos; desenvolver estudos e pesquisas em Saúde Mental para
qualificar a prática assistencial e fazer evoluir o conhecimento sistematizado
existente; desenvolver programa de treinamento em serviço, conveniado com
Universidades; contribuir para um programa de Saúde Mental, integrado,
93
Note-se a postura política que todo o grupo de novos profissionais, sem vínculos estáveis, assumia em
relação ao nível central do MS. Esta postura não deixa de provocar níveis de tensão.
94
Plano Diretor do CPPII, 1983.
77
regionalizado e extensivo para toda sua população de referência (na época, 2
milhões e 500 mil habitantes); iniciar trabalho permanente de integração com a
comunidade (incluindo associações de moradores, de profissionais, grupos de
ajuda mútua, religiosos, etc.), respeitando as práticas informais ditadas pela
cultura popular.
Estes onze objetivos se desdobram em vinte e duas metas com um
calendário de curto, médio e longo prazo. O Plano Diretor preocupa-se, também,
para alcançar seus objetivos na reordenação administrativa, com a implantação
de um organograma que divide suas atividades em cinco áreas: a) atividades de
direção e assessoramento; b) atividades de ensino e pesquisa; c) atividades de
documentação e auditoria médica; d) atividades administrativas, propriamente
ditas; e) atividades assistenciais.
O fluxograma das atividades assistenciais propunha um sistema de “vasos
comunicantes”, sendo a porta de entrada
o Ambulatório e o Pronto Socorro
Psiquiátrico. O sistema previa ainda uma internação breve em contraposição às
internações prolongadas.
O Plano marca, de forma enfática, a transformação assistencial, centrada
na equipe multidiscilinar e a busca de um novo modelo técnico, assim como a
necessária reforma administrativa para viabilizar o projeto:
" É importante observar que o trabalho em equipe implica numa
compreensão de que as reações psicopatológicas requerem avaliação,
diagnóstico e tratamento adequados à multifatoriedade que as
determinam. A equipe é mais que um espírito de trabalho, é uma forma
de saber e de prática deste saber. O paciente é visto de maneira
dinâmica dentro do seu contexto familiar e sócio-cultural, sujeito a
influências diversas em seus contatos interpessoais e ambientais.
Conclui-se, portanto, que o trabalho em equipe multidisciplinar traduzse por uma mudança de postura frente à doença e o paciente, onde o
'episódio' psicopatológico surgido em seu processo de vida necessita
de uma compreensão e de um apoio estruturado para auxiliá-lo no
desenvolvimento de potencialidades de saúde". (pg. 15)
"O setor público da nossa psiquiatria brasileira tem diante de si um
desafio: o de elaborar e tornar viável um novo modelo de assistência
que consiga se contrapor à prática lucrativa das empresas privadas e
se apresentar como alternativa ao modelo liberal. Em outras palavras
não se trata apenas de agilizar as instituições prestadoras de serviço
nesta área para que possam produzir mais atendimentos, mas
78
efetivamente construir uma forma diferente de tratar o fato psiquiátrico
tomado em sua dimensão coletiva". (pg. 60)
"(...) é oportuno considerar a questão do Regimento Interno do CPPII,
que está em vigor desde o ano de 1944. Este Regimento, de algum
tempo para cá, vem influenciando de forma retrógrada todas as ações
administrativas no âmbito do Complexo Hospitalar, o que, direta ou
indiretamente, se faz sentir a nível das atividades assistenciais. O
tempo e as próprias práticas encarregaram-se de torná-lo obsoleto e
arcaico". (pg. 69) PLANO DIRETOR DO CPPII (1983).
No decorrer da década de 1980 até o processo da democratização
definitiva do país - na eleição direta para presidente, são vários os documentos e
outros Planos95 propostos ao Centro Psiquiátrico Pedro II. As mudanças, tanto em
referência aos objetivos, quanto à estrutura administrativa
são mínimas e
relativas ao contexto imediato. As observações feitas ao Plano Diretor de 1983
tentam dar conta dos movimentos da instituição no período examinado.
O que chama à atenção nas aspirações dos planejadores da época é a
amplitude do leque de objetivos, como se fosse possível realizar todas as
urgências, de imediato, que se acumularam num longo período de esquecimento
a que o infortúnio da loucura ficara trancado nos corredores e guardado por
chaves e muros da exclusão. No entanto, parecia ser a intenção distribuir todas as
cartas do baralho para que o jogo começasse o mais depressa possível.
Claro que objetivos imperativos tipo “criar meios de promover criticamente a
reintegração da clientela com famílias, trabalho e comunidade “, tão comuns em
documentos oficiais da época, são inócuos. Primeiro, porque a meta apontada
não possui o caminho a ser percorrido para o objetivo. Falta o guizo no gato.
Depois, porque o objetivo é muito ambicioso, contendo quase que todos os
desafios impostos mais tarde à Reforma Psiquiátrica para os novos dispositivos, e
que estavam sendo oferecidos a uma população de crônicos, sem contato com o
mundo externo, há dezenas de anos perdidos. Poderíamos fazer a crítica, neste
momento, aos vários objetivos traçados naquele momento. Mas nos parece mais
vantajoso examinar entre os dois momentos, entendendo os objetivos propostos
no campo das utopias, quais as transformações ocorridas, no possível contextual:
os recuos na continuidade da proposta, por crises provocadas pelas tensões entre
95
Listados na fontes documentais.
79
grupos internos e com a hierarquia ministerial; as propostas que se mostraram
inadequadas quando submetidas ao “teste de realidade”.
Poderíamos colocar no saldo positivo do período a organização do
atendimento extra-hospitalar. Em 1981, o atendimento ambulatorial, irregular,
insuficiente, espalhado nas várias unidades do complexo do CPPII é centralizado.
Em 1985 ele é estruturado dentro do modelo de hierarquização, regionalização e
apresenta uma proposta clínica ousada. Pela primeira vez é organizado um
atendimento público, de massa, com referencial psicanalítico. Sob a supervisão
de Jurandir Freire Costa e Benilton Bezerra Jr., iniciou-se um atendimento grupal
para as chamadas “queixas difusas” de uma população de baixa renda, o que
resultou numa reflexão teórica, através de uma pesquisa com resultados
significativos para os desafios da época. Desmedicalizou-se um dispositivo
complicado do aparelho psiquiátrico. A abertura de vários e diferentes
atendimentos em grupo, a atenção ao paciente por uma equipe multidisciplinar, o
atendimento domiciliar e comunitário, a supervisão e discussão de casos em
equipe incrustaram na proposta técnica o diferencial característico que marcou o
dispositivo em transformação.
Após a “crise de 1988”, que será abordada posteriormente, o Ambulatório
Central sofre um retrocesso gradativo e constante, onde a proposta anterior não
pode mais ser reconhecida. Entretanto, após 1988, dois novos dispositivos vão
aumentar o saldo positivo das experiências daqueles tempos: a “Casa d’Engenho”
e a “Enfermaria de Portas Abertas”96 vão inaugurar a experiência do Hospital-Dia
como um dispositivo extra-hospitalar de atenção em saúde mental, anterior à
proposta dos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) ser implantada na cidade
do Rio de Janeiro.
No coração do manicômio uma enfermaria chegou a desenvolver uma
experiência clínica, também sob a supervisão de COSTA e BEZERRA JR., a enfermaria
masculina 2 do Hospital Gustavo Riedel, com formas de tratamento radicalmente
96
Esta, depois chamada “Espaço Aberto ao Tempo”, vai aproximar as linguagens das artes plásticas à
terapêutica com psicóticos, diferente da proposta de Nise da Silveira, com uma experiência única e profícua
em Saúde Mental, sob a coordenação do médico e artista plástico Lula Wanderley. Os fundamentos desta
inusitada experiência clínica está documentada em WANDERLEY (2001). A Experiência da Casa d'Engenho está
relatada em JORGE (1997).
80
diferente da experiência asilar do modelo anterior, mas que não contaminou a
maioria das enfermarias tradicionais do CPPII, mesmo nesta época de mudanças,
e foi extinta com a chamada “crise de 1988”.
Talvez o projeto mais bem sucedido desta época tenha sido o lugar onde
as transformações na clínica estavam sendo lapidadas: o Centro de Estudos,
definido no Plano Diretor de 1983 como núcleo responsável pelo ensino e
pesquisa.
“Os serviços onde estas experiências tinham lugar passaram a atrair
progressivamente estudantes, novos profissionais e professores do
universo psi interessados em encontrar fora do estagnado mundo da
academia o movimento, a inquietação, a inovação. Foram sendo
criados cursos de extensão e especialização para profissionais de
diversas áreas, voltados para formação de recursos humanos aptos a
enfrentar os desafios que a realidade asilar impõe e que as salas de
aula não conseguem reproduzir. Este é um ponto seguramente dos
mais importantes na trajetória da reforma psiquiátrica no país nesta
década. Deve-se à consolidação dos serviços públicos como local de
ensino e formação o fato de que foi possível avançar na reprodução de
quadros capazes de atuação crítica, apesar das enormes oscilações
políticas no período e do conservadorismo, quando não do franco
reacionarismo psiquiátrico da maioria dos espaços acadêmicos”
(BEZERRA JR., 1994; 178).
Não foi diferente no CPPII. Apesar do treinamento em serviço, diversas
vezes oferecido, só atingir uma pequena parte dos servidores, com maior
aceitação entre os novos contratados, o Centro de Estudos transformou-se em um
lugar de formação de quadros em saúde mental. O Curso de Especialização em
Saúde Mental, por exemplo, oferecido aos trabalhadores em saúde mental de
nível superior, equivalente a um curso de Residência, vem formando novos
quadros a cada ano e são estes a maioria dos contratados por concurso público
que hoje reforçam a instituição.
Ainda contam, no lado positivo, a modernização administrativa e as
“atividades de documentação e auditoria médica” propostas no Plano Diretor. O
sistema de custos e de informação, montados nesta época, impulsionaram as
reformas propostas de forma a garantir sua credibilidade junto aos órgãos de
controle e avaliação do Ministério da Saúde. A modernização administrativa pode
também ser observada como um componente impulsionador da proposta técnica
no trabalho executado por José Jackson Coelho SAMPAIO, na direção de uma
81
unidade do CPPII - a Unidade Hospitalar Professor Adauto Botelho,
e está
minuciosamente descrita em sua dissertação de mestrado ( SAMPAIO, 1982).
Por outro lado, os objetivos do Plano Diretor estavam condicionados pelas
tensões, inerentes aos embates políticos característicos desta época. Estas
tensões estão situadas em dois campos: entre os planejadores, quadros
dirigentes da nova geração, na sua maioria recrutada no interior do movimento
dos trabalhadores em saúde mental (MTSM) e “ocupando espaço” no aparelho de
Estado, e a hierarquia dominante deste aparelho pressionada pelo poder dos
“donos de hospitais privados”, representados na Federação Brasileira de Hospitais
(FBH). No outro campo, as querelas e divergências no próprio interior do
movimento de renovação, divididos, numa formulação grosseira, entre “políticos” e
“técnicos”, ou seja, os “engajados” e os “assistencialistas”.
Os embates, no primeiro campo, traziam à baila toda a contradição do
sistema. O modelo que se estava a combater, na reformulação da assistência
psiquiátrica, era o modelo da privatização da saúde, exacerbado durante o
“milagre econômico” da ditadura e que se havia exaurido. Os interesses do setor
privado haviam sido atingidos no alvo: o lucro. Basta o exemplo da
regulamentação das internações psiquiátricas na cidade do Rio de Janeiro: antes
da regulamentação, que estabeleceu pólos de internações nos hospitais públicos,
como reguladores do sistema, a internação psiquiátrica era feita numa ampla
porta de entrada: consultórios ambulatoriais do INAMPS, onde, quase sempre, o
médico que emitia a guia de internação era funcionário ou sócio da clínica
conveniada direcionada. Com a regulamentação das internações pelos hospitais
públicos, houve uma redução imediata de 30% das internações em clínicas
privadas. A reação se fez pública e atingindo politicamente os “comunistas”
infiltrados no aparelho de Estado. No Congresso de Psiquiatria de Belo Horizonte,
a Federação Brasileira dos Hospitais (FBH) se apresenta como uma entidade que
está
“...lutando por seus interesses legítimos, que em nada se afastam dos
interesses do país. A referência é necessária e mesmo indispensável,
porque, como todos sabem, os interesses de grupos mais ou menos
encapuçados, tem se servido de todos os meios de divulgar para tentar
82
persuadir a opinião pública e as autoridades de que é preciso destruir o
que chamam pejorativamente de ‘empresas de saúde’. Tais grupos
são, uns motivados por tendências estatizantes que redundariam, no
que concerne à psiquiatria, na volta aos superados macro-hospitais
públicos, outros, motivados pelo insopitável anseio, ainda que justo e
compreensível, de conseguir emprego ou campo de ação profissional,
através de instituições que já são conhecidas no jargão psiquiátrico
pelo apelido de mini-clínicas e que redundariam na volta à medicina de
consultório, com toda sua inadequação ao atendimento de massas; e,
finalmente, os grupos interessados nos indizíveis propósitos da ‘contracultura’ anarquizante. Além destes, restam os grupos que propõem a
via socialista, ao menos nos matizes da social-democracia, a qual
pressupõe entretanto a socialização conjunta do ensino, dos meios de
divulgação, dos serviços sociais em suma, e não só da medicina”.97
O texto, hoje ridículo, manifesta a virulência do setor privado contra a
reforma que estava acontecendo. Em alguns momentos ele pode ser lido como
dirigido diretamente contra o Plano Diretor e os resultado das reformas no CPPII.
A FBH se notabiliza, neste período, por centrar seus ataques à reforma na
psiquiatria. Nos anos 70, as internações psiquiátricas só perdiam, nas internações
privadas, para parto. E o setor privado tinha amplo poder de pressão junto ao
Congresso Nacional e ao Ministério da Saúde. É neste jogo de forças que as
tensões acontecem. Das inúmeras crises vividas neste período, vamos destacar
duas, dado que suas causas envolviam interesses da Presidência da República
que ainda estão muito presentes na memória nacional, e tendo em vista o corte
político de sua representação no projeto assistencial da instituição.
A primeira remonta à negociação política empreendida por José Sarney
para conseguir mais um ano na presidência do Brasil, embora viesse de uma
eleição indireta e vivêssemos o clamor pela primeira eleição direta depois dos
anos de chumbo da ditadura. Neste contexto, as alianças buscadas por Sarney
foram com os setores mais atrasados do quadro político nacional. O Ministério da
Saúde coube a um obscuro ministro sensível às pressões da FBH. Estamos no
que se convencionou chamar “crise de 1988”. A direção do CPPII é entregue a um
insignificante professor do departamento de psiquiatria da Universidade Federal
Fluminense. A sua intervenção é avassaladora. Menos porque estivesse ligado
aos interesses privados, mas, muito mais, pelas concepções no campo da
97
“Assistência Psiquiátrica Brasileira: realidade e perspectivas”, documento da Federação Brasileira de
Hospitais apresentado ao Congresso de Psiquiatria de Belo Horizonte.
83
psiquiatria. O parecer da Comissão de Defesa dos Direitos Humanos da
Assembléia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro, reunida em 14 de junho de
1988 destaca que esta intervenção no Centro Psiquiátrico Pedro II
“teria acarretado o retorno a práticas retrógradas e ultrapassadas tais
como confinamento de pacientes, medicalização excessiva e uso
indiscriminado de eletrochoques, assim como a desativação da
enfermaria de crise e de oficinas terapêuticas.
“[o interventor] passou a imprimir uma orientação oposta à que vinha
sendo seguida. A filosofia assistencial foi totalmente alterada e sob o
pretexto de que a loucura é uma questão meramente médica passouse a utilizar como práticas terapêuticas o uso excessivo de
medicamentos e a eletroconvulsoterapia. O confinamento de pacientes
foi outra prática inaugurada na instituição, com a justificativa do
controle da sexualidade. Como corolário da nova política e atestando o
clima de terror instalado, três supervisores foram demitidos e quinze
técnicos (quase todos não-médicos) foram colocados numa lista de
“prescindíveis” para serem demitidos, o que só não aconteceu porque a
Colônia Juliano Moreira resolveu solicitar para lá a transferência dos
mesmos. Por outro lado, através de ameaças de demissão, um
ambiente de perseguição foi instaurado, com o objetivo de evitar
qualquer discussão técnica ou política, ao mesmo tempo que o
Gabinete de Planejamento, instância estratégica na execução da
política do CPPII, foi desativado e os programas de capacitação de
recursos humanos foram deixados de lado. As relações com as clínicas
privadas conveniadas com o INAMPS foram invertidas. Numa atitude
de clara mercantilização da doença passou-se a privilegiar a internação
nessas clínicas, mesmo com vagas no CPPII. Para tal, o Pronto
Socorro Psiquiátrico que vinha funcionando como barreira às
internações desnecessárias, tanto no CPPII como nas casas de saúde
conveniadas, foi desestruturado voltando a funcionar nos moldes
antigos (contenção ou medicalização generalizadas)”.98
O que mais chama à atenção nesta intervenção foi seu curto período - não
chega a um ano - contraposto ao seu efeito devastador. Garantido o ano extra de
98
“Comissão de Defesa dos Direitos Humanos – Crise no Centro Psiquiátrico Pedro II – Parecer da
Comissão”. Deputada Lúcia Arruda – relatora, Deputados: Alberto Brizola, Alice Tamborindeguy, Heloneida
Stuart, e Rubens Bomtempo – membros. 14 de junho de 1988. Neste mesmo relatório, o depoimento de João
Paulo Hidelbrandt esclarece que o interventor, antigo dirigente do CPPII, no início dos anos 80, teria [naquela
época] “encaminhado para o Serviço Nacional de Informações uma lista de nomes, de profissionais do
hospital, que seriam esquerdistas, que teriam invadido o hospital e que a direção da época estaria de acordo
com estes comunistas, estes esquerdistas...”. Como componente da mesma crise, a intervenção na Colônia
Juliano Moreira foi feita com intervenção do exército para a posse do interventor e evitar as manifestações dos
trabalhadores em saúde mental. Ainda sobre esta crise, coberta com destaque na imprensa, o “Jornal da
Resistência” número único, elaborado pelo movimento de resistência traz uma charge de Ricardo Cruz com
uma caricatura de Hitler, travestido de interventor do CPPII, com a legenda: “Eugenia, aqui me tens de
regresso...”. E transcreve o artigo de Jurandir Freire Costa, publicado no Jornal do Brasil, “Faca no Coração”,
sobre um paciente que impedido de ver seus terapeutas comete o suicídio.
84
mandato na presidência, Sarney recompõe as alianças. O ministério da Saúde
volta ao projeto interrompido. A maioria dos técnicos afastados no CPPII volta
para a direção da instituição, na intenção de retomar o projeto anterior. Mas o
hospício tinha renascido de forma assustadora. Este curto período de intervenção
conseguiu devastar anos de vagarosa transformação. Era preciso começar de
novo...
A segunda grande crise política com reflexos na instituição é bem mais
recente. Na pressa de modificar a constituição, para conseguir o segundo
mandato presidencial, Fernando Henrique Cardoso opera de modo similar a
Sarney. Reflexo na instituição: substituição de uma direção eleita, no meio de um
mandato, para colocar no cargo um diretor que usou a instituição para uso
inescrupuloso da política partidária. Nesta crise vamos chegar mais tarde, pois a
direção eleita já era fruto de outras tensões no campo das querelas e divergências
entre os combatentes do campo da reforma psiquiátrica.
Em 1987 acontece a I Conferência Nacional de Saúde Mental e o II
Encontro dos Trabalhadores de Saúde Mental. Segundo BEZERRA JR. no artigo
citado, a Conferência discutiu as dificuldades da reforma dentro do aparelho
estatal; o Encontro marca uma nova etapa do movimento com o lema “Por uma
sociedade sem manicômios”, pregando ações de forma ampla no interior da
própria cultura. Para o autor, a primeira posição estava se esgotando, porquanto
“a desospitalização, em si mesma , em nada abalou os alicerces da cultura
manicomial”, enquanto “uma sociedade sem manicômios” deslocava o conceito de
“desinstitucionalização” do manicômio para desinstitucionalizar a doença mental
na sociedade. Neste ponto há uma inflexão no discurso do movimento: “vai se
passando de uma fase em que a direção do discurso reformista é predominante
contra o manicômio para outra em que a psiquiatria é inserida no campo social
como aparelho regular de relações subjetivas, que devem ser, elas mesmas,
analisadas em suas determinações” (BEZERRA JR., 1994; 181).
É neste contexto que acontece a “crise de 1988” no Centro Psiquiátrico
Pedro II. De certa forma, a repercussão que ela teve na mídia, nas organizações
sociais e políticas, deveu-se ao deslocamento que estava em operação no interior
85
do movimento. No entanto, este deslocamento ainda era insipiente. Entretanto, a
sociedade mostrou-se solidária neste momento de crise. Era preciso uma
construção bem mais alicerçada, na qual novos dispositivos pudessem ser
concebidos na comunidade, dependendo dela, na sua concepção ideológica, para
criar no campo social o fluir das relações que a loucura pudesse estabelecer com
a sociedade sem a mediata intervenção do manicômio.
Em 1989, em Santos, SP, numa intervenção da Prefeitura no manicômio
local - a Casa de Saúde Anchieta, hospital particular - pode ser construída uma
rede de serviços de Atenção Diária, na comunidade, provocando um modelo novo
de atenção em Saúde Mental no território de uma cidade.99 Nesta ação, pode-se
observar dois aspectos relevantes. Primeiro, o poder público executa uma ação de
conseqüências ímpares até então no Brasil: a intervenção numa casa de saúde
particular para executar a reforma psiquiátrica no manicômio, e a construção de
uma rede de serviços alternativos, criando novos dispositivos em Saúde Mental.
Segundo, a construção destes dispositivos na comunidade com a participação
popular (nas associações, rádio comunitária, centros culturais, etc.), mudando o
cenário do acontecimento do adoecer e do tratamento da doença mental.
Estes fatos, entre tantos outros acontecimentos do período, são
necessários para emoldurar o quadro institucional que se desenrolava no CPPII.
Após a intervenção que gerou a “crise de 1988”, a instituição é retomada
por parte da equipe anterior. Um número significativo de quadros do movimento,
responsáveis pela proposta que vinha sendo executada, não retorna ao CPPII, até
coerente com os novos rumos tomados pelo MTSM. Na sua maioria são
absorvidos pelas instituições acadêmicas, onde até hoje desenvolvem atividades
relacionadas à reforma psiquiátrica.
No movimento “pré-crise”, o coração do manicômio não foi atingido pela
reforma acontecida na instituição. O Pronto Socorro Psiquiátrico e as enfermarias
tradicionais seguiam inatingíveis pelo grande esforço que vinha acontecendo no
atendimento extra-hospitalar e no desenvolvimento do ensino e pesquisa. O velho
hospício estava dividido em dois: a face moderna e progressista da reforma
99
Sobre esta experiência ver NICÁCIO (1994).
86
convivia com a face cinzenta da psiquiatria. Esta parecia ter vida própria e seguia
preceitos que não estavam sendo prescritos, mas se repetiam como gestos
automáticos codificados na história do passado da praia Vermelha e da velha
Colônia de Alienados do Engenho de Dentro.
O movimento pós-crise começa com o sentimento de começar de novo.
Mesmo o que tinha avançado, com a crise, recuou. Arregaçar mangas, refazer
canteiros, semear o trigo, separar o joio, são movimentos necessários para quem
tem pressa do pão.
Considerando o contexto da reforma acontecendo lá fora, dois movimentos
são impulsionados neste retorno. Criar novos dispositivos que deslocasse a
atenção em saúde mental das enfermarias do manicômio: acontecem os
Hospitais-Dia,100 já referidos, com a pretensão que, no futuro, eles fossem para a
comunidade e criassem uma rede social no território a ser conquistado. Institui-se
um “Conselho Diretor Tripartite”,
repetindo a representação dos seguimentos
exigidos nos Conselhos Municipais de Saúde, para a gerência do CPPII.
Retomam-se a modernização administrativa e as informações gerenciais.
Característica deste momento é a reforma da área física de alamedas,
parques e a substituição dos altos muros por grades, semelhantes à cerca de
jardins, juntamente com a aproximação dos programas desenvolvidos com a
comunidade do Engenho de Dentro. Há uma circulação da vizinhança no espaço
do
CPPII,
incentivando-se
a
participação
comunitária
nos
programas
desenvolvidos na Instituição. Não há espaços proibidos ao olhar de todos. O
horário de visitas é permanente e o familiar pode acompanhar a internação do seu
paciente. A porta de entrada é estruturada para um atendimento personalizado da
demanda. Para uma internação não era necessária a passagem na emergência.
Vários serviços começaram a experimentar uma proximidade maior com seus
clientes. Um fórum semanal discutia as mudanças da instituição, com a
100
Um dos Hospitais-Dia funcionava diretamente vinculado à Emergência Psiquiátrica, numa tentativa de
incluí-la na reforma. A este respeito, ver JORGE (1997). O Espaço Aberto ao Tempo é contemporâneo do
Centro de Atenção Psicossocial Luis Cerqueira, inaugurado em 1887 em São Paulo, reconhecido serviço de
atenção diária em saúde mental, que emprestou a sigla CAPS para outros serviços, em todo o país (ver
GOLDBERG 1994). O Espaço Aberto ao Tempo fez vários encontros com o CAPS Luís Cerqueira, discutindo
novos dispositivos em saúde mental.
87
participação de familiares e pacientes. Apesar da simplicidade destas ações,
permear o espaço, antes proibido, possibilitou uma mudança das relações
existentes. Em pouco tempo o colorido venceu o cinza.
A aparente ingenuidade das ações exigia uma vigilância redobrada de seus
atores. A maquiagem não apaga o fogo do dragão. Era preciso atravessar tempos
difíceis, esperar a redemocratização definitiva do país. Municipalizar o Centro
Psiquiátrico era um desejo levado a todas as Conferências Municipais de Saúde
pela equipe dirigente. Desenvolver ações de saúde mental na rede pública de
saúde do município era uma aspiração para a progressiva desativação do
manicômio.
Neste compasso de espera, apesar das tensões com a hierarquia
ministerial serem absorvidas, mesmo no atribulado governo Collor até o seu
impedimento,101 as tensões internas tomaram um rumo inesperado. O “Conselho
Diretor Tripartite”, sonho democrático e tentativa de envolver servidores e
comunidade no projeto, com o tempo passou de palco de pacto para arena de
disputas políticas. Se os interesses da comunidade e da direção em muitas vezes
pudessem ser próximos, os interesses dos servidores estavam distantes dos
outros dois seguimentos. O fórum semanal de discussões passou a ser o espaço
de reivindicações políticas explícitas.
Dentro do campo de tensões das querelas e discórdias, dentro do próprio
movimentos dos reformistas, o CPPII desenvolve uma via particular. Aqui os
"assistencialistas", que priorizavam a execução de projetos técnicos, estavam
ocupando os cargos administrativos, enquanto os "políticos" se organizaram em
um Núcleo Sindical, filiado a um sindicato de servidores públicos. O Núcleo
Sindical participava do "Conselho Diretor Tripartite" e
seu campo de luta
prioritário estava na defesa dos direitos dos servidores, naquele momento de
101
Fatos dignos de nota no período: no início do governo Collor foi desencadeada uma "reforma
administrativa" com a demissão em massa de todos os diretores de órgãos públicos, por decreto. No CPPII
aconteceu algo inusitado. A destituição do diretor fez assumir o cargo o vice-diretor, que esperou uma
nomeação do Ministério. Passado um ano, como a mudança não ocorreu, o diretor em exercício solicita sua
demissão. O Ministério não quer aceitar e pede que o diretor no cargo indique alguém para assumir
definitivamente o cargo vago. O vice diretor indica o diretor demitido pela "reforma administrativa", e ele é
renomeado pelo mesmo governo que o demitiu. Também neste período, ocorre, dentro da "reforma
administrativa" as temíveis listas de disponibilidades de servidores públicos. Os hospitais psiquiátricos do Rio
de Janeiro, agindo politicamente em conjunto, foram os únicos hospitais da cidade onde não houve servidores
colocados em disponibilidade.
88
efervescência
política, pós-impedimento de um presidente da república. Os
Congressos Internos do CPPII, num movimento que capturava os fóruns
semanais, mesmo dividindo os aspectos "assistenciais" e "políticos" das
discussões, dirigiu sua meta para uma disputa de poder na instituição.
No II Congresso Interno do CPPII, em 1992, a tese de "eleição direta" para
a direção da instituição é vencedora em oposição à velha tese do "conselho
diretor". Dois meses após o Congresso a eleição é realizada. Uma chapa única é
inscrita, representando o Núcleo Sindical. A direção do momento pede demissão
e encaminha ao Ministério da Saúde o nome eleito, como se fosse uma indicação
da instituição para a continuidade do processo. O novo diretor é nomeado, sem o
Ministério da Saúde perceber que havia acontecido um "processo eleitoral".
Em continuidade, o Núcleo Sindical entra em processo de dissolução,
sendo seus membros nomeados para cargos de direção na nova administração.
Após quatro anos, duração do mandato, nova eleição é realizada com
apresentação de chapa única, que foi reeleita. Novamente não há percepção pela
hierarquia ministerial. Após dois anos, no segundo mandato, a instituição é
sacudida pela segunda grande crise, já referida. Numa negociação política para a
reeleição de Fernando Henrique Cardoso, na presidência do Brasil, cargos são
loteados e o CPPII cai nas mãos de um diretor que vai usar o cargo em benefício
do processo eleitoral da época. Esta crise, diferente da de 1988, não provoca
reação interna ou externa. Na própria "direção sindical" existente, cargos da
direção exonerada vão servir ao interventor nomeado. Esta direção interventora
só fica um ano no cargo, quando uma nova direção, fora dos quadros da
instituição, cumpre a última gestão ministerial, por um ano e meio, até o início de
2000, momento da municipalização do Centro Psiquiátrico.
Com o retraimento da corrente "assistencialista" o CPPII ficou, num período
de seis anos, governado pela corrente "política".102 Cabe ressaltar que os
102
Neste período cabe destacar, como ponte entre as duas correntes, a inauguração do Centro Comunitário.
"Mais do que uma idéia, nascia um compromisso ético que, propondo o redesenho da forma e o conteúdo das
relações entre comunidade interna e externa, colocava-se como interface, entre o hospital e a comunidade.
Esta inserção ganhava os contornos de um centro de convivência, um espaço de encontros, onde seria
estimulada e garantida a participação da clientela em atividades diversificadas propostas pelos parceiros
comunitários do CPPII. Construía-se no plano da relação política dos vários seguimentos participantes dos
congressos internos um espaço permanente de inter-trocas da comunidade com nossos usuários, que
acreditássemos fosse capaz de redimensionar o universo simbólico da instituição pela construção social de um
trabalho em rede, até então inédito na área de saúde mental" (AMORIM, 2000; 289 E SEGS.).
89
Congressos Internos do período, na esfera assistencial, defendeu as teses mais
avançadas da reforma que vinha acontecendo. E a direção eleita, em nenhum
momento, se opôs ao projeto assistencial. Não houve, de forma explícita, uma
imposição da psiquiatria tradicional ao projeto da reforma. O mesmo aconteceu,
em relação ao projeto, com a postura das duas direções posteriores à crise que
interrompe o mandato "sindical".103
O que ocorre, então, para ter acontecido uma recuperação do manicômio e
para que os projetos reformistas tivessem sido incrustado em guetos?
A resposta a esta pergunta requer uma tarefa que não está ao alcance
deste trabalho. Primeiro, pela exigência de uma pesquisa neste campo para
elucidar as principais questões que se apresentam. Segundo, como informado no
início deste capítulo, a nossa participação nos acontecimentos, assumindo uma
posição política definida, nos tira a isenção necessária que o rigor da
interpretação histórica exige. Entretanto, na tentativa de colaborar para uma
pesquisa futura, os comentários aqui expostos, se colocados na categoria de
depoimento, poderão vir a ter alguma utilidade.
O II Congresso Interno do CPPII, ocorrido em junho de 1992, muda o
modelo de gestão da instituição. Dois grandes temas perpassam o congresso: o
Projeto Assistencial e o Modelo de Gerenciamento. O artigo 2º do regimento
daquele congresso destaca:
"Art. 2º - são participantes do II Congresso:
1. Delegados: a) - funcionários eleitos nas reuniões das Unidades; b) comunidade em número paritário aos delegados dos funcionários
2. Delegados natos: participantes do Conselho Diretor Tripartite"104
103
A primeira só se preocupou com o uso político da instituição. Desde que as práticas da reforma não
interferissem diretamente neste objetivo, e nem havia como, não houve proibições técnicas. Houve, no uso
político, um esvaziamento de quadros da instituição. Todos os pedidos eram atendidos, sem a preocupação de
reposição de pessoal, o que ajudou a esvaziar o já tão carente quadro de servidores. A última contratação
acontecera no início da década de 1980. A segunda direção tinha pretensões assistenciais. Chegou a elaborar
um novo organograma para a instituição, no qual se destaca um departamento de pacientes de "longa
permanência" (DELONG, no organograma) e a reativação de uma antiga unidade, onde funciona o Centro
Comunitário, para a recuperação do papel assistencial de um macro-asilo. O projeto não vai em frente pelo
processo da municipalização da unidade que estava em curso.
104
Relatório do II Congresso Interno do CPPII, arquivo do Centro de Estudos do Instituto Nise da Silveira.
90
Na abertura do Congresso um fato marca, de antemão, a mudança do
modelo gerencial: a comunidade não aceita participar com seus delegados.105
Estava quebrada a paridade e determinada a mudança na forma de gestão do
CPPII.106
Quanto às teses sobre a Proposta Assistencial, nota-se que só a Direção
Executiva, afastada durante o Congresso, apresentou uma proposta global para a
assistência em saúde mental da instituição, aprovada com adendos das teses
particulares que foram também aprovadas.107
O que acontece neste momento é uma disputa entre os "reformistas
assistencialistas" e os "políticos" na corrente dos trabalhadores em saúde mental
que estavam preocupados com a Reforma Psiquiátrica na instituição.
Entretanto, a vitória da corrente "política" vai descaracterizar este papel na
instituição. Para ocupar os cargos de direção há, necessariamente, a desativação
do Núcleo Sindical. Sua tarefa agora era dirigir o CPPII. A corrente
"assistencialista" não ocupa este lugar político. Muito dos seus membros saem da
instituição e os que ficam se afastam da arena política para exercerem atividades
assistenciais.
É a partir deste momento, durante um longo período de nove anos, que as
propostas reformistas na instituição entram num período de inércia e há mesmo
uma involução, com um retorno às velhas práticas tradicionais da psiquiatria.
105
"Após a leitura do Regimento foram feitos os seguintes destaques:
Rogério (membro do Núcleo Sindical do CPPII) e Cosme (membro do Conselho Diretor Tripartite,
seguimento comunidade) destacaram o Art. 2º nº 1, letra B. Rogério pediu esclarecimentos sobre a
escolha dos delegados da comunidade. Cosme esclareceu que por deliberação da Zonal Suburbana da
FAMERJ (Federação das Associações de Moradores do Estado do Rio de Janeiro) os representantes da
Zonal participariam do Congresso como observadores, pedindo que ficasse registrado em ATA. Informou
ainda que os delegados natos, representantes da FAMERJ no Conselho Diretor, também abririam mão
desta condição e participariam como observadores. Rogério propõe que o item B do Regimento fosse
retirado, o que não foi aprovado" ( Ibidem, pg. 3)
106
São 45 votos para a eleição direta; 28 para a manutenção do Conselho Diretor Tripartite; 4 votos para
"eleição direta" do Diretor Geral e manutenção do Conselho Diretor; e 2 abstenções. (Ibidem, pg. 9).
107
Teses livres: 1- Projeto Saindo para o Trabalho (tratava de uma feira livre na comunidade); 2 Desconstruindo: para mudar de vida ( sobre atendimento ambulatorial de pacientes internados em uma
Unidade de Pacientes Agudos); 3 - Atendimento Ambulatorial e Práticas Alternativas (sobre o atendimento
clínico com uma proposta preventivista); 4 - Enfermaria de Crise (modelo de atenção multidisciplinar na
internação); 5 - Hospital Vicente Rezende (sobre a atenção à criança e adolescência, que reivindicava a
reativação do antigo Hospital de Neuropsiquiatria Infanto-Juvenil); Enfermaria de Alcoolismo (tese defendida
pelos Alcóolicos Anônimos). Vale notar que a tese sobre a Casa d'Engenho, projeto que vai acontecer na
instituição posteriormente, não foi aceita por não cumprir "preceitos regimentais" do congresso. (Ibidem)
a)
91
Como explicar que, sem uma participação ativa das direções do período sobre o
projeto assistencial, diferente da intervenção direta que ocorreu na efêmera
intervenção de 1988, a maioria das práticas retornem ao leito do velho asilo
adormecido?
Mesmo que a maioria dos reformistas tivessem já aprendido com BASAGLIA
que era na psiquiatria, enquanto saber, que a reforma teria que atacar o modelo
manicomial, a lição parecia não ser seguida. A execução do projeto dentro da
estrutura asilar estava condenada ao fracasso. O que acontece neste período só
vai negar a reforma que parecia acontecer no período anterior. Se os documentos
e vídeos da época atestam a efervescência de uma mudança nas práticas, elas
só aconteceram enquanto eterna vigilância ativa de um poder instituído. E este
poder nunca parece ser suficiente para que as mudanças nas bases do processo
aconteçam de forma autônoma. Não porque não tenha criado focos de resistência
e porque não existiram experiências fecundas no seu desenvolvimento.108 Elas
estão ainda hoje como testemunhas do movimento. Mas o manicômio é mais forte
e a sua regeneração é inexorável se não se mata o dragão.109
Esta época tão próxima, ainda tem a nos colocar, pelo menos, duas lições.
A primeira, característica da cidade do Rio de Janeiro: sendo os hospitais
psiquiátricos federais, eles não estavam, mesmo depois do Sistema Único de
Saúde, na rede municipal de saúde. A loucura era federal. Em nenhum momento
deste período há propostas concretas de inter-relações com outros serviços da
rede de saúde. As propostas não saem do espaço asilar. A comunidade é que é
chamada para entrar no espaço da loucura. A loucura não tem como se aventurar
na rede de atenção à saúde. O sistema de trocas é tentado no espaço manicomial
e não na comunidade. Este problema só vai ser enfrentado quando acontece o
processo de municipalização que será tratado a seguir.
A segunda lição diz respeito ao modo de reprodução da cultura do
manicômio. Aqui, a história não é ensinada para a modificação do presente. O
presente está aprisionado na história do manicômio que, pela normatização
108
Como, por exemplo, o Espaço Aberto ao Tempo, a Casa d’Engenho, o Centro Comunitário.
No vídeo “Transformações Assistenciais no CPPII”, de 1989, o texto prevê que o manicômio “é como rabo
de lagartixa, cresce outra vez, se cortado. Era preciso matar a lagartixa”. (Arquivo do Centro de Estudos do
Instituto Municipal Nise da Silveira).
109
92
intrínseca exercida sobre os corpos dos loucos, sempre retorna como uma
“experiência de governo (...) paternal e autoritário que tem por objetivo
medicalizar, mesmo se é incapaz de medicar” (MACHADO, 1978; 491). Sobre esta
lição nos ensina Rotelli:
“A deslegitimação dos hospitais psiquiátricos é um processo que
envolve, de alguma forma, todo o mundo. Não se deve ter ilusão,
contudo, de que esta leve à superação dos mesmos. Na França, mais
ou menos há 20 anos, dizia-se que os hospitais psiquiátricos eram uma
realidade sociologicamente condenada, resíduos arcaicos dentro da
sociedade moderna, que seriam eliminados naturalmente, através da
história. Ao contrário, sabemos que os hospitais psiquiátricos deverão
ser afrontados radicalmente, ou jamais desaparecerão de fato. (...) O
desaparecimento dos hospitais psiquiátricos não tem nenhuma relação
com a modernização ou com a modernidade, muito pelo contrário, a
sua existência acompanha a modernidade. (...) Na verdade, interessanos que eles desapareçam, pois um papel menor dos hospitais
psiquiátricos freqüentemente vem acompanhado de um reforço
qualitativo destes, o que não é o objetivo de nossa luta” (ROTELLI, 1991;
88/9).
93
TERCEIRA PARTE: PROPOSIÇÕES ESTRATÉGICAS
94
Capítulo 6: A intenção de chegar ao território: de um engenho de
dentro para um engenho do fora
"Um modelo é, sem dúvida, uma representação da realidade, cuja
aplicação, ou uso, só se justifica para chegar a conhecê-la, isto é,
como hipótese de trabalho sujeita a verificação. Da mesma maneira
que dos fatos empiricamente apreendidos se chega à teoria por
intermédio de conceitos e de categorias historicizadas, volta-se da
teoria a coisa empírica através dos modelos. Desta forma, e com ou
sem intuito de reformulá-la, submete-se a teoria a um teste, pois a
realidade não é imutável. Assim, o modelo se encontra no mesmo nível
do conceito neste caminho incessante do vai-e-vem, do fato cru à
teoria e desta, de novo, ao empírico.
"Este movimento permite que os fatos sejam melhor conhecidos (pela
utilização da teoria) e que a teoria seja melhorada (pela prova dos
fatos).
"Assim, os dois - conceito e modelo - devem permanentemente ser
revistos e refeitos; e isto só pode ser obtido levando em conta que
tanto a teoria como a realidade se encontram em processo de
permanente evolução.
"A partir do momento em que se esquece tudo isto e se aplica um
modelo congelado para explicar uma realidade em movimento, trata-se
de uma violência metodológica pura e simples, cuja aplicação não pode
conduzir à realidade científica e sim ao erro" (SANTOS, 2002; 89).
Este cuidado sobre o método, contextualizado na preocupação dialética
de Milton Santos, deve servir de balizamento para as propostas e intenções do
direcionamento apresentados a seguir. O próprio termo "modelo", na linguagem
cotidiana, ainda segundo SANTOS (2002; 85), tem usos diferentes: como
substantivo significa uma representação; como adjetivo implica numa idealização
e enquanto verbo, modelar significa demonstrar algo. Na prática, o uso corrente
do termo contém partes destes três significados. De antemão, pedindo desculpa
pelo conteúdo afetivo na proposição conceitual que, inevitavelmente, carrega
tintas na idealização da "idéia", queremos trabalhar com a representação
substantiva e os tempos verbais da demonstração no conceito dialético de
permanentemente rever e refazer o modelo frente à realidade mutante. Como
adjetivo nunca: no campo psi não existe um modelo ideal. E como estamos
95
trabalhando com categorias historicizadas, os capítulos anteriores nos parecem
absolutamente necessários para colocar a instituição, marcada na sua
constituição com a herança da história da psiquiatria no Brasil, numa situação
ímpar diante da Reforma Psiquiátrica brasileira.
Todas as propostas de reformulação apresentadas no decorrer de sua
história ficam presas ao aperfeiçoamento de um modelo primeiro, de instância
manicomial, que no caso em questão está diretamente afeito ao primeiro
manicômio do hemisfério sul, tendo aqui uma dimensão maior nas críticas
formuladas por FOUCAULT e BASAGLIA. A história que constitui a instituição examinada
tem um poder de aprisionar o presente. Aqui, muito mais que em outro lugar, a
instituição deve ser negada. Os modelos que serão apresentados pretendem uma
reformulação necessária para a superação do manicômio. E a superação só
parece possível com a assimilação dos programas assistencias, já modificados,
na rede de saúde da cidade. E a cidade pode oferecer seu território para que a
saúde mental possa superar o manicômio.
"O território em si, para mim, não é um conceito. Ele só se torna um
conceito utilizável para a análise social quando o consideramos a partir
de seu uso, a partir do momento em que o pensamos juntamente com
aqueles atores que dele se utilizam (SANTOS EM ENTREVISTA A SEABRA &
CARVALHO & LEITE, 2000; 22)".
Portanto, a proposta que será aqui apresentada parte de dois pontos: a
negação da instituição manicomial e a absorção dos programas assistenciais,
com as necessárias modificações de ajuste dos modelos à realidade, pelo
território. O diferencial com as reformas acontecidas, até aqui, parte do
pressuposto da negação do manicômio enquanto lugar das ações propostas. As
reformulações que possam estar acontecendo na instituição só serão efetivadas
se levadas ao território da área programática, espécie de distrito sanitário na
cidade do Rio de Janeiro. Mas a noção de território não pode ser confundida com
o espaço geográfico da área programática ou ao bairro do domicílio do sujeito,
mas
"o conjunto de referências socioculturais e econômicas que desenham
a moldura do seu quotidiano, de seu projeto de vida, de sua inserção
no mundo. Claro que é uma enorme complicação ajustar este conceito
à selva anônima e desumana das grandes metrópoles. Como pensar
os territórios subjetivos e, portanto, a área de alcance das intervenções
96
de atenção psicossocial, no meio das balas perdidas da crise urbana?
Que cidade real será capaz de sediar a pólis da antiga utopia grega,
lugar onde convivem harmonicamente os cidadãos livres? Mais que
livres, desejamos hoje que sejam fraternos, iguais em direitos, e
tolerantes em suas diferenças. Uma rede de atenção psicossocial faz
parte deste esforço de construção de uma cidade capaz de abrigar em
harmonia os inumeráveis territórios subjetivos. Retornando ao modo de
realizar o cuidado psicossocial, um serviço só será possível se,
localizado em um bairro, emoldurado pelas referências sociais e
culturais daquela comunidade específica, puder dar uso prático ao
conceito de território. Para cada cliente, seu território familiar, cultural,
mitológico, socioeconômico, jurídico. Este me parece um desafio
teórico, com notáveis implicações clínicas, e que só passou a ter
existência com a regionalização do atendimento e a criação de serviços
locais de atenção psicossocial." (DELGADO, 1997-B; 42).
A partir da segunda metade dos anos 90, o município do Rio de Janeiro
vem experimentado, embora timidamente, a criação de serviços locais de atenção
psicossocial, com um resultado muito positivo, como efeito demonstrativo do novo
modelo. Em maio de 1996, foi inaugurado o primeiro Centro de Atenção
Psicossocial (CAPS), com o nome de Rubens Corrêa, no bairro de Irajá. Em 1997
dois outros foram implantados: em janeiro, o CAPS Pedro Pelegrino, em Campo
Grande e em março, o CAPS Simão Bacamarte, em Santa Cruz. Naquela época
uma avaliação assim era feita:
"A montagem destes serviços não é uma tarefa fácil. Por um lado
estamos construindo uma lógica de cuidados para uma clientela que
historicamente nunca foi objeto da Secretaria Municipal de Saúde. Por
outro lado, a construção de dispositivos de atenção com a perspectiva
de tratamento e reabilitação psicossocial deve ser cautelosa e atentar
para o risco de repetição do modelo excludente do manicômio no
microespaço do novo serviço. Ou seja, além da constituição de uma
ética de cuidados, é necessário estar atento para a desconstrução das
relações, dos valores, dos comportamentos, das atitudes, decorrentes
da concepção de negatividade da loucura" (FAGUNDES & LIBÉRIO, 1997;
34).
Os cuidados com estes primeiros serviços locais de atenção psicossocial
foram necessários para consolidar um modelo assim definido:
"Os CAPS representam algo mais que uma mera alternativa ao modelo
hospitalar predominante, funcionando de forma a evitar as internações
psiquiátricas e diminuir sua reincidência, mas sobretudo, por
possibilitarem o desenvolvimento de laços sociais e inter-pessoais
97
essenciais para o estabelecimento de novas possibilidades de vida."
(FAGUNDES E& LIBÉRIO, 1997; 33).
Em 1998 foi a vez da Ilha do Governador ter o CAPS Ernesto Nazaré e, no
ano seguinte, em Jacarepaguá, era inaugurado o CAPS Artur Bispo do Rosário e
em Bangu, o CAPS Lima Barreto e o CAPS Infanto-Juvenil (CAPSi) Pequeno
Hans, primeiro serviço local para o atendimento de crianças e adolescentes na
cidade, que foi seguido do segundo, em Jacarepaguá, o CAPSi Helena Santa
Rosa.
A figura abaixo mostra a distribuição destes dispositivos na cidade do Rio
de Janeiro e a projeção prevista para este ano. Na área de planejamento 3.2, o
CAPS previsto é a saída para um bairro próximo e de referência de um dos
serviços de atenção diária do Instituto Municipal Nise da Silveira, que serão
tratados adiante.
CAPS existentes
CAPSi existentes
CAPS projetados
AP 3.1
AP 3.3
AP 5.1
AP 3.2
AP 1
AP 5.3
AP 5.2
AP 2.2
AP 4
AP 2.1
A distribuição dos serviços de saúde no município do Rio de Janeiro se faz
de maneira bastante desigual dentro das áreas de planejamento (APs) em que foi
dividida a cidade. Nas APs 1 (zona centro) e 2.1 (zona sul) está concentrada a
maioria dos serviços de saúde da cidade. Nas APs 2.2 (zona norte), 3.2 (Grande
Méier, onde está localizado o complexo do Engenho de Dentro) e 4 (Jacarepaguá
e Barra da Tijuca), a rede de saúde só não é suficiente pela pressão de demanda
das outras áreas, onde a escassez de serviços de saúde é dramática. Na zona
oeste (APs 5.1, 5.2 e 5.3, Bangu, Campo Grande e Santa Cruz, respectivamente),
98
o "vazio sanitário" é um problema crônico, num território de grandes distâncias,
com o agravante de possuir áreas de grandes concentrações populacionais
entrecortadas com paisagens rurais. Mais grave ainda é a situação sanitária do
subúrbio carioca (APs 3.1 e 3.3), que possui a maior concentração de habitantes
por metragem quadrada dentro de um território com os menores Índices de
Desenvolvimento Humano (IDH) da metrópole, onde são piores as habitações,
saneamento, serviços públicos de qualquer natureza e maiores os níveis de
violência em comunidades abandonadas pelo poder público.
A distribuição dos serviços de atenção diária de base territorial, do
Programa de Saúde Mental da Secretaria Municipal de Saúde, se fez dentro de
uma lógica de prioridade para as comunidades carentes, como pode ser
evidenciado na figura acima. Entretanto, apesar do efeito demonstrativo da
qualidade do atendimento,110 não há possibilidade de cobertura, mesmo com a
projeção de novos serviços. Os CAPS estão trabalhando com uma pressão de
demanda impossível de ser atendida. Para exemplo, tomemos a área de
planejamento do primeiro CAPS em funcionamento: a AP 3.3 possui uma
população de mais de 1 milhão e 200 mil habitantes, comportando, no mínimo,
seis serviços de base territorial.111
Apesar das dificuldades encontradas, o modelo proposto aponta para uma
mudança da atenção em saúde mental, antes centrípeta em direção ao hospital
psiquiátrico. O nível de satisfação do usuário com o sistema de saúde mental da
cidade parece estar colocado em dois extremos: satisfatório, para os que
conseguem ingresso no sistema; péssimo ou inalterado em relação à situação
anterior, para os que não têm acesso ao novo modelo.
Entretanto, é dentro deste planejamento estratégico, para a ocupação da
saúde mental da cidade, dentro do modelo de serviços de atenção diária de base
territorial, que acontece o conjunto de reformas atuais no complexo hospitalar do
Engenho de Dentro.
110
Dentre os indicadores de eficiência destes dispositivos, pode ser destacada a taxa de reinternações
psiquiátricas dos pacientes dos CAPS que teve uma queda significativa (Relatório de Atividades da
Coordenação de Saúde Mental) e o nível de satisfação do usuário e familiares (LIBÉRIO, 1999).
111
Em Trieste, Itália, calculou-se um serviço territorial para 70.000 habitantes. No Brasil tenta-se trabalhar
com um máximo de 200.000 habitantes por serviço, o que exigiria um total de 30 serviços na cidade.
99
Engenho de Dentro
O Centro Psiquiátrico Pedro II, complexo hospitalar do Ministério da Saúde,
é municipalizado em janeiro de 2000. Neste momento, este complexo era
constituído por: um Bloco Médico Cirúrgico, prédio de oito andares com o
funcionamento de apenas duas enfermarias clínicas, com 30 leitos, uma
enfermaria psiquiátrica de crise, um ambulatório clínico, um ambulatório
psiquiátrico e a emergência psiquiátrica; a Unidade Hospitalar Adauto Botelho,
prédio de seis andares com duas enfermarias de agudos e quatro enfermarias de
pacientes crônicos; a Unidade Hospitalar Gustavo Riedel, prédio de três andares,
com uma ala para atendimento infanto-juvenil (enfermarias com 30 leitos e
ambulatório), outra ala para moradores com alguma autonomia e uma enfermaria
de pacientes crônicos;
a Unidade Hospitalar Odilon Galotti, prédio de três
andares, com a maioria dos espaços desativados, com espaços ocupados por
projetos comunitários- o Centro Comunitário, contendo ainda um abrigo para
crianças da Secretaria Municipal de Desenvolvimento Social; o Pavilhão Braule
Pinto, prédio de dois andares e um anexo contendo uma escola para alunos
especiais (Escola Ulisses Pernambucano), um Núcleo de Artes e um Centro
Escolar, todos projetos da Secretaria Municipal de Educação, além de um
hospital-dia para crianças autistas; o Museu de Imagens do Inconsciente, prédio
de dois andares com o acervo e oficinas terapêuticas do Museu; o Espaço Aberto
ao Tempo, hospital-dia funcionando no antigo pavilhão infanto-juvenil; a Casa
d'Engenho, hospital-dia funcionando em duas casas do complexo; e o antigo
Hospital
de
Neuropsiquiatria
Infanto-Juvenil,
prédio
de
dois
andares
completamente desativado.
Mesmo contendo apenas 350 leitos em espaços que, nos momentos de
pujança do manicômio, já possuíra mais de 1500 almas dentro de suas
enfermarias, cada prédio conservava sua autonomia, sua história, uma direção
100
herdeira da história de outras direções e uma equipe com saudades do passado.
Como exemplos, a equipe do projeto de atenção à infância e adolescentes
sonhava com a volta ao velho prédio de neuropsiquiatria. A Unidade Hospitalar
Gustavo Riedel, que agora hospedava o hospital infanto-juvenil, contava com
apenas uma enfermaria de pacientes crônicos (20 leitos), mas mantinha uma
direção com um gabinete com a mesma estrutura de quando a unidade tinha 200
leitos. A Unidade Hospitalar Adauto Botelho possuía enfermarias de pacientes
agudos, pacientes crônicos e um ambulatório de egressos funcionando como uma
unidade autônoma.
O processo de municipalização não foi bem recebido na instituição. Temiase a desativação do manicômio e do seu projeto, primeiro desde a sua vocação
imperial como monumento, depois na destinação do Centro Psiquiátrico como
referência nacional. O temor se justificava. Na posse da primeira direção na
instituição municipalizada foi explicitado que o Centro Psiquiátrico Pedro II deveria
deixar de ser um centro para que as ações centrípetas de saúde mental fossem
transformadas em movimentos centrífugos em direção à rede de saúde municipal
e de base territorial.112
Proposições estratégicas ainda no lado de dentro, mas que possibilitem
ações do lado de fora
Em setembro de 2000, o Centro Psiquiátrico Pedro II, através de decreto do
prefeito da cidade do Rio de Janeiro,113 passa a ser denominado Instituto
Municipal de Assistência à Saúde Nise da Silveira. No mesmo momento, o prédio
do antigo Bloco Médico Cirúrgico passa a denominar-se Hospital Municipal de
Reabilitação, separando-se do complexo do Engenho de Dentro.114
Veremos a seguir a primeira versão da proposta de mudança decorrente do
processo de municipalização. O texto foi produzido antes da atual proposta de
112
Conferir vídeo "Solenidade de posse do Diretor do CPPII", de 17 de abril de 2000. Biblioteca do Instituto
Municipal Nise da Silveira.
113
Decreto "N" nº 18917 de 05/09/2000 publicado no Diário Oficial Municipal do dia seguinte.
114
A publicação em Diário Oficial sobre a estrutura de uma nova unidade só vai acontecer em 16/01/2003,
mas o Hospital Municipal de Reabilitação já vinha funcionando de forma autônoma.
101
mudanças na instituição. Apesar de longa, a citação integral das propostas
primitivas é necessária para a comparação com a realidade existente.
"A ruptura do modelo manicomial, inerente à estrutura organizacional
do antigo CPPII, hoje é tarefa prioritária para o Programa de Saúde
Mental da cidade do Rio de Janeiro, sob pena deste modelo
ultrapassado, mas de uma força histórica considerável, pôr em risco a
hegemonia do modelo dos centros de atenção diária. Há um lugar,
ocupado ainda pelo manicômio, que deve sofrer as transformações
necessárias para a consolidação de um projeto da Reforma Psiquiátrica
no município.
"A lógica do modelo das instâncias de departamentos entre internação,
emergência e ambulatório traz em si a força centralizadora da
enfermaria, do leito, para onde são drenados e, quase sempre,
depositados os casos diagnosticados como mais graves. O próprio
nome, Centro Psiquiátrico, em contraposição ao Centro de Atenção,
tem uma função simbólica que deposita na psiquiatria o seu poder
centralizador de um saber sobre a doença, sem prestar a atenção que
o doente requer(...)
"Voltando a invenção em curso para desconstruir este hospital
psiquiátrico:
"A polêmica do nome: Nise da Silveira não precisa de apresentações.
A psiquiatra rebelde foi peça de resistência dentro desta instituição.
Vale lembrar que CPPII foi uma homenagem da ditadura militar aos
anseios do império. Como instrumento de ditaduras (Vargas, Castelo
Branco), as mudanças do nome desta instituição foram operadas por
decreto-lei. Na democracia o decreto-lei fica vazio e possível de
mudanças dependendo da alternância de grupos políticos no poder.
Portanto, o nome hoje tem apenas uma importância simbólica:
direciona um desejo de mudança. Talvez mais no nível interno: toma
partido entre práticas tradicionais e a Reforma.
"A importância histórica: O Centro Comunitário já vem organizando
um museu da história do Centro Psiquiátrico Pedro II: vasto material
fotográfico documentando construções de pavilhões, inaugurações,
festas, enfermarias, além de galeria dos personagens históricos,
diretores, visitantes; objetos de uso histórico: camisa de força,
aparelhos de eletrochoque, seringas de insulinoterapia, balanças de
precisão, acervo da histopatologia (fetos, cérebros, órgão internos);
móveis e camas que existiram no passado nas enfermarias; placas de
inauguração de serviços, entre outros. A Reforma pressupõe uma
ruptura com o manicômio. A possibilidade de colocar o CPPII no museu
também é simbólica. Sabemos que as práticas asilares permanecem
em vários setores da instituição e é nelas onde devemos operar a
desconstrução.
102
"Inverter a Hierarquia Institucional: A lógica manicomial trabalha com
porta de entrada sem porta de saída, conforme foi exposto no sistema
de vasos comunicantes que tende a transbordar a instância da
internação. Ora, a Reforma Psiquiátrica pressupõe estreitar a porta de
entrada, uma missão para os serviços de atenção diária que atuam a
partir do território e abrir uma porta de saída através da consolidação
de um programa de moradias. No Instituto temos em funcionamento
quatro serviços de atenção diária (dois de adultos, um de crianças e
outro de adolescentes)115, além das oficinas do Centro Comunitário e
do Museu de Imagens do Inconsciente. Está sendo estruturada uma
proposta de territorialização destes serviços para que tenham
autonomia e que sejam responsáveis pelo mapeamento e decisão da
melhor forma de tratamento para sua clientela. Assim, dentro do
território estabelecido, são estes serviços que devem regulamentar a
utilização da Emergência e da Internação, sendo os serviços
substitutivos colocados para a clientela do território antes do
oferecimento dos mecanismos tradicionais da porta de entrada. Por
outro lado, o Programa de Moradias (hoje responsável por pensões e
moradias protegidas no espaço do Nise da Silveira, mas com um
projeto a ser implantado a curto prazo de Residências Terapêuticas na
comunidade) deve ser responsabilizado pelos moradores nas
enfermarias de internação invertendo o fluxo hierárquico para a
efetivação da porta de saída.
"A Responsabilidade no Território: O compromisso proposto é com o
rompimento do modelo manicomial para a implantação de programas
dentro dos preceitos da Reforma Psiquiátrica. Reforma que tem um
compromisso com o território e com a atenção integral ao usuário de
qualquer dispositivo de atenção. Dispositivos que possam ser criados
para tirar o cliente do circuito das instâncias do modelo tradicional, com
sua característica centrista na enfermaria, no leito(...)
"Encontrar a Porta de Saída: O Instituto Municipal Nise da Silveira
tem hoje 300 leitos (longe já se vão os anos de mais de um milhar de
internos), dos quais a metade para a internação de curta e média
permanência e a outra metade, de moradores.São 150 moradores, dos
quais só 53 nos projetos de pensões e moradias assistidas internas.
São quase cem pessoas morando em enfermarias de características
manicomiais. O Programa de Moradias hoje responde pela
regulamentação destes internos em busca de uma porta de saída. A
construção deste inventar já atende na forma de pensões protegidas,
república de passagem e moradias independentes no espaço interno
do Instituto. Estamos no caminho da construção de Residências
Terapêuticas na comunidade. Este Programa discute hoje a
transformação de enfermarias em espaços residenciais protegidos para
115
Espaço Aberto ao Tempo, serviço de atenção diária com 180 clientes cadastrados; Casa d'Engenho, serviço
de atenção diária que funciona como hospital-dia para 30 vagas diárias; Casa Cor, serviço de atenção diária
para atendimento de crianças em parceria com uma turma especial da Secretaria de Educação que funciona no
Instituto; Centro de Atenção Psicossocial para adolescentes iniciado no mês de abril/2001.
103
os idosos e para os que precisem de cuidados mais intensos: o desafio
é a transformação do espaço arquitetônico das enfermarias para que o
recorte espacial normativo possa ser substituído por um espaço da
individualidade que permita o fluir da temporalidade.
"Permear o Espaço da Instituição a Projetos Comunitários: O
Projeto do Centro Comunitário vem sendo construído há quase uma
década. A condução do processo de desconstrução do hospital
psiquiátrico hoje provoca a visibilidade destas ações que antes eram
marginalizadas. Os trabalhos de dança, culinária, terceira idade e o
funcionamento da Rádio Comunitária, por exemplo, levam para o
mesmo espaço de trocas sociais a comunidade que mora no entorno
do hospital e os clientes internos e externos. Dois eventos de grande
porte demonstram esta integração: o Bloco "Loucura Suburbana"
composto de pacientes do Nise e de outros serviços de Saúde Mental,
inclusive do interior do estado, com participação de alas da
comunidade de moradores, inaugurou este ano o Carnaval de rua, que
promete repetir nos próximos carnavais. Um show musical com
conjuntos e composições de usuários do Nise e de outros serviços com
a participação do compositor Lobão, coloriu o espaço cinzento do
hospital numa noite memorável com a participação de moradores dos
bairros vizinhos cujo acesso foi trocado por doações de móveis e
utensílios para o Programa de Moradias.
"A Visibilidade da História: O Museu de Imagens do Inconsciente,
com um acervo de 350.000 obras que documenta o trabalho de
pesquisa da Dra. Nise da Silveira, não é conhecido dos cariocas.
Visitantes estrangeiros e de outros estados o conhecem mais. O
módulo da Loucura, na Mostra do Descobrimento Brasil 500 Anos
mostrou a importância deste trabalho. É proposta a organização de
exposições permanentes abertas ao público, também nos finais de
semana, e que constem no calendário turístico da cidade. O Museu da
História do Centro Psiquiátrico Pedro II vem se organizando para
receber visitantes e pesquisadores. A Biblioteca do Centro de Estudos
hoje está num espaço adequado para a pesquisa, possuindo obras
raras em edições originais do antigo Hospício de Pedro II.
"Entretanto, como estamos falando da difícil arte do inventar, as
propostas anunciadas não fazem parte de um roteiro de cumprimento
obrigatório. A avaliação diária e a certeza de que muito ainda se tem
por fazer e o refazer de propostas são inerentes à desconstrução do
hospital psiquiátrico.
"Para um trabalho de tamanha envergadura, devemos ter no horizonte
a "utopia da realidade", conceito desenvolvido por Basaglia, em
contraponto à utopia-ideologia116, que permite transceder a realidade
para operar uma transformação institucional.
116
Esta seria a ideologia da transformação, mas que por não poder revelar as contradições de uma realidade,
termina por justificar o imobilismo.
104
"O esforço que se fez aqui foi o de imaginar caminhos para a
transformação, já que faz parte da utopia o imaginar. No entanto
sabemos que o caminhar nesta transformação faz o próprio caminho. O
que significa que estas propostas aqui defendidas são mutantes"
(OLIVEIRA, 2002).
A intenção destas propostas, no entanto, parecia impedida pela estrutura
organizacional do manicômio. Esta estrutura mantinha o modelo arcaico em
funcionamento. A estrutura das diversas unidades hospitalares do Complexo do
Engenho de Dentro, baseada na história da instituição, impossibilitava a mudança
proposta. Isto é, a estrutura arcaica da forma de direção existente não permitia o
desenvolvimento do novo modelo. Era necessária a implantação de um novo
modelo na estrutura organizacional de direção do Instituto para que um novo
modelo clínico pudesse existir. E, se o direcionamento do modelo clínico fosse na
direção do território, na superação do manicômio, a estrutura organizacional
interna, na forma de gerir a instituição, deveria, ela mesma, possuir o paradoxo de
sua própria superação. Assim, a estrutura organizacional proposta deveria ser
datada, neste momento de transformação, permitindo a sua extinção a partir do
êxito de sua missão.
É neste sentido que acontece uma radical transformação na estrutura
organizacional do Instituto. Extinguem-se os cargos de diretores de unidades
hospitalares do Complexo do Engenho de Dentro, extinguindo-se os limites
geográficos e arquitetônicos do modelo arcaico da estrutura manicomial, e é
proposto um Conselho de Diretores de Programas Assistenciais, a partir da
proposta clínica para cada seguimento de projetos que seriam desenvolvidos no
território. Isto significa que cada Programa Assistencial passa a ser desenvolvido
dentro de uma fronteira clínica, e não arquitetônica e geográfica do modelo
arcaico anterior. E o êxito de cada Programa Assistencial proposto pressupõe a
extinção da estrutura organizacional existente.
Vejamos assim a formulação estratégica de cada programa existente:
1. Atenção Clínica: Ao longo da história da instituição, a constituição de
um Bloco Médico Cirúrgico no Engenho de Dentro (datado da década
105
de 40) propiciou uma verdadeira distorção na atenção às doenças
clínicas em pacientes psiquiátricos: um hospital clínico especializado
para loucos. A inserção dos pacientes da Instituição na rede de saúde
do município do Rio de Janeiro passou a ser o objetivo deste programa.
A transformação do Bloco Médico Cirúrgico no Hospital Municipal de
Reabilitação, que será tratada adiante, favoreceu a consolidação do
programa de atenção clínica dos pacientes da instituição na rede de
atenção à saúde da cidade.
2. Programa de Atenção Psicossocial: Sob a direção deste programa
foram subordinados o Ambulatório de Saúde Mental e os Hospitais-Dia:
Espaço Aberto ao Tempo, Casa d'Engenho e Centro de Convivência,
este último resultado da transformação do ambulatório de egressos da
antiga Unidade Hospitar Adauto Botelho em um Serviço de Atenção
Diária. Este Programa tem como objetivo a transformação dos
Hospitais-Dia em Centros de Atenção Psicossocial no território da Área
Programática 3.2 e a descentralização do Ambulatório Central do
Engenho de Dentro para a rede básica de saúde municipal da mesma
área, como será visto mais adiante.
3. Programa de Moradias: Enfermarias de pacientes crônicos, pensões
protegidas e lares abrigados foram referidas a este Programa,
independente da localização arquitetônica nas antigas unidades da
instituição. O Programa propõe considerar que os moradores do
Instituto, na sua maioria, são sujeitos para os quais ações executadas
em enfermarias psiquiátricas mais produzem efeitos iatrogênicos que de
saúde, e que as ações individualizadas com ênfase num programa
residencial terapêutico podem recuperar alguma auto estima, requisito
essencial para a saúde mental de cada um. Para este Programa,
enfermarias devem ser transformadas em alojamentos, em pensões
protegidas, até a saída para o território num Programa de "Serviços
Residenciais Terapêuticos em Saúde Mental," dos quais trata a Portaria
106 do Ministério da Saúde, de 11 de fevereiro de 2000.
106
4. Programa de Internação Psiquiátrica: A Emergência do antigo ProntoSocorro Psiquiátrico e todas as enfermarias de pacientes agudos do
Instituto ficaram subordinadas a uma mesma gerência, independente do
espaço físico ocupado na Instituição, com a finalidade de organizar uma
porta de entrada e uma porta de saída que se relacionem com os dois
programas anteriores e com a rede de ambulatórios e de CAPS da
cidade do Rio de Janeiro, respeitando os princípios de regionalização e
territorialização da atenção em saúde mental.
5. Programa de Atenção à Criança e ao Adolescente: Na gerência
deste Programa ficaram as ações dirigidas a esta clientela com uma
permanente interlocução com os outros programas da Instituição e com
a rede de ambulatórios e CAPSis do município do Rio de Janeiro.
6. Centro Comunitário: Programa responsável por reforçar as ações de
organizações não-governamentais e da comunidade organizada nos
programas da Instituição e na rede de saúde mental da cidade.
7. Museu de Imagens do Inconsciente: Projeto para que este museu,
único no mundo e reconhecido internacionalmente, ocupe um lugar de
destaque na história da psiquiatria brasileira.
8. Centro de Estudos: Projeto voltado ao treinamento, desenvolvimento e
formação de recursos humanos para a rede de saúde mental do
município.
Esta proposta foi fruto de um planejamento estratégico com o objetivo de
ações para: primeiro, criar uma estrutura organizacional na Instituição de forma
horizontal a partir de programas que se interpenetram; segundo, que esta
estrutura possa permitir a saída destes programas para o território, dentro do
Programa de Saúde Mental da Secretaria Municipal de Saúde, ou, no caso de
permanecerem neste espaço, construírem um novo território comunitário no lugar
do espaço asilar.
Antes de iniciarmos a última parte deste trabalho, duas preocupações
devem ser colocadas, já que são inerentes à elaboração de propostas dentro de
um movimento institucional em acontecimento, pertencentes à própria dinâmica
107
da mediação de modelos com a interação da realidade, que está em permanente
mutação, como alertou Milton SANTOS nas citações anteriores. Primeiro, deve-se
ter em consideração que "as propostas anunciadas não fazem parte de um roteiro
de cumprimento obrigatório. A avaliação diária e a certeza de que muito ainda se
tem por fazer e o refazer de propostas são inerentes à desconstrução do hospital
psiquiátrico". Segundo que, mesmo que o êxito das propostas possa vir a
acontecer, elas não necessariamente serão da forma como previstas na descrição
a seguir.
Um Engenho do Fora
Sendo ainda muito longo o caminho a percorrer para a superação do
manicômio, neste momento apresentamos um balanço do direcionamento em
curso na Instituição. As propostas apresentadas estão em consonância com as
deliberações da III Conferência Nacional de Saúde Mental, realizada em Brasília,
DF, entre 11 e 15 de dezembro de 2001, conforme seu Relatório Final.
A mudança da estrutura organizacional está possibilitando o momento de
transição atual entre o dentro e o fora da instituição. A própria intenção da
construção deste texto tem o sentido de permitir esta passagem, mesmo que
muitos ajustes sejam necessários à sua efetivação. Este trabalho pretende
registrar esta tentativa de mudança. Mesmo que ela não aconteça em decorrência
desta intenção, a Reforma Psiquiátrica no Rio de Janeiro, inevitavelmente, tem na
sua pauta a superação deste manicômio e de sua história.
Em resumo, transcrevemos a seguir, algumas conquistas transacionais
entre o dentro o fora em andamento na proposta de desconstrução.
Atenção em Clínica Médica
Como já foi relatado, o antigo Centro Psiquiátrico Pedro II, em setembro de
2000 foi denominado Instituto Municipal Nise da Silveira e separado do Bloco
108
Médico Cirúrgico, que passou a ser denominado Hospital Municipal de
Reabilitação, com outra vocação assistencial.
O antigo Bloco Médico Cirúrgico, com o sucateamento ocorrido no serviço
público nos anos 1960 e 70, já vinha em processo de desativação. Mesmo com a
última reforma de suas instalações, ocorrida na década de 80, na intenção dos
reformistas da época de municipalizarem a unidade para um atendimento aberto à
comunidade, ele nunca recebeu recursos humanos que permitisse seu pleno
funcionamento e nem interessou às autoridades municipais. Vinha sendo
desativado pelo desuso e por falta de proposta técnica. Tinha duas enfermarias
para atendimento aos pacientes psiquiátricos internados no antigo CPPII e um
ambulatório com algumas especialidades, que existiam no interesse dos médicos
e não da demanda. Internava apenas os pacientes psiquiátricos com
intercorrências clínicas. Num estudo realizado durante o primeiro semestre de
2000 evidenciou-se que o índice de óbitos nas suas enfermarias estava em torno
de 30%, níveis encontrados em centro de internação intensiva de alta
complexidade. Decidiu-se, na ocasião, que os pacientes psiquiátricos com
intercorrência clínica deveriam ser atendidos na rede de saúde comum aos
usuários não internados na psiquiatria. Mas, para que esta proposta pudesse ser
viável, era necessário o desaparecimento deste dispositivo manicomial histórico: o
hospital clínico para internar loucos. E, enquanto esta desativação não ocorreu, a
internação dos loucos e doentes físicos continuava a acontecer por uma pressão
interna e externa. Interna, pela pressão histórica do "sempre assim será". Externa,
pela existência do dispositivo especializado.
Ora, há anos a comunidade já aprovara no Conselho Distrital da Área de
Planejamento 3.2 a transformação do antigo Bloco Médico em um hospital de
apoio ou de reabilitação. Com a municipalização do Complexo do Engenho de
Dentro acontecia a possibilidade de uma ação política para a implementação da
proposta. E assim nascia o Hospital Municipal de Reabilitação, destinado a
doentes em recuperação cirúrgica que necessitassem de reabilitação física.
Mesmo que esta proposta ainda não tenha acontecido em sua plenitude (ele
continua com o mesmo número de leitos e com falta de investimento para a
consolidação da proposta), a mudança de seu perfil obrigou a psiquiatria buscar
109
na rede de saúde da área a solução para os problemas de intercorrências clínicas
dos pacientes internados.
Com as dificuldades iniciais na mudança de uma prática historicamente
determinada, hoje podemos dizer que a atenção às intercorrências dos pacientes
internados na psiquiatria está consolidada na rede de saúde da área e ocorre de
forma natural.
Com a extinção de um dispositivo inoperante acontecia uma transformação
na assistência clínica e cirúrgica dos pacientes psiquiátricos internados, mudando,
sobremaneira, a qualidade do cuidado.
A conclusão desta ação exitosa, interferindo na própria percepção dos
serviços de saúde em relação ao paciente psiquiátrico, reforçou a intensidade e
implementação dos outros programas.
Atenção Psicossocial
A organização de uma "porta de entrada" para o atendimento dos casos de
emergência e de pronto atendimento impôs, como missão, a responsabilidade
pelo atendimento integral em saúde mental no território da área de planejamento
3.2 (Grande Méier, composto pelas XIIª, XIIIª e XVIIIª regiões administrativas, com
uma população de aproximadamente 600.000 habitantes).
Dentro desta organização, os três Hospitais-Dia foram sub-regionalizados
dentro da área programática, cada um ficando responsável por uma sub-região,
conforme visualização na figura abaixo. A proposta desta divisão prevêr a saída
dos serviços para a área geográfica de sua responsabilidade. Neste momento, o
primeiro Hospital-Dia que sai para a comunidade (e assim assume o seu papel de
um Centro de Atenção Psicossocial) é o Espaço Aberto ao Tempo, que está
sendo transferido para o bairro do Lins, ficando localizado no território da clientela
que a ele já está sendo referida.
Como conseqüência à descentralização do ambulatório da instituição na
rede básica de saúde do município, existe a proposta de sua deistribuição
conforme a territorialização, visualizada na figura abaixo, nos postos e centros de
saúde hoje existentes na rede.
110
Com esta proposta, em fase de implantação, temos uma cobertura
territorial em saúde mental, na comunidade. O complexo do Engenho de Dentro
derrama-se para fora, na proposta de atenção territorial e descentralização dos
serviços presos na história do manicômio.
Espaço Aberto ao Tempo
Grande Méier: 235.959 hab.
Casa d’Engenho
Inhaúma: 215.361 hab.
Centro de Convivência
Eng. de Dentro: 113.511 hab.
Postos de Saúde
ou PAM
Esta ocupação territorial, prevista no mapa acima, em relação aos
ambulatórios, não necessariamente ocupará todos os pontos potenciais indicados,
mas se dará na medida das possibilidades e demandas. De qualquer forma, o
planejamento estratégico em discussão propõe uma ocupação territorial e
integração destes serviços à rede de saúde mental do município.
No espaço institucional, a proposta pretende a permanência de um CAPS
referenciado à sua população adstrita, entre eles os moradores (denominação
para os antigos pacientes crônicos) que permanecerão na instituição dentro do
programa de moradias, que será examinado na seqüência.
Também o ambulatório nuclear, que restará dentro da instituição, na
proposta estratégica, terá uma missão diferenciada dos atuais serviços
ambulatoriais. Sua missão será, prioritariamente, examinar a situação dos
111
pacientes que estão sendo internados, para o encaixe deles, caso a caso, na rede
de atenção psicossocial da cidade.
Numa proposta em construção, como já foi sinalizado, os modelos deverão
ser submetidos a um teste de realidade com os ajustes necessários. O essencial
nesta construção é a descentralização dos serviços do interior do antigo espaço
manicomial para o território comunitário e o preenchimento deste espaço por
serviços não exclusivos aos loucos, como no antigo manicômio, mas serviços de
atenção à comunidade que incluam ações em saúde mental.
Programa de moradias
Seguindo as recomendações da legislação em vigor (Portaria MS
106/2000,117 bolsa auxílio-desospitalização118), a instituição vem trabalhando em
três frentes para a ressocialização possível de parcela de sua clientela de
pacientes antes ditos crônicos.
Primeiro, através da bolsa auxílio-desospitalização, com reintegração de
alguns pacientes em suas famílias, proposta que tem um limite, dado o
rompimento de laços afetivos, sociais e familiares provocados por um longo
período de internação no antigo modelo manicomial.
Segundo, a mesma bolsa possibilitou a pacientes com um maior grau de
autonomia partirem para o aluguel de casas, sendo assistidos por visitas
domiciliares do Programa de Moradia da instituição e recebendo atenção nos
serviços territoriais em saúde mental. Mesmo não sendo este um número
expressivo quantitativamente, é surpreendente o grau de autonomia alcançado
por pacientes com mais de trinta anos de internação psiquiátrica.119
117
Cria e regulamenta o funcionamento dos "Serviços Residenciais Terapêuticos". "Desde a 2ª Conferência
Nacional de Saúde, realizada em dezembro de 1992, já se apontava a importância estratégica, para a
reestruturação da assistência psiquiátrica, da implantação de lares abrigados, agora mais apropriadamente
designados de serviços residenciais com função terapêutica, parte que são do conjunto de cuidados no campo
da atenção psicossocial. Esta portaria tem um papel crucial na consolidação do processo de substituição do
modelo tradicional, pois possibilita desenvolver uma estrutura que contrapõe-se à tão propalada, e para alguns
insubstituível, 'hospitalidade' do hospital psiquiátrico" ( MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2002; 89).
118
Lei nº 3400 de 17 de maio de 2002, "Cria a Bolsa de Incentivo para Assistência, Acompanhamento e
Integração fora de unidade hospitalar de paciente portador de transtorno mental com história de longa
permanência em unidade hospitalar psiquiátrica".
119
Aqui autonomia não leva em consideração o quadro clínico psiquiátrico, mas o nível de relações alcançadas
na comunidade. Sobre o conceito de autonomia ver TYKANORI (1996).
112
Em terceiro lugar, a combinação da bolsa com a instituição de residências
terapêuticas,
financiadas
pelo
instrumento
da
Portaria
106/2000,
vem
possibilitando a saída de um número maior de pacientes longamente
internados.120
Entretanto a grande maioria de moradores continua a ocupar espaços de
enfermaria na instituição. Para estes foi proposta uma reformulação arquitetônica
de uma unidade da instituição, projeto aprovado, aguardando a liberação de
recursos, e detalhado numa tese de mestrado da arquiteta Maria Paula Zambrano
Fontes (FONTES, 2003), autora do projeto.
Sobre a requalificação dos espaços do antigo pavilhão Adauto Botelho a
autora escreve:
"Quanto ao pavimento tipo, o programa fornecido pela Instituição já se
encontrava bastante definido, compondo-se, basicamente, da
concepção dos apartamentos, no lugar das atuais enfermarias. A ele foi
acrescentada a ampliação do número de apartamentos, eliminando os
ambientes atualmente destinados às equipes. Propomos que as
equipes ocupem apartamentos comuns, iguais aos pacientes, de modo
a permitir uma maior integração entre os clientes e funcionários,
reduzindo a sensação de hierarquia entre eles. Desenvolvemos,
também, diferentes tipos de apartamentos, de modo a flexibilizar a sua
ocupação. Foram criados apartamentos de um e dois quartos, a serem
ocupados por duas a quatro pessoas.
"Os apartamentos possuirão uma pequena copa, para que os clientes
possam, de acordo com suas condições de autonomia, preparar suas
próprias refeições.
"Foi criada uma área central de convívio e refeitório (para os clientes
que não quiserem utilizá-la, haverá espaço para refeições nos
apartamentos), já que as alas não terão mais as portas de grades na
sua entrada. O espaço das circulações se encontrará livre, integrado às
duas alas de moradias.
"Cada ala contará, em sua extremidade, onde atualmente se localiza o
banheiro coletivo, com uma área de serviço, onde os moradores
poderão proceder aos cuidados com suas roupas.
"O dimensionamento dos vãos das portas e ambientes, especialmente
os banheiros privativos dos apartamentos foi projetado segundo as
normas da ABNT para acessibilidade. Os banheiros deverão receber,
conforme a necessidade, equipamentos para portadores de
dificuldades de locomoção, como barras de apoio e bancos.
120
A primeira residência, para quatro ex-pacientes, foi viabilizada em outubro de 2003. Nesta primeira etapa
já há liberação de recursos para mais três residências terapêuticas, em fase de implantação.
113
"Durante a pesquisa de campo, foi observado que algumas clientes não
gostam de descer ao térreo para atividades, que outras gostam de
realizar trabalhos manuais, e que algumas atividades, como
musicoterapia, às vezes são realizadas nos halls dos pavimentos. Por
isto, foi criada, por pavimento, na área central, uma oficina, onde estas
atividades possam ser realizadas com mais conforto.
"Foi eliminado o posto de enfermagem, considerado desnecessário,
segundo alguns entrevistados, sendo mantida apenas uma sala de
serviços, que também poderá ser utilizada para as reuniões das
equipes" (FONTES, 2003): 155/6).
Esta longa citação sobre a requalificação dos espaços destinados a
moradias internas mostra o refinamento do projeto elaborado por FONTES, que
partiu de uma discussão interna com os funcionários e pacientes a quem o projeto
se propõe a abrigar.
No proposta de restruturação assistencial este prédio não será destinado
exclusivamente a moradores egressos do hospital psiquiátrico, como será
explicitado na seqüência.
A projeção futura para o Instituto Municipal Nise da Silveira
O projeto de ocupação do espaço institucional passa por uma reformulação
do projeto
assistencial. A radicalidade da descentralização imposta na
desmontagem manicomial impõe, por sua vez, uma nova destinação da missão
organizacional das formas de ocupação
do espaço. Da mesma forma que a
incorporação dos programas de saúde metal pela rede de saúde e na comunidade
está sendo proposta aos serviços que estão sendo colocados fora do espaço
institucional, dentro da instituição, os programas de saúde metal que ficam têm de
incorporar outros programas de saúde, sociais, educacionais, de habitação, lazer,
esportivos e comunitários em geral.
As instituições totais são autônomas, prescindem de relações exteriores,
bastando a si mesmas, o que tira a autonomia dos seus habitantes. A autonomia
do sujeito está relacionada ao grau de dependência às suas relações sociais,121 o
121
Sobre autonomia enquanto dependência de relações, consultar TYKANORY (1996).
114
que tira a autonomia da instituição e força a sua interação ao ambiente. A
dependência institucional possibilita a autonomia dos seus freqüentadores, que se
torna maior na dependência de relações externas.
Esta compreensão leva inevitavelmente a abertura do espaço da instituição
para projetos além dos que exclusivamente tratam o saber psiquiátrico. Até
porque o conceito de saúde metal não pode ser reduzido a um campo do saber,
mas, inevitavelmente, propõe a participação de vários saberes e interações com
as relações sociais pertencentes à vida em comunidade.
Dentro desta perspectiva e numa projeção futura, a saída de vários
serviços para a composição da rede de saúde mental da cidade, direção que está
sendo seguida, não esvazia a missão institucional do Instituto Municipal Nise da
Silveira. Mas, é necessária a requalificação do seu papel. Uma redefinição
institucional, dentro da mudança de sua função histórica, passa a fazer parte de
um planejamento estratégico voltado a dois campos de ação: adequação de
serviços complementares para o desenvolvimento dos projetos da rede de saúde
mental no município, seja no campo da pesquisa histórica, recuperando a
documentação pertencente à história da psiquiatria, ou da formação de recursos
humanos e supervisão para um melhor funcionamento da rede, ou, ainda, na
prestação de serviços que não possam passar, de imediato, para a rede de saúde
mental municipal. No outro campo de ação temos a inter-setorialidade
da
instituição com projetos de outras secretarias, proposta que no município do Rio
de Janeiro convencionou-se chamar de macro-função,122 além da interação com
projetos comunitários e da sociedade civil organizada.
Campo de ações inter-setoriais:
De certa forma, na história recente da instituição podemos encontrar um
embrião da proposta de inter-relações: a existência de um abrigo para menores
pertencente à Secretaria Municipal de Desenvolvimento Social (SMDS), o
funcionamento de uma escola para alunos especiais, um Núcleo de Artes e Clube
122
No âmbito da Prefeitura do Rio de Janeiro a macro-função é entendida como um somatório de esforços de
diferentes secretarias municipais para uma ação comum em um determinado problema. Como exemplo podese falar do projeto Favela-Bairro, já que numa intervenção comunitária é necessária a discussão do
saneamento, habitação, educação, esporte e lazer, saúde, etc., como parte do mesmo problema, juntando nesta
ação na comunidade diversas esferas do poder público com suas secretarias específicas.
115
Escolar, serviços da Secretaria Municipal de Educação (SME), o recém-criado
Hospital Municipal de Reabilitação da SMS e, ainda, as diversas entidades
comunitárias e sociais que compõem o Centro Comunitário, já permeiam o espaço
institucional.
Entretanto, avançar na proposta de inter-relações significa ampliar estas
ações para outras atividades e criar um "condomínio" gerencial, superando as
ações isoladas, para que as atividades sejam integradoras e os projetos se interrelacionem de forma a constituírem ações inter-setoriais. A ampliação destas
ações permite parcerias as mais diversas. O Museu de Imagens do Inconsciente e
seu rico acervo, assim como os arquivos da história da psiquiatria, permitem uma
parceria com a Secretaria Municipal das Culturas (SMC) para uma melhor
divulgação e utilização pela comunidade. O projeto de moradias internas permite
uma parceria com a Secretaria de Desenvolvimento Social (SMDS) para a
implantação de abrigos destinados a populações marginalizadas, não exclusivas
do campo do saber psiquiátrico. Os projetos de ensino e pesquisa permitem
ampliar parcerias com Universidades e propiciar campo para pesquisa acadêmica.
A comunidade do entorno e os clientes do Instituto solicitam a implantação de um
parque esportivo, parceria possível com a Secretaria Municipal de Esporte e Lazer
(SMEL).
O campo de ações inter-setoriais é um projeto em construção, que tem um
viés de ocupação do espaço público e outro para ações conjuntas no campo da
saúde mental, não podendo ser projetado em detalhamento futuro. O campo em
construção permite ações inter-setoriais de acordo com as necessidades
estabelecidas no processo.
Adequação de serviços complementares à rede de saúde mental:
A Emergência Psiquiátrica Especializada e a Enfermaria de Crise são
dispositivos descendentes do manicômio. Hoje é consenso que a Emergência
Psiquiátrica deve ser integrada à Emergência Clínica Geral e que a Enfermaria
Psiquiátrica deve ser acoplada aos Hospitais Gerais (DELGADO, 1997-A, BRASIL,
1982). Entretanto, presos à história do manicômio no Rio de Janeiro, estes
dispositivos especializados ainda perdurarão por um período considerável,
116
mormente seja examinada a situação de dificuldades por que passa os hospitais
gerais no município. Esta proposta, sem dilemas no campo da saúde mental,
encontra forte resistência na rede de saúde hospitalar. As dificuldades por que
passam os hospitais gerais não permitem esta passagem necessária à construção
de uma rede de saúde mental que, no momento, possa prescindir da
especialização e fazer acontecer a proposta da Reforma Psiquiátrica brasileira
com a radicalidade do sonho "por uma sociedade sem manicômios".
Enquanto perdure a Emergência Especializada e as Enfermarias de Crise
no Instituto Municipal Nise da Silveira, a proposição estratégica pressupõe um
serviço pequeno, sendo vigilante nas suas práticas antimanicomiais, estando em
permanente reavaliação e estando pronto para a absorção na rede de saúde em
geral logo que possível. A proposição estratégica deve levar em conta seu caráter
provisório e a vigilância para que seu fim seja a meta.
No espaço do Instituto algumas moradias, na forma de lar abrigado, serão
viáveis conforme aconteceu na reforma italiana em Trieste.
O Museu de Imagens do Inconsciente com o seu novo projeto
arquitetônico, já aprovado, tem no espaço do Instituto um lugar de destaque. Na
proposição estratégica, o espaço para um Museu da História da Psiquiatria e um
Centro de Pesquisa que abrigue a biblioteca, prontuários e livros de ocorrências
que documentem as práticas da história psiquiátrica devem ocupar o projeto de
desinstitucionalização do antigo Hospício de Engenho de Dentro.
Finalmente, o Centro de Estudos deve ter caráter formador e de supervisão
dos projetos assistenciais desenvolvidos na rede de saúde mental do município.
117
O provisório da conclusão...
Este ensaio não se propõe conclusivo. Nem o caminho percorrido pretende
um desfecho inevitável. São vários os destinos apresentados ao manicômio que
procura seu fim. Aqui importa apontar saídas para o fim.
Tentando concluir este trabalho, sabidamente de uma forma provisória,
deixamos para uma reflexão futura, ou retomada desta empreitada, que a história
da psiquiatria no Brasil marcou de uma forma indelével a constituição do Hospício
do Engenho de Dentro. As proposições estratégicas para a sua superação devem
levar em conta esta marca.
Dois momentos trazem para a discussão de sua superação marcas
históricas de profunda intensidade. Um pouco ao longe temos a constituição do
Hospício do Engenho de Dentro com uma história própria que tem em Gustavo
Riedel seu marco fundador simbólico. O primeiro Ambulatório de Doenças
Mentais da América Latina, o Rivadávia Correa, e a constituição de residências
heterofamiliares são marcos do Engenho de Dentro. Apesar dos impedimentos
concernentes à história da psiquiatria e à hegemonia do pensamento eugênico,
como vimos no terceiro capítulo, são projetos para fora do manicômio,
precursores do ambulatório na rede, dos centros de atenção psicossocial e de um
programa de moradias e lares abrigados. O desenvolvimento do pensamento
psiquiátrico na época tornou possível a absorção do Hospício de Pedro II pelo
Hospício do Engenho de Dentro. O projeto da Praia Vermelha já vinha em
declínio, após o período de Juliano Moreira, e o momento histórico permitiu a
hegemonia do projeto do Engenho de Dentro e a incorporação do antigo Hospício
de Pedro II.
Num momento mais recente, a Reforma Psiquiátrica brasileira pecou na
superação do manicômio. Primeiro com uma proposta tênue de humanização na
década de 1980; depois, com a desistência dos atores para o movimento da
superação. A resistência burocrática permitiu a recuperação dos princípios
manicomiais.
118
Neste momento presente o que se propõe é uma reformulação estratégica
de superação, aproveitando a municipalização de um hospital federal, para que os
serviços existentes possam, de fato, serem absorvidos pela rede de saúde mental
da cidade, tirando do manicômio a organização e execução das ações em saúde
mental.
Os primeiros passos nesta direção coincidem com o provisório desta
conclusão. O que está proposto neste ensaio é a direção que o acúmulo de
conhecimento diz ser possível, não quais os caminhos que serão percorridos. Não
se pode perder o tempo de plantar para que a colheita seja farta. E o tempo de
sonhar "por uma sociedade sem manicômios" permite o devaneio poético:
"Minha fé em todas as colheitas do futuro se afirma no presente. E
declaro, por muito que se saiba, que a poesia é indestrutível." (PLABO
NERUDA)
119
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