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Luís Gustavo Haddad
Advogado; Doutorando em Direito Civil (FDUSP);
Bacharel em Direito (FDUSP, 2000); Mestre em Direito Civil (FDUSP, 2009).
O mote deste trabalho é uma advertência feita por EÇA DE QUEIROZ, e
tomada por OLIVEIRA VIANNA como epígrafe do segundo volume das suas Instituições Políticas Brasileiras1. Reza ela que: “Os que sabem dar a verdade à
sua pátria não a adulam, não a iludem, não lhe dizem que é grande, porque
tomou Calicut; dizem-lhe que é pequena porque não tem escolas. Gritamlhe sem cessar a verdade rude e brutal. Gritam-lhe: tu és pobre, trabalha! tu
és ignorante, estuda! tu és fraca, arma-te”. Ao invocar essas palavras, pretendo desvincular a idéia de homenagem de uma eventual propensão à veneração sem crítica ou à deferência irrefletida. Os dicionaristas registram
realmente que, em sua origem, a homenagem consistia em um juramento de
subordinação e fidelidade, que os vassalos prestavam aos senhores feudais 2.
Nada que se coadune, segundo entendo, com o espírito livre e questionador
que deve animar os estudos universitários. Assim, é preciso que se tome do
vocábulo homenagem, apenas, o sentido mais atual e modesto de demons1
VIANNA, Oliveira. Instituições políticas brasileiras. 2º v. (Metodologia do direito público; os problemas
brasileiros da ciência política). 2ª edição. Rio de Janeiro: José Olympio Editora. 1955.
2
CALDAS AULETE e ANTONIO HOUAISS. Consultados nas versões disponíveis na rede mundial de computadores em www.uol.com.br, aceso em 14 de junho de 2010. No mesmo sentido, FERREIRA, Aurélio Buarque de
Holanda. Dicionário da língua portuguesa (médio dicionário Aurélio). São Paulo: Nova Fronteira, 1980. p.
909.
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tração de respeito, igualmente reconhecido pelos léxicos acima citados.
Quero crer, com efeito, que demonstrar com sinceridade esse sentimento de
respeito, como destacou EÇA DE QUEIROZ no trecho acima transcrito, implica,
antes de tudo, não transigir com a busca da verdade e do aprimoramento,
cujos resultados são sempre precários e permanentemente sujeitos a refutação; significa não se acomodar com o propósito mais simpático e tentador
de alinhavar elogios e enumerar feitos do autor homenageado.
Feita essa observação, passo a delimitar, de modo mais direto, o tema
do trabalho. Para tanto, cabe dizer que a exposição está dividida em quatro
partes, além desta introdução. Na primeira (seção 2), procurarei registrar
alguns fatos significativos, mas nem sempre lembrados com o devido destaque, sobre as relações entre o personagem histórico Miguel Reale e o exercício do poder político no Brasil do século XX. A segunda parte (seção 3) será
dedicada a identificar as principais concepções e construções de Miguel Reale sobre o tema da interpretação jurídica, com enfoque nas noções de modelos jurídicos e nos contornos da chamada hermenêutica estrutural. Na terceira parte do estudo (seção 4), tentarei mostrar de que maneira a visão do autor sobre a atividade de interpretação restou refletida em um ponto bastante
central do Código Civil de 2002, que é o da função social do contrato. A
quarta e última parte (seção 5) cuidará de sintetizar, de modo breve, certas
conexões entre os papéis desempenhados pelo personagem histórico Miguel
Reale, pelo filósofo do direito que elaborou doutrina hermenêutica e pelo
presidente da comissão redatora do projeto de lei que se converteu no Código Civil de 2002.
O objetivo último do trabalho, já adianto, é demonstrar que – seja na
prática política, seja na teoria jurídica, seja na formulação legislativa – o que
desponta como constante na atuação de Miguel Reale é uma forte tendência
autocrática. Essa feição antidemocrática, segundo defendo, pode e precisa
ser neutralizada por uma interpretação do art. 421 do Código Civil que adote
outros postulados metodológicos, bastante distintos dos apregoados pelo
próprio autor homenageado, como é o caso daqueles presentes, por exemplo, nas teorias da argumentação jurídica formuladas por NEIL MACCORMICK3
ou ROBERT ALEXY4.
Miguel Reale não foi mero expectador da história política e jurídica do
país no século XX. Ao contrário, foi protagonista de momentos importantes e
3
MACCORMICK, Neil. Argumentação jurídica e teoria do direito. Trad. Waldéa Barcellos. São Paulo, Martins
Fontes, 2006; e mais recentemente Rhetoric and the rule of law, a theory of legal reasoning (law, state and
practical reason). Oxford, Oxford University Press, 2005.
4
ALEXY, Robert. Teoria da argumentação jurídica. Trad. Zilda Hutchinson Schild Silva e revisão de Claudia
Toledo, São Paulo, Landy Editora, 2005.
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candentes da história nacional. Embora sua atuação política tenha se dado
em um espectro bastante mais amplo do que o da Faculdade de Direito da
Universidade de São Paulo, o relato de certas passagens do relacionamento
entre o autor e a coletividade dos professores e alunos é capaz de trazer
elementos de interesse para o objeto deste trabalho5.
No início dos anos 1930, Miguel Reale era estudante de graduação na
Faculdade de Direito do Largo São Francisco 6. O que se sabe dessa época é
que o autor professava credo marxista. Em conjunto com José Augusto Costa, Adriano Marrey e outros então estudantes, Miguel Reale foi signatário de
um manifesto de apoio a operários em greve, no qual foi condenada, de forma convicta, a exploração do proletariado 7. Não demorou muito para que
essa posição política fosse revista. É sabido que, já em torno de 1934, ano
em que concluiu seu bacharelado, Miguel Reale passou a defender e pregar
abertamente a ideologia integralista. As obras que refletem a adoção desse
último ideário são A Política Burguesa (1934), O ABC do Integralismo (1935),
Perspectivas Integralistas (1935), O Capitalismo Internacional (1936) e Atualidades Brasileiras (1936)8. Não obstante essa forte identificação com o movimento integralista (também manifestada na época por Goffredo da Silva
Telles Junior9), e apesar de a Ação Integralista Brasileira ter sido posta na
ilegalidade por um decreto de Getulio Vargas de 2 de dezembro de 1937 (o
que também ocorreu naquele momento com todos os partidos políticos),
Miguel Reale foi designado pelo governo ditatorial para postos de relevo na
burocracia do Estado Novo. Em 1941, o autor homenageado foi nomeado
para chefiar o Departamento Administrativo do Estado de São Paulo, órgão à
época responsável pelo controle dos órgãos de imprensa, tendo posteriormente ocupado o cargo de Secretario de Justiça, entre 1943 e 1945 10, por
indicação do interventor federal.
As estreitas relações entre Miguel Reale, o movimento integralista e o
regime autoritário de Getulio Vargas foram responsáveis, inclusive, pela re-
5
Sobretudo no período da ditadura de Getulio Vargas, compreendido entre 1938 e 1945, a “Faculdade de
Direito da Universidade de São Paulo foi o reduto democrático mais atuante, mais combativo e mas consciente do Brasil”, cf. DULLES, John W.F. A Faculdade de Direito de São Paulo e a resistência anti-Vargas (19381945). Trad. de Vanda Mena Barreto de Andrade. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo. 1984. O
restante da exposição dessa seção 2 está largamente apoiada nessa obra.
6
Nessa época, a Universidade de São Paulo não havia ainda sido fundada, motivo pelo qual se faz referência à
designação mais tradicional da Faculdade de Direito.
7
DULLES, John W.F. A Faculdade de Direito de São Paulo e a resistência anti-Vargas (1938-1945). Trad. de
Vanda Mena Barreto de Andrade. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo. 1984. p. 67.
8
Parte dessas obras é citada na relação bibliográfica que consta de praticamente todas as obras mais recentemente editadas de Miguel Reale (v.g. Teoria do Direito e do Estado. 5ª edição. São Paulo: Saraiva, 2010.
Outras parecem ter sido renegadas, como é o caso de ABC do Integralismo, embora tenha sido escrita e publicada, não consta da referida relação bibliográfica.
9
DULLES, John W.F. A Faculdade de Direito de São Paulo e a resistência anti-Vargas (1938-1945). Trad. de
Vanda Mena Barreto de Andrade. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo. 1984. p. 83.
10
DULLES, John W.F. A Faculdade de Direito de São Paulo e a resistência anti-Vargas (1938-1945). Trad. de
Vanda Mena Barreto de Andrade. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo. 1984. p. 170 e 354.
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sistência e execração que eram direcionadas contra a sua figura na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, sobretudo durante a década de
1940. Apesar de aprovado em concurso para a cátedra de Filosofia do Direito, em setembro de 1940, a congregação da escola, por quatorze votos a
dois, reformou a decisão da banca examinadora, majoritariamente formada
por membros externos à instituição (dois da Bahia e um do Rio de Janeiro).
Os dois examinadores que integravam o corpo docente da Faculdade de Direito – Mário Mazagão e Alexandre Correia – foram contrários à aprovação de
Miguel Reale nesse concurso. A controvérsia somente foi resolvida de modo
favorável a Miguel Reale pelos órgãos federais do próprio Estado Novo, conforme decisão do Conselho Nacional de Educação, já em meados de 1941 11.
Quando efetivamente passou a exercer funções docentes, Miguel Reale sofria
aguerrido antagonismo por parte dos estudantes, que fizeram greves contra
suas aulas e o confrontaram pública e abertamente, questionando-o sobre
suas idéias integralistas e antidemocráticas. O episódio culminante dessa
confrontação com os estudantes ocorreu em 21 de julho de 1943, como relata DULLES, com riqueza de detalhes12. Na seqüência desse evento, Miguel
Reale teria repudiado publicamente sua participação anterior no movimento
integralista13. Nessa época, era de todo impensável a hipótese de professores e alunos da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo unirem-se
para prestar homenagem a Miguel Reale.
Sobre os eventos de 31 de março de 1964, Miguel Reale – em conjunto
com outros professores da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo – subscreveu manifesto no qual foi ficou registrado seu “ júbilo pela restauração da ordem democrática no país”14. Pelos anos que se seguiram, Miguel Reale foi um profícuo colaborador dos governos militares. O autor foi
nomeado pelo então Presidente Costa e Silva para comandar a comissão revisora da Constituição de 1967, sendo responsável pela redação da Emenda
Constitucional n.º 1, de 1969. No campo do direito privado, foi o presidente
da comissão revisora encarregada pelos governos militares de elaborar o
projeto de Código Civil, que acabou por ganhar vigência apenas em 2002,
além de ter atuado também na formulação do tratado internacional e dos
demais documentos que deram corpo à hidrelétrica Itaipu Binacional.
O que se nota, portanto, é que Miguel Reale – enquanto personagem
histórico – manteve relações intestinas e cooperou ativamente com os dois
principais governos ditatoriais de seu tempo: o Estado Novo, de Getulio Var11
DULLES, John W.F. A Faculdade de Direito de São Paulo e a resistência anti-Vargas (1938-1945). Trad. de
Vanda Mena Barreto de Andrade. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo. 1984. p. 166 a 169.
DULLES, John W.F. A Faculdade de Direito de São Paulo e a resistência anti-Vargas (1938-1945). Trad. de
Vanda Mena Barreto de Andrade. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo. 1984. p. 230 a 234.
13
DULLES, John W.F. A Faculdade de Direito de São Paulo e a resistência anti-Vargas (1938-1945). Trad. de
Vanda Mena Barreto de Andrade. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo. 1984. p. 237.
14
DULLES, John W.F. A Faculdade de Direito de São Paulo e a resistência anti-Vargas (1938-1945). Trad. de
Vanda Mena Barreto de Andrade. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo. 1984. p. 375.
12
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gas, e os governos militares das décadas de 1960 e 1970. No campo ideológico, houve oscilações notáveis nas idéias abraçadas pelo autor, com passagens pelo marxismo e pelo integralismo, na década de 1930, tendo ele passado a advogar, mais recentemente, o chamado pluralismo jurídico 15. De
acordo com o plano de início traçado, passo agora a cuidar das concepções
hermenêuticas de Miguel Reale, a fim de verificar se haveria nelas algum
influxo da inserção política do autor, conforme acima relatada.
Por que tratar de hermenêutica no âmbito de uma reflexão sobre direito e poder? Porque a atividade de interpretação talvez seja a forma mais cotidiana e prosaica de exercício do poder, ou de discussão sobre o exercício
do poder, na qual estão diuturnamente envolvidos todos os profissionais do
direito, desde o Ministro do Supremo Tribunal Federal até o oficial de justiça,
passando por promotores, delegados e advogados. Em todo ato de aplicação
de norma jurídica, seja ele protagonizado por um agente público ou discutido por um advogado nos autos de um processo, é incontornável o momento
da interpretação; o direito não se realiza sem a interpretação da norma; é o
que demonstra, com especial profundidade, CASTANHEIRA NEVES16. Ao menos
desde KELSEN sabemos, porém, que o momento decisivo da atividade hermenêutica não tem caráter cognitivo e não consiste no resultado de uma perquirição filosófica. Os pontos cruciais da prática interpretativa residem em
decisões e escolhas, que o profissional encarregado de aplicar ou propor
aplicações para as normas tem que tomar. É por esse motivo que KELSEN manifesta ceticismo sobre a possibilidade de estabelecer um estatuto racional e
objetivo para a interpretação jurídica. No capítulo VIII da Teoria Pura do Direito, ele sustenta que a interpretação, embora possa trazer consigo alguns
elementos racionais e objetivos de conhecimento, passa necessariamente
por um ato de vontade do órgão aplicador da norma. Esse ato de vontade,
porém, seria alheio ao escopo de uma ciência do direito e se relacionaria,
segundo KELSEN, à política do direito, uma vez que, em outras palavras, é um
ato de poder, impassível de apreensão e explicação por uma verdadeira ci-
15
Nesse sentido, cf. em especial os estudos O Pluralismo das Soberanias e dos Ordenamentos JurídicoEstatais e Concepções Pluralistas do Estado e do Direito, ambos em Teoria do Direito e do Estado. 5ª edição.
São Paulo: Saraiva, 2010. p. 176-213 e 265-302, respectivamente.
16
De acordo com esse autor, a interpretação é “o acto metodológico da mediação normativa entre o direito e a
realidade do seu cumprimento. O que implica, desde logo, que o critério normativo que uma qualquer fonte
jurídica interpretanda se proponha oferecer, para uma concreta realização do direito, só pode oferece-lo pela
mediação da interpretação – ‘a norma será tal como é interpretada’. O Actual Problema Metodológico da
Interpretação Jurídica – I. Coimbra: Coimbra Editores, 2003. p. 13.
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ência jurídica17. REALE também parece reconhecer essa circunstância, ao qualificar o poder do Estado como o poder de decidir sobre a positividade jurídica18.
Sob essa perspectiva, a metódica da interpretação e, por conseqüência,
da fundamentação das decisões, ganha uma importância central para que o
exercício do poder de decidir ocorra segundo regras claras e facilmente identificáveis, que permitam o seu controle e apreciação crítica pelos destinatários das decisões. Quanto mais claro, conhecido e regrado em suas justificativas for o processo hermenêutico, mais transparente e passível de controle ele será. Se as regras e parâmetros hermenêuticos, por outro lado, forem excessivamente amplos, ambíguos e pouco claros, tanto maior será o
espaço conferido para que o titular do poder de decidir fundamente e justifique suas decisões como melhor lhe aprouver, sem que os destinatários das
decisões disponham de argumentos racionais suficientes para criticar e, portanto, exercer controle sobre as decisões tomadas. É o que comprova a observação de FERRAZ JR., merecedora de transcrição por sua acuidade: “ O mo-
mento da motivação, assim, é, nos julgamentos jurídicos, memória e organização conceitual. Obedece a regras (processuais) e a cânones metódicos.
Exige fundamentação e argumentação (momento das razões da motivação),
citações, esquemas de raciocínio, usados como um fator em proveito de uma
persuasão a ser obtida. Esse momento tem, assim, o sentido de uma forma
de poder, que se revela na imposição imperativa da decisão, argumentação
como poder persuasivo, cujo resultado imperativo se submete ao controle
processual. Donde a exigência de clareza, da possibilidade de recursos, de
embargos de declaração, de apelação. Esses controles servem para compor o
discurso decisório, como um arranjo eficiente, mas utilitário” (grifo do próprio autor)19. Toda proposta de realização do trabalho hermenêutico que
alargue excessivamente o rol dos elementos passíveis de utilização pelo julgador e lhe confira amplo espaço de construção e criação tem, por assim
dizer, uma vocação autocrática; isso porque ela confere ao juiz ou ao julgador, de modo geral, uma ampla margem de arbítrio na realização das escolhas e na eleição dos fundamentos passíveis de uso em suas motivações e
justificações. São muitas e variadas as escolhas e decisões que podem ser
justificadas – e é muito difícil criticar e controlar racionalmente essas escolhas e decisões – se praticamente tudo: fato, valor, norma, história e cultura,
pode ser usado como guia na interpretação da norma. Por outro lado, se a
proposta de realização da interpretação trata o momento da aplicação da
17
KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. 6ª edição. Trad. João Baptista Machado, Coimbra, Armênio Amado
Editora, 1984. p. 469-470. Sobre esse ponto, cf. também a análise do chamado desafio kelseniano, feita por
FERRAZ JR., Tercio Sampaio. Introdução ao Estudo do Direito. 2ª edição. São Paulo: Atlas, 1996. p. 260-263.
18
Cf. capítulo X da obra Teoria do Direito e do Estado. 5ª edição. São Paulo: Saraiva, 2010, intitulado Análise do Poder do Estado.
19
Ato de julgar e senso de justiça. In: Estudos de filosofia do direito. Reflexões sobre o poder, a liberdade, a
justiça e o direito. 3ª edição. São Paulo: Atlas, 2009. p. 289-307. O trecho transcrito consta da p. 292.
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norma como um exercício de razão prática, sujeito a procedimentos e a uma
racionalidade pré-determinada, o campo oferecido para a justificação e a
motivação das decisões e escolhas diminui sensivelmente. Nem tudo pode
ser usado como fundamento para as decisões; se há norma claramente identificável que incide sobre os fatos, não há porque preterir o silogismo ou
taxá-lo, de antemão, como pobre ou insuficiente. Apenas na ausência de
uma norma que, por silogismo, possa decidir a controvérsia, é que faz sentido buscar outros modos de interpretação e justificação das decisões 20. Ao
lado de MACCORMICK, outro autor que se esforça por estabelecer um estatuto
racional e regrado para as decisões e escolhas feitas no processo de interpretação é ALEXY21. Não seria impreciso, ademais, incluir DWORKIN entre os
estudiosos que comungam da mesma preocupação, uma vez que ele equipara o agir jurídico com a atividade interpretativa, entendida não como conhecimento estático das possibilidades de aplicação da norma, nos moldes da
ciência jurídica do século XIX22, mas como o exercício de um raciocínio valorativo e capaz de determinar, justificar e criticar decisões. DWORKIN ilustra
esse papel interpretativo e argumentativo do agir jurídico ao sintetizar o trabalho de seu famoso juiz-filósofo Hércules como a construção (e não o conhecimento) de um “esquema de princípios abstratos e concretos que forne-
ça uma justificação coerente a todos os precedentes do direito costumeiro e,
na medida em que estes devem ser justificados por princípios, também por
um esquema que justifique disposições constitucionais e legislativas”23.
Não tenho aqui nenhuma intenção de criticar Miguel Reale por construir uma teoria do direito à margem da virada lingüística24. O teor da objeção é
distinto. Conforme de certo modo já anunciei acima, o ponto que quero aqui
destacar é o de que a proposta de Miguel Reale para o tema da hermenêutica
é tão ampla, e tem pretensões tão abrangentes, que acaba por atribuir ao
julgador possibilidades as mais largas possíveis de fundamentação de suas
20
MACCORMICK, Neil. Argumentação jurídica e teoria do direito. Trad. Waldéa Barcellos. São Paulo, Martins Fontes, 2006. Em sentido semelhante, FERRAZ JR., segundo o qual: “se não for possível um método que
nos permita apontar um sentido correto ou verdadeiro para as normas, na linha de autores céticos com Kelsen e Alf Ross, ao menos seria possível identificar interpretações justificadas ou não justificadas a partir de
certos postulados de competência ou máximas de racionalidade retiradas da própria finalidade da atividade
de legislação como relação assimétrica e de decisão de conflitos por meio de mensagens jurisdicionais”. Ato
de julgar e senso de justiça. In: Estudos de filosofia do direito. Reflexões sobre o poder, a liberdade, a justiça
e o direito. 3ª edição. São Paulo: Atlas, 2009. p. 299.
21
ALEXY, Robert. Teoria da argumentação jurídica. Trad. Zilda Hutchinson Schild Silva e revisão de Claudia
Toledo, São Paulo, Landy Editora, 2005.
22
Um exemplo bem acabado dessa concepção novecentista da hermenêutica jurídica pode ser encontrado na
obra de MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do Direito, 16ª edição, Rio de Janeiro, Forense,
1996.
23
DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. Trad. Nelson Boeira, São Paulo: Martins Fontes, 2002, no
ensaio “Casos Difíceis”. p. 182. Sobre a vida e obra de DWORKIN, cf. GUEST, Stephen. Ronald Dworkin.
Edimburgh: Edinburgh University Press, 1992.
24
Sobre a virada lingüística e seus reflexos no campo do Direito, confira-se CASTANHEIRA NEVES, Antonio.
O actual problema metodológico – Da interpretação jurídica. t. I. Coimbra, Coimbra Editora, 2003. p. 113 e
seguintes.
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decisões, sem que se tenha critérios suficientemente claros e objetivos para
submeter esses juízos a críticas e controles. É o que se constata mediante
uma análise mais detida da chamada teoria dos modelos jurídicos, que de
certo modo dão corpo às concepções de Miguel Reale sobre a atividade de
interpretação. Passagens significativas do pensamento do autor a esse respeito podem ser encontradas em diversas obras. Em O direito como experiência, o ensaio X, dedicado justamente a Problemas de Hermenêutica Jurídica, Miguel Reale trata com franqueza do que qualifica como um pressuposto
ou condicionante de todo ato interpretativo: “a típica liberdade ou problematicidade do ato interpretativo”. Segundo o autor, o juiz teria a liberdade, ao
julgar, de “por as premissas do seu raciocínio” e, na determinação dessas
premissas, “o juiz é sempre livre”25. No remate do raciocínio, Miguel Reale
afirma que essa liberdade, a rigor, assiste a qualquer intérprete, em excerto
que merece transcrição: “Essa, na realidade, é a liberdade não só do juiz,
mas de qualquer intérprete, o qual se desenvolve problematicamente, isto é,
tendo a disponibilidade de múltiplas opções possíveis no âmbito de uma
objetividade cujos horizontes o vinculam. É claro que a amplitude dessa capacidade de escolha varia segundo diferentes objetividades histórico-sociais,
mas, em nenhuma delas, penso eu, é tão vasta como nos domínios do direito” 26. Não coloco em dúvida que possa haver uma pluralidade de modos de
interpretação de uma determinada norma ou de uma situação normada. O
problema é não haver, na teoria da interpretação de Miguel Reale, qualquer
critério racional capaz de dizer qual desses diferentes modos deve ser preferido, ou qual deles é capaz de fornecer melhores justificativas para as decisões e escolhas do intérprete. Há um folgado espaço de escolha e decisão no
qual o autor reconhece simplesmente liberdade ao julgador, que fica por
assim dizer imune a críticas e controles sobre o exercício dessa liberdade.
Em Fontes e Modelos do Direito (para um novo paradigma hermenêutico)27,
Miguel Reale formula preceitos que definiriam o que denomina de interpretação estrutural, em linha com a definição de modelo jurídico como espécie
do gênero estrutura. Nesse estudo, o autor elabora um elenco de dez diretrizes hermenêuticas, que tomo a liberdade de parafrasear como segue: a) a
interpretação deve ter caráter unitário; b) a interpretação supõe a valoração
inerente às proposições normativas; c) a interpretação deve ser feita com
atenção ao contexto; d) a interpretação não pode se divorciar por completo
25
REALE, Miguel. O direito como experiência. 2ª edição. São Paulo: Saraiva, 1992. p. 244. Sobre o tema da
interpretação em Miguel Reale, cf. LAFER, Celso. A contribuição de Miguel Reale para a interpretação e
aplicação dos princípios gerais da Constituição. Revista Brasileira de Filosofia. V. LII. Fasc. 212. out/nov/dez
2003. p. 498-500.
26
REALE, Miguel. O direito como experiência. 2ª edição. São Paulo: Saraiva, 1992. p. 244.
27
REALE, Miguel. Fontes e modelos do direito (para um novo paradigma hermenêutico). São Paulo: Saraiva,
2002. p. 5: “Em primeiro lugar, tenha-se presente que o modelo não é senão uma espécie do gênero estrutura,
entendida como esta como ‘um conjunto de elementos que entre si se correlacionam e se implicam de modo a
representar dado campo unitário de significações’”.
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do direito positivo; e) a interpretação deve considerar as intenções iniciais do
legislador, mas também atualiza-las diante dos fatos e valores supervenientes; f) a interpretação deve se mostrar racional; g) a interpretação deve levar
em conta as circunstâncias históricas; h) a interpretação deve estar atenta à
coerência dos modelos jurídicos; i) a interpretação deve se guiar por escolhas éticas; e j) a interpretação deve tomar parte de uma compreensão geral
do mundo e da vida. Com todo respeito devido ao autor, essas dez máximas
consubstanciam platitudes, que seriam de pouca valia para um intérprete
interessado em identificar critérios racionais pelos quais deve preferir uma
dentre duas ou mais soluções possíveis para um caso concreto. As diretrizes
são tão abrangentes que qualquer solução poderia, com mais ou menos esforço retórico, ser reconduzida a elas, de modo que reina, afinal, o arbítrio
de quem está em posição de decidir, sendo suas escolhas defensáveis e imunes a críveis e imunes a crsempre defensas sempre defend) a interpretaçerpretaçaçodo a representar dado campo unitpretativo: "críticas sempre que
se apoiarem nos vastos preceitos da hermenêutica estrutural. As mesmas
idéias são apresentadas, em forma resumida, nas Lições Preliminares de Direito28. Em um outro estudo interessante, voltado à obra de Tullio Ascarelli,
Miguel Reale é enfático em qualificar o trabalho de interpretação como autenticamente criador, permeável a valorações e preferências do julgador 29.
Essa concepção sobre a atividade hermenêutica não restou circunscrita
ao campo doutrinário. Miguel Reale, como se sabe, presidiu a comissão redatora do projeto de lei que se converteu no Código Civil de 2002 e teve a
oportunidade de imprimir suas convicções em pontos centrais desse diploma
legislativo. Um desses pontos é o da chamada função social do contrato,
positivada no art. 421 do Código Civil. Tal como posta e redigida, essa norma acaba por dar margem exatamente a exercícios de hermenêutica estrutural, propiciando juízos autocráticos e desregrados na solução de casos concretos. É do que tratará a seção seguinte.
O art. 421 do Código Civil afirma que: “A liberdade de contratar será
exercida em razão e nos limites da função social do contrato ”. A liberdade
contratual, com a qual a função social guarda nítida relação, é princípio cujo
caráter capital para o direito dos contratos é elementar e dispensa maiores
comentários. Esse mesmo princípio da liberdade contratual, além disso,
28
REALE, Miguel. Lições preliminares de direito. 23ª edição. São Paulo: Saraiva, 1996. p. 285-289.
REALE, Miguel. A teoria da interpretação segundo Tullio Ascarelli. Revista de direito mercantil, industrial,
econômico e financeiro. n. 38. São Paulo. 1980. p. 75-85.
30
Parte das considerações dessa seção constam de minha dissertação de mestrado, defendida em 2009, na
Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, intitulada Função Social do Contrato: um ensaio sobre
seus usos e sentidos.
29
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transmite uma regra permissiva clara, cujos problemas de interpretação se
situam precisamente nos limites da permissão, e não no seu sentido e conteúdo propriamente ditos. Cumpre, portanto, tentar diminuir a vagueza e a
ambigüidade que cercam a chamada função social do contrato. Limites obscuros são maus limites, pois falham na tarefa básica de distinguir o certo do
errado, o lícito do ilícito. Por um lado, essas notas de vagueza e ambigüidade
decorrem da chamada textura aberta da linguagem e nelas se acha campo
fértil para o desenvolvimento do raciocínio jurídico. Por outro lado, porém,
essas mesmas características facilitam e incentivam a prática de abusos retóricos na elaboração e justificação das decisões, o que tende a gerar soluções díspares para problemas idênticos ou equivalentes. O mesmo efeito de
propiciar abusos retóricos e ensejar decisões diferentes para casos semelhantes é catalisado por postulados hermenêuticos como aqueles defendidos
por Miguel Reale, conforme procurei demonstrar na seção anterior. Esse risco de soluções divergentes para problemas idênticos ou equiparáveis, todas
pretensamente fundadas na função social dos contratos, compromete o
princípio da igualdade, que manda conferir igual tratamento às situações
iguais e desigual às situações diferentes, na proporção das dessemelhanças
verificadas. Na prática, e a teor da própria redação do artigo 421 do Código
Civil, pode-se lançar mão da função social do contrato tanto como argumento que reforça como argumento que limita a liberdade contratual em determinado contexto. Afinal, a função social do contrato é posta a um só tempo
como razão e limite da liberdade de contratar; uma dialética de implicaçãopolaridade pode ser uma boa descrição de uma situação complexa, mas é
capaz de deixar um tanto confuso alguém que tenha interesse em usar a
norma como guia de conduta. Com base em qual critério se deve decidir
sobre a prevalência da função social como fundamento ou como limite, em
um caso concreto? O Código Civil, segundo defendo, não é a sede adequada
para a proclamação de aforismos filosóficos ou para a explicitação de dialéticas de implicação-polaridade31. Normas jurídicas são e devem ser usadas
como guias para a conduta humana; devem ser capazes de permitir juízos de
fundamentação e crítica dos comportamentos que lhes forem conformes ou
contrários, de acordo com as circunstâncias do caso 32. Para remediar essa
situação, sustento que se deve buscar construir uma leitura da função social
do contrato que se paute pela noção de razão prática33.
Embora tenha se tornado lei vigente em 2002, é sabido que a chamada
“idade mental” do Código Civil data do início dos anos 1970. A defasagem
31
Sobre a dialética de implicação-polaridade, cf. REALE, Miguel. O direito como experiência. 2ª edição. São
Paulo: Saraiva, 1992. p. 70-74.
32
HART, H.L.A. The concept of law. 2nd ed.. Oxford, Oxford University Press, 1997. p. 124-136.
33
MACCORMICK, Neil. Argumentação jurídica e teoria do direito. Trad. Waldéa Barcellos. São Paulo, Martins Fontes, 2006 e Rhetoric and the rule of law, a theory of legal reasoning (law, state and practical reason).
Oxford, Oxford University Press, 2005.
114 RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 6, n. 1 jan/jun 2010
que hoje acomete os modelos jurídicos que pretenderam conformar o Código Civil foi captada com especial precisão por JUNQUEIRA DE AZEVEDO, em estudo sobre o tratamento conferido por esse diploma à boa-fé objetiva34. Nesse
estudo, o autor vale-se da noção de paradigma para demonstrar que o Código Civil vigente está já ultrapassado, por confiar excessivamente na capacidade de o Poder Judiciário remediar a vagueza dos conceitos jurídicos indeterminados e das cláusulas gerais. Em outras palavras, o Código Civil investe
o julgador de amplos e maleáveis poderes de decisão, na medida em que
oferece parâmetros ambíguos e vagos como elementos capazes de conferir
motivação e fundamentação para as escolhas feitas pelos intérpretes, conforme procurei apontar na seção anterior. Ainda segundo JUNQUEIRA DE AZEVEDO, estão hoje igualmente defasados tanto o paradigma da lei, típico do século XIX, como também o paradigma do juiz, característico do século XX. Há,
atualmente, uma fuga do juiz, uma recusa à retórica sem diretriz concreta e
uma busca por soluções mais expeditas, que prescindam, se possível, do
Poder Judiciário35. Por isso, embora as idéias de conceito jurídico indeterminado e cláusula geral sejam necessárias para qualquer aproximação da função social do contrato prevista no Código Civil, é preciso hoje trabalhar pelo
aprimoramento do modelo que as engendrou.
Para superar as mazelas de que se originou o art. 421 do Código Civil,
é preciso estabelecer critérios capazes de ordenar o uso da função social do
contrato, na linguagem do direito privado brasileiro. Já se chamou a atenção,
acima, para o risco representado pela vagueza e ambigüidade ínsitas à locução função social do contrato. Na ausência de um conjunto sistemático de
conhecimentos capaz de regrar a atribuição de sentidos a essa locução, abre-se margem para uma utilização arbitrária dessa figura jurídica. Nesse
manejo desregrado, é grande a possibilidade de serem apresentadas soluções díspares para casos idênticos ou equivalentes, o que compromete sensivelmente a observância do princípio da igualdade, conforme já sublinhado
acima. Além disso, abre-se também espaço para uma outorga desmedida de
poderes ao juiz, que, sob o amplo e impreciso pálio do discurso sobre as
cláusulas gerais, estaria livre para preencher o conteúdo da função social do
34
JUNQUEIRA DE AZEVEDO, Antonio. Insuficiências, deficiências e desatualização do projeto de Código Civil
(atualmente, código aprovado) na questão da boa-fé objetiva nos contratos. In: Estudos e pareceres de direito
privado. São Paulo, Saraiva, 2004, p. 148-158.
35
Por sua expressividade, confira-se o pensamento do autor em suas próprias palavras: “Após o [paradigma]
da lei, veio o paradigma dito do juiz, daquele tempo em que o Estado era intervencionista; ele usava os famosos conceitos jurídicos indeterminados e as cláusulas gerais. Esses conceitos jurídicos indeterminados eram
principalmente o que chamo de ‘bando dos quatro’ – à moda daquela revolução cultural comunista -, quais
sejam: função social, boa fé, ordem pública e interesse público. O problema todo desses quatro conceitos era
que eles não tinham conteúdo, eram vazios do ponto de vista axiológico. Até hoje eles servem para a retórica,
mas o mundo atual não se conforma mais com esses conceitos vazios. O paradigma, que antes era o da lei,
passou a ser o do juiz, e, agora, é o da solução rápida do caso concreto. Hoje, estamos fugindo do juiz.” JUNQUEIRA DE AZEVEDO, Antonio. Insuficiências, deficiências e desatualização do projeto de Código Civil (atualmente, código aprovado) na questão da boa-fé objetiva nos contratos. In: Estudos e pareceres de direito
privado. São Paulo, Saraiva, 2004, p. 156.
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contrato de acordo com sua livre consciência, sensibilidade e criatividade.
Em meio à ausência de parâmetros minimamente objetivos, aumenta a probabilidade de o Poder Judiciário atuar sem maiores contenções ou atenção,
por exemplo, à possibilidade de universalização da decisão a todo o conjunto de casos iguais que, por uma razão ou outra, não chegaram a ser levados
a juízo ou ao mesmo julgador. Não se cuida de um risco abstrato, imaginário
ou distante. É possível encontrar na obra de diversos autores, alguns freqüentemente citados no foro, a defesa de uma utilização praticamente irrestrita da função social do contrato, o que a aproximaria de um instrumento
flexível e quase onipotente, capaz de solucionar todas e quaisquer deficiências e injustiças que possam acometer as relações contratuais. Por essa última ótica, a função social do contrato permitiria fundamentar desde o puro e
simples arbitramento de taxas de juros em contratos bancários, a solução
para problemas de endividamento excessivo e consistiria ainda em um remédio adequado para todos e quaisquer problemas de desequilíbrio ou desigualdade contratual36. Como ilustram os trechos transcritos nessa última
nota, estão em voga idéias que parecem querer atribuir à função social do
contrato as propriedades terapêuticas um autêntico emplastro jurídico, cuja
concepção entraria nas mentes dos julgadores a “bracejar, a pernear, a fazer
as mais arrojadas cabriolas de volatim”, como ocorreu com o finado Brás
Cubas. Diante dessa notável desorientação, é fundamental a observação de
SALOMÃO FILHO, no sentido de que a função social do contrato não se presta a
“tentativas assistemáticas e difusas de requilíbrio contratual”37. Além de ter
em conta esse alerta, cumpre sistematizar os grupos de casos em que se
pode advogar um uso regrado da função social do contrato 38.
36
É o que se colhe, por exemplo, em NERY JR., Nelson. Contratos no Código Civil. Apontamentos gerais. In:
O novo Código Civil. Estudos em homenagem ao Prof. Miguel Reale. Coord. Domingos Fanciulli Neto et.
allii. São Paulo, LTr, 2003. p. 398-444: “Esses juros de 15% ao mês, liberados segundo o STF, constam de
cláusula de contrato bancário celebrado entre instituição financeira e empresa. A empresa ajuíza ação de
revisão de contrato, entendendo que os juros estão acima de sua capacidade de pagamento e que, além disso,
são fator de desequilíbrio do contrato. O juiz pode, aplicando a cláusula geral de função social do contrato
(CC 421), reduzir os juros a, por exemplo, 7% ao mês. Com isso o juiz observou a intangibilidade da liberdade
de fixação do percentual de juros, bem como desconsiderou a polêmica questão sobre a incidência ou não do
Código de Defesa do Consumidor aos contratos bancários. Simplesmente aplicou o Código Civil e fez concretizar-se a cláusula geral abstrata da função social do contrato” (p. 417-418). Em sentido semelhante, o já
citado VILLAÇA AZEVEDO, Álvaro. Contratos: disposições gerais, princípios e extinção. In: Princípios do
Código Civil Brasileiro e Outros Temas (homenagem a Tullio Ascarelli). Coord. JUNQUEIRA DE AZEVEDO,
Antonio; TÔRRES, Heleno Taveira e CARBONE, Paulo. São Paulo, Quartier Latin, 2008, p. 52. Um terceiro
entre prováveis outros exemplos de laxismo na interpretação da função social do contrato pode ser encontrado
em FURCK, Christiane Hessler. Conceito legal indeterminado: a função social do contrato e a função criadora
do juiz. Revista de direito privado. São Paulo. n. 34. p. 85-104, cuja conclusão é a seguinte: “a função social
do contrato, como conceito legal indeterminado, enseja a atividade criadora do Juiz a partir do exercício de
complementação da vagueza do conceito legal, que culminará na sentença determinativa, capaz de restituir o
equilíbrio contratual e a harmonia das relações jurídicas” (p. 103).
37
SALOMÃO FILHO, Calixto. Função social do contrato: primeiras anotações. Revista de direito mercantil,
industrial, econômico e financeiro. São Paulo, n. 132, p. 7-24, 2003, em especial p. 22.
38
Foi o que procurei realizar em Função Social do Contrato: um ensaio sobre seus usos e sentidos. São Paulo.
Dissertação de Mestrado. Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. 2009.
116 RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 6, n. 1 jan/jun 2010
Este trabalho procurou demonstrar que há uma linha coerente a unir a
atuação de Miguel Reale como personagem histórico, como teórico do direito
e como formulador de textos legislativos. O personagem histórico, como
apontado na seção 2, engajou-se e colaborou ativamente com os dois principais governos autoritários do país durante o século XX, o Estado Novo de
Getulio Vargas, e as ditaduras militares dos anos 1960 e 1970. Como teórico
e filósofo do direito, consoante demonstrado na seção 3, acima, Miguel Reale
esmerou-se em construir o que denominou interpretação estrutural, que
embora possa ser imbuída de louváveis intenções, tem o efeito prático de
conferir ao julgador amplíssimos e desregrados poderes de escolha e decisão na fundamentação das soluções propostas aos casos concretos. Essa
visão peculiar do processo hermenêutico restou refletida, ainda, nas tarefas
de elaboração legislativa desempenhadas por Miguel Reale, como ilustra o
art. 421 do Código Civil. Esse caráter antidemocrático que marca as origens
da função social do contrato, segundo aqui se procurou demonstrar, precisa
ser superado por uma leitura metodológica profundamente distinta daquela
apregoada por Miguel Reale.
É uma exigência democrática, decorrente do princípio da separação
dos poderes, que as pessoas encarregadas de aplicar o direito, mediante
interpretação, devem ser distintas daquelas encarregadas de elaborá-lo e
promulgá-lo; é um requisito do Estado de Direito, igualmente, que os juízes
e tribunais devem aplicar à solução das disputas regras de direito préestabelecidas e previamente editadas39. Advogar a atribuição aos julgadores
de faculdades profundamente criadoras, como pretende a interpretação estrutural de Miguel Reale e aparentemente se pretendia na origem, com a edição do art. 421 do Código Civil, significa negar essas exigências democráticas. São assim necessários outros ares, muito distintos dos que inspiraram
Miguel Reale, para conferir a necessária atualidade democrática à função
social do contrato40.
39
MACCORMICK, Neil. Rhetoric and the rule of law, a theory of legal reasoning (law, state and practical
reason). Oxford, Oxford University Press, 2005. p. 5, 56 e 275. Nessa última página, o autor traça uma importante distinção entre lawmaker e law-finder. O que se espera dos juízes e tribunais em uma democracia, com
efeito, é que sejam law-finders, não lawmakers.
40
Nesse sentido, este trabalho é também uma refutação à iniciativa de BRANCO, Gerson Luiz Carlos. Função
social dos contratos – interpretação à luz do Código Civil. São Paulo: Saraiva, 2009, que busca na obra do
próprio Miguel Reale elementos para subsidiar a interpretação do art. 421 do Código Civil.
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