Número 7 - iiLer - PUC-Rio

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Número 7 - iiLer - PUC-Rio
número 7
fev., 2015
ISSN 2179-2801
Corpo editorial
Diretor do Instituto Interdisciplinar de Leitura (iiLer) / Cátedra UNESCO de Leitura PUC-Rio
Luiz Antonio Coelho
Editor
Alessandro Rocha — Instituto Interdisciplinar de Leitura (iiLer) / Cátedra UNESCO de Leitura / Pontifícia Universidade Católica (PUC-Rio)
Editoras deste número:
Ebe Maria de Lima Siqueira (UEG)
Goiandira Ortiz de Camargo (UFG)
Editora assistente
Roberta Calixto — Instituto Interdisciplinar de Leitura (iiLer) / Cátedra UNESCO de Leitura / Pontifícia
Universidade Católica (PUC-Rio)
2
Conselho editorial Brasil
Alberto Cipiniuk — Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio)
André Moura — Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio)
Benedito Antunes — Universidade Estadual Paulista (UNESP)
César Pessoa Pimentel — Faculdade de Ciências Médicas e Paramédicas Fluminense (SEFLU)
Daniel Coelho — Universidade Federal do Sergipe (UFS)
Evando B. Nascimento — Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF)
Goiandira O. de Camargo ­— Universidade Federal de Goiás (UFG)
Helena Calone — Secretaria de Cultura do Acre
Leonardo Pinto de Almeida — Universidade Federal Fluminense (UFF)
Marcelo Santana Ferreira — Universidade Federal Fluminense (UFF)
Marly Amarilha — Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN)
Patrícia Constâncio — Prefeitura Municipal de Blumenau/AMEL
Patrícia Kátia Costa Pina — Universidade do Estado da Bahia (UNEB)
Paula Glenadel Leal — Universidade Federal Fluminense (UFF)
Ricardo Salztrager — Universidade Federal Fluminense (UFF)
Rogério da Silva Lima — Universidade de Brasília (UnB)
Rosana Kohl Bines — Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio)
Rui de Oliveira — Universidade Estadual da Paraíba (UEPB)
Santinho Ferreira de Souza — Universidade Federal do Espírito Santo (UFES)
Sylvia Maria Trusen — Universidade Federal do Pará (UFPA)
Solimar Patriota Silva — Universidade do Grande Rio (Unigranrio)
Valéria da Silva Medeiros — Universidade Federal do Tocantins (UFT)
Vera Teixeira de Aguiar — Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS)
3
Conselho editorial estrangeiro
Cecília Avenatti — Pontifícia Universidade Católica da Argentina (UCA – Buenos Aires)
David Acevedo Santiago — Secretaria de Educación Pública (México)
Ernesto Abad — Universidad de La Laguna (Canarias)
Fernando Avendaño — Universidad Nacional de Rosário (UNR – Rosário)
Jacques Leenhardt — L’École des Hautes Études en Sciences (EHESS – França)
Jorge Larrosa — Universidat de Barcelona (UB – Espanha)
Nicolás Extremeva Tapia — Universidad de Granada (Espanha)
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Sumário
Editorial
7
Ebe Maria de Lima Siqueira & Goiandira Ortiz de Camargo
Estudo teórico
Práticas plurais de leitura entre os jovens no cenário atual
11
Solangi Corsi (PPLL/UFG) & Agostinho Potenciano de Souza (UFG)
Sobre a literatura fora e dentro da escola: um convite à revisão das premissas
do letramento literário em âmbito escolar
22
Deusa Castro Barros
Histórias Coralinas aos olhos de Maria Grampinho
33
Diane Valdez
“Cântico da volta”: vivências de um repertencimento
45
Ebe Maria de Lima Siqueira
Leitura e ensino de poesia: uma didática da emoção
52
Maria Severina Batista Guimarães
Bons livros para bons leitores
61
Vera Maria Tietzmann Silva
Uma janela para o mundo: a leitura como arte na aquisição do conhecimento
69
José Geraldo da Rocha, Rosane Cristina Oliveira & Anna Paula Lemos
Temas transversais de formação geral e redes sociais: experiências
educacionais inovadoras no ensino superior
76
Anna Paula Soares Lemos, Joaquim Humberto Coelho de Oliveira,
Lucimar Levenhagen Alarcon da Fonseca & Tania Maria da Silva Amaro de Almeida
5
Resenhas
Indefinições e descaminhos de um menino que não queria ser príncipe
e outras histórias encantadas
84
Meirilayne Ribeiro de Oliveira
Como uma carta de amor: a escrita encantatória de Marina Colasanti
87
Poliane Vieira Nogueira
Escritos em verbal de ave nos desenhos líricos de Manoel de Barros
91
Rosidelma Pereira Fraga
Relato de experiência profissional
Mediação de leitura: práticas de ensino
97
Joana de Oliveira Ferreira Paiva
Entrevista
Entrevista com Maria Zaira Turchi
106
6
Editorial
Ebe Maria de Lima Siqueira
Goiandira Ortiz de Camargo
A ideia de que a leitura, em especial a literária, é um bem indissociável da busca de humanização do
ser humano e da sua formação para o conhecimento e a cidadania parece ser uma verdade, que resiste e prossegue em parte significativa do discurso da “cultura das humanidades”. Escritores, filósofos,
estudiosos da área reafirmam o que já se tornou lugar comum: nos apropriamos de uma realidade,
a dispomos de uma determinada forma e concedemos-lhe um sentido para partilhá-la, memorizá-la
e acessá-la na vida diária ou mais tarde por meio da leitura, seja aquela fundada na oralidade, seja
aquela produzida no âmbito da escrita das artes e das ciências. Ler é algo que nós estamos fazendo a
todo momento de modo superficial e alheios ao que nos exige a realidade ao redor e dentro de nós
mesmos; ou ainda de modo atento e mobilizador dessa mesma realidade para participar dela, quando,
no gesto pleno de ler, a reciframos com um olhar próprio e singular e a devolvemos ao mundo sob a
forma de textos: literários ou aqueles das diversas áreas do conhecimento humano.
É o que fazem os pesquisadores reunidos no presente número da Ler em revista. Suas contribuições vão
desde o exercício do magistério, com foco nas questões da leitura, do ensino da literatura e da formação
de leitor, passando pela reflexão em torno da escrita para a infância até às pesquisas sobre os mesmos
temas ancoradas em rede, na qual a aproximação de interesses comuns de especialistas distantes espacialmente resultam em um fortalecimento do que se tem feito nos meios educacionais goianos.
Temos neste número oito artigos, três resenhas, um relato de experiência e uma entrevista. No
artigo “Práticas plurais de leitura entre os jovens no cenário atual”, Agostinho Potenciano de Souza e Solange Corsi apresentam resultado de pesquisa sobre as práticas dos jovens leitores fora do
ambiente escolar. Para isso, escolheram a livraria e a biblioteca como espaços de investigação. Com
base em Manguel (1997), Chartier (1999), Darnton (2010), De Certeau (2014), mostram como,
naqueles espaços, o aval de certos canais ligados ao mercado editorial e a escola podem influenciar
na escolha do livro pelos discentes.
No mesmo campo temático, porém trazendo reflexões específicas sobre mediação e letramento
literário e tendo como escopo as práticas de leitura literária, o texto “Sobre a literatura fora e dentro
da escola: um convite à revisão das premissas do letramento literário em âmbito escolar”, de Deusa
Castro, discute as práticas leitoras em contextos escolar e extraescolar, observando como as estratégias empregadas no ambiente fora da escola podem ser absorvidas e contribuir positivamente para
o que se faz no ensino da literatura nas escolas. Chartier, Bourdieu, Collomer, além de Manguel, são
referências da autora.
Diane Valdez, escritora reconhecida pelos livros de literatura infantil e juvenil, com temas extraídos
da realidade goiana, escreve um texto ensaístico no qual trata da sua experiência de escrever, especialmente discorre sobre o livro O que teria na trouxa de Maria? Valdez à medida que assume o risco
de criar um mundo imaginário ficcional e responder por ele diante de seus jovens leitores, busca a
formação desses jovens. No ensaio, podemos perceber a sensibilidade criadora articulada a da professora que tem suas práticas voltadas para a questão da leitura.
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Ebe Maria de Lima Siqueira, em texto ensaístico, apresenta a leitura que a poetisa Cora Coralina faz
da Cidade de Goiás em seu poema “Cântico da volta”, de 1956, para, como uma provocação produtiva, articulá-la às aulas de Educação Patrimonial, que deveriam integrar o currículo das escolas
situadas em cidades patrimônios culturais. Para a autora, Cora Coralina em sua obra poética e de
prosa empreende seu repertencimento à Cidade de Goiás, da qual saiu ainda jovem, voltando 45
anos depois, para revelá-la verdadeira e bela aos seus leitores.
Já Maria Severina Batista Guimarães se detém na formação de leitor de poesia. Defende a pesquisadora estratégias que articulem conhecimento e emoção na leitura da poesia brasileira contemporânea. Acredita ainda que em seu discurso de resistência apontando para a utopia, o texto poético é
fator de humanização do homem. Bosi, Cosson e Paz são recorrências importantes na discussão que
a autora empreende.
Vera Maria Tietzmann, com sua experiência de muitos anos dedicados ao magistério no ensino
superior e grande parte dele dedicado à causa da leitura e da literatura infantil e juvenil, centra-se
no mediador de práticas leitoras dos últimos anos do ensino fundamental, do ensino médio e do EJA
para demonstrar como boas estratégias de leitura e bons livros podem resultar em leitores críticos.
Os dois últimos artigos são marcados por um esforço coletivo e interdisciplinar no sentido de perceber a importância da leitura em suas múltiplas linguagens no contexto da universidade. Em “Uma
janela para o mundo: a leitura como arte na aquisição do conhecimento” José Geraldo da Rocha,
Rosane Cristina Oliveira e Anna Paula Lemos articulam o tema da globalização, com as realidades
locais. Fechando a lista dos artigos, Anna Paula Soares Lemos, Humberto Coelho Oliveira, Lucimar
Levenhagem Alarcon da Fonseca e Tania Maria Silva Amaro de Almeida apresentam importante pesquisa sobre os temas transversais na formação geral a partir de uma investigação sobre a utilização
das redes sociais em experiências educacionais.
As resenhas são de jovens autoras, que se revelam também leitoras afetivas das obras em análise.
Meirilayne Ribeiro de Oliveira escreve sobre O menino que não queria ser príncipe e outras histórias
encantadas, de Georgina Martins, cuja primeira edição é de 2012. Georgina Martins segue uma
tendência atual da literatura infantil e juvenil de retomar e desconstruir as narrativas tradicionais,
contribuindo para que o leitor criança inicie a construção de sua memória intertextual à medida que,
de alguma forma e em algum momento, o texto lembrado por aquele que está a ler será trazido para
a trama da leitura a ser feita.
Já Poliane Vieira Nogueira resenha o livro Como uma carta de amor, de Marina Colasanti, publicado em 2014. Pela fantasia, com reminiscências dos contos de fadas, o livro de Colasanti traz para o
jovem leitor temas universais como a solidão, a identidade, as relações com a família e o amor, reafirmando o que sempre buscamos e encontramos em seus livros: histórias que nos exigem amorosamente a entrega a um mundo imaginário do qual saímos mais humanos, mais propícios à inexatidão
da vida, às contradições da realidade.
Rosidelma Pereira Fraga resenha Escritos em verbal de ave, de Manoel de Barros, publicado em
2011. Sua resenha nos levanta o véu da saudade: Manoel de Barros, poeta dos mais queridos pelo
que escrevia, pela sua figura acanhada e de olhar às vezes tristes debaixo dos óculos de lentes grossas, faleceu em 2014. Sua obra, sem endereçamento certo, se para adulto, se para crianças e jovens,
alcança a todos e nos faz experimentar algo que só encontra limites na imaginação. Fraga trata em
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sua resenha especialmente dos desenhos do poeta e do projeto gráfico do livro. De fato, o formato
de uma folha aberta, que, em dobras, se transforma no livro, é a representação da falta de limites de
criar que marcou e marca a obra do poeta Barros.
Joana de Oliveira Ferreira Paiva faz um relato de sua experiência como professora da primeira fase
do Ensino Fundamental na Escola Letras de Alfenim, localizada na Cidade de Goiás – Goiás. A autora
discorre sobre sua experiência, tendo a Pedagogia de Projetos como base para iniciar crianças na
leitura de obras literárias, desde o letramento, o ler por fruição e o ler para compreender a si próprio
e o mundo. Seu relato mostra que o ensinar a leitura, se isso for possível, é um processo de aprendizagem em que todos se beneficiam do conhecimento, a começar pelo mediador.
Finalizamos o nosso número com uma entrevista feita com Maria Zaira Turchi. Professora e pesquisadora da Faculdade de Letras da Universidade Federal de Goiás, Zaira Turchi, como é mais conhecida, tem uma história de vida comprometida com a educação e a pesquisa em Goiás. Atualmente é
presidente da FAPEG – Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Goiás. Zaira Turchi tem atuado
de forma significativa para avançar a pesquisa feita em Goiás e colocá-la em lugar de destaque no
cenário nacional. A entrevista mostra um pouco do que essa jovem senhora tem realizado.
Esperamos que esse número da Ler em Revista possa trazer um pouco aos leitores de todo o País o
que tem sido feito em Goiás, especialmente na área da leitura. O nosso Brasil é imensamente vasto,
em cada canto de seu território respira sua riqueza levantada cotidianamente por pessoas que acreditam na educação. É o que mostram os autores presentes neste número.
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ESTUDO TEÓRICO
Práticas plurais de leitura entre os jovens no cenário atual
Plural practices of reading among young people in the current scenario
Prácticas plurales de la lectura entre los jóvenes en el escenario actual
Solangi Corsi (PPLL/UFG)1
Agostinho Potenciano de Souza (UFG)2
Resumo
Este estudo tem como objetivo analisar as práticas de leitura dos jovens leitores no cenário atual. Estariam eles lendo?
Quais as suas principais influências para essa prática? Como a livraria e a escola contribuem para a formação desse gosto? Esses são alguns questionamentos norteadores para a discussão, tomando como referencial teórico os postulados
de Manguel (1997), Chartier (1999), Darnton (2010), De Certeau (2014), entre outros estudiosos. Nos discursos dos
estudantes, de acordo com pesquisa realizada por Corsi (2010) sobre as práticas de leitura de jovens em uma biblioteca
pública e uma livraria, destaca-se a grande influência, que se faz presente nas livrarias, da mídia editorial, a qual, por sua
vez, conta ainda com outro forte aliado: o Prêmio Jabuti, que tem se tornado uma importante referência da literatura
nacional para o mercado editorial brasileiro. Os livros premiados acabam influenciando diretamente nas vendas, motivando vários leitores a consumirem os novos e nobres títulos. Ainda há a contribuição do meio escolar, que atua de forma determinante na formação leitora dos discentes. Os resultados apontam que a escola e sobretudo a mídia exercem
papéis decisivos na formação do gosto e da prática de leitura dos jovens.
Palavras-chave: Leitura. Formação do leitor. Livraria. Mídia. Jovens leitores.
Abstract
This study aims to analyze the reading practices of young readers in the current scenario. Are they reading? What are
your main influences for this practice? As the library and the school contribute to the formation of taste? These are
some guiding questions for discussion, taking as a theoretical postulates of Manguel (1997), Chartier (1999), Darnton
(2010), De Certeau (2014), among others. In the speeches of the students, according to research by Corsi (2010) on
youth reading practices in a public library and a bookstore, there is the great influence that is present in bookstores, the
editorial media, which in turn, also has another strong ally: the Jabuti Prize, which has become an important reference
for the Brazilian national literature publishing. The award-winning books end up directly influencing sales, motivating
many readers to consume the new and noble titles. There is still the contribution of the school environment, which acts
decisively in the reader formation of students. The results show that the school and especially the media play key roles
in shaping the taste and the practice of reading to young people.
Keywords: Reading. Formation reader. Bookstore. Media. Young readers.
Resumen
Este estudio tiene como objetivo analizar las prácticas de lectura de los jóvenes lectores en el escenario actual. ¿Estarían
ellos leyendo? ¿Cuáles son sus principales influencias para esa práctica? ¿Cómo la librería y la escuela contribuyen para
la formación de ese gusto? Esos son algunos cuestionamientos importantes para la discusión, tomando como referencia
teórica los postulados de Manguel (1997), Chartier (1999), Darnton (2010), De Certeau (2014), entre otros estudiosos.
En los discursos de los estudiantes, de acuerdo con la investigación realizada por Corsi (2010) sobre las prácticas de
1 Doutoranda em Estudos Literários do Programa de Pós-Graduação em Letras e Linguística - UFG
2 Doutor em Linguística. Professor da Faculdade de Letras – UFG E-mail: [email protected]
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LEITURA EM REVISTA iiLer / Cátedra UNESCO de Leitura PUC-Rio n.7, fev., 2015
lectura de los jóvenes en una biblioteca pública y una libreria, se destaca la gran influencia, que está presente en las
grandes librerías, del mercado editorial, el cual, por su vez, cuenta aún con otro fuerte aliado: el Premio Jabuti, que ha
sido una importante referencia de la literatura nacional para el mercado editorial brasileño. Los libros premiados acaban
influyendo directamente en las ventas, motivando varios lectores para que consuman los nuevos y nobles títulos. Todavía hay la contribución del medio escolar, que actúa de forma determinante en la formación lectora de los dicentes. Los
resultados apuntan que la escuela y sobretodo el mercado editorial ejercen roles decisivos en la formación del gusto y
de la práctica de lectura de los jóvenes.
Palabras clave: Lectura. Formación del lector. Librería. Mercado editorial. Jóvenes lectores.
Os livros declaram-se por meio de seus títulos, seus autores, seus lugares num catálogo ou uma estante,
pelas ilustrações em suas capas: declaram-se também pelo tamanho. [...] julgo um livro por sua capa: julgo
um livro por sua forma. (Alberto Manguel)
Desde os tempos mais remotos os livros, em seus mais diferentes formatos, exercem até hoje um
grande fascínio no leitor. Seja na época em que se lia nas desconfortáveis tabuletas de argila, ou no
momento em que se tinha que desenrolar os papiros, ou pegar um códex manuscrito em pergaminhos, ou um livro impresso em papel, ou, nos últimos vinte anos, acessar um livro digital para ler,
o desejo em adentrar no mundo da palavra escrita conquistou os leitores que, aos poucos, foram
crescendo em quantidade no decorrer dos séculos.
Provocador de encanto e deleite, o livro é um objeto que, atualmente, parece seduzir ainda mais.
Expostos nas vitrines das megalivrarias, com capas suntuosas e títulos sugestivos, atraem a atenção
de diversos públicos. Essa é uma grande estratégia do mercado editorial, que visa estimular as compras, principalmente aquelas feitas por impulso. Assim, o livro, em sua materialidade, desperta a
atenção do leitor. Não apenas o conteúdo interessa, mas todo o seu formato físico, tal como destaca
Alberto Manguel (1997). Os atos de leitura demandaram, no correr do tempo, diferentes formatos
dos livros, que não estabelecem apenas diferenças materiais, sendo adaptados aos usos e às necessidades dos leitores, estimulando novas formas de uso e novas relações entre o leitor e o texto.
O poder das mídias editoriais é, de fato, bastante surpreendente. Não basta apenas que os escritores
e as editoras lancem um bom tema, que agradará diversos públicos. Há todo um processo de produção, constituído pela mídia editorial, que atenderá ou instigará necessidades reais ou simbólicas de
seu público-alvo. Essas necessidades, muitas vezes, são estimuladas pelos discursos ideológicos. O
livro torna-se, então, criação da cooperação de impressores, de capistas, de ilustradores, de editores,
de autores, entre outros, diferentes sujeitos que interferem desde as formas materiais assumidas
pelo texto até a efetiva conversão em livro. O resultado é que essas formas materiais que dão suporte
ao texto contribuem na evocação de novos públicos ou de usos inéditos. Isso ocorre de maneira mais
efusiva nos ambientes das grandes livrarias, que contam ainda com um forte e amplo apoio de divulgação: o famoso Prêmio Jabuti, o mais tradicional na área de livros no Brasil. Ele tem se tornado uma
importante referência para o mercado editorial brasileiro. As obras indicadas acabam contribuindo
diretamente nas vendas, motivando vários leitores a comprarem e consumirem os nobres títulos.
O objetivo deste artigo é, pois, analisar como a mídia editorial influencia no gosto dos leitores e
na prática de leitura, com a oferta de diversos títulos que são disponibilizados a todo momento no
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mercado. A livraria atua como espaço de destaque da mídia editorial, com atrativos produtos para
encaminhar o leitor que passeia pelo ambiente em busca de novidades. Entre esta, além da vistosa
lista dos best-sellers, conta com um grande aliado, o Prêmio Jabuti, para oferecer uma gama de possibilidades nacionais, aos variados tipos de leitores que frequentam o local.
Vivemos na era da informação, da acessibilidade, da interatividade, de novas tecnologias e fontes de
conhecimentos diversificados, que acabam por proporcionar, por vezes, agilidade, praticidade e conforto em nossas atividades cotidianas. O livro eletrônico, por exemplo, em ascensão desde o final do
século XX, é um dos grandes recursos digitais do momento e proporcionou, segundo Roger Chartier
(1999a), uma grande revolução no campo da leitura, somando-se, portanto, às outras formas de ler,
como o suporte impresso, podendo motivar ainda mais o jovem, já adepto às novas tecnologias, em sua
prática leitora, uma vez que lhe possibilita um suporte a mais de contato com os mais diversos livros.
Não há, pois, como escapar ao fluxo intenso de informações e inovações. Somos, ao mesmo tempo,
leitores, espectadores e internautas, tal como define Néstor García Canclini (2008), que demonstra,
em simples exemplos, como o sujeito da pós-modernidade concilia, simultaneamente, essas diferentes funções em uma mesma atividade:
Você está dirigindo o carro enquanto ouve um áudio-livro e é interrompido por uma ligação no celular. Ou
você está em casa, sentado numa poltrona, com o romance que acabou de comprar, enquanto na televisão ligada à espera do noticiário passam um anúncio sobre as novas funções do iPod. Você se levanta e vai
até o computador para ver se compreende essas novidades que não estão mais nas enciclopédias de papel
e, de repente, percebe quantas vezes, mesmo para procurar dados sobre outros séculos, recorre a esses
novos patrimônios da humanidade que se chamam Google e Yahoo (CANCLINI, 2008: 11).
Com os avanços tecnológicos, a multiplicidade e simultaneidade de ações se tornaram características típicas da sociedade atual, fruto do sistema capitalista, que a tudo reproduz em série, com
velocidade e praticidade. Assim, não apenas a produção se tornou rápida e plural, mas o indivíduo
também se multiplicou, ampliando o número de suas funções, não sendo raras execuções de diversas atividades em um só momento, tal como ocorre com o leitor/espectador/internauta.
A revolução digital foi, pois, um marco significativo para a democratização do saber, e embora saibamos que ela não cessará tão cedo de crescer e expandir-se, proporcionando outros meios tecnológicos ainda mais inovadores, não podemos crer que isso resulte um dia na morte do livro ou do
leitor. Ao contrário. O mais provável é haver a complementaridade e coexistência entre os diferentes
suportes de discurso, o que resultará em “uma nova relação, tanto física quanto intelectual e estética, com o mundo dos textos” (CHARTIER, 2000: 22).
Umberto Eco e Jean-Claude Carrière (2010), já no sugestivo título anunciam: não contem com o fim
do livro. Para ambos estudiosos, que descontraidamente dialogam sobre o tema, o livro não morrerá, como profeticamente é apregoado pela opinião pública. Eles partem do pressuposto de que a
história dos livros e o amor a eles os resguardarão da dissipação. Apesar de esse objeto ter adquirido diferentes variações no decorrer dos séculos, ele não modificou sua função básica em mais de
500 anos de existência. Como ressaltam os autores “o livro é como a colher, o martelo, a roda ou
a tesoura. Uma vez inventados, não podem ser aprimorados” (CARRIÈRE & ECO, 2010: 16-17). Por
isso, eles acreditam que o livro, mesmo obtendo novas alterações, resistirá às inovadoras técnicas
digitais que por ventura surgirão.
Por mais que novos suportes surjam, o livro, em sua essência, permanecerá. Ainda que aparelhos
digitais específicos para a leitura sejam cada vez mais produzidos, com a finalidade de proporcionar
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maior conforto ao leitor, o livro impresso, parece ser ainda mais prático de manusear, além de ser
mais convidativo e instigante, prendendo mais a atenção, não tornando a leitura tão cansativa como
a da tela, principalmente quando o número de páginas é bastante extenso. Darnton (2010) ressalta
os valores e benefícios desse objeto de consumo e desejo:
Pense no livro. Sua resistência é extraordinária. Desde a invenção do códice, por volta do nascimento de
Cristo, provou-se uma máquina maravilhosa – excelente para transportar informação, cômodo para ser
folheado, confortável para ser lido na cama, soberbo para armazenamento e incrivelmente resistente a
danos. Não precisa de upgrades, downloads ou boots, não precisa ser acessado, conectado a circuitos ou
extraído de redes. Seu design é um prazer para os olhos. Sua forma torna o ato de segurá-lo nas mãos um
deleite. E sua conveniência fez dele a ferramenta básica do saber por milhares de anos, mesmo quando
precisava ser desenrolado para ser lido [...] muito antes de Alexandre, o Grande fundar a biblioteca de
Alexandria em 332 a.C. (DARNTON, 2010: 86).
A profecia do fim do livro parece não condizer com o cenário atual. Do ponto de vista capitalista,
o livro, visto como produto, é uma tecnologia que dificilmente irá desaparecer, pois está, de certa forma, atendendo a uma demanda constante de mercado, alimentando um comércio que visa
satisfazer os anseios do leitor, que, por sua vez, é expressivamente influenciado pelo marketing que
concorre para a venda de livros.
A livraria, por exemplo, atua como um importante espaço de leitura, contando com o apoio da mídia
editorial que estimula a apreciação dos leitores, mais especificamente o jovem leitor que nutre considerável fatia de vendas dos livros. De acordo com Fraisse (2010: 65), “o setor da literatura infanto-juvenil corresponde, aproximadamente, a um sexto da produção editorial mundial”. Não dá para
dizer, portanto, que se está lendo pouco.
Basta passear por uma, entre as muitas livrarias megastores espalhadas no País, para verificar que
o fluxo de clientes é sempre muito intenso. Esse é o novo conceito adotado para designar as grandes livrarias, que oferecem um espaço acolhedor e reconfortante para a leitura, talvez inspirado no
ambiente das tradicionais bibliotecas. A disposição dos livros em estantes e balcões interativos permite aos leitores não só abrir e olhar o livro, mas também lê-lo, dele desfrutar, sem necessariamente
comprá-lo. Sofás e poltronas compõem o ambiente e a cafeteria proporciona aos clientes um espaço
descontraído, que permite encontros e diálogos com os amigos, o que implica relacionar a leitura
ao divertimento, ao valor mercadológico, ao discurso tão bem utilizado pela mídia editorial, em que
o leitor, imerso em livros, é instigado a admitir uma identidade de leitor consumidor, cada vez mais
interessado em comprar um ou mais livros.
Em pesquisa realizada em uma livraria de Goiânia, situada em um shopping de grande prestígio na
capital, Corsi (2010)3 traçou um perfil do leitor que frequenta esse ambiente (faixa etária, classe
social etc.), a fim de investigar, entre outros dados, o motivo que os levou a visitar esse espaço. Foi,
então, averiguado o que esse leitor lê, por que lê, por influência de quem e, principalmente, o efeito
que essa literatura lhe provoca, uma vez que essa pesquisa se deteve mais especificamente no gênero literário. Os resultados deste estudo apontaram que sobretudo a mídia exerce papéis decisivos na
formação do gosto e da prática de leitura dos jovens.
3. O objetivo da pesquisa intitulada “A escola, a biblioteca e a livraria: espaços de encontro do jovem com a leitura literária” foi
refletir sobre o papel da leitura literária realizada fora do ambiente educacional, ou seja, investigar a prática de leitura literária cujos
sujeitos leitores leem não motivados pela escola ou pelo professor. Esses dados foram fundamentais para que se traçasse o perfil do
jovem leitor goianiense.
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Ressalta-se, pois, nos discursos dos estudantes entrevistados, a forte influência dos best-sellers e da
mídia editorial, que se fazem presentes nas livrarias. De acordo com os dados revelados pela pesquisa, 79,23% dos entrevistados, de 13 a 17 anos, afirmaram que visitam a livraria para apreciar os produtos, ver as novidades ou por curiosidade; 54,21% para comprar obras literárias e 37,53% gostam
de ler, na própria livraria, as obras expostas nas estantes. Para 79,23% dos jovens leitores o principal
fator que os motiva a comprar uma obra na livraria é a liberdade que os clientes têm para poder
apreciar, folhear e ler o livro, seguida da variedade de livros, com 62,55%. Em terceiro lugar, com
45,87%, está a oferta de outros produtos além de livros, seguida do ambiente agradável (41,7%).
A comodidade do shopping, que acreditávamos ser um dos principais fatores, uma vez que muitos
frequentam esse espaço comercial para ir a vários lugares distintos, desponta em quinto lugar, com
20,85%. O bom atendimento foi citado como outro fator.
Esses dados revelam que o jovem, ao visitar regularmente esse espaço, quase sempre o faz em busca
de novidades e, principalmente, por sentir-se atraído pelo universo dos livros ali oferecidos - um indício
de que o adolescente frequenta esse espaço como alternativa ao que lhe é oferecido no colégio. Essa
informação é corroborada pelas respostas apresentadas pelos entrevistados quando questionados
sobre os fatores que mais os influenciam na escolha de um livro. A exposição de obra nas estantes das
livrarias aparece em primeiro lugar, com 87,57%; o tema e a indicação de amigos ou de outras pessoas
dividem o segundo posto, com 75%; o livro estar na lista de best-sellers surge na terceira posição, com
66,72% e, em quarto lugar, com 50%, despontam as críticas ou resenhas em jornais, revistas, internet
etc. Somente 41,7% leem por indicação da escola e para apenas 37,53% o livro ser considerado uma
obra literária clássica é um fator determinante na hora de escolher um exemplar para ser lido.
Os números ganham justamente no campo das razões que movem os negócios. Já os últimos dois
dados, a escola e a leitura dos clássicos, ficam com os últimos lugares nessa concorrência. Os professores, em geral, preocupam-se com a formação de leitores da literatura clássica, indicam livros
e autores que fulguram na história da literatura. Com frequência depreciam a leitura das obras da
onda momentânea. Não raro determinam que seus alunos leiam obras que conheceram no Curso de
Graduação que fizeram, sem indagar sobre a relação afetiva que os alunos leitores terão com aquela
obra. Raramente, percorrem um caminho para que seus alunos, passo a passo, se aproximem da
fruição estética que eles, professores, conseguiram alcançar (SOUZA, 2003).
Além da livraria cabe ressaltar também outro meio que contribui significativamente na tiragem de
vendas dos livros: o Prêmio Jabuti, considerado o maior e mais completo prêmio do livro no Brasil.
Ele foi criado em 19584, em meio a um cenário turbulento pelo qual passava o mercado editorial
brasileiro, que contava com parcos recursos e baixa articulação do segmento. Os principais idealizadores do projeto foram os dirigentes da Câmara Brasileira do Livro, o Presidente da instituição, Edgar
Cavalheiro e o secretário Mario da Silva Brito. Ambos intelectuais e estudiosos da literatura brasileira na época. Assim, premiando anualmente escritores, editores, ilustradores, gráficos e livreiros,
haveria um grande crescimento e forte impacto na venda dos títulos escolhidos, favorecendo todo
o mercado editorial. Estratégia que até hoje tem dado muito certo. Em 1959, ano em que foi feita a
primeira premiação eram apenas sete categorias.
Sob o comando da curadora Marisa Lajolo, que tomou posse em 2014, a última edição recebeu
2.240 inscrições, número maior do que o ano anterior, em 2013, que abarcou 2.107 obras inscritas,
4 Essas e as demais informações referentes ao Prêmio Jabuti foram retiradas do site http://premiojabuti.com.br/.
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sendo contempladas 27 categorias que abarcam as mais diferentes áreas do conhecimento, além
dos gêneros literários clássicos. Editores, autores, ilustradores, tradutores e capistas puderam inscrever obras inéditas, editadas no Brasil, entre 1º de janeiro a 31 de dezembro de 2013, com ISBN
e que apresentam ficha catalográfica. Os números mostram, pois, que a produtividade literária no
Brasil é bastante intensa. Em 2009, as inscrições ao Jabuti chegaram a 2.574 títulos, cerca de 20% a
mais que em 2008, quando participaram 2.131 publicações. Em 2010 houve o número recorde de
2.867 livros inscritos.
A análise das obras é feita por um corpo de jurados altamente especializado, composto por profissionais com ampla bagagem em suas respectivas áreas de atuação. A contagem dos votos é feita em
sessões abertas ao público e dividida em duas etapas. Na primeira sessão pública, são selecionadas
as 10 melhores obras em cada umas das 27 categorias. A segunda sessão define os três primeiros
lugares de cada categoria e os ganhadores recebem o troféu. Esses 81 livros recebem seu lugar vistoso nas estantes. Porém, o evento mais relevante ocorre na cerimônia de premiação e entrega das
estatuetas, quando são revelados os Livros do Ano de Ficção (criado em 1991) e Não-Ficção (surge
em 1993). Esse é o momento mais aguardado por todos aqueles que concorrem ao Prêmio, pelo
mercado editorial e pela mídia especializada. Esses livros são escolhidos pelo voto dos jurados e de
profissionais do mercado editorial, diferenciando-se, portanto, da avaliação das demais categorias.
Além de os finalistas ganharem o troféu (dourado, para se diferenciar dos demais) recebem, ainda, o
valor bruto de R$ 35.000,00 (trinta e cinco mil reais), enquanto os finalistas das outras 27 categorias
recebem o valor bruto de R$ 3.500,00 (três mil e quinhentos reais). No caso de obras em coautoria,
o prêmio em dinheiro será dividido em partes iguais.
Vemos, então, o quanto a mídia editorial vem ocupando um lugar de destaque na divulgação dos
livros. As próprias editoras têm o poder de escolher as melhores obras, que acabam sendo as mais
vendidas e que possuem maior êxito no mercado. Assim, o conteúdo, o estilo e a temática nem
sempre estarão em primeiro plano. Na verdade, há todo um conjunto de fatores que impulsionam
o consumo dos novos títulos. O próprio ineditismo dos mesmos, associados a um belo design já
chamam, por si só, bastante atenção, geram curiosidade. O selo do Prêmio estampado na capa é
a cereja do bolo. A exposição em lugar de destaque nas livrarias, espaço de grande movimento de
clientes, contribui para o sucesso das vendas. Não há como o leitor deixar de fisgar a ilustre obra,
nem que seja para dar uma breve desfolhada, sentado em uma confortável poltrona. Se gostar é só
pagar e levar para casa e desfrutar da leitura.
Retomemos, pois, Manguel (1997). O formato do livro é extremamente atrativo. Não há como não
ignorá-lo. Ele reflete sua materialidade de oferta de um mundo. Julgamos pela capa e julgamos pela
forma. Quando olhamos para ele, uma relação se estabelece ali, antes mesmo do momento da leitura.
São feições inacabadas que convidam para a colaboração do ato de ler e as diversas interpretações.
Por isso, a ação de consumir um bem cultural não deixa de ser também uma produção, tal como defende Michel de Certeau (2014). Daí a importância em observar as condições e as formas como os textos
chegam até o leitor, a comunidade a qual ele pertence e a maneira como se apropria da leitura:
A uma produção racionalizada, expansionista além de centralizada, barulhenta e espetacular, corresponde
outra produção, qualificada de ‘consumo’: esta é astuciosa, é dispersa, mas ao mesmo tempo ela se insinua ubiquamente, silenciosa e quase invisível, pois não se faz notar com produtos próprios, mas nas maneiras de empregar os produtos impostos por uma ordem econômica dominante (DE CERTEAU, 2014:39.
Grifos do autor).
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Eis, então, o poder e influência dos livros. Escolher uma obra ganhadora de um grande prêmio é um
fator que não é menosprezado por inúmeros leitores. Tampouco pelas editoras. Por isso, o momento
de divulgação das duas categorias mais prestigiadas do concurso é tão aguardado. Mas podem gerar
também controvérsias, como ocorreu no ano de 2004, quando a obra Budapeste, de Chico Buarque,
ganhou menção honrosa na categoria romance, mesmo tendo ficado em terceiro lugar. A explicação
para tal feito, na época, foi simples: quem elege o Livro do Ano não são apenas os jurados, mas também vários membros do mercado editorial. Assim, mesmo que a obra não tenha ficado em primeiro
lugar (decidido pelos estudiosos e críticos renomados), pode ser a grande ganhadora desta categoria, considerada a mais importante e prestigiosa. É o mercado editorial, mais uma vez, dominando
e angariando leitores.
Leituras de natureza escolar não escolar
Com tantos livros diversificados presentes no mercado (a cada ano milhares de obras inéditas são
publicadas, tal como foi visto com o número de inscritos no Prêmio Jabuti) o leitor tem ampliada a
sua gama de possibilidades. Mas não estaria ele deslocado frente a tantos títulos?
Estamos diante do excesso de livros. Como afirma Chartier (1999b), lemos bastante, até mais do
que antigamente. Só o fazemos de modos diferentes. E essa grande reprodutibilidade de obras não
vem de hoje. Ela surge, primeiramente, com a invenção da impressão, por Gutemberg, no século XV.
Posteriormente no século XIX, com a industrialização da atividade gráfica e, finalmente no século XX,
com a multiplicação das tiragens de livros de bolso, que conquistaram diversos leitores:
Diante dessa multiplicação, há aqueles que estão em condições de dominá-la porque sua cultura e os instrumentos que ela construiu permitem orientar-se racionalmente nesse mundo prolífico, e aqueles que,
completamente desarmados diante desta profusão, fazem as más escolhas e são como que asfixiados ou
afogados pela produção escrita. Em suma, eles leem aquilo que jamais deveriam ter lido. Portanto, a ideia
da proliferação das leituras incontroladas anda de mãos dadas com a multiplicação dos leitores incontroláveis (CHARTIER, 1999b: 110).
Muitas leituras, muitos leitores, diferentes suportes, tudo isso influencia na leitura, afeta os efeitos
de sentido do ato de ler. Assim, leituras superficiais, instantâneas, dividem o posto com leituras mais
aprofundadas, realizadas com fruição e gozo. Deste modo, temos acesso aos mais diversos tipos de
textos (bem como a outras formas de entretenimento, proporcionadas pelos meios eletrônicos, que
seduzem cada vez mais usuários) e, talvez, por isso, leem-se menos livros literários. Mas a leitura, de
todo modo, permanece. Ainda com mais força do que nas décadas passadas, graças à grande difusão e acessibilidade proporcionada pela internet, que democratizou o processo de leitura.
A escola, no entanto, deveria acompanhar essa acessibilidade e agir de forma mais democrática ao
trabalhar a leitura literária com os alunos. Seria até uma lição da história perceber que os livros que
hoje são obras clássicas, da classe, antes eram de outro espaço, o não escolar. Quando se desenvolve
o romance, durante o século XVIII, os livros são leitura popular e não de alunos. No Brasil, Macedo
e Alencar não escreveram para serem adotados em alguma turma de sala de aula. A escolarização da leitura precisa ser revista, pois, conforme constatou a pesquisa realizada por Corsi (2010) a
obrigatoriedade ainda é uma marca bastante predominante nos meios escolares, atuando tanto de
forma positiva como negativa sobre os alunos. Se o professor obriga a ler determinada obra, muitos
resistem e não o fazem, recorrendo a resumos e análises para conquistar a nota. Mas nem por isso
deixam de ler. Procuram outras fontes na busca de uma leitura mais descomprometida, que lhe
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proporcione prazer. Daí a ida à livraria, a liberdade de escolha de um título, momento muitas vezes
negado no espaço escolar.
Com tanto livro à disposição, o que se percebe é que o estudante de hoje se tornou mais autônomo
e questionador, porém, muitas vezes, não tem esse lado valorizado pela escola, pois as práticas adotadas de ensino são, em grande parte dos colégios, tradicionais e ultrapassadas. Conforme constatado por Souza (2003), o aluno mudou, mas a prática pedagógica adotada pela escola e por muitos
professores ainda é a mesma de várias décadas atrás, imperando o autoritarismo e a falta de diálogo
em classe. A esse respeito também discute Cadermatori (2009: 64):
Aos 12 anos, um adolescente tem condições de refletir sobre si mesmo e sobre o ambiente em que vive,
mas são as características do meio que diferenciam as oportunidades de cada um para fazê-lo. Nem sempre a capacidade intelectual de um jovem encontra no sistema de ensino condições adequadas para se
desenvolver. Nem sempre as indagações existenciais, que nesse período se esboçam, encontram estímulos externos, fora dos meios de massa, para que se fortaleçam (CADERMATORI, 2009: 64)
Falta, pois, uma maior valorização e incentivo por parte da escola aos discentes, na formação da prática da leitura literária, levando em conta suas condições existenciais, suas indagações intelectuais, suas
direções afetivas. A formação de leitores se torna, então, um grande desafio para a educação no século
XXI, entretanto, tem lá seus limites, pois mesmo há de se levar em conta que é uma pretensão fora de
lugar o sonho de que todas as pessoas terão interesse na fruição estética literária proposta pela leitura
dos clássicos (CADERMATORI, 2009). Na era das novas tecnologias, de novos suportes de leitura e da
grande acessibilidade à informação é importante saber como os jovens estão lendo, quais são suas
principais fontes motivadoras de leitura e as dificuldades que estão enfrentando nesse processo.
Incentivar o interesse pela leitura literária é fundamental, porque os que a conhecem são testemunhas dos efeitos de formação das pessoas leitoras no embate que estabelecem com a condição
humana presente nas obras. Para isso, contribuem as reflexões, as comparações, as vivências, as
relações entre o livro e a vida... E a escola é a principal porta de acesso para que muitos tenham
contato com os livros. Por isso, é importante que ela atue de forma menos autoritária e mais democrática, não menosprezando as leituras extraescolares dos alunos. Na verdade, diferente do que se
é apregoado, os jovens não estão lendo menos. Apenas estão lendo de outra forma, optando por
outras modalidades que não são aceitas pelo meio escolar, mas que podem instigar o gosto e o interesse pelos livros o que, sem dúvida, já contribui para a formação leitora dos educandos. Conforme
afirma Chartier (1999b: 103 - 104):
Aqueles que são considerados não leitores leem, mas leem coisa diferente daquilo que o cânone escolar
define como uma leitura legítima. O problema não é tanto o de considerar como não leituras estas leituras
selvagens que se ligam a objetos escritos de fraca legitimidade cultural, mas é o de tentar apoiar-se sobre
essas práticas incontroladas e disseminadas para conduzir esses leitores, pela escola, mas também sem
dúvida por múltiplas outras vias, a encontrar outras leituras. É preciso utilizar aquilo que a norma escolar
rejeita como um suporte para dar acesso à leitura na sua plenitude, isto é, ao encontro de textos densos
e mais capazes de transformar a visão do mundo, as maneiras de sentir e pensar.
Entender e conhecer o que os jovens estão lendo é o primeiro passo para “utilizar” o que a escola
“rejeita” para que se possa conhecer esse leitor e “dar acesso à leitura na sua plenitude”. Sobretudo,
saber quais são as fontes influenciadoras de suas práticas leitoras que não se esgotam na escola.
Ignorar o que mercado editorial oferece – e é tão apreciado pelos adolescentes – é uma saída um
tanto quanto perigosa, que pode afastar o aluno do mundo literário proposto pela escola. A divisão,
então, se estabelece. O que a instituição escolar propõe (ou impõe) como leitura poderá ser visto por
muitos como algo chato, difícil e desmotivador. Em compensação, o livro escolhido por seu próprio
gosto na livraria ou tomado de empréstimo do amigo será muito mais compensador e prazeroso.
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A questão da obrigatoriedade de obras a serem lidas, por parte da escola, é um tanto polêmica. Por
mais que essa imposição possa gerar um certo desestímulo e desinteresse, no ato de ler, ela, até
certo ponto, é necessária, principalmente quando se trata de adolescentes que estão em processo
de formação e, que, muitas vezes, não sabem ao certo o que escolher para ler, principalmente na
atualidade, quando a multiplicidade de ofertas de livros expostos e chamativos nas megastores são
ainda mais frequentes. Por isso, o papel do professor na indicação de obras é tão determinante, por
poder melhor direcionar o aluno. Com o tempo, depois de concluídos os estudos, o jovem, poderá
seguir seu próprio repertório de leitura, muitas vezes, influenciando-se pelo indicado ou visto na
escola. E tão relevante quanto à recomendação de títulos, é o trabalho da obra literária em sala de
aula, por intermédio do educador, que pode instigar o estudante, tornando a aula de literatura mais
provocativa e interessante para o leitor.
Segundo constatou Corsi (2010), tanto entre os adolescentes frequentadores da livraria, como os da
biblioteca, que ainda cursam o ensino básico, há uma certa influência da escola no repertório desses
jovens leitores, sendo essa influência ora positiva, despertando prazer e entusiasmo para a leitura
de textos literários, ora negativa, provocando desinteresse e aversão. Conforme depoimentos de
alguns informantes, a obrigatoriedade de certas leituras, indicadas ou impostas pela escola, foi até
mesmo oportuna, pois, dessa forma, a instituição os ajudou a formar um gosto pela palavra literária.
No entanto, para outros adolescentes, esse controle e legitimação provindos do meio acadêmico os
desestimularam a ler, principalmente obras sacralizadas pela instituição acadêmica.
O depoimento de uma estudante, de 14 anos, entrevistada na livraria ratifica isso. Ela havia revelado
que odiava ler, até a leitura de Crepúsculo, de Sthephenie Meyer, livro que a estimulou a ler, não
somente obras do gênero best-sellers, mas também as leituras literárias estudadas na escola, antes
tidas por ela como desestimulantes e difíceis. A partir desse momento, a jovem passou a ter uma
prática leitora, gostando bastante de ler até mesmo as obras indicadas por obrigatoriedade acadêmica. Já para outra informante, de 18 anos, aluna do terceiro ano do Ensino Médio, entrevistada na
biblioteca, a exigência de leituras literárias para o exame vestibular, feito por etapas, desde o primeiro ano do Ensino Médio, acabou por despertar um interesse pelos livros, o que contribuiu para a
formação de uma prática leitora, antes inexistente. A obrigatoriedade escolar, neste caso, gerou um
efeito positivo na leitora. Para a jovem de 14 anos, no entanto, o estímulo inicial foi a leitura de uma
obra que estava em grande destaque na mídia, sendo, inclusive adaptada ao cinema. É isso que não
deve ser negado pelo meio escolar.
Por que não aliar leituras amplamente divulgadas pela mídia com as leituras propostas pela escola?
Nem tudo o que se está em grande evidência no mercado é, de fato, algo ruim. Ao contrário. Há
excelentes obras que deveriam ser mais exploradas pelos professores em classe. Basta olhar as obras
ganhadoras do Prêmio Jabuti, seja na categoria infantil e juvenil, seja na de contos e crônicas ou na
de romance. Todos os anos destacam-se escritores altamente consagrados pela crítica. Na edição
2014 ressaltam-se, por exemplo, as produções de Marina Colasanti, Ruth Rocha, Ricardo Azevedo,
Rubem Fonseca, Milton Hatoum, entre outros, que abordam temáticas contemporâneas, em uma
linguagem simples e fluente, de agrado e forte identificação dos jovens. Mesmo na categoria Livro
do Ano destacam-se obras de grande qualidade. Já foram eleitos livros de Luís Fernando Veríssimo,
Ferreira Gullar, Chico Buarque de Holanda, Moacyr Scliar, Ignácio de Loyola Brandão, entre outros.
Vale ressaltar ainda que muitos títulos desses grandes autores circulam pelas bibliotecas públicas
escolares, graças ao investimento proporcionado pelo Ministério da Educação, que repassa a verba
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para o Fundo Nacional de Desenvolvimento Educacional (FNDE). Os acervos literários, distribuídos
anualmente por meio do Programa Nacional de Bibliotecas Escolares (PNBE), são montados a partir de
seleções criteriosas, feita por especialistas, que indicam os títulos, adequando-os, sobretudo, a faixa
etária dos alunos. Cada ano privilegia-se uma ou mais séries diferentes e determinados tipos de escola.
Cabe, pois, provocar. Os livros chegam aos colégios. Mas eles são acessíveis aos estudantes? A biblioteca é, de fato, frequentada ou permanece em uma redoma de vidro, trancada a sete chaves? Há projetos de leitura de livros literários? A escola favorece um dos meios mais frequentes de estímulo à leitura
que é a indicação, através de comentários e avaliações afetivas de leitura, por amigos ou colegas?
São questionamentos que não podem mais ser ignorados. A pesquisa realizada por Corsi (2010)
constatou que atualmente a escola perde o posto, dominado por décadas, de principal motivadora
da prática de leitura literária entre os jovens. Mas sabemos que isso, de forma alguma, diminui sua
relevância e responsabilidade pela formação de leitores críticos. O que necessita haver é uma ampla
modificação na forma como essa prática leitora vem sendo abordada no colégio, deixando essa leitura combatida e pouco considerada tornar-se um recurso de acesso a um outro modo de ler, menos
ingênuo, mais reflexivo.
As obras clássicas são fundamentais para a formação do leitor. Mas devem ser muito bem conduzidas em
sala de aula, dialogadas e debatidas com os alunos, que devem participar ativamente da aula, trocando
ideias com os colegas, manifestando suas impressões, reações e sentimentos aflorados no momento da
leitura. Talvez, uma boa estratégia sejam algumas comparações com os textos mais contemporâneos,
que eles leem mais. O papel da escola seria, pois, aprimorar (e não julgar) o seu gosto literário.
Leitura é ação no plural, modo democrático de relação com os livros. Perante a concorrência dos best-sellers, talvez a estratégia mais propícia para uma boa formação de leitores, seja a de adotar uma
posição de multiletramentos, que dá ao leitor o amplo campo dos variados suportes e gêneros, com
o aprendizado da riqueza da linguagem que cada um deles proporciona. Seria uma forma de somar
à força da mídia, que vende muitos livros, a força da boa leitura, que é uma das missões da escola.
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Referências bibliográficas
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Horizonte: Autêntica Editora, 2009.
CANCLINI, Néstor García. Leitores, espectadores, e internautas. Trad. Ana Goldberger. São Paulo:
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DARNTON, Robert. A questão dos livros: passado, presente e futuro. Trad. Daniel Pellizzari. São
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FRAISSE, Emmanuel. Numerização e mundialização: Quais são os impactos sobre a literatura infanto-juvenil? In: AGUIAR, V. T.; CECCANTINI, J. L. (Org.). Teclas e dígitos: leitura, literatura e mercado.
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MANGUEL, Alberto. Uma história da leitura. Trad. Pedro Maia Soares. São Paulo: Companhia das
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SOUZA, Agostinho Potenciano. Voos e sombras: um discurso sobre a leitura no ensino médio. Belo
Horizonte, 2003. 250f. Tese (doutorado) – Universidade Federal de Minas Gerais, Faculdade de
Letras.
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Sobre a literatura fora e dentro da escola: um convite à revisão das premissas do letramento literário em âmbito escolar
On literature inside and outside the school: an invitation to review the
assumptions of literary literacy in the school setting
En la literatura dentro y fuera de la escuela: una invitación a revisar los
supuestos de alfabetización literaria en el ámbito escolar
Deusa Castro Barros (IFG/Goiânia)1
Resumo
Elabora-se, no presente artigo, uma reflexão sobre as práticas de letramento literário em contextos escolar e extraescolar, observando como as estratégias de mediação da leitura literária extraescolares podem ser absorvidas positivamente
no âmbito escolar. Para tanto, destaca-se quatro premissas do letramento literário dos projetos executados fora da
escola: a espontaneidade, a apreciação, a não compulsoriedade e a priorização da qualidade, a fim de refletir sobre o
aproveitamento das mesmas pela escola brasileira. Contribuem para essa análise as pesquisas sobre o leitor e a leitura
literária, desenvolvidas por Michele Petit, Roger Chartier, Alberto Manguel, Teresa Colomer, Sílvia Castrillón e Ezequiel
Teodoro da Silva.
Palavras-chave: Letramento literário. Leitura literária extraescolar. Leitura literária escolar.
Abstract
This article brings the reflects on the literary literacy practices in school and extraescolar contexts, watching as the
mediation strategies of extracurricular literary reading can be absorbed positively in schools. It highlights are four premises of literary literacy project run out of school: spontaneity, assessment, and prioritization not compulsoriedade
quality in order to reflect on the use of them by brazilian school. Contributing to this analysis research on the reader and
the literary reading, developed by Michele Petit, Roger Chartier, Alberto Manguel, Teresa Colomer, Silvia Castrillón and
Ezekiel Teodoro da Silva.
Keywords: literary literacy. Extraescolar literary reading. School literary reading.
Resumen
En este artículo se elabora una reflexion sobre las prácticas de lectura literaria en el contexto escolar y extraescolar,
observando cómo las estrategias de mediación de lectura literaria extracurriculares pueden ser absorbidos positivamente en un ambiente escolar. Para tanto, destacamos cuatro premisas de los proyectos literarios ejecutados fuera de
la escuela: la espontaneidad, la apreciación, no compulsoriedade y la priorización de la calidad, con el fin de reflexionar
sobre el uso de las mismas por la escuela brasileña. Contribuen para este análisis las investigaciónes sobre el lector y
la lectura literaria desarrolladas por Michele Petit, Roger Chartier, Alberto Manguel, Teresa Colomer, Silvia Castrillón y
Ezequiel Teodoro da Silva.
Palabras clave: Letramento literario. Lectura literaria extraescolar. Lectura literaria escolar.
1 Doutora em Estudos Literários pela Universidade de Brasília e mestre em Estudos Literários pela Universidade Federal de Goiás.
Professora de Língua e Literatura no Instituto Federal de Goiás – Goiânia/GO, Brasil. E-mail: [email protected]
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A literatura não depende de leitores ideais, mas apenas de leitores suficientemente bons. (Alberto Manguel)
A leitura literária, em contexto escolar, comumente vem marcada pelo senso de obrigação e pela
frustração do não alcance das metas estabelecidas pela agenda da escola. Dentro desses moldes,
encontrar algum prazer de apreciação estética é improvável, se não impossível. De acordo com Teresa Colomer (2007: 50), as pesquisas sobre hábitos de leitura têm revelado uma divisão em duas
visões da leitura: a “prazerosa”, resultante das obras escolhidas livremente, e a “boa”, referente às
obras escolhida pela escola. Essa divisão é prova de que a escola, que leva o sujeito a ler obras e a
“compreender certa hierarquia de valores do sistema literário”, não o ajuda a “tornar-se um leitor”,
pois na visão dele, ler é “algo pontual e próprio da esfera escolar” (COLOMER, 2007: 51).
Por outro lado, quando apresentados à leitura em contexto extraescolar, os sujeitos têm a opção de
rever a sua posição no mundo da leitura, e não mais pelo viés da obrigatoriedade ou fracasso de
aprendizagem, mas pela aproximação com narrativas e personagem que dizem a eles deles próprios
e do mundo em que se inserem. É uma experiência que, por ser fundadora de uma nova forma de se
perceber, leva o sujeito a uma dimensão de apreciação estética que, infelizmente, a escola está longe
de conseguir. Nessa perspectiva, experiências modelares de projetos e atividades com leitura, desenvolvidas em contexto extraescolar, propiciam a revisão das premissas de letramento literário na escola.
As experiências de letramento literário em contexto não escolarizado, narradas pela antropóloga Michele
Petit em seus livros Os jovens e a leitura (2008) e A arte de ler (2009), opõem-se à concepção, ainda tão
presente na escola, da superioridade do texto em relação ao leitor. Crítica das metodologias e das avaliações utilizadas pela escola para o desenvolvimento da leitura entre os alunos, a antropóloga afirma que:
Há todo um aspecto qualitativo da leitura que é esquecido com o hábito de avaliar esta atividade unicamente a partir de indicadores numéricos. É possível ser um “leitor pouco ativo” em termos estatísticos, e
ter conhecido a experiência da leitura em toda a sua extensão – quero dizer, ter tido acesso a diferentes
registros, e ter encontrado, particularmente, em um texto escrito, palavras que se transformaram, algumas vezes muito tempo depois de tê-las lido (PETIT, 2008: 77).
Ao reafirmar a leitura como um processo de autoconhecimento ou de conhecimento do mundo,
Petit atribui à leitura literária a potência de contribuir para que os sujeitos leitores acessem, por
meio da obra de arte, elementos que integram essencialmente o seu estar no mundo, como indivíduo e como coletividade. As observações de Petit reafirmam o fato de que o acesso à leitura, no
mínimo, cria um efeito de ressignificação do mundo para os sujeitos nele inseridos. É preciso, portanto, observar as práticas de leitura com a criticidade necessária para que não se convertam em discursos demagógicos sobre o estímulo individualizante, que inculca a ideia de uma melhora individual do sujeito que, por esforço ou inteligência acima da média, se destaca da multidão de “pobres de
espírito” das classes populares. O avanço possível, no sentido de democratização do conhecimento
e consequentemente do acesso aos bens culturais, só se efetiva na coletividade e, por isso, entendo
a escola como um espaço privilegiado para essa conquista social.
Depreende-se disso que, mais do que aprender o código ou a história da literatura, os procedimentos de letramento literários promovidos nas escolas devem promover um empoderamento dos
sujeitos leitores, que se veem autorizados a pensar, a discutir e a modificar as situações de subserviência, historicamente construídas, em que vivem. Assim, ao contrário da previsibilidade do cotidiano, os sujeitos leitores são constantemente lançados diante de experiências e situações inusitadas,
provocadoras e, ao imergir no universo da leitura pode curar o olhar “petrificado”, em um processo
chamado por Petit de “efeito Sherazade”. Note-se que em não se trata, portanto, de um mero apren-
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dizado escolar, mas sim de um aspecto da cognição (e da psique) que extrapola a mera decodificação
de símbolos gráficos e que alcança a dimensão da significação dos seres no mundo.
A ideia de perder-se ao longo de uma obra para enfim se achar, tão bem explorada por Manguel
(2000: 19-30) no seu ensaio “Um leitor no Bosque do Espelho”, corrobora relatos de adolescentes e
adultos sobre a busca pelo sentido das coisas e a frustração ou o enlevo decorrente de tal empreitada, e reafirmam a necessidade filosófica da elaboração de perguntas, mesmo que ainda não se
saibam as respostas. Fazer questionamentos é uma habilidade crucial para a construção do autoconhecimento e do conhecimento do mundo, habilidade pouco estimulada pela escola, mas que se
realiza completamente na experiência de leitura literária, quando indagamos sobre as categorias
que compõem a narrativa ou o poema, e as aceitamos como verdades do mundo literário em sua
potência criativa. Perguntar sobre o que sente e por que o sente; o que comove e por que se comove
um leitor diante, por exemplo, de um soneto de Camões ou de um poema curto, como “Cidadezinha
qualquer”, de Drummond, desencadeia a elaboração de reflexões sobre sentimentos e necessidade
não “mapeadas” pelos aspectos cognitivos que a escola elege como prioridades, mas que são essenciais para o reconhecimento e a afirmação da integridade de um sujeito.
Infelizmente, quando escolarizada, a arte da literatura perde espaço para a disciplina Literatura, destituindo-se, assim, o caráter libertário daquela em detrimento das exigências pedagógicas desta. Trata-se de um equívoco escolar flagrante nos relatos de alunos, professores e pesquisadores de leitura;
mas não é uma realidade que se estende a toda e qualquer escola. Acredito nisso porque, quando os
agentes mediadores da leitura literária na escola aprendem a mobilizar as habilidades de compreensão, interpretação e reflexão motivadas pela leitura, sem negar os aspectos fruitivos e libertários da
arte, as aulas de Literatura tornam-se um espaço muito produtivo de acesso à leitura literária, uma
forma e um mecanismo de garantir que o direito à literatura se concretize para os sujeitos inseridos no
contexto da escola. O problema, portanto, não está em haver uma disciplina na escola chamada Literatura, com a exigência de certos conhecimentos e conteúdos. O problema está no esquecimento de que
literatura é arte; o problema está nos métodos, em geral, aplicados no trabalho com a leitura literária.
A literatura, tanto em suas criações de caráter ficcional quanto poético e dramático, está presente nos
diversos tipos de cultura e em todas as classes sociais, o que evidencia sua importância como patrimônio cultural a ser divulgado e amplamente partilhado entre os sujeitos sociais. De certa forma, esse seu
caráter de manifestação universal, presente em todas as sociedades e em todos os tempos, confirma
a ideia de que a humanidade necessita da “capacidade de fabulação”, da criação de mundos pelo pensamento. Como saber, ela precisa, sem dúvida, ser escolarizada. Contudo, além de um saber aplicável
e mensurável, a literatura também é um sentir e por isso precisa ativar outras habilidades, além das
cognitivas comumente desenvolvidas em âmbito escolar. Trata-se, portanto, de aceitar a multiplicidade do caráter da arte literária, que pode ser contemplada não apenas na leitura individual e solitária,
mas também, e principalmente, nos projetos e atividades desenvolvidas em ambiente escolar.
A terceira e última edição da pesquisa Retratos da leitura no Brasil (IPL, 2012) destaca o papel da
escola na formação do leitor, em nosso país. Nela, ao se comparar os grupos de leitores e não leitores no país, observa-se que o índice de não leitores, entre os sujeitos que não estão estudando,
chega a 84%, contra o índice de apenas 16% para o grupo que está estudando. Outro dado também
muito significativo diz respeito aos principais sujeitos motivadores da leitura: para 45% dos leitores,
o professor foi apontado como a pessoa que mais incentivou o interesse pela leitura. E mais, mes-
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mo entre o grupo considerado de não leitores, é a figura do professor que aparece como principal
memória de mediação e/ou motivação da leitura.
Ao interpretar esses dados, faz-se importante identificar o contexto de aproximação do sujeito e da
palavra escrita, no Brasil, que ocorre (infelizmente) apenas quando se inicia a fase de escolarização.
As pessoas aprendem a falar e ouvir uma língua socialmente, em relação familiar ou comunitária,
mas é na escola, via de regra – principalmente em um país como o Brasil –, que se aprende a ler e a
escrever, embora seja em casa que ocorra a aquisição da língua. O letramento – inclusive o literário
– necessita de sistematização, de um acompanhamento que não seja somente a automática relação
pessoa a pessoa. Ou seja, de uma forma simplificada, para ter acesso à literatura é preciso ter acesso
à alfabetização, é preciso aprender a ler, cifrar, decifrar e recifrar a língua em formato de escrita. E
a escola é o lugar da alfabetização em nosso país. Por isso a Literatura é uma arte que precisa ser
escolarizada, mesmo com todas as contradições que detectamos na escola.
Nesse contexto, a contradição (e consequente crise) da leitura literária em âmbito escolar exige um
repensar das práticas de letramento e a transformação de ações, superando lado a apatia e o discurso de caça às bruxas. Cumpre assinalar que, se ainda somos um país de não leitores e nossa escola
ainda é refém de uma didática equivocada, já avançamos muito em relação ao horizonte ainda mais
desfavorável dos séculos passados. Mas também é necessário reconhecer que, embora os discursos
sobre a leitura como fruição estejam por demais esvaziados de autoria, beirando já o senso comum,
ainda há uma distância significativa entre eles e as reais experiências dos leitores em âmbito escolar.
O uso da palavra escrita está inserido em um campo de lutas pelo poder de nível simbólico e, nesse
sentido, o poder das palavras pode estar a serviço de interesses de manutenção ou de revolução da
ordem vigente (BOURDIEU, 2001; CHARTIER, 2009; 2001). No caso específico da obra literária, ela se
sobrepõe, por sua atemporalidade, aos interesses pontuais de determinados grupos de poder, por
isso ela é tão comumente associada à transgressão e à mudança do pensamento estabelecido. Essa
potência revolucionária, no sentido individual e coletivo, certamente é determinante para a dificuldade de acesso a bens culturais, estabelecida por grupos de poder.
Assim, seja pela ausência de estímulo e reconhecimento da importância da leitura em grupos sociais, seja
pela alfabetização tardia de jovens e adultos, ou ainda pela ineficácia da escola em apresentar e motivar
a leitura de obras entre os seus alunos, o fato é que a relação dos brasileiros com a leitura não é das mais
favoráveis. Os documentos que embasam a análise aqui apresentada confirmam isso: a média de leitura
no Brasil é de apenas quatro livros por leitor/ano, e isso considera apenas o grupo de 50% da população
declarados como leitores. Quando observamos os tipos de livros e a os índices de leitura comparados
entre as regiões do país, a conclusão reforça o estigma de exclusão social: o adolescente brasileiro que
lê é o que tem acesso a outros bens materiais e culturais; pertence, em geral, à classe média; seus pais
têm nível de formação mais elevado e é morador de cidades de médio e grande porte. E mesmo com
esse perfil, o índice de leitores, após os anos escolares, sofre uma queda brusca, revelando a dificuldade
de permanência da prática de leitura na fase adulta dos brasileiros. Segundo Teresa Colomer (2007: 45),
o “objetivo de ensinar literatura na escola se percebe mais tarde com as consequências que essa aprendizagem deve ter para os cidadãos uma vez abandonadas as aulas”. Seguido esse raciocínio, o resultado
das atividades de letramento literário na escola se efetiva na continuidade de leitura dos sujeitos após
os anos escolares. Porém, o resultado apresentado pelos estudos sociológicos e pesquisas educacionais
revela que há a ocorrência do crescimento do número de “leitores ocasionais” e uma “tendência crescente à diminuição dos leitores assíduos” (COLOMER, 2007: 45).
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O que precisa ser feito para modificar esse cenário? Reafirmo, com Ezequiel Teodoro da Silva (2012),
que as políticas e programas voltados para a leitura na escola devem unir esforços e responsabilidades para produzir mudanças significativas no âmbito da escola e da formação docente. Não ignoro
que essas mudanças não se fazem da noite para o dia, mas tenho plena confiança na possibilidade
de se alterar esse cenário de distanciamento entre o aluno e a leitura, desde que as iniciativas localizadas sejam estimuladas, para que não sucumbam aos entraves da burocracia e da falta de investimento. Nesse viés, assinalo que as estratégias de mediação fora da escola conseguem construir
pontes impensáveis em contextos extremamente problemáticos para o desenvolvimento de ações
de letramento, como os casos coletados por Petit (2009, 2008), em suas pesquisas em países de
terceiro mundo. Mas é evidente que essas pontes necessitam de políticas públicas para que permaneçam cumprindo o seu papel de permitir travessias de leitura.
O contato com a leitura literária, se bem mediado, promove liberdade de escolha e isso implica
aceitar todas as leituras como legítimas e dignas de apreciação: seja na leitura de um best seller de
autoajuda ou na de uma obra canônica da literatura, o leitor – esse sujeito sempre em formação –
acessará importantes instrumentos para a composição de sua biblioteca afetiva. Nesse sentido, a
mediação de literatura em âmbito escolar precisa aprender a democratizar as escolhas de obras literárias. Já há nessas escolhas um recorte de caráter comercial, pois o acervo nas bibliotecas e outros
espaços de acesso a obras literárias é determinado pela circulação dos livros, seja pelo valor de
compra, pela publicação, tradução ou divulgação das editoras. Além, desse, outro recorte, de “gosto
pessoal”, é feito a partir de indicações de leitura dos pais e professores. Que espaço contemplará
a autonomia de escolha dos sujeitos leitores, se a cada vez que um aluno escolher uma obra para
leitura, o mediador interferir, determinando o que é lícito e o que não é? É preciso que o sujeito leitor tenha espaço para escolher seus prazeres, para discuti-los com outros leitores; é preciso dar ao
sujeito leitor o direito de opinar sobre suas escolhas e, principalmente, é preciso saber ouvir e respeitar os critérios de sua escolha, que devem ser considerados de acordo com seu amadurecimento.
Infelizmente, a escola brasileira ainda não atende às necessidades do leitor em formação, mas os
espaços de mediação extraescolares já têm avançado bastante nessa direção. O cânone aparece ao
lado do best seller ou do livro paradidático. Acessível, como os outros dois tipos de obras, a literatura
de referência passa pelo crivo do leitor sem a imagem de “literatura para eleitos”, o que promove uma grande transformação no poder simbólico que os bens culturais exercem sobre as classes
trabalhadoras. Isso é, sem dúvida, uma mudança muito benéfica para a literatura. Saber escolher
pressupõe a existência de opções: ao apresentarmos uma multiplicidade de leituras disponível para
os sujeitos leitores, permitimos o questionamento dos estereótipos das obras mais comerciais, mas
também criamos um espaço de discussão do próprio cânone, o que me parece um ato muito mais
libertador do que a garantia de leitura apenas das obras autorizadas pela crítica literária.
Castrillón (2013), em artigo intitulado “Cultura escrita e pensamento crítico”, apresenta algumas
considerações esclarecedoras sobre a realidade da leitura no contexto escolar, evidenciando a situação adversa enfrentada pelos professores. De acordo com essa autora,
as escolas não possuem espaços para uma reflexão que lhes permitam tomar distância frente a suas práticas pedagógicas, observá-las “de fora”, de tal maneira que seja possível analisá-las, posicioná-las no
contexto histórico e local que as determina, e pensar nelas como processos que têm, ou deveriam ter,
consequências em longo prazo (CASTRILLÓN, 2013: s/n).
Para transformar essa realidade, Castrillón solicita “um olhar externo que propicie o distanciamento
ou estranhamento” aos mediadores da leitura em contexto escolar. Segundo a autora, ao se apro26
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priar das teorias sobre a leitura de forma mais profunda, os professores podem refletir sobre suas
práticas de letramento, o que os levará a “entender melhor os objetivos de seu trabalho e, para o
caso da formação de leitores, verificar se suas práticas produzem transformações de sentido que a
cultura escrita pode ter para os alunos” (CASTRILLÓN, 2013, s/n).
Essa “desautomatização” das práticas de letramento literário realizadas na escola pode ser propiciada pela observação dos projetos desenvolvidos fora da escola. Observe-se que são práticas simples,
muitas vezes intuitivas, como as rodas de leitura e de contação de história, quase sempre fortalecidas pelo vínculo afetivo que os mediadores desenvolvem com o público alvo, e que evidenciam o
comprometimento dos participantes com um projeto de transformação do indivíduo pelo diálogo
estabelecido entre o leitor e a obra literária. Não se trata de ensinar a ler, mas de partilhar o prazer
da leitura de um livro, ou as angústias dela decorrentes.
Como demarcado nas reflexões anteriores, defendo a importância da leitura literária na escola,
mas tenho consciência dos problemas decorrentes da escolarização da literatura, por isso, reitero
a necessidade de a escola se apropriar de quatro elementos característicos da leitura extraescolar, como estratégia de transformação das práticas escolares de leitura e consequente melhora nos
resultados da aproximação entre o leitor e a literatura no país, são eles: espontaneidade, apreciação, não compulsoriedade e priorização da qualidade de leitura.
É possível perceber, de imediato, que esses quatro elementos se opõem à estrutura escolar, em sua
forma mais usual. Se a leitura literária pede espontaneidade, a escola exige planejamento e execução de um programa rígido; no lugar da apreciação da leitura de uma obra literária, a escola realiza a
avaliação de aprendizado dos “conteúdos” da Literatura; em função dessas duas primeiras escolhas,
a leitura literária é apresentada como obrigatória no currículo escolar, evidenciando o caráter compulsório dos conteúdos escolares e, por fim, o aspecto quantitativo sobrepõe-se ao qualitativo, pois
há uma série de conteúdos a ser trabalhada ao longo do ano escolar, o que se torna um obstáculo,
às vezes intransponível, para a priorização da qualidade em função da quantidade de “trabalho” a
ser realizado por professores e alunos.
Nas atividades voltadas para a leitura literária, a espontaneidade é fundamental, pois a arte não tem
compromisso funcional, utilitário, imediatamente prático; logo, a ela cabe uma série de relações com
a vida. Como se pode recuperar das reflexões de Candido (2000) a respeito das funções da literatura,
mesmo quando ela é engajada, encomendada ou panfletária, a arte possui uma materialidade dilatada que a tradição chama de “caráter universal”. O fato, o fenômeno, as condições de produção, toda a
contingência espaço-temporal e os valores que interessam e dizem respeito diretamente à integridade
de um poema, por exemplo, são passíveis de anulação, indiferença, subversão, transgressão ou transformação, no momento de sua recepção. Sabe-se, por exemplo, que o mundo em que a Odisseia foi escrita
já não existe mais, porém, o sentido de humanidade que é inerente a essa obra, sim. Esse é um caráter
específico da arte e, mais propriamente, da literatura, por ser a única arte cujo material de composição
é a mesma linguagem verbal que empregamos para expressar a vida em todos os seus âmbitos.
Se a espontaneidade normalmente acaba sucumbindo ante as exigências de cumprimento de extensos programas, o que se pode fazer para superar esse impasse, de modo que o atendimento a essas
exigências não se torne um obstáculo à troca das práticas tão pouco produtivas do letramento literário no contexto escolar por outras, mais criativas? Acredito que as oficinas literárias sejam uma
resposta satisfatória para essa pergunta. Isso porque, via de regra, suas atividades se norteiam por
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programas mais sintéticos e abertos, o que significa mais tempo e liberdade para experimentar
outras práticas leitoras, como, por exemplo, as que são experimentadas em espaços não escolares.
A apreciação, processo pelo qual o sujeito identifica o que lhe agrada (ou não) em determinada
obra de arte, é outro elemento determinante nos projetos extraescolares de letramento literário.
Dada a espontaneidade original e fundadora da arte literária, a primeira expectativa relacionada à
recepção de uma obra é que ela seja apreciada pelo leitor, não analisada, interpretada ou explicada.
Normalmente, e infelizmente, a escola começa o trabalho com uma obra literária pela proposta de
análise, interpretação e explicação. Segundo Colomer (2007: 145), “em nossa tradição educativa, os
gostos e as reações dos alunos e seus julgamentos de valor nunca foram levados muito em conta”,
na verdade, essas construções individuais da leitura são consideradas ilegítimas ou, ainda, “um fruto
derivado da escassa formação das crianças e, por isso, merecedores de ser sistematicamente proscritas das aulas” (COLOMER, 2007: 145).
As práticas de análise, interpretação e explicação da obra literária não são, em si, um erro absoluto.
Também não é um erro fazer uso delas nas aulas de Literatura. O problema está em instalá-las como
ponto de partida, em vez de se iniciar pela apreciação da obra lida. Nas palavras de Colomer (2007: 147),
O gosto e o juízo de valor são inseparáveis da experiência de leitura tão logo esta se inicia na infância e
ocorrem sempre em relação a algum parâmetro comparativo. São aspectos que se formam através da
prática. Em primeiro ligar, mediante a leitura de muitas obras que oferecem e ampliam os parâmetros de
comparação, que levam a estabelecer a opinião sobre sua qualidade.
Iniciar a leitura de uma obra pela apreciação implica em ouvir o que os leitores em formação têm a
dizer, ouvir suas aprovações e negações, mediando conflitos que surgem entre eles e obra literária.
Nesse sentido, é crucial entender que
o gosto e o julgamento se formam através da diferença de opiniões. A leitura se relaciona sempre de alguma maneira com as atividades compartilhadas. Por isso é impossível manter sua dimensão socializadora
dentro dos limites de algo separado, quando se fala dos livros da escola, porque na leitura individual se
infiltram as atividades de apresentação e recomendação, ou nas de leitura e escrita imaginamos sempre
um entorno repleto de atividades de comunicação e discussão do escrito, ou ainda porque a leitura guiada
não é, definitivamente, senão outra maneira de compartilhar (COLOMER, 2007: 148).
Em um movimento que priorize a autonomia do sujeito, a espontaneidade e a apreciação determinam uma atitude de valorização das escolhas dos leitores e, consequentemente, a não-compulsoriedade da leitura de obras literárias, a qual se constitui como um elemento capital nos projetos de
leitura extraescolares. Sabemos que a Literatura, enquanto disciplina escolar, “obriga” os alunos ao
estudo (e eventual leitura) de obras e que essa obrigação vem produzindo uma imagem bastante
negativa das aulas de Literatura, especialmente nos anos do Ensino Médio, nos quais tal disciplina
se concentra no ensino dos conteúdos previstos nos exames de vestibular.
Há algum tempo, quando o Exame Nacional do Ensino Médio começou a ser aplicado como processo seletivo, em uma reunião do colegiado de Língua e Literatura do IFG/Goiânia, ouvi de uma
professora sinceramente preocupada com o ensino de Literatura que as questões sobre conteúdos
literários, no referido Exame, não exigiam a leitura de obra nem o conhecimento das características
e contextos de sua produção, o que desautorizava muitos dos conteúdos programáticos do Ensino
Médio. Entendo a preocupação dessa colega, que, aliás, é a mesma de muitos outros professores de
outras instituições educacionais, contudo, penso que a “desobrigação” de trabalhar a Literatura para
os exames de vestibular seja a melhor contribuição do Enem para o ensino dessa disciplina, visto
que, quanto menos esses alunos pensarem na leitura literária como uma “obrigação” a ser cumprida
na escola, maiores serão as chances de eles se aproximarem dela como arte.
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Há, ainda, a preocupação de que, oferecida de maneira não compulsória, a Literatura atraia apenas
aqueles que já a reconhecem como um valor positivo, o que, via de regra, só ocorre com leitores
oriundos de classes sociais mais privilegiadas. De acordo com esse pensamento, a não obrigatoriedade acabaria se opondo ao direito comum de acesso à literatura. Para não incorrer nesse erro, a
solução tem sido a manutenção da Literatura como um componente dos estudos de linguagem, na
disciplina de Língua Portuguesa. Desse modo, garante-se ao aluno o direito de conhecer a literatura
de seu povo e de sua língua, o que envolve as literaturas brasileira, portuguesa e africana de língua
portuguesa. Porém, para que esse direito funcione, algumas das estratégias do ensino extraescolar
devem ser inseridas nesse ensino compulsório, principalmente aquelas que tenham como ponto de
partida e norte a espontaneidade e o estímulo.
O quarto elemento que considero basilar nas atividades de leitura extraescolar está, em certa medida, focalizado mais no projeto de ensino de Literatura do que nas ações do aluno leitor e do professor
mediador: a busca da qualidade em vez da quantidade. A qualidade das leituras desenvolvidas pela
escola se materializa na apreciação, na interpretação como diálogo de imaginação, na participação
como proposta de criação, na explicação como recifração dos textos lidos para uma interação mais
imediata. Desviar dos “objetivos principais” em função das “necessidades imediatas” é um procedimento que, em contexto extraescolar, a leitura literária permite e exige. Contudo, dentro da escola,
a leitura parece “conformada” aos objetivos do programa ou do plano de aula e, por isso, qualquer
desvio parece uma “perda de tempo”. A meu ver, e pensando na premissa extraescolar de priorizar
a qualidade da leitura, não há perda de tempo em seguir as necessidades dos leitores, somente
ganhos, pois seu amadurecimento, e também o dos mediadores, constrói-se muito mais durante o
processo da leitura do que no seu final. As questões aventadas pelos leitores podem (e quase sempre o fazem) exigir um redimensionamento do projeto de formação de leitores e é essencial que ele
seja feito, visto que o principal interesse de qualquer projeto de leitura (dentro ou fora da escola)
deve ser a formação de um leitor autônomo, que mantenha essa condição após a vida escolar e que
tenha suas próprias ferramentas de seleção, leitura e interpretação das obras literárias.
O método de condução, portanto, deve tratar a leitura literária não como um produto imediato,
e isso exige a condução das atividades de leitura até que o grupo considere o aprendizado como
pronto, como se fosse a preparação de uma peça teatral até sua estreia. Nesse caminho, evita-se
chamar a atenção para a nota, para a quantificação do aprendizado, ainda que, no caso compulsório
da disciplina de Língua Portuguesa isso possa acontecer, mas, considerando-se os outros elementos
aventados, a quantificação não será propriamente motivadora de traumas, visto que resultará da
negociação entre alunos e professores.
Considerando as contradições do espaço escolar (e sua historicidade), pesquisar leitura no Brasil é
pensar as dificuldades vivenciadas pelos sujeitos escolares, com destaque para as figuras do aluno
e do professor. Nesse sentido, ao tentar compreender a realidade de formação do leitor no Brasil,
a comparação entre as práticas de leitura no contexto extraescolar e as desenvolvidas no âmbito
escolar confirma que as primeiras são mais produtivas, mas as segundas são as mais correntes no
processo de formação dos leitores brasileiros. E, ainda que a leitura motivada pela precepção familiar surta efeito mais duradouro na vida dos sujeitos, é fato para as pesquisas sobre leitura, no Brasil,
que a maior parte dos leitores tem uma história de leitura associada às experiências vividas no âmbito escolar. Mas não se pode perder de vista que a literatura tem um caráter dual, que se materializa
tanto pela expressão do conhecimento formal da língua, quanto pela expressão da agramaticalidade
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característica da obra de arte. Nesse sentido, quando a Literatura se torna uma disciplina escolar
que estuda as representações literárias, ela não pode prescindir do seu estado de arte, ou seja,
não se pode converter o texto literário em apenas mais um entre tantos outros que circulam socialmente. Contra essa redução da literatura em âmbito escolar, e considerando a necessidade de se
escolarizar a literatura, é preciso recuperar as práticas de leitura do contexto extraescolar, que tanto
pelo movimento lúdico quanto pela abertura de interpretação e compreensão das obras literárias,
promovem a apreciação estética,
Constituir um “outro olhar” sobre a leitura dos jovens e adultos em contexto escolarizado implica
em perceber as perspectivas e dizeres que já circulam na escola para entender suas particularidades
e subvertê-las, quando necessário. Há uma circularidade das falas e dizeres dos alunos e professores
que se retroalimentam negativamente em relação ao desejo e à importância da leitura literária nas
instituições educacionais: por um lado, alunos questionam a importância da leitura em seus moldes
escolarizados; por outro, os professores se ressentem da falta de interesse e desejo do aluno por
conhecer obras literárias selecionadas pela escola. Essa negatividade na percepção de ambos os
sujeitos, por vezes os impede de identificar os espaços produtivos para a leitura na e fora da escola.
É preciso, portanto, estimular entre esses dois sujeitos outra ordem de dizeres, uma que se alimente
da expressividade dos desejos e interesses comuns da escola e do aluno. Somente assim o encontro
do sujeito com as obras literárias, em âmbito escolar, constitui-se em uma experiência positiva com
a Literatura, que repercutirá em muitas outras leituras autônomas.
Cada um dos alunos, jovens e adultos, além das leituras escolares, lê e recebe muitas outras informações indiretas sobre os livros pela televisão, cinema, jornais, revistas, internet etc. Essa interação
enriquece o universo de análise dos alunos e mobiliza, neles, o desejo de serem ouvidos, de participarem do processo de leitura. Cotidianamente esses alunos se deparam com a leitura nas diferentes
disciplinas do currículo escolar, os conteúdos se encontram nos eixos transversais do conhecimento,
o que possibilita interdisciplinaridades inimagináveis para as atividades do docente. Muitos trabalhos podem ser desenvolvidos de forma coletiva por professores das disciplinas escolares, compartilhando conteúdos e objetivos, aprendendo com as metodologias das outras áreas. No letramento
literário essa prática é ainda mais viável, pois as obras literárias congregam informações que alimentam as mais diversas áreas de conhecimento.
Projetos que agregam disciplinas em torno da literatura produzem o efeito de, pela multiplicidade
de sentidos e pelo caráter fruitivo da arte, possibilitar a aprendizagem de forma mais profunda, ao
aliar cognição e sentimentos em torno de um assunto ou tema. Estimular as leituras livremente
escolhidas pelos jovens e viabilizar espaços para que eles possam divulgar suas escolhas individuais
permite a construção de uma estrada de mão dupla na relação entre o jovem e o mediador, sem que
um se sobreponha ao outro: as leituras que os jovens alunos fazem fora da escola são tão legítimas
quanto aquelas indicadas pelos professores e elas podem proporcionar curiosos diálogos entre clássicos e best sellers, contribuindo significativamente para a permanência da leitura na vida do sujeito,
após os anos escolares.
Por fim, o que propus como reflexão em torno da leitura fora e dentro da escola pode parecer um
pouco anárquico, para alguns educadores. Outros podem acenar para a questão dos poucos recursos e da formação precária dos docentes, o que impossibilitaria o aproveitamento das estratégias
de leitura aventadas. Mas se queremos construir outra realidade de leitura na escola, na qual a
leitura se configure como permanência para o aluno, o professor também precisa ressignificar suas
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práticas. Como ressaltei ao longo desse artigo, a figura do professor e mediador é fundamental para
aproximar o leitor da leitura. Não é por acaso que, na pesquisa Retratos de leitura no Brasil, o professor aparece como a figura mais lembrada como motivadora de leitura, pois é ele quem orienta e até
mesmo caminha, às vezes aos tropeços, junto com os alunos nas etapas de leitura de uma obra. Mas
é preciso interromper uma cadeia de práticas equivocadas de leitura escolar, como a repetição de
conceitos ou memorização de características de estéticas literárias em detrimento do contato com a
obra literária, prática infelizmente comum tanto no ensino escolar quanto na formação universitária
(que ainda insiste em um extenso programa de conteúdos, sem o necessário e urgente aprofundamento dos mesmos).
Em um país como o nosso, onde historicamente a escola se construiu como “uma oportunidade”
para poucos e não como direito para todos, e na contramão dos discursos que enfocam o fracasso
do professor e do aluno, acredito e defendo a revitalização das práticas de leitura, com vistas a um
efetivo letramento literário em nossas escolas. E cada vez mais convicta, reafirmo como caminho,
o aproveitamento das boas experiências de letramento literário desenvolvidas fora da escola e das
suas premissas de leitura, pois elas conseguem manter viva a capacidade criativa e revolucionária
que a arte literária possui.
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Referências
BOURDIEU, P.; CHARTIER, Roger. A leitura: uma prática cultural. Debate entre Pierre Bourdieu e
Roger Chartier. In: CHARTIER, R. (org.) Práticas de Leitura. São Paulo: Estação Liberdade, 2001.
CANDIDO, Antônio. O direito à literatura. In: ______. Vários escritos. 3. ed. São Paulo: Duas Cidades, 1995. p. 169-191.
CASTRILLÓN, Sílvia. Escola, leitura e escrita: a necessidade de um olhar externo. Disponível em:
http://www.revistaemilia.com.br/mostra.php?id=82. Acesso em 01/10/2013.
CHARTIER, Roger. A aventura do livro: do leitor ao navegador: conversas com Jean Lebrun. 1º reimpressão. São Paulo: Edunesp/Imprensa Oficial do Estado, 2009.
______. (org.) Práticas de Leitura. São Paulo: Estação Liberdade, 2001.
COLOMER, Teresa. Andar entre livros: a leitura literária na escola. São Paulo: Global, 2007.
______. La formación del lector literario: narrativa infantil e juvenil actual. Barcelona: Fundación
German Sanchez Ruiperez, 1998.
IPL. Retratos da leitura no Brasil. Brasília: Instituto Pró-livro, 2012.
MANGUEL, Alberto. À mesa com o chapeleiro maluco: ensaios sobre corvos e escrivaninhas. Trad.
Josely Vianna. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.
PETIT, Michèle. A arte de ler ou como resistir à adversidade. São Paulo: Editora 34, 2009.
_______. Os jovens e a leitura. São Paulo: Editora 34, 2008.
SILVA, Ezequiel Theodoro da. A escola e a formação de leitores. In: FAILLA, Zoara (org.). Retratos da
leitura no Brasil 3. São Paulo: Instituto Pró-livro / Imprensa Oficial de São Paulo, 2012.
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Histórias Coralinas aos olhos de Maria Grampinho
Coralinas stories in the eyes of Maria Grampinho
Historias Coralinas en los ojos de Maria Grampinho
Diane Valdez1
Resumo
Como resultado de minhas abordagens proferidas em conferência, o presente texto aborda questões provindas da experiência de escrever para crianças, em especial de um livro que retrata retalhos da história de Maria Grampinho, uma
andante da Cidade de Goiás, que dormia no porão da casa da poetisa Cora Coralina. Trata-se de um ensaio no qual percorro um caminho indicado pelas crianças leitoras para chegar à produção de outras obras. Ou seja, da inquilina para a
dona da casa, da Maria para Ana, de Grampinho para Coralina. A conversa rodeia em torno da formação do leitor além
do livro lido, ou seja, como uma personagem leva a outra e como a outra, no caso a autora, pode responder por isso.
Palavras-chave: literatura, infância, personagens, caminhos
Abstract
As a result of my approaches given in conference, this paper addresses issues stemmed from the experience of writing
for children, especially a book that portrays fragments of the story of Maria Grampinho, a walking from City of Goiás,
who was sleeping in the basement of the house the Cora Coralina, a local poet. This is an essay in which I walk a path
indicated by the children readers to get to the production of other works. That is, the tenant to the owner of the house,
Maria to Ana and Grampinho to Coralina. The conversation around around the player’s training beyond the read book,
that is, as a character leads to another and as the other, if the author can answer for it.
Keywords: literature, childhood, characters, paths
Resumen
Como resultado de mis abordajes proferidas en conferencia, el presente texto aborda cuestiones provenidas de la experiencia de escribir para niños, en especial al respecto de un libro que retrata retazos de la historia de Maria Grampinho,
una caminante de la Cidade de Goiás, que dormía en el sótano de la casa de la escritora Cora Coralina. Se trata de un
ensayo en la cual recorro un sendero indicado por los niños lectores para llegar a la producción de otras obras. O sea,
de la inquilina para la ama de casa, de Maria para Ana, de Grampinho para Coralina. La conversación gira en torno a la
formación del lector más allá del libro leído, o sea, cómo un personaje lleva al otro, y cómo el otro, en este caso la autora,
puede responder por eso.
Palabras clave: literatura, infancia, personajes, senderos
1 Professora da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Goiás (UFG) e autora de livros infantis. E-mail: [email protected]
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LEITURA EM REVISTA iiLer / Cátedra UNESCO de Leitura PUC-Rio n.7, fev., 2015
No tempo de uma professora que divide seu largo e complexo mundo da docência universitária com
a agradável e árdua honraria de escritora de fim de semana, creio que vale anotar e socializar um
pouco deste segundo lugar que completa quase duas décadas. Antes, ressalto que este escrito, em
formato de ensaio, se constitui mais de impressões e indagações do que, propriamente, de afirmações ou conclusões provindas de investigações e de estudos a respeito de livros e leitores. Diante do
tema apresentado em uma feira de livros2 para um público diversificado, procurei abordar parte da
relação da escrita, de personagens, leitores e, em especial, a relação da protagonista do livro O que
teria na trouxa de Maria? (2007) com a poetisa Cora Coralina.
Escrever para crianças, a meu ver, não é simples, contudo me parece muito mais prazeroso que dificultoso, além de que, a produção da escrita, é só o começo, uma espécie de locomotiva que puxa
outros vagões, sempre lotados de palavras, interrogações, reticências, hesitações, reservas, etc. Em
primeiro lugar, abordo sobre essa tarefa e as outras que surgiram em decorrência deste papel, como
a demanda que me motivou escrever sobre esta experiência. Em seguida discorro sobre Maria, a
inquilina noturna da casa branca da ponte, a ponte indicada pelas crianças leitoras para chegar até
a poetisa Cora Coralina. Ressalto, ainda, que a casa da poetisa foi outra ponte que me encaminhou
até Maria, pois era naquele espaço que as duas mulheres compartilharam parte de suas vidas, ainda que, de forma socialmente diferente: Cora, poetisa já reconhecida, era a dona da casa branca;
Maria, mulher negra andarilha, ocupava a parte inferior, abaixo do quarto da escritora, um pedaço
de casa, que servia para protegê-la das ruas, talvez, não de outras necessidades. Por fim, recorro às
lembranças impressas nos escritos de Cora para contar sobre as sete trouxas montadas com outras
histórias e narradas pela inquilina do porão3. Lembranças, que foram acrescidas de outras histórias
e de outras memórias, talvez lidas em livros de história, trazidas pelos ventos, cavucadas na terra
molhada ou talvez inventadas, imaginadas, criadas. E foi percorrendo os caminhos da escrita e da
leitura, que a escuta se fortaleceu, pois ao dar ouvidos aos leitores, nasceram outros escritos, por
isso registro meus agradecimentos aos meninos e meninas que me cutucaram com perguntas tecendo respostas em formato de palavras juntadas e historiadas.
A escrita, o livro e o leitor: construções que se encontram e não se arrematam
Escrever para crianças, exige, além dos cuidados próprios da responsabilidade da escrita, alguns
outros ingredientes, como por exemplo, evitar menosprezar a capacidade do leitor criança, a infantilização (inhos/as), assim como lições e julgamentos, sejam morais ou religiosos. Talvez valha apostar na inspiração criativa e, sobretudo, na paciência para esperá-la e permitir a produção de textos
menos apressados e mais apurados. Os rituais na escrita literária são subjetivos, não é possível
encontrá-los prescritos em manuais de orientações, tampouco limitá-los a um lugar ou tempo, por
exemplo, a respeito dos temas e suas inspirações, já os encontrei em conversas, em chuvas, em
olhares, em paisagens, em risos, em chãos, em sonhos, em lágrimas etc.
Pronto materialmente, as páginas do livro, ao chegar “aos olhos” e nas cabeças infantis, parece-me
que produz outras práticas que, igualmente, merece atenção e disposição de pensar sobre elas. Nos
nossos encontros, as crianças leitoras, com o livro debaixo do braço, esperam impacientemente para
2 Este texto foi apresentado em uma mesa redonda sob o tema Cora Coralina e Infância na 10ª Feira Internacional do Livro de Foz do
Iguaçu, em setembro de 2014.
3 Lugar onde Maria Gramprinho dormia. Escuro e abaixo do quarto da poetisa. Local onde passa uma bica d’água que deságua no
quintal da casa de Cora.
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fazerem perguntas sobre as personagens e, por vezes, sobre a história de vida de quem escreveu
aquela história. Às vezes, só a pergunta basta, nem precisa da resposta. Independente de qualquer
coisa, experimento, nesses momentos, um sentimento de bem-aventurança que arrisco dizer, sem
medo de parecer piegas, como um dos melhores momentos desta história de escrever histórias para
a meninada. São encontros pautados pela simplicidade, e não quero dizer simplista, o sentido aqui
é de naturalidade, espontaneidade e de muita beleza. Chamado, normalmente, de “Conversa com a
autora”, cercada de meninos e meninas, ouço mais perguntas do que opiniões, se bem que eu gostaria que fosse ao contrário e, tento (sinceramente, tento), responder a altura da inteligência infantil,
mas tenho a impressão que nem sempre consigo.
Nos encontros que marcam a confluência do livro com os leitores, tomo a lupa, aumento o olhar e
tento observar o que lhes seduzem, abraçam, atingem, incomodam e os fazem movimentar naquele
material que foi produzido por uma adulta para eles. As impressões chegam sob formato de perguntas, algumas poucas cingidas com sugestões, mas ainda disfarçada de pergunta, do tipo: - Por que
você não escreve uma história de dinossauros? Com esta questão, por exemplo, sinto que agradaria
mais este leitor colocando dinossauros e répteis voadores em formato de personagens do que os
porcos caititus e o lobo guará, protagonistas da história lida pelo menino. Como já foi ressaltado,
quiçá por complexificar demais este momento, busco respostas pensadas, ao invés de ser natural
como os leitores. Então, acho que perco a espontaneidade e talvez ganhe flexibilidade ao não fechar
respostas lançando: ‘não tenho bem certo’; ‘acho’; ‘me parece’; ‘talvez’, mas, sem dúvida, fico parecendo mais professora de história do que alguém que escreve. Juntar as perguntas, guardá-las em
algum lugar e levar para casa, tem me ajudado a pensar um pouco mais a respeito do que, ao escrever, pensava o que estava falando para eles, o que, possivelmente, o livro disse a eles, o que eles
disseram para o livro e o que eles disseram uns para os outros sobre o livro. É muita informação!
Se o movimento com os leitores exige retornos que nem sempre estão acabados, nos encontros com
os adultos que, muitas vezes, escolhem as obras para as crianças, há mais demandas e mais responsabilidades. Boa parte das perguntas dirigidas por profissionais do magistério, jornalistas, alunos, pais
e outros, nem de longe tenho a ousadia de respondê-las com precisão ou com chaves que não permitem outras análises. Trata-se de questões que, a despeito de tirar-me de um lugar confortável e impor-me desafios, são grandes e difíceis de produzir respostas curtas, redondas e prontas, como quase
sempre se espera. Isso cria em mim a impressão que o fato de escrever e publicar livros dá-me um
poder, que definitivamente não tenho, que é o de opinar de forma segura sobre o emaranhado mundo
de leitores e livros. As indagações se iniciam com o peso de responsabilidade atribuída: Como autora...
ou, Como alguém que escreve para crianças... e a mais comprometedora: Como professora e autora...
Pasmem, dá vontade de sair correndo! Em seguida vem o complemento, e os mais comuns são: - Que
tipo de livros as crianças devem ler?; - O livro infantil ajuda no aprendizado escolar?; - Qual é a idade
dos leitores de seus livros?; - Qual é o poder do livro sobre a criança?; - Filho de não leitor nunca vai ser
leitor?; E a pergunta mais clássica, que já vem embutida com a resposta: - Não acha que as crianças de
antigamente liam mais do que as de agora? Por que no meu tempo, nós líamos muito etc...
Feita as perguntas, vezes intrigantes, vezes surpreendentes, somada às outras, espera-se a resposta
pronta e acabada, que, repito, não tenho, isso não me remete para o “limbo angustiante” de perguntas
sem respostas, mas me coloca em um lugar onde, ao que tudo indica, preciso responder, falar só ‘eu
não sei’ não me parece o mais viável, afinal consegue escrever tem que ter palavras para o debate.
Talvez, não despregando do meu lugar de professora, digo que muitas das perguntas merecem res-
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postas baseadas em pesquisas, que nem sempre tenho acesso. Não defendo, por exemplo, o uso de
livros literários para reproduzir conteúdos didáticos, contudo tenho a impressão que este material, ao
chegar aos espaços escolares, já se torna quase que “naturalmente” um objeto didático. Não me sinto
a vontade para definir idades para meus livros (quem sou eu?), não sou determinista no sentido de
afirmar que filhos de não leitores estão condenados a não gostarem de ler. Da mesma forma, me sinto
constrangida de ditar normas de como meus livros devem ser trabalhados, afinal, a partir do momento
que estes saem do meu ‘poder’ de escrita, eles pertencem aos leitores e aos que adotam as obras para
os alunos, filhos etc. Posso sugerir algumas formas, mas definitivamente, não vou ensinar a professora
como se deve trabalhar as obras, afinal, é muita prepotência alguém se colocar neste papel.
Para os que liam “muito no passado” e toma sua história como modelo a ser seguido, penso que, não
somente no papel de escrevinhadora, como em outros, não me parece possível transferir o passado
para o presente recorrendo às mesmas práticas e sensações, sobretudo, tomando como referência
a história individual. Minha relação com os materiais de leitura que tinha acesso, poderia não ser
a mesma de outras crianças de minha idade, assim como as sensações provocadas. Quem pode
asseverar que aqueles gibis da Bolota e da Brotoeja, as enciclopédias com seus jardins suspensos da
Babilônia, os livros da Coleção Vagalume que me levava até borboletas falantes, escaravelhos misteriosos, ilhas fantásticas, ao mundo de um pé de laranja lima, etc., provocaram ou provocariam em
outros as mesmas relações experimentadas por mim? São tempos, pessoas, escritos e páginas diferentes. É uma experiência individual, que provavelmente tem pouca validade, a não ser que faça parte de uma análise coletiva, pois a história é constituída coletivamente, e não, individualmente. Talvez
por isso é que me tranquilizo ao considerar a subjetividade do leitor, pois o que estes farão com essas
palavras em forma de história, é imprevisível. Ainda bem! Pois minha intenção é produzir um texto
e enviar, tendo claro que neste percurso este chega com outras palavras aos olhos de quem lê. Isso
me parece ser apenas uma parte da relação autor e leitor, lado que considero precioso e importante.
Iniciei esta prosa, para introduzir o tema ao qual me propus desenvolver neste lugar. Voltando aos
encontros com a meninada, tendo como referência a obra já citada, trago pedaços do chão goiano,
representado por duas mulheres: Maria Grampinho, que nasceu no início do século XX, e Cora Coralina, a Aninha, que nasceu no final do século XIX, ambas, filhas da Cidade de Goiás, aliás, Goiás Belo,
para não reforçar o estereótipo rejeitado pelos vilas-boenses de ‘Goiás Velho’. Vamos a elas...
Maria e Cora... Grampinho e Coralina: mulheres da antiga capital colonial
Maria Grampinho, a protagonista da obra literária O que teria na trouxa de Maria?, foi-me apresentada, por meio de uma trouxa e de uma foto preto & branco na casa onde ela ocupava, noturnamente, o espaço do porão. Conheci Maria Grampinho na ‘Casa de Cora’, nome designado ao museu
que abriga a história da escritora onde a mesma nasceu (1889) e morreu (1985). No porão da casa
colonial havia uma trouxa que compunha um cenário escuro e úmido, era a trouxa de Maria, uma
mulher que, durante o dia perambulava pelas ruas e pelos becos da Cidade de Goiás4, do século XVIII,
durante a noite fazia-se inquilina de Cora. Maria Grampinho recebeu este nome devido aos grampos
que encontrava nas ruas e colocava em seus cabelos, além dos inúmeros grampos que colecionava,
4 Chamada inicialmente de Arraial de Sant’Ana, depois Vila Boa de Goiás, para mais tarde ser reconhecida como Cidade de Goiás, a
primeira capital do Estado de Goiás exerceu este papel até os anos trinta do século XX, quando foi transferida a sede da capital para
Goiânia. No ano de 2000, esta cidade recebeu o título de Patrimônio Histórico da Humanidade.
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Maria também juntava botões e costurava em suas saias, contudo, o que mais chamava atenção, era
sua grande e misteriosa trouxa. Levada sob a cabeça ou junto ao corpo, a trouxa, despertava curiosidade, temor e apreensão nas cabeças infantis que eram ameaçadas por adultos de serem levadas
por Maria da trouxa, se teimassem. À Maria, Cora dedicou um de seus poemas: Coisas de Goiás:
Maria publicado em sua obra Vintém de cobre: meias confissões de Aninha (CEGRAF, 1987).
Creio que a atração inspirada pela trouxa e por sua proprietária, pode ser o que chamo de inspiração, pois ali, diante daquela imagem, falei com meus grampos invisíveis que escreveria a história
da Maria. E, assim, comecei a ‘espicular’ sobre minha protagonista eleita, as informações se repetiam somando poucas novidades, boa parte das informações eram curtas, repetidas e plenas de
desinteresse. Destacava-se mais o lugar de inquilina na casa branca da ponte, do que outras pistas
sobre a história pessoal de Maria. Também escutei opiniões que, nem de longe foram solicitadas,
e expressavam alta escala de preconceito, racismo e frieza, do tipo por que escreveria a história de
uma louca, emburrada, doente, maluca, rebelde, esquisita e ‘negra’? Claro, nem todos opinavam
dessa forma, algumas pessoas me ofereceram informações preciosas, poucas, mas dados bonitos e
respeitosos sobre Maria e suas andanças.
O percurso ‘pré-escrita’, feito nas ruas truncadas de paralelepípedos, mesmo diante dos tropeços,
incentivou-me ainda mais na escrita da história dessa Maria que, a cada dado obtido, positivo ou
negativo, parecia-me ainda mais digna de ser a protagonista de um livro que tem como chão as ruas de
pedras de uma cidade que é Patrimônio da Humanidade. Assim, a história desta mulher negra, pobre,
solitária e abandonada, em um lugar de protagonismo já estava acordada, antes mesmo de começar
a escrita. Impossível ignorar que, além do brilho nos olhos no encontro com a trouxa e a fotografia, o
que me mais me moveu na história de elevar Maria ao lugar de protagonista, foi meu lado militante,
provocador, irônico e curioso. Contraditoriamente, mesmo não defendendo o papel da literatura como
objeto conformador, no fundo eu esperava ‘despertar’ e ‘ensinar’ moralmente que não devemos lançar olhares que dividem as pessoas em quem pode ser personagens de livros e as que não podem ocupar este lugar. Dei vazão ao meu desejo militante e de forma provocadora e prepotente pensava que
no ‘meu livro’, a Maria ‘desdenhada’ apresentaria a cidade Patrimônio para os leitores em um lugar de
evidência e, no meu livro, ela, majestosamente, seria a Dona que caminharia pela história da cidade,
mostrando suas belezas e suas feiuras. Ali, desenhei uma personagem que existiu, porém revestida
nos limites de ficção que a literatura permite, o resto parecia não ter muita importância.
Maria e Cora, Grampinho e Coralina. A despeito dos lugares ocupados pelas duas mulheres, marcado pelas diferenças étnicas e sociais, a primeira, foi quem me indicou alguns atalhos para pensar na
literatura feita para a pequenada como um lugar que pode provocar diversas sensações, entre elas
uma espécie de sensibilidade que me moveu para outros lugares. Talvez esta provável sensibilidade,
da parte das crianças com a Maria Grampinho me conduziu a outra escrita, pois esta Maria, com
sua simplicidade e seus mistérios, encontrou-se com as crianças e foi elevada a um lugar relevante,
quase que se igualando com a poetisa. Na minha teimosia e persistência, confesso que tinha receio
de encontrar resistências dos leitores, no entanto, ao contrário do que esperava, o encontro dela
com as crianças pareceu-me e parece exitoso5. A trouxa da personagem atiçou certa proximidade,
que beira afetividade, erguendo-a a um degrau que permitiu as crianças leitoras chegarem à Casa
de Cora e se interessarem tanto pela vida de Maria, como a da poetisa. Nos espaços de conversas,
5 O livro O que teria na trouxa de Maria? (Cânone, 2007), está em sua 6ª edição. Cada edição publicou cerca de 1.000 livros.
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sobretudo nas escolas, era visível esta relação, a Maria da trouxa era mais do que a inquilina da
poetisa, era uma pessoa viva, apalpável, que guiava as crianças na Cidade Patrimônio e no mundo,
aparentemente, menos conhecido de Cora Coralina.
Ao recorrerem pela história da Maria, as crianças leitoras voltaram seus olhos para a poetisa, relacionando-a com sua inquilina do porão, indagando uma possível história das duas juntas, especialmente relacionada ao período de infância das mesmas. Assim, além da clássica pergunta do que de
fato teria na trouxa de Maria, vieram questões que me desafiaram voltar meu olhar para a dona do
porão, pois, as perguntas, de forma quase natural, ignorando as idades e as questões sociais que as
separavam, juntavam as duas pessoas em momentos de amizades, de brincadeiras, de convivência
inerente. Diante disso, comecei, junto com os leitores, a ver as duas juntas e, seduzida pelos pedaços
de histórias, disfarçadas de perguntas, inventadas pelas crianças fui alimentando a ideia e construindo, vagarosamente, um porão para abrigar esse projeto. E, como que desejando reconhecer essa
iniciativa provocada pela Maria, tomei a liberdade de chamá-la para ser cúmplice deste plano. No
porão construído, levei tecidos para fazer uma trouxa que abrigaria e resguardaria os escritos, pois
não determinei tempo para o término, tampouco páginas, temas, tamanho etc. A única coisa, fragilmente demarcada, foi o desejo da escrita e a escolha da companhia, indicada previamente pelos
leitores, do jeito que falei.
Histórias Coralinas saídas do porão: eu vi minha gente... eu vi...
Falar de literatura e crianças nem sempre nos remete a literatura supostamente feita para crianças,
Cora Coralina é uma prova disso, pois alguns de seus poemas, possivelmente pensados para adultos,
foram dirigidos para crianças, sem adaptação6. Nos escritos de Cora, é possível observar boa parte
de uma infância que se afasta da imagem tradicionalmente celebrada como um tempo de inocência,
ociosidade, alegria e tranquilidade. A visão de infância que surge em suas linhas recupera diversos
tipos de relações, em especial, as de tirania, visto que a poetisa, não romantiza o passado, sobretudo quando trata de sua infância. Ao remontar sua infância, Coralina, como registrou Drummond
“(…) não a ornamenta com flores falsas”. Romantizar o passado é muito comum, não somente na
produção literária, como também nos discursos nostálgicos, sobretudo de pessoas idosas, que se
referem ao passado de forma idealizada, como um tempo bom, que não deveria ser modificado.
Coralina descreve as relações inquietantes de Aninha (enfatizando o diminutivo como algo pequeno
e indefeso) na sociedade da época, e é visível, em boa parte dos escritos, a consternação em suas
lembranças. Outro aspecto que salta de suas páginas se refere ao regionalismo, apesar de ter passado mais de quarenta anos fora de Goiás, Cora se apega no que considera ‘coisas de sua terra’, que se
traduz no vocabulário, na descrição da sociedade, dos usos e costumes da terra.
Levando em conta tudo isso, as criações começaram a tomar corpo literário e a compor as páginas. Com jeito de gente inzoneira, como dizia Cora, rumei levando Maria nesta viagem, adentrando
pela literatura produzida pela poetisa e consultando outras paradas que ajudariam nas escritas sem
6 Para o público infantil, a poetisa escreveu, especificamente, as obras Os meninos verdes (1986); A moeda de ouro que um pato
engoliu (1988). Contudo, alguns poemas de Coralina foram ilustrados e dirigidos para este público. É o caso de O prato azul pombinho
(Global, 2002 – Ângela lago e Lucia Hiratsuka); Cocadas (Global, 2007); Poema do Milho (Global, 2008); A Menina, o Cofrinho e a Vovó
(Global, 2009); Contas de Dividir e Trinta e Seis Bolos (Global, 2009).
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pressa e sem prazo7. De forma semelhante a Coralina, que juntava cacos e deles faziam brinquedos,
propus, desde o princípio, juntar suas lembranças para depois montá-las em formato de histórias
que seriam contadas por sua inquilina, de forma espontânea, como fazem bem os contadores de histórias. Rumei ao porão, me acomodei junto a Maria e, sob seu olhar vigilante e seu silêncio aparente,
ousadamente, deleguei a ela o papel, não só de me animar a escrever sobre a infância da poetisa,
como também de narrar essas histórias. A passos lentos, as palavras começaram a ser remontadas e
encaixadas, depois foram separadas e seguradas com grampos de cada lado para não se desfazerem
com o vento. Distribui-as no papel e costurei uma a uma, algumas foram mal costuradas, e logo, se
desmancharam dando lugar a outra costura. Assim, como os botões coloridos que Maria juntava e
guardava para enfeitar suas saias, fui juntando e guardando, só que, durante a cata de elementos
para compor a história, acabei encontrando tantas palavras, frases, ações, fatos, relatos, descrições,
que a trouxa ficou lotada, deixando um tanto de coisas de fora. Veio uma segunda trouxa, também
não coube, criou-se uma terceira... Por fim, até o momento, foram criadas sete trouxas. Os tecidos
de cada trouxa iam amarrando passagens que narravam histórias transmitidas pelas infâncias da
menina Ana, como os lugares mereciam olhares mais cuidadosos, costurá-las em seis trouxas foi
uma forma de contar melhor sobre a sua meninice, incluindo o nascimento e as relações com o mundo que a cercava na família, cidade, escola, fazenda, livros, castigos, restrições e outros elementos
impostos nos tempos de infância.
Neste movimento, além de evitar obedecer uma sequência histórica rígida pautada de fatos, não
tomei produções científicas a respeito da poetisa, pois a meu ver, a literatura escapa das garras sisudas (importantes, é claro) deste tipo de produção. Diferente de trabalhos acadêmicos, não tomei
a literatura como fonte no campo das investigações históricas, como uma espécie de ‘veículo’ de
ideias propagadas de um tempo e de um espaço, o que fiz foi emprestar os escritos produzidos
pela memória da poetisa como pedaços de ficções para escrever outros pedaços de histórias sobre
sua infância. O objetivo simples, não simplista, certamente é o de levar às crianças por meio da
literatura, as infâncias de outros tempos, sem, no entanto, ficar limitado a isso, pois as histórias
das infâncias trazem outras histórias. Evidente que o fato de ser uma pesquisadora da história da
infância, pode ter influenciado nas escritas, pois nem sempre consigo me livrar do assombramento
acadêmico que me move há muito tempo.
Na história que abre a série, que pode ser a trouxa número I, procurei, trazer elementos próprios do
cenário regional permeando o nascimento de Ana, sob o título A vinda na Vila Boa de Goiás, Maria
de dentro do porão da casa branca da ponte, narra o angustiante nascimento de Ana em um cenário
de noite chuvosa de agosto na Vila Boa de Goiás. O fato da menina ter ‘nascido antes do tempo’,
somado à saúde frágil do pai, que morreu após seu nascimento, provocou um clima de apreensão:
Dentro da casa branca da ponte
Onde a água forte batia no na janela de vidro de malacacheta
Um velho pai agonizava e uma menina filha nascia...
Respingando nascimento e morte
Além dos aspectos regionais, como vocabulários, paisagens naturais, características coloniais, espaços urbanos e outros, inseriu-se ainda características que ultrapassam as fronteiras, práticas que
7 Para compor estes escritos, não me apropriei dos livros infantis da poetisa, mas sim da produção de contos e poesias feita para
adultos, que são: Poemas dos Becos de Goiás e estórias mais (1o José Olympio, 1965 e UFG, 1978); Vintém de cobre: meias confissões
de Aninha (UFG: 1983); Estórias da Casa Velha da Ponte (UFg, 1985) e Meu livro de Cordel (Global, 2001). Recorri também a primeira
parte de Cora coragem, Cora Poesia (Global, 1989), biografia de Cora escrita por sua filha Vicência Brêtas Tahan.
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poderiam ser encontradas em qualquer lugar ao recuar o tempo, como superstições, solidariedade
feminina em torno do parto, temor, fé, cura pela natureza etc. Trata-se de usos e costumes que
remetem aos cuidados com os primeiros anos da infância em tempos de vidas frágeis:
Começaram sete novenas pra Ana não morrer...
Inventaram sete promessas pra menina vingar...
Improvisaram sete simpatias pra pequena ficar...
Fizeram sete chás pra magrinha engordar...
A menina melhorou...
Quase sarou...
Não engordou...
Mas vingou...
De tão pequena...
Virou Aninha
Aninha de Vila Boa de Goiás...
O texto seguinte, sob o título de A vida nas brincadeiras, apresenta os movimentos de Ana nos espaços de galhofas. De forma quase livre, considerando os conflitos, mas sem afetações, os cenários de
brincos são diversificados, podendo ser o lajeado terreiro comprido da casa colonial, as ruas de paralelepípedos, os becos da cidade ou as peças que compunham a casa branca da ponte. A despeito das
normativas proibidoras, sempre muito bem lembradas nos escritos de Cora, Maria faz questão de
ressaltar os dribles e as escapulidas inventadas pela menina:
Sair pra rua, mas e a lei da casa?
- Lugar de menina não é na rua!
- Criançada passa já para dentro!
- O sereno da boca da noite faz mal!
- O vento da rua dá bronquite!
Apesar da lei, das ameaças e dos medos...
A magricela ousava, espiava a casa, vigiava espertamente
Corria tudo com os olhos compriiiiidos e...
Quando ninguém vinha.. Saía... Escapava... Fugia...
Apesar da conotação negativa da poetisa em relação aos aspectos de sua meninice, procurou-se
aqui, acentuar, por meio dos brinquedos inventados, um mundo criativo, semelhante ao de muitas
outras crianças. Em tempos de resumidos brinquedos industrializados, a menina utilizava os recursos da natureza para construir seus brinquedos e, diante da solidão, inventava suas colegas, que
poderiam ser formigas, pássaros, joaninhas, pirilampos e outros, mostrando que apesar da pressão
não engolia as ordens de parar de sonhar. Maria se atém aos detalhes tão valorizados pelos pequenos. Em uma passagem, na atenta observação da natureza, a curiosa menina, semelhante à Emília
do Lobato, se apequenava e se instalava nos lugares com a ajuda da imaginação:
E a menina debruçava na terra
E virava uma formiga menina
E a menina formiga entrava no formigueiro
Curiosa, observava e anotava na cabeça as miniaturas formigais:
A casa, a cama, o banco, a rede, o prato, o copo...
Tudo pequenino. Tudo diminuto,
E, satisfeita, balançava nas redinhas com as formigas crianças...
E, feliz, brincava de roda com elas, cantando:
“Senhora dona Sancha
Coberta de ouro e prata
Descubra seu rosto
Queremos ver sua cara!”
Nos escritos da poetisa nota-se o quanto era caro para Ana escutar histórias contadas, especialmente as narradas pela sua bisavó que narrava velhas tradições inspiradas no passado anunciando: ‘Era
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uma vez, muito longe daqui’. Na terceira trouxa, Maria abre e mostra A vida nas histórias contadas,
onde se brinca com os casos de assombração, potes de ouros, episódios da escravidão e outros
contos populares regionais. Discorre ainda sobre as histórias de carochinha que vinham de um livro
grosso e transportava a menina para outros mundos, bem distantes de Goiás. As histórias guardadas
e apreciadas pela menina provinham da memória, dos livros e de objetos, como a história saída de
um prato (o último de uma baixela chinesa de 92 peças), narrada pela bisavó, a história parecia ser
possível de tocar, de pegar:
Um prato que se enchia de empadas,
brevidades, suspiros, bom-bocado, mães-bentas, fios de ovos, pudins.
Um prato que contava uma história,
Uma história comprida, repleta de detalhes e abarrotada de sentimentalismo.
A história vinha da velha e grande China
Tão distante de Goiás
A ilustração azul contava a história da princesinha Lui
Que fugiu com o seu amor plebeu
Causando a ira de seu pai mandarim
Do fundo do prato vinha seu encanto
Sua torcida pela princesa e pelo plebeu
E seu desejo de saber o final da história que a bisavó omitia, não contava.
Essa trouxa é carregada com desconfiança por Maria. Com seu resmungo em forma de hum hum
hum, a narradora lembra que a fuga da princesa chinesa, parece mais a história da dona da casa
branca da ponte. Segundo o alinhamento sequencias das trouxas, a outra narrativa surge da contemplação da poetisa quando se refere a um espaço onde passava suas férias, assim, surgiu a trouxa com
cheiro de mato e gosto de comida sertaneja chamada de A vida na Fazenda Paraíso. Maria enaltece
este espaço sob o consentimento de Coralina, a propriedade do avô, coronel de prestígio, dono das
terras e da natureza, é anunciada como um lugar grande, cheio de pessoas de diferentes procedências. Era neste lugar que a menina se esquecia de suas fragilidades, do controle dos mais velhos e
vivia mais de perto sua meninice liberta, no meio da natureza farta de comilança:
Comia-se à velha moda,
Sem regras e sem etiquetas,
Era permitido repetir,
Raspar o prato,
Fazer barulho e falar enquanto comia!
Na fazenda, o tempo passava de forma morna, lenta, mas sem o tédio e a amargura da capital. Maria
Grampinho transmite os dados com jeito de quem conhecia o lugar, a narrativa chega perto das
cores, cheiros e sabores, talvez fazendo até o leitor viver as sensações:
Um lugar que cheirava rosa, jasmim, cravo, cravina e baunilha
Um lugar onde morava o beija-flor
Um lugar que cheirava limpeza e asseio
Um lugar saboroso, com gosto de doce de pote
Um lugar com cara e jeito de infância boa de viver...
Um outro aspecto que, amargamente, é ressaltado nas produções da poetisa se refere as punições
vividas por ela em diferentes lugares de sua meninice. Chamamos de A vida ‘tomando propósito’
a narrativa que contempla isso, pois ‘tomar propósito’, no período, era algo caro para a educação:
Tinha punição para todas as ocasiões, não existia economia de castigo
Havia o famoso ‘tomar propósito’
Qualquer atitude de criança, qualquer desejo infantil, qualquer traquinagem tola
Os bons exemplos julgavam e prescreviam:
Menina, vai já sentar e ‘tomar propósito’!
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Com jeito de reprovação, Maria ressalta as diferentes formas de controle do adulto sobre a criança,
ironizando, lembra que, sob os olhos destes, a melhor criança era a que mais se parecia com um
adulto, lembrando que criança não fazia perguntas, só respondia o que os adultos perguntavam e, a
qualquer falta, recebia “tunda de taca”, pito, corsa, surra, gritos etc. Outro castigo degradante era:
Um dos mais temidos da época
Era um tal de ‘colar de cacos’
Servia para corrigir criança embaralhada
Servia para emendar menino desajeitado
Era um ‘santo remédio’ para pequenos atrapalhados
A receita era indicada para a criança que quebrasse alguma coisa de louça
Louça, era algo caro e raro naqueles tempos
Quebrá-la era quase como cometer um crime
Uma xícara, um prato, uma travessa, um copo quebrado...
Vinha gente de fora, gente especialista que fazia no capricho um colar com os cacos
Que, imediatamente, ia parar no pescoço da ‘delinquente’ que havia cometido o ‘crime’
As vestimentas infantis em um tempo de poucos tecidos, cores e modelos, são contadas em A vida em
suas vestimentas, onde se narra o contentamento e descontentamento da menina com suas roupas em
formato de uniforme, de festa religiosa ou daquele mandrião que tanto ficou na memória da poetisa:
Roupas novas, vinham dos corpos das irmãs mais velhas
Adaptadas e costuradas ao corpo da menina mais nova
deixando-a com cara de mana e não com cara de Ana...
Já o mandrião, aquela roupa de algodão macio e folgado era sua cara
Com ela podia brincar de balão, de caracol e de bola de coco
Na última trouxa, encontramos em A Vida na Escola a curta vida escolar de Ana na Escola Primária
da Mestra Silvina. Maria fala de uma escola aos moldes do final do século XIX. Uma escola doméstica
de uma classe e de uma só mestra, uma velha mestra que já havia alfabetizado a geração da mãe da
menina. Um lugar pequeno, descrito por Maria como um espaço conflituoso, sem grandes atrações:
A escola era na casa da mestra.
Menina não sentava com menino
Não tinha carteira individual
Sentavam em bancos compridos
Os pés não alcançavam o chão.
Os chinelos caíam
Os pés descalços balançavam
Em um ritmo longo de espera
Uma escola que, com toda sua sisudez, punições e impaciências, destaca-se por seu papel na vida da
escritora. Cora, em suas produções, eleva e romantiza a escola, sem problemas, Maria respeita esse
olhar e fecha esta provável última trouxa com o cuidado que a poetisa exigiria:
A menina aluna, chamada de
Feia, empalamada, inzoneira, pandorga, abobada, moleirona, doente...
Virou adulta e escreveu as as cores de suas memórias
Registrou os cheiros de suas histórias
Anotou os rabiscos de suas lembranças
Pintou com letras tristes e alegres sua meninice.
E quando a menina completou sete décadas
Publicou seus contos sobre suas vidas
Por isso que eu sei tanta coisa sobre a infância da menina.
Enfim, são sete trouxas inacabadas, mas já repletas de passagens historiadas a serem contadas por
Maria. Parece muita coisa, entretanto, mesmo parecendo exagero, ainda sobra palavras para encher
outras trouxas com histórias Coralinas. Os pedaços de histórias permanecem sendo cozidos em fogo
baixo, para, quem sabe mais tarde estes mosaicos cheguem às mãos da pequenada ilustrados por
gente que domina a beleza e a capacidade de fazer outra história por meio de imagens. Assim, nas
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LEITURA EM REVISTA iiLer / Cátedra UNESCO de Leitura PUC-Rio n.7, fev., 2015
tentativas de escrever e guardar, reler e modificar, rever e acrescentar, tornar a ver e remendar,
examinar e cortar, contemplar e arrumar, há cinco anos que permito me dar este agrado, talvez por
não ser profissional, talvez por querer ser amansada, talvez porque a escrita mereça descansos e
retomadas, ou talvez porque escolhi não ter pressa, não que seja calma, só sei que, diferente da
ansiedade que me marca, não forcei e nem apressei o tempo para conclusão. Escolhi e escolho dias
e lugares tranquilos para juntar estes pedaços de memórias, quase sempre nas férias.
Este tempo da escrita obedece algo regional, seguindo o curso do cerrado: simples e persistente
como as plantas deste bioma; espera calmamente os pequizeiros florirem, que constantemente se
veem iluminados pelas luzes dos pirilampos da Serra Dourada. Caminham no ritmo de caracóis que
aparecem com as chuvas de outubro e é pintado pelas flores do cerrado, especialmente a Caliandra,
com suas hastes longas e finas que colorem a paisagem mesmo em tempos de seca.
Enfim, caminhando para o final, trago o início do fio deste novelo, a personagem Maria Grampinho,
desenrolando-o até a outra ponta do fio: o leitor. Passados sete anos, ainda não tenho elementos
suficientes para afirmar o que esta obra provocou ou provoca em seus leitores, e penso que nem
terei, o que parece que tenho são pistas, pegadas, impressões que me levam a pensar que esta
personagem, costurou laços de afetividades com os leitores. Não digo isso baseada nas edições do
livro, mas sim, diante dos encontros que tenho tido com as crianças leitoras de escolas públicas e privadas, quando me vejo rodeada por essa meninada tenho a forte impressão que Maria as seduziu.
A negra baixinha do livro não é perseguida pelas crianças com provocações e xingamentos, ela é a
Maria que tem uma história e que, conduz o leitor e a escritora a outra personagem. Assim, ao contrário da aparente normalidade, onde a pessoa conhecida leva à desconhecida, neste caso destoa,
pois foi uma Maria que nos levou, eu e os leitores, à Ana, poetisa doceira que faz parte da história
da literatura e junto com Maria faz parte de um lugar, de uma cidade.
Diante disso, posso afirmar duas coisas: que uma cidade é feita por todas as pessoas, inclusive as
que a cidade rejeita e a outra é que, dependendo do lugar que é dado para uma personagem no
livro, ela pode se tornar uma referência, independente de sua classe social, etnia e práticas. Antes
de fechar a trouxa deste escrito, quero investir na ideia de que o livro literário não é um instrumento
redentor e não tem o poder de transformar, pode desempenhar o papel de divertir, de informar, de
incentivar a criatividade, de aguçar a curiosidade, de alimentar a imaginação, de proporcionar alegria e, neste momento, somado a outros, penso que o livro leva jeito para sensibilizar e humanizar
os seres, os seres pequenos e talvez, os grandes.
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Referências bibliográficas
BOSI, E. Memória e sociedade: lembranças de velhos. São Paulo: Companhia das Letras, 1994.
CORALINA, C. Poemas dos Becos de Goiás e estórias mais. Goiânia: Editora da UFG, 1978.
_____________ . Vintém de cobre: meias confissões de Aninha. Goiânia: Editora da UFG,1983
_____________ . Estórias da Casa Velha da Ponte. Goiânia: Editora da UFG, 1985.
_____________ . Meu livro de Cordel. São Paulo: Global, 2001.
TAHAN, V. B. Cora coragem, Cora Poesia. São Paulo: Global, 1989.
HALBWACHS, M. Memória coletiva. São Paulo: Vértice, 1990.
LE GOFF, J. Memória In: História e memória. Campinas: Editora da Unicamp, 1994.
VALDEZ, D. O que teria na trouxa de Maria?. Goiânia: Cânone Editorial, 2007.
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“Cântico da volta”: vivências de um repertencimento
“Cântico da volta”: experiencies of returning to belong
“Cântico da volta”: experiencias de un repertencimento
Ebe Maria de Lima Siqueira1
Resumo
O presente artigo propõe a ideia de que o exercício de poeta vivenciado por Cora Coralina pode e deve ser tomado
como uma aula de Educação Patrimonial em todas as escolas da cidade de Goiás. Especialmente em seu texto “Cântico
da volta”, publicado em 1956, a poeta apontava para aquilo que seria, no futuro, o seu papel na história de Goiás: passar
a limpo os autos do passado para que nada fosse esquecido. Cora Coralina tomou para si a tarefa de monumentalizar os
humildes e os logradouros pobres de sua cidade. E, nessa tarefa, Cora Coralina promove o seu repertencimento ao seu
berço natal e, por força da sua criação poética, outra cidade surge aos olhos de seus leitores de hoje e de todos os tempos.
Palavras- chave: Cora Coralina; poesia; educação patrimonial
Abstract
This article proposes the idea that the exercise of poet experienced by Cora Coralina can and should be taken as a lesson
in heritage education in all schools in the City of Goiás. Especially in his text “Cântico da volta,” published in 1956, the
poet pointed to what would be, in the future, its role in Goiás story: review the records of the past so that nothing was
forgotten. Cora Coralina took upon herself the task of monumentalize the humble and the poor public parks of her city.
In this task Cora Coralina returns to belong her birthplace and, by virtue of its poetic creation, another city appears in
the eyes of your readers of today and of all time.
Keywords: Cora Coralina; poetry; heritage education
Resumen
En este artículo se propone la idea de que el ejercicio poeta experimentado por Cora Coralina puede y debe ser tomado
como una lección de educación del patrimonio en todas las escuelas de la Ciudad de Goiás. Especialmente con el texto
“Cântico da volta”, publicado en 1956, el poeta ya apuntaba a lo que sería, en el futuro, su papel en la historia de Goiás
y el mundo: ir a limpiar los registros del pasado para que no caiga en el olvido. Cora Coralina tomó sobre sí la tarea de
monumentalize los humildes y los pobres parques públicos de su ciudad. Y esta tarea Cora Coralina promueve su repertencimento su lugar de nacimiento y, en virtud de su creación, otra ciudad aparece a los ojos de sus lectores de hoy y de
todos los tiempos.
Palabras clave: Cora Coralina, la poesía, la educación sobre el patrimonio
1 Doutora em Estudos Literários pela Faculdade de Letras da Universidade Federal de Goiás. Professora da Universidade Estadual de
Goiás – Câmpus Cora Coralina. E-mail: [email protected]
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Depois de ter ouvido a fala tão inspiradora de Lúcia Hiratsuka sobre as suas aventuras líricas em torno do
“Prato azul-pombinho”, abro os trabalhos da segunda parte de nossa manhã com outro texto exemplar
de Cora Coralina, poetisa que, muito justamente, é a homenageada do III Seminário de Educação Patrimonial.2 Antes de fazer os comentários, farei a leitura do texto “O cântico da volta”, de Cora Coralina.
Adianto a vocês que não fiz um recorte do poema em prosa e explico por quê. Acredito que vocalizá-lo
na sua íntegra é uma forma de começar dizendo que a leitura dos textos exemplares de nossos grandes poetas deve preceder qualquer tentativa de interpretá-los e/ou analisá-los sob a luz de qualquer
conhecimento. É claro que o corpo da minha voz estará impregnado de minhas vivências como professora, como mãe, como dona de casa, como moradora de Vila Boa de Goiás, como mulher coralina.
“O cântico da volta”
Velha casa de Goiás. Acolhedora e antiga, recende a coisas antigas de gente boa.
Vem de dentro um cheiro familiar de jasmim, resedá e calda grossa – doce de figo ou caju.
Um tacho de cobre areado referve numa trempe de pedras. Uma braçada de lenha e gravetos acende
o fogo ancestral.
A “porta do meio”, com sua aldrava de palmatória, sempre cerrada, como no tempo das Sinhás-Moças. A
“porta da rua”, sempre aberta, num corredor de lajes largas e polidas pelo piso das gerações.
A cidade-mãe nem me surpreendeu, nem me desencantou.
Conservada, firme, bem empostada, tem recatos de mistério, tem feitiço de prender.
Valiosa e interessante essa madeirama pesada que escravos lavraram e estas pedras manuseadas por
gente rude e estes muros e beirais anacrônicos.
Relembra bandeiras e minerações passadas. Muita lenda de ouro remanescente, que os antigos enterravam na espessura dos paredões socados. Achados empolgantes, buscas sugestivas, atrações singulares e
assombrações, de permeio, criando um rico folclore local.
Sombras do passado deslizam pelas ruas estreitas e curtas, quebradas em ângulos imprevistos, abrindo-se
em largos de simetria obsoleta.
Vou identificando os da minha geração e encarando de frente e inquirindo de perto os que sabem mais que eu.
A cidade bicentenária, assentada sobre pedras, sobre pedras se apruma e se sustenta.
Soldadas suas casas, paredes com paredes, portas com portas; agrupadas e unidas, num esforço tenaz e
expressivo de apoio e coordenação defensiva.
Sentiu com altivez o tremendo impacto da mudança. Não se despovoou nem desagregou com a
grande espoliação.
No seu progresso atual, sente-se um novo sentido de ajustamento, solidariedade e união dos que ficaram,
se impondo com dignidade ao respeito e admiração dos que partiram.
Sobrevive aqui, ainda e sempre, o mesmo determinismo histórico que fez viver e florescer, dentro desta
muralha de serras e rodeada destas águas vivas, uma autêntica civilização que, no enluramento de dois
séculos, se considerou um dia madura e apta para ser mudada, sem se esfacelar, deixando ainda, para os
pósteros, raízes fortes e sementes fecundas.
Goiânia! O grande milagre de Goiás e da gente Goiana!
Quarenta anos decorridos!
Outros tantos que iniciei o retorno, numa migração inconsciente e obscura, tenaz e muda, tendo a Serra
Dourada como sigla, os morros por roteiro e as arestas da vida me demorando os passos; e sobretudo, e
acima de tudo, o chamado ritual, agudo e poderoso da terra.
A vestal vigilante da minha saudade sempre conservou acesa a candeia votiva da ternura pelo meu duro
berço de pedras.
Os morros verdes parece que vestiram para mim galas vegetais; festivo o azul lavado dos ares, e no meu
cansado coração, uma festa maior: – A festa da Volta às Origens da Vida.
Plena Semana Santa. A riqueza cromática dos sinos veste a cidade de uma velha mística religiosa, sonora e vaga, a que as procissões e andores de Dolorosas dão vida e cor.
A cidade lendária me toma nos braços, me enlaça e prende. Euforia, levitação...
2 O presente texto foi proferido na mesa redonda intitulada “ A literatura como patrimônio cultural da humanidade” por ocasião
do III Seminário de Educação Patrimonial - Cora Coralina: patrimônio cultural e poético da Cidade de Goiás”, realizado pelo Instituto
de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – IPHAN e Prefeitura Municipal de Goiás, em agosto de 2014. Manteremos no texto os
protocolos da apresentação oral.
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Sinto-me renascer para o Canto Novo!
A Bênção do Fogo! O Canto das Profecias!
Aleluia... Aleluia...
O Rio Vermelho, de águas avolumadas, corre, como sempre cantando e pulando de pedra em pedra, como
nos dias da minha infância.
Menina que passa na ponte, menina que para, que espia o rio.
Eu me vejo em ti. Pequena, magriça, feia, despenteada, de jeito rebelde.
Sou eu mesma que me reencontro em você, pequena goiana, incerta, desgraciosa, marcada pelo ferro em
brasa de um destino duro.
Ouço as lavadeiras do Rio Vermelho...
Vejo, metida n’água, as tradicionais mulheres da terra. Cafuzas, morenas, trigueiras e retintas, de idade
indefinida; têm a seu cargo fazer limpa a roupa suja da cidade (sem alusão malina).
Quando de tarde, atravessam as ruas, grandes trouxas alvacentas, equilibradas nas trufas, têm um cheiro
infante e gostoso de gente limpa, água e sabão.
Batem roupa o dia todo, à moda antiga, acompanhando com o compasso do tempo o ritmo da correnteza.
Sabem histórias do peixe encantado, tantas vezes encontrado, perdido e procurado.
Andam de engorras com a Mãe d’água. Nas durezas do ofício, se valem de São Caetano, bom santo, solícito
e camarada: não é santo enjoado, de difícil atenção, e por isso, na volta do dia, elas vestem de colorido as
margens do velho rio, ou seja, os altares do Santo amigo.
A cidade vai num anseio de valorização e progresso que sacode e empolga todo o Estado.
A juventude, inteiramente desintegrada do passado, enfeita as ruas e namora, confiante num melhor destino.
E a gente da velha ala?
Enraizada como velhas figueiras, agarrada às tradições e aos encantamentos da terra, sustentáculos, colunas e cariátides; embasamento, concreto e arcabouço, amparo e anteparo da cidade frustrada.
Velhas sentinelas que morrem no posto de honra; defensores tenazes e valentes do que aqui resta, de
quanto aqui ficou, qual seja, o valioso Patrimônio histórico e cultural e as nobres tradições de Goiás.
Uma nova esperança acena no horizonte.
Com a expansão de Goiânia e com a possibilidade da mudança da Capital Federal para o planalto, Goiás
será, sem dúvida, um centro de turismo, dos mais interessantes do país.
Assim compreendam seus assistentes e responsáveis, impedindo, em tempo, maiores atentados ao seu
feitio característico e tradicional que merece ser inteligentemente resguardado.
Para ti, cidade-mater, este cântico perdido de quem volta às origens da Vida.
Cidade de Goiás, março de 56
(CORALINA, 2003: 105-109)
Falar de Educação Patrimonial neste seminário, em uma cidade histórica como Goiás, Patrimônio Cultural da Humanidade, no ano de 2014, parece ser uma atividade normal, que pode e deve ocorrer neste município a qualquer momento, seja nas reuniões políticas, nas secretarias de turismo e cultura, nas
escolas, no seio das famílias, entre o povo simples de Vila Boa. Entretanto, falar em educação patrimonial em 1956, ano em que o texto de Cora foi divulgado, em jantar organizado por jovens intelectuais
de Goiânia, não era empreitada fácil e presente na vida dos goianos de modo geral. Assim, nos chama
a atenção no texto que acabamos de ler a capacidade visionária da velha cidadã do mundo chamada
Cora Coralina, especialmente no cuidado com o patrimônio cultural da sua e nossa querida Goiás.
“Professora de Existência”, “Professora de humanidades”, “Cora dos goiases”, “Miniaturista de mundos
idos”, “Mulher diferenciada”, “diamante bruto” são apenas alguns dos epítetos que tentam qualificar a
velha rapsoda de Goiás, cunhados por Osvaldino Marques e outros, que têm se debruçado sobre sua
vida e obra. Contudo, nesse curto espaço de fala, quero chamá-la de Professora de Educação Patrimonial.
Ana Lins dos Guimarães Peixoto Brêtas puxou para si a tarefa de não apenas cantar seu povo e sua gesta, monumentalizar os humildes e os logradouros pobres, “sem classe e sem valia” de sua cidade, mas
também de ser a “antena de sua raça”, com tudo que isso pode implicar. Ela realiza esse feito histórico
quando aponta, com mais de meio século à frente, aquilo que hoje começamos a vislumbrar como ação
cotidiana na vida de todos os vilaboenses. Seja através do Projeto Mulheres Coralinas – que tem como
um de seus objetivos centrais dar a conhecer, às mulheres humildes dessa cidade, o direito de se apro47
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priarem do conjunto patrimonial que a cidade e seu povo encerra –, seja no projeto de Educação Patrimonial que as secretarias de Cultura e Educação começam a colocar em prática nas escolas do município,
seja ainda na reedição ampliada desse Seminário de Educação Patrimonial, em parceira com o IPHAN,
que nos oportuniza estarmos, hoje, reunidas em torno do nome de Cora Coralina e o que sua vida e obra
representam como monumento e documento histórico e literário para o povo vilaboense.
Curiosamente, a mesma Aninha que diz ter dado tanto trabalho à sua velha mestra na infância, pois
considerada menina idiota nascida de pai doente – por isso inapta ao domínio das letras – é a que
apresento hoje a vocês no papel de professora. Professora, como lembra a etimologia da palavra,
é a pessoa que professa. Recuperando do latim a palavra fiteri (professar), acrescido do prefixo pro
(diante de todos – à vista), profiteri, portanto, traduz-se por aquele que professa na frente de todos
o que sabe. Mas não nos esqueçamos de que essa mesma professora também afirma que professor
é aquele que também aprende.
Mas dizer que Cora Coralina é uma professora de Educação Patrimonial é pouco para dar a dimensão
do seu papel de retirar Goiás não de um prato de água ardente, “mérito” do Diabo Velho Anhanguera, mas do enluramento em que se encontrava com a perda da condição de capital. O projeto
iniciado com sua volta às origens da vida, para além de uma busca de veracidade ou autenticidade,
porque sabemos com Le Goff (1994: 549) que “qualquer documento é, ao mesmo tempo, verdadeiro – incluindo, e talvez sobretudo, os falsos [...]”, traduz a verdade da poesia com a qual a poetisa
professa o que sabe diante dos olhos de seus leitores de hoje, e de seus interlocutores no passado.
Essa verdade poética nos autoriza a reconhecê-la também como uma profeta no sentido de que ela
também prenunciava o que viria a acontecer mais adiante. Porque, afinal, confessa a poetisa, “nasci
antes do tempo”, ao que replicaram as feministas: uma mulher avant la lettre. Voltemos ao texto:
Com a expansão de Goiânia e com a possibilidade da mudança da Capital Federal para o planalto, Goiás
será, sem dúvida, um centro de turismo, dos mais interessantes do país. Assim compreendam seus assistentes e responsáveis, impedindo, em tempo, maiores atentados ao seu feitio característico e tradicional
que merece ser inteligentemente resguardado. (Grifo nosso).
O que identificamos, no fragmento acima, é exatamente a dimensão visionária da velha senhora
que, ao buscar as origens de sua vida, aponta para o renascimento de uma nova Goiás, se me permitem o trocadilho, com a Goiás Velho, apelido que, na visão dos que não apoiaram a transferência da
Capital para Goiânia, representava o atraso imposto à bicentenária cidade de Goiás.
Ao contrário de embarcar nas teses de que a cidade estava fadada ao fracasso, a poetisa inicia outro
movimento. De um lado, retomava o seu sentimento de pertença a essa terra, a esse pedaço de chão
que ela carregou consigo na sua partida e de onde ela ouvia, na distância, o clamor pela sua volta; de
outro, sua campanha de valorização daquilo que restou da cidade. Nesse movimento, faz surgir uma
nova esperança que poderia retirar a cidade do ostracismo, a que se encontrava desde a completa e
definitiva transferência da cidade no ano de 1942, embora tendo sido iniciada quase dez anos antes.
Cora Coralina, ao seu modo, transforma o ressentimento, por tudo que lhe fora imposto – preconceito, discriminação, inveja, desprezo e abandono – por uma tarefa silenciosa e obstinada, de passar a
limpo os autos de seu passado. Contudo, seu passado se mistura com o passado da cidade, quando
ela se transforma em casas e telhados, em largos e becos... A sua coragem de atar as duas pontas
de sua vida, de buscar o vintém perdido no passado e com ele inaugurar um tempo novo, constituir-se-á como oportunidade de surgir de sua palavra cantada em verso outra Goiás, diversa, mas, ao
mesmo tempo, a mesma com Y e Z do passado remoto.
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Inicialmente como canto solitário, abrindo novamente picadas entre os atavismos e preconceitos da
gente da velha ala, da mesma forma como fizera 45 anos com a sua saída, Cora vai reapresentando
Vila Boa para os goianos. Incompreendida pela mediocridade de alguns e desprezada pela soberba
da velha elite, ainda inconformada com a perda do status representado pelo título de capital e, por
outro lado, insatisfeita pelo ângulo escolhido por Cora para apresentar a cidade e sua gente. De certa forma, a cidade que Cora reinventa por meio de sua força criadora não é a mesma chorada pelo
que restou das elites oligárquicas, órfãs das benesses do poder. Porque Cora, de forma consciente,
sabe que o que sustenta uma cidade não são seus monumentos e suas repartições públicas, mas o
seu povo: o corpo de uma cidade, ou pelo menos a sua espinha dorsal, se faz com a sua gente.
Fugindo do discurso do ressentimento, que torna o ato de recordar um exercício de amargura, Cora
dos Goiases faz de sua atividade mnemônica uma fonte de criação, portanto, um exercício que implica lembrança e esquecimento, para melhor elaborar/acomodar o devir histórico. O processo de
afecção causado por todos os traumas vividos na infância, adolescência e vida adulta, ao contrário
de fazer da poetisa uma voz monocórdica repisando sempre a mesma dor, alimentando antigos ressentimentos, abre-se para uma polifonia. Por sua voz falam todas as mulheres, e falam os párias que
sempre estiveram à margem da sociedade.
Ao buscar, no seu retorno, a fonte de suas origens representadas pela velha casa de Goiás, Cora
Coralina promove o seu repertencimento ao seu berço natal e, por força da sua criação, outra cidade surge sob as franjas da que foi e da que sempre será. Ao reconhecer-se na sua cidade - mãe, a
poetisa começa a sua grande gesta, que é a de mostrar que a cidade não perdeu o seu valor como
documento histórico, formado por vários monumentos e que preservar esses monumentos feitos
de casarões, ruas de pedra, largos e becos, mas, principalmente, de gente, pessoas, seres humanos
com seus saberes e fazeres deve ser um dever de “seus assistentes e responsáveis”, mas também, e
sobretudo, de cada um, cada uma, que nela existe e vive.
Minha contribuição nessa mesa é dizer a vocês que, ao levarem a poesia de Cora Coralina para seus
alunos, vocês estão oferecendo a eles a oportunidade de compreender a sua cidade e de se orgulharem de pertencerem a esse patrimônio que, antes de ser da humanidade, foi e continua sendo de Aninha, de cada um de vocês e de todos que aqui vivem ou passam, porque um patrimônio, seja ele material ou imaterial, só tem sentido se, por meio dele, o ser humano puder encontrar significado para sua
existência. O que Cora Coralina faz, por intermédio de sua literatura, é ampliar os campos de pesquisa
valorizando a história dos que não têm voz, antecipando-se ao que defende hoje a nova historiografia.
Chegando ao fim de minha contribuição, tomo de empréstimo uma fala do historiador francês Jaques
Le Goff (1994:109), para, parafraseando-o, dizer que Cora Coralina faz de sua obra um arquivo de si
e de todos que foram silenciados pela história oficial:
Falar dos silêncios da historiografia tradicional não basta; penso que é preciso ir mais longe: questionar
a documentação histórica sobre as lacunas, interrogar-se sobre os esquecimentos, os hiatos, os espaços
brancos da história. Devemos fazer o inventário dos arquivos do silêncio, e fazer a história a partir dos
documentos e das ausências de documentos.
O discurso de “esplendor da modernidade”, atribuído na década de 1930 pelos que defendiam a
necessidade da transferência da Capital de Goiás para Goiânia, não estava equivocado. Contudo, o
que Cora Coralina faz com sua epopeia moderna, imitando os antigos aedos, é mostrar que a modernidade não se constrói com a anulação do passado. Cora Coralina, a começar pelo seu “Cântico da
volta”, recupera antigas tradições, abre espaço para as lavadeiras, mulheres, “Cafuzas, morenas,
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trigueiras e retintas”. Ou seja, o que assistimos ao longo de sua atividade como escritora é a uma voz
que se alevanta abrindo espaço para os que sempre foram silenciados em Goiás e no Brasil. Quando
ainda se ouviam os ecos do discurso de Pedro Ludovico, defendendo a sua iniciativa de tirar de Goiás
o centro do poder político, dizia que a Cidade de Goiás representava o centro “oligárquico, decadente e atrasado”, representando Goiânia a sua antítese (Chaul, 1997: 208), o cântico de Cora Coralina
e, depois dele, toda a sua obra, atribui valor a aspectos da cidade que, para sua consciência crítica,
sua sensibilidade de mulher e seus olhos visionários, se constituiriam no seu grande legado: “Valiosa
e interessante essa madeirama pesada que escravos lavraram e estas pedras manuseadas por gente
rude e estes muros e beirais anacrônicos”. Conhecida hoje como Cidade de Cora Coralina, continua
a velha Goiás, agora, quase tricentenária, com o mesmo vigor, beleza e brilho do tempo do ouro.
Porque Cora Coralina nos faz acreditar que a maior grandeza de uma cidade, seja ela Goiás, Nice ou
Lisboa, é a sua gente, o seu povo e o seu saber acumulado nos livros, nas estruturas arquitetônicas,
nas músicas, doces, histórias da oralidade, tradições e tudo o mais que mantém vivo no ser humano
a sua condição de humanidade.
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Referências
CHAUL, Nars. Caminhos de Goiás: da construção da decadência aos limites da modernidade. Goiânia: Ed. UFG; Ed. UCG, 1997.
CORALINA, Cora. Villa Boa de Goyaz. 2. ed. São Paulo: Global, 2003.
DELGADO, Andréa F. A invenção de Cora Coralina na batalha das memórias. 2003. Tese (Doutorado) – Universidade Estadual de Campinas, 2003.
LE GOFF, Jacques. História e memória. Tradução de Bernardo Leitão etc al. 3a. ed. Campinas: Ed.
Unicamp, 1994.
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Leitura e ensino de poesia: uma didática da emoção
Reading poetry and teaching: a didactic emotion
Leer poesía y la enseñanza: una emoción didáctica
Maria Severina Batista Guimarães1
Resumo
A presente proposta visa analisar a situação da poesia lírica contemporânea no contexto atual, bem como a importância de
formar bons leitores de poesia nesse momento histórico. A poesia brasileira contemporânea tem sido reconhecida pela crítica
nacional como uma multiplicidade de manifestações que precisa ser estudada para ser devidamente apreendida. Desenvolver
projetos em que a leitura desse tipo de texto combina conhecimento e emoção, por meio de estratégias atraentes, constitui
uma forma de contribuir com a cultura e a humanização do ser. Hegel mostra como a sociedade moderna desumaniza o ser
humano. A poesia pode ser uma possibilidade histórica de resistência à inversão de valores de nossos tempos. Resistência da
poesia que antecipa, em qualquer tempo, o futuro em forma de utopia. Uma escola com professores condutores experientes
de boas leituras certamente conduzirá seus discípulos a percorrerem também os caminhos da experiência literária.
Palavras-chave: Poesia; ensino; humanização; formação de leitores.
Abstract
The proposal aims to analyze the situation of contemporary lyric poetry in the current context, as well as the importance
of forming good readers of poetry in this historic moment. Contemporary Brazilian poetry has been recognized by national review as a multiplicity of expressions that need to be studied to be properly seized. Develop projects in which the
reading of that text type combines knowledge and emotion, through attractive strategies, is a way to contribute to the
culture and the humanization of be. Hegel shows how modern society dehumanizes the human being. Poetry can be a
historic opportunity for resistance to inversion of values of our times. Resistance of poetry that anticipates, in any time,
the future in the form of utopia. A school with teachers experienced drivers of good readings surely will lead his disciples
to walk down the paths of literary experience.
Keywords: Poetry; teaching; humanization; formation of readers.
Resumen
La propuesta tiene como objetivo analizar la situación de la poesía contemporánea en el contexto actual y la importancia
de la formación de buenos lectores de este tipo de texto en el momento histórico en el que vivimos. Poesía brasileña
contemporánea ha sido reconocida por la crítica nacional como una multitud de eventos que deben ser estudiados para
ser debidamente apoderado. Desarrollar proyectos en la lectura de dicho texto combina el conocimiento y la emoción a
través de estrategias atractivas, es una manera de contribuir a la cultura y la humanización del ser. Hegel muestra cómo
la sociedad moderna deshumaniza al ser humano. La poesía puede ser una posibilidad histórica de la resistencia a la
inversión de los valores de nuestro tiempo. Resistencia Poesía anticipando en cualquier momento, el futuro en forma de
utopía. Una escuela con conductores experimentados profesores de buenas lecturas sin duda dará lugar a sus discípulos
a seguir también los caminos de la experiencia literaria.
Palabras clave: Poesía; educación; humanización; formación de lectores.
1 Doutora em Estudos Literários pela Faculdade de Letras da Universidade Federal de Goiás. Professora da Universidade Estadual de
Goiás – UEG, Câmpus de São Luís de Montes Belos. E-mail: [email protected]
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Não é novidade para ninguém que um dos pontos fracos da educação brasileira é a falta de gosto
pela leitura por parte de alunos e professores, hábito que a escola devia incutir desde cedo nos educandos, mas que raramente consegue. A boa leitura, aquela não somente informativa, mas também
formativa, passa invariavelmente pela literatura e, de forma especial, pela arte poética. Conforme
teóricos da crítica literária, como Alfredo Bosi, Octavio Paz, Ungaretti e outros, apoesia é uma forma de resistência à desumanização da sociedade moderna. Todavia, divulgar a boa poesia e cativar
leitores para essa forma de conhecimento sensitivo requer meios envolventes que conduzam a uma
leitura espontânea e fruitiva que o texto literário requer.
Sendo a leitura um dos meios mais importantes de informação e formação do ser humano, além de
ser um entretenimento indiscutivelmente saudável e produtivo, as licenciaturas, na formação de futuros professores, devem incluir atividades e experiências que conscientizem os estudantes da importância do contato com o texto literário e a contribuição que pode dar no sentido de melhorar o nível
de formação de cada cidadão por meio do incentivo ao ato de ler. Sendo assim, incentivar o hábito da
leitura de bons textos deve ser um dos objetivos principais dos cursos de formação de professores.
Os valores cultivados nos nossos tempos atuais não incentivam essa atividade solitária da leitura,
principalmente a literária, e nem contribui para a apreensão de uma linguagem mais cifrada como
a da poesia. Vivemos numa noite escura em que o rio espiritual não flui, barrado pelo fetiche do
objeto e seu magnetismo mercadológico. A chamada pós-modernidade (HUTCHEON, 2001) ou alta
modernidade (GIDENS, 2002), que se traduz na fluidez de valores (BAUMAN, 2001), no desenraizamento do ser humano, na descontinuidade, na desagregação, na relação instrumental com a natureza, na dissolução das identidades e dos sujeitos, na corrupção das utopias, torna-se um espaço
inóspito para a arte poética. Todavia, a poesia ainda sobrevive como a teimosa flor de Drummond
que rompe o asfalto ou a giesta citada por Alfredo Bosi (1993), que sobrevive à míngua no deserto.
Esse balbuciar rítmico que acalenta as crianças e comove os amantes talvez seja a origem da fala
humana, o modo mais autêntico de manifestação do ser emocional que somos. Por isso a leitura de
poesia nos apazigua, dilui as emoções crestadas em nossa alma e nos faz seres mais conscientes da
importância de nossa existência, além de nos ensinar a fruição do mistério da vida:
Desde toda vida
Descompreendi inteligentemente
o xadrez, o baralho,
os bordados nas toalhas de mesa.
O que é isto? Eu dizia
como quem se ajeita pra melhor fruir.
Fruir o quê? Eu sei. A mensagem secreta,
o inefável sentido de existir.
(PRADO, 1991: 195)
Compreende-se, segundo Cosson, que: “Aprender a ler é mais do que adquirir uma habilidade, e
ser leitor vai além de possuir um hábito ou atividade regular. Aprender a ler e ser leitor são práticas
sociais que mediam e transformam as relações humanas” (COSSON, 2006: 40). Assim, a leitura,
como uma prática social, está intimamente relacionada com a liberdade, sendo capaz de formar nos
cidadãos e cidadãs a consciência da importância do papel social de cada um/a na sociedade para
que a vida se torne uma experiência frutífera em que o individual e o social se harmonizem.
A prática de leituras, em especial de poesia, sendo bem conduzida, será capaz não só de fazer com
que o texto atinja a sua plenitude intrínseca de significação e comunicação, mas de também levar,
futuramente, o leitor à condição de ser ele próprio um escritor de bons textos. Nota-se, porém, um
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desinteresse comum por boas práticas de leitura. Alunos desmotivados, professores pouco preparados, bem como a falta de recursos didáticos que deem conta de tão delicada tarefa tornaram-se
evidentes em muitas escolas onde trabalhamos ao longo de trinta anos. Daí o reconhecimento da
necessidade de proporcionar informação teórica e incentivar a experiência com o texto literário aos
futuros professores, principalmente da educação básica, para amenizar esse terreno pedregoso que
é a educação brasileira. Numa situação assim, o professor precisa reinventar sua prática a cada aula e
acreditar na superação dos obstáculos por meio da criatividade. Pela poesia, podemos mostrar uma
outra via de ver a realidade, como nos ensina Manoel de Barros:
Uma Didática da Invenção
I
Para apalpar as intimidades do mundo é preciso saber:
a) Que o esplendor da manhã não se abre com
faca
b) O modo como as violetas preparam o dia
para morrer
c) Por que é que as borboletas de tarjas
vermelhas têm devoção por túmulos
d) Se o homem que toca de tarde sua existência
num fagote, tem salvação
e) Que um rio que flui entre 2 jacintos carrega
mais ternura que um rio que flui entre 2
lagartos
f) Como pegar na voz de um peixe
g) Qual o lado da noite que umedece primeiro.
Etc.
etc.
etc.
Desaprender 8 horas por dia ensina os princípios.
[...]
IV
No Tratado das Grandezas do Ínfimo estava
escrito:
Poesia é quando a tarde está competente para
dálias.
É quando
Ao lado de um pardal o dia dorme antes.
Quando o homem faz sua primeira lagartixa
É quando um trevo assume a noite
E um sapo engole as auroras
Hoje eu desenho o cheiro das árvores.
(BARROS, 1997: 9-11)
Sendo assim, um requisito fundamental para o professor é ser criativo. Nesse sentido, a arte, como vetor
da percepção estética, contribui para uma mente mais aberta às intimidades do mundo, para uma atitude em que a criatividade é liberada e canalizada para uma forma de conhecimento formador do indivíduo mais sensível, capaz de ler o que está escrito e deduzir o que o enunciador está querendo sugerir
com uma linguagem aparentemente sem lógica nenhuma. Isso significa desafiar o sistema estabelecido
e em seu lugar deixar fluir o que é natural no ser humano, sem a corrupção de uma linguagem programada para manipular e cercear o poder criativo do ser, sua tendência natural de imaginar e sonhar.
A escola precisa ser esse lugar de encantamento, onde se pode experimentar os segredos da Física, os
desafios da Matemática, desfiar o fio da História, dissecar os corpos humanos ou não, ou apreciar o
desenho do Mundo. Todos são conhecimentos necessários e complementares da formação do estudante desde que ele seja orientado para o que fazer com tais informações. Já a poesia dispensa essa
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noção de utilidade, ela está aí porque o ser está também e isso basta. Esse ser humano não é só um
corpo e o mundo não é feito só de matéria palpável. Fora do mundo interior, que podem chamar de
alma ou espírito, a poesia não comunica nada porque seu salvo conduto não dá passagem ao objeto
sem o sujeito. É preciso a cumplicidade dos dois para que o texto poético habite o lugar certo: a consciência do ser, ou seja, onde um ego entra em contato com o mundo tentando compreendê-lo melhor,
usando para isso toda a sua sensibilidade. Assim, a poesia não quer ensinar nada, só a ser gente.
Leitura de poesia e humanização do ser
Embora a proposta humanista seja de criar o mundo para o homem, o nosso sistema de ensino ainda
se baseia em currículos com uma visão positivista, em que o sistema de avaliação privilegia a memorização e o raciocínio lógico, sem propiciar oportunidade a outras formas de conhecimento. Daí a
importância do incentivo à leitura que dê crédito à formação humana, como a leitura de poesia, para
constituir uma sociedade autônoma, com indivíduos que realmente valorizem e prezem a essência
do ser do humano. Vejamos como o poema de Hilda Hilst (2001), dedicado “Aos homens de nosso
tempo” exprime essa situação em que vivemos:
Ávidos de ter, homens e mulheres
Caminham pelas ruas. As amigas sonâmbulas
Invadidas de um novo e mais querer
Se debruçam banais, sobre as vitrines curvas.
Uma pergunta brusca
Enquanto tu caminhas pelas ruas. Te pergunto:
E a entranha?
De ti mesma, de um poder que te foi dado
Alguma coisa clara se fez? Ou porque tudo se perdeu
É que procuras nas vitrines curvas, tu mesma,
Possuída de sonho, tu mesma infinita, maga,
Tua aventura de ser, tão esquecida?
Por que não tentas esse poço de dentro
O incomensurável, um passeio veemente pela vida?
Teu outro rosto. Único. Primeiro. E encantada
De ter rosto verdadeiro, desejarias nada.
(HILST, JMNP, XV, 2001: 122)
Uma comunidade só se torna criadora quando seus membros se reconhecem e se ajudam mutuamente sem deixar de avaliar a “enorme realidade” que a circunda. A tendência dos tempos modernos
é valorizar os objetos em detrimento do ser humano. Uma das formas de resistência a essa inversão
de valores é a poesia (BOSI, 1993) porque é fonte de autoconhecimento e aponta para outros caminhos, para a humanização do ser e a consequente valorização de sua liberdade e da pulsão criativa.
Segundo Octavio Paz (1996), uma sociedade só é verdadeiramente livre quando a liberdade de uns
se enlaça na liberdade de todos “se erguendo tenda, se entretendendo todos no toldo que plana
livre de armação”, conforme a expressão poética de João Cabral de Melo Neto. Tal união, mais a
consciência e autonomia de cada um, constituem uma sociedade de pessoas capazes de caminhar
juntos e inventar seu futuro. Já que nascer é caminhar, que seja feito em grupo, de mãos dadas,
como sugere outro poeta, desta vez Carlos Drummond de Andrade “O presente é tão grande, não
nos afastemos./ Não nos afastemos muito, vamos de mãos dadas” (ANDRADE, Poesia Completa,
2003: 80). Nesse trajeto, cada um deve exercitar seus valores, inclusive e principalmente a capacidade criativa, a qual nos faz diferentes dos outros animais.
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Hannah Arendt (2001) afirma que a condição básica para o ser humano viver na terra é a vida ativa,
baseada no tripé labor, trabalho e ação. O labor são as funções naturais do próprio corpo, que se movimenta em atividades involuntárias, o trabalho são atividades voluntárias, empreendidas no sentido
de garantir a subsistência e a ação implica consciência social, que cabe também à escola formar em
seus alunos. Portanto, é papel da Universidade formar seus acadêmicos, principalmente das Licenciaturas, para o reconhecimento da pluralidade do mundo que o cerca e inseri-lo no campo de trabalho,
desenvolvendo todas as suas potencialidades e, ao mesmo tempo, sua formação humana. E com esta
a poesia tem papel fundamental porque embora não seja uma fonte clara de informação, com sua
linguagem figurada que comunica por imagens e símbolos, é um convite à meditação, pois provoca a
experiência interior, vital para que a noite escura de cada um se transmude em consciência formadora
do sujeito, o qual deve enxergar além das aparências ou mesmo através da escuridão. A voz poética de
Hilda Hilst mais uma vez nos alerta sobre a posição do poeta e da poesia nesse contexto:
Tudo vive em mim. Tudo se entranha
Na minha tumultuada vida. E por isso
Não te enganas, homem, meu irmão,
Quando dizes na noite, que só a mim me vejo.
Vendo-me a mim, a ti. E esses que passam
Nas manhãs, carregados de medo, de pobreza,
O olhar aguado, todos eles em mim,
Porque o poeta é irmão do escondido das gentes
Descobre além das aparências, é antes de tudo
LIVRE, e por isso conhece. Quando o poeta fala
Fala do seu quarto, não fala do palanque,
Não está no comício, não deseja riqueza
Não barganha, sabe que o ouro é sangue
Tem os olhos no espírito do homem
No possível infinito. Sabe de cada um
A própria fome. E porque é assim, eu te peço:
Escuta-me. Olha-me. Enquanto vive o poeta
O homem está vivo.
(HILST, 2001: 113)
Diz Alfredo Bosi no artigo“Poesia resistência” (1997) que na antiguidade nomear era reconhecer a verdadeira natureza das coisas – fundamento dado à poesia. O poeta era o doador de sentido, valor máximo para um povo que cultivava o bem falar. A palavra era mítica e seu uso quase sagrado. Nos tempos
modernos, a ideologia dominante é que dita o sentido das coisas. O consumismo, o pragmatismo, o progresso a qualquer preço usam a linguagem para manipular, vender, extrair lucro. Assim, há uma verdadeira banalização da palavra. A poesia dá novamente crédito ao logos com que Deus, no começo, exercitou
sua competência criadora e nomeou o mundo. Até hoje o poeta segue o exemplo de fazer nascimentos,
como diz Manoel de Barros (1997), o poeta das coisas mínimas e máximas do Pantanal Mato-grossense:
No descomeço era o verbo.
Só depois é que veio o delírio do verbo.
O delírio do verbo estava no começo, lá onde a
criança diz: Eu escuto a cor dos passarinhos.
A criança não sabe que o verbo escutar não funciona
para cor, mas para som.
Então se a criança muda a função de um verbo, ele
Delira.
E pois.
Em poesia que é voz de poeta, que é voz de fazer
nascimentos –
o verbo tem que pegar delírio.
(BARROS, 1997: 15)
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O que se pergunta para justificar a existência da literatura e o seu ensino nas escolas é: a poesia ainda
tem seu lugar? Está ou não inserida no contexto atual das tecnologias de ponta? Qual é sua função:
confirmar a ideologia dominante ou resistir a ela? Em “A noite dissolve os homens”, o grande poeta
mineiro Carlos Drummond de Andrade responde, abordando a questão com a bela metáfora da aurora
se opondo e superando a noite escura que, em determinado momento, encobriu a situação caótica
que o mundo vivia. Como a boa poesia não vem com data de validade, pois alcança a intemporalidade ao abordar verdades eternas numa linguagem simbólica, o poema de 1940 ajusta-se bem a nossa
situação de hoje: a situação caótica da educação no Brasil que, mesmo com altos investimentos, não
alcança resultados satisfatórios. Os cidadãos e cidadãs brasileiros/as, incluindo seus governantes, precisam dar o sinal verde e deixar passar a luz que há de trazer um vigor novo para o ensino neste país.
A educação pautada nos princípios da razão cega e pragmática fez do ser humano um potencial de
trabalho e comércio em prol do ‘desenvolvimento’e da natureza apenas fonte de matéria-prima. A
poesia resiste a tudo isso, ela é a crítica direta e contundente a esse processo de desumanização.
O ser da poesia não é o da linguagem manipulada. Em recusa, essa linguagem poética, mesmo que
tenha que se fechar em si mesma, é mais uma face da resistência (BOSI, 1997: 147). Os estudantes
brasileiros, em todos os níveis, precisam se conscientizar da necessidade de cultivar outros valores,
aprender a resistir à massificação que empobrece as mentes e embota os sentimentos.
A boa negatividade começa na poesia com os simbolistas, dadaístas, surrealistas, expressionistas do
início do século XX e se realiza plenamente no Modernismo e na contemporaneidade. Consciente da
própria impotência, o poeta tenta abrir no espaço do imaginário uma saída possível: ‘o sinal verde
peremptório’ para a passagem do amanhã com as luzes da aurora. Esse sinal está em cada sala de
aula quando o professor orienta o estudante para a comunhão com a natureza, com o colega, com o
bem viver de uma existência superior, livre de embromações e subjugos. A leitura de bons autores é
o caminho mais suave e seguro para se chegar a essa consciência, porque o sujeito se faz de dentro
para fora e não o contrário. E essa parece ser a função principal de todas as artes e exclusiva da poesia: a palavra que penetra a alma e faz fluir para o exterior esse rio de sensações, controladas pelo
semáforo da subjetividade, com o atestado de controle dessas emoções por um eu que se reconhece como pessoa e sabe como se colocar em relação aos outros seres do mundo.
O autoconhecimento pela poesia é um desaprender de conceitos cristalizados e sedimentados na
memória ao longo dos tempos. A poesia lírica anula o tempo histórico, trazendo de volta a infância
perdida por meio do mito, do rito e do sonho, tornando-se “a ressacralização da memória mais profunda da comunidade” (BOSI, 1997: 150). O ser humano busca, e muitas vezes encontra, pela via da
poesia, os sinais de que não estamos sozinhos, basta estarmos atentos a eles:
Deus põe no céu o arco-íris,
uma palavra selada,
seu hieróglifo.
Não tenho mais tempo algum,
Ser feliz me consome.
(PRADO, 1991: 365)
O grande desafio da poesia é retomar seu lugar e acender no ser humano o desejo de outra forma de
existência, dando aos caminhantes o vislumbre de vida articulada com beleza e paz interior, mesmo
quando as circunstâncias são adversas. Cobrir com a leitura aquele intervalo que isola os seres e trazer de
volta uma realidade nova de tão velha, pela qual vale a pena lutar: a harmonia entre os seres e o mundo.
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Ao mesmo tempo em que a leitura possibilita a democratização do saber acadêmico, por meio dela,
este saber retorna à universidade, testado e reelaborado, propiciando experiências de vida que movem
para a ação conjunta e a transformação do ambiente escolar. Os poetas nos emprestam, a nós professores, a melhor das ferramentas, que é o texto literário. Apreciá-lo como um valor em si mesmo, em sua
beleza, na perfeição de sua forma, nas emoções que sua linguagem pode despertar no leitor, é papel do
mediador de leitura. A seguir, um presente para nossa fruição que a genialidade do poeta nos oferece:
CANÇÃO AMIGA
Eu preparo uma canção
Em que minha mãe se reconheça,
Todas as mães se reconheçam,
E que fale como dois olhos.
Caminho por uma rua
Que passa em muitos países,
Se não me vêem, eu vejo
E saúdo velhos amigos.
Eu distribuo um segredo
Como quem ama ou sorri.
No jeito mais natural
Dois carinhos se procuram.
Minha vida, nossas vidas
Formam um só diamante
Aprendi novas palavras
E tornei outras mais belas.
Eu preparo uma canção
Que faça acordar os homens
E adormecer as crianças.
(ANDRADE, 2003: 231)
A obra de arte, fechada em sua perfeição, dispensa comentários ou explicações complementares
porque o que ela diz não tem como dizer de outra forma sem macular sua beleza.O mediador só
precisa destacar essa perfeição chamando a atenção para as imagens, a linguagem figurada do texto.
E, no mais, é só complementar a leitura individualizada com a leitura compartilhada ou performática
do poema, incluindo o coletivo e resgatando antigas práticas de leitura, como sugere a professora
Goiandira Ortiz, em seu artigo “Leitura vocalizada”, publicado no livro Olhar o poema (2011: 59):
[...] é que essa prática leitora poderá também interferir naconstrução dos sentidos do poema pelo ouvinte/
espectador na medida em que a vocalização implica a subjetividade do vocalizador, o seu corpo e sua gestualidade, o livro nas mãos e a fisicidade da sua voz, que irá modular “tom, timbre, alcance, altura, registro” (Cf. Zumthor, 2005: 62). Perceber o “tom justo” (Bosi, 1984: 66) do poema e imprimi-lo na vocalização é um indício de
que o leitor alcançou os sentidos do texto e, como intérprete, elegeu um deles, mantendo-se fiel as suas imposições tonais. Tudo isso remanesce na memória do ouvinte/espectador convocado, consciente ou inconscientemente, a colaborar nas hipótesesde sentido a serem testadas no momento de compreender e construir uma
interpretação do poema, seja ela imediata, seja quando a recepção pela voz conduzir a recepção pela escrita.
Há no mercado livresco um arsenal de obras didáticas para orientar os mediadores de leitura sobre
os métodos mais adequados de ensinar a ler. Porém nenhum deles faz o milagre de ensinar a gostar
de ler. O gosto se forma com o tempo, o exemplo, a experiência bem conduzida, o contato amoroso
com o texto. Pais, professores, parentes que são amantes dos livros, que comentam textos interessantes com aquele entusiasmo do leitor fruitivo, acrescentam nesse tratado das grandezas do ínfimo
um artigo a mais, o de como ‘apalpar as intimidades do mundo’ com a imaginação.
O ambiente para a leitura precisa ser aconchegante, silencioso, agradável e respeitoso. Qualquer estratégia deixa de ser eficaz sem uma cuidadosa preparação prévia. O improviso acaba por esvaziar o conte58
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údo da leitura, pois tanto o entendimento, a reflexão ou a emoção dependem daquele circuito fechado
entre o sujeito, o objeto e o conhecimento que advém deles. Por isso, o exercício da leitura deve ser praticado conferindo a ele a importância que realmente tem, e não como forma de ocupar o tempo vago,
quando o aluno não tem outra coisa ‘mais importante” para fazer. Quando essa atividade é bem conduzida e valorizada devidamente, ela se torna o eixo em que giram os demais conhecimentos, pois não só
o professor de Língua Portuguesa é responsável pela leitura proficiente, mas também os professores das
outras disciplinas devem se preocupar com a compreensão satisfatória da linguagem de sua matéria.
Ao professor de Línguas cabe a tarefa de oferecer a oportunidade ao aluno de conhecer as produções artísticas produzidas naquele idioma a fim de que o estudante reconheça as potencialidades
estéticas de cada línguae descubra os diversos recursos estilísticos que a linguagem humana possibilita. Como a maioria dos currículos não traz a literatura como uma disciplina obrigatória, e quando
traz geralmente ela é abordada mais no seu aspecto histórico, o professor de Língua Portuguesa,
ao invés de usar essa lacuna para pouco trabalhar o texto literário, deve utilizá-la como um espaço
livre para exercer sua capacidade de leitor e mediador de leitura a fim de enriquecer as suas aulas e
promover a formação humana de seus alunos.
Conclusão
A experiência poética, como via de penetração e conhecimento interior do ser humano, promove o autoconhecimento e a (con)formação desse ser como indivíduo inserido em uma determinada comunidade. A
leitura em geral - e a de poesia em especial - pode levar o ser a se descobrir e a compreender sua realidade,
propiciando uma existência que faz sentido para si e para os outros. Assim, a capacitação de leitores torna-se meio de uma sociedade promover a formação intelectual de seus cidadãos, como também desenvolver o autoconhecimento e a sensibilidade de seus membros, tarefa da qual a escola não pode se furtar.
Diz Hannah Arendt, em A condição humana (2001), que para humanizar o ser é necessário a prática
de boas ações seguidas do discurso. A prática da leitura, além de incentivar o gosto pela boa poesia,
propicia oportunidades de reflexão para as pessoas envolvidas, despertando-lhes a consciência para
uma vida mais plena. Nesse sentido é que a leitura de poesia pode contribuir com a humanização e
o autoconhecimento do ser humano, tornando o futuro professor uma pessoa mais consciente da
importância de estudar as teorias adequadas à boa leitura do poema, de levar a poesia até o leitor
por meio de estratégias atraentes, desenvolvendo o gosto pela leitura em qualquer fase do ensino,
promovendo a divulgação de bons autores e propiciando a oportunidade de usufruir da arte poética.
A formação de professores nos cursos de licenciaturas deve incluir em seus currículos disciplinas que
contemplem a preparação dos futuros profissionais para serem competentes mediadores de leitura.
Para tanto, esses acadêmicos precisam, por sua vez, desenvolver o gosto e o hábito da leitura para
incutir essa prática salutar em seus alunos.
A produção literária em língua portuguesa, além de vasta, é muito rica em qualidade. Existem grandes obras e excelentes autores à espera de serem lidos e valorizados pela comunidade leitora, a qual
é ainda inexpressiva diante dos benefícios que tal prática pode lhe proporcionar. Usar o discurso
para incentivar a leitura é apenas uma das muitas contribuições dos professores que se preocupam
com a qualidade da educação no Brasil.
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MORICONI, Ítalo (org). Os cem melhores poemas do século. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001
PRADO, Adélia. Poesia reunida. SP: Sciliano, 1991.
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Bons livros para bons leitores
Good books for good readers
Buenos libros para los buenos lectores
Vera Maria Tietzmann Silva1
Resumo
O presente artigo tem como objetivo discorrer sobre a formação crítica de leitores, tendo como base um público adolescente que pode ser encontrado nos últimos anos do fundamental, no ensino médio, ou, ainda, nas classes de EJA. Nossa
proposta consiste em demonstrar que o professor, como leitor crítico, exerce um papel fundamental no desenvolvimento
do gosto pela leitura e na formação da competência leitora dos alunos. Para isto, elucidamos um percurso de atividades
possível de ser desenvolvido e adaptado pelos professores à situação da escola em que atua e que, entre outras coisas,
perpassa o incentivo à leitura de diferentes gêneros e uma diversidade de temas que contribuirão para enriquecer tanto
a experiência de vida quanto a de leitura desses alunos; e o diálogo entre professor e alunos, que prevê um momento de
discussão aprofundada sobre obras que exigem um olhar mais atento pela sua especificidade estilística e de conteúdo.
Palavras-chave: formação de leitores, metodologias de incentivo à leitura, leitura crítica.
Abstract
This article aims to discuss the critical formation of readers based on a teenage audience that can be found in the last
years of elementary, high school, or even in adult education classes. Our proposal is to demonstrate that the teacher,
as a critical reader, plays a key role in developing the taste for reading and the formation of reading competence of
students. For this elucidate a possible path activities to be developed and adapted by teachers to the school situation
in which it operates and which, among other things, runs through the encouragement of reading different genres and
a variety of topics that will contribute to enrich both the experience of life as the reading of these students; and the
dialogue between teacher and students, providing a moment of deep discussion about works that require a closer look
for its stylistic specificity and content.
Keywords: training readers, methodologies to encourage reading, critical reading.
Resumen
Este artículo tiene como objetivo discutir la formación crítica de los lectores sobre la base de un público adolescente
que se pueden encontrar en los últimos años de primaria, secundaria, o incluso en las clases de educación de adultos.
Nuestra propuesta es demostrar que el maestro, como lector crítico, juega un papel clave en el desarrollo del gusto por
la lectura y la formación de la competencia lectora de los estudiantes. Por esta dilucidar posibles actividades de la ruta
para ser desarrollado y adaptado por los profesores de la situación de la escuela en la que opera y que, entre otras cosas,
se ejecuta a través del fomento de la lectura de diferentes géneros y una variedad de temas que contribuyan a enriquecer tanto la experiencia de la vida como la lectura de estos estudiantes; y el diálogo entre el profesor y los estudiantes,
proporcionando un momento de la discusión profunda acerca de las obras que requieren una mirada más cercana a su
especificidad estilística y de contenido.
Palabras clave: formación de jugadores, metodologías para fomentar la lectura, la lectura crítica.
1 Professora aposentada da Faculdade de Letras – UFG. Mestre em Letras e Linguística pela Universidade Federal de Goiás.
E-mail: [email protected]
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“É o bom leitor que faz o bom livro: em cada livro ele encontra trechos que parecem confidências ou apartes ocultos para qualquer outro e evidentemente destinados a seu ouvido. O proveito dos livros depende
da sensibilidade do leitor; a ideia ou a paixão mais profunda dorme como em uma mina até ser descoberta
por uma mente e um coração iguais”. (Ralph Waldo Emerson)
Formar bons leitores que saibam interagir com o livro, dialogar com ele é tarefa que deve ser iniciada
bem cedo. Começa com a literatura infantil e juvenil, em casa e na escola, até chegar às leituras mais
sofisticadas que requerem leitores verdadeiramente competentes. Nem sempre esse é um caminho
progressivo e constante: é muito comum leitores infantis transformarem-se, com a puberdade, em
leitores displicentes, desinteressados. Em não leitores, ou em desleitores, se é que essa palavra
existe. Abandonam os livros como abandonam os brinquedos da infância. Em Como um romance,
Daniel Pennac revela que essa situação não se limita geograficamente ao nosso país, pois também
na França os adolescentes do ensino médio precisam ser novamente seduzidos para a leitura.
A transição para a literatura destinada ao público adulto costuma acontecer pelas novelas juvenis, que
fazem a ligação entre o ensino fundamental e o médio. Porém esse é um território de fronteiras pouco
claras, e a travessia costuma se fazer por meio de experiências bastante individualizadas. Assim, discorrer
sobre a literatura juvenil em sala de aula pode ser uma abordagem um pouco limitadora: melhor falar de
leitura literária com adolescentes. É quase a mesma coisa, mas a troca de adjetivo faz com que o universo
de textos se amplie, pois ele passa a incluir também a literatura para adultos. Esses leitores adolescentes
que temos em mente podem ser encontrados nos últimos anos do fundamental, no ensino médio, ou,
ainda, nas classes de EJA. É sobre a leitura nessa faixa de passagem que agora vamos tratar.
Sendo um terreno de transição, acreditamos ser oportuno o professor contemplar tanto as obras
juvenis quanto as dos grandes escritores. A alternância dessas duas modalidades de texto permite
uma preparação para as leituras do programa de Literatura Brasileira das séries seguintes, assim
como das provas do vestibular e do ENEM, abrindo também espaço para um olhar crítico sobre as
diferenças que essas duas modalidades de produção apresentam. Como um bônus extra, a inclusão
de leituras voltadas para um público adulto sugere ao jovem leitor que, de alguma forma, ele já está
deixando para trás o terreno da infância e ingressando na maturidade. Vejamos a seguir algumas
sugestões de trabalho que incluem a leitura dos acervos orientados aos adultos.
Antes de mais nada, uma pergunta que fatalmente os alunos farão ao professor: para que serve ler
literatura? Ao contrário do que parece, a arte não é algo supérfluo, não é pura e simples perda de
tempo. Nos períodos de crise ela proporciona conforto, escape, consolação. No filme O pianista
(2002), as duas belas cenas em que o jovem polonês, escondido num apartamento vazio, executa uma peça ao piano, primeiro como simulação, pois precisa manter o mais absoluto silêncio, e
depois, com todo virtuosismo, tendo um oficial nazista à escuta, mostram o quanto a música tinha
o dom de amenizar, para um, o fardo da solidão, e para o outro, a insensatez da barbárie. A arte
permitiu-lhes ultrapassar as contingências de uma guerra insana, na qual, sem escolha, estavam em
lados opostos. Por instantes, o alemão nazista e o judeu polonês pairaram acima das suas diferenças
sociais e ideológicas, irmanados num mesmo prazer estético dado pela música.
A literatura, que é a arte da palavra, além de proporcionar semelhante prazer estético, ainda favorece o aguçamento da percepção, a ativação da memória, o julgamento crítico. Ou seja, contribui para
tornar o leitor mentalmente mais ativo diante do texto e diante da vida. Na leitura de narrativas de
ficção, o exercício de vivenciar emoções alheias, de compartilhar angústias e dilemas com os personagens, essas pessoas inventadas pelo escritor e que nos parecem tão reais, é um verdadeiro exercí62
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cio de cidadania. Saindo do apertado círculo de seu mundo pessoal para sentir com o outro, para ver
o mundo sob outra perspectiva que não a sua, o leitor torna-se mais apto a criticar, a julgar, a exigir.
É bom lembrar que uma das vantagens de ser professor é poder escolher seus autores preferidos
para trabalhar em aula. O contágio é garantido, pois o professor vai fazer a propaganda de seus
escritores amados movido pela paixão, “resistir quem há-de?”. Da quota de poetas e ficcionistas da
literatura para adultos (não é preciso restringir-se aos brasileiros), podem ser selecionados poemas,
crônicas, contos, minicontos – textos breves que o professor pode ler com emoção, analisando-os
debaixo de lupa durante o espaço de uma aula. Camões, Fernando Pessoa, Cecília Meireles, Mário
Quintana, Augusto dos Anjos, Gonçalves Dias, Adélia Prado, Manoel de Barros – aos alunos pode ser
oferecido um cardápio variado de poetas, assim como de cronistas e de contistas.
É preciso que o professor tenha a sabedoria de adaptar sua metodologia à realidade da escola, valendo-se dos recursos que ela tiver: retroprojetor ou datashow, cópias em mimeógrafo ou xerox. Se
nem isso houver, sempre existe a alternativa de o próprio professor organizar pastas com um acervo
de cópias para empréstimo, recolhendo-as ao final da aula para uso em outra turma. Essa prática
permite algumas variações. Se as cópias forem de um só texto, todos acompanham a mesma leitura
analisada pelo professor. Se forem textos diferentes (todos os poemas ou contos de um mesmo livro,
p. ex.), podem ser feitas sessões de leitura silenciosa sob a supervisão do professor, com a troca de
folhas entre os alunos, o que é muito produtivo. Isso treina a atenção e impõe ritmo à leitura.
Em classe, uma boa técnica é a de fazer leitura compartilhada, criando-se um círculo de leitura com
um leitor-guia, que no caso é o professor. Esse é um procedimento que pode ser utilizado em qualquer
série para desvelar os subentendidos de poemas, crônicas, contos. É o grau de dificuldade que vai definir o que será trabalhado dessa maneira. Para se apreciar devidamente Guimarães Rosa, por exemplo,
seus textos precisam ser lidos em voz alta e – dada a complexidade de sua linguagem – é indispensável
um guia para esclarecer dúvidas. Um dicionário em classe para consulta durante as sessões de leitura
também poderá revelar-se útil. Do acervo juvenil, diversos livros de Stela Maris Resende, que tem uma
linguagem bastante elíptica lembrando a de Rosa, também podem ser lidos dessa maneira.
Nesta atividade, com o texto em mãos, os leitores acompanham a leitura do professor, que vai transferindo para a voz as intenções do texto, demorando-se em explicações nas passagens mais sutis,
chamando a atenção para os recursos estilísticos utilizados. Em outras palavras, ele vai desvendando
as entrelinhas junto com os alunos. Nas séries finais do fundamental e depois, no ensino médio, essa
leitura também pode ir pondo a descoberto os artifícios de construção do texto, os seus avessos, as
alusões e intertextualidades. Esse tipo de exercício prepara o leitor para uma leitura autônoma.
Uma prática muito eficiente para despertar o interesse dos alunos é iniciar cada aula com a leitura
de um texto literário bem curto – um poema, uma crônica ou um pequeno conto. Cecília Meireles,
Rubem Braga, Mário Quintana e Marina Colasanti são boas opções. A crônica “O pavão”, incluída
nas 200 crônicas escolhidas, de Rubem Braga, é um texto sensível no tema e perfeito na forma
como foi construído. Os breves contos de Marina Colasanti, infantis ou adultos, também são leituras
instigantes. “Verdadeira história de um amor ardente”, de Contos de amor rasgados, por exemplo,
leva a diferentes caminhos interpretativos. Além de acalmar a turma e dar o tempo de os alunos se
sintonizarem com a disciplina, essa é uma prática que vai apurando o gosto estético dos leitores,
preparando-os para os textos literários que os aguardam mais à frente. Intercalar a leitura de textos
líricos e lúdicos, reflexivos e críticos ajuda a manter o interesse dos vários grupos de adolescentes.
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Mas onde ficam as novelas juvenis nesse cenário?
Entre a leitura de um e outro grande poeta ou prosador, o professor pode programar leituras domiciliares de literatura juvenil (elas não costumam oferecer as dificuldades dos textos para adultos), tendo o mesmo cuidado na escolha dos títulos. Interesse e curiosidade são o cerne da motivação para
a leitura. Além disso, o aluno só tem um real interesse se vir sentido no que lê, se puder relacionar o
texto lido com sua própria experiência de vida. É indispensável que o professor leia, ele mesmo, os
livros que pretende indicar, que se apaixone por eles e transmita aos alunos o vírus dessa paixão. Um
pouco de propaganda prévia à leitura, dando pistas sobre o assunto que tratam, aguça a curiosidade
dos leitores. Contudo, convém limitar-se ao trailer, deixando que os alunos mesmos confiram o que
os livros contam. Como o francês Daniel Pennac conta ter feito para despertar a atenção de seus
enfarados alunos adolescentes para a leitura de O perfume.
Afinal, o que existe hoje disponível para os jovens? A cada ano, centenas de livros são lançados no
mercado, incluindo reedições, livros estrangeiros traduzidos e títulos novos de autores nacionais.
Um olhar nos catálogos das principais editoras revela que predomina a ficção, com destaque para as
novelas juvenis. Cabe à escola oferecer aos alunos o que há de melhor, permitindo que pela leitura
eles possam crescer intelectualmente. Para distinguir o literário do banal, o professor precisa ser um
leitor crítico para não fazer escolhas equivocadas.
Apesar de numerosas, as novelas juvenis deixam perceber um padrão. Quanto à temática, suas
tramas parecem girar em torno de dois eixos principais: o das ações extraordinárias (histórias de
mistério, de ficção científica, de aventuras) e o das vivências cotidianas (na família, na escola, no
trabalho, no lazer). Nos temas do cotidiano, além da relação com o outro, entram também questões de natureza psicológica e existencial, a relação de cada um consigo mesmo. E aqui retornam as
velhas questões que atormentam o ser humano desde sempre e que são cruciais na adolescência: a
busca da identidade, as relações familiares e amorosas, as pulsões internas que às vezes dominam
completamente o indivíduo, a força do destino e as incertezas do futuro.
Já a qualidade estética oscila bastante. Nem sempre esses temas são tratados com a devida profundidade. Muitas são as novelas rasas, cuja linguagem banal copia as situações e os diálogos de
adolescentes em seu cotidiano, sem nenhum aprofundamento temático ou inovação formal. Muitas vezes fazem abordagens mais pragmáticas e imediatistas, beirando a “autoajuda”, tão em voga
hoje. São as novelinhas de encomenda sobre questões que frequentam a mídia e as reuniões de
pais e mestres: bulimia e anorexia; sequestro e estupro; drogas e criminalidade; sexo, DST e AIDS;
gravidez na adolescência e aborto; preconceito e inclusão; bullying e cyberbullying etc. Na maioria
dessas publicações, o texto vira pretexto para um mal disfarçado didatismo. A “mensagem” passa ao
primeiro plano, e o valor estético-literário que o texto poderia ter praticamente se anula. Neles não
há sombra de entrelinhas ou de reflexão. Ainda que sejam campeões de vendagem e seus autores
conheçam estrondoso sucesso, o professor não deve estimular seus alunos a perderem tempo nessas águas rasas, há opções melhores para enriquecer sua experiência de vida e de leitura.
Também as novelas juvenis bem realizadas trabalham esses temas do momento, porém o que as
distingue são a técnica de elaboração e o uso da linguagem, que, convocando o leitor a um papel
ativo diante do texto, fazem a diferença entre o banal e o artístico. O abraço (1995), um clássico de
Lygia Bojunga, é mais do que uma trama de sequestro, estupro e assassinato. É uma história que
lida com um dos grandes mistérios da alma humana, a estranha sensação de sermos divididos, de
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termos um outro eu. O amigo imaginário que tantas crianças inventam atesta que essa percepção
vem desde a infância. Lygia jamais subestima seu leitor. Antes, exige que ele esteja com a mente
alerta, que compare, tire conclusões, reflita – e que leve essa reflexão propiciada pela leitura para a
sua própria experiência de vida.
Diversos autores contemporâneos, à semelhança de Lygia Bojunga, desafiam o leitor a desvendar as
entrelinhas do texto, ao mesmo tempo em que o enredam nas malhas da emoção, permitindo-lhe
um olhar novo sobre temas já desgastados. Entre as boas novelas editadas na última década, podem
citar-se as seguintes, pela ordem de lançamento no mercado.
Do outro mundo (2002), de Ana Maria Machado, por exemplo, reacende no leitor a indignação
amortecida pela banalização do tema da escravatura no Brasil. Ímpar (2002), de Marcelo Carneiro da
Cunha, mostra o deficiente físico por outro prisma, não como um coitado digno de pena, mas como
um cidadão pleno que exige ser tratado como os demais. O fazedor de velhos (2008), de Rodrigo
Lacerda, descreve de modo muito original a passagem da adolescência para a vida adulta, a constância de um amor e de uma amizade singular, bem como a formação de leitor do protagonista. A
distância das coisas (2008), de Flávio Carneiro, retoma o tema mítico da busca da mãe perdida. O dia
em que Luca não voltou, de Luís Dill (2009), por sua vez, inverte o foco do luto e lida com a questão
de crianças desaparecidas, mas faz isso por um ângulo inusitado, dando a palavra a um personagem
secundário, o filho da empregada da casa, que repassa ao leitor sua angústia e perplexidade. Aliás,
esse narrador, embora presente em cena, ele próprio é um “desaparecido social”. Diário da queda
(2011), de Michel Laub, faz em relação ao Holocausto algo semelhante ao que Ana Maria Machado
fizera com a escravidão, contando a história “por dentro”, pela voz de um narrador cujo avô sobrevivera a Auschwitz. São histórias de exclusão, de perdas, de preconceito, de violência e de passagens,
que abrem espaço para muitas discussões em aula – mas não são histórias banais.
Alguns desses livros são claramente juvenis, outros parecem exigir um leitor mais maduro, com
maior experiência de vida. Com o objetivo de fazer a ponte entre a literatura juvenil e a de adultos, desde os anos 70, a Ática edita a coleção “Para gostar de ler”. Seus mais de 40 volumes trazem
crônicas, contos e poemas de autores consagrados, agrupados por temas ou por gênero. Um bom
material onde o professor pode buscar textos para as suas aberturas de aula.
Com o mesmo intuito, a editora Objetiva lançou em 2011 a coleção “Para ler na escola”, facilitando a
passagem do jovem para um patamar de maturidade leitora. Autores cuja obra ficcional ou poética
tem sido tradicionalmente dirigida à criança e ao jovem, como Bartolomeu Campos Queirós e Roseana Murray, e outros que sempre escreveram para adultos, como João Ubaldo Ribeiro e João Cabral
de Melo Neto, estão reunidos nessa coleção, com seus contos, crônicas e poemas. A única indicação
de público-alvo está no título da coleção, que se dirige indistintamente a leitores de qualquer idade,
já que na escola noturna e nos cursos de EJA os alunos costumam ser adultos.
Isso nos leva a outra constatação: muitas fichas catalográficas recusam a identificação da faixa de
leitor a que se destinam. Esta é uma tendência que parece estar em vias de consolidação desde a
virada para o século XXI, com a edição das obras mais recentes de Lygia Bojunga e, em 2004, com 23
histórias de um viajante, de Marina Colasanti, que não apenas omitem o tipo de público-alvo, mas
também adotam um visual mais sóbrio no formato e no projeto gráfico.
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LEITURA EM REVISTA iiLer / Cátedra UNESCO de Leitura PUC-Rio n.7, fev., 2015
Paralelamente a essa flexibilização do destinatário, os catálogos das editoras revelam uma preocupação com o encaminhamento do jovem leitor para a leitura dos grandes escritores, não só brasileiros, mas também estrangeiros. Não me refiro a adaptações e quadrinizações, versões digestivas
dos clássicos, mas a amostras de suas obras. Levando em conta o propalado (e desmentido) fôlego
curto dos adolescentes, diversas editoras, como a Cosacnaify, a Rocco e a Projeto, por exemplo, têm
publicado em texto integral contos isolados ou antologias de contos de autores canônicos, como
Machado de Assis, Edgar Allan Poe, Artur Azevedo, Lima Barreto, O. Henry e outros, trazendo como
apelo ao público jovem o projeto gráfico dos livros, com capa e ilustrações feitas por artistas bem
conhecidos da literatura infantil, como Nelson Cruz e Odilon Morais. Nessas edições, a ilustração
atua como “isca” para fisgar a atenção do leitor.
A transição do juvenil para o adulto também pode ser vista em livros que combinam, sob um mesmo
tema, a adaptação de textos clássicos, nacionais ou estrangeiros, com outros de autores da literatura
infanto-juvenil, uma opção inicial válida para leitores pré-adolescentes (“Coleção Três por Três”, da
Atual). Com texto integral e projeto gráfico artístico, também se veem volumes de contos agrupados
por temas ou por estilos de época, como Histórias de carnaval, Histórias de imigrantes, Histórias do
Romantismo etc, na coleção “O Prazer da Prosa”, da Scipione, reunindo autores da literatura para
adultos e ilustradores da literatura infantil.
Com relação ao acesso aos livros, não há como negar que seu preço continua sendo um forte obstáculo. Ele impede, por exemplo, que o professor trabalhe com lançamentos recentes, porém os muitos programas oficiais de incentivo à leitura das últimas duas décadas dotaram as escolas de quase
todo o país de salas de leitura e de bibliotecas. É nesses acervos que o professor deve garimpar os
títulos que vai ler com seus alunos. Como em geral há poucos exemplares de cada um, isso cria uma
situação até interessante, pois diferentes livros estarão sendo lidos ao mesmo tempo por uma turma.
Porém isso requer do professor um trabalho diferenciado.
Depois de verificar o que existe no acervo, o professor pode organizar uma lista de opções, tendo o
cuidado de verificar se existe um número maior de livros do que de alunos, e deixá-los escolher. Convém falar um pouco sobre cada um deles para que a escolha seja menos aleatória. Se ainda assim isso
for problemático, existe o recurso do sorteio, permitindo uma só troca com outro colega, no mesmo
dia. Assim como é importante despertar a atenção do leitor para o livro que vai ler, e ele certamente
vai se interessar pelos temas em pauta nessas novelas atuais, também é importante traçar diretrizes e
metas, o que inclui prazos e tarefas. É preciso estabelecer prazos realistas, nem longos, nem escassos,
e ser firme em seu cumprimento. Afinal, faz parte da educação aprender a ter disciplina de trabalho.
Em vez de cobrar fichas de leitura ou resumos, é preferível que o professor peça aos alunos algo
mais criativo, como, por exemplo, que transformem o enredo, ou uma parte dele, numa notícia de
jornal, numa entrevista, num cordel, num roteiro de cinema; sugerir-lhes que deem outro desfecho
à trama, ou que a narrem pela perspectiva de um dos personagens (“Marabá”, de Lobato, pode ser
inspirador nesse sentido). Que contem a história de segunda mão, pela voz de personagens bem
periféricos, que tenham uma percepção parcial e diferente dos fatos. Ou que alterem o tempo e o
local dos acontecimentos, seja para o passado ou para o futuro. Além de exercitar a imaginação, os
alunos estarão exercitando a produção de textos.
De livro para livro, as produções escritas podem ser alternadas com apresentações orais, uma vez
que a fala também é uma habilidade que precisa ser treinada para ser eficiente. Junto com ela, trei66
LEITURA EM REVISTA iiLer / Cátedra UNESCO de Leitura PUC-Rio n.7, fev., 2015
na-se o uso adequado da voz, da linguagem e da postura corporal. Nessas apresentações, é preciso
insistir com os colegas para que aprendam a ouvir, habilidade muito útil na convivência humana e
em qualquer profissão.
Ler qualquer coisa é melhor do que não ler nada. O mito de que os jovens não têm fôlego para
leitura extensiva já foi desmentido pelo sucesso de Harry Potter, O senhor dos anéis, as aventuras
de Percy Jackson e outras novelas. Se o aluno for adepto da literatura trivial, seja ela policial, ficção
científica, fantasia ou tramas que seguem a fórmula de misturar lugares exóticos, sexo, luxo e perigo,
treinando um olhar crítico sobre tais narrativas, o professor poderá aos poucos conquistá-lo para um
upgrade, um salto para leituras mais refinadas.
Para tanto, sugiro ao professor algumas estratégias:
Discuta em classe as “receitas” de tais romances (leia-os antes!), faça-os perceber o
quanto seus enredos são previsíveis, o quanto seus personagens são rasos. Mais: tire
partido dessa constatação, mostre-lhes que também os contos de fadas são previsíveis,
seguem esquemas, têm funções que se articulam entre si, sempre do mesmo jeito.
Apresente-lhes de modo simplificado a teoria de Propp sobre a morfologia dos contos
folclóricos. Traga uma lista das funções mais frequentes e peça-lhes para reconhecê-las
em seriados de TV, filmes de ação e também nos seus best-sellers favoritos. Por fim,
proponha um teste final de qualidade: dá para ler esse tipo de livro mais de uma vez?
Tome o caso das histórias policiais. Elas seguem um padrão, que inclui, por exemplo, um
detetive e um narrador isentos de suspeita. Há também a premissa de que o malfeitor
será descoberto e punido ao final. Além disso, essas tramas organizam-se do fim para o
início, isto é, primeiro se descobre o crime, depois as circunstâncias em que aconteceu, o
seu autor e os motivos que o levaram a isso. Pergunte-lhes se já ouviram falar de Édipo-Rei, de Sófocles. Mostre-lhes como nessa tragédia a organização das ações segue de
perto o esquema padrão das histórias policiais.
Sabemos que esse gênero narrativo ganhou status de literatura com Edgar Allan Poe. Leia
um de seus contos “de raciocínio” em aula. Existe neles algo além do enredo? Dá para ler
o mesmo conto de Poe outra vez? Por quê? Proponha a leitura de livros de João Carlos
Marinho, como O gênio do crime, ou Berenice Detetive. Peça que os alunos descubram
de que modo o autor subverte o gênero, altera a “receita”, tornando seus textos originais
e divertidos. Esse mesmo tipo de discussão pode ser feito com as histórias de vampiros e
lobisomens, que voltaram à moda em livros, filmes e até em textos publicitários.
O poeta Emerson acreditava que o a leitura é um jogo de parceria, que o bom leitor faz o bom livro.
Isso pressupõe, no entanto, que os livros que lhes são oferecidos tenham qualidade, sejam de fato
literários. Formar o bom leitor, criar oportunidades de conhecer textos de qualidade e treinar um
olhar avaliativo, crítico e sensível nos jovens leitores é tarefa do professor que, na nossa realidade,
ainda é o melhor promotor da leitura.
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Referências
BOJUNGA, Lygia. O abraço. Rio de Janeiro: AGIR, 1995.
BRAGA, Rubem. 200 crônicas escolhidas. RIO DE Janeiro: Record, 2004.
CARNEIRO, Flávio. A distância das coisas. São Paulo: SM, 2008.
COLASANTI, Marina. Zooilógico. Rio de Janeiro: Nórdica, 1975.
COLASANTI, Marina. Contos de amor rasgados. Rio de Janeiro: Rocco, 1986.
COLASANTI, Marina. Entre a espada e a rosa. Rio de Janeiro: Salamandra, 1992.
COLASANTI, Marina. 23 histórias de um viajante. São Paulo: Global, 2004.
CUNHA, Marcelo Carneiro da. Ímpar. Porto Alegre: Projeto, 2002.
DILL, Luís. O dia em que Luca não voltou. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.
LACERDA, Rodrigo. O fazedor de velhos. São Paulo: Cosacnaify, 2008.
LAUB, Michel. Diário da queda. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.
LOBATO, José B. Monteiro. Negrinha. 28 ed. São Paulo: Brasiliense, 1988.
MACHADO, Ana Maria. Do outro mundo. São Paulo: Ática, 2002.
MARINHO, João Carlos. O gênio do crime. São Paulo: Global, 1986.
MARINHO, João Carlos. Berenice detetive. São Paulo: Global, 1996.
MURRAY, Roseana. Poemas para ler na escola. Rio de Janeiro: Objetiva, 2011.
PENNAC, Daniel. Como um romance. Rio de Janeiro: Rocco, 2008.
QUINTANA, Mário. Poemas para ler na escola. Rio de Janeiro: Objetiva, 2012.
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Uma janela para o mundo: a leitura como arte na aquisição do conhecimento
A window to the world: reading with art in the acquisition of knowledge
José Geraldo da Rocha1
Rosane Cristina Oliveira2
Anna Paula Lemos3
Resumo
Os acontecimentos cotidianos nos oferecem inúmeras possibilidades de compreensão. A leitura se apresenta a nós
como um instrumento privilegiado na apreensão do que se passa no mundo no contexto da globalização. O desafio da
leitura está posto como uma oportunidade ímpar que nem todos conseguem vislumbrar. “Uma janela para o mundo: a
leitura como arte na aquisição do conhecimento” recupera o modo como o senhor Josiel, um homem comum da Baixada
Fluminense buscou através das múltiplas formas e significados de leitura o seu modo de encantar-se com o conhecimento e desabrochar-se como ser humano, tendo a curiosidade como ponto de destaque.
Palavras-chave: Leitura; Conhecimento; Linguagem; Texto; Acontecimentos
Abstract
The daily events offer us many possibilities of understanding. The reading is presented to us as a privileged instrument
in the apprehension of what is happening in the world in the context of globalization. The reading challenge is laid
as a unique opportunity that not everyone can envision. “A window to the world: reading as art in the acquisition of
knowledge” recovers how mister Josiel, an ordinary man from Baixada Fluminense sought across multiple forms and
reading meanings his way to delight himself with the knowledge and it’s blossoming as human being, with curiosity as
an important point.
Keywords: Reading; Knowledge; Language; Text; Events
1 Prof. Adjunto Doutor, no Programa de Pós-Graduação em Letras e Ciências Humanas da Unigranrio.
2 Profa. Adjunta Doutora, no Programa de Pós-Graduação em Letras e Ciências Humanas da Unigranrio
3 Profa. Adjunta Doutora, no Programa de Pós-Graduação em Letras e Ciências Humanas da Unigranrio
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LEITURA EM REVISTA iiLer / Cátedra UNESCO de Leitura PUC-Rio n.7, fev., 2015
Ler o mundo, ler a vida através dos fatos e acontecimentos é um salutar desafio que só os curiosos,
os sedentos de conhecimento se dispõem a realizar. O presente artigo nasce da observação de um
personagem que movido por essa curiosidade sadia discorre como o seu processo de aprendizagem
se deu, e o lugar privilegiado ocupado pela leitura na sua trajetória de vida. O senhor Josiel é um
morador como tantos outros da Baixada Fluminense. Um senhor negro, vindo de Minas Gerais para
o Rio de Janeiro na década de 1960. Para ganhar a vida passou a tabalhar na construção civil. Um
homem simples, mas verdadeiramente encantado pelo conhecimento. Fez da arte das várias formas
de leitura o seu caminho para compreensão da vida e do mundo.
A curiosidade é a arma e a alma da coisa
Leitura é coisa de curioso. Uma curiosidade sadia que aproxima o mundo do ser humano e contextualiza o ser humano no mundo. É uma atitude inteligente que aguça a criatividade além de tornar e
possibilitar ao leitor a compreensão e a apreensão do mundo. É como diz Paulo Freire:
Ler é uma operação inteligente, difícil, exigente, mas gratificante. Ninguém lê ou estuda autenticamente
se não assume, diante do texto ou do objeto da curiosidade a forma crítica de ser ou de estar sendo sujeito
da curiosidade, sujeito da leitura, sujeito do processo de conhecer em que se acha. Ler é procurar ou buscar criar a compreensão do lido; daí, entre outros pontos fundamentais, a importância do ensino correto
da leitura e da escrita. É que ensinar a ler é engajar-se numa experiência criativa em torno da compreensão. Da compreensão e da comunicação. E, a experiência da compreensão será tão mais profunda quanto
sejamos nela capazes de associar, jamais dicotomizar, os conceitos emergentes na experiência escolar aos
que resultam do mundo da cotidianeidade (FREIRE, 1997: 29-30).
No ano de 2015, no dia 13 de Maio completaram-se 127 anos da abolição da escravatura legal no Brasil.
Em um evento marcante na Baixada Fluminense onde se refletia sobre os significados da data na vida
da população negra do país, chamou-nos a atenção o modo como se expressava um senhor conhecido
por muitos na comunidade. Falava com uma propriedade, coisa nunca vista. As pessoas que o conheciam ficavam admiradas pela sua desenvoltura no assunto. Ao final da sua fala, quando o microfone foi
disponibilizado para perguntas da plateia, um dos participantes lhe perguntou: “ como o senhor adquiriu tamanho conhecimento sobre os negros se uma vez nos contou que só estudou até o terceiro ano
primário? ” Então o senhor se põe a explicar. “ Os olhos são as janelas do corpo, as janelas da mente,
as janelas da alma”. Para compreender o mundo ele usou os olhos como instrumento. As vezes observando algumas coisas dizia, “consigo entender por que outras coisas acontecem”. Assegurava ele que,
quando falou que estudou até o terceiro ano primário, isso era meia verdade. “Até o terceiro ano eu fui
na escola com carteira, caderno, professor e horário”. As condições de vida não o deixaram continuar
nesse tipo de escola. Então, ele encontrou outras formas para buscar compreender o mundo. Aproveitou o pouquinho que já tinha aprendido na escola e continuou lendo livros velhos que encontrava nos
lixos, pedaços de jornais, e cada dia sentia mais vontade de ler e sentia que estava aprendendo coisas
maravilhosas lendo. Coisas que, ao tom do fragmento, iam construindo no homem uma sabedoria
saborosa. Roland Barthes, no livro Aula, fala do sabor do saber. Fala de uma enunciação que difere de
um enunciado científico. E difere porque traz à baila e em foco o enunciador. Portanto traz a palavra
como linguagem. Uma linguagem que “expõe o lugar e a energia do sujeito”. Diz ele:
A enunciação, por sua vez, expondo o lugar e a energia do sujeito, quiçá sua falta (que não é sua ausência),
visa o próprio real da linguagem; ela reconhece que a língua é um imenso halo de implicações, de efeitos,
de repercussões, de voltas, de rodeios, de redentes; ela assume o fazer ouvir um sujeito ao mesmo tempo
insistente e insituável, desconhecido e no entanto reconhecido segundo uma inquietante familiaridade: as
palavras não são mais concebidas ilusoriamente como simples instrumentos, são lançadas como projeções,
explosões, vibrações, maquinarias, sabores: a escritura faz do saber uma festa. (BARTHES, 1980: 20-21)
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Essa festa do saber ele demonstrava quando ia em busca do seu próprio conhecimento em livros,
recortes, papeis, mas, no entanto, buscar a leitura linear clássica não o impediu de também buscar
nos sites, na internet, na linguagem contemporânea virtual e não-linear a sua intercomunicação
com o mundo. Ele não deixava de se atualizar e entendia o texto em sua etimologia, “um tecido de
linguagens”. Veja o que diz Brito (2010):
Ao ler um texto ou um livro, interagimos não propriamente com o texto, mas com os leitores
virtuais, que são constituídos no próprio ato da escrita. O autor os cria em seus textos e o leitor
real, lê o texto e dele se apropria. O texto passa assim a exercer uma mediação entre sujeitos,
tendo a influência de estabelecer relações entre os leitores reais ou virtuais. O conceito de leitura na maior parte das vezes está relacionado com a decifração dos códigos linguísticos e sua
aprendizagem. No entanto, não podemos deixar de levar em consideração o processo de formação social deste indivíduo, suas capacidades, sua cultura política e social. (BRITO, 2010: 3)
Aí foi descobrindo que seus olhos funcionavam como chaves para abrir portas do mundo. Assim
sentia também que ia criando uma cabeça nova, uma mente nova. A leitura se tornou para ele como
um prato de arroz com feijão. Coisa de todo dia. Não só a leitura das palavras, mas também uma
leitura do mundo, das imagens, dos fatos, das experiências.
A leitura do mundo precede a leitura da palavra, daí que a posterior leitura desta não possa prescindir
da continuidade da leitura daquele. Linguagem e realidade se prendem dinamicamente. A compreensão
do texto a ser alcançado por sua leitura crítica implica percepção das relações entre o texto e o contexto.
(FREIRE, 1993: 11)
Muitas coisas que lia, ele via acontecer na sua rua, no seu bairro. Disse que leu alguns textos sobre
a situação dos negros e via no seu bairro os negros vivendo do jeito que aparecia nos textos. Então
descobriu que dava para ler a vida, os fatos antes de por no papel. Hoje quando vê tantas coisas
acontecendo no mundo, porque hoje a televisão mostra muitas coisas, fica pensando: “Como é que
pode? Será que as pessoas não aprendem com o que vêem? Caso do racismo por exemplo. Apartheid, confusões pelo mundo, discriminação. Será que isso não ensina nada para a gente aqui no
Brasil”? Por isso, afirma ele, a gente precisa aprender a ler o mundo.
Por meio da leitura nós podemos conversar com o mundo. Em tempos de globalização, tudo é muito
rápido. Ficamos sabendo das coisas acontecendo em qualquer lugar em segundos apenas. Isso certamente é uma fantástica contribuição da modernidade, se considerarmos que tal realidade pode
evocar atitudes e práticas de solidariedade em prol de um mundo mais justo e mais humano.
Por outro lado, a aceleração do mundo contemporâneo traz noções mais superficiais do mundo, uma
construção imagética que cria, como diria Guy Debord, uma Sociedade do Espetáculo. Veja que, etimologicamente, espetáculo tem a mesma origem de speccio (espelho), spectro (fantasma) e specie (dinheiro). Assim, ao fazer uma crítica ao mundo contemporâneo, Debord fala de uma sociedade do consumo
através da imagem. Uma imagem que superficializa, que torna o próprio homem objeto de consumo.
Mas é preciso também saber ler esse mundo, para que se possa transitar por ele.
A leitura em tempos de Globalização
No mundo global, de fato, lê-se muito, entretanto, a questão é: o que se lê? Se, por um lado, a conversa com o mundo através da leitura torna o acesso ao conhecimento mais democrático, por outro,
a ausência de critérios acerca do que se lê, de onde se lê e para que se lê é um dos desafios do nosso
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LEITURA EM REVISTA iiLer / Cátedra UNESCO de Leitura PUC-Rio n.7, fev., 2015
tempo. Uma simples busca no meio de difusão mais utilizado atualmente, a internet, nos leva a tantos “lugares” que parece difícil escolher a fonte para amenizar a sede do conhecimento em relação
às várias questões que permeiam o mundo.
Ao buscarmos uma definição de “leitura”, de acordo com Leffa (1996), “a leitura não se dá por acesso direto à realidade, mas por intermediação de outros elementos da realidade” e, ainda, “ler é,
portanto, reconhecer o mundo através de espelhos. Como esses espelhos oferecem imagens fragmentadas do mundo, a verdadeira leitura só é possível quando se tem um conhecimento prévio
desse mundo”. (LEFFA, 1996: 10) Assim, quando lemos um romance, notícias em jornais e revistas
ou uma simples carta observamos uma parte da realidade que aquela mensagem quer nos dizer. A
totalidade está muito além!
Dependendo do lugar em que o leitor esteja situado em relação ao espelho, observar-se-á formas
diferentes da realidade. Por exemplo: ao pensar / planejar um espaço urbano (um bairro, uma praça,
uma rua), o planejador urbano dará ênfase na leitura do espaço geográfico e não necessariamente
no impacto que as intervenções propostas causará na vida dos sujeitos que habitam e utilizam cotidianamente o referido espaço.
A partir de uma leitura sociológica de uma determinada realidade aponta para muitas faces, perspectivas e tentativas de compreensão dos fenômenos sociais que estão impressos. Na literatura, a
leitura de um poema pode desencadear lágrimas ou risos, pois dependerá de quem lê o poema, do
ponto de vista psicológico, emocional ou cultural. Assim, é importante destacar que não somente a
linguagem escrita, mas também a linguagem de sinais não-linguísticos (expressão facial e corporal,
por exemplo) que compõem uma infinidade de elementos linguísticos importantes para decodificarmos mensagens. Dos anos 1990 em diante, o acesso à internet e os meios de comunicação oferecendo diversos canais de informação sobre o mundo, a sociedade passou a experimentar inúmeras
opções de percepção4 da realidade, e, portanto, de leituras do mundo.
O livro no meio da rua
Ao pensar nas inúmeras percepções de leitura, e pelas mediações de Jesus Martin-Barbero, nos
colocamos, como nos orienta ele, na interseção dos meios, no encontro de sociabilidades, tecnicidades, institucionalidades e ritualidades humanas. Ao pensar na sociabilidade, na tecnicidade, na
institucionalidade e na tecnicidade que apresenta ao falar, é possível dizer que, em certa medida,
esse homem do relato é um intelectual orgânico.
O intelectual considerado por Antônio Gramsci, orgânico, é aquele capaz de apresentar anseios universais que podem ser reconhecidos, identificados e compreendidos de maneira espontânea. É aquele que tem a capacidade de perceber no saber popular coisas que enriquecem o seu mundo intelec4 Souza & Erdman (2003) elaboraram uma reflexão interessante acerca do pensamento do filósofo Maurice Merleau-Ponty, autor considerado um dos primeiros a dedicar atenção especial ao conceito de percepção. Os termos percepção
e sensação, confundidos em um primeiro momento, em alguns estudos da área de psicologia já aparecem dissociados:
sensação está atrelada à captação de estímulos, internos e externos, devidamente conduzidos de acordo com a capacidade cerebral. Entretanto, o aspecto seguinte à sensação é o ato decodificação dos estímulos capturados pela sensação.
Neste segundo momento observamos a percepção. Por outro lado, a percepção como elemento preocupante para a
filosofia, de acordo com Souza & Erdman (2003), está relacionada com as seguintes dimensões: conhecimento, pensamento, reflexão, verdade, juízo, realidade, imaginário e a questão do ser.
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tual. E, assim, transforma em obra o que aprende organicamente, nas relações com o saber popular.
O autor do relato se coloca como aquele que transforma em saber o que observa, o que experiência,
o que, sem o direcionamento de qualquer instituição educacional, constrói seu conhecimento.
E o que é preciso perceber é a transcrição de vida feita pelo homem do relato que não o permite
estudar. Ele, em um mundo contemporâneo de imagens e acelerações, lê o livro e vê o mundo. Ele
sai das linhas do texto e observa as linhas das ruas. E rompe as paredes da escola em rasgos, em restos, em pedaços de conhecimento que ele lê, olha e recria. Ele não vai romper o processo institucional de estudo, pelo advento da internet, ou seja, ele não sai da sala de aula para a rede virtual como
contemporânea e frequentemente se faz. Ele sai da sala de aula e transita pela leitura. E a pergunta
que se faz é: por que ler? O que ler? Como relacionar leitura e modo de vida?
O homem do relato encontra na literatura uma identidade. “O que eu leio no livro, eu vejo na vida”,
diz ele. E começou lendo em livros velhos, encontrados no lixo, em restos de jornais, em leituras que
encontrava pelo meio do caminho. Enquanto vivia, lia.
Percebe-se, portanto, que ao falar de sua relação com a leitura, a sua biografia transforma-se em Biografema nos termos de Roland Barthes. Segundo Barthes, um Biografema é uma biografia mediada
pelos sentidos. Diz Barthes que da biografia de uma pessoa se deve atentar aos pormenores, aos
gostos, as inflexões:
(...) Se fosse escritor, e morto, como gostaria que a minha vida se reduzisse, pelos cuidados de um amigável e desenvolto biógrafo, a alguns pormenores, a alguns gostos, a algumas inflexões, digamos: ‘biografemas’, em que a distinção e a mobilidade poderiam deambular fora de qualquer destino e virem contagiar,
como átomos voluptuosos, algum corpo futuro, destinado à mesma dispersão!; em suma, uma vida com
espaços vazios, como Proust soube escrever a sua, ou então um filme, à moda antiga, onde não há palavras e em que o fluxo da imagem é entrecortado, como salutares soluços, pelo rápido escrito negro do
intertítulo, a irrupção desenvolta de um outro significante (...) (BARTHES, 2005: 14-15).
O biografema é uma biografia que não está atenta aos dados catalogados de data de nascimento,
nome, profissão, mas está vinculada às mediações e aos sentidos que durante a vida se
intercambiaram: anotações, livros, músicas, recordações, fotografias, cores, aura.
É assim que o homem do relato parece se relacionar com o mundo. Como se, através da leitura em
fragmentos e em sentimentos, pudesse reconstruir o que vê. Confere o que lê no que vê e reconta
como em um diário; em relatos. Mas, quem é, finalmente, esse homem do relato que se relaciona
pelas mais variadas formas de leitura com o mundo?
A leitura é um caminho, uma possibilidade de se se reconstituir como partícipe do mundo. No caso
do homem de nosso relato, fica explicitado que a aquisição da autoestima, a ampliação de seus horizontes bem como o exercício da cidadania é resultado de esforços e muita dedicação.
Os olhos são janelas do corpo que se pode utilizar para compreender o mundo. Quando se lê, a alma
enobrece, dizia o senhor Josiel, homem de nosso relato. A leitura, segundo nosso relator possibilita
desenvolver e trabalhar a mente. Evidentemente, isso significa um grande benefício para o ser humano.
O senhor Josiel, a partir das múltiplas formas de leituras que aprendeu a fazer do mundo tornou-se
uma referência para os mais jovens em sua comunidade e nos seus círculos de amizades, em virtude
do grande conhecimento acumulado e da simplicidade com que versa sobre os mais variados temas
presente nos debates contemporâneos. Assim se expressava ele “eu não me aperto nas conversas,
eu sei um pouquinho de tudo e isso aprendi lendo a vida, livros, revistas e jornais”. Em outra oportu73
LEITURA EM REVISTA iiLer / Cátedra UNESCO de Leitura PUC-Rio n.7, fev., 2015
nidade ele dizia: “a riqueza que a leitura nos dá ninguém pode tirar. Quem lê mantém acesa a chama
do conhecimento”.
Ao final da conversa o senhor Josiel demostrou uma preocupação particular, que de certo modo é
uma crítica à juventude na atualidade.
Eu vejo muita dificuldade da juventude hoje compreender algumas coisas e acho que isso é falta de leitura
para se esclarecer. Parece que muitos têm preguiça de ler. Aquilo que faço por prazer, muitos não querem
nem por obrigação (considerações finais da fala do sr. Josiel, 13 maio 2015).
É interessante notar que a crítica feita pelo senhor Josiel encontra fundamento nas práxis educacionais cotidianas. É perceptível a dificuldade de leitura e compreensão daquilo que se lê por parte de
muitos estudantes nos diferenciados níveis de ensino na contemporaneidade.
Considerações finais
A leitura é uma porta de contato e comunicação com o mundo. Em tempos de globalização, cada
vez mais inteirar-se dos acontecimentos exigem dos indivíduos o aprimoramento dos mecanismos de
apropriação para assimilar as informações, requisito fundamental para organização do conhecimento.
A experiência no processo de aquisição do conhecimento narrada por nosso interlocutor demonstra que
a curiosidade funciona como elemento instigante, sem o qual, diante das dificuldades o indivíduo abdica-se de buscar por caminhos alternativos o saber que em muitas situações lhe e negado pela sociedade.
A trajetória do senhor Josiel comprova que a apreensão do mundo em que vivemos passa fundamentalmente pela leitura em suas múltiplas maneiras e linguagens. Abrir os olhos para compreender os fatos, os acontecimentos e a vida é um modo de exercer a cidadania. Isso está, evidentemente, relacionado com a sede de saber existente no ser humano.
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Referências Bibliográficas
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BARTHES, Roland. Sade, Fourier, Loiola. RJ: Martins Fontes, 2005.
BARTHES, Roland.Aula. Trad. Leyla Perrone-Moisés. São Paulo: Cultrix, 1989
BRITO, Danielle. A importância da leitura na formação social do indivíduo. Periódico de Divulgação
Científica da FALS Ano IV - Nº VIII- JUN / 2010 - ISSN 1982-646X
FREIRE, Paulo. Professora sim tia não: cartas a quem ousa ensinar. 8.ed.
São Paulo: Olho d’Água, 1997.
FREIRE, Paulo. A importância do ato de ler. São Paulo: Cortez, 1993.
LEFFA, Vilson J. Aspectos da leitura. Porto Alegre: Sagra: DC Luzzatto, 1996.
SOUZA, Ana Izabel Jatobá de. & ERDMAN, Alacoque Lerenzini. Percepção – uma reflexão teórica a
partir da filosofia de Maurice Merleau-Ponty. Revista Baiana de Enfermagem, Salvador, v. 18, n. 1 /
2, jan/ago 2003, p. 75-87.
75
Temas transversais de formação geral e redes sociais: experiências
educacionais inovadoras no ensino superior
Social media and active methodologies: The transversal insertion of
general education themes in the under-graduation education.
Anna Paula Soares Lemos1
Joaquim Humberto Coelho de Oliveira2
Lucimar Levenhagen Alarcon da Fonseca3
Tania Maria da Silva Amaro de Almeida4
RESUMO
O modelo tradicional e disciplinar de educação oferece um ensino fragmentado e compartimentado, desestimulante
para quem aprende e vive com as múltiplas conexões da vida moderna, associada às novas tecnologias de informação
e comunicação. Ao mesmo tempo, esse modelo de saber tradicional encontra-se debilitado para reconsiderar de outras
formas e prover de novos sentidos essas múltiplas e fragmentadas experiências próprias de uma sociedade cada vez
mais dependente dessas novas tecnologias. Nesse sentido, este artigo relata e analisa práticas educacionais inovadoras
atentas a essas considerações. Para tanto, elas inserem transversalmente temáticas de formação geral, com conteúdos
e valores próprios da cultura dos direitos humanos, por meio da utilização das mídias sociais como ferramentas incentivadoras de metodologias ativas, em conformidade com as modalidades de ensino a distância e com as suas novas
competências e habilidades requeridas pelos atores participantes do processo de ensino-aprendizagem.
Palavras-chave: Temas Transversais; Formação Geral; Metodologias Ativas.
ABSTRACT
The traditional disciplinary educational model offers a fragmented and compartmentalized teaching, discouraging for
those learn and live with the multiple connections of modern life, associated with the new technologies of information
and communication. At the same time, this model of traditional knowledge lies weakened to reconsider in other ways
and to provide new meanings to these multiple and fragmented own experiences in a society increasingly dependent on
these new technologies. Thus, this paper reports and analyzes educational innovative practices that follow these considerations. To do so, they insert cross-cutting issues of general education with content and values related to the culture
of human rights, through the use of social media as motivating tools for active methodologies in accordance with the
modalities of distance learning and with their new skills and the skills required by the actors involved in the teaching-learning process.
Keywords: Cross-cutting issues; General Formation; Active Methodologies.
1 Doutora em Ciência da Literatura - Letras pela UFRJ. Professora Adjunta do Mestrado em Letras e Ciências Humanas - PPGLCH/
UNIGRANRIO. Professora da Graduação da UNIGRANRIO.
2 Doutor em Filosofia pela PUC/RJ. Professor Adjunto do Mestrado em Letras e Ciências Humanas – PPGLCH/UNIGRANRIO. Professor
da Graduação da UNIGRANRIO e do UNIFESO.
3 Professora Especialista da Rede Municipal de Educação (Ed. Especial e Inclusiva ) e da graduação em Letras e Informática da
UNIGRANRIO. Coordenadora do Núcleo de Práticas Inclusivas e Coordenadora de EaD dessa mesma Universidade. Coordenadora
e-PROINFO/MEC.
4 Mestre em Letras e Ciências Humanas pela UNIGRANRIO. Professora da rede estadual e da graduação em História da UNIGRANRIO.
Coordenadora do Núcleo de Memória e Documentação Institucional dessa mesma Universidade. Diretora do Instituto Histórico da
Câmara Municipal de Duque de Caxias.
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LEITURA EM REVISTA iiLer / Cátedra UNESCO de Leitura PUC-Rio n.7, fev., 2015
O aprendizado em tempos de reinvenção
A modernidade é mediada pela pressa, há a percepção de um tempo mais congestionado e fragmentado. É preciso, então, “considerar o mundo sob outra ótica, outra lógica, outros meios de conhecimento” (CALVINO, 2005: 19). Assim, como estimular o interesse e dinamizar o aprendizado de um
indivíduo em plena fragmentação?
Segundo Muniz Sodré (2012), o pensamento tradicional atual é aquele em que os grandes filósofos,
por exemplo, são redescritos à luz do novo século, dos novos contextos e das novas tecnologias.
Mas, ele diz que não se trata só de redescrever, em termos de pensamento, deve-se pensar em termos de ação, instalar os pensamentos críticos e as novas interpretações e doutrinas pedagógicas em
um novo tipo de espaço, em um território onde o processo educacional se dá.
[...] lugar é a localização de um corpo ou de um objeto, portanto é espaço ocupado. Território, palavra
mais moderna, é o lugar ampliado. Assim, hoje dizemos que território é o espaço afetado pela presença
humana, portanto, um lugar da ação humana. [...] essa localização não é necessariamente física [...] (SODRÉ, 2012: 74)
O panóptico, analisado por Foucault (1987), e o modelo do pregador, instituído culturalmente pela
igreja, formam o modelo da sala de aula tradicional que, hoje, não deveria se aplicar, porque com
o novo conceito de espaço, a sala de aula não se limita às suas paredes. Sem limites de território, a
escola que socializa e capacita pode se constituir em suportes móveis que estão estabelecidos, cada
vez mais, em ferramentas da Educação a Distância (EaD), facilitando o acesso em fluxo contínuo, aproximando os discursos e estabelecendo pontes de diálogo que antes pareciam impossíveis e distantes.
Assim, a EaD se fortalece e possibilita que a escola seja capaz de se estabelecer em qualquer espaço onde haja a possibilidade de construir o encontro de um mediador, um conteúdo temático e os
diversos estímulos à pesquisa, à autoconstrução do conhecimento e ao debate.
Os meios e mediações contemporâneos de comunicação possibilitam este debate que, não sendo mais só um diálogo, é comunicação em rede. Assim, não é mais possível apenas redescrever
o processo, utilizando metodologias que foram criadas no ensino presencial, aplicando-a no ensino a distância. É preciso que essas metodologias coexistam e se reinventem mutuamente, já que
o estudante deve poder escolher a forma, a mídia, a mediação e a estratégia metodológica que
melhor atenda às suas habilidades de construir o próprio conhecimento. Isso porque, o processo de
vida contemporâneo já se estabelece de forma fragmentada e acelerada. Pensando nisso, é preciso
trilhar nos caminhos abertos pela EaD, intensificando-se o desafio para o aluno estudar sozinho,
obtendo autonomia no ato de aprender, necessitando, portanto, ter ou desenvolver habilidades
para uma aprendizagem mais autônoma. Nesse sentido, a tradicional educação brasileira ainda não
prepara indivíduos para uma graduação a distância.
Na aprendizagem a distância, o educando deve aprender a se envolver mais e a gerir seu aprendizado,
além de interagir neste novo ambiente virtual de aprendizagem com os integrantes deste espaço: colegas, tutores, gestores, etc. Cria-se um movimento coletivo e colaborativo online suportado pelas tecnologias da informação e comunicação em prol de uma aprendizagem significativa para todos os envolvidos.
O êxito nessa modalidade de educação requer mudanças que retomem discussões e práticas políticas e individuais. Fazem-se necessárias iniciativas públicas que gerem maior inclusão digital, com
bom acesso à Internet. É preciso incentivar espaços e práticas democráticas de participação e decisão
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LEITURA EM REVISTA iiLer / Cátedra UNESCO de Leitura PUC-Rio n.7, fev., 2015
que comunguem com as práticas colaborativas e dialogadas exigidas nos ambientes virtuais. Para a
plena convivência nessas dinâmicas ativas, colaborativas e participativas, o cidadão e aluno virtual
precisam ser estimulados a escrever, argumentar e interpretar. No caso das práticas analisadas neste artigo, a timeline das atividades propostas no Facebook pelo INOVA/UNIGRANRIO caracteriza-se
como exemplo de Fóruns, onde se expõem ideias em forma de diálogos e trocam-se opiniões e críticas. Assim, mostra-se de fundamental importância aliar a esses espaços virtuais de aprendizagem
a transmissão transversal de conteúdos de formação geral que tragam valores e práticas indispensáveis para a convivência pública, tanto em ambientes virtuais quanto em presenciais.
A transversalização da educação em direitos humanos
Uma das formas de romper com o espaço disciplinar das tradicionais salas de aula é a prática pedagógica de transmissão transversal de conteúdos temáticos. Transversalidade, interdisciplinaridade,
multidisciplinaridade e transdisciplinaridade fazem parte do conjunto de estratégias pedagógicas
contrário ao circuito moderno e pós-moderno de fragmentação, que inclui a do conhecimento. Portanto, a inserção transversal de conteúdos temáticos é uma estratégia para esvaziar e combater o
modelo disciplinar de transmissão do conhecimento. (ARAÚJO, 2003)
Neste artigo e na experiência aqui relatada e analisada - que conta com a utilização de instrumentos
inovadores para a educação a distância, como os blogs e redes sociais -, a concepção de transversalidade diz respeito aos aspectos formativos da educação, priorizando temas próprios e capitais da cultura em direitos humanos, buscando reforçar os vínculos dos indivíduos com valores da cidadania.
Esses propósitos de viés mais formativo, voltado para as competências atitudinais e que complementam o conteúdo instrutivo, de teor mais cognitivo, estão presentes em todos os cursos de graduação.
Eles são orientados pelos Planos de Desenvolvimento Institucional (PDI) e Projetos Pedagógicos dos
Cursos (PPC), em cumprimento às diretrizes curriculares do Ministério de Educação e Cultura (MEC).
A presença desses conteúdos formativos em documentos oficiais demonstra a posição do Estado
brasileiro a favor da sua participação nesse processo educacional, não delegando essa responsabilidade somente a setores da sociedade civil, como a família, a religião, etc. (BITTAR, 2013; ADORNO,
2003). E, compreendendo esses valores como próprios da cultura em direitos humanos, que reforçam os vínculos éticos e políticos para a integração de múltiplas diferenças em espaços comuns de
convivência, a sociedade demanda ao ensino o compromisso de preparar seus alunos tanto para as
relações interpessoais, em respeito às alteridades, como intertemporais, em consideração à sustentabilidade, nas suas mais diversas acepções.
Se, por um lado, a especialização do profissional de ensino continua necessária à função instrucional, por outro, esse mesmo profissional tem que associar a essa formação elementos provindos da
tendência formativa da educação. Como, então, levar para conteúdos disciplinares questões as mais
variadas, como as interpessoais, que lidam, por exemplo, com a questão das discriminações étnicas
ou de gêneros, ou as intertemporais, que lidam com a questão da preservação das escolhas no tempo e abrangem temas como uso de drogas, o planejamento financeiro e o da carreira, a preservação ambiental? Como transpor as barreiras disciplinares para a promoção da educação em direitos
humanos e para atender as demandas legítimas da sociedade? Essas questões se impõem ao modelo de formação dos professores, às suas condições de trabalho, desde a modalidade de carga horária
ao espaço físico, e à construção das estruturas curriculares.
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Algumas dessas dificuldades, geradas pela disciplinarização do ensino, podem ser transpostas pela
transversalidade. Por isso, a transversalidade proposta não implica apenas em adotar um tema como
método para reforçar um conteúdo disciplinar, mas influenciar nas atitudes envolvidas na escolha de
valores próprios da cultura dos direitos humanos. Com isso, busca-se também entender como elas se
modificam com a chegada das variadas ferramentas de comunicação contemporâneas e como as redes
sociais e as metodologias ativas fazem parte deste novo olhar da educação, que tem no espaço do Ensino a Distância práticas pedagógicas inovadoras, como as que mostraremos no estudo de caso a seguir.
As redes sociais e as metodologias ativas: estudos de caso de transmissão transversal
de conteúdos formativos
Buscando complementar de forma transversal a educação instrutiva com a formativa, a UNIGRANRIO5, através do seu Núcleo Inovador – INOVA, instituiu um programa de formação geral, através da
constante execução de inovações metodológicas na educação em direitos humanos.
Como tal educação tem como principal meta a sensibilização, isto implica a experimentação de
novas práticas pedagógicas, que toquem o educando em suas várias dimensões sensoriais: a do ver
e do ouvir, com a inserção de material audiovisual na abordagem das diversas questões; a do fazer,
com práticas colaborativas de criação, através das mídias sociais; do sentir, através de sugestão de
temáticas que envolvam relações de experiências tanto nos níveis interpessoais quanto intertemporais. (BITTAR, 2013; HUNT, 2010)
No segundo semestre de 2013, o tema da sustentabilidade, em dimensão intertemporal, foi trabalhado de maneira transversal dentro dos projetos “Formação Geral” e “Trabalho Acadêmico Integrador”,
coordenados pelo grupo INOVA/UNIGRANRIO.
Implantar um programa único de caráter transversal, que pudesse ser explorado em qualquer disciplina de qualquer área, teve apoio em Morin (2000), que é contrário ao ensino por disciplina,
fragmentado e dividido, pois segundo ele, isso impede a capacidade mental natural que o espírito
tem de contextualizar: a de ligar as partes ao todo e o todo às partes. De acordo com Morin (2000),
o contexto tem necessidade, ele mesmo, de seu próprio contexto. E, o conhecimento, atualmente,
deve se referir ao global.
Dentro do contexto da globalização, principalmente na sua vertente de impulso mundial ao consumo, a escolha do tema sobre sustentabilidade tem o intuito de estimular o raciocínio prospectivo,
projetando no tempo futuro uma escolha presente.
Desenvolve-se, portanto, a compreensão de que o conceito de sustentabilidade envolve relações
intertemporais, através da seleção e indicação de material didático disponibilizado no “Blog de Formação Geral” (2014) e nos “Cadernos Pedagógicos do Trabalho Acadêmico Integrador”, auto instrutivos e acessíveis no Portal da Unigranrio (2014). Após essa fase cognitiva, foram desenvolvidas e
estimuladas metodologias ativas, tanto em salas de aula, quanto nas redes sociais.
5 Instituição privada de ensino superior, com mais de 40 cursos de graduação e graduação tecnológica, em 12 unidades no estado do
Rio de Janeiro, além de cursos de pós-graduação lato e stricto sensu.
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O pôster sobre a sustentabilidade intertemporal no cotidiano
Em sala de aula, uma produção que chamou a atenção, envolveu um grupo de alunas do curso de
Enfermagem, responsável por apresentar um painel com o tema da sustentabilidade. O contato
dos docentes do INOVA com o grupo revelou uma dificuldade da compreensão conceitual do tema
proposto. Mas, aos poucos, o grupo percebeu a interação da temporalidade abstrata inerente ao
conceito de sustentabilidade com as suas vivências e isso aumentava o envolvimento com o tema. O
trabalho resultou da apropriação do conceito de sustentabilidade pelos tempos vividos na dimensão
dos cotidianos dos discentes.
Percebe-se, então, a crítica de um cotidiano aprisionado em uma ordem temporal imposta, que dificulta a administração sustentável do próprio tempo. Portanto, a vivência cotidiana, mesmo que em
um nível pré-conceitual, possibilita a participação crítica na compreensão do conceito.
Uma filosofia banal começa a se instalar no espírito das pessoas com a descoberta, autorizada pelo cotidiano, da não autonomia das ações e dos seus resultados. (SANTOS, 20011: 116)
Destaca-se o encontro da pedagogia formal com a da existência cotidiana que reage às ordens hegemônicas e buscam organizá-la. As alunas refletiram e aprenderam com o cotidiano que a sustentabilidade está associada a uma apropriação e divisão social desigual do tempo. Consciente dessa
diferença é possível encaminhar soluções que testem o quanto de individualismo cabe para os casos
que envolvem o tema da sustentabilidade, de maneira que:
De um ponto de vista das ideias, a questão central reside no encontro do caminho que vai do imediatismo
às visões finalísticas; e de um ponto de vista da ação, o problema é ultrapassar as soluções imediatistas
[...]é fundamental viver a própria existência como algo unitário e verdadeiro, mas também como um paradoxo: obedecer para subsistir e resistir para poder pensar o futuro. Então, a existência é produtora de sua
própria pedagogia. (SANTOS, 2011: 116)
O facebook e os haicais sobre sustentabilidade.
Para estimular uma aprendizagem híbrida e personalizada, optou-se pelo blended learning, mesclando conteúdos digitais a distância, ferramentas online, atividades assíncronas e síncronas e alguns
encontros presenciais com seminários temáticos. Através desses recursos, desenvolve-se um modelo
andragógico, centrado no aluno e foco no progresso da sua capacidade crítica, inserindo fatos vividos e experimentados na sua formação acadêmica integral.
A tecnologia, aliada a essa fusão de oportunidades de aprendizado, gera uma gama de novas atitudes, pois pelo ensino híbrido reforça-se o pensamento crítico e o trabalho em equipe (HORN, 2014).
Sabe-se que alunos do século XXI possuem familiaridade com as tecnologias digitais móveis e que,
quando se trata de atividades acadêmicas, eles preferem as que fomentem a interatividade e estejam disponíveis por onde eles transitam online. Então, que seja uma educação em rede e na rede,
com uso de applets baixados para smartphones e outras facilidades da sociedade do conhecimento,
respeitando os diferentes níveis de letramento digital.
Afinados com os “Princípios do Conectivismo” (SIEMENS, 2005), foram utilizadas ferramentas interativas e multimídias para difundir os conteúdos organizados pela temática nuclear. Assim, o aluno
participa das atividades colaborativas a partir de seu perfil no facebook utilizado como plataforma
de suporte à aprendizagem. O facebook vem ampliando relevantemente a comunicação entre usuário e rede e disponibilizando inúmeros recursos que podem ser aplicados à educação. Os alunos,
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nesse caso, podem acessar e aprender de qualquer lugar e dispositivo, utilizando a rede de relacionamento como uma grande sala de aula sem paredes.
Nessa sala de aula virtual, no formato de plataforma do facebook, os alunos praticaram a compreensão e interpretação de textos, com a criação de seus próprios haicais6. Eles versam sobre o tema “Sustentabilidade” e integram o livro de coletâneas de Haicais produzido coletivamente. (LEMOS, 2013a)
“Nós In vídeo”: um minuto sustentável
Outra mediação da aprendizagem de forma transversal, a partir do tema “Sustentabilidade”, foram
os vídeos com duração de 1 minuto, gravados pelos alunos em seu entorno com diferentes dispositivos móveis. Essa proposta foi fundamentada no formato do “Festival Mundial do Minuto Brasil”.
O intuito foi construir conteúdo de forma colaborativa e compartilhá-lo usando as redes sociais,
facebook, youtube e o twitter, como condutores desse processo de aprendizagem. Pois segundo Bittencourt (2012), as redes sociais estão popularizadas entre adolescentes, jovens e adultos, servindo
para diversos fins, desde o entretenimento, comunicação e pesquisa escolar.
Integrar redes sociais não se limitou a fazer e postar fotos e vídeos (LEMOS, 2013 c; d). As ações
foram complementadas com compartilhamento de playlists dos vídeos temáticos e perguntas, desafios, comentários dos mediadores e dos próprios alunos nos grupos privados. O objetivo era criar
rede de conhecimentos, compartilhar saberes diversos, gerar aprendizagem significativa, visando
à mudança dos paradigmas educacionais. Observando essa tendência, também foi criado um livro
colaborativo pelos próprios alunos sobre receitas sustentáveis. (LEMOS, 2013b)
Conclusão
A cidadania requer um aluno mais ativo no processo de aprendizagem e que se torne sustentável
e crítico frente às situações da vida. Que saiba ser, fazer e agir; atitudes que o farão saber aprender
competências que o ajudarão na sua formação integral. É preciso avaliar a universidade do presente, com vistas para o futuro e foco na relevância das modificações pretendidas. Por isso, as redes
sociais, que fazem parte do cotidiano das pessoas, devem ser customizadas com uma nova roupagem e aplicabilidade acadêmica, visando à aplicação de metodologias ativas.
O artigo priorizou práticas pedagógicas transversais de formação geral e a utilização do facebook
como plataforma de ensino e aprendizagem. Chegou-se à conclusão que as redes sociais podem ser
aliadas no design thinking da construção de conhecimento e práxis educativa.
6 O haicai é um poema japonês em três linhas, no formato de 5-7-5 sílabas sonoras, ou seja, 17 sílabas poéticas. Não se rima um haicai, só se utilizam palavras simples do dia a dia. Deve-se fugir das metáforas. O haicai “fotografa” o que se vê e sente, nos convidando
a descrever a vida diária de forma simples, mas com riqueza de sentimentos. O haicai, quando acompanhado de imagem, recebe o
nome de haiga. (LEMOS, 2013a: 10)
81
BIBLIOGRAFIA
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RESENHAS
Indefinições e descaminhos de um menino que não queria ser príncipe e
outras histórias encantadas
Meirilayne Ribeiro de Oliveira1
MARTINS, Georgina. O menino que não queria ser príncipe e outras histórias encantadas. Ilustração
de Laura Michell. Porto Alegre: Edelbra, 2012.
A obra O menino que não queria ser príncipe e outras histórias encantadas, de autoria de Georgina
Martins, ilustrada por Laura Michell, foi publicada em 2012, e em 2014 está em sua terceira reimpressão. Voltada para o público infantil e juvenil, já apresenta no título a proposta de ressignificação
dos papéis clássicos dos contos de fadas que norteia a construção da narrativa.
O livro é constituído por três contos, sendo que o segundo inclui o enredo do primeiro. Os três contos envolvem a luta do príncipe em prol da princesa, com a intermediação do rei. O que diferencia
cada conto é a motivação do pretenso príncipe e os desafios que enfrenta em sua jornada. Além
disso, em cada conto as personagens possuem características diferentes e que fogem do estereótipo
de superioridade dos membros da monarquia.
No primeiro conto, o rei, pai da princesa, propõe uma disputa entre seus três pretendentes da qual
seria vencedor quem trouxesse o presente que representasse o amor pela princesa. Cada candidato
vai por um caminho diferente e compra um presente mágico: um espelho que revela passado, presente e futuro, um par de botas que transporta em alta velocidade e uma flor que ressuscita pessoas. A reviravolta ocorre quando, por meio do espelho, os candidatos ficam sabendo que a princesa
morreu; daí eles chegam rapidamente no palácio, auxiliados pelo par de botas mágicas e, por fim,
trazem a princesa de volta à vida com o toque da flor. A decisão sobre o vendedor da disputa fica a
cargo do rei. Contudo, ele fica preso na dúvida para sempre.
Esse conto traz várias desconstruções do conto tradicional. O próprio enredo inverte a lógica de
garantia da felicidade eterna a partir do casamento, ao deixar no campo da indefinição, o objetivo
final de todo o percurso narrativo. Isso ocorre porque a narrativa é conduzida mais pelos questionamentos das personagens e pela indecisão do rei, do que pela astúcia dos príncipes e força do
destino. As diferenças não se restringem ao enredo e à caracterização das personagens, alcançando
também a linguagem e o foco narrativo.
O texto é construído de forma que o leitor tenha a sensação de estar ouvindo uma história contada
por um narrador que se coloca em primeira pessoa, com a liberdade de interromper a sequência
narrativa para expor sua opinião sobre as atitudes das personagens e até suas características. Para
exemplificar, em um trecho, justifica que não saberia definir as cores dos cabelos dos candidatos,
identificadas como “cor do sol”, “cor da noite” e “cor da madrugada”. Dessa forma, o leitor é chamado para refletir sobre o que está sendo narrado a todo o momento, tirando do texto o caráter de
verdade e abrindo espaço para dúvidas sobre a narrativa. Esse conto ainda apresenta aos leitores
1 Mestra em Letras e Linguística pela Universidade Federal de Goiás. Atualmente é Técnica em Assuntos Educacionais da Universidade Federal de Goiás, desenvolvendo assessoria pedagógica em EaD (CIAR/UFG) e no curso de licenciatura em Dança.
E-mail: [email protected]
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LEITURA EM REVISTA iiLer / Cátedra UNESCO de Leitura PUC-Rio n.7, fev., 2015
uma intertextualidade explícita, já que os presentes comprados pelos rapazes para oferecerem à
princesa remetem a outros contos bastante conhecidos e, ainda, especificamente, o narrador faz
referência à história do Pequeno Polegar para explicar as botas mágicas.
Assim como no primeiro conto, a narração do segundo inicia com a justificativa de que se trata
de uma história antiga que pode sofrer mudanças pelo fato de estar sendo recontada. O enredo
apresenta um príncipe que é amaldiçoado por uma mulher bem velha e pobre, após quebrar
seu jarro de água intencionalmente por três vezes. Como punição, o príncipe se apaixonaria pela
princesa silenciosa, filha de um rei cruel, que levava à morte todos os seus pretendentes que não
logravam êxito no desafio de fazê-la falar por três vezes. Mais a frente é revelado ao leitor que a
princesa também estava sob o julgo de uma maldição que seria quebrada apenas por um príncipe
que a amasse verdadeiramente.
No caminho para o palácio, o príncipe faz um ato de caridade e recebe de presente um pássaro
que será o seu mentor no encontro com a princesa. A estratégia usada foi contar histórias que
tinham finais indefinidos, gerando uma discussão entre o príncipe e o pássaro que fizesse a princesa sentir vontade de emitir sua opinião. O pássaro, aliás, fica escondido para dar a impressão
de que o príncipe tinha a capacidade de falar com seres inanimados. Esse ponto marca também a
constituição peculiar da verossimilhança narrativa, pois a magia está presente em elementos com
vida, soando como estranho o diálogo com seres inanimados. A estratégia alcança o objetivo e a
princesa fala por três vezes.
A primeira história contada pelo príncipe é o primeiro conto do livro, gerando uma relação de
intertextualidade dentro da própria obra. Outra relação que pode ser identificada é com os contos
das Mil e uma Noites, pois a estratégia de contar histórias e atrair a atenção da princesa é que
salva a vida do príncipe. No segundo conto da obra, o amor surge como uma punição ao príncipe
e o leva a colocar a própria vida em risco, mas com o objetivo de torná-lo uma pessoa melhor e
não de levá-lo à morte. Por isso, a mesma mulher que o amaldiçoa, transforma-se no pássaro que
auxilia o rapaz em sua jornada.
O terceiro conto é o que responde à maior curiosidade do leitor ao ler o título do livro. Essa é a
história de um garoto tão pobre que apenas a Morte interessou-se por se tornar sua madrinha.
Ela lhe concedeu o direito a três pedidos com a condição de que estivessem relacionados aos
seus sonhos. O garoto então pediu o poder de esticar e encolher o corpo o quanto precisasse, a
capacidade de equilibrar-se nas alturas e inteligência para decifrar enigmas. Quando adulto, essas
habilidades foram usadas para enfrentar o gigante que aprisionava a princesa. Novamente, a derrota significaria a perda da vida e havia três desafios a serem superados. A recompensa prometida
eram moedas de ouro e o casamento. Após vencer o gigante, o rapaz recusou a oferta da mão da
princesa justificando que seu sonho era tornar-se um artista de circo, o que explica os pedidos
feitos a sua madrinha.
Além dos outros elementos narrativos já mencionados sobre os dois primeiros contos, o último
apresenta o herói ressignificado pela individualização do sonho. Isso garante à personagem a possibilidade de escolher o próprio destino, a despeito da opinião social sobre qual seria a melhor alternativa. De outro lado, a felicidade não está condicionada ao casamento nem para a princesa, como
bem declara o narrador de que ela viveu feliz para sempre, sem registrar de forma depreciativa a
negativa do rapaz ao casamento.
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Ainda é preciso mencionar o diferencial da ilustração. Ela propicia uma representação menos vinculada à caracterização europeia, com personagens de pele muito branca. O destaque fica para a
representação da princesa do primeiro conto, com longos e volumosos cabelos encaracolados, pele
morena e lábios maiores.
Por fim, os três contos apresentam uma descaracterização das personagens do conto de fadas, proposta por um narrador que dialoga explicitamente com o leitor usando de uma linguagem que remete à história contada na oralidade. Esses elementos tornam a obra um exemplo significativo de uma
marca contemporânea da literatura infantil e juvenil que é o revisitar suas referências tradicionais,
numa perspectiva crítica, não no sentido de diminuir o valor, mas de dar-lhes uma nova interpretação, ou melhor, abrir a possibilidade de várias interpretações.
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Como uma carta de amor: a escrita encantatória de Marina Colasanti
Poliane Vieira Nogueira1
COLASANTI, Marina. Como uma carta de amor. 1a. ed. São Paulo: Global, 2014.
Os seres humanos precisam narrar. Não para se distrair, não como uma forma lúdica de relacionamento,
mas para alimentar e estruturar o espírito, assim como a comida alimenta e estrutura o corpo.
(Marina Colasanti)
Marina Colasanti é uma das mais reconhecidas escritoras do cenário atual da literatura infantil e
juvenil brasileira. Nasceu na Etiópia, no norte da África – hoje Eritréia – onde viveu os primeiros
anos de sua infância. Depois sua família retornou à Itália, país de origem, lá permanecendo até sua
até vinda para o Brasil, na pré- adolescência. Foram as experiências adquiridas nessas andanças
que fizeram de Colasanti uma escritora única, com um estilo próprio que diferencia seus escritos de
qualquer outra produção literária em nosso país. Nessas viagens, o livro sempre esteve presente,
companheiro inseparável que passou a substituir brinquedos e também a contribuir para a construção da sua relação de intimidade com os textos literários.
A escritora tem uma obra diversa e que trilha pelos múltiplos caminhos literários, como a poesia, o
conto, a crônica, a novela e a memória. Além disso, ainda se dedicou à tradução e à prosa jornalística. Mais crítica em sua obra para adultos, a autora busca uma linguagem mais poética e simbólica
nos temas destinados ao público infantil e juvenil. Entretanto, tais obras não prescindem de crivo
crítico, o qual está presente, mas de maneira sutil.
Como uma carta de amor é um livro de contos juvenis, lançado pela editora Global, de São Paulo.
Trata-se de uma obra formada por 13 contos de curta extensão, somando um volume de 79 páginas. Os textos de orelha e contracapa destacam o trabalho de criação de Colasanti como um gesto
de amor aos seus leitores de qualquer idade, como é enfatizado, bem como destacam o caráter
encantatório da escrita da autora e a expectativa de seus finais surpreendentes. As ilustrações dessa
primeira edição são da própria autora e apresentam um traço que ela mesma garante estar em consonância com seu estilo poético.
As narrativas, cujo foco central é a fantasia, são a marca registrada de Colasanti em sua produção
para os pequenos e jovens leitores. Como uma carta de amor – o mais recente livro juvenil de
Marina Colasanti –, lançado em 2014, não é diferente. Com uma linguagem densa e simbólica, ela
leva o leitor a um mundo que lembra os contos de fadas, ao mesclar valores culturais do passado a
temas contemporâneos – o que mais uma vez confirma o seu estilo único – os quais contribuem de
maneira efetiva na construção de suas personagens e que lhes garantem verossimilhança quando se
busca correspondência na personalidade humana. A trajetória da escritora entre o mundo europeu
e o brasileiro influencia nesse modo próprio de fazer literatura.
1 Mestre em Letras em Linguística, na área de estudos literários na Faculdade de Letras da Universidade Federal de Goiás e doutoranda
do Programa de Pós Graduação em Letras e Linguística da mesma instituição. Pesquisa literatura infantil e juvenil e formação do leitor.
Docente no Instituto Federal de Goiás, câmpus Anápolis. Membro da Rede Goiana de Pesquisa em Leitura e Ensino de Poesia.
E-mail: [email protected]
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Em toda a sua obra para crianças e jovens destacam-se temas que também se fazem presentes em
Como uma carta de amor, são eles: a condição feminina, a inveja, o egoísmo, a busca pela identidade, a solidão, a morte, as relações familiares e amorosas, bem como a impotência do ser humano
diante das imposições da vida. Do mesmo modo, é flagrante a construção imagética oriunda da tradição clássica dos contos de fadas que, comumente, aparecem em sua produção voltada para esse
público, destacando cenários europeus e ambientação medieval.
O conto que abre o livro é o que lhe serve de título. Como uma carta de amor narra a história de uma
mulher que caminha todos os dias até o penhasco a espera de seu amado. Ela olha o horizonte, seu
olhar atravessa o mar em busca de um navio vindo de terras distantes ou de algum grito entoando
seu nome. Todos os dias, ela joga um fio de seu longo cabelo ao mar para que as ondas o leve e o
entregue a seu amado, de modo que esse o receba como se fosse uma carta de amor. Um dia, ela
entrega ao mar um fio cintilante e o mar tem pena dela e junta fio a fio, formando uma linha que
cruzava o mar. Sem hesitar, ela descalça suas sandálias. De braços abertos, como uma equilibrista,
começa a percorrer o caminho que a levaria para onde deseja estar. Com a sutileza poética que lhe é
própria, Colasanti finaliza essa história de amor, deixando entrever a esperança de que essa mulher
reencontre seu amado ao atravessar o mar, se equilibrando nos fios de seu cabelo.
A narrativa seguinte, De algum ponto além da cordilheira, apresenta uma temática bem diferente da
primeira. O conto começa com uma indagação “há quanto tempo aquela cidade se preparava para
a chegada dos bárbaros? Não desde sempre. Mas quase”. Explica que por isso a cidade tinha altas
muralhas e sentinelas. Chega a notícia de que os bárbaros se aproximam, podiam vê-los de longe e
logo se armaram mais para a defesa. Mas os dias se passam e eles não chegam. Eles continuam acampados como se tivessem esquecido o que vieram fazer ali, mas se movem à frente vagarosamente,
tão devagar que parecem nem se mover. Na cidade, vira atração subir nos torrões para observá-los
com sua música, dança e alegria. Quando menos esperam, os bárbaros, com suas tendas, já estão ao
pé da muralha, sua música convida a abertura da cidade, nem armados eles parecem estar levando
os chefes militares a acreditar que são apenas nômades. Com a certeza de poderem realizar um bom
comércio, abre-se a porta da muralha, só assim percebem que os seus dentes eram pontiagudos
e recobertos de ferro. Mas já era tarde. Apesar de deixar o final em aberto, sem nos contar o que
acontece com a entrada dos bárbaros na cidade, o narrador do conto deixa a entender que não há
esperança de salvação para a população do lugar. O texto termina com uma tragédia anunciada.
O intrigante conto Estratégia, senhores apresenta as temáticas da inveja e da discórdia de forma
central, por meio do encontro entre um rei e a Peste. Assim que souberam da presença da Peste na
cidade, o povo em alvoroço, avisa ao rei, pedindo que fechasse as portas do reino, mas ao contrário,
o rei oferece à Peste um banquete em sua homenagem, alegando ao povo que se trata de estratégia.
Após o banquete, o rei faz à Peste uma proposta, que se trata de uma longa visita dela ao reino vizinho que era do seu inimigo e que se demore lá por muito tempo. A Peste agradece a hospitalidade e
o ouro prometido, mas avisa que acabou de chegar do reino vizinho, onde aceitou a mesma proposta, portanto sua visita nesse reino seria duradoura e seria inclusive nesse endereço que ela receberia
o ouro do outro rei. Neste instante, o comandante da guarda cai, vítima da peste que começa a se
espalhar. O conto finaliza apontando para um longo período de sofrimento para esse reino que verá
seu povo adoecer e morrer com a chegada da Peste que pretende permanecer por um longo tempo.
A perda e a morte são trabalhadas em O seixo debaixo da língua de modo sensível e poético. Morta
a esposa, o marido cata dois seixos no caminho que conduz a sua casa, guarda um e coloca o outro
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debaixo da língua dela para que levasse consigo o rumo daquilo que haviam construído juntos. Venda os olhos com um pano e parte. Buscava agora uma nova maneira de ver o mundo sem ela. Segue
primeiro tateando como um cego e surdo, uma vez que ouve apenas as próprias lamentações. Consegue avanços a cada dia, aos poucos não tateia mais, ouve mais o mundo e menos suas lamentações. Assim que aprende a ver/sentir o mundo sem os olhos, tira a venda. Escolhe um lugar, desenha
com o cajado a casa que construirá e começa a cavar o poço. Vive ali muitos anos bem. Um dia, ao
sentir-se mal, deita-se, tira o seixo do bolso e coloca-o, debaixo da língua. A sensível possibilidade do
reencontro com a amada dá a morte uma ponta de esperança, mas além disso, a resignação diante
da vida e a tentativa que o protagonista faz de reaprender a ver o mundo, leva o leitor à reflexão de
suas próprias perdas e das novas oportunidades que a vida acena, mesmo em momentos difíceis.
Em Tempo de Madureza, somos levados a um tempo em que um monarca de um reino pequeno
prepara com rigor a herança (o reino) de seu filho. O príncipe havia aprendido de tudo, menos a
viver. Sentindo que lhe falta algo, decide partir, levando apenas o cão como companhia. “A certeza e
o cão o acompanhavam durante um tempo. Depois, só o cão”. Apesar de ter conhecido muita coisa
(outros idiomas, o frio, a fome e o medo), ainda não tinha encontrado o que foi buscar e volta para o
palácio, mas não como príncipe, permanece maltrapilho do lado de fora do palácio, sem ter quem o
fizesse entrar. Um mordomo lhe traz sempre uma bandeja com comida e um servo traz a comida do
cachorro. Como ele sempre troca os pratos, logo a comida do cachorro começa a melhorar. Apenas
uma vez, o pai dele o convida a entrar, ele responde escrevendo no muro No tempo da madureza.
O cachorro, já velho, falece e o príncipe, após chorar sua perda, bate na porta do palácio, pedindo
para entrar. O tempo de “madureza” tinha chegado, ele precisa passar por esse rito de iniciação
para alcançar a maturidade, abandonando de fato a infância e alcançando a fase adulta para poder
governar o reino. A viagem metafísica em busca de autoconhecimento conduz o personagem a um
outro tempo, o da maturidade.
O intrigante conto Por querer, só por querer narra a história de um homem que, às vésperas de
partir, entrega a sua mulher um frasco de vidro, exigindo-lhe que o enchesse de lágrimas, durante
sua ausência, para provar sua saudade. Mas ela não só não consegue chorar por ocasião da partida
do marido, como não o faz nos dias que se seguem, nos quais se sente livre e passa, inclusive, a se
interessar pelo ferreiro que trabalha em frente a sua casa, com os braços à mostra. Mas se ela não
consegue chorar na partida do marido, não o faz nos dias que se seguem em que se sente livre, passa inclusive a se interessar pelo ferreiro que trabalha em frente a sua casa, com os braços a mostra.
Mas percebe que se aproximava a volta do marido, chama sua criada e com uma vara, começa a fustigá-la, arranca-lhe lágrimas e enche o frasco. Para impressionar mais o marido, ela obriga a criada
a encher mais um recipiente. Assim que ele volta se surpreende com os dois frascos, mas logo percebe que a alegria da mulher em revê-lo é bem aquém do volume de lágrimas nos frascos. Ela não
o serve mais e permanece na janela suspirando pelo ferreiro. Ele começa a deixar coisas esquecidas
para a criada recolher, bem como arrumar outras desculpas para ver aqueles lindos olhos de novo. A
fragilidade dos relacionamentos afetivos é apresentada nesse conto, problematizando o papel social
feminino na sociedade, de modo crítico e poético.
Fechando com chave de ouro a obra, Um rufar de negras asas apresenta um texto que permeia o
fantástico e o poético. A mulher, preocupada com a possibilidade da chegada da neve, vai buscar
ovo no galinheiro, mas encontra apenas um ovo grande de manchas azuladas no meio dos arbustos.
Bate de leve no ovo e um pássaro escuro aproveita para sair. Ela cuida dele até crescer e começar
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suas viagens, some por dias e volta com uma caça de presente. Um dia, um rufar de asas a leva até
a janela e lá ela encontra um bebê. Ela cuida da criança até que se torna um homem forte. Como o
pássaro, ele se vai, depois de muito tempo, retorna com uma ave, dizendo que veio trazer-lhe a sua
noiva, para que cuidasse dela e parte. Assim, ela o faz, até que não consegue mais e cai de cama. A
ave, noiva de seu filho, cuida dela, até sua morte. Sozinha, no silêncio da casa, ela a golpes de bico,
rasgou sua própria pele de penas, saindo de si uma mulher que se pôs a espera do noivo que já estava a caminho. O filho havia mandado sua noiva para cuidar de sua mãe e, não o contrário, como se
pensa no início do conto. A mulher foi recompensada por ser amorosa no momento em que necessitou, ela própria, de cuidado.
Podemos perceber que, bem diferente do “e foram felizes para sempre” dos contos tradicionais, Colasanti reinventa os finais de seus contos, coloca-os do avesso. Não há a obrigatoriedade dos finais
felizes, porque, na nossa vida, eles não se fazem tão comuns, trata-se de apresentar novos modos de
ser feliz ou a tragicidade da própria vida. Os finais em aberto, apenas sugeridos, marcam as narrativas
de Como uma carta de amor. Alguns contos deixam entrever uma esperança de acontecimentos positivos, como em Como uma carta de amor e O seixo debaixo da língua, em que o reencontro se acena
como possibilidade, apesar da incerteza, oferecendo ao leitor a oportunidade de participar do texto,
interagindo com seu final. Por outro lado, contos como De algum ponto além da cordilheira e Estratégia, senhores, por exemplo, não apresentam nenhuma solução para aqueles povos. Outros como
Tempo de Madureza e Por querer, só por querer, apontam possíveis mudanças, mas sem determiná-las como positivas ou negativas, apenas uma reconstrução da realidade das personagens.
O lirismo das narrativas de Como uma carta de amor, vão além do que seria uma obra destinada
a determinada faixa etária. Rotular determinados textos como infantis ou juvenis, marcam antes
um ponto de partida para a leitura que uma restrição por idade. No caso dos contos de Colasanti
isso é evidente, se tomarmos o adjetivo juvenil como inferior, como erroneamente vemos ser feito,
nenhum dos textos publicados nesse volume se encaixaria no rótulo.
Como uma carta de amor convida o leitor a adentrar no domínio da fantasia e se deliciar com a escrita encantatória de Marina Colasanti que, escolhendo os caminhos da metáfora, conduz o leitor por
temas densos e interessantes, enveredando pelas sendas do que há de mais humano.
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Escritos em verbal de ave nos desenhos líricos de Manoel de Barros
Rosidelma Pereira Fraga1
BARROS, Manoel de. Escritos em verbal de ave. São Paulo: Leya, 2011.
Poesia é um desenho verbal da inocência.
(Manoel de Barros, 2010: 461)
Escritos em verbal de ave, obra de Manoel de Barros (2011), publicada pelo Grupo Leya, vencedora
do Prêmio de poesia, pela Academia Brasileira de Letras, trata-se de uma folha aberta para os derramamentos de poesia em forma de ave como se o verso “poesia é voar fora da asa” soasse como um
pré-anúncio de uma obra que nasceria quinze anos depois de Livro sobre o nada (1996).
Esta mais recente obra de Manoel de Barros tem a forma livro-brinquedo2, similarmente a um casulo
abrindo as asas como borboletas na folha. E na abordagem artística do design e da palavra poética,
o poeta elege, mais uma vez, o personagem Bernardo para seu projeto de esmiuçamento, tendo em
vista que houve um tempo em que o poeta disse: “Meu desejo ou ideia fixa é esmiuçar a alma de
Bernardo e o melhor de mim sou ele” 3.
Após ter folheado as páginas de Livro de pré-coisas, O guardador de águas e Menino do mato, o
leitor mais assíduo da poesia manoelina, ao tocar os olhos deslumbrados em cada página colorida
de Escritos em verbal de ave, haverá de concordar que, finalmente, Bernardo passa da imanência à
transcendência depois de sua sepultura: “Deixamos Bernardo de manhã/em sua sepultura/De tarde
o deserto já estava em nós” (BARROS, 2011)4.
Nos derramamentos verbais de Escritos em verbal de ave, Bernardo marca seus escritos em murmúrios (sons de ave) na disseminação dos trinta e dois escritos poéticos alçando o voo das palavras
que, em relações homológicas, se assemelham aos desenhos. A escrita é representativa, icônica,
metafórica, sinestésica e plástica tratando-se, por exemplo, dos versos: “Desenho da voz/na areia/é
verbal de ave” (BARROS, 2011).
Em matéria de encurtamento de suas experiências e vivências com o rio, Bernardo era um guardador de águas. Nos verbais de sua morte, a voz é verbo, é força criadora, uma vez que ela professa a
comunicação entre o ser e a natureza até formar uma comunhão sagrada entre o homem e a poesia:
“Acho uma coisa/cândida/conversar com as águas” (BARROS, 2011). E na comunhão espiritual da
poesia, Bernardo, o dementário, o visionário de palavras e escritor de absurdez, transfigura-se como
a imagem de Narciso no espelho, pois Bernardo, agora sem sobrenome, conversa com as águas e
nela é refletido, tanto na poetização do discurso verbal de ave quanto na memória eterna do leitor.
1 Professora de Literatura na Universidade Estadual de Roraima. Boa Vista. RR. Doutora em Letras e Linguística, pela Universidade
Federal de Goiás. E-mail: [email protected]
2 Há quem considere Escritos em verbal de ave, pelo formato do livro e pela presença de um texto no outro, um hipertexto. Não cabe
nesta resenha discutir hipertextualidade, uma vez que não se insere nos seus objetivos.
3 Fala de Manoel exclusiva para a entrevista publicada na obra Convergências e tessituras: Manoel de Barros, João Cabral de Melo
Neto e Corsino Fortes (2010, p.215-225).
4 Sempre que os versos de Escritos em verbal de ave forem citados, a página não será enfatizada porque o livro não tem uma sequência lógica e linear e nem numeração. Ao ser aberto, várias páginas transformam-se em uma folha única.
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LEITURA EM REVISTA iiLer / Cátedra UNESCO de Leitura PUC-Rio n.7, fev., 2015
Barros já havia prenunciado que Bernardo, depois de virar árvore, entraria para o “Patrimônio da
Humanidade”. Posteriormente à morte do personagem, a memória dessa herança poética seria
guardada no acervo limitado aos quinze desobjetos, último poema de Escritos em verbal de ave, os
quais podem ser decifrados também em diálogo com Livro de pré-coisas, Cantigas por um passarinho à toa, O fazedor de amanhecer e outras obras em que Bernardo da Mata é personagem. Contudo, a convergência incide com mais vigor entre O guardador de águas e Escritos em verbal de ave.
Em Livro de pré-coisas, especificamente no poema No tempo de andarilho, Bernardo era imitado
pelos hippies. A pureza e a inocência na existência das coisas eram inatas à condição humana. Em
Escritos em verbal de ave, Bernardo metamorfoseia-se tão somente ave, em símbolo da natureza da
própria linguagem poética transfigurada ao nível da sensibilidade que o sujeito lírico manoelino lhe
confere: “Palavra abençoada/pela inocência/é ave” (BARROS, 2011).
As insignificâncias, o abandono e as coisas minerais (o chão, a terra, a pedra) constituíam a peculiaridade do andarilho Bernardo em Livro de pré-coisas: “Esse Bernardão é coisa indefinida./Igual
um caramujo irrigado./Anda na terra como quem desabrocha” (BARROS, 1985-2010: 241). Desse
aspecto telúrico emana a veia imagética do caramujo desabrochando em Livro de pré-coisas. Dir-se-ia, intratextualmente, que o poeta revisita a imagem do Bernardo nessa obra, ao poetizar o reino
mineral de Escritos em verbal de ave:
Vi uma lesma pregada
na existência
de uma pedra
[...]
Concha fechada
na beira do rio
só se abre no amanhecer
(BARROS, 2011, sem grifos no original).
OS PASSOS PARA A TRANSFIGURAÇÃO DE BERNARDO, subtítulo de poemas de O guardador de
águas (1989), foram poetizados em Escritos em verbal de ave por meio de versos breves parecidos
com noemas5, os quais, para o poeta, são “murmúrios recitados sobre a tarde”. Ao final de O guardador de águas, o leitor pode constatar que há um desenho, supostamente Bernardo voando, com
um poema de título ELE CONCLUIU O AMANHECER? Ambos são retomados ipsis litteris em Escritos
em verbal de Ave. Na capa final dessa última obra, há um epílogo-resposta para a explicação sobre
a transcendência do ser: “Deixamos Bernardo de manhã em sua sepultura/De tarde o deserto já
estava em nós”:
Fig. 1: Páginas múltiplas de Escritos em verbal de ave (2011).
5 (Plural de noema, do grego nóema, pensamento).
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LEITURA EM REVISTA iiLer / Cátedra UNESCO de Leitura PUC-Rio n.7, fev., 2015
Semioticamente, escrever em verbal de ave equivale à atitude poética do alto, ou seja, escrever em
forma de canto, apresentado pelo poeta como “murmúrios linguísticos”. Em outras palavras, escrever em verbal de ave representa a escrita poética de forma incompleta, por fragmentos: “Bernardo
tinha uma linguagem de canto e arrebol”. Para tanto, a poesia se traduz pela voz da natureza ou no
voo fora da asa que o poeta cantou em outros poemas.
Bernardo, em Escritos em verbal de ave ganha o voo e o canto de arrebol e seu desenho de O guardador de águas se repete para ficar diferente, uma vez que ele conclui o amanhecer nas oito páginas
abertas desse livro casulo. Ao redor do personagem aparecem os escritos poéticos como se fossem
chovidos das alturas:
Fig. 2- Escritos em verbal de ave (2011).
Escritos em verbal de ave estabelece um diálogo com O guardador de águas. O leitor contumaz de
Barros pode notar a recorrente revisitação extratextual. As duas obras interseccionam-se por meio
da reiteração e reescrita de versos de obras anteriores. A título de conversa poética, seguem os
pares em forma de varal de poesia:
1
Borboletas o adotam por Petúnias
(GA, 1989).
2
Privilégio do vento
semear
as borboletas
(EVA, 2011).
1
Formigas carregam suas latas
Devaneiam palavras
(GA, 1989).
2
Formigas
de bunda principal entram em casa
de fastos
(EVA, 2011).
1
Um rio esticado de ave o acompanha
(GA, 1989).
2
Os rios gostam
de entardecer
entre pássaros
(EVA, 2011).
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LEITURA EM REVISTA iiLer / Cátedra UNESCO de Leitura PUC-Rio n.7, fev., 2015
1
Bernardo “prende o silêncio com fivela”
(GA, 1989).
2
Bernardo guarda no acervo “presilha de prender silêncios”
(EVA, 2011).
1
No achamento do chão também foram descobertas as origens do voo
(GA, 1989).
2
Bernardo tem “um gosto elevado para o chão”
(EVA, 2011).
Se em O guardador de águas Bernardo se inventou e os passarinhos aveludaram seus cantos quando o viram, em Escritos em verbal de ave, o desejo de Bernardo foi pintado nas palavras finais de
sua morte: “Queria que um passarinho/escolhesse minha voz/para seus cantos FIM” (EVA, 2011).
Bernardo transfigurou-se e sua imagem permaneceu na consagração incomensurável do instante.
O leitor parece ser arrebatado pelo celestamento da poesia em formato de voz da natureza, instaurando a transcendência (vida após a morte). Bernardo era o “visionário nas origens da Terra” e a sua
natureza, como requer os escritos de ave, não era ver, mas sim transver. Por excelência, Bernardo
transcende na própria linguagem da poesia. Transver o universo do nada já era uma imagem preanunciada no Livro sobre nada: “o olho vê, a lembrança revê, a imaginação transvê. É preciso transver
o mundo” (BARROS, 1996: 75).
Os desenhos verbais ganham corpo e asas e parecem alçar o voo em Escritos em verbal de ave, onde se
tem um Bernardo na forma figurativa, significando passagem, libertação, liberdade e transcendência.
Além dessas características, a poesia derramada na obra aproxima muito da infância principiada nos
traços e na forma do desenho, bem como no desenho como representação do personagem Bernardo.
No desenho e no projeto de texto, Bernardo alça voos poéticos. A arte reside no design do livro que,
ao ser aberto, hipertextualmente, sugere um brinquedo em seu formato, na relação entre capa,
miolo e, sobretudo no desenho rodeado de fragmentos poéticos que assemelham a um varal de
poesia a ser contemplado no silêncio da imagem.
A leitura dessa obra não se restringe à leitura de texto e imagem. Efetivamente, ler significa contemplar
o formato da obra, bem como a relação entre capa e guardas de seu conteúdo. Escritos em verbal de
ave permite que o leitor faça escolhas das páginas para saborear o começo da leitura colhida nas asas
de ave ou a poesia derramada por Bernardo que transcende na metonímia de pássaro.
Portanto, pode-se asseverar que o projeto lírico de Barros na extensão de sua poética sempre foi
esmiuçar a alma de Bernardo até chegar ao ápice, ao transbordamento que o poeta consegue realizar em Escritos em verbal de ave. O desenho humano em forma de pássaro parece ser o mesmo
símbolo de poemas que remetem Bernardo transformado em rio esticado de ave.
Metamorfoseando-se em louco, o personagem desperta a sensação de ausência e abandono, ao ser
adotado pelas borboletas, como se fosse flor vermelha: “Borboletas o adotam por petúnias”. E ele
não é a imagem levada pelas águas. Bernardo é o guardador do rio. Ele não segue as águas e sim
conduz: “um rio estivado de aves o acompanha”. Bernardo dá a lição existencial de que o homem
não deve ser um barquinho de papel levado pelo rio. Ele ensina a conduzir o rio que há em cada ser.
Por isso, a sua natureza sempre foi transver, transfigurar, transformar, transcender e transbordar.
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LEITURA EM REVISTA iiLer / Cátedra UNESCO de Leitura PUC-Rio n.7, fev., 2015
Na tese de doutorado intitulada Recepção e convergência na obra de Manoel de Barros: poesia, ilustração e pintura, a autora desta resenha defendeu a transfiguração de Bernardo da Mata como um
encontro não somente da obra Escritos em verbal de ave com O guardador de águas, mas ainda a elevação do poeta que usa máscaras para representar as escritas de si. Manoel de Barros morreu no dia
12 de novembro de 2014 e sua obra representa a sua eternidade que parece ser derramada na imagem de Bernardo em estado de voo e liberdade (figura 1). Em estado de homenagem, a autora rompe
com as regras do gênero resenha e finaliza-o com um poema dedicado ao autor após a sua morte:
POEMA QUE BARROS ME ENVIOU DO CÉU
Saio de minha poesia desnuda de amor
e encontro com a alma do poeta
à meia-noite depois de um Sarau Grego.
Ele voou como araquã no entardecer
e o seu deserto amanhecido ficou em mim.
O poeta encontra um azul cheio de pássaros,
um anjo vestido de Bernardo
uma Musa excitadinha de poesia
e Eva abrindo o roupão do poema.
Quase no ápice das alturas,
o menino Manoel olha para trás,
deixa-me cair versos de ser criança
quando exercitava seu instante de Adeus.
Ei-los a devorar meu lirismo de Amor
ao receber o papel nas dobras do vento:
“Rosidelma, se poesia é voar fora da asa,
o amor que não apodreceu em mim,
aquele amor que pintei nos olhos de Stela,
dos andarilhos, dos pássaros e das crianças,
é esse amor sem pecados que reinará comigo.
O mesmo amor que colhi dos olhos de Bernardo
e derramarei aos homens que ainda
não aprenderam a amar as pequenas coisas.
E aqui, com meus cadernos de apontamentos,
dormirei nas mãos de Deus, com o lápis e o amor
ao som eterno de Jesus, alegria dos homens”.
(Minha homenagem ao eterno Manoel de Barros, um dia após a sua morte. ROSIDELMA FRAGA).
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RELATO DE EXPERIÊNCIA
PROFISSIONAL
Mediação de leitura: práticas de ensino
Reading mediation teaching practices
Lectura de las prácticas de enseñanza de mediación
Joana de Oliveira Ferreira Paiva1
Resumo
O presente relato apresenta a experiência de mediação de leitura desde 2004 até os dias atuais na Escola Letras de
Alfenim. Essa instituição de ensino da rede particular se situa na Cidade de Goiás, Patrimônio Histórico e Cultural da
Humanidade. Nesses dez anos, foi possível vivenciar com crianças, de 3 a 11 anos, um trabalho significativo a partir da
Pedagogia de Projetos, que é o modelo que fundamenta a prática da Escola, inclusive a formação de leitores literários.
Desse modo, a leitura na Escola Letras de Alfenim vai além das propostas didáticas de ler para aprender um conteúdo. O
processo de letramento vivenciado pelas crianças, velava a formação de um leitor que entende a leitura em suas várias
possibilidades, dentre elas, a de ler pelo deleite da fruição estética.
Palavras-chave: leitura literária, Escola Letras de Alfenim, mediadores.
Abstract
This report describes the reading mediation experience since 2004 to the present day in the School of Arts Alfenim. This
educational institution of private network is located in the City of Goiás, Historical and Cultural Heritage of Humanity.
These ten years, it was possible to experience with children from 3 to 11 years, significant work from the Project Pedagogy, which is the model that under lies the practice of the School, including the formation of literary readers. Thus,
reading the Schoolof Arts Alfenim goes beyond the educational proposals to read to learn content. The literacy process
experienced by children, watched over the formation of a reader who understands the reading in its various possibilities,
among them, reading the delight of aesthetic.
Keywords:literary reading, Alfenim School of Letters, mediators.
Resumen
Este informe describe la experiencia de la mediación de lectura desde el año 2004 hasta la actualidad en la Escuela de
Artes Alfenim. Esta institución educativa de la red privada se encuentra en la ciudad de Goiás, Patrimonio Histórico y
Cultural de la Humanidad. Estos diez años, fue posible experimentar con niños de 3 a 11 años, un importante trabajo
de la Pedagogía del proyecto, que es el modelo que subyace a la práctica de la escuela, incluyendo la formación de lectores literarios. Por lo tanto, la lectura de la Escuela de Artes Alfenim va más allá de las propuestas educativas de leer
para aprender el contenido. El proceso de alfabetización que sufren los niños, velaba por la formación de un lector que
entienda la leitura em sus diversas posibilidades, entre ellas, la lectura de la delicia de goce estético.
Palabras clave: lectura literaria, Escuela Alfenim de Letras, mediadores.
1 Professora da Escola Letras de Alfenim, graduada em Letras: Português/Inglês pela UEG - Unidade Universitária Cora
Coralina, com especialização em Psicopedagogia pela Faculdade Delta. E-mail: [email protected]
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LEITURA EM REVISTA iiLer / Cátedra UNESCO de Leitura PUC-Rio n.7, fev., 2015
Nos últimos dez anos, venho participando, na Escola Letras de Alfenim, de projetos que são únicos
no panorama educacional da Cidade de Goiás. A Escola Letras de Alfenim é uma escola da rede
particular de ensino, que atende crianças da Educação Infantil e da primeira fase do Ensino Fundamental. Está situada nesta cidade desde o ano de 1999. Uma de suas maiores prioridades é a formação de leitores literários. Assim, desde o Maternal, procuramos estimular as nossas crianças a lerem
textos literários, mesmo que ainda não o faça da forma convencional.
Desse modo, essas crianças vão entendendo o mundo que a circunda a partir das leituras socializadas pela mediação da professora. E, nesses anos de prática, foi possível abstrair que para a formação
literária acontecer de maneira significativa e global, os elementos envolvidos nessa aquisição de leitura – que são a Escola, os mediadores de leitura, os livros e os leitores – precisam estar em sintonia
e considerando a “unidade de ação entre as etapas educativas” como salienta Teresa Colomer em
seu livro Andar entre livros:
A leitura de livros cria um itinerário prolongado ao longo de toda a escolaridade obrigatória. Não se lê
livremente em umas séries e se aprende literatura em outras. Se se está consciente da continuidade da
aprendizagem, as séries se podem enlaçar de forma mais eficaz e os professores podem trabalhar em
equipe para ajudar a seus alunos durante esse período. (COLOMER, 2007: 10)
É nessa perspectiva que atuam os profissionais na Escola Letras de Alfenim, propondo o trabalho
com a literatura em todas as faixas etárias. Essa instituição acredita, também que, toda escola tem
por função abarcar no seu currículo, além dos conteúdos previstos nos parâmetros nacionais, projetos que atendam às necessidades da comunidade estudantil. Dessa maneira, acredita-se que a
criança encontrará sentido para o desenvolvimento das atividades. Nesta conjuntura, a escolha de
temáticas para serem trabalhadas é pensada juntamente com pais, professores, alunos e alunas. A
partir da temática abordada a cada ano são elencados, do mesmo modo, autores que serão contemplados nos Projetos de Leitura, seja nas leituras por prazer, no mapeamento de livros conduzidos
pelas professoras, ou nas leituras inseridas na sala de aula pela voz de familiares.
Assim, o acesso à literatura parte de estímulos e planejamentos, que objetivam a convivência das
crianças com o livro. Entendido, nesse contexto, como um objeto cultural, que contém histórias ou
poemas que cativam e seduzem as crianças, conforme está em Marta Morais da Costa (2007: 16). Nessa perspectiva, o que se propõe na prática pedagógica da Letras de Alfenim vai ao encontro das ideias
defendidas por Marta Morais da Costa: “[...]a literatura será entendida como aquela que se relaciona
direta e exclusivamente com a arte da palavra, com a estética e com o imaginário.”
O mediador de leitura assume aqui um papel fundamental no âmbito da aquisição da leitura literária
pela criança e, consequentemente, essa conquista leva a busca de respostas para o mistério que é
a vida humana através dessa arte. Afinal, como destaca Ana Maria de Miranda Marques Borges em
Leitura teorias e práticas: “Para Proust, o leitor é “livre” e “independente”, e seu objetivo não é o de
compreender o livro, mas o de compreender a si mesmo através do livro.” (BORGES, 2003: 23)
Pensando nessa liberdade que precisa ser dada ao leitor, mas também cientes de que para que ele
seja formado da maneira como idealizamos, é fundamental a mediação dos professores, desenvolvemos vários projetos interdisciplinares, entre eles, destacamos os projetos: Ler é uma aventura,
Cartografia literária e Ciranda de leitura.
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LEITURA EM REVISTA iiLer / Cátedra UNESCO de Leitura PUC-Rio n.7, fev., 2015
Ler é uma aventura
Este projeto abrange todas as turmas do Ensino Fundamental e se constitui como uma brincadeira
cênica após a leitura de um acervo de 40 a 50 títulos por semestre. Esse projeto abre espaço para
uma prática voltada, prioritariamente, para a leitura pelo prazer. Portanto, a mediação existe no
sentido de instigar as crianças utilizando-se de “[...]ingredientes que não pertencem aos estímulos
imediatos, mas que preparam a estrutura cognitiva desse mediado para ir além dos estímulos recebidos, transcendendo-os.”(SOUZA, 2004: 56). Desse modo, neste projeto utiliza-se de várias formas
de mediação, com o objetivo de fazer da leitura uma prática festiva e coletiva, proporcionando à
criança um bilhete de viagem para a aventura no mundo encantado dos livros.
Já vimos que nas escolas, muitas vezes, a leitura “custa caro”. Tem servido de pretexto para se estudar conteúdos curriculares, que vão desde a interpretação textual a gramática. Entretanto, destacamos que na Escola Letras de Alfenim a relação com a leitura é bem diferente, porque todos os
atores envolvidos na cena da aprendizagem procuram zelar do ser poético da criança, não deixando
que ele se perca na dureza da escola ou da vida. Neste espaço, o livro é a chave do imaginário, uma
extensão da fantasia inerente à criança. Abrir este espaço para a leitura pelo prazer é acreditar que
a escola pode e deve ser o lugar da alegria, pois o livro é uma casa que nos convida a sermos salvos
da solidão. Portanto, pretendemos que a escola e o livro possam ter a mesma territorialidade, a do
imaginário, levando em consideração o que ressalva Isabel Solé ao falar a professores: “Ler é muito
mais do que possuir um rico cabedal de estratégias e técnicas. Ler é sobretudo uma atividade voluntária e prazerosa, e quando ensinamos devemos levar isso em conta.” (SOLÉ, 1998: 90)
Esse processo de aprendizagem significativa muito depende da professora, que cuida para que os
livros sejam dispostos ao alcance das crianças, que podem ler no momento do pátio, ao término
das atividades e também poderão ser levados para casa. As crianças são incentivadas a manter um
diário de leitura ou fazer apontamentos sobre o livro que estiverem lendo, e, se desejarem, são estimuladas a criar questões de múltipla escolha daquele livro que mais lhe agradou, isso também com
a mediação da professora.
Durante o semestre as crianças são motivadas a fazer leituras coletivas, oportunizando a leitura em
voz alta. Dentre tantas estratégias que o mediador se utiliza estão a de promover momentos de
propaganda do livro lido; de desenvolver brincadeiras, onde as crianças possam se comunicar com
personagens de contos de fadas e outras histórias, escrevendo para eles ou sobre eles; de realizar
leituras compartilhadas em diferentes pontos da cidade, ou seja, criar espaços favoráveis à leitura;
de ler ou contar em pequenas doses; de transformar textos em teatro e utilizar-se dos poemas para
montar tertúlias e saraus.
Para a culminância desse projeto, acontece, como já mencionado, uma brincadeira cênica semelhante a um passa-repassa com as perguntas feitas pelas crianças com a mediação da professora.
Nessa brincadeira, as crianças ainda contam com suportes de ajuda como: a) ajuda dos colegas; b)
pular a questão se desejar; ou, ainda, c) pedir a ajuda das placas. Isso sem a exigência de resultados
específicos a serem testados em atividades extras. Com essa prática, buscamos fugir das tentações
pedagógicas, muitas vezes limitadoras do voo para a liberdade que deve ser a leitura e comprovamos que “A leitura não depende da organização do tempo social, ela é, como o amor, uma maneira
de ser.” (PENNAC, 2008: 119)
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LEITURA EM REVISTA iiLer / Cátedra UNESCO de Leitura PUC-Rio n.7, fev., 2015
Cartografia literária
Esse projeto consiste na leitura compartilhada entre alunas e alunos, a partir do 1º ano, com a
mediação das professoras que ajudam no mapeamento de um livro. Esse mapeamento envolve desde o projeto gráfico a noções básicas de teoria literária como gênero narrativo, intertextualidade,
tipologia de narrador, estilo utilizado pelo autor, que pode ou não ser confrontado com outros livros
do mesmo autor etc. Na leitura destes livros, três títulos escolhidos no início do ano, o mediador
exerce a função de leitor-guia. Ele propõe várias estratégias de leitura, que possam garantir a liberdade de interpretação das crianças, mas que também possam ter a sua leitura ampliada pela leitura
dos colegas. E, como uma das últimas etapas deste projeto, o mediador propõe o registro da leitura
seja por intermédio do texto escrito ou pela expressão plástica. Esse trabalho é realizado apenas
com a mediação do professor no ambiente escolar.
O mapeamento literário do livro em foco visa: contribuir para a formação de um leitor crítico e capaz
de se inscrever no texto lido podendo assumir o estatuto de coautor; oportunizar momentos de troca
de experiência entre os leitores iniciantes e o mediador como leitor iniciado; criar junto com as crianças
um protocolo de leitura que lhes dê subsídios para análises pertinentes das obras lidas sem, contudo,
perder de vista o prazer da leitura; chamar a atenção das crianças para aspectos da teoria literária como
questões de intertextualidade, paródia, paráfrase, questões de gênero que distinguem o poema do texto em prosa ou em alguns casos a prosa poética, entre outros aspectos. Esses conceitos, contudo, não
são cobrados como nomenclaturas isoladas. As informações recolhidas ao longo da leitura socializada
entre todos as crianças contribuirão para a competência do leitor, que aplicará tais conhecimentos em
outras leituras. Como em todo trabalho pedagógico, o envolvimento do professor incentivando, estimulando, mostrando paixão pelo trabalho é a principal estratégia para a garantia do sucesso. O desenvolvimento desse mapeamento pode ser melhor compreendido pelas seguintes etapas:
Leitura de entretenimento
Momento de descobertas empíricas, primeiras impressões de leitura. Troca de impressões livremente.
Leitura técnica
Momento de exploração do projeto gráfico do livro. Levantamento de aspectos que se
repetem em todos os livros como é o caso da ficha catalográfica com seus dados básicos;
e aspectos que variam de livro para livro, que envolvem a diagramação, a formatação, a
ilustração, nº de edição, entre outros aspectos;
Leitura contextualizada
Momento em que o professor buscará contextualizar o livro dentro do conjunto de experiências que estarão sendo vivenciadas pela turma. Descoberta da temática do livro. Tentativa de identificar momento histórico e espaço geográfico que podem ou não estar em
evidência na obra em estudo; ou que podem remeter ao contexto sociocultural do autor.
Leitura intertextual ou intratextual
Momento em que serão levantados outros textos de outros autores ou textos do mesmo autor que possam dialogar com a obra em estudo. Contrapor os dois ou mais textos
verificando suas convergências e divergências.
Registro das leituras que foram feitas, seja através da escrita ou da expressão plástica
como já citado.
100
LEITURA EM REVISTA iiLer / Cátedra UNESCO de Leitura PUC-Rio n.7, fev., 2015
Este deve ser o último dos momentos para que a capacidade de argumentação das crianças já tenha
sido alimentada e ampliada através das discussões estabelecidas durante as etapas anteriores.
Vale ressaltar que os livros elencados para este projeto, para a Ciranda de Leitura e alguns números
sugeridos para o Ler é uma aventura, são títulos de dois ou três escritores em que o foco de estudo
estará mais voltado para a sua vida e obras. Sendo que um deles é o homenageado do ano. E, sobre
este, constará um estudo mais direcionado de sua obra que servirá de subsídio para compor produtos finais como: a Agenda, o livro da Coleção Alfabetário, o Calendário, além de subsidiar, também,
as matérias do Jornal Letras de Alfenim. Nesta perspectiva, já foram contemplados: Monteiro Lobato, Manoel de Barros, Bartolomeu Campos de Queirós, Roseana Murray, Marilda Castanha, Cora
Coralina, Cecília Meireles entre outros.
Ciranda de leitura
O projeto Ciranda de leitura tem como objetivo exercer práticas de leitura afetiva ao trazer o pai, a
mãe ou outro familiar de uma criança para fazer a leitura de uma obra escolhida previamente pela
criança, juntamente com a família. Pois,
[...] se os pais podem ser associados à descoberta desse universo, conquistados pelo prazer de ler ou de
ouvir os outros lendo, e compartilhar suas próprias riquezas, especialmente narrando contos e lendas
que lhes foram transmitidas, seus filhos experimentam um sentimento de legitimidade e se sentem mais
autorizados a entrar na cultura escrita. (PETIT, 2009: 254)
Portanto, esta prática é direcionada especialmente para a Educação Infantil. Para o desenvolvimento desse projeto são adotados no início do ano dois títulos para cada criança, a escolha fica
a critério dos pais numa relação de 15 a 20 títulos sugeridos pela Escola. A partir daí o professor
será o mediador explorando inicialmente, com as crianças, algumas características da obra como
a apreciação do título, imagens, cores, texturas etc. Em seguida, a mediação será com os pais no
sentido de criar momentos favoráveis a prática de contação ou leitura, pelos pais, da obra escolhida. Cabe ao professor/mediador transformar tais situações em momentos inesquecíveis de contato
com a leitura literária. Com a parceria entre mediador e famílias, muitas vezes, a arte literária é traduzida juntamente com as crianças pelas artes plásticas, pintura, modelagem... ou até mesmo pela
arte da dança e do teatro.
Além desses projetos a leitura e a vocalização de poesias também fazem parte da prática pedagógica
da Escola Letras de Alfenim. Por conseguinte, nesta agência de letramento a poesia não é utilizada
como pretexto para trabalhar a gramática ou, simplesmente, outros aspectos de ordem estrutural
desse gênero textual. Diferentemente da maioria das escolas, existe na Letras de Alfenim uma relação de corpo e voz nesse processo de apreensão do texto poético por meio da vocalização. Assim:
Para o desenvolvimento de uma atividade que tenha por instrumento a vocalização de poesia, partimos da
distinção de dois papéis que os alunos podem assumir em sua relação com os poemas: o de vocalizador e
o de ouvinte. (CAMARGO & ROSA, 2012:19)
E é falando poemas e ouvindo a leitura de poemas pelos colegas, que as crianças da Letras de
Alfenim vêm desenvolvendo competências inerentes à interação com a literatura e com o meio
que a circunda.
Na culminância desse trabalho, os educandos e educandas têm a liberdade para compartilhar poemas de sua própria escolha, com o grupo de pais e amigos da Escola, de encenar saraus e até mesmo
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de brincar com os versos, parodiando-os e contemplando-os no dia – a dia na sala de aula, entre
uma atividade e outra.
A propósito, a leitura literária, inclusive a de poesia, faz parte do cotidiano dessa Escola que tem em
seus princípios pedagógicos os fundamentos da educação para a arte e a compreensão deque vivemos em uma sociedade em que a informação se desloca em uma velocidade recorde e que a criança
é o sujeito de sua própria formação.
Considerações finais
Seria natural relatar que, hoje, o acesso de crianças ao livro nas instituições escolares tem sido
maior, afinal há inúmeros programas que visam essa acessibilidade. No entanto, temos que ter clareza quanto à utilização desse veículo de comunicação que é o livro literário. Possuir uma estante
repleta de livros, nem sempre, pode ser garantia de que uma leitura literária está em curso. Portanto, cabe ao mediador um olhar que vai além dos suportes de livros e do volume de títulos. Para o
modelo de leitura que idealizamos, torna-se fundamental que os mediadores busquem estratégias
que favoreçam, inicialmente, a leitura descompromissada, de pura fruição. E, só depois, chamarmos
a atenção da criança para as demais funções sociais da leitura: “seguir instruções, obter uma informação precisa, revisar escrito próprio, aprender...”(SOLÉ, 1998: 93-96). Uma vez posto em curso,
esse processo, permitirá a esse educando encontrar sentido no que lhe compete em cada uma das
propostas de leitura.
Nesses anos de prática pedagógica em mediação de leitura literária foi possível partilhar com as crianças
o gosto pelos livros, considerando que, como salienta Teresa Colomer na obra Andar entre livros:
Uma aula onde se lê e se fala sobre livros é o centro de sua tarefa literária...
... A mediação deve existir porque a literatura é importante para os humanos, e os adultos são responsáveis por incorporá-la às novas gerações.
(...)
E sabemos que uma criança tem o dobro de possibilidades de ser leitor se vive essa experiência.
(COLOMER, 2007: 101, 104-105 ).
Permitir que a criança tenha contato com o livro literário, seja de forma direta, ou indireta, por meio
das contações de história e/ou vocalização de poesia, é a condição primeira para que se desperte
nelas o amor incondicional pelos livros. A criança chega ao livro mediada pela relação de respeito
e afeto que nutre pelo mediador-professor, mas depois de instaurado o “caso de amor” estaremos
contribuindo para o crescimento intelectual, cultural e social da mesma, partindo do pressuposto
de que o que objetivamos é formar cidadãos capazes de refletir, exteriorizar pensamentos e criar.
Dessa forma, com as crianças da Letras de Alfenim acontecem “viagens” constantes e que as levam
a viver aventuras surpreendentes com seres mitológicos, a conhecerem a realidade sociocultural de
diferentes povos e lugar em diferentes épocas. Tudo isso com o acesso que possuem ao livro. Assim,
pode-se dizer que a literatura é uma via de ascensão ao conhecimento que permite a criança refletir
sobre a realidade e melhor assimilá-la para vivê-la de forma mais humana. Esses apontamentos dialogam com o que nos revela Bartolomeu Campos de Queirós em sua obra literária e em seu trabalho
como educador. Para ele, há:
A necessidade premente de se promover através da educação valores mais humanos nas crianças, que
precisam deixar de ser consumidoras, repetidoras, e passarem a ser criadoras. (QUEIRÓS, 2008)
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LEITURA EM REVISTA iiLer / Cátedra UNESCO de Leitura PUC-Rio n.7, fev., 2015
A partir de cada etapa de desenvolvimento dos projetos de leitura supracitados acreditamos que
estamos oferecendo às crianças um tipo de conhecimento pautado em valores éticos, que visão
a cidadania e o respeito aos direitos humanos, e, entre eles, o direito a literatura. Esse modelo de
conhecimento só pode ser sistematizado com a sensibilidade do mediador que, por sua vez, desempenhou um papel fundamental considerando que “aprender e ensinar com sentido é aprender e
ensinar com um sonho na mente”. (GADOTTI, 2005: 11)
Com a certeza de que estamos procurando sempre os melhores caminhos é que partilho com os
demais mediadores de leitura a importância da sensibilidade e do gosto estético pela leitura literária
como estratégia fundamental para a reconstrução do mundo a partir do nosso ofício de educadores.
103
Referências bibliográficas
BORGES, Ana Maria de Miranda Marques. “O Convite do leitor implícito na prosa juvenil”. In: Leitura: Teorias e Práticas. Goiânia: Mamede, 2003.
CAMARGO, Goiandira Ortiz de. ROSA, Olliver Robson Mariano. “Vocalização de poesia: para uma
pedagogia do poema”. Relato de experiência. In: Olhares críticos sobre a Literatura na Prática Docente. Goiânia: América, 2012.
COLOMER, Teresa. Andar entre livros – a leitura literária na escola. Trad. Laura Sandroni. São Paulo:
Global, 2007.
COSTA, Marta Morais da. Metodologia do ensino da Literatura Infantil. Curitiba: IBPEX. 2007.
GADOTTI, Moacir. Boniteza de um sonho: Ensinar – e - aprender com sentido. Curitiba: Positivo,
2005.
PENNAC. Daniel. Como um romance. Tradução de Leny Werneck. São Paulo: Rocco, 2008.
PETIT, Michèle. A arte de ler: ou como resistir à adversidade. São Paulo: Ed. 34, 2009.
QUEIRÓS, Bartolomeu Campos de. A força poética de Bartolomeu Campos de Queirós. Publicação: 2008. http://jerusiaarruda.blogspot.com.br/2008/09/entrevista-bartolomeu-campos-de-queirs.html
SOLÉ, Isabel. Estratégias de leitura. Tradução de Claudia Schilling. Porto Alegre: Artmed, 1998.
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ENTREVISTA
Entrevista com Maria Zaira Turchi
A entrevista deste número da LER em Revista é com Maria Zaira Turchi, professora e pesquisadora da Faculdade de Letras da Universidade Federal de Goiás. A Prof.ª Maria Zaira Turchi tem sua
vida comprometida com a história da educação em Goiás. Nascida praticamente no meio acadêmico, filha de Dona Celenita Amaral Turchi, professora de italiano pioneira no curso de Letras da
Universidade Federal, e de Egídio Turchi, professor de Latim e, acima de tudo, leitor amoroso de
Dante Alighieri, especialmente da Divina Comédia, da qual sabia versos e mais versos de cor, a
Profa. Maria Zaira ajudou a consolidar a Faculdade de Letras como casa de ensino fundamental na
formação de educadores e pesquisadores, ocupou vários cargos administrativos de gestão acadêmica, com destaque para a coordenação do Programa de Pós-Graduação em Letras e Linguística
e de direção da Faculdade de Letras. Em 2011, a Prof.ª Maria Zaira foi convidada para presidir a
Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Goiás – FAPEG, sendo reconduzida para o segundo
mandato em janeiro de 2015. Tem feio um trabalho que é reconhecido pela comunidade acadêmica goiana e buscado com êxito apoio das agências nacionais para parcerias e financiamento
da pesquisa feita no estado, além de levar para centros nacionais e internacionais o que aqui é
realizado. Autora de diversos artigos e livros na área de Letras, com muitos trabalhos na área da
leitura, literatura infantil e juvenil, é também referência na pesquisa sobre poética do imaginário. Seu livro Literatura e antropologia do imaginário foi indicado em 2004 para o prêmio Jabuti.
Merece destaque também o livro Ferreira Gullar: a busca da poesia, que tem servido de base para
estudos sobre o poeta maranhense. A Prof.ª Maria Zaira Turchi tem muito a dizer sobre a pesquisa
e a educação em Goiás e é isso que queremos saber.
Ler em Revista: A Senhora e a Prof.ª Vera Tietzmann criaram nos anos de 1980 a cadeira de Literatura Infanto-Juvenil na Faculdade de Letras da Universidade Federal de Goiás. À época, foi um
fato ousado e digno de nota, considerando que nas universidades brasileiras não se dava a devida
atenção para a literatura feita para crianças e jovens. Poderia nos dizer sobre a intenção e o que
esperavam as duas professoras ao criar a disciplina?
Maria Zaira Turchi: Em 1985, a UFG implantou uma mudança curricular nos seus cursos de
graduação, que passaram a funcionar em regime seriado anual. A ampla discussão para a
escolha das disciplinas que deveriam compor os currículos do Curso de Letras levou em conta
as diferentes habilitações, definindo os conteúdos que pudessem dar mais solidez à formação
do profissional. Nesse sentido, a inclusão da literatura infantil e juvenil como disciplina obrigatória na Licenciatura em Português, e nas Licenciaturas duplas (Português/Inglês; Português/
Francês; Português/Espanhol) teve como argumento fundamental a importância, para o futuro professor, do conhecimento acerca de obras literárias para crianças e jovens e do domínio
de práticas de leitura adequadas à formação de jovens leitores – questão preponderante ainda
hoje na Educação Básica. Naquele momento, a produção literária para crianças e jovens já era
muito expressiva no Brasil, no caminho aberto por Monteiro Lobato havia um elenco significativo de escritores e autores brasileiros já consagrados, além de muitas traduções de obras
de escritores estrangeiros. Prof.ª Vera e eu tivemos realmente uma liderança nesse processo,
seja na defesa da importância da literatura infantil e juvenil ser uma disciplina obrigatória nos
cursos de Letras voltados para a formação do professor, seja na implantação e consolidação
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dos estudos e pesquisas nesse campo na UFG. Com a inclusão da disciplina nos currículos dos
cursos de Licenciatura em Letras, o então Departamento de Letras organizou um Curso de
Especialização em Leitura e Literatura Infantil e Juvenil ministrado nos seus vários módulos
por professores, pesquisadores, grandes especialistas brasileiros nessa área. Alguns desses
professores estabeleceram conosco relações de parcerias e de amizade que abriram caminho
para vários outros projetos importantes para Goiás, não só para a UFG. A professora Eliana
Yunes, por exemplo, após ministrar a disciplina no Curso de Especialização abriu-nos a possibilidade de representar a FNLIJ no estado, depois envolveu-nos no PROLER e em muitas outras
interlocuções que contribuíram fortemente para que pudéssemos consolidar essa área em
Goiás. Além disso, Vera Tietzmann e eu fomos responsáveis pela concepção do projeto e coordenação dos Simpósios de Literatura Infantil e Juvenil, que ocorreram ao longo de dez anos
de 1989 a 1998. Esses Simpósios, sempre muito concorridos, trouxeram a Goiânia escritores e
ilustradores renomados e premiados que se tornaram muito conhecidos do público composto,
sobretudo, de professores e alunos dos cursos de Letras, de Pedagogia, de Biblioteconomia,
que se tornaram leitores de suas obras e multiplicadores, formando outros leitores. Acredito
que os objetivos previstos ao instituir a Literatura Infantil e Juvenil como disciplina obrigatória
nos Cursos de Letras foram alcançados, contribuindo para a formação de professores mais
bem qualificados para o trabalho com a leitura; para a divulgação da literatura para crianças e
jovens produzida no Brasil e no mundo; para a formação de leitores; para a valorização dessa
área do conhecimento no âmbito do ensino, da pesquisa e da extensão na universidade.
Ler em Revista: O que mudou daquele momento para hoje no ensino da Literatura Infantil e Juvenil? Bons frutos foram colhidos?
MZT: Com a inclusão da disciplina no currículo da graduação em Letras, os alunos em contato
com as obras e com os autores e ilustradores, que conheceram em vários Simpósios, incluíram a leitura literária nas atividades acadêmicas. Como professores também abarcaram nas
suas aulas o trabalho com a leitura da literatura infantil e juvenil e passaram a se interessar
pela pesquisa nesse campo do conhecimento. Há muitos resultados positivos que podem ser
contabilizados nos vários produtos, programas e projetos que foram disseminados nas várias
instituições de ensino em Goiás, em todos os níveis e modalidades. Ocorreram seminários voltados para a promoção da leitura e da literatura infantil e juvenil, para os quais os escritores e
ilustradores foram convidados, multiplicando as oportunidades de conhecimento de autores
e obras da literatura infantil e juvenil no interior do estado. Como havia na Letras da UFG um
trabalho consistente nessa área, pudemos participar do movimento nacional, muito efervescente, de promoção da leitura e de divulgação da literatura infantil e juvenil, no qual a FNLIJ
teve papel relevante, sobretudo na avaliação e seleção da produção brasileira a partir dos
prêmios instituídos. Da mesma forma a Biblioteca Nacional com o PROLER promoveu ações de
leitura em todos os estados brasileiros, tendo sido realmente o maior programa brasileiro de
incentivo à leitura cujo foco principal foi a formação de leitores. O PROLER da Cidade de Goiás
teve um papel extremamente relevante e continua dando frutos e disseminando o gosto pela
leitura literária em toda a região. Além disso, nos inserimos em grupos nacionais e internacionais de pesquisa voltados para o estudo da literatura infantil e juvenil. Assim os estudos na
graduação, despertando o interesse dos alunos, produziram dissertações de mestrado e teses
de doutorado, além da publicação de livros e artigos que constituem referências bibliográficas
importantes para a pesquisa nessa área. A ênfase nos estudos e pesquisas nessa área levou ao
avanço conceitual e teórico do que é a qualidade literária no livro para crianças e jovens e da
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importância do papel da crítica literária da literatura infantil e juvenil em avaliar a produção
brasileira e mundial; em sugerir o que ler e de que modo; em estabelecer confrontos entre
literaturas e culturas; em construir e fixar conceitos teóricos acerca do universo da literatura
para crianças e jovens, em reconhecer a importância da ilustração e do projeto gráfico na obra
de arte literária infantil e juvenil. Há atualmente, à disposição de estudiosos e de professores,
uma bibliografia consistente sobre o tema.
Esses cerca de vinte anos de experiências exitosas em Goiás no âmbito da difusão da literatura
infantil e juvenil e da promoção da leitura foram decisivos nos avanços positivos na formação
de leitores. No contexto de Goiás, é importante destacar os Programas “Cantinho de Leitura” e
“Biblioteca Escolar”, de responsabilidade da Secretaria Estadual de Educação que tiveram uma
capilaridade e uma repercussão enorme por conseguir dotar todas as escolas da rede pública
com um grande número de livros de alta qualidade literária e por capacitar os professores
e demais envolvidos no processo de formação de leitores para o trabalho com a leitura. No
âmbito da educação, as ações institucionais e as políticas públicas precisam, no entanto, ter
continuidade para que as conquistas sejam consolidadas em resultados permanentes.
Ler em Revista: De acordo com a sua experiência, qual a importância da Literatura Infantil e Juvenil na formação de leitores? Ela seria o começo dessa formação?
MZT: Com a inserção dos estudos, da pesquisa e da extensão no campo da literatura infantil
e juvenil na graduação e na pós-graduação na UFG e com os desdobramentos dessas ações,
foi possível acompanhar o desenvolvimento de projetos que comprovam a importância da
leitura de obras literárias na formação de leitores. Os projetos de contação de histórias proliferaram, mostrando a importância de resgatar o prazer de ouvir histórias como porta de
entrada, sobretudo para a criança, para despertar o gosto pela leitura e o interesse pelo livro
literário. É preciso destacar que a contação de histórias e a leitura dramática de obras literárias
mostraram-se atraentes também para os adultos, motivando professores, bibliotecários entre
outros profissionais. Esse foi um movimento importante que estimulou, em todo o país, o surgimento de grupos de contadores de história, trazendo uma dinâmica nova para os ambientes
de leitura. Quanto mais cedo o contato com os livros literários mais chances uma criança tem
de se tornar um adulto leitor com capacidade crítica e estética de compreensão do mundo e
da arte. Pudemos verificar também o contrário, adultos que não tiveram a oportunidade de
convívio com o livro literário na infância, pela leitura dos livros infantis, descobriam esse prazer
e tornavam-se leitores. Em vários cursos de formação de professores, conseguimos perceber
como os adultos se apaixonavam pelos livros de literatura infantil e juvenil e tornavam-se leitores críticos e multiplicadores. Escritores e ilustradores tornaram-se conhecidos das crianças e
dos adultos que passaram a acompanhar as obras desses autores a cada nova publicação. Sem
dúvida, o contato com os livros e especialmente com os livros literários e a inclusão de práticas
leitoras no cotidiano familiar e no contexto escolar são decisivos na formação de leitores.
Ler em Revista: A Senhora prefaciou, resenhou e fez críticas sobre livros de literatura para crianças
e jovens publicados no Estado de Goiás, contribuindo muito para o surgimento de escritores e
poetas que escrevem para esse segmento. Poderia nos contar um pouco sobre a Literatura Infantil
e Juvenil em Goiás, como está hoje?
MZT: A escritora Marietta Telles Machado, na década de 70, exerce um pioneirismo em Goiás
na produção para crianças e jovens e, como bibliotecária, na defesa da importância da formação do jovem leitor. Outros escritores já reconhecidos como romancistas, poetas, fazem incur108
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sões na literatura infantil e juvenil como é o caso de Miguel Jorge, Bariani Ortêncio, Augusta Faro.
Mas não se pode dizer que haja um conjunto de escritores que produzem em Goiás, de modo
regular e consistente, obras de literatura infantil e juvenil. Atualmente, começam a despontar
jovens escritores e ilustradores que puderam se beneficiar desse movimento de promoção da
literatura infantil e juvenil e de formação de mediadores a partir da introdução da disciplina na
graduação na UFG, dos estudos de pós-graduação e dos programas e projetos de incentivo à
leitura. Santiago Régis, por exemplo, que já coleciona um número significativo de livros ilustrados de literatura infantil, possui um trabalho de alta qualidade estética, revelado ainda quando
aluno da Faculdade de Artes Plástica na UFG, cursando a disciplina de Literatura Infantil com a
Prof. Vera Tietzmann na Letras. Escritores como Sueli de Regino, Diane Valdez, Valéria Belém,
Newton Murce, Sônia dos Santos, Alexandre Costa entre outros vão despontando no cenário da
produção feita em Goiás de Literatura Infantil e Juvenil. Muitos desses autores atuaram primeiro
como professores, como formadores de leitores, contadores de histórias e, posteriormente, vêm
se dedicando à produção literária. Vale ressaltar que essa geração de escritores parece compreender bem a importância da ilustração e do projeto gráfico como parte integrante e fundamental
da obra de literatura infantil e juvenil. Nesse sentido, as editoras têm se preocupado em colocar
no mercado uma produção bem acabada e de qualidade estética e literária.
Ler em Revista: Muito se fala e publica que o brasileiro não lê. A pesquisa Retratos da Leitura no
Brasil, divulgada em 2012, registra que a média de livros lidos pelos brasileiros é de 1,85. Como
você vê essa realidade no Estado de Goiás?
MZT: Em palestra realizada no início de 2014 na UFG, no Colóquio de Letras, o professor João
Luis Ceccantini apresentou dados numéricos editoriais de venda de livros literários no Brasil que,
de certa forma, desmontam a ideia já tornada senso comum de que o brasileiro não lê. Acredito que sejam necessárias pesquisas mais aprofundadas que cruzem esses dados editoriais com
outras informações para qualificar melhor esse cenário da leitura no Brasil. Na França, alguns
anos atrás, foi publicado um livro, intitulado, Et pourtant ils lisent, resultado de uma pesquisa
que mostrava que os jovens franceses liam, mas não necessariamente os livros literários indicados na escola, tampouco as obras canônicas. Certamente, não podemos afirmar que a média
de livros lidos pelos brasileiros, conforme apresenta a pesquisa Retratos da Leitura no Brasil,
seja satisfatória ou permita um quadro animador da situação da leitura no Brasil. Essa questão,
no contexto escolar, fica ainda mais grave quando vemos os resultados do ENEM mostrarem
que um número muito alto de jovens obtiveram zero na redação porque não se dispuseram a
escrever nada, ou não foram capazes. São muitas as questões que precisam ser aprofundadas
no processo de aprendizagem da leitura e de escrita que estão na base da formação escolar e
na experiência familiar e social da criança e do jovem, na busca de resultados mais satisfatórios
em todo o país. Embora não tenha conhecimento de uma pesquisa que nos permita retratar a
situação em Goiás acredito que esteja alinhada com o cenário nacional em relação à média de
livros lidos, do interesse por frequentar bibliotecas e livrarias, interesse pela leitura em geral.
Ler em Revista: Mediação de leitura está na ordem do dia. A família, a escola e outros agentes são
responsáveis para fazer o livro chegar às mãos do leitor e, principalmente, conduzi-lo ao acesso
com qualidade e com gosto. Como a Senhora vê esses agentes no processo de formação de leitor?
MZT: Esses agentes são todos fundamentais para fazer o livro chegar às mãos dos leitores.
Para a criança, o contato com o livro na primeira infância e a oportunidade do prazer de ouvir
histórias são decisivos no gosto pela leitura na vida adulta. Como isso nem sempre a criança
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tem essa oportunidade, a escola tem o papel preponderante de compensar essa falta e oferecer para a criança, o mais cedo possível, desde a creche, essa experiência do livro e da leitura.
Para isso, é preciso continuar investindo na formação de professores capacitados para atuar
com a literatura infantil e juvenil e a leitura, em capacitação de mediadores de leitura, e em
programas de promoção do livro e da leitura.
Ler em Revista: Por que os jovens enfrentam 500 páginas de um livro como Harry Potter e não
tem a mesma empolgação na leitura de um romance menos extenso como A hora da estrela, de
Clarice Lispector, ou outros de nosso cânone?
MZT: Sobre obras como Harry Potter e outras também muito extensas que caíram no gosto dos
jovens, não podemos ignorar que houve uma publicidade enorme em torno delas, gerando
um verdadeiro fenômeno que as colocou como campeãs de vendas, best sellers durante anos
e para gerações diferentes. No entanto, não podemos também desconsiderar que foram lidas
efetivamente, nas suas mais de 500 páginas, por esses milhões de jovens em todo o mundo.
Ha estudos muito interessantes que mostram como Harry Potter conseguiu, com elementos
de imaginário tradicional, movimentar o imaginário desses jovens atrai-los para as aventuras
e mistérios da narrativa que consegue prender mesmo um leitor adulto e experiente. A obra
Além da plataforma nove e meia: pensando o fenômeno Harry Potter, organizada por Sissa
Jocoby e Miguel Rettenmaier, com artigos de autoridades nessa área, mostra que os livros de
Rowling lidam com as grandes desafios que o ser humano tem que enfrentar, encontrando
forças dentro de si mesmo para vencer. Como afirma Vera Aguiar, a coleção funciona como
espécie de conto de fadas moderno, para o qual os problemas existem, mas podem ser resolvidos pelo herói. No capítulo “Leitores de Harry Potter: do negócio à negociação da leitura”,
João Luis Ceccantini faz uma reflexão muito interessante sobre esse fenômeno de massa e seu
papel na negociação para seduzir leitores, uma vez que o grande desafio é formar leitores críticos e sensíveis capazes de múltiplas leituras e fruições literárias e artísticas.
Ler em Revista: A realidade de nossas escolas é difícil na área da leitura: não se tem livros “a mão
cheia, como queria Castro Alves, e nossos educadores, em geral, parecem não acreditar tanto que
uma “pátria se faz com homens e livros”, como ensinou Lobato. O que afasta a escola dos livros?
MZT: Despertar o gosto pela leitura requer um intercâmbio constante entre texto e leitor e
envolve um trabalho ativo de compreensão e interpretação do texto – seja ele verbal ou não
verbal – a partir dos objetivos do leitor, do seu conhecimento sobre o assunto, de suas experiências pessoais, de seu conhecimento da linguagem. No entanto, nem sempre as instituições
de ensino conseguem conferir à leitura o lugar de prazer e desejo, mas fazem da leitura um ato
enfadonho e sem grande significação.
Ler em Revista: Pensando no mediador, na sua opinião, o nosso professor tem dificuldades de ser leitor?
MZT: Sim, nem sempre o professor, que tem o papel fundamental no incentivo à leitura, é
um leitor. Se o professor não é leitor ele não consegue convencer os alunos de que a leitura é
prazer e revelação. Tudo fica artificial, burocrático, e qualquer imperativo, como mostra Daniel
Pennac, não consegue levar ninguém a amar a leitura e a considerá-la parte integrante da sua
vida. Daí a razão de Programas como “Cantinho de Leitura” e “Biblioteca Escolar”, da Secretaria de Educação de Goiás, terem investido tanto na formação dos professores e dos mediadores de leitura. Mas esse processo deve ser continuo e permanente, para criar um processo de
repercussão e ampliação.
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Ler em Revista: Atualmente, a Senhora ocupa a Presidência da Fundação de Amparo à Pesquisa do
Estado de Goiás – FAPEG. E nesses últimos quatro anos têm alargado o horizonte da pesquisa em
Goiás por meio de editais de apoio a projetos coletivos e individuais em várias áreas. A pesquisa
em Goiás vai bem?
MZT: A pesquisa científica, tecnológica e de inovação vem crescendo significativamente em
Goiás por vários motivos: fortalecimento das Instituições de Ensino Superior; crescimento do
número de doutores nas universidades; ampliação dos Programas de Pós-Graduação – Mestrado e Doutorado; formação de grupos de pesquisa nas várias áreas do conhecimento; aprofundamento da interlocução entre a academia e o setor empresarial, e sobretudo incentivada
pela regularidade e garantia do financiamento da pesquisa e a concessão de bolsas por parte
da FAPEG. A Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Goiás, nos últimos 4 anos, consolidou a sua atuação no fomento à pesquisa em vários editais e na concessão de bolsas em várias
modalidades. Estabeleceu parceria e convênios com agências nacionais de pesquisa, como
CNPq, Capes, Finep, o que permitiu ampliar os recursos da vinculação estadual prevista para o
financiamento da pesquisa científica.
Ler em Revista: Como está a procura por apoio da FAPEG por parte dos pesquisadores da área da
leitura e do ensino de literatura? A Senhora poderia nos dar uma perspectiva sobre esse cenário atual?
MZT: A grande área de Letras, Linguística e Artes, em relação às demais áreas do conhecimento, é a que apresenta a menor demanda. Certamente também é a que envolve um número
mais reduzido de cursos e programas de pós-graduação, considerando a grande subdivisão
de outras áreas. Embora tímida, há demanda qualificada com projetos voltados para leitura
e ensino de literatura que recebem financiamento da FAPEG. Há ainda projetos contemplados com bolsas de pós-doutorado, bolsas de fixação de doutores nas instituições de ensino
superior sediadas em Goiás, em parceria com a Capes, e bolsas de Desenvolvimento Científico
Regional, em parceria com o CNPq, que contribuem para o avanço dos estudos na área da leitura e do ensino da literatura em Goiás.
Ler em Revista: Para finalizar, o que a Senhora teria a dizer para escritores de Literatura Infantil e
Juvenil e para os pesquisadores da área de leitura e ensino de literatura?
MZT: Para escritores de literatura infantil e juvenil e pesquisadores dessa área vale lembrar a
importância que esse sistema literário alcançou no Brasil e no mundo, escrever para crianças
e jovens não significa uma literatura menor, mas significa uma literatura que incorpora várias
linguagens e atravessa múltiplas fronteiras, construindo pontes de comunicação entre universos distintos. O grande debate da crítica da literatura foi o da qualidade literária que permitiu o
estabelecimento da instituição literária. Reconhecida no seu estatuto de arte, a literatura infantil
e juvenil tornou-se objeto de investigação científica e de crítica acadêmica. Outra questão a ser
considerada são os laços estreitos entre a função educativa e a literatura infantil e juvenil. A
literatura infantil e juvenil tem um papel fundamental na formação de leitores e pode ser reconhecida na sua dimensão ética e no seu poder de humanização e de formação. De nada adianta
uma produção de qualidade, muitos livros publicados, sem que haja leitores para esses livros. A
literatura infantil e juvenil é um fenômeno cultural mais amplo que exige também uma pesquisa
multidisciplinar capaz de incorporar a tradição folclórica e a pós-modernidade, a ilustração e os
meios de comunicação de massa, o imaginário coletivo, ou a recepção individual, o tempo real e
o tempo virtual, a organização de bibliotecas e a formação de leitores.
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