Untitled - Garotas Geeks
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Untitled - Garotas Geeks
Giovana Penatti Desencantou 30 anos de caça aos sapos Ilustrações: Luiza McAllister Dedicado a Todos os envolvidos, desde o começo, de todas as formas, direta ou indiretamente, na produção deste livro. Prólogo Entre as minhas lembranças preferidas da infância, estão as conversas com minha tia sobre praticamente todo assunto. Acho que ela tinha tanto medo de eu não me sentir à vontade de conversar sobre garotos quando crescesse que, entre os assuntos que ela mais falava, estavam os ex-namorados dela! Minha tia, Malu, não tem filhos. Nunca quis tê-los e conta que, quando era jovem, falava para a minha mãe que os sobrinhos seriam como filhos para ela. Eu e meu irmão fomos “adotados”, já que sempre fomos próximos da tia, provavelmente porque ela e minha mãe eram mais próximas que os outros irmãos. Em vários episódios da minha vida, tive duas mães, o que também significou o dobro de broncas, de ligações para saber se eu havia chegado de viagem e de sogras para apresentar para os namorados. As duas nasceram em meados dos anos 50, com um espaço de, acho, uns três anos (juro: não sei a idade da minha tia e ela se recusa a falar). Cresceram durante a Ditadura Militar no Brasil e em meio a profundas mudanças sociais em todo o mundo, inclusive quanto ao papel e à valorização da mulher. Isso tudo refletiu tanto no comportamento ao longo de suas vidas e na maneira como se relacionavam. Mas nenhuma das duas militou pela “causa feminina” ou tinha muita noção do que estava acontecendo. Isso deve ser culpa da minha avó, que fez mais do que podia para que todos os filhos estudassem e trabalhassem para ter sua independência garantida. Por consequência, toda essa ideia também refletiu na minha educação. Primeira neta e primeira sobrinha, eu nasci nos anos 90 e cresci num mundo muito mais livre, em que mulheres podem estudar, trabalhar, ter cargos altos e enormes salários, usar roupas curtas e ficar com quem (e quantos) quiserem. Mas sei que, para elas, não foi bem assim. E, se me sinto segura para fazer tudo isso, é porque elas me ensinaram que ser mulher não me diminui nem me limita. Tanto minha mãe como minha tia tiveram suas influências na minha educação. O lado racional e prevenido lembra a primeira; o apaixonado e impulsivo, a segunda. Essa empolgação toda fez com que a escolhesse para este livro. Reuni cinco entre as muitas que ouvi durante minha vida. Elas falam de namorados e relacionamentos que ocorreram entre os anos 60 e 2000. Cada um, com suas características, aprendizados e momentos, acabam servindo como um espelho das mudanças sociais que foram ocorrendo por esses trinta anos: desde a influência da minha avó, que tensou fazer com que a filha casasse com um cara rico (médico ou advogado, de preferência), até das sogras que a viram como uma alpinista social, passando pelas dificuldades de construir uma carreira sem ter um sobrenome de peso e a sensação de batalhar a vida toda e, um dia, perder tudo. Não foi fácil. Ao pedir para minha tia pensar em alguns namorados que foram importantes para ela e que têm uma história que valha a pena ser contada, ela me deu 37 nomes. Deles, sobraram só os cinco que estão nas páginas a seguir, com nomes fictícios para não comprometer ou expor desnecessariamente ninguém. Este livro não é um ode ao feminismo, nem uma tentativa de criar um recorte no tempo para mostrar a sociedade brasileira. É a história de uma mulher normal que, como todo mundo, procura alguém para dividir os bons e maus momentos. São 30 anos atrás dos sapos, procurando um príncipe. Três décadas de tentativas e erros - ou acertos, depende do seu ponto de vista. E uma vida toda buscando o final feliz que, no fim, está lá. Giovana $ ão é normal passar a adolescência dentro de um hospital. Talvez seja um sinal de que a vida não será normal, não seguirá os padrões ou terá a segurança da monotonia que todo mundo busca e da qual, depois de encontrar, quer fugir. Até os 15 anos, Malu foi uma menina comum do interior. Nasceu e cresceu em Itapetininga, São Paulo, com os pais e os cinco irmãos, dois mais velhos e três mais novos. Eram três meninos e três meninas, entre eles, um casal de gêmeos. O pai era mecânico e trabalhava com trens, contratado pelo governo. A mãe, costureira das boas, fazia vestidos de gala para a alta sociedade itapetiningana. Mas era uma família simples. Os pais trabalhavam muito para pagar as contas e trazer comida para casa. Acabava com os irmãos o papel de cuidar uns dos outros. Mas nunca houve negligência; era mais um caso de aproximação natural, por estarem sempre juntos – especialmente os quatro mais novos, entre os quais Malu se encontrava. Eles frequentavam a mesma escola, brincavam na rua com os mesmos amigos e se metiam em problemas com a mesma facilidade que saíam, sempre com a ajuda um do outro. N Na idade de debutar, Malu começou a ter desmaios frequentes e um cansaço impossível de passar. Esses sintomas a fizeram is ao consultório várias vezes, mas o motivo era indecifrável para os médicos de Itapetininga. Todo mês, novos exames levavam ao combate desses males com remédios diferentes, que não mostravam resultado e apenas causavam mais aflição, gastos e, ainda por cima, pioravam os sintomas. Foi -se mais de um ano em tentativas frustradas de curar o que quer que a garota tivesse e que tentava impedi-la de continuar sua vida normal de menina do interior que precisa estudar, correr na rua e subir no telhado. Enquanto isso, uma protuberância começou a se formar no pescoço da adolescente. Era como uma bóia, o que o deixava anormalmente largo para uma menina magrela de 15 anos. No entanto, isso não abalava Malu – pelo menos, não no aspecto físico, mas incomodava em outros aspectos corriqueiros e que normalmente nem percebemos, como o simples engolir. Até que, com o esgotamento de médicos e remédios de Itapetininga sem que fosse encontrada uma solução, a família buscou ajuda em uma cidade maior: Sorocaba, que, apesar de não ser como uma São Paulo, dispunha de mais recursos. Lá, Malu foi atendida por um dos médicos mais famosos da região: o competente doutor José Carvalho. Ao analisar em seu consultório os exames já feitos, os sintomas da jovem e ver quais remédios ela tomava, ele deu um pulo para trás e jogou os frascos no lixo na mesma hora. - Esses remédios estão te matando! Você está tomando tudo errado! – exclamou o médico, com um tom tão pessoal que fez a garota pensar por um momento que a culpa era sua - O seu caso não é para ficar aqui. Você tem que ir para São Paulo, já que pode se consultar no Hospital do Servidor Público – na época, esse era o melhor hospital da cidade, com os médicos mais bem treinados e tratamentos mais atuais. Se havia cura para o que Malu tinha, era lá que ela iria encontrá-la. Por sorte, seu pai era servidor público e a garota poderia ficar lá. Os exames realizados no hospital atestaram a cruel doença que, até hoje, quase 50 anos depois, sua mãe não ousa dizer o nome: Malu tinha um câncer na tireoide. Identificado o problema, ela ficou aos cuidados do doutor Carvalho e sua equipe, que começaram as cirurgias para remover o tumor. A primeira foi menos incisiva que as outras, mas marcou o início de uma fase em que ela morou no hospital. Mas não há mágoas ou tristezas dessa época, provavelmente por ser muito nova para entender exatamente o que estava acontecendo; a única cicatriz é literal, em volta do pescoço da jovem; essa, sim, a incomoda até hoje. No entanto, nem a primeira nem a segunda cirurgia foram suficientes para segurar o avanço do câncer. Os médicos temiam que se espalhasse por todo o corpo e, para contê-lo, foi necessária mais uma cirurgia, esta mais dramática: um doutor americano veio ao Brasil apenas para fazer a operação, que consistia numa técnica inovadora e ainda pouco testada em todo o mundo. Malu descobriu, décadas depois, ao encontrar por acaso com o doutor Carvalho em um restaurante de São Paulo, que era um tratamento completamente experimental, do qual ela foi uma das primeiras pacientes, uma cobaia. Junto dessa última cirurgia, foi feita uma plástica para tentar minimizar a cicatriz em volta de seu pescoço. Hoje, a tal cirurgia não deixaria a menor marca. Naquela época, por mais delicados que os médicos fossem era impossível deixá-la imperceptível. Os processos de pós-operatórios, quimioterapias e acompanhamentos exigiam a presença de Malu no hospital o tempo todo. Há dias seguidos dos quais ela mal se lembra por conta dos medicamentos pesados que tomava e a deixavam dopada a maior parte do tempo. Sua rotina, durante esses períodos de tratamento intensivo, se resumia em dormir, comer e ir ao banheiro. Principalmente dormir. A partir de então, foi um total de três anos vivendo no mesmo quarto do hospital. Seu círculo de convívio acabou sendo os médico e enfermeiras, além da família. Como era de se esperar, amizades foram feitas – tanto que, nos poucos finais de semana em que podia viajar, houve vezes nas quais Malu ficou hospedada na casa de Lucília, enfermeira morena, cheinha e vaidosa, de traços bonitos e muito carinhosa. Alguns anos depois, foi ao casamento de outra, a loira, simpática e elegante Márcia, em Minas Gerais. A amizade com as duas foi mantida mesmo depois de Malu sair do hospital, já que ela voltava a cada seis meses para passar uma semana fazendo testes e verificar se o câncer havia voltado. Mas, como eram mais velhas que a adolescente, era uma relação bem diferente da que tinha com suas amigas da escola. Com o tempo, essa proximidade com as enfermeiras trouxe, além das amizades e bons momentos, alguns outros benefícios, como não dividir o quarto outro paciente, apesar não ser privativo, e receber visitas da família fora do horário. A mãe da jovem, Cida, aproveitou bastante este último. Os estudos não pararam: as colegas de classe copiavam a matéria e sua mãe levava ao hospital. Assim, apesar de ter passado longe das salas de aula, ela pôde se formar no colegial junto com sua turma e no tempo certo. Tudo foi feito para que, na medida do possível, tivesse uma adolescência normal: lia bastante, fofocava com as amigas enfermeiras, corria no corredor dos quartos com a cadeira de rodas... Como a residência dos médicos durava três anos e esse foi o tempo que Malu passou no hospital, ela se tornou uma grande amiga também dos que acompanhavam seu caso. Com exceção do doutor Carvalho, eram todos residentes que também moravam no hospital. Seu quarto acabou virando sala de encontro para todos jogarem conversa fora quando não estavam trabalhando ou estudando. Se bem que até quando trabalhavam: na visita diária matinal em que faziam o acompanhamento de cada paciente, o quarto de Malu era o que tinha o ambiente mais leve e descontraído por conta dessa amizade. Além da companhia agradável da jovem, um grande atrativo era a televisão que sua mãe havia levado. Quando tinha jogo, o quarto se transformava na sala de torcida dos jovens. Os médicos de quem Malu melhor se lembra eram Mário, um moço alto, de cabelos cheios e castanhos, que usava um óculos de aro grosso; Abdo, que tinha um nariz bastante avantajado; e Antônio, que era baixinho, de cabelos pretos bem penteados e olhos de jabuticaba. Não ti- nha um rosto exatamente atraente; não era bonito nem feio, mas um rapaz comum. O que realmente chamava a atenção eram as boas maneiras, a educação e a conversa. Antônio, afinal, era mais charmoso e interessante do que bonito. Ambicioso e sonhador, queria ser um grande cirurgião vascular – delicadeza e perícia ele já tinha, faltava o treinamento. Dinheiro não parecia ser um problema, pois o jovem era bem nascido. Sua família era de Ituiutaba, no interior de Minas Gerais, e sua mãe, anos mais tarde, lhe comprou um hospital na cidade. Todos os médicos passavam bastante tempo no quarto de Malu, mas Antônio era o que mais ficava. Quando chegava o fim de semana, os outros rapazes voltavam para suas casas e, como ele era de outro estado, ficava no hospital e passava a maior parte do tempo com ela. Às vezes, chegava a cair no sono em um dos leitos vazios do quarto. Embora houvesse um rumor que se espalhava pelo hospital de que ele queria ficar com a garota – e muitos elogios ao caráter de Antônio e comentários sobre como eles dois combinavam - , Malu o via como um rapaz de bom coração, que se preocupava e queria cuidar dela; talvez pela inocência da idade, ela encarava como simplesmente uma relação de amizade. Ele, por sua vez, não forçava nada. Aliás, bem longe disso; hoje, poderia ser chamado de lerdo! Mas fazia parte de sua personalidade discreta e elegante aguardar o momento certo. Mais que isso, era uma característica da época. As intenções de Antônio ficavam bastante claras para a mãe da adolescente, que estava sempre no hospital. Ela apoiava o relacionamento, pois tinha a esperança de que as filhas se casassem com homens que pudessem sustentá-las e lhes dar ótimas condições de vida. Não porque não confiasse na capacidade de cada uma de estudar e trabalhar para se manter, mas, provavelmente, por não querer que passassem por dificulda- des e acreditar que, dessa forma, seria mais fácil assegurar isso. Em certas etapas do tratamento, quando Malu podia sair do hospital, era comum aproveitar o final de semana para dar uma volta pela cidade com o jovem médico. Mas sempre acompanhada de Cida, que vigiava todos os passos da filha, talvez para garantir sua segurança, talvez por algum tipo de ciúme. Foram inúmeros passeios durante o dia na companhia dela até que o casalzinho pudesse arquitetar e confiar em um plano para sair junto, sem a supervisão materna. A primeira vez foi numa noite de sábado. Como a garota estava internada, era necessário que um médico autorizasse sua saída - o próprio Antônio cuidava dessa burocracia, claro. Momentos depois, estavam os dois no carro dele. Malu nunca soube qual a marca, mas era um carro espaçoso e luxuoso, de cor vermelha, que parecia sempre perfeitamente encerado, sem nem uma marca de mão na lataria. O destino do passeio foi o parque do Ibirapuera que, na época, era frequentado à noite por casais que iam aproveitar a privacidade da escuridão das árvores; era um lugar seguro, pois tinha uma certa movimentação e vigias. A noite seguiu como era até aquele dia: dois amigos batendo papo e falando sobre a vida, jovens que se davam bem e gostavam da companhia do outro. Até que, aproveitando um momento de silêncio no fim de uma conversa, Antônio segurou sua mão. Instantaneamente, o coração de Malu deu um pulo. A essa altura, ela até suspeitava de um interesse, principalmente pelo tanto que os amigos comentavam. Mas vê-lo concretizado mudava toda a perspectiva. Além disso, ele era bem mais velho, cerca de oito anos, e isso não a agradava; achava que não combinavam por causa dessa diferença de idade. Ainda assim, os olhos do rapaz não desviavam dos grandes e verdes dela e, quando ele se inclinou para beijá-la, Malu recuou, com os olhos arregalados, assustada com a investida. “Meu Deus, ele quer mesmo me beijar! E agora? Eu não sei como faz isso!”, pensou. - Não! – e virou o rosto de lado, mas sem deixar fugir totalmente de Antônio. Ele se manteve imóvel, apenas olhando para a garota e sorrindo amigavelmente, de uma forma que a fez tão confortável que o primeiro beijo de sua vida ocorreu naturalmente, deixando todos os questionamentos de momentos antes no passado. A partir desse dia, os dois se tornaram namorados, apesar de nunca ter havido um pedido oficial. Na época, um beijo não era apenas um beijo; era como selar um compromisso. Então, mais um elemento foi acrescentado à rotina quase entediante (como todas as rotinas) de Malu. Ela acordava, tomava banho, recebia o café da manhã, a visita dos médicos, fazia a lição da escola, via a família, assistia TV e encontrava os amigos médicos e o namorado em seu quarto. Mas, agora, eles passavam mais tempo sozinhos. Apesar disso, os encontros se resumiam em carinhos bastante comportados. Mais uma vez, o peso da época: Malu era uma adolescente, ainda menor de idade, e havia toda aquela pressão para que se casasse virgem. Antônio, por sua vez, era um jovem de boa família, respeitoso, e nunca faria uma investida mais ousada. A vontade pode falar mais alto que qualquer imposição social, só que não existia. A jovem tinha um sentimento muito inocente por Antônio que não era aquele mesmo de quando os planetas se alinham, o tempo para, aquele de contos de fadas. Nunca foi. Mas era bom tê-lo ali o tempo todo. Foi uma pessoa importante para ela na época, alguém que a ajudou a passar por uma das fases mais difíceis de sua vida. Os passeios dos namorados não podiam ser muito longos, a ponto de fazerem viagens juntos - Malu não chegou a ir até a casa dos pais deles em Minas, pelo menos não nessa época. Ela conheceu a mãe de Antônio em uma das visitas que a mulher fez ao filho. Era uma senhora robusta e bem vestida, de cabelos pretos como os do filho presos num coque alto. Assim como Cida, era elegante e forte, do tipo que faria qualquer coisa por seus filhos. Por sorte, ela ficou tão encantada com Malu quanto seu primogênito, e fez de tudo para que eles ficassem juntos. Mas, às vezes, tudo não é o suficiente. Ainda mais quando não é o casal que está disposto a isso. O tempo passava na mesma rotina de sempre: os dias de semana no hospital e finais de semana, quando podia, ia passear pela cidade. Raramente voltava para sua cidade natal, já que não podia ficar muito longe do hospital. Para compensar a ausência e matar a saudade, não era raro receber visitas de amigos e da família sempre que possível - ela disse que, em algumas fases do tratamento, tinha tanta radiação no corpo que a televisão ficava cheia de chuviscos quando se aproximava, ou seja, passava por isolamento total. Apesar da cicatriz incomodá-la, Malu aprendeu a dar um jeito: até hoje, usa sempre um lenço no pescoço ou uma gargantilha para escondê-la. E, apesar de acordar após as quimioterapias com tufos de cabelo no travesseiro, não chegou a perdê-lo. Ou seja, nos passeios com o namorado, ninguém nem desconfiava que ela estava tratando uma doença séria. Até porque ela nunca se deixou abater. Quando a moça estava no último ano do tratamento no hospital, sua vida começava a voltar ao normal - quer dizer, ao que seria normal para uma garota de, agora, 18 anos. Praticamente curada de seu tumor, com um namorado boa pinta e gente fina que a tratava como uma princesa, havia se formado no colegial no tempo esperado e estava pronta para dar o próximo passo em sua vida. Provavelmente, seria ir à faculdade. Mas a família mal pôde se recuperar completamente de um susto e foi surpreendida por outro. Este, sem final feliz. Foi nessa época que o pai de Malu adoeceu. As décadas trabalhando na ferrovia causaram uma tosse incessante, que se mostrou ser um feroz câncer no pulmão. A demora a identificá-lo fez com que o tratamento fosse ineficaz. Depois de passar meses no hospital em Sorocaba, ele veio a falecer no dia 28 de outubro de 1973. Quase 50 anos se passaram, mas a morte dele ainda é um assunto que deixa toda a família emotiva. É difícil conseguir mais do que algumas palavras sobre o ocorrido, como se ninguém soubesse exatamente o que aconteceu. E, na época, realmente não sabia: Cida não dava o nome à doença e os filhos não ousavam perguntar. Com o tempo, foram associando os sintomas ao conhecimento sobre o câncer e eles entenderam que o pai sofreu do mesmo mal que a irmã do meio. Com tantos pais de amigos que batiam nas esposas, eram alcoólatras, maltratavam os filhos, por quê justamente o pai deles virou o alvo da doença? Cada um teve sua versão da resposta para seguir em frente. A mais confortante, criada pela irmã mais nova, é de que pessoas boas cumprem o seu papel neste plano mais rápido e, por isso, vão embora mais cedo. Foi uma fase particularmente difícil. A mãe, recém-viúva, entrou em uma depressão profunda mas não deixou de trabalhar. Pelo contrário, precisou se esforçar dia e noite para sustentar os filhos, alguns ainda entrando na adolescência. Os mais velhos ajudavam na renda da casa, mas também estavam prestes a seguir suas vidas. No velório, todos os amigos dos jovens estavam presentes - e, como eram seis filhos, dá para imaginar como a sala ficou lotada. Entre eles, o baixinho de olhos de jabuticaba compareceu para, mais uma vez, apoiar a moça de olhos verdes, agora amarelados pela dor de perder o pai. Carlos ficou por alguns dias com a namorada, mas precisou voltar para sua cidade natal. No entanto, prometeu que voltaria para a missa de sétimo dia. A semana toda foi passando como se fosse por obrigação. Os primeiros dias após a perda do pai foram pesados, sofridos, e, sem ter notícias do namorado, nada ficava mais fácil para Malu. Falar com quem morava em outra cidade nos anos 60 não era tão fácil e, portanto, era esperado que ele ficasse alguns dias sem dar notícias. Mas, conforme o fim de semana seguinte se aproximava e Antônio não entrava em contato para dizer quando chegaria, a preocupação da namorada aumentava. Afinal, ele daria um jeito de falar com ela, saber como se sentia nesses dias... Só que o médico nem ao menos avisou que havia chegado em segurança em Ituiutaba. Então, a adolescente pegou o telefone para ligar para ele. Na casa dos pais do médico, ninguém atendeu. Duas, três, quatro tentativas e nada. A solução foi tentar pelo intermédio da telefonista falar com outra pessoa, algum familiar. Talvez fosse algum problema na linha telefônica da casa dele... Malu conseguiu falar com uma tia do rapaz, após passar o sobrenome e a cidade para a telefonista. Com o nervosismo do momento, o nome da mulher que atendeu o telefone foi apagado de sua memória. - Alô? - Oi, você não me conhece, mas estou tentando falar na residência do Antônio Moreira, filho da dona Marina... - Você não soube? - interrompeu-a, imediatamente, com a voz pesada - O Antônio sofreu um acidente na estrada. Foi uma batida com um caminhão em um posto. Ele se machucou bastante e está no hospital já tem alguns dias, mas vai ser transferido para o hospital que trabalha em São Paulo, porque o tratamento que precisa não dá para fazer aqui em Minas. Malu fez uma pausa involuntária na ligação, ficou sem palavras, sem voz. Era por isso que ele não havia entrado em contato! Pelo que a tia disse, nem tinha condições. Imediatamente, ela desligou o telefone, arrumou uma mala rapidamente e foi para São Paulo encontrá-lo e descobrir o que havia acontecido. Mas, mais que isso, para mostrar que estaria ao lado dele para ajudar no que fosse preciso, assim como ele esteve com ela por tanto tempo. Impaciente e assustada, ela passou direto pela recepção ao chegar no hospital, porque já conhecia todos os funcionários desde a época que ficou internada. Foi correndo até o quarto num caminho que pareceu, na hora, levar anos. Ao chegar, o primeiro susto: ver Antônio imóvel deitado numa cama com o rosto inchado e cheio de faixas, especialmente na cabeça, tampando um olho, e na mão direita, que estava completamente coberta. Ao lado dele, o segundo susto: uma moça bonita, mais velha do que ela, com olhar confuso. Antônio ficou sem palavras ao ver a jovem na porta de seu quarto e foi a mãe dele a primeira a falar, antes que qualquer pergunta pudesse ser feita para constranger ainda mais o ambiente. Num tom maternal, como se quisesse abraçar a jovem com suas palavras, começou a explicar: - Malu, querida, esta é Suzana. Ela foi a primeira namorada do Antônio. - Malu, eu não quero você aqui, por favor... - interrompeu o médico. - … Com o acidente, ela foi visitá-lo e eles ficaram mais próximos... - ...Mãe, para de falar e acompanha ela para fora do quarto? - … Então, eles têm se visto esses dias e... - Mãe, presta atenção, eu não quero que ela me veja assim... As cabeças de Malu e da jovem que estava no quarto se viravam de Antônio para sua mãe, ambas confusas, sem entender o que a outra estava fazendo ali ou o propósito da discussão. - … Ela tem ajudado bastante nessa fase difícil, na recuperação dele... - MÃE! - gritou o médico, retorcendo o rosto. Provavelmente, deve ter causado dor. Ele fez uma pausa para passar e se virou para Malu - Eu não quero que você venha me ver. Eu não quero ser um fardo na sua vida, não vou permitir isso. - Não, Antônio... - a garota tentou se adiantar e mostrar que de maneira nenhuma ele seria, mas ele fez outra interrupção. - Só vá embora. Eu não quero você aqui. Não quero ser um fardo na sua vida. Não venha mais me ver. - Antônio, preste atenção, eu só... - Malu - ele olhou fixamente para a garota - por favor. Os grandes olhos verdes mais uma vez amarelaram com a chegada das lágrimas que acompanharam Malu em toda a viagem até a casa da mãe em Itapetininga. Ela não conseguia entender a atitude do rapaz! Por que não queria tê-la por perto? Por que ela não poderia cuidar dele, como ele fez com ela? Esses pensamentos eram permeados por outros, de medo e compaixão com o estado do médico. Ele sempre conversava sobre o futuro: queria ser um cirurgião gastrointestinal e estava estudando e se esforçando para conseguir, algum dia. Agora, com a mão toda enfaixada, será que chegaria lá? E com a visão, que parecia estar comprometida pelo inchaço e pelas faixas na região? Também queria viajar por todo o mundo, mas será que sairia daquela cama andando? Em todo caso, era uma alegria que ele estivesse vivo. Mas ela não conseguia entender o porquê de não poder mais fazer parte da vida dele. E recomeçava o círculo de pensamento, que deu várias voltas na cabeça dela até que se conformasse com o ocorrido. Ainda assim, demorou muito tempo para entender os motivos do médico em não querer que retribuísse o carinho e a atenção que ele teve por ela quando ela esteve no hospital. Assim terminou a primeira história de amor da vida de Malu. Mas não foi a última vez que ela viu Antônio. Cerca de três anos se passaram, outras pessoas entraram e saíram da vida de Malu e, agora, ela era uma jovem adulta de 21 anos. Ele estava recuperado do acidente e foi atrás da moça, talvez por achar que o fim havia sido muito confuso para a garota e quisesse compensar, ou pretendesse dar um fim mais digno ao relacionamento, ou ainda continuar a amizade. Mas, três anos depois, ainda adiantava? Como as mães dos dois se tornaram amigas quando Malu ainda morava no hospital e não chegaram a perder contato, não foi difícil dos ex-namorados encontrarem. A circunstância, talvez, não tenha sido a melhor: Antônio ia se casar com a namorada e foi entregar o convite pessoalmente na casa dela, que agora morava em Sorocaba com a família. Antes de começar a falar, ele deu um suspiro. - Bom... - outro suspiro - Eu vou me casar. - ela tentou manter a expressão neutra, mas um desvio de olhar mostrou que era achava desnecessário falar frente a frente. Não que ela ainda nutrisse sentimentos por ele ou quisesse estar no lugar da noiva. Na verdade, achava uma enorme perda de tempo esse encontro e a ideia de se casar nunca a agradou, fosse com ele ou com qualquer outro. As notícias de casamento eram recebidas com alegria, mas sem aquele drama de “quando será a minha vez?” típico de meninas solteiras. Mas o olhar foi interpretado de outra forma pelo médico, que continuou: - Eu sei que agi errado e as coisas poderiam ter sido melhor esclarecidas na época. Mas é importante que você entenda o meu ponto nisso tudo. - ele fez uma pausa, esperando que ela desse algum sinal de que poderia continuar. Após uma levantada de sobrancelhas, Antônio seguiu em frente - Quando você me viu no hospital, eu sabia como estava e o que iria acontecer comigo. E, se você insistisse, teria que viver com isso para sempre. - ele olhou para a própria mão em cima da mesa e tentou abrir e fechá-la; ela se mexeu só um pouco, denunciando a deficiência dos movimentos. - O acidente foi muito feio. Quando bati no caminhão, o vidro estilhaçou e os pedaços vieram na minha direção, como navalhas. Coloquei a mão na frente por instinto e o resultado foi este. Um dos meus olhos também foi atingido. Já fui até para os Estados Unidos para tentar arrumar, mas... - outra pausa seguida de um suspiro. Essa conversa estava sendo realmente difícil para ele. Malu não sabia como agir. O semblante do doutor entristeceu ainda mais: - E isso é algo com o que eu vou ter que viver pra sempre. Malu se lembrou mais uma vez dos planos que ele tinha. O sonho de ser cirurgião teria de ser abandonado. Antônio continuou: - Aquele dia, te pedi para ir embora porque não queria que sua vida passasse a ser cuidar de mim. Você ainda é nova e tem muito para viver. Se ficasse comigo, seus sonhos também seriam apenas sonhos. E eu levei a Suzana porque sabia que, se você fosse me ver e a encontrasse lá, não iria mais querer ficar comigo. Parti seu coração, mas foi só essa vez, a única, para você poder ser feliz. Enquanto ele falava, era como se todo um quebra-cabeça fosse se encaixando na cabeça de Malu. Tudo fazia sentido, um sentido bizarro, mas fazia! Os dois ficaram em silêncio por um momento, digerindo as notícias, até que ela falou, com toda a leveza do mundo: - Obrigada por ter se importado, mesmo que depois de todo esse tempo... Você também merece ser feliz. Boa sorte no seu casamento. Alguns meses depois, recebeu uma ligação da ex-sogra. Ela queria convencer Malu a ir ao casamento do filho, dizendo que seria um enorme prazer recebê-la por tudo que significou para ele. Malu titubeou por um instante, mas pensou que seria uma maneira quase cinematográfi- ca de dar um ponto final ao caso todo, mesmo anos depois. - Ótimo! Quem sabe, assim, ao te ver na igreja, ele não muda de ideia e... - Não, dona Mariana - interrompeu a jovem, percebendo o constrangimento que a aguardava na cerimônia, sem contar o que a noiva sentiria ao vê-la ali - Obrigada pelo convite. Mas acho melhor não. Eles não precisam desse fardo. Foi a última vez que teve notícias do casal. médico Antônio é quem Malu considera seu primeiro namorado, mas o romance nunca foi oficializado. Hoje, seria considerado algo como uma ficada muito longa, uma enrolação que durou muitos anos. Na época, era um namoradinho, meio sem compromisso, talvez um relacionamento aberto. Por isso, ela não se importou de ir pular Carnaval com os irmãos e os amigos em Itapetininga no ano de 1972, quando ela tinha 17 anos, sem a companhia de Antônio. Além disso, sempre dizia para ele que sabia que ele tinha uma namorada escondida em Minas Gerais. O tom era normalmente de brincadeira, mas, no fundo, a suspeita era verdadeira. O fato de Antônio nunca estar presente quando ela saía com sua turma a incomodava um pouco. Ela estava naquela fase da adolescência em que todas as amigas começam a namorar e os passeios são entre casais. Não dá para dizer que está com alguém se essa pessoa nunca aparece! Algumas das amigas até duvidavam que o moço sequer existisse. Assim, Malu foi a última da sua turma a arrumar um namorado “de verdade” e, por muito tempo, era a única solteira. Como se não bastasse sair sozinha entre casais, ela destoava também pela aparência: era uma jovem bem magrinha, relativamente alta, com o cabelo bastante armado e grandes olhos verdes; definitivamente, não era feia, mas não estava dentro do padrão de beleza. Parecia que ninguém além de Antônio já a havia notado na vida. E, como ele nunca saía com os amigos dela... O Na primeira noite de Carnaval, Malu foi com três de seus irmãos a um bar até que desse o horário do baile da cidade. Ela estava bem arrumada nesse dia, com um short preto e uma blusa estampada com cores alegres e alguns pontos de brilho, que faziam sua pele levemente morena parecer iluminada. O irmão mais velho, Marcelo, viu uma cabeça de cachos loiros que ele conhecia passando. Ele não era um cara discreto: tinha quase dois metros de altura, falava alto e tinha uma risada pausada e rouca contagiante. Falava com todo mundo e seguia à risca a frase “perco o amigo, mas não a piada”. De um jeito que só ele saberia fazer, ficou em pé num pulo e gritou para o rapaz que passava apertado entre uma multidão de outras cabeças mais baixas na calçada: - Ei, sua bicha! Onde vai com esse cabelinho de anjo? A cabeça se virou acima das outras e encontrou de cara quem a havia chamado, porque também pertencia a alguém bem alto. O jovem sorriu e foi se enfiando na multidão em direção aos irmãos. Ao alcançar o amigo, deu um meio abraço e alguns tapas amigáveis nas costas dele. - Cabelinho de anjo, cara? Assim você me queima! - antes que Marcelo pudesse responder, ele se virou para Malu e pareceu ter levado um susto - Brother, quem é essa moça? Prazer. Marcelo - e lhe estendeu a mão. Ela entregou a sua e disse seu nome, tímida. E ele deu um beijo nas costas da mão dela, sem tirar os olhos azuis dos verdes dela. - É minha irmã. - apresentou Marcelo, o irmão - Eles também são - e indicou com a cabeça os outros que estavam ali - Fabi e Zé. São mais novos, só vieram nos acompanhar até dar a hora de irem pra casa. Né? - Vamos ver - respondeu a irmã mais nova, rindo. Era dois anos mais nova que Malu, mas pareciam ter a mesma idade e serem amigas do colégio, já que, fisicamente, não se pareciam. Aliás, nenhum dos irmãos lembrava algum outro. Nem mesmo Fabi e Zé, que eram gêmeos. - Prazer conhecê-los - respondeu o amigo educadamente, ainda sem soltar a mão de Malu, que estava ficando sem jeito. - Falando em hora de ir para casa, é hora de ir pro baile - disse o irmão mais velho, olhando o relógio de pulso. Os gêmeos sorriram - Não vocês. Vamos deixá-los em casa antes. No caminho, Malu e o amigo de seu irmão puderam se conhecer melhor. Ele tinha 20 anos de idade e fazia cursinho em São Paulo. Queria prestar Engenharia no fim do ano e pretendia passar no ITA ou na FEI, que eram as melhores para esse curso - e mais concorridas, o que exigia muito estudo ao longo da semana. Quando chegava o sábado, voltava para Itapetininga, onde a família morava e ele tinha crescido. Conheceu o outro Marcelo, irmão de Malu, através de amigos que tinham em comum e também se tornaram grandes amigos, apesar de não se encontrarem com frequência. Em menos de uma hora de conversa, ela já havia notado que, além de muito bonito, o jovem era incrivelmente educado e também parecia ser muito inteligente. Um rapaz especial, definitivamente. Tão especial que, em vez de se divertir com seus amigos durante o feriado, preferiu passar a noite toda dançando com Malu no baile de Carnaval. E a noite seguinte. E a outra. E, a partir dessa noite, os dois ainda passaram muitas outras noites e dias na companhia um do outro. Para compensar a ausência ao longo da semana, o casal ficavam o final de semana praticamente inteiro juntos. Marcelo chegava de São Paulo no sábado à tarde e ficava com a namorada até a noite; no domingo, voltava para a capital no fim do dia e, quando dava tempo, ia se vê-la mais um pouquinho. Os encontros, no começo, eram fáceis de acontecer. Eles se viam em segredo, pois a mãe dela não iria gostar nem um pouco de imaginar que a filha tinha um médico louco por ela e se aventurava com um simples estudante. Por um bom tempo, tudo deu certo: ela dizia que ia encontrar as amigas e voltava horas depois, sem levantar suspeitas. Todos que poderiam dar com a língua nos dentes eram seus amigos e irmãos, então, não havia esse perigo. O namorado era quase romântico demais e fazia de tudo para valorizar os momentos que estavam juntos e mostrar o quanto gostava da adolescente. A cada vez que se encontravam, vinham flores, chocolates, poemas... Os poemas, aliás, eram um caso à parte. Ele sempre chegava com um papel com versos cheios de figuras de linguagem refinadas, escritos em uma caligrafia quase artística e traços apressados mas graciosos, como se ele simplesmente transcrevesse os pensamentos enquanto eles surgiam. Como Marcelo era de uma família tradicional e endinheirada de Itapetininga, e ainda por cima morava na capital, conseguia arrumar alguns presentes para Malu que eram praticamente exclusivos, tanto pelo preço quanto pela dificuldade de encontrá-los. Mas só um deles ganhou o status de símbolo do relacionamento e relíquia pessoal de um momento de sua vida: um disco de vinil de John Lennon, lançado em 1971. Os dois ouviram uma música numa das escapadas em que a mãe dela achou que ela estivesse na padaria com as amigas, quando, na verdade, estava no bar com o namorado. Tocou no rádio, como havia tocado tantas vezes antes e tocaria novamente depois. Para ela, era só uma música que tinha acordes bem colocados no piano. - Essa música é o hino da paz - disse ele, com o olhar perdido e ar sonhador, quando começou a ouvir os primeiros segundos. Ela esperou alguns outros para identificá-la. - É mesmo? Por quê? - Por causa da letra dela, da mensagem que passa. Imagine que não há paraíso... - e começou a traduzir, graças aos muitos anos estudando inglês. Era raro para a época falar outra língua com tanta fluência, mas ele foi recitando como se fosse um poema que já tivesse decorado há muito tempo. A beleza da letra, somada à interpretação emocionada de Marcelo, fizeram os olhos verdes de Malu brilharem ainda mais fortes. Ela se sentiu absorvida por cada palavra, realmente imaginando um mundo como Lennon descrevia na música. Quando a música terminou e Marcelo percebeu o encanto que havia exercido, decidiu que aquele era um momento que deveria ser eternizado através dela. No fim de semana seguinte, quando foram se encontrar, ele aguardava a namorada com as duas mãos para trás. Logo ao se verem, revelou o que escondia: um pacote quadrado e fino bem grande, embrulhado para presente. Era o maior que ele havia dado até agora, o que causou até um certo constrangimento e fez as bochechas da garota enrubescerem. O namorado pediu para que ela abrisse, mal conseguindo conter a empolgação. Malu o fez com delicadeza, tentando não rasgar o embulho, o que o deixou ainda mais apreensivo. O primeiro buraco no pacote revelou o olho de John Lennon, que parecia observá-la, e ela se apressou em abrir o resto, como se libertasse o rockstar: era o LP Imagine, particularmente difícil de ser encontrado em qualquer loja - até mesmo em São Paulo, em parte devido ao sucesso, em parte pelo fato de ser importado - e, claro, muito caro para os padrões aos quais Malu estava acostumada. - É nossa música. Cuida bem dela - pediu, sorrindo. - É claro que sim! - Malu confirmou, passando o dedo pela dedicatória que estava do lado de dentro do LP. Olhou para o rapaz e lhe deu um abraço apertado para agradecê-lo. De fato, ela cuidou muito bem do presente. No começo, não deixava que ninguém mais o tocasse; se algum dos irmãos quisesse ouvir, era ela quem o colocava na vitrola. Emprestar para os amigos, então, nem pensar. Até hoje o LP permanece praticamente do mesmo jeito que quando foi recebido. Para não arriscar que ele sofresse a ira de algum namorado, Malu o refugiou na casa da irmã mais nova, onde ele está até hoje. O namoro ia muito bem, bem demais. Ela havia encontrado um rapaz que a assumiu, andava de mãos dadas, sentava com ela no banco da praça, dançava junto nos bailes do clube. As amigas que implicavam que o namorado nunca estava junto, ou até que ele não existia, agora tinham que se contentar com seus caras normais, enquanto Malu desfilava com o mais bonito, mais charmoso, mais romântico deles - e, disso, ninguém duvidava. Tanto que, mais de uma vez, ela surpreendeu amigas paquerando o rapaz descaradamente. E também o viu desviar de todas, o que comprovava o amor que sen- tia por ela. Não havia motivos para desconfianças ou inseguranças. Mas havia um grande problema, que impedia que o casal ficasse junto sem nada para atrapalhar: a mãe dela. Enquanto ela não sabia do romance, estava tudo bem. Mas, um dia, a notícia chegou até seus ouvidos. A mensageira foi a vizinha da esquina, a duas casas de distância da qual a jovem morava com a família. Os encontros e despedidas aconteciam ali, debaixo da janela, longe da visão da mãe, todo sábado à noite. Era sempre a mesma coisa: eles se despediam, davam um longo beijo e, quando Malu ameaçava se virar para ir embora, ele a puxava e falava, com a voz mole, “só mais um pouquinho”. Isso se repetia quatro, cinco vezes, até que realmente se despedissem. Nunca foi um problema, até que, talvez por ter acordado num dia ruim, a vizinha se incomodou com a longa despedida. No dia seguinte, pela manhã, foi ao portão da casa de Cida avisar que a filha andava se encontrando com um estudante e que eles “se agarravam” debaixo de sua janela todo sábado. Ela, claro, não reagiu muito bem à notícia. O primeiro passo foi repreender a garota. Assim que voltou para dentro de casa, já foi logo gritando com a filha, que estava comendo um pedaço de pão sentada à mesa, ainda de pijamas. Dizia que uma moça como ela não poderia ficar por aí à noite com qualquer rapaz; que ele não era de boa família; o que os vizinhos iriam pensar; onde já se viu namorar dois ao mesmo tempo; ela poderia estar com um médico e o estava trocando por um mero estudante. Malu ficou assustada, petrificada. Se tivesse acontecido alguns anos mais tarde, compraria uma briga feia com a mãe, mas, naquele momento, não sabia o que fazer. Antes de Cida terminar a gritaria, sua filha se retirou da cozinha direto para o quarto e bateu a porta. A mãe bateu várias vezes querendo entrar, mas ela ficou lá até se acalmar e entender o que havia acontecido. A mãe já estava decidida: Malu não ficaria com o jovem e deveria terminar imediatamente o romance, ou ela mesma faria isso. Foi a primeira vez que a jovem viu do que a mãe era capaz para conseguir o que queria: no começo, proibiu a filha de sair de casa para que os dois não se encontrassem. A velha técnica de dizer que iria ver as amigas não funcionava mais, pois Cida sabia que, assim que pudesse por os pés fora de casa, iria direto para os braços do namorado. Mas Malu tinha a ajuda dos irmãos para encobrir suas fugas, fossem pelo muro de trás da casa, que dava em um terreno baldio e era a saída de emergência deles, fossem pela saída rápida pela frente enquanto a mãe estava ocupada. O resultado na volta era, claro, umas palmadas, muita gritaria e alguns objetos voando pela sala. Conforme as semanas iam passando, a situação não melhorava. O flerte com o perigo era inicialmente até divertido, mas passou a ser um grande problema enfrentado pelo casal. As fugas e retornos eram dificultados pelo fato de nenhum dos dois ter carro. Então, era fácil de vê-los chegando ou indo embora. Cida passou a confiscar as roupas mais bonitas de Malu, para que ela não pudesse sair de casa, pois não queria ir mal vestida se encontrar com o rapaz mais lindo da cidade. Ele tentou algumas vezes visitá-la em sua casa, pedindo para a sogra com toda a educação que ele não sabia deixar de ter, e foi expulso a gritos e ameaças. Assim, a barreira foi aumentando e o relacionamento, ficando desgastado. Com o período do vestibular se aproximando, ficou pior ainda: Marcelo ficava semanas sem voltar para Itapetininga, ou seja, semanas sem notícias, sem saber como a distância afetava o outro, sem conviver. No lugar, foram aumentando a incerteza, a desconfiança, a dúvida e a saudade. E, quando ele ia para a cidade e poderia vê-la, ainda tinha toda a dificuldade imposta pela mãe. Em uma dessa semanas pré-vestibular, Marcelo decidiu fazer uma surpresa. Malu não se lembra se ele não teria aula na sexta-feira ou se pôde faltar porque já havia estudado essa matéria, mas decidiu surpreender a namorada e aparecer em Itapetininga sem avisar. A escola em que ela estudava ficava a dois quarteirões da praça central da cidade. Então, era necessário que a garota passasse por ela para ir para casa, e ele ficou esperando que ela aparecesse. Mas o destino deu uma manobra um tanto quanto irônica. Um jovem da cidade havia surgido na vida de Malu. Era Arnaldo, advogado recém-formado, cheio de dinheiro e indiscutivelmente bonito. Não era muito alto, mas tinha a pele morena, cabelos cacheados bem curtos e um sorriso aberto, mole e contagiante. Mas a principal característica de Arnaldo era o carro. Malu, como de costume, nunca soube qual era o modelo, a marca ou o ano, mas era um carro bonito, com cara de importado, de cor vermelho escuro puxado para o roxo. Era a arma de caça às mulheres do advogado: ele passava na rua atrás das moças que paquerava, passando devagar e soltando belas palavras. Uma delas, era Malu, amiga da irmã do cara. Ele já estava há algum tempo investindo sem sucesso. A convidava para dar uma volta de carro, esperando que a carona rendesse uma conversa e algo a mais, mas nada feito. Após algumas insistidas, ela passou a aceitar a carona. Ainda assim, Arnaldo circulava a praça até que o carrão soubesse fazer o caminho sozinho para que, algum tempo depois, Malu agradecesse pelo papo e pedisse que ele o deixasse em casa. Não que ela não estivesse também interessada - afinal, não era tão ingênua e sabia o que ele pretendia com esses passeios. Mas o tipo canalha não surtia efeito sobre ela. Mesmo sem ter acontecido nada, o histórico de investidas chegou aos ouvidos de Marcelo. Sem ao menos saber como ele era, já não gostava do outro. No dia em que o jovem planejou esperar Malu na praça, os dois mundos colidiram. A garota estava caminhando distraída de volta para casa depois da escola quando Arnaldo se aproximou devagar com o carro. - Olha só quem está aqui! - disse, com uma mão apoiada na janela aberta e a outra no volante. Malu levou um susto leve. - Ah, oi, Arnaldo - foram andando juntos, na mesma velocidade, ele com o carro na rua, ela na calçada. - Tá indo para casa? - É, acabou de acabar a aula. - Sobe aí. - parou o carro - Te dou uma carona. - Não é fora do caminho? Ele abriu seu sorriso característico: - Não se a passageira for você. Ela riu, achando graça da intenção, e entrou no carro. Ele fez o trajeto padrão: praça, círculos em volta da praça, deixá-la em casa. Mas, ao chegar na praça, parou o carro na esquina para esperar a passagem dos pedestres. Foi quando os olhares de Malu e Marcelo se encontraram. Ele, ao vê-la dentro do carro, deixou cair a flor que segurava. Ao ver quem era o rapaz que dirigia, se levantou e sua expressão passou de espanto para raiva. Ela saiu imediatamente de dentro do carro, já querendo se explicar. Os dois foram andando um ao encontro do outro, com as vozes alteradas: - Marcelo! Não é o que parece! - O que você está fazendo no carro desse cara?? - Nada! Não é nada de mais! Não fiz nada! - Como você dá voltinha na praça com esse... - ao ver que Arnaldo observava a briga, pensou em outra palavra - esse cara aí??? Eu estou matando aula para vir te ver e te encontro com outro??? Foi a vez do motorista sair do carro. Apesar de fazer o estilo cafajeste, ele realmente não fazia ideia que a moça era comprometida e achou melhor intervir: - Olha, cara, eu... - Você fica quieto! - gritou Marcelo, apontando um dedo para ele. Malu nunca imaginaria que o namorado, romântico e carinhoso, poderia perder a calma desse jeito e tão de repente - E você, o que está pensando? Que pode ficar desfilando por aí com outro, enquanto eu sofro em São Paulo esperando pra te ver? - Mas Ma... - E sua mãe, sabe dele? Aprova? Ele é bom o bastante? - Marcelo, não é isso... - Quer saber? Pode aproveitar sua carona e ir até o inferno com ela. Pra mim, já deu. Espero que vocês dois sejam felizes. - se virou para Arnaldo - Boa sorte, chapa. Você vai precisar. - e foi embora, deixando Malu desconcertada e assistida por uma larga platéia de estudantes que voltavam da escola naquele horário. Foi a última vez que ela o viu. O maior boicote que a mãe fez foi descoberto anos depois, em uma das dezenas de brigas das duas quando ela tentava impedir a filha de fazer alguma coisa “para seu próprio bem”. Provavelmente, foi por causa de algum outro namorado que ela não aprovou. No meio da gritaria, Malu lembrou das tentativas da mãe de fazê-la desistir de Marcelo. Foi quando ela confessou: - E você nem sabe das cartas! Aquele moleque mandava carta o tempo todo, me encheu a paciência para pegar todas elas antes de você ver. Malu ficou em choque. Os olhos verdes amarelaram com as lágrimas de raiva que surgiam. - Como assim?? Do que você tá falando??? - Toda semana ele te mandava cartas! Eram uns envelopes gordos, enormes, cheios de coisa! Eu tinha que sumir com aquilo antes de você ver! A jovem sentiu o sangue ferver. Toda aquela incerteza que ela sentia, a impressão de que Marcelo não se importava mais, tudo foi fruto da manipulação da sua mãe tentando fazer o que acreditava ser o melhor para ela. Sentindo a vista escurecer, ela se virou e foi embora, com berros incompreensíveis às costas. O que mais a mãe teria feito? Até onde ela teria influenciado não apenas o primeiro namoro de verdade da garota, mas todos depois dele? Afinal, que ela era manipuladora, já era sabido. Mas os limites, agora, não eram mais conhecidos. Em todo caso, Malu nunca culpou a mãe pelo fim do namoro com Marcelo. Ela, aliás, acredita que tenha sido culpa dela mesma, por ter aceitado a carona errada na hora errada. Mas, apesar da tristeza e do orgulho ferido, ela nunca sofreu por muito tempo por causa de um fim de relacionamento e logo já estava em outra. hegou o final da década de 70. Cerca de quatro anos haviam se passado desde a última vez que Malu viu Marcelo e vários rapazes haviam passado pela sua vida: Cláudio, Cláudio da faculdade de Medicina, Cláudio biólogo, um rapaz que era piloto da aeronáutica e dava vôos rasantes (e proibidos) na casa dela para avisar que estava chegando, um dono de uma concessionária, Antônio, que havia lhe dado um descontão para comprar seu primeiro carro e muitos outros do qual ela não se lembra porque não duraram mais de uma noite. Nessa época, Malu estava começando a entrar na vida adulta, só queria se divertir e descobrir o que havia nessa nova fase, sem se preocupar com os (muitos, diga-se de passagem) comentários sobre sua índole. Até dentro de casa ela era alvo de sermões sobre como devia se comportar e sossegar com um cara só, senão nunca arrumaria um marido porque homem não gosta de mulher fácil. Como as pessoas que falavam essas coisas não pagavam suas contas, com exceção de sua mãe, ela seguia sua rotina de cuidar da própria vida. Depois que o pai faleceu, a família toda se mudou para Sorocaba, cidade próxima de Itapetininga e mais desenvolvida, onde seria mais fácil para os filhos estudarem e conseguirem um emprego. Cida teve que se virar para sustentar todos os seis; além de costurar vestidos de gala para a alta sociedade sorocabana, ela alugava um quarto para estudantes que funcionava como um pensionato: lavava as roupas e fazia comida em troca de uma mensalidade. As filhas também ajudavam nessa tarefa. Logo, os filhos começaram a trabalhar e ajudar com seu próprio esforço na renda da casa. Malu cursava faculdade de Administração de Empresas mais por falta de opção do que desejo e trabalhava como secretária numa empresa que fazia turbinas para hidrelétricas. Como tinha bolsa integral, o que ganhava era em parte para dar uma força para a mãe, em parte para pagar suas próprias contas, principalmente a do bar nosso de cada dia, de roupas e outros presentes para ela mesma e para a família. C Nessa mesma época, a jovem teve pela primeira vez um problema sério nos dentes. O dentista do plano odontológico identificou que os sangramentos na gengiva eram coisa séria e seria necessário mais do que uma simples limpeza para curar. Então, ela foi encaminhada para uma clínica em São Paulo para fazer o tratamento, que consistia em uma série de cirurgias bastante complicadas para a época. Quem a atendeu foi um dentista professor da Universidade de São Paulo especializado nesse tipo de operação e seu assistente, um estudante de pós-graduação em cirurgia bucomaxilofacial chamado Horácio. Por muito tempo, a única coisa que ela soube sobre ele era que tinha olhos grandes e verdes como os dela - nem o formato do nariz saberia dizer no começo do tratamento, já que ele estava sempre de máscara. Mas, conforme os meses de tratamento foram passando, os dois tiveram oportunidades de se ver e conversar um pouco no consultório. O nariz de Horácio era fino, assim como seus lábios. Era um rapaz de traços muito bonitos e incrivelmente charmoso, com uma barba densa mas bem aparada, negra como os cabelos. O único defeito que Malu via era o cabelo liso e volumoso, que precisava de um corte bem feito para driblar o rodamoinho e eliminar uma “chuquinha ridícula” que ele tinha no topo da cabeça. Por enquanto, ela tinha os olhos em outro rapaz. Era um advogado baiano chamado Ângelo, que morava em Sorocaba. O que ela mais lembra do rapaz era o carro, um Puma vermelho. No dia em que a última das cirurgias foi feita, Horácio se sentou na mesa do consultório, pegou um raio-x dos dentes de Malu e os inclinou em direção à luz com ar pensativo enquanto ela aguardava sentada na cadeira à sua frente. - Bom, Malu, as cirurgias acabaram, mas eu acho que você ainda deveria vir por mais um tempo. - Por quê? - A gente poderia dar um jeito nos dentes que estão tortos. olhou para ela, colocando o raio-x sobre a mesa - Sou ortodontista e estou abrindo meu consultório no mês que vem, lá na Lapa. Seria um prazer tê-la como uma de minhas primeiras clientes. Posso fazer um preço bem camarada. Os olhos verdes do dentista a perfuraram. Ela recuou com receio, passou a língua pelos dentes discretamente e percebeu que, de fato, mais alguns meses de cuidados poderiam ser de bom uso. Na semana seguinte, foram colocadas as pecinhas de metal nos dentes dela. Como as visitas eram semanais e ela não dirigia na estrada, Ângelo passou a levá-la para São Paulo de carro. Ele ficava dentro do veículo na porta do consultório, esperando o fim da consulta e, depois, faziam algum passeio na cidade, o que saía bastante da rotina de cidade do interior. Nem que fosse só passear no shopping, era um acontecimento. Em uma das semanas, Horácio, que não costumava falar muito sobre sua vida pessoal ou perguntar sobre a de Malu, o fez: - Aquele cara que tem o carro chato é seu namorado? - Carro chato? - Aquele carro achatado que fica parado aí na frente. - É... Não. Não sei. A gente sai. - Vou comprar um carrão desses também. - e ficou esperando uma reação. Sem saber o que fazer, ela somente sorriu - Sério. Vou comprar um melhor ainda, na verdade. - Que bom. Torço para que consiga - respondeu, sem ter certeza de estar falando o que ele queria. Teve ao perceber que ele não respondeu o sorriso. Algumas semanas depois, Malu entrou no consultório e viu Horácio animado, com uma revista dobrada na mão. - Boa tarde... - Boa tarde, Malu! Sente-se. - ela fez isso e ele lhe virou a revista, deixando à mostra uma página de publicidade com a foto de um carro. - Que tal? Bonito, né? - É, bastante... - Comprei essa semana, lá no Salão do Automóvel. - Uau, parabéns! - É um Bianco. Só sob encomenda. Demora uns dois meses para chegar. Verde. - Legal. Deve ser bonito. - E é. Quando chegar te levo para dar uma volta. Malu estranhou o comentário, achou que fosse uma cantada. Mas ignorou o pensamento, afinal, ela estava com alguém. Só que, como ela mesma admitiu anos depois, era difícil um cara ficar por muito tempo na sua vida. Logo a jovem cansava e partia para a próxima. Não foi diferente com Ângelo. Pouco tempo depois da primeira paquera de Horácio, ela ficou solteira e, como não tinha mais a carona do ficante, passou a ir de ônibus para São Paulo toda semana. Em uma delas, o atendimento atrasou. Era para ser às onze da manhã. Horácio passou por ela na sala de espera, a cumprimentou com um aceno de cabeça e entrou no consultório. O tempo foi passando, os minutos viraram horas, outros pacientes chegaram e foram embora, a fome, o sono e a irritação surgiram e cresceram até ficarem insuportáveis. Quando deu seis horas da tarde, último horário, ele abriu a porta do consultório e a chamou, como se não houvesse nada de errado. Ela foi, batendo os pés e fumegando raiva. Ao entrar na sala e o dentista fechar a porta, esbravejou: - Eu estou aqui desde as onze da manhã! Eu venho de outra cidade para me consultar com você, você pensa que isso... - Então, é melhor sentar na cadeira logo para a gente ir embora o mais cedo possivel - respondeu, inalterado, colocando a máscara e com um sorriso de quem estava achando graça na situação. Ela concordou que seria o melhor a fazer e se sentou na cadeira, ainda com os músculos tensos de raiva. Cerca de uma hora depois, quando terminou os ajustes daquele dia, Horácio a convidou para tomar um lanche. Como não havia comido nada desde a manhã e já era noite, a fome falou mais alto que a vontade de ir embora e aceitou. Além disso, pela sua lógica, “um lanche” era só um jeito de falar. Ele já estava paquerando-a há algum tempo, então provavelmente iriam comer em algum lugar bacana. Mas era, literalmente, um lanche: os dois foram comer cachorro quente na lanchonete da esquina do consultório. Acostumada a ser paparicada, não foi o melhor jantar da vida de Malu, para não dizer que foi um fiasco. E ainda teve que comer rápido para não perder o ônibus que a levaria de volta a Sorocaba. - Eu te deixo no ponto - disse Horácio quando a garota se levantou para se despedir do dentista. - Não precisa, é aqui pertinho... - Por favor. Já está tarde para andar sozinha por aí. Enquanto caminhavam para o ponto de ônibus, as mãos dos dois bateram uma na outra por acidente duas vezes. Na terceira, ele segurou a mão dela. Apesar do susto, continuou andando como se nada tivesse acontecido - exatamente o que ele fez. A caminhada até o ponto de ônibus demorou quase uma eternidade após isso, mas eles chegaram junto com o ônibus. - Bom... Então, até sábado que vem - disse a garota. - Até - deu-lhe um beijo, sorriu e foi embora. Na semana seguinte, Malu voltou a São Paulo para continuar o tratamento. Chegou às dez e meia, como de costume, pois seu horário era sempre às onze horas. Horácio chegou na clínica um pouco depois, a cumprimentou com um beijo (que surpreendeu também a secretária) e entrou no consultório. O atendimento atrasou novamente, mas, desta vez, um pouco menos, cerca de uma hora e meia. Mesmo assim, ela foi a última cliente do dia e recebeu um convite para “comer alguma coisa”; agora, uma pizza. Nessa noite, ela se pegou percebendo como ele era uma boa companhia, apesar de fazê-la esperar durante horas para ser atendida. Também era engraçado, apesar de um pouco esnobe e falar daquele Bianco o tempo todo. Além disso, carinhoso e não tirava as mãos dela. Horácio nem precisou pedi-la em namoro. Como agora havia um motivo para ficar em São Paulo, Malu começou a ir para as consultas e passar o fim de semana com o novo namorado. No começo, dormia na casa da irmã mais velha, que morava na região de Santa Cecília, próxima ao apartamento que Horácio dividia com os amigos. Foram meses até que ela dormisse com o namorado, pois dependia do consentimento da mãe - só para evitar o peso na consciência, já que era ela mesma quem pagava as viagens. Horácio, por sua vez, só foi à casa dela cerca de dois meses depois que o namoro começou, quando o tratamento havia terminado e Malu tirou o aparelho. Apesar do medo de como sua mãe reagiria ao rapaz (afinal, Cida não tinha um histórico de aceitação fácil dos genros e noras), Horácio se saiu surpreendentemente bem. Não era para menos: muito simpático, extrovertido e engraçado, Malu se sentiu bem ao ver que as mesmas qualidades que a haviam conquistado também funcionaram para sua família, especialmente para a mãe. Cida gostava tanto do dentista que era o único que podia sentar em sua cama - e até deitava, enquanto falava com a sogra. Nem os próprios filhos podiam fazer isso, porque, para ela, “a roupa vem de fora e suja a cama e a cama só serve para dormir”. E, claro, Horácio também tinha sua cota de puxa-saquismo, elogiando a comida, a casa e dizendo que a senhora parecia muito mais nova. Logo depois da primeira visita à casa da sogra, chegou o Bianco que Horácio havia comprado meses antes. Como prometido, ele levou Malu para dar uma volta depois de uma consulta. - Comprei esse carro para mostrar para você que eu podia ter um carro mais bonito que aquele seu namorado chato que vinha aqui - disse, com os cabelos balançando ao vento com os vidros abertos. - Jura? - disse Malu, rindo - Nossa, obrigada. Achava que você só fosse esnobe. O rapaz deu uma gargalhada. - Também sou, mas isso era só para chamar sua atenção... - Não precisou! - Pois é, poderia ter economizado uma boa grana. Cerca de seis meses depois que começaram a namorar, Horácio se mudou para Guarulhos, em um apartamento que ele havia comprado. Então, ficou ainda mais confortável para o casal passar os finais de semana e feriados juntos. Era uma rotina diferente e legal para Malu; agora, viviam como um casal de verdade nos finais de semana. Como ela tinha uma chave do apartamento, chegava antes que ele voltasse do trabalho. O rapaz chegava cansado na sexta-feira e nesse dia apenas ficavam em casa. No sábado, ele também trabalhava, então ela passava boa parte do dia no consultório o esperando para saírem à noite ou limpava o apartamento para matar o tempo. No domingo, dia da preguiça, ficavam de novo em casa até a hora dela ir à rodoviária para voltar para Sorocaba, à noite. Na semana seguinte, a mesma coisa se repetia. Nos feriados havia um pouco mais de animação, quando iam para Muzambinho, em Minas Gerais, onde os pais dele viviam. Najla, a mãe, era uma senhora de descendência libanesa baixinha e troncuda, com os cabelos bem grisalhos, olhos azuis bem grandes e bondosos e dedos grossos entortados pela artrose. O pai, Edson, era bastante alto e magro, com pouco cabelo branco em volta da cabeça. Malu coloca os dois entre as melhores pessoas que conheceu na vida. Amavam a garota e faziam de tudo para recebê-la bem, especialmente comidas: Edson emprestava a máquina de sorvete caseiro do bar que já havia vendido só para fazer para a nora; Najla passava horas na cozinha fazendo doce de leite, pão de queijo e todo tipo de quitute mineiro que pudesse caber na mesa para a chegada da moça. Toda a família a tratava bem, principalmente a irmã mais velha, que era casada com um fazendeiro e morava em Rio Claro, no interior de São Paulo. Ela se dava muito bem com o irmão - Malu suspeita que até pagava a faculdade dele - e sobrava afeto também para a namorada. Tanto que tem certeza de que era a irmã quem escolhia e financiava as jóias que Horácio lhe dava em datas comemorativas. Até houve uma vez em que ele lhe entregou a caixa de presente e, quando ela abriu, o rapaz pediu para ver o que tinha dentro. No geral, era muito agradável passar os feriados em Minas Gerais com o namorado, até a hora de voltar, em que ele colocava o rádio no futebol e não falava uma palavra o caminho todo enquanto ouvia os jogos. Só havia uma coisa que se repetia toda vez que iam para lá. Horácio tinha uma ex-namorada que não parecia conformada com o fim do relacionamento e sempre ia vê-lo quando ficava sabendo que ele estava lá - e, como Muzambinho era uma cidade ainda menor nos anos 70, não era difícil de isso acontecer. Elis era pequena e magrinha, do tipo mignon, de cabelo castanhos muito longos e lisos. Logo que tocava a campainha, era recebida pela ex-sogra. Incapaz de ser mal educada, a deixava entrar. Horácio a cumprimentava rapidamente e logo fugia da sala, deixando a tarefa de conversar com a ex para a mãe. Malu, claro, o acompanhava, e os dois ficavam refugiados no quarto por um bom tempo até a garota ir embora. Era um tanto inconveniente e ele não demonstrava o menor sinal de que esperava ou concordava com a presença da ex, mas nunca a expulsou de sua casa. Provavelmente, pelo mesmo motivo que a mãe. Durante a semana, era difícil para o casal se falar. Pensar em um relacionamento à distância que dá certo sem quase nenhuma comunicação a maior parte do tempo é estranho, ainda mais no século XXI, em que é quase impossível não encontrar alguém. Mas, nos anos 70, muitas residências ainda não tinham telefone e havia a rotina de trabalho: Malu entrava no trabalho às oito da manhã, então saía de casa quinze para as sete. Horácio só tinha telefone no consultório e começava a trabalhar às sete horas. Ela, depois do trabalho, ia para a faculdade e da faculdade para o bar; chegava em casa muito tarde. Ele trabalhava pelo menos 10 horas por dia e, ao chegar em casa, capotava na cama. A hora em que poderiam se falar seria lá para as seis e meia da manhã. Claro que, às vezes, acontecia uma ligação de consultório para escritório e vice-versa no meio do dia, mas não era comum. A própria Malu, muitos anos depois, ainda se pergunta como que seus namoros assim podiam dar certo. Mas davam; tanto que ficou com Horácio por cerca de seis anos! Um relacionamento tão longo já é quase um casamento e Malu se pegou reparando em pequenas coisas que a irritavam no namorado. Que ele era meio esnobe, ela já sabia, mas isso não incomodava tanto. Estava sempre cansado porque trabalhava muito, e isso era bem frustrante, especialmente às sextas-feiras. O sexo, que no começo era diferente e empolgante, estava na rotina há muito tempo e ela não sentia mais a menor vontade - já ele não podia sentir uma brisa que estava pronto para outra, mesmo depois de trabalhar o dia todo. E era muito caseiro; ao contrário dela, que adorava sair para dançar, ver shows, ir ao teatro e tomar uma cerveja fora de casa, ele nunca fazia isso. Como resultado, ela também acabava ficando em casa. Houve uma vez em Sorocaba em que Malu se arrumou para ir a uma festa e, como o namorado decidiu que não estava afim, ela também achou que seria chato deixá-lo em casa enquanto saía com os amigos. O que aliviava esse defeito era o fato de sair todos os dias da semana na sua cidade. Mas, no fundo, ele não a empolgava para saírem juntos: Malu bebia “que nem homem”, fazia o que tinha vontade e isso não agradaria o namorado. Só havia uma coisa que a incomodava e ela podia mudar: o estilo de Horácio. Ele se vestia muito mal, com roupas que não combinavam, tinham corte esquisito e nunca de acordo com a ocasião. Malu, um dia, sugeriu que trocasse a camisa. Outra vez, levou uma peça nova de presente. Aos poucos, foi mudando o guarda-roupa do rapaz e fez com que ele tivesse uma apresentação melhor. Isso acabou deixando-o mais confortável para sair com ela e também com uma imagem melhor para trabalhar. Mas ainda tinha a chuquinha do cabelo, que foi um mal cortado pela raiz, quase que literalmente: a moça marcou um horário em um salão de elite no bairro do Jardins, em São Paulo. A ideia não o agradou em nada, afinal, além de ter que mudar o visual, teria de pagar - e bem caro - por isso. Mas, com o rodamoinho controlado, passou a achar que valia a pena o investimento e se manteve sem aquela porção de cabelo que crescia para cima no topo da cabeça. Outra coisa que a incomodava eram os planos de Horácio para o futuro. Às vezes falava em casamento, algo que ela nunca desejou, ainda mais como ele dizia: quando se casassem, a moça nunca mais iria trabalhar, apenas cuidar da casa. Para quem trabalhava desde jovem e foi ensinada pela mãe que toda mulher deveria estudar o máximo que pudesse e ter um emprego para garantir sua independência, isso era quase ofensivo. Malu viu na prática como era importante ter essa garantia quando seu pai faleceu e a mãe precisou manter toda a família. Apesar de não ter estudado além da quarta série, Cida havia aprendido na prática a costurar e a cuidar do dinheiro. Apesar de ter durado muito tempo, Malu descreve o relacionamento como “insosso”. Com o tempo, ela percebeu que vivia, aos finais de semana, uma vida de casada. E era um casamento bastante sem graça, que não combinava com seu espírito livre e agitado. Horácio começou a ser cada vez menos atencioso e companheiro. Certa vez, durante uma discussão, ela falou que, se passasse do outro lado da rua, ele não a notaria. Ele respondeu que notaria, sim, porque era toda espalhafatosa e não dava para passar despercebida. Não era exatamente a resposta que esperava, mas combinava com o jeito piadista do namorado. Nessa mesma época, quando o relacionamento caiu em um tédio profundo, ela sentiu que havia algo errado - Malu culpa o sexto sentido por vários términos de relacionamento. Como de costume, chegou o fim de semana e ela iria para Gua- rulhos vê-lo. Mas seu irmão Zé ligou para dizer que o pai de sua namorada havia falecido naquela noite em um acidente de carro e ela foi para São Paulo para o velório. A intenção era só dar uma passada e uma palavra de conforto para a família. Mas, vendo como estavam todos desolados, achou que seria rude ir embora. Apesar de ela e a cunhada não serem melhores amigas, a moça era praticamente da família. Somente depois do enterro, na tarde de domingo, Malu foi encontrar Horácio em Guarulhos. Até essa hora, não havia tido notícias dele. Até ligou para a mãe em Sorocaba para saber se ele tinha lhe procurado - nada. Então, pegou um ônibus e foi para o apartamento dele. Chegando lá, foi recebida com bastante desinteresse. O diálogo faz parecer uma vingança do fato de que ela só chegou no domingo à noite para vê-lo, mas Malu garante que não foi isso: - Eu cheguei em São Paulo ontem, mas não deu para vir te ver... - Tudo bem. - É que o pai da namorada do Zé faleceu esta semana, num acidente de carro. - Que chato. - Não deu para te avisar porque estava sem seu telefone - ele deu de ombros - mas você poderia ter me ligado, né? - Ah, não deu. Ele nem mesmo a olhava, concentrado na televisão. Naquele momento, percebeu como estava o relacionamento e essa foi a gota d’água. Pediu que a levasse na rodoviária porque já estava tarde. Ele se levantou na mesma hora, desligou a TV, pegou a chave do carro e foi saindo do apartamento, como se tivesse tido a ideia de ir dar uma volta naquele mesmo momento. O caminho até a rodoviária demorou uns 20 minutos de um silêncio massacrante. Quando Horácio parou o carro para deixá-la, ela estendeu a mão com uma chave. - O que é isso? - perguntou, assustado. - Se você não se importa mais, eu também não me importo. Entregou a chave, saiu do carro e sumiu dentro da rodoviária. Horácio engatou a primeira marcha e voltou para sua casa. Demorou um mês para que ela tivesse notícias dele novamente. Elas chegaram por meio da babá de Horácio, que ainda trabalhava na casa de Najla e Edson e telefonou para espalhar a fofoca do ano da cidade de Muzambinho: - Malu, você não sabe o que está acontecendo aqui. A cidade tá um buchicho só por causa do Horácio! - Como assim? - A Elis tá grávida e todo mundo sabe que o filho é dele! - Como assim? Faz um mês que nós separamos e ele já engravidou alguém?? - Malu, a história que eu ouvi é que eles já estavam se vendo há uns quatro meses. Mas só ouvi agora - emendou, temendo represálias - Ela ia vê-lo durante a semana, quando você não estava lá. Daí, deu no que deu. A história, claro, deixou Malu chateada. Mas foi um caso de orgulho ferido, segundo ela. Além do mais, comprovou sua sensação de que havia algo errado. Alguns anos depois, Malu teve outro problema nos dentes. Segundo o dentista que procurou, seria necessário fazer uma série de cirurgias para corrigir. Em busca de uma segunda opinião, ela marcou uma consulta com Horácio, para que ele desse seu diagnóstico. Assim que entrou na sala para ser examinada, Elis foi junto, a cumprimentou com um aceno de cabeça com a expressão fechada, e ficou sentada à mesa enquanto o marido a atendia. Terminado o trabalho e com a solução para o problema de Malu apresentadasem necessidade de fazer as cirurgias - ou seja, sem precisar aguentar Elis seguindo seus passos pelo consultório - a esposa finalmente falou: - E agora? - Tem que levar ela lá - respondeu Horácio, como se estivessem em algum tipo de conspiração. - Onde? - perguntou Malu, assustada. Horácio suspirou. - Na minha casa. - Fazer o quê?? - Elis tomou ar para responder, mas Horácio interrompeu: - Se você falar, ela não vai - olhou para Malu - Tem uma pessoa que quer te ver. O casal foi no carro da frente e Malu foi atrás, com o seu próprio. Ela imaginava que fosse o filho deles, que tinha uns três anos. Mas por que uma criança de três anos iria querer conhecê-la? Os carros pararam em frente ao prédio de Horácio. Mas o grupo foi para o que ficava do outro lado da rua, que era onde ele morava agora com a esposa e o filho . Malu tinha visitado com ele o apartamento quando ainda namoravam; eles pensaram em comprar um lugar para morarem juntos, mas a ideia ficou no passado. O filho deles estava brincando num canto da sala. Tinha os cabelos bem escuros e olhos verdes como os do pai. E, sentada numa poltrona, estava Najla. Ao ver Malu, ela se levantou, a abraçou forte e, lacrimejando, não deixou a garota falar: - Malu, querida, olha só tudo isso! Tudo podia ser tão diferente nas nossas vidas! Olha só este lugar! Eu gosto tanto de você, era para ser tudo tão diferente! - e continuou dizendo coisas nessa linha, enquanto o filho se sentia visivelmente desconfortável e a nora fuzilava Malu com o olhar. De tão nervosa que estava, não se lembra de como saiu daquela situação. Foi a última vez que viu Najla e esperava que fosse a última que visse Horácio e Elis, também. Mas, quase 30 anos depois, ela foi atrás das habilidades de Horácio como dentista mais uma vez. Desta, o problema era sério: seria necessário fazer cirurgia em todos os dentes, e rápido, para não arriscar perdê-los. Como temia que ele não quisesse atendê-la, usou um nome falso para marcar a consulta. Quando chegou no consultório e disse que tinha um horário marcado com Horácio, a secretária pareceu surpresa e nervosa, como se estivesse diante de alguém famoso. Pediu que ela aguardasse, pegou o telefone e sussurou algo. Alguns minutos depois, uma moça de roupas brancas entrou na sala de espera com alguns papeis, olhou para Malu, arregalou os olhos e foi até a recepção, deixou os papeis, sussurrou algo rapidamente e voltou, mais uma vez dando uma bela olhada. A porta se abriu mais uma vez e Horácio apareceu. Estava um pouco mais gordo e calvo, mas ainda muito bonito. Chamou por Maria Lúcia e, quando Malu se levantou, ele fez a mesma expressão que a secretária e a outra dentista haviam feito. Sentou-se na cadeira atrás da mesa para conversar com a paciente e aparentou estar muito nervoso enquanto mexia no computador para abrir um formulário. Ela foi tomada pela curiosidade: - Você ligou o nome à pessoa? - É claro que sim! - exclamou, como se isso o estivesse torturando - Como que não lembraria? - pôs a mão dentro da blusa pela gola e puxou uma corrente - Lembra disso? Era uma corrente de ouro, com uma plaquinha que tinha uma cruz vazada. Um presente que Malu havia dado há quase 30 anos, num Revéillon. - Eu nunca tirei. - continuou - Nem para tomar banho. Nem para casar. Espantada e um tanto lisonjeada, ela se ajeitou na cadeira. - Você pareceu bem surpreso ao me ver. O consultório todo, aliás. - Acho que eles te reconheceram. Mas você não veio aqui para falar de mim - sorriu e perguntou o que havia de errado com os dentes dessa vez. Após quase uma hora examinando a situação, explicou com detalhes qual era o problema e como seria feita a cirurgia. Mas disse que não faria; em vez disso, a encaminhou para uma dentista mais jovem que trabalhava no consultório - a mesma que havia passado pela sala de espera e reconhecido Malu, chamada Mariana. Na primeira consulta, na semana seguinte, Mariana estava em- polgadíssima. Chamou a paciente para dentro do consultório e as duas ficaram quase uma hora conversando sobre Horácio. Foi aí que Malu entendeu as reações no consultório dele: todo mundo lá a conhecia. Ele contava a história do namoro para todos, com descrições minuciosas da namorada, com ênfase nos grandes olhos verdes. Então, quando ela apareceu, foi fácil de reconheê-la - deveria ter pensado num nome falso melhor. Ao falar da ex, Horácio ainda emendava um discurso no qual Elis era a culpada por não terem ficado juntos, pois ele foi apaixonado por Malu a vida toda. - Ele também odeia todo tipo de relacionamento e acho que, se pudesse, tornaria casamento ilegal. Fala que vida de casado é um inferno. Quando a filha falou que estava noiva, só faltou bater nela. Acho que é porque ele casou à força, logo que ficou sabendo que a Elis estava grávida. - Se ninguém ameaçou de morte, não foi à força. - Bom, talvez isso tenha acontecido, não sei. - Malu se assustou e a dentista deu risada - A história que conheço é que a mãe dele ligou falando para ir o quanto antes para Muzambinho, pois ela precisava lhe contar uma coisa séria pessoalmente. Ele achou que ela estivesse doente ou alguma coisa assim e foi correndo. Chegando lá, encontrou Elis com o pai e um monte de malas na sala da casa dele. Parece que o pai dela falou “agora, leva para São Paulo, que eu não quero minha filha grávida e solteira debaixo do meu teto”. Eles começaram a morar juntos e praticamente casaram a partir desse dia. Depois, claro, teve a cerimônia... - Uau, eu não sabia dessa história! - Pois é. Ele me parece ser bem frustrado. Vive dizendo que a única coisa boa que aconteceu com ele na vida foram os filhos. E, quando ele me passou seu histórico de paciente, contou que você esteve no consultório e disse que deveria tê-lo procurado antes... Não é? - e sorriu. - Vamos à consulta? - sorriu de volta. erca de um ano depois do fim do relacionamento de Malu e Horácio, ela trabalhava como secretária na fábrica de uma multinacional em Sorocaba. Não era o emprego dos sonhos, mas dava para pagar as contas e tinha alguma perspectiva de crescimento na empresa agora que a faculdade de Administração de Empresas estava terminada. E o pessoal que trabalhava lá também compensava o salário que, como todo salário inicial, não era aquelas coisas. Uma das pessoas que faziam a rotina valer a pena era Vani, que trabalhava no setor de Atendimento. Todos os dias, ela e Malu saíam direto do trabalho para a região central da cidade, onde ficava o bar preferido das duas, bem em frente à faculdade de Medicina. Por ser universitário, estava sempre cheio e era até difícil de achar lugar para sentar - não para elas, que, como eram clientes diárias - e, diga-se de passagem, muito bonitas - sempre tinham uma mesa reservada. Então, pediam chancliche, um tipo de queijo árabe, amassado e temperado com azeite para servir de aperitivo com fatias de pão, e tomavam quantas cervejas coubessem das seis da tarde às onze da noite. Em um desses finais de tarde, dois moços que elas nunca tinham visto apareceram no bar. Um era alto, bonito, sorridente, de belos olhos claros e muito charme - como se fosse uma versão brasileira de Danny Zuko, o personagem de John Travolta em Grease. O outro era o oposto: baixinho, não muito bonito, com um estilo quase desencanado demais para alguém que estava num bar em frente à faculdade de Medicina lotado de estudantes ricos e arrumadinhos. Ele usava uma bata desbotada de mangas compridas, calça jeans e um tamanco de madeira, que fazia barulho de casco de cavalo quando andava. Também tinha uma bolsa-carteiro de couro já amolecido pelo uso e o cabelo que queria ser longo, mas parava na altura dos ombros e também não tinha mais muito sucesso em cobrir toda a cabeça: o rapaz tinha duas grandes entradas de calvície. Os dois moços, tão opostos, se aproximaram da mesa de Malu C e Vani. - Podemos sentar? - disse o alto, com um sorriso aberto e mais esticado de um lado. - Claro, claro! - apressou-se Vani, puxando a cadeira para o lado para que ele se sentasse ao lado dela. O outro rapaz puxou uma cadeira e se sentou ao lado de Malu. Apesar de ter ficado um pouco incomodada com o bonito sentar-se com a amiga, teve que concordar que Vani e seu um metro e setenta e seis não combinariam com o outro moço.E, no fim, eles acabaram se tornando apenas amigos. Já Malu e o outro rapaz... Ele se chamava Paulo e era primo do outro, Marcos. Era um engenheiro civil recém-formado que morava em Campo Grande, no Mato Grosso do Sul, e ia para Sorocaba visitar o pai, que se dividia entre as duas cidades. Mesmo depois de conhecê-lo por anos, Malu nunca soube qual era a profissão do pai; apenas que tinha muito dinheiro. Por causa disso, Paulo podia se dar ao luxo de ser um bon vivant. Bem nascido, trabalhava por hobby e quando tinha vontade de ajudar o pai a administrar seus negócios. Na noite em que se conheceram, ele mostrou que, apesar de não ser bonitão como o primo, tinha uma personalidade conquistadora. Era muito divertido e inteligente, do tipo que vira o centro da conversa enquanto todos apenas ouvem suas histórias. Começou, então, a dar algumas indiretas para Malu, paquerando entre uma risada e outra. Ela, trocando olhares com Vani, achou melhor não reagir, fingir que não havia entendido. As horas se passaram e, quando o dono gritou de trás do balcão que iria fechar o bar, o grupo percebeu que todos os outros clientes haviam ido embora. Não era algo incomum para as garotas, mas os rapazes sorriram orgulhosos por acharem que conseguiram segurá-las até tarde no bar. Impediram que elas pagassem a conta e se ofereceram para acompanhá-las até suas casas, como cavalheiros. - Não precisa, eu moro aqui perto e deixo a Malu em casa de carro. - Nós também estamos de carro. Podemos deixar primeiro você, depois ela e poupar a caminhada – insistiu Marcos. - É melhor não – disse Vani com firmeza, como se não quisesse que os rapazes soubessem onde ela morava. - Tudo bem – disse Marcos, levantando a sobrancelha. - E como podemos encontrar vocês de novo? – emendou Paulo. - Estamos sempre aqui. – respondeu Malu. - Mas como vamos saber qual dia? - Eu disse sempre – enfatizou, sorrindo. Se despediram e cada dupla foi para seu caminho. Na noite seguinte, como de costume, Malu e Vani foram para o bar depois do trabalho comer queijo árabe amassado no azeite com pão e tomar cerveja. Quando a porção estava quase no fim, foram surpreendidas pelo moço alto e bonito e pelo baixo e não tão bonito, que já chegaram como velhos conhecidos das garotas: cada um puxou uma cadeira e cumprimentou as garotas com beijos no rosto. - Que surpresa, vocês aqui de novo! – disse Vani. - Vocês disseram que vêm sempre aqui – disse Paulo, se sentando e olhando para Malu - então, quisemos comprovar. Nessa noite, a conversa não foi tão empolgante quanto a anterior. Talvez a presença deles tenha sido pretensiosa demais, mas a companhia era agradável e rendeu boas risadas, além das cantadas de Paulo em Malu, cada vez mais insistentes. Praticamente a mesma coisa se repetiu por outras duas noites. Na última, na hora de se despedirem, Paulo deu um longo abraço em cada uma das duas e disse “até a próxima”. - Ué, a próxima não é amanhã? – riu Malu. - Eu vou voltar para Campo Grande amanhã – disse Paulo sério – e só volto para cá daqui uns dois ou três meses. A não ser que alguém queira que eu volte antes, claro. – ela riu novamente, sem graça. - Se você puder, não vai ser ruim. – lhe deu um beijo rápido e foi embora, deixando o rapaz sorrindo com a conquista. Malu demorou para descobrir que aquele beijo a tinha colocado em um relacionamento. Afinal, foi só um beijo. Eles se viram novamente, mas cerca de uma vez ao mês, quando Paulo ia para Sorocaba ver o pai ou quando passava uma semana na cidade durante as férias. Então, ficavam juntos; ao ir embora, a vida voltava ao normal. Isso, para ela, não configurava um compromisso. Eles se falavam esporadicamente por telefone graças a Marcos, que tinha o número de Malu. Mas, para ela, as ligações eram apenas conversas entre amigos e um quase não tinha notícias do outro a maior parte do tempo. Em Sorocaba, como se considerava uma mulher solteira, ela continuava paquerando quem lhe interessasse e saindo com quem tivesse vontade. Foi quase um ano nessa rotina, tempo suficiente para o Brasil ganhar uma Copa do Mundo, uma série de aniversários serem comemorados, Paulo passar uma semana de férias na cidade e Malu descobrir outro bar preferido. Numa sexta-feira, ela estava com seus amigos e suas cervejas nesse bar. Ela não sabia, mas Paulo havia chegado na cidade e estava à sua procura: ligou em casa e sua mãe disse que ela havia saído com os amigos, mas não sabia para onde. Ligou no bar onde se conheceram e o dono disse que há semanas a garota não aparecia lá. Tentou outros dois bares daquele mesmo estilo que conhecia, pedindo para falar com Malu – se ela tinha um novo bar preferido, com certeza já era conhecida do local. De fato, era mesmo. O bar havia sido inaugurado há pouco tempo e, como Malu o frequentava desde o início, conhecia um dos donos e ele acabou se interessando por ela após uma noite em que ela achou que fazia todo o sentido do mundo contar de sua vida para ele (no dia seguinte, passou a tarde abraçada com dois litros de água e jurou nunca mais beber). Essa paixonite fez com que ela ficasse conhecida também dos clientes: toda vez que chegava, o dono tirava qualquer música que estivesse na jukebox e colocava Papel Machê, de João Bosco, uma música que ela havia revelado adorar quando se conheceram. O problema é que acabava com o clima de animação do recinto, que demorava outras três faixas para ser recuperado. Outro motivo pelo qual era conhecida pelos clientes era sua habilidade com álcool. Malu chegou a fazer muitos rapazes serem carregados para casa ao tentarem acompanhá-la no caneco, enquanto ela voltava a pé – trançando as pernas, mas sozinha. Na segunda tentativa de encontrar a “namorada”, Paulo recebeu um “só um momento” como resposta. Em seguida, ouviu um grito abafado de “Malu, telefone pra você!” e, logo depois, a voz mole de quem já estava há um bom tempo virando copos. - Alô? - Malu? – já ficou irritado ao perceber o álcool na voz. - Ah, é você? - Eu não deveria ter ligado. Esse horário e você já bebeu!! - Eeeeeu?? Eu não bebi nada! - Eu estou ouvindo na sua voz, Malu! – disse, irritado, quase uma bronca. - Eu não bebi, não. Tô com sono. É isso, é sono. Alô? Alô-ou? – ele desligou o telefone. Ela deu de ombros, devolveu ao seu admirador e voltou para a mesa. Alguns minutos depois, Paulo apareceu no bar andando rapidamente e com os ombros arqueados de raiva. Pegou Malu pelo braço, interrompendo uma conversa, e ordenou que ela fosse embora com ele. O bar todo parou e passou a assistir a cena. Malu virou a cabeça para ele, assustada: - O que é isso? O que você está fazendo? - Vamos, que você não devia estar bebendo. Vamos pra casa! – ela bateu na mão dele como quem espanta um inseto. - Sai daqui! Eu trabalho e pago minha própria cerveja. Você não tem nada a ver com isso! – o bar todo segurou a respiração e as risadas com essa resposta. Os dois, no entanto, agiam como se ninguém os observasse. - Como não?? Eu sou seu namorado! – o ar pesou. - Quê?? - Eu sou seu namorado e você não pode me tratar assim! - Mas eu não sabia que você era meu namorado! – ela fez uma pausa e o tom da voz acalmou – Mesmo assim, você não pode entrar no bar desse jeito e achar que eu sou sua propriedade. – terminou de tomar sua cerveja em uma virada só – Pronto, agora podemos ir. E, como sou sua namorada, me deixe na minha casa que estou com muito sono. Os dois saíram de mãos dadas e o alto ruído de conversas voltou ao bar. Apesar do namoro oficializado, as coisas não mudaram muito. A frequência de visitas não aumentou e as idas de Malu ao bar não diminuíram. Isso tudo, no entanto, não era um problema para ela. Sua prioridade era se estabelecer profissionalmente, conseguir uma vida estável e casamento ainda não estava nos planos. Não lhe faltava ambição nem talento. O que seria uma boa ajuda, é claro, seria dinheiro para quitar a dívida da faculdade, começar um negócio próprio e se dedicar ao que realmente lhe fizesse feliz na profissão. E Paulo tinha muito dinheiro, o que levantava suspeitas da família dele quanto às intenções de Malu nesse relacionamento. Como a mãe de Paulo também vivia entre Sorocaba e Campo Grande, demorou para que as duas se conhecessem. Além disso, Malu não fazia a menor questão de conhecer a família dele, pois já sabia o trabalho que envolver os familiares no relacionamento poderia dar. Mas, quando a mãe dele desenvolveu um hipotiroidismo, Paulo insistiu para que a namorada fosse conversar com ela e tranquilizá-la. - É uma ótima oportunidade! Você só precisa falar que você já teve isso e não teve problema. Assim, a gente mata dois coelhos de uma vez: ela te conhece e já gosta de você. Vamos! Malu suspirou e, contrariando seu sexto sentido, que a mandava ficar longe da família dele, concordou. A visita foi algumas noites depois, num sábado. Malu demorou um pouco mais que o normal para se arrumar porque queria causar uma boa primeira impressão. Chegando na mansão que ocupava meio quarteirão num bairro novo de Sorocaba, foi recebida pelo namorado e por sua mãe, uma senhora bonita e muito elegante que aparentava ser relativamente jovem, como se tivesse tido os filhos ainda nova. Acompanhando-os, entrou numa sala enorme, que era facilmente três vezes o tamanho da de sua casa. A decoração, impecável, em estilo Luís XV, dava ainda mais cara de palácio. Nem parecia que alguém morava ali, de tão arrumado. A família caminhou até um dos sofás e ela sentiu um pouco de pesar ao vê-los pisando no tapete. Tinha cara de custar mais que a casa toda de Malu. - Sente-se, fique à vontade - disse a mãe, apontando um lugar no sofá ao lado. Malu se aproximou tímida, sem nem saber como se sentar naquele tecido clarinho que parecia ter sido passado a ferro. Enfim, tentou agir naturalmente. A estratégia parece ter funcionado. A senhora foi simpática e atenciosa, apesar do semblante desconfortável que mostrava enquanto Malu falava do tratamento pelo qual passou dos 15 aos 18 anos. Pelo visto, apenas Paulo achou que seria uma boa ideia colocá-las para falar sobre esse assunto no primeiro encontro. Terminada a conversa, que não durou mais de 20 minutos, a mãe se levantou e convidou Malu para conhecer o resto da casa. Era um sobrado com quatro quartos. O primeiro pelo qual passaram era o das netas, filhas do irmão mais velho de Paulo. As duas meninas dividiam o mesmo quarto quando iam visitar os avós em Sorocaba. “Este é o quarto das nossas princesas”, disse a sogra, cheia de orgulho. A fala fez todo o sentido, porque as camas eram bem grandes para duas crianças e tinham um dossel feito de um tecido fino com flores nas barras. Era uma suíte com um banheiro grande, uma banheira redonda e um detalhe muito caprichoso: havia uma fileira de azulejos com araras pintadas à mão. O mesmo tema se repetia nas portas dos armários e cada suíte tinha um tema diferente. Outro cômodo que chamou a atenção da jovem foi a garagem, que era subterrânea e acomodava facilmente uns dez carros, mas estava vazia naquele momento. Mas todo o luxo da casa e da família não combinavam muito com Paulo. Ele era extremamente simples e, quem lhe conhecesse sem saber que sua família era rica, provavelmente não imaginaria. Tanto que, nas visitas que fazia a Malu em sua casa, ele nunca pareceu se incomodar com a simplicidade. Ficava bem à vontade, aliás, e ia para lá com frequência. Quem não gostava nem um pouco disso era Cida, que, mais uma vez, não achava que fosse bom o bastante para a filha. Mas, com Paulo, ela não foi tão dedicada a fazer com que terminassem, provavelmente porque Malu já era adulta nessa época. Então, evitava vê-lo, fechava a cara e saía da sala quando ele entrava, mas isso não impedia Malu de convidá-lo, nem ele de ir. Por outro lado, apesar da boa impressão que passou na primeira visita à família do namorado, sentiu o olhar severo da mãe durante o jantar, quando foi perguntada sobre sua profissão. - Trabalho como secretária numa fábrica. - É mesmo? - se surpreendeu negativamente a mulher, deixando transparecer o susto - E como foi que vocês se conheceram? - Num bar que eu ia depois do trabalho - respondeu, sorrindo para o namorado, que sorriu de volta. - Ah, você bebe, então? -Bebo. - disse e colocou um pedaço de filé mignon na boca. Seguiu-se um silêncio pesado. Ela percebeu que não estava mais impressionando a família do namorado, mas já tinha passado da idade de fazer cena para agradar. Além do mais, o que realmente importava era o que Paulo achava dela. Tudo levava a crer que gostava muito. Mas nem sempre isso é suficiente. Por mais que o carinho do rapaz por ela fosse grande e verda- deiro, a família dele não compartilhava o mesmo sentimento. Malu foi vista como uma moça oportunista, que queria ficar com ele pela ascensão social e pelo dinheiro.Tanto ele quanto ela sabiam que não era verdade - ela nem mesmo queria se casar! Mas a familia começou a pressionar muito Paulo e dificultar as visitas; houve vezes em que ele precisou pegar um ônibus para Sorocaba em vez de ir de avião para percorrer os quase mil quilômetros entre as duas cidades, porque seus pais se recusaram a lhe dar as passagens e ele não tinha dinheiro para comprar. Enquanto isso, Malu estava mudando de vida. O emprego de secretária já tinha se tornado entediante e, em Sorocaba, ela até conseguiria crescer profissionalmente, mas demoraria muito. Então, quando uma amiga de Vani falou que estava deixando a gerência de uma empresa em São Paulo para abrir uma academia de dança em Sorocaba, ela não pensou duas vezes antes de pedir a indicação. E acabou sendo contratada no início de 1987. Se mudou da casa da mãe em Sorocaba para um apartamento em São Paulo e enfrentou tudo que vem com mudanças de cidade: novos amigos, novo emprego, uma nova rotina. Com Paulo longe de tudo isso, as brigas foram aumentando e a distância, que já era de quase mil quilômetros, ficou ainda maior. Com quase um ano de São Paulo, uma das discussões por telefone foi a última. Paulo ligou para Malu, como de costume. A conversa começou bem, mas não tinha mais aquele tom apaixonado fazia tempo. Eles ligavam um para o outro mais para não ficar com a consciência pesada do que por vontade de conversar. Após alguns minutos, começou a discussão: ele disse estar com saudade; ela reclamou que ele não ia vê-la já fazia mais de um mês. - Mas é complicado. Minha vida é complicada, você sabe... - Porque você não faz nada para mudar. Não precisa ser difícil. - Estou sem tempo, trabalhando muito - nessa época, ele tinha deixado de trabalhar com o pai e estava em uma empresa de construção civil - Não tenho como largar tudo e ir p’raí. E ainda tem a minha família, que não vai gostar nada disso. - É esse o problema, né? - Paulo fez silêncio por alguns segundos - Você não consegue enfrentar a sua família para fazer o que quer. - Esse é um dos problemas, mas... - Na verdade, acho que nem quer, senão já teria feito. Olha, cara, vou te falar uma coisa. Eu também não estou contente com essa situação. E a minha vida está mais complicada que a sua: mudei para uma cidade caótica, onde não conheço quase ninguém, não tenho dinheiro para pagar minhas contas e estou tentando conseguir um futuro melhor por aqui sozinha, começando tudo do zero. Não é nada fácil e, se você vai me passar incertezas em vez de segurança, é melhor você cuidar da sua vida e eu da minha - Paulo ficou em silêncio por um momento, assustado com a decisão da namorada. - Você está terminando comigo? - Estou sim. - Quando eu for para São Paulo, posso te ver para conversarmos sobre isso? - Você vai vir agora que terminamos? - Eu quero deixar as coisas resolvidas... - Paulo, acabou. Agora. Se você vier para cá, vai perder a viagem. Ele fez outra pausa, de uns três segundos. - Tá... - Então... Se cuida. Tchau. - e desligou o telefone, suspirou e se encostou no sofá. Um pouco atordoada, por ter dito de uma vez o que já vinha pensando há bastante tempo, foi até a geladeira, abriu uma cerveja e bebeu na sacada, observando o trânsito da rua Eça de Queiróz. Malu realmente gostava de Paulo e, apesar de ter-lhe dito para não procurá-la, esperava que ele tentasse algum contato. Quem sabe, no futuro, em outras condições, eles não pudessem ficar juntos? Em uma das visitas que fez à mãe em Sorocaba, já depois de terminar o namoro, ela se encontrou por acaso com Marcos, o primo do ex. Se tornaram amigos durante os quase três anos que na- morou Paulo e, como fazia tempo que não se viam, passaram uns bons minutos colocando a conversa em dia. Ele, claro, sabia do fim do namoro e foi isso que guiou o papo. - Poxa, Malu, e pensar que ele largou a noiva por você, hein? - Quê?! - É, a noiva! - ele imaginou que ela soubesse da história. Mas não sabia e foi um choque receber a notícia, o que ele percebeu pela cara de quem havia visto um fantasma que a moça mostrava. Malu, como você não sabe disso? - Ninguém nunca me contou, ué! Que história é essa? - O Paulo tinha uma noiva lá em Campo Grande. Eles estavam de casamento marcado, só que ele veio passar um tempo aqui e te conheceu. Assim que voltou para Campo Grande, terminou o noivado. Imagina o que isso causou na cidade! Malu ficou chocada. Não sentia como se ele a tivesse traído, mas por que esconderia essa história? Esse foi o fim, de verdade, do relacionamento. Afinal, se ele não contou que tinha uma noiva, poderia esconder muitas outras coisas. Paulo foi para a capital paulista algum tempo depois e, como esperado, a procurou. Mas, a essa altura, ela já não queria mais nada. Anos depois, ele se casou com a ex-noiva. E, muito tempo depois, Malu encontrou Paulo durante uma viagem de negócios para Campo Grande. Ele confessou que nunca a havia esquecido e esperava que ela tivesse lutado mais para que ficassem juntos. Também disse que um dos filhos era a cara dela, todos sabiam quem ela foi e muitos detalhes do tempo que ficaram juntos, entre várias outras coisas que não se diz a uma ex-namorada quando você é casado. E, ao se despedir, deu um selinho e prometeu que, quando os filhos estivessem formados na faculdade, ele largaria a esposa para ficar com ela. Ainda falta uns dois anos para isso acontecer. m cerca de oito anos, muita coisa mudou na vida de Malu. Pudera; quase uma década se passou entre o fim do namoro com Paulo e o próximo relacionamento duradouro. Nesse meio tempo, ela mudou de emprego: os anos participando da organização de festas das empresas em que trabalhava lhe renderam experiência suficiente para conquistar um cargo de diretoria em uma companhia especializada nisso. Ela passou a ganhar muito bem e ostentar um padrão de vida mais requintado do que estava acostumada; em pouco tempo, mudou para um apartamento maior, trocou de carro, passou a fazer compras em lojas de grife. Também começou a frequentar os restaurantes e baladas mais caros de São Paulo na companhia de seus ficantes, que, nessa época, eram todos cheios da grana. Entre os que marcaram esses anos, estavam um engenheiro, um arquiteto, um fazendeiro, e, mais uma vez, o dono de concessionária com quem havia se relacionado no passado. Nesse mesmo intervalo de tempo, nasceram os seus quatro sobrinhos mais velhos. E, apesar da fartura de pretendentes, Malu corria o risco de, além de ter se tornado tia, realmente ficar para titia, pois em alguns anos completaria 40 e não tinha a menor perspectiva de se casar. Pela primeira vez, isso a incomodava. Segundo ela, as pessoas comentavam cheias de dó sobre sua solteirice, principalmente as amigas e a família, e lhe incomodava pensar que ocorreria o mesmo que com uma prima: quando ficou velha, as pessoas “só falavam que ela não se casou. Ninguém nem lembrava do tanto que ela deu!”. Por coincidência, no começo dos anos 90, um jovem alto e moreno, com menos de 30 anos de idade, apareceu em sua vida. Ele surgiu um dia na empresa para apresentar um produto para a feira que estavam organizando. Tinha jeito de quem sabia o que estava fazendo e um carisma indiscutível. Inseria algumas piadas no discurso e era muito bonito. Lembrava o ator Dean Cain, que, na época, fazia o Super-Homem no seriado Lois & Clark; até a mechinha caída na testa, ele tinha. E Terminada a apresentação, o chefe perguntou para todos na reunião o que haviam achado. - Estou apaixonada! Olhem só esse rapaz! - exclamou Malu quando chegou sua vez. Os colegas riram e o jovem ficou sem graça, o que fez com que ela focasse suas próximas frases em elogiar o produto e a apresentação, que realmente tinha sido boa. O moço se chamava Heitor, mesmo nome do segundo sobrinho de Malu, e chegou a fazer outras visitas à empresa - nas quais sempre até a sala dela e ficava um bom tempo batendo papo - antes de ser contratado. Apesar de não saber exatamente o que o rapaz fazia, tinha certeza que era algo relacionado a publicidade. Mais tarde, descobriu que ele não havia feito faculdade para trabalhar na área, mas brilhava na profissão, especialmente na parte de relacionamentos com clientes. Se a oratória é um dom, ele com certeza o tinha. Quando Heitor passou a trabalhar e conviver diariamente com Malu, os dois se tornaram grandes amigos. Conversavam muito e sobre todos os assuntos; em pouco tempo, ficaram bem próximos, com espaço para piadinhas não muito aceitas no mundo corporativo politicamente corretíssimo, como assobios quando ela passava e cantadas bastante diretas durante reuniões. A maior prova de amizade veio numa vez em que Malu sofreu um acidente de carro. Era um dia em que chovia muito e ela usou o próprio automóvel para fazer uma entrega em nome da empresa. Na volta, bateu na traseira de uma caminhonete que transportava vigas de aço. Elas entraram no motor e causaram um belo estrago, mas não machucaram a motorista, apenas a deixaram com muita raiva e um problema a ser resolvido. Como estava perto do escritório, o carro aguentou mais algumas centenas de metros até chegar, mas estava sem condições de rodar mais que isso. Malu, tomada pela frustração e pelo ódio de ter o carro destruído para fazer um serviço que nem era dela, entrou na sala do chefe ensopada pela chuva já aos berros. Após contar todo o ocorrido, ele a olhou com a maior tranquilidade e disse: - Tem seguro? - Tem. - Então relaxa, ué! - Como assim, “relaxa”?? Você vai pagar a franquia? - Bem, a gente pode até dar uma ajuda, dependendo do valor... - Não. Nananananão. Eu saí para fazer um serviço para você e é isso que recebo em troca? Aquelas vigas poderiam ter entrado pelo vidro e me acertado!! - Olha que sorte a gente deu! - e riu. Ela ficou inconformada e se sentindo profundamente ofendida pela posição do chefe. Para não voar no pescoço dele, se virou e voltou para sua sala, batendo os pés e deixando um rastro de água. Heitor, preocupado e curioso com o que havia acontecido, entrou logo depois: - O que aconteceu para você estar tão brava? - O meu carro está todo destruído e... - Calma. Vamos lá ver o que aconteceu. Foi ele quem se prontificou a chamar o seguro e guinchar o carro para um mecânico. O conserto não ficou nada barato, mas seu chefe acabou pagando; aquela era apenas uma das suas características brincadeiras mal colocadas. Nas semanas que seu carro não ficava pronto, Malu utilizou o reserva dado pelo seguro, no qual Heitor andou bastante: eles saíram várias vezes para almoçar juntos. Outras, lhe dava carona depois do trabalho, pois moravam perto e era demorado voltar de ônibus do Itaim Bibi, onde ficava a empresa, até a Aclimação, onde ficava o apartamento do moço. Então, o carro ficou arrumado e foi nele que aconteceu o primeiro beijo do casal, em uma dessas caronas. No caminho de volta do trabalho, Heitor havia sugerido que parassem em uma lanchonete no Ibirapuera para tomarem um suco. Foi uma boa ideia, já que Malu estava cansada e ansiosa pela feira que iria começar na semana seguinte, a maior que sua empresa havia realizado até então, e na qual ela era responsável por tudo: da montagem dos estandes à decoração, passando pela contratação de seguranças e hostess. Então, chegando à casa dele para despejá-lo, ela lhe agradeceu pela companhia e pelo papo. - “Obrigada”? Só isso? - respondeu Heitor, com o braço apoiado no banco do motorista. - Ué, obrigada pelo suco e... - ela não conseguiu terminar a frase: ele a puxou, deu um beijo que lhe tirou o fôlego, abriu a porta e foi embora, sem esquecer de, antes, olhar para trás e dar um sorriso malandro. A tal feira durou quatro dias, que foram mais de uma semana de trabalho para Malu entre a montagem e a desmontagem. O acúmulo do estresse e do cansaço faziam com que, toda vez que fosse falar com o chefe, se desmanchasse em lágrimas na mesa dele. Quando chegou o fim do trabalho pesado, ela foi mais uma vez encontrá-lo e, ao entrar na sala, o viu com lenços de papel enfiados de qualquer jeito no bolso da camisa e por toda a mesa. - O que é isso? - Bom, já que você vai chorar, já estou preparado. - Ai, meu Deus. Que vergonha - ela se sentou à mesa e abaixou o rosto, meio com vergonha de ter chorado tantas vezes a ponto de virar piada, meio com vergonha alheia do chefe. Mas achou divertido. - Tudo bem, tudo bem - riu - Vamos falar da feira. Tanto o nervosismo do momento quanto os anos que se passaram impediram a mulher de se lembrar o que aconteceu em seguida. Ela só sabe que houve uma discussão feia, mais do que as que normalmente ocorriam, e pediu demissão do jeito mais dramático possível: levantou da cadeira, se virou para ir embora e, ao perceber que ainda estava com a chave da empresa, arremessou na mesa dizendo que nunca mais falaria com ela. A esposa dele, que era sócia da empresa, desceu as escadas correndo atrás de Malu com um copo de água com açúcar e pedia que ela se acalmasse, pois os dois sempre brigavam, mas logo faziam as pazes. Mas nada a acalmou, nem os pedidos de Heitor para que ficasse: ela pegou suas coisas e foi embora. E, dessa vez, não fez as pazes com o chefe. Na semana seguinte, ficou incomunicável, trancada dentro de casa e sem atender o telefone, apenas chorando até que o estresse todo passasse. Quando isso aconteceu e ela voltou a receber ligações, a primeira foi de Heitor avisando que também havia largado o emprego. Como os dois estavam desempregados, ele começou a ir bastante no apartamento da moça e passar muito tempo lá. A relação se estreitou ainda mais e logo começaram a namorar. Mas ela não levava com muita seriedade, apesar das declarações do rapaz. Na mesma época, Malu descobriu ter talento para cuidar do próprio negócio. Como tinha um dom nato para fazer festas corporativas e havia feito contatos o bastante para trabalhar por conta própria com isso, não tardou para que voltasse à ativa fazendo o que gostava. Heitor era 12 anos mais novo que a namorada e a acompanhava aos eventos para aprender sobre esse mercado. Quando Malu percebeu, passava a maior parte do tempo com ele, fosse no trabalho, fosse em casa: Heitor estava lentamente levando seus pertences para o apartamento. Uma vez, esqueceu a escova de dentes; em outra, um par de chinelos; quando levou seu roupão, a moça percebeu que havia uma intenção a mais ali. Quando levou a mãe e a irmã, com cerca de cinco meses desde que conhecera a namorada, ela teve certeza. As duas moravam em Curitiba e foram para lá passar o Natal. Malu não pretendia fazer nada de especial para a data e se viu na obrigação de preparar pelo menos um jantar para as hóspedes. As duas fumavam muito e tinham a voz rouca característica mas, à primeira vista, foi o único defeito que ela viu. Afinal, lhe trataram muito bem e pareceram felizes em dividir com ela o feriado. A mãe era uma senhora de olhos muito azuis, cabelos muito grisalhos e uma aura de bondade; a irmã, que tinha idade entre a de Malu e a de Heitor, estava bem acima do peso e tinha um jeito extrovertido e escrachado que nem sempre era agradável. Dias mais tarde, na passagem de ano de 1993 para 94, o casal estava sozinho no apartamento dela. Providenciaram um jantar para dois e uma garrafa de champanhe que ela bebeu sozinha. Ele não bebia, provavelmente por trauma do pai, alcoólatra, que havia abandonado a família e ido morar na rua. Quando a contagem regressiva da televisão deu meia-noite, eles se abraçaram e Heitor, de repente, soltou a pergunta: - Você quer casar comigo? - Quê?! Não! - Ah... Por que não? - Porque a gente mal se conhece! - Poxa... Eu queria casar com você. Ter filhos e ficar velhinho junto - fez uma pausa sorridente enquanto ela rolou os olhos - Casa comigo, vai?! - Não, Heitor! O jovem pareceu desapontado, mas respeitou a decisão e não insistiu mais. Mas, ao ver que ele realmente queria casar com ela, Malu começou a levar a sério o relacionamento. Nessa época, os dois sobrinhos de Malu que moravam mais perto dela, em São Bernardo do Campo, passavam muito tempo com a tia e até dormiam na casa dela nos finais de semana. Eram Heitor e Gabriela, de cinco e três anos de idade. Eles voltaram de uma das visitas super felizes com o namorado dela que, apesar de ter concordado em não dormir lá quando os sobrinhos estivessem, não resistiu; Heitor adorava crianças. E era recíproco: os dois chegaram em casa falando dele com tanta empolgação que a mãe, Fabi, comentou com a irmã que o novo tio havia feito sucesso. Apesar de Heitor já conhecer a família da namorada, nunca havia passado muito tempo com nenhum dos parentes de Malu. Ela, temendo que a presença do namorado fizesse com que os pais de Heitor e Gabriela não se sentissem à vontade de deixar as crianças ficarem lá, aceitou o pedido de casamento do rapaz com umas três semanas de atraso. A decisão também foi baseada no conforto que traria: ela deixaria de ser a sol- teirona e teria como companheiro um cara legal e que se mostrava bastante apaixonado, além de ser adorado pelos sobrinhos, que ela considerava como seus filhos. A cerimônia foi marcada para fevereiro, no feriado do Carnaval, para que as duas famílias pudessem viajar para São Paulo e comparecer. A mãe dela ficou especialmente feliz de ver a filha noiva. Fez questão de dar o vestido e as duas foram juntas andar toda a rua São Caetano, na Luz, conhecida como Rua das Noivas, para comprar um modelo pronto. Foi Cida quem escolheu o vestido de mangas longas de renda e um enorme laçarote atrás, que não teve tempo de sofrer ajustes para o casamento. Se bem que, a poucas semanas da cerimônia, nem seria necessário. A primeira dificuldade enfrentada foi encontrar uma igreja para a cerimônia, já que todas estavam reservadas. A solução foi uma perto da casa de Heitor, Nossa Senhora de Lourdes. Outro problema foi quanto à entrada da noiva. Como o pai de Malu havia falecido quando ela era adolescente, sua ideia era entrar sozinha na igreja, mas os irmãos acharam que um deles poderia levá-la. Bastasse que escolhesse um. Percebendo o clima tenso que essa decisão estava causando, Malu decidiu que quem levaria seria o sobrinho, que se empolgou com a ideia. - Que legal! Vai ser um Heitor te levando para outro Heitor! - É, isso mesmo. - Eu também quero! - se adiantou Gabriela, sem saber que também já tinha um papel na cerimônia. - Você vai ser dama de honra. - Êêê! - fez uma pausa - E o que uma dama de honra faz? - Você fica no altar e, quando o padre pedir, entrega as alianças para ele. Com todas as funções designadas, faltava entregar os convites em mãos. Quem escreveu os nomes dos convidados foi o sogro de Malu, que havia voltado para casa ao ouvir o rumor de que o filho irá se casar. Ele ficou encantado com a nora e se dispôs a dar esse presente ao casal. Tinha uma caligrafia excepcionalmente bonita e era muito inteligente. Por muito tempo, Malu achava que os pais de Heitor eram separados e o pai havia ido viver em outro estado. Ela sempre ouvia falar que estava viajando e viu a cunhada chorar de saudades no Natal por não saber onde o pai estaria naquele momento. Anos depois, descobriu que ele era de uma família muito rica do Mato Grosso do Sul, mas havia perdido todo o dinheiro com bebida e, por isso, a mulher e os filhos passaram a desprezá-lo. Ainda assim, ele voltava de tempos em tempos, quando ouvia falar de algum acontecimento importante, pois morava perto da casa da ex-mulher em Curitiba. E, ao saber que o filho se casaria, quis conhecer a noiva. Alguns dos convites foram entregues pessoalmente e causaram um choque ao serem recebidos, já que, quando Malu viu a maioria dos convidados pela última vez, estava bem longe de qualquer vislumbre de casamento. Foi o caso de um “amigo colorido” com quem Malu saía antes das coisas com Heitor ficarem sérias. Ela marcou um almoço em um restaurante no bairro de Pinheiros para dar a notícia e, ao entregar o convite, o moço quase caiu da cadeira e reagiu num grito: - O que é isso?! Você vai casar? - Isso mesmo - respondeu Malu, tentando fingir que o restaurante inteiro a observando era apenas coincidência. - Como assim?! - olhou o convite - Heitor? Quem é Heitor? - É o cara com quem eu vou casar - ele a olhou com desprezo - Ei, você já é casado faz tempo e eu nunca te olhei assim - ele riu. - Bom... Parabéns, então. O que você quer de presente? Está com a casa toda pronta, não? - Sim, pois é. Eu quero seu carro - era um automóvel da Toyota, importado, o único no Brasil daquele modelo. - O quê?! - Só para me levar à igreja! - Ah... tá - suspirou e riu - Tudo bem. Mando com o motorista, também. Não se preocupe com isso. - Obrigada. - Só para ter certeza: agora que você vai casar, a gente vai continuar saindo, né? - Malu olhou torto e continuou comendo sua salada. O dia do casamento chegou com a mesma rapidez que passou. A cerimônia foi simples, bonita e rápida. Não houve festa; os noivos contrataram um buffet para servir um jantar para os convidados no salão de festas do apartamento de Malu. Ela e Heitor foram direto para a lua de mel na suíte do hotel Transamérica, ainda no carro emprestado. Malu lembra até hoje de como ele se impressionou com o veículo e foi extremamente cuidadoso até ao bater a porta para sair. O mesmo desconforto surgiu com o luxo do quarto escolhido: ao entrarem na suíte, deram de cara com um ambiente enorme e muito bem decorado, com cestas de frutas, flores, champanhe e um belo jantar os aguardando. Depois de comer e tomar toda a garrafa de champanhe sozinha, Malu nem pôs o pijama: dormiu ainda vestida de noiva. Nos dias seguintes, Heitor levou o resto de seus pertences para a casa de Malu. Mas, como ela um dia achou o apartamento muito grande para começar uma vida a dois, se mudaram para um menor que ficava próximo à avenida Bandeirantes logo depois. Os dois entraram de cabeça na vida de casados e inclusive se tornaram sócios na empresa de eventos que ela criou. Já no primeiro ano de casamento, veio a chance de provar que era na alegria e na tristeza, na saúde e na doença. O médico que receitava os hormônios da tireóide de Malu se mudou de cidade e o que ela encontrou para substitui-lo trocou a medicação por uma muito mais pesada. Após alguns meses tomando esse novo medicamento e observando os irritantes efeitos colaterais surgirem, ela teve de ser internada às pressas com princípio de infarto. Foi quase um ano até se recuperar totalmente e restabelecer a medicação correta. Em todo esse tempo, Heitor administrava a empresa e ia trabalhar na área de marketing de um banco, garantindo que tives- sem dinheiro no fim do mês e que a empresa fundada pela esposa seguisse em frente. Enquanto isso, Malu brincava de dona de casa: passava as camisas para o marido ir trabalhar, fazia faxina e preparava o jantar para quando ele chegasse. Não se achava uma boa cozinheira, mas Heitor só confessou anos depois, quando ela desistiu de fazer suflê, que não suportava esse prato - que era o que ela mais gostava de fazer. Mas ela não havia nascido para esse dia a dia parado e, assim que o médico autorizou, ela voltou a trabalhar. Logo de cara, teve um grande evento do banco que empregava seu marido e foi um dos mais lucrativos (e trabalhosos) que ela fez; com o que recebeu, deu até para comprar um carro novo. Esse trabalho também alavancou a empresa e fez com que, a partir de então, tanto Malu como Heitor se dedicassem exclusivamente a ela. O resultado dessa dedicação foi a sensação de passar anos tendo dinheiro infinito: mesmo com um padrão de vida elevado, não havia compras que colocassem o orçamento em risco. E havia muitas compras, principalmente de Heitor, que se via numa posição social que nunca sonhara estar e gastava muito com ternos de grifes como Ermenegildo Zegna e Ronaldo Fraga para trabalhar, novidades tecnológicas - na época, ter um telefone celular já era uma raridade; o que dizer de quem tinha celular, computador e rádio com CD player na metade dos anos 90? - e carros importados com todos os opcionais. Malu também tinha sua cota de consumismo desenfreado, especialmente em boutiques, restaurantes e viagens. A mais marcante foi a única para o exterior, quando passaram 40 dias na Europa, como se fosse a lua de mel que não tiveram. Mas nem só de compras em shoppings era gasto o dinheiro dos dois: eles investiram em um terreno próximo de São Paulo, onde construíram uma chácara e acabaram indo morar com os dois dobermans de pedigree que haviam comprado. Os cachorros eram paparicados como filhos, já que eles não poderiam tê-los por causa do tratamento de câncer que Malu fez ainda adolescente. Heitor chegou a insistir, mas quando o médico de Malu lhe disse que engravidar arriscaria a vida dela e do bebê, desistiu. Os dobermans chamavam Nathan e She-Ra e eram parte da família, que se reunia pelo menos uma vez por ano na chácara, para comemorar o Natal e o Ano Novo. Quase duas décadas depois, ela lembra dos anos de casada com carinho. Todas as áreas de sua vida estavam em harmonia: trabalhava com o que gostava e ganhava muito dinheiro; estava casada com um rapaz que era carinhoso, divertido e com quem se dava bem; sua família, que ficou afastada conforme cada irmão ia morar em um lugar do estado e por alguns desentendimentos entre eles, se reunia novamente em sua casa. Tudo estava dando certo demais. No final dos anos 90, a empresa de Malu e Heitor foi contratada com exclusividade em Curitiba, o que significou que os dois se mudaram para a cidade natal dele. Alugaram a casa dos sonhos perto do Jardim Botânico: tinha dois andares, um quintal enorme, cômodos amplos, três dormitórios. Mas parecia que faltava algo, talvez pela decoração excessivamente planejada, talvez pela ausência das crianças e dos cachorros (eles continuaram na chácara, que era ainda maior e onde já estavam acostumados) que criavam uma identidade da bagunça. O segundo andar era o único que tinha alguma alma: era onde ficava a sala de entretenimento, lugar preferido dos sobrinhos quando visitavam os tios. Também era ali que Heitor praticava seus hobbies que ele jurava que sempre amou, apesar de nunca ter praticado, como montar barcos de modelismo e pintar. Em pouco tempo, seus quadros abstratos estavam espalhados pela casa. Em ainda menos tempo, um dos sobrinhos deixou a marca do dedo na tinta fresca e, como demorou anos até descobrirem qual foi, todos levaram a maior bronca do tio. Malu morou um ano e meio em Curitiba com o marido. Foi um período em que, como era a chefe da empresa, viajava o país todo a trabalho e ficava a maior parte do tempo longe de casa e de Heitor. Mas ele se fazia presente: sempre ligava e mandava flores e outros presentes para os hotéis onde ela se hospedava. Até que, um dia, o sexto sentido da mulher apitou, como já havia feito com Horácio e com outros namorados. Ela sabia que havia algo de errado e não demorou para descobrir. Em uma das viagens, recebeu uma ligação no celular em um horário improvável, no meio da tarde: - Alô? - Malu? - era uma voz de mulher. - É ela. - Oi, Malu. Você não me conhece, mas presta atenção: o seu marido está te traindo. - Quem tá falando? - Ele está te traindo. Está com outra. - Olha, eu vou desligar se você... - Ele está comigo, ouviu? - interrompeu a voz, deixando Malu sem reação - E eu vou roubar o seu marido porque você não merece ele e eu, sim. - Quem tá falando?! Como você chama? - Eu sou a namorada do Heitor. A gente vai ter um filho - Malu sentiu o chão desabar, a pressão cair e a vista escurecer. Se apoiou em uma parede - Então é bom você já aceitar que perdeu. Um homem bonito e rico como ele não merece ficar com você. Malu foi tomada pela raiva: - O quê?! Escuta bem o que eu vou te falar. Quando eu conheci o Heitor, há uns bons 10 anos, ele não era nada disso que você vê. Tinha os dentes tortos, usava um óculos com a lente dessa grossura, se vestia mal e não tinha dinheiro nem para me levar jantar fora. Fui eu que transformei ele nesse gatão aí. Agora, se você pensa que vai mudar de vida ficando com ele, pense de novo. Quem tem a cabeça pra fazer esse dinheiro todo que você quer sou eu, não ele. E vai ter que rodar muita bolsinha pra conseguir sustentar o padrão de vida dele, viu? Senão, daqui a alguns meses é você que vai receber ligação avisando que o pai do seu filho tá com outra. - e desligou o telefone. Antes que pudesse pensar em qualquer outra coisa, ligou tremendo para o marido, para saber do que ela estava falando. - Alô? - Heitor, recebi uma ligação de uma moça dizendo que está grávida de você. - Como?! É mentira! - Ela disse que é sua namorada e... - É mentira! Não acredite nela! Se te ligar de novo, desligue o telefone! - Malu notou a aflição na voz do marido e o jeito que falava, como se conhecesse a mulher. - Por que você está tão desesperado? - Porque essa mulher só quer arruinar o nosso casamento e as nossas vidas! - Então, você sabe quem ela é - ele fez uma pausa - Amanhã eu chego em Curitiba e a gente conversa sobre isso. Mas eu recomendo que você já arrume as suas malas - e desligou na cara dele. No dia seguinte, quando chegou na casa enorme e vazia de Curitiba, encontrou a sogra na cozinha. Agitada, a senhora não conseguia parar de falar ou de secar o suor na manga da blusa. - Malu! O Heitor falou que você viria mais cedo e pediu para eu vir passar um café. Ele estava nervoso, não sei o que aconteceu mas pode ter certeza que meu filho não fez nada de errado, ele ama muito você... - e a seguiu pela casa falando sem parar enquanto Malu buscava pistas de que a tal moça que fez a ligação esteve por lá. Parou ao lado do telefone que tinha um identificador de chamadas e notou que todas estavam apagadas - ...Ah, o telefone tocou e, quando fui atender, derrubei isso aí sem querer. Mas acho que não quebrou... - Você pode sair da minha casa? - explodiu Malu, ao perceber que a sogra havia escondido todas as pistas, inclusive apagado as ligações feitas e recebidas. A senhora levou um susto e foi esperar na cozinha. Quando Heitor chegou, Malu, ainda irritada e prestes a explodir mais uma vez, contou o que havia acontecido e pediu que se explicasse. Ele insistiu que era mentira mas, quando o telefone tocou e ela foi impedida de atender, a briga ficou feia. Após a ligação que recebeu da amante, ela começou a notar fatos que antes haviam passado despercebidos e podiam ser provas de traições, como sempre mandar flores quando ela viajava e ligar perguntando onde ela estava e se iria demorar para voltar quando estava em Curitiba; estar sempre perto das meninas que trabalhavam nos eventos e fazer questão de levá-las de carro quando a distância a percorrer era longa. Estava tudo ali, mas ela optou por confiar nele e não ver nada de errado. Então, Malu fez um acordo com o marido: esperaria a criança nascer e faria um teste de paternidade. Se fosse dele, ela o largaria. Se não fosse, também o faria, porque não há motivos para ficar com alguém se não confia nessa pessoa. Além disso, ainda tinham muitos trabalhos fechados da empresa nos próximos meses e isso ajudaria a terminá-los. No entanto, a presença do marido começou a incomodar demais. O primeiro passo foi expulsá-lo do quarto, mas ainda trombava com ele pela casa, apesar de ela ser tão grande. Então, o chutou de volta para a casa da mãe e pediu que só voltasse com os papéis do divórcio. Foi o começo da fase mais difícil de sua vida, que durou meses, talvez anos, para passar. Ela trabalhava de dia e chorava de noite; vivia exausta, entre a sala da terapia e do médico que lhe receitava algo para conseguir dormir e, quem sabe, descansar. Ao perceber que o divórcio era inevitável, Heitor fez de tudo para tirar o máximo possível do casamento e Malu conheceu um novo lado, depois de uma década de relacionamento: ele sacou boa parte das economias do casal e tentou “roubar” o carro de Malu também. Para quem entrou no casamento com uma escova de dentes e um chinelo, teve um belo lucro na divisão de bens. Mas não pegou algo que, com certeza, ainda se arrepende: as fotos da viagem à Europa foram confiscadas por Malu justamente para machucá-lo. O divórcio saiu no mesmo mês que o bebê de Heitor nasceu, mas Malu nem chegou a vê-lo. Pegou seu “felizes para sempre” e voltou a morar na chácara perto de São Paulo para recomeçar sua vida. “ O meu final feliz foi descobrir que não preciso de ninguém para ser feliz. Talvez meu homem ideal não exista, mas eu me faço bem. Feliz para sempre, comigo. E não tem problema nenhum nisso. Apresentado pela primeira vez em 29 de novembro de 2012, como Projeto de Conclusão de Curso de Comunicação Social - Jornalismo na Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” - Unesp. Trabalho desenvolvido sob orientação do Professor Doutor Claudio Bertolli.