Dentro, fora, deslocamentos

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Dentro, fora, deslocamentos
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Dentro, fora e deslocamentos ‐ a ação artística nos espaços comuns da cidade Vera Pallamin FAUUSP . A atual ‘paixão pelo real’ Estamos vivendo, contemporaneamente, o aguçamento do que se tem chamado de `paixão pelo real’, a ação colada numa realidade não mais circunscrita nem por um ‘telos’, nem por utopias. O filósofo esloveno Slavoj Zizek, a partir desta expressão de Alain Badiou, comenta sobre dois pólos desta paixão: um, ligado à idéia de transgressão como violência política, associada à figura do terrorismo e à destruição de si; e o outro, à paixão pelo simulacro e pelo espetáculo.i Para Zizek, “[ao] contrário do século XIX, dos projetos e ideais utópicos ou científicos, dos planos para o futuro, o século XX buscou a coisa em si – a realização direta da esperada Nova Ordem. O momento último e definidor do século XX foi a experiência direta do Real como oposição à realidade social diária – o Real em sua violência extrema como o preço a ser pago pela retirada das camadas enganadoras da realidade”.ii
Inicialmente a busca de uma nova ordem incluiu a crítica da aparência, a crítica à representação e à imitação, as quais animaram todo o trabalho das vanguardas. Entretanto, essa paixão se apresenta agora sob sinal trocado culminando, segundo o filósofo, na estetização da violência, na “emoção do Real como o ‘efeito’ último, buscado nos efeitos especiais digitais, nos reality shows da TV e na pornografia amadora, até chegar aos snuff movies” (polêmicos filmes ‘underground’ de homicídios verdadeiros). Essa virada nos tem colocado como que em contato bruto com as coisas, em confrontação direta com elas, com sua exposição excessiva, sua evidenciação.iii Desta realidade pós‐utopias faz parte a corrosão do valor do que é público e comum, o desencanto com as instituições da democracia formal – sobretudo partidos e representações políticas – e a descrença em relação a promessas sociais. Nega‐se, de fato, a idéia política da democracia como campo de conflitos, tornando‐a sinônimo, no linguajar midiático, do regime de competitividade. A reafirmação acirrada desta 2
realidade mesma encontra nas grandes cidades um ‘locus’ privilegiado, nelas concentrando‐se as estratégias de implementação e reforço – não sem violência – de um consenso forjado no plano econômico e de suas multiplicações nas práticas sociais e culturais. No campo da arquitetura, essa crueza evidencia‐se na neutralização de seus desígnios – que foram caros ao movimento moderno – e sua substituição pelo elogio à tecnologia, às reprogramações espetacularizadas de espaços urbanos e, mais recentemente, à idéia mercadológica de sustentabilidade, com os chamados edifícios verdes e inteligentes. Nesta cena, o que predomina não é a cultura como valor, reafirmando‐se agora, num plano ainda mais extenso, a sua fragilização, conforme examinada por Adorno nos anos quarenta, quando afirmou: Se a cultura responsável constituiu até o século dezenove um privilégio, cujo preço era o aumento do sofrimento dos incultos, no século vinte o espaço higiênico da fábrica teve por preço a fusão de todos os elementos da cultura num cadinho gigantesco. Talvez isso não fosse um preço alto, como acreditam aqueles defensores da cultura, se a venda em liquidação da cultura não contribuísse para a conversão das conquistas econômicas em seu contrário (...) o progresso converte‐se em regressão”.iv
Esta paixão pelo real traz no seu verso um impasse que caracteriza a cena cultural contemporânea, consistindo na dificuldade de nela se articular a dimensão crítica. A idéia de resistência, sobretudo se tomada como subversão, tornou‐se duvidosa. Paradigmas fundantes do pensamento moderno foram recusados, tais como a citada idéia de progresso enquanto caminho para a liberação e a afirmação de um processo histórico unitário, positivamente finalizável. Discursos sobre a emancipação e práticas de superação do presente se pulverizaram de modo centrífugo, a ponto de desestabilizar a eficácia teórica de perspectivas analíticas plenamente consistentes em relação à modernidade. Estamos diante de uma situação bastante incômoda, num terreno a ser balizado, cuja cartografia exige instrumentos de avaliação ainda a serem elaborados. Nas palavras de Baudrillard, vemo‐nos em meio a um regime da pura visibilidade, que coincidiria com a 3
aniquilação das imagens. Estamos como que imersos em uma ‘realidade integral’, que teria absorvido sua própria transcendência e cujo metabolismo desfaz toda negatividade, desgastando as idéias de contravalor e enfrentamento, tidas agora como impiedosas e ilusórias.v O intuito revolucionário passou a ser situado como um dos enganos da modernidade, ressaltando‐se a necessária reinvenção de espaços e possibilidades de emancipação. Consideradas as dificuldades postas por essa situação contemporânea à arte, a começar quanto à definição do que seria a noção de experiência na atualidade, e considerado o compromisso basilar da arte com a abertura de novas fronteiras do presente, um dos pilares a serem repensados neste impasse refere‐se à relação do campo estético com o político. Emprega‐se este termo no gênero masculino para diferenciá‐lo desta ou aquela política implementada por este ou aquele governante. No âmbito do sensível, entre a posição kantiana do julgamento estético desinteressado e a explicitação feita por Bourdieu, sob base marxista, dos vínculos de classe, distinção e dominação que nele operam, deparamo‐nos com relações entre o estético e o político praticamente antípodas. Esta virada conceitual, contudo, se por um lado esclareceu a história social das produções artísticas, por outro abriu novos problemas para a arte, pois embora seja atravessada internamente pelas explicações sociais, econômicas e ideológicas, ela as transborda. Acrescente‐se a isso o fato de que os regimes totalitários do século passado, aos quais se associaram as idéias de revolução cultural e emancipação social das classes subalternas, debilitaram toda uma linha de crítica da cultura pautada por estas utopias. Como repensar, então, na arte, os termos desta mútua relação entre o condicionado e o incondicionado, sem nos fixarmos numa perspectiva melancólica que, via de regra, torna‐se imobilizante? Antes de tudo, cumpre isentar a arte da tarefa equivocada de ser uma representação de conflitos sociais, ou um agente desmistificador de ilusões que impediriam a visão nítida do real – afinal as vanguardas nos liberaram dos fetiches da obra de arte. Como pensar os termos do estético o do político sob as condições contemporâneas? Neste debate aberto e multifacetado, destacamos a tensão entre dois conceitos: o do sublime e o do dissenso. Sobre a estética do sublime 4
O filósofo Jean François Lyotard, autor de A condição pós‐moderna (1979)vi abriu um campo de teorização polêmico a esse respeito, questionando a eficácia das chamadas metanarrativas, ou grandes teorias. Sua análise afirma a inoperância das antigas metanarrativas de legitimação para a pesquisa científica e para os demais campos do conhecimento, assim como a superação da crença em grandes atores e grandes sujeitos da história, tais como o proletariado e o partido. Por um lado, nenhuma teoria é hoje suficientemente forte para dar conta da realidade e estabilizar as práticas sociais. Por outro, os desdobramentos em todos os campos do conhecimento aprofundam a verticalização das instabilidades e das incertezas. Desviando‐se desta crise totalizante das grandes teorias, o filósofo trabalha uma visão da verdade pautada em pequenas narrativas atuantes localmente e que perpassam todo o sistema social. Sua reflexão sobre estas narrativas apóia‐se no conceito de jogos de linguagem, em que as várias categorias de declarações podem ser definidas em termos das regras que especificam suas propriedades e usos. Três aspectos caracterizam os jogos de linguagem: 1º: suas regras são resultado de um contrato entre aqueles que jogam; 2º: se não há regras, não há jogo, sendo que a menor modificação de uma delas muda o jogo como um todo; e 3º: cada declaração ou afirmação deveria ser pensada como um lance num jogo. Trata‐se de uma disputa, de uma teoria instável e conflitual entre os envolvidos, embora Lyotard afirme que, por vezes, os lances possam ser dados pelo puro prazer da invenção.vii Os consensos sobre as regras do jogo e lances admissíveis são locais, acordados entre aqueles que jogam e sujeitos a eventuais cancelamentos. Ocorrendo em vários domínios da vida social, inclusive naquele político, acordos e contratos temporários acabam suplantando, na prática, instituições permanentes. No plano estético Lyotard se aproxima das concepções do modernismo e de sua natureza revolucionária. Neste âmbito ele não postula um estágio contemporâneo radicalmente diferente do período do modernismo, que estaria associado a uma ruptura cultural e histórica com este. Pelo contrário, o filósofo entende o que ele denominou – pela primeira vez – pós‐modernismo, como um momento da perpétua revolução e inovação do próprio modernismo. Quanto à arte, em certo sentido, sua posição aproxima‐se àquela da tradição adorniana, a qual defende que a arte é política 5
não por seu engajamento a esta ou aquela causa, mas quando se faz como arte, isto é, diferindo radicalmente dos objetos de consumo, atritando com estes, mantendo sua autonomia. O que é peculiar à sua reflexão é a compreensão da estética moderna, da vanguarda, como uma estética do sublime. Lyotard revisita esta noção que em Kant significa uma afecção forte e equívoca, abarcando ao mesmo tempo prazer e dor, prazer que deriva da dor, pelo conflito entre se conceber algo e a incapacidade de ‘presentificá‐lo’ plenamente. O sublime diz respeito ao conflito entre a imaginação e a razão, ou a incomensurabilidade da realidade ao conceito (a exemplo do que se dá com as idéias de mundo, infinito, simples).viii O filósofo comenta distintos modos do sublime enfatizar o impresentificável. Há o modo melancólico, que é pautado por uma nostalgia da presença, próximo a uma tendência Romântica de comunicação com a Natureza, que persiste embora falhe constantemente. E há o sublime ao qual ele associa a idéia de ‘novatio’, inovação, criação, “o qual põe ênfase no acréscimo de ser e no júbilo que resulta da invenção de novas regras do jogo, seja este pictórico, artístico ou qualquer outro”.ix A este último associa‐se o real sublime. Para Lyotard, a estética da pintura moderna presentifica, mas de modo negativo, evitando a figuração ou a representação, “será ‘branca’ como um quadrado de Malévitch, só deixará ver proibindo que se veja, só dará prazer, causando dor (...) as vanguardas pictóricas se consagram a aludir ao ‘impresentificável’, através de ‘presentificações’ visíveis”.x Sobre o dissenso e o deslocamento do estético Contrapondo‐se a esta compreensão, o filósofo Jacques Rancière afirma que Lyotard teria reinterpretado o sublime kantiano “para fazer da arte o encontro com o irrepresentável, que desconcerta todo pensamento”.xi O sublime foi por ele situado como a cena de uma distância fundadora entre a idéia e toda representação sensível, identificando‐se com a natureza irrepresentável e intratável do estado de coisas da contemporaneidade. Apoiando‐se na via reflexiva lyotardiana, a estética dos últimos vinte anos teria se tornado, nas palavras filósofo, “o lugar em que a tradição do pensamento crítico se metamorfoseou em pensamento de luto”.xii 6
Buscando construir outra via de compreensão da inteligibilidade atual do estético e sua inter‐relação com o político, Rancière compreenderá o sensível como domínio de ambos, simultaneamente. Nos seus termos, a política é a atividade que tem por princípio a igualdade, instituindo‐se uma comunidade política quando as partilhas efetivadas nesta comunidade fazem‐se ao modo da igualdade e da desigualdade na divisão do que é comum, promovendo o dano a uma de suas parcelas. O dano pelo qual existe política “não é nenhum erro pedindo reparação. É a introdução de um incomensurável no seio da distribuição dos corpos falantes”. Um incomensurável que não rompe somente a igualdade dos lucros e das perdas, uma vez que a desigualdade é inerente ao vínculo social.xiii
Fundada neste dano, a política tem por força motriz o dissenso, ou o desentendimento, pelo qual se busca atualizar o princípio da igualdade entre os implicados. O desentendimento político não é sinônimo de mal‐entendido ou de desconhecimento. É um “litígio acerca do objeto da discussão e sobre a condição daqueles que o constituem como objeto”.xiv A política, via dissenso, rompe com a configuração dada do estado de coisas, mudando os destinos e seus lugares ali definidos: A atividade política é a que desloca um corpo do lugar que lhe era designado, ou muda a destinação de um lugar; ela faz ver o que não cabia ser visto, faz ouvir um discurso ali onde só tinha lugar o barulho, faz ouvir como discurso o que só era ouvido como barulho (...). Pode ser [a atividade] desses operários do século XIX que colocam em razões coletivas relações de trabalho que só dependem de uma infinidade de relações individuais privadas. Ou ainda a desses manifestantes de ruas ou barricadas que literalizam como ‘espaço público’ as vias de comunicação urbanas.xv Para o filósofo, nada é em si mesmo político, mas pode tornar‐se político à medida que opera sob a racionalidade dissensual. Embora numa comunidade política sempre haja o exercício do poder para a manutenção do seu estado de coisas – ao qual ele denomina como ‘polícia’ ‐ não é sempre que nela efetiva‐se o desentendimento e, portanto, a política. Para Rancière, a diferenciação e fragmentação contemporânea 7
dos jogos de linguagem e das pequenas narrativas de que fala Lyotard não substitui de forma alguma a grande narrativa da política. Pelo contrário, são partes constitutivas dela.xvi Sua reflexão implica um deslocamento em relação à noção de estética. Este conceito, para ele, não tem a ver com teorias da arte, filosofia ou ciência do belo. Remete‐se ao significado do termo grego ‘aesthesis’, relativo ao sentir, à compreensão pelos sentidos, sendo definido como “um sistema de formas ‘a priori’ determinando o que se dá a sentir. É um recorte dos tempos e dos espaços, do visível e do invisível, da palavra e do ruído que define ao mesmo tempo o lugar e o que está em jogo na política como forma de experiência”.xvii Portanto, a política tem uma dimensão estética que lhe é inerente, presentificando‐se na configuração do sensível e nas formas de invenção dissensual em que se dá. Esta dimensão, segundo o filósofo, põe em comunicação distintos regimes de expressão, referindo‐se ao modo como estes regimes distribuem‐se no sensível e promovem formas de agir, produzir, perceber e pensar. A aparência, neste sentido, não é uma ilusão que se oporia ao real. Sob a ação dissensual, ela é a introdução no campo da experiência de um visível que modifica sua distribuição. Ela não se opõe dicotomicamente à realidade. Age para alterar o regime da visibilidade que nesta opera, desestabilizando sua naturalização. Ante este sistema de formas ‘a priori’ que atuam no âmbito do sentido (palavra) e do sem‐sentido (ruído), toda prática artística tem a ver com essa ‘estética primeira’ de que fala Rancière, com os modos como aí se estabelecem campos do comum. Embates da ação artística – o caso Prestes Maia Pensando‐se na relação entre meio urbano e arte, estas considerações têm um papel profícuo, na medida em que se voltam justamente para os fundamentos do que é comum, do modo como este implica, ao mesmo tempo, união e separação, distribuição e divisão. Alimentam a discussão política sobre a vida urbana e a cidade ‐ lugar privilegiado das partilhas desigualitárias – e suas incompatibilidades. O conceito de dissenso e as maneiras com que se organiza ou é desorganizado pelas estratégias de manutenção da ordem vigente, contribui na elucidação de movimentos e conflitos sociais e culturais, assim como na compreensão de seus fôlegos de reivindicação. 8
Auxilia a cartografar aspectos materiais e simbólicos do solo em que se efetivam as práticas artísticas na cidade. E na medida em que este conceito desliza também para o plano da ação crítica, ele dá o que pensar, uma vez que estas inscrições buscam romper com o que se faz visível e transmitir sentido pelo corte com a lógica de situações significativas.xviii
É à sua luz que trazemos à discussão, tanto do ponto de vista estético quanto político, da polêmica experiência artística realizada em São Paulo feita da aproximação entre coletivos de arte e os moradores do edifício Prestes Maia, quando do seu processo de ocupação, no Centro. Trata‐se de uma experiência da arte que se propôs a efetivar‐se a partir de um dos significativos espaços do dissenso ocorridos na região central da metrópole, nos últimos anos. Esta ocupação foi organizada pelo MSTC – Movimento dos Sem Teto do Centro de São Paulo, e durou de 2002 a 2007, tendo se finalizado por meio de um mandado judicial de reintegração, seguido da lacração do prédio. Abandonado há mais de uma década e objeto de vultosas dívidas fiscais junto à municipalidade, o edifício passou a abrigar 468 famílias, convertendo‐se na maior ocupação vertical por moradia, do país. A função social da propriedade urbana, conforme o Estatuto da Cidade, foi um dos principais temas em debate durante seu processo. A presença dos coletivos ocorreu durante um longo período, de dezembro de 2004 a 2006, aspecto este também não usual nesse meio. Deu‐se no sentido de dar apoio à luta do MSTC para conversão do edifício em habitação social legalizada e contribuir para a descriminalização do movimento fomentada pela mídia. Nesse período houve várias iniciativas de cunho cultural no prédio, incluindo‐se a organização de uma biblioteca, por iniciativa de Severino Manoel da Silva, ex‐coletor de recicláveis, a partir de livros descartados. Algumas das ações artísticas de maior visibilidade pública associaram‐se às diversas ameaças de despejo, tendo sido realizadas na fachada do prédio e na rua, nos espaços próximos à sua entrada, como também em outros lugares do Centro, junto à sede da Prefeitura. No que se refere ao território da arte, esta situação marcou uma experiência inédita na cidade. Produziu um considerável conjunto de trabalhos, compreendendo a aproximação entre um grupo de coletivos e um movimento social, numa relação complexa e não sem contradições, cujas adjetivações pelos seus protagonistas ainda 9
estão em processo. Dentre as questões envolvidas internamente à experiência, aquela relativa à ‘produção do comum’xix, tanto em temos estéticos quanto políticos, foi das mais significativas – e também conflitantes – tendo em vista que mobilizou um núcleo de valores socioculturais não uniforme entre os participantes. A artista Gabriela Zelante Lambert, atuante no local, comenta alguns aspectos críticas sobre a experiência: Se queremos pensar em uma arte parceira dos movimentos sociais, será coerente realizar nestes locais de ocupação exposições de arte contemporânea? Creio que pode ser válida se a proposta for multiculturalista e considerasse a cultura dos sem‐tetos, mas não foi isso que aconteceu no caso do Prestes Maia (...). Toda a elaboração dos eventos era realizada principalmente pelos artistas, o que fazia com que os moradores ficassem em uma postura muito receptiva e pouco participativa, ou seja, os projetos estavam inicialmente sendo elaborados ‘para’ eles e não ‘com’ eles.xx
A consolidação desta percepção entre os artistas, contudo, acarretou uma modificação dos seus procedimentos, buscando elaborar propostas mais próximas dos interesses dos moradores: Foram desenvolvidos alguns projetos educativos, dentre eles, encontros com aulas de arte (...). Estes encontros tiveram caráter de estudo exploratório e tinham como principais objetivos: trabalhar a identidade local e individual através de experiências artísticas e levantar necessidades e expectativas dos moradores em relação a novos projetos.xxi Este depoimento suscita várias questões, a começar pelo caráter assistencialista que a arte acabou delineando num primeiro momento, quando os projetos eram feitos para os ocupantes. A potência política da situação, inegável, entrou em descompasso com aquela artística. Nestes termos, vem à tona a problemática questão sobre a politização da estética quanto, contraditoriamente, a do silenciamento daqueles sujeitos que eram justamente os protagonistas daquela arena 10
dissensual. Falou‐se em nome deles, por eles – ainda que com o ganho de se sensibilizar um público que, por si só, não atingiriam. A auto‐crítica e a subseqüente mudança de atitude dos artistas levou à formatação de novos projetos, de caráter mais horizontal, com eixos na relação arte – educação – identidade. Nesse novo lugar, contudo, superadas algumas contradições surgiram outras, pois o ganho indubitável da participação dos moradores veio junto com um novo papel desempenhado ali pela arte, agora próxima à educação. Nesta nova conduta, a diretriz pautada na preocupação com a identidade e a história pessoal dos envolvidos foi tributária das pequenas narrativas de que trata Lyotard. Entretanto, a pergunta que advém destas novas práticas que objetivaram levantar necessidades e expectativas dos moradores refere‐se ao perigo de dissolução da arte em procedimentos culturais, estabilizados. O artista Gavin Adams, a respeito da mesma situação também vivenciada por ele, foi bastante incisivo: “Meu ponto é bastante simples: os coletivos de arte, tomados em sua generalidade, não souberam aproveitar o potencial da situação apresentada pela ocupação Prestes Maia por causa da baixa politização dos coletivos, sua falta de práticas coletivas internas e sua baixa capacidade de escuta.”xxii Sua crítica quanto à compreensão política dos coletivos estendeu‐se ainda a duas ocorrências: 1ª: à participação / cooptação de alguns deles e seus trabalhos ligados à ocupação, numa Virada Cultural, evento organizado na mesma época pela municipalidade, com fins de entretenimento e animação cultural do Centro; e 2ª: à exposição de uma série de trabalhos, numa sala paralela, ligada à IX Bienal de Havana, favorecendo sua divulgação num circuito internacional. Assim, se do ponto de vista urbano houve um olhar atento dos coletivos, capaz de discernir os valores envolvidos nas lutas dos movimentos de moradia e se mobilizarem em função delas, do ponto de vista artístico essa politização mostrou‐se problemática. Com o tempo outros sentidos foram tomando corpo e ressemantizando aquela experiência artística. Dada a sua relevância e todo o empenho ali investido, como podemos entender esses descompassos políticos tendo‐se em vista o mútuo engendramento entre o estético e o político citado anteriormente? Cremos que um ponto central refere‐se à idéia de subjetivação política e seus diferentes significados para os distintos grupos, tanto de moradores quanto de artistas. 11
Retomando‐se a idéia do dano e da partilha do comum, os sem‐teto, sendo situados fora da vida política da cidade, inventaram uma ação cujo objetivo era virem a ser considerados nessa urbanidade. Esta ação política contrapôs‐se à ordem estabelecida da cidade, na qual não há lugar para eles, significando um esforço de enunciação, de construção de sua visibilidade pública, esforço este que é fundamental a toda formação de subjetivação política. Excluídos da fala legítima, os ocupantes investiram suas vidas por inteiro nesta ação, dando consistência à sua subjetivação durante este processo. Eles não eram sujeitos políticos antes dele, nem o permaneceram sendo, depois. Eles o foram enquanto sujeitos do dissenso e à sua medida. A sua ativação em torno da ocupação e todas as suas batalhas foram, para eles, a substância mesma deste processo. E sua ação política foi também, simultaneamente, uma reconfiguração do sensível, do estético, na arena em pauta, visível tanto nas mudanças físicas do edifício a partir da sua presença dissensual ali, como nos encontros e debates disparados a partir daquela situação conflitual. Os artistas, contudo, não foram propriamente sujeitos do dissenso, mas solidários àquele espaço do dissenso, um núcleo de apoiadores. Houve um grau de compartilhamento de valores entre os vários grupos, porém as suas diferenças internas, de acordo com os depoimentos, foram se mostrando no decorrer do tempo de trabalho conjunto. Em relação à macro escala da cidade e sua ordem policial, houve, entre artistas e ocupantes – em certo período ‐ uma voz uníssona, mas não foi assim na micro escala do edifício, onde se apresentaram outros planos de desigualdades. A produção artística, neste contexto urbano, foi um desafio, permeado de ambigüidades, inevitáveis. Conforme a escala de aproximação que tenhamos em relação a ela, percebemos como se configuraram sentidos, nem sempre convergentes entre si. Para o morador da cidade que se deparava com tudo aquilo, tratavam‐se de ações conflitantes, algo distantes do seu cotidiano; do ponto de vista da arte urbana de São Paulo, havia ali um novo desafio, incomum em relação à sua história na cidade e seus precedentes, uma ação de cunho crítico; entre os artistas, com divergências já comentadas, outros vetores e interesses estavam implicados, inclusive relativos às suas inserções nos circuitos específicos deste tipo de trabalho estético; para os ocupantes, o citado descompasso não impediu o reconhecimento de ganhos de 12
divulgação com a presença das intervenções artísticas, dando maior ressonância à sua causa; para o crítico de arte, tão ciente quanto os artistas da mistura cada vez mais intensa entre arte e vida, e da necessária diferenciação entre vida e arte que vigoram no campo da arte contemporânea, aqueles trabalhos corriam o perigo de abrir mão de suas particularidades e, no limite, tendiam a se diluir e se confundir com a existência cotidiana.xxiii
Em síntese, esta experiência artística, por sua singularidade, mostra muito das dificuldades que o trabalho em arte urbana enfrenta no presente, em nossa experiência histórica ‐ tema com que iniciamos este texto. Evidentemente, não há critérios externos nem regras pautando a decisão sobre o que seria, ou não, eficaz em termos estéticos ou políticos. Podemos, enquanto sujeitos da arte, refletir sobre as maneiras com que um pensamento estético vem junto com um pensamento político, e como experienciamos sua formalização conjunta. Talvez esta nos seja indiferente, ou um grito surdo. O que nos interessa é quando nela um indescritível estranhamento sensível articula‐se a uma significação política e adentramos num espaço inédito, tanto cognitivo quanto sensível. Notas i
ZIZEK,Slavoj. A Paixão pelo Real. Entrevista com Vladimir Safatle: http://www.geocities.com/vladimirsafatle/vladi064.htm?200610 ii
ZIZEK,Slavoj. Bem‐vindo ao deserto do real. Trad. Paulo Cezar Castanheira. São Paulo, Boitempo Editorial, 2003, p.19. iii
Idem, pg.26. iv
ADORNO, Theodor W.; Horkheimer, Max. Dialética do Esclarecimento: fragmentos filosóficos. Trad. Guido Antonio de Almeida. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1985, p.15 (original: 1944, Social Studies Association). v
BAUDRILLARD, Jean. De um fragmento a outro. Trad. Guilherme João de Freitas Teixeira. São Paulo, Zouk, 2003 (original: 2001, Éditions Albin Michel). vi
LYOTARD, Jean‐François, La Condition Post‐Moderne, Paris, Les Éditions de Minuit, 1979. vii
LYOTARD, Jean‐François. The Post‐Modern Condition: A Report on Knowledge. Trad. Geoff Bennington; Brian Massumi. Minneapolis, University of Minnesota Press, 1993 (original: Les Éditions de minuit, 1979). viii
LYOTARD, Jean‐François. Answering the Question: What is Postmodernism? Trad. Régis Durand. In The Post‐ Modern condition, p. 77 (Trad. A.) ix
LYOTARD, Jean‐François. Op. cit., pg.80. x
Ibidem, pg. 78. xi
RANCIÈRE, Jacques. A Partilha do Sensível.Trad. Mônica Costa Netto. São Paulo, Editora 34, EXO experimental.org., 2005, pg.12. xii
Ibidem. xiii
RANCIÈRE, Jacques. O Desentendimento. Trad. Ângela Leite Lopes. São Paulo, Editora 34. 1996, pg. 33. xiv
Ibidem, pgs. 12‐3. xv
Ibidem, pgs. 42‐3. xvi
Ibidem, pgs. 61‐2. xvii
RANCIÈRE, Jacques. A Partilha do Sensível, pg.16. 13
xviii
RANCIÈRE, Jacques. The politics of aesthetics. Trad. Gabriel Rockhill. London, Continuum, 2004, pg.63 (original: La Fabrique‐Éditions, 2000). xix
ADAMS, Gavin. Coletivos de arte e a ocupação Prestes Maia em São Paulo. In: Documenta Magazines Online Journal. End.: http://cidadesemnome.org.br/artigos/2007‐1‐gavin.pdf xx
LAMBERT, Gabriela Z. A arte e a educação: ferramentas na construção da cultura de resistência. In: http://pt.calameo.com/read/00001548796dfefafacfc (p. 37). xxi
Idem, pg. 38. xxii
ADAMS, Gavin, op. cit.,p.10. xxiii
NAVES, Rodrigo. O vento e o moinho. São Paulo, Companhia das letras, 2007, Introdução, especialmente pg.18. VERA PALLAMIN ‐ Graduada em Arquitetura e Filosofia pela Universidade de São Paulo, professora doutora na FAUUSP, onde é orientadora de mestrado e doutorado. Desenvolveu pesquisa de pós‐doutorado sobre a relação entre arte e esfera pública na University of California, Berkeley (USA) e na Università degli Studi di Firenze (IT). Livros:´Arte Urbana – São Paulo, região central (1945‐1998)´, Annablume, 2000; ´Cidade e Cultura´ (ed.), Estação Liberdade, 2002, “Conversas no Ateliê – palestras sobre artes e humanidades’ (co‐org. Joaci Pereira Furtado), FAUUSP, 2002.