do PDF - Casa – Lucila Vilela

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do PDF - Casa – Lucila Vilela
Lucila Vilela
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Quando abro a cada manhã a janela do meu quarto
É como se abrisse o mesmo livro
Numa página nova…
Mario Quintana
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PERFORMERS
Bailarina da cozinha: Bia Vilela
Bailarina do quarto: Diana Gilardenghi
Músico da cozinha: Diogo de Haro
Atriz e Cantora da lavanderia: Barbara Biscaro
Ator do jardim: Robison Soletti
Telefone: Euza Vilela
Website: www.casalucilavilela.com.br
Agradecimento Especial: Luis Gustavo Meneghim, Ilca Soares e
Carlos Franzoi
Agradecimentos: Cecília Vilela, Ernani Vilela, Euza Vilela, André
Vilela, Aline Essen, Regina Essen, Nelson Essen, Cláudio Trindade,
Antonieta Acosta, Luiza Meneghim, Luiz Roberto Soletti, Rosvita
Soletti, Alceu Bett, Andréia de Oliveira, Ildo Francisco Golfetto, Sabrina
Brehsan, Gustavo Fonseca, Sansara Buriti, Carol Grilo, Ivan Jerônimo,
Rafael Zunino, Claudio Gadotti, João Mario Monje Filho, Eduardo
Jorge, Josimar Ferreira, Nadja Lamas, Daniele Zacarão, Eduardo
Baumann, Rubens e Neiva, Toca do Vinil, Jean Carlos Martins, Brechó
das Antiguidades, Rancho das Pizzas, Pousada Schulz, Maureen Bartz
Szymczak, Loreena, Cainã, Moara e todos da equipe.
PROJETO CASA
JOINVILLE 2014
EQUIPE
Artista Visual / Concepção Geral: Lucila Vilela
Produção Geral: Crica Gadotti
Coordenador de montagem: Robison Soletti
Assistente de montagem: Carlos Velazquez
Planta baixa e concepção de luz: Marcelo Schroeder
Parceria técnica nos vídeo-objetos: Giorgio Filomeno
Projeto Gráfico: Zé Antonio Lacerda
Fotografia: Cristiano Prim
Filmagem e vídeos: Alan Langdon
Assistente de filmagem: Yasser Socarrás González
Câmera Super 8: José Manuel Sappino
Assessoria de imprensa: Néri Pedroso e Paloma Brum (assistente
de comunicação)
Figurinista da performance do jardim: Ivi Carvalho
Assistente de produção executiva: Leo Romão
Faxineira: Ivonete Marciano
Pedreiro: Hilário Berri
Eletricista: Luiz Roberto Soletti
Dona da casa: Ilca Soares
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Escritório
Banheiro 2
Lavanderia
Copa & Cozinha
Quarto 2
Banheiro 1
Sala
Quarto 1
Jardim
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Entrando na casa
Numa noite de outubro, as portas se abrem e
a chave não tem segredo. Quem visita sabe:
tem coisa que não se sabe bem. A casa está
arrumada, habitada por sons e aromas. A intimidade se encontra em cada canto, em gestos que desorganizam os afazeres. O trabalho de casa é quase sempre intenso e imperceptível, faz e desfaz em frações de segundo,
cabe lá um sopro de silêncio e dança.
Este catálogo apresenta o registro da segunda versão do Projeto CASA, de Lucila Vilela,
realizado na cidade de Joinville, Santa Catarina, em 2014. Sua primeira versão foi realizada
em Florianópolis, em 2010, e ambas edições
foram premiadas na categoria Artes Visuais
do Edital Elisabete Anderle de Estímulo à Cultura, da Fundação Catarinense de Cultura.
Para entrar, vire a página.
Para que uma casa funcione há muito a ser
feito. Com essa não foi diferente. Trazer a
casa ao campo da arte - ou o inverso - requer muito labor, processo amplo, coletivo
e contínuo, cujos vestígios escondem-se
por detrás dos buracos de fechadura.
CASA tem uma espinha dorsal, um esqueleto comum em sua concepção, no entanto, o que a envolve é diferente em cada lugar. Mudar de endereço a transforma em
outra. O deslocamento interfere na montagem estabelecendo uma experiência singular. Assim, toda CASA é única.
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Sala
TAPETE RODRIGO DE HARO: feito por Cecília
Vilela. É uma reprodução de uma pintura de Rodrigo de Haro encontrada em um recorte de jornal.
TELEFONE: o telefone toca e a Tia Euza, de São
Paulo, conversa com quem atender.
TELEVISÃO: a televisão dos anos 70 passa imagens distorcidas.
VINIL: os discos da Toca do Vinil podem ser tocados na vitrola em qualquer momento.
JOGO: peças do Jogo do Engenheiro são dispostas na mesa de centro.
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A CASA escondida
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Pistas para um olhar desavisado
por Barbara Biscaro
A CASA está aberta, em pleno funcionamento. As pessoas entram, circulam, bisbilhotam, estranham, habitam. A experiência
do visitante não passa somente pelo olhar
– Ele senta, levanta, ouve, sente o cheiro da
comida, fuma um cigarro, fala, lê um livro,
dança um bolero. E também é olhado, seja
pelos performers, seja pelos outros visitantes. O exercício da CASA é um exercício que
envolve tempo, porque ela se faz, desfaz e
refaz ao longo de sua duração - uma hora
você encontra um cômodo intacto, desabitado; dali a algum tempo, ele pode estar irreconhecível, caótico e pulsando com a presença de alguém que parecia estar escondido em algum canto ainda não visitado.
A profusão de coisas provoca um mecanismo interessante na vivência do espectador:
incita um olhar desavisado, propondo um
jogo entre reconhecer o que seria banal/
cotidiano – uma peça de roupa, um armário, uma pia – e o que seria preparado para
estar ali – um vídeo, um objeto de arte, um
desenho. O que não se sabe é que tudo foi
preparado para estar ali. O jogo da distinção entre o ‘cotidiano’ e o ‘normal’ em contraposição ao ‘objeto de arte’ é o ponto de
partida no qual se funda o trabalho de Lucila Vilela. Sem definir um comportamento
para seu ‘espectador’, as coisas que habitam a CASA deixam dúvida: se as paredes
da instituição, museu ou galeria, autorizam
o objeto a ser visto como obra de arte, a
CASA de Lucila embaralha tudo. Não tem
só paredes, mas tem geladeira, tem jardim,
tem sofá, tem gente, esse é o jogo que confunde o espectador, criando casas escondidas dentro da CASA, uma obra em camadas para os diversos olhares que a visitam.
Pista n#1 – das apropriações
Cadeau, de Man Ray e S/ Título, de Flávio
de Carvalho
Uma das minhas tarefas na CASA foi manipular o objeto Cadeau, de Man Ray, em
minha lavanderia. Eu geralmente cantarolo minhas músicas e passo meus papéis
com os ferros que tenho à mão, mas nesse caso foi bastante difícil: os pregos do
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objeto impediam o alisamento à que se
presta um ferro normal, destruindo o papel cada vez que eu encostava uma superfície na outra. Ao tentar usar o objeto, seu
resultado fugia da simples contemplação
para a desestabilização dos meus outros
materiais cotidianos da CASA – esse ferro me deu trabalho! Ele foi feito em 1921
durante a primeira exposição individual
de Man Ray em Paris1 . Mas, durante a
mostra, dizem, o objeto desapareceu. O
Cadeau entrou pra história como uma das
obras mais emblemáticas do dadaísmo. E
em 1974, Man Ray autorizou a tiragem de
5.000 cópias, todas numeradas e assinadas. A peça usada na CASA faz parte dessa
série de múltiplos que Lucila comprou especialmente para a edição de 2014.
Duas particularidades inserem o Cadeau na
CASA: a primeira é que o objeto desafia a
lógica do cotidiano, subvertendo seu ‘uso’.
Um objeto útil, passa a ser inútil ao seu
propósito original, mas, com o gesto de um
artista, ganha valor no mundo da arte.
1 RAY, Man. Self Portrait. Peguin Books: Londres, 2012.
Na CASA os objetos perdem a lógica da
sua utilidade, abrindo outras possibilidades de uso: uma cama para dançar, uma
máquina de lavar para assistir, a louça para
fazer música – o destino dos objetos passa
pela subversão de seu propósito, ativando
o imaginário do cotidiano, porém sem a
pretensão de adquirir valor no mundo institucional da arte. A segunda particularidade, é que muitos dos visitantes que passaram pela minha lavanderia não tinham
a mínima idéia do valor ou da história do
objeto. Alinhado com vários outros ferros
antigos e novos, o objeto caro e avalizado
pela assinatura de Man Ray, era (e não era)
apenas mais um objeto, um tanto peculiar,
é claro – como apontaria uma visitante que
pensou ser um objeto de tortura. A obra de
arte ‘original’, escondida dentro da CASA,
não viraria o centro das atenções, porque
não estava exposta com esse propósito.
Estava escondida, camuflada, capaz de
suscitar um pequeno sorriso em algum
visitante que talvez suspeitasse do objeto,
duvidando de sua autenticidade (afinal o
que estaria a ‘arte’ fazendo no meio das
bugigangas?).
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Na parede de azulejos meio envelhecidos
e lascados da cozinha, também encontravam-se alguns objetos: um velho estojo de
aquarelas encontrado da casa, o armário
cheio de quinquilharias e ao lado de tudo,
como se fosse um daqueles quadros que
reproduzem fotos de legumes e frutas ou o
Menino Jesus da casa da infância, estava a
obra S/ Título (1962), pintada por Flávio de
Carvalho, um dos grandes nomes do modernismo brasileiro. O quadro, emprestado do acervo pessoal de um colecionador,
passou muitas vezes despercebido; um
visitante de costas quase se apoiava nele
enquanto comia um pote de gelatina oferecido por Bia, a performer da cozinha. O
quadro, pendurado em uma parede qualquer da casa, entrou em um campo de invisibilidade – bagunçando a hierarquia dos
objetos do mundo da arte. Novamente a
apropriação feita por Lucila deixa pistas,
meias palavras para bons entendedores.
nas tapeçarias bordadas por Cecília Vilela
(sua mãe), nos vídeo objetos que reproduzem obras de outros artistas, ela ‘copia’ indiscriminadamente – e com isso coloca em
xeque o ato de copiar como procedimento
em arte. No caso da geladeira da CASA de
2014, a obra escolhida foi Menino de Bicicleta com Abacaxi (1953), da pintora Djanira.
Adaptada ao tamanho da geladeira, Lucila
copiou até mesmo a assinatura: jogos de
falsificação doméstica, em que as obras
de arte migram para os eletrodomésticos,
para os tapetes. Desta vez, a tapeçaria da
sala reproduzia um quadro de Rodrigo de
Haro. O aparente propósito decorativo se
confunde com a referência. Novamente
aqui as escolhas são minuciosamente dispostas na CASA, dando uma falsa ideia de
‘despojamento’ – uma espécie de ‘arquitetura de interiores’ provocativa, pensada de
forma a inserir pistas que possam desestabilizar o olhar do visitante.
Pista n#2 – das cópias
Todas essas pistas levam a uma mesma
ação: reposicionar o modo de olhar e se
relacionar com a obra de arte. A interdisciplinaridade é latente (já que a CASA é artes
visuais, dança, música, performance, arqui-
Desde a edição anterior da CASA, Lucila
trabalha com a ideia de cópia. Seja reproduzindo quadros famosos na geladeira,
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tetura), abrindo um espaço de liberdade
para todos os artistas envolvidos na ação.
Um espaço de fluxo, de convivência, povoado de micro acontecimentos que podem
ser testemunhados por muitos, apenas
por uma pessoa desavisada ou até mesmo por absolutamente ninguém. A poética
da CASA está no olhar de quem vê – afinal
não é um espaço autoritário. Cada visitante
constrói sua própria experiência de casa,
segue as pistas deixadas, encontra outras
dispostas pelo caminho. A ‘arte’ produzida
é fugidia, impermanente. Quando a CASA
acaba, seus objetos, seus habitantes, tudo
some. A falta de vestígios é o grande trunfo da obra: não é possível revisitar, reconstituir a experiência. A CASA fica impressa
na volatilidade dos corpos que a visitaram,
que a vivenciaram – e, como um bom crime
de romance policial, deixa poucas provas
materiais de sua existência.
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Lavanderia
MÁQUINA DE LAVAR: no visor da máquina de
lavar, um vídeo aparece registrando o funcionamento de uma máquina que foi pintada com
reproduções de Fernand Léger por Lucila Vilela,
em 1998 (O Baile, 1942; Os Nadadores II, 1941-42;
Os Acrobatas de Cinza, 1942-44).
FERROS DE PASSAR: uma série de ferros de
várias épocas compõem o cenário da lavanderia,
entre eles o ferro Cadeau, de Man Ray.
Man Ray
Cadeau, 1921
Ferro de passar com pregos
16,5 x 10 x 9,5 cm
Tiragem de 5.000 em 1974,
por Luciano Anselmino
Exemplar: 4128/5000
Coleção Particular
PERFORMANCE: Barbara Biscaro, atriz e cantora.
Improvisação a partir da ação de passar e estender
papéis.
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Peça para a casa (2013)
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por Eduardo Jorge
Esa casa en realidad no era una casa,
o era una casa fantasma
César Aira, La abeja
Na carta entregue pela malabarista, a
casa estava vazia. Ele a leu em uma
ponte sobre um rio. Que águas seriam
aquelas? As águas que confirmavam
seu percurso perpendicular a cada dia
que por ali passava e que agora lhe
entregava àquelas linhas como uma
correnteza leve, mas que transporta
carregamentos de carvão e turistas em
êxtase do mesmo modo que esconde
bicicletas submersas. Uma casa estava
vazia, outra. Os objetos que se deixavam percorrer pelo ciclo diário da luz,
acolhiam a poeira e a ausência de corpo como um movimento vegetal finito,
pela ausência de água.
Peça para a casa os passos ausentes dos
dias distantes. O barulho dos passos dos
moradores antigos. A invenção genealógica dos vizinhos. Peça ainda um pouco de
sal para a ferida da infância, o mesmo de
quinze anos, extraído do mar que se repete
em ondas. Fale para ela da sujeira do seu
corpo, dos seus dias sem banho, despido
e sentado sobre o piso de madeira enquanto calculava a ordem dos dias na estrada.
Operações aritméticas simples, embora
fundamentais que se resumiam em soma e
subtração. Peça o sorriso do casal feliz que
se mudará logo em breve e que se prolonga
e se desfaz em excitação sexual, em sono.
Fale dos domingos sem asfalto, com chuva
e lama. Escute o ritmo dos rios no encanamento. Nos assovios dos estrangeiros que
escondem distraidamente sua língua para
que você exponha a sua ou outra qualquer
de empréstimo para mediar uma pergunta.
Diga o quanto você está inibido e que você
sente pelo gato que ainda não existe, mas
argumente que a fotossíntese acontece e,
enquanto isso, um vulto claro e perdido
cruza a sala. Você viu? A casa entenderá
sua abstinência, seu jejum, seu cansaço
e até mesmo seus gestos mais abatidos,
ainda quando tudo se desfizer por alguma
onda telepática ou por um dia de faxina. Os
dias têm uma ordem própria. A casa pede
a cada instante que você respeite a realidade. Você, fará isso por ela, você? Perdido
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em uma soma de papéis e em elogios, você
fará? Saiba que ela sabe que você caminha
lento, que você está mais velho e que contempla outras vidas como quem escolhe
qual delas pode substituir pela sua enquanto você estiver ausente. De repente, você
pensa em cantar até que lembra quem são
os seus vizinhos, mas dessa vez o pensar
foi mais lento, e você já está cantando, ainda na cama.
Ele entrou na casa vazia de olhos fechados, com duas testemunhas. A sujeira tinha uma carga de afeto. As malas entraram em confronto com a casa
quando ele lembrou de uma diretora de
teatro, que aceitou viver com algumas
restrições dos aeroportos. Uma vida
que não ultrapassasse sessenta e quatro quilos de bagagem. Pode uma casa
adotar essa regra? As malas ficaram na
sala enquanto seu corpo recebia o calor
daqueles objetos há tantos dias expostos ao turno do sol na sala. O trânsito
da cidade ainda perdurava em som. As
outras presenças eram fantasmas livres
e encadernados, estes sempre insones.
Peça para a casa o barulho dos automóveis
dentro de garrafas de vidro, escrito com
tinta transparente lembrança. Aproveite e
peça que ela mostre os músculos que ela
esconde de você por dentro da parede. A
casa não está mais oca, ela respira, as paredes vibram e oscilam. Do mesmo modo
que os olhos, fora do corpo, voam no ritmo
de insetos noturnos para buscar as imagens
do dia que ainda restam na sala, no banheiro e na cozinha. Um objeto esquecido que
tem um brilho próprio, embora tenha ficado imperceptível pela pressa. A água que
ficou em conta-gotas. Uma parte quente da
cafeteira, da panela que entrou em contato
com a pele, essas imagens retornam com
outro tempo no voo noturno dos olhos, esses insetos. Elas voltam com uma nova escala, ora maior, ora menor, mas nunca com
o mesmo tamanho. Peça para a casa nada,
entre e saia como se ela não existisse em
sua unidade. A casa se sonha um labirinto mesmo que exista em dezessete metros
quadrados, mesmo que seja galpão, mesmo que não seja casa. A casa é um espaço
cênico que também é espectadora. Uma vez
que tudo está escuro, a casa é o olho. Ela observa e escuta o mínimo movimento, lê os
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sonhos pelo contato da planta dos pés com
o piso. No escuro, a casa roda lentamente.
Peça para a casa ficar imóvel, pelo menos
enquanto você estiver fragilmente exposto
na hora do sono. A casa te vela. Peça para
a casa parar enquanto você estiver imóvel.
O acordo pode até ser: quando seus olhos
se abrirem em corpo, a casa pode voltar a
girar e volta a condição de movimento que
expulsa tantas pessoas diariamente dela
para que tragam logo mais à noite ou, na
alvorada, corpos cansados.
Um galpão, os volumes em movimento, lhe fez pensar no animal-sofá, nas
letras em busca de açúcar e nas cadeiras sem peso, flutuantes, sem nádegas.
Caberia um grito no galpão, em um
corpo nu que dança sozinho enquanto,
do outro lado do vidro, os carros passam prosaicos, no ritmo da repetição
diária dos rostos, no depósito mensal
do salário e em tudo que pode ser sintetizado em saldo e sorriso. Em sim de
banco e na oscilação de humor nas casas de câmbio. Levar para passear, as
crianças, os cachorros, as próprias per-
nas e um domingo desses o qual você
me perguntou: quem é você. Você se
lembra?
Peça para a casa uma voz que amorteça as
dores de cabeça e que você saia do limbo
que ela lhe prepara como conforto, que
também é armadilha. Você sabe, a armadilha começa com a promessa de ganhos.
Facilidades e felicidades, como se ditas ao
mesmo tempo, essas palavras tivessem
o mesmo eixo que faz o corpo seguir em
direção ao contato com as paredes, às superfícies dos azulejos e todos os seus séculos de colonização. Quando a casa muda
de assunto pela cor de uma parede ou pelo
ruído do vento que entra, lembre-se do sangue que corre sob os azulejos, do rio que
corre na parede, da terra e dos fósseis que
sustentam esse edifício apenas para que os
movimentos do seu corpo acione outros
movimentos, trazendo para um dia ordinário a impossibilidade do brilho do sol ser
neutro, do dia ser belo porque o sol queima
sua energia gratuitamente. Seu corpo está
protegido pela casa e talvez você cante que
sair de casa, desde 1972, é arriscado. Mas
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também é arriscado desde 1984 ou 1993.
Também o foi em 1927, quando o documento legal era uma voz que tinha suas falhas.
Essa voz está no ar. Ela ainda existe, mesmo
sem o corpo que a emitiu. Imite essa voz.
Desautorize-se a sair, um, dois ou três dias.
Faça da casa caverna. Lembre-se do animal
que você quer ser e o animal que não. Eles
te observam e a casa, antes mesmo de você
nascer porque não se trata de algo pessoal. Você não está em jogo. Depois de imitar
outra voz, de fazer outros gestos, de entrar
no limbo ao invés de sair, você está fora do
campo de conforto da casa sem sair de casa,
sem devolvê-la diariamente o corpo cansado. Sem valer-se dela como um espaço de
preparação para o espaço exterior, porque
ela agora é o espaço exterior. Como um animal incompleto, despido de cativeiro, uma
pergunta na hora errada. A casa te fez isso,
tirou o tempo objetivo porque ela precisava
reparar algumas dores de cabeça.
O café da manhã estava pronto. Soube
disso quando ouviu a ponta dos dedos
tocando no microfone, para saber se
ele funcionava. Estava em um galpão,
deitado em uma cama de casal que,
diante de si, tinha um microfone em
um pedestal. Depois que o barulho dos
dedos que batia na superfície microfonada emitiu ecos no espaço, uma voz
feminina disse, o café está servido e
acrescentou: senhor. O senhor vai querê-lo na cama, como de costume?
Peça para a casa que todos os defeitos do
corpo fiquem entre a memória dos cômodos e a distância das nuvens, cintilando.
Em cada período de formação o corpo tem
um limite com as palavras, uma aspereza e uma rugosidade com aquilo que ele
exprime e com o que ele deixa cair e quebra, partindo um objeto acidentalmente
de modo desigual. Peça para a casa deixar
cair apenas o necessário. O necessário para
aquelas noites, antes com entalhes e ornamentos, que permitam camuflar o corpo no
escuro enquanto ele prepara a fuga. Como
o corpo agora é mínimo, a casa se torna mínima. Peça para a casa o silêncio da ponta
dos pés. A fome da ordem da madrugada.
Os rastros do convidado estrangeiro. Peça
pés sujos. Peça que a poeira fique e que o
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asseio venha em algum futuro próximo, na
distração de um rio, o mesmo que tem a
pulsação do encanamento. Das águas revoltas em uma banheira. Das noites que
chegam em outros fusos enquanto você se
movimenta sonolento, jejuando em pleno
dia. Peça para a casa um exército sonâmbulo, paredes com mensagens cifradas, algum
diário de bordo prestes a ser escrito. Esse
diário é selvagem e doméstico, é o mundo exterior na sua acepção mais íntima. É
aquele momento da troca de olhares entre
o viajante e o habitante até que o morador
pensa em voz alta quem viaja aqui sou eu.
Ele é a casa com pernas. Ele cheira à alvenaria e ao alho. Ele tem o tônus do trabalho
e da desilusão tardia. Ele exibe o que tem
em pupilas, de modo que o balconista deixa seu mundo objetivo e o balcão, tocando
seu ombro e, em outro idioma, quer saber
se está tudo bem com ele. E ele, com a casa
vazia em uma mão e um sanduíche na outra emite um sim universal com a cabeça.
Enquanto isso, a poeira cai com parte da
alvenaria e cabelos brancos. O branco dos
olhos emite dentes de alhos. Peça para a
casa que os defeitos do corpo sejam descobertos tarde demais.
Você conta e repete uma alegre história
de perda. Ela não tem uma explicação
que traga uma satisfação imediata,
mas até justifica o comportamento de
alguns dos que estão presentes, dos que
ainda não substituíram seus objetos de
afeto por outros. Dos que ainda dizem
brinquedo. Quanto a você, quando
você fala de algo doloroso, você ri. Digamos que isso talvez possa ser um riso
nervoso ou uma forma de deixar claro
que essa dor tem um ponto de vista lógico e econômico. Enfim, você e suas
explicações
Peça para a casa janelas riscadas e rasuradas, listras e texturas cujos relevos produzam uma massa acidentada. Peça, peça,
musgos, veludos por onde passar as mãos,
por os joelhos, encostar os cotovelos. Rastros de luz hão de vir e partir, raio estendido
por horas, contornando cada objeto e parte
do corpo. Luz exterior anatômica, suores. O
abandono no corpo, no chão os limites tocados pelos movimentos dos dedos. Começando pelo dedo, algum zelo a algo perdido,
um zero de início, partida atrás de partida,
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por furos onde o acúmulo se vai. O corpo
se esvai, seu cansaço agora é outro porque
ele existe enquanto repetição. A cor que se
repete e aí vermelho, vermelho, vermelho
fazem o vermelho. Peça para a casa as falhas de cores, fale com elas. Explique repetidas vezes que a repetição não é a mesma
coisa, ela cria manobras de fuga, e, a partir
de determinados pontos, corpos exaustos
de repetir imprecisões acrescentam gestos
estrangeiros ao impulso que emitiu o gesto original e perdido. Peça para a casa um
pouco da repetição dos corpos cansados,
o movimento lento, de velocidade gasta.
O corpo do decepcionado que desperta e
abre uma torneira. A perna do tombo, deslocada da outra. O corpo que se recolhe
buscando uma recuperação, que se dobra
sobre si, circular, e que, tocado por algum
acontecimento exterior, reage, vegetal, e
muda a posição no espaço. Assim, todo o
espaço exterior na casa muda de odor. A
massa acidentada da parede muda, ela ganha a inconstância de certas cidades com a
meteorologia. A casa escorre em chuveiro
aberto, ela escorre em torneiras, águas de
permanência selvagem.
As malas, no segundo mês, não foram
desfeitas. No seu sonho, uma senhora
abria uma após a outra e retirava as
roupas e os objetos para guardá-los.
Acontece que eles não saiam da mala.
O que saia era o fantasma de cada coisas. Assim, ela guardou as almas das
coisas nas gavetas, nos compartimentos do armário, debaixo da pia, dentro
do banheiro e ainda na cômoda e no
guarda-roupa. A senhora olhou para
o seu sonho e corrigiu seu rosto como
uma jovem vaidosa diante de um espelho portátil. Visivelmente ela estava
mais magra, pois seu vestido estava
duas vezes mais frouxo.
Peça para a casa palavras soltas, frases meteorológicas. E a distância entre seu corpo
em jejum e um relâmpago. A casa é um clarão. Fios irregulares, soltos para a travessia
iniciada nos ouvidos, nas dobras das orelhas, na viscosidade da língua, nas linhas
das mãos, dos pés. Até que o chão torna-se
áspero e eis o piche, a lama e, por fim, o
asfalto na sala, as paredes derivando para
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muros. O teto descasca antes que você diga
céu e a boca permanece uma caixa oca e
aberta. Relâmpagos se organizam em veias
e artérias. Ele reproduz os estados de travessia na casa: o grito no galpão vazio e o
corpo solto em docas abandonadas, solto
no limite de um barco cujas amarras se batem em uma coluna de concreto. Um dia
inteiro em jejum e a casa se rende ao conformismo da limpeza. Por outro lado, em
algumas horas o inverso do raio faz com
que o sol retome o dia, expandindo-o em
voz, a partir do que ele poderia dizer com
palavras soltas, sílabas, pedaços, metades:
vogais e raios. Ele queria ser chuva sem se
ater ao trabalho de se nomear, trocar seu
peso por litros na abstinência de corpo.
Criar de tal modo um estado úmido para
quando tudo desabar, a flora mínima surja com tudo aquilo que é capaz de oxidar
e atrair descargas elétricas atmosféricas. O
corpo em estado de barco, flutuante, móvel ao limite das águas. Entregue a nada
menos que fenômenos do tempo, chuvas,
tempestades, estados permanentes de trocas de estados físicos, tudo o que a casa
escondia agora está nos buracos, na parede
rachada, nas frestas, mostrando, inclusive,
as casas da infância, as mudanças contínuas e os pés que andam e que caminham a
casa, recolhendo sua poeira, justo uma memória, quer dizer, atmosfera, uma medida
que esses pés trazem outros, os pés de outras casas.
Quando acordou, um ele-criança e
um ele-animal brincavam na sala. O
ele-criança brincava com um de seus
olhos. Ela jogava ao roedor que o pegava ao redor com seus modos de cão
e levava de volta, devolvendo-o para
incitar um novo começo. O ele-criança
ria quando tentava colocar seu olho,
mas que, infelizmente, caía. Era aí que
o objeto era chutado até que o roedor
alcançava-o com as patas dianteiras e,
com uma sequência de golpes de focinho, empurrava-o de volta, pelo menos
ao alcance das mãos da criança, que
ria. Com certeza ele teve algumas vertigens, mas com uma das mãos tapou
a cava do olho esquerdo e, fechando o
outro, voltou a dormir. As malas ainda
suspensas pela corda.
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Peça para a casa a atividade da cópia, mudanças no sigilo das sílabas, desarticuladas
e sibilinas. A casa que antes estava localizada na memória dos pés, passa por uma
agudeza da mão que toma os pés como começos. A cópia é uma forma de escrever as
desistências e os desejos, a ordem da fome
e do trabalho que dá ao corpo não a noção
clássica de escultura, mas uma caminhada
moto-contínuo, firme e fina, que atravessa o espaço da parede pela mão canhota,
cujas curvas levam o que cai daquela construção firme, vertebral e insone. A atividade da cópia, nesse sentido, se assemelha
ao cansaço. A da economia invisível do ar,
aquela em pulmões e no cálculo impossível e inoportuno das sístoles-diástoles de
corpos tão distintos. A diferença da cópia
está antes das sílabas, nessa forma de bater, no fluxo do sangue, na entrega do corpo
a outras sístoles-diástoles. Mesmo a cópia
desajeitada da casa é uma mudança, pois
talvez você saia do abrigo justo nos dias
de frio e de chuva com a casa copiada sem
euforia de invenção. O gesto da cópia, a repetição errada e distraída às voltas de um
disco em movimento na vitrola. Que voz
ocupará os espaços vazios da casa copiada?
Suas sílabas seguirão nas intempéries de
palavras incompreensíveis até apagarem a
casa copiada que voltará ao seu estado de
mancha. A casa copiada, estado de desaparecimento, uma habitação que desaparece
em cadernos, papéis, palavras e espírito.
A casa copiada volta a tal estado verbal,
uma casa falada. Durante certo tempo, ela
abrigará corpos sonoros: o que era mancha
vira partitura de ruídos cada vez menores
até que a casa passa à mudez. As linhas,
enfim, voltam a ficar brancas e a casa vazia.
A atividade da cópia foi um convite para a
espiral, pois a casa copiada é um modo de
fuga silenciosa da casa. A cópia segue na
ponta dos pés, pisando em ovos.
O mundo tornou-se interior quando sair
de casa toca de tal modo na tua intimidade que o sol ameaça seus olhos e sua
pele, os olhares ao redor contêm certo
pavor e uma pergunta silenciosa acrescida de “mas”: o que fazes aqui? Vagar,
ser fantasma apenas pela presença dos
dentes, em sorriso. Tudo o que poderia
ser dito estava impresso em algum lugar, mudo, abria gavetas, o mundo lhe
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entrava sentença a sentença e, nesse
ritmo, até os mapas desapareciam.
Peça para a casa a ventura dos ovos, seus
desfechos em ausência de metáforas. Apenas ovos em mãos de malabarista, outro
modo funâmbulo de buscar o movimento
em sua pausa. Peça para casa o segredo do
ovo, o ovo enquanto ovo, redundante e frágil. Por dentro de todo o concreto, vigas,
cascas e superfícies a casa é uma fina película de cálcio, ossificada no limite da existência e da possibilidade de ser despedaçada. A casa casca começa a quebrar diante
das mínimas manifestações de uma vida
episódica, ela existe enquanto repetição,
ela precisa ser repetida no rosto molhado,
na toalete, no rosto indeciso se é noite, por
uma fadiga que independe dos raios solares. Ela precisa do mesmo espirro, do desgaste dos sapatos e da estimação. A casa
precisa da sua presença em calendário, feromônios, ciclo menstrual, dores de cabeça
e gritos de alegria. Ela precisa de surpresas,
precisa de uma quantidade incomensurável
de ácaros e de meios dias. Peça para a casa
que ela se esconda. Em partitura, em pre-
sença estrangeira, em cada visita, nos convidados fantasmas. Ela precisa que os objetos circulem em uma órbita que implica
em eventos que envolvem tombos, sangue
ou sorte. Peça para a casa, ovos espalhados pelo chão e pés cujo trajeto ignora-os
intactos, mantendo-os no estado solar da
vida, na potência que também se assume
desistência. A casa precisa dos corpos que
desistem diariamente. Dos corpos que se
aventuram na repetição. Ela precisa desse
começo para afirmar-se endereço.
Agora era ela, a malabarista. Três ovos
suspensos no ar, a carta. Quatro, a
mala. Cinco, a caminhada em direção
a. Ovos e olhos, os dentes eram apenas
uma frase frugal e estrangeira. A gola
da camiseta previsível tal a pausa das
mãos, branca. Os ovos agora mantém
a proeza de um movimento ausente de
malabarista.
Peça para a casa os princípios dos portos,
das rodoviárias, dos aeroportos e das estações no sentido de que são ambíguos:
30
quem está partindo, quem está voltando.
Existem princípios móveis da casa. A casa
está lá, sob a pele, inclusive, na sua superfície. Existe, assim, o momento da espera, da
esperança de se apropriar de vidas alheias,
de reter um desejo antes não desejado. Um
navio, um ônibus, um avião, um trem são
portas abertas para uma exposição ficcional
a outras vidas. O acesso à transparência, os
rostos absorvidos por horários, telefonemas
e quem está do outro lado, provavelmente
no espaço físico da casa. Peça para casa o
movimento da espera, mínimo gesto digno
e discreto de um butô, onde anda onde dança, não sabe, mas quando o dia nasce com
um quarto de tempo a menos do que deveria, isso ainda é matéria da espera, feito o
sono ou dormir em lugares inapropriados,
da casa, inclusive. Peça para casa que as
contrações musculares da espera desapareçam quando o chá for sorvido, quando uma
espécie de nuvem alaranjada se espalhar
dentro da água quente, o mesmo aconteça
com as dores: o mesmo se nessa água vier
uma nuvem espessa e escura antes sob a
perífrase do café na xícara até que os grãos,
agora pó, cumpram o papel metabólico de
despertar o corpo que espera. A casa, nes-
se intervalo, é lugar de passagem que absorve as nuvens pretas e alaranjadas, um
laboratório de criação de micro-paisagens
e eventos. Um evento mundano nasce dentro da casa, no globo branco do olho, na
edificação dos dentes, no raspar das unhas
e na brancura dos cabelos, na desistência
do outro, no barco que desiste o destino
em naufrágio, no voo que desaparece no ar,
no ônibus em direção oposta, nos pés que
andam pela casa, pois acontece por vezes
do corpo coincidir o mapa desaparecido na
sentença onde não se sabe se o corpo parte
ou volta para casa. Em carne viva, a casa
treme, ela está a caminho.
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Copa & Cozinha
GELADEIRA DJANIRA: na geladeira, uma
reprodução de uma pintura da artista Djanira foi
feita por Lucila Vilela.
Djanira
Menino de Bicicleta com Abacaxi, 1953
guache s/ papel
13 x 9 cm
FOGÃO: dentro do forno, um vídeo passa imagens da artista folheando um livro de receitas,
quando encontra uma imagem, copia com tinta à
óleo em uma panela e esquenta até que a figura
se desfaça.
PERFORMANCE: Bia Vilela, bailarina.
Improvisação com os elementos culinários
enquanto prepara um jantar.
QUADRO: o quadro pendurado na parede é do
artista Flávio de Carvalho.
Flávio de Carvalho
S/ título, 1962
guache e nanquim s/ papel
34 x 26 cm
Coleção Particular
PERFORMANCE: Diogo de Haro, músico.
Improvisação musical com a louça e outros
utensílios domésticos.
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Receita da Bia I
Tajine mit Mandeln und Backpflaumen
500 g Rindfleisch (Schulter) in ca. 4cm große
Würfel geschnitten
2 Zwiebel(n) (Gemüsezwiebeln), fein gehackt
2 EL Öl (Olivenöl)
1 TL Salz
½ TL Pfeffer, frisch gemahlener schwarzer
1 TL Zimt, gemahlen
¼ TL Ingwer, gemahlen
5 EL Butterschmalz
500 g Backpflaume(n)
4 EL Zucker
½ Zitrone(n), die Schale
½ Stange/n Zimt Zum Verzieren:
250 g Mandel(n), abgezogene, in Butter
geröstet Minze, frische oder Brunnenkresse
½ TL Safranpulver
Zubereitung
Zwiebeln, Olivenöl, Salz, schwarzen Pfeffer und
Gewürze gut verrühren und die Fleischwürfel
sorgfältig mit der Mischung einreiben.
Das so vorbereitete Fleisch in eine Tajine oder
einen großen Schmortopf geben, Butterschmalz
zufügen und so viel Wasser angießen, dass
das Fleisch gerade bedeckt ist. Zugedeckt bei
mittlerer Hitze 45-60 Minuten kochen, bis das
Fleisch weich ist.
In der Zwischenzeit die Pflaumen mit kochendem Wasser übergießen, 20 Min. einweichen
und dann abtropfen lassen. 2 Schöpflöffel von
der Rindfleischbrühe aus dem Schmortopf in
einen kleinen Topf geben und das Fett abschöpfen. Die Hälfte des Zuckers, Zitronenschale
und Zimtstange zugeben. In diesem Sud die
Pflaumen ca. 20 Minuten kochen, bis sie weich
und gequollen sind.
Den restlichen Zucker zu dem Fleisch in den
Schmortopf geben und verrühren.
Das Rindfleisch auf einer vorgewärmten
Servierplatte mit den Pflaumen und ihrem Sud
anreichten. Die Fleischsauce bei starker Hitze
auf die Hälfte reduzieren und über das Fleisch
geben. Mit den gerösteten Mandeln bestreuen
und mit frischer Minze oder Brunnenkresse
verzieren. Sofort servieren. Dazu Fladenbrot.
P.S. Die genaue Zubereitungszeit weiß ich jetzt
nicht, aber schon etwas aufwendig
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Receita da Bia II
Frita uns frango, umas cebolas e uns alho... Mistura 1 pote
de amendocrem 1 vidro de leite de côco e umas 4 colheres de
molho de soja. Joga uns gengibre e uns cheiro verde... Pronto
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A casa: uma construção
sensível do espaço
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por Josimar Ferreira
Eu moro na casa. Eu a atravesso.
Eu habito tanto por fora como no seu interior.
Às vezes eu a escuto respirar.
Bernard Collet
Uma casa parece constituir uma espécie de
preocupação primeira do homem de organizar o espaço de abrigo. Lucila Vilela, ao habitar e agir com seus performers sobre um espaço doméstico, cotidiano e afetivo de uma
casa, constrói uma espécie de arquitetura poética da subjetividade e da experiência. Esse
processo parece acionar e revelar lugares do
cotidiano de forma não cotidiana, mas não
por isso menos inerente à sua integridade, ou
seja, ao que esse lugar em si já contém o que
ele é: uma casa. Seu interesse que tem por
primazia a sensação, parece querer alcançar
certa singularidade dentro do espaço. Para
Michel de Certeau o espaço é um lugar prati-
cado1 , cuja relação do percurso do pedestre
com os lugares acarreta uma mudança, onde
o lugar se transforma em espaço, um lugar
que possuímos intimamente. E é no cotidiano que este tipo de espaço vai criar sentido,
através do uso diário, da presença constante
e insistente dos performers ali circulando,
repousando e voltando a circular, como em
rituais dessacralizados e repetitivos.
Lucila Vilela e seus performers, constroem
a relação com o lugar tanto através da ação
nos espaços da casa como da experiência de
um cotidiano: o cozinhar, o lavar, o cantar, o
dançar. Há uma necessidade de vivência de
uma situação doméstica inserida na casa em
questão, como uma forma de inserir a obra
na casa e a casa na obra. Walter Benjamin
salienta que o indivíduo só conhece um lugar uma vez que o tenha experimentado em
suas diversas dimensões possíveis: para possuir um lugar é preciso se aproximar dele pelos
quatro pontos cardeais e, inclusive, é preciso sair
dele a partir desses pontos. De outro modo, este
pode inesperadamente cruzar seu caminho, três
1 CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: 1. Artes
de fazer. Petrópolis: Vozes, 1994.
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ou quatro vezes antes que você se prepare para
topar com ele2.
Michel Foucault salienta que estamos na
época do simultâneo, onde, em um único
espaço real vários tempos são acumulados
e o disperso é colocado lado a lado sob o
lastro da heterotopia, da inquietude, da agitação, e do desconcerto3 . Esse espaço onde
as coisas se aproximam é um espaço heterogêneo, marcado por posicionamentos irredutíveis entre si, por relações de vizinhança
que permitem constantes rearranjos. Lucila
Vilela, ao situar o trabalho e as ações no âmbito espaço-casa, se interessa não pela pureza do estado em que a obra é produzida,
mas o quanto estão sujeitas a contaminação
pela interação dos visitantes, ainda que estejam fatalmente condenadas a configurar
uma ficção.
2 BENJAMIN, Walter apud. BUCK-MORSS, Susan.
Dialética do Olhar em Walter Benjamin e o Projeto das
Passagens. Belo Horizonte/Chapecó: UFMG/Grifos,
2002.
3 FOUCAULT, Michel. Outros espaços. in: Estética:
literatura e pintura, música e cinema. Rio de Janeiro:
Forense Universitária, 2006.
Os performers situam-se numa espécie de
parênteses, de dentros do dentro, efêmeros por
natureza, trabalham nesse âmbito do espaço
privado, do dentro, preservam essa característica da intimidade na casa, que continua
com seu caráter de casa, com sua integridade
preservada. O diálogo acontece todo o tempo
com o espaço construído. Os gestos performáticos vão surgindo de acordo com a experiência dentro da casa, e às possibilidades de
movimento, de ocupar os espaços com o corpo, com a voz, com o silêncio.
De todos os cômodos, um deles não é habitado por nenhum performer: um quarto que
se aproxima ao quarto de um escritor. Um
quarto com uma antiga máquina de escrever;
um computador com um video que mostra a
imagem das mãos escrevendo continuamente; um tabuleiro de xadrez com outro video na
parte interna; um velho espelho, logo na entrada; e livros antigos em um canto. Um quarto
que de certa forma poderia existir nas ficções
de escritores como Jorge Luis Borges, Bioy
Casares, Julio Cortazar, Lewis Carrol, Virginia
Woolf, entre outros. Pois alguns escritores,
quando narram espaços, tem como referência suas próprias casas, já que especialmente
39
o processo de criação de escritores se dá em
espaços internos, em casas, em quartos.
A construção poética dos espaços, tanto pela
artista e quanto pelos performers, ocorre
como uma possibilidade de configuração de
um cotidiano, ativada pelas características
mais peculiares de cada ambiente. A produção das ações se origina como parte de toda
a experiência, como extensão de uma ação
que passa, ela mesma, a fazer parte da casa.
Esse processo de construção torna visível lugares normalmente inacessíveis, privados e
interiores, que muitas vezes não se mostram
a olhares externos a não ser através do trabalho ali realizado. O desejo dos performers,
no entanto, parece que não é o de transgressão, de superação do espaço, mas ao contrário, de fazer parte, de mimetizar-se à personalidade da casa em seu universo íntimo de
sutilezas e variações, com suas qualidades e
idiossincrasias. A casa se transforma em um
espaço ficcional, tornando-se pública, exposta. Então, já não é mais ela mesma: é uma
construção sensível.
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Quarto 1
PERFORMANCE: Diana Gilardenghi, bailarina.
Improvisação com os objetos do quarto.
CÔMODA: uma televisão é inserida dentro de
uma cômoda. No vídeo, gavetas abrem e fecham
com os quatro elementos: água, ar, terra e fogo.
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Banheiro 2
ESPELHO (Escova de dentes): vídeo do músico
Diogo de Haro escovando os dentes sem a escova,
reproduzindo os sons da escovação com a boca.
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Banheiro 1
ESPELHO: no centro do espelho do banheiro
aparece um vídeo com uma série de mulheres
passando batom.
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Escritório
TABULEIRO DE XADREZ: em algumas casas do
tabuleiro aparece um vídeo de dois jogadores
jogando sem peças nas dunas de Florianópolis.
COMPUTADOR: na tela, um vídeo exibe as mãos
de um escritor digitando um texto.
MÁQUINA DE ESCREVER: uma máquina de
escrever portátil, Remington Noiseless Portable,
de 1930, posta ao lado do computador, faz alusão
à primeira idéia de laptop.
LIVROS ENCONTRADOS: alguns livros encontrados na casa são expostos no escritório:
contabilidade da Mayerle Boonekamp Ltda. de
1937 a 1943; Die Blauen und die Gelben, de 1870 e
Cadillac, fotografias de Stephen Salmieri, de 1985.
DOAÇÃO: recebemos uma doação dos vizinhos
Rubens e Neiva, a coleção de livros Gênios da Pintura, editada pela Abril Cultural, em 1967. Os livros
foram incorporados à biblioteca do escritório.
46
Entrevista com
Lucila Vilela*
De que modo surgiu e como define o projeto
Casa?
O projeto Casa surgiu em 2001, logo que
terminei a graduação em Artes Plásticas
na UDESC. Durante o curso, realizei vários
vídeo-objetos que tratavam do tema do cotidiano e quando terminei, todos já estavam
na minha cabeça dentro de uma casa junto
com as performances. O projeto ficou muito
tempo na gaveta porque na época ainda não
tinha essa política de editais e eu, evidentemente, não tinha recursos para fazer. Quando saiu o primeiro edital Elisabete Anderle,
quase dez anos depois, um amigo produtor
me incentivou a inscrever e, com a obtenção
do prêmio, foi possível realizar em Florianópolis (em 2010). Definir o projeto Casa é difícil, mas acho que uma das questões fortes
é a mistura de linguagens. Trabalhar com artes visuais junto com profissionais da dança,
do teatro e da música faz com que o projeto
transite nesse limiar entre cênicas e visuais.
O tempo de visitação por conta disso fica
também nesse trânsito, um tempo específico, próprio do projeto. A Casa fica aberta durante quatro horas e o visitante é livre para
circular e ficar na casa o tempo que quiser,
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dentro dos dias e horários estabelecidos, as
performances e os vídeos não tem uma duração com início, meio e fim, são contínuos e
cabe ao público decidir o tempo de visitação.
Daí a dificuldade de definir, se é uma exposição, um evento, uma mostra, uma peça? Não
importa, a Casa acontece.
Quais são, no seu entendimento, os maiores
desafios da arte contemporânea?
Trabalhar com arte é um desafio, em todas
as épocas.
Por que Joinville foi a cidade escolhida?
O que foi considerado nesta escolha?
Queríamos também outra cidade de Santa
Catarina. Joinville é culturalmente bem movimentada e destaca-se como um dos principais pólos culturais do Estado, através de
iniciativas em diferentes áreas, principalmente nas artes visuais, dança e teatro, o que liga
diretamente com a Casa, que justamente trabalha a conexão entre essas linguagens. Não
tive dúvidas com relação à escolha da segunda cidade a receber o projeto.
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Quais são os maiores anseios com relação ao
projeto na cidade?
Não sei se seriam anseios. Uma motivação
em relação à realização do projeto em Joinville foi justamente a arquitetura das casas. Há
muitas casas e cada uma mais charmosa que
a outra, o que a torna a cidade especial. Trazer o projeto Casa para onde muitas pessoas
ainda vivem em casas e mantém o cuidado
de habitar esse espaço, cria um diálogo rico
porque estabelece pontos em comum. A casa
viva está em constante movimento. Acredito
que o espaço físico exerce influência no espaço mental e o trato com o lar indica muitos aspectos da vida privada. Joinville ainda
valoriza a importância das casas, portanto o
lugar adequado para abrigar o projeto.
Quais os critérios adotados na escolha dos
artistas participantes, os performers? Por que
não incluir nenhum artista da cidade?
A maioria dos performers é do projeto original, concebido em 2001, pessoas e trabalhos
que conheço e acompanho há muito tempo.
Eu cheguei a pensar em convidar artistas da
cidade, por um lado a possibilidade de inter-
câmbio sempre tem um resultado positivo,
mas por outro, após a realização do Casa
em Florianópolis, percebi que funcionamos
como uma família, e a relação de intimidade
entrou em questão. Nessa segunda edição,
mudei alguns performers, mas foi uma escolha bastante precisa. Acho que manter os
mesmos performers na Casa cria confiança e
afina o trabalho.
Como vê a cena artística de Joinville, quais
são as suas referências neste campo e cidade?
Vejo Joinville muito ativa culturalmente.
Acompanho o movimento em todas as áreas, como por exemplo as atividades realizadas pelo Instituto Schwanke, Museu de
Arte de Joinville, Cidadela Cultural, Casa da
Cultura, Associação Joinvillense de Teatro,
Ballet Bolshoi e Festival de Dança de Joinville, entre outras inciativas de artistas que
conheço. Sempre tive contato com os artistas joinvilenses ligados ao campo das artes
visuais e da performance, desde os tempos
da universidade e admiro o seu profissionalismo. Joinville está num nível artístico e de
produção cultural relevantes e me interessa
bastante essa troca.
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Você ao contrário de muitos artistas transita
neste projeto em oposição aos vínculos institucionais. No tabuleiro do circuito artístico
qual o papel do museu? Poderia falar um
pouco sobre isso, pontue diferenças entre
Casa e museus? Por que, afinal, o desejo de
descontaminação?
Acredito em iniciativas independentes. Entrar no jogo do circuito nunca foi minha história. Minha primeira exposição, uma das
poucas, foi dentro de uma lavanderia porque
queria expor o vídeo-objeto “máquina de lavar” e achei que uma lavanderia seria muito
mais pertinente que um museu. O museu
já tem uma cara de arte, carrega uma história, tem um peso institucional. Na Casa eu
não procuro um espaço para abrigar minhas
obras, muito menos para legitimar, eu penso
na casa como obra, em sua totalidade, com
tudo o que tem dentro, vivo e pulsante. A arquitetura é importante, o estilo da casa, os
cômodos, as janelas, o telhado, os móveis
que incorporo, as pessoas, tudo faz parte.
Qual é o público esperado na visitação de
Casa?
Todos!
O que deixou mais feliz na realização de Casa
em Florianópolis?
Conseguir realizar o projeto já foi muito gratificante. A harmonia e conexão entre a equipe
foi fundamental para o resultado. O que me
deixou mais surpresa foi a reação do público,
que eu não tinha previsto e sigo sem poder
prever. Isso provocou situações inesperadas
que só acrescentaram no projeto. O mesmo
aconteceu com as performances porque apesar de terem uma condução, uma certa estrutura, elas trabalham com a improvisação. A
casa é a mesma todos os dias, mas também
não é porque acontecem coisas diferentes e
imprevisíveis. Assim como em casa mesmo,
os gestos se repetem, mas com variações. A
diferença dentro dessa repetição, mantém o
projeto vivo.
*Publicada em 1.11.2014 Diário Catarinense,
Caderno Cultura, págs. 2 e 3 (entrevista concedida à jornalista Néri Pedroso).
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Quarto 2
FECHADURA: através da fechadura da porta,
pode-se ver um vídeo de animação erótica,
realizado pelo artista Roberto Freitas.
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Jardim
PERFORMANCE: Robison Soletti, ator circense.
Improvisação com pernas de pau. Personagem
livre que sai do jardim e perambula pela cidade.
Figura híbrida entre pássaro e fantasma, inspirada
nas atuações de Loïe Fuller, bailarina do início do
século XX.
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Biografias
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Barbara Biscaro
Atriz e cantora. Performer da Lavanderia da CASA. Dra. em Artes
Cênicas pela Universidade do Estado de Santa Catarina.
Josimar Ferreira
Pesquisador, mestrando no Programa de Pós-Graduação em Artes
Visuais da Universidade do Estado de Santa Catarina, na linha de
pesquisa em Teoria e História da Arte.
Eduardo Jorge
Escritor, publicou San Pedro (2004), Espaçaria (lumme editor, 2007),
Caderno do estudante de luz (lumme editor, 2008) e Pa, pum (com
Lucila Vilela, em 2012).
Néri Pedroso
Jornalista.
*
Lucila Vilela
Artista visual e pesquisadora. Realizou o Projeto CASA, de Artes Visuais e
Performances, vencedor do prêmio “Edital Elisabete Anderle de estímulo à
cultura”, em Florianópolis/SC (2010) e em Joinville (2014). Doutoranda em
Artes Visuais pelo Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais da Universidade do Estado de Santa Catarina. Membro da equipe editorial da Revista
Digital InterArtive: Contemporary Art and Thought (www.interartive.org).
Reside e trabalha em Florianópolis-SC.
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