A dinâmica da auditoria cidadã em França

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A dinâmica da auditoria cidadã em França
A dinâmica da auditoria cidadã em França
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A dinâmica da auditoria cidadã em França
Date de mise en ligne : quinta-feira 29 de Março de 2012
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A dinâmica da auditoria cidadã em França
Passados quase 5 meses sobre a publicação de um apelo à auditoria cidadã em França, o processo entrou numa
fase decisiva e a mobilização popular ganhou uma dinâmica invejável. É notável sobretudo a forma como o carácter
duma auditoria cidadã foi rapidamente apreendido e implementado pela movimentação cívica francesa - o processo
vive da mobilização cidadã a nível local e sectorial.
Aspectos da dívida ilegítima em França Os mecanismos chave de acumulação de dívida em França são típicos:
benesses e ofertas ao capital; transformação dos impostos progressivos em impostos regressivos (as empresas
e os rendimentos mais altos passaram a pagar menos); fuga aos impostos.
A subversão dos impostos progressivos
Antes de 1978 o endividamento do Estado francês era controlado e residual. Representava menos de 5 % do PIB. A
partir de inícios da década de 1980 a dívida pública dispara de forma alarmante: em 1989 já representava cerca de
20 % do PIB; em 1999 tinha subido para cerca de 40 %; nos 9 anos seguintes, às portas da crise financeira mundial,
tinha voltado a duplicar miraculosamente para quase 80 % do PIB. Ou seja, em 30 anos passou de escassas
dezenas de milhar de milhão para perto de um bilião e meio.
Uma das engrenagens desta máquina de endividamento foi a alteração em anos sucessivos da Lei de Finanças como de resto sucedeu em todo o mundo ocidental:
TAXA DE TRIBUTAÇÃO DO ESCALÃO DE RENDIMENTOS MAIS ELEVADOS DOS PAÍSES DO NÚCLEO
FUNDADOR DA UE |1|
país
1986
2007
França
65 %
40 %
Alemanha
53 %
47,5 %
Bélgica
72 %
50 %
Espanha
66 %
43 %
Itália
62 %
43 %
Países Baixo
72 %
52 %
Reino Unido
60 %
40 %
A promiscuidade entre finança e governo
Esta reviravolta fiscal, além de beneficiar os mais ricos e as empresas financeiras, que podem fazer operações
financeiras praticamente sem colecta de impostos, esbulhou o erário público - que assim encontrava uma justificação
para o endividamento público e o fim do Estado social.
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A dinâmica da auditoria cidadã em França
Por outras palavras, os governos decidiram não taxar aqueles a quem iriam pedir empréstimos. Uma enorme
quantidade da riqueza colectiva começou então a ser transferida, sob a forma de juros, para o capital.
Perante este panorama, a famosa expressão «ditadura dos mercados» torna-se ridícula - a finança e os governos
passaram a ser uma e a mesma coisa, como se nota pela dança de cadeiras entre cargos financeiros e cargos
políticos. As duas canções da moda: «Deixar de viver acima das nossas possibilidades» e «Honrar a dívida»
Como disfarçar perante a população esta promiscuidade cúmplice entre governos e finança? - é aqui que entra a
cantiga «A França vive acima dos seus meios», sugerida pelo primeiro-ministro Jean-Pierre Raffarin (2002-2005),
como mote, num documento enviado ao BNP Paribas (um dos bancos responsáveis pelos maiores crimes
económicos e sociais na Europa). Os comentadores portugueses, que tanto gostam de brincar com a ideia
nacionalista de sermos um caso à parte, têm aqui uma boa oportunidade de aprender (ou de serem desmascarados)
- as origens e os procedimentos do endividamento público são iguais em toda a Europa, incluindo os países ditos
dominantes ou do centro.
Uma vez lançado o mote, estavam preparadas as condições para um processo de endividamento desbragado.
Seguiu-se rapidamente uma nova cantiga: «Os Franceses têm de honrar a dívida».
Estas duas cantilenas passaram sem alarmes de monta até à publicação do manifesto dos Economistas Aterrados. |2
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Perante as sofisticadas manobras de evasão fiscal do capital, os governos europeus tiveram inúmeras ocasiões de
optar por uma de duas vias possíveis: 1) Coordenar políticas de combate à evasão fiscal; 2) alterar o sistema fiscal
alinhando por baixo a colecta das grandes fortunas e das operações financeiras. Optaram pela segunda.
Um relatório do deputado Gilles Carrez mostra que sem descidas de impostos os défices públicos franceses
situar-se-iam em 2010 na ordem dos 1,8 %.[3] Segundo Carrez, em 10 anos, graças à regressão fiscal, o Estado
perdeu 77,7 mil milhões de euros em colectas sobre rendimento. Uma vez que as receitas fiscais baixam e o
endividamento é um «golpe desferido contra as gerações futuras», resta fazer cortes brutais nas despesas públicas,
congelar os salários dos funcionários públicos e as pensões de reforma, despedir funcionários e desmantelar o
estatuto da função pública (reestruturação do Estado), privatizar os hospitais, as escolas e os serviços públicos.
Como se vê, a situação em França não difere significativamente da situação portuguesa.
As duas canções da moda: «Deixar de viver acima das nossas possibilidades» e «Honrar a dívida»
Como disfarçar perante a população esta promiscuidade cúmplice entre governos e finança? - é aqui que entra a
cantiga «A França vive acima dos seus meios», sugerida pelo primeiro-ministro Jean-Pierre Raffarin (2002-2005),
como mote, num documento enviado ao BNP Paribas (um dos bancos responsáveis pelos maiores crimes
económicos e sociais na Europa). Os comentadores portugueses, que tanto gostam de brincar com a ideia
nacionalista de sermos um caso à parte, têm aqui uma boa oportunidade de aprender (ou de serem desmascarados)
- as origens e os procedimentos do endividamento público são iguais em toda a Europa, incluindo os países ditos
dominantes ou do centro.
Uma vez lançado o mote, estavam preparadas as condições para um processo de endividamento desbragado.
Seguiu-se rapidamente uma nova cantiga: «Os Franceses têm de honrar a dívida».
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A dinâmica da auditoria cidadã em França
Estas duas cantilenas passaram sem alarmes de monta até à publicação do manifesto dos Economistas Aterrados.[
Manifesto dos Economistas Aterrados,]
Perante as sofisticadas manobras de evasão fiscal do capital, os governos europeus tiveram inúmeras ocasiões de
optar por uma de duas vias possíveis: 1) Coordenar políticas de combate à evasão fiscal; 2) alterar o sistema fiscal
alinhando por baixo a colecta das grandes fortunas e das operações financeiras. Optaram pela segunda.
Um relatório do deputado Gilles Carrez mostra que sem descidas de impostos os défices públicos franceses
situar-se-iam em 2010 na ordem dos 1,8 %. |3| Segundo Carrez, em 10 anos, graças à regressão fiscal, o Estado
perdeu 77,7 mil milhões de euros em colectas sobre rendimento. Uma vez que as receitas fiscais baixam e o
endividamento é um «golpe desferido contra as gerações futuras», resta fazer cortes brutais nas despesas públicas,
congelar os salários dos funcionários públicos e as pensões de reforma, despedir funcionários e desmantelar o
estatuto da função pública (reestruturação do Estado), privatizar os hospitais, as escolas e os serviços públicos.
Como se vê, a situação em França não difere significativamente da situação portuguesa.
A auditoria cidadã em França
Há cerca de 5 meses formou-se um colectivo de pessoas e instituições http://www.audit-citoyen.org/?page_id=2 (CAC
- Colectivo por uma Auditoria Cidadã da dívida pública) que lançou o apelo à realização de uma auditoria cidadã. A
criação desta iniciativa seguiu um rumo bem diferente do que temos em Portugal: 1) o colectivo engloba pessoas,
sindicatos, associações, movimentos sociais, grupos informais (como os Economistas Aterrados) e organizações
partidárias que queiram apoiar e participar como observadoras; 2) o CAC não se constitui como a auditoria cidadã,
mas sim como um motor da iniciativa, entendendo que a acção deve assentar na organização dos cidadãos a nível
local e sectorial.
Compete ao CAC promover ou apoiar iniciativas de formação, esclarecimento e debate público (a nível geral e local),
recolher documentação e informação, publicá-la e pô-la ao dispor dos colectivos locais, responder aos seus pedidos
de esclarecimento e ajuda técnica.
São também objectivos do CAC combater os logros da campanha mediática em curso há vários anos,
desmascarando as duas «canções» acima mencionadas. Estas campanhas, conjugadas com uma visão da auditoria
cidadã que envolve os cidadãos na base, procura não só o esclarecimento da origem e detalhes da dívida, mas
também uma subida acelerada do nível de consciência política da população em geral.
Esta forma de actuar criou uma dinâmica muito viva na sociedade civil - os resultados saltam à vista: uma centena de
colectivos de auditoria cidadã criados por toda a França (-»ver mapa http://maps.google.fr/maps/ms?msa=0...).
Outra das frentes do CAC é a publicação na rede digital de instrumentos de trabalho de vários tipos e manuais de
acção, postos ao dispor dos colectivos locais e da população em geral: como fazer uma auditoria local, como
interpelar aos presidentes de câmara, ministros e deputados, como organizar acções de rua e protesto, etc.
Entretanto, a adesão de um colectivo de produção cinematográfica veio oferecer a possibilidade de fazer um vídeo
sobre a crise da dívida, alternativas e meios de acção.
A conjugação de todas estas iniciativas liberta a população do beco sem saída para onde tinha sido empurrada,
quebrando o «tabu» que fazia da dívida uma questão supostamente muito complexa e reservada a «especialistas».
Esta estratégia está a revelar-se justa e eficaz, como demonstra a proliferação de iniciativas locais.
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A dinâmica da auditoria cidadã em França
Em Dezembro foi alcançada a primeira vitória do processo de auditoria cidadã em França, graças à indagação do
CAC de Saint-Étienne acerca dos empréstimos e investimentos tóxicos que envolviam a câmara local e o Royal Bank
Of Scotland.
Finalmente, é preciso referir que o CAC também promove e apoia inúmeras iniciativas de coordenação e
solidariedade com todos os povos da Europa - entre os quais, no dia 22 do mês corrente, uma concentração, em
Paris, de apoio à greve geral portuguesa que decorreu nesse mesmo dia. A consciência da impossibilidade de travar
uma luta estritamente nacionalista contra a ditadura da finança internacional é uma peça chave do processo de
auditoria cidadã.
Post-scriptum :
fontes:
CAC - http://www.audit-citoyen.org/
François Chesnais: As Dívidas Ilegítimas, ed. Círculo de Leitores, 2012
editores:
RuiVianaPereira
|1| Fontes: SNUI, Pour un serpent fiscal européen. De la concurrence à l'hamornisation, Paris, Syllepse, 2005. Vincent Drezet, Pour un «big bang
fiscal», Montreuil, Attac-Le bord de l'eau Éditions, 2010.
|2| Manifesto dos Economistas Aterrados, http://aterres.org
|3| Assembleia Nacional, «Rapport de M. Gilles Carrez sur le Projet de loi de règlement des comptes et rapport de gestion pour l'année», 2651,
2009.
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